Estudos em Direito Privado: uma homenagem ao prof. Luiz Carlos Souza de Oliveira [1 ed.] 9788567586021

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Estudos em Direito Privado: uma homenagem ao prof. Luiz Carlos Souza de Oliveira [1 ed.]
 9788567586021

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Organizador: SÉRGIO SAID STAUT JÚNIOR Autores: Eduardo Oliveira Agustinho - Gabriel Schulman Giovani Ribeiro Rodrigues Alves - Glenda Gonçalves Gondim - Luciana Pedroso Xavier Luiz Edson Fachin - Marcos Catalan - Marcos Wachowicz - Marília Pedroso Xavier Renata Carvalho Kobus - Ricardo Marcelo Fonseca - Rodrigo Xavier Leonardo Sérgio Said Staut Júnior - Thaís G. Pascoaloto Venturi Prefácio - José Maurício Pinto de Almeida

ESTUDOS EM DIREITO PRIVADO UMA HOMENAGEM AO PROF.

LUIZ CARLOS SOUZA DE OLIVEIRA 1ª EDIÇÃO

2014

ESTUDOS EM DIREITO PRIVADO

Todos os direitos reservados à Centro de Estudos Jurídicos Prof. Luiz Carlos e protegidos pela Lei nº 9,610 de 19/02/1998. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida por meios eletrônicos, mecânicos, fotográficos, de gravação ou qualquer outro sem prévia autorização da Editora.

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Bibliotecária responsável: Luzia Glinski Kintopp – CRB-9/1535

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Estudos em direito privado / organizador Sérgio Said Staut Júnior. — Curitiba : Luiz Carlos Centro de Estudos Jurídicos, 2014. 266 p. ; 23 cm. Vários autores Em homenagem ao Prof. Luiz Carlos Souza de Oliveira ISBN 978-85-67586-02-1

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1. Direito privado. I. Oliveira, Luiz Carlos Souza de, 1943- 2007. II. Staut Júnior, Sérgio Said. III. Título. CDD: 346

CONSELHO EDITORIAL André Luiz Bauml Tesser Daniel Avelar Eduardo Oliveira Agustinho Ilton Norberto Robl Filho Rodrigo Xavier Leonardo Sérgio Said Staut Júnior

EXPEDIENTE Nota 10 Produções (41) 3308-4523 Projeto Gráfico Nota 10 Produções / Marcelo Lise

Centro de Estudos Jurídicos Prof. Luiz Carlos Rua Voluntários da Pátria, 103, 1.º andar - Centro Telefone: (41) 3232-3756 - Curitiba - Paraná - 80.020-000 Impresso no Brasil/Printed in Brazil 2014

AGRADECIMENTO

Quando procurado pelo professor Sérgio Said Staut Júnior para conversar sobre uma homenagem ao meu querido pai, professor Luiz Carlos S. de Oliveira, não imaginava que tal seria um livro de tamanha adesão. São professores e ex-professores que, em conjunto, chegaram a um denominador de expressão nacional. Cabe a mim poucas palavras, não por falta de conteúdo, mas que a obra em si, completa qualquer iniciativa minha. Agradeço o zelo do professor Sérgio, que além de professor do Curso, é, sem dúvida nenhuma, um dos responsáveis pelo tamanho sucesso do Curso Prof. Luiz Carlos. Em 1983 era uma sala e, hoje, estamos presentes em todo o território nacional por intermédio das aulas online. A qualidade e desenvoltura da equipe docente por anos foi atribuição exclusiva do professor Luiz Carlos, mas já no início do novo milênio, o professor Sérgio foi seu braço direito e, de forma impressionante, o que já era ótimo, conseguiu se superar. Com o falecimento do Prof. Luiz Carlos em 2007, o professor Sérgio assumiu toda a coordenação científica do Curso e implementou todos os ensinamentos do professor Luiz Carlos renovado com sua juventude. Tive a honra e o privilégio de dividir espaço ao lado do nobre professor a quem considero enorme amigo. E como amigo, quero pessoalmente agradecer ao Sérgio pela iniciativa de homenagear meu pai com uma obra repleta de verdadeiros figurões com expressão internacional. Tenho certeza de que lá do céu ele contempla mais esta obra, que ao lado do “Direito e Processo Penal: Entre a ciência e a prática”, enaltece de forma mais viva todos os ensinamentos jurídicos e humanos deixados pelo Dr. e Prof. Luiz Carlos Souza de Oliveira.

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A todos os autores que aceitaram este chamado, e assim, dedicaram seu tempo na construção desta obra, recebam meu fraterno agradecimento, e saibam que cada um de vocês deixou uma marca sólida para que o Curso Prof. Luiz Carlos seja a referência em ensino jurídico no Paraná e no Brasil. Sua participação enaltece e incentiva o estudo jurídico. Meu muito obrigado! Henrique Arns de Oliveira

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APRESENTAÇÃO

Na brilhante obra “Cidades Invisíveis”, Ítalo Calvino narra o diálogo imaginário entre o famoso viajante veneziano Marco Polo e o grande imperador Kublai Khan. O imperador, conquistador e detentor de um império gigantesco, simplesmente não conhecia toda a imensidão dos seus territórios e se valia dos relatos do viajante Marco Polo para apreender e compreender um pouco mais sobre toda a vastidão dos seus domínios. Era absolutamente impossível para o imperador conhecer fisicamente cada um dos locais conquistados. Marco Polo descrevia as cidades que, embora conquistadas pelos exércitos do imperador, eram profundamente estranhas ao soberano. Dentre os inúmeros relatos das “Cidades Invisíveis”: Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. - Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. - A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – respondeu Marco –, Mas pela curva do arco que estas formam. - Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem as pedras o arco não existe. O querido professor Luiz Carlos Souza de Oliveira sabia, como poucos, escolher as pedras e realizar os encaixes necessários. Tinha a sensibilidade, paciência e a inteligência para lapidar essas pedras e “retirar” das mesmas o seu melhor. Compreendia a importância do percurso e que o resultado dependeria exatamente desse caminhar. “Construir pontes”, para o prof. Luiz Carlos, era atividade fundamental e necessária.

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ESTUDOS EM DIREITO PRIVADO

Ao longo dos mais de trinta anos do Curso Luiz Carlos, inúmeros sonhos foram idealizados e realizados. Gerações de alunos que se tornariam professores, promotores, juízes, advogados, defensores, procuradores, delegados, dentre outros profissionais da área jurídica, encontraram, no Curso Luiz Carlos, um espaço privilegiado para a sua preparação e realização de seu projeto de vida. Um desses sonhos está materializado na presente obra. Este livro conta com a contribuição de autores que foram ou são professores no Curso Luiz Carlos. São docentes e profissionais de grande destaque no direito (e para além dele) que aceitaram prontamente o convite e contribuíram com artigos relevantes nas suas respectivas áreas. O livro é dividido em três partes. A primeira parte aborda alguns dos principais fundamentos do Direito Privado construído na Modernidade. A segunda parte da obra contempla importantes estudos de Direito Civil e de Direitos do Consumidor. A terceira e última parte é constituída por reflexões relevantes em relação ao Direito Empresarial e aos Direitos Intelectuais. 6

Esta homenagem ao prof. Luiz Carlos, mais do que merecida, foi coletivamente realizada com muito carinho e dedicação. Agradeço muito aos meus amigos e colegas professores Eduardo Oliveira Agustinho, Gabriel Schulman, Giovani Ribeiro Rodrigues Alves, Glenda Gonçalves Gondim, Luciana Pedroso Xavier, Luiz Edson Fachin, Marcos Catalan, Marcos Wachowicz, Marília Pedroso Xavier, Renata Carvalho Kobus, Ricardo Marcelo Fonseca, Rodrigo Xavier Leonardo e Thaís G. Pascoaloto Venturi. Os autores, assim como o prof. Luiz Carlos, acreditam que podem, com suas palavras e ações, contribuir com a construção de uma sociedade melhor e mais decente. Gostaria de agradecer, muito especialmente, ao amigo e timoneiro do Curso Luiz Carlos, Henrique Arns de Oliveira, por acolher a proposta com entusiasmo e envidar todos os esforços para que esta obra fosse realizada. Merece menção e agradecimentos o competente e rápido trabalho de preparação, editoração e revisão desenvolvido pelo editor Hélio Marques e por toda a sua equipe. Agradeço, igualmente, ao amigo e excelente professor José Maurício, exemplo de compromisso e dedicação profissional e acadêmica, pelo genero-

so prefácio e pelos anos de convívio no Curso. A homenagem é para o professor Luiz Carlos, mas é também para todos os funcionários, professores, alunos e ex-alunos do Curso. Muito obrigado prof. Luiz Carlos, por acreditar realmente na educação, pelos inúmeros aprendizados e pelo exemplo. Vamos às pedras... ou à ponte... Sérgio Said Staut Júnior

Curitiba, outubro de 2014.

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ESTUDOS EM DIREITO PRIVADO

PREFÁCIO

Na sequência de “DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL ─ ENTRE A PRÁTICA E A CIÊNCIA”, livro que homenageou o nosso inesquecível Professor LUIZ CARLOS SOUZA DE OLIVEIRA em 2013, sob a coordenação do Professor Paulo César Busato, vem a lume, desta feita, um segundo tributo organizado pelo Professor SERGIO SAID STAUT JÚNIOR, reunindo trabalhos de excelência produzidos por atuais e ex-professores do Centro de Estudos Jurídicos do Paraná ─ conhecido por “Curso Professor Luiz Carlos” ─ na área do Direito Privado.

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A obra, intitulada “ESTUDOS EM DIREITO PRIVADO ─ UMA HOMENAGEM AO PROFESSOR LUIZ CARLOS SOUZA DE OLIVEIRA”, tem o mesmo mérito histórico da anterior: um preito à atuação do memorável Professor Luiz Carlos, que, na docência e na sua carreira no Ministério Público do Estado do Paraná, inspirou inúmeros jovens ao ingresso em diversas carreiras jurídicas, marca de um ideal vivenciado por todos que puderam estar ao seu lado em algum dos trechos de sua vida exemplar. Do mais novo advogado juramentado na Ordem dos Advogados no Paraná ou em outro estado até um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, encontramos ex-alunos e ex-professores do Curso Professor Luiz Carlos (alguns ex-alunos e ex-professores), e, em cada um deles, uma experiência positiva a relembrar do e sobre o estimado homenageado nesta obra ─ principalmente a recordação do incentivo recebido do mestre. A par disso, Luiz Carlos tinha o distinto pendor de incentivar novas vocações ao magistério, no entendimento de que a cultura jurídica deve estar acompanhada da didática, pois a arte de ensinar dela depende direta e demasiadamente. Vários talentosos professores passaram pelo teste seletivo e, primacialmente, orientador do homenageado, que punha em realce que o professor que segura o giz e se comunica com simplicidade atinge o objetivo de ensinar. Incutia em seus discípulos a visão de que a instrumentalidade didática é essencial em todos os pronunciamentos orais e escritos do operador

do Direito em sua profissão, mormente em sala de aula: fazer-se entender, o lema do Professor Luiz Carlos. O Professor Luiz Carlos Souza de Oliveira nutria inescondível predileção pelo Direito Penal. Mas, como todo cultor da Ciência do Direito e como membro do Ministério Público do Estado do Paraná, sempre se manteve atualizado com as demais disciplinas das grades curriculares dos cursos de Direito, porquanto seus pareceres, tanto na área de Direito Público como na de Direito Privado, eram elaborados com o mesmo grau de precisão e zelo, uma revelação de que, nas carreiras estaduais do Ministério Público e da Magistratura, é preciso ter formação geral para o enfrentamento de todos os problemas que, muitas vezes, sozinhos em suas comarcas, os promotores e juízes são convidados a resolver. Portanto, o contato do nosso homenageado com o Direito Privado e a sua ampla experiência na confecção de currículos em cursos de Direito, principalmente no Centro de Estudos Jurídicos do Paraná, inspiraram o Professor SÉRGIO SAID STAUT JÚNIOR a coordenar a presente obra, convidando alguns ex-alunos e posteriormente professores do Curso Professor Luiz Carlos ─ e alguns apenas professores da instituição ─ para que se associassem à homenagem, publicando seus primorosos trabalhos jurídicos com temas de suma relevância a atualidade para todos os estudiosos do Direito. Participam desta histórica obra, para além do precitado coordenador, os professores e juristas de nosso estado EDUARDO OLIVEIRA AGUSTINHO, GABRIEL SCHULMAN, GIOVANI RIBEIRO RODRIGUES ALVES, GLENDA GONÇALVES GONDIM, LUCIANA PEDROSO XAVIER, LUIZ EDSON FACHIN (prestigiado no último lustro e no presente para ocupar uma vaga na Corte Suprema do país), MARCOS CATALAN, MARCOS WACHOWICZ, MARÍLIA PEDROSO XAVIER, RENATA CARVALHO KOBUS, RICARDO MARCELO FONSECA, RODRIGO XAVIER LEONARDO E THAÍS G. PASCOALATO VENTURI. Todos reconhecem a arduidade da atividade de um coordenador de obra jurídica desde o convite até o recolhimento dos trabalhos junto aos autores. No caso, a tarefa de Sérgio Staut Jr. foi facilitada pelo seu prestígio junto aos colegas, bem assim pela motivação do livro: uma homenagem a um professor que, em algum momento da vida de cada colaborador, deixou sua marca ─ uma palavra de incentivo para a vitória ou mesmo de estímulo para lutas maiores na vida profissional. Com muito carinho e cuidado, coordenador e demais autores nos trazem uma inestimável contribuição, uma vez que os

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trabalhos primorosos traduzem a excelência em todos os prismas e vertentes de análise. O livro encontra-se sistematizado em três partes: 1)-ALGUNS FUNDAMENTOS DO DIREITO PRIVADO; 2)-ESTUDOS DE DIREITO CIVIL E DIREITOS DO CONSUMIDOR; e 3)-ESTUDOS DE DIREITO EMPRESARIAL E DIREITOS INTELECTUAIS. À partida, aspectos fundamentais do ramo do direito abordado, com duas especificidades a seguir, numa linha lógica a satisfazer o leitor e o estudioso ao tomar contato com a obra, que se pode antever daquelas que se perpetuam, das que se tornam referência. Merecedor de encômios o coordenador Professor Sérgio Said Staut Júnior pela organização do livro que reúne teses modernas e enriquecedoras, da mesma forma os renomados juristas que se alinharam nesse empreendimento que é uma homenagem a um homem que sempre esteve presente em todas as suas realizações ─ como na de todos que o cercaram durante a vida e nesta fase espiritual. 10

Sinto-me honrado de ter sido convidado, gentilmente, pelo Professor Staut para prefaciar a obra, a princípio por ter sido o primeiro a tomar contato com os ricos trabalhos nela contidos, e, o que me emociona, pelo fato de ter sido aconselhado pelo Professor Luiz Carlos em várias fases de minha vida, a começar pelo Ginásio no Colégio Estadual do Paraná (1967), em que o tive como professor de Português, e, depois, pelas coincidências que a vida não consegue explicar, na Faculdade de Direito de Curitiba (1977), onde me lecionou Direito Penal. Posteriormente, foi meu maior incentivador a ingressar na magistratura, ajudando-me a estudar, e me iniciou no magistério preparatório em 1985, quando comecei a lecionar no Curso Professor Luiz Carlos. Tenho pela família do homenageado enorme consideração e estima. Esta homenagem se dirige também ao leitor, pois recebe uma obra histórica, de referência e de excelência. Curitiba, Primavera de 2014. José Maurício Pinto de Almeida

Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná e Professor do Curso Professor Luiz Carlos

SUMÁRIO

AGRADECIMENTO Henrique Arns de Oliveira .................................................................. 03 APRESENTAÇÃO Sérgio Said Staut Júnior ...................................................................... 05 PREFÁCIO José Maurício Pinto de Almeida ......................................................... 08 PRIMEIRA PARTE - ALGUNS FUNDAMENTOS DO DIREITO PRIVADO SUJEITO E SUBJETIVIDADE JURÍDICA: ALGUMAS CENAS SETECENTISTAS NA FORMAÇÃO DA MODERNIDADE Ricardo Marcelo Fonseca ................................................................... 15 TRAJETÓRIA DO DIREITO PRIVADO NA MODERNIDADE: ALGUNS ASPECTOS RELEVANTES Sérgio Said Staut Júnior ...................................................................... 33 SEGUNDA PARTE – ESTUDOS DE DIREITO CIVIL E DIREITOS DO CONSUMIDOR ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR E O CENÁRIO DOS PLANOS DE SAÚDE Gabriel Schulman ............................................................................... 63 A DESBIOLOGIZAÇÃO DA FAMÍLIA E O DIREITO AO CONHECIMENTO DA ASCENDÊNCIA GENÉTICA: AS CARACTERÍSTICAS DE UM DIREITO CIVIL PATRIMONIALISTA E EXISTENCIALISTA EM TRANSIÇÃO Glenda Gonçalves Gondim ................................................................. 75 A ILEGALIDADE DA COBRANÇA DISSIMULADA DA COMISSÃO DE CORRETAGEM Luciana Pedroso Xavier, Marília Pedroso Xavier ................................. 89 NOTAS SOBRE DIRETIVAS POR ANTECIPAÇÃO DE VONTADE E O DENOMINADO ‘TESTAMENTO VITAL’: QUESTÕES E PROBLEMAS Luiz Edson Fachin ............................................................................. 105

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NOTAS ACERCA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E DO DEVER DE REPARAR DANOS IGNORADOS NO DESVELAR DO PROCESSO PRODUTIVO Marcos Catalan ................................................................................ 123 AS ASSOCIAÇÕES SEM FINS ECONÔMICOS NO PLANO DA EXISTÊNCIA Rodrigo Xavier Leonardo .................................................................. 155 AS ATUAIS FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO Thaís G. Pascoaloto Venturi .............................................................. 175 TERCEIRA PARTE - ESTUDOS DE DIREITO EMPRESARIAL E DIREITOS INTELECTUAIS A REGULAÇÃO DOS CONTRATOS PREVIDENCIÁRIOS NO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL Eduardo Oliveira Agustinho .............................................................. 199 12

A POLÍTICA ANTITRUSTE NO COMBATE AOS CARTÉIS Giovani Ribeiro Rodrigues Alves, Renata Carvalho Kobus ................ 237 A COMPLEXIDADE DOS DIREITOS INTELECTUAIS ENVOLVIDOS NAS BASES DE DADOS DIGITAIS Marcos Wachowicz .......................................................................... 253

PRIMEIRA PARTE ALGUNS FUNDAMENTOS DO DIREITO PRIVADO

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RICARDO MARCELO FONSECA

SUJEITO E SUBJETIVIDADE JURÍDICA: ALGUMAS CENAS SETECENTISTAS NA FORMAÇÃO DA MODERNIDADE Ricardo Marcelo Fonseca1 Sumário: 1. Delimitando o tema: modernidade, subjetividade e Direito na época das Luzes; 2.Um epígono do Settecento: Kant e a formalização da subjetividade; 3. Iluminismo, sujeito e o “projeto” moderno; 4. A formação do moderno e o arsenal jurídico do sujeito; 5.Considerações finais; 6. Referências bibliográficas.

1. Delimitando o tema: modernidade, subjetividade e direito na época das luzes Se tomados de modo generalizante, creio que se pode dizer que os juristas (tanto o prático quanto, frequentemente, também o teórico) têm uma tendência a “naturalizar” conceitos, retirá-los de seus contextos e de suas contingências profundamente temporais. Ou seja, tendem a retirá-lo da história. De fato, é muito comum – como bem nos lembra António Hespanha – que alguns juristas (e mesmo alguns historiadores), iludidos pela similitude morfológica das palavras (obligatio – obrigação; famuli – família; status – Estado), caiam na armadilha das “falsas continuidades” dos institutos jurídicos, imaginando que não houve uma profunda transformação da sua semântica e que nada mudou, digamos (pois isso é o que frequentemente se faz), desde os tempos romanos2. Mas o tempo é transformador e corrosivo. Na temporalidade – desde que se lhe dê a devida atenção – pode-se perceber, às vezes de modo muito claro, a existência de contextos bem demarcados de nascimento ou de corrupção de alguns conceitos; e às vezes se pode até notar o momento de seu desaparecimento. Nada é infenso à historicidade. E esse é o caso também do conceito de sujeito e de sujeito de direito. Embora sejam categorias tão centrais no manejo que hoje fazemos no direito (como também na filosofia, na teoria política e nas ciências humanas de modo geral), a ponto de às vezes até nos sentirmos tentados a naturalizá-las, como 1  Professor do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Pesquisador do CNPq. Diretor da Faculdade de Direito da UFPR. Presidente do IBHD – Instituto Brasileiro de História do Direito. 2  HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Lisboa: Europa América, 1997, p. 19.

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se fizessem parte de uma essência trans-temporal do existir humano, o fato é que elas são, como todo o resto, absolutamente contingentes. São noções que não existem desde sempre, já que têm contextos de formação e de expressão muito próprios. O sujeito (e as noções de sujeito de direito e de noção de subjetividade jurídica) são, enfim, produções históricas. Mas apontar a existência da historicidade das categorias (e em particular destas) não basta; é necessário colocar mãos à obra e proceder ao árduo e complexo trabalho de compreensão diacrônica dos conceitos. No caso das categorias do sujeito ou sujeito de direito, o trabalho de recuperação dos contextos institucionais e teóricos nos quais a ideia de sujeito e de sujeito de direito nascem e se desenvolvem pode ser tarefa para uma vida de pesquisa.

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De fato, o processo de gestação do sujeito (e do sujeito de direito) foi lento e complexo. E tem uma trajetória que é paralela (para não dizer que é interdependente) do próprio processo de emergência da modernidade. Tem raízes na Idade Média (alguns dizem que na reflexão canônica, outros dizem que no pensamento franciscano de Guilherme de Ockham), tem etapas cruciais no século XVI no pensamento da chamada Segunda Escolástica espanhola; e tem uma maturação inequivocamente moderna no século XVII. De fato, é nesse período (que os italianos chamam de Seicento) que a conceptualização em torno do sujeito (e do sujeito de direito) aparece de modo indiscutivelmente moderno nos âmbitos da reflexão filosófica (Descartes), política (Hobbes) e jurídica (Grócio).3 Essa foi a etapa em que a modernidade – tomada na acepção de modernidade do pensamento, a modernidade teórica, a modernidade que se vê na reflexão de alguns dos seus grandes autores – aflora em seu modo mais nítido. É também, paralelamente, a época em que a noção de sujeito igualmente desponta com clareza. Mas, como se sabe, o século XVII ainda não é um período em que, no plano institucional e histórico-social, a modernidade já tenha se instalado. O Seicento é um período em que a política, a sociedade e o direito eram ainda profundamente pré-modernos. Vivia-se ainda numa sociedade fortemente estratificada e com a presença de diversas ordens (corpos, corporações) sociais, cujo lugar do indivíduo era ainda determinado pelo seu “status”; era uma época em que o mundo jurídico era ainda completamente embebido na experiência do “ius commune”, o direito comum, de conteúdo fortemente 3  FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2002, p. 58 e segs.

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doutrinário (derivado sobretudo de um caldo romanista e canônico), aderente ao profundo pluralismo jurídico então imperante e completamente avesso à idéia de legalidade e de centralização4. É necessário, por isso, fazer uma distinção importante na própria noção de modernidade: se o século XVII pode ser considerado moderno no plano de algumas das importantes teorizações que ali ocorrem (Descartes, Hobbes, Grócio, dentre várias outras), a modernidade tomada em seus planos político, institucional e histórico social, porém, só será inaugurada com os eventos revolucionários que abrem as portas para a sociedade burguesa entre o final do século XVIII e início do século XIX. Será a partir de então (vide as Declarações de Direito e de independência revolucionárias, por exemplo) é que surgirão noções como Estado-nação enquanto resultado da “vontade geral” e como fonte exclusiva de poder, noções como Constituição, Código, princípio da legalidade, tripartição de poderes, etc. Nesse plano concreto (e não só teórico), a modernidade terá seu lugar somente em pleno século XIX. E aqui o tema desse texto vai sendo delimitado: se o século XVII (o Seicento) é o momento de maturidade teórica da modernidade, das noções de sujeito e de sujeito de direito, e se o século XIX (o Ottocento), da sua parte, é o momento da efetiva realização histórica (no âmbito da política, do direito e da sociedade) da modernidade, das noções de sujeito e de sujeito de direito, então qual é o papel do século XVIII (o Settecento) nesse crucial processo? Teria ele sido somente um hiato entre dois capítulos cruciais da história da modernidade e da subjetividade? Certamente que não: será o século XVIII que, na antessala das revoluções burguesas e da efetiva implementação de um projeto que faça tábula rasa do antigo regime, tomará a ideia de subjetividade e racionalidade com otimismo e confiança, transformando-as em armas afiadas na implantação de uma nova ordem – a ordem burguesa. O século XVIII (conhecido como o ‘século das Luzes’) assistirá o refinamento filosófico da noção de sujeito (em par4  Não é o caso aqui de se ingressar no debate (grande, mas já superado pela melhor historiografia) entre os que viam nos séculos XVII e XVIII marcas do “absolutismo” (entendendo por absolutismo um regime fortemente centralizado, como se nessa época todas as ordens intermédias já tivessem sido eliminadas) e aqueles que, ao nosso ver corretamente, acentuam o persistente e predominante pluralismo jurídico e a enorme descentralização de poder desta época – que só seria efetivamente rompida pelos movimentos revolucionários do final do século XVIII. Por todos, vide HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político (Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina 1994 e COSTA, Pietro. Civitas: storia della cittadinanza in Europa: dalla civiltà comunale al settecento. Roma/Bari: Laterza, 1999.

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ticular, para o fim que aqui nos interessa, na obra de Kant); o século XVIII assistirá também a sua instrumentalização revolucionária, já que a afirmação dos ‘direitos inatos’ do homem e das facetas da subjetividade – todas de inegável inspiração jusnaturalista – serão colocadas como instrumento de superação da sociedade velha e mote para a construção da sociedade do porvir. E, por fim, o direito que emerge desse contexto (um direito que busca tomar matiz racional e moderno) tomará contornos específicos a ponto de se constituir naquilo que será a ordem jurídica burguesa. É esse século crucial na formação da modernidade e da modernidade jurídica, esse século que antecede de modo imediato a efetiva implantação institucional e jurídica do mundo moderno (dentre tantos outros que poderiam ser examinados nessa complexa aventura diacrônica sobre a noção de subjetividade e subjetividade jurídica), que será objeto desse texto. A tarefa é tratar desse momento que, a nosso ver, constituiu-se num capítulo decisivo para que nós nos tornássemos aquilo que somos – e para que a ideia de sujeito de direito tivesse o destino que teve para nossa vida jurídica. 18

2. Um epígono do settecento: Kant e a formalização da subjetividade Se, do ponto de vista filosófico, Descartes, no século XVII, pode ser tomado como fundador da perspectiva filosófica moderna, seguramente Emanuel Kant5, já no século XVIII será aquele que marcará esta filosofia moderna – que é a filosofia da subjetividade – com tintas muito próprias, fortes e perenes. As suas reflexões em torno da razão seguramente lastreiam grande parte da filosofia ocidental moderna, dando-lhe os principais contornos. É que se Descartes traz à reflexão filosófica o “eu pensante”, que inaugura a subjetividade filosófica moderna, é Kant que traz a ideia de uma subjetividade formal (que tanto irá influenciar na reflexão jurídica, como se verá). De fato, Kant ocupou-se das grandes questões teóricas que se lhe enfrentavam, formuladas nas seguintes perguntas: como é possível conhecer? (cuja resposta é dada pela metafísica – que para ele tinha o sentido de investigação sobre a possibilidade do conhecimento); o que devo fazer? (cuja resposta é dada pela moral); o que posso esperar? (cuja resposta – que diz respeito à esperança – é dada pela religião); e o que é o homem? (resposta dada pela antropologia).6 5  Emanuel KANT (1724-1804), filósofo prussiano de Konigsberg, ali estudou, lecionou e morreu. De vida laboriosa, ascética e muito disciplinada, diz-se que seus concidadãos acertavam seus relógios ao vê-lo passar (cf. RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental: a Aventura das Idéias dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, pág. 341). 6  MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos à Wittgenstein. Rio de

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As duas primeiras indagações é que serão esquematicamente analisadas a seguir. É na sua “Crítica da Razão Pura”,7 de 1781, que Kant empreende a sua filosofia transcendental, ou seja, a investigação que “em geral se ocupa menos dos objetos, do que do modo de os conhecer”.8 E é aqui (no problema de como conhecer o mundo) que ele opera uma verdadeira “revolução copernicana” na filosofia, moldando a ideia da subjetividade cognitiva. Assim, se Copérnico inverteu o modelo de cosmo tradicional segundo o qual o sol girava em torno da terra, Kant aduziu que não é o sujeito que se orienta pelo objeto, mas é o objeto que é determinado pelo sujeito9, ou dito de outro modo, ao invés da faculdade de conhecer ser regulada pelo objeto, é na verdade o objeto que é regulado pela faculdade de conhecer. Por isto a filosofia, segundo este autor, deveria se ocupar da existência de certos princípios a priori que seriam responsáveis pela síntese dos dados empíricos10. Tais princípios, por sua vez, demonstram que todo o conhecimento é constituído por sínteses de dados ordenados pela intuição sensível espaço-temporal, mediante as categorias apriorísticas do entendimento11. São rejeitadas as noções de intuição intelectual (existentes na metafísica tradicional), já que a intuição é sempre sensível, é o modo como os objetos se apresentam a nós no espaço e no tempo, é a condição de possibilidade para que sejam objetos. Assim, o que conhecemos não é o real ou a “coisa em si”, mas sempre o real em relação com o sujeito do conhecimento12. Tal forma de conhecer, todavia, difere do “eu penso” de Descartes que era “puro” e incondicionado pelas experiências da consciência. O “eu penso” de Kant não é anterior às experiências da consciência, mas é precisamente o que lhes dá unidade e não pode ser considerado independente delas13. Como se pode perceber, o ato de conhecer está estreitamente vinculado às condições do conhecimento presentes no sujeito, e o real só é apreendido em relação ao sujeito do conhecimento. Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pág. 207. 7  KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. 8  KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura, pág. 53. 9  MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia, pág. 209 10  CHAUÍ, Marilena. Vida e Obra, In: KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura (Col. Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991, pág. X. 11  CHAUÍ, Marilena. Vida e Obra, In: KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura, pág. XII. 12  MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia, pág. 209/210. 13  MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia, pág. 212.

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Se a razão teórica incide de tal maneira no campo do conhecimento (dando-se a resposta à pergunta: “como é possível conhecer?”), é necessário avançar e buscar a dimensão prática da razão, que determina o seu objeto mediante a ação. Passa-se, pois, à tentativa de responder à indagação: “o que devo fazer? ” Será na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (1785) e na “Crítica da Razão Prática” (1788) que Kant enfrentará a questão na busca de respostas. Para ele a ação deve apenas seguir uma lei moral – lei moral esta que deve ser despida de tudo o que é empírico, de todos os impulsos e tendências naturais. A lei moral somente é possível na medida em que é estabelecida pela razão; a razão definirá o postulado necessário da vida moral e indicará aquilo que se deva obedecer no campo da conduta14. Portanto, em Kant, temos que os princípios éticos são derivados da racionalidade humana e é precisamente no domínio da razão prática (na ética e também no direito) que se coloca a questão da liberdade e da moralidade.

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A lei moral, portanto, é estabelecida segundo princípios universais e imutáveis e se impõe a todos os seres racionais. Eis o sentido do imperativo categórico kantiano que pode ser sintetizado segundo a máxima “age de tal forma que sua ação possa ser considerada como norma universal”. A razão, como se vê, é o guia da racionalidade prática, das formas de agir. Importante destacar a centralidade da noção de autonomia da vontade na elaboração desta fundamentação para a ação. Como diz Bobbio, a autonomia deve ser entendida como a faculdade de dar leis a si mesmo – e a vontade moral será por isso vontade autônoma por excelência15. É por isso que, como colocado acima, a ação é o terreno da liberdade – e esta está por sua vez calcada na vontade autônoma. Como diz Marilena Chauí, “o imperativo categórico afirma a autonomia da vontade como o único princípio de todas as leis morais e essa autonomia consiste na independência em relação a toda matéria da lei e na determinação do livre arbítrio mediante a simples forma legislativa universal de que uma máxima deve ser capaz.”16 Cabe destacar apenas que tal condição de possibilidade da consciência 14  CHAUÍ, Marilena, Vida e Obra, In: KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura, pág. XVI. 15  BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 2ª ed. Brasília: UNB, 1992, pág. 62. 16  CHAUÍ, Marilena. Vida e Obra, In: KANT, Emmanuel. Crítica da Razão Pura (col. Os Pensadores), pág. XVI.

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moral, que é a lei moral (o imperativo categórico) se reveste de um conteúdo formal – razão pela qual Kant é frequentemente acusado de “formalismo ético”. De fato, de acordo com aquela máxima toda ação exige a antecipação de um fim, isto é, o ser humano deve agir como se este fim fosse realizável. Não se estabelece o que se deve e ou não se deve fazer, mas tão somente um critério instrumental e procedimental para a ação17. Trata-se, portanto, de um critério formal, e não material de conduta (como os critérios religiosos, por exemplo, o são). Como se vê, em suma, Kant substitui o conceito substancial de razão pertencente à tradição metafísica por um conceito de razão cindido nos seus momentos. A unidade da razão não é mais do que formal, pois é separada a faculdade da razão prática da razão teórica, assentando cada uma delas em fundamentos próprios18. Essa noção kantiana (que formaliza a subjetividade) irá orientar em grande medida a elaboração jurídica moderna. O século XIX – que finalmente vê implementado o projeto político burguês – irá se inspirar abertamente, na construção da subjetividade jurídica – nesse projeto filosófico.

3. Iluminismo, sujeito e o “projeto” moderno Falar de século XVIII é falar também de Iluminismo e Ilustração. E é conhecida a diferenciação que Rouanet faz dos termos Ilustração e Iluminismo19: enquanto o Iluminismo é uma tendência intelectual (que não pode ser limitada com precisão a uma época específica a partir do século XVIII, e que, no dizer do autor referido, “cruza transversamente a história”) que combate o mito e o poder pela razão, a Ilustração é um movimento cultural que floresceu no século XVIII – tendo como grandes nomes Diderot, D’Alambert e Voltaire – que, especificamente no contexto francês pré-revolucionário, foram personagens do combate contra as “trevas” do antigo regime. Assim, enquanto que o Iluminismo seria um movimento mais amplo, um ens rationis, que se caracterizaria de um modo geral pela luta contra as formas de opressão e pela crença na força emancipadora da razão humana, a Ilustração seria apenas uma realização histórica do Iluminismo (e talvez a sua mais importante). 17  MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia, pág. 213. 18  HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, pág. 29. 19  ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: companhia das letras, 1992, págs. 28/29 e 301.

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Neste contexto aqui delimitado poderíamos colocar uma enorme diversidade de pensadores dentro da tradição iluminista. Desde, é claro, os enciclopedistas da ilustração, até positivistas, liberais e marxistas. Por este critério há em todos eles um cerne mais ou menos comum: uma busca incessante de autonomia com relação a todas as tutelas (a divisa do Iluminismo seria a frase de Kant, “sapere aude” – “ousa saber”20), a busca da liberdade do indivíduo, bem como a procura de sua realização nos mais diversos âmbitos (como a felicidade e a igualdade, por exemplo, malgrado a profunda diversidade de respostas encontradas em cada corrente), e tais realizações para todos, já que o ideal iluminista é universal. Tudo isto, é claro, possibilitado pela razão emancipadora que traz luzes frente a um mundo de obscurantismo, preconceitos e tutelas. É a época, assim, da realização da subjetividade. É o assim chamado “projeto” moderno, na sua forma mais otimista. Até aqui, ao falar sobre nosso tema, mencionou-se sobre modernidade, subjetividade, liberdade, racionalidade, individualidade, autonomia, universalidade. É hora de tentar captar estes elementos – um tanto embaralhados até aqui – e dar-lhes um certo sentido. 22

O caminho descrito até este momento mostra o processo de formação da modernidade enquanto evento histórico social que dispõe de todo um discurso (filosófico, político, jurídico) que lhe serve de substrato. Este discurso, por sua vez, tem como pilar central e como princípio mais característico a subjetividade, vista como um processo histórico e teórico que demonstra o insinuar, o desenvolver e o irromper do sujeito. O sujeito passa a ser a referência da política, da sociedade, do conhecimento e também do direito. A organização do poder, a forma de encarar a sociedade, o modo de fundamentar as reflexões e a forma de regulamentar a vida social, tudo isso terá como referência mediata ou imediata (de acordo com as diversas fases históricas particulares) a figura do sujeito. Poderá se privilegiar nestes âmbitos um sujeito tomado de uma maneira monádica e egoística (como nas concepções mais radicais do liberalismo) ou poderá se enquadrar o sujeito num modo coletivista e social (como, no limite, o fizeram certas leituras do socialismo). Mas, no processo de formação da modernidade será progressivamente o sujeito a referência básica da análise e o substrato do sistema político, social, científico e jurídico. O projeto moderno deve realizar-se, por excelência, pela emergência da subjetividade. 20  ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo, pág. 35.

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A subjetividade, por sua vez, na concepção iluminista, desdobra-se em várias outras facetas para que ela possa operar nos âmbitos social, político, teórico e jurídico que foram mencionados há pouco. As manifestações subjetivas são expressadas por meio de algumas abstrações que lhe são fundamentais e caracterizadoras e que, com base na distinção operada por Hegel, e também por Rouanet,21 podem ser consideradas as seguintes: universalidade, autonomia e individualidade. É por meio destes três desdobramentos que a ideia iluminista de subjetividade se manifesta. Mas neste instante de singular crença na subjetividade, neste momento autoconfiante no “projeto” moderno, como se pode caracterizar os conceitos de individualidade, universalidade e autonomia, enquanto momentos da subjetividade moderna? Aqui há de se seguir precisamente os passos de Rouanet.22 A universalidade quer significar, num primeiro momento, que o pensamento deve transcender as fronteiras nacionais, condenando todos os nacionalismos e outros particularismos, considerados como provincianos. Para o Iluminismo há o reconhecimento do princípio liberal da autodeterminação dos povos e o repúdio a todas as formas de imperialismo. Além de transnacional, esta perspectiva também é transcultural: isto quer dizer que é aceita a ideia de que entre a enorme variedade das culturas humanas existe uma uniformidade fundamental, a unidade da natureza humana. Isto, todavia, não implica que não seja aceito o princípio do pluralismo (também proveniente do liberalismo), desde que as práticas particulares não violem princípios universais de justiça. Outra faceta importante do universalismo iluminista é a afirmação da igualdade entre os sexos e entre as etnias: há o propósito eloquente de obter uma igualdade de fato entre indivíduos de gêneros e etnias diversas. O sujeito, assim, é tomado de modo universal, como dotado de uma generalidade que não pode ser cindida pelos particularismos étnicos, religiosos, nacionais ou de gênero: o sujeito humano é dotado de caracteres genéricos – e, tendo-se que todas as formas de hierarquias (como aquelas das sociedades tradicionais) são rejeitadas por arbitrárias, todas as pessoas devem ser tratadas como iguais. O individualismo, como outro atributo essencial da subjetividade moderna, considera que o aparecimento do indivíduo na história da humanidade 21  ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo: companhia das letras, 1993, págs. 9 e segs. 22  ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade, pág. 33/41.

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é um dos aspectos mais libertadores da modernidade. Vale dizer: o indivíduo, em determinado momento histórico, emerge de sua comunidade, de sua cultura e de sua religião para ser tomado em si mesmo, a partir de suas exigências próprias e seus direitos intransferíveis à felicidade e à auto-realização. Quer seja tomado numa dimensão enormemente abstrata (como no pensamento liberal) ou numa dimensão social, ou seja, como o resultado de um processo social de individuação (como na tradição socialista), o indivíduo é o centro das demandas e o destinatário das atenções sociais, políticas e jurídicas. Isto não quer significar que é rejeitada a possibilidade de existirem determinadas coletividades particulares, mas sim que o titular de direitos universais é o indivíduo. É ele que constrói a sua própria identidade (que não lhe é mais atribuída pelo seu grupo, seus pais ou pelo seu estatuto étnico-religioso); a identidade é objeto de sua escolha. Nas palavras de Rouanet, o Iluminismo “questiona sistematicamente o estatuto imposto a cada um pelas circunstâncias do seu nascimento” e o seu ideal “é o da autoformação, da Bildung individual, o que pressupõe a apropriação da cultura pré-existente, mas pressupõe também a possibilidade permanente de romper com os modelos e normas desta cultura”23 precisamente a partir do indivíduo. Em suma, o sujeito é tomado de um modo individualizado, e esta individualização é viabilizada precisamente pelo processo de universalização que coloca cada um dos indivíduos, tomados em sua singular existência, como dotados das mesmas prerrogativas que seus pares (tomados como seus iguais). Por fim, a autonomia, enquanto o terceiro atributo da subjetividade, tem, na leitura de Rouanet,24 dois estratos diversos: a liberdade (que tem relação com os direitos de cada um) e a capacidade (que tem relação com o poder efetivo de exercer os direitos). Aqui se nota algo como a diferenciação entre as noções de “direito objetivo” (tomado enquanto norma de agir cuja existência é assegurada pelo poder político) e o “direito subjetivo” (tomado enquanto a faculdade dada ao sujeito de exercer os direitos garantidos pela norma). O conceito de autonomia também se cinde em várias dimensões específicas: há a autonomia intelectual – sublinhada com muita ênfase pelos filósofos mencionados neste item – que deve fazer com que as pessoas adquiram sua maioridade cultural e recusem toda a forma de tutela. A razão deve ser o guia (o único guia) no desvelamento do mundo, devendo ser recusadas todas as crenças e opiniões que não sejam rigorosamente guiadas por ela. Autonomia intelectual significa rejeitar as trevas em prol da luz da razão, razão 23  ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade, págs. 36/37. 24  ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade, págs. 37.

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esta que além de tirar os homens do obscurantismo e da ignorância também pode guiá-los em direção à uma emancipação em suas esferas de vida social e política. Daí vem a segunda dimensão da autonomia: a autonomia política. Ela significa a superação de toda forma de despotismo, na valorização da liberdade civil (entendida esta como a capacidade do homem de agir no espaço privado sem interferências ilegítimas) e da liberdade política (entendida esta como a capacidade do homem agir no espaço público). Há finalmente a autonomia econômica, querendo significar o livre direito de participação nas esferas da produção, da circulação e do consumo. Isto é: o homem tem autonomia econômica quando pode produzir, consumir e fazer circular bens e serviços. Assim, a autonomia pode ser resumidamente esquematizada como a) o poder de agir de modo a não sofrer quaisquer interferências fora dos padrões definidos pela esfera pública, b) o direito de participar da constituição desta esfera pública (a que Rousseau chamaria de “vontade geral”, que deveria, em situação ideal, coincidir com a vontade de todos25), c) a faculdade de usar a razão de modo livre e de produzir a cultura e d) o direito de participar do processo de produção e consumo dos bens e serviços. Assim, o sujeito, universalizado enquanto ser dotado de prerrogativas independentemente de suas condições particulares, e, não obstante, considerado a partir de sua individualidade, tem como pressuposto inderrogável de sua subjetividade a capacidade de autonomia em seus diversos ângulos. Este é, sem dúvida, o projeto colocado na Era das luzes para o sujeito. Tomá-lo enquanto um ser guiado pela razão – o que lhe garante autonomia para ver, entender e redescobrir o mundo, que pode organizar suas relações de poder na esfera pública e privada e que pode agir sem embaraços de qualquer ordem na esfera econômica – é a suma confiança nas potencialidades de saber e agir do sujeito. Tomá-lo como dotado de uma essência humana genérica – o que garante o fim do estabelecimento de quaisquer hierarquias “naturais” – é apostar na possibilidade do indivíduo organizar a vida de um modo libertário e emancipado. Tomá-lo na sua mais irredutível individualidade – o que lhe faz como destinatário privilegiado de todas as prerrogativas jurídicas – significa atribuir-lhe o centro do mundo das faculdades, iniciativas e 25  Diz Rousseau: “Se, quando o povo suficientemente informado delibera, não tivessem os cidadãos qualquer comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa. (...) Importa, pois, alcançar o verdadeiro enunciado da vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só opine de acordo consigo mesmo”, In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social (col. Os Pensadores). São Paulo: nova cultural, 1991, págs. 47.

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também das finalidades: o sujeito é a causa de ser, o motor do funcionamento e a finalidade última da modernidade. Tudo isso explicará, enfim, o modo como o direito moderno tomará seus contornos. É precisamente a partir dessas premissas que a ideia de sujeito de direito (e seu correlato, o direito subjetivo). É disso que tratará o item seguinte.

4. A formação do moderno e o arsenal jurídico do sujeito.

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Pelo que aqui se assentou fica claro que o processo de formação da modernidade é o lugar privilegiado de ascensão do direito subjetivo, portanto do direito com um sujeito que o exercita, e, consequentemente, é o lugar e o tempo do sujeito de direito. Este conceito, até então inédito (ou tão somente esboçado) no arsenal teórico dos juristas, passa a ocupar o centro das construções dogmáticas. Os direitos são vislumbrados como ligados a uma dada personalidade e são extensões do uso de uma racionalidade que é inerente ao homem. Viu-se, como a autonomia constituiu-se em um atributo importantíssimo do homem moderno (como as reflexões de Kant e Hegel fazem notar). Fica bastante clara, assim, a homologia e a continuidade existente entre a noção de subjetividade forjada na modernidade e a subjetividade jurídica, tal como nós a conhecemos. Progressivamente os direitos irão sendo relacionados, vinculados e aprisionados ao sujeito. No combate às múltiplas ‘sociedades intermédias’ que compõem o arquipélago jurídico-político do antigo regime, busca-se uma simplificação em que as relações de poder (e as relações jurídicas) devem se reduzir aos polos Estado-sujeito. Há, de um lado, o referente do poder (agora com matiz moderno) que vai se formando e, de outro lado, o referente monádico (in-dividual, racional, autônomo) que é o sujeito moderno. Não se concebe que haja determinado direito sem a presença de um sujeito que seja seu titular ou possa exercê-lo. Nota-se, assim, que de um direito que no início da era moderna era ainda fundamentalmente baseado em uma concepção ordenamental que tomava em conta a existência de múltiplas esferas de poder e de convivência e que vislumbrava o indivíduo como algo diluído e apenas pertencente um determinado grupo (ou ordem) de onde provinha sua identificação enquanto pessoa,26 chegamos a um direito que não pode ser concebido senão como vinculado a um sujeito individualmente considerado. Antes, direitos referidos às múltiplas ordens sociais profissionais ou religiosas; agora, 26  HESPANHA, António Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna, págs. 211.

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direitos referidos a sujeitos. Evidentemente que esta noção de sujeito de direito evoca outra noção muito cara aos juristas – e que já havia sido esboçada no início da modernidade, quer por Guilherme de Ockham, quer pela Segunda Escolástica espanhola do século XVI – que é a de direito subjetivo. Como se pode perceber, as noções centrais na definição do sujeito de direito, do direito subjetivo e também do contrato são poder, faculdade de agir, vontade, interesse, autonomia, igualdade e indivíduo, noções que são produções históricas destes tempos de formação da modernidade. Quer se dizer aqui que estas premissas teóricas que embasam a noção corrente de direito subjetivo são as mesmas que lastreiam o pensamento moderno. Os filósofos da subjetividade moderna (sobretudo Kant e Hegel) e os iluministas franceses tinham como substrato de toda a sua teoria política e social precisamente aquele insumo teórico que foi trabalhado pelos juristas modernos na elaboração e aperfeiçoamento da ideia de sujeito de direito. Note-se, como um caso exemplar, que o grande filósofo do direito Norberto Bobbio, ao analisar a noção de contrato presente em Kant, acaba por praticamente enumerar o modo de funcionamento geral do contrato moderno a partir das premissas filosóficas kantianas: “A dificuldade de conceber o contrato está exatamente na necessidade em que nos encontramos de considerar as vontades que o constituem não como separadas, mas como reunidas num ato simultâneo. (...) a relação jurídica entre mim e o outro é uma relação inteligível, ou seja, derivada das condições da própria validade, não do fato empírico ou do acordo das vontades, mas da dedução da vontade legisladora universal, em que a minha vontade a do outro são inseridas, e que portanto torna possível sua simultaneidade, se não empírica, pelo menos seguramente ideal.”27 Existe, como se pode notar facilmente, uma continuidade teórica (uma homologia, portanto) entre a noção de sujeito, tal como antes referida, e a noção de sujeito de direito, tal como será tratada especialmente a partir do século XIX. Assim como a filosofia da modernidade será por excelência a filosofia do sujeito, o direito moderno será centrado no sujeito. E, afinal, entender a formação do direito moderno (e a subjetividade jurídica moderna) é uma operação intelectual que não pode ser descolada das vicissitudes da formação histórica moderna. 27  BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, pág. 109.

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5. Considerações finais O processo de gestação do sujeito foi lento, mas firme e decidido. Com raízes na segunda Idade Média, vai amadurecendo gradativamente na medida em que a modernidade vai despontando. Processo histórico-social e história do pensamento aqui vão correndo paralelas, mas ocasionalmente interligando-se. Desde a reflexão franciscana até o século de Hobbes, Descartes e Grócio (XVII) o sujeito se insinua e se afirma. No século de Kant (XVIII) o sujeito se estabelece e se coloca como arma em face do antigo regime. Os atributos da subjetividade são direitos tidos como inalienáveis, dados, naturais. E tais direitos do sujeito são colocados como valores, como programas, como promessas, sendo utilizados com vigor no processo revolucionário burguês que entre os séculos XVIII e XIX implementam fortemente (ao menos na Europa continental) a dissolução do antigo regime e a instauração da modernidade burguesa. A partir de então, os valores e ideias lentamente encetados vão se tornando realidade institucional: é a política moderna e o direito moderno que, finalmente, vão se instalar no mundo oitocentista. 28

Não é o caso, pelos limites deste texto, de destrinchar o modo como isto vai ocorrer. Tal seria tarefa para outro texto com envergadura própria, já que os séculos XIX e XX serão pródigos, criativos e inteligentes na aplicação prática de uma série de institutos e conceitos que até hoje nos são familiares (como Estado de Direito, relação jurídica, a criação dos códigos, etc.). Mas algo fica muito claro: a era jurídica burguesa irá, no âmbito público, funcionar a partir da lapidação de um sujeito político que terá uma relação sempre tensa e problemática com a unidade política centralizada que agora passa a ser o referente do poder e dos direitos – o Estado-nação.28 A relação de pertencimento dos indivíduos à sua civitas será objeto de um jogo arrastado, longo e pesado, no qual o resultado é, também, a exclusão de uma série de indivíduos que, na complexa elaboração conceitual jurídica acabam ocupando o papel de ‘não sujeitos’ (como mulheres, escravos, indígenas, etc.).29 28  Vide a respeito COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução histórica “in” COSTA, Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: história, teoria, crítica. Trad. Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, págs. 95/200. 29  Vide a respeito o exemplar estudo de José Ramón Narváez HERNÁNDEZ, que observa as exclusões operadas no campo da subjetividade no caso mexicano (e que poderiam, feitas as devidas adaptações, servir igualmente ao caso brasileiro): La persona en el derecho civil: historia de um concepto jurídico. México: Porrúa, 2005.

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E no âmbito privado, configura-se progressivamente a formação de um sujeito proprietário, vez que a inédita codificação da legislação privada que então se assiste, embora venha à luz sob o signo de um “projeto” universalizante, mostra-se claramente como uma legislação que se dirige a uma espécie muito bem determinada de sujeito: o proprietário. As relações jurídicas privadas tão bem tecidas pela dogmática do século XIX voltam-se, sobretudo, à relação dos homens com os bens (e, obviamente, as proteções jurídicas que devem se voltar a este direito “sagrado”, para usar as palavras da ‘Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão’ de 1789) e das relações entre homens de negócios (ou seja: a disciplina jurídica dos contratos), que vai permitir um trânsito de bens juridicamente protegido e assegurado pelo Estado.30 Não se está, com esse quadro, querendo fazer um discurso antimoderno e muito menos desprezar todos os avanços que a era burguesa trouxe no sentido de deixar para trás iniquidades e privilégios muitas vezes atrozes. Mas nos limites pretendidos por esse texto sobre a formação da subjetividade jurídica, é importante deixar claro que o que habitualmente se chamam de “promessas” modernas (ou, mais especificamente, promessas de realização da subjetividade moderna, inclusive do ponto de vista jurídico) em verdade estão imersas na complexidade e na contradição do passado e do presente. Afinal, a modernidade não pode ser vista como um processo histórico harmônico, pleno de uma cândida generosidade, que a posteridade acata (e nesse caso estão os “mocinhos” com a consciência aplacada) ou então não acata aquela boa carga congênita que foi “prometida”. A modernidade é, isso sim, um processo que desde o início se mostra contraditório, possuindo a virtualidade de oferecer emancipação, mas também regulação (para usar as palavras de Boaventura de Souza Santos).31 E a “realização” dessas “promessas” depende das condições históricas e das lutas que se apresentam em cada momento. A realização da subjetividade, desenhada em contornos completamente 30  Como diz Paolo Grossi, “Se o código fala a alguém, esse alguém é a burguesia que faz a Revolução e que finalmente realizou a sua plurissecular aspiração à propriedade livre da terra e à sua livre circulação”, em GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad. Arno Dal Ri Junior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, pág. 129. 31  SANTOS, Boaventura de Souza. Crítica da razão indolente, pág. 15.

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abstratos (universalidade, autonomia, individualidade) só toma forma, cor e cheiro na concretude da história e de sua dinâmica. E assim é com a subjetividade jurídica (como é também com o próprio projeto moderno): a história coloca as peças do jogo. As regras a serem obedecidas, as estratégias a serem adotadas e os lances a serem realizados dependem da concretude histórica. É nesse cenário que o sujeito pode, efetivamente, se apossar dos seus direitos.

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6. Referências BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 2ª ed. Brasília: UNB, 1992. CHAUÍ, Marilena. Vida e Obra, In: KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura (Col. Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1991. COSTA, Pietro. Civitas: storia della cittadinanza in Europa: dalla civiltà comunale al settecento. Roma/Bari: Laterza, 1999. COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução histórica “in” COSTA, Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de Direito: história, teoria, crítica. Trad. Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2002. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad. Arno Dal Ri Junior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. HERNÁNDEZ, José Ramón Narváez. La persona en el derecho civil: historia de um concepto jurídico. México: Porrúa, 2005. HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Lisboa: Europa América, 1997. HESPANHA, António Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político em Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina 1994. KANT, Emmanuel. Crítica da razão pura. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos à Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: companhia das letras, 1992. ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo: companhia das letras, 1993. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social (col. Os Pensadores). São Paulo: nova cultural, 1991.

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RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental: a Aventura das Ideias dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. SANTOS, Boaventura de Souza. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, São Paulo: Cortez, 2000.

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SÉRGIO SAID STAUT JÚNIOR

TRAJETÓRIA DO DIREITO PRIVADO NA MODERNIDADE: ALGUNS ASPECTOS RELEVANTES Sérgio Said Staut Júnior32 Sumário: 1. Observações Iniciais; 2. A progressiva apropriação do direito privado pelo Estado na modernidade; 3. Traços do moderno e prenúncios da propriedade privada; 4. A “forma código” e a consagração da propriedade privada; 5. Referências Bibliográficas.

1. Observações Iniciais Escrever sobre a “trajetória do direito privado na modernidade” não é tarefa fácil. Primeiramente pela grande quantidade de referências bibliográficas e pesquisas desenvolvidas na área tanto do direito privado, como no âmbito da filosofia, da teoria do direito e da história do direito. As possibilidades de enfoque são muito variadas. Além disso, não é correto afirmar que existe um único direito privado consagrado na modernidade, apesar da existência de alguns elementos comuns em determinadas localidades. 33

O presente trabalho tem apenas o propósito de apresentar um ponto de vista possível, e muito parcial, dessa trajetória no ambiente europeu continental e ocidental, adotando uma perspectiva historiográfica com intenção crítica. A intenção é percorrer alguns traços característicos da mentalidade jurídica desse período, ressaltando, como dado fundamental, o surgimento da ideia contemporânea de Estado e o processo de Codificação, assim como a consagração e importância da propriedade privada. Isso também se justifica porque parte da formação e constituição do direito privado brasileiro recebeu influências significativas dessa forma de compreender a dimensão jurídica. Ainda hoje, muito do que se entende por direito está intimamente vinculado à ideia de Estado e às suas manifestações normativas, inclusive em relação à regulamentação jurídica da esfera privada dos particulares. Aos olhos das pessoas em geral, e especialmente no entendimento de boa parte daque32  Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Professor do Curso Luiz Carlos. Professor Adjunto de Teoria do Direito nos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Professor Adjunto da Faculdade de Direito e do Programa de Mestrado em Psicologia Forense da Universidade Tuiuti do Paraná – UTP. Membro da Comissão de Responsabilidade Civil da OAB-PR. Advogado.

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les que trabalham com o discurso jurídico, fora do espaço estatal não há muito que se falar em direitos. A justificativa para isso talvez possa ser encontrada no longo e contraditório processo histórico de elaboração de uma mentalidade jurídica intimamente ligada à formação dos Estados soberanos33. Além disso, sobretudo para uma melhor compreensão do direito privado, parecer ser necessário destacar a consagração da ideia de subjetividade (assim com as correspondentes ideias de sujeito de direito e direito subjetivo), bem como refletir sobre uma forma profundamente antropocêntrica, excludente e individualista de conceber as relações das pessoas com as coisas, que é a ideia de propriedade privada consagrada na modernidade. Cabe destacar alguns aspectos dessa trajetória.

2. A progressiva apropriação do direito privado pelo Estado na modernidade

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Sobre a gênese e a constituição da modernidade, explica Ricardo Marcelo Fonseca que ela nasce a partir da chamada “sociedade tradicional” ou sociedade do Antigo Regime, e não é possível individualizar de forma precisa os seus progenitores, o seu local e a sua dada de nascimento34. 33  Cabe mencionar, conforme nos explica Hespanha, que a palavra “Estado” não é nova na tradição política europeia. São encontrados significados diferentes, ao longo da história, para a expressão. (HESPANHA, António Manuel. Hércules confundido: sentidos improváveis e incertos do constitucionalismo oitocentista: o caso português. Curitiba: Juruá, 2009, p. 33). Entretanto, foi apenas no final do século XVIII, que a ideia de Estado incorpora “uma referência muito forte à monopolização do poder político, à constituição de um centro de poder único na sociedade; a qual, por isso, fica vazia de poder de imperium e organizada, apenas, por relações políticas paritárias, entre cidadãos iguais, de natureza contratual (“sociedade civil”, “sociedade civil sem império”). ” (HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004, p. 28). Ainda, segundo o historiador do direito, a “ideia de que na sociedade há, ou deve haver, apenas um centro político teve um parto longo e difícil no pensamento político ocidental. ” (HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004, p. 28). Observa-se, assim, que o processo de centralização administrativa e de monopolização do direito pelo Estado não ocorrem de forma concomitante e automática com o surgimento dos Estados nacionais. Isso significa dizer que esse processo de apropriação do poder político e jurídico por parte do Estado foi construído historicamente. Além disso, cabe aqui a observação de Airton Cerqueira Leite Seelaender, “Não é por acaso que se critica, com frequência, o próprio uso do termo ‘Estado’ para descrever as monarquias medievais. ” (...) “Sobretudo inexistia, na Idade Média, uma Administração Pública como a concebemos hoje. ” (SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. O contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público na idade moderna. Sequência: estudos jurídicos e políticos – Revista do Curso de Pós-graduação em Direito da UFSC, Florianópolis: Fundação Boiteux, ano XXVII, n. 55, p. 253-286, dezembro de 2007, p. 255). 34  FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo: LTr, 2001, p. 30.

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Trata-se de um processo histórico demorado e difuso, com raízes profundas, que se inicia com eventos de formidável repercussão como o desenvolvimento, ainda que irregular, do mercado de trocas comerciais e da economia, o crescente processo de racionalização ou de “desencantamento do mundo”35, a reforma religiosa36, a expansão ultramarina e a descoberta das Américas37, o surgimento dos Estados nacionais modernos, bem como outros fatores de ordem científica e teórica que contribuíram para uma mudança antropológica radical na sociedade38 e na compreensão acerca de sua dimensão jurídica. Especificamente em relação ao lento e complexo processo histórico de construção da mentalidade jurídica moderna, ensina Paolo Grossi que “A modernidade jurídica tem raízes remotas. O historiador do direito as pode vislumbrar naquele século XIV, que é extraordinariamente rico de novos fermentos e no qual começam a ser desmentidos os velhos valores sustentadores da civilização medieval. Enquanto nesta os pilares da ordem são representados pela natureza cósmica (o mundo das coisas) e das várias comunidades nas quais o sujeito singular encontra proteção e possibilidade de existência, agora, no século XIV, a nova sociedade começa a direcionar-se para o indivíduo e sobre suas forças individuais. A tentativa é de liberar o indivíduo dos velhos condicionamentos e fazer dele o pilar da nova ordem. O que é testemunhado por aquela revolução antropológica que consiste na ultrapassagem do racio35  Sobre o crescente processo de racionalização do mundo constatado na modernidade, denominado por Max Weber de “desencantamento do mundo”, verificar WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília: Editora UNB, 1991. 36  Nas palavras de José Reinaldo de Lima Lopes, “A reforma protestante e as guerras de religião, o fim da ecoúmene cristã latina impõem novos objetos de reflexão: o problema da pluralidade e da tolerância do dissidente de maneira nova. Antes a tolerância era corporativa, agora será distinta. Os Estados nacionais deverão encontrar um meio de tratar os dissidentes religiosos e não será fácil. O debate em torno da tolerância religiosa antecipará o debate a respeito da democracia, do respeito ao dissidente político. ” (LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 178-179). 37  Segundo José Reinaldo de Lima Lopes, “A conquista da América coloca para os juristas problemas novos, e com ela surgem questões não resolvidas anteriormente (pelo menos não na escala em que se dão) sobre o direito de conquista e descoberta, o direito de posse, a invenção, o tesouro, o direito do mar (a liberdade dos mares) e sobretudo a alteridade, a liberdade natural dos índios. Neste último tema a modernidade começa a enfrentar a tolerância do diferente. ” (LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história ..., p. 178-179). 38  Apenas como exemplo do que se está afirmando são as construções científicas realizadas pelos “teóricos do norte da Itália e seu esforço na teorização de uma autonomia política diante do Império Germânico e da Igreja; a filosofia nominalista do século XIV que, rompendo com o tomismo, tematiza de modo central o particular em detrimento do geral, preparando a centralidade do indivíduo no pensamento moderno” (FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho ..., p. 50).

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nalismo medieval para o voluntarismo da nova era, de um homem que é chamado a conhecer para um outro que é chamado a querer, de um homem que se projeta para fora em atitude de humildade para um homem que encontra em si mesmo toda justificação e que projeta para fora unicamente sua pretensão de dominar o mundo, de colocar-se como soberano do mundo.39 ” O que se verifica na modernidade ocidental é um paulatino e complexo processo de redução e simplificação do direito. Sobretudo no século XIX, após a consolidação de parte significativa dos Estados europeus nacionais e com o movimento de codificação (principalmente o francês), o direito começa, cada vez mais, a ser compreendido (nos países de civil law) como fruto da atividade legislativa de um Estado soberano.

