Caminhos da Razão Estudos em homenagem a Guido Antônio de Almeida e Raul Ferreira Landim Filho 9788581280820

Sumário A Metafísica de Avicena e as Provas da Existência Divina Alfredo Storck Ética, Pragmática e Aprendizado André Be

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Caminhos da Razão Estudos em homenagem a Guido Antônio de Almeida e Raul Ferreira Landim Filho
 9788581280820

Table of contents :
Sumário
A Metafísica de Avicena e as Provas da Existência Divina
Alfredo Storck
Ética, Pragmática e Aprendizado
André Berten
Observações críticas sobre o critério de distintividade das meras percepções
em Leibniz
Edgar Marques
Conhecimento matemático na Primeira Meditação de Descartes
Ethel Menezes Rocha
Filopono e a controvérsia acerca da relação entre natureza e movimento nos
corpos elementares
Fátima Regina R. Évora
Atenção e método na filosofia de Descartes
Lia Levy
Locke e a referência secreta
Luiz Carlos Pereira
Espinosa expositor e crítico da explicação cartesiana do erro
Marcos André Gleizer
Forma e predicado em Tomás de Aquino – uma crítica a Form and existence .
Markos Klemz Guerrero
Um breve videtur quod non acerca da estrutura bipartida da proposição
predicativa
Rodrigo Guerizoli
Consciência como base para a diferença entre modos de conhecer em Kant
Sílvia Altmann
Produz o gênio suas obras (de arte) como a macieira, suas maçãs?
Virginia Figueiredo
Πάθος: um emaranhamento conceitual?
Marco Zingano
Saber por experiência e conhecer pelo entendimento: livre arbítrio e
providência em Descartes
Pierre Guenancia
Liberdade e imputabilidade em Kant
Pedro Costa Rego
A Metafísica de Avicena e as
Provas da Existência Divina
Alfredo Storck

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Caminhos da Razão Estudos em homenagem a Guido Antônio de Almeida e Raul Ferreira Landim Filho Organizadores: Edgar Marques, Ethel Menezes Rocha, Lia Levy Luiz Carlos Pereira, Marcos André Gleizer

Rio de Janeiro, 2019 Aos mestres com carinho e admiração. © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ) Tel.: (21) 3546-2838 www.naueditora.com.br [email protected] Coordenação editorial: Angela Moss e Simone Rodrigues Revisão: Mariela Cunha e Angela Moss Projeto gráfico e editoração: Melanie Guerra Capa: Cristiana Gurgel Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte – UFRRJ Claudia Saldanha – Paço Imperial Francisco Portugal – UFRJ Ivana Stolze Lima – Casa de Rui Barbosa

Maria Cristina Louro Berbara – UERJ Pedro Hussak – UFRRJ Rita Marisa Ribes Pereira – UERJ Roberta Barros – UCAM Vladimir Menezes Vieira – UFF CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C191 Caminhos da razão : estudos em homenagem a Guido Antônio de Almeida e Raul Ferreira Landin Filho / organizadores Ethel Rocha ...[et al.]. -1.ed - Rio de Janeiro : Nau, 2019. 312 p. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8128-082-0 (Ebook) 1. Filosofia. I. Rocha, Ethel. 19-60520      CDD: 101 CDU: 1 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. 1 a. edição – 2019 – 300 exemplares Sumário A Metafísica de Avicena e as Provas da Existência Divina Alfredo Storck Ética, Pragmática e Aprendizado André Berten Observações críticas sobre o critério de distintividade das meras percepções em Leibniz Edgar Marques Conhecimento matemático na Primeira Meditação de Descartes

Ethel Menezes Rocha Filopono e a controvérsia acerca da relação entre natureza e movimento nos corpos elementares Fátima Regina R. Évora Atenção e método na filosofia de Descartes Lia Levy Locke e a referência secreta Luiz Carlos Pereira Espinosa expositor e crítico da explicação cartesiana do erro Marcos André Gleizer Forma e predicado em Tomás de Aquino – uma crítica a Form and existence . Markos Klemz Guerrero Um breve videtur quod non acerca da estrutura bipartida da proposição predicativa Rodrigo Guerizoli Consciência como base para a diferença entre modos de conhecer em Kant Sílvia Altmann Produz o gênio suas obras (de arte) como a macieira, suas maçãs? Virginia Figueiredo Πάθος: um emaranhamento conceitual? Marco Zingano Saber por experiência e conhecer pelo entendimento: livre arbítrio e providência em Descartes Pierre Guenancia Liberdade e imputabilidade em Kant Pedro Costa Rego A Metafísica de Avicena e as Provas da Existência Divina Alfredo Storck ¹

Avicena insiste ser a Metafísica ² a ciência encarregada de provar a existência divina. Ao fazer isso e ao estudar as propriedades necessárias deste ser, essa disciplina receberia uma qualificação especial, relacionada ao tipo de objeto investigado: Ciência Divina . Nosso objetivo nessa nota consiste em chamar a atenção para alguns aspectos das provas fornecidas por Avicena e como elas devem ser entendidas. A primeira dificuldade envolvida neste ponto diz respeito ao número de provas propostas pelo pensador persa. Os especialistas no pensamento de Avicena discutem para saber qual tipo de prova teria ele fornecido. Com efeito, todos concordam que o pensador defendia uma prova cosmológica, mas alguns ainda pretendem que Avicena seria partidário de um argumento ontológico para provar a existência divina. Comecemos, portanto, pelo ponto mais polêmico. As provas ontológicas da existência de Deus ocupam um capítulo especial na história da filosofia. Autores das mais diversas orientações e períodos como Anselmo, Descartes, Leibniz, Espinosa ou Norman Malcolm (para citar ao menos um contemporâneo) defenderam provas que, partindo apenas do conceito de Deus, alcançariam a existência deste ser sem que para isso fosse necessário admitir a existência de nenhum outro objeto. Em geral, os argumentos ontológicos variam conforme o conceito admitido no estágio inicial da prova (Deus é inicialmente caracterizado seja como “o melhor ser”, como “o ser mais perfeito”, como “absolutamente simples” ou ainda como “infinito”) e conforme a maneira de derivar a noção de existência. A derivação pode ser direta, ou seja, mostrando-se que a existência é uma característica contida no conceito apresentado, ou indireta, mostrando-se que uma contradição resultaria da não aceitação da existência deste ser. Aqueles que sustentam que Avicena teria defendido um argumento ontológico pretendem que o argumento teria como ponto de partida a definição de Deus como “ser necessário”, derivando daí a sua existência. Neste caso, Avicena teria sido o autor do primeiro argumento ontológico (direto) da história da filosofia. Se considerarmos a história dos debates acerca da atribuição de um argumento ontológico a Avicena, veremos que ela possui dois momentos distintos. O primeiro ocorreu nas décadas de 40 e 50 do século passado e envolveu intérpretes espanhóis e franceses. Em várias ocasiões, o historiador da filosofia Miguel Cruz Hernandez sustentou que Avicena teria esboçado um argumento ontológico ao escrever a seguinte passagem: “Medite sobre como estabelecer a existência do Primeiro, sua unicidade e seu caráter imaterial. Nossa explicação não tem necessidade de outra coisa a não ser a própria noção de ser. Não é preciso considerar que ele foi criado, nem que foi feito, ainda que possamos alcançar desta maneira uma prova da existência do Primeiro. Mas aquela maneira é mais sólida e mais nobre, ou seja, quando consideramos o estado do ser, o ser apresenta-se com ser e por si só indica o que vem após na ordem da existência.” ³ Avicena não desenvolve muito mais este ponto seja no Livro das Diretivas e Observações ⁴ , de onde esta passagem foi retirada, seja em suas demais obras. Mesmo assim, se aproximarmos este texto daquele em que o autor

confecciona a famosa hipótese do “homem voador”, veremos que eles possuem algo em comum, a saber, a tentativa de alcançar a existência de um objeto correspondente a uma certa noção partindo apenas da própria noção. Com efeito, a ficção do homem voador é um argumento criado com o objetivo de dar plausibilidade a teses acerca da alma humana. ⁵ A ficção destina-se a sustentar não apenas que possuímos um conhecimento evidente de nossa existência, mas que esse conhecimento independe da aceitação de teses acerca dos nossos corpos ou de qualquer outro conhecimento advindo da experiência sensorial. Suponhamos, diz-nos o autor, que alguém fosse criado subitamente e de tal forma que fosse incapaz de ver as coisas exteriores. Suponhamos ainda que ele estivesse solto no espaço ou no vazio e que não sentisse nem mesmo a resistência do ar. Seus membros estariam separados de tal modo que não pudessem encontrar-se ou tocar-se. Suponhamos que ele pensasse e se indagasse sobre a sua existência. Sem nenhuma dúvida, conclui Avicena, esta pessoa chegaria à conclusão de que existe. O que torna esta ficção um argumento interessante é que ela permite mostrar que o conhecimento da existência é independente de conhecimentos sensíveis na medida em que torna possível reconhecer a verdade da proposição: “eu existo” e ignorar todas as proposições que descrevem o mundo sensível. A aproximação entre os dois argumentos serviria de evidência para encontrar um certo tipo de prova no corpus aviceniano, ainda que o próprio autor não tenha totalmente explorado essa alternativa. De maneira um tanto curiosa, é exatamente da aproximação dos dois argumentos que partem os críticos da posição acima. L. Gardet ⁶ e A. –M. Goichon ⁷ admitem que, na passagem acima citada, Avicena teria esboçado uma certa prova da existência de Deus. Todavia, não se trataria de uma prova na qual o conceito de existência seria atingido por meio de uma análise conceitual. Tal como no caso da hipótese do “homem voador”, seria na intuição do objeto, e não no conceito deste, que estaria baseada a prova. Em segundo lugar, haveria entre os dois textos uma diferença fundamental. No caso da intuição da existência da alma humana, a prova poderia ser refeita por qualquer indivíduo, pois todos possuem este tipo intuição. Qualquer um pode intuir a existência de sua própria alma. Bastante diferente, contudo, é a situação no caso de Deus, pois somente alguns, ou seja, os “justos”, possuiriam uma intuição deste tipo. No fim da década de 70, esta discussão foi retomada por dois especialistas norte-americanos. Partindo da noção de ser necessário, noção aliás recorrente na obra de Avicena, P. Morewedge ⁸ procurou apresentar o que ele chamou “uma terceira versão do argumento ontológico” (as duas outras seriam as de Anselmo e Norman Malcolm). O núcleo do argumento giraria em torno da noção de evidência, pois o que deveria ser provado é que a proposição: “O Necessariamente Existente existe” é evidente. Esta prova, segundo Morewedge, seria possível dadas as funções e local da noção de ser necessário na obra de Avicena. Eis o argumento: O ser enquanto ser ( hastî ) é o conceito mais geral ( ‘âmm ) reconhecido pelo intelecto ( jhirad, ‘aql, nous, intelligentia ); Por relação ao intelecto, o ser enquanto ser divide-se nos seguintes tipos de ser: possível, contingente e necessário;