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Ainda, conforme Grossi, “no auge da idade moderna, a esfacelada, complexa e talvez complicada paisagem sócio-política e cultural é abandonada em troca de uma concepção monopolista e absorvente do poder político, o direito passa de nervura da inteira sociedade civil a simples nervura somente do poder político”40. Um direito do Estado e apenas proveniente desse Estado. A dimensão jurídica de uma dada sociedade passa a ser percebida como a voz do poder político estabelecido e perde muito de sua autonomia. Com o extenso processo de apropriação da dimensão jurídica pelo poder político na modernidade, o que se observa como resultado dessa nova forma de compreender o direito é um rigoroso monismo jurídico. Nas palavras de Antônio Carlos Wolkmer: “Distintamente da ordem jurídica feudal, pluralista e consuetudinária, o Direito da sociedade moderna, além de encontrar no Estado sua fonte nuclear, constitui-se num sistema único de normas jurídicas integradas (“princípio da unicidade”), produzidas para regular, num determinado espaço tempo, os interesses de uma comunidade nacionalmente organizada.”41 Para além do sistema de regulamentação estabelecido ou garantido pelo Estado, como regra, não existe ordem jurídica legítima. Cada vez mais, o direito se torna um produto da vontade do legislador, uma manifestação do poder político. 39  GROSSI, Paolo. Para além do subjetivismo jurídico moderno. Curitiba: Juruá, 2007, p. 09. A propósito do tema, verificar também as seguintes obras: VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno, São Paulo: Martins Fontes, 2005; VILLEY, Michel. Filosofia do direito: definições e fins do direito. São Paulo: Atlas, 1977. 40  GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 142. 41  WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa Omega, 1994, p. 54.

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Na leitura proposta por Grossi, esse processo pode ser chamado de “Absolutismo Jurídico”42, expressão que procura retratar “uma civilização jurídica que perde (ou diminui muito) a percepção da complexidade; uma civilização jurídica que se tornou uma ordem simples, extremamente coerente em suas linhas essenciais, forte em uma sua lógica rigorosa, mas muito pouco sensível ao devir e, sobretudo, à mudança.”43 Tem-se, desse modo, um direito muito preocupado com a redução de complexidade, com grande tendência à abstração e simplificação. Trata-se, contudo, de um processo muito lento, permeado de contradições e renitências,44 mas progressivo, de dissolução da sociedade medieval e da sua ordem jurídica. Na explicação de Adriano Cavanna, a história jurídica moderna pode ser compreendida como a “storia di una lunga e grande crisi. Crisi lunga, perché lo Stato assoluto nasce senza quel diritto suo che la sovranità postula, e per tre secoli è costretto ad amministrare l’intramontabile e ormai ingombrante ius commune ereditato dal Medioevo.”45 E, ainda segundo o mesmo autor, “crisi grande, perché crisi della razionalità cristiana: crisi di una civiltà che si secolarizza, che passa da una concezione teocentrica a una concezione antropocentrica dell’esistenza, da una visione del mondo come retto da un ordine divino-rivelato all’idea della natura come pienamente dominabile dall’uomo attraverso lo scientismo tecnológico.”46 Verifica-se, por conseguinte, uma mudança de mentalidade na sociedade e no direito. Nesse percurso, o ius commune, apesar de ter sobrevivido em muitos Estados europeus, com muita força, até o final do século XVIII (e em parte do 42  GROSSI, Paolo. Assolutismo giuridico e diritto privato, Milano: Giuffrè, 1988. 43  GROSSI, Paolo. História da propriedade ..., p. 142. 44  Como demonstra Hespanha, esse processo de centralização do poder político e de monismo jurídico é lento e gradual, além de ser bastante desigual dependendo do momento e do espaço territorial analisado. Não se deve ignorar, conforme alerta o mesmo autor, a manutenção de pluralismos jurídicos e políticos durante todo o período histórico compreendido como antigo regime. (HESPANHA, António Manuel. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, António Manuel. Justiça e litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 07-58). 45  CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa: le fonti e il pensiero giuridico. v.2, Milano; Giuffrè, 2005, p. 30. [Tradução livre: história de uma longa e grande crise. Crise longa, porque o Estado absoluto nasce sem aquele direito seu que a soberania postula, e por três séculos é obrigado a administrar o imorredouro e já incômodo ius commune herdado do Medievo.] 46  CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. v. 2 ..., p. 30-31. [Tradução livre: crise grande, porque crise da racionalidade cristã: crise de uma civilização que se seculariza, que passa de uma concepção teocêntrica a uma concepção antropocêntrica da existência, de uma visão de mundo como regido por uma ordem divina-revelada à ideia da natureza como plenamente dominável pelo homem por meio do cientificismo tecnológico. ]

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século XIX, dependendo do local), começa a perder, ainda que de forma irregular e demorada, o seu sentido e a sua legitimidade na nova sociedade em formação. Com o fluir do tempo e com séculos de existência, o ius commune passa a ser compreendido, cada vez mais, como um direito controvertido e superabundante, sofrendo uma crise de certeza.47 Em virtude da sua natureza (interpretatio) e das inúmeras opiniões doutrinais diversas e, muitas vezes, contraditórias que deveriam (ou poderiam) ser utilizadas pelo julgador para aplicar o direito, o direito comum não correspondia mais (ou começava a não corresponder) às necessidades dos novos tempos.48

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Além disso, não é possível esquecer que a forma fluída, aberta e complexa de compreender o fenômeno jurídico, típica do ius commune, atribuía um grande poder aos juristas e limitava sensivelmente o papel do príncipe e do legislador. No processo de construção e consolidação dos Estados nacionais, com a posterior centralização e monopolização dos poderes político e jurídico (ocorrida na Europa ocidental principalmente durante o século XIX), essa maneira de trabalhar o direito não parecia ser mais tão adequada.49 Essa redução radical de complexidade do universo jurídico, operada na modernidade, tem como consequência o desprezo a outras manifestações do direito que propiciam uma ordem normativa plural e aberta. As práticas, os usos e costumes são excluídos do universo jurídico ou colocados em se47  A crise do direito comum, segundo Paolo Grossi, é uma crise de certeza observada desde o século XV e causada, principalmente, pela “estratificação das opiniões doutrinárias” (GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 48). 48  CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa: le fonti e il pensiero giuridico. v.1, Milano; Giuffrè, 1982, p. 195. 49  Na síntese proposta por Adriano Cavanna, “lungo i secoli XVII e XVIII, l`atteggiamento ideologico degli ambienti di governo e della parte informata dell’opinione pubblica diviene a poco a poco antigiurisprudenziale: l’antico pluralismo viene ad essere negativamente concepito come particolarismo; l’autorità mediatrice del ceto giuridico perde credibilità e le opinioni dottrinali, da autoritativo parametro di certezza che erano, appaiono null’altro che opinioni private, cioè arbitrarie. Il diritto comune comincia ad assumere le parvenze di regime impraticabile e inattuale (...)” (CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. v. 2 ..., p. 41.) [Tradução livre: ao longo dos séculos XVII e XVIII, a atitude ideológica dos ambientes de governo e da parte informada da opinião pública torna-se pouco a pouco anti-jurisprudencial: o antigo pluralismo vem a ser negativamente concebido como particularismo; a autoridade mediadora da ordem jurídica perde credibilidade e as opiniões doutrinais, de fidedigno parâmetro de certeza que eram, parecem nada mais do que opiniões privadas, ou seja, arbitrárias. O direito comum começa a assumir as aparências de regime impraticável e ultrapassado (...)] Nessa mesma linha, verificar a obra de GROSSI, Paolo. Dalla società di società alla insularità dello stato fra medievo ed età moderna, Napoli: Istituto Universitario Suor Orsola Benincasa, s/d.

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gundo plano como fontes apenas subsidiárias de direito. A própria atividade interpretativa, uma das fontes por excelência do direito na Idade Média, após a codificação francesa no século XIX, começa a ser vista com profunda desconfiança, transformando-se em exegese. Consagra-se, também, uma noção potestativa da ordem jurídica. Em boa parte dos países europeus de civil law, no final do século XIX, a dimensão jurídica é percebida muito mais como comando normativo, do que auto-organização. Uma forma, portanto, muito distante daquela observada na Idade Média.50 Outras características fundamentais que decorrem da nova maneira de compreender o direito na modernidade são a laicidade e o individualismo. Como demonstra Michel Villey, estas são exatamente as marcas do pensamento jurídico moderno.51 Segundo o autor citado, por “meio da laicidade, o direito moderno se opõe ao direito clerical da alta Idade Média, àquilo que todo o direito da Idade Média, até o seu final, tem de sacro.”52 Além disso, o individualismo é “o que o pensamento jurídico moderno tem de mais específico: é o individualismo que opõe o direito moderno não só às concepções dominantes da Idade Média, mas também às doutrinas clássicas da filosofia do direito da Antiguidade (ou seja, sobretudo de Aristóteles) ”53.

50  Como demonstra Adriano Cavanna, “Il tipico modello adottato dai vigenti regimi giuridici continentali è il modello del diritto positivo codificato. Esso non è affatto tanto ovvio, intuitivo e scontato come la immaginazione del comune cittadino irriflessivamente presuppone. Non ha costituito sempre (e nemmeno costituisce ancor oggi) l’unico schema organizzativo di una esperienza giuridica evoluta. Basterebbe pensare a come si sono organizzati nel passato o a come appaiono organizzati nel presente altri ordinamenti politico-sociali ad elevato livello di strutturazione, per esempio la Roma classica o l`Inghilterra medievale e moderna: in questi due modelli di case law non scritta la norma nasce dalla soluzione dal caso e non la soluzione dal caso da una norma precostituita.” (CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. Vol 2 ..., p. 33-34). [Tradução livre: O típico modelo adotado pelos vigentes regimes jurídicos continentais é o modelo do direito positivo codificado. Ele não é realmente tão óbvio, intuitivo e previsível como a imaginação do cidadão comum irreflexivamente pressupõe. Nem sempre constituiu (e tampouco constitui ainda hoje) o único esquema organizador de uma experiência jurídica evoluída. Bastaria pensar em como se organizaram no passado ou em como parecem organizados no presente outros ordenamentos político-sociais de elevado nível de estruturação; por exemplo, a Roma clássica ou a Inglaterra medieval e moderna: nestes dois modelos de case law não escrita a norma nasce da solução do caso e não a solução do caso de uma norma pré-constituída.] 51  VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 172-180. 52  VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 175. 53  VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 177.

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Um direito que, apesar das inúmeras “mitologias jurídicas”54 produzidas, se vangloria do fato de ser um direito laico e do indivíduo, fruto do trabalho de um legislador representante do “interesse geral”. Todo esse processo constituiu uma “espécie de ofuscamento: não nos demos conta de que a estatalidade era um produto histórico contingente, a absolutizamos e tomamos como absoluta uma noção de direito muito relativa, seja do ponto de vista temporal (fruto do moderno), seja do ponto de vista espacial (Europa continental).”55 Especialmente no século XIX, a vinculação entre direito e Estado (soberano) foi transformada em necessária.56 A regulamentação jurídica das relações entre os particulares não se distanciou desse cenário.

3.Traços do moderno e prenúncios da propriedade privada Talvez seja possível afirmar que o grande pilar fundamental do direito privado consagrado na modernidade, ao lado e em complemento à ideia de subjetividade, é a propriedade privada. 40

O percurso histórico do conceito moderno de propriedade é bastante longo, alguns de seus alicerces são encontrados em momentos históricos muito distantes, apesar de adquirir toda a sua força apenas no século XIX.57 Pode-se afirmar que a construção dessa noção de pertencimento individual, 54 Conforme Grossi, “todo esse processo recebe uma refinada mitificação, ou seja, é fundado em crenças absolutas e indiscutíveis: se, antes da Revolução, o Príncipe legislador foi habilmente desenhado como intérprete sereno e alheio à felicidade pública, o único imune a paixões, capaz de ler a natureza das coisas, e, por isso, o único válido produtor do direito, com a Revolução o controle e a hierarquia foram revestidos até mesmo com uma aura democrática graças à axiomática identificação (ou se se preferir, à suprema ficção) da lei como expressão da vontade geral.” (GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito ..., p. 50). Para uma análise mais profunda dessa ideia verificar também: GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.   55  GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito ..., p. 28. 56  Evidentemente que não estão sendo desconsideradas as inúmeras conquistas do Estado democrático de direito e a sua importância para o fenômeno jurídico na atualidade; como afirma Hespanha, “a adopção de uma perspectiva pluralista do direito não pode perder de vista o significado democrático hoje assumido pela constituição e pelas leis. Por isso é que – apesar de todas as suas insuficiências – elas têm ainda que continuar a merecer a designação prestigiante de ‘forma da República’, como a forma mais regulada, mais controlada e mais provavelmente adequada de manifestação da vontade popular. ” (HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007, p. 19). 57  A formação da propriedade privada “É um processo de renovação que leva cinco séculos, do XIV ao XIX, e que somente em seu êxito final obtém a inversão de um sentido, a reviravolta da mentalidade: somente na metade do século XIX o fruto, já maduro, destaca-se do ramo, mas a progressiva maturação teve uma duração plurissecular. ” (GROSSI, Paolo. História da propriedade ..., p. 62).

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que permite ao seu titular excluir todas as outras pessoas do uso e gozo de um bem, está intimamente ligada às pretensões da modernidade de liberalização dos sujeitos de todos os vínculos tradicionais e condicionamentos existentes na sociedade medieval. Ocorre que a mudança não se dá de forma repentina. O extenso caminho percorrido configura-se bastante irregular e permeado de conflitos e contradições. As sementes do novo modelo são encontradas no próprio medievo,58 momento em que surgem os primeiros traços de uma nova mentalidade social e jurídica, produto de uma mudança antropológica muito intensa (que vai se desenvolver ao longo de toda a modernidade). A configuração da “propriedade, que renega as soluções medievais do pertencimento e que podemos convencionalmente qualificar como moderna, é desenhada a partir do observatório privilegiado de um sujeito presunçoso e dominador, é emanação das suas potencialidades, é instrumento da sua soberania”59. Isso significa que a nova compreensão jurídica sobre as relações entre as pessoas e as coisas começa a ser pensada a partir do ângulo do indivíduo e da sua vontade, e não mais partindo das coisas e das suas utilidades. Como ensina Grossi, para entender a construção da ideia moderna de propriedade e a sua regulamentação jurídica é interessante revisitar alguns momentos históricos importantes do seu percurso, como a teologia voluntarista dos séculos XIV e XV,60 o pensamento sobre a propriedade da Segunda Escolástica,61 o individualismo possessivo dos séculos XVII e XVIII,62 para se 58  Nas palavras de Paolo Grossi, “Assistiamo al nascere e al progredire, all’interno dell’organismo medievale, di una cellula intrinsecamente autonoma che non tarderà a divenire cancerosa, e perciò corrosiva e demolitrice, di quell’organismo; ma, nel tempo stesso, cellula inaugurale e costitutiva d’una visione del mondo che sentiamo ancora premere sulla nostra coscienza attuale.” (GROSSI, Paolo. Usus facti: la nozione di proprietà nella inaugurazione dell’età nuova. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, n. 1, Milano: Giuffrè, p. 287-355,1972, p. 293). [Tradução livre: Assistimos ao nascer e ao progredir, no interior do organismo medieval, de uma célula intrinsecamente autônoma que não tardará a tornar-se cancerosa, e por isso corrosiva e demolidora, daquele organismo; mas, ao mesmo tempo, célula inaugural e constitutiva de uma visão de mundo que sentimos ainda premer sobre a nossa consciência atual.] 59  GROSSI, Paolo. História da propriedade ..., p. 67. 60  Especificamente sobre a teologia voluntarista dos séculos XIV e XV e a sua importância na construção do ideário moderno de propriedade, vide GROSSI, Paolo. Usus facti: ..., 1972. 61  Em relação ao papel da segunda escolástica, vide GROSSI, Paolo. La proprietà nel sistema privatistico della Seconda Scolastica, In: GROSSI, Paolo (a cura di). La seconda scolastica nella formazione del diritto privato moderno. Milano: Giuffè, 1973, p. 117 e segs. Verificar também VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. 62  Sobre o individualismo possessivo dos séculos XVII e XVIII, vide MACPHERSON, C. B.. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979; BARCELLONA, Pietro. L’individualismo proprietario. Torino: Boringhieri, 1987.

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chegar então às cartas constitucionais do século XVIII e dos códigos do século XIX, não desprezando as renitências e contradições existentes durante todo o percurso. É necessário compreender, também, que a propriedade é antes de tudo mentalidade. Sem qualquer pretensão de esgotar o itinerário histórico da propriedade, parece ser relevante evidenciar alguns dos elementos e dos momentos que contribuíram para o resultado. Na transição do medieval para o moderno é, especialmente, com Guilherme de Ockham, no século XIV, que a noção de direito subjetivo, tão importante para a configuração moderna da propriedade, começa a ser esboçada.63 Segundo o pensador franciscano, que fez parte do movimento filosófico conhecido como “nominalismo”64, a realidade é formada apenas por seres particulares e não por universais. Ockham, de forma contrária aos realistas da Alta Escolástica, que acolhiam a ideia da existência real de modelos ideais, compreende que a realidade é constituída apenas por seres singulares, ou seja, por indivíduos. 42

Na explicação de Michel Villey sobre a “querela dos universais”, “Ockham levou ao extremo o movimento apenas esboçado por Aristóteles contra Platão, desprezando o geral em benefício do singular. Na interpretação de Ockham, só os indivíduos existem: só Pedro, Paulo, aquela árvore, aquele bloco de pedra são reais, só eles constituem ‘substâncias’. Quanto ao ‘homem’, quanto ao vegetal ou mineral, isso não existe, e poderíamos dizer o mesmo de todas as noções gerais.”65 Em virtude disso, não há uma natureza humana ou das coisas, não há formas comuns ou causas finais no mundo, não existem consequentemente direitos naturais. O que realmente tem existência são os indivíduos singulares, sendo que os signos universais (como homem, pai, filho, entre outros) só servem para representar, de forma imperfeita e parcial, tais singularidades e o seu conjunto.66 E é por isso que o conhecimento realmente 63  VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 225. 64  Já se fala em nominalismo nos séculos XI e XII, mas a “principal razão da fama de Ockham é, por certo, o fato de ter inaugurado a via moderna.” (VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 225). 65  VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 229. 66  Sobre os signos universais leciona Villey que “são apenas conceitos, instrumentos, etapas no caminho do conhecimento de uma realidade exclusivamente singular, apenas um começo de conhecimento nebuloso dos indivíduos. Universais e relações são apenas instrumentos de pensamento.” (VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 231).

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perfeito e adequado à realidade é o individual.67 Ao considerar os indivíduos de forma isolada, não mais vinculado a grupos ou coletividades, não mais caracterizado pelas suas funções ou papéis desempenhados em sociedade, o pensamento nominalista esboça uma nova maneira de compreender a realidade e o próprio direito. Como observa António Manuel Hespanha, “Enquanto que a filosofia clássica dava existência real ao homem ‘situado’ em certas estruturas sociais (como ‘pai’, como ‘cidadão’, como ‘filho’) e, portanto, considerava como reais ou naturais os direitos e deveres decorrentes de tal situação, a filosofia social nominalista considerava os indivíduos isolados, sem outros direitos ou deveres senão aqueles reclamados pela sua natureza individual, ou pela sua vontade”.68 Trata-se de uma mudança antropológica relevante e cheia de implicações na formação do pensamento jurídico moderno.69 Nessa mesma linha, a reflexão franciscana sobre a pobreza é outro momento importante na configuração da ideia moderna de propriedade, especialmente no que toca à questão da formação dos traços iniciais da ideia de direito subjetivo aos moldes modernos. Na explicação de Michel Villey, Ockham, no Opus nonaginta dierum, combatendo as teses do Papa João XXII que procuravam forçar os franciscanos a aceitar a titularidade de bens, contra o voto de pobreza absoluto da ordem franciscana, elabora uma nova concepção de direito. Para ele, o direito (ius) deveria ser compreendido como um poder do indivíduo projetado sobre a coisa, e não como algo implicado ou decorrente da própria coisa. Isso quer dizer que o direito (ius) já não decorria mais da própria coisa e sim da vontade do sujeito. Por isso, segundo Ockham, os franciscanos não seriam titulares de direitos (proprietários) sobre os bens das suas ordens justamente porque não desejavam a titularidade desses direitos, apesar da utilização fática dos mesmos bens.70 67  VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 230. 68  HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 302 (nota de rodapé ). 69  Conforme Villey, o nominalismo “habitua a pensar todas as coisas a partir do indivíduo: o indivíduo (não mais a relação entre vários indivíduos) torna-se o centro de interesse da ciência do direito; o esforço da ciência jurídica tenderá doravante a descrever as qualidades jurídicas do indivíduo, a extensão de suas faculdades, de seus direitos individuais. E, quanto às normas jurídicas, não podemos mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava ler na Natureza, será preciso buscar sua origem exclusivamente nas vontades positivas dos indivíduos: o positivismo jurídico é filho do nominalismo. Todas as características essenciais do pensamento jurídico moderno já estão contidas em potência no nominalismo.” (VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 233). 70  VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno ..., p. 265-278. Ainda sobre essa

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Conforme explicação de Rafael de Sampaio Cavichioli, “Ockham altera a definição de ius e desprende-a da relação social de distribuição de bens, remetendo-a à esfera de titularidade do indivíduo e redefinindo-o como um poder desse indivíduo sobre a coisa.”71 No pensamento franciscano o uso de fato sobre as coisas não atribuía a titularidade do direito de propriedade, isso porque esta decorria da dimensão subjetiva do indivíduo e não da própria coisa.72 A elaboração franciscana ao formular uma “nova noção de homem (como aquele que, na caridade e na vontade, é um ser essencialmente espiritual), afasta-o daquela intrincada relação que ele sempre teve com as coisas na reflexão medieval, colocando-se como um ser apartado e autônomo com relação aos bens.”73 Observa-se o aparecimento uma nova noção de indivíduo

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questão, Rafael de Sampaio Cavichioli esclarece que “A tese do Papa é a de que é impossível, sob o aspecto jurídico, apenas haver uma titularidade fática sobre os bens sem que haja um direito. Se os franciscanos utilizam seus jardins, suas casas, e colhem os frutos dos seus bens, é impossível afirmar que eles não tenham um direito consistente nessas próprias coisas. Além disso, quanto aos bens consumíveis, o uso não se separa da propriedade.” (...) “Ockham, para rebater as teses do Papa, recorre a uma nova definição de direito, que não implica uma vinculação com a própria coisa, tal como este pensa. Ockham definirá o direito como um poder do indivíduo que se projeta sobre a coisa. Assim, os franciscanos não renunciam ao uso de fato sobre as coisas, ou seja, permanecem usando a coisa, habitando-a, ou no caso das coisas consumíveis, comendo-a ou bebendo-a. Porém (...) os franciscanos, assim como Cristo, renunciam ao poder ligado ao direito de uso.” (CAVICHIOLI. Rafael de Sampaio. Crítica do sujeito de direito: da filosofia humanista à dogmática contemporânea. 258 f. Dissertação (Mestrado em Direito), Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006, p. 32-33). 71  CAVICHIOLI. Rafael de Sampaio. Crítica do sujeito de direito ..., p. 33. 72  Destaca-se que praticamente “tutti i Maestri della Seconda Scolastica, spagnoli e non spagnoli, quando trattano del problema uomo-beni, dedicano un capitolo del proprio discorso alla relazione proprietà-uso così come l’aveva elaborata e definita la grande disputa sulla povertà del tardo Medievo e fan quasi universalmente proprie le conclusioni francescane all’interno della disputa.” (GROSSI, Paolo. La proprietà nel sistema privatistico della Seconda Scolastica ..., p. 128). [Tradução livre: todos os Mestres da Segunda Escolástica, espanhóis e não-espanhóis, quando tratam do problema homem-bens, dedicam um capítulo do próprio discurso à relação propriedade-uso, assim como a tinha elaborado e definido a grande disputa sobre a pobreza do tardo Medievo e fazem quase universalmente próprias as conclusões franciscanas no âmbito da disputa.] 73  FONSECA, Ricardo Marcelo. A “Lei de Terras” e o advento da propriedade moderna no Brasil. Anuário Mexicano de Historia del Derecho, México: Instituto de Investigaciones Jurídicas Unam, n. 17, p. 97-112, 2005. p. 101. Na explicação de Paolo Grossi, “l’uomo dei francescani è il singolo operatore che afferma la propria libertà sulla e dalla realtà fenomenica, che ama e vuole e che nella carità e nella volontà trova non solo la caratteristica prima del suo essere spirituale, ma altresì la sua perfetta indipendenza dai fenomeni.” (...) “In questa prospettiva tutto suona elogio del soggettivo, tutto sembra destinato ad interiorizzarsi”. (GROSSI, Paolo. L’inaugurazione della proprietà moderna. Napoli: Guida Editori, 1980, p. 37). [Tradução livre: o homem dos franciscanos é o operador singular que afirma a própria liberdade sobre a e da realidade fenomênica, que ama e quer e que na caridade e na vontade encontra não somente a característica primeira do seu ser espiritual, mas também a sua perfeita independência dos fenômenos. (...) Nesta perspectiva

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e do seu lugar e papel no mundo.74 Essa foi uma etapa muito importante para a configuração de uma maneira de compreender o indivíduo desprendido e liberado da realidade que o cerca. Contribuiu enormemente com o ideário de um direito de propriedade substancialmente atado à vontade de um sujeito, o seu titular. Começam a se delinear aqui alguns traços iniciais da ideia moderna de liberdade, como “autodeterminação da vontade”, ou seja, como a possibilidade de se autocontrolar e dominar a realidade externa. Inicia-se o desenvolvimento de uma nova imagem de domínio, denominado dominium sui (domínio de si mesmo e de seus próprios atos – dominium super suos actus) e a relação entre o sujeito e a realidade é agora pensada e determinada em termos de domínio.75 Nesse contexto, a liberdade é compreendida como a capacidade de o sujeito exprimir-se pelas de formas de apropriação individual. Com isso, a dimensão proprietária se torna essencial para a própria liberdade, e “la capacità di essere proprietarii è capacità di realizzare pienamente la propria personalità, libera in quanto libera di volere e tanto più autenticamente libera in quanto capace di tradurre la propria volontà astratta nelle espressioni dominative che le sono connaturate.”76 O que se observa a partir desse momento, é que “o ‘ter’ é algo que passa a ser fundante de uma expressão de subjetividade, é algo que tem a capacidade de definir o ‘ser’.”77 Nessa forma tipicamente motudo soa como elogio do subjetivo, tudo parece destinado a interiorizar-se.] 74  Conforme Grossi, “La nuova visione antropologica, che emerge ormai chiara dalle grandi dispute teologico-filosofiche del tardo Dugento e del primo Trecento, rappresenta il tentativo di isolare dal mondo e sul mondo un individuo che ha trovato la forza (o così, almeno, presume) di affrancarsi da antiche prigionie; soggetto presuntuoso, intenzionato a reperire soltanto all’intorno di sé il modello interpretativo della realtà cosmica e sociale.” (GROSSI, Paolo. Dalla società di società alla insularità dello stato fra medievo ed età moderna, Napoli: Istituto Universitario Suor Orsola Benincasa, s/d, p. 05). [Tradução livre: A nova visão antropológica, que ora emerge clara das grandes disputas teológico-filosóficas do tardo século XIII e do princípio do século XIV, representa a tentativa de isolar do mundo e sobre o mundo um indivíduo que encontrou a força (ou assim, ao menos, presume) de libertar-se de antigas prisões; sujeito presunçoso, intencionado a encontrar somente em torno de si o modelo interpretativo da realidade cósmica e social.] 75  GROSSI, Paolo. L’inaugurazione della proprietà moderna. Napoli: Guida Editori, 1980, p. 38-39. 76  GROSSI, Paolo. L’inaugurazione della proprietà moderna ..., p. 40. [Tradução livre: A capacidade de ser proprietário é capacidade de realizar plenamente a própria personalidade, livre enquanto livre de querer, e tão mais autenticamente livre quanto capaz de traduzir a própria vontade abstrata nas expressões dominativas que lhe são conaturais.] 77  FONSECA, Ricardo Marcelo. A “Lei de Terras” e o advento da propriedade moderna no Brasil ..., p. 102.

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derna de compreender as relações entre os sujeitos e as coisas, que parte do dominium sui, a propriedade é depositada no interior do sujeito e já não há mais como compreendê-lo sem se referir a essa forma de apropriação. A ideia de um sujeito que se afirma como um sujeito proprietário será retomada e desenvolvida por autores do chamado individualismo possessivo dos séculos XVII e XVIII e, posteriormente, materializada em boa parte das cartas constitucionais do século XVIII e dos códigos do século XIX. Um exemplo importante desse individualismo possessivo é encontrado no pensamento do contratualista inglês John Locke. Nas ideias desse autor observam-se fortes fundamentos filosóficos para a nova conformação da propriedade que surgia na modernidade. A propriedade por excelência é a individual, aquela que decorre do próprio sujeito e do seu trabalho.78

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Além disso, a noção de propriedade compreendida como um direito natural do indivíduo, fundamental e absoluto, ganha argumentação vigorosa com Locke. A propriedade passa a ser incluída, ao lado da liberdade e da igualdade, entre os direitos naturais, mas é o direito natural por excelência, pois é na propriedade que se encontram ancorados os demais direitos como os direitos à vida e à liberdade. O direito de propriedade nessa concepção é um direito fundante sem o qual não existem, inclusive, os demais direitos naturais. O autor afirma, ainda, que o objetivo de se constituir uma sociedade é a preservação do direito natural, por excelência, que é a propriedade pri78  Nas palavras de John Locke, “Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem direito exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade.” (...) “Ainda que a água que corre na fonte pertença a todo mundo, quem duvida que no cântaro ela pertence apenas a quem a tirou? Seu trabalho a tirou das mãos da natureza, onde ela era um bem comum e pertencia igualmente a todos os seus filhos, e a transformou em sua propriedade.” (LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 98 - 99). Conforme explicação de Pietro Costa, “Na perspectiva lockiana, e mais tarde iluminista e revolucionária, os direitos são a expressão imediata do ser humano como tal. O indivíduo lockiano é capaz de conservar a si mesmo enquanto livre para apropriar-se, com o labour do seu corpo, com o emprego das suas energias intelectuais e físicas, dos bens necessários para a sua subsistência: liberdade e propriedade são, ao mesmo tempo, os direitos invioláveis de todo indivíduo e as regras essenciais de uma ordem que precede logicamente o arranjo da soberania.” (COSTA, Pietro. Estado de direito e direitos do sujeito: o problema dessa relação na Europa moderna. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (Orgs.). História do direito em perspectiva: do antigo regime à modernidade. Curitiba: Juruá, 2008, p. 59).

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vada.79 No entendimento de Locke, a propriedade nasce e se constitui antes mesmo do que o próprio contrato social; é um direito natural que dá origem a todos os outros, como a liberdade e a própria vida. A propriedade estaria constituída antes do Estado, seria anterior ao pacto fundamental e, nesse sentido, não poderia ser instituída ou criada pelo Estado e por seu ordenamento jurídico. A propriedade deveria, apenas, ser declarada. Isso caracteriza a ideia de que o direito de propriedade privada, também, não poderia ser suprimido, modificado ou limitado, porque já estava naturalmente estabelecido.80 Nessa linha de raciocínio, o direito de propriedade não poderia ser repensado, constituía um direito intocável, repita-se, inerente ao ser humano, individualmente considerado. Ocorreram a exaltação e a legitimação do discurso que considerava (e continua considerando) 81 a propriedade privada como um direito natural, absoluto e que seu titular teria todas as garantias possíveis atribuídas pela ordem jurídica. Na defesa desse direito, independente de outros questionamentos de natureza não-patrimonial, Locke, inclusive, chega a afirmar que “o magistrado não deve fazer nada a não ser com o objetivo de assegurar a paz 47

79  Segundo Norberto Bobbio, “É certo que um dos maiores esforços feitos por Locke, em sua teoria do governo, é o de demonstrar que a propriedade é um direito natural no sentido específico de que ele nasce e se aperfeiçoa, ou seja, antes que o Estado seja instituído e de forma independente. Aceito este princípio, não nos espantaremos de ler a todo momento que um dos fins para os quais os homens se reúnem em uma organização política é a conservação da propriedade.” (BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Editora UnB, 1994. p. 187). Nas palavras de Locke, “O grande objetivo dos homens quando entram em sociedade é desfrutar de sua propriedade pacificamente e sem riscos (...).” (...) “A razão por que os homens entram em sociedade é a preservação de sua propriedade.” (LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos ..., p. 162 e p. 218). 80  Como explica Norberto Bobbio, “Atribuir um fundamento originário e natural à propriedade significava atribuir à vontade do soberano – teoria política – ou de todos os demais – teoria convencionalista – um valor não mais constitutivo do direito de propriedade, mas apenas declarativo: o valor de um reconhecimento sucessivo de direito já constituído” (BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural ..., p. 192). Na leitura de Pietro Costa, “A liberdade e a propriedade – que são conjuntamente direitos do sujeito e estruturas de sustentação da ordem social – não são criadas, mas são apenas reconhecidas e garantidas pelo soberano.” (COSTA, Pietro. Estado de direito e direitos do sujeito: o problema dessa relação na Europa moderna ..., p. 59). 81  Deve ser observado que é esse o modelo de propriedade que domina, ainda, boa parte do cenário jurídico contemporâneo, e é reforçado infelizmente em muitos manuais de Direito Civil. Apenas como exemplo são as palavras de Maria Helena Diniz: “a propriedade é inerente à natureza do homem, sendo condição de sua existência e pressuposto de sua liberdade. É o instinto da conservação que leva o homem a se apropriar de bens, seja para saciar sua fome, seja para satisfazer suas variadas necessidades de ordem física e moral. A natureza humana é de tal ordem que ela chegará a obter, mediante o domicílio privado, um melhor desenvolvimento de suas faculdades e de sua atividade.” (DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro,4º v., Direito das Coisas. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 103-104).

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civil e a propriedade de seus súditos”.82 Percebe-se, com isso, uma supervalorização da propriedade privada na modernidade. Não é de surpreender a sacralidade que é atribuída à propriedade privada no célebre artigo 17 da “Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão”, de 1789, ao dispor que “a propriedade é um direito inviolável e sagrado”.83 Um direito que é praticamente a “ombra del soggetto riflessa sulle cose”.84 O ideário da propriedade privada influencia e constitui parte significativa da cultura jurídica e social moderna e contemporânea, encontrando um respaldo especial no direito privado europeu (desenvolvido a partir do final do século XVIII) e nos seus códigos.

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Uma síntese profícua das principais características do paradigma individualista é realizada por António Manuel Hespanha. O historiador do direito enumera alguns traços estruturais do modelo proprietário resultado desse extenso processo histórico. Inicialmente, a propriedade privada é concebida como um direito natural, “decorrente da própria natureza do homem como ser que necessita de se projetar exteriormente nas coisas para se realizar.”85 Por ser um direito natural não é um direito constituído pelo direito positivo e sim um direito apenas reconhecido e garantido pelo Estado. Para alguns, inclusive, a propriedade é vista como um direito natural por excelência, a origem de todo o direito, e o papel da ordem jurídica positiva é proteger esse direito sagrado.86 82  BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Brasília: Editora UnB, 1994, p. 187. Ainda que se argumente que o conceito de propriedade para Locke é mais amplo (vida, liberdade e bens) e que, nessa linha, a defesa feita por ele ao direito de propriedade não é tão radical assim, o fato é que as suas ideias se encaixaram perfeitamente aos novos desejos da época. Sobre essa questão, vide MACPHERSON, C. B.. A Teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 83  Sobre o artigo 17 da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, explica Grossi que “la proprietà è approdata al geloso territorio del sacro nel momento in cui la sua nozione si è colorata di assolutismo (e quando usiamo questo termine, non intendiamo la rilevanza erga omnes che i giuristi colgono in ogni diritto reale, ma l’intensità e l’intoccabilità che i filosofi riconoscono alle nozioni morali).” (GROSSI, Paolo. L’inaugurazione della proprietà moderna ..., p. 45-46). [Tradução livre: a propriedade aportou ao ciumento território do sacro no momento em que a sua noção se coloriu de absolutismo (e quando usamos este termo não pretendemos significar a relevância erga omnes que os juristas colhem em todo direito real, mas a intensidade e a inviolabilidade que os filósofos reconhecem às noções morais).] 84  GROSSI, Paolo. L’inaugurazione della proprietà moderna ..., p. 51. [Tradução livre: sombra do sujeito refletida sobre as coisas.] 85  HESPANHA, António Manuel. O direito dos letrados no império português. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 87. 86  HESPANHA, António Manuel. O direito dos letrados no império português ..., p. 87-88.

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Outro aspecto fundamental, destacado por Hespanha, é a percepção da propriedade como um direito absoluto, ou seja, liberta ou liberada de praticamente todas as limitações e os condicionamentos tradicionais típicos do Antigo Regime. Ao lado do absolutismo em matéria de relações de pertencimento individual, característica igualmente observada do modelo é a plenitude do direito de propriedade. Atributo que garante ao seu titular o exercício de todas as faculdades ou poderes em relação à coisa (usar, gozar e dispor), objeto da relação jurídica.87 A propriedade é compreendida, também, como um direito com tendência à perpetuidade, o que provoca uma desvalorização de outras formas temporalmente limitadas de domínio. Além de tudo isso, a propriedade é “colocada” no âmbito do direito privado (considerando a ideia da separação entre o espaço público e o privado).88 Sinteticamente, pode-se afirmar que a propriedade, fruto do paradigma individualista moderno, é um direito natural, absoluto, pleno, tendencialmente perpétuo e essencialmente privado. Todo o ideário individualista de compreender as relações de pertencimento, acima esboçado, condiciona significativamente a reflexão jurídica acerca dos demais direitos reais, da posse e dos demais institutos jurídicos de direito privado. Progressivamente, os demais direitos reais vão se tornando fragmentos ou parcelas do direito de propriedade e definidos a partir desse direito. A posse também passa a ser pensada em termos proprietários, não sendo mais compreendida sem a referência necessária à propriedade moderna. As demais preocupações centrais do direito privado moderno (como a pessoa, a família e o contrato) também são pensadas no mesmo “eixo” da propriedade privada. Isso tudo é consagrado no processo moderno de codificação, em especial, do direito privado.

4. A “forma código” e a consagração da propriedade privada Ressalta-se que é com o movimento de codificação na Europa que a lei estadual começa “a monopolizar a atenção dos juristas”.89 Especialmente na França, após 1804, com a elaboração do Code Civil, também chamado de Código de Napoleão, o encantamento com a atividade do legislador assume uma importância sem precedentes na história.90 87  HESPANHA, António Manuel. O direito dos letrados no império português ..., p. 87-88. 88  HESPANHA, António Manuel. O direito dos letrados no império português ..., p. 87-90. 89  HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio ..., p. 376. 90  Conforme Grossi, “O legislador, sofrendo um processo de forte idealização, apresentava-se como uma espécie de moderno rei Midas, acima das paixões humanas, com o olhar constantemente

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Nesse momento, a “forma código”,91 constituindo “a concretização legislativa da volonté générale”,92 torna-se o modelo ideal de direito, ou melhor, não há direito e direitos que estejam para além dos monumentos legislativos codificados. Na expressão de Paolo Grossi, o “drama do planeta moderno consistirá em realizar o processo de absorção de todo o direito na lei, na sua identificação na Lei.”93 Ao intérprete e à doutrina cabe apenas o culto à Lei, numa atividade de submissão à vontade do legislador.94 É conhecida a clássica citação de um exegeta francês chamado Bougnet: “Je ne connais pas le droit civil, je n`enseigne que le code de Napoleón.”95 Estas palavras resumem muito do que foi compreendido como direito no período pós- Revolução Francesa. No direito pós-revolucionário, marcado por sua pretensão à totalidade e universalidade, bem como por sua estatização, a “forma Código” (o Código no seu modelo moderno, filho do Iluminismo e de inspiração jusnaturalista96

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voltado à felicidade pública; e a atenção se deslocava, de modo arriscado, do conteúdo à forma da lei: o importante era que o ato normativo proviesse de um determinado sujeito – aquele investido pelo poder supremo da soberania – com a única garantia do respeito a um certo processo e a uma adequada publicidade.” (...) “O elogio da lei consistia sobretudo no elogio da norma, certa e clara, ficando absorvido o problema do seu conteúdo em uma confiança ilimitada no legislador, uma confiança que logo se revelaria mal depositada, como teria demonstrado com eloqüência o uso e o abuso do instrumento legislativo feito não só pelas ditas democracias burguesas, como também pelos regimes totalitários do século XX.” (GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade ..., p. 131). 91  CAPPELLINI, Paolo. Il codice eterno – la forma-codice i suoi destinatari: morfologie e metamorfosi di un paradigma della modernità. In: CAPPELLINI, Paolo; SORDI, Bernardo. Codici: una riflessione di fine millennio. Milano: Giuffrè, 2000. 92  HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio ..., p. 376. 93  GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade ..., p. 44. Nesse mesmo sentido, vide CLAVERO, Bartolomé. Institucion historica del derecho. Madrid: Marcial Pons, 1992, p. 93-94. 94  A referência aqui vale especialmente à Escola da Exegese. Segundo Norberto Bobbio, algumas causas determinantes para o aparecimento e consagração, na França, da Escola da Exegese foram: i) o próprio fenômeno da codificação (com as suas conseqüências); ii) a mentalidade dos juristas da época dominada pelo princípio de autoridade (a norma é fruto da vontade do legislador, decorrência direta da autoridade do soberano, expressa de maneira segura e completa nos códigos); iii) a doutrina da separação dos poderes (e a decorrente impossibilidade de o juiz criar direito, ou seja, o magistrado deveria ater-se ao que estava expresso no texto legal); iv) o princípio da certeza do direito (um direito simples e seguro, de fácil compreensão); e v) uma profunda pressão política na reorganização do ensino jurídico nas instituições superiores de direito, com o intuito de que fosse ensinado apenas o direito positivo, localizado evidentemente nos textos legislativos codificados. (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 78-83). 95  Esta citação foi retirada da obra de NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. v. 2, Coimbra: Editora Coimbra, 1995, p. 190. [Tradução livre: Eu não conheço o direito civil, eu ensino apenas o código de Napoleão.] 96  Conforme Paolo Cappellini, “A primeira grande onda das codificações modernas foi gerada por aquela que pode ser chamada a ‘aliança’ entre Jusnaturalismo e Iluminismo e encontra, não por acaso, o seu ápice secularizante definitivo na experiência revolucionária francesa cristalizada por Napoleão,

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racionalista) é a grande marca da nova mentalidade jurídica, o seu “modelo”97 por excelência. Principalmente no Estado francês a ordem jurídica medieval é atacada com veemência pela cultura jurídica burguesa. Acusada de ser uma ordem classista, desigual, retrógrada, injusta, complexa e contraditória, a mentalidade jurídica medieval perde muito da sua legitimidade após a Revolução Francesa e é praticamente sepultada com o movimento de codificação.98 Na nova forma de compreender o direito, observa-se que “il codice rompe definitivamente con il regime di diritto comune, che cessa di essere il sistema di diritto positivo: tutto il diritto previgente viene abrogato.”99 No discurso jurídico burguês, “a nova ordem sociopolítica deve ser democrática, em oposição à decrépita ordem classista, exprimindo a vontade geral da nação”100 e “a lei identifica-se com a vontade geral; o princípio de legalidade, ou seja, a conformidade de cada manifestação jurídica com a lei, torna-se a regra fundamental de toda democracia moderna.”101 A legitimidade dos novos Códigos está garantida, verifica-se a consagração de uma nova mentalidade jurídica.

no Code Civil de 1804.” (CAPPELLINI, Paolo. Sistema jurídico e codificação. Curitiba: Juruá, 2007, p. 17). Na explicação de Paolo Grossi: “O jusnaturalismo vem a desembocar no mais agudo positivismo jurídico, e o Código, mesmo se portador de valores universais, é reduzido à voz do soberano nacional, à lei positiva desse ou daquele Estado.” (GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2ª ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 114). Hespanha fala em “positivação da razão”. (HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio..., p. 377). 97  Segundo Paolo Cappellini, o Código Civil francês ou Código de Napoleão, além de representar o símbolo e o mito do novo modo de compreender a produção do direito, é seguramente o modelo jurídico exportado para inúmeros países, inclusive e especialmente para a América Latina. A palavra “modelar-se” também é utilizada no sentido (italiano) de “conformar-se” ao modelo. (CAPPELLINI, Paolo. Codici. In: FIORAVANTI, Maurizio (a cura di). Lo Stato moderno in Europa: istituzioni e diritto. 5ª ed. Roma-Bari: Laterza, 2005, p. 121). 98  Uma citação de Zygmunt Bauman sintetiza bem o “sepultamento” do mundo feudal operado pelos modernos: “Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores.” (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 10). 99  CAVANNA, Adriano. Storia del diritto moderno in Europa. Vol 2 ..., p. 44. [Tradução livre: o código rompe definitivamente com o regime de direito comum, que cessa de ser o sistema de direito positivo: todo o direito pré-vigente é ab-rogado.] 100  GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade ..., p. 54. 101  GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade ..., p. 54.

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Com isso, o reconhecimento das práticas, usos e costumes como fontes de direito e a sua aplicação passam a ser compreendidos com desconfiança. Muito do que era regulado e normatizado fora do poder soberano, pela própria sociedade, dentro de uma ordem consuetudinária, é agora regulamentado por uma única fonte abstrata e geral. A abertura admitida pela utilização de diversas fontes normativas e pela possibilidade de criação e desenvolvimento do direito mediante a atividade interpretativa é compreendida, nesse tempo e espaço, como um retorno ao Antigo Regime. A novidade do processo de codificação moderna está no fato que, a partir desse momento, o legislador tem a pretensão de regular todas as zonas do ordenamento jurídico. Na explicação de Paolo Cappellini, a “primeira característica comum dos códigos modernos que salta aos olhos é que eles se distinguem de todas as tentativas precedentes de reescritura e ‘racionalização’ do direito vigente”.102

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O Código, em seu modelo moderno, é uma fonte que se caracteriza por uma tipicidade inconfundível: i) tende a ser a fonte unitária (forte monismo jurídico, em que a lei proveniente do Estado é a fonte quase exclusiva do direito); ii) tende a ser fonte completa (tem a pretensão de reduzir toda a experiência, toda a realidade a um sistema de regras jurídicas); iii) tende a ser fonte exclusiva (o direito estatal como a única fonte legítima de direito, materializada no Código).103 A formação dos Estados modernos (europeus), a consagração da ideia de soberania e a posterior redução do Direito operada pelo fenômeno do Absolutismo Jurídico (em que a “forma código” talvez seja o exemplo mais sintomático), entre outros fatores, contribuíram enormemente para uma maneira de se colocar a questão do poder na modernidade e de compreender o direito.104 Com a codificação moderna, o direito passa a ser muito mais loi e 102  CAPPELLINI, Paolo. Sistema jurídico e codificação. Curitiba: Juruá, 2007, p. 17. 103  Segundo Grossi, “Como norma que presume prender a complexidade do social em um sistema fechado, o Código, toda codificação, somente pode traduzir-se em uma operação drasticamente redutiva (...)” (GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade ..., p. 104). 104  Aquela ideia de poder entendida sempre sob a ótica da soberania e discutida em torno do tema Estado, ou seja, o poder compreendido como algo concentrado, único, derivado de alguém ou de algum lugar. O poder proveniente sempre de um determinado governante ou de uma determinada classe. É o poder entendido como um bloco ou, nas palavras de Foucault, o “rei em sua posição central” (FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 32). Essa forma de compreender o poder, que Foucault denominou de “modelo jurídico da soberania” ou o modelo ligado à “instituição do Estado e da soberania jurídica”, foi consagrado no discurso político da moder-

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sempre menos droit. Esse direito, monista e estatal, é escolhido como a única fonte de regulação e normatividade em sociedade. A criação dos grandes Códigos, que tem seu marco mais significativo no Código de Napoleão, é o exemplo paradigmático do movimento histórico que atribui a centralidade do poder ao Estado e à Lei. É nesse ambiente que a propriedade privada ocupa lugar privilegiado. O modelo profundamente individualista e exclusivista de pertencimento, observado anteriormente, encontra no Code Civil um momento muito importante da sua história. É famosa a citação ao seu artigo 544 que enuncia e glorifica a propriedade como “le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue”.105 O poder do titular do direito de propriedade, o dominus, é tão amplo que compreende inclusive a faculdade de destruir o próprio objeto.106 Ocorre que o “projeto moderno” para a propriedade ainda não estava completo. Apesar do Code Civil consagrar a propriedade como um direito praticamente absoluto e o pensamento jurídico de vertente liberal-burguesa propalar ostensivamente essa característica, ainda são encontrados alguns resquícios da mentalidade do antigo regime na enumeração dos poderes do proprietário na redação do artigo 544. A propriedade é definida como um conjunto de poderes de “gozar (ou fruir) e dispor das coisas” e isso remete, ainda que de forma muito remota, para a antiga mentalidade objetivista de uma propriedade dividida.107 nidade, em especial, pelo liberalismo político, que construiu toda uma elaboração do poder em torno da figura do Estado e da relação entre este e seus cidadãos. O “modelo jurídico da soberania” atribui um papel fundamental ao Estado e à lei, constituindo instrumentos, discursos e saberes que são aceitos como verdades científicas incontestáveis. (FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 71). 105  [Tradução livre: o direito de gozar e dispor das coisas da maneira a mais absoluta]. 106  Nos termos de Ricardo Marcelo Fonseca, “E, a marcar a definitiva passagem de uma mentalidade jurídica à outra completamente diversa, estão as lições de diversos juristas da era napoleônica que acentuam o fato de ser um corolário natural do direito de propriedade o poder do dominus de até mesmo destruir a coisa.” (FONSECA, Ricardo Marcelo. A “Lei de Terras” e o advento da propriedade moderna no Brasil ..., p. 104). 107  Paolo Grossi compreende que o legislador napoleônico ainda está em um momento de transição, apesar das fortes aspirações individualistas e proprietários que marcam a época. Na explicação de Grossi, “A redescoberta da unidade da propriedade, filosófica e política antes, também jurídica de 1790 em diante [com o decreto de 15 de março de 1790 que aboliu o regime senhorial na França], não cancelou, porém, completamente, a tradicional articulação do domínio em um ius disponendi e em um ius utendi, fruto de uma cultura diversa e de uma visão objetiva do pertencimento, que, partindo de pressupostos antitéticos aos dos juristas napoleônicos, havia hipotizado como legítima a própria divisão do domínio. E resta, no seio do artigo 544, a ideia destoante de uma propriedade como soma de poderes, como resultado da adição de um gozar e de um dispor, que deveria ter tornado aceitável o já inaceitável

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É com o trabalho doutrinal da Pandectística alemã,108 especialmente com Windscheid,109 que a propriedade, abandonando os resquícios da mentalidade anterior, “se torna a criatura jurídica congenial ao homo oeconomicus de uma sociedade capitalista evoluída: um instrumento ágil, conciso, funcionalíssimo, caracterizado por simplicidade e abstração.”110 Simplicidade e abstração são as características mais típicas da propriedade moderna. Paolo Grossi enfatiza que “o moderno” da propriedade não está nomeadamente na sua característica de exclusividade ou no fato de a propriedade ser considerada, no novo modelo, um poder absoluto do seu titular sobre a coisa. O autor afirma que: “A estrada que leva a uma propriedade autenticamente moderna corre sustentada e orientada pela consciência cada vez mais viva de que ela é um corpo simples, unilinear, a estrutura mais simples possível; a meta é uma simplicidade absoluta.”111 Além da simplicidade, o segundo traço caracterizador da propriedade

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e não-aceito princípio da divisão da propriedade.” (GROSSI, Paolo. História da propriedade ..., p. 79). 108  Sobre a Pandectística alemã, vide WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 491 – 524. 109  Sobre o conceito de direito de propriedade, afirma Windscheid que “Proprietà indica, che una cosa (materiale) è propria di alcuno, e per fermo propria a termini del diritto; quindi invece di proprietà più esattamente diritto di proprietà. Ma che una cosa sia propria d’alcuno a termini del diritto vuol dire, che rispetto ad essa la volontà di lui è decisiva nella totalità dei suoi rapporti. Ciò s’appalesa in duplice senso: 1) il proprietario può disporre della cosa come vuole; 2) un altro non può senza la volontà di lui disporre della cosa.” (...) “Ma non si può dire, che la proprietà consti d’una somma di singole facoltà, che sia una riunione di singole facoltà. La proprietà è la pienezza del diritto sulla cosa, e le singole facoltà, che in essa vanno distinte, non sono che estrinsecazioni e manifestazioni di questa pienezza.” (WINDSCHEID, Bernardo. Diritto delle pandette. Volume primo, Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1930, p. 589 - 591. [Tradução livre: Propriedade indica que uma coisa (material) é própria de alguém, e com certeza própria em termos de direito; então ao invés de propriedade mais exatamente direito de propriedade. Mas que uma coisa seja própria de alguém em termos do direito quer dizer que em relação a ela a vontade dele é decisiva na totalidade das suas relações. Isto se torna evidente em duplo sentido: 1) o proprietário pode dispor da coisa como quiser; 2) um outro não pode sem a vontade dele dispor da coisa. (...) Mas não se pode dizer que a propriedade conste de uma soma de faculdades individuais, que seja uma reunião de faculdades individuais. A propriedade é a plenitude do direito sobre a coisa, e as faculdades individuais, que nela devem ser distintas, nada mais são do que explicitações e manifestações dessa plenitude.] 110  GROSSI, Paolo. História da propriedade ..., p. 81 - 82. Ainda, segundo Grossi, na mesma obra citada, após o trabalho da Pandectística alemã, a propriedade se torna “Simples como é o sujeito, realidade unilinear sobre a qual se modela e da qual é como que a sombra no âmbito dos bens; abstrata como o indivíduo liberado da nova cultura, do qual quer ser uma manifestação e um meio validíssimo de defesa e de ofensa. É nesta transcrição ao sujeito que ela reclama a sua unidade e a sua indivisibilidade: una e indivisível como ele, porque como ele é síntese de virtude, capacidade e poderes. Uma transcrição tão aderente a ponto de parecer quase uma fusão: a propriedade é somente o sujeito em ação, o sujeito à conquista do mundo. Idealmente, as barreiras entre mim e meu caem.” (p. 82). 111  GROSSI, Paolo. História da propriedade ..., p. 67.

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encontra-se na abstração. A propriedade compreendida como “Uma relação pura, não aviltada pelos fatos, mesmo que normalmente disponível aos fatos, em virtude da carga de extroversão que lhe é própria, sem referência ao conteúdo, perfeitamente congenial àquele indivíduo abstrato, sem carne e osso, que vem paralelamente se definindo como momento determinante da interpretação burguesa do mundo social.”112 Na sua simplicidade e abstração, a propriedade deixa de estar vinculada à complexidade da realidade. Está agora intensamente atrelada à imagem, igualmente simples e abstrada, do sujeito de direito.

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112  GROSSI, Paolo. História da propriedade ..., p. 71.

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SEGUNDA PARTE ESTUDOS DE DIREITO CIVIL E DIREITOS DO CONSUMIDOR

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ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR E O CENÁRIO DOS PLANOS DE SAÚDE113 Gabriel Schulman 114 Sumário: 1. Apresentação e justa homenagem; 2. Contextualização e transformações (Quando?); 3. Cenário da saúde suplementar (Onde e Por quê?); 4. ANS (Quem? O que é? Como?); 5. Considerações finais (Para aonde?); 6. Referências bibliográficas Bem no fundo (Paulo Leminski) No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto

1. Apresentação e justa homenagem Consoante exalta o título, este texto não privilegia a apresentação de respostas prontas, mas o convite à pesquisa e à reflexão. Como salienta Eroulths, “A autonomia e capacidade crítica do aluno também podem evitar o autoritarismo do discurso pedagógico desde que lhe seja possível instaurar a polêmica”.115 À luz dessa perspectiva, busca-se neste texto prestar justa e singela homenagem ao professor Luiz Carlos Souza de Oliveira, ao enfatizar-se a figura do estudante, em detrimento do sábio detentor das respostas prontas. Nesse sentido, a exposição foi estruturada sob a forma de questões. 113  A presente exposição toma como base exposição realizada em 29.04.2014, em Canoas-RS, no UniLasse, durante II Congresso Programa de Mestrado em Direito do UniLasse – Direito e Sociedade e a palestra “Na saúde e na doença: compreensão e reflexão sobre os conflitos em torno de planos de saúde”, proferida no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 18.09.2014. 114  Doutorando em Direito pela UERJ. Mestre em Direito pela UFPR Professor da UFPR e da Universidade Positivo. Advogado. Especialista convocado pela CPI dos Planos de Saúde. Membro da Comissão de Direito e Saúde da OAB/PR. Autor de “Planos de Saúde: Saúde e Contrato na Contemporaneidade”, publicado pela Renovar. Contato: [email protected] 115  CORTIANO, Eroulths Junior. O Discurso Jurídico da Propriedade seus Rupturas: Uma Análise do Ensino do Direito de Propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 222.

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Dessa forma, o percurso se encaminha pelos seguintes passos: i. Contextualização e transformações (Quando?); ii. Cenário da saúde suplementar (Onde e Por quê?); iii. ANS (Quem? O que é? Como?); iv. Considerações finais (Para aonde? - Perspectivas e desafios). 2. Contextualização e transformações (Quando?) Para iniciar, é necessário localizar a Agência Nacional de Saúde Suplementar em um determinado tempo e espaço. Vivemos um conjunto fundamental de transformações no direito. As lentes voltam-se à proteção da pessoa, colocando-se a dignidade humana como centro do ordenamento, como ensinam Fachin e Tepedino. No plano contratual, os princípios clássicos dialogam com a principiologia contemporânea, a ressignificar o contrato.

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Tais perspectivas se sintonizam com as características peculiares dos planos de saúde, os quais constituem contratos de acentuada catividade,116 com objeto contratual dinâmico,117 incidência direta do direito fundamental à saúde e marcado ainda pela incerteza e utilidade marginal inversa.118 A partir de tais características, no plano jurídico é possível observar consequências práticas relevantes, inclusive: a) Direito à manutenção do contrato (restrições à resilição unilateral pela operadora);119 b) Regulamentação de reajustes (equilíbrio contratual como filme, não fotografia); 116  MARQUES, Claudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 187-224. p. 210. 117  Não há como utilizar a tradicional lógica da prevalência do texto literal. A tônica nos planos de saúde é seu caráter dinâmico, apto a atualizar-se constantemente. Basta pensar na circunstância de que a cada 2 anos, a ANS edita novo rol de procedimentos e eventos em saúde, para definir a “cobertura mínima obrigatória”, como aponta o art. 1º. das Resoluções Normativas 211/ 2010, 262/2011, e 338/2013 (este último o rol atualmente em vigor). 118  O interesse na manutenção dos contratos inverte-se com o transcurso da idade. Quando mais idosos os pacientes, menor a utilidade do contrato à operadora e mais necessário ao consumidor. LORENZETTI, Ricardo Luis. Los Servicios de salud. Ajuris – Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Edição Especial. Porto Alegre, Ajuris, p. 283-308, mar. 1998. p. 290. 119  “Com grande importância, o dever de contratar se converte, na seara dos planos de saúde, em dever de permanecer contratado, preservando a continuidade do vínculo contratual, em vista do conteúdo essencial que compõe seu objeto” SCHULMAN, Gabriel. Planos de Saúde: Saúde e Contrato na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 348.

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c) “Limitações às limitações” do objeto contratual.120

3. Cenário da saúde suplementar (Onde e Por quê?) Antes de prosseguir, é necessário compreender o locus em que se insere a discussão. A Saúde Suplementar é o espaço de atuação dos planos de saúde, os quais cobram valores mensais em troca da intermediação de serviços médicos. De plano, em linha com as lições de Ligia Bahia e Sulamis Dain, é preciso observar que o Brasil não é composto por um sistema único de saúde, mas por um sistema complexo, no qual público e privado não apenas se relacionam, mas se interpenetram. Assim, não há um sistema único e um suplementar. Diversamente, há um sistema público capitaneado pelo SUS, ao qual se soma prestação particular e o setor dos planos de saúde. Essa percepção é relevante para que não se deixe de observar que o SUS beneficia a todos, inclusive nas campanhas de prevenção e vacinação levadas a efeito pelo Ministério da Saúde. Soma-se ainda outros espaços de interlocução como a circunstância de muitos hospitais atenderem a pacientes do SUS e das operadoras de planos de saúde – o que, todavia implica igualmente em uma “porta dupla” – em vista das notórias diferenças no modo de prestação dos serviços.121 De outra banda, as interlocuções entre público e privado igualmente se fazem presentes na regra de ressarcimento ao SUS prevista na Lei dos Planos de Saúde, na forma do art. 32, cuja vigência desde 1999122 contrasta com sua 120  É ilustrativa a súmula 302 do STJ que veda a limitação do tempo de internação em UTI. Do mesmo modo, consolida-se a jurisprudência em relação à abusividade de conseqüente nulidade da cláusula de não cobertura de próteses que integram o ato cirúrgico. Nessa linha, STJ: AgRg no AREsp 172382. DJe 31/03/2014; AgRg no AREsp 366349. DJe 05/03/2014; AgRg no AREsp 163416. DJe 23/08/2013. Confira-se também a jurisprudência dos tribunais estudais, notadamente, a Súmula n. 112 do TJRJ e a Súmula 54 do TJPE. 121  Significativo, a respeito o teor da forma da Resolução n. 445/2011, do Plenário do Conselho Nacional de Saúde: “considerando o Decreto Estadual nº 57.108/2011, do Governo do Estado de São Paulo, e a Resolução nº 81/2011 (publicada no Diário Oficial do Estado de 06/08/2011), da Secretaria Estadual de Saúde, que, ao regulamentarem dispositivos da Lei Complementar nº 846/1998, introduzidos pela Lei Complementar nº 1.131/2010, favorecem a prática de “dupla porta” de entrada, selecionando beneficiários de planos de saúde privados para atendimento nos hospitais públicos geridos por Organizações Sociais, promovendo, assim, a institucionalização da atenção diferenciada com: preferência na marcação e no agendamento de consultas, exames e internação; melhor conforto de hotelaria, como já acontece em alguns hospitais universitários no Estado de São Paulo”. Grifou-se. 122  O tema é objeto de repercussão geral n. 345 no Supremo Tribunal Federal. Pendente de julgamento. O caso originário é o recurso extraordinário de n. 597064.

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pouca aplicação. Ainda, não se pode olvidar a utilização da renúncia fiscal que permite a dedução dos gastos em planos de saúde privados como gastos com saúde, mediante financiamento público (renúncia fiscal) a gastos particulares. Sobre os planos privados é importante destacar a concentração desse mercado. Historicamente desde 2003, o índice apresenta-se em considerável ascensão 43,4% em 2001; 51,1% em 2002, 60,9% em 2003, 69,2% em 2005, 74,8% em 2009 e 79,0% em dezembro de 2013,123 da qual se extrai a máxima importância da atenção aos planos coletivos.

4. ANS (Quem? O que é? Como?) A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde responsável pelo setor de planos de saúde no Brasil. Sua natureza jurídica é de autarquia especial, o que lhe confere autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos.124

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A agência foi criada por meio da Lei nº 9.656, editada em junho de 1998, a partir de setor específico do Ministério da Saúde, com a finalidade de regular o setor. Até então, o tema estava sob os cuidados da Superintendência de Seguros Privados (Susep), cujo papel, contudo, é distinto, focado em preservação do equilíbrio técnico-atuarial e econômico-financeiro.125 Durante a década de 90, observa-se no Brasil um boom de agências reguladoras,126 acompanhando a fundamental transformação decorrente da promulgação da Constituição de 1988. No caso da ANS, como salienta Barbara Kirchner não havia um sistema estruturado de regulação do setor, em oposição a outras agências como a ANAC (criada a partir do Departamento Nacional de Aviação Civil), a ANVISA (estruturada a partir da Secretaria de Vigilância 123  ANS. Caderno de Informação da Saúde Suplementar: beneficiários, operadoras e planos. Rio de Janeiro: Mar/2014. 124  Confrontar Lei 9.961/2000, art. 1º, parágrafo único. Sobre o tema: CUNHA, Paulo César Melo. Regulação Jurídica e Saúde Suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. (Coleção Direito Regulatório). p. 91-92. 125  É representativa da distinção entre os papéis a edição da Lei 10.185/2001, a qual subordinou as seguradoras de saúde às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde – ANS e vedou empresas que atuem com seguros em geral (e.g. seguro de veículos, seguro de vida) a atuarem como plano de saúde. 126  Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) – 1996; Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) - criada em 1997; Agência Nacional de Petróleo (ANP) – 1998; Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – 1999; Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – 2000; Agência Nacional de Águas (ANA) - 2000 é vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA).

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Sanitária).127 Dessa maneira no Brasil, não há uma agência que cuida do setor de saúde (em que pese a confusão comum de chamar-se a ANS de Agência Nacional de Saúde). Em realidade, sua atividade é mais específica e especializada (embora igualmente complexa). Como aponta o Ministro Marco Aurélio de Mello: “A esse cenário devem-se somar a crescente especialização da medicina e o incremento dos gastos alusivos a tais prestações. Embora a carga tributária brasileira esteja entre as maiores do mundo, aparentemente, os custos da medicina curativa e preventiva têm superado os limites suportáveis, mesmo dos Estados que destinam grande parte dos respectivos orçamentos à temática. Gustavo Amaral, revisando literatura especializada, aponta o aumento exponencial dos gastos com saúde pública. Nos Estados Unidos, por exemplo, previra-se, em estudo datado de 2005, que 11% do Produto Interno Bruto daquele país seriam gastos no setor no ano de 2035, mas, em 2010, o percentual chegou a impressionantes 17,9%. Todos esses elementos – deficiência crônica no setor público, avanço vertiginoso dos tratamentos e incremento dos custos – alavancam a importância do setor de saúde suplementar, fundamental para o equacionamento do problema. Observem a definição do termo consignada por Gabriel Schulman: Entende-se por “saúde suplementar” a esfera de atuação dos planos de saúde. A locução denomina, por conseguinte, a prestação de serviços de saúde, realizada fora da órbita do Sistema Único, vinculada a um sistema organizado de intermediação mediante pessoas jurídicas especializadas (operadoras de planos de saúde). Em palavras mais adequadas às interfaces entre público e privado, a saúde suplementar configura a prestação privada de assistência médico-hospitalar na esfera do subsistema da saúde privada por operadoras de planos de saúde.”128 A partir desse rápido histórico, observa-se que a ANS surge em um mercado já em curso,129 com extremo desequilíbrio de informações, inúmeros 127  Criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é responsável por atuar nas situações relacionados a produtos e serviços que possam afetar a saúde da população brasileira. Encontra-se vinculada ao Ministério da Saúde e integra o Sistema Único de Saúde (SUS). 128  MELLO, Marco Aurélio. Saúde suplementar, segurança jurídica e equilíbrio econômico-financeiro. Planos de saúde: Aspectos Jurídicos e Econômicos. Rio de Janeiro: Forense. 2012, p. 4. 129  “O projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados ao final de 1997 mostrou claramente as dificuldades dessa regulamentação a posteriori, que teria que agir sobre uma atividade que já atingia mais de 30 milhões de brasileiros profundamente descontentes com os serviços recebidos, através de

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abusos e indubitável relevância social. Observe-se também que “A implantação da ANS teve que superar dois pontos críticos: 1º) a ausência de informações estruturadas sobre o setor; 2º) a inexistência de quadro de pessoal próprio”, além disso, a “ANS foi criada para regular uma atividade privada: a) já existente; b) extremamente complexa; c) num setor essencial, que é a saúde; d) que nunca havia sido objeto de regulação do Estado)”.130 No tocante à sua atuação verifica-se, portanto, que a ANS assume uma multiplicidade de papéis que envolvem a obtenção de informações, controle, fiscalização dos serviços, investigação. Para que se tenha uma referência, “durante o ano de 2012, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, recebeu 75.916 reclamações de consumidores de planos de saúde. Destas, 75,7% (57.509) foram referentes a negativas de cobertura”.131 Quanto às suas atividades, remete-se ao teor do art. 4º da Lei 9961/2001. Didaticamente suas principais funções poderiam ser assim representadas: 68

COBERTURA

PRESTAÇÃO FISCALIZAÇÃO, CONTROLE E REGULAÇÃO

ECONOMIA

QUALIDADE

Desse modo, não se confunde com órgão de proteção dos consumidores, mas da regulação dos diferentes players do setor (operadoras, prestadores e usuários). Atualmente, revela-se mitigada sua atuação na relação entre prestadores e operadoras e em relação aos planos coletivos, ainda que tenha se encaminhado nessa direção, em virtude dos conflitos que se impõe em relação a prestadores. centenas de empresas dos mais diversos tipos e sobre o qual pouco se sabia de fato”. MONTONE, Januario. Evolução e Desafios da Regulação do Setor de Saúde Suplementar. Subsídios ao Fórum de Saúde Suplementar. Rio de Janeiro: ANS, 2003. (Série ANS n. 4). p. 13. 130  MONTONE, Januario. Evolução e Desafios da Regulação do Setor de Saúde Suplementar. Subsídios ao Fórum de Saúde Suplementar. Rio de Janeiro: ANS, 2003. (Série ANS n. 4). p. 13. 131  ANS. Portal da ANS. Online em: http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-ans/ consumidor/1952-operadoras-de-planos-terao-de-justificar-por-escrito-as-negativas-de-cobertura-

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Outro aspecto interessante consiste na recente busca pela conciliação de interesses, reduzindo a judicialização das questões envolvendo planos de saúde. Nessa toada, a recente figura da Notificação de Intermediação Preliminar. Esse procedimento substituiu a antiga Notificação de Investigação Preliminar – NIP, objeto da consulta pública n. 32/2010 da agência, da qual se originou a Resolução Normativa 226/2010, atualmente Resolução Normativa n. 343/2013, de 17 de dezembro de 2013. Segundo os dados da ANS, o mecanismo é absolutamente eficaz para solução não judicial das queixas. Segundo seu site, “em 2013, o percentual chegou a 85,5%, o que significa que de cada cinco reclamações, quatro foram resolvidas pela Notificação de Investigação Preliminar (NIP), que agora passa a se chamar Notificação de Intermediação Preliminar”.132 Trata-se de olhar para a tentativa de solução extrajudicial, que pode ser útil em temas que não envolvam a urgência médica, para os quais o Judiciário ainda se mostra via adequada e muitas vezes indispensável.

5. Considerações finais (Para aonde?) 5.1 Perspectivas e desafios (Metas da ANS e questões práticas) Em 31 de dezembro de 2013, atingiu-se o número de 50,27 milhões de beneficiários de assistência médica (crescimento de 4,6% em relação a 31/12/2012),133 o que dá uma dimensão do tamanho da questão. Com efeito, a regulação deste setor constitui um desafio de profunda relevância jurídica e social. De modo geral, é certo que a capacidade econômica inclina à contratação de plano de saúde, no entanto, a recíproca é incongruente com a prevalência dos planos coletivos, os quais correspondem a 80% dos planos no país.134 A discussão coletiva faz mais sentido diante da dificuldade de apuração dos cálculos atuariais em ações individuais, além de reduzir custos ao plano de saúde e reduzir o volume de demandas judiciais sobre o tema. 132  ANS. Portal da ANS. Online em: http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-ans/ consumidor/2427-mediacao-de-conflito-para-queixas-nao-assistenciais-entra-em-vigor-na-semana-do-consumidor 133  ANS. Caderno de Informação da Saúde Suplementar: beneficiários, operadoras e planos. Rio de Janeiro: Mar/2014, ANS 134  ANS. Caderno de Informação da Saúde Suplementar: beneficiários, operadoras e planos. Rio de Janeiro: Mar/2014, ANS. Historicamente desde 2003, o índice apresenta-se em considerável ascensão 43,4% em 2001; 51,1% em 2002, 60,9% em 2003, 69,2% em 2005, 74,8% em 2009 e 79,0% em dezembro de 2013.

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Outra questão diz respeito ao repensar das informações. Os planos de saúde constituem contratos extremamente complexos, cuja compreensão costuma ser bastante difícil. Importante referir à recente decisão que negou à Defensoria Pública legitimidade extraordinária para ajuizar ação coletiva em favor de consumidores de plano de saúde.135 Tratava-se de discussão sobre reajustes por faixa etária. Como sublinhou o acórdão, que julgou o recurso especial de n. 1192577, “ao optar por contratar plano particular de saúde, parece intuitivo que não se está diante de consumidor que possa ser considerado necessitado a ponto de ser patrocinado, de forma coletiva, pela Defensoria Pública. Ao revés, trata-se de grupo que ao demonstrar capacidade para arcar com assistência de saúde privada evidencia ter condições de suportar as despesas inerentes aos serviços jurídicos de que necessita, sem prejuízo de sua subsistência, não havendo falar em necessitado”. 70

Tal perspectiva é absolutamente incompatível com a realidade dos planos de saúde. Em primeiro, como se anotou acima, 80% dos planos de saúde são coletivos. Assim, com grande habitualidade, o custeio é feito pelo empregador, invalidando a suposição que embasou o acórdão de que os beneficiários de planos de saúde teriam condição econômica favorável. Em segundo, o próprio acórdão sublinha a legitimidade da Defensoria Pública consignando que “De fato, a Defensoria Pública tem pertinência subjetiva para ajuizar ações coletivas em defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, sendo que no tocante aos difusos, sua legitimidade será ampla (basta que possa beneficiar grupo de pessoas necessitadas), haja vista que o direito tutelado é pertencente a pessoas indeterminadas, e mesmo que indiretamente venham a ser alcançadas pessoas que tenham “suficiência” de recursos, isto, por si só, não irá elidir tal legitimação”. Em terceiro, as ações coletivas parecem mais adequadas a proteção nos planos coletivos, inclusive porque é natural que ao menos uma parcela dos beneficiários seja economicamente carente. Não parece razoável o julgado ao assinalar a ilegitimidade da Defensoria para sugerir que poderia haver a 135  STJ. REsp 1192577. 4ª. Turma. Rel.: Luis Felipe Salomão. DJe 15/08/2014.

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substituição pelo Ministério Público e então haveria regularidade processual. Em quarto, afirmar que a via processualmente adequada seria das ações individuais, parece pôr em segundo plano a natureza coletiva dos planos de saúde que estavam em discussão. Não se trata apenas de interesses individuais homogêneos, mas de contratos em que os beneficiários estão interligados a sugerir que, ao menos em determinadas situações, se há efetiva condição de ação coletiva, a ação individual deveria ser uma opção e não uma imposição. É lição básica, que o direito processual não pode prevalecer sobre o acesso e o direito material, sob pena de tornar-se fim e não meio. Em quinto, é frequente que não haja efetivo conhecimento dos usuários sobre o conteúdo do contrato. Com efeito, nos planos de saúde, deixam de se confundir a figura do contratante e do celebrante, porque os instrumentos contratuais são assinados por um representante do empregador, da entidade de classe etc., sem efetiva participação do beneficiário de qualquer etapa da negociação.136 Para encerrar, com o convite à crítica, algumas sugestões que entendo que podem facilitar o procedimento judicial relativo à concessão de tutela antecipada para cobertura de procedimentos médicos efetivamente urgentes, assim como evitar demandas desnecessárias e reduzir custos para os agentes envolvidos (judiciário, operadoras, consumidores): - Obrigatoriedade de informação do endereço das operadoras e local de citação para demandas urgentes; - Implementação de citação e intimação digital evitando custos com oficiais de justiça, assim como as dificuldades no plantão judiciário, frequentemente imo; - Intensificação do uso de medidas coletivas com mecanismos de punição mais ampla - Cautela na implementação de varas especializadas em vista da autonomia do médico 136  SCHULMAN, Gabriel; WEBER, R. Henrique. Adesão indireta dos consumidores-trabalhadores nos contratos de plano de saúde coletivos: limites e possibilidades a partir de um caso concreto. In: FACHIN, Luiz Edson, et. alli. (Org.). Apontamentos Críticos para o Direito Civil Brasileiro Contemporâneo II. Curitiba: Juruá, 2009.

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- Obrigatoriedade dos contratos na internet em sintonia com a Resolução Normativa da ANS n. 285/2011 que obriga a divulgação online da Rede Credenciada; - Reforço da atuação da ANS em relação aos planos coletivos, em especial nos abusos de rescisões e reajustes; - Previsão de medidas coercitivas escalonada nas decisões que concedem a tutela antecipada, inclusive para assegurar em caso de violação do prazo assinado a penhora online para garantia de tratamento médico – em especial quando a fixação de astreintes não se mostra eficaz como meio coercitivo para tratamento médico urgente. Assim, na decisão inicial podem ser determinadas medidas coercitivas sucessivas para tutela da vida e da saúde evitando-se atraso no tratamento.

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Por fim, recomenda-se o uso de plataformas online para controle das autorizações pelos planos de saúde, com acesso fácil aos pacientes. Essa medida evitaria desgastes do paciente no acompanhamento de seu pedido, reduzindo o sofrimento já causado pela doença e pelo medo. Permitiria ainda, maior controle sobre o conteúdo da negativa, evitaria que o plano fosse acionado judicialmente por procedimento já liberado, assim como permitiria ao plano comunicar os fundamentos da negativa evitando demandas judiciais sobre procedimentos que não são cobertos. Tal sistema naturalmente exige mecanismos de controle para evitar adulterações, mas sob os cuidados da ANS, poderia ser ferramenta útil. Como aponta Leminski, “a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto”. A saúde suplementar exige uma construção constante, sólida e eficaz. Em um setor com destacada complexidade, parece ser necessário buscar soluções simples como determinações práticas para acompanhamento de solicitações dos procedimentos médicos. Mas a nosso ver se pode decretar: para caminhar em frente, é necessário enfrentar.

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6. Referências ANS. Caderno de Informação da Saúde Suplementar: beneficiários, operadoras e planos. Rio de Janeiro: Mar/2014. ANS. Portal da ANS. Online em: http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-ans/consumidor/1952-operadoras-de-planos-terao-de-justificar-por-escrito-as-negativas-de-coberturaANS. Portal da ANS. Online em: http://www.ans.gov.br/a-ans/sala-de-noticias-ans/consumidor/2427-mediacao-de-conflito-para-queixas-nao-assistenciais-entra-em-vigor-na-semana-do-consumidor CORTIANO, Eroulths Junior. O Discurso Jurídico da Propriedade seus Rupturas: Uma Análise do Ensino do Direito de Propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 222. CUNHA, Paulo César Melo. Regulação Jurídica e Saúde Suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. (Coleção Direito Regulatório). p. 91-92. LORENZETTI, Ricardo Luis. Los Servicios de salud. Ajuris – Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Edição Especial. Porto Alegre, Ajuris, p. 283-308, mar. 1998. MARQUES, Claudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: Sobre a necessidade de ‘ações afirmativas’ em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 187-224. MELLO, Marco Aurélio. Saúde suplementar, segurança jurídica e equilíbrio econômico-financeiro. Planos de saúde: Aspectos Jurídicos e Econômicos. Rio de Janeiro: Forense. 2012. MONTONE, Januario. Evolução e Desafios da Regulação do Setor de Saúde Suplementar. Subsídios ao Fórum de Saúde Suplementar. Rio de Janeiro: ANS, 2003. (Série ANS n. 4). p. 13. SCHULMAN, Gabriel. Planos de Saúde: Saúde e Contrato na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 348. SCHULMAN, Gabriel; WEBER, R. Henrique. Adesão indireta dos consumidores-trabalhadores nos contratos de plano de saúde coletivos: limites e possibilidades a partir de um caso concreto. In: FACHIN, Luiz Edson, et. alli. (Org.). Apontamentos Críticos para o Direito Civil Brasileiro Contemporâneo II.

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A DESBIOLOGIZAÇÃO DA FAMÍLIA E O DIREITO AO CONHECIMENTO DA ASCENDÊNCIA GENÉTICA: AS CARACTERÍSTICAS DE UM DIREITO CIVIL PATRIMONIALISTA E EXISTENCIALISTA EM TRANSIÇÃO Glenda Gonçalves Gondim137 Sumário: 1. Introdução; 2. A família constitucionalizada: o vínculo sócio afetivo; 3. Paternidade: o afeto e a desvinculação dos laços biológicos; 4. O reconhecimento genético: as repercussões no Direito civil existencial e o resgate das características biológicas na paternidade; 5. Considerações finais; 6. Referências bibliográficas.

1. Introdução Pelas constituições do pós-guerra, a fim de proteger a pessoa humana das atrocidades ocorridas na II Guerra Mundial, foram consagrados direitos até então definidos como inerentes à esfera privada dos indivíduos. Seguindo este fenômeno, a Constituição Federal brasileira de 1988 preceitua em seus fundamentos da república a dignidade humana, no artigo 1º, inciso III da Carta Magna. A partir do reconhecimento da proteção da pessoa, é possível afirmar que “[...] a ordem jurídica tem por principal destinatário o ser humano, protegendo sua dignidade e garantindo-lhe o livre desenvolvimento da personalidade”,138 desvinculando o Direito do viés patrimonialista que embasou a sua formação moderna para um Direito existencial. Neste Direito existencial, a preocupação para com os direitos de personalidade deve ser prioridade, independente da positivação, pois não pode estar atrelada simplesmente aos direitos que estejam positivados e engessados legalmente. Dentro dos direitos de personalidade, encontra-se o direito à identidade genética ou reconhecimento da ascendência genética definido como um direito vinculado à identificação da pessoa. Todo indivíduo deve ser identificado socialmente, sendo uma necessidade pessoal e, portanto, um di-

137  Mestre e Doutoranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Advogada. Professora de Direito Civil da Universidade Positivo. Professora de Direito Civil do curso de Pós graduação lato sensu no Centro de Estudos Jurídicos do Paraná - Curso Professor Luiz Carlos. Endereço eletrônico: [email protected] 138  SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2ª ed., atual., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 57.

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reito de cada um.139 Tal identificação é realizada pelas relações que o indivíduo trava no âmbito social,140 pelas relações civis de casamento e pelos contratos que realiza,141 bem como pelas relações existenciais, incluindo, assim, dentre outras características, o nome familiar, o status familiae e sua identidade genética.142 O questionamento que surge é no que consiste a identidade genética, o que abrange e como decidir os conflitos com outros direitos de personalidade. Partindo do pressuposto de que não se trata meramente de um direito biológico, mas que dele decorrem laços culturais e sociais, o seu conteúdo não está relacionado simplesmente com o objetivo de evitar impedimentos matrimoniais, pois vai mais além, visando criar relações familiares;143 sendo, portanto, um direito amplo que se traduz em questões patrimoniais e existenciais, tendo em vista que engloba um direito em conhecer a sua própria história, travar relações familiares e garantir o patrimônio sucessório.

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A partir dessa conceituação é possível travar alguns questionamentos que são o objeto deste estudo. Eis que analisado patrimonialmente, o direito do reconhecimento à identidade genética cria vínculos familiares quando já existem vínculos afetivos? Para efeitos patrimoniais, prevalece a família biológica ou afetiva? Existencialmente, tal direito está relacionado com o conhecimento da história da pessoa, contudo, a história da pessoa está relacionada com o seu conhecimento genético ou com os laços familiares que foram travados durante a sua vida? Diante de tais problematizações, é preciso averiguar como será tratado o direito individual de reconhecimento à ascendência genética e seus efeitos neste Direito Civil em transição.

2. A família constitucionalizada: o vínculo socioafetivo Ao apontar para a pessoa, o Direito Civil alterou a sua ordem jurídica e os seus próprios institutos, que “[...] só tem razão de ser a partir do momento em que exista (e seja considerado) em função do homem”.144 No Direito 139  SZANIAWSKI, Elimar. Op. cit., p. 165. 140  QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Doutrina e jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 31. 141  MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin [coord.]. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 91-92. 142  SZANIAWSKI, Elimar. Op. cit., p. 165-166. 143  MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 177. 144  CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da perso-

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de Família, tal fenômeno ocasionou o afastamento aos modelos codificados e consagrados pelo século XIX. O modelo codificado era a família matrimonializada fundada nos conceitos de patriarcado e hierarquia, extremamente relacionada com fundamentos judaico-cristãos do casamento (do qual decorria a indissolubilidade do vínculo), que tinha como preocupação precípua os efeitos patrimoniais desta relação familiar. Esta família foi emoldurada pelo Código Civil de 1916 e deixava à margem do Direito as relações que se formavam e não se encaixavam no casamento entre um homem e uma mulher, bem como os filhos advindos de relações não matrimoniais. O fato da indissolubilidade do vínculo familiar também contribuiu para a formação de diversos concubinatos e “[...] Diante do inevitável aumento de situações fáticas, coube ao julgador decidi-las utilizando os mecanismos disponíveis”.145 Durante o século XX, verifica-se a criação de diversas legislações esparsas, elaboradas com o objetivo de disciplinar as relações familiares fáticas que estavam relegadas pelo Direito, cujos resultados batiam às portas do Judiciário na tentativa de serem abarcadas juridicamente e receberem solução jurídica justa que não estivesse fundada em padrões religiosos de um Estado laico. As legislações esparsas e a jurisprudência que conseguiram manter vivo o Direito de família, adequando a relação emoldurada pelo Código, para as relações fáticas que se desenvolviam, “[...] realizando interpretação construtiva, colmatando lacunas, relativizando rigores.”146 Também, as próprias famílias que se constituíram dentro dos padrões do codificado direito civil brasileiro foram sendo alteradas durante o tempo. É que a justificativa da família como uma instituição para melhor repartição de bens e constituição dos filhos para auxílio nas tarefas da propriedade - fundamentalmente rural - tomou lugar para uma família constituída, ainda que pelo matrimônio, em um número reduzido de filhos e uma maior aproximação entre estes e os pais; foi a redução do núcleo familiar.

nalidade. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin [coord.]. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 41. 145  CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin [coord.]. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 286. 146  FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2º ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 12.

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Essa alteração verificada na própria família codificada “[...] acabou contribuindo para que ela pudesse se tornar uma comunidade mais coesa, com maior proximidade entre seus membros”147 A mudança do núcleo familiar, analisado neste momento de forma quantitativa, pode ser atribuída a diversas causas ocorridas durante o século XX, tais como: “[...] o processo de urbanização, a industrialização ocorrida no país; o ingresso da mulher no mercado de trabalho, o aumento em sua esfera de atuação social, política e jurídica”,148 dentre outras. Todas essas alterações foram capazes de criar um vínculo familiar fundado na afetividade,149 o que foi ressaltado pelo disciplinamento jurídico da adoção, que se trata de formação de vínculo afetivo entre pais e filhos, que não possuem vínculos biológicos. E quando a Constituição Federal de 1988 disciplinou o princípio da “[...] igualdade e da liberdade na família, o vínculo jurídico cedeu parte de seu espaço à verdade sócio-afetiva”.150

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É importante ressaltar que tal afirmativa não significa dizer que as relações familiares anteriores não estavam fundadas no afeto, como no caso das adoções, mas sim que a partir da repersonalização do Direito, quando o importante era a proteção da pessoa, o afeto passou a ser considerado como elemento jurídico e, portanto, hábil a gerar efeitos jurídicos.151 O afeto passa a ser, então, elemento de suma importância a ser considerado para a relação matrimonial, visto que é a vontade de estar junto e compartilhar uma vida em comum que importará na “[...] constituição de uma família, assim como em sua dissolução”.152 A família a ser abarcada pelo Direito é toda união, ainda que fora da moldura do matrimônio, respeitando os laços afetivos e a individualidade do cidadão, inclusive com respeito ao “direito de não casar”,153 não ter filhos, se relacionar com base na homoafetividade, ou não criar vínculos familiares. Portanto, a transposição do Direito Civil patrimonial para um Direito Civil existencial, com vistas à pessoa humana, altera a “[...] função econômica147  CARBONERA, Silvana Maria. Op cit., p. 286. 148  CARBONERA, Silvana Maria. Idem, ibidem. 149  PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do Direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 179-180. 150  CARBONERA, Silvana Maria. Op. cit., p. 291. 151  LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 30. 152  CARBONERA, Silvana Maria. Op. cit., p. 297. 153  FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 96.

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-política-religiosa-procracional”154 dos laços familiares para a afetividade. E, consequentemente, o elemento afetivo também deve ser considerado para o vínculo entre os pais e os filhos, passando a ser admitida pelo direito civil constitucional a filiação biológica e não biológica, conforme exposto no tópico a seguir.

3. Paternidade: o afeto e a desvinculação dos laços biológicos A codificação de 1916 emoldurou a família no matrimônio e, consequentemente, as relações de filiação existiam quando originárias da relação matrimonial, portanto, o laço biológico não era suficiente para estabelecê-la. Os filhos que tivessem tão somente laços biológicos, mas não fossem originários do matrimônio, eram considerados como adulterinos “[...] em homenagem à ‘paz e a honra’ das famílias matrimonializadas”.155 A igualdade entre os filhos, independente da origem matrimonial ou não, bem como de vínculos biológicos ou não, foi grande avanço verificado durante o século XX, eis que a desigualdade existente e prevista no Código de 1916 que perdurou até a Constituição de 1988 “[...] era a outra e dura face da família patriarcal que perdurou no direito brasileiro”.156 No tocante a ausência de relação biológica com os pais, ao tornarem iguais os filhos com vínculos biológicos e aqueles com vínculos civis da adoção, tornou-se igualitária a relação biológica e a “filiação construída no amor”.157 Como consequência, fundamentou juridicamente a possibilidade de analisar a filiação como “[...] uma construção que abrange muito mais do que uma semelhança entre os DNA”.158 E a Constituição foi mais longe, não apenas forneceu elementos para a construção deste pensamento equitativo entre laços biológicos e afetivos, mas disciplinou expressamente o elemento do afeto na relação familiar. Diante da juridicidade do afeto, é importante analisar as consequências para os laços paternais, especialmente, no que tange a desvinculação dos laços biológicos e possibilidade de construção de uma relação familiar baseada, unicamente, em afeto. É que se a filiação não é meramente relação biológica e deve decorrer 154  155  156  157  158 

LÔBO, Paulo. Op. cit., p. 27. FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 52. LÔBO, Paulo. Op. cit., p. 15. FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 237. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 184.

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“[...] da construção cultural e afetiva permanente”,159 sendo que mero genitor não é sinônimo de pai, possível afirmar que sim, com a constitucionalização do Direito Civil a filiação pode e deve ser construída através da afetividade, ainda que ausente os laços biológicos. É o que demonstra a posse de estado de filiação que contínua e notória passa de uma relação fática para uma relação jurídica, portanto, com efeitos jurídicos, inclusive patrimoniais. A posse de estado de filiação é quando um indivíduo, não obstante a ausência de relação biológica, mantém com outrem uma relação de parentesco. Tal relação é caracterizada essencialmente pelo vínculo socioafetivo definido através de três elementos: nomen, tractus e reputatio. Todos os elementos compõem o “[...] tripé que garante a experiência de família e nele o pressuposto do afeto”.160

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Portanto, o estado de posse de filho não está relacionado com o elemento biológico, mas sim com o elemento afetivo e sociológico161 criando uma relação de parentesco entre as partes, ante o fundamento de que “[...] quem cria um filho que não traz consigo laços biológicos pressupõe-se que o desejo permeou esta relação”.162 Contemporaneamente, definir a paternidade como mero vínculo biológico é reduzir o seu significado, sendo que “A afetividade se apresenta como um critério tão relevante quanto o biológico, podendo até prevalecer em alguns casos”.163 Neste caso, como fica a paternidade afetiva diante do direito do filho em ter reconhecido o direito à identidade genética? A paternidade vinculada no princípio do afeto não deveria ser desconstituída. É o que afirma Paulo LÔBO, ao doutrinar que “A posse de estado de filiação, consolidada no tempo, não pode ser contraditada por investigação da paternidade fundada em prova genética”.164 159  LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio da afetividade na filiação. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 252. 160  PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 185. 161  FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1992, p. 159. 162  PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 185. 163  VENCELAU, Rose Melo. O elo perdido da filiação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do vínculo paterno-filial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 119. 164  LÔBO, Paulo. Op. cit., 2010, p. 235.

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Isso significa que a existência de novo vínculo – neste momento, fundada em características biológicas- não será hábil a desconstituir tal relação. E nem poderia ser diferente, ao afirmar-se que a afetividade não é mais definida pelos vínculos biológicos.165 Assim, quais são os efeitos na ação de investigação de paternidade? Será estabelecida tão somente a condição genética sem qualquer intervenção na relação de filiação? Em verdade, existindo um vínculo afetivo preexistente, a doutrina entende que mantem-se o vínculo afetivo, sem alterações, conforme mencionado acima, visto que, repita-se, o vínculo paternal não é definido em razão do vínculo biológico, mas sim em razão do vínculo socioafetivo. Tal posicionamento, contudo, não é unânime perante o Superior Tribunal de Justiça. No entendimento da corte superior, a paternidade sócio-afetiva se prevalece da filiação biológica quando a demanda judicial é proposta na ação negatória de paternidade ajuizada pelo pai registral, mas, quando a ação é proposta pelo filho registral que busca conhecer o seu pai biológico, a afetividade deve ser analisada caso a caso. Portanto, para a jurisprudência brasileira não é sempre que se prevalece a paternidade socioafetiva sobre a biológica, devendo ser averiguada caso a caso.166 Mesmo admitindo-se tal posicionamento, é importante salientar que não existirá a total substituição da vinculação afetiva, especialmente, quando esta constar da Certidão de Nascimento, visto que o posicionamento jurisprudencial é no sentido de que a declaração constante da Certidão de Nascimento deve ser protegida pelo Direito de Família.167 Assim, o que poderá ocorrer é uma correlação entre a paternidade biológica e a paternidade afetiva, declarada no assento de nascimento. Desta forma, o rompimento dos laços afetivos poderá ocorrer, de acordo com o entendimento jurisprudencial acima descrito, quando do pedido proposto pelo filho, único interessado em manter os laços civis criados pela afetividade. Destarte, o conhecimento da identidade genética não tem, a rigor, a 165  VENCELAU, Rose Melo. Op. cit., p. 119. 166  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1167993/RS. Quarta Turma. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Julgamento em 18/12/2012. 167  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1259460/SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 19/06/2012.

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característica de definir a paternidade, até porque a verificação genética pode acarretar o estabelecimento de vínculos, mas não de afeto, “[...] o vínculo biológico que leve ao jurídico não é suficiente para a satisfação da função paterna”.168 Também, não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 dispôs acerca da paternidade responsável, prevista no artigo 226, § 7º, da Constituição Federal,169 isto é, o vínculo socioafetivo entre pai e filho, em respeito ao princípio preceituado constitucionalmente, pode inclusive prevalecer quanto a características biológicas. Esse foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em pedido formulado pelo pai afetivo com o objetivo de desconstituir o pátrio poder do pai biológico. No fundamento do acórdão, analisando a legitimidade e o interesse de agir, entendeu-se que diante da paternidade responsável exercida pelo pai, bem como os vínculos afetivos existentes e o melhor interesse da criança, estariam presentes os requisitos processuais para a formulação do pedido.170 82

É notório, portanto, que o vínculo de filiação deve estar compreendido não apenas diante dos laços biológicos, mas sim ao vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos, para que seja atendido o direito da paternidade responsável e o estabelecimento da paternidade terá efeitos muito mais benéficos para as partes envolvidas do que mera imposição jurídica, eis que “[...] a construção sempre foi mais saudável que a imposição”.171 Conclui-se que o mero vínculo biológico entre as partes não significa vínculo de paternidade, pois O esvaziamento do conteúdo biológico da paternidade vem ocorrendo já há algum tempo dentro da sociedade, auxiliado pela transformação da família que, de instituição econômica, social e religiosa, afirmou-se como uma união entre membros, objetivando o companheirismo, a afetividade, a base psicossocial.172 168  VENCELAU, Rose Melo. Op. cit., p. 131. 169  Artigo 226, § 7º. “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais e privadas”. 170  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1106637/SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 01/06/2010. 171  VENCELAU, Rose Melo. Op. cit., p. 49. 172  QUEIROZ, Juliane Fernandes. Op. cit., p. 57.

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Portanto, se a paternidade não se vincula por dados biológicos, o conhecimento genético não terá tal função para as partes, não podendo ser a paternidade imposta, mas sim criada.

4. O reconhecimento genético: as repercussões no Direito civil existencial A família constitucionalizada é formada por laços afetivos e não meramente biológicos, com isso, conforme discutido no tópico acima, o conhecimento a origem genética não tem o condão de gerar a relação de paternidade entre as partes, especialmente, quando existente o vínculo afetivo preexistente. Consequentemente, pelo Direito Civil, não serão formados vínculos jurídicos e o objetivo não é a criação de direitos patrimoniais. O fato de não alcançar direitos patrimoniais pode significar que não há o porquê o Direito proteger essa pretensão? Diante do atual Direito que visa proteger as pessoas, a resposta não pode ser outra senão negativa, eis que o fato de não estabelecer vínculo de paternidade, não significa negar a suposta “[...] necessidade psicológica de se conhecer os verdadeiros pais”.173 Necessidade essa que é variável para cada indivíduo, sendo para alguns necessário conhecer a identidade parental biológica, através da qual acredita decorrer as características pessoais e sociais. Contudo, para outros indivíduos, essa característica não tem relevância, mas sim os vínculos afetivos existentes ou que venham a existir.174 A importância é pessoal e o seu conteúdo tem características muito mais importantes na existência do indivíduo do que conotações patrimoniais. É, portanto, um direito individual existencial. Neste sentido é que entendeu a Ministra Nancy Andrighi, ao afirmar que impedir o conhecimento da identidade genética é violar o princípio da dignidade da pessoa humana, em respeito “[...] a necessidade psicológica de se conhecer a verdade biológica”.175 No caso analisado, a investigante viveu durante 50 (cinquenta) anos com pais adotivos (caso de adoção à brasileira, eis que realizaram diretamente o registro da filiação), com os quais foi desen173  VENCELAU, Rose Melo. Op. cit., p. 121. 174  LÔBO, Paulo. Op. cit., 2010, p. 213-214. 175  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 876.434/RS. Quarta Turma. Relator Ministro Raul Araújo. Relator para acórdão Ministro Marco Buzzi. Julgamento em 01º de dezembro de 2011.

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volvida uma relação sócio afetiva. A existência da relação socioafetiva preexistente não é impedimento de pleitear o conhecimento da real história e a verdade biológica, prevalecendo o reconhecimento ao vínculo biológico. É que o fato de não criar vínculo jurídico entre as partes revela que mesmo se a pessoa já possui vínculos de paternidade (a existência de paternidade declarada na certidão de nascimento, por exemplo) pode realizar o exame genético,176 pois não existirá substituição dos vínculos, no máximo a sua correlação. Por isso, a afirmação de que o reconhecimento à identidade genética trata-se de uma situação de Direito existencial, cuja existência está relacionada com o direito de identidade, de identificação social.

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Repita-se que a pessoa é definida por seus status dentro da sociedade que está inserida, os “[...] status pessoais civis são aqueles que se garantem às pessoas no decurso das várias relações que elas travam, no âmbito social”.177 Eis que os indivíduos têm necessidade de identificação e o direito de identidade compõe os traços que vão constituir o indivíduo como único dentro da sociedade, é um direito que engloba desde (...) sua aparência física, de sua voz, de sua história pessoal, de sua reputação ou retrato moral, de seu nome familiar, de seu pseudônimo, de sua identidade sexual, de sua identidade genética, de sal caligrafia, de seu estado civil, entre outros (...).178 A identificação dentro da sociedade está relacionada efetivamente em relação ao que caracteriza a pessoa? Se dentro da sociedade estão inseridos também os elementos de identificação que são utilizados para configurar o estado de filiação a identidade é efetivamente genética ou afetiva? Em existindo o afeto, o status família é utilizado exatamente para configurar e justificar como a pessoa é identificada socialmente, destarte, não seria o caso de justificar este direito de personalidade dentro deste âmbito. 176  PEREIRA E SILVA, Reinaldo. Ascendência biológica e descendência afetiva: indagações biojurídicas sobre a ação de investigação de paternidade. In Direitos da família: uma abordagem interdisciplinar. Reinaldo Pereira e Silva e Jackson Chaves de Azevedo [coord.]. São Paulo: LTR, 1999, p. 174. 177  QUEIROZ, Juliane Fernandes. Op. cit., p. 31. 178  SZANIAWSKI, Elimar. Op. cit., 165-166.

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Por outro lado, existe a afirmação de que o conhecimento genético é conhecer a sua história e sua origem. Tal afirmação acerca do conhecimento da história de um indivíduo relacionada com o direito à identidade genética é questionada, se essa história estaria relacionada com os vínculos afetivos existentes ou genéticos, quando da relação afetiva preexistente. Para Juliana Fernandes QUEIROZ, existindo vínculos socioafetivos já consolidados, não há que se falar em identidade familiar biológica, pois o indivíduo já possui a identidade familiar determinada.179 No entendimento da autora, se os laços familiares não são apenas biológicos, também não o podem ser os laços das próprias origens, sendo que “As origens culturais e sociais se revelam bem mais importantes no desenvolvimento saudável do ser humano, que as tem, em sua integralidade na paternidade socioafetiva”.180 Para Maria Celina Bodin de MORAES não se trata de apenas conhecer a sua história, mas sim suas origens, que além de genéticas, são também culturais e sociais.181 Mas, também dentro do conhecimento de características culturais e sociais, a existência dos laços afetivos poderia esvaziar essa formação das origens através do reconhecimento genético. O grande problema é quando já existem vínculos afetivos instaurados e que não justificariam colocar em primeiro plano as relações biológicas, especialmente, quando todo o Direito Civil tem relegado a questão biológica nas relações familiares para um segundo plano. Tal direito justifica-se, efetivamente, quando da inexistência de laços familiares, bem como por razões particulares únicas, tornando a subjetividade o ponto central deste direito de personalidade.

5. Considerações finais Ao longo do presente estudo pretendeu-se analisar algumas das indagações que recaem sobre o direito ao reconhecimento à identidade genética, especialmente, contrapondo os vínculos biológicos e vínculos afetivos. É sabido que a família constitucionalizada é formada através de víncu179  QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Doutrina e jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 126. 180  Idem, ibidem. 181  MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 177.

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los afetivos cuja importância supera os vínculos biológicos e, consequentemente, o indivíduo que apresente uma relação afetiva preexistente não terá a desconstituição desses laços. Contudo, a existência da família afetiva não retira o interesse jurídico do indivíduo em requerer o direito ao reconhecimento genético, fundamentado no direito existencial de identidade social, conhecimento da sua história e origem. Ainda que parte da doutrina entenda e fundamentadamente que estes direitos existenciais (identidade, conhecimento e origem) estejam relacionados com a afetividade e não exatamente com características biológicas.

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Isto porque o direito ao reconhecimento à identidade genética trata-se de direito individual. É o indivíduo que analisa a necessidade psicológica em ter conhecimento ou não da sua relação biológica, independentemente do fato de ter sua família afetiva constituída. Por outro lado, prevalece a família afetiva, tanto em suas características patrimoniais quanto existenciais. Não se deve olvidar que as características são biológicas e relacionadas com o direito civil moderno e que o direito civil constitucional tenta superar através da regulamentação do afeto. A constatação é que o direito ao reconhecimento genético não será absoluto e, portanto, os seus efeitos patrimoniais e existenciais também serão relativizados, especialmente, quando da preexistência de família afetiva. E, por isso, não poderá se sobrepor a direitos de personalidade já consagrados, eis que os vínculos patrimoniais e os vínculos existenciais do indivíduo já estão presentes e relacionados com a família afetiva.

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6. Referências BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1259460/SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 19/06/2012. _____. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1167993/RS. Quarta Turma. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Julgamento em 18/12/2012. _____. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1106637/SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 01/06/2010. _____. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 876.434/RS. Quarta Turma. Relator Ministro Raul Araújo. Relator para acórdão Ministro Marco Buzzi. Julgamento em 01º de dezembro de 2011. CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin [coord.]. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin [coord.]. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. 2º ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. ______. Estabelecimento da filiação e paternidade presumida. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1992. LEITE, Eduardo de Oliveira. Bioética e presunção de paternidade (Considerações em torno do art. 1.597 do Código Civil). Grandes temas da realidade: bioética e biodireito. Eduardo de Oliveira Leite [coord.]. Rio de Janeiro: Forense: 2004. LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 27. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio da afetividade na filiação. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Luiz Edson Fachin [coord.]. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

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PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do Direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. PEREIRA E SILVA, Reinaldo. Ascendência biológica e descendência afetiva: indagações biojurídicas sobre a ação de investigação de paternidade. In Direitos da família: uma abordagem interdisciplinar. Reinaldo Pereira e Silva e Jackson Chaves de Azevedo [coord.]. São Paulo: LTR, 1999. QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Doutrina e jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2ª ed., atual., rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. VENCELAU, Rose Melo. O elo perdido da filiação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do vínculo paterno-filial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

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A ILEGALIDADE DA COBRANÇA DISSIMULADA DA COMISSÃO DE CORRETAGEM Luciana Pedroso Xavier182 Marília Pedroso Xavier 183 Sumário: 1. Introdução; 2. Perspectivas do mercado habitacional contemporâneo; 3. A cobrança dissimulada da comissão de corretagem; 4. A configuração do promissário-comprador como consumidor; 5. O direito à informação previsto no art. 6, inciso III do Código de Defesa do Consumidor; 6. A ilegalidade da cláusula de cobrança de comissão de corretagem dissimulada; 7. Considerações Finais.

1. Introdução É com grande satisfação que recebemos o convite para participar da obra “Estudos em Direito Privado: uma homenagem ao Prof. Luiz Carlos Souza de Oliveira”. Sentimo-nos honradas por integrar desde 2011 o seleto grupo de docentes do curso. A honra de lecionar no Curso Prof. Luiz Carlos caminha ao lado do sentimento de forte responsabilidade, pois suas salas de aula são o celeiro de futuros magistrados, promotores, procuradores, defensores e advogados. Logo, trata-se de ofício nobre. E o sentido de ser professor no CLC é passar valores e aguçar o senso crítico dos estudantes. Ou seja, transpor em muito uma preparação que leve em conta tão somente a mera literalidade da lei. Há mais de 30 anos o curso se destaca pela seriedade e comprometimento na preparação para concursos. É certo que formou toda uma geração de profissionais de destaque. Felizmente, ao lado da tradição que eleva 182  Doutoranda e Mestre em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e do Curso Preparatório Professor Luiz Carlos. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Participante do grupo de estudos em Direito Civil-Constitucional Virada de Copérnico. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR. Vice-Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/PR. Advogada. 183  Doutoranda e Mestre em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e do Curso Preparatório Professor Luiz Carlos. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Participante do grupo de estudos em Direito Civil-Constitucional Virada de Copérnico. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR. Vice-Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/PR. Advogada.

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o nome do curso, também se dá a preocupação com as inovações necessárias para acompanhar os novos imperativos da área dos concursos públicos, os quais claramente foram profissionalizados e complexificados ao longo dos anos. As próprias autoras estudaram no CLC e lá adquiriram conhecimentos importantes para a prática da advocacia, inclusive no que concerne aos aspectos éticos que norteiam a profissão. É digno de nota o fato recente do curso ter se voltado ao ensino de pós-graduação lato sensu. Desse modo, as marcas indeléveis deixadas pelo Professor Luiz Carlos produzirão ainda mais frutos, permitindo debates mais críticos e aprofundados. Para celebrar esse importante momento, foi tomado como objeto de estudo um tema ministrado pelas professoras ora subscritoras justamente na Pós-graduação de Direito Civil e Processual Civil, que propicia uma interlocução entre o Direito Civil e o Direito do Consumidor. 90

Trata-se da cobrança dissimulada da taxa de comissão de corretagem. Lamentavelmente, tal prática tem sido muito corriqueira no mercado imobiliário, dando azo a inúmeras demandas aforadas perante o Poder Judiciário. A importância do tema reside na sua ligação com o direito fundamental social à moradia, além da observância das garantias consumeristas. Outrossim, pontua-se que ganhou especial relevo em decorrência do notório aquecimento do setor imobiliário nos últimos anos. Por fim, ressalta-se que as decisões judiciais sobre o tema têm sido bastante divergentes, gerando angústias e falta de mínima previsibilidade sobre a solução dos litígios.

2. Perspectivas do mercado habitacional contemporâneo O mercado habitacional brasileiro passou por uma acentuada crise na década de 1990, que culminou com a insolvência de inúmeras incorporadoras de imóveis. O caso mais notório foi o da Encol S/A, uma das maiores construtoras do Brasil, que, por motivos de inadimplência, deixou 42.000 famílias desamparadas em seus aproximadamente oitocentos empreendimentos inacabados.184 A partir daí, grande insegurança se instaurou no mercado imobili184  Eis uma breve síntese desse lamentável episódio: “Depois de dois anos e meio de crise financeira, a Encol (então maior construtora de imóveis residenciais do Brasil) acumulou um saldo de 796 edifícios parados e R$ 850 milhões de dívidas. A falta de dinheiro para terminar as obras afetou cerca

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ário, fazendo com que o número de aquisições de imóveis na planta diminuísse muito.185 A falta de confiança dos consumidores no mercado, aliada ao alto custo do bem imóvel, acarretou um déficit habitacional assombroso, que ultrapassa a marca de 5,8 milhões de moradias.186 Ocorre que a moradia é um bem essencial a uma vida minimamente digna,187 uma vez que nas palavras de Rodrigo Xavier Leonardo: a habitação constitui um bem voltado para a satisfação de uma necessidade básica do sujeito, qual seja, a moradia. Nesse sentide 42 mil mutuários que pagavam financiamentos da construtora. Muitos deixaram de receber os imóveis nos prazos estabelecidos.” (FOLHA DE S. PAULO. Crise da Encol afeta 42.000 mutuários. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2008). Para um aprofundamento do tema, consultar: CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: o caso Encol. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 185  “Durante a crise, o ‘efeito Encol’ afetou o mercado imobiliário, que chegou a apresentar queda de até 50% nas vendas. Os consumidores, assustados, passaram a ser mais rigorosos na hora da compra de imóveis na planta.” (FOLHA DE S. PAULO. Crise da Encol afeta 42.000 mutuários). 186  Trata-se de indicador divulgado pelo Ministro das Cidades, Marcio Fortes de Almeida, no Fórum Urbano Mundial 5, realizado no Rio de Janeiro: “O novo indicador do déficit habitacional estimado é de 5,8 milhões de domicílios, dos quais 82% estão localizados nas áreas urbanas. As principais áreas metropolitanas do país abrigam 1,6 milhão de domicílios representando 27% das carências habitacionais do país. Em relação ao total dos domicílios, o déficit representa 10,1% do país, sendo 9,7% nas áreas urbanas e 11,9% nas rurais”. Igualmente, declarou o Ministro que “Com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), desde 2007, foram investidos cerca de 12 bilhões de dólares em urbanização de favelas. A partir de 2009, o programa Minha Casa, Minha Vida está possibilitando a construção de um milhão de moradias. Para o PAC 2, conforme adiantado pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, mais dois milhões de casas terão aporte.” (MINISTRO anuncia novo déficit habitacional durante FUM5. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2010). 187  No que concerne à proteção constitucional do direito à moradia, esclarecem Rosalice Fidalgo Pinheiro e Kátya Isaguirre que: “a moradia ingressou como um direito fundamental social, por meio da EC n.o 28/2000, que expressamente a consignou, no art. 6.o da Constituição da República. Antes da referida emenda, contudo, o direito à moradia já ingressara no ordenamento jurídico brasileiro. Proclamado pela primeira vez na Declaração Universal da ONU, de 1948, como um direito humano, a moradia alcançou amplo reconhecimento no plano internacional. Destaca-se o pacto internacional dos direitos sociais econômicos e culturais de 1966, do qual o Brasil foi signatário, bastando por si só, para que o direito à moradia estivesse formalmente incorporado ao seu direito interno. Outrossim, a Constituição da República de 1988 já trazia consigo menção expressa do direito à moradia em diversos dispositivos.” (PINHEIRO, Rosalice Fidalgo; ISAGUIRRE, Katya. O direito à moradia e o STF: um estudo de caso acerca da impenhorabilidade do bem de família do fiador. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Diálogos sobre o direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. v.2. p.153).

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do, todo o sujeito, ou toda a família, é um demandante potencial deste bem, na busca, pelo menos, de saúde e autonomia, necessidades estas básicas de todos os seres humanos. 188 O direito à moradia, já protegido pela Constituição da República, foi alçado ao rol dos direitos fundamentais sociais por meio da Emenda Constitucional n.o 28/2000.189 Importa ressaltar que o direito à moradia pode ser satisfeito de várias formas. Segundo Pietro Perlingieri, além do direito de propriedade em relação à moradia, “há outros instrumentos para realizar a fruição e utilização da casa”, tais como “as relações de uso, de moradia e de aluguel”.190 Tendo em conta a recente crise econômica instaurada nos Estados Unidos da América no ano de 2008, com reflexos em todo mundo – inclusive no Brasil191 – percebe-se que o tema em análise adquire ainda mais relevância, em parte pelo fato de especialistas preverem que tal instabilidade deve perdurar ainda por algum tempo.192 Interessante observar que a crise estaduni-

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188  LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p.37. 189  Artigo 6.o da Constituição da República de 1988: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Na atual redação foi incluído o direito fundamental social à alimentação, conforme redação dada pela Emenda Constitucional n.o 64, de 2010. 190  PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.888-889. 191  Apesar de ser tida pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, como uma “marolinha”, a crise de 2008 impactou, ainda que não tão severamente, no Brasil. (GALHARDO, Ricardo. Lula: crise é tsunami nos EUA e, se chegar ao Brasil, será ‘marolinha’. O Globo, 04 out. 2008. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2008). Contrariando o Presidente Lula, Guido Mantega, Ministro da Fazenda durante a eclosão da crise, afirmou que foi necessária a adoção de várias medidas para conter a crise, entre elas: “[r]edução de IPI para a aquisição de automóveis, eliminação de IOF para créditos a pessoas físicas; aumentos o crédito agrícola – o Banco do Brasil, que é o principal financiador a agricultura, aumentou significativamente a oferta. Depois, oferecemos pelo BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] mais capital de giro para a construção, que foi um dos setores que mais ampliaram o emprego e que teve problemas de liquidez no curto prazo. mas a medida mais importante que acabamos tomando foi a disponibilização de mais de 100 bilhões de reais para o BNDES – maior aporte já foi feito, via Tesouro.” (MANTEGA, Guido. Excesso de desequilíbrios. In: SISTER, Sérgio (Org.). O abc da crise. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p.134-135). Sobre o tema, conferir também: PENIN, Guilherme; FERREIRA, Tiago. Can it happen to us? O crédito imobiliário no Brasil e as possibilidades de repetirmos a crise norte-americana. Informações Fipe, n.326, , p.36-40, nov. 2007. p.36-40. 192  “Em 2008, tudo que poderia acontecer de forma inusitada, aconteceu: crise nas bolsas, estouro do subprime, quebra de vários bancos de investimentos, fusão Itaú-Unibanco, fundos de hedge, derivativos cambiais e superciclos econômicos... Seria quase impossível em um ano normal verificar a ocor-

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dense teve origem justamente no setor imobiliário, em virtude, dentre outros fatores, da concessão irresponsável do crédito.193 A urgência da resolução da questão habitacional ensejou o governo federal a implantar o programa “Minha casa, minha vida” - PMCMV, previsto na Medida Provisória n.o 459, de 25 de março de 2009 (depois convertida na Lei n.o 11.977, de 7 de julho de 2009), pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A finalidade do PMCMV seria “criar mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda de até dez salários mínimos”.194 Inicialmente, previa-se o investimento de R$ 34 bilhões para viabilizar a construção de um milhão de casas, o que representaria cerca de 17% do déficit habitacional do país. Como resultados parciais da implementação do programa, estima-se que já foram contratados mais de um milhão de imóveis, tendo sido, portanto, atingida a meta proposta.195 Caminha-se, então, para uma nova fase do programa, que agora almeja a construção de dois milhões de moradias entre os anos de 2011 e 2014.196 Apesar de o rência de tantos eventos inusitados. A incerteza (que sempre existiu) aumentou de forma dramática. A leitura dos acontecimentos induz a pensar que este ano vai demorar a acabar.” (GONÇALEZ, Ramiro. Que crise é essa? Curitiba: Juruá, 2009. p.15). 193  Explicação sintética e didática para o “estouro da bolha imobiliária americana” é fornecida por Jefferson Conceição: “A crise teve origem no mercado imobiliário americano. Com excesso de dinheiro em caixa, os bancos ofereceram crédito para compradores de imóveis com histórico de crédito ruim, segmento conhecido como subprime. Faturando com os altos juros cobrados para compensar a falta de garantia dos mutuários, muitas corretoras entraram no mercadode hipotecas imobiliárias. Grandes companhias hipotecárias usaram dinheiro de investidores de Wall Street para ampliar empréstimos e os ‘empacotaram’ por um processo chamado de securitização, que permite que as hipotecas sejam agrupadas e transformadas em papéis negociados no mercado. Bancos de investimentos venderam os papéis hipotecárias, espalhando o risco por todo mercado internacional. Apesar da origem precária desses papéis, agências de classificação de risco, como a Stanford & Poor’s, davam boas notas para eles, atraindo investidores como fundos de pensão. Investidores do mundo todo, incluindo grandes bancos, compraram os títulos podres. Nesse período, muitos mutuários refinanciaram o imóvel para continuar consumindo. O juro nos Estados Unidos começou a subir, o que elevou o valor de suas dívidas e provocou uma disparada na inadimplência, derrubando toda cadeia.” (CONCEIÇÃO, Jefferson José da. Para entender a crise. In: SISTER, Sérgio (Org.). O abc da crise. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p.32). 194  Artigo 2.o da Lei n.o 11.977/2009: “O PMCMV tem como finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda mensal de até 10 (dez) salários mínimos, que residam em qualquer dos Municípios brasileiros.” 195  “MINHA CASA, MINHA VIDA” atinge 1 milhão de contratos. Disponível em: . Acesso em: 29 dez. 2010. 196  MINHA CASA, MINHA VIDA terá mais 2 milhões de moradias, diz Bernardo. Disponível em: . Acesso em: 24 out. 2010.

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PMCMV não ser isento de críticas,197 certamente afigura-se como uma medida válida para a suplantação do déficit habitacional no país. Todavia, desde 2009, constata-se uma situação paradoxal. Em que pese tenha havido um aumento significativo na oferta de unidades autônomas e do crédito para adquiri-las, o valor dos imóveis cresceu em média 70% (setenta por cento), superando a inflanção, que no período foi de 32% (trinta e dois por cento). Para o economista Luciano D’Agostini, o Brasil estaria passando por um período de “bolha imobiliária”, que ocorre quando o valor do bem se “descola” da taxa de inflação:

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“A teoria de bolha monetária versa que o segundo estágio da bolha imobiliária inicia-se no instante em que o preço médio fundamental da economia, medido por indicadores de preços básicos como o IPCA, o IGPM e inflação dos salários, se descola levemente da taxa de inflação imobiliária, sendo que esta cresce um pouco mais do que aqueles, e em linha com a taxa de crescimento do crédito às famílias e empresas. Em termos macroeconométricos, o segundo estágio ocorreu entre 2003 e 2007, e o terceiro estágio da bolha imobiliária, de quatro possíveis no Brasil, começou em 2007 e termina em 2013. O terceiro estágio da bolha imobiliária inicia, em termos teóricos, quando existe um forte descolamento e em curto espaço de tempo entre a inflação imobiliária e as inflações básicas, e entre a inflação imobiliária e a inflação dos salários dos trabalhadores. A taxa de crescimento do aluguel é maior que a taxa de crescimento dos salários; a taxa de crescimento do crédito acompanha a taxa de crescimento dos preços dos imóveis; e a taxa de crescimento do crédito é bem maior que a taxa de crescimento dos salários dos trabalhadores e dos lucros das empresas – com este indicador provocando endividamento das famílias e empresas.”198 197  As principais críticas direcionadas ao PMCMV são as seguintes: i) o número de casas vazias no país (6,07 milhões – Censo 2010) supera o do déficit habitacional (5,8 milhões), de modo que deveriam ser implementadas políticas públicas para estimular a reocupação das moradias vazias; ii) ampliação do teto para contemplar faixa de pessoas que recebem entre seis a dez salários mínimos; iii) inclusão no programa de imóveis usados; iv) a escolha da figura da alienação fiduciária em garantia. 198  D’AGOSTINI, Luciano. Bolha Imobiliária em Curitiba, no Brasil e nos emergentes? Gazeta do Povo, 10/04/2014, .

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Passamos, portanto, por um momento delicado no mercado imobiliário. Por um lado, festeja-se a maior oferta de imóveis à disposição do consumidor. Por outro, o momento econômico exige prudência do consumidor, para que não se endivide e perca o bem. Somada à essas relevantes circunstâncias, o chamado “overbooking imobiliário”199 trouxe consigo a intensificação de práticas abusivas extremamente lesivas ao consumidor promissárias comprador. Lamentavelmente, são tantas as condutas em desconformidade com o sistema de proteção ao consumidor,200 que no presente trabalho optou-se por abordar apenas uma delas: ilegalidade da cobrança dissimulada da taxa de corretagem.

3. A cobrança dissimulada de comissão de corretagem Muitos consumidores, após anos de planejamento e expectativas, finalmente conseguem chegar ao momento tão esperado da concretização do sonho da casa própria. Para tanto, procuram uma construtora considerada confiável, na qual possam depositar suas economias e de quem pudessem esperar lealdade. Normalmente, a escolha do imóvel ocorre após a visita a diversos empreendimentos. Ao se gostar do perfil do imóvel e se ter certeza da qualidade da construtora, inicia-se a fase de tratativas preliminares, em regra seguida do oferecimento de proposta de reserva do imóvel preenchida com o auxílio do corretor que o atendeu no plantão de vendas do empreendimento. Em regra, a proposta para aquisição do bem imóvel é composta por uma entrada (sinal de negócio), por um saldo devedor que pode ser parce199  Trata-se de curiosa expressão cunhada por Plínio Lacerda Martins e Paula Cristine Pinto Ramada, em analogia ao que ocorre na aviação aérea: “O termo overbooking faz referência ao fato semelhante na aviação civil com a venda de passagens aéreas além da capacidade dos voos. Assim, também, na construção civil em que a venda de imóveis é feita em grande escala, mas não consegue entregar no prazo acordado. (MARTINS, Plínio Lacerda; RAMADA, Paula Cristiane Pinto. Overbooking imobiliário e os direitos do consumidor na aquisição de imóveis. Revista de Direito do Consumidor. 2014. Revista de Direito do Consumidor – RDC, n. 91, Ano 23, jan-fev. 2014, p. 121.) 200  Com o aquecimento do mercado imobiliário, é cada vez maior o número de reclamações registradas contra as construtoras/ incorporadoras. Segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec: “Em 2011, por exemplo, os Procons que integram o Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), do Ministério da Justiça receberam 18.700 queixas. Em 2012, o número subiu para 23.578, o que representa um aumento de 26%”. (Febre do Imóvel. Revista do Idec, n. 178, julho 2013, p. 16).

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lado durante a construção e o restante financiado após a entrega da unidade autônoma. Com muita vontade de fechar o negócio e parar de pagar aluguel, muitas vezes os adquirentes não percebem armadilhas que podem ocorrer na celebração da compra e venda do imóvel. Dentre as “arapucas” destinadas aos consumidores, muito provavelmente a cobrança dissimulada da taxa de comissão de corretagem tem sido a mais recorrente. Essa prática abusiva ocorre quando no valor estipulado como entrada está embutida a taxa de corretagem, que desse modo será paga pelo promissário-comprador sem que ele tenha conhecimento disso. Um fato que contribui para a falta de ciência do consumidor é o de que a cópia do compromisso de compra e venda e demais documentos relativos à compra do imóvel muitas vezes só lhe são encaminhados mais tarde, meses após a pactuação do negócio.

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A justificativa apresentada pelos corretores de imóveis para não entregar de imediato uma cópia ao comprador é a de que o compromisso precisa ser assinado por dirigentes das construtoras em sedes diversas do local da contratação, razão pela qual a cópia do adquirente só lhe é enviada posteriormente. Logo, a ausência de cópia da promessa de compra e venda dificulta mais ainda o entendimento do promissário-comprador sobre as reais informações sobre o negócio. Ocorre que, quando finalmente o adquirente recebe sua via e faz uma leitura cuidadosa do contrato, percebe que foi vítima de prática manifestamente abusiva, que lamentavelmente está assolando o mercado imobiliário do país: a cobrança dissimulada da taxa de corretagem. De forma proposital, a oferta do imóvel não informa corretamente os promissários-compradores sobre os reais termos da negociação, de modo que eles são enganados e manipulados para arcar com a taxa de corretagem, que, a princípio, seria legalmente uma obrigação do vendedor, nos termos do art. 724, do Código Civil.201 201  É importante esclarecer que, a princípio, a taxa de corretagem pode ser negociada entre comprador e vendedor. Em outras palavras, o referido artigo 724 do Código Civil abre espaço para que

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Esse tipo de situação sucede em casos em que os promissários-compradores não contratam corretor de imóveis, mas são enganados a pagar comissão de profissional que trabalhava no interesse e contratado pela promissária-vendedora, que inclusive cede espaço para que a equipe da Imobiliária contratada monte o seu plantão de vendas dentro do empreendimento ofertado. Nesse sentido, importante denúncia foi realizada pelo Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa do Consumidor: “O Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec) alerta que um dos problemas da na hora de negociar o imóvel e que envolve os corretores, é a cobrança dissimulada da taxa de corretagem. De acordo com o órgão, a cobrança ilegal geralmente se dá quando o consumidor é solicitado a dar um sinal para concretizar o negócio. A cobrança é feita, muitas vezes, sob o argumento de venda que restam poucas unidades ou que a tabela de preços vai ser reajustada. É feito uma proposta de compra e aquele valor colocado como arras, uma espécie de multa prevista no Código Civil se uma das partes desistir do negócio, diz comunicado do instituto. Quando chega o contrato definitivo o consumidor descobre então que aquele valor dado a título de arras, na verdade era em grande parte a comissão de corretagem que foi cobrada dele e não do vendedor do imóvel. Essa é a irregularidade.” 202 Ora, diante de tamanho desrespeito aos direitos do consumidor, direito esse alçado ao patamar de fundamental pela Constituição Federal de 1988, faz-se necessário uma análise acurada da relação jurídica que lhe dá origem. Para tanto, o primeiro momento do presente artigo trata da configuração da relação de compra e venda de imóveis na planta como uma relação de consumo e, portanto, regida pelo Direito do Consumidor. Em seguida, o trabalho defende que um direito essencial ao consumidor é violado pela prática de cobrança dissimulada, qual seja, o direito à haja autonomia na determinação de quem irá arcar com esse custo. Todavia, como será explanado no tópico 5, no caso em apreço, está-se diante de uma relação de consumo, que limita o poder de disposição das partes em favor dos direitos fundamentais do consumidor. 202  Ibedec alerta para cobrança do valor da corretagem. Gazeta do Povo, Caderno Imóveis. 06/01/2013.

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informação. Se há direito do consumidor lesado na relação jurídica, decorrem daí as consequências previstas pelo ordenamento, dentre as quais a nulidade da cláusula acima comentada, bem como o dever de indenizar.

4. A configuração do promissário-comprador como consumidor Em casos de compra de imóvel na planta, em especial por pessoa física e para fins de moradia, o compromisso de compra e venda subordina-se às regras do Código de Defesa do Consumidor, diploma que tem como escopos a proteção e a defesa do sujeito considerado vulnerável nas relações jurídicas de consumo.203 A incidência do CDC se comprova a partir do conceito de consumidor em sentido estrito insculpido no seu art. 2º, caput, para o qual é consumidor “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.