Logo, o Ser Necessário é o Ser Necessariamente Existente ou o Necessariamente Existente é aquele cuja essência é a existência. Podemos resumir a pretensa prova ao seu mínimo afirmando que, se Avicena admite que o Ser Necessário é aquele que não pode não existir (e isto em virtude de sua essência), então o pensador persa estaria sustentando que a existência faz parte das notas definidoras de “Ser Necessário”. Sendo assim, tal como no caso da proposição “O triângulo não tem três lados”, a proposição “Deus não existe” seria não apenas falsa, mas contraditória. Escrevendo não diretamente contra a reconstrução de Morewedge, mas contra qualquer tentativa de ler nas obras de Avicena um argumento ontológico para provar a existência de Deus, H. Davidson ⁹ sustenta que, ao dizer que irá construir uma prova baseada exclusivamente na análise do conceito de “ser enquanto ser”, o que Avicena estaria dizendo é que sua prova pressuporia apenas princípios metafísicos. A declaração feita pelo pensador persa deveria ser entendida, portanto, como mais uma crítica àqueles autores que defendiam que a prova da existência de Deus seria realizada no âmbito da Física. Avicena estaria longe de formular algo como uma prova ontológica. A dificuldade da tese de H. Davidson é que, de fato, encontramos na obra de Avicena frases que parecem indicar algo como um argumento ontológico. Uma delas é a seguinte: “O Ser Necessário é aquele que dizer que ele não existe implica contradição. O ser possível é aquele que pode ser tomado seja como existindo seja como não sem risco de contradição.” Entretanto, prossegue Davidson, nesta e em outras passagens semelhantes, o pensador árabe não estaria comprometendo-se com a afirmação de algo “existente no mundo exterior e que corresponda ao conceito”. Ele estaria apenas derivando vários atributos do conceito de ser necessário. As proposições “O Necessariamente Existente existe” e “O Necessariamente Bom é bom” são ambas verdadeiras. Todavia, nenhuma delas, por si só, equivale a afirmação da existência no mundo exterior de algo como O Necessariamente Existente ou O Necessariamente Bom. Sem prosseguir mais na apresentação desta polêmica, que de resto continua aberta entre os especialistas, digamos apenas que o ocidente latino medieval não encontrou traços deste alegado argumento em Avicena. Isso porque as obras em que ele aparece não foram traduzidas para o latim. Mesmo assim, há uma curiosa passagem na qual Henrique de Gant (1217-1293) parece ler Avicena como defensor de um argumento senão ontológico, ao menos diferente das tradicionais provas. Afirma Henrique em sua Suma : “Segundo creio, foi isso o que pensou Avicena quando disse que o homem pode saber que Deus existe por intermédio de proposições universais e não por intermédio de testemunhos sensíveis.” ¹⁰ A afirmação acima, no entanto, deve ser tomada cum grano salis , uma vez que a grande maioria dos pensadores latinos medievais aceitava o argumento de Anselmo, sendo Tomás de Aquino talvez a única exceção no século XIII. Não chega, portanto, a ser surpreendente ver em um autor do período o reconhecimento de algo que, aos seus próprios olhos, era bastante aceito.

O argumento cosmológico de Avicena A presença de um argumento cosmológico na Metafísica de Avicena é ponto facilmente reconhecido pelos especialistas de tal forma que podemos nos limitar às dificuldades encontradas pelo próprio pensador. Grosso modo , um argumento cosmológico para provar a existência de Deus pode ser caracterizado como uma prova que começa reconhecendo a existência de algo, por exemplo, um ser humano, uma planta ou pedra. Em segundo lugar, recorrendo-se a um princípio de causalidade, mostra-se que tanto este objeto quanto a sua causa devem ser causados. Em seguida, refuta-se a ideia de uma série infinita de causas alcançando assim a prova de uma primeira causa chamada Deus. A história da filosofia conheceu vários argumentos com basicamente esta mesma estrutura, mas que diferem pelo tipo de causa empregada. Tomás de Aquino, por exemplo, apresenta na sua Suma de Teologia cinco tipos diferentes de argumentos cosmológicos, pois são cinco os tipos de causalidade admitidos por ele. Além das quatro causas aristotélicas (eficiente, final, material e formal), Tomás acrescenta uma quinta a qual é, na realidade, uma subdivisão da causa eficiente em causa do movimento e causa da existência. Esta divisão, conhecida no mínimo desde o pensador grego Proclus, será um dos pontos chaves do argumento de Avicena. Antes de passarmos à prova propriamente dita, algumas observações fazemse necessárias. Não podemos perder de vista que o debate sobre como provar a existência de Deus envolve uma tomada de posição acerca de várias outras questões. Uma delas surge quando examinamos as críticas de Avicena à prova de Aristóteles. Lembremos que as críticas endereçadas ao pensador grego diziam respeito à relação entre as ciências. Se, tal como parecia sustentar Aristóteles, a prova é realizada no âmbito da física, então a ordem das ciências seria afetada, pois esta e não a metafísica seria a ciência suprema. O resultado imediato desta crítica é que Avicena será forçado a formular uma prova diferente, ou seja, uma prova que não se baseie em princípios da física. Portanto, para bem demarcar a sua prova da de Aristóteles, nosso filósofo repetidas vezes caracteriza a sua prova como metafísica. Mas há ainda um outro problema intimamente vinculado a esta prova, a saber, o problema da eternidade do mundo. A posição adotada por Avicena acerca deste ponto é em boa medida tributária de sua leitura de alFârâbî. Em outras palavras, Avicena estava convencido pelos argumentos de al-Fârâbî de que o criacionismo é insustentável. Ora, não é difícil perceber o problema gerado por tal aceitação. Com efeito, como tornar compatível a tese segundo a qual Deus existe e é causa do mundo com a tese de que o mundo é eterno? Para escapar a esta dificuldade, Avicena formula um argumento cosmológico que reúne o apelo à contingência (característico do kâlam ) com a investigação aristotélica da Primeira Causa. Ou, mais precisamente, Avicena propõe reinterpretar a Primeira Causa aristotélica não mais como causa do movimento, mas como causa da existência. Para tornar mais simples nossa exposição, apresentaremos não o texto onde aparece o argumento, mas o próprio argumento tal como é usualmente reconstruído pelos especialistas. A versão abaixo é basicamente a proposta por L. E. Goodman ¹¹ .

Tudo o que existe é sempre necessário ou contingente; Aquilo que existe necessariamente não requer nenhuma causa. Sua existência não pode ser negada sem contradição; Aquilo que é contingente pode ou não existir. Tanto a sua existência quanto a sua não existência não implicam nenhuma contradição. Portanto, se ele existe, ele requer uma causa que o torne necessário. Mas neste caso não necessário em si mesmo, mas por relação àquela causa; Alguma coisa existe: este objeto em minha frente existe; Logo, ele é necessário ou contingente; (por 1) Se ele é necessário, então há um ser necessário, i. e., um ser não causado; (QED) Se ele é contingente, há uma causa que determina sua existência ou que determina a sua existência sobre a sua não existência (pois nada na natureza daquele objeto impõe a sua existência e nenhuma contradição está envolvida no fato dela nunca ter existido); Com respeito a esta causa, perguntamos se ela é necessária ou contingente; Seguimos a série de causas até alcançar um ser necessário; Ora, não pode haver uma série infinita de causas que alcance seu fim em um efeito atual. Mesmo assim, há um tal efeito em nossa frente (por 4 e 7). Também não pode ser o caso que um sistema complexo de causas sustente a si mesmo, eliminando a contingência inerente a cada membro do complexo, pois isto tornaria os efeitos as suas próprias causas, transformando o que é contingente por si no que é necessário por si. Portanto, há um ser necessário. (QED) O leitor que pela primeira vez encontra este argumento pode ficar em dúvida se esta alegada prova é realmente acerca de Deus, pois ainda que se admita que Deus seja um ser necessário, ele deveria possuir muitas outras propriedades não contempladas nesta prova. Avicena estava plenamente consciente desta dificuldade e sua resposta é relativamente simples: é tarefa da metafísica, considerada como a Ciência Divina , investigar a natureza divina. Isto quer dizer que ela não apenas prova a existência deste ser, mas ainda oferece uma análise do conjunto de suas propriedades. A sequência da investigação realizada por esta ciência segue uma ordem bem precisa. Após provar que há um ser necessário, prova-se que ele é único e simples para depois mostrar-se que ele possui os atributos tradicionais da omnisciência, sabedoria e bondade. No entanto, visto que estamos concernidos mais com o aspecto metafísico do que com o teológico do argumento, deixaremos de lado o restante da argumentação e nos concentraremos na estrutura da prova oferecida pelo filósofo. A primeira premissa do argumento divide os seres em necessários ou contingentes. Ao contrário do que pode à primeira vista parecer, ela não