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A respeito da interpretação do que significaria a expressão ‘destinatário final’, identificam-se três correntes doutrinárias: i) a maximalista; ii) a finalista; e iii) a finalista mitigada. Para a corrente finalista, destinatário final seria aquele que concomitante retira o produto ou serviço da cadeia de produção e igualmente não o revende, não faz uso profissional ou o utiliza como insumo. A segunda teoria, maximalista, exige que o consumidor seja apenas destinatário fático do produto, isto é, que o retire do mercado de consumo. Por fim, a teoria finalista aprofundada é atualmente a mais adotada pelo Superior Tribunal de Justiça. Para essa última corrente, além do exame dos destinatários fático e econômico, deve ser analisada a vulnerabilidade, critério-chave para a incidência ou não do diploma consumeirista.204 Em caso de adquirente que compra para si ou para sua família unidade autônoma com fim de moradia, há a configuração de destinatário fático (retira o bem imóvel da cadeia de produção) e também econômico (faz uso do bem para si próprio ou para sua família) de tal contratação, o que torna inequívoca a aplicação do CDC, de acordo com qualquer uma das três teorias acima expostas. Nesse sentido, Claudia Lima Marques afirma que: 203  Acerca da vulnerabilidade do consumidor, conferir GONÇALVES DE OLIVEIRA, Andressa Jarletti. Defesa Judicial do Consumidor Bancário. Curitiba: Rede do Consumidor, 2014. 204  BENJAMIN, Antônio Herman; LIMA MARQUES, Claudia; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 68-69.

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“Quanto ao contrato de incorporação imobiliária, em que o incorporador faz uma venda antecipada dos apartamentos, para arrecadar o capital necessário para a construção do prédio, fácil caracterizar o incorporador como fornecedor, vinculado por obrigação de dar (transferência definitiva) e de fazer (construir). A caracterização do promitente comprador como consumidor, dependerá d destinação final do bem ou da aplicação de uma norma extensiva, como a presente no art. 29 do CDC. Interessante notar que qualquer dos participantes da cadeia de fornecimento é considerado fornecedor e há solidariedade entre estes. Ao contrato aplica-se, então, em regra, às normas do Código de Defesa do Consumidor. Isto é importante em face da multiplicação do mercado imobiliário deste tipo de contrato e o perigo de má utilização do instituto, o qual trabalha necessariamente com a figura da promessa de venda, tendo em vista a venda antecipada. No caso existe lei especial, a Lei 4.591/64 e suas modificações, mas as regras de ordem pública do Código de Defesa do Consumidor terão aplicação para regular o novo equilíbrio e boa-fé obrigatórios aos contratos de consumo, pois como ensina o Superior Tribunal de Justiça, aqui haverá diálogo das fontes.”205 Sendo assim, é inequívoca a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à presente situação, de modo que suas normas protetivas devem ser invocadas em favor do promitente-comprador.

5. O direito à informação previsto no art. 6, inciso III do Código de Defesa do Consumidor A Constituição Federal de 1988 conferiu aos consumidores especial proteção ao elevar sua defesa ao patamar de direito fundamental (art. 5º, XXXII CF 88). Uma vez sendo a proteção do consumidor uma prioridade na Ordem Econômica estabelecida pela Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do Consumidor reconhece sua vulnerabilidade, pois ele é a parte mais fraca da relação jurídica de consumo: Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por 205  LIMA MARQUES, Claudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. São Paulo: RT, 2003, p. 367.

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objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

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Ademais, o CDC estabelece no art. 6º, inciso III, ser um direito básico do consumidor a informação precisa e clara, nos seguintes termos: “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”. Ocorre que na situação de cobrança da taxa de corretagem dissimulada, tal direito à informação não é respeitado, como se passa a demonstrar, a partir de três fundamentos. Em primeiro lugar, a proposta/oferta apresentada pelo corretor de imóveis aos consumidores não menciona que cabe a eles (promissários-compradores/consumidores) arcar com a taxa de corretagem. A taxa de corretagem é dissimulada na exigência de sinal do negócio, que para os consumidores é apresentado como princípio de pagamento, mas que posteriormente se revela como sendo destinado à taxa de corretagem. Infelizmente, percebe-se nos casos concretos que o corretor não informa ou alerta os consumidores para o fato de que caberia a eles o pagamento da taxa de corretagem. Isto contraria a regra geral estipulada no art. 724 do CC e pode ensejar punição no órgão de classe.

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Nesse mesmo sentido, a própria forma de cobrança do sinal de negócio contribui para a falta de ciência do consumidor, que são orientados a pagar a entrada por meio da emissão de diversos cheques, com diferentes valores e datas. Isso evidencia as estratégias de dissimulação utilizadas para sonegar o direito à informação do consumidor e levá-lo a equívoco, pois para o consumidor o que estaria ocorrendo seria a concessão, pela construtora, do benefício de poder parcelar a entrada do negócio. Em segundo lugar, os documentos destinados ao consumidor tempos depois da assinatura do contrato, não raro deixam de mencionar que a obrigação de pagar a taxa de corretagem foi transferida ao consumidor. Em terceiro lugar, quando contemplam essa informação, o fazem de modo camuflado, nas últimas páginas do contrato e sem qualquer destaque, o que infringe o art. 54 do CDC. A obrigação de pagar a taxa de corretagem é geralmente inserida de modo desleal na penúltima ou última página do Instrumento Particular de Compromisso de Compra e Venda e outras avenças do imóvel, de modo a ser mais um obstáculo à informação do consumidor.

6. A ilegalidade da cláusula de cobrança de comissão de corretagem dissimulada A cláusula de comissão de corretagem, por ser inserida de modo camuflado no contrato e por transferir ao consumidor a obrigação de arcar com a taxa, deve ser considerada nula, haja vista seu manifesto desrespeito ao direito à informação. Vale lembrar que a presunção é a de que o vendedor arcará com as despesas de corretagem, pois se trata da regra geral estabelecida pelo art. 724, do Código Civil. Ainda, a nulidade se aplica por colocar o consumidor em situação de desvantagem exagerada e por violar o princípio da boa-fé objetiva, que determina que as partes se comportem nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual de maneira leal e proba,206 de modo que viola o direito à proteção 206  Nesse sentido, seguem os Enunciados das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: i) Enunciado n. 25 da I Jornada de Direito Civil (Art. 422): O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual; ii) Enunciado n. 170 da III Jornada de Direito Civil (Art. 422): A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato. Disponível em: . Acesso em: 29/09/2014. 207  Art. 54 do Código de Defesa do Consumidor: Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela “autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo. (...)§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.”

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Além disso, e mais importante que qualquer outra questão, deve ser dado o direito do adquirente optar por adquirir o imóvel diretamente da incorporadora, sem qualquer intermediador, mormente em função da proibição de venda casada trazida pelo Código de Defesa do Consumidor, na qual proíbe que o fornecedor impinja outro serviço ou produto para que seja efetivada a contratação”.208 Logo, diante da violação de tantos direitos do Consumidor, a declaração de nulidade dessa cláusula é imprescindível.

7. Considerações finais Como foi dito acima, o boom imobiliário contribuiu para que práticas abusivas ao consumidor se alastrassem. Dentre elas, talvez a mais pronunciada seja a cobrança dissimulada da taxa de comissão de corretagem, ilegalmente repassada (de modo camuflado) ao consumidor. A ilegalidade dessa conduta reside no fato de violar o direito à informação previsto no art. 6º, III do Código de Defesa do Consumidor, bem como contrariar a boa-fé objetiva e as normas protetivas concernentes aos contratos de adesão. Igualmente, constitui venda casa, outra prática abusiva coibida pelo CDC. Infelizmente, a cobrança dissimulada da comissão de corretagem tem como consequência a queda na confiança dos consumidores no mercado imobiliário, para além de danos pecuniários imediatos. Em acurada síntese, Flávio Tartuce expressa a situação dos consumidores de bens imóveis no Brasil: “Infelizmente, há uma verdadeira exploração do brasileiro comum, que sonha com a sua casa própria. O sonho se transforma em pesadelo na realidade. Infelizmente, a piorar a situação, muitos desses contratos, abusivos na essência, são subsidiados por bancos com capital público, dando a falsa sensação aos adquirentes, de que são negócios justos e seguros. Triste realidade vive o País.”209 208  LIMA, Marcelo Chiavassa de Mello Paula. O ônus de pagamento do serviço de corretagem e do serviço de assessoria técnico-imobiliária (Sati) nos contratos de compra e venda de unidades autônomas na planta. Revista de Direito do Consumidor – RDC, ano 23, n. 93, maio-junho 2014, p. 195-196. 209  TARTUCE, Flávio. Do compromisso de compra e venda de imóvel. Questões polêmicas a partir da teoria do diálogo das fontes. Revista de Direito do Consumidor – RDC, ano 23, n. 93, maio-junho 2014, p. 178.

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Além dos danos ao consumidor, nesse cenário percebe-se o triste enfraquecimento da profissão do corretor de imóveis, o qual passa a ser desrespeitada quando o próprio contratante (o construtor) se nega a remunerar o serviço de intermediação prestado. É lamentável que os conselhos de classe que atuam em favor dos corretores não estejam atentos para o desprestígio da própria profissão, diga-se de passagem, essencial para a viabilidade de qualquer empreendimento imobiliário.

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NOTAS SOBRE DIRETIVAS POR ANTECIPAÇÃO DE VONTADE E O DENOMINADO ‘TESTAMENTO VITAL’: QUESTÕES E PROBLEMAS Luiz Edson Fachin210 Sumário: 1. Introdução; 2. Constitucionalização do Direito Privado: premissas para uma análise de conjunto; 3. O Testamento Vital; 3.1. Testamento vital, ortotanásia e regulamentação; 3.2. Revogação do testamento vital; 3.3. O testamento vital nos ordenamentos jurídicos estrangeiros; 4. Breve Conclusão; 5. Referências bibliográficas.

1. Introdução O registro de ideias, fruto de investigações211 teóricas e experimentações concretas, é um passo relevante para prestar contas à literatura jurídica e ao tempo em que vivemos. É o que aqui se intenta fazer. A sociedade hodierna, notadamente complexa e em constante mutação, tem exigido do Direito respostas a novos desafios diuturnamente, transformando a relação entre fato e regra num certo tipo de consumo de massa. Ao ordenamento jurídico se pede respostas que, não raro, estão acima das possibilidades estritas do sentido jurídico, numa elementar transferência das básicas questões que afligem o ser humano no encontro impostergável do sujeito com sua própria humanidade. Dentro de tais lindes está mesmo o sentido de finitude, e inserido nas expectativas do Direito se situa o tema do assim denominado ‘testamento vital’; o limite e a possibilidade se entrelaçam no curso de torna viagem entre a vida do direito e o direito da própria vida. Aqui, por isso, ao atender ao honroso convite de prestar justa homenagem a quem se dedicou ao Direito e à justiça, bem assim ao ensino do Direito, seguem algumas notas sobre limites e possibilidades de uma relevante figura jurídica. Almejo, assim, render tributo ao Professor Doutor Luiz Carlos Souza de Oliveira, atendendo ao honroso convite do Professor Doutor Sérgio Staut Junior. 210  Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutor pelo Faculty Research Program (Canadá). Pesquisador convidado do Instituto Max Planck (Alemanha) e Professor Visitante do King´s College (Inglaterra). Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Advogado. 211  Agradeço o auxílio dos acadêmicos Maurício Wosniak e Nicolas Fassbinder na pesquisa que forneceu elementos relevantes ao texto aqui apresentado.

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Principio esta reflexão ressaltando que a dogmática do pensamento jurídico, marcada pela abstração e generalidade, não raro entra em rota de colisão com a força construtiva dos fatos, demandando novos significados a significantes clássicos da Justiça. Nesta perspectiva, os avanços da medicina e da psicologia trouxeram contributos de grande monta na análise e percepção de fatos concretos. A partir disso, passou a ser possível, verbi gratia, a previsão de acontecimentos futuros que, por determinada patologia, possam vir a trazer incapacidade civil. Neste influxo, irrompe como possível a declaração prévia de vontade de uma pessoa, ainda na plenitude de sua capacidade civil, com o objetivo de disciplinar antecipadamente o regime jurídico do cuidado de seus interesses para que possa surtir efeitos no momento de incapacidade superveniente. Esta declaração, como já apontou a doutrina, poderia conter, dentre outros elementos, diretivas sobre tratamento médico, além da disposição sobre direitos transmissíveis e eventual outorga de poderes para alguém agir em seu nome e interesse. 106

Tal discussão, que versa acerca do denominado “testamento vital” ou, ainda melhor dito, “diretivas antecipadas de vontade”, envolve profundas discussões acerca de princípios constitucionais, como é o caso da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, além de colocar em xeque os limites e possibilidades das classificações dogmáticas das capacidades civis. Ao lado disso, beneplacita importantíssimos elementos imateriais da vida, como o respeito indisputável à liberdade de crença que compreende o modo de ser e de estar de cada pessoa, em si mesma e também coletivamente considerada. A partir deste contexto, o presente artigo analisará, de forma panorâmica e sucinta, o fenômeno da constitucionalização do direito privado, de modo a trazer premissas valiosas ao exame adequado do tema. Nesta esteira, será analisada também a modalidade do testamento vital a partir de um viés de conjunto, de modo a englobar discussão doutrinária, legislativa e jurisprudencial acerca do assunto. Por fim, sem a pretensão de exaurir matéria tão rica e complexa, serão tecidas breves considerações a guisa de conclusão, com o escopo de estimular futuras e necessárias reflexões. Um alerta, por conseguinte, ao leitor: os apontamentos que seguem assumem seu caráter transitório e singelo, sem neles

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estar contida qualquer direção peremptória ou exaustiva dessa rica temática.

2. Constitucionalização do Direito Privado: premissas para uma análise de conjunto No atual estado da arte do Direito brasileiro, pode-se constatar a presença da Constituição Federal como documento normativo que garante a unidade do ordenamento jurídico. A partir de 1988, o direito constitucional brasileiro experimentou diversas modificações que alteraram completamente a ratio do ordenamento jurídico como um todo. Segundo Luís Roberto Barroso, três grandes modificações ocorreram quando da promulgação da Constituição Federal de 1988: o reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova interpretação constitucional.212 Neste contexto de relevantes mudanças, houve o reconhecimento de que as regras e princípios constitucionais seriam parâmetros para a interpretação das demais normas infraconstitucionais. Ademais, estas regras e princípios passaram a gozar de eficácia direta e imediata, incidindo tanto sobre relações públicas quanto sobre relações privadas. Era, em outras palavras, o reconhecimento de que tudo deveria emanar da Constituição, de modo a respeitar e obedecer a unidade do ordenamento jurídico e a supremacia das normas constitucionais. Neste influxo, também se expandiram os meios de se alegar a inconstitucionalidade de leis e atos normativos ordinários, com a previsão da Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, além de ações que visavam a tutela de direitos fundamentais, como o Mandado de Segurança e o Mandado de Injunção. Tudo isto demonstrou a grande preocupação do constituinte em estabelecer um sistema constitucional que garantisse o respeito ao seu caráter social e solidário. Este cenário, apontado por inúmeros juristas como uma “virada de Copérnico” no Direito brasileiro, implicou em significativas alterações na forma como diversos ramos do Direito eram vistos. O Direito Civil, marcado por forte caráter individualista e patrimonial, começou a ser interpretado a partir de um viés constitucional, sem deixar de 212  BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, página 262.

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proteger a pessoa e bem assim o patrimônio. Muitos de seus institutos clássicos, previstos tão somente no Código Civil, passaram a ser disciplinados também na própria Constituição Federal de 1988. Surgia assim o fenômeno da Constitucionalização do Direito Privado; trata-se, aí, da primeira constitucionalização, que não esgota dois outros sentidos: da constitucionalização substancial e da constitucionalização prospectiva. Na visão de Pietro Perlingieri, este fenômeno implicou em uma maior harmonia do sistema do direito civil aos princípios fundamentais, além da redefinição do fundamento e da extensão de diversos institutos jurídicos e modernização de conceitos clássicos do direito privado.213 Sendo assim, conceitos como a propriedade, a posse, o contrato e a própria herança começaram a ser vistos a partir de uma perspectiva de funcionalização e de função social. Hodiernamente, não basta apenas que estes institutos se prestem a atender interesses particulares, devendo, acima de tudo, prestar contas a toda a sociedade.

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Nesta esteira, foi promulgado em 2002 o novo Código Civil, reconhecido por avanços escorreitos e, ao mesmo tempo, retrocessos flagrantes em muitas de suas normas. A seu respeito, se admitia, antes mesmo de sua entrada em vigor, o que alegava Paulo Lôbo, no sentido de que suas normas haveriam de ser interpretadas em conformidade com os princípios e regras constitucionais.214 A opção legislativa pela utilização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados permitiu que o Direito pudesse acompanhar mais de perto as evoluções sociais, como é o caso do artigo 927 e sua cláusula de responsabilidade civil. Ademais, o caráter principiológico do novo Código permitiu sua melhor adequação com as disposições constitucionais, como no caso do princípio da boa-fé, da função social da propriedade, da justiça contratual e dos direitos da personalidade. Entretanto, mesmo com curial melhora na precisão conceitual de determinados institutos, como a prescrição e decadência, ainda é patente a permanência de conceitos retrógrados que não mais se coadunam com a contemporaneidade, como é o caso da manutenção da distinção entre atividades negociais simples e empresárias no artigo 982. Ademais, em momentos em 213  PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, página 12. 214  LÔBO, Paulo. Direito Civil: sucessões. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014, página 41.

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que pretendia inovar, o legislador agravou a ordem antes vigente, como é o caso do artigo 1.790, destacado por Giselda Hironaka como uma infeliz inserção de última hora que não respeita a Constituição Federal,215 inclusive pelo fato de estabelecer assimetrias entre as figuras do companheiro e marido. Sendo assim, infere-se que o ordenamento jurídico brasileiro atual, entre sístoles e diástoles, é regido não apenas por regras mas também, preponderantemente, por princípios. No tocante especificamente ao direito das sucessões e suas implicações no Direito e na usualmente cognominada ‘Bioética’, pode-se apontar dois princípios que se cruzam para a resolução dos casos concretos: a autonomia privada e a dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade humana, como bem recorda Ingo Sarlet, é uma categoria axiológica aberta que não comporta apenas uma definição rígida.216 Mesmo assim, há que se ressaltar sua sobranceira importância no ordenamento jurídico brasileiro, justamente por simbolizar a tutela da pessoa humana em detrimento de seu patrimônio. Sendo assim, este princípio centraliza a proteção na pessoa, de modo a lhe garantir uma vida em condições minimamente razoáveis. Mesmo diante de tais indefinições, Luis Roberto Barroso procurou demonstrar alguns elementos que compõe o núcleo essencial da dignidade humana, a saber: valor intrínseco, autonomia e valor comunitário. Para o autor, o valor intrínseco seria o elemento ontológico, ligado a características inerentes aos seres humanos, como o direito à vida, igualdade, integridade física, mental e psicológica.217 Já a autonomia seria o seu elemento ético, entendida como a autodeterminação do indivíduo para efetuar escolhas. Por fim, o valor comunitário é apresentado como o elemento social da dignidade humana, demonstrando que toda pessoa é formada pelo convívio social. Junto com a dignidade humana, outro princípio se mostra relevante na ordem constitucional brasileira: a autonomia privada. Visto como a mola propulsora do direito privado ao longo da Modernidade, a autonomia privada 215  HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Da Ordem de Vocação Hereditária nos Direitos Brasileiro e Italiano. In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de; CARBONE, Paolo; TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Túlio Ascarelli. 2ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2010, página 196. 216  SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, página 115. 217  BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012, página 76.

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estabelece o reconhecimento da liberdade aos contratantes para pactuarem livremente conforme seu consentimento. Trata-se da expressão pacta sunt servanda, segundo a qual o contrato faz lei entre as partes. Correntemente, melhor que autonomia privada é tratar de um dos sentidos possíveis de liberdade. Entretanto, a adequação entre tais princípios não é algo simples. Não raro a autonomia do indivíduo (rectius: liberdade) encontra barreiras diante do caráter social, solidário e personalista da Constituição Federal de 1988. Na acepção de Paulo Lôbo, a autonomia privada deve ser pensada hodiernamente não como um espaço livre e desimpedido dos particulares, mas sim como importante instrumento de promoção da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.218 Postos tais parâmetros como premissas, impende agora adentrar ao ponto específico desta reflexão em curso.

3. O Testamento Vital 110

Tendo como pressuposto os princípios constitucionais versados e mesmo a ideia de ‘constitucionalização do direito privado’, insta tratar agora do instituto do testamento vital propriamente dito, colocando desde início uma ressalva quanto a sua nomenclatura. Em verdade, não se pode dizer que o instituto que aqui se analisará seja um testamento em sentido técnico. Muito embora o testamento vital, tal qual os testamentos de modo geral, seja um ato unilateral de vontade, sua eficácia é observada ainda durante a vida do sujeito. Tratando dos testamentos propriamente ditos, no âmbito do direito sucessório, Flávio Tartuce e José Fernando Simão definem o testamento como “Negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou não, para depois de sua morte”.219 Justamente neste último ponto reside a diferença fulcral entre os testamentos e o testamento vital. Enquanto aqueles produzem efeitos após a morte do sujeito, este destina sua eficácia ainda durante a vida do indivíduo, nos momentos que antecedem a sua morte ou quando estiver inconsciente em virtude de procedimento médico ou devido a alguma doença.220 A legislação uruguaia 218  LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, página 92. 219  TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito das Sucessões. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 289. 220  LÔBO, Paulo. Direito Civil: Sucessões. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 237.

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traz excelente designação para o instituto, o nomeando como diretivas antecipadas para efeito superveniente. Considerada esta ressalva, nas palavras de Carlos Eduardo Nicoletti Camillo e Wilis Santiago Guerra Filho, o testamento vital pode ser assim definido: (...) o testamento vital consiste em numa declaração de vontade, por meio da qual o interessado e juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros ou iminentes em que acaso venha a se encontrar em situação que o impossibilite de manifestar livremente sua vontade, como, por exemplo, o estado de coma. (...) Trata-se do consagrado Living Will do direito norte-americano.221

3.1. Testamento vital, ortotanásia e regulamentação Poder-se-ia questionar se o testamento vital não se consubstanciaria na figura da eutanásia, que consiste na aceleração deliberada da morte do paciente terminal para abreviar sofrimentos insuportáveis e desnecessários. Essa categoria encontra vedação no Código Penal brasileiro e é considerada inadequada pela comunidade médica. Em verdade, o testamento vital conecta-se a ideia de ortotanásia, que não encontra óbice legislativo no ordenamento jurídico pátrio. Pelo contrário, o próprio Código de Ética Médica, em seu artigo 41, parágrafo único, dispõe que o médico deve oferecer os cuidados paliativos, sem buscar tratamentos médicos inúteis, se assim for a vontade do paciente. Na definição de Paulo Lôbo, a ortotanásia consiste no direito de “viver e morrer em seu tempo adequado e normal, sem sofrimento, quando não há mais condições da pessoa manter-se viva, segundo os dados atuais da ciência, sem a utilização de métodos extraordinários e desproporcionais.”222 Em alusão à célebre frase de Michel Foucault sobre a biopolítica, se a eutanásia é deixar viver e fazer morrer, a ortotanásia é fazer viver e deixar morrer. Como visto anteriormente, a ortotanásia, local conceitual em que se 221  CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti; GUERRA FILHO, Wilis Santiago. Novas fronteiras da autonomia da vontade: ensaio sobre os fundamentos do testamento vital no direito brasileiro. In: SCALQUETTE, A.C. S.; SIQUEIRA NETO, J. F. (Coord.). CAMILLO, C. E. N.; SMANIO, G. P. (Org.). 60 desafios do direito: direito na sociedade contemporânea, vol 1. São Paulo: Atlas, 2013, p. 4. 222  LÔBO, Paulo Luiz Netto. op. cit., p. 238.

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insere a discussão sobre o testamento vital, é corolário do princípio da autonomia do indivíduo sobre o seu próprio corpo e sobre a sua vida, e também do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Tal como se espera a dignidade durante a vida, é justo que se garanta a dignidade também no momento da morte. Soa ser isso justamente que o testamento vital procura proteger. O Catedrático da Faculdade de Medicina, Miguel Angel Sánches Gonzáles, traduzido e adaptado por Diaulas Costa Ribeiro, define bem os contornos desta discussão:

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Em situações extremas, os médicos não devem decidir pelos pacientes de forma unilateral e exclusiva, baseando-se em critérios universais objetivos ou em suas preferências pessoais. Há decisões que não podem ser tomadas unicamente a partir de tais critérios, porque contêm um forte componente privado e pessoal. Essas decisões exigem, via de regra, soluções individuais, não universalizadas. (...) Em qualquer situação, deve ser o próprio paciente a dar a última palavra nas decisões sobre sua individualidade. Esses são os problemas que precisamente têm se buscado resolver por meio do consentimento informado e da implementação prática das diretivas antecipadas.223 Importante ressaltar que não há no ordenamento jurídico brasileiro regulamentação legal vigente, como regra fruto do processo legislativo federal, sobre o instituto do testamento vital. Entretanto, o Conselho Federal de Medicina editou, com valência para toda a federação, resolução de número 1.995/2012, que dispõe, ainda que de modo infralegal, sobre as diretivas antecipadas de vontade. Há que se reconhecer que, de fato, existe um espaço de liberdade que pode ser construído em face à lacuna deixada pelo Poder Legislativo. Por certo que a norma editada pelo Conselho Federal de Medicina apresenta caráter administrativo, no entanto, diante do silêncio do Legislativo, a referida Resolução cumpre função indubitavelmente relevante na regulamentação do testamento vital. Observe-se ainda que, nada obstante o 223  GONZÁLES, Miguel Angel Sánches. Um novo testamento: testamentos vitais e diretivas antecipadas. Tradução de Diaulas Costa Ribeiro. In: BASTOS, E. F.; SOUSA, A. H. (Coord.). Família e Jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 110.

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caráter infralegal da resolução, ela vincula não só aos médicos, mas também aos pacientes que desejam declarar suas diretivas antecipadas de vontade. Tal qual qualquer norma, a Resolução do Conselho Federal de Medicina também poderá ter sua aplicabilidade mediada pelo Poder judiciário quando o caso concreto assim exigir. Contudo, não há que se questionar, em abstrato, a legitimidade e aplicabilidade da regulamentação editada pelo CFM. Sem dúvida, espera-se que o Poder Legislativo se manifeste logo sobre o tema, e enquanto isso a Resolução preenche, a seu modo e nos seus limites, um vácuo legislativo (não necessariamente normativo) importante. A resolução em seu artigo 2º, parágrafo 4º, indica que as diretivas antecipadas de vontade do paciente serão registradas em seu prontuário, de modo a garantir sua efetividade. Ademais, no parágrafo 3º do mesmo artigo há uma disposição extremamente relevante, indicando que as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. Percebe-se, portanto, a primazia do interesse do paciente, em função de sua autonomia privada e sua dignidade, a despeito de desejos diversos professados por outros interessados. Por certo que as decisões da família também merecem respeito, todavia, soa ambivalente preterir a vontade manifestada pelo próprio indivíduo, em estado de capacidade plena, sem que tenha existido qualquer mudança significativa de contexto entre sua declaração de vontade e o momento de sua efetivação. Mesmo sendo legítimo o interesse de terceiros, familiares em sentido amplo (de qualquer grau ou ordem de parentesco, biológico ou sócio-afetivo), a liberdade expressa da pessoa em relação a sua própria vida e a proximidade de sua morte deve prevalecer. A jurisprudência brasileira, ainda que sejam poucos os casos que tratam do assunto, tem admitido a validade e eficácia do testamento vital: APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu de-

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vido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013) 114

No julgado acima, caminhou bem o julgador, respeitando os princípios da dignidade e da autonomia privada (rectius: liberdade), à luz da concepção de vida digna do paciente. Ademais, não impôs ao indivíduo uma mutilação que lhe remeteria à indignidade na vida. Por fim, ainda tomou como elemento de sua decisão a existência de testamento vital produzido pelo sujeito, em conformidade com a Resolução nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina.

3.2. Revogação do testamento vital Nada obstante o interesse em se preservar a vontade declarada pelo sujeito sem seu testamento vital, há que se considerar casos em que a execução da diretiva antecipada de vontade se torna inviável. A Resolução do CFM, por exemplo, em seu artigo 2º, parágrafo 2º admite a não observância da vontade declarada quando esta entrar em conflito com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. Compreende-se o intento bona fides do Conselho Federal de Medicina ao dispor sobre tal conflito, no entanto, não parece adequado que, como regra, caiba ao médico, ou à instituição hospitalar a decisão pela observância ou não dos termos do testamento vital. Caberá ao Poder Judiciário, quando a

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diretiva antecipada de vontade confrontar com valores éticos ou mesmo com outros direitos, decidir se aplicará o testamento ou não ou em que medida o aplicará. Ademais, poderá ser gravoso revestir o médico, em sua sensível e relevantíssima atuação profissional, desse atípico papel de julgador. Reitera-se que a previsão normativa da resolução é deveras interessante, no sentido de suscitar esse complexo debate. Sem embargo, em se tratando de direitos fundamentais e valores éticos contrastantes, cabe ao Poder Judiciário o poder de decisão. Não se está a ignorar uma salutar pluralidade jurídica e nem mesmo a defender a infalibilidade do juiz, contudo, o ator constitucionalmente legitimado para definir sobre a aplicação de direitos, ainda mais de direitos fundamentais, é o Poder Judiciário. Contrário fosse, estar-se-ia atribuindo ao médico um quiçá arbitrário poder de decisão de um caso em que ele, de certa forma, é parte interessada, o que não se admite no ordenamento brasileiro. Outros são os fatores que ensejam a não efetivação das diretivas antecipadas de vontade. Paulo Lôbo assim pondera: O testamento vital apenas deve ser desconsiderado em virtude de mudança das circunstâncias que estiveram presente no momento de sua feitura (rebus sic stantibus), como a evidente desatualização da vontade do outorgante em face do ulterior progresso dos meios terapêuticos, ou se se comprovar que ele não desejaria mantê-lo, em respeito a sua autonomia, presumida na primeira hipótese, expressa na segunda.224 De fato, parecem justas as ponderações trazidas a lume pelo Professor Paulo Lôbo. Ainda que não se queira aqui, de modo algum, equiparar uma disposição calcada na dignidade humana e em seus direitos de personalidade a uma disposição do direito contratual, a comparação com a cláusula rebus sic stantibus é interessante. No atual estado da arte da ciência, novos tratamentos são descobertos e colocados em prática a todo o momento. Doenças que até há pouco tempo não tinham cura hoje são facilmente tratáveis. Assim se dá com a tuberculose, por exemplo, que durante séculos dizimou populações, mas que a partir de 1945 ganhou fácil tratamento. Mais recentemente, o vírus H1N1, vulgarmente conhecido como a “gri224  LÔBO, Paulo Luiz Netto. op. cit., p. 240

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pe suína”, assustou as autoridades médicas em todo o mundo, mas em questão de um ou dois anos já recebeu uma vacina. Doenças mais graves como o câncer são pesquisadas diuturnamente e tratamentos cada vez mais efetivos são elaborados. Percebe-se, portanto, que as formas terapêuticas estão em constante evolução, e a enfermidade que há poucos anos invariavelmente levariam o sujeito à morte ou à vida indigna, hoje são tratáveis e podem garantir ao paciente maior longevidade de modo digno. Considerando-se isso, não pode o indivíduo ser penalizado por uma declaração de vontade que não mais condiz com o contexto médico e científico.

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Guardadas as devidas proporções, pode-se falar, ainda que a título de comparação, da aplicação da teoria da imprevisão aos testamentos vitais. A situação se torna grave quando o paciente não pode mais, por si só, revogar sua declaração de vontade, em função de seu estado de saúde. Nesse sentido, Miguel González bem assenta que “quando o paciente se torna incapaz, pode ficar preso a um contrato denominado uliseico (...), porque sua incapacidade já não lhe permite impor suas preferências contrárias, verbais ou não”.225 Sendo assim, há que se admitir a possibilidade de revogação da diretiva de vontade nos casos concretos específicos. Ressalve-se, contudo, que esta possibilidade de revogação do testamento vital não deve servir de pretexto para o desrespeito à vontade do indivíduo. Em qualquer situação, a dignidade e a autonomia devem ser preservadas. A revogação do testamento vital para a aplicação de tratamentos novos, mas inefetivos, viola a autonomia do indivíduo expressa em sua diretiva antecipada de vontade, de modo que a revogação deve ser muito bem ponderada, levando-se em conta o escopo fundante da declaração de vontade do sujeito e mesmo a concepção de vida digna. Nas palavras de Anderson Schreiber, é essencial “analisar o caso à luz da concepção de vida digna do próprio paciente”.226 Merece ainda breve nota o fato de que, por meio das diretivas antecipadas de vontade, também pode o paciente nomear representante que poderá tomar as decisões referentes aos seus tratamentos. Essa possibilidade 225  GONZÁLES, Miguel Angel Sánches. op. cit., p. 125. 226  SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 63.

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é prevista na resolução do Conselho Federal de Medicina. Por certo que o representante só poderá agir nos estritos termos manifestados pelo indivíduo que lhe outorgou a representação e deverá exprimir com a maior fidelidade possível aquilo que seria a vontade do paciente.

3.3. O testamento vital nos ordenamentos jurídicos estrangeiros Ainda que de modo breve, cabe analisar o tratamento da temática do testamento vital nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, especificamente a luz da experiência dos Estados unidos, Portugal e Uruguai. Nos Estados Unidos, já em 1976 as leis começaram a reconhecer as diretivas antecipadas de vontade, sobretudo no estado da Califórnia. Como ensina Miguel González, em um primeiro momento a legislação americana reconhecia a possibilidade de aplicação do testamento vital apenas para doenças incuráveis e que levariam à morte em curto prazo. Atualmente, contudo, quase todos os Estados norte-americanos ampliaram o uso das diretivas antecipadas para além das doenças terminais, incluindo os casos de inconsciência permanente. Alguns estados, inclusive, permitem o uso das diretivas antecipadas para doenças não terminais, mas progressivas, como o Mal de Alzheimer.227 Em Portugal, ao seu turno, se apresenta uma das legislações mais amplas sobre a temática, disposta na Lei n. 25/2012, existindo, inclusive, um Registro Nacional do Testamento Vital. Conforme esclarece Paulo Lôbo: Podem constar do documento as disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, tais com a de não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais; a de não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado, ou a alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte; a de receber cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada; a de não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental; a de autorizar ou recusar a participação em programas de pesquisa científica ou ensaios 227  GONZÁLES, Miguel Angel Sánches. op. cit., p. 129.

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clínicos.228 Mesmo diante da lei bastante completa sobre a temática, foi estabelecido prazo de cinco anos para a eficácia do testamento vital, o que, conforme indica o professor Paulo Lôbo, de fato, reduz consideravelmente a eficácia do instituto.

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No Uruguai o testamento vital adentrou ao ordenamento jurídico por meio da Lei n. 18.473 de 2009. Logo em seu primeiro artigo o dispositivo legal indica que toda pessoa maior de idade e psiquicamente apta, de forma voluntária, consciente e livre tem direito a se opor à aplicação de tratamentos e procedimentos médicos, desde que não afete ou possa afetar a saúde de terceiros. Ainda, a lei uruguaia dispõe que todos têm o direito de expressar antecipadamente sua vontade no sentido de se opor à futura aplicação de tratamentos médicos que prolonguem a vida em detrimento de sua qualidade, se o indivíduo se encontrar com enfermidade terminal, incurável e irreversível. Apesar disso, a lei garante todos os cuidados paliativos ao paciente, bem como a possibilidade de revogação do testamento vital a qualquer momento, de modo escrito ou verbal. A lei uruguaia pondera que caso o paciente esteja inapto a declara sua vontade e não o tenha feito antecipadamente, caberá ao cônjuge ou companheiro, ou ainda aos familiares em primeiro grau a decisão. Nosso País, quanto a isso, está em mora. Da análise en passant realizada é possível depreender que o Brasil, ainda que seja possível aqui atualmente já reconhecer a figura do testamento vital, está em atraso legislativo. Enquanto as discussões sobre a temática do testamento vital ocorrem nos EUA já há muito tempo, o Brasil começa a despertar agora para o tema. A carência legislativa traz insegurança ao instituto, que, muito embora conte com regulamento infralegal, ainda é desconsiderado por setores da sociedade. Por certo que a Resolução do CFM traz uma visão arrojada sobre o instituto, dispensando-lhe formalidades que se exigem aos testamentos comuns. No entanto, a regulamentação legal tal que se faz nos outros países é essencial, até mesmo para retirar esse debate da obscuridade e trazê-lo, em definitivo, para a pauta de discussão da sociedade brasileira.

4. Breve Conclusão O viver com dignidade torna necessário também assegurar a morte digna. Tal como a vida, a morte também deve ser tratada com o devido res228  LÔBO, Paulo Luiz Netto. op. cit., p. 240.

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peito, preservadas sempre a liberdade e todos os demais aspectos imateriais, inclusive crenças e esperanças. É preciso compreender que o modo de atender ao direito fundamental de viver com dignidade encontra simetria em um direito igualmente fundamental de arrostar a finitude com dignidade. É essencial, portanto, que seja dado ao sujeito a possibilidade de construir sua própria partida. É nesse ínterim que se assenta a discussão do testamento vital, conforme visto no decorrer do presente trabalho. Essa figura jurídica desafia limites e possibilidades do Direito, em sentido amplo, e do ordenamento jurídico, em acepção estrita; projeta-se para o mundo do Direito as vicissitudes do mundo da vida, suas questões, problemas e paradoxos. De toda a análise realizada pode-se inferir que a temática das diretivas antecipadas de vontade se enceta nesse âmbito, cujo enfrentamento pode passar pelo reconhecimento da relevância contemporânea da constitucionalização do direito privado, na medida em que traz a lume da matéria privatista a necessária interpretação e aplicação constitucional. Como princípios pressupostos dessa discussão estão, evidentemente, a dignidade da pessoa humana e a liberdade em sua faceta de autonomia privada. Considerados os pressupostos constitucionais, o testamento vital (tomemos, enfim, a expressão pelo significado que à ela se emprestou no Brasil, com a ressalva do sentido originário no common law sobre o respectivo significante) se edifica na ideia de que poder decidir os rumos da própria vida (e do fim dela) é crucial para uma morte digna. Nesse sentido, o instituto em comento surge como forma de garantia da ortotanásia, que nada mais é do que possibilitar que o sujeito possa morrer naturalmente, sem que tenha que se submeter a tratamentos fúteis que nada mais farão senão aumentar o sofrimento do paciente. O Conselho Federal de Medicina atuou na lacuna deixada pelo Poder Legislativo, estabelecendo regulamentação administrativa sobre a temática, que, cada vez mais se aceita na jurisprudência, e assim não poderia deixar de ser. Por certo que, tal como qualquer instituto jurídico não recebe ares absolutos no ordenamento jurídico pátrio, por igual se passa com o testamento vital, podendo ele ser relativizado ou mesmo revogado quando conflitar com a ética médica ou quando houver mudança significativa de contexto entre o

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momento em que a declaração unilateral de vontade foi exarada e o momento em que ela apresentará sua eficácia. Assim não fosse o indivíduo (rectius: pessoa) seria cativo de uma espécie de pacta sunt servanda de sua própria vontade. De todo modo, sempre se deve tentar preservar a vontade do sujeito, em homenagem a sua autonomia e dignidade. Por todo exposto percebe-se que ainda há muito que se avançar na temática da assim mencionada ‘morte digna’ no ordenamento jurídico brasileiro, nada obstante passos consideráveis já tenham sido dados. Talvez este seja o momento de ousar mais, e trazer de fato ao público questões polêmicas não só como a ortotanásia, mas também a eutanásia e o suicídio assistido. Certamente, o primeiro passo para uma boa decisão legislativa sobre essas questões é o bom debate público e democrático sobre fato (jurídico) ordinário da morte.

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Estas notas, escritas com o objetivo de prestar a justa homenagem ao início referida, tem apenas o singelo fito de trazer ao palco das discussões registros e breves opiniões sobre assunto sensível e complexo, afinal, numa palavra, é da vida mesmo que estamos a tratar. Nada menos, nada mais: é o que basta, pois, para emprestar, por si só, gravidade e complexidade. Viver com dignidade significa coexistir em liberdade no respeito à diversidade e à pluralidade. O porvir espera serenidade e dialeticidade para arrostar as graves questões que, no tema aqui versado em termos ainda introdutórios e gerais, já batem à porta dos dias presentes à espera de respostas; autores, obras e ideias foram expostos, com citações diretas ou indiretas, a fim de contribuir nesse debate. O mais instigante é que as próprias perguntas ainda estão sendo formuladas pela força dos fatos e energia dos argumentos.

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5. Referências BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. CAMILLO, Carlos Eduardo Nicoletti; GUERRA FILHO, Wilis Santiago. Novas fronteiras da autonomia da vontade: ensaio sobre os fundamentos do testamento vital no direito brasileiro. In: SCALQUETTE, A.C. S.; SIQUEIRA NETO, J. F. (Coord.). CAMILLO, C. E. N.; SMANIO, G. P. (Org.). 60 desafios do direito: direito na sociedade contemporânea, vol 1. São Paulo: Atlas, 2013. GONZÁLES, Miguel Angel Sánches. Um novo testamento: testamentos vitais e diretivas antecipadas. Tradução de Diaulas Costa Ribeiro. In: BASTOS, E. F.; SOUSA, A. H. (Coord.). Família e Jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Da Ordem de Vocação Hereditária nos Direitos Brasileiro e Italiano. In: AZEVEDO, Antonio Junqueira de; CARBONE, Paolo; TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e Outros Temas – Homenagem a Tullio Ascarelli. 2ª edição. São Paulo: Quartier Latin, 2010. LÔBO, Paulo. Direito Civil: parte geral. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. LÔBO, Paulo. Direito Civil: sucessões. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 2ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013. TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito das Sucessões. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.

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MARCOS CATALAN

NOTAS ACERCA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E DO DEVER DE REPARAR DANOS IGNORADOS NO DESVELAR DO PROCESSO PRODUTIVO229 Marcos Catalan230 Sumário: 1. Um ambiente propício ao desenvolvimento tecnológico. 2. Entre direitos fundamentais individuais e transindividuais. 3. Apontamentos acerca do dever de reparar (ou não) danos ignorados no desvelar do processo produtivo. 4. Referências bibliográficas.

1. Um ambiente propício ao desenvolvimento tecnológico A Modernidade prometeu um futuro no qual o bem estar de todos seria alcançado. Imerso nesse ambiente, o ser humano acreditou que o conhecimento científico permitiria, mediante o inexorável avanço da técnica, controlar a natureza. Ele sonhou, durante algum tempo, com a possibilidade de controlar seu destino.231 E isso, talvez, porque, nessa quadra da História, o risco – expressão cuja significação primitiva remetia a um cenário no qual imperava o desconhecido, àquilo que não poderia ser encontrado nas cartas náuticas – estava atado a catástrofes naturais.232 Ou, talvez, também, porque, obnubilado por incomensuráveis promessas de deleite, o ser humano tenha se permitido ser tão dependente de tantas pseudonecessidades artificialmente produzidas pelo 229  Oportuno informar ao leitor que esse estudo foi publicado originalmente com o título O desenvolvimento nanotecnológico e o dever de reparar os danos ignorados pelo processo produtivo, em 2010, no volume 74 da Revista de Direito do Consumidor. Por ocasião da revisão dos originais para essa publicação, optou-se por ampliar o ambiente recortado para fins de investigação e, diante disso, foi necessária pequena alteração no título que precede esse estudo. 230 Doutor summa cum laude em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professor no curso de Mestrado em Direito e Sociedade do Unilasalle, na Escola de Direito da Unisinos e em cursos de especialização pelo Brasil. Advogado e parecerista. Diretor do Brasilcon. 231  FREIRE, Ricardo Maurício. Tendências do pensamento jurídico contemporâneo. Salvador: Podivm, 2007. p. 14-16. 232  MENDES, Felismina. Risco: um conceito do passado que colonizou o presente, Revista Portuguesa de Saúde Pública, Lisboa, v. 20, n. 2, p. 53-62, jul./dez. 2002. p. 54. “A noção de risco adquiriu expressão durante os séculos XVI e XVII e começou por ser usada pelos exploradores ocidentais quando partiam para as viagens que os levavam a todas as partes do mundo. A palavra risco parece ter chegado ao inglês através [sic] do espanhol ou do português, línguas em que era utilizada para caracterizar a navegação em mares desconhecidos, ainda não descritos nas cartas de navegação. [...] Nesse tempo, o risco designava a possibilidade de um perigo objectivo, um acto de Deus, uma força maior ou uma tempestade que pudesse comprometer a viagem e que não pudesse ser imputado a uma conduta humana errada.”

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Mercado, que deixou de perceber que há um lado sombrio nas Revoluções Tecnológicas.233 E, enquanto a História continua a ser construída na fusão de pequeninas peças aleatoriamente unidas umas às outras, é possível perceber a existência de um processo de metamorfose social centrado (a) no “tecnocentrismo”,234 (b) na primazia do saber teórico no planejamento da vida e, (c) na fluidez dos conflitos das mais distintas ordens, características que, dentre outras igualmente relevantes, permitem identificar a transição apontada,235 um processo, certamente, ainda incompleto e que se dirige rumo a sítios desconhecidos. Também não há dúvidas quanto ao fato de que o excesso de informação e as incertezas fundidas ao cotidiano da vida em sociedade ampliaram, de forma significativa, a complexidade social. Viver tornou-se mais arriscado. E, mesmo sem ignorar, aqui, a existência das incontáveis benesses produzidas, exclusivamente, em razão do advento de avanços tecnológicos, é patente o pulular de problemas clamando por solução. Em tal cenário, antigos bastiões são, hoje, fontes de risco.236 124

Riscos indetectáveis,237 cujos efeitos transcendem a esfera individual, projetando-se no tempo e no espaço para afetar, indiscriminadamente, uma infinidade de pessoas, dentre as quais, em especial, quase sempre estão aqueles para os quais a Fortuna não costuma sorrir. Suas causas são as mais distintas238 e seus efeitos, os mais deletérios. 233  ROSAS, Cristian Patricio. Daños derivados de actividades riesgosas. In: GHERSI, Carlos Alberto (Dir.). Responsabilidad: problemática moderna. Mendoza: Ediciones Jurídicas Cuyo, 1996. p. 40. 234  BARROSO, Lucas Abreu. A obrigação de indenizar e a determinação da responsabilidade civil por dano ambiental. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 16. Segundo o autor o tecnocentrismo representa a “doutrina que preleva a técnica como elemento cêntrico da reflexão ao redor da qual orbita toda aproximação à realidade.” 235  MASI, Domenico de. A sociedade pós-industrial. In: MASI, Domenico de. A sociedade pós-industrial. 4. ed. Trad. Anna Maria Capovilla et all. São Paulo: Senac, 2003. p. 50; 78. 236  BECK, Ulrich. Viviendo en la sociedad del riesgo mundial. Trad. María Ángeles Sabiote González; Yago Mellado López. Barcelona: CIDOB, 2007. p. 16. 237  BERGEL, Salvador Darío. Introducción del principio precautorio en la responsabilidad civil. In: GESUALDI, Dora Mariana (Coord.). Derecho privado. Buenos Aires: Hammurabi, 2001. p. 1011-1012. 238  CAUBET, Christian Guy. O escopo do risco no mundo real e no mundo jurídico. In: VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Governo dos riscos: rede latino-americana-europeia sobre governo dos riscos. Brasília: Pallotti, 2005. p. 46-49. Transcreve-se o ponto mais significativo: “A noção de risco que está em análise não possui o sentido trivial de algo indesejável, suscetível de produzir-se e de acarretar alguns dissabores ou consequências desagradáveis para uma pessoa ou um pequeno grupo. A noção de

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Hodiernamente, os riscos são marcados pela invisibilidade, imprevisibilidade e difusão em nível global,239 pela seriedade, complexidade e ambiguidade,240 e pela percepção de que suas consequências são irreparáveis e incalculáveis.241 Atuando em nível global, paradoxalmente, são invisíveis a olhares atentos.242 Ao escaparem à percepção sensorial, excedem a imaginação dos homens.243 O avanço da técnica fez do inimaginável, algo plausível. E o Direito foi chamado a atuar. Ele precisa equalizar a tensão surgida entre a liberdade de iniciativa e a necessidade de proteção da pessoa humana e da tutela de outros valores sociais constitucionalmente assegurados. Uma discussão que haverá de ser, necessariamente, permeada pelas balizas que conformam a atuação do Estado Democrático de Direito. Por isso, a partir da análise da teoria dos riscos do desenvolvimento, e tendo por matrizes teóricas as correntes pós-positivistas de compreensão do fenômeno jurídico, esse estudo tentará comprovar se tal modulação é possível.

2. Entre direitos fundamentais individuais e transindividuai Contemporaneamente, parece irrefutável a constatação de que o processo de realização do Direito haverá de priorizar a diversidade axiológica dos sociedade de risco refere-se a consequências tão amplamente catastróficas, que não se vê como indenizar as vítimas ou voltar ao statu quo ante. Os danos provocados são imensos, difusos e cumulativos. Em função de cinco tipos principais de causas, os riscos podem ser ditos: 1) tecnológicos; 2) industriais; 3) sanitários; 4) naturais ambientais; 5) políticos; ou seja: 1) novas tecnologias industriais aplicadas em ampla escala geográfica e social; 2) consequências, especialmente ambientais, do uso de novas tecnologias; e todas as realizações humanas com amplo impacto ambiental; 3) contextos sanitários específicos (novos riscos para a saúde; novas doenças ou afecções) ou globais: epidemias e pandemias; 4) ocorrências naturais com amplo impacto social: inundações; tufões; secas; chamadas de catástrofes naturais; 5) incidência de fenômenos ligados ao terrorismo político.” 239  CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 59. 240  RENN, Ortwin; STIRLING Andrew; MÜLLER-HEROLD, Ulrich. The precautionary principle: a new paradigm for risk management and participation, Idées pour le débat, Paris, n. 3, p. 1-19, 2004. p. 3-4. 241  BECK, Ulrich. Viviendo en la sociedad del riesgo mundial. Trad. María Ángeles Sabiote González; Yago Mellado López. Barcelona: CIDOB, 2007. p. 12. 242  BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro. Barcelona: Paidós, 1998. p. 26-30. 243  GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 13.

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bens que se propõe a tutelar.244 Importante notar que a efetividade de tal leitura importa abandonar ao menos quatro preconceitos: (a) entender que a Constituição não é mera carta política, (b) aceitar que os princípios constitucionais têm força e hierarquia normativa, (c) compreender a fragilidade da subsunção como método e afastá-la, definitivamente, do processo de realização do Direito245 e, enfim, (d) ultrapassar a dicotomia tradicional246 que por muito tempo impediu a adequada tutela da pessoa humana. A Constituição deve tutelar cada ser humano no Brasil. O Estado Democrático de Direito, levar a sério os princípios por ele eleitos.247 As soluções para as controvérsias surgidas na concretude dos fatos não têm respostas prontas nas regras codificadas. Em seu deslinde, deverão ser projetadas a partir da principiologia constitucional:248 solidariedade social, isonomia e dignidade da pessoa humana são elementos importantes nesse cenário, assumindo importância ímpar no processo de realização do Direito. 126

É preciso aceitar que a visão solidarista no exercício da liberdade de iniciativa, longe de alijar o alvedrio das partes, conforma o exercício das distintas posições jurídicas aí fundadas à dimensão social249 que as informa e a elas dá forma, postura imposta desde o advento do Estado Democrático de Direito. de.250

Assim, em lugar da ética da liberdade, a ética da responsabilida-

Enfim, deve-se ter em mente, ainda, a necessidade de promover, quando da atuação do Direito, a igualdade inexistente no mundo fenomenológico. 244  TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, t. 2. p. 408. 245  CASTANHEIRA NEVES, Antonio. O actual problema metodológico da interpretação jurídica. Coimbra: Coimbra, 2003, v. 1. p. 11-12. 246  TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 18-19. 247  CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A “principialização” da jurisprudência através da constituição, Revista de Processo, São Paulo, v. 25, n. 98, p. 83-89, abr./jun. 2000. p. 84. 248  PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 2 ed. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 5. 249  NANNI, Giovanni Ettore. O dever de cooperação nas relações obrigacionais à luz do princípio constitucional da solidariedade. In: NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os cinco anos do código civil. São Paulo: Atlas, 2008. p. 297. 250  MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e direito civil: tendências, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 89, n. 779, p. 47-63, set. 2000. p. 57.

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O respeito às garantias constitucionais – em especial, aos direitos fundamentais expressa ou implicitamente consagrados – pressupõe o reconhecimento e a valorização das individualidades que exsurgem da pluralidade que informa a contemporaneidade brasileira.

3. Apontamentos acerca do dever de reparar (ou não) danos ignorados no desvelar do processo produtivo A contemporaneidade, como exposto, é marcada pela incerteza. Assim, nem sempre, o estado da arte e as balizas técnicas e científicas que o regem são capazes de antever a existência – ou a amplitude – da nocividade de determinado produto ou serviço, e consequentemente, a lesão que esse bem poderá causar aos utentes e, porque não, a interesses de titularidade difusa. Intimamente ligados à Revolução Tecnológica – ainda que plausíveis, no desvelar dos anos vividos, a partir das Revoluções Industriais –, os riscos do desenvolvimento estão atados a determinadas características do produto (ou) do serviço que são desconhecidas quando de sua inserção na cadeia de consumo251 e que só vêm a ser identificadas em razão de alteração havida no estado da técnica.252 É nesse contexto que exsurge a importância de aferir se os danos causados por bens concebidos sem que seu potencial lesivo possa ser identificado pelo estado da arte devem ser suportados por aqueles que o conceberam – ou assumiram os riscos de comercializá-los – ou pela sociedade, problema que suscita debates acalorados e posicionamentos doutrinários em ambos os 251  Embora, como regra, a potencialidade lesiva do bem só possa ser descoberta quando o mesmo se encontra em circulação, não parece acertado sustentar que essa última característica seja pressuposto que impeça idêntico tratamento nas hipóteses em que antes da inserção do bem na cadeia de distribuição ocorram acidentes com ou sem vítimas humanas, desde que, obviamente, haja lesão a um interesse juridicamente protegido. 252  PASQUALOTTO, Adalberto de Souza. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). A proteção do consumidor no brasil e no mercosul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994. p. 84. MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto: os acidentes de consumo no código de proteção e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1993. p. 128. Para o autor, “o risco de desenvolvimento consiste na possibilidade de que um determinado produto venha a ser introduzido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda que exaustivamente testado, ante o grau de conhecimento científico disponível à época de sua introdução, ocorrendo todavia, que, posteriormente, decorrido determinado período do início de sua circulação no mercado de consumo, venha a se detectar defeito, somente identificável ante a evolução dos meios técnicos e científicos, capaz de causar danos aos consumidores.”

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sentidos, é oportuno antecipar. Essa pesquisa permitiu levantar que defendem que os danos oriundos dos riscos do desenvolvimento devem ser suportados pelo empresariado, dentre outros,253 Agostinho Oli Koppe Pereira,254 Antônio Herman Benjamin,255 Bruno Miragem,256 Carla Marshall,257 Eduardo Arruda Alvim,258 Eduardo Gabriel Saad,259 Fabiana Gomes de Castro,260 José Reinaldo de Lima Lopes,261 Luiz Guilherme Marinoni,262 Manoel Martins Júnior,263 Marcelo Junqueira Calixto,264 Marcelo Kokke Gomes,265 Marco Aurélio Ferreira da Silva,266 Paulo de Tarso

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253  CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; MORATO, Antonio Carlos. Responsabilidade civil e o risco do desenvolvimento nas relações de consumo. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; DONNINI, Rogério (Coord.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 27-61. Veja ainda: BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no código de defesa do consumidor: principiologia, conceitos, contratos atuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 124-126. 254  PEREIRA, Agostinho Oli Koppe. Responsabilidade civil por danos ao consumidor causados por defeitos dos produtos: a teoria da ação social e o direito do consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 256-267. 255  BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: RT, 2007. p. 128. 256  MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: RT, 2008. p. 291-292. 257  MARSHALL, Carla Izolda Fiuza Costa. Responsabilidade civil do fabricante por produto defeituoso na união européia e no brasil, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 25, p. 116-121, jan./mar. 1998. p. 120. 258  ARRUDA ALVIM, Eduardo. Responsabilidade civil pelo fato do produto no código de defesa do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 15, p. 132-150, jul./set. 1995. p. 148. 259  SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2 ed. São Paulo: LTr, 1997. p. 198. 260  CASTRO, Fabiana Maria Martins Gomes de. Sociedade de risco e o futuro do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 11, n. 44, p. 122-140, out./dez. 2002. p. 136-139. 261  LOPES, José Reinaldo de Lima. Responsabilidade civil do fabricante e a defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1992. p. 67-73. 262  MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica do consumidor. In: CAPAVERDE, Aldaci do Carmo; CONRADO, Marcelo (Org.). Repensando o direito do consumidor. Curitiba: OAB/PR, 2007, v. 2. p. 299. 263  MARTINS JÚNIOR, Manoel. A responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no código de defesa do consumidor, Revista IMES de Direito, São Caetano do Sul, n. 4, v. 2, p. 132-154, jan./jun. 2002. p. 146. 264  CALIXTO, Marcelo Junqueira. O art. 931 do código civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento, Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, n. 21, p. 53-93, jan./mar. 2005. p. 90-93. 265  GOMES, Marcelo Kokke. Responsabilidade civil: dano e defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 226-230. 266  SILVA, Marco Aurélio Lopes Ferreira da. Responsabilidade pelo risco de desenvolvimento, Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, v. 7, n. 8, p. 379-397, jan./jun. 2006. p. 391-395.

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Vieira Sanseverino267, Roberto Norris,268 Sílvio Luís Ferreira da Rocha269 e Zelmo Denari270 e, que, por outro lado, sustentam que a lesão deva ser suportada pela vítima ou pela sociedade, Artur Marques da Silva Filho,271 Carlos Roberto Barbosa Moreira,272 Fábio Ulhoa Coelho,273 Fernando Eberlin,274 Gustavo Tepedino,275 James Marins,276 João Batista de Almeida,277 Luiz Gastão Paes de Barros Leães,278 Octávio Luiz Motta Ferraz,279 Oscar Ivan Prux,280 Paulo Jorge

267  SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil por acidentes de consumo. In: LOPEZ, Teresa Ancona; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado (Coord.). Contratos de consumo e atividade econômica. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 332-338. Do mesmo autor veja: SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 344-347. 268  NORRIS, Roberto. Responsabilidade civil do fabricante pelo fato do produto. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 90-91. 269  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 109-111. 270  GRINOVER, Ada Pellegrini et all. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 163-164. 271  SILVA FILHO, Artur Marques da. Responsabilidade civil por fato do produto ou serviço. In: BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). Responsabilidade civil por danos a consumidores. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 34-35. 272  MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 22, p. 135-149, abr./jun. 1997. p. 144. A assertiva não foi justificada no texto. 273  COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 82-89. 274  EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Responsabilidade dos fornecedores pelos danos decorrentes dos riscos do desenvolvimento: análise sob a ótica dos princípios gerais da atividade econômica, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 16, n. 64, p. 9-42, out./dez. 2007. p. 36. 275  TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 271-274. 276  MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto: os acidentes de consumo no código de proteção e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1993. p. 127-137. 277  ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 90-91. Ao menos essa foi a impressão por nós colhida nas letras do autor. 278  LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. A responsabilidade do fabricante pelo fato do produto. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 163-165. Limitando-se o autor a afirmar que o nível de diligência exigido do produtor na concepção do produto é aquele fixado objetivamente pelo estado da arte. 279  FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Responsabilidade civil da atividade médica no código de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 38. 280  PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 254-256.

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Scartezzini Guimarães,281 Paulo Roque Khouri,282 Rafael Dresch,283 Rui Stoco284 e Vera Helena de Mello Franco.285 Tentando dirimir essa celeuma, por ora é oportuno perceber que o exercício da autonomia privada – aqui manifestada sob a forma da liberdade de empresa – implica a assunção das consequências decorrentes do exercício das posições jurídicas ai gestadas. Por isso, além de reprimir as lesões que possam ser concretamente detectadas, o viés preventivo do direito de danos assume, aqui, papel deveras relevantes na consecução dos objetivos do Estado Democrático de Direito, tutelando a pessoa humana – direta e indiretamente – em quaisquer situações em que possa haver um dano injusto.

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Também é razoável esperar que os produtos inseridos no mercado de consumo sejam adequados ao fim a que se destinam e, que ao mesmo tempo, não causem riscos à saúde e segurança do utente, salvo aqueles adequadamente informados e, em especial, por isso, legitimamente esperados.286 E dentre tais riscos – ditos legítimos – aparentemente não se encontram os que somente podem ser detectados pela evolução do estado da técnica, haja vista que, não há como aceitar que a vítima – consumidores, utentes, trabalhadores – tenha como imaginar um risco desconhecido até mesmo pelos responsáveis pela inovação tecnológica. Entretanto, essa é apenas uma impressão inicial. Desvelar tal problema exige encarar os argumentos favoráveis e contrários à imputação do dever de reparar os danos oriundos dos riscos do desenvolvimento. Apenas desse modo será possível, afirmar-se, com alguma 281  GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 294-295. 282  KHOURI, Paulo Roberto Roque Antonio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 176-179. 283  DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Fundamentos da responsabilidade civil pelo fato do produto e do serviço: um debate jurídico-filosófico entre o formalismo e o funcionalismo no direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 115-117. 284  STOCO, Rui. Defesa do consumidor e responsabilidade pelo risco do desenvolvimento, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 96, n. 855, p. 46-53, jan. 2007. p. 49-53. 285  FRANCO, Vera Helena de Mello. A responsabilidade do fabricante no direito brasileiro futuro (confronto com o direito comparado), Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 28, n. 73, p. 80-99, jan./mar. 1989. p. 85. 286  PASQUALOTTO, Adalberto de Souza. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). A proteção do consumidor no brasil e no mercosul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994. p. 74-75.

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tranquilidade, se existe (ou não) o dever de reparar lesões de ordem material e/ou extrapatrimonial causadas por produtos ou serviços que aparentemente não ofertavam quaisquer riscos à saúde e/ou a segurança dos usuários. Sem mais delongas, seguindo o caminho informado pela Diretiva da CEE287 acerca do tema e o direito consagrado em países como Portugal, Itália e Alemanha,288 percebe-se que as teses construídas com o escopo de justificar não existir dever de reparar nesses casos podem ser dividas a partir dos argumentos que as informam. Em linhas gerais – ainda que tais argumentos, às vezes, se sobreponham –, em princípio, parece possível enquadrá-las em teses econômico-sociais, dogmáticas e filosóficas. As teses classificadas como econômico-sociais apontam que (a) “não se pode exigir a paralisação do avanço tecnológico”,289 pois, imputar ao fabricante o dever de suportar danos desconhecidos no processo produtivo prejudicará o desenvolvimento social ao afastar o empresário das pesquisas,290 interrompendo ou diminuindo a velocidade do processo de inovação tecnológica,291 consequentemente, desfavorecendo “o desenvolvimento e comercialização de novos e necessários produtos.”292 Informam que (b) não há como internalizar os custos de riscos desconhecidos,293 criando “insegurança para o 287  Trata-se da diretiva 374/85/CEE. 288  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 111. 289  SILVA FILHO, Artur Marques da. Responsabilidade civil por fato do produto ou serviço. In: BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). Responsabilidade civil por danos a consumidores. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 34-35. Daí que defende-se que o limite para a imposição do dever de reparar encontra-se no conhecimento técnico e nos paradigmas científicos existentes no momento da inserção do produto ou serviço em circulação. 290  FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Responsabilidade civil da atividade médica no código de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 39-40. No mesmo sentido: MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto: os acidentes de consumo no código de proteção e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1993. p. 131-133. 291  COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 89. 292  CALVÃO DA SILVA, João. Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Almedina, 1999. p. 509. Veja ainda: EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Responsabilidade dos fornecedores pelos danos decorrentes dos riscos do desenvolvimento: análise sob a ótica dos princípios gerais da atividade econômica, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 16, n. 64, p. 9-42, out./dez. 2007. p. 36. De acordo com o autor afastar o dever de reparar nesses casos “evita a transferência excessiva de ônus ao fornecedor e a colocação de empecilhos à atividade produtiva, incentivando o desenvolvimento tecnológico e científico [o que ocorre em razão da] diminuição do risco de passivo indenizatório das empresas em função da exclusão de sua responsabilidade [ou] pela maior possibilidade de investimento nesses setores em função da maior disponibilização de recursos.” 293  BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. La teoría de la calidad y los accidentes de

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investidor”294 ao (c) inviabilizar o comércio de produtos ante os elevados preços que esses bens atingiriam.295 As teses de cunho dogmático, inicialmente, apontam (d) não haver defeito, pois, a compreensão desse conceito exige a possibilidade de identificar o grau de segurança esperado de produto ou serviço,296 inexistindo, na hipótese, qualquer expectativa de segurança que ultrapasse o conhecimento apreendido pelo estado da arte quando da inserção do produto no mercado de consumo.297 Além disso, afirmam não haver (e) violação do dever de informar, na medida em que o efeito nocivo era desconhecido e, também, (f) não existir defeito de concepção – porque não poderia ser percebido –, o que isentaria o fornecedor de qualquer responsabilidade, desde que noticie a ulterior descoberta dos malefícios causados pelo produto ou serviço e o retire do mercado. 298 Elas sustentam, ainda, (g) que se existe defeito, este é “juridicamente irrelevante”, por não se encontrar elencado no Código de Defesa do Consu132

consumo: una visión conceptual. In: STIGLITZ, Gabriel A. (Dir.). Derecho del consumidor. Rosario: Juris, 1991, v. 1. p. 79. 294  KHOURI, Paulo Roberto Roque Antonio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 178. 295  MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto: os acidentes de consumo no código de proteção e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1993. p. 131-133. 296  MARÇAL, Sérgio Pinheiro. Código de defesa do consumidor: definições, princípios e o tratamento da responsabilidade civil, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 6, p. 98-108, abr./jun. 1993. p. 105. Nesse sentido: STOCO, Rui. Defesa do consumidor e responsabilidade pelo risco do desenvolvimento, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 96, n. 855, p. 46-53, jan. 2007. p. 49-53. E ainda: PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 254-256. O autor lastreia suas reflexões no direito positivo, defendendo que “razão não existiria para considerar-se a época em que um serviço (ou produto) foi colocado no mercado, caso não fosse para possibilitar descaracterizar-se o serviço como defeituoso, e assim isentar o fornecedor de uma responsabilização”; embora defenda alteração legislativa que impute ao fornecedor tais riscos. 297  MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto: os acidentes de consumo no código de proteção e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1993. p. 127-137. O autor lastreia sua reflexão na impossibilidade de compreender-se como defeito uma característica que não poderia ser percebida no momento da inserção do produto no mercado; considerado, obviamente, o estado da arte. Nesse sentido: FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Responsabilidade civil da atividade médica no código de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 38. Entendendo que o Código de Defesa do Consumidor, ao versar sobre riscos normais e previsíveis e a época em que foi inserido no mercado como paradigma para a identificação de defeitos, excluiu os danos oriundos dos riscos do desenvolvimento. 298  COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 83-86.

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midor como lastro eficiente à imputação do dever de reparar,299 omissão que teria sido desejada pelo legislador300 e, no mesmo contexto, (h) que a noção de defeito não se confunde com a de nocividade301 – produtos nocivos podem ser comercializados, desde que a informação seja suficientemente clara. Existe, ainda, quem afirme que (i) tais riscos rompem o nexo de causalidade (!?) necessário à configuração do dever de reparar.302 As teses aqui ditas filosóficas afirmam (j) haver injusta utilização retroativa de um parâmetro de aferição que não poderia ser imaginado no momento da inserção do bem em circulação,303 e que, (k) como a periculosidade somente se apresenta diante do avanço da técnica, seria injusto imputar o dever de reparar ao empresário.304 E, apesar de a maioria dos autores que defendem a exclusão do dever de reparar entenderem que isso somente ocorre, se a concepção do bem estiver pautada nos paradigmas tecnológicos e científicos globais – incluídas aqui as opiniões minoritárias305 – formadores do estado da arte,306 a questão torna-se tormentosa ante reflexões sustentando que, (l) além do empresário não possuir o dever de reparar os danos causados pelos riscos do desenvolvimento, o grau de diligência dele exigida deve ser mitigado,307 contemplando-se, 299  MARINS, James. Risco do desenvolvimento e tipologia das imperfeições dos produtos, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 6, p. 118-133, abr./jun. 1993. p. 121; 131-136. Sustenta o autor que os riscos do desenvolvimento assumem caracterização peculiar por não poderem ser enquadrados entre os defeitos de concepção, produção e informação. Não é defeito de informação porque o problema era desconhecido. Não é falha produtiva porque a questão não diz respeito a qualquer defeito no processo produtivo. Não é problema de criação porque o projeto era perfeito, à luz do estado da arte, aos fins a que se destinava. 300  STOCO, Rui. Defesa do consumidor e responsabilidade pelo risco do desenvolvimento, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 96, n. 855, p. 46-53, jan. 2007. p. 49-53. 301  TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 271-274. 302  MARINS, James. Risco do desenvolvimento e tipologia das imperfeições dos produtos, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 6, p. 118-133, abr./jun. 1993. p. 124. No mesmo sentido: STOCO, Rui. Defesa do consumidor e responsabilidade pelo risco do desenvolvimento, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 96, n. 855, p. 46-53, jan. 2007. p. 49-53. 303  CALVÃO DA SILVA, João. Compra e venda de coisas defeituosas: conformidade e segurança. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2008. p. 212. 304  FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Responsabilidade civil da atividade médica no código de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 37. 305  PASQUALOTTO, Adalberto de Souza. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). A proteção do consumidor no brasil e no mercosul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994. p. 87-90. 306  COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 87. 307  GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e inse-

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assim, a multifacetada realidade social existente no Brasil, ao mesmo tempo em que outros (m) entendem ser, imperiosa, a conduta culposa (!?) daquele a quem se pretende imputar o dever de reparar.308 Do outro lado, sustentando a imposição do dever de reparar, é possível contabilizar quantidade ainda maior de argumentos teóricos. Buscando manter a mesma sistematização, dentre os argumentos sócio-econômicos essa pesquisa identificou teses afirmando que (a) maior rigor legislativo no trato da segurança ofertada por produtos e serviços implica maior confiança.309 A proteção do consumidor (b) provoca o aumento do consumo, formando-se um círculo virtuoso: quanto mais segurança, maiores as vendas.310

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Defende-se, ademais, que (c) a obsolescência é uma necessidade empresarial,311 e que (d) o empresariado insere produtos no mercado, nem sempre os testando de modo adequado, amparados na liberdade de iniciativa,312 e porque não, na incerteza que permeia o tema em planícies tupiniquins, bem como, que, (e) a inserção de um maior número de produtos no mercado implica potencial ampliação dos problemas por eles causados,313 (f) sendo inaceitável a introdução de produtos no mercado para depois serem retirados em razão dos problemas apresentados.314

gurança: cumprimento imperfeito do contrato. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 294-295. 308  DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Fundamentos da responsabilidade civil pelo fato do produto e do serviço: um debate jurídico-filosófico entre o formalismo e o funcionalismo no direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 115-117. 309  CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; MORATO, Antonio Carlos. Responsabilidade civil e o risco do desenvolvimento nas relações de consumo. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; DONNINI, Rogério (Coord.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 40. 310  FERNANDES, Wanderley. Contratos de adesão e a racionalização dos processos de produção e contratação. In: LOPEZ, Teresa Ancona; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado (Coord.). Contratos de consumo e atividade econômica. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 110. 311  SAMPAIO, Aurisvaldo Melo. As novas tecnologias e o princípio da efetiva prevenção de danos ao consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 13, n. 49, p. 130-163, jan./mar. 2004. p. 150. 312  PASQUALOTTO, Adalberto de Souza. Proteção contra produtos defeituosos: das origens ao mercosul, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 11, n. 42, p. 49-85, abr./jun. 2002. p. 78. 313  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 13. 314  BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. La teoría de la calidad y los accidentes de consumo: una visión conceptual. In: STIGLITZ, Gabriel A. (Dir.). Derecho del consumidor. Rosario: Juris, 1991, v. 1. p. 79.

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Em nível dogmático defende-se que (g) há defeito315 quando da inserção do produto no mercado316 – estaria contido no bem –, mesmo sem que exista tecnologia hábil a detectá-lo,317 (h) o que permite enquadrar tais produtos e serviços entre os sujeitos a risco adquirido, e não, como de periculosidade inerente.318 Nesse contexto, infere-se, ainda, que (i) como a questão exige a distinção entre qualidade e segurança do produto (ou) do serviço, a alegação de que a tecnologia anterior não é defeituosa319 é inaceitável, na medida em que tais questões estão situadas em universos paralelos,320 reflexões margeadas na constatação de que as construções dogmáticas formuladas para a adequada contextualização da temática na legislação consumerista abrangem somente as situações em que a insegurança do produto pode ser previamente conhecida.321 Por isso, (j) os riscos do desenvolvimento devem ser vistos como produtos que têm defeitos de concepção.322 Defende-se ademais que (k) como o dever de reparar nesses casos é permeado pelas balizas impostas pelas teorias objetivas,323 são inaceitáveis defesas lastreadas no desconhecimento de defeitos, porque, (l) uma vez demonstrado que o dano decorre do produto, a alegação de ausência de culpa não tem utilidade alguma,324 e que, admitir 315  MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: RT, 2008. p. 291-292. 316  CASTRO, Fabiana Maria Martins Gomes de. Sociedade de risco e o futuro do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 11, n. 44, p. 122-140, out./dez. 2002. p. 136-139. 317  SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil por acidentes de consumo. In: LOPEZ, Teresa Ancona; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado (Coord.). Contratos de consumo e atividade econômica. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 332. 318  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 112. 319  CARVALHO, Manuel da Cunha. Produtos seguros, porém defeituosos: por uma interpretação do art. 12 do código de defesa do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 5, p. 27-34, jan./mar. 1993. p. 30-31. 320  CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; MORATO, Antonio Carlos. Responsabilidade civil e o risco do desenvolvimento nas relações de consumo. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; DONNINI, Rogério (Coord.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 29. 321  CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; MORATO, Antonio Carlos. Responsabilidade civil e o risco do desenvolvimento nas relações de consumo. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; DONNINI, Rogério (Coord.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 49. 322  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 110. 323  MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: RT, 2008. p. 291-292. 324  FARINA, Juan M. Defensa del consumidor y del usuario: comentario exegético de la ley 24.240 y del decreto reglamentario 1.798/94. 2 ed. Buenos Aires: Astrea, 2000. p. 413.

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que se prove que o estado da técnica não pode identificar os riscos contidos na inovação, (m) implicaria indesejável retorno ao mito da culpa,325 conceito deveras útil ao capitalismo embrionário do século XIX,326 mas sem qualquer espaço na contemporaneidade, como demonstramos em outro estudo.327 Argumenta-se, também, que (n) como o rol de excludentes previsto no código de defesa do consumidor é taxativo,328 ante a inexistência de previsão dessa específica hipótese afastando o dever de reparar, esse dever se impõe,329 que (o) não seria possível sustentar o fato exclusivo da vítima330 – ela não teve acesso à informação –, e que, (p) a alegação de autorização para comercialização do produto ou serviço não exime o dever de reparar.331 Enfim, em nível filosófico, sustenta-se que (q) o problema não pode ser transferido ao vulnerável332 o que redundaria em hialino (r) desrespeito à “principiologia constitucional de tutela da pessoa humana”,333 bem como, que (s) a socialização dos prejuízos não permite que o dano seja suportado pela vítima,334 (t) impondo-se ao fabricante – ou mesmo ao Estado335 – assumir os 136

325  BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. La teoría de la calidad y los accidentes de consumo: una visión conceptual. In: STIGLITZ, Gabriel A. (Dir.). Derecho del consumidor. Rosario: Juris, 1991, v. 1. p. 79. 326  PINTO MONTEIRO, António. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003. p. 56. 327  CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. São Paulo: RT, 2013. 328  CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; MORATO, Antonio Carlos. Responsabilidade civil e o risco do desenvolvimento nas relações de consumo. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; DONNINI, Rogério (Coord.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 53. 329  MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: RT, 2008. p. 291-292. No mesmo sentido: CASTRO, Fabiana Maria Martins Gomes de. Sociedade de risco e o futuro do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 11, n. 44, p. 122-140, out./dez. 2002. p. 136-139. E ainda: NORRIS, Roberto. Responsabilidade civil do fabricante pelo fato do produto. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 91. 330  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 112. 331  FARINA, Juan M. Defensa del consumidor y del usuario: comentario exegético de la ley 24.240 y del decreto reglamentario 1.798/94. 2 ed. Buenos Aires: Astrea, 2000. p. 413. 332  BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no código de defesa do consumidor: principiologia, conceitos, contratos atuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 124-126. 333  SILVA, Marco Aurélio Lopes Ferreira da. Responsabilidade pelo risco de desenvolvimento, Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, v. 7, n. 8, p. 379-397, jan./jun. 2006. p. 391-395. 334  CASTRO, Fabiana Maria Martins Gomes de. Sociedade de risco e o futuro do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 11, n. 44, p. 122-140, out./dez. 2002. p. 136-139. 335  MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica do consumidor. In: CAPAVERDE, Aldaci

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riscos inerentes à inovação;336 sob pena (u) de permitir-se o enriquecimento sem causa.337 E, há quem lembre que (v) a reparação do dano não pode ser vista como um negócio – servindo como fator no cálculo do valor do bem – diante da dimensão social do dever de reparar: quando a reparação é baixa, os danos pululam.338 A questão ganha importância quando a memória permite resgatar os transtornos causados pelo consumo de medicamentos como a Talidomida,339

do Carmo; CONRADO, Marcelo (Org.). Repensando o direito do consumidor. Curitiba: OAB/PR, 2007, v. 2. p. 299. “Se um produto foi colocado no mercado sem que o fornecedor tenha sequer pensado na possibilidade de que o desenvolvimento da ciência pudesse constatar sua nocividade ou periculosidade, ele apostou no lucro que sua comercialização poderia gerar, e desse modo deve arcar com os riscos do desenvolvimento. Porém, quando a imediata colocação de um produto no mercado for de interesse da sociedade e do próprio Estado, o fornecedor e o Estado deverão, antes de sua liberação para venda, assumir um compromisso a respeito de quem deverá arcar com os “gastos” e com as perdas e danos, caso o desenvolvimento da ciência venha a determinar sua nocividade ou periculosidade. Note-se que o próprio fornecedor poderá arcar com tais riscos, caso isso reste ajustado e seja do interesse das partes. Através desse raciocínio, ao mesmo tempo em que se protege o fornecedor contra riscos, não são esquecidas as pessoas que têm interesse na comercialização de produtos que, em determinado instante do desenvolvimento da ciência, ainda não tiveram sua periculosidade e nocividade devidamente esclarecidas. Se não houver tal possibilidade, o fornecedor poderá deixar de se sentir atraído pela comercialização do produto, deixando a população sem ter como utilizá-lo. Mas, se o fornecedor abre mão dessa possibilidade, ou simplesmente ignora que a ciência, ao se desenvolver, poderá demonstrar a periculosidade ou a nocividade do produto, não é justo ou racional que o consumidor tenha que pagar pelos riscos da atividade produtiva ou sofrer com os males do produto cuja comercialização interessou financeiramente ao fornecedor.” 336  LOPES, José Reinaldo de Lima. Responsabilidade civil do fabricante e a defesa do consumidor. São Paulo: RT, 1992. p. 72. 337  MARTINS JÚNIOR, Manoel. A responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no código de defesa do consumidor, Revista IMES de Direito, São Caetano do Sul, n. 4, v. 2, p. 132-154, jan./jun. 2002. p. 146. 338  WEINGARTEN, Celia. La equidad como principio de seguridad económica para los contratantes, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 10, n. 39, p. 32-40, jul./set. 2001. p. 33. Noutras palavras: as condutas fundadas sob a égide de que é mais rentável lesar devem ser reprimidas. 339  Estima-se que a Síndrome da Talidomida tenha atingido cerca de 1.000 (mil) pessoas na Inglaterra e que 10.000 (dez mil) bebês nascidos no mundo tenham sofrido lesões provocadas por esse medicamento.

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o MER-29,340 o Stalinon341 e a vacina Salk,342 pelo uso do talco Morhange,343 do plástico Cine Sept,344 pelo consumo de carne da “vaca louca”, em razão da utilização de sangue contaminado com o vírus HIV. Apontados os argumentos em favor e contra o Mercado e tentando fugir do caráter passional das discussões que permeiam o tema,345 é importante refletir em busca de uma solução constitucionalmente segura para a problemática apontada, ainda, que essa possa, em um futuro tão próximo quanto desconhecido, ser substituída por outra considerada mais adequada.

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Tentando fugir de dualismos insustentáveis na Contemporaneidade – pretende-se apenas, de alguma forma, contribuir com a discussão. Para isso, parece relevante compreender que no conflito que se estabelece entre a unilateralidade das premissas que informam os pensamentos protetivo e consequencialista – o primeiro, lastreado na tutela dos vulneráveis, o último, nos potenciais efeitos da decisão na esfera socioeconômica – nenhuma resposta poderá ser encontrada, até porque, maniqueistamente construída, viria ao chão muito facilmente. A discussão, portanto, deve ser inserida na complexidade albergada pelo Estado Democrático de Direito346 – e isso não afasta a necessidade de respostas adequadas à Constituição – e, ante suas especificidades, informada pelo direito de danos. 340  CALIXTO, Marcelo Junqueira. O art. 931 do código civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento, Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, n. 21, p. 53-93, jan./mar. 2005. p. 75. Consoante o autor tratava-se de medicamento anticolesterol que provocou efeitos secundários em mais de 5000 pessoas, cegando várias delas. 341  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 14. Remédio para doenças cutâneas que causou morte e invalidez de muitos usuários. 342  Ibid. p. 14. Vacina concebida para combater a póliomietile que, segundo o autor, por conter o vírus causou a doença em crianças inoculadas. 343  CALIXTO, Marcelo Junqueira. O art. 931 do código civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento, Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, n. 21, p. 53-93, jan./mar. 2005. p. 76. Produto que, consoante o autor, por conter elevada concentração de bactericida, intoxicou mais de 200 crianças na França, ocasionando, em alguns casos, a morte. 344  CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu; MORATO, Antonio Carlos. Responsabilidade civil e o risco do desenvolvimento nas relações de consumo. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; DONNINI, Rogério (Coord.). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: RT, 2009. p. 36-37. 345  Essas paixões são denunciados por: BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: RT, 2007. p. 129. 346  LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Trad. Bruno Miragem. São Paulo: RT, 2009. p. 251-289; 305-339.

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E, enquanto as balizas que conformam o Direito vigente permitem (a) afastar os efeitos históricos de um capitalismo desumano, comandado por empresas transnacionais infiltradas politicamente na tentativa de inibir a intervenção do Estado na Economia, em busca da constante ampliação do lucro e da socialização dos prejuízos347 e, ao mesmo tempo, (b) promover a pessoa humana e outros valores sociais, (c) tratar o dano como um mal social, e não mais, como simples relação de dívida ou de crédito, (d) fomentar a concretização de direitos e garantias fundamentais ao garantir a reparação integral – se é que isso será possível em incontáveis situações havidas na seara fenomenológica – dos danos sofridos pelos lesados, além de, visivelmente, (e) estimular a função preventiva do Direito ao ensejar uma “responsabilidade plural, solidária e difusa.”348 Se a Revolução Industrial – ideia aqui projetada como processo e não como momento – foi um marco relevante para a reconstrução das bases filosóficas do dever de reparar – que se afastaram do individualismo reinante em homenagem à solidariedade social –, a Revolução Tecnológica exige atenção à tutela das vítimas de danos injustos, especialmente, quando se resgata a necessidade incessante de busca por prevenção349 ante a magnitude dos danos oriundos do avanço da técnica. Ao analisar o conflito entre os argumentos colacionados a favor e contra o dever de reparar os danos surgidos nesse contexto, parece possível afirmar que, como o avanço tecnológico é um dos fatores atenuadores da instabilidade concorrencial, sendo, por isso, fonte de rendimento crescente e de redução das incertezas difundidas no Mercado,350 as visões que aludem a um suposto abandono do campo da pesquisa e à inovação ou ao desenvolvimento tecnológico ou são pessimistas, ou tem origem meramente especulativa, portanto, sem qualquer base empírica. 347  ITURRASPE, Jorge Mosset. Análisis de la responsabilidad en el proyecto argentino de código civil unificado de 1998. In: FERNANDEZ, Carlos López; CAUMONT, Arturo; CAFFERA, Gerardo (Coord.). Estudios de derecho civil en homenaje al profesor Jorge Gamarra. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 2001. p. 310. 348  BARROSO, Lucas Abreu; FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. A obrigação de reparar por danos resultantes da liberação do fornecimento e da comercialização de medicamentos. Inédito. 349  SEGUÍ, Adela Maria. Aspectos relevantes de la responsabilidad civil moderna, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 13, n. 52, p. 267-318, out./dez. 2004. p. 275-280. Nesse sentido: SOZZO, Gonzalo. Daños derivados del acto de consumo, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 9, n. 34, p. 9-33, abr./jun. 2000. p. 26-28. 350  POSSAS, Mario et all. Um modelo evolucionário setorial, Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 55, n. 3, p. 333-377, jul./set. 2001. p. 339-341.

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Ademais, as vantagens que podem ser obtidas pelas sociedades empresárias que investem em pesquisa e desenvolvimento são significativas quando comparadas as que estão limitadas a práticas imitativas.351 Perceba-se assim, que o aspecto que permitirá aumentar o preço – em termos absolutos, ampliando o lucro – dos produtos e serviços em um mercado competitivo, como o atual, é o diferencial tecnológico do bem ou da forma utilizada para sua produção. É possível afirmar que a inovação tecnológica é o principal fator que permite romper o “fluxo circular” da economia.352 E não se pretende negar que o risco de redução das pesquisas deva desprezado,353 nem que a tarefa de internalizar os custos de riscos desconhecidos seja algo simples,354 mas destacar que, é exatamente em razão desse

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351  SOUSA, Sergio Almeida de. Um modelo evolucionário de busca tecnológica em condições de hipercumulatividade, Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 59, n. 3, p. 335-380, jul./set. 2005. p. 375 352  COSTA, Achyles Barcelos da. O desenvolvimento econômico na visão de Joseph Schumpeter, Cadernos IHU Ideias, São Leopoldo, v. 4, n. 47, p. 3-16, 2006. p. 3-8. Na economia do ‘fluxo circular’, segundo Schumpeter, a vida econômica transcorre monotonamente, em que cada bem produzido encontra o seu mercado, período após período. Isso, contudo, não significa concluir que inexista crescimento econômico. Admitem-se incrementos na produtividade, decorrentes de aperfeiçoamentos no processo de trabalho e de mudanças tecnológicas contínuas na função de produção. Entretanto, essa base tecnológica já é conhecida, incorporada que foi com o tempo na matriz produtiva da economia. Os agentes econômicos apegam-se ao estabelecido, e as adaptações às mudanças ocorrem em ambiente familiar e de trajetória previsível. Nessas circunstâncias, de acordo com Schumpeter, mudanças econômicas substanciais não podem ter origem no fluxo circular, pois a reprodução do sistema está vinculada aos negócios realizados em períodos anteriores. [...] O desenvolvimento dessa idéia leva Schumpeter a procurar estabelecer de onde provêem as inovações, quem as produz e como são inseridas na atividade econômica. Do plano, Schumpeter descarta a hipótese de que elas se originem no âmbito dos desejos e necessidades dos consumidores, embora esses sejam elementos importantes para a adoção e difusão de novas combinações. Todavia, esses atores são passivos em relação à pesquisa e ao desenvolvimento de novos produtos e processos. Apenas os incorporam aos seus hábitos diários. [...] Contudo, esses são ganhos passageiros (windfall gains), que desaparecem assim que as inovações vão se difundindo na sociedade por meio de novos concorrentes (imitadores) que se juntam ao mercado, e à medida que as novas combinações passam à condição de atividade normal. [...] A introdução no mercado de um novo produto ou processo gera lucros extraordinários, o que atrai uma leva de imitadores que buscam aproveitar as oportunidades abertas pela inovação. [...] A interrupção na continuidade da expansão se deve à eliminação dos lucros extraordinários pela queda nos preços, devido ao aumento da oferta. O outro movimento deriva de adaptações que são feitas pelos agentes, oriundas de mudanças causadas pelas inovações. A introdução de uma novidade de produtos ou processos vem alterar as condições competitivas daqueles empreendimentos já estabelecidos.” 353  PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade civil do profissional liberal no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 251-253. 354  GRAY, Whitmore. Products liability, General Reports to the 10th International Congress of Comparative Law, p. 208 apud BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: RT, 2007. p. 129.

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comportamento preventivo que o produtor ampliará seu mercado,355 mormente, em um momento em que o consumo consciente e a responsabilidade social são valores cada vez mais exigidos na contemporaneidade. Ora, se a manutenção das garantias do modo de produção capitalista é uma escolha de boa parte das sociedades contemporâneas, a eliminação de todo dano injusto,356 também o é, ao menos, nos Estados Democráticos de Direito. E esse é o cenário vivido pelo Brasil! Enfrentar o tema em nível dogmático impõe resgatar que a gênese do dever de reparar encontra-se atada à existência de (a) uma conduta (b) antijurídica e (c) responsável pelo surgimento (d) de lesão a um interesse juridicamente protegido. A partir daí, considerando-se que a conduta consiste no desenvolvimento de atividade empresária e que os danos – no universo dos riscos do desenvolvimento – decorrem dos produtos ou serviços produzidos no desvelar daquela, falta demonstrar apenas a antijuridicidade da atividade para que o suporte fático necessário à configuração do aludido dever seja preenchido. Antijuridicidade que, aliás, está inexoravelmente atada à noção de defeito. Daí que, ao resgatar-se que essa figura tem como traço peculiar a “carência de segurança”357 – um produto (ou) serviço será considerado defeituoso quando for mais perigoso do que razoavelmente se possa esperar358 – a dogmática negativista perde seu sustentáculo teórico. Pouco importa, na concepção do defeito, se esse pode ou não ser percebido, haja vista que a destacada expectativa de segurança há de ser preenchida em perspectiva sistêmica e a partir do dúplice viés da relação jurídica. Ratifique- que são inconfundíveis as noções e contextos de inovação tecnológica e de ulterior descoberta de defeito pré-existente, porque, como dito, defeituoso é o produto que não tem a segurança que dele naturalmente se espera,359 enquanto as construções existentes, quando passam pela questão 355  PEREIRA, Luís Cézar Ramos. Generalidades sobre a responsabilidade civil do fabricante, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 79, n. 654, p. 52-56, abr. 1990. p. 55-56. 356  GHERSI, Carlos Alberto. Tercera vía en derecho de daños: anticipación, prevención y reparación, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 13, n. 50, p. 225-238, abr./jun. 2004. p. 230. 357  KRIGER FILHO, Domingos Afonso. A responsabilidade civil e penal no código de proteção e defesa do consumidor. Porto Alegre: Síntese, 1998. p. 75. 358  ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1992. p. 92. 359  SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil por acidentes de consumo. In:

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da legítima expectativa, têm em conta um produto que não apresenta defeito e vem a ser superado por outro com maior qualidade.360 As alegações que perpassam a inexistência de nexo de causalidade e exigência de culpa são completamente desprovidas de qualquer sustentáculo teórico. A primeira tese desconhece que a análise do nexo causal é juízo que precede o de atribuição de responsabilidade,361 o qual somente pode ser rompido diante do advento de causa estranha e não imputável a quem se atribui certa conduta.362 A segunda ignora – para não repetir o mesmo discurso – que o direito do consumidor é atravessado pelo direito de danos. Derradeiramente, em nível filosófico, embora “a identidade do consumidor” se manifeste em fotografias específicas capturadas no desvelar das relações de consumo, é oportuno considerar que a discussão deve partir da constatação de que esse mesmo sujeito, antes de ser assim qualificado, é pessoa humana363 e, por esse fato, destinatário de especial proteção do Direito, reflexão reforçada diante da repersonalização das relações privadas e da primazia do ser quando em confronto com a proteção do ter. 142

LOPEZ, Teresa Ancona; AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado (Coord.). Contratos de consumo e atividade econômica. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 303. 360  SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 340. 361  NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1. p. 634-637. “Todos os fatos que caibam na noção de caso fortuito ou de força maior em sentido amplo, abrangendo o próprio fato do lesado e ainda o de terceiro, excluem o nexo causal entre o fato atribuído ao indigitado responsável e o dano ocorrido. Excluem a causalidade, não a culpa. A invocação do caso fortuito ou de força maior significa afirmar que o dano se ficou devendo a algo que por definição é independente da atuação, culposa ou não, da pessoa a quem em princípio ele era atribuído. Não é correta a afirmação, muito corrente, de que a ocorrência de caso fortuito ou de força maior exclui a culpa. A existência ou ausência de culpa diz respeito a um requisito da responsabilidade civil, o nexo de imputação (que aponta a pessoa a quem pode ser ligado um determinado fato gerador de danos, seja a título de culpa ou de risco), ao passo que a ocorrência ou não de caso fortuito ou de força maior, fato de terceiro ou fato do próprio lesado, diz respeito a outro requisito, o nexo de causalidade (que indica quais são os danos que podem ser considerados consequência do fato que esteja em questão). Aliás, em termos lógicos, a apuração do nexo de causalidade precede o juízo de imputação. Verificado um determinado dano, primeiro é preciso apurar qual foi a sua causa. Só depois de determinado o fato causador, levanta-se a questão de saber se este pode ser imputado a alguém. [...] Dizer que o caso fortuito ou de força maior eliminaria a culpabilidade, significaria o mesmo que afirmar que ninguém é culpado por evento que não causou.” 362  LARROUMET, Christian. La causa extraña. In: ESPINOSA, Fabricio Mantilla; BARRIOS, Francisco Ternera (Dir.). Los contratos en el derecho privado. Bogotá: Legis, 2007. p. 294. 363  MIRAGEM, Bruno. Os direitos da personalidade e os direitos do consumidor, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 13, n. 49, p. 40-76, jan./mar. 2004. p. 75.

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É especialmente importante resgatar que os danos não são suportados apenas pela sociedade364 – imagine aqui, a lesão a um interesse coletivo –, mas por indivíduos não tão aleatoriamente eleitos pela Fortuna. Além disso, normalmente, atingem valores imateriais. Tudo isso, sem contar a dificuldade havida na identificação do estado da arte no processo de realização do direito e a desequilibrada distribuição dos ônus da atividade econômica desenvolvida,365 embora, não pareça que se possa trabalhar aqui a noção de enriquecimento sem causa, frente à diversidade dos valores tutelados e à ausência do adequado tratamento dogmático que a figura merece. Nesse espeque, muito mais que uma simples questão de “política de consumo”,366 a imputação do dever de reparar – danos que podem não ter sido injustamente causados, mas, que, certamente, talvez devam ser injustamente suportados – haverá de ser informada pelas balizas constitucionais de proteção da pessoa humana, da solidariedade social e da isonomia substancial, instrumentos hábeis à promoção de justiça social e para a correção das distorções presentes no processo de produção massificado.367 Ademais, mesmo sem ignorar a complexidade existente na relação entre produtor e consumidor368 e que a efetivação de um sistema de imputação do dever de reparar poderá implicar ônus econômicos consideráveis,369 fato é que, a racionalidade econômico-pragmática não pode prevalecer em detrimento da tutela das vítimas de danos injustos. 364  EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Responsabilidade dos fornecedores pelos danos decorrentes dos riscos do desenvolvimento: análise sob a ótica dos princípios gerais da atividade econômica, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 16, n. 64, p. 9-42, out./dez. 2007. p. 37. 365  BOURGOIGNIE, Thierry. La directiva de la unión europea de 1985 sobre responsabilidad por productos y su implementación en los estados miembros y otros países europeos. In: STIGLITZ, Gabriel A. (Dir.). Derecho del consumidor. Rosario: Juris, 1998, v. 9. p. 111. 366  GOMES, Marcelo Kokke. Responsabilidade civil: dano e defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 215. 367  BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: RT, 2007. p. 130. 368  COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do consumidor: importante capítulo do direito econômico, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 13, n. 15-16, p. 89-105, 1974. p. 89-91. 369  FRANCO, Vera Helena de Mello. A responsabilidade do fabricante no direito brasileiro futuro (confronto com o direito comparado), Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 28, n. 73, p. 80-99, jan./mar. 1989. p. 81.

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A equação que permitiria representar a tensão existente na relação de consumo – vista em perspectiva macroscópica, e assim, balizada pela necessidade de proteção do vulnerável e de outros interesses coletivos tutelados pelo Estado Democrático de Direito – não reflete um “jogo de soma zero” à medida que as ingerências do direito são absorvidas pelo Mercado.370 res.

As cartas foram lançadas, embora nesse jogo só possa haver perdedo-

A opção pelas teses negativistas, por mais que boa parte dos argumentos mereça todo o respeito, sempre implicará em perdas, ainda, que, algumas delas, não possam ser mensuradas economicamente. A pacificação da questão exige, sem dúvida, a ruptura de duplo dique epistemológico, de modo a materializar o processo de (a) humanização do pensamento científico371 e a (b) adequada compreensão do lastro que sustenta o direito de danos, escolhas que, talvez, permitam alcançar, na concretude da vida, e com rara perfeição artística, as promessas contidas desde 1988 na Constituição tupiniquim. 144

370  TOMASETTI JUNIOR, Alcides. A configuração constitucional e o modelo normativo do cdc, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 14, p. 28-32, abr./jun. 1995. p. 31. E por isso “a proteção do consumidor não é uma alternativa ao critério da eficiência econômica.” 371  SILVEIRA, Rosemari Monteiro Castilho Foggiatto; BAZZO, Walter Antonio. Inovações tecnológicas e a questão dos limites: desafios para a educação tecnológica. In: VII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS. Florianópolis: s/e, nov. 2000. p. 11. “Pelo que pudemos constatar na pesquisa, embora os entrevistados possuam um nível de formação bastante elevado, fazendo parte dos 5% da elite intelectual do Brasil, eles apresentam uma visão que se restringe aos aspectos técnicos e econômicos do desenvolvimento científico e tecnológico, não considerando as suas relações sociais. Tal percepção parece ser fruto da sua formação acadêmica que, como foi evidenciado na pesquisa empírica de uma maneira geral, não proporcionou uma formação mais humanista, sendo alegado pela maioria (79,1%) dos participantes que os aspectos sociais da ciência e da tecnologia não eram abordados nos seus cursos acadêmicos e que, quando isso ocorreu, foi de forma bastante superficial e aleatória sem correlação com as demais disciplinas.”

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AS ASSOCIAÇÕES SEM FINS ECONÔMICOS NO PLANO DA EXISTÊNCIA Rodrigo Xavier Leonardo372 Sumário: 1. Introdução; 2. A tripartição de planos do fato jurídico segundo Pontes de Miranda; 3. As associações sem fins econômicos no plano da existência; 3.1. A união voluntária de pessoas; 3.2. A organização; 3.3. A busca de finalidades não econômicas; 4. Referências bibliográficas.

1. Introdução O Professor Luiz Carlos de Oliveira foi um homem repleto de virtudes. Uma dessas virtudes, decisivamente marcante em seu modo de estar à frente do “Curso Professor Luiz Carlos”, foi o poder de associar pessoas, gerando vínculos de pertencimento que se mantém hígidos, mesmo após o seu passamento. Para celebrar a vida do amigo e do mestre que precocemente se foi, escolhi apresentar aos leitores deste Liber amicorum um texto sobre as associações sem fins econômicos. De certa maneira, sob a lente do Direito Civil – que foi a disciplina jurídica que me associou ao Professor Luiz Carlos de Oliveira –, encontro nesta abordagem uma via para expressar o meu afeto e a minha gratidão.373

2. A tripartição de planos do fato jurídico segundo Pontes de Miranda Uma das maiores contribuições brasileiras para a Ciência do Direito se encontra na teoria do fato jurídico e, nela, na chamada tripartição de planos proposta por Pontes de Miranda. A suficiência e a insuficiência, a perfeição e a imperfeição do suporte fático permitiriam a análise do fato jurídico em três planos que, em um trato 374

372  Professor de Direito Civil no Curso Professor Luiz Carlos e na Universidade Federal do Paraná (graduação, mestrado e doutorado). Mestre e Doutor em Direito Civil pela USP. Pós-Doutorado na Università degli studi di Torino. Advogado, sócio da TOMASETTI JR & XAVIER LEONARDO – sociedade de advogados. 373  Retomo o tema desenvolvido em recente livro de minha autoria, com singelas alterações (LEONARDO, Rodrigo Xavier. As associações sem fins econômicos. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2014). 374  Adota-se o conceito de suporte fático dado por Marcos Bernardes de Mello: “Quando aludimos a suporte fáctico estamos fazendo referência a algo (= fato, evento ou conduta) que poderá ocorrer no

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rigoroso, conduziriam a diferentes consequências. Os três planos são: o plano da existência, o plano da validade e o plano da eficácia. Os fatos jurídicos se formam pela incidência das normas jurídicas sobre suportes fáticos que, em geral, são complexos. Diferentes acontecimentos fáticos descritos em normas jurídicas se encontram reunidos no chamado suporte fático em sentido abstrato:375 eventos da natureza, atos humanos (volitivos, não volitivos, cuja manifestação de vontade pode ser irrelevante), elementos subjetivos, elementos objetivos, estimações valorativas, probabilidades etc. A formação de um suporte fático apto a provocar a incidência da regra jurídica exige a convergência de diferentes fatos. A celebração de um contrato, por exemplo, envolve inúmeras circunstâncias de fato que concorrem para a sua formação: a motivação, as necessidades dos contratantes, os impulsos externos para contratar ou deixar de contratar (familiares, sociais etc.), a manifestação de vontade, a consciência na manifestação de vontade, a entrega do objeto, a idade, por vezes o humor, a piedade, a intransigência etc. 156

A vida, com sua inesgotável complexidade, envolve incontáveis fatores que são conjugados na ação humana. Nem todos serão relevantes para a formação de um fato jurídico e, mesmo dentre os relevantes, nem todos irão repercutir do mesmo modo. Justamente por reconhecer a complexidade do mundo dos fatos, decorrente da própria complexidade da vida e da valoração axiológica que a cultura dos povos encaminhou no campo jurídico, é que se exige do jurista um olhar atento sobre os fatos e sobre as diferentes maneiras com que eles repercutem no direito. mundo e que, por ter sido considerado relevante, tornou-se objeto da normatividade jurídica. Suporte fático, assim, é um conceito do mundo dos fatos e não do mundo jurídico, porque somente depois que se concretizam (= ocorram) no mundo os seus elementos é que, pela incidência da norma, surgirá o fato jurídico e, portanto, poder-se-á falar em conceitos jurídicos. (...) Por aí se vê, há duas conotações a considerar quando se fala em suporte fáctico: a) uma que designa o enunciado lógico da norma em que se representa a hipótese fáctica condicionante de sua incidência; b) outra, que nomeia o próprio fato quando materializado no mundo” (BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 43-44). 375  Segundo Marcos Bernardes de Mello, “ao suporte fáctico, enquanto considerado apenas como enunciado lógico da norma jurídica, se dá o nome de suporte fáctico hipotético ou abstrato, uma vez que existe, somente, como hipótese prevista pela norma sobre a qual, se ocorrer, dar-se-á sua incidência” (Idem, p. 44).

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A advertência a respeito do assunto, feita por Pontes de Miranda, merece ser sublinhada: “Tem-se de estudar o fáctico, isto é, as relações humanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual o suporte fáctico, isto é, aquilo sobre que elas incidem, apontado por elas. Aí é que se exerce a função esclarecedora, discriminativa, crítica, retocadora, da pesquisa jurídica”.376 Segundo Pontes de Miranda, a suficiência ou insuficiência do suporte fático teria repercussão no plano da existência. A perfeição do suporte fático, por sua vez, teria projeção nos planos da validade e da eficácia. Isto poderia ser aplicado a qualquer fato jurídico. Com as associações não seria diferente. Enuncia o Código Civil, no artigo 53, que “constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos”. A seguir, no art. 54, exige- se uma série de requisitos dos estatutos. Como a presença ou ausência dos fatos descritos abstratamente nessas normas jurídicas irá se refletir no ato constitutivo das associações? Justamente neste ponto reside um dos traços da genialidade da ferramenta analítica dos suportes fáticos complexos em três planos, com diferentes consequências para o direito.377 Para explicar as associações no plano da existência adotaremos como marco teórico a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda.

3. As associações sem fins econômicos no plano da existência. Todos os fatos jurídicos se encontram no plano da existência. A partir da incidência das regras jurídicas sobre um suporte fático suficiente, o fato jurídico é constituído, adentrando ao que Pontes de Miranda denominou mundo do direito. Marcos Bernardes de Mello explica que “neste plano, que é o plano do ser entram todos os fatos jurídicos, lícitos ou ilícitos. No plano da existência não se cogita de invalidade ou eficácia do fato jurídico, importa, apenas, a re376  PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t. I. Rio de Janeiro : borsoi, 1970, p. XI (prefácio). 377  Segundo esse autor: “O fato jurídico. primeiro, é; se é, e somente se é, pode ser válido, nulo, anulável, rescindível, resolúvel, etc.; se é, e somente se é, pode irradiar efeitos, posto que haja fatos jurídicos que não os irradiam, ou ainda não os irradiam” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. t. I. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2012, p. XX (prefácio).

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alidade da existência. Tudo, aqui, fica circunscrito a saber se o suporte fáctico suficiente se compôs, dando ensejo à incidência”.378 A suficiência do suporte fático dar-se-ia mediante a ocorrência dos elementos mínimos, verdadeiramente indispensáveis para que se opere a incidência da regra jurídica para a formação do fato jurídico. Esses elementos mínimos, ao menos suficientes para a formação do fato jurídico, tendo por consequência o seu ingresso no plano da existência, são denominados “elementos nucleares ou núcleo do suporte fático”. A ausência desses elementos, por sua vez, impediria a própria formação, a constituição, a existência do fato jurídico. Os elementos nucleares, portanto, comporiam o suporte fático tido por suficiente para a formação do fato jurídico e, por consequência, para ingressar no plano da existência.

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A expressão “existência” não diz respeito à ocorrência material de fatos na vida em sociedade. Trata-se de um recurso lógico e não fenomenológico, tal como explica Bernardes de Mello. A teoria da inexistência, no entanto, mostra-se absolutamente fundamental para explicar situações em que, ante a ausência de dados mínimos para a formação de um fato jurídico, ele não chega a se constituir.379 O núcleo do suporte fático é formado por dois componentes: o elemento “cerne” e os “elementos completantes”.380 Esses elementos, no caso das associações sem fins econômicos, são descritos no art. 53 do CC: “Constituem-se as associações pela união de pes378  BERNARDES DE MELLO, Marcos. Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 102. 379  Um percurso histórico da teoria da inexistência (ainda que com alguma confusão com a noção de ineficácia), é traçado por SCONAMIGLIO, Renato. Contributo alla teoria del negozio giuridico. 2. ed. Napoli: Jovene, 2008. p. 329 e ss. 380  Segundo Marcos Bernardes de Mello, “no estudo dos suportes fácticos complexos, em especial dos negócios jurídicos, é preciso ter em vista que há fatos que, por serem considerados pela norma jurídica essenciais à sua incidência e consequente criação do fato jurídico, constituem-se nos elementos nucleares do suporte fáctico ou, simplesmente, no seu núcleo. Dentre esses há sempre um fato que determina a configuração final do suporte fáctico e fixa, no tempo, a sua concreção. Às vezes esse fato não está, expressamente, mencionado, mas por constituir o dado fáctico fundamental do fato jurídico, a sua presença é pressuposta em todas as normas que integram a respectiva instituição jurídica. esse fato configura o cerne do suporte fáctico” (BERNARDES DE MELLO. Teoria do fato jurídico... cit., p. 54).

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soas que se organizem para fins não econômicos”. A partir daí, desde logo, pode-se destacar três componentes essenciais: a) a união de pessoas; b) a adoção de uma determinada organização; c) a busca de finalidades não econômicas. Seguindo a orientação teórica mais tradicional, pode-se dizer que esses três componentes conformam os essentialia negotti do ato constitutivo da associação.

3.1. A união voluntária de pessoas A união entre pessoas é um componente subjetivo indispensável às associações. Somente as pessoas podem se associar, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas. O ato de se unir deve ser voluntário, ainda que o art. 53 do CC não esclareça isto. Como autêntico exercício de uma liberdade, não se mostra razoável aceitar que o ato de constituição de uma associação pudesse decorrer, pura e simplesmente, da conduta de se unir. Justifica-se o argumento por um raciocínio a contrário senso. Se a mera conduta de se unir permitisse a constituição de uma associação, seria hipoteticamente possível que as pessoas se vissem, ao longo da vida, integrantes de inúmeras associações contrariamente aos seus desígnios. Em correta interpretação ao art. 53 do CC, portanto, conclui-se que é exigível uma manifestação consciente e livre de vontade para a formação de uma associação. Ao se indicar como elemento do suporte fático a união voluntária de pessoas, apresenta-se uma fórmula simplificada do fato manifestação de vontade convergente, entre duas ou mais pessoas, orientada à união associativa. Sob a lente da teoria do fato jurídico, por sua vez, a manifestação plural e consciente de vontade orientada à constituição da associação sem fins econômicos corresponde ao elemento “cerne” do suporte fático do fato jurídico associação sem fins econômicos. Como elemento “cerne”, a manifestação de vontade convergente permite a sua configuração final como negócio jurídico e fixa, no tempo, a sua

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concreção. Como se trata de uma manifestação de vontade convergente plural que possibilita um indefinível número de manifestantes a partir de dois, qualifica-se o ato como um negócio jurídico plurilateral. Justamente por se tratar de um negócio jurídico, a manifestação de vontade necessariamente deve se verificar como elemento cerne.381 Leia-se bem, manifestação e não declaração,382 diferença salutar. Por se tratar de um negócio jurídico plurilateral, exige-se a manifestação de vontade convergente entre duas ou mais pessoas destinadas à constituição da associação sem fins econômicos. Não se trata de qualquer manifestação de vontade. Trata-se de uma manifestação de vontade “unida” e, com a exata compreensão do termo, se reforça ainda mais a tese de que este ato constitutivo não apresenta uma natureza jurídica contratual (conforme item 6.1.1).

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Nessa peculiar manifestação de vontade, dentre tantas conhecidas no direito privado, deve-se verificar, além da manifestação em si, a consciência do ato e a escolha da categoria eficacial que se pretende: a constituição de uma 381  Apenas à guisa de raciocínio, caso a mera união de pessoas como fato fosse apta a ensejar a constituição de uma associação, tratar-se-ia de um ato-fato jurídico. 382  Pontes de Miranda explica: “Há negócios jurídicos que não são contratos; nem, sequer, se constituíram pela incidência de regra jurídica em declaração de vontade, e sim apenas em exteriorizações de vontade sem ‘declaração’. Uma coisa é exteriorizar, manifestar; outra, declarar, fazer claro. Se tiro o livro da mesa e o ponho na janela, manifestei vontade, e não a declarei; se digo que o fiz, declaro. Se jogo fora o livro, de que não mais preciso, manifestei vontade, sem declarar. Nem se argua que houve mudança de significado, entre a linguagem vulgar e a jurídica (...). O erro era dos juristas e da sua linguagem” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado cit., t. I, p. 98). Há que se registrar, neste particular, a tese de Antônio Junqueira de Azevedo de que “a vontade não é elemento necessário para a existência do negócio jurídico (plano da existência), tendo relevância somente para a sua validade e eficácia; segue-se daí que, não fazendo ela parte da existência do negócio, muito menos poderá ser elemento definidor ou caracterizador do negócio”. Mais à frente, o mesmo autor explica o fundamento da assertiva: “A nosso ver, a vontade não é elemento do negócio jurídico; o negócio é somente a declaração de vontade. Cronologicamente, ele surge, nasce, por ocasião da declaração; sua existência começa nesse momento; todo o processo volitivo anterior não faz parte dele; o negócio todo consiste na declaração. Certamente, a declaração é o resultado do processo volitivo interno, mas, ao ser proferida, ela o incorpora, absorve-o, de forma que se pode afirmar que esse processo volitivo não é elemento do negócio. A vontade poderá, depois, influenciar a validade do negócio e às vezes também a eficácia, mas, tomada como iter do querer, e não faz parte, existencialmente, do negócio jurídico; ela fica inteiramente absorvida pela declaração, que é o seu resultado. O fato de ela poder vir a influenciar a validade ou a eficácia do negócio não a transforma em parte dele, como, aliás, também ocorre com diversos outros requisitos e fatores de eficácia” (AZEVEDO. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 29-30).

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associação sem fins econômicos. Como em geral ocorre nos negócios jurídicos, a manifestação reflete não só a liberdade de praticar o ato como também a liberdade de escolha da categoria eficacial. É justamente nisso que o negócio jurídico se diferencia do ato jurídico em sentido estrito. Debateu-se durante algum tempo se a garantia da liberdade de associação poderia ser exercida por pessoas jurídicas. A conclusão alcançada no capítulo V, item 5.1.1, deve ser aqui aplicada: não se justifica a limitação da união em associação apenas aos seres humanos. A manifestação de vontade constitutiva da associação deve ser realizada por pessoas, o que a teor do art. 53 do CC excluiria os sujeitos de direito que não são pessoas. A participação de pessoas que se manifestam para constituir a associação também integra o suporte fático da associação sem fins econômicos na qualidade de elementos completantes, em razão da indeclinável referibilidade aos sujeitos de direito que os fatos jurídicos ensejam.383

3.2. A organização A manifestação voluntária de duas ou mais pessoas, consciente e convergente, para se unir em associação não é suficiente para a formação do fato jurídico associação sem fins econômicos. Sem a menor sombra de dúvidas, outras manifestações voluntárias, conscientes e convergentes, entre duas ou mais pessoas, existem no direito para outros fins, para a constituição de outros fatos jurídicos e, até mesmo, de outras entidades. Mostram-se necessários outros componentes de fato para se saltar do gênero negócio jurídico plurilateral para a espécie negócio jurídico plurilateral organizativo constitutivo de uma associação sem fins econômicos. A mera manifestação voluntária, consciente e convergente não é suficiente para formar o núcleo do suporte fático da associação sem fins econômicos. O elemento volitivo precisa ser completado por outros e, dentre eles, a orientação para constituição de uma organização que, no caso, se dá sob a 383  Conforme explica Marcos Bernardes de Mello “(...) os fatos jurídicos pressupõem uma necessária referibilidade a sujeitos de direito, porque sua eficácia (jurídica) se liga, essencialmente, a alguém ou a algum ente, inclusive a conjunto patrimonial, a que o ordenamento jurídico outorga capacidade de direito” (BERNARDES DE MELLO. Teoria do fato jurídico: plano da existência cit., p. 52). Para Antônio Junqueira de Azevedo, noutra perspectiva, o agente seria um elemento geral extrínseco (AZEVEDO. Negócio jurídico: existência... cit., p. 34).

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espécie de “organização corporativa”.384 A destinação da manifestação de vontade para a criação de uma organização corporativa entre os associados corresponde a um elemento “completante” do núcleo do suporte-fático. Ele objetiva essa manifestação plural distinguindo-a de outras e esclarecendo a espécie de negócio jurídico de que se trata. Trata-se de um elemento completante porque, a um só tempo, é essencial para a formação desse negócio jurídico e, simultaneamente, serve para particularizar esse negócio jurídico dentre tantos outros existentes. Sem esse elemento completante, não há como qualificar o negócio jurídico como constitutivo de associação. Pode ser, até mesmo, que ele sirva de suporte fático suficiente para outros fatos jurídicos, até mesmo para a constituição de outras entidades, mas não para a constituição de associações. Em síntese. Para haver associação não basta a união. Há de haver união sob determinada espécie de organização. 162

A união entre os associados constrói algo diverso da mera aglutinação entre eles. Esse algo diverso é, justamente, a chamada organização corporativa. A noção de suporte fático corporativo tem sua origem na ideia de corpus identificada como “uma unidade distinta e diversa da pluralidade dos membros”.385 Referida noção, no pensamento jurídico, é o produto de uma longa construção histórica que se inicia na antiguidade a partir da reflexão sobre a relação existente entre o todo e as partes. Inicialmente, essa reflexão restringia-se à relação entre o todo e as partes verificável entre coisas ou objetos materiais plurais que seriam unidos. Pos384  Conforme antes mencionado, para Pontes de Miranda “(...) a associação é essencialmente corporativa. Daí falar-se de substrato corporativo da associação (...)”. A organização corporativa é um dos elementos que dá o tom diferenciador das associações de outras uniões. Eis, aqui, a explicação para a enigmática assertiva de Pontes de Miranda no sentido de que “a reunião de pessoas é associação quando de tal maneira se organizou que os seus membros se apresentam como todo único e uno e os cobre; isto é, quando o membro tem qualidade comum, sem ser só o ‘sócio’, o que participa na vida social. A individualidade do membro entra pouco, ou nada” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado cit., t. I, p. 320). 385  “Il corpus è un’unità distinta e diversa dalla pluralità dei membri” (FERRARA, Francesco. Teoria delle persone giuridiche.2.ed. Torino : Utet, 1923, 35).

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teriormente, mediante um processo de desmaterialização, passa-se a refletir sobre a coletividade reconhecida como uma unidade, não apenas de coisas, mas também de pessoas,386 por meio da noção de universitas personarum.387 Essa concepção é desenvolvida pelo pensamento cristão que se fundamenta num princípio de unidade do universo, sempre reconduzível a um Deus único, absoluto e indivisível. Da junção daquilo que permaneceu da cultura jurídica romana com a teorização canonística, atrelada, ainda, às experiências dos povos germânicos,388 a ideia de que a corporação tem existência autônoma em relação a todos aqueles que a compõem atravessa a Idade Média e chega aos tempos modernos389 como uma conformação típica para a união de pessoas. 386  A construção da noção de corpus, em direito romano, reflete a lenta evolução de identificação de duas espécies de coletividades: de substrato patrimonial e de substrato pessoal. Na era do principado, conforme indica Riccardo Orestano, “il termine corpus viene impiegato anche in fonti normative e in documenti epigrafici per indicare situazioni di tipo associativo, e non è certo a caso che proprio intorno a quest’epoca, più precisamente all’età degli Antonini, corpus cominci ad essere adoperato come sinonimo di situazioni a base personale negli scritti dei giuristi”. Para esse romanista, restava ainda na expressão corpus a ambiguidade de representar, simultaneamente, uma coletividade de indivíduos ou coisas e a entidade física do indivíduo: “L’aspetto che qui occorre mettere in risalto è la possibilità che il termine corpus aveva di essere impiegato con la stessa forza ed evidenza per indicare sia l’entità fisica dell’uomo singolo, sia un insieme di individui o cose” (ORESTANO, Riccardo. Il ‘problema delle persone giuridiche’ in diritto romano. Torino: Giappichelli, 1968. t. 1, p. 172-173). 387  Segundo Orestano, “la nozione di corpus e le trasformazioni semantiche che questo termine ha subìto, sino ad esprimere un quid distinto dagli elementi cui si riferisce, costituiscono la strada che conduce alla concezione astratta, espressa dalla nozione di universitas. E proprio su questa base – concettuale e linguistica a un tempo – poggeranno poi tutte le costruzioni che dal medioevo ai nostri giorni considerano le situazioni unificate come entità diversa dai suoi elementi costitutivi, tanto da trascenderli: cioè sino a porle come un alterum rispetto ad essi, idoneo ad essere valutato e disciplinato come tale” (ORESTANO, op. cit., p. 183-184). Em notas de rodapé, por sua vez, von Gierke esclarece que “Universitas was nothing else but the ‘totality’. In a legal sense it referred to a collectivity recognized as a unity and was thus synonymous with the expression corpus” (GIERKE, Otto von. Associations and law. Translation of sections 3-5 issued as v.3. of Das deutsche Genossenschaftrecht. Trad. George Heiman. Toronto: Toronto Press, 1977. p. 117). 388  A relação entre a teorização canonista e a recepção pelos povos germânicos é atestada por Savigny: “Cette dernière application reçut de larges et de nombreuses extensions sous l’empire du christianisme. Chez les peuples germaniques, l’institution non-seulement se conserva (sic), mais se développa davantage, car elle trouva les liens du gouvernement relâchés, et les esprits enclins à former des associations libres de tous genres” (SAVIGNY, M.F.C. Traité de droit romain. Paris: Librarie de Firmin Didot Frères, 1855. vol. 2, p. 241). Numa perspectiva histórica, cf. GIERKE. Community... cit. 389  Seguindo as orientações de Gierke, pode-se dizer que “The theory of the corporation is in origin Italian, but in the course of its development it spread all over Europe. Its beginnings and growth coincide with the beginnings and growth of modern jurisprudence. Like all things modern it was produced by the spirit of the Middle Ages bringing about the revival of classical civilization (...)

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Como conformação típica da união de pessoas (rectius, do resultado da união entre pessoas com determinadas características), a noção de corporação é retomada e teorizada pelos autores da escola histórica do direito, com destaque para Gierke e Savigny.390 Nesse sentido, pode-se ler em Savigny que “A característica essencial de uma corporação é que seus direitos sustentam-se não sobre seus membros individualmente considerados, nem mesmo sobre todos seus membros reunidos, mas sobre um conjunto ideal. Uma consequência particular, mas importante, deste princípio, é que a mudança parcial ou mesmo integral dos seus membros não atinge nem a essência nem a unidade da corporação”.391 Numa corporação, a união entre os membros formaria uma realidade supraindividual na qual “os instituidores desaparecem, e o organismo creado perdura. A perpetuidade, ou, ao menos, a continuidade, é da sua essência. A mudança dos titulares, ou beneficiários, não altera ou afeta a existência e a condição moral da entidade, que há na associação”.392 164

Por essa razão é que Pontes de Miranda, ao procurar explicar o que vem a ser uma associação, assinala que o todo cobre a individualidade que, ao final, pouco ou nada entraria.393 Corporation theory grew from contact between medieval and ancient principles. Their confrontation kindled reflection, aroused controversy, and again and again produced attempts to find a higher unity. The medieval elements of corporation theory originate from the closed world of ideas of a German spirit ruled absolutely by Christianity” (GIERKE, Community... cit., p. 248). 390  Cabe anotar que, nessa mesma escola, Savigny e Gierke ocuparam postos opostos. Savigny esteve à frente da chamada corrente romanista da escola histórica, tendo por principal escopo investigar a matéria jurídica preestabelecida pela história para sistematizá-la ao uso do povo alemão. Gierke foi um dos expoentes da chamada corrente germanista, que buscava apreender os aspectos históricos particulares do direito alemão, visando construir uma ciência do direito nutrida pela tradição do povo. Sobre o assunto, cf. BARKER, Ernst. Translator’s introduction. In: GIERKE, Otto von. Natural law and the theory of society 1500 to 1800. Trad. Ernest Barker. Boston: Beacon Press, 1957. p. LV. 391  SAVIGNY, M.F.C., op. cit., p. 237. 392  CARTAXO, Ernani Guarita. As pessoas jurídicas em suas origens romanas: evolução e conceito. Curitiba: Empreza Gráfica Paranaense, 1943. p. 11. 393  A mesma noção, no século XX, seria dotada de um particular sentido político e jurídico, muito próprio, no direito italiano, em razão do fascismo. Não é nesse sentido que, aqui, se refere o substrato corporativo. Luisa Riva-Sanseverino esclarece que “Intesa in senso particolare e con esclusivo riferimento al sistema creato dal regime fascista, la parola ‘corporazione’ sta a indicare una direttiva di politica sindacale (superamento della posizione antagonistica tra capitale e lavoro, i cui interessi vengono ugualmente subordinati agli interessi superiori della produzione nazionale e dello Stato)” (RIVA-SANSEVERINO, Luisa. Diritto corporativo. In: Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, 1962. v.10. p. 679). Esse sentido particular que, em direito italiano, toma a expressão corporação também é ressaltado

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Refere-se o substrato corporativo como uma representação de uma específica organização entre pessoas que, uma vez constituída, tende a diluir o elemento individual dos “associados”. Numa corporação, a razão de existir e de continuar a existir do agrupamento se dá por força da ligação física e psíquica, tal como esclarecido por Pontes de Miranda, entre os associados remanescentes e a entidade. Daí haver Gierke destacado que “a unidade e a pluralidade existem uma para a outra e se determinam reciprocamente; cada uma delas é ao mesmo tempo o sentido e o fim”.394 Por muito tempo o repúdio à noção de corporação impediu maiores reflexões sobre a união corporativa de pessoas. Imaginava-se que as corporações significariam intermediários entre o indivíduo e o Estado que, potencialmente, esvaziariam a liberdade individual.395 Para identificar o subtipo das associações sem fins econômicos, o Código Civil brasileiro faz menção implícita ao substrato corporativo, ao estabelecer, no parágrafo único do art. 53 que “Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos”. No subtipo da associação sem fins econômicos não existem, internamente ao agrupamento associativo, direitos e obrigações recíprocos entre os associados em virtude da associação. Nesse sentido, pode-se dizer que, em geral, não se verificam vínculos jurídicos obrigacionais entre os associados. Por essa peculiar organização ressalta-se, mais uma vez, que o ato constitutivo dessas organizações não detém natureza contratual. Justamente porque o conjunto de associados compõe algo diverso da justaposição dos associados, o vínculo jurídico que se estabelece se dá, diretamente, entre os associados e a associação, mediante uma verdadeira adesão à corporação associativa, sem que entre os associados se verifiquem vínculos por Pergolesi que, em 1938, escrevia: “Il termine ‘corporazione’ ha nel vigente diritto italiano un senso tecnico ben preciso, che sarà più oltre determinato. Qui, preliminarmente, è opportuno stabilire che le nostre attuali corporazioni non vanno in alcun modo confuse con le corporazioni artigiane medioevali, le quali, se pur hanno qualche analogia con gli ordinamenti moderni, vanno piuttosto avvicinate ai sindacati professionali” (PERGOLESI, Ferruccio. Corporazioni. In: D’AMELIO, Mariano. Nuovo digesto italiano. Torino: UTET, 1936, p. 253). 394 GIERKE, Community... cit., p. 243. 395  LEONARDO, Rodrigo Xavier. As associações sem fins econômicos. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2014, p.29 e seguintes.