afirma que há seres necessários, pois se o fizesse estaria pressupondo o que deve ser demonstrado. Na verdade, ela não afirma nem mesmo que há seres contingentes. Podemos evitar esta aparência reformulando a premissa de uma maneira condicional e, portanto, mais fraca: “Se existem objetos, eles são necessários ou contingentes”. Assim, mesmo ignorando se existem objetos, sabemos que, se existirem, serão necessários ou contingentes. Isto é possível porque a verdade desta proposição não depende da inspeção empírica de como as coisas são, mas da maneira como os conceitos “necessário”, “impossível” e “contingente” são empregados. Segundo Avicena, se admitirmos que é impossível aquilo que não pode ocorrer, então, aquilo que não pode deixar de ocorrer (ou não pode não ocorrer) é necessário e aquilo que pode tanto ocorrer quanto não ocorrer é contingente. Em outras palavras, por definição, somente podem existir objetos contingentes ou necessários. Logo, se algo ocorrer, ele será necessário ou contingente. Não é preciso prosseguir muito nesta linha de raciocínio para entender também a segunda premissa. Dizer que a existência do necessário não pode ser negada sem contradição equivale simplesmente a dizer que a afirmação: “o necessariamente existente não existe” é contraditória. Com efeito, ela afirma simultaneamente de algo que ele não pode não existir (portanto, é impossível que ele não exista) e que ele não existe. A terceira premissa retoma a definição de contingente como aquilo que pode ou não existir e acrescenta uma informação: se ele existe, então algo determinou a sua existência. Conforme salienta Goodman ¹² , a síntese do pensamento aviceniano acerca da necessidade e da contingência repousa na noção de “considerado em si mesmo”. É contingente aquilo que, considerado em si mesmo, não contém as condições de sua própria existência e, portanto, considerado em si mesmo, não existe e dependerá da existência de algo outro para existir. Note-se que esta informação adicional está perfeitamente de acordo com a concepção aviceniana de ciência e com o papel do conhecimento das causas para o conhecimento de um objeto. Com efeito, se fosse possível que um evento ocorresse sem causa, então seria impossível demonstrar porque ele ocorreu em vez de não ocorrer ou porque ocorreu neste momento e não em um outro. A suposição da ocorrência de algo sem uma causa que o determine é para Avicena algo incompreensível que tem como consequência a ruína de todo conhecimento humano acerca de objetos. Alguns especialistas dizem tratar-se aqui de uma suposição racionalista de Avicena, pois para que o universo seja racionalmente inteligível é preciso admitir a determinação causal dos eventos. De fato, só há um tipo de objeto do qual sua existência pode ser dita independente de todos os demais, a saber, o objeto que existe por si mesmo. Contudo, como este é o necessário e não o contingente, Avicena está autorizado a afirmar que todos os contingentes são causados.

As três primeiras premissas foram obtidas por mera análise conceitual. A quarta introduz uma informação sobre o mundo: existem objetos. Avicena não se preocupa em provar este dado, pois ele não põe em dúvida a existência de objetos exteriores. O que lhe interessa é chamar a atenção para a natureza da premissa introduzida e sua importância na prova. Observe-se que Avicena não terminou o argumento na premissa 2. Ou seja, ele não pretende ter provado que o necessariamente existente existe de fato partindo apenas de conceitos. E é isso que a premissa 4 visa evidenciar. Se lembrarmos agora dos debates anteriormente citados acerca de um possível argumento ontológico em Avicena, podemos afirmar que o autor efetivamente procura caracterizar precisamente as noções de ser necessário e ser contingente e o faz por referência à noção de condições de existência. Ademais, caso ele tivesse pretendido formular algo como um argumento ontológico, o argumento que estamos analisando poderia encerrar-se na premissa 3. Todavia, não é isso o que ocorre e, ao arcabouço conceitual apresentado nas três primeiras premissas, é acrescentado um dado empírico a ser analisado. O primeiro resultado alcançado é expresso pela premissa 5, a qual deve ser entendida como a leitura do fato expresso em 4 a partir do esquema conceitual apresentado em 1-3. Mais precisamente, 5 é decorrência direta da alternativa contida em 1 com o dado fornecido em 4. É por isso que 5 diz: este objeto, aqui presente, é necessário ou contingente. Sendo assim, o restante do argumento passa a ser a consideração de dois casos distintos. Usando de uma metáfora visual, podemos dizer que em 5 ocorre uma bifurcação no argumento de tal modo que há um caminho que leva de 1 a 6 e outro que leva de 1 a 11 sem passar por 6. O primeiro caminho é mais curto, pois se o objeto que nos é apresentado fosse o ser necessário, então, segundo 2, sua existência não necessitaria de causa para ser explicada, estando a prova terminada. O segundo caminho é mais longo e revela a grande diferença entre os conceitos aristotélico e aviceniano de contingência. Se o objeto que nos é presente é contingente, então, de acordo com a premissa 3, há uma causa que determina a sua existência e que encontramos expressa por 7. A premissa 8 convida-nos a perguntar pelo tipo de existência daquela causa, pergunta que está perfeitamente em sintonia com a busca de uma explicação científica. Uma série argumentativa não termina necessariamente na apresentação de um silogismo em que o fato a ser explicado aparece como conclusão, mas ela pode prosseguir perguntando pela verdade das premissas. Ora, dado que o vínculo explicativo em um silogismo é sempre causal, há um estrito paralelismo entre a busca da verdade das premissas em um silogismo e a busca de causas em um evento. O mesmo argumento usado para analisar o objeto apresentado por 5 é repetido em 8 de tal forma que, como diz 9, ou se alcança imediatamente um ser necessário ou se repõe inúmeras vezes a mesma pergunta. A grande dificuldade que surge é a de se saber se é possível repetir infinitas vezes a mesma pergunta ou se esta série deve ser finita. Esta discussão aparece na premissa 10. Antes de prosseguirmos, convém fazer uma digressão histórica. A teoria física de Aristóteles dividia o universo em dois mundos: o sub e o supralunar. O primeiro era formado por seres dotados de movimento, de geração e

corrupção, ou seja, de seres que existiam durante um certo período de tempo e que, posteriormente, deixavam de existir. Aristóteles chamava-os seres contingentes. Já o supralunar era o domínio dos astros, daquilo que embora dotado de movimento, não era passível de corrupção. Esta era a esfera do necessário e domínio privilegiado da ciência. Em sua Física , Avicena aceita esta bipartição do universo, mas em sua Metafísica ele a submete a certas restrições. É bem verdade, diz Avicena, que os astros não são corruptíveis e, neste sentido, são necessários. Entretanto, trata-se aqui de uma necessidade física e não metafísica. Do ponto de vista metafísico, nada impede que os imaginemos como não existentes, pois a negação de sua existência não implica contradição. Portanto, metafisicamente falando, eles são contingentes. Sendo assim, como todo ser contingente, sua existência não é inteligível por si mesma, mas necessita da intervenção de um outro ser. De posse desta distinção, o filósofo persa retoma o problema anterior. Começa afirmando que, para todo objeto, se não pudermos encontrar nele a causa de sua existência, podemos encontrá-la em um outro ser. Portanto, sob um certo aspecto, todo objeto é contingente, sob outro, necessário. Considerado em si mesmo, o objeto é contingente, pois sua existência não depende de si mesmo. Todavia, considerado por relação a sua causa, ele é necessário, pois esta determina necessariamente a existência. Neste momento, Avicena introduz uma distinção que o afasta radicalmente de Aristóteles e que evidencia a força de seu pensamento. Aristóteles, assim como boa parte da tradição, estaria disposto a continuar o argumento mostrando que a série de causas não pode ser infinita, alcançando assim uma causa não causada: Deus. Avicena toma outra direção. Mesmo que a série seja infinita, afirma ele, devemos aceitar a existência de Deus. Observe-se que a recusa em adotar a posição tradicional é aqui fundamental. Avicena criticava a prova de Aristóteles dizendo ser inconcebível que o único meio para chegar à existência de Deus fosse por via do movimento. Portanto, se ele tivesse seguido o caminho comum, estaria exposto às mesmas críticas. A novidade é a introdução da distinção entre causa da existência e causa da continuidade da existência. Assim como um objeto contingente não pode ter em si a razão de sua existência, também não pode ter a razão da continuidade de sua existência. Suponhamos que a série de existentes seja infinita, isto explicaria que para todo objeto é possível dizer que há algo que causou a sua existência. Todavia, estaria a continuidade da existência garantida? Avicena propõe que imaginemos um conjunto infinito de objetos que, em um certo momento, estão em relação causal e que nos perguntemos se o conjunto, tomado na sua totalidade, é necessariamente existente em virtude de si mesmo ou se ele é contingente. A resposta é simples. Se for possível imaginar sua não existência sem que isso implique contradição, então ele é contingente e necessita de algo que a determine. Este algo é precisamente Deus. Logo, 11, Deus existe. Ao terminar esta prova, Avicena parece ter cumprido o que havia prometido, a saber, fornecer uma prova da existência divina que não seguisse os moldes do argumento aristotélico. Para isso, ele viu-se obrigado a introduzir uma nova noção de causalidade. Ou seja, além das quatro causas aristotélicas (eficiente, formal, material e final), o pensador persa acrescenta ainda uma quinta, a causa da conservação da existência. Entretanto, é importante que reconheçamos neste argumento não a introdução de uma hipótese cuja