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jurídicos obrigacionais paralelos, tais como nas sociedades. Como defendido anteriormente, em geral, o associado não é titular de nada além do que uma posição jurídica de associado que é exercida diretamente em relação à associação, sem perpassar pelos demais associados. O associado, do mesmo modo em geral, não tem quaisquer direitos sobre os bens, patrimoniais ou extrapatrimoniais, da associação, o que é especialmente explicitado nos dispositivos legais que tratam da dissolução da associação sem fins econômicos (art. 61 e parágrafos do CC). Ao se sustentar que o substrato corporativo integra o núcleo do suporte fático das associações como elemento completante, retoma-se a tradicional distinção entre societas e universitates personarum, verificada pela doutrina romanista, ainda que em um sentido próprio ao tempo contemporâneo. Parece ter sido esta a mens legislatoris no Código Civil de 2002, verificável até mesmo sob o aspecto topológico do Código; enquanto as associações são tratadas na parte geral da lei civil, sob o título das pessoas jurídicas, as sociedades são tratadas no direito da empresa, sob o título das Sociedades. 166

O modelo adotado pelo Código Civil brasileiro, portanto, resgata uma tradição distintiva entre o contrato e a pessoa jurídica projetada na diferença estabelecida entre societas (marcada pelo vínculo contratual) e universitates personarum (identificada pelo vínculo corporativo),396 por mais que os estudos críticos de história de direito relativizem as possibilidades desta orientação teórica.397 396  Nesse sentido, seguem as reflexões de Galgano: “Questa considerazione duplice del fenomeno associativo – come contratto e, al tempo stesso, come persona – appartiene ad una fase recente della storia del pensiero giuridico in materia: c’era, prima di essa, una fase nella quale operava il convincimento che i concetti di contratto e di persona giuridica si ponessero tra loro in rapporto di reciproca esclusione: o c’era, in difetto della personalità giuridica, nient’altro che un rapporto contrattuale fra i più soggetti – e come tale veniva, in particolare, qualificata l’associazione non riconosciuta – oppure c’era una persona giuridica o, secondo il più diffuso linguaggio dell’epoca, un ‘ente morale’; e si era, in tal caso, in presenza di una figura affatto estranea al diritto dei contratti. Il vincolo che univa tra loro i membri del gruppo cessava d’essere un rapporto contrattuale per diventare un rapporto ‘corporativo’: la posizione di parte del contratto veniva sostituita dalla condizione di ‘appartenenza’ alla persona giuridica; ed a questa condizione si guardava come ad uno status personale, da assimilare dalla posizione di membro delle comunità necessarie, quale la cittadinanza” (GALGANO, Delle associazioni non riconosciuti e dei comitati. Roma : Foro Italiano, 1976, p. 23-24). No Brasil, o assunto foi enfrentado por MORAES, Walter. Sociedade civil estrita. São Paulo: Ed. RT, 1987. p. 5-6. 397  Essa diferença é essencial. Tal como anota Galgano, no seu sentido histórico, verificava-se uma dicotomia entre a societas, pertencente ao direito dos contratos, e as universitates, pertencentes aos direito das pessoas, que era completamente diversa, por consequência, da dicotomia identificada no Código

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Esse resgate não é completo, todavia, na medida em que o Código Civil também reconhece a personificação de entidades fundadas em contratos. A organização corporativa nas associações serve também para diferenciar as relações internas (intra-associativas, entre associados e associação) e as relações externas (extra-associativas, entre associados e o mundo externo). Pela organização é que se estabelece um mecanismo de deliberação e de ação coletiva diferenciado daquele individual, pertinente a cada um dos associados. A organização viabiliza a atuação da associação perante os demais sujeitos de direito, superando-se a relação individualista entre ato – direito subjetivo para se verificar uma relação entre ato – ação ou ato – atividade que não se explica pela mera representação da associação pelos associados, mas pela imputação à associação dos efeitos decorrentes de um comportamento das pessoas legitimadas a desenvolver as atividades associativas.398 Nesse aspecto, a obra de Pontes de Miranda também foi precisa ao diferençar com rigorosidade a noção de representação da compreensão de uma imputação à associação dos atos praticados pelos seus órgãos (ainda que um órgão possa ser composto, apenas e tão somente, por uma pessoa natural).399

3.3. A busca de finalidades não econômicas Por fim, o núcleo do suporte fático se completa com outro elemento fático: a união entre os associados deve ter por objetivo o desenvolvimento de Civil em vigor: “(...) della persona giuridica l’associazione costituiva nient’altro che una modalità strutturale; essa era, in particolare, quella specie di persona giuridica che si definiva di e che si distingueva dalla fondazione – ulteriore modalità strutturale della persona giuridica – per il solo fatto d’avere, quale , una collettività organizzata di individui. Si erano sottolineate così le analogie tra associazioni e fondazioni – in quanto specie, entrambe, del medesimo genere – e si erano accentuate, per contro, le differenze tra associazione e società, in quanto appartenenti a generi diversi: al genere della persona giuridica l’una; al genere del contratto l’altra” (GALGANO, idem, p. 24). No direito brasileiro, o assunto é enfrentado por LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 2. ed. Rio de Janeiro: Max Limonad, 2002. 398  Sobre o assunto, cf. FERRO-LUZZI, Paolo. I contratti associativi. Ristampa inalterata. Milano: Giuffrè, 1976. p. 215, 245, 284, 285, 287, 288 e 289. 399  “Ato jurídico do órgão é ato da pessoa jurídica, e não de quem é órgão, sem se precisar pensar em representação, na qual o ato do representante se faz ato do representado (E. Rhomberg, Körperschaftliches Verschulden, 30). Órgão, núncio e representante são três figuras distintas. O órgão da pessoa jurídica é parte dela, como o cérebro é parte da pessoa física. Não representa, propriamente; pratica o ato da pessoa jurídica (...) A pessoa jurídica pode ter o órgão e ter representante. Órgão não representa, presenta” (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado cit. .t. I, p. 331-332).

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finalidades não econômicas.400 Segundo Marcos Bernardes de Mello, a particular finalidade que caracteriza a associação insere-se, justamente, no substrato corporativo.401 Podemos interpretar isso pelo fato de que, na associação – ao contrário do que ocorre nas sociedades –, tendencionalmente não se distingue uma finalidade dos associados em relação a uma finalidade buscada pela associação. Na sociedade, por mais que o contrato (e, nele, sobretudo o objeto social) promova certa unidade, a posição individual de cada um dos sócios sempre se mantém, até mesmo pela diferenciação entre o lucro objetivo – cujo alcance é de finalidade comum – e o lucro subjetivo, que é absolutamente individual, alcançado no momento de sua distribuição. Percebe-se, assim, a diferença entre a finalidade social e a finalidade corporativa. O legislador brasileiro optou por inserir, como elemento completante do núcleo do suporte fático, o desenvolvimento de uma finalidade comum que, além de ser corporativa, deve ser destituída de economicidade. 168

Para interpretar essa peculiaridade do direito brasileiro, algumas precisões conceituais devem ser feitas. O art. 53 do CC brasileiro não procura caracterizar a associação pela delimitação de seu objeto. A caracterização se dá mediante a demarcação de sua finalidade. Mostra-se preciso, portanto, distinguir o objeto da organização da sua finalidade ou escopo. O objeto social apresenta a atividade ou o conjunto de atividades a ser 400  Aqui há uma diferença marcante entre a estruturação das associações no Código Civil de 2002 e a concepção de Pontes de Miranda. Para Pontes de Miranda, a presença ou a ausência de finalidade econômica não deveria servir de critério para uma configuração essencial das associações, sendo absolutamente possível a existência de associações com finalidades econômicas. Esse autor chega a qualificar a opção suíça de fazer depender a associação da inexistência de fins econômicos (similar à adotada pelo Brasil no atual Código Civil) como algo arbitrário: “Nem as distinguiria o fim econômico ou não econômico: há associações de fim não-econômico e associações de fim econômico; sociedades de fim econômico e sociedades de fim não-econômico (...) No direito suíço, a atitude do legislador foi, até certo ponto, arbitrária: considerou associação qualquer união de pessoas, corporativamente, sem fins econômicos” e, mais uma vez ressalta: “A sociedade de regra não corporifica; a associação é essencialmente corporativa. Daí falar-se de substrato corporativo da associação” (PONTES DE MIRANDA. Idem, t. I, p. 319). 401  Trata-se de ideia exposta pelo Prof. Marcos Bernardes de Mello em conversa informal com o autor a respeito do tema que, a despeito de não ter sido publicada, merece ser referenciada.

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desenvolvida pela entidade e o escopo, por sua vez, a finalidade no desenvolvimento daquela (s) atividade (s).402 Aqui se pode verificar uma diferença importantíssima entre as sociedades e as associações. Conforme defendemos anteriormente, “se, para caracterizar o subtipo das sociedades, o legislador flagrantemente fixou os dados referentes ao objeto e ao escopo, no que diz respeito ao subtipo das associações em sentido estrito, sua caracterização se dá meramente pelo escopo sob uma perspectiva negativa, qual seja, a busca de ‘fins não econômicos’ (art. 53, caput, do CCB)”.403 Com isso, o legislador brasileiro oportunizou a um incontável número de diversas organizações absolutamente diferentes entre si, a pertinência ao mesmo subtipo associativo, não obstante o desenvolvimento de atividades muito diferentes.404 As associações de pais e mestres não são mais nem menos associações do que aquelas existentes entre determinado grupo de comerciantes, destinado ao desenvolvimento de atividades sem fins econômicos (tal como realizado pelas associações comerciais, por exemplo). Mas o que seriam finalidades não econômicas? Para responder a essa questão, em primeiro lugar, mostra-se importante diferenciar a chamada finalidade lucrativa da finalidade econômica. Note-se que o art. 53 do CC brasileiro veda às associações o desenvolvimento de escopos econômicos e não de escopos lucrativos. A economicidade de uma entidade reflete algo maior do que a mera lucratividade. A economicidade ocorre quando há atividade voltada para a geração de riquezas que são encaminhadas à satisfação de interesses econômicos, sendo ambos passíveis de avaliação pecuniária. 402  A distinção é realizada por ZANELLI, Enrico. La nozione di oggetto sociale. Milano: Giuffrè, 1962, p. 54 e ss. Noutros autores, todavia, a distinção não é claramente perceptível. Cite-se, nesse sentido, PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. t. 49, p. 12. 403  Cf. LEONARDO, As associações em sentido estrito no direito privado... cit., p. 113 e ss. 404  Ibidem. No mesmo sentido, a reflexão de Massimo Basile sobre o direito italiano: “L’ampia cerchia delle attività esercitabili in forma associata, e degli interessi realizzabili per loro tramite, fa dell’associazione una categoria tanto larga da potervi ricondurre una molteplicità di figure, rispetto alle quali la disciplina contenuta nel titolo II del Libro primo svolge il ruolo di normativa generale o di principio” (BASILE, op. cit., p. 81).

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Nesse campo inserem-se tanto as sociedades em que há apropriação dos ganhos para posterior distribuição (como ocorre na maior parte dos subtipos societários) quanto nas situações em que se busca a direta aferição desses benefícios econômicos pelos sócios (conforme ocorre nas sociedades cooperativas). Em ambos os subtipos societários verifica-se o escopo econômico.405 Nas sociedades cooperativas, por exemplo, não haveria verdadeiro escopo lucrativo.406 Em direito brasileiro, nada impede que a associação busque angariar lucros mediante o desenvolvimento de atividades econômicas. Muito pelo contrário. Há uma explícita tendência, sobretudo na legislação extravagante, de privilegiar as organizações associativas com potencial de auto-sustentação. Ademais, quando o art. 54 do CC determina que, sob pena de nulidade, o estatuto conterá as fontes de recursos para manutenção da associação indica-se, de forma implícita, a indispensabilidade de uma sustentação econômica para que os fins não econômicos possam ser atingidos. Essa fonte, não necessariamente, será limitada às contribuições dos associados.407 170

Alguns autores italianos, inclusive, vão além. Para Francesco Galgano e Giuseppe Tamburrino nada impediria que, para a realização de um escopo 405  No caso das cooperativas há escopo econômico: “O método de atividade, na sociedade cooperativa, consiste na prática de atos que diminuam o custo da produção, de jeito a haver vantagem, para os sócios, que são os consumidores, ou que levem à obtenção de melhor preço para os produtos, pois que produtores são os sócios, ou a conclusão de empréstimos com menores interesses (...). A complexidade do suporte fáctico das sociedades cooperativas resulta de existir o elemento econômico sem a finalidade capitalística. A participação caracteriza-se por sua pessoalidade e êsse fundamento pessoal atravessa, com múltiplas consequências, o todo organizativo da sociedade cooperativa” (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, cit., t. 49, p. 432-433). 406  No direito italiano o debate doutrinário se deu, como se disse, a partir da interpretação do que vem a ser o dividerne gli utili indicado no art. 2247 do Codice Civile. Para Simonetto, “L’utile infatti corrisponde a una ben definita e precisa aliquota del patrimonio sociale, aliquota che ha appunto carattere collettivo o sociale e non può essere un diretto vantaggio del socio senza perdere le sue caratteristiche essenziali e rendersi irriconoscibile o meglio senza non essere più se medesima. L’utile è – secondo la nostra legge – un margine attivo che può essere distribuito e che può anche essere accantonato a riserva, ma che è innanzitutto una positiva quantità di ricchezza registrata o registrabile nel bilancio di esercizio annuale sotto tale denominazione ben precisa” (SIMONETTO, Ernesto. Società e mutualità. Rivista di diritto civile. Padova, ano X, n.4, Lug/Ago 1964, p. 401). Segundo informa Buonocore, a legislação extravagante italiana contemporânea reconhece, em inúmeros momentos, a possibilidade da angariação e distribuição de lucro nas cooperativas, tornando o debate restrito a um determinado tempo histórico (BUONOCORE, Vincenzo. L’impresa. Torino : Giappichelli, 2002, p. 77-80). Em sentido absolutamente diverso, figura o modelo alemão, que reconhece a existência de associações com e sem fins econômicos segundo estruturação personalista ou corporativa. 407  Cf. LEONARDO, As associações em sentido estrito no direito privado... cit., p. 126 e ss.

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sem fins econômicos, a associação exerça, profissionalmente, atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de produtos ou serviços. Nesse sentido, para esses autores, seria absolutamente possível pensar, portanto, em uma associação em sentido estrito empresária.408 A legislação especial procura esmiuçar, com precisão cada vez maior, o que se deve entender pela ausência de fins econômicos e, nesse processo, acabou reconhecendo e, por vezes, criando uma série de subtipos e qualificações jurídicas para as associações, como as associações de finalidades públicas (Lei 91/1935), as associações qualificadas como organizações sociais (Lei 9.637/1998) e as associações qualificadas como organizações sociais de interesse público (Lei 9.790/1999).

408  Segundo Galgano: “Non è, dunque, valida ragione per negare all’associazione la qualità di imprenditore la circostanza che essa si proponga, con l’esercizio d’una attività economica, la diretta realizzazione d’uno scopo di natura ideale o, comunque, non economica: fra i casi ora indicati – dell’ente pubblico che, mediante l’esercizio d’una impresa, si propone di industrializzare una zona depressa o di combattere un’ingiustificata ascesa dei prezzi o di incitare le classi sociali al risparmio – e quelli precedentemente considerati – dell’associazione che tende, attraverso un’attività editoriale, a diffondere una data forma di cultura o che si fa impresaria teatrale per dare alla città un teatro o che, per soddisfare la passione dei ‘tifosi’ organizza pubblici spettacoli calcistici – esiste una manifesta identità di situazioni. Ed il concetto di impresa essendo un concetto unitario – il quale non si caratterizza diversamente a seconda che l’imprenditore sia un soggetto privato oppure un ente pubblico – l’identità di situazioni comporta identità di soluzioni: come la presenza d’una impresa non è esclusa dal fatto che l’ente pubblico agisca per la diretta realizzazione d’una pubblica finalità, così essa non può ritenersi esclusa dalla circostanza che l’associazione privata si proponga la diretta realizzazione d’uno scopo di natura ideale o non economica”. (GALGANO, Delle associazioni... cit., p .92-93). No mesmo sentido, para Tamburrino: “(...) permette di rispondere affermativamente al quesito se una associazione possa in via indiretta rispetto al fine svolgere attività economica ed esercitare una impresa commerciale per devolvere i lucri ai propri fini assistenziali o comunque ricreativi e non economici” (TAMBURRINO, op. cit., p. 132). A questão é reproposta em recente obra de Buonocore ao fundar na economicidade (e não na distribuição de lucros) o reconhecimento de um dos elementos essenciais para a verificação da atividade empresarial: “Il metodo economico non si contrappone al metodo lucrativo e la produzione del lucro non ca (sic.) confusa con la destinazione del lucro stesso (...) Il che permette di individuare nel metodo economico, il minimum perché si possa parlare di impresa, senza rinnegare che il lucro è il fine naturale di ogni imprenditore o, se si vuole, può naturalmente prodursi in conseguenza dell’esercizio di un’attività economica (...)” (BUONOCORE, op. cit., p. 88-89). No direito português, em linhas gerais, o mesmo posicionamento é defendido por ABREU, Jorge Manuel Coutinho. Da empresarialidade (as empresas no direito). Coimbra: Almedina, 1996. p. 163-164.

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AS ATUAIS FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO Thaís G. Pascoaloto Venturi 409 Sumário: 1. Noções introdutórias; 2. As atuais funções da responsabilidade civil; 3. Os problemas e as perspectivas do caráter punitivo-pedagógico da responsabilidade civil; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.

1. Noções introdutórias A regulação tradicionalmente empreendida pelo direito da responsabilidade civil encontra sua máxima síntese na ideia de reequilíbrio das relações sociais, a partir da violação dos direitos e da geração de danos. Assim sendo, é essencialmente pela função da reparação410 de danos que a noção de justiça como equilíbrio é estabelecida. A reparação como função precípua do direito da responsabilidade civil, em razão da própria forma de construção do sistema (pautada no binômio dano/reparação), sustentou-se inicialmente na exigência de se reagir diante de um dano que afetasse a esfera individual e patrimonial da pessoa.411 Assim, 409  Doutora e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Civil e Direito Administrativo (Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar). Professora dos cursos de Pós-graduação do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e da Universidade Positivo (UP). Professora das Faculdades de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) e da Universidade Positivo (UP). Estágio de doutoramento – pesquisadora Capes – na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal. Membro do Virado de Copérnico grupo interinstitucional de pesquisa e estudo de Direito Civil. Membro do Colegiado da Faculdade de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL). Advogada. [email protected]. 410  Etimologicamente, a palavra “reparação” nos reporta ao sentido de restauração, indenização, ressarcimento de algo que sofreu alterações e deverá ser recomposto ao seu estado originário (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa, 3a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 1.743). 411  Afirma Cesare Salvi: “La nozione di ressarcimento, come figura generale e unitaria, nasce, nella fase di formazione del Diritto moderno, parallelamente a quella, altrettanto generale e unitaria, di danno. Alla base è l’esigenza di reagire nel modo più adeguato, e con una regola di carattere generale, ai fatti che determinano una lesione della sfera giuridica individuale, considerata sotto il profile della lesione della proprietà”. E continua o referido autor: “Nella fase di formazione del Diritto moderno, due idee si contendono il campo. La prima muove dall’identificazione del danno con la differenza negativa nel patrimônio del danneggiato. La finalità riparatoria è considerata pienamente soddisfatta attraverso il pagamento di una somma de denaro equivalente a quella differenza. (...). L’altra idea di risarcimento, che caratterizza la fase formativa del moderno diritto privato, muove invece da um modello reale o ma-

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toda a estrutura reparatória do direito da responsabilidade civil foi pensada na Modernidade, precipuamente sob uma ótica designadamente patrimonialista, dado que “o modelo patrimonial de dano e o ressarcimento através do pagamento do equivalente monetário são apropriados na sua totalidade, revelando-se razoáveis a uma economia de mercado, na qual o dinheiro é fator de mensuração de cada bem e prestação”.412 Como anota Marinoni: Como está claro, a universalização da tutela pelo equivalente e da indenização em dinheiro reflete um ordenamento jurídico neutro em relação aos direitos e à realidade social. A tutela específica, por supor uma consideração articulada e diferenciada dos interesses e das necessidades pelos quais se pede a tutela, não se conciliava com os princípios da abstração dos sujeitos e da equivalência dos valores, próprios do Direito liberal.413

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teriale del danno, identificato non con la differenza patrimoniale, ma con la distruzione o l’alterazione del bene fisico. L’essenza del risarcimento, parallelamente, è vista nella ricostituzione in natura della situazione materiale. Importanti sistemi giuridici recepiscono questa idea: che è codificata nel BGB, e fu alla base dei diritti dei Paesi socialisti. La prassi non tarda però a mostrare il carattere ideologico della scelta della riparazione in natura come principio generale: nella gran parte dei casi essa non è possibile, e, se possibile, non interessa al creditore. In concreto, anche, in questi sistemi la prevalenza del risarcimento pecuniario e del modello patrimoniale di danno è indiscussa” (La Responsabilità Civile, cit., 2a ed., pp. 243-244). Tradução livre: “A noção de ressarcimento, como figura geral e unitária, nasce, na fase de formação do Direito moderno, paralelamente àquela, como geral e unitária, do dano. À base está a exigência de reagir de forma mais adequada, e com uma regra de caráter geral, aos fatos que determinam uma lesão dessa esfera jurídica individualmente considerada sob o perfil da lesão da propriedade. Na fase de formação do Direito moderno, duas ideias têm concorrido. A primeira parte da identificação do dano com a diferença negativa do patrimônio do lesionado. A finalidade reparatória é considerada plenamente satisfeita com o pagamento de uma quantia de dinheiro equivalente àquela diferença. (...). A outra ideia de ressarcimento, que caracteriza a fase formativa do moderno direito privado, parte, ao contrário de um modelo real ou material do dano, identificado não com a diferença patrimonial, mas com a destruição ou alteração do bem físico. A essência do ressarcimento, paralelamente, é vista na reconstituição in natura da situação material. Importantes sistemas jurídicos incorporam essa ideia: que é codificada no BGB, e foi a base dos direitos dos Países socialistas. A prática não tarda, no entanto, a mostrar o caráter ideológico da escolha da reparação in natura como princípio geral: na grande parte dos casos não é possível, e, se possível, não interessa ao credor. Em concreto, mesmo nestes sistemas a prevalência do ressarcimento pecuniário e do modelo patrimonial do dano é indiscutível”. 412  Cesare Salvi, La Responsabilità Civile, cit., 2a ed., pp. 244-245: “Il modelo patrimoniale di danno e il risarcimento attraverso il pagamento dell’equivalente monetario si attagliano in pieno, rivelandosi congrui a un’economia di mercato, nella quale il denaro è fattore do misurazione di ogni bene e prestazione” (tradução livre). 413  Luiz Guilherme Marinoni, Do Processo Civil Clássico à Noção de Direito à Tutela Adequada ao Direito Material e à Realidade Social, Academia Brasileira de Direito Processual Civil (disponível em

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Em que pese à prevalência da solução reparatória pelo equivalente pecuniário, certo é que, na experiência contemporânea, as noções de patrimonialidade do dano e ressarcimento pelo equivalente monetário foram sendo relativizadas. A própria concepção do dano gradativamente vem sofrendo relevantes alterações, diante da necessidade iminente de proteção dos valores essenciais das pessoas. Assim, a noção jurídica de dano passa a ser concebida como a violação a um interesse tanto relativo ao patrimônio da pessoa como àqueles valores que se referem à sua própria personalidade, e que importam um desequilíbrio das próprias relações jurídicas, visto que tanto o patrimônio como a pessoa são protegidos pelo Direito. Muito embora venham sendo preconizadas outras formas de tutela contra o dano que não exclusivamente a pecuniária, parece indiscutível e inegável a prevalência, ainda hoje, da reparação pecuniária.

2. As atuais funções da responsabilidade civil Com efeito, no âmbito das funções da responsabilidade civil, a reparação seria o gênero e a indenização e a compensação seriam suas espécies, ainda que o termo “indenização” seja usado indistintamente em nosso ordenamento jurídico.414 É importante destacar a diferença de sentido dos termos “compensação” e “indenização”, em virtude da confusão terminológica que muitas vezes ocorre em razão do uso indiscriminado de um e outro.415 http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Luiz%20G%20Marinoni%20(9)%20-%20formatado.pdf, acesso em 10.09.2014, p. 23). 414  . A expressão “indenização” é utilizada em sentido amplo pela própria Constituição Federal brasileira, sendo indistintamente utilizada para representar forma de tutela repressiva contra danos patrimoniais ou morais (art. 5o, X). 415  Conforme explica Yussef Said Cahali: “No dano patrimonial busca-se a reposição em espécie ou em dinheiro pelo valor equivalente, de modo a poder-se indenizar plenamente o ofendido, reconduzindo o seu patrimônio ao estado em que se encontraria se não tivesse ocorrido o fato danoso; com a reposição do equivalente pecuniário opera-se o ressarcimento do dano patrimonial. Diversamente, a sanção do dano moral não se resolve numa indenização propriamente, já que indenização significa eliminação do prejuízo e das suas consequências, o que não é possível quando se trata de dano extrapatrimonial; a sua reparação se faz através de uma compensação, e não de um ressarcimento; impondo ao ofensor a obrigação de pagamento de uma certa quantia de dinheiro em favor do ofendido ao mesmo tempo em que agrava o patrimônio daquele, proporciona a este uma reparação satisfativa. Trata-se, aqui, de reparação do dano moral. Assim, da responsabilidade civil do agente resulta para o ofendido o direito à indenização do dano (sentido genérico), para que se resolve ou pelo ressarcimento do dano

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Assim, “indenização” conduz à ideia de restauração, de ressarcimento de algo que sofreu alguma mutação e que deve ser recomposto ao seu estado originário.416 O significado da palavra “indenizar” (que provém do Latim, indene) importa reconstituição do patrimônio ao seu estado anterior. O restabelecimento do equilíbrio por meio da função indenizatória tem caráter nitidamente patrimonial, pois apenas os bens materiais são suscetíveis de serem recompostos ao seu estado originário, isto é, ao estado anterior ao dano, ainda que por via de parâmetros de equivalência entre o dano e a reparação.417 A concepção da indenização está pautada no princípio da restitutio in integrum, ou da reparação completa. Assim, no caso de danos patrimoniais, dúvida não há em se fixar o quantum indenizatório, que deve ser precisamente equivalente ao dano, caso não seja possível a reparação in natura.

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Diferentemente, a função compensatória busca o reequilíbrio social não pela reposição do bem violado ao seu estado anterior, mas, sim, por alguma satisfação que possa contrabalançar o mal causado, muito embora este não possa ser apagado. Etimologicamente, a palavra “compensar” (do Latim, compensare) significa contrabalançar, equilibrar ou, ainda, “reparar o dano, o incômodo etc., resultante de; contrabalançar, contrapesar”.418 Tratando-se de prejuízos provocados a bens extrapatrimoniais, a forma de restabelecer a situação anterior ao dano é matéria bastante complexa, patrimonial ou pela reparação do dano moral” (Dano Moral, 3a ed., São Paulo, Ed. RT, 2005, p. 44). Afirma Caio Mário da Silva Pereira: “A ideia de reparação, no plano patrimonial, tem o valor de um correspectivo, e liga-se à própria noção de patrimônio. Verificado que a conduta antijurídica do agente provocou-lhe uma diminuição, a indenização traz o sentido de restaurar, de restabelecer o equilíbrio e de reintegrar-lhe a cota correspondente do prejuízo. Para a fixação do valor da reparação do dano moral não será esta a ideia-força. Não é assente na noção de contrapartida, pois que o prejuízo moral não é suscetível de avaliação em sentido estrito. Conseguintemente, hão de distinguir-se as duas figuras, da indenização do prejuízo material e da reparação do dano moral; a primeira é reintegração pecuniária ou ressarcimento stricto sensu, ao passo que a segunda é sanção civil direta ao ofensor da reparação da ofensa, e, por isto mesmo, liquida-se na proporção da lesão sofrida” (Instituições de Direito Civil, 15a ed., vol. II, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 288). 416  . Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa, cit., 3a ed., p. 1.743. 417  Clayton Reis, Os Novos Rumos da Indenização do Dano Moral, Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 125. 418  . Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa, cit., 3a ed., p. 512.

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sendo praticamente impossível referir-se a uma forma precisa de reposição do equivalente absoluto, isto é, nos mesmos contornos do princípio da reparação integral.419 Dessa maneira, o efeito compensatório revela não uma pretensão propriamente ressarcitória, no sentido de se recompor ao estado originário tudo aquilo que a vítima perdeu (em termos patrimoniais), mas, sim, proporcionar-lhe uma forma de satisfação que possa amenizar suas perdas em razão da ocorrência da conduta danosa. Por esse motivo, a compensação vincula-se propriamente aos danos de caráter não patrimonial, que, por sua abstração e subjetividade, não permitem uma reparação no sentido de recomposição ao status quo ante, ou seja, ao estado anterior, como se o dano nunca tivesse existido. Sob esse aspecto, a função compensatória busca “satisfazer” de alguma forma aqueles sujeitos que tiveram atingido seu núcleo do “ser como pessoa”, isto é, ofensa à sua esfera extrapatrimonial. Assim, a responsabilidade civil, por meio de sua função compensatória, busca viabilizar à vítima que sofreu um dano em sua subjetividade alguma forma de satisfação idônea a compensar o mal sofrido.420 Contudo, conforme já tivemos a oportunidade de anotar,421 a insuficiência da função reparatória da responsabilidade civil, sobretudo no que diz respeito à fixação de um montante indenizatório na hipótese de danos extrapatrimoniais, tem levado ao desenvolvimento de um caráter punitivo-pedagógico no âmbito de suas funções, e que a cada dia vem ganhando mais adeptos,

419  Clayton Reis, Os Novos Rumos da Indenização do Dano Moral, cit., p. 111. 420  Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana: uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, cit., p. 145. 421  Thaís Goveia Pascoaloto Venturi, A Responsabilidade Civil e sua Função Punitivo-Pedagógica no Direito Brasileiro, Curitiba, dissertação de Mestrado apresentada junto à Faculdade de Direito da UFPR, 2006 (226 pp.).

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anto em sede doutrinária422 como jurisprudencial.423 Tal caráter punitivo-pedagógico se justificaria por desempenhar uma dúplice função: a de punir o agente causador do dano e, consequentemente, de servir como mecanismo de dissuasão a comportamentos antissociais por meio de sua exemplaridade, propiciando de forma reflexa um efeito de prevenção geral e especial relativamente a determinados comportamentos sociais.424

3. Os problemas e as perspectivas do caráter punitivo-pedagógico da responsabilidade civil Se, por um lado, hoje resta superada no Brasil a discussão sobre a viabilidade da plena reparabilidade dos chamados danos extrapatrimoniais (controvertendo-se apenas no que diz respeito aos critérios para sua adequada quantificação), por outro, há grande controvérsia quanto à possível inserção de um caráter punitivo-pedagógico nas indenizações por danos extrapatrimoniais ou até mesmo patrimoniais. 180

422  Na doutrina estrangeira, dentre os adeptos da ideia da indenização punitiva destacam-se: Georges Ripert, A Regra Moral nas Obrigações Civis, cit., 2a ed., 2002; André Tunc, La Responsabilité Civile, cit., 2a ed., 1989; Suzanne Carval, La Responsabilité Civile dans sa Fonction de Peine Privée, Paris, LGDJ, 1995; António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Coimbra, Livraria Almedina, 1997; e Bernd-Rüdiger Kern, “A função de satisfação na indenização do dano pessoal: um elemento penal na satisfação do dano?”, Revista de Direito do Consumidor 33, São Paulo, Ed. RT, janeiro-março/2000. Na doutrina nacional, citem-se: Carlos Alberto Bittar, Reparação Civil por Danos Morais, 3a ed., São Paulo, Ed. RT, 1998; Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, 2a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1990; e Sérgio Cavalieri, Programa de Responsabilidade Civil, cit., 8a ed., 2008. 423  Nesse sentido, destacam-se no âmbito do STJ reiterados julgamentos nos quais se ressalta que: “Cabe ao STJ o controle do valor fixado a título de indenização por dano moral, que não pode ser ínfimo ou abusivo, diante das peculiaridades de cada caso, mas sim proporcional à dúplice função deste instituto: reparação do dano, buscando minimizar a dor da vítima, e punição do ofensor, para que não volte a reincidir” (STJ, 2a Turma, REsp 474.786-RS, rela. Min. Eliana Calmon, DJU 7.6.2004, p. 185. Em similar sentido, ainda, relatados pela mesma Ministra: REsp 696.850-RO, DJU 19.12.2005, p. 349; REsp 575.023-RS, DJU 21.6.2004, p. 204; e REsp 487.749-RS, DJU 12.5.2003, p. 298. Relatados pelo Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, citam-se os seguintes julgados da 4a Turma do STJ: REsp 183.508-RJ, DJU 10.6.2002, p. 212; REsp 389.879-MG, DJU 2.9.2002, p. 196; e REsp 173.366-SP, DJU 3.5.1999 p. 152. 424  “A indenização punitiva (...) consiste na soma em dinheiro conferida ao autor de uma ação indenizatória em valor expressivamente superior ao necessário à compensação do dano, tendo em vista a dupla finalidade de punição (punishment) e prevenção pela exemplaridade da punição (deterrence) opondo-se – nesse aspecto funcional – às compensatory damages, que consistem no montante indenizatório compatível ou equivalente ao dano causado, atribuído com o objetivo de ressarcir o prejuízo” (Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, “Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito Brasileiro)”, Revista CEJ 28/15-32, Brasília, janeiro-março/2005).

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A falta de critérios prefixados em nosso ordenamento para estipulação do quantum indenizatório nas hipóteses de danos extrapatrimoniais abriu caminho para que a jurisprudência brasileira passasse a integrá-los, aludindo-se, então, à gravidade do dano, ao grau de culpa do ofensor, à capacidade econômica da vítima e à capacidade econômica do ofensor. Assim, por meio não só da valoração das chamadas perdas e danos (do que se ocupa a clássica função reparatória da responsabilização civil), mas também mediante a desvaloração da conduta do infrator (grau de sua culpabilidade, sua capacidade econômica e a intensidade da lesão), passou-se a disseminar a aplicação, em nossos tribunais, ainda que de maneira disfarçada ou subliminar, da chamada função punitiva da responsabilidade civil.425 Os motivos da aplicação do caráter exemplar426 da responsabilidade civil se explicam, sobretudo, em razão da inefetividade da clássica função ressarcitória, como anotam Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler: As razões para a volta do caráter exemplar da responsabilidade civil não são difíceis de explicar, resultando, na maior parte dos casos, da própria insuficiência das respostas oferecidas pela responsabilidade civil como mecanismo meramente ressarcitório, com o montante da indenização limitado ao quantum efetivamente sofrido, segundo os cálculos da teoria da diferença, pela qual o dano resulta da diminuição do patrimônio do credor e aquele que teria se a obrigação fora exatamente cumprida. Essa fórmula de cálculo (na verdade, condicionante do conceito jurídico de dano), conquanto apropriada para o comum dos casos no dano patrimonial, é inadequada – e mesmo inservível – para o dano extrapatrimonial, terreno que continua pantanoso, pois parece impossível o encontro de critério unitários, gerais e abstratos, aplicáveis à generalidade das situações. (...). Agregue-se a isso a tendência de retratação do direito penal, que, segundo 425  Prova disso pode ser extraída do Enunciado 379 editado pelo Centro de Estudos Judiciários/ CEJ do Conselho da Justiça Federal/CJF no ano de 2006, por ocasião da IV Jornada de Direito Civil: “Art. 944: O art. 944, caput, do Código Civil não afasta a possibilidade de se reconhecer a função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil”. 426  Conforme Paulo Meira Lourenço, não obstante a expressão exemplary damages seja empregada como sinônima de punitive damages, importa referir que aquela tem uma conotação social e preventiva da indenização punitiva. Assim sendo, seria mais adequado conceber as exemplary damages como uma subcategoria das punitive damages (“Os danos punitivos”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa XLIII/1.080, n. 2, Coimbra, Coimbra Editora, 2002).

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os estudiosos, deve ser limitado às ofensas mais graves à ordem social, abrindo, então, espaço para a retomada do caráter sancionador da responsabilidade civil.427 Em verdade, por detrás dos chamados “novos danos” (notadamente em áreas que afetam os interesses da coletividade) muitas vezes estão ações dolosamente idealizadas por aqueles que se utilizam da lógica custo/benefício para a obtenção de benefício econômico. Nesses casos pode-se perceber notória diferença entre eventuais indenizações a serem pagas na mera “extensão do dano” e o lucro auferido pelos infratores.428 Assim, como forma de fortalecer a reparação dos danos extrapatrimoniais e incutir a necessária punição e a dissuasão futura, preconiza-se a majoração da quantia indenizatória429 pela qual supostamente se implementaria a aplicação do caráter punitivo-pedagógico da responsabilidade civil.

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Parece indiscutível que a função punitivo-pedagógica pode traduzir eficiente fator de desestímulo, na medida em que objetiva a dissuasão de condutas ilícitas e antissociais por meio da punição do ofensor, conquistando especial relevo na busca por instrumentos aptos a fortalecer a ideia de reparação do dano, especialmente em sede dos danos extrapatrimoniais. Não obstante os âmbitos de aplicação das funções de reparação e punição serem por vezes confundidos, justamente pela ausência de limites rígidos, a função punitiva constitui mero núcleo de fortalecimento para a efetividade 427  Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, “Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito Brasileiro)”, cit., Revista CEJ 28/21. 428  . “Daí a razão pela qual as características funcionais dos punitive damages (a punição e a exemplaridade) têm atraído os estudiosos, insatisfeitos com a linearidade do princípio da reparação na sociedade atual (...). Muitas empresas em escala massiva amparam a continuidade de sua produção (e dos danos causados) numa espécie de raciocínio por custo/benefício entre o lucro auferido pela disposição do produto no mercado e o custo da indenização a ser paga ao indivíduos que ingressam em juízo, buscando ressarcimento pelos danos individualmente sofridos” (Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, “Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito Brasileiro)”, cit., Revista CEJ 28/16). 429  Como afirma Maria Celina Bodin de Moraes: “A razão de ser da expansão da tese punitiva em nosso ordenamento, em sua origem, talvez possa ser conjeturada no fato de que, anos atrás, o pagamento pela dor sofrida era, com frequência, considerado imoral (o chamado ‘dinheiro da dor’), de modo que foi preciso encontrar outra motivação para evitar que as condenações pela lesão a direitos extrapatrimoniais continuassem a ter caráter meramente simbólico. Nesta ordem de ideias, considerou-se que a estrutura de pena privada seria fundamento bastante aceitável diante de certas categorias de danos extrapatrimoniais” (“Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas”, Revista Trimestral de Direito Civil 18/52, Rio de Janeiro, Padma, abril-junho/2004).

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da função de reparação dos danos, sendo, portanto, inconfundíveis ambas as funções.430 Assim, a função punitiva não se confunde com a função de reparação de danos, ainda que pragmaticamente nem sempre seja fácil distingui-las.431 A punição pedagógica representa um meio sancionatório da violação de determinadas normas de conduta que protegem direitos especialmente tuteláveis em virtude de sua própria natureza e superioridade (v.g., direitos inerentes à personalidade, à vida privada, à honra, à dignidade), assumindo, assim, um perfil nitidamente instrumental no objetivo de viabilizar, mediante a aplicação de uma condenação pecuniária ao infrator, prevenção especial e geral relativamente à prática de certos comportamentos sociais. Em síntese, conforme Suzanne Carval: A função punitiva da responsabilidade civil é, como acabamos de ver, largamente posta em prática para assegurar a proteção dos atributos da personalidade. Mal dissimulada sob a máscara da reparação de um dano, ela vem sancionar a violação de normas de conduta, tornando um fim aquilo que não é, em princípio, mais que um meio. Pronta e por vezes rigorosa, a condenação civil tornou-se não somente indispensável – poderíamos imaginar razoavelmente substituí-la por um recurso maciço à sanção penal? –, porém se afirma como uma sanção cujas qualidades lhe 430  . Henri Mazeaud, Léon Mazeaud e André Tunc, Traité Théorique et Pratique de la Responsabilité Civile Délictuelle et Contractuelle, 5a ed., Paris, Montchrestien, 1960, p. 487: “Quoi qu’il en soit, le législateur permet à la victime, dans des situations excepcionelles, d’obtenir autre chose que la réparation du dommage. C’est ce qu’on a très justement appellé les peines privées; peine, parce que le but n’est plus réparer, mais de causer un dommage à l’auter de la faute, de le punir; peine privée, parce que le dommage souffert par le responsable se traduit par un avantage dont profite la victime” (tradução livre). 431  Para Norberto Bobbio, todavia, as noções de “punição” e “reparação” acabam invariavelmente se sobrepondo: “D’altro canto, punizione e riparazione, per quanto astrattamente distinguibili se non altro dal punto di vista funzionale, in pratica spesso si sovrappongono. Un premio può assumere l’aspetto riparazione per lo sforzo e i costi di un comportamento osservante, e viceversa una riparazione per un danno arrecato può assumere anche l’aspetto di pena per il dannegiante. È spesso difficile stabilire in concreto dove finisce il premio e dove comincia l’indenizzo; dove finisce il risarcimento e dove comincia la punizione” (“Sanzione”, in Antonio Azara e Ernesto Eula, Novissimo Digesto Italiano, vol. XVI, Turim, UTET, 1969, p. 534). Tradução livre: “De outro lado, punição e reparação, muito embora abstratamente distinguíveis, sobretudo do ponto de vista funcional, na prática frequentemente se sobrepõem. Uma recompensa pode assumir o aspecto de reparação pelo esforço e custos de um comportamento observável, e vice-versa, uma reparação por um dano sofrido pode assumir também o aspecto de pena para o infrator. É muito difícil estabelecer em concreto onde termina a recompensa e onde começa a indenização; onde termina o ressarcimento e onde começa punição”.

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permitem concorrer abertamente com a sanção penal.432 A função punitiva da responsabilidade civil passou a ser comumente empregada em nosso sistema jurisdicional como uma forma de sanção civil, reportando-se fundamentalmente à figura das punitive damages (indenizações punitivas), originária do Direito Anglo-Saxão e de grande aplicação pelo sistema norte-americano, como explicam Prosser e Schwartz: Indenização punitiva, algumas vezes denominada de indenização exemplar ou vingativa, ou “dinheiro fácil”, consiste em uma soma adicional, acima e para além da compensação reclamada pelo dano sofrido pelo autor, que o recompense com o propósito de punição do réu, admoestando-o para que não repita novamente, e desestimulando outros a seguirem seu exemplo”.433

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A aplicabilidade da punição civil, por via de instrumentos tais como as punitive damages, costuma ser justificada e sustentada pela doutrina da Law and Economics como forma de viabilizar efetividade e eficácia ao direito da responsabilidade civil, como destaca Nuno Garoupa: A visão mais tradicional da responsabilidade civil tem como preocupação primordial a compensação das vítimas. Esta visão é oposta à perspectiva económica. Não só a compensação das vítimas pode ser assegurada por sistemas alternativos mais eficientes, como pode não ter o impacto necessário para assegurar uma redução significativa do número de acidentes. Daí que a analise económica defenda a separação formal entre a indemnização a receber e a indemnização a pagar (decoupling liability), por forma 432  Suzanne Carval, La Responsabilité Civile dans sa Fonction de Peine Privée, cit., p. 43: “La fonction punitive de la responsabilité civile est, on vient de le voir, largement mise en oeuvre pour assurer la protection des attributs de la personnalité. A peine dissimulée sous le masque de la réparation du dommage, elle vient sanctionner la violation des normes de conduite, faisant une fin de ce qui n’est en principe qu’un moyen. Prompte et parfois rigoureuse, la condamnation civile est, non seulement, devenue indispensable – peut-on raisonnablement imaginer de la remplacer par un recours massif à la sanction pénale? –, mais s’affirme comme une sanction dont les qualités lui permettent de concurrencer ouvertement la sanction pénale” (tradução livre). 433  J. Wade Prosser e V. Schwartz, Torts. Cases and Materials, 7a ed., Nova York, Foundation Press, 1982, p. 560: “Punitive damages, sometimes called exemplary or vindictive damages, or ‘smart money’, consists of an additional sum, over and above the compensation of the plaintiff for the harm that he has suffered, which are awarded to him for the purpose of punishing the defendant, of admonishing him not to do again, and of deterring others from following his example” (tradução livre).

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a que ambas as partes, causador e vítima, tenham um comportamento eficiente. A diferença entre a indemnização a pagar e a indemnização a receber pode ser justificada pela imposição de uma indemnização punitiva (punitive damages) ou de uma indemnização ao Estado (state awards).434 Usualmente, têm os tribunais americanos feito uso da punição civil em casos em que, exemplificativamente, no campo das relações de consumo, se demonstre que o demandado tinha específico conhecimento sobre o defeito do produto e seu potencial lesivo, o que geralmente é inferido pelos testes empreendidos antes da comercialização dos produtos ou por via de relatórios de pós-venda, bem como pelas reclamações de consumidores.435 Tanto no sistema de justiça inglês (no qual originariamente surgiram) como no modelo norte-americano, as condenações a título de punitive damages foram concebidas, a princípio, com o escopo de compensar danos morais sofridos pelas vítimas, misturando-se as funções de compensação e punição, como recorda Paula Meira Lourenço: Em 1760, algumas Cortes inglesas começaram a explicar grandes somas concedidas pelos Júris em casos graves como compensação ao autor por mental suffering, wounded dignity e injured feelings. Essa indenização adicional por dano à pessoa era referida como exemplary pelas Cortes, que justificavam a condenação, afirmando-se que as indenizações elevadas tinham por objetivo não só compensar o lesado pelo prejuízo intangível sofrido, mas também punir o ofensor pela conduta ilícita. Na verdade, as funções compensatória e punitiva foram confundidas pelas Cortes inglesas e norte-americanas até meados do século XIX.436 Gradativamente, porém, a aplicação do instituto acabou sendo disseminada para o fim de punir e dissuadir a provocação de danos patrimoniais, 434  Nuno Garoupa, “Combinar a Economia e o Direito. A Análise Econômica do Direito”, Revista de Ciências Jurídicas e Econômicas 1, n. 1. 2009 (disponível em http://cepejus.libertar.org/index.php/systemas/ article/view/11/0, acesso em 19.09.2014). 435  Mark A. Geistfeld, “Due process and the deterrence rationale for punitive damages”, New York University Public Law and Legal Theory Working Papers, Paper 311, 2011 (disponível em http://lsr.nellco.org/ nyu_plltwp/311, p. 111, acesso em 19.09.2014). 436  Paula Meira Lourenço, “Os dano punitivos”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa XLIII/1.076, n. 2, Coimbra, Coimbra Editora, 2002.

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tanto nos casos de condutas especialmente dolosas dos agentes infratores como nas hipóteses nas quais se demonstra a ocorrência da chamada “negligência grosseira”, quando, então, competia ao lesado comprovar tão somente o dano suportado, e não a intenção do agente. Atualmente a imensa maioria dos Estados norte-americanos aplica as punitive damages,437 cabendo a análise da aplicação e da determinação do quantum a Júris populares,438 compostos por cidadãos que devem levar em conta as específicas regras estaduais referentes à punição e à dissuasão do ofensor.439 A Suprema Corte dos Estados Unidos da América vem constantemente se debruçando sobre a doutrina das punitive damages, tendo já sedimentado algumas conclusões tanto em relação aos pressupostos para sua aplicação como à sua quantificação, no intuito de conformá-la à due process clause. Nesse sentido, conforme informa Mark A. Geistfeld:

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A Suprema Corte norte-americana tem entendido que os demandados são protegidos contra as excessivamente altas indenizações punitivas por via da cláusula constitucional do devido processo. Para determinar quando uma indenização punitiva satisfaria o devido processo legal, os juízes devem avaliar o demandado sob três fatores: (1) o grau de censurabilidade da conduta do réu, (2) a disparidade entre o real ou potencial dano suportado pelo autor e a indenização punitiva e (3) a diferença entre a indenização punitiva atribuída pelo Júri e as sanções civis autorizadas ou impostas em casos semelhantes (...).440 437  Segundo informa Maria Celina Bodin de Moraes, 46 Estados norte-americanos admitem a aplicação das punitive damages; as exceções são Massachusetts, Louisiana, Nebraska e New Hampshire (Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, cit., p. 232). 438  “Tradicionalmente, o sistema jurídico norte-americano deposita grande importância no papel do Júri para decidir questões relevantes, confiando neste como um guarantor of fairness, a bulwark against tyranny, and a source on civic values. Isso apesar de terem sido (e serem) tantos e tamanhos os abusos, tão gritantes a ‘comercialização’ e a ideologização dos casos judiciais no âmbito das punitive damages, que uma suspeição generalizada erodiu a histórica confiança no papel do Júri para tal mister” (Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, “Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito Brasileiro)”, cit., Revista CEJ 28/19). 439  Maria Celina Bodin de Moraes, “Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas”, Revista Trimestral de Direito Civil 18/57, Rio de Janeiro, Padma, abril-junho/2004. 440  Mark A. Geistfeld, “Due process and the deterrence rationale for punitive damages”, cit., New York University Public Law and Legal Theory Working Papers, Paper 311 (disponível em http://lsr.nellco.org/

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Com base em similar racionalidade, com vistas à possível implementação de um sistema punitivo civil na Itália, destaca Paolo Gallo quatro possíveis pressupostos para o emprego da função punitiva da responsabilidade civil: (a) sempre que o comportamento ilícito tenha violado os direitos da vítima, sem causar danos a todos, ou pelo menos danos patrimoniais, nessas condições as principais funções da responsabilidade civil são a dissuasão e a punição, mais que a compensação; (b) quando o enriquecimento obtido ilicitamente é maior que os danos; se o transgressor se enriquecer como uma consequência do delito, ele deve ser obrigado a devolver todo o seu enriquecimento; caso contrário ele seria induzido a considerar o dever de indenizar a vítima como um custo; em qualquer caso, a tão só compensação da vítima não seria suficiente para dissuadir o comportamento delituoso (subdissuasão); (c) sempre que o prejuízo seja muito difuso (responsabilidade civil por produtos, poluição, responsabilidade civil em massa) e o malfeitor seja uma grande empresa (deep pocket); nessas condições, especialmente em situações de sub-litigância, a compensação de apenas uma parte das vítimas não é suficiente para dissuadir o transgressor eficientemente; apenas as punitive damages podem induzir o fabricante a internalizar todo o custo social ligado à sua atividade; (d) sanções privadas poderiam ser também úteis no domínio das ações penais de menor potencial; a redução progressiva da esfera do direito penal abriu o caminho para meios alternativos de dissuasão; isto é especialmente verdadeiro no domínio da protecção da pessoa, sua vida privada, honra, reputação, privacidade e assim por diante.441 nyu_plltwp/311, p. 112-113, acesso em 1.5.2012): “The U.S. Supreme Court has held that defendants are protected against excessively high punitive damage awards by the due process clause of the U.S. Constitution. To determine whether a punitive damages award satisfies due process, judges must evaluate the award in terms of three factors: (1) the degree of reprehensibility of the defendant’s misconduct; (2) the disparity between the actual or potential harm suffered by the plaintiff and the punitive damages award; and (3) the diff erence between the punitive damages awarded by the jury and the civil penalties authorized or imposed in comparable cases. (...). The Court has held ‘that, in practice, few awards exceeding a single-digit ratio between punitive and compensatory damages, to a significant degree, will satisfy due process’” (tradução livre). 441  Paolo Gallo, Punitive Damages in Italy?, (disponível em http://www.jus.unitn.it/cardozo/Review/Torts/ Gallo-1997/gallo.doc, acesso em 10.09.2014, p. 10): “(a) whenever the wrongful behavior has infringed the rights of the victim without causing damages at all, or at least patrimonial damages; in these conditions the main functions of tort law is deterrence and punishment, rather than compensation; (b)

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Em que pese a que a função punitivo-pedagógica esteja sendo utilizada de forma ampla no sistema de justiça nacional, sobretudo em sede jurisprudencial, sua integração à teoria da responsabilidade civil sempre foi alvo de diversas críticas e questionamentos, tais como: (i) A ideia de punição atrelada ao âmbito civil estaria superada (despenalização da responsabilidade civil)?442 (ii) Seria aplicada apenas aos casos de responsabilidade subjetiva, na medida em que leva em conta a conduta e o grau de culpa do ofensor, afastando-se da responsabilidade civil objetiva?443

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when the enrichment wrongfully obtained is higher than damages; if the wrongdoer enrich himself as a consequence of the tort, he should be compelled to give back his whole enrichment; otherwise he would be induce to consider the duty to compensate the victim such as a cost; in any event the only compensation of the victim wouldn’t be enough to deter the wrondful behavior (underdeterrence); (c) whenever the loss is very spread (products liability, pollution, mass torts), and the wrongdoer is a big company (deep pocket); in these conditions, especially in situations of underlitigation, the compensation of only part of the victims is not enough to deter efficiently the wrongdoer; only punitive damages can induce the manufacturer to internalise the whole social cost connected to his activity; (d) private sanctions could be also useful in the field of small criminal claims; the progressive reduction of the sphere of penal law has opened the way to alternative means of deterrence; this is especially true in the field of the protection of the person, his private life, honor, reputation, privacy, and do on” (tradução livre). 442  A função punitivo-pedagógica da responsabilidade civil seria uma figura análoga, ultrapassando a fronteira da cisão entre o direito civil e o direito penal, na medida em que atribui uma função retributiva ao autor do dano, servindo-lhe de exemplo com um nítido caráter dissuasivo. Como afirma Paula Meira Lourenço: “(...) tem de se admitir que os danos punitivos esbatem as fronteiras entre o direito penal e direito civil, mas tal acontece porque não se consegue estabelecer uma nítida diferença entre direito público e privado” (“Os danos punitivos”, cit., Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa XLIII/1.088). 443  Apesar de a função punitiva objetivar retribuir e prevenir a conduta do ofensor que agiu com culpa, o sistema norte-americano passou a admitir a aplicação das punitive damages também para alguns casos de responsabilidade objetiva, alargando seu âmbito de atuação, antes circunscrito às hipóteses de responsabilidade subjetiva: “(...). A partir da década de 60, a jurisprudência norte-americana começou a admitir a imposição de punitive damages aos empregadores, naquelas situações em que o trabalhador agira com dolo, e um superior hierárquico havia participado ou ratificado a adopção daquele comportamento (theory of respondeat superior), critério que mais tarde veio a ser apelidado de complicity rule. Esta regra foi a fonte do Restatement (Second) of Agency, 8 217 C (1958), e do Restatement (Second) of Torts 909 (1979), estabelecendo-se nesse último que os punitive damages só podem ser imputados ao comitente em virtude de um acto praticado pelo comissário se ocorrer alguma das seguintes situações: (a) o comitente autorizou a prática do facto; (b) o comissário era incompetente e o comitente foi negligente na sua contratação; (c) o comissário estava a agir no âmbito das suas funções; ou (d) o comitente ratificou ou aprovou o acto. À afirmação do princípio da responsabilidade objectiva (vicarious liability), tornou-se necessário atentar-se na posição que o infractor detinha na pessoa colectiva, passando a ser suficiente provar que a conduta, praticada por qualquer trabalhador,

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(iii) A imposição de uma pena privada poderia ensejar um bis in idem, punindo o ofensor duplamente pelo mesmo ato, quando sua conduta configurasse uma transgressão cível e penal?444 (iv) Se aplicada essencialmente aos danos extrapatrimoniais, como explicar a proteção das pessoas apenas pelo viés indenizatório? (v) A aplicação da função punitivo-pedagógica levaria a um possível enriquecimento sem causa da vítima?445 havia sido adoptada durante o exercício da actividade, regra esta que por seu turno ficou a ser conhecida por better rule, por oposição à precedente. A consagração da better rule levanta o problema que no início se colocou, e que consiste em imputar punitive damages a um comitente, independentemente de culpa, nomeadamente se este é uma sociedade comercial, não se podendo assim afirmar que se queira puni-la, nem prevenir a repetição da conduta. Para ultrapassar este óbice, os defensores da aplicação dos punitive damages a estas situações têm entendido que a função punitiva está presente no incentivo que é dado às sociedades para melhorar os seus níveis de seleção de pessoal, pois é este conjunto que actua pela própria sociedade, e deste modo evitar que as sociedades actuem impune e independentemente da responsabilidade que lhes assiste em virtude dos comportamentos dos seus trabalhadores” (Paula Meira Lourenço, “Os danos punitivos”, cit., Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa XLIII/1.037-1.038). 444  Em sentido contrário à referida crítica, de não haver um bis in idem, decidiu a Corte Constitucional da Alemanha, conforme informa Bernd-Rüdiger Kern: “Com razão, decidiu o BVerfG (Tribunal Federal Constitucional) que o dinheiro da dor – ‘embora ‘elementos penais’ não lhe sejam de todo estranhos’ – não é nenhuma pena no sentido deste preceito constitucional (art. 103, II, da Constituição). Faltam-lhe todos os característicos estigmatizantes da pena criminal. Não é prevista pena de privação de liberdade, como também a correspondente pena substitutiva (Ersatzfreiheitsstrafe), e não há inscrição no registro penal. Com isto caem, igualmente, as críticas a respeito da dupla punição” (“A função de satisfação na indenização do dano pessoal: um elemento penal na satisfação do dano?”, cit., Revista de Direito do Consumidor 33/23-24). 445  Afirma-se que punir a conduta do ofensor por meio de uma pena privada não poderia ensejar um repentino e desarrazoado afortunamento da vítima, até porque, assim sendo, incentivar-se-ia verdadeira “loteria forense” na busca de indenizações milionárias, afetando-se indevidamente todo o sistema de responsabilidade civil. Ocorre, no entanto, que um dos principais problemas da regulação do enriquecimento sem causa reside na objetivação do que venha a constituir, com precisão, a ausência de “causa”, uma vez que dela depende a incidência do dever de restituição do montante pecuniário indevidamente obtido. Conforme explica Maria Cândida do Amaral Kroetz: “A causa da atribuição patrimonial é entendida como o motivo jurídico, a justificação do aporte de um bem a um determinado patrimônio. Esta justificação pode ser um negócio jurídico (e.g., o contrato válido, a sucessão, a doação), um dispositivo legal (e.g., a prescrição , o usucapião), um costume ou uma decisão judicial. Assim, a causa é, em última análise, um fato que, à luz dos princípios aceitos no sistema, legitima o enriquecimento” (Enriquecimento sem Causa no Direito Civil Brasileiro Contemporâneo e Recomposição Patrimonial, Curitiba, tese de Doutoramento apresentada na Faculdade de Direito da UFPR, 2005, pp. 82-83).

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4. Considerações finais Apesar da resistência de boa parte da doutrina contra o caráter punitivo da responsabilidade civil, é inegável o potencial da referida função para revitalizar funcionalmente o instituto, dotando-o de um viés eminentemente preventivo.446 Mediante breve análise da jurisprudência nacional, como já antes demonstrado, pode-se afirmar que os tribunais nacionais, ao menos na prática, de certa forma já incorporaram a aplicação da doutrina das punitive ou exemplary damages, por vezes inclusive expressamente,447 a título de punição exemplar e dissuasão contra a reincidência, agravando o valor das compensações por danos extrapatrimoniais quando verificam justificativas plausíveis.448 Nesse sentido, em que pese o STJ ter chamado para si o controle da razoabilidade e da proporcionalidade do agravamento das compensações pecuniárias por danos morais449 (o que representa, certamente, um controle

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446  Nesse sentido, consultar Thaís Goveia Pascoaloto Venturi. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, Editores, 2014. 447  V., nesse sentido, a expressa referência à importação da doutrina das punitive damages feita em julgamento de ação indenizatória pelo TJSP, referendado pelo STJ na análise do REsp 1.127.484-SP (4a Turma, rela. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 17.3.2011, DJe 23.3.2011): “O dano moral, além disso, não se presta só à recomposição (possível) do impacto psicológico, mas funciona como fator de desestímulo a conduta assemelhada por parte de prepostos da apelante no futuro. Esse o propósito do instituto dos punitive damages do Direito Anglo- Saxônico, que tem plena aplicabilidade ao caso destes autos”. 448  Os precedentes multiplicam-se nesse sentido: “Responsabilidade civil – Troca de cadáveres – Atraso no sepultamento – Dano moral – Quantum – Valoração das circunstâncias fáticas delineadas soberanamente pela instância ordinária – Impossibilidade. 1. Cabe ao STJ o controle do valor fixado a título de indenização por dano moral, que não pode ser ínfimo ou abusivo, diante das peculiaridades de cada caso, mas, sim, proporcional à dúplice função deste instituto: reparação do dano, buscando minimizar a dor da vítima, e punição do ofensor, para que não volte a reincidir (...)” (STJ, 2a Turma, Ag/AgR 1.251.348-RJ, rela. Min. Eliana Calmon, j. 18.5.2010, DJe 25.5.2010). 449  Como exemplo de tal controle, anotem-se: “A aplicação irrestrita das punitive damages encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio, que, anteriormente à entrada do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do Direito, e após a novel codificação civilista passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente no art. 884 do CC de 2002. Assim, cabe a alteração do quantum indenizatório quando este se revelar como valor exorbitante ou ínfimo, consoante iterativa jurisprudência desta Corte Superior de Justiça” (STJ, 4a Turma, Ag/AgR 850.273-BA, rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro, j. 3.8.2010, DJe 24.8.2010). “O critério que vem sendo utilizado por esta Corte Superior na fixação do valor da indenização por danos morais considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como para que sirva de desestímulo ao ofensor na repetição de ato ilícito” (STJ, 4a Turma, REsp 401.358-PB, rel. Min. Carlos Fernando

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relativo ao devido processo legal, que lhe foi relegado pelo STF, ao entendimento de que alegações de violação do due process traduziriam apenas lesão reflexamente constitucional),450 parece de todo adequado estabelecer uma sistematização do assunto no plano legislativo, sobretudo por se tratar de imposição de hipótese de sanção, a exigir regulação prévia e própria.451 Assim, a partir da conjugação de critérios claros como os referidos, competiria ao legislador autorizar expressamente a imposição de multa civil, a ser possivelmente cumulada com a indenização por danos materiais e com a compensação por danos extrapatrimoniais, individuais, coletivos ou difusos, na medida em que com elas não pode ser confundida.452 Mathias, j. 5.3.2009, DJe 16.3.2009). 450  Conforme já assentou o STF: “A violação reflexa e oblíqua da Constituição Federal decorrente da necessidade de análise de malferimento de dispositivos infraconstitucionais torna inadmissível o recurso extraordinário – Precedentes: RE n. 596.682, rel. Min. Carlos Britto, DJe 21.10.2010, e AI n. 808.361, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 8.9.2010. (...) 3. Os princípios da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, da motivação das decisões judiciais, bem como os limites da coisa julgada, quando a verificação de sua ofensa dependa do reexame prévio de normas infraconstitucionais, revelam ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que, por si só, não desafia a abertura da instância extraordinária – Precedentes: AI n. 804.854/AgR, 1a Turma, rela. Min. Carmen Lúcia, DJe 24.11.2010, e AI n. 756.336/AgR, 2a Turma, rela. Min. Ellen Gracie, DJe 22.10.2010”. 451  Interessante discussão a respeito da aplicação da multa civil no Brasil foi suscitada a partir da previsão do art. 12 da Lei 8.429/1992, que pune os atos de improbidade administrativa mediante multas cujos valores podem variar de acordo com a gravidade do ato e a culpabilidade do agente. Ocorre que a Constituição Federal de 1988, ao encarregar o legislador ordinário da tarefa de regulamentar a respectiva ação, determinou: “Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao Erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (art. 37, § 4o). Assim, na medida em que o texto constitucional não mencionou dentre as sanções cabíveis a multa civil, suscitou-se a possível inconstitucionalidade da referida disposição da lei ordinária, por usurpação de atribuição constitucional e por violação ao princípio do devido processo legal. Apreciando tal alegação, o STF assim decidiu: “Ementa: Agravos regimentais no recurso extraordinário – Improbidade administrativa – Multa civil – Art. 12, III, da Lei n. 8.429/1992. As sanções civis impostas pelo art. 12 da Lei n. 8.429/1992 aos atos de improbidade administrativa estão em sintonia com os princípios constitucionais que regem a Administração Pública – Agravos regimentais a que se nega provimento” (2a Turma, RE/AgR 598.588, rel. Min. Eros Grau, j. 15.12.2009, DJe-035, 26.2.2010). Do voto do Ministro-Relator extrai-se, ainda, que: “A tipificação de ilícitos penais, civis e administrativos e a cominação das respectivas sanções constituem matéria de competência do legislador infraconstitucional, cuja atuação, porquanto se paute, obviamente, por balizas definidas pela Constituição Federal, não se esgota na interpretação literal que se faça de seu texto. As sanções civis cominadas pela Lei n. 8429/1992, em seu art. 12, aos atos de improbidade administrativa tipificados em seus arts. 9o, 10 e 11, estão em sintonia com os princípios constitucionais que regem a Administração Pública, e visam não só ao ressarcimento do patrimônio público material, mas também à recomposição do patrimônio público moral”. 452  Contudo, em julgamento proferido pelo STJ expressamente reconheceu a Corte a natureza de verdadeira “multa” à imposição de condenação por danos morais coletivos, como se destaca: “A atribuição do valor da multa por dano moral coletivo foi devidamente justificada e fundamentada pelo Tri-

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Com efeito, não sendo lógico confundir tal agravamento da condenação pecuniária com qualquer espécie de reparação, a toda evidência, trata-se de sanção civil distinta, que mereceria expresso e cuidadoso tratamento legislativo, capaz de definir as hipóteses de incidência, pressupostos, limites e, sobretudo, destinação dos recursos. Como destaca António Pinto Monteiro:

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O que a questão da pena privada implica, no mínimo, é o reacender do debate sobre o sentido e as tarefas que competem à responsabilidade civil e a respeito das vias ao seu alcance. À propalada crise com que ela se debate, de há alguns anos a esta parte, não será decerto estranho um excesso de inputs, pedindo-se-lhe que dê resposta a múltiplos fins, por vezes contraditórios: com efeito, reparar o lesado, repartir perdas, distribuir riscos, punir o lesante, prevenir comportamentos ilícitos, controlar a actividade de produção, assegurar o respeito da pessoa humana, etc., são tarefas numerosas e difíceis de harmonizar entre si, cuja realização ameaça o sentido e a unidade do instituto. (...). Importa sublinhar, todavia, para concluir, que é outra a nota que desperta a atenção quando se fala da pena privada, contrapondo-a à indemnização. Do que se trata, neste caso, é de chamar a atenção para a necessidade “de recuperar (...) o momento de prevenção”, diluído que está, por efeito de um progressivo afunilamento da responsabilidade civil para soluções de cariz objectivo e para as esferas do seguro e da segurança social (...); ou, se se preferir, o que está em causa, afinal, é reagir contra um sistema que se perspective “apenas pela vítima e o dano, com total abstracção não só da diferenciação causal na produção deste, mas inclusivamente do agente, da sua culpa (qualquer que seja, grave ou leve) e mesmo da sua responsabilidade geral”. O aprebunal de origem, e não se apresenta como exorbitante, tampouco irrisória; logo, a revisão de tal valor está vedada pelo teor da Súmula n. 07/STJ – Precedentes. Quanto às demais penalidades, consistentes na multa aplicada por dano moral coletivo, bem como a obrigação de publicar o teor da decisão em jornais, cabe notar que o recurso fundou-se em dispositivos não prequestionados – Recurso especial parcialmente conhecido e improvido” (2a Turma, REsp 1.203.573-RS, rel. Min. Humberto Martins, j. 13.12.2011, DJe 19.12.2011). Trata-se, à evidência, de subversão indesejável, na medida em que não há que se confundir multa civil com compensação por danos morais, sejam eles caracterizados como individuais ou coletivos.

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goado renascimento da pena privada mais não traduzirá, assim, em primeiro lugar, que a reacção de alguma doutrina contra o aniquilamento da função preventivo-sancionatória da responsabilidade civil e o progressivo alheamento desta perante a conduta do lesante. Aproveitando esse espaço em branco, o segundo passo é o de que a indemnização – limitada que está pelo valor do dano causado – não constitui, de per se, medida idónea a dar guarida à finalidade preventivo-sancionatória, razão por que a pena emergiria, a seu lado, em certos domínios e perante comportamentos especialmente graves, como a única resposta eficaz e verdadeiramente responsabilizante. O que implicará quer um acentuar do fundamento ético-jurídico da responsabilidade civil (...), quer, paralelamente, o emergir do direito civil cada vez mais como direito constitucional das pessoas.453 Faz-se necessária a atuação do legislador no intuito de definir critérios objetivos (tanto quanto possível), condições, hipóteses e limites de atuação da função punitivo-pedagógica da responsabilidade civil, para que sua disseminada aplicação jurisdicional atualmente verificada não represente afronta à garantia do devido processo legal. Com efeito, a função punitivo-pedagógica não pode constituir mera liberalidade, muito menos abstração por parte dos tribunais, ainda que para instrumentalizar objetivos dos mais louváveis (reparação integral das vítimas e dissuasão contra a continuidade ou a repetição da violação dos direitos). De toda forma, sejam quais forem os critérios e os instrumentos acolhidos para estabelecer tanto as hipóteses de incidência como os limites de atuação da função punitiva, não há mais razão lógica – muito menos pragmática – para que se continue a negá-la, prendendo-se o sistema jurídico civil às amarras de um pensamento político-ideológico superado, que resiste ou simplesmente ignora os reclamos de efetividade e pragmatismo do mundo globalizado do século XXI.

453  António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização. Coimbra: Almedina, 1990, pp. 659663.

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TERCEIRA PARTE ESTUDOS DE DIREITO EMPRESARIAL E DIREITOS INTELECTUAIS

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A REGULAÇÃO DOS CONTRATOS PREVIDENCIÁRIOS NO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL Eduardo Oliveira Agustinho454 Sumário: 1. Introdução; 2. A atuação estatal ex-post sobre os contratos de previdência complementar – O caso da Súmula 289 do STJ; 3. A Regulação ex ante das Entidades de Previdência Complementar; 4. Pressupostos para a exegese dos Contratos de Previdência Complementar – a necessária compreensão do obiter dictum; 5. Conclusões; 6. Referências Bibliográficas.

1. Introdução A importância das entidades de previdência complementar na sociedade contemporânea é tema recorrente no Brasil recente. Cada vez mais os próprios governantes procuram enfatizar a fragilidade que representa o sistema mutualista da previdência social pública como única opção de recursos para a aposentadoria. Tornou-se comum, assim, o incentivo ao trabalhador na busca de formas de complementação de sua renda futura por meio dos modelos previdenciários de capitalização oferecidos pelo sistema privado. Paralelo a esse debate, é sempre comum a lembrança de casos frustrantes já ocorridos no Brasil envolvendo a previdência privada, onde velhos planos de pecúlio, que por anos recolheram contribuições de pessoas preocupadas com a aposentadoria, deixaram de cumprir a sua parte no momento devido, entregando valores ínfimos aos seus participantes, ou mesmo, nada entregando. Esta má imagem que os planos de previdência possuem no senso comum nacional representa, efetivamente, um obstáculo relevante a ser superado para a consolidação de uma cultura previdenciária complementar, eis que nesse sistema, a confiança é elemento primordial para o alcance dos seus objetivos. Nesse passo, a atuação do Estado para a formação desse ambiente positivo é algo indispensável. Esta atuação pode se dar ex post, por intermédio do Poder Judiciário, 454  Doutor em Direito Econômico e Socioambiental pela PUCPR. Advogado. Professor de Direito Empresarial do Curso Prof. Luiz Carlos, da PUCPR e das Faculdades da Indústria - IEL

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o qual, interpretando essas relações contratuais, deve buscar o equilíbrio e, permitir assim, que o contrato de previdência complementar atenda aos seus fins sociais. Contudo, a complexidade subjetiva e temporal dessas relações aconselha que a atuação estatal se desenvolva também ex ante, por meio de normas específicas voltadas às peculiaridades desses contratos. Com efeito, compreende-se que, para que seja viável a implementação de um efetivo ambiente de credibilidade, no qual se permita a consolidação de um sistema previdenciário complementar, a regulação estatal ex ante é essencial. Nesse diapasão, pretende-se, no presente artigo, observar os rumos que esta importante relação contratual tem tomado em nosso país, de modo a permitir, ao final dessa análise, inferir se o senso comum nacional precisa ou não ser revisto.

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Para tanto, parte-se da análise de uma atuação estatal ex post. Nesse sentido, é referência no âmbito da previdência privada a interpretação do Superior Tribunal de Justiça constante da Súmula 289, de 13 de maio de 2004,455 segundo a qual, “a restituição das parcelas pagas a plano de previdência privada deve ser objeto de correção plena, por índice que recomponha a efetiva desvalorização da moeda. ” Tem-se, nessa decisão, um exemplo paradigmático de reequilíbrio contratual por meio da atuação do Poder Judiciário. Buscar-se-á, assim, em um primeiro momento, compreender o modo de implementação da relação contratual previdenciária à época, e os fundamentos que levaram nossos julgadores a intervirem no conteúdo do contrato. A partir dessa interpretação, pretende-se contrapor essa sistemática contratual antiga àquela adotada atualmente e, nesse contexto, identificar se hoje em dia, a solução para essa questão se dá ex ante, ou se ainda é necessária, ou ainda, viável, a aplicação ex post dessa súmula aos contratos atuais.

2. A atuação estatal ex-post sobre os contratos de previdência complementar – O caso da Súmula 289 do STJ O cerne da questão levada ao Poder Judiciário, e que deu azo à Sumula 455  BRASIL. STJ. Súmula 289. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/doc.jsp? livr e=previd%EAncia+privada&&b=SUMU&p=true&t=&l=10&i=4. Acesso em: 07 jul 2011.

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289 do STJ, está ligada ao questionamento envolvendo o critério para correção das contribuições realizadas pelos participantes dos planos de previdência. Enquanto as entidades de previdência complementar defendiam a interpretação de que os valores deveriam ser corrigidos consoante fixado no estatuto da instituição, os participantes defendiam que os valores de contribuição deveriam ser restituídos, no mínimo, corrigidos monetariamente, por meio de índice mais o mais próximo possível da realidade. Lembre-se que até o início do novo milênio o problema da inflação no país era gravíssimo, corroendo de forma galopante o valor da moeda. O Recurso Especial que permitiu suscitar a divergência na Segunda Seção foi relatado pelo Ministro Rui Rosado Aguiar, o qual adotou a interpretação de que “[a] devolução das contribuição (sic) efetuadas pelo associado deverá ser calculada por índice que reflita a realidade da inflação.”456 Em contraposição a este pensamento, o que permitiu a arguição da divergência, apresentou-se a interpretação dominante na Quarta Turma. Segundo esta, nas palavras do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, “tendo a entidade de previdência privada aplicado o fator de atualização previsto nos estatutos não é possível rever os cálculos para buscar o índice que melhor reflita a inflação dos diversos períodos.”457 Em voto vencido nos Embargos de Divergência, o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito busca justificar seu posicionamento, esclarecendo que: Se a parte firma contrato com a entidade já sabendo, de acordo com os estatutos, qual o índice de correção que será utilizado e, normalmente, tais entidades estabelecem o índice oficial, não me parece razoável que, no pedido de devolução, seja dado além daquilo que foi contratado, além do que está previsto no estatuto da entidade de previdência privada, ou seja, neste caso, não se cuida de uma relação em que se procure a inflação dita real, mas, sim, saber qual o cálculo adotado pela entidade de previdência

456  BRASIL. STJ. REsp 264.061. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/ REJ.cgi/IMG?seq=66909&nreg=200000614203&dt=20001218&formato=PDF. Acesso em: 07 jul 2011. 457  BRASIL. STJ. EREsp 264.061. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revis ta/ REJ.cgi/IMG?seq=24432&nreg=200100242138&dt=20020311&formato=PDF. Acesso em: 07 jul 2011.

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privada quando efetivou o contrato para tal.458 Por fim, o julgador manifesta preocupação no sentido de que, “[s] e desequilibrarmos esse cálculo, evidentemente, a meu sentir, com todo o respeito àqueles que entendem em sentido contrário, estaremos gerando uma total distorção na própria entidade, em prejuízo daqueles que são dela beneficiários.”459

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Ora, observe-se assim que a decisão do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito nos permite duas distintas interpretações. A primeira é a de que seu posicionamento se fundou tão-somente nas premissas clássicas do direito privado, de respeito à autonomia privada das partes e de proteção à segurança jurídica dos dispositivos contratuais livremente pactuados, dentro da arcaica concepção de que o contrato faz lei entre as partes. A segunda, por sua vez, é aquela que segue a compreensão de que o contrato previdenciário não pode ser interpretado de forma isolada, mas sim, dentro do contexto mais amplo da própria sistemática que permeia essa espécie de relação contratual em específico, considerando-se assim, não somente a relação contratual interpartes, mas também os efeitos dessa decisão sobre os demais contratos que se encontram equiparados a este que se encontra sob análise. Diante da preocupação registrada pelo julgador, considera-se que a sua concepção exegética está mais aproximada à essa segunda leitura, ou seja, o Ministro busca registrar a sua inquietude em relação aos efeitos da decisão, nesse contrato isolado sobre os demais contratos que permeiam a entidade de previdência, eis que os recursos são comuns a todos os participantes, mas a decisão em questão seria individualizada, em detrimento aos direitos dos demais associados. Não obstante o alerta desse julgador, prevaleceu a interpretação suscitada pelo Ministro Aldir Passarinho, que foca predominantemente a relação inter-partes, inferindo assim que “a correção monetária nada mais é do que a mera recomposição econômica da moeda corroída pela inflação, de sorte que 458  BRASIL. STJ. EREsp 264.061. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revis ta/ REJ.cgi/IMG?seq=24432&nreg=200100242138&dt=20020311&formato=PDF. Acesso em: 07 jul 2011. 459  BRASIL. STJ. EREsp 264.061. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revis ta/ REJ.cgi/IMG?seq=24432&nreg=200100242138&dt=20020311&formato=PDF. Acesso em: 07 jul 2011.

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deve ser feita de modo a representar, o mais fielmente possível, tal critério.”460 Observe-se que embora vencedora, a tese da correção monetária pelo critério mais benéfico ao participante teve cinco votos a favor e quatro contrários, o que demonstra a tamanha dificuldade de conciliar os interesses em questão. Seguindo o raciocínio do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, em seu voto vencido, destaca que, em se tratando de uma entidade de previdência privada, é mais razoável a preservação do estabelecido estatutariamente, uma vez que, “pagando o que foi convencionado, ainda que ocorra uma certa defasagem, porque resulta em benefício do todo, em benefício da solidez da empresa. ” Um argumento relevante, e que pode servir de esteio para a tese vencedora, é exposto pela Ministra Nancy Andrighi. A julgadora, atenta a questão dos efeitos da revisão contratual para o equilíbrio financeiro da entidade previdenciária, enfatiza que: É certo que, nas entidades de previdência privada, é necessária a preservação do equilíbrio atuarial entre as suas reservas e os compromissos assumidos com os beneficiários, de forma a não ser possível a assunção de novas obrigações sem a criação de respectivas reservas ou fontes de custeio. No caso em exame, o que se pretende é a preservação do valor real das contribuições efetuadas pelos beneficiários e que objetivavam a formação da reserva de poupança destinada ao cumprimento das obrigações assumidas pela entidade. Compete à entidade, ora embargante, a administração do seu patrimônio e a adequada aplicação das reservas técnicas, fundos especiais e provisões, cabendo-lhe, portanto, zelar pela preservação da reserva de poupança - cuja restituição se pretende no caso - dos efeitos da inflação.

460  BRASIL. STJ. EREsp 264.061. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revis ta/ REJ.cgi/IMG?seq=24432&nreg=200100242138&dt=20020311&formato=PDF. Acesso em: 07 jul 2011.

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Assim, considerando que a correção monetária em nada acresce o valor original e que as contribuições dos beneficiários passaram a integrar o patrimônio administrado pela entidade, configura-se devida, na espécie, a pretendida inclusão dos expurgos inflacionários.461 Ora, do debate que permeou a questão levada ao Poder Judiciário, extraem-se algumas ponderações quanto à realidade contratual previdenciária da época. Primeiramente, destaca-se que a existência de um debate no Poder Judiciário, tendo sido inclusive objeto de Súmula, quanto à restituição das contribuições previdenciárias em um patamar, no mínimo equivalente à correção monetária, por si só, já justifica a desconfiança existente no senso comum, quanto à credibilidade dessas instituições.

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O segundo ponto, que não fica claro pela leitura das decisões é quanto ao modelo de contrato previdenciário adotado, o que permite uma melhor percepção sobre os riscos de desequilíbrio financeiro em decorrência da revisão contratual em questão. Observe-se que os contratos previdenciários são divididos usualmente em contratos de contribuição definida e de benefício definido. No primeiro exemplo, tem-se o tradicional modelo de capitalização, no qual o participante realiza depósitos mensais e, ao resgatar os valores, com a remuneração decorrente dos ganhos advindos da aplicação financeira desses recursos pelo gestor do plano de previdência. Nesse caso, não obstante seja estabelecido um ganho hipotético inicial, a obtenção desse resultado é incerta, dependendo do desempenho dos investimentos realizados, podendo ao fim, desse modo, atingir-se um valor maior ou menor do que aquele projetado inicialmente. No caso do benefício definido o modelo é distinto. Nesse sistema, as contribuições dos participantes e o valor a ser resgatado são previamente definidos. Cabe assim, ao gestor do plano de previdência, realizar um planejamento financeiro que permita a obtenção, no mínimo, o montante necessário 461  BRASIL. STJ. EREsp 297.194. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/ REJ.cgi/IMG?seq=33089&nreg=200100700097&dt=20020204&formato=PDF. Acesso em: 07 jul 2011.

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para o pagamento dos benefícios previamente estabelecidos. O grande problema desse segundo modelo está no fato de que, pela sua sistemática, pode-se viver uma situação de fundos com um excedente, o qual tende a ser expropriado dos contribuintes pelo gestor do fundo, ou ainda, um déficit, o qual tende a ser repassado aos contribuintes em razão da possível condição de insolvência da entidade previdenciária. Já no primeiro modelo isso não ocorre. Contudo, no modelo de contribuições fixas também existe um aspecto negativo, que é a transferência do risco do investimento para o contribuinte, eis que o desempenho futuro é totalmente suportado por ele, seja este positivo ou negativo. Em suma, ambos os modelos apresentam vantagens e desvantagens, sendo que, no caso de revisão contratual no âmbito judicial, a tendência maior é de que isso se reflita como uma desvantagem ao grupo. Ora, se tivermos essa revisão aplicada a um plano do modelo benefício definido com déficit, a revisão contratual individualizada tenderá a leva a entidade previdenciária à insolvência. A única hipótese em que isso pode vir a não ocorrer é no caso do plano de benefício definido com excedente de fundos, os quais, assim, ao invés de serem expropriados pelo gestor, são distribuídos aos contribuintes. Atualmente predomina o emprego do modelo de contribuição definida. Nesse sistema, a tendência é de que a revisão contratual sempre conduza a entidade previdenciária à insolvência, o que pode beneficiar assim, um grupo de contribuintes em detrimento dos recursos devidos a outros. Em suma, nos contratos previdenciários, a solução da obtenção do equilíbrio contratual ex post, via Poder Judiciário, não obstante, plenamente justificável e devida em circunstâncias como a do presente caso, tende a gerar, efetivamente, problemas de equilíbrio financeiro a estas entidades, o que pode prejudicar os demais contribuintes participantes da mesma entidade. Dito isto, reforça-se o pertinente posicionamento da Ministra Nancy Andrighi, segundo a qual, não obstante o risco de desequilíbrio em questão, é dever dos administradores dessas instituições, a realização de uma gestão que permita o cumprimento de suas obrigações legais e contratuais.

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Diante da importância desse dever, considerando o objeto contratual que permeia essas relações, ligado à aposentadoria dos cidadãos, é que se compreende a importância da regulação ex ante, de modo a reduzir ao máximo a possibilidade de que questões como esta venham a ser objeto de lide no Poder Judiciário.

3. A Regulação ex ante das Entidades de Previdência Complementar No âmbito da regulação das entidades de previdência complementar, observa-se, inicialmente que estas são classificadas, quanto ao seu regime de acesso, entre abertas e fechadas.462

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Não obstante a atividade econômica desenvolvida por ambas seja, em regra, a mesma, tal divisão decorre do fato de que as entidades fechadas possuem características distintas, próprias da natureza previdenciária que fundamenta a criação dessas instituições. Isto se deve à peculiaridade de que estas realizam a captação de recursos estritamente provenientes de relações de trabalho. Desse modo, observa-se nesse quadro, a conexão entre empregado ou profissional, empregadora patrocinadora ou associação instituidora do plano de benefícios gerido pela entidade de previdência e a sua finalidade de propiciar uma aposentadoria complementar àquela do sistema estatal. De modo diverso, as entidades abertas atuam por meio da captação de recursos junto à poupança popular, sem se limitar a um público específico. É importante destacar que a atividade desenvolvida, tanto pelas entidades abertas como pelas fechadas, possui também elementos de natureza securitária, eis que, dentro do princípio do mutualismo e da gestão dos recursos em consonância com preceitos atuariais, ambas normalmente possibilitam não só a aposentaria complementar, mas ainda o direito a uma renda a ser gozada pelo participante no caso de invalidez, ou por seus herdeiros no caso de morte. Nesses termos, compreende-se que a distinção entre estas instituições está ligada à vinculação, ou não, da participação dos planos a uma relação de trabalho ou de classe, de modo que as entidades fechadas têm o seu fim previdenciário como elemento fundamental, ao passo que nas entidades abertas prevalece o aspecto da relação securitária. 462  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 4o As entidades de previdência complementar são classificadas em fechadas e abertas, conforme definido nesta Lei Complementar. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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Essas características, em consequência, justificam a adoção de tratamentos jurídicos distintos para as suas respectivas regulações.

3.1. A Regulação do Sistema Financeiro Nacional e as Entidades de Previdência Complementar

Antes do tratamento em específico da regulação dessas entidades em seus campos específicos é importante destacar que ambas são consideradas equiparadas às instituições financeiras.463 Diante disso, julga-se importante situá-las dentro do quadro “macro” do Sistema Financeiro Nacional. Esclarece-se, de início, que a literatura sobre o tratamento jurídico do tema não é uniforme quanto ao emprego dos termos regulação, supervisão, monitoramento, fiscalização e regulamentação.464 Desse modo, opta-se pela adoção do termo “regulação” como representativo do conjunto de normas por meio das quais o Estado impõe ou induz o comportamento dos agentes econômicos em sentidos distintos daqueles considerados como prováveis sob as condições de mercado, de modo a atender a interesses sociais constitucionalmente estabelecidos.465 No âmbito específico do Sistema Financeiro Nacional, Armando Castelar Pinheiro e Jairo Saddi apontam a estabilidade, a eficiência e a equidade como objetivos a serem visados pela regulação.466 463  Os fundamentos para esta equiparação serão adiante aprofundados. 464  Sobre classificações e empregos distintos desses termos: TURCZYN, Sidnei. O sistema financeiro nacional e a regulação bancária. São Paulo: RT, 2005, pp. 354-386; FERREIRA, Antonio Pedro. O governo das sociedades e a supervisão bancária - interações e complementaridades. Lisboa: Quid Juris, 2009, pp. 68-98; SADDI, Jairo. Crise e regulação bancária: navegando mares revoltos. São Paulo: Textonovo, 2001, pp. 21-89. LASTRA, Rosa Maria. Banco Central e regulamentação bancária. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp. 90-120. Para uma visão sobre as proximidades e diferenças entre as classificações: YASBEK, Otávio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Elsevier, 2007, pp. 175-180. 465  Nesse sentido, Alexandre Santos Aragão sintetiza o pensamento da doutrina jurídica sobre o tema, conceituando a “(...) regulação estatal da economia como o conjunto de medidas legislativas, administrativas e convencionais, abstratas ou concretas, pelas quais o Estado, de maneira restritiva da liberdade privada ou meramente indutiva, determina, controla, ou influencia o comportamento dos agentes econômicos, evitando que lesem os interesses sociais definidos no marco da Constituição e orientando-os em direções socialmente desejáveis.” Aragão, Alexandre Santos. O conceito jurídico de regulação da economia. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, abril-junho de 2001, p. 47. Nesse mesmo sentido: MOREIRA, Vital. (1997). Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra: Almeidina, 1997, pp. 17-52. 466  PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. São Paulo: Elsevier, 2005, p. 450.

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Sob o escopo da análise das falhas de mercado, tem-se que o fator que determina a atuação estatal para a obtenção da estabilidade e da equidade decorre da inerente existência da assimetria de informações nos mercados financeiros e de capitais. A complexidade existente nessas relações e o custo de o acesso às informações necessárias para o investimento nesses mercados tendem a permitir condutas abusivas por parte de seus participantes, usualmente, em detrimento dos interesses dos pequenos investidores. Diante disso, faz-se necessária a atuação estatal de modo a prover informação em quantidade e qualidade suficientes para permitir a todos os investidores uma condição de equidade.

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De outro lado, a assimetria informacional permite o surgimento de situações de “crise de confiança”, as quais podem levar os participantes dos mercados financeiros e de capitais a tomarem decisões de investimento induzidos por essa condição anômala, o que traz prejuízos não só aos investidores, individualmente, mas também, à própria credibilidade do sistema. Faz-se necessária, dessa forma, a atuação do Estado para a proteção do próprio mercado, por meio da preservação de sua estabilidade. Por fim, sob o escopo da análise econômica, a eficiência dos mercados financeiros é ligada à redução de seus custos de transação. Nesse sentido, a atuação estatal deve buscar meios de estímulo ao desenvolvimento desse sistema por meio de normas jurídicas que permitam e estimulem o crescimento do volume de negócios entre os seus participantes. A dificuldade nessa regulação reside no fato de que esses três objetivos apresentam incompatibilidades intrínsecas entre si. Assim, uma política de redução de controles e de supervisão, ao mesmo tempo em que pode gerar maior eficiência em razão da redução dos custos de transação, propicia espaços para condutas abusivas em detrimento aos pequenos investidores, bem como situações de instabilidade.467 Para a persecução deste intrincado equilíbrio, a regulação financeira se divide entre os focos de regulação de conduta, sistêmica e prudencial. Enquanto a regulação de conduta se volta para o aspecto pertinente ao comportamento dos profissionais dos mercados e a proteção dos investidores a regulação sistêmica prioriza medidas cujo fito é a preservação da estabilidade. 467  PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. São Paulo: Elsevier, 2005, p. 450.

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Por fim, a regulação prudencial tem por finalidade a criação de normas que permitam a identificação, mesmo dentro dos limites da regulação de conduta e sistêmica, de quadros que representem possíveis riscos a estabilidade dos mercados. Assim, nas palavras de Otavio Yasbek, “(...) pode-se afirmar que, se a regulação sistêmica trata da dimensão global e a regulação de condutas trata das relações “individuais” concretas, a regulação prudencial diz respeito às estruturas empresariais “em si”.”468 Esse é o ambiente regulatório aos quais se sujeitam as Entidades de Previdência Complementar.

3.2 A Regulação das Entidades Fechadas de Previdência Complementar - EFPC As Entidades Fechadas de Previdência Complementar – EFPC, usualmente conhecidas como Fundos de Pensão, desempenham papel estabelecido dentro da Ordem Social da Constituição Federal, que se consubstancia na gestão de recursos que propiciem benefícios previdenciários complementares aos oferecidos pelo regime geral da Previdência Social.469 Diante da precedência do aspecto previdenciário na sua constituição e atuação, estas instituições se sujeitam à regulação do Conselho Nacional de Previdência Complementar – CNPC, órgão colegiado integrante da estrutura básica do Ministério da Previdência Social.470 As EFPC desenvolvem atividade econômica sem fins lucrativos. Desse modo, constituem-se sob a forma de fundações ou associações.471 Não obstante sua natureza não empresarial e seu fim não lucrativo, essas instituições também se encontram sujeitas à regulação do Conselho Mo468  YASBEK, Otávio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Elsevier, 2007, pp. 175190. 469  BRASIL. Constituição Federal. Art. 202. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituição /constitui% C3%A7ao.htm. Acesso em: 25 mar 2011. 470  BRASIL. Decreto nº 7.078, de 26 de janeiro de 2010. Disponível em: http://www. planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7078.htm#art8. Acesso em: 05 de maio de 2011. 471  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 31, § 1º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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netário Nacional- CMN,472 o que, desse modo, às insere no Sistema Financeiro Nacional. Essa sujeição, todavia, não determina a caracterização das EFPC como instituições financeiras. Segundo o conceito jurídico consolidado no Brasil, instituições financeiras são sujeitos de direito que realizam como atividade econômica profissional principal e privativa, a captação de recursos de terceiros em nome próprio para o seu repasse, com fins lucrativos, por meio de mútuo feneratício, constituindo-se por força de lei sob a forma de Sociedade Anônima.473 A legislação esparsa e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no entanto, tem considerado as EFPC como equiparadas às instituições financeiras no que se refere a sua atuação como investidora no mercado financeiro,474 bem como para a tipificação da responsabilidade criminal dos seus administradores.475

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472  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 9o As entidades de previdência complementar constituirão reservas técnicas, provisões e fundos, de conformidade com os critérios e normas fixados pelo órgão regulador e fiscalizador. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. § 1o A aplicação dos recursos correspondentes às reservas, às provisões e aos fundos de que trata o caput será feita conforme diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. 473  “Em vista disso, deve-se interpretar o artigo 17 da Lei nº 4.595/64, que define as instituições financeiras em função de suas atividades privativas, como exigindo cumulativamente, (i) a captação de recursos de terceiros em nome próprio, (ii) seguida de repasse financeiro através da operação de mútuo, (ii) com o intuito de auferir lucro derivado da maior remuneração dos recursos repassados em relação à dos recursos coletados, (iv) desde que a captação seguida de repasse se realize em caráter habitual.” SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito bancário. São Paulo: Atlas, 2007, p. 27. 474  BRASIL. Lei nº 8.177, de 01 de março de 1991. Art. 29. As entidades de previdência privada, as companhias seguradoras e as de capitalização são equiparadas às instituições financeiras e às instituições do sistema de distribuição do mercado de valores mobiliários, com relação às suas operações realizadas nos mercados financeiro e de valores mobiliários respectivamente, inclusive em relação ao cumprimento das diretrizes do Conselho Monetário Nacional quanto às suas aplicações para efeito de fiscalização do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários e da aplicação de penalidades previstas nas Leis n°s 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e 6.385, de 7 de dezembro de 1976. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L8177.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011 475  As Entidades Fechadas de Previdência Complementar têm sido equiparadas às Instituições Financeiras pelo Supremo Tribunal Federal, especificamente em matéria criminal, sujeitando-se os seus gestores aos tipos penais estabelecidos pela Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, que trata dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Vide neste sentido: HC 95.515, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 30.09.2008, e RHC 85.094, Rel. Min. Gilmar Mendes, julg. 15.02.2005.

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Sendo assim, conclui-se que as EFPC são equiparadas às instituições financeiras para fins da responsabilidade criminal de seus gestores e para fins de regulação dos seus investimentos nos mercados financeiros e de capitais. Nesse segundo aspecto é que se observa a atuação estatal por meio das regulações de conduta, sistêmica e prudencial .

3.2.1. A atuação regulatória do Conselho Nacional de Previdência Complementar – a Regulação de Conduta e Prudencial Sob o aspecto da regulação prudencial e de conduta das EFPC, destaca-se que nas últimas décadas houve um aumento da percepção da importância dessas instituições, o que ocasionou um processo contínuo de reformulação do seu sistema jurídico, culminando na recente reforma de sua estrutura regulatória por meio da Lei 12.154, de 23 de dezembro de 2009. Nesse âmbito, o Conselho de Gestão da Previdência Complementar CGPC, órgão colegiado responsável pela regulação das EFPC, passou a receber a denominação de Conselho Nacional de Previdência Complementar - CNPC, continuando a integrar a estrutura do Ministério da Previdência Social na qualidade de órgão regulador.476 O CNPC é composto de oito membros, com mandato de dois anos, admitindo-se uma recondução, sendo cinco indicados pelo poder público e três indicados pelas EFPC, pelos patrocinadores e instituidores,477 e pelos participantes e assistidos,478 respectivamente.479 A execução das diretrizes da política regulatória previdenciária, por sua vez, passou a ser atribuída à Superintendência Nacional de Previdência Com476  BRASIL. Lei nº 12.154, de 23 de dezembro de 2009. Art. 13. Disponível em: http://www3. dataprev.gov.br/SISLEX/paginas/42/2009/12154.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 477  Patrocinadores e instituidores são, respectivamente, os empregadores ou as entidades de classe ou associações profissionais de classe ou setoriais, responsáveis pela constituição das EFPC para a implementação dos planos de benefícios de previdência complementar para os seus empregados ou associados. BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 31, I e II. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 478  Participantes são as pessoas físicas aderentes aos planos de benefícios geridos pelas EFPC e assistidos são os participantes ou beneficiários que já estão no gozo desses benefícios. BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 8º, I e II. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 479  BRASIL. Lei nº 12.154, de 23 de dezembro de 2009. Art. 14. Disponível em: http://www3. dataprev.gov.br/SISLEX/paginas/42/2009/12154.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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plementar – PREVIC, autarquia de natureza especial, vinculada, do mesmo modo que o CNPC, ao Ministério da Previdência Social.480 Desse modo, esta autarquia passa a desenvolver, com autonomia administrativa e financeira, as atividades anteriormente desempenhadas pela Secretaria de Previdência Complementar – SPC, órgão do Ministério da Previdência Social. Evidencia-se assim, a importância que passou a representar para o Estado, a persecução da efetiva tutela desse setor da economia. Dentro dessas atribuições, no âmbito da tutela dos investidores, precipuamente dos participantes e assistidos, observa-se a adoção de normas cujo escopo é a regulação de conduta por meio da redução das assimetrias de informação.

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Nesse sentido, o CGPC estabelece a obrigatoriedade das EFPC em disponibilizarem, por ocasião da inscrição dos participantes no plano de benefícios, (i) um certificado com requisitos que regulam a admissão e a manutenção da qualidade de participante, bem como a forma de cálculo de benefícios; (ii) a cópia do estatuto e do regulamento do plano de benefícios; e (iii) material explicativo que descreva, em linguagem simples e precisa, as características do plano.481 No aspecto ligado à perspectiva da tutela do “mercado da previdência complementar”, o CNPC e a PREVIC desenvolvem conjuntamente o papel de regulador prudencial. Destaca-se que as normas compreendidas como de regulação prudencial podem, usualmente ser consideradas como meios de persecução, também, dos objetivos delineados pela regulação de conduta ou sistêmica. A dificuldade nessa delimitação regulatória é uma consequência do fato de que por meio da atuação prudencial se objetiva a preservação do equilíbrio entre eficiência, equidade e estabilidade nos mercados financeiros e de capitais. Desse modo, as normas prudenciais possuem como característica o trânsito fluido entre a preocupação com a proteção dos investidores e a necessidade de preservação de um sistema eficiente e estável. 480  BRASIL. Lei nº 12.154, de 23 de dezembro de 2009. Art. 1º. Disponível em: http://www3. dataprev.gov.br/SISLEX/paginas/42/2009/12154.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 481  BRASIL. Resolução MPS/CGPC nº 23, de 6 de dezembro de 2006. Art. 2º. Disponível em: http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/72/MPS-CGPC/2006/23.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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Por tal razão, as normas prudenciais são normalmente procedimentais, estabelecendo obrigações aos regulados, por meio das quais se visa atender aos objetivos acima aduzidos.482 Como primeiro exemplo de norma prudencial, tem-se a estipulação de critérios mínimos para a autorização à atuação profissional no exercício dessa atividade. Dentre essas, observa-se que para a criação de EFPC por instituidores, estabelece-se como requisitos mínimos para a associação instituidora (i) a congregação de, no mínimo, mil associados ou membros de categoria ou classe profissional, em seu âmbito de atuação e (ii) o exercício regular dessa atividade há pelo menos três anos.483 De outro lado, observa-se a obrigatoriedade estabelecida aos regulados na prestação de informações. Como exemplo, as EFPC devem informar mensalmente os demonstrativos de investimentos dos planos de benefícios que administram.484 Observe-se que mesmo caracterizando-se como normas prudenciais a primeira detém ligação direta com a proteção dos investidores, ao pré-estabelecer condições mínimas para as entidades atuantes nesse mercado. Por sua vez, a segunda é atrelada ao aspecto sistêmico, eis que permite ao órgão regulador supervisionar a adequação dos investimentos das EFPC aos níveis tecnicamente apropriados em relação as suas obrigações presentes e futuras.

3.2.2. A atuação regulatória do Conselho Monetário Nacional – a Regulação Sistêmica e Prudencial A determinação desses níveis de adequação entre a política de investimentos dessas instituições e a capacidade de cumprimento das obrigações presentes e futuras, destaque-se, representa o cerne da regulação sistêmica. Diz-se isto em virtude da compreensão de que a complexidade dos entrelaçamentos das relações nos mercados financeiros e de capitais pode 482  YASBEK, Otávio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Elsevier, 2007, pp. 189190. 483  BRASIL. Resolução MPS/CGPC nº 12, de 17 de setembro de 2002. Art. 4º. Disponível em: http://www3.dataprev.gov.br/SISLEX/paginas/72/MPAS-CGPC/2002/12.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 484  BRASIL. Instrução MPS/SPC nº 14, de 18 de janeiro de 2007. Disponível em: http://www010. dataprev.gov.br/sislex/paginas/37/MPS-SPC/2007/14.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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fazer com que a percepção de que uma instituição está com dificuldades em cumprir suas obrigações se propague para as demais, gerando uma crise de confiança sobre a higidez de todo o mercado, fenômeno este denominado de risco sistêmico.485 Desse modo, a regulação estatal sobre os níveis de risco assumidos pelos profissionais atuantes nesses mercados é uma atividade essencial para a preservação da credibilidade de todo o sistema. Nesse quadro, é preciso se levar em conta as transformações que vêm ocorrendo em virtude das céleres e complexas inovações financeiras adotadas nas últimas décadas, as quais ultrapassam os limites da clássica separação desses mercados entre financeiro e de capitais,486 o que, em consequência, reflete-se sobre a sua regulação.487 No caso específico das entidades de previdência complementar, a relevância da sua participação na qualidade de “investidor institucional”488 no

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485  A importância da confiança para os mercados financeiros é ponto essencial. Na visão de Rosa Maria Lastra: “Apesar de os propósitos específicos da regulamentação bancária buscarem assegurar a segurança e solidez do sistema financeiro e neutralidade econômica na alocação do crédito, o objetivo final é resguardar a confiança no negócio bancário.” LASTRA, Rosa Maria. Banco Central e regulamentação bancária. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp. 63. Jairo Saddi considera a confiança nos mercados um bem coletivo, no sentido econômico do termo. Desse modo, “o bem a ser protegido, em última instância, é a confiança do público poupador nas instituições; a fidúcia dos agentes econômicos na sua moeda e a certeza jurídica na execução de títulos de crédito, na eventualidade de inadimplência. Mesmos que tampouco exista um mercado para confiança ou certeza jurídica, é claro que são bens difusos (ou de índole coletiva) que devem ser protegidos.” SADDI, Jairo. Crise e regulação bancária: navegando mares revoltos. São Paulo: Textonovo, 2001, p. 48. 486  As formas clássicas de classificação do sistema financeiro vêm se tornando cada vez mais insuficientes diante do processo de inovação financeira. Cabe, para o momento, esclarecer que o termo Mercado de Capitais ora adotado se refere ao mercado em que são negociados os valores mobiliários elencados pelo art. 2o da Lei 6.385, de 07 de dezembro de 1976, os títulos de dívida pública federal, estadual ou municipal e os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, tendo sido estes excluídos do regime jurídico dos valores mobiliários por força do § 1º do mesmo artigo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS /L6385.htm. Acesso em: 02 mar 2011. Sobre as inovações financeiras e as possíveis classificações dos Mercados Financeiros e de Capitais: Fabozzi, Frank. J.; Modigliani, Franco; Jones, Frank. J. Foundations of Financial Market and Institutions. New York: Pearson, 2010, pp. 06-07. 487  Como tem sido amplamente observado e debatido, “[t]he last 25 years have been a period of enormous transformation in the financial services sector. The marketplace has seen a marked shift from domestic firms engaged in distinct banking, securities, and insurance businesses to more integrated financial services conglomerates offering a broad range of financial products across the globe. These fundamental changes in the nature of the financial service markets around the world have exposed the shortcomings of financial regulatory models, some of which have not been adapted to the changes in business structures.” G30 FINANCIAL REGULATORY SYSTEMS WORKING GROUP. The structure of financial supervision: aproaches and challenges in a Global Marketplace. Washington: The Group of Thirty, 2008, p. 08. 488  Conceituam-se investidores institucionais como: (i) instituições que exercem como atividade

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mercado de capitais é incontestável, diante do volume de recursos movimentados, bem como em virtude da condição diferenciada que estas instituições possuem em relação aos demais investidores quanto à possibilidade de acesso a informações. Em virtude dessas características, a sua atuação demanda especial atenção, além da coordenação entre os órgãos reguladores diretamente ligados a estas instituições com aqueles responsáveis pela regulação dos demais mercados. Visando fazer frente a essas necessidades, o Sistema Financeiro Nacional detém atualmente uma estrutura voltada para a coordenação de medidas regulatórias e outras diretamente voltada para o tratamento do risco sistêmico. Dentro do escopo da coordenação, destaca-se a criação, em 2006,489 do Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, de Seguros, de Previdência e Capitalização - Coremec, órgão de caráter consultivo, que reúne os Presidentes do Banco Central - BACEN e da Comissão de Valores Mobiliários- CVM, os Superintendentes da Superintendência Nacional de Previdência Complementar – PREVIC e da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP, além de um Diretor de cada uma dessas instituições, cuja atribuição é a de debater e propor medidas de regulação para o melhor funcionamento dos seus respectivos mercados. Ainda no sentido da coordenação, observa-se a adoção de medidas de regulação conjuntas, as quais permitem a harmonização entre os interesses pertinentes ao funcionamento do mercado com aqueles característicos das instituições que nele atuam. Como exemplo, tem-se a fixação de condições para a integralização e resgate de cotas de fundos de investimento com títulos e valores mobiliários de propriedade das entidades fechadas de previdência complementar, estabelecida por meio de um único instrumento normativo emitido em conjunto pela CVM e pela então reguladora das EFPC, a SPC.490 Em relação à política de investimentos, a legislação vigente atribui ao econômica profissional, (ii) a captação de recursos junto à poupança popular por outras formas que não o depósito à vista (iii) e a sua gestão, no seu próprio interesse ou naquele de quem os confiou, (iv) com a obrigatoriedade de realizar investimentos no Mercado de Capitais. 489  BRASIL. Decreto nº 5.685, de 25 de janeiro de 2006. Disponível em: http://www.planalto .gov. br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5685.htm. Acesso em: 10 de maio de 2011. 490  BRASIL. Decisão-Conjunta CVM/SPC nº 12, de 07 de maio de 2008. Disponível em: http:// www.cvm.gov.br/port/atos/deccon/cvmspc12.asp. Acesso em: 10 de maio de 2011.

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CMN a competência para a delimitação dos meios disponíveis às EFPC para a administração dos recursos por elas captados junto aos seus participantes e patrocinadores ou instituidores.491 Nesse contexto, este órgão regulador estabelece que os administradores das EFPC, ao gerirem esses recursos, devem (i) observar os princípios de segurança, rentabilidade, solvência, liquidez e transparência; (ii) exercer suas atividades com boa fé, lealdade e diligência; (iii) zelar por elevados padrões éticos; e (iv) adotar práticas que garantam o cumprimento do seu dever fiduciário em relação aos participantes dos planos de benefícios.492 Não obstante a maior amplitude que vem sendo progressivamente atribuída ao processo de tomada de decisão consoante a regulação baseada no princípio do “homem prudente”, cabendo aos administradores das EFPC a definição da política de investimentos,493 certos limites para a alocação dos recursos são fixados de forma cogente visando a proteção dos interesses dos participantes e beneficiários dessas entidades. 216

Dentre estes, como exemplo, tem-se a salutar limitação no sentido de que apenas dez por cento dos recursos possam ser alocados em obrigações emitidas pelo próprio patrocinador do plano de benefícios.494 Essa medida é emblemática, diante do natural risco de pressões políticas que poderiam existir sobre a EFPC para a aquisição de obrigações emitidas por seu patrocinador, o que colocaria em risco a sustentabilidade dos planos de benefício na eventual dificuldade financeira dessa empregadora. Em síntese, as diretrizes da regulação sistêmica são estabelecidas pelo CMN, cabendo ao Banco Central do Brasil – BACEN a sua execução, observando-se que, diante das dificuldades de delimitação, estas normas, em certa medida, também se caracterizam como persecutórias da regulação prudencial. De outro lado, a característica contemporânea de transversalidade das 491  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 9º, § 1º. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 492  BRASIL. Resolução CMN nº 3.792, de 24 de setembro de 2009. Art. 4º. Disponível em: http:// www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/72/CMN/2009/3792.htm. Acesso em: 10 de maio de 2011. 493  REIS, Adacir. A regulação internacional dos fundos de pensão. In: REIS, Adacir. Fundos de pensão e mercado de capitais. São Paulo: Peixoto Neto, 2008, pp. 19-21. 494  BRASIL. Resolução CMN nº 3.792, de 24 de setembro de 2009. Art. 41, III, e). Disponível em: http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/72/CMN/2009/3792.htm. Acesso em: 10 de maio de 2011.

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obrigações financeiras determina a necessidade de maior coordenação entre as medidas destinadas, tanto para a regulação das instituições atuantes como dos próprios mercados. Para tanto, tem-se a institucionalização do Coremec, cujo papel é a de permitir a harmonização na atuação dos órgãos reguladores do Sistema Financeiro Nacional diante da intrincada missão da preservação de mercados com equidade, eficiência e estabilidade.

3.2.3. A Administração das EFPC e a proteção dos interesses dos participantes e beneficiários As dificuldades para o alinhamento entre os interesses dos administradores das sociedades empresárias aos dos seus sócios, sobretudo nas Sociedades Anônimas Abertas, é um tema que suscita debates desde as primeiras décadas do século XX, a partir da percepção de que estas instituições propiciavam a separação entre a propriedade dos bens e o seu controle. Sob o escopo da análise econômica, esta preocupação se deve ao fato de que a composição estrutural societária gera o problema denominado de “ação coletiva”, segundo o qual a diluição da participação dos sócios no capital social das sociedades acarreta uma deficiência de monitoramento sobre a sua gestão, uma vez que pequenos acionistas, ao sopesarem o custo-benefício em exercer seu direito de fiscalização, optam por não fazê-lo, diante da ínfima diferença que tal atitude tende a refletir em seus ganhos individuais. Essa postura generalizada permite aos administradores priorizarem seus interesses pessoais em detrimento dos interesses da sociedade e de seus sócios. A posição ocupada pela EFPC na economia financeira contemporânea permite a compreensão de que essas instituições enfrentam o mesmo dilema que atinge as Companhias Abertas, senão em maior gravidade, afinal, o problema da ação coletiva pode vir a ser ainda mais profundo nas entidades de previdência complementar. Ao contrário dos sócios, que possuem a distribuição de rendimentos e a transparência na variação do valor das ações como um possível indicador sobre os níveis de adequação da gestão da sociedade, os participantes dos planos de benefícios são titulares de um direito cujo período de maturação é de longuíssimo prazo, tornando-os assim, ainda mais desestimulados em dispensar tempo e recursos para a fiscalização dos gestores da EFPC durante o período de contribuição. Desse modo, compreende-se que o estabelecimento de normas de

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proteção aos interesses dos participantes e beneficiários no âmbito da organização interna dessas instituições é tão importante quanto a regulação estatal acima delineada. Em consonância com esse raciocínio, a Constituição Federal estabelece a necessidade de inserção dos participantes das entidades de previdência complementar nos seus colegiados e em quaisquer outras instâncias de decisão.495 A partir dessa percepção, é importante observar que as EFPC, enquanto gênero, apresentam determinadas diferenças entre si em virtude da natureza de seus patrocinadores. Essas características, por sua vez, repercutem sobre a forma de organização da administração dessas instituições consoante os interesses a serem tutelados. Desse modo, observam-se quais são essas distinções, para após, tratar-se das peculiaridades em suas organizações internas.

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Nesse quadro, têm-se as EFPC divididas, inicialmente, quanto ao regime jurídico ao qual se sujeitam seus patrocinadores, entre patrocinadas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime de direito público e patrocinadas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime de direito privado. No grupo sujeito ao regime jurídico de direito público, têm-se como patrocinadores as pessoas jurídicas de direito público e as pessoas jurídicas de direito privado que se sujeitam ao direito público, ou em virtude da participação de recursos públicos na formação do seu capital social ou em virtude do exercício de atividade econômica por concessão.496 No grupo sujeito ao regime jurídico de direito privado encontram-se as demais, ou seja, as EFPC patrocinadas por pessoas jurídicas sujeitas exclusivamente ao regime jurídico privado. Estas ainda podem ser distinguidas entre si quanto ao número de patrocinadores. Desse modo, têm-se, de um lado, as EFPC singulares, patrocinadas por um único empregador ou pessoa jurídica de caráter profissional, classista ou setorial, e de outro, as EFPC multipatrocinadas, as quais congregam 495  BRASIL. Constituição Federal. Art. 202, § 6º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituição /constitui% C3%A7ao.htm. Acesso em: 25 mar 2011. 496  BRASIL. Lei Complementar nº 108, de 29 de maio de 2001. Arts. 1º e 26. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp108.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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dois ou mais patrocinadores ou instituidores.497 Todas essas espécies possuem inicialmente o mesmo quadro orgânico cogente, similar àquele preconizado para a administração das Sociedades Anônimas, composto por um Conselho Deliberativo, um Conselho Fiscal e uma Diretoria.498 Quanto às peculiaridades em relação a esses órgãos, dois aspectos merecem menção, sendo o primeiro pertinente à composição do Conselho Deliberativo e o segundo relativo aos requisitos para o exercício do cargo de Diretor. No que tange a composição do Conselho Deliberativo, cabe mencionar a existência de posicionamentos doutrinários no sentido de que o Estado deveria possuir representantes dentro desse órgão, diante da compreensão de que as entidades de previdência complementar integram a rede de previdência social brasileira, abrangidas assim pela Ordem Social.499 Diante disso, seria dever do Estado a organização desse sistema em todas as suas instâncias, inclusive no âmbito deliberativo dessas instituições. Tal raciocínio, contudo, parece não se ajustar à noção de “previdência complementar facultativa” preconizada pela Constituição. Desse modo, compreende-se que a atuação estatal nesse âmbito é restrita ao aspecto da regulação, nos moldes anteriormente abordados. No que se relaciona à proteção individual dos participantes nas suas relações com essas entidades, o texto constitucional somente ressalta a necessidade da tutela do direito de participação desses “investidores” nos processos de deliberação. Seguindo esse raciocínio a Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, não somente reforça a obrigatoriedade da representação dos participantes e assistidos nos Conselhos Deliberativo e Fiscal, como ainda estabelece que esta não pode ser inferior a um terço dos membros desses órgãos.500 497  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 34, II. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 498  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 35. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 499  BRASIL. Constituição Federal. Art. 194. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituição /constitui% C3%A7ao.htm. Acesso em: 25 mar 2011. 500  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 35, § 1º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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No que diz respeito à Diretoria, observa-se, inicialmente, a necessidade de que a EFPC eleja um dentre os seus diretores como responsável pelas aplicações dos recursos da entidade, o qual será indicado como tal para o órgão regulador, respondendo os demais, solidariamente com este dirigente, pelos danos para os quais tenham concorrido.501 Quanto à qualificação profissional desses quadros, observa-se a relevante medida normativa recentemente adotada pelo CMN, determinando a certificação por entidade de reconhecido mérito pelo mercado financeiro nacional como requisito para o exercício dos cargos de administrador ou dos demais cargos participantes do processo decisório dos investimentos pelas EFPC.502 Os requisitos acima pertinentes à formação dos órgãos das EFPC se aplicam a todas as suas espécies, indistintamente.

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No âmbito específico das EFPC multipatrocinadas faz-se ainda necessária a preocupação com o equilíbrio dos interesses dos participantes e assistidos dos seus diferentes patrocinadores. Desse modo, na composição do Conselho Deliberativo e Fiscal deve se considerar o número de participantes por patrocinador ou instituidor, bem como os respectivos patrimônios.503 Em outro sentido, o regime jurídico aplicável às EFPC patrocinadas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime de direito público merece especial atenção. Desse modo, são estabelecidos de forma cogente alguns critérios quanto ao funcionamento dessas entidades que se somam ao regime geral. Tem-se assim, a previsão de que o Conselho Deliberativo deve ser composto por no máximo seis membros, respeitando-se a representação paritária entre os representantes dos participantes e assistidos e ainda dos patrocinadores, cabendo a estes últimos a indicação do conselheiro-presidente, o qual terá além do seu, o voto de qualidade. Visando garantir a necessária independência e autonomia a estes membros, estabelece-se um mandato de quatro anos sendo permitida uma recondução.504 501  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 35, § 4º, 5º e 6º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 502  BRASIL. Resolução CMN nº 3.792, de 24 de setembro de 2009. Art. 8º. Disponível em: http:// www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/72/CMN/2009/3792.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 503  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 35, § 2º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 504  BRASIL. Lei Complementar nº 108, de 29 de maio de 2001. Art. 11 e 12. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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Consoante o exposto, observa-se a preocupação do legislador com a tutela dos interesses dos participantes e assistidos das EFPC diante de sua vulnerabilidade e do problema da “ação coletiva”. Ao par dessa perspectiva, observa-se outro aspecto que vem assumindo relevante importância nessa atividade, sendo este relativo à proteção dos recursos dessas instituições em face aos riscos aos quais estão expostos. Dentro desse contexto, destaca-se que um dos grandes objetivos e por que não, desafios, tanto da regulação financeira, no âmbito estatal, quanto da gestão financeira, no âmbito das instituições profissionais atuantes nesses mercados, é justamente, o da administração dos riscos.505 Nesse sentido, recorda-se que no âmbito da regulação sistêmica e prudencial desenvolvida pelo CMN e pelo BACEN observou-se a obrigatoriedade das EFPC em respeitar determinados limites na alocação dos recursos sob sua gestão, bem como o seu dever em prestar informações aos órgãos reguladores, de modo a permitir a supervisão dos riscos a que estas estão se sujeitando, em um nível individual, e dos riscos para a própria estabilidade do mercado, em um nível coletivo. Nesse contexto, tem-se que a atuação conjunta do Conselho Deliberativo e da Diretoria das EFPC tem duas grandes atribuições. Primeiro, a delimitação da sua política de investimentos, a qual deve ser informada à PREVIC em trinta dias a contar de sua aprovação.506 Segundo, a gestão eficiente dos riscos aos quais essa política está sujeita, devendo, para tanto desenvolver processos de controle internos que permitam identificá-los, avaliá-los, controlá-los e monitorá-los.507 Sendo assim, o tratamento jurídico dessas instituições, sob o escopo do seu funcionamento interno, deve observar os mesmos objetivos traçados para a regulação do Sistema Financeiro Nacional. Equidade, por meio da proteção dos interesses dos participantes e assistidos, eficiência, por meio da adoção de normas que permitam a estas instituições o cumprimento de sua função 505  Nesse sentido: “(...) a regulação financeira é, cada vez mais, tratada como uma forma de administração de riscos, (...)”.YASBEK, Otávio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Elsevier, 2007, pp. 176. 506  BRASIL. Resolução CMN nº 3.792, de 24 de setembro de 2009. Art. 16, § 2º. Disponível em: http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/72/CMN/2009/3792.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 507  BRASIL. Resolução CMN nº 3.792, de 24 de setembro de 2009. Art. 9º. Disponível em: http:// www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/72/CMN/2009/3792.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011.

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previdenciária, e estabilidade, por meio da implementação de processos de controle de riscos dentro da própria composição interna dessas instituições.

3.3. A Regulação das Entidades Abertas de Previdência Complementar - EAPC As entidades de previdência complementar, enquanto gênero, desenvolvem a mesma atividade fim, qual seja, a gestão de recursos para fins de aposentadoria e benefícios correlatos. Desse modo, ambas as suas espécies encontram fundamento constitucional equivalente. Todavia, diante da natureza empresarial que permeia as Entidades Abertas de Previdência Complementar – EAPC, o seu tratamento jurídico se desenvolve de modo distinto daquele atribuído às EFPC.

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Diante da prevalência do seu caráter securitário no desenvolvimento dessa atividade, cujo acesso é franqueado a qualquer pessoa física com interesse em participar de seus planos de benefícios, a regulação das EAPC é realizada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP,508 devendo estas instituições, obrigatoriamente, constituírem-se sob a forma de Sociedades Anônimas.509 Por outro lado, considerando a atuação das EAPC na gestão dos recursos recebidos como investidora nos mercados financeiro e de capitais, esta, do mesmo modo que as EFPC, recebe o tratamento jurídico de “investidor institucional”, de modo que a sua política de investimentos também é objeto de regulação específica do CMN. Em verdade, a sua submissão ao Sistema Financeiro Nacional é muito clara, tendo em vista que está expressamente estabelecida pelo ordenamento pátrio, dentro do rol exemplificativo das instituições consideradas equiparadas às instituições financeiras e sujeitas à sua regulação naquilo que lhes couber.510 508  BRASIL. Decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966. Art. 32. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0073.htm. Acesso em: 12 de maio de 2011. 509  BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio de 2001. Art. 36. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp109.htm. Acesso em: 05 de maio de 2011. 510  As Entidades Abertas de Previdência Complementar e as Seguradoras, por força do artigo 18, § 1º da Lei 4.595, de 31 de Dezembro de 1964, são equiparadas às Instituições Financeiras. Como esclarece Eduardo Salomão Neto: “Companhias de seguros e de capitalização, sociedades que distribuem prêmios em imóveis, mercadorias ou dinheiro por sorteio não desenvolvem atividade privativa de instituição financeira, por não captarem recursos sujeitos a devolução em espécie: os prêmios ou

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Destaque-se que, diante dessas características, desenvolvem sob esse regime, a atividade empresarial de previdência privada, não somente as Entidades Abertas de Previdência Complementar, sociedades anônimas constituídas para o exercício específico desse objeto social, mas também são autorizadas a fazê-lo, as Sociedades Seguradoras do “Ramo de Vida”, as quais podem desenvolver ambas as atividades, seguro e previdência, conjuntamente.

3.3.1. A atuação regulatória do Conselho Nacional dos Seguros Privados – a Regulação de Conduta e Prudencial A regulação de conduta das EAPC, quanto ao seu comportamento em relação aos participantes dos planos de benefícios, é atribuída ao Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP, órgão deliberativo, vinculado ao Ministério da Fazenda, responsável pela tutela de toda a atividade securitária desenvolvida no Brasil. A execução das diretrizes estabelecidas por este órgão é atribuída à Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, autarquia dotada de autonomia administrativa e financeira.511 Como exemplo específico da atuação desse órgão na tutela dos interesses dos participantes e beneficiários dos planos de benefícios, cita-se a regulamentação sobre a atividade de empréstimos feitos pelas EAPC aos seus segurados. Nesse caso, é emblemática a concepção de tutela concomitante das perspectivas individual e coletiva, eis que este instrumento normativo, ao mesmo tempo em que restringe a possibilidade de cobrança de qualquer despesa extraordinária pela prestação desse serviço, delimita qual a natureza dos recursos que podem ser utilizados para esta finalidade, de modo a resguardar as reservas destinadas ao pagamento de benefícios, atividade precípua dessas instituições.512 Quanto à perspectiva prudencial, segue-se o raciocínio da criação de requisitos técnicos e econômicos mínimos para o exercício da atividade econômica nesse mercado. Para tanto, no âmbito das EAPC, estabelece-se um prestações recebidos dos seus clientes o são como contraprestação da indenização futura e eventual, do direito a pensão, ou do direito a concorrer a sorteio.” SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito bancário. São Paulo: Atlas, 2007, p. 72. 511  BRASIL. Decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966. Arts. 35 e 36. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0073.htm. Acesso em: 12 de maio de 2011. 512  BRASIL. Circular SUSEP nº 320, de 2 de março de 2006. Disponível em: http://www.susep. gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=20226. Acesso em: 12 de maio de 2011.

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capital social mínimo para a autorização de atuação.513 Nesse mesmo escopo, considerando o caráter empresarial pertinente à atividade desenvolvida por estas instituições, existe a constante preocupação com a prevenção e controle sobre possíveis situações de conflitos de interesse. Desse modo, um dos meios de supervisão nesse sentido é delineado pela obrigatoriedade de prévia autorização do órgão regulador para a realização de qualquer alteração societária envolvendo a mudança, direta ou indireta, no exercício do poder de controle.514 Por fim, dentro do espaço de intersecção entre as regulações prudencial e sistêmica, a SUSEP determina às suas reguladas a obrigatoriedade em prestar informações sobre os riscos assumidos em virtude da natureza de sua atividade.515

3.3.2. A atuação regulatória do Conselho Monetário Nacional – a regulação Sistêmica e Prudencial

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Do mesmo modo que as EFPC, a atuação das EAPC nos mercados financeiros e de capitais demanda tutela específica em virtude dos cuidados necessários em relação às situações de risco sistêmico. É nesse sentido que o Sistema Financeiro Nacional atribui tal competência regulatória ao CMN, órgão deliberativo responsável pela fixação das diretrizes a serem observadas na realização dos investimentos por essas entidades, cabendo ao BACEN, em harmonia com os demais órgãos reguladores envolvidos nesses mercados, a responsabilidade pela sua execução e fiscalização.516 Para tanto, são fixados limites qualitativos e quantitativos para o de513  BRASIL. Resolução CNSP nº 73, de 2002. Art. 9º O capital mínimo da sociedade seguradora especializada no ramo vida e da entidade aberta de previdência complementar organizada sob a forma de sociedade por ações autorizadas a operar em todas as regiões do País não poderá ser inferior a R$ 7.200.000,00 (sete milhões e duzentos mil reais). Disponível em: http://www.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=11233. Acesso em: 12 de maio de 2011. 514  BRASIL. Resolução CNSP nº 166, de 2007. Art. 9º. Disponível em: http://www.susep gov.br/ textos/resol166.pdf. Acesso em: 12 de maio de 2011. 515  Exemplo peculiar é o questionário sobre os riscos, o qual deve ser respondido pelos administradores e encaminhado à SUSEP anualmente. Circular SUSEP nº 276, de 16 de novembro de 2004. Disponível em: http://www.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal. aspx?tipo=1&codigo=17438. Acesso em: 12 de maio de 2011. 516  BRASIL. Decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966. Art. 28. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0073.htm. Acesso em: 12 de maio de 2011.

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lineamento da política de investimento por essas instituições, consoante as características dos ativos financeiros permitidos.517 Recorde-se ainda, dentro da perspectiva prudencial, do papel imprescindível que vem sendo atribuído à coordenação entre os órgãos reguladores como meio de fazer frente à transversalidade que predomina nas relações negociais desenvolvidas nos mercados financeiros e de capitais. Para tanto, a SUSEP participa dos trabalhos da Coremec, sendo representada neste colegiado por seu superintendente e um de seus diretores.518

3.3.3. A Administração das EAPC e a proteção dos interesses dos participantes e beneficiários Quanto ao aspecto relativo à representação dos participantes e beneficiários no processo de gestão dos recursos, há que se observar que a natureza empresarial das EAPC determina a adoção de mecanismos regulatórios distintos daqueles observados nas EFPC. Observe-se, de início, que as entidades abertas são, por força de lei, constituídas sob a forma de Sociedade Anônima, sujeitando-se, desta forma, ao seu regime jurídico. Diante disso, a administração das EAPC é composta pelo Conselho Administrativo e pela Diretoria, sendo ainda obrigatória a constituição do Conselho Fiscal. O elemento de distinção destas, em virtude de sua atividade, encontra-se nos requisitos para o exercício desses cargos, de modo que, exigem-se outras características além daquelas pertinentes à reputação preconizadas pela lei acionária. Para o exercício do cargo de Conselheiro de Administração e de Diretor nas EAPC é preciso ter o comprovado exercício de função diretiva similar à desenvolvida nessa atividade por no mínimo dois anos. Outro elemento de distinção é o de que a posse dos candidatos eleitos ao exercício desses cargos 517  BRASIL. Resolução CMN nº 3.308, de 01 de setembro de 2005. Disponível em: https://www3. bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=105217957&method=detalharNormativo. Acesso em: 12 de maio de 2011. 518  BRASIL. Decreto nº 5.685, de 25 de janeiro de 2006. Disponível em: http://www.planalto .gov. br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5685.htm. Acesso em: 10 de maio de 2011.