única finalidade seria a de formular uma prova outra que a do pensador grego, mas uma consequência direta dos princípios propostos por Avicena. Se olharmos mais de perto o seu argumento, veremos que ele é basicamente tributário da noção de ser enquanto ser e da maneira como o pensador entende esta noção. Ora, para dar conta da metafísica como a ciência suprema, Avicena precisou reformular a compreensão aristotélica desta noção. Segundo o pensador grego, o ser se diz de várias maneiras, mas em primeiro lugar por relação à substância, pois esta possui sua existência independente dos seus acidentes. Estes, porém, existem somente devido àquela. Segundo o pensador persa, o ser se diz de várias maneiras, mas em primeiro lugar por relação ao necessário, pois o ser necessário possui sua existência independentemente da dos contingentes. Estes, porém, existem somente devido àquele. 1 . Professor Titular da UFRGS. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Brasil (307054/2017-9). 2 . Avicena. Liber de Philosophia Prima sive Scientia Divina , édition critique de la traduction médiévale par S. van Riet, introd. doctrinale par G. Verbeke, Leiden, Brill, 3 vol., 1977, 1980, 1983; Avicena, La Métaphysisque du Shifâ’ , introduction, traduction et notes par G. C. Anawati, Paris, Vrin, 2 vol., 1978-1985. 3 . Avicena. Tres escritos esotéricos . Estudio preliminar, traducción y notas de Miguel Cruz Hernandez. Madrid, Tecnos, 1998, p. XLVIII. 4 . A referência de Hernandez é: Avicena, Isarat . Ed. Forget, 1998, 1892, p. 146. Para a tradução francesa, veja-se: Livre des directives et remarques (Kitâb al-‘Isârât wa l-Tanbîhât) , traduction avec introduction et notes par A. –M. Goichon, Paris, Vrin, 1951. 5 . O argumento encontra-se no final do capítulo primeiro do Livro da Alma : Avicena ,Liber de anima seu sextus de naturalibus , édition critique de la traduction latine médiévale et lexiques par S. van Riet et introduction doctrinale par G. Verbeke, Leiden, Brill, 2 vol., 1968-1972, p. 36-37. 6 . Gardet, L., La pensée religieuse d’Avicenne (Ibn Sînâ) , Paris, Vrin, 1951. 7 . Goichon, A. -M.,  La distinction de l’essence et de l’existence d’après Ibn Sînâ (Avicenne) , Paris, Desclée de Brouwer, 1937 e Goichon, A. -M.,  Le lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina , Paris, Desclée de Brouwer. 8 . Morewedge, P. (éd), Neoplatonism and islamic thought , Albany, Sate University of New York Press, 1992 e Morewedge, P. (éd), Philosophies of existence ancient and medieval , New York, Fordham University Press, 1982. 9 . Davidson, H. A., Alfarabi, Avicenna and Averroes, on intellect. Their cosmologies, theories of the active intellect, and theories of human intellect , New York, Oxford University Press, 1992. 10 . Henrique de Gand, Summa quaestionum ordinarium theologi recepto solennis Henrici a Gandavo , in aedibus J. Badii Ascensii, Paris, 1520,

réimpression en fac-similé, « Franciscan Institute publications, Text series » 5, New York, 1955, 2 vol., I, 12, 9. 11 . Goodman, L. E. Avicenna , New York, Routledge, 1992, p. 64. 12 . Goodman, L. E. Avicenna , p. 66. Ética, Pragmática e Aprendizado André Berten Professor visitante na UFBA ¹ “… o filósofo é um indivíduo que compartilha as crenças das pessoas ordinárias para tudo que tange à vida cotidiana e que, quando se atreve a ir além dessa esfera, o faz com uma circunspeção orientada pelo sentido das probabilidades e o peso das provas empíricas. Em relação àquilo que se situa além da experiência, ele prefere suspender toda crença.” (John Rawls, Lectures on the History of Moral Philosophy ) “Perguntarão se sou príncipe ou legislador para escrever sobre política. Respondo que não, e que é por isso que escrevo sobre política. Se eu fosse príncipe ou legislador não perderia meu tempo dizendo o que se deve fazer: eu faria, ou me calaria.” (Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social ) “À liberdade [de crítica] religa-se, portanto, também aquela de submeter ao julgamento do público seus pensamentos e suas dúvidas quando não se pode esclarecê-los por si mesmo (…). É o que resulta já do direito primitivo da razão humana que não conhece outro juiz que a razão comum ela mesma, onde cada um tem a sua voz; e, desde que é daí que deve vir todo aperfeiçoamento do nosso estado, um tal direito é sagrado e não pode ser abolido.” (Kant, Crítica da razão pura ) Questões de filosofia política como “Por que ser democrata?” ou “Por que ser republicano?” ou “Por que defender a justiça ou a liberdade?”, têm um aspecto moral ou ético. A essas questões, claro, podemos responder de várias maneiras. Poderíamos defender ou criticar a democracia por motivos utilitaristas ou motivos de eficiência econômica, ou por patriotismo, ou porque vivemos numa tradição onde o republicanismo faz parte de nossa história, ou talvez por motivos “kantianos”, porque pensamos que a democracia é o regime mais justo. Na medida em que a democracia, o republicanismo, o liberalismo, ou o socialismo constituem ideais políticos, isto é, ideais normativos, podemos atribuir a esses ideais um valor “moral”. E podemos considerar a atitude ou compromisso dos cidadãos como um comportamento suscetível de ser qualificado de “ético”. Mas precisamos aqui definir o que entendemos por “moral” ou “ético”, qual é o significado dos termos “moral” ou “ético”, uma vez que o uso desses termos é variável, não somente na linguagem ordinária, mas também na linguagem filosófica. Na filosofia contemporânea, alguns pensadores fazem uma distinção para diferenciar a moral, que diz respeito às normas de cunho universal, e a ética, relativa às normas ligadas a uma cultura particular ² . Ou para diferenciar a moral como um conjunto objetivo de normas e a ética

como uma atitude subjetiva. Essas diferenças de uso são interessantes na medida em que indicam que em certos jogos de linguagem — os jogos de linguagem de uma subcultura filosófica — o significado dos termos é contextual, dependendo do contexto específico de uma discussão filosófica. Afirmar isso nos introduz a uma interpretação pragmática dos termos que utilizamos. Defenderei aqui a pragmática como abordagem epistemológica geral ou método filosófico e tentarei mostrar as consequências dessa abordagem para a nossa compreensão da moral ou da ética. Entenderemos a pragmática num duplo sentido: o sentido de uma pragmática linguística , pragmática da linguagem, e o sentido mais amplo da pragmática como uma maneira de qualificar uma certa modalidade do agir em geral — embora essa generalidade não prescinda e não possa prescindir de suas formulações linguísticas. Uma pragmática linguística A pragmática da linguagem (Austin 1962, Grice 1975, Searle 1969, Wittgenstein 1953), entre outras características, afirma que o significado de um termo só pode ser determinado pelo contexto. O contexto pode ser interpretado de duas maneiras diferentes. De um ponto de vista semântico , o contexto é a rede linguística dentro da qual um termo se coloca, o conjunto indeterminado de todas as relações de um termo com todos os termos suscetíveis de precisar o significado possível do termo. Mas essa primeira abordagem, para ter qualquer operacionalidade, deve introduzir limites e determinar o contexto disponível para o leitor, o escritor, o falante, o ouvinte. Assim aproximamo-nos da leitura não somente semântica, mas pragmá tica . O contexto disponível para o usuário da linguagem é um contexto conversacional, no sentido amplo do termo: um enunciado, uma frase, um texto se dirigem a um receptor, a um interlocutor, real ou imaginário, individual ou coletivo. Enquanto a abordagem semântica pode referir-se a linguagens determinadas — literárias, científicas, jurídicas, etc. — a abordagem pragmática não pode deixar de remeter à linguagem ordinária, à linguagem coloquial, que é a última metalinguagem, a linguagem que aqui mesmo nos permite falar da perspectiva semântica ou pragmática. A fronteira entre linguagem ordinária e linguagem especializada é frouxa, mas, pelo menos, a estrutura das linguagens especializadas implica uma certa autonomia semântica que a linguagem ordinária não tem. No entanto, o discurso especializado tem também uma dimensão pragmática na medida em que se dirige a um público determinado. Mas essa dimensão não tem um efeito determinante sobre a estrutura semântica. Essa diferença atravessa, por exemplo, os debates entre os defensores da interpretação textual dos códigos jurídicos e as leituras propostas pelos realistas (Dworkin 1991). A perspectiva pragmática equivale a procurar o fundamento das significações na linguagem ordinária. Mas ela tem um correlato negativo, filosófico e não popular, que é uma forma de nominalismo . Contra as evidências do senso comum, o nominalismo afirma que não existe uma realidade, uma entidade substantiva que possamos atrelar de maneira unívoca a um termo qualquer de nossa linguagem. É uma ontologia

negativa, ou uma teologia negativa: não temos acesso às realidades ontológicas. Talvez, isso possa ser facilmente aceito quando se trata de termos abstratos como “verdade”, ou “bondade” ou qualquer outro termo objeto de discussão e de controvérsia — como o são os termos “moral” e “ética”. Concordamos que não se pode dar uma definição unívoca desses termos simplesmente porque não há consenso sobre o que é a verdade ou a bondade, ou a moral ou a ética: não há consenso nem no senso comum nem nas discussões filosóficas. Mas os filósofos vão mais longe, pois aceitar o nominalismo implica aceitar a mesma tese negativa a respeito de termos como “céu”, “bicicleta”, “árvore”, ou mesmo, por mais estranho que possa parecer, a respeito de nomes próprios como Einstein ou Corcovado — o que é muito menos evidente (Kripke, 1980). Não pretendo discutir essa tese, embora eu concorde fundamentalmente com ela. Mas aqui me importa uma primeira conclusão a respeito dos termos “moral” ou “ética”: a de que não existe uma coisa como “a” moral ou “a” ética como não existe nada como uma essência da razão ou da filosofia. Aceitando essa tese pós-metafísica e ficando estritamente no quadro do nominalismo filosófico, estou chegando a uma conclusão desagradável: o nominalismo leva a um ceticismo ou um relativismo prático; pois, se não existe uma essência da moral ou da ética, não existe tampouco uma significação unívoca do que é agir eticamente ou moralmente E se a definição desses termos é contextual e variável, como poderia eu garantir que minha ação é ética? E, por conseguinte, por que eu deveria ser ético ou moral, se não sei o que significa isso? Lembremos do célebre aforismo de Michel de Montaigne: “Aqui se vive de carne humana; lá é ofício de piedade matar o seu pai numa certa idade; num outro lugar os pais decidem aquelas das crianças ainda no ventre das mães a serem nutridas e conservadas, e aquelas a serem abandonadas e mortas…” E conclui: “As leis da consciência que dizemos nascer da natureza, nascem do costume; cada um havendo em veneração interna as opiniões e os costumes aprovados e recebidos ao redor de si, e não pode deles desprender-se sem remorso nem os respeitar sem um bater de palmas.” ³ Ao nível de uma pragmática linguística, não tenho muitas respostas a essas afirmações. A resolução pelo apelo à linguagem ordinária aparentemente só vem confirmar a contextualidade de toda definição das palavras. Aliás, as afirmações de Montaigne encontram algumas opiniões de um certo senso comum — mas encontram também resistências de outras convicções comuns, vindas, por exemplo, dos meios religiosos ou tradicionalistas que se escandalizam com as condutas não-conformistas e consideram imorais as maneiras de viver LGBT e outras. Mas, do ponto de vista filosófico, essas diferenças, a pluralidade irredutível dos julgamentos a respeito da moral, confirma que, na filosofia da linguagem ordinária, só podemos discernir o que Wittgenstein chamava de jogos de linguagem ligados a formas de vida, e

de semelhanças de família ⁴ : afinal das contas, as normas éticas são formuladas em proposições, em enunciados da linguagem ordinária. As normas variam segundo tal ou tal jogo de linguagem. Só é possível constatar que existem algumas semelhanças de família na medida, por exemplo, que entendemos que a antropofagia pertence ao domínio do permitido e do proibido, pertence a essa família de termos de permissão e de proibição. Quando Montaigne ironiza sobre os costumes exóticos, é porque a linguagem que ele usa coloca esse tipo de questões: o relativismo moral se torna um problema somente depois de ter aceito uma definição mínima do que é a moral, isto é, depois de ter entrado num jogo de linguagem determinado. É verdade que a ideia de semelhanças de família pode nos ajudar a superar a indeterminação radical do significado dos termos utilizados. Mas a possibilidade de atribuir uma significação a um termo é nesse caso somente “negativa”. Na linguagem ordinária, ser moral não significa a mesma coisa que andar de bicicleta, por exemplo, e se não sou capaz de entender essa diferença, não faz sentido discutir sobre a moral. Aliás, não faz sentido discutir qualquer coisa. Com Saussure, devemos reconhecer que a linguagem é um conjunto de diferenças e percebemos as diferenças como percebemos a diferença entre “ó” e “ô”. Se não percebemos as diferenças, não podemos entrar nas conversações. Sabendo, claro, que os sistemas de diferenças variam de língua a língua e de jogo de linguagem a jogo de linguagem. Voltemos então à moral, explorando alguns traços que poderíamos atribuir ao significado desse termo segundo um certo senso comum. Numa primeira aproximação e convencionalmente, poderíamos, por exemplo, considerar que a moral diz respeito ao comportamento com os outros. Nesse sentido, Robinson Crusoé, na sua ilha, antes da chegada de Sexta Feira, não precisa submeter-se a regras ou normas – somente às regras e normas que ele impõe a ele mesmo para conseguir o que ele deseja ou quer. Porém, sentimos que a definição da moral como dizendo respeito ao comportamento com os outros é ampla demais. Ela inclui ações que, no uso ordinário do termo moral — pelo menos no nosso jogo de linguagem, aquele que em geral compartilhamos —, não podem de jeito nenhum ser consideradas como morais se consideramos que termos como “bom”, “justo”, “aceitável”, pertencem a uma mesma família semântica. Assim, por exemplo, como o disse Rorty (2000), ninguém considera que um comportamento cruel é moral. Precisamos, portanto, acrescentar algo à ideia de que a moral rege o comportamento com os outros. Referindo-se ao uso ordinário da linguagem, geralmente são considerados como “morais” esses tipos de comportamentos que são qualificados de bons, justos, corretos, respeitosos com os outros. No entanto, os mesmos problemas podem surgir a respeito destes termos mesmos. Para sair dessa aporia, precisaremos superar de uma maneira ou de outra a perspectiva estritamente linguística. Eu gostaria de acrescentar uma observação metodológica a respeito da pragmática linguística. Há uma contradição performativa na tentativa de definir o que é essa pragmática da linguagem. Pois, se toda significação é

contextual, se se faz a partir do uso dos termos, se a significação não pode ser entendida fora de uma rede quase infinita de outros termos, a definição mesma da pragmática é problemática, pois eu deveria aplicar ao termo “pragmática” as regras da pragmática, isto é, dizer que o significado do termo “pragmática” é contextual. Geralmente não se pensa nessa contradição performativa (Apel 2000, Jay 1992). Aliás, é uma perspectiva especulativa e abstrata. Só podemos sair desse paradoxo no agir comunicativo, no sentido em que as pessoas se entendem suficientemente para poder falar umas com as outras. Se há erros na comunicação, em geral eles se resolvem na ação: do ponto de vista pragmático, a linguagem é um instrumento de coordenação da ação. E isso me leva a apresentar o segundo aspecto da pragmática: aquele que determina um certo modo de agir. ⁵ Ou mais precisamente, que determina um aspecto universal ou quase universal do agir humano — ou, pelo menos, um aspecto que tem uma grande generalidade. Uma pragmática do agir Uma maneira simples de superar a indeterminação dos significados é a resolução pela ação (Livet 1986). Por exemplo, quando você age conforme uma ordem, o emissor ou falante, aquele que deu a ordem, tem um indício de que você entendeu o significado dado ao enunciado. Se você não obedece, a indeterminação permanece: ou você não quer obedecer, ou você não entendeu o sentido da ordem, ou qualquer outro motivo. No entanto, essa resolução não nos esclarece sobre a questão que coloquei no começo: será que sair da perspectiva estritamente linguística nos ajudará a abordar a questão ética ou moral de maneira satisfatória? Abordar a questão de maneira satisfatória é simultaneamente entender o sentido da questão, entender de que se fala quando se fala de moral ou de ética, e explicar por que as normas, regras, injunções morais são obrigatórias. É também superar o ceticismo. A normatividade, uma característica do agir Uma maneira indireta de abordar essa questão é pelo ângulo da normatividade . Não podemos evitar colocar questões do tipo “o que é que devo fazer?”, questões que são impostas às vezes pela situação independentemente de qualquer formulação linguística. Não são necessariamente questões morais ou éticas. Mas o que orienta as respostas a essas questões é algo que corresponde a palavras como “bom”, “justo”, “correto”, “certo”, “adequado”. Mesmo se não formulamos esses juízos nesses termos, não podemos deixar de avaliar o que é melhor, preferível etc. A referência a esses termos normativos é um constituinte de nossas atitudes humanas. Onora O’Neil escreve:

“A normatividade atravessa nossas vidas. Não somente temos crenças: pretendemos que nós e os outros devem manter certas crenças. Não somente temos desejos: pretendemos que nós e os outros devem agir segundo alguns e não segundo outros. Assumimos que o que alguém acredita ou faz pode ser julgado razoável ou irrazoável, correto ou errado, bom ou mal, que isso é dependente de padrões ou normas.” (O’Neil 1992 a, xi) Notem que não afirmo que deve ser assim, mas que, numa descrição de nosso comportamento cotidiano, julgamos como as coisas, nós-mesmos e os outros devem ser. Não estou fazendo uma falácia, passando indevidamente do “is” ao “ought”, do descritivo ao normativo. Estou descrevendo uma característica do comportamento humano, constatando que de maneira geral as pessoas avançam julgamentos normativos. Não estou dizendo que isso é bom ou mau. Não estou julgando se esses julgamentos são corretos ou equivocados. Christine Korsgaard escreve: “O fato mais impressionante a respeito da vida humana é que possuímos valores. Pensamos as maneiras de as coisas poderem ser melhores, mais perfeitas, e assim, claro, diferentes do que elas são; e pensamos as maneiras de nós mesmos podermos ser melhores, mais perfeitos e assim, claro, diferentes do que somos. Por que seria isso assim? De onde nos vêm essas ideias que ultrapassam o mundo da experiência e parecem pô-lo em questão, para produzir um julgamento sobre ele, para dizer que ele não está à altura, que não é o que deveria ser?” (Korsgaard 1996, 1) Chamaremos, depois de O’Neil, Korsgaard e vários outros, esse aspecto de nossa experiência da vida de “normatividade”. A experiência da normatividade não se reduz à consciência moral. Ela se refere ao fato de que não podemos deixar de colocar questões sobre o que devemos fazer. Habermas (1991) distinguiu assim três categorias desse tipo de questões: pode ser simplesmente a questão “pragmática” de saber se eu devo comprar tal objeto em vez de outro, se o preço é um critério importante, se preciso realmente desse objeto etc. Outro nível de questão, dita “ética”, é a de saber o que é que devo fazer de minha vida: privilegiar a vida familiar ou a vida profissional, saber quando e porque é bom ter um comportamento altruísta etc. E um terceiro nível que Habermas chama de “moral” coloca questões de justiça, de normas válidas para todos. Essas distinções não devem ser consideradas como determinando domínios separados da normatividade, mas simplesmente como um instrumento metodológico para ajudar na resolução de questões práticas ⁶ . Afirmei que essa experiência da normatividade transcende os limites da linguagem. Mas precisamos reconhecer que essas experiências pressupõem a linguagem. Talvez questões pragmáticas possam se colocar independentemente da linguagem, mas as questões “morais”, no sentido de Habermas, só podem aparecer quando formuladas. Paul Ricœur afirma que o sentimento de injustiça precede qualquer concepção da justiça e esse sentimento precede também as formulações de princípios de justiça. Assim, o que poder-se-ia chamar de “sentimentos morais” (Hume, Smith), como o

amor e o ódio, o ressentimento ou a vergonha, podem preceder qualquer formulação. Mas a imprescindibilidade da linguagem aparece principalmente nas últimas questões, as questões que Habermas qualifica de morais. Por enquanto não me importam essas distinções. Quero somente notar que, se nos é possível colocar esse tipo de questões é porque a normatividade atravessa nossa vida: “Conceitos como conhecimento, beleza, significação, como também virtude e justiça têm todos uma dimensão normativa, pois nos dizem o que pensar, o que gostar, o que dizer, o que fazer, e o que ser. E é a força dessas pretensões normativas – o direito desses conceitos nos darem leis – que queremos entender.” (Korsgaard 1996, 9) É verdade que a normatividade é uma característica do uso da linguagem, porque a linguagem é intrinsecamente normativa ou idealizadora. Usar uma palavra é pretender que essa palavra tem uma significação, um sentido. Falar é emitir julgamentos sobre o mundo, sobre os outros, sobre si-mesmo. É falar do que nos parece verdadeiro, justo, belo, e afirmar que os outros deveriam pensar o mesmo. Assim, da moral ou ética: “… os padrões éticos são normativos . Eles não somente descrevem a maneira de nós regularmos de fato nossa conduta. Eles erguem pretensões sobre nós; comandam, obrigam, recomendam ou guiam. Pelo menos, quando os invocamos, erguemos pretensões uns sobre os outros.” (Korsgaard 1996, 8) Faz parte da linguagem comum que quando digo que uma ação é justa, estou pretendendo que você deva agir dessa maneira. É igualmente uma tese fundamental da Teoria da ação comunicativa de Habermas (1981), partindo da linguagem ordinária, mostrar que um enunciado é normativo, pretende à validade, à verdade, à justeza, à adequação. Não se trata até aqui da justificação moral ou do fundamento de nossos julgamentos morais, mas de uma descrição do que podemos chamar nossa experiência normativa. E é um fato que geralmente chamamos moral um aspecto da experiência normativa que faz com que, cotidianamente, usemos palavras como “bondade”, “dever”, “obrigação”, “virtude”, “justiça”. Intuitivamente, esses conceitos pertencem ao domínio da moral ou da ética. Quando falamos de republicanismo, socialismo, liberalismo, espontaneamente ligamos essas palavras a julgamentos normativos, defendemos nossa posição, tentamos encontrar argumentos para mostrar que tal regime é “melhor”, “mais justo”. Ou “mais democrático”, porque hoje em dia a democracia é uma referência valorativa, normativa, bastante difundida. Uma outra maneira de analisar a pragmática da linguagem é dizer que a dimensão normativa vem do fato que seguimos regras, que falar é seguir regras, e que não podemos deixar de seguir regras (Wittgenstein, 1953). Certo, podemos transgredir as regras, por exemplo, as regras semânticas. Mas numa perspectiva comunicativa, o preço a pagar é alto: isolamento, rejeição social etc. Isso é verdade também das regras morais ou éticas. Portanto, um motivo empírico para seguir as regras é o desejo de ser reconhecido, de ser aceito. Isso vale não somente para as regras linguísticas, mas, em geral, para as regras sociais.

É verdade que, nessa descrição, o “normativo” é mais amplo que aquilo que geralmente definimos como moral. Por exemplo, podemos defender o liberalismo porque o julgamos “melhor”, onde melhor não significa “mais justo”, mas pode significar mais eficaz, ou favorecendo o crescimento econômico, ou porque ele resgata a liberdade. Não obstante, esses julgamentos implicam a afirmação de que essas características são “boas”, para as pessoas, para a sociedade, para a humanidade... A publicidade da comunicação Há vários motivos possíveis para defender uma posição. Quando falei agora dos motivos para defender o liberalismo, afirmei que, qualquer que seja a nossa concepção da moral, defender uma posição é considerar que ela é “boa”. Eu disse: para as pessoas, para a sociedade, para a humanidade... Mas poderia ser também porque é “boa para mim”, ou “somente para mim”. Várias teorias morais — o utilitarismo em primeiro lugar — apresentam uma psicologia humana como fundamentalmente egoísta: no final das contas, eu adoto uma posição porque ela aumenta meu prazer, minha satisfação, meu bem. Porém, aqui intervém um traço interessante das teorias da linguagem, ou melhor do uso social da linguagem, de seu uso comunicativo: um enunciado, um discurso, sempre se dirige a alguém, interlocutor real ou imaginário, um público mais ou menos pequeno ou grande. Ora, é uma característica dessa publicidade que é difícil defender uma posição dizendo que ela é no meu interesse e exclusivamente no meu interesse. Por mais cínico que seja o egoísta, ele precisa geralmente esconder uma posição explicitamente antissocial e afirmar que a sua posição “egoísta” é também uma posição boa para a sociedade — por exemplo, pelo meio da “mão invisível”. Portanto, para voltar a falar de “ética” ou “moral”, pode-se dizer que, no uso da linguagem conversacional, uma característica dos enunciados éticos ou morais é a de poderem ser declarados publicamente sem serem rejeitados. Pelo argumento da publicidade, não pretendo definir a moral. É uma aproximação de nossa maneira de conceber o que é justo, correto, bom. Não posso defender publicamente uma posição dizendo explicitamente que ela é injusta, incorreta, má: a linguagem perderia toda significação se esses termos, que geralmente juntamos com a ideia de moral, pudessem ser utilizados sem as valorizações que lhes são ligadas. Isso não significa que as pessoas dão os mesmos conteúdos à justiça, à bondade, à decência, mas que usando esse tipo de termos pretendo lhes dar um valor positivo. Quaisquer que sejam as posições pessoais a respeito das questões morais — egoísmo, ceticismo, relativismo, fanatismo — a publicidade do discurso impõe uma regulação. No nível da linguagem ordinária, é possível que se perpetuem formas de ceticismo, de relativismo, de fanatismo, isto é, de uma multidão de atitudes a respeito da moral e da ética, mas essas posições não podem escapar às regulações da publicidade, afastando as contradições mais gritantes. No entanto, se a publicidade afasta um certo tipo de enunciados a respeito da moral, posso continuar a manifestar publicamente meu ceticismo a respeito dos valores morais: não acreditar no altruísmo, na solidariedade, na

igualdade, e opor a essas normas argumentos defendendo o egoísmo, o individualismo. A única coisa que não será aceita é uma defesa desses valores porque favorecerão somente a mim e não uma forma de sociedade onde o egoísmo ou o individualismo são valores que tudo mundo deveria respeitar. As afirmações de Nietzsche nesse sentido são públicas e se não são aceitas por todo mundo, não deixam de ser debatidas. Portanto, é possível — e muitas vezes é uma realidade — defender posições antidemocráticas, contra os direitos humanos, contra qualquer forma de igualitarismo. Ainda hoje, tem pessoas — privadas ou públicas — defendendo a tortura, o racismo. Aprendizado A publicidade da comunicação é facilitada quando há liberdade de expressão. Uma certa liberdade de expressão desde sempre existiu em círculos restritos cujo trabalho intelectual está na base dos processos de racionalização, aos quais a modernidade deu uma extensão cada vez maior. Na Europa, a Reforma, a autonomização do político a respeito da Igreja, a extensão de uma classe burguesa libertada dos antigos laços estamentais, e outras contingências históricas, permitiram o estabelecimento de espaços cada vez maiores de publicidade, uma esfera pública consolidada — embora frágil. É nesse espaço público que vigoram as pretensões da pragmática da linguagem. Mas não devemos considerar de maneira idealista essa abertura da esfera da comunicação, pois a pragmática encara a comunicação não somente do ponto de vista da publicidade da linguagem, mas de maneira mais ampla considerando que nossas atitudes e práticas, em geral, nascem em resposta a características do mundo ambiente. Agimos em geral, e moralmente em particular, avaliando situações onde os outros agem, se comportam, falam. O agir moral — como é pensado na sua aceitação ordinária — não corresponde a intuições inatas, a comportamentos determinados como se fossem somente reações pavlovianas. Somos seres sociais. As respostas aos desafios do meio ambiente, do mundo, dos outros, são respostas aprendidas. A maneira de qualificar uma atitude como ética, uma ação como justa, uma afirmação como correta, depende dos aprendizados sociais, desde a infância. Adotando uma abordagem pragmática da ética, temos que reconhecer que sem uma teoria do aprendizado, uma dupla teoria do aprendizado, não poderemos senão fundamentar, mas, mais modestamente, defender valores como igualdade, liberdade, solidariedade, respeito mútuo. O aprendizado moral pode ser encarado de duas maneiras diferentes, individual e histórica. As teorias psicológicas cognitivas do desenvolvimento moral, como aquelas de Piaget (1969), Kohlberg (1981) ou Habermas (1983), mostram a possível e às vezes necessária evolução das referências morais, partindo do egocentrismo infantil ao reconhecimento das relações afetivas com os próximos, à interiorização das normas sociais, com uma tendência à ampliação e até à universalização dos critérios de julgamento moral. O critério aqui é cognitivo: não há dúvida de que a experiência da vida providencia conhecimentos, conhecimentos da linguagem, do mundo, dos

outros, dos costumes, das regras e das normas. Essa extensão do conhecimento permite generalizações, partindo de experiências particulares, observando as repetições, as regularidades, integrando ou recusando as novidades. Esse processo de aprendizado não é linear e as generalizações podem facilmente produzir estereótipos e preconceitos. Mas, por enquanto, quero somente insistir sobre um traço — e uma dificuldade — dessas teorias do desenvolvimento cognitivo: a extensão da esfera cognitiva não implica uma passagem automática do saber ao fazer, do teórico ao prático. As aquisições cognitivas não implicam necessariamente compromissos correspondentes. Habermas reconhecia que toda moral cognitivista — como, por exemplo, a moral kantiana “[…] confrontará o agente com as questões da aplicação específica à situação e do ancoramento motivacional dos discernimentos morais . E os dois problemas só podem ser resolvidos se uma coisa vem se ajuntar ao juízo moral: o esforço hermenêutico e a interiorização da autoridade.” (Habermas 2003b, 214) Do ponto de vista pragmático, o esforço hermenêutico tem sentido apenas se eu quiser aplicar as normas à situação concreta. Isso não resulta simplesmente de um processo intelectual. Precisamos acrescentar um contexto social ou cultural. Por que os juízes do Supremo Tribunal se preocuparão em interpretar os casos de aplicação dos direitos humanos senão porque os consideram como válidos? O esforço hermenêutico, portanto, é uma questão pragmática. O ambiente do Estado de direito favorece uma aceitação e um empenho em defender algumas posições. O complemento do aspecto cognitivo vem do contexto social que estimula ou incentiva a tomar posição em favor das regras morais e a procurar como aplicá-las. Habermas introduz um outro elemento, dizendo respeito à ancoragem motivacional: a interiorização da autoridade. Um elemento fundamental de toda educação e de toda aprendizagem é inculcar a necessidade de aceitar as normas morais. Essa aceitação não é somente o reconhecimento cognitivo ou intelectual do valor da norma, para qualquer motivo que seja, mas o reconhecimento do direito da pessoa que ensina a impor a norma. Essa aceitação e esse reconhecimento podem ser interpretados psicologicamente ou psicanaliticamente, mas há também um aspecto contextual. Nas sociedades ditas “pós-convencionais”, a autoridade das normas e das pessoas tradicionalmente investidas dessa autoridade se tornou cada vez mais fraca e problemática. É por isso que é imprescindível complementar as teses da psicologia cognitiva do desenvolvimento por uma consideração que poder-se-ia ser chamada de “aprendizados históricos”. “As forças religiosas de integração social debilitaram-se em virtude de um processo de esclarecimento que, na medida em que não foi produzido arbitrariamente, tampouco pode ser cancelado. É próprio ao esclarecimento a irreversibilidade de processos de aprendizado que se fundam no fato de que os discernimentos não podem ser esquecidos a bel prazer, mas só reprimidos ou corrigidos por discernimentos melhores. Por isso, o esclarecimento só pode compensar seus déficits mediante um esclarecimento radicalizado; por isso Hegel e seus discípulos precisam

depositar sua esperança em uma dialética do esclarecimento, na qual a razão vale como um equivalente do poder unificador da religião.” (Habermas 2002, 122) Nessa referência a Hegel, se pressupõe que a lógica do esclarecimento cognitivo seja uma lógica do desenvolvimento. Porém, se pressupõe também que as crenças têm um poder de motivação. As teses sobre o desencantamento do mundo se apoiam sobre uma confiança nas capacidades da razão humana de não somente oferecer respostas às questões de verdade ou de objetividade, como acontece no progresso das ciências, mas também — o que é mais problemático — às questões éticas ou morais. A afirmação da irreversibilidade de processos de aprendizado é estritamente cognitiva. Em Wahrheit und Rechtfertigung, o seu último livro epistemológico, Habermas apresenta o conceito de aprendizado como um “meta-conceito” ⁷ , um conceito que deve permitir interpretar os acontecimentos históricos da modernidade como “progressos” — pelo menos interpretar nesse sentido algumas das aquisições típicas dos tempos modernos. E as condições de possibilidade desse progresso são, entre outras, que os homens, os sujeitos, sejam capazes de aprender. “O pragmatismo de inspiração kantiana — concepção que eu compartilho com Hilary Putnam — se apoia sobre um fato transcendental: sensíveis aos argumentos, os sujeitos capazes de falar e de agir são também capazes de aprender e mesmo, a mais longo prazo, “incapazes de não aprender”. Mais precisamente, eles fazem aprendizagens, ao mesmo tempo na dimensão do conhecimento moral que é aquela de suas relações recíprocas, e na dimensão cognitiva de sua relação ao mundo. “ (Habermas 2001, 270-271) Essa citação merece vários comentários. A fórmula “incapazes de não aprender” é ambígua. Talvez aqui devêssemos lembrar a distinção fundamental entre ‘lógica do desenvolvimento’ e ‘dinâmica do desenvolvimento’. A primeira remete a uma pragmática da linguagem e da comunicação e ao fato de que, numa situação ideal, a lógica argumentativa possui uma autonomia que de uma certa maneira constrange as pessoas racionais. Cognitivamente é difícil sustentar argumentos defendendo a escravidão porque essa defesa implicaria que o defensor dessa tese aceitasse que, em circunstâncias equivalentes, ele mesmo poderia ser escravizado ⁸ . No entanto, mesmo do ponto de vista de uma discussão livre, as teorias da argumentação mostram os limites intrínsecos da lógica discursiva (veja Toulmin, 1958). É verdade que, historicamente, pode-se constatar progressos cognitivos importantes na elaboração, não somente das teorias científicas, mas também das teorias da democracia ou do direito (Habermas, 1992). Porém, o problema de transferência do cognitivo ao prático, do saber ao fazer, aparece aqui como aparecia nas teorias cognitivas do desenvolvimento moral. Oposta a uma lógica do desenvolvimento, o que pode ser chamado de “dinâmica do desenvolvimento” ou dinâmica histórica, se refere aos acasos históricos, às circunstâncias empíricas que mostram que, por motivos sociológicos, psicológicos ou meramente históricos, um aprendizado pode

ser perdido, uma regressão é sempre possível, a difusão de uma aquisição cognitiva pode ser limitada a uma pequena elite. Devemos, portanto, entender o “incapazes de não aprender” com a restrição seguinte: incapazes de não aprender numa situação ideal de fala ou de comunicação. Desse ponto de vista, é bom lembrar que o nazismo nasceu no país da Aufklärung , do Esclarecimento. E também que no país “mais desenvolvido”, que se apresenta como a maior democracia do mundo, as forças religiosas continuam barrando muitas vezes a possibilidade de debates racionais sobre as questões do bem ou das maneiras de viver. Conclusão Essas considerações finais vão bem além do que autoriza um raciocínio atrelado a um pragmatismo filosófico estrito. No entanto, não podemos deixar de ligar as interpretações da atualidade a nossas esperanças (Rorty, 2000). Habermas falava de um pragmatismo de inspiração kantiana, concepção que compartilhava com esse outro pragmatista, Hilary Putnam, que defendia a tese seguinte: “A noção que a história estabeleceu um certo número de maneiras de viver ‘ótimas’ – ótimas, mas irreconciliáveis – é excessivamente simples. Toda maneira de viver, todo sistema de valores, tradições e rituais que os humanos inventaram até agora têm defeitos assim como virtudes. Não somente há imperfeições que podem ser expostas a partir de dentro da maneira de viver, imperfeições que uma pessoa reflexiva de boa vontade pode designar e tentar mudar de dentro, mas há defeitos que chegamos a ver de fora como o resultado de um conhecimento aumentado e/ou um sentido ampliado da justiça...” (Putnam 1 994, 194) “Não há um algoritmo ou procedimento mecânico, nenhum conjunto de ‘cânones de método científico’ fixos e anistóricos que nos levarão à verdade em toda ou em qualquer área, mas há o imperfeito, porém necessário, ‘caminho’ de lutar por – e de testar – seus ideais na prática, concedendo aos outros o direito de fazerem o mesmo.” (Putnam 1994, 195) Admitindo a fundamental falibilidade de nosso conhecimento não podemos declarar que existe “uma” maneira de viver perfeita, uma moral ou uma ética universal. Assim como na investigação científica, devemos procurar a verdade, e isso tanto no domínio do saber quanto no domínio da ética ou da política. E a nossa razão limitada faz com que não possamos desqualificar uma maneira de viver por motivos etnocêntricos, e com que somente com referência ao mundo e através do diálogo, ou mesmo da discussão, possamos esperar melhorar as nossas concepções do bem ou da vida boa. No entanto, as teses de Putnam, de Habermas, de Rawls são teses que defendem pelo menos uma competência moral: uma capacidade de entender as exigências morais e de cumpri-las. Mas a distância entre competência ou capacidade cognitiva e moral, de um lado, e atuação ou cumprimento, do outro lado, nunca poderá ser totalmente abolida. Só resta a esperança.

1 . Esse artigo é inspirado na Aula Magna proferida no dia 25 de agosto 2018 na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Dedicando essa posição filosófica sobre ética e pragmática, não posso deixar de reconhecer minhas dívidas ao rigoroso trabalho interpretativo de Raul Landim e de Guido de Almeida. 2 . Veja, por exemplo, RICŒUR Paul (1999), Lectures. T. 1, Autour du politique , Paris, Seuil: “É por convenção que reservarei o termo ‘ética’ para o objetivo de uma vida cumprida sob o signo das ações estimadas boas e o termo ‘moral’ para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas simultaneamente por uma exigência de universalidade e por um efeito de constrangimento.” Veja, também, “Zum pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch der praktischen Vernunft”, in HABERMAS Jürgen (1991), Erläuterungen zur Diskursethik , Frankf. /M., Suhrkamp, pp. 100-118 3 . MONTAIGNE Michel de (1962), Essais , Livre I, Chapitre XXIII, «De la coustume», Paris, Edition Garnier, p. 120. 4 . Wittgenstein, Investigações, §§ 66-68. 5 . É verdade que eu deveria enfrentar uma questão muito mais ampla que diz respeito ao que se chama de linguistic turn (Rorty, ed. 1967), uma tese que diz que não é possível superar a linguagem porque isso mesmo — a discussão de se é possível superar a linguagem — só pode ser feita na linguagem. Mas eu acho essa discussão antes bizantina, pois sabemos de antemão que nem tudo é linguagem. Não vou abandonar a linguagem, mas tentar mostrar que o uso da linguagem tem um aspecto que supera a pragmática da linguagem, que é um aspecto performativo. 6 . Tentei mostrar a fecundidade dessas distinções do ponto de vista político, por exemplo para distinguir modelos de democracia (Berten 2017) ou as motivações que estão subjacentes na elaboração e na recepção do direito (Berten 2018). 7 . HABERMAS Jürgen (1999), Wahrheit und Rechtfertigung. Philosophische Aufsätze, Suhrkamp Verlag, Frankfurt/M.; tr.fr. (2001), Vérité et justification, (tr. R. Rochlitz), Paris, Gallimard. 8 . Veja a discussão bem pragmática dessa questão da escravidão e de sua possibilidade-impossibilidade em Rawls (1997), pp. 307-308. Bibliografia APEL Karl Otto (2000), Transformação da Filosofia, II. O a priori da comunidade de comunica ção , tr. Paulo Astor Soethe, São Paulo, Edições Loyola. AUSTIN John Langshaw (1962), How to do Things with Words, Oxford, Oxford University Press.

BERTEN André (2017) “Três ou quatro modelos normativos de democracia”, in MONTENEGRO DE LIMA Clovis Ricardo (org.), Anais do XII colóquio Habermas e IV colóquio de filosofia da informação , Rio de Janeiro, pp. 9-33. BERTEN André (2018) “O direito entre a pragmática, a ética e a moral”, in MONTENEGRO DE LIMA Clovis Ricardo (org.), Anais do XIII colóquio Habermas e V colóquio de filosofia da informação , Rio de Janeiro, pp. 45-58. DWORKIN Ronald (1991), « Pragmatism, Right Answers, and True Banality », in : BRINT, M. & WEAVER, W. Pragmatism in Law and Society , San Francisco, Westview. GRICE H.Paul (1975), “Logic and Conversation”, in C OLE Peter and MORGAN Jerry L.. Syntax and Semantics , Vol. 3: Speech acts , New York, Academic Press 1975,pp. 41-58. JAY Martin (1992), “The Debate Over The Performative Contradiction: Habermas Versus the Poststructuralists,” in Force Fields: Between Intellectual History and Cultural Critique , New York, pp. 25-37 HABERMAS Jürgen (1981), Theorie des kommunikativen Handels , t , Frankfurt/M., Suhrkamp; (2012), Teoria do agir comunicativo , trad. Flávio Beno Siebeneichler, São Paulo, Martins Fontes. HABERMAS Jürgen (1983), Moral Bewusstsein and kommunikatives Handeln, Frankfurt/M., Suhrkamp; (2003b), Consciência moral e agir comunicativo, tr. de G. de Almeida, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro HABERMAS Jürgen (1991), Erläuterungen zur Diskursethik , Frankf./M., Suhrkamp. HABERMAS Jürgen (1992), F aktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtstaates , Frankfurt/ Main, Suhrkamp Verlag. HABERMAS Jürgen (1999), Wahrheit und Rechtfertigung. Philosophische Aufsätze, Suhrkamp Verlag, Frankfurt/M.; tr.fr. (2001), V érité et justification, (tr. R. Rochlitz), Paris, Gallimard HABERMAS Jürgen (2002), O discurso filosófico da Modernidade , tr. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento, São Paulo, Martins Fontes. KOHLBERG, Lawrence (1981), Essays on moral development, vol. I, The Philosophy of Moral Development, San Francisco, Harper and Row Publishers. KORSGAARD Christine (1996), The Sources of Normativity, Cambridge, Cambridge University Press. KORSGAARD Christine (1997) « The Normativity of Instrumental Reason » in CULLITY Garrett & GAUT Berys (1997), Ethics and Practical Reason , Oxford, Clarendon Press KRIPKE Saul (1980), Naming and Necessity, Oxford, Blackwell

LIVET Pierre (1986), «La communication et ses indécidabilités»; in Les Cahiers du CREA, n°10, pp.137-228 MONTAIGNE Michel de (1962), Essais , Livre I, Chapitre XXIII, «De la coustume», Paris, Edition Garnier. O’NEIL Onora (1992 a ), in KORSGAARD Christine (1992), The Sources of Normativity , The Tanner Lectures on Human Values, delivered at Clare Hall, Cambridge University, November 16 and 17, 1992, pp. xi-xv. PIAGET Jean (1969), Le jugement moral chez l’enfant, Paris, PUF, 3ème éd. (1ère édition 1932) PUTNAM, Hilary (1994), Words and Life, (edited by James Conant), Cambridge (Mass.), (Harvard University Press). RAWLS John (1997), Uma Teoria da Justiça , trad. Jussara Simões, São Paulo, Martins Fontes. RICŒUR Paul (1999), Lectures. T. 1, Autour du politique , Paris, Seuil. RORTY Richard (ed) (1967), The Linguistic Turn. Essays in Philosophical Method, Chicago, University of Chicago Press. RORTY Richard (2000), Philosophy and Social Hope, New York, Penguin. SEARLE John (1969), Speech Acts, Cambridge, Cambridge University Press. TOULMIN Stephen E. (1958), The Uses of Argument , Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig (1953), Philosophical Investigations, ed. G.E.M. Anscombe & R. Rhees, Oxford, Blackwell Observações críticas sobre o critério de distintividade das meras percepções em Leibniz ¹ Edgar Marques UERJ/CNPq Trato no presente artigo da questão relativa ao critério que deve ser assumido na metafísica leibniziana para determinar os diferentes graus de distinção que possuem as meras percepções das enteléquias. Inicialmente mostrarei a importância da noção de distinção das percepções na metafísica de Leibniz, ressaltando o papel central que ela desempenha na individuação das mônadas. Passo, em seguida, a uma apresentação e avaliação crítica das duas principais respostas encontradas na literatura secundária acerca desse tema, chegando a uma conclusão negativa acerca da aplicabilidade delas ao problema que nos ocupa neste artigo. De acordo com a noção cartesiana de substância criada ² , podemos dizer que são substâncias unicamente os entes que dependem tão somente do

concurso de Deus para vir a existir e permanecer existindo. Essa independência ontológica relativa ao restante das criaturas vem a ser, assim, o traço característico que permite, nos quadros da metafísica cartesiana, diferenciar os entes substanciais criados daqueles que não são substâncias, mas sim modos. Leibniz assume essa concepção cartesiana e a desenvolve à sua maneira em sua metafísica. Para ele, essa independência ontológica somente pode subsistir caso o ente seja simples e caso suas modificações sejam derivadas da sua própria natureza. A ideia de Leibniz é a de que todo composto depende para existir da existência das unidades que o constituem, de tal forma que unicamente um ente que seja simples poderá ser dito independer de todos os outros entes criados, pois a existência de todo composto repousa sobre a existência das unidades dele integrantes. Nada que seja composto poderá ser, então, uma substância. Isso afasta, de acordo com ele, a possibilidade de que entes extensos e materiais sejam substâncias, dado que a matéria é divisível ao infinito, sendo, portanto, tudo que é composto formado por unidades e delas ontologicamente dependente. Essa independência ontológica relativa implica, para Leibniz, além disso, que as modificações sofridas por uma substância devem ter sua origem nessa própria substância, e não em algo dela distinto. Se não fosse assim, uma substância não poderia independer das demais criaturas, pois a subsistência ou emergência dos seus modos teria como fundamento entes outros que ela mesma, não sendo ela, portanto, independente desses em um sentido rigoroso. Dessa maneira, as substâncias, além de simples, têm de ser plenamente ativas e autônomas, uma vez que todas as suas modificações devem se originar unicamente delas próprias. A imagem do nível ontológico fundamental que emerge dessas considerações é, assim, o de uma realidade composta por substâncias simples causalmente autônomas, isto é, que não interagem efetivamente umas com as outras de nenhuma forma sendo, de certo modo, lançando mão aqui da conhecida imagem leibniziana, absolutamente desprovidas de janelas pelas quais algo pudesse entrar ou sair. Para cada mônada tudo ocorre, então, do ponto de vista da produção causal dela própria e de seus modos, como se existissem unicamente ela e Deus.

Esse ensimesmamento ontológico das substâncias implica que todas as relações sejam, em última instância, plenamente redutíveis a modificações internas dessas substâncias, podendo ser, portanto, sem qualquer resíduo, expressas por propriedades monádicas. Dessa maneira, toda atribuição a duas ou mais substâncias de propriedades relacionais deve se deixar reduzir, através de uma análise, a uma conjunção de propriedades monádicas atribuídas, respectivamente, a cada uma das substâncias partícipes da relação adjudicada. Assim, por exemplo, a relação de paternidade/filiação entre David e Salomão não consiste em algo que possua algum tipo de estatuto ontológico próprio para além de certas modificações presentes, respectivamente, em David e em Salomão. Por essa razão, Leibniz considera que essa relação – assim como todas as outras – não é um ente real, mas sim um ente mental, uma vez que ele se funda simplesmente na consideração simultânea por uma mente das modificações presentes em David, por um lado, e em Salomão, por outro. ³ Creio que seja patente para todos que essa concepção de substância torna problemática a ideia mesma de mundo, ainda que no sentido restrito leibniziano de um conjunto maximal de substâncias e de seus modos, uma vez que se todas as substâncias se encontram causalmente encapsuladas em si mesmas, sendo, além disso, todas as relações meros entes de razão completamente redutíveis a predicados monádicos ínsitos aos pretensos relata , devemos nos perguntar que tipo de liga pode haver entre substâncias leibnizianas de modo que faça sentido considerá-las integradas em um todo. A alternativa de simplesmente considerar que cada mônada é em si mesma um mundo não se coloca de saída como viável, pois, de acordo com a doutrina leibniziana da criação divina, Deus cria o melhor dos mundos possíveis, permanecendo todos os infinitos demais mundos no plano da mera possibilidade. Se cada mônada fosse um mundo no sentido estrito, o mundo criado teria de consistir em uma única mônada, tese essa que colide frontalmente com o pluralismo leibniziano de substâncias. Considerar que o mundo é formado por todas as substâncias possíveis se encontra igualmente fora de questão, pois Leibniz evita o “abismo do necessitarismo” exatamente através do apelo à noção dos possíveis que não são, não foram, nem nunca serão ⁴ , desempenhando, assim, a contraposição entre possíveis e existentes um papel central na fundamentação da contingência. O sistema metafísico leibniziano depende, então, de uma noção relativamente robusta de mundo, isto é, tem de haver diferentes conjuntos maximais de substâncias possíveis que tendem, todos eles, a existir. Essa existência conjunta de todos os possíveis não pode, contudo, se dar, caso contrário tudo que existe existiria necessariamente. Como todos os possíveis tendem a existir, Leibniz considera que temos de admitir que nem todos os possíveis são mutuamente compatíveis, obrigando a passagem de alguns deles à existência a permanência de outros no campo da mera possibilidade. Mundos possíveis devem ser, portanto, conjuntos maximais de possíveis compossíveis. Mostrar que tanto a noção de mundo como um conjunto maximal