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é condicionada à homologação da SUSEP.519 Observa-se assim, a existência de pressupostos técnicos específicos como requisitos para a gestão dessas entidades. Todavia, não existe qualquer forma direta de ingerência por parte dos participantes e beneficiários dos planos de benefícios. Tal situação é compreensível, ao se considerar a finalidade empresarial existente nessa atividade econômica. Não obstante, a tutela dos interesses desses últimos, como anteriormente aludido, é muito próxima daquela que se preconiza como meio de proteção aos interesses dos acionistas minoritários. De certo modo, permite-se compreender que, havendo um regime jurídico que protege os acionistas dessas sociedades, indiretamente, estar-se-á protegendo aos participantes e beneficiários dos seus planos de benefícios. Dentro dessa filosofia, a SUSEP criou no início de 2010, Comissão Especial Permanente, a qual tem por objetivo o estudo e proposição de medidas para a melhora, não só da regulação, mas também, das práticas de gestão e governança corporativa de suas reguladas.520 226

4. Pressupostos para a exegese dos Contratos de Previdência Complementar – a necessária compreensão do obiter dictum Segundo a Súmula 321 do Superior Tribunal de Justiça, de 23 de novembro de 2005, “o Código de Defesa do Consumidor é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus participantes.”521 Além disso, é importante lembrar que as entidades de previdência complementar são equiparadas às instituições financeiras. Desse modo, com o julgamento da ADI 2.591, em 14 de dezembro de 2006, pela improcedência do pedido de inconstitucionalidade da expressão “inclusive bancária, financeira, de crédito e securitária”, reconhece-se, de forma clara, que essas relações estão sujeitas à aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor. Dito isto, infere-se que, uma vez encerrado o longo debate travado no 519  BRASIL. Resolução CNSP nº 136, de 07 de novembro de 2005. Disponível em: http://www. susep.gov.br/textos/resol136.pdf. Acesso em: 10 de maio de 2011. 520  BRASIL. Portaria SUSEP nº 3.558, de 26 de fevereiro de 2010. Disponível em: http://www.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=26490. Acesso em: 10 de maio de 2011. 521  BRASIL. STJ. Súmula 321. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/ doc.jsp?livr e=321&&b=SUMU&p=true&t=&l=10&i=1. Acesso em 07 jul 2011.

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país sobre a incidência dessas normas ao Sistema Financeiro Nacional, o enfoque da doutrina e da jurisprudência sobre o assunto deve passar a ser outro. Faz-se necessário, avançar o debate quanto ao contorno da incidência desse micro-sistema jurídico sobre as relações econômico-financeiras. Em outros termos, não é mais uma questão de incidência, mas sim de grau de incidência. Como bem destaca Claudia Lima Marques, “Mantido o CDC e suas cláusulas gerais (que são normas abertas a necessitar o preenchimento de seus conceitos indeterminados pelos valores e princípios constitucionais e direitos fundamentais) como aplicáveis às relações bancárias, securitárias, financeiras e de crédito de consumo não se deve discutir no Brasil se o direito fundamental do art. 5º, XXXII da CF88 tem ou não eficácia horizontal (Drittwirkung) nas relações privadas, mas sim que força ou intensidade tem esta eficácia entre agentes privados, o consumidor, os bancos e como se dará esta força, esta eficácia horizontal dos direitos fundamentais a vincular estes agentes privados, segundo a decisão da ADIn 2.591!”522 Nesse contexto, destaca-se que a adequada compreensão dessa nova leitura sobre as relações financeiras perpassa pela observação do obter dictum existente nesta célebre decisão do STF. O obter dictum, esclareça-se, é expressão advinda do latim, por meio da qual se faz referência àquela parte da decisão considerada acessória e não vinculante. Permite-se traduzir por “referência passageira”. São, desse modo, argumentos empregados para a justificação de um raciocínio, os quais, não obstante não sejam considerados fundamentais na formação do julgado, possuem “eficácia persuasiva, na medida da força de seus fundamentos”.523 No caso do julgamento da ADIN nº 2591, é importante observar que houve duas decisões prolatadas. O primeiro acórdão apresentava o seguinte teor: 522  MARQUES, Cláudia Lima. O novo direito privado brasileiro após a decisão da ADIn dos bancos (2.591): observações sobre a garantia institucional-constitucional do direito do consumidor e a Drittwirkung no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, 61, Jan./Mar. de 2007, p 66. 523  CAMPOS MELLO. Patrícia Perrone. Precedentes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 126. Nesse mesmo sentido: CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 177.

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EMENTA: CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 5o, XXXII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, EXCLUÍDAS DE SUA ABRANGÊNCIA A DEFINIÇÃO DO CUSTO DAS OPERAÇÕES ATIVAS E A REMUNERAÇÃO DAS OPERAÇÕES PASSIVAS PRATICADAS NA EXPLORAÇÃO DA INTERMEDIAÇÃO DE DINHEIRO NA ECONOMIA [ART. 3º, § 2º, DO CDC]. MOEDA E TAXA DE JUROS. DEVER-PODER DO BANCO CENTRAL DO BRASIL. SUJEIÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia estejam excluídas da sua abrangência. 4. Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação, desde a perspectiva macroeconômica, da taxa base de juros praticável no mercado financeiro. 5. O Banco Central do Brasil está vinculado pelo dever-poder de fiscalizar as instituições financeiras, em especial na estipulação contratual das taxas de juros por elas praticadas no desempenho da intermediação de dinheiro na economia. 6. Ação direta julgada improcedente, afastando-se a exegese que submete às normas do Código de Defesa do Consumidor [Lei n. 8.078/90] a definição do custo das operações ativas e da remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia, sem prejuízo do controle, pelo Banco Central do Brasil, e do controle e revisão, pelo Poder Judiciário, nos termos do disposto no Código Civil, em cada caso, de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou outras distorções na composição contratual da taxa de juros. ART. 192, DA CB/88. NORMA-OBJETIVO. EXIGÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR EXCLUSIVAMENTE PARA A REGULAMENTAÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO. 7. O preceito veiculado pelo art. 192 da Constituição do Brasil consubstancia norma-objetivo que estabelece os fins a serem perseguidos pelo sistema financeiro

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nacional, a promoção do desenvolvimento equilibrado do País e a realização dos interesses da coletividade. 8. A exigência de lei complementar veiculada pelo art. 192 da Constituição abrange exclusivamente a regulamentação da estrutura do sistema financeiro. CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL. ART. 4º, VIII, DA LEI N. 4.595/64. CAPACIDADE NORMATIVA ATINENTE À CONSTITUIÇÃO, FUNCIONAMENTO E FISCALIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ILEGALIDADE DE RESOLUÇÕES QUE EXCEDEM ESSA MATÉRIA. 9. O Conselho Monetário Nacional é titular de capacidade normativa --- a chamada capacidade normativa de conjuntura --no exercício da qual lhe incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o funcionamento das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro. 10. Tudo o quanto exceda esse desempenho não pode ser objeto de regulação por ato normativo produzido pelo Conselho Monetário Nacional. 11. A produção de atos normativos pelo Conselho Monetário Nacional, quando não respeitem ao funcionamento das instituições financeiras, é abusiva, consubstanciando afronta à legalidade.524 Todavia, em razão do acolhimento dos Embargos de Declaração movidos pela Procuradoria Geral da República, houve a modificação do acórdão, a qual se deu pela supressão dos itens 3 e seguintes, de modo que o texto final da decisão passou a ser: ART. 3º, § 2º, DO CDC. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 5o, XXXII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA IMPROCEDENTE. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. Ação direta julgada improcedente.525 524  BRASIL. STF. ADI 2591. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=266855. Acesso em: 07 jul 2011. 525  BRASIL. STF. ADI 2591 ED. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=266855. Acesso em: 07 jul 2011.

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Observe-se que o fundamento dos Embargos de Declaração foi bem pontual. Tratando-se de uma decisão pela improcedência da ação de inconstitucionalidade, não seria cabível a interpretação conforme. Desse modo, não poderia a ementa em questão trazer restrições interpretativas à incidência do Código de Defesa do Consumidor às relações financeiras. Ocorre que o Ministro Eros Grau, durante o julgamento desse recurso, busca realizar um esclarecimento, no qual destaca o seguinte raciocínio, por meio do qual, compreendia inicialmente, que o recurso em questão deveria ser rejeitado. Nas palavras do Ministro, “só para tentar esclarecer porque não acolhi os embargos. Não acolhi, porque não foi usada a técnica da interpretação conforme. Como não foi, os embargos não poderiam ser atendidos. Agora, em obiter dictum, não tenho nenhuma oposição a que se deixe isso observado nesse acórdão, não no outro.”526

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Dito isto, seguiu-se o julgamento, do qual se extrai o seguinte debate, o qual culminou no acolhimento dos Embargos: “O Sr. Ministro Celso de Mello – A nova ementa será aquela consubstanciada da síntese do julgamento de hoje. O Sr. Ministro Carlos Britto – Está ótimo. O Sr. Ministro Sepulveda Pertence (Presidente) – O resto estará no voto do Ministro Eros Grau. Creio que está muito também no voto, hoje, proferido pelo Ministro Cesar Peluso, sobre os dois subsistemas normativos: O Direito do Consumidor e o da regulação dos juros bancários. Agora, verifico uma corrente ponderável, contrária a isso, que é um obiter dictum. Obiter dictum de ementa nunca me levou a receber embargos de declaração. Dada a relevância desse acórdão, porém, creio, hoje, revista a convicção pessoal de cada ministro, parece-me que tudo o mais seria demasia no que ultrapassar o consenso manifestado.”527 526  BRASIL. STF. ADI 2591 ED. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=266855. Acesso em: 07 jul 2011. 527  BRASIL. STF. ADI 2591 ED. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador. jsp?docTP=AC&docID=266855. Acesso em: 07 jul 2011.

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Dito isto, destaca-se que a caracterização da relação financeira como de consumo deve ser compreendida a partir dos fundamentos que nortearam a decisão da corte constitucional, as quais são essenciais em sua futura aplicação. Nesse quadro, é preciso ser sopesar nessas relações contratuais, tanto os princípios norteadores das relações de consumo, quanto aqueles que permeiam as relações financeiras. Por tal razão é preciso destacar que os fundamentos constantes da ementa original da ADI 2.591 foram suprimidos, passando à condição de obiter dictum, mas não rejeitados. A partir dessa percepção, infere-se que a preocupação manifestada por Carlos Alberto Menezes Direito, por ocasião do julgamento que deu azo à Súmula 289 do Superior Tribunal de Justiça, tinha relevantes fundamentos. Afinal, observa-se que, efetivamente, a revisão contratual individualizada sobre um contrato de previdência complementar pode gerar desequilíbrios financeiros nas entidades gestoras desses recursos.

5. Conclusões A relação sistêmica que permeia os contratos previdenciários representam um desafio à sociedade pós-moderna, restando evidente, pelos elementos observados, que a proteção jurídica ex ante tende a oferecer efeitos sociais mais positivos que aqueles advindos da proteção ex post. Nesse quadro, é relevante e promissora a importância que o tema passou a ter no país no último milênio, observando-se um amadurecimento considerável no ambiente regulatório balizador dessa importante relação contratual. Esses bons ventos, quiçá, permitam que no longo prazo, ocorra uma modificação no senso comum em relação às entidades previdenciárias, o que permitirá a consolidação de uma poupança privada em nosso país, afinal, demandas como as que deram origem à Súmula 289 parecem ser, atualmente, menos prováveis. Por fim, é importante destacar que outras demandas surgirão e, nesse bojo, será primordial que o Poder Judiciário passe também a compreender esse novo panorama que permeia esse ambiente institucional previdenciário e, desse modo, considere o obiter dictum da ADI 2.591 nos julgamentos que envolvam suas relações contratuais.

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6. Referências ARAGÃO, Alexandre Santos. O conceito jurídico de regulação da economia. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, abril-junho de 2001. BRASIL. Circular SUSEP nº 276, de 16 de novembro de 2004. Disponível em: http: //www.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=17438. Acesso em: 12 de maio de 2011. BRASIL. Circular SUSEP nº 320, de 2 de março de 2006. Disponível em: http:// www.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=20226. Acesso em: 12 de maio de 2011. BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituição /constitui% C3%A7ao.htm. Acesso em: 25 mar 2011. BRASIL. Decisão-Conjunta CVM/SPC nº 12, de 07 de maio de 2008. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/port/atos/deccon/cvmspc12.asp. Acesso em: 10 de maio de 2011. 232

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A POLÍTICA ANTITRUSTE NO COMBATE AOS CARTÉIS

Giovani Ribeiro Rodrigues Alves528 Renata Carvalho Kobus529

Sumário: 1. Introdução; 2. A regra da razão e a política antitruste brasileira; 3. O Cartel; 4. O price leadership; 5. A dificuldade das autoridades antitruste no combate ao cartel; 6. O Acordo de Leniência; 7. Das investigações sobre cartéis de combustíveis; 8. Conclusão; 9. Referências bibliográficas.

1. Introdução A prevenção das infrações contra a ordem econômica é realizada pautando-se precipuamente nos ditames da livre concorrência e da repressão ao abuso do poder econômico, ambos consagrados na Constituição Federal. Um dos focos de preocupação reside em relação aos acordos celebrados entre empresários para obtenção de benefícios potencialmente danosos ao mercado. Os acordos entre os agentes econômicos são regulamentados pela legislação antitruste (Lei 12.529/2011) e podem trazer eficiências ao mercado, sendo, potencialmente, aceitáveis pelas autoridades antitruste. Nada obstante, usualmente, os acordos firmados entre empresas concorrentes apresentam interesses antagônicos aos da coletividade, dando suporte a condições monopolísticas que restringem, ou até mesmo, afastam a concorrência. O combate ao abuso do poder econômico é fundamental para o bem-estar social e econômico, pois, o acordo explícito entre empresas pode visar apenas à obtenção de maiores lucros, em detrimento do princípio da livre iniciativa e dos efeitos positivos daí decorrentes. Assim, há a necessidade de uma política antitruste efetiva que possua instrumentos de identificação e de combate ao cartel.

2. A regra da razão e a política antitruste brasileira A política antitruste é um dos mais importantes instrumentos de pro528  Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Empresarial da UNIBRASIL e do Curso Prof. Luiz Carlos. Coordenador do LLM em Direito Empresarial Aplicado da FIEP. 529  Pós-Graduada em Direito. Mestranda em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná Professora de Direito Econômico.

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moção do bem-estar social e econômico. Sua estrutura é fundamentada no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, previsto na Lei 12.529/2011 e apresenta como principal órgão o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. A concorrência possui papel fundamental para a coletividade, ao proporcionar o barateamento dos preços, a geração de inovações tecnológicas e a consequente melhoria dos produtos e serviços colocados no mercado à disposição dos consumidores. Sob outro viés, para os empresários a concorrência não costuma ser vista como um fator positivo, vez que a margem de lucro tende a ser diretamente afetada. Desta forma, se de um lado, como afirma ASCARELLI, “a concorrência obriga os produtores a procurarem, constantemente, a melhoria de seus produtos e a diminuição dos preços de custos”530 o que auxilia na busca pela eficiência na atividade empresarial, de outro lado, a concorrência também obriga os empresários a adequarem sua pretensão de obtenção de lucro. 238

Desta forma, a concorrência pode representar um fator prejudicial aos empresários, vez que, potencialmente, faz com que estes aufiram lucros menores e tenham de se importar com as inovações tecnológicas e com a qualidade do produto. Como reação a este potencial prejuízo causado pela concorrência, os empresários, por vezes, adotam práticas como a realização de acordos ilícitos com os demais agentes econômicos com o objetivo de neutralizar a concorrência e usufruir de um mercado com características monopolísticas. A atual Legislação Antitruste considera como acordos ilícitos entre empresas531 aqueles que tenham por objetivo ou efeito: limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; dominar mercado relevante de bens ou serviços; aumentar arbitrariamente os lucros ou que exerçam de maneira abusiva posição dominante. Para a análise de tais acordos, as autoridades devem se utilizar da regra da razão, ou seja, devem realizar a análise de cada caso, utilizando-se de 530  ASCARELLI, Túllio. Os contratos de cartel e os limites de sua legitimidade no direito brasileiro. Ensaios e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1952, p.223. 531  Neste sentido, deve-se considerar como empresa todo o agente econômico que desempenhe função no mercado.

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estudos econômicos/jurídicos e investigações que comprovem a real finalidade do acordo e seus efeitos (mesmo que potenciais). Deve estar presente o elemento pragmático, utilizando-se da linha de raciocínio das possibilidades lógicas e dos consequentes efeitos da conduta, se benéficos (pró-competitivos) ou maléficos ao mercado. Como o Brasil não adota a teoria do ilícito per se, a regra da razão necessariamente deve ser utilizada, pois a condenação só será possível posteriormente à prova, ou à demonstração empírica do envolvimento do agente no cartel e dos efeitos concretos ou potenciais resultantes da infração econômica. Assim, a decisão condenatória precisa ser fundamentada no nexo de causalidade existente entre a ação e o resultado lesivo ou potencialmente lesivo à concorrência. É necessário realizar uma comparação entre a atual situação do mercado com a que hipoteticamente existiria em um mercado competitivo, o que viabiliza a análise dos reais efeitos do cartel. A regra da razão possibilita a adequação da norma ao caso concreto, o que torna o direito mais moderno e aberto e proporciona um julgamento mais justo. Faz com que a legislação antitruste não seja um freio ao progresso técnico e ao aumento da eficiência econômica, ao realizar uma análise completa da conduta e seus efeitos, para somente após decidir se deve haver ou não condenação.

3. O Cartel Os acordos restritivos de concorrência se dividem em duas categorias, quais sejam: acordos verticais e acordos horizontais. Os primeiros são definidos por Forgioni como aqueles “celebrados entre agentes econômicos que se situam ao longo da cadeia produtiva ou distributiva, ou seja, de uma linha imaginária que vai desde a produção da matéria-prima, até a distribuição final do produto ou do serviço”.532 Já os acordos horizontais são conceituados como os celebrados entre agentes econômicos que, por se situarem no mesmo mercado relevante, tanto material quanto geográfico, possuem direta relação de concorrência.533 532  FORGIONI, Paula A. Direito Concorrencial e Restrições Verticais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 23. 533  A Secretaria de Direito Econômico define cartel como sendo “um acordo horizontal, formal ou não,entre concorrentes que atuam no mesmo mercado relevante geográfico e material, que tenha por

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O cartel, objeto principal do presente estudo, é definido como um acordo, predominantemente horizontal, entre agentes econômicos, independentes entre si, que objetiva a diminuição, ou até mesmo a eliminação da concorrência . Os agentes econômicos se reúnem em um sistema de comunicação que permite a coordenação dos comportamentos empresariais direcionados à maximização de seus interesses individuais. As consequências desta forma de abuso do poder econômico afetam não somente à livre concorrência, mas também geram lesão ao maior bem jurídico tutelado pelo Direito que é a coletividade. O cartel incide significantemente sobre a liberdade de escolha e de livre concorrência, além de ocasionar em atraso no setor cartelizado. Desta forma, o cartel é uma das condutas que mais prejudicam o interesse público, seu bem-estar e desenvolvimento econômico.

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Por meio do cartel, a pressão sobre os empresários para melhorar a qualidade de seus produtos, realizar inovações tecnológicas e reduzir o custo de seus produtos é reduzida, pois a competitividade é abalada devido à quebra (artificial) da competição. O grupo de empresas dominantes passa a impor condições que somente a elas interessam, provocando efeitos nocivos à coletividade. O intuito dos agentes econômicos de obtenção de maiores lucros faz com que, não raramente, atuem em detrimento do princípio da livre concorrência. Este princípio, objetivo primeiro da ordem econômica, é um dos meios pelo qual a dignidade e a justiça social são alcançadas, sendo por isso alçado pela Constituição Federal como fundamento de um Estado Democrático de Direito. O cartel visa ao domínio oligopolístico de certo setor do mercado, o que resulta em diversos benefícios aos seus participantes. A principal vantagem às empresas pelo acordo é que a estrutura coordenada permite que os agentes econômicos tenham condições de auferirem lucros bem maiores em comparação aos lucros que teriam no mercado comum, sem se preocupar objetivo uniformizar as variáveis econômicas inerentes às suas atividades, como preços, quantidades, condições de pagamento, etc., de maneira a regular ou neutralizar a concorrência” (BRASIL. SDE (Secretaria de Direito Econômico). Cartilha de cartéis. A defesa da concorrência no mercado de combustíveis. ANP/SDE, 2004, p.11)

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com a concorrência. Esta coordenação oligopolística possibilita que as empresas alcancem resultados iguais ou similares aos alcançados pelo monopólio, sendo que a união entre os integrantes do cartel é possível graças ao instantâneo reconhecimento das ações praticadas pelas empresas concorrentes; a repetição das ações no mercado, o que as tornam rotineiras; o reconhecimento de que os preços em oligopólios serão rígidos em conformidade com as pequenas alterações de demanda e custo; e, por fim, a expectativa de que diminuições nos preços serão contraditadas.534 Cabe dizer que a uniformização do comportamento empresarial atribui ao mercado às mesmas características de um monopólio. Porém, diferentemente do monopólio, o qual – geralmente - demora anos para ser formado, o cartel surge de um simples acordo entre agentes objetivando interesses individuais. Os acordos abarcados pelos cartéis podem ter por objeto a combinação de preços, de condutas que visem ao combate de rivais ou sobre novas regras para modificarem o mercado em que atuam, como a divisão de clientela entre os agentes econômicos. O acordo mais comum é o da fixação de preços. O agente destituído de poder de mercado corre grande risco de perder a rentabilidade de seu negócio com o aumento dos preços, tendo em vista que a probabilidade de seus rivais não o acompanhar ser grande. Além disso, dificilmente a empresa que eleva o preço de seus produtos consegue se manter no mercado, pois os consumidores certamente substituiriam este produto por outro igual ou semelhante mais barato. Assim, os agentes de um mesmo mercado relevante, objetivando maiores lucros, se unem para, desta forma, atingir o poder de mercado, possibilitando a viabilidade da venda de produtos com maiores índices de retorno. O fato da maioria dos países considerarem o cartel como a infração mais grave à ordem econômica faz com que as autoridades tenham maiores cuidados na perseguição e severidade nas punições. No Brasil o cartel é considerado um ilícito administrativo e penal, tendo previsão legal na legislação 534  DOMINGUES, Juliana Oliveira; GABAN, Eduardo Molan. Direito Antitruste: o combate aos cartéis. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.180

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antitruste no inciso I do parágrafo terceiro do art. 36 da Lei n. 12.529/2011. No âmbito penal a infração à ordem econômica está descrita no artigo 4º da Lei 8.137/1990, cuja pena prevista é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa. A formação do cartel, sob o ponto de vista do empresário, se justifica pelas vantagens advindas da neutralização da concorrência e é acentuada quando estão presentes elementos que facilitam a formação dos cartéis. Segundo POSNER, são elementos que caracterizam a pré-disposição à cartelização: (i) a homogeneidade do produto; (ii) um número reduzido de players, o que facilita e barateia a coordenação das atividades do acordo; (iii) existência de barreiras à entrada; (iv) a estabilidade da quantidade de produtos vendidos, ao mesmo tempo em que há a alteração de seus preços; (v) estrutura do mercado dos consumidores e (vi) mercado em retração - situação de crise.535 Quanto menor for o número destes elementos facilitadores da colusão, maior será a probabilidade dos participantes do cartel adotarem comportamentos oportunistas de fraudar o acordo.536 242

Nada obstante, nem sempre a conduta de cartelização se apresentará benéfica aos seus participantes, pois não necessariamente os negócios se tornarão mais lucrativos. Existe a possibilidade das vantagens proporcionadas pela uniformidade do comportamento entre as empresas não serem maiores que as vantagens adquiridas pelo agente econômico que atua sozinho (na ausência de conluio) no mercado. Esta hipótese em que a colusão resulta em lucros menores do que se o agente atuar regularmente no mercado depende da força competitiva interna que a empresa possui no mercado. Caso esta força seja capaz de eliminar de maneira significativa a participação dos concorrentes, será mais rentável optar por um comportamento de rivalidade na busca por maiores lucros e fatias do mercado. 535  POSNER, Richard A. Economics analysis of Law. 4ª ed. Boston: Little-Brown, 1992, p.287-288. 536  João Paulo Leal resumiu os elementos que facilitam o oportunismo, a saber: “(...) (i) quanto maior o número de empresas envolvidas (ou mais precisamente, quanto mais concentrado o mercado em questão); (ii) quanto maior a disponibilidade de informações públicas ou confiáveis sobre os preços praticados (ou quantidades comercializáveis); (iii) quanto menores as flutuações autônomas de preços; (iv) quanto maior a semelhança e a concentração de vendas em poucos canais de distribuição” (LEAL, João Paulo G. Cartéis. Revista do IBRAC, São Paulo, vol.8, n.8, p.54, 2001.

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Para maior estabilidade do cartel, o poder de mercado é visto como um elemento fundamental. Assim, o agente econômico detentor deste elemento terá poder suficiente para impor seus preços e ser seguido pelos demais empresários.

4. O price leadership Denominam-se cartéis de price leadership aqueles que possuem entre seus integrantes um agente detentor de posição dominante no mercado que guia o preço de todos os demais partícipes. Em outras palavras, os demais agentes econômicos participantes do cartel seguem o preço estipulado pela empresa detentora da posição dominante. Para que o cartel de price leadership consiga desempenhar seu objetivo com eficiência, faz-se necessário que a unanimidade de seus participantes siga os preços da empresa líder. Eis a importância de um sistema de comunicação efetivo que sane todas as dúvidas de seus participantes. É comum que o líder desta modalidade de cartel se utilize de diversos meios que venham a exercer influência sobre seus concorrentes para que estes não pensem em reduzir os preços, o que interfere nos efeitos almejados com a formação do cartel. Ressalta-se que os participantes de cartéis de price leadership, nem sempre cometem conduta ilícita, pois os seguidores podem estar praticando o mesmo preço pelo fato de se encontrarem em posição de sujeição em relação ao agente determinante dos preços. O agente líder, por deter a posição dominante, pode se utilizar de mecanismos coercitivos impondo preços às empresas menores. Desta maneira, é evidente que nem todos os participantes dos cartéis de price leadership são responsabilizados pela conduta, o que dependerá da análise da existência ou não de poder de sujeição.

5. A dificuldade das autoridades antitruste no combate ao cartel A grande dificuldade das autoridades antitruste está na comprovação da existência do cartel, pois os preços semelhantes podem ser resultados do funcionamento normal do mercado e não de um acordo entre os agentes. Quando não existe conluio entre os agentes há a caracterização do fenômeno de paralelismo consciente (comportamento intencional). Aqui, a semelhança dos preços se deve às características do mercado, é resultado da

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racionalidade dos empresários, mas não de uma colusão realizada entre os agentes econômicos visando à neutralização da concorrência, condição necessária para a caracterização dos cartéis. No paralelismo consciente há um aumento natural dos preços, o que ocorre na ausência de qualquer tipo de pactuação entre os agentes. Este é também o entendimento da doutrina norte-americana acerca do paralelismo consciente.537 Nos EUA, a Federal Trade Commission (FTC), autoridade antitruste, entendia que pelo fato de tanto o cartel quanto o paralelismo consciente alçarem os mesmos efeitos prejudicais à concorrência, ambos deveriam ser considerados infrações. Porém, os precedentes que permanecem válidos atualmente nos EUA consideram o paralelismo consciente como uma conduta legal, salvo nos casos em que o líder coage os demais agentes do mercado ou os que apresentem evidências de acordo na fixação de preços.538

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No Brasil, apesar de ambas as condutas reduzirem a competição entre os concorrentes, o paralelismo consciente, diferentemente do cartel, não é considerado uma infração à ordem econômica. E neste ponto surge o desafio das autoridades antitruste em analisar se a conduta é ilícita, proveniente de acordo entre os agentes (há cartelização) ou se é decorrente da simples racionalidade econômica. Diante da dificuldade em se provar o conluio, adota-se o paralelismo plus em que o comportamento paralelo passa a ser considerada uma infração à ordem econômica nos casos em que há uma prova ou indício forte de que houve colusão entre os agentes que adotam o comportamento semelhante.539 Este plus não se refere a uma mera presunção, mas sim, de indícios relevantes mesmo que sejam apenas explicados pela teoria econômica. Em mercados oligopolizados, para sustentar um caso de cartel é preciso comprovar que o paralelismo da conduta não teria uma explicação racional, a não ser a hipótese de cartel. 537  SULLIVAN, Lawrence.A; GRIMES, Warren S. The Law of antitrust: an integrated handbook. St. Paul: West Group, 2000, p.39. 538  EUA. Federal Trade Comission. Antitrust Guidelines for Collaborations Among Competitors, 2000. Disponível em http://www.ftc.gov./os/2000/04/ftcdojguidelines.pdf> Acesso em 21 set. 2014. 539  Vide Processo Administrativo n. 08012.000677/1999-70 em face das empresas aéreas Viação Aérea de São Paulo S.A (VASP), Viação Aérea Riograndense S.A (VARIG), Transportes Aéreos Regionais S.A (TAM) e Transbrasil Linhas Aéreas.

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O que dificulta substancialmente a tipificação dos cartéis é o fato dos agentes econômicos não possuírem o costume de produzir provas contra si mesmo, por conhecerem a ilegalidade da conduta, suas consequentes penalidades, assim como a difícil comprovação do acordo pelas autoridades, o que resulta na impossibilidade de condenação. Os agentes, ao saberem da ilicitude de suas condutas, não lavrarão atas de reuniões que apresentem como finalidade acordo (s) entre as empresas concorrentes com o objetivo de diminuir ou até mesmo afastar a concorrência. É a velha máxima de que quem frauda não costuma deixar recibo.

6. O Acordo de Leniência Com o intuito de facilitar a obtenção de provas que comprovem a existência dos cartéis, foi instituído na Lei 8.884/94540 o acordo de leniência, o qual também foi previsto na nova lei antitruste, em seu artigo 86.541 Conforme estabelece o dispositivo atualmente vigente, por intermédio da Superintendência Geral, o CADE poderá celebrar acordo de leniência com pessoas físicas ou jurídicas que colaborem efetivamente com as investigações de comprovação do cartel e do processo administrativo no geral. No programa de leniência o Estado realiza uma compensação com a empresa delatora. Enquanto o agente denunciador presta informações que auxiliem efetivamente na detecção do cartel, o Estado, como recompensa pela ajuda, premia a empresa com benefícios. Como premiação pela colaboração poderá haver a extinção da punibilidade (caso a infração constitua ação penal pública), a redução de um a dois terços da penalidade aplicável e/ou a redução da multa a ser aplicada.542 540  É o disposto do caput do artigo 35-B da Lei nº 8.884/94 e seus incisos: “A União, por intermédio da SDE, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais co-autores da infração; e II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação”. 541  Art. 86. O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: 542  Em relação às multas aplicadas à cartel por intermédio dos acordos de leniência, de 1990 a 2008

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Salienta-se que diferentemente da legislação antitruste americana, tanto a legislação europeia quanto a brasileira não incluem a possibilidade de restituição, pelo agente participante do acordo de leniência, dos danos causados pelo cartel à sociedade, o que confere um caráter mais punitivo, neste aspecto, à legislação dos EUA. Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos aos administradores e dirigentes que participaram da infração, nos casos em que estes firmem o respectivo instrumento em conjunto com a empresa delatora. Destarte, desde que cumpridos os requisitos do acordo, a leniência beneficia tanto a pessoa jurídica quanto as pessoas físicas. O acordo de leniência se constitui como um dos meios mais efetivos no combate a cartéis, já que na dificuldade de se provar a existência, alia-se ao infrator oferecendo-lhe benefícios.

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Outro aspecto que proporciona eficiência deste meio de combate aos cartéis é o temor dos integrantes da colusão das elevadas multas e duras penas aplicadas nas condenações. Assim, aumenta-se o clima de tensão no cartel o que provoca a perda da confiança entre os membros da organização. A consequente instabilidade dentro do cartel propicia a corrida pela denúncia, pois somente o primeiro agente delator é beneficiado, o que aumenta a chance de delação consciente.

7. Das investigações sobre cartéis de combustíveis As atividades de distribuição e revenda, embora sujeitas à forte regulação, são atividades exercidas por particulares. O monopólio natural conferido à Petrobras, estabelecido pela Lei nº 2.004/53, refere-se somente às atividades de exploração, produção, refino, importação e transporte marítimo ou por dutos de petróleos e derivados. A Agência Nacional de Petróleo - ANP, autarquia especial vinculada ao Ministério de Minas e Energia, regula os mercados de distribuição e revenda de gasolina principalmente quanto ao acesso ao mercado, à qualidade dos

a Comissão Européia arrecadou um valor que excedeu 13 bilhões de euros e os EUA, no período de 1997 a 2008, aplicaram multas que superaram 3 bilhões de dólares, além das sanções criminais.( BRASIL. SDE (Secretaria de Direito Econômico). Cartilha de combate a cartéis em sindicatos e associações. Disponível em: . Acesso em 21 set. 2014).

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produtos e à forma de aquisição dos combustíveis.543 Não há regulação de preços nestes mercados, o que sujeita os agentes econômicos a observarem o previsto na Lei Antitruste. No Brasil, uma das práticas mais investigadas de cartelização é a de combustíveis, que possui o maior número de casos analisados pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Conforme dados oferecidos pelo Ministério da Justiça referentes ao ano de 2008, o número de denúncias de prática de cartel no setor de combustíveis corresponde a um terço do total das denúncias recebidas pela SDE, o que resulta em um número de aproximadamente 200 cartéis de combustíveis em investigação naquele ano.544 Isto se deve à presença de diversos fatores favoráveis à colusão no setor de combustíveis. De acordo com análise efetuada pelo Ministério Público Federal, os fatores propensos à prática de cartel no setor de combustíveis são:545 O produto é homogêneo (o que implica a proximidade de preços); as barreiras à entrada de novos concorrentes são elevadas (regras urbanísticas, ambientais, custo significativo); a estrutura de custos semelhantes (o produto, o local, os funcionários); as condições estáveis de custos e demandas (são conhecidos os custos, são poucos variáveis, bem como o percentual de vendas); o alto grau de concentração no mercado (a pulverização-existência de inúmeros postos revendedores de combustíveis – é aparente quando estão organizados e sob comando central). Quanto maior for a presença dos aspectos acima mencionados, maior é a probabilidade de semelhança de preços. Assim, a presença de todos estes fatores no setor de combustíveis pode resultar na semelhança dos preços mesmo na inexistência de acordo entre os agentes.

543  O site da ANP, por meio do link http://www.anp.gov.br/i_preço, mostra semanalmente os valores de revenda e de distribuição de combustíveis para diversos municípios brasileiros. 544  BRASIL. Ministério da Justiça. notícia. Disponível em:. Acesso em: 21 set. 2014. 545  BRASIL. Ministério Público Federal. Disponível em: < http://ccr3.pgr.mpf.gov.br/institucional/grupos-trabalho/energia/adulteracao-e-cartel-de-combustivel/Cartel%20de%20Combustiveis. pdf >. Acesso em 21 set. 2014.

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Desta forma, a semelhança de preços de revenda de combustíveis não pode ser considerada indício de cartel, por si só, não sendo suficiente para fundamentar uma denúncia sem a existência de outros elementos que demonstrem a existência de colusão explícita. A simultaneidade não deve motivar uma investigação de cartel, visto que tal semelhança se refere à dinâmica natural do mercado de revenda de combustíveis. Para que a semelhança de preços ou o reajuste simultâneo ou em datas próximas possam ser o único indício de configuração de cartel, é preciso que haja a ocorrência de um plus. Deve ser demonstrada a inexistência de qualquer explicação para o paralelismo, a não ser a realização de um acordo entre os agentes. A doutrina deste paralelismo plus foi aplicada no Processo Administrativo n. 08000.015337/97-48 em que as empresas CSN, Cosipa e Usiminas foram condenadas por cartel, após reajustarem seus preços em datas e percentuais próximos após uma reunião. 248

O CADE entendeu que houve o acordo, visto que não foram identificadas possibilidades racionais da prática ter ocorrido em razão de outros aspectos que a justificassem. Desta forma, a única explicação para o paralelismo no reajuste dos preços seria um acordo. Além da existência dos fatores ideais para a formação de cartel, o setor conta ainda com uma grande participação dos sindicatos nos acordos. É o sindicato que, na grande parte das vezes, realiza a intermediação entre os proprietários dos postos e/ou as fornecedoras/revendedoras de combustíveis.

8. Conclusão O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) possui atuação bastante incisiva apesar das diversas dificuldades financeiras e a carência de recursos humanos. Há grande dificuldade na comprovação dos crimes que apresentam o abuso de poder econômico, em especial o cartel. Como os acordos são secretos e costumam envolver grandes agentes econômicos, detentores de dinheiro e de poder, a política antitruste é bastante custosa e nem sempre consegue obter provas suficientes para viabilizar a condenação das empresas. Diante desta circunstância, verifica-se a extrema importância dos meios alternativos de combate aos cartéis firmados com a autoridade anti-

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truste, como o acordo de leniência. O acordo de leniência é um mecanismo capaz de controlar as dificuldades na obtenção de provas de acordos anticompetitivos, pois viabiliza a obtenção de provas que em outras condições provavelmente não seriam obtidas. Assim sendo, o programa de leniência apresenta o potencial de ferir a estabilidade do cartel, elevando as chances de identificação do acordo ilícito e de punição das empresas infratoras. Trata-se de mera decorrência da busca pela maximização do agente econômico envolvido. A partir do momento em que a delação tornar-se mais atraente do que a permanência no cartel, isto será feito. Na mesma esteira, quanto mais rotineiras e rigorosas se demonstrarem as investigações e punições contra os agentes econômicos infratores, menor será a tentação para o acordo intencional de condutas e/ou preços em detrimento do consumidor.

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9. Referências ASCARELLI, Túllio. Os contratos de cartel e os limites de sua legitimidade no direito brasileiro. Ensaios e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1952. BRASIL. CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Processo administrativo n.º 08012.03208/99-85. Disponível em: < http://www.cade.gov. br >. Acesso em 21 set. 2014. _______.Processo administrativo nº 08000.015337/97-48. Disponível em www.cade.gov.br, acesso em 21 set. 2014. _______.Processo administrativo nº 08012.002127/2002-14. Disponível em www.cade.gov.br, acesso em 21 set. 2014. _______.Processo administrativo nº 08012.001826/2003-10º. Disponível em www.cade.gov.br, acesso em 21 set. 2014. _______.SDE (Secretaria de Direito Econômico). Cartilha de cartéis. A defesa da concorrência no mercado de combustíveis. ANP/SDE, 2004. 250

_______.SDE (Secretaria de Direito Econômico). Cartilha de combate a cartéis em sindicatos e associações. Disponível em: . Acesso em 21 set. 2014. _______.MJ (Ministério da Justiça). Decreto Presidencial: Dia Nacional de Combate a Cartéis . Acesso em: 21 set. 2014. _______.MJ (Ministério da Justiça). Notícia. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2014. _______.MJ (Ministério da Justiça). Resolução n.º 20 do CADE. Disponível em: < http://www.cade.gov.br/upload/Resolução%20nº%2020,%20de%-209%20 de%20junho%20de%201999.pdf >. Acesso em 21 set. 2014. _______.MJ (Ministério da Justiça). Resolução n.º 46 do CADE. Disponível em: . Acesso em 21 set. 2014. _______.MPF (Ministério Público Federal). Disponível em: < http://ccr3.pgr. mpf.gov.br/institucional/grupos-trabalho/energia/adulteracao-e-cartel-de-combustivel/Cartel%20de%20Combustiveis.pdf >. Acesso em 21 set. 2014.

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MARCOS WACHOWICZ

A COMPLEXIDADE DOS DIREITOS INTELECTUAIS ENVOLVIDOS NAS BASES DE DADOS DIGITAIS Marcos Wachowicz546 Sumário: 1. Noções conceituais fundamentais; 2. A complexidade da base de dados digital; 2.1. Elementos que integram a noção jurídica de Base de Dados; 2.2.Os sujeitos de direito que integram na consecução da Base de Dados: A) Direitos do autor da base de dados. B) Direitos do fornecedor titular da base de dados. Direitos do usuário da base de dados; 3. Considerações sobre a proteção internacional das bases de dados. A) A posição da União Europeia. B) A posição da Organização Mundial do Comércio – OMC. C) A posição da Organização de Propriedade Intelectual – OMPI 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas.

1. Noções conceituais fundamentais A princípio, necessário se faz analisar na atual Revolução da Tecnologia da Informação que propiciou o surgimento da Sociedade Informacional, que corresponde a uma sociedade informatizada, em que a informação547 ou os dados548 podem ser digitalizados por meio de programas de computador, e assim ser armazenados (storange) em bases de dados que, uma vez interconectadas através de redes de transmissão em terminais, estão à disposição dos usuários, o que efetivamente pode (e deve) ser protegido pelo direito autoral como conteúdo de uma base de dados. A pergunta logo se coloca, o que é efetivamente uma base de dados? A base de dados é definida como um conjunto de informações referentes a um 546  Professor de Direito na Universidade Federal do Paraná. Professor permanente no Curso de Pós-Graduação – programas de Mestrado e Doutorado em Direito PPGD/UFPR. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Mestre em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa – Portugal. Coordenador-lider do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/ UFPR. Autor da obra: Propriedade Intelectual do software e a Revolução da Tecnologia da Informação. E-mail: [email protected] 547  “Conceito de informação pressupõe um estado de consciência sobre factos ou dados; o que quer dizer que pressupõe um esforço (de carácter intelectual) que permita passar da informação imanente (dos factos ou dados brutos) à sua percepção ou entendimento.” Cfr.: GONÇALVES, Maraia Eduarda. Direito da Informação. Coimbra : Almedida, 1994, p 16-17. 548  “Em bom rigor não, não se deve confundir o dado com a informação. Aquele é o facto – o atributo, uma propriedade de certo objeto – enquanto esta é já o resultado da interpretação entre eles.” Cfr.: MARQUES, Garcia; MARTINS, Lourenço. Direito da Informática. Coimbra : Almedina, 2000, p. 296.

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determinado setor do conhecimento humano, está organizada por meio de programas de computador especialmente desenvolvidos para esta finalidade, e é suscetível de ser utilizada em várias aplicações. A doutrina549 distingue três grandes modelos de base de dados: a) Bases de dados hierárquicas (hierarchial data bases), nas quais os dados estão organizados através de relações de hierarquia que podem representar-se de forma estruturada a partir de uma raiz comum; b) Bases de dados reticulares (network data bases), nas quais as distintas informações se organizam através de uma pluralidade de pontos de acesso; e c) Bases de dados relacionais (relational data bases), nas quais os dados se estruturam sistemati¬camente em relações homogêneas que permitem ao usuário selecionar e adaptar às suas necessidades operativas. Na área jurídica as questões são de duas ordens: 254

(i) a primeira é como determinar quando se incorporam às bases de dados obras protegidas pelo Direito Intelectual; e, (ii) segunda reside em quando se pode dizer que as mesmas bases de dados constituem obras intelectuais protegíveis. Assim, se determina base de dado informatizada é constituída por obras intelectuais de terceiros (arquivos digitais de músicas, filmes, fotografias, dentre outros), inegavelmente que haverá de se ter previamente autorização dos titulares dos direitos autorais para que se possa realizar a comercialização. As questões ganham maior complexidade dentro das incontáveis possibilidades de criação e compartilhamento de bancos de dados utilizando-se os recursos tecnológicos disponíveis a grande maioria da população mundial.

2. A complexidade da base de dados digital A Base de Dados Digital ganha complexidade na medida que se percebe em sua evolução tecnológica o surgimento paulatino de facetas: (i) na sua origem as bases de dados dos computadores estavam restri549  LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. Manual de Informática y derecho. Barcelona : Editorial Ariel, S.A., 1996. p. 137-140.

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tas apenas ao registro e tratamento numérico; (ii) posteriormente com a evolução tecnológica se incluiu o registro alfa-numérico; e, mídia).

(iii) finalmente, nos dias atuais, abranger as imagens e os sons (multi-

Por isso, como observam Garcia MARQUES e Lourenço MARTINS,550 “ao aludirmos às bases de dados, devemos agora ter presente esta faceta tridimensional”. No Brasil o entendimento doutrinário551 é pacífico de que “base de dados” ou “banco de dados” são sinônimos, bem como de uma percepção jurídica do conceito de base de dados como sendo um conjunto unificado de informações disponíveis através de meios informáticos. Antonio CHAVES com clareza expressa: “Database (Banco de dados) é definida como uma fonte de informações armazenada eletronicamente em forma digital de modo que possibilite ao usuário reagir com os recursos”. O aspecto mais importante da definição de Antonio CHAVES é a potencial mudança da transferência unilateral da informação numa modalidade interativa. Sem dúvida a informática, ou tratamento eletrônico e digital, agilizou a coleta de dados, sua manipulação e armazenamento em parâmetros quase que ilimitados de possibilidades. Contudo, é necessário delimitar-se com mais rigor o conteúdo da base de dados, para que na ciência jurídica se possa precisar a tutela da propriedade intelectual e de que forma será protegida pelo Direito Autoral. Distinguem-se três tipos de base de dados: a) composta de informações primárias, ou seja, dados oriundos de tabelas de estoque, de dados históricos, numéricos, dentre outros; b) composta de informações ditas secundárias, como catálogos, index, lista, rol de informações que surgem originariamente de determinado local, inclusive sinopses de acontecimentos, de jornais, de resumos, dentre outros; e 550  MARQUES, Garcia; MARTINS, Lourenço. Direito da Informática. Coimbra : Almedina, 2000, p. 295. 551  CHAVES, Antonio. Direitos Autorais na Computação de Dados. São Paulo : LTr, 1996, p. 97.

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c) composta de textos originais, como de petições ou decisões judiciais, manuais de técnicos, apostilas de ensino, atlas, enciclopédias, artigos de jornais, coletâneas musicais, gravações de palestras, imagens fotográficas ou vídeos, dentre outros. O tratamento digital para a criação de base de dados com obras protegidas pelo Direito Autoral implica necessariamente uma contrafação de direito autoral, por força do disposto no artigo 7.o da Lei n.º 9.610/98, que estabelece a proteção de obras intelectuais expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro.552

2.1. Elementos que Integram a Noção Jurídica de Base de Dados

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A base de dados é definida como sendo arquivos eletrônicos com dados e informações determinados e organizados para facilitar a consulta, possuindo conteúdos variados: dados culturais, jurisprudenciais, comerciais, educacionais, etc. Os acessos às bases de dados informatizadas podem ser on line ou off line, por telefone ou pela internet; de todos os modos a acessibilidade à base documental digital estará previamente pactuada. Contudo, a proteção legal que integra a noção jurídica da base de dados envolve uma análise relativamente complexa dos seguintes elementos: o conteúdo em si da base de dados – ou seja, conjunto de dados informatizados e armazenados digital ou analogicamente em algum meio permanente e estruturado de forma a mostrar a relação entre documentos individuais guardados em sua base de dados; a forma ou sistema de organizar os conteúdos e de acesso ou utilização – consiste na forma, modelo ou sistema utilizado para classificar e dar informação sobre os conteúdos de uma base de dados, bem como facilitar a acessibilidade e utilização, criando a funcionabilidade da base de dados por meio de programas de computadores específicos; o programa de computador utilizado para a criação da base de dados – trata-se de um software desenvolvido com a finalidade específica de sistematizar a base de 552  “Não é a mera aglomeração de obras que permite falar de uma obra de conjunto. A matéria terá de ser dada pelas obras armazenadas mas só poderá aspirar uma tutela autoral com base no critério ordenador. Não se cria uma nova obra só por força do interesse das obras selecionadas ou de outros aspectos destas, mas pelo interesse do conjunto. Ora, o interesse do conjunto depende da valia do critério de ordenação adotado. Esse critério de ordenação estará estreitamente relacionado com o próprio programa de computador que subjaz à base de dados” ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro : Renovar, 1997, p. 673.

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dados; e o programa de computador necessário para a consulta e a utilização da base de dados – trata-se de um software desenvolvido especificamente para oferecer informações e propiciar acesso à base de dados. Assim, para a perfeita consecução de uma base de dados, interagem necessariamente diversas pessoas jurídicas com direitos e tratamentos jurídicos específicos.

2.2. Os Sujeitos de Direito que Interagem na Consecução da Base de Dados Para a consecução plena de uma determinada base de dados – desde a sua criação, desenvolvimento, comercialização até a efetiva utilização de seus dados – interagem três sujeitos de direito em perspectivas distintas de direito, a saber: o autor, o titular e o usuário.

A) Direitos do autor da base de dados A princípio é necessário ter-se claro que o objeto do direito de autor da base de dados previsto no inciso XIII, do artigo 7.º, da Lei 9.610/98, se restringe ao sistema ou critério de seleção do conteúdo, desde que nisso possua suficiente caracterização como obra intelectual fruto do esforço humano; ressalvados os direitos autorais que outrem possa ter sobre o conteúdo em si (obras literárias, musicais, visuais, etc.). O autor é sempre a pessoa física criadora de determinada base de dados.553 Contudo, o titular poderá ser uma pessoa física ou jurídica ou, ainda, se fruto do esforço singular, a titularidade será individualizada na pessoa do criador, em coautoria quando concorrem duas ou mais pessoas para a criação; quando se tratar de obra coletiva, embora criada por um grupo de pessoas físicas, a titularidade pertencerá ao contratante que tenha celebrado o contrato para desenvolvimento de uma base de dados – neste caso, o contrato poderá ser de direito privado ou administrativo, isto é, contratados por obra certa especificamente para tal fim, ou ainda, sejam contratos de trabalho celetista ou estatutário desde que igualmente para o fim específico almejado.554 553  Cfr.: Art. 11, Lei 9.610. 554  As obras mencionadas no inciso XIII, do artigo 7.º da Lei 9.610/98 consideram-se protegidas, sob seus aspectos formais, pelo conjunto diferenciado em relação a outras obras da mesma natureza e que até se utilizem de dados ou trechos parcialmente idênticos. Salvo raras exceções, tratam-se de obras coletiva.” ABRÃO, Eliane Yachouh. Direito de autor e conexos. São Paulo : Editora do Brasil, 2002, p. 120.

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A duração dos direitos de autor no direito brasileiro para exploração da base de dados será de 70 anos a teor da regra geral do artigo 41 da Lei 9.610/97. O titular dos direitos autorais da base de dados poderá, a seu único e exclusivo critério, autorizar ou não que terceiros: reproduzam a base de dados, total ou parcialmente, temporária ou permanentemente, utilizando os meios e as formas que considere convenientes; distribuam a base de dados ou suas cópias ao público em geral; modifiquem a base de dados, traduzam-na ou, de qualquer forma, realizem adaptações reordenando-a de outra forma; e transfiram ou cedam seus direitos patrimoniais de autor. De igual modo, apresentam-se os limites ao titular dos direitos de autor da base de dados: reprodução em bases de dados não eletrônicas, quando a reprodução seja com fins privados sem finalidade lucrativa;555 reprodução para fins de docência ou de investigação científica, sem finalidade lucrativa, sempre com a indicação da fonte;556 reprodução para produzir prova administrativa ou judicial.557 258

B) Direitos do fornecedor titular da base de dados A pessoa que cria a base de dados possui sua obra protegida na medida em que é titular de direitos autorais. O titular originário da base de dados poderá ser a pessoa física que o criou ou, na hipótese singular da obra coletiva, o organizador, seja ele pessoa física ou jurídica. A titularidade, chamada derivada da base de dados pode ser adquirida por um terceiro em virtude de contrato (intervivos) ou em função de sucessão (mortis causa). O titular derivado adquire alguns direitos sem participação no processo criativo: o titular por convenção, que assume por delegação do autor seus direitos patrimoniais na comercialização ou de qualquer outro modo de utilização da base de dados; o titular por sucessão, que adquire os direitos do autor (pessoa física) em virtude de seu falecimento, dentro do prazo de proteção conferido à obra, antes que entre em domínio público. Assim, no que tange à figura do titular derivado por convenção dos direitos autorais de uma base de dados, seus direitos se resumem ao direito de reprodução da base de dados e ao direito de distribuição nas condições e 555  Cfr.: art. 46, inciso I, Lei 9.610/98. 556  Cfr.: art. 46, inciso III, Lei 9.610/98. 557  Cfr.: art. 46, inciso VIII, Lei 9.610/98.

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formas apresentadas em contrato.

C) Direitos do usuário da base de dados Os direitos do usuário de determinada base de dados admitem a equiparação ao consumidor nos termos do artigo 2.º do Código de Defesa do Consumidor. Portanto, considera-se usuário toda pessoa física, jurídica ou coletividade de pessoas que adquiram ou utilizem produtos como destinatário final. Assim, o usuário legítimo de uma base de dados, ou de suas cópias legítimas, pode prescindir da existência de um vínculo contratual expresso com quem forneceu onerosamente, ou seja, mesmo os que não participaram direta e ativamente da relação negocial. A internet possibilita ao usuário o acesso a sites das mais diversas instituições, como universidades e órgãos do governo, para consultar o acervo de textos e livros, constituindo uma importante ferramenta de pesquisa. Além de serviços de informação múltiplos, a exemplo dos que são disponibilizados on line pela rede bancária, a qual permite consultas pela rede mundial de computadores a seus correntistas via home banking ou internet banking. Da mesma forma, periódicos, jornais e revistas, em parceria com provedores de informação, como a American On Line - AOL, disponibilizam o conteúdo de suas publicações na internet. Quer-se com isso dizer que com a constituição de uma base de dados há pelo menos dois pólos que interagem: os usuários consumidores da informação e os titulares produtores de informação. A apropriação dos dados ou a sua inserção pelo usuário consumidor de uma base informatizada poderá ser de informação livre, protegida ou restrita, vale dizer: são livres e registráveis as informações referentes a dados produzidos pelo próprio criador da base de dados – a exemplo dos dados brutos colhidos por um jornalista no terreno onde aconteceram dos fatos, que são uma espécie de res nullis, utilizável por todos, o mesmo ocorrendo com os textos oficiais de livre utilização ou, ainda, com as decisões prolatadas pelos tribunais, as quais não pertencem aos seus relatores; são protegidas aquelas em que se deva respeitar os direitos autorais dos seus respectivos titulares, o que envolverá necessariamente a obtenção de sua autorização, mediante normalmente remuneração, para incluir textos integrais ou parciais dos bens intelectuais existentes e coletados na base de dados; e restritas quando a informação contida na base de dados somente é acessível mediante autorização prévia do titular da base, sendo controlado seu acesso e distribuição.

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3) Considerações sobre a proteção internacional das bases de dados As primeiras tentativas de regulamentação e proteção internacional das bases de dados, no que tange à troca de informações mediante a utilização de computadores pelo sistema computer-to-computer, rapidamente ingressou no cenário de organismos internacionais, nomeadamente na União Europeia - E¬U, Organização Mundial do Comércio - OMC e Organização Mundial de Propriedade Intelectual - OMPI.

A) A Posição da União Europeia A primeira proteção internacional no Direito Comunitário Europeu relativa à proteção jurídica das bases de dados foi apresentada pelo Conselho em 1992. Sobre ela emitiu parecer o Parlamento Europeu em 23.06.92558 e desta proposta foi erigida a versão final da Diretiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 1996. No que diz respeito ao tratamento de dados, destacam-se dos seus considerandos, algumas premissas:

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a) Premissa de harmonização – com vistas a eliminar disparidades nos Estados-membros em nível de proteção jurídica e garantir uma maior coesão e harmonia no funcionamento do mercado interno comunitário. b) Premissa de Proteção das bases de dados pelo Direito de Autor – A proteção das bases de dados embora já garantida em vários Estados-membros pelo Direito de Autor, quer por meio de legislação específica, quer por meio de construção jurisprudencial, tornava necessária a adoção de outras medidas a fim de impedir a extração desleal e a reutilização do conteúdo de uma base de dados. c) Premissa do critério de proteção de uma criação intelectual – O critério a ser usado para determinar a aplicabilidade da proteção deve atender à existência de uma criação intelectual do autor quanto efetua a seleção ou a disposição do conteúdo das bases de dados, não devendo intervir critérios estéticos ou qualitativos. d) Premissa da proteção ao investimento econômico – A proteção das bases de dados é necessária para coibir o acesso e a ex558  Publicado no JOCE C 194, de 19.07.93.

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tração não autorizada em face dos consideráveis investimentos humanos, técnicos e financeiros, cuja reprodução é autorizada a um custo que apenas representa uma fração do investimento aplicado. e) Premissa da noção de base de dados – A noção de base de dados deve incluir quaisquer compilações de obras, quer de outros materiais, tais como, textos, sons, imagens, números, fatos, dados ou, ainda, a combinação aleatória ou não destes. f) Premissa da base de dados como instrumento de Acumulação de Informação – A base de dados entendida como instrumento de acumulação de informação (de obras literárias, artísticas, musicais, fotográficas, cinematográficas, etc.) é o instrumento técnico que põe à disposição dos usuários a mais completa compilação do patrimônio da Comunidade. g) Premissa da abrangência da proteção da base de dados – A proteção deve abranger o sistema desenvolvido para facultar a apresentar a informação, bem como o sistema de indexação e de thesaurus559 usados na criação ou exploração de base de dados. h) Premissa de exclusão da expressão base de dados do programa de computador em si – A expressão base de dados não inclui o programa de computador, objeto de proteção por Diretiva própria. i) Premissa de proteção das compilações – As bases de dados protegidas serão as obras ou materiais, em cuja disposição, armazenamento ou acessos se utilizem meios eletrônicos, eletromagnéticos, eletro-opticos ou análogos. j) Premissa de independência dos direitos incidentes na base de dados – Os direitos intelectuais porventura existentes sobre as obras incorporadas a uma base de dados não são afetados pela 559  Entende-se por thesaurus o vocabulário controlado e dinâmico de descritores relacionados semântica e genericamente, que cobre de forma extensiva um ramo específico de conhecimento.

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existência de um direito distinto sobre a seleção ou disposição dessas obras em determinada base de dados. k) Premissa do direito especial de opor à extração ilegal – Indepen-dentemente da existência de direitos intelectuais objeto de proteção específica, o próprio conteúdo deve ser protegido mediante um direito especial, designado de “direito de opor-se à extração de cópia ilegal”, que visa proteger o criador da base de dados contra uma extração não autorizada e a reutilização daquele conteúdo, evitando-se assim a apro¬priação abusiva dos resultados de investimentos para fins comerciais. l) Premissa da utilização sob licença – Se determinada base de dados distribuída comercialmente é a única fonte de acesso a determinada obra ou material, no interesse da concorrência entre fornecedores deve o seu produtor colocar essa obra material à disposição de terceiros mediante utilização sob licença. 262

m) Premissa de privacidade, segurança e confidencialidade das bases de dados da Administração Pública – Uma base de dados criada e posta à disposição do público pela Administração Pública não pode recusar licenças relativas à extração e reutilização, desde que não viole legislação pertinente à proteção dos dados pessoais, à vida privada, à segurança e confidencialidade. n) Premissa de utilização da base de dados – Ao legitimo utilizador de uma base de dados, está assegurada a possibilidade de citar ou de alguma forma utilizar, para efeitos comerciais ou privados, o conteúdo da respectiva base de dados. o) Premissa dos contratos de utilização de base de dados – Nos contratos de utilização de base de dados, devem constar a previsão de sua reutilização para fins estritamente privados, didáticos ou de investigação. Assim, de forma sintética a proposta da Diretiva sobre a proteção jurídica das bases de dados é feita de forma binária, em modos distintos. Num primeiro, pelo Direito Autoral na medida em que se observa a presença de

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criação intelectual, exteriorizada pela seleção ou organização da informação. E, num segundo modo delitual, pela atribuição de um direito especial sui generis ao produtor da base de dados de modo a compensar a desproporção entre os elevados custos de produção contra uma extração ilícita, não autorizada do seu conteúdo, e ou, a reutilização não autorizada. Ressalte-se, ainda, que a proteção dada pelo Direito Autoral é estendida por 70 anos, enquanto a proteção do conteúdo pelo regime sui generis foi estendida na redação final pelo Parlamento pelo período de 15 anos. Igualmente importantes são as restrições ao âmbito de aplicação de outras Diretivas já existentes: programas de computador (Diretiva 91/250/CEE, do Conselho, de 14 de maio de 1991); Direito de locação e comodato e direitos conexos ao direito de autor (Diretiva 92/100/CEE do Conselho, de 19 de novembro de 1992); Prazo de duração do direito de autor (Diretiva 93/98/CEE do Conselho, de 29 de outubro de 1993).560

B) A Posição da Organização Mundial do Comércio – OMC Em Montevidéu, foram realizados em 15 de abril de 1994, na sequência das negociações comerciais multiaterais, chamadas de Uruguay Round, Acordos de Direito à Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (ADIPIC ou TRIPs), que sujeitando seus membros à observância da Convenção de Berna, estabeleceram que as compilações de dados ou de outros elementos, sejam fixadas num suporte legível por máquinas, ou sob qualquer outra forma, que constituam criações intelectuais, em virtude da seleção ou da disposição dos respectivos elementos constitutivos, serão protegidas enquanto tal.561 Ressalte-se, por outro lado, que essa proteção não abrange os próprios dados ou elementos, nem prejudica os eventuais direitos de autor aplicáveis a esses dados ou elementos.562 A proteção à base de dados foi incorporada também por força do acordo TRIPs, é certo que a proteção conferida por lei não abrange os dados ou materiais em si mesmos, e se firma sem prejuízo de quaisquer direitos autorais que subsistam a respeito dos dados ou materiais contidos nas obras (art. 7.º, parágrafo segundo, Lei 9.610/98). 560  GONZÁLEZ, Lydia Esteve. Derecho e Internet. Textos Jurídicos Básicos. Alicante : Liberia Compas, p. 245 e Seg. 561  ADIPID art. 10.º, 2. 562  ADIPID art. 10.º, 2, 2ª parte.

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C) A Posição da Organização Mundial de Propriedade Intelectual OMPI Em Genebra, foi realizada em 20 de dezembro de 1996, pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual - OMPI, conferência sobre questões relativas ao direito de autor e conexos, tendo sido adotados dois novos tratados: um sobre direito de autor e outro sobre prestações de fonogramas. Contudo, relativamente a um terceiro tratado sobre um direito sui generis de propriedade intelectual respeitante às bases de dados, embora constasse da proposta da conferência, apenas foi recomendado para trabalhos futuros. O Tratado da OMPI sobre direito de autor estabeleceu que as compilações, sob qualquer forma de dados ou outros elementos, quer pela escolha ou disposição das matérias, constituem criações intelectuais e são protegidas como tais, dispondo, de igual modo, que esta proteção não abrange os dados ou os elementos eles mesmos, nem prejudica direitos de autor existentes sobre os dados ou elementos contidos na compilação (art. 5.º).

4. Conclusões 264

Assim, pode-se afirmar que nos países latinos e da Europa continental, delimita-se com precisão a base de dados no Direito da Informática basicamente em dois campos: o campo do Direito de Propriedade no que tange à proteção do direito autoral na tutela da propriedade intelectual; e o campo do Direito das Pessoas, ao qual pertine o tema da proteção da privacidade em face da informática. O desenvolvimento das novas Tecnologias da Informação e o compartilhamento de bases de dados na INTERNET ainda exige maiores estudos que possam tutelar os bens imateriais, ao mesmo tempo em que, promovam o desenvolvimento desta nova Sociedade Informacional, dentro de um movimento internacional de inclusão tecnológica dos indivíduos.

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5. Referências ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. CHAVES, Antonio. Direitos Autorais na Computação de Dados. São Paulo: LTr, 1996. GONÇALVES, Maraia Eduarda. Direito da Informação. Coimbra: Almedida, 1994. LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. Manual de Informática y derecho. Barcelona: Editorial Ariel, S.A., 1996. MARQUES, Garcia; MARTINS, Lourenço. Direito da Informática. Coimbra: Almedina, 2000.

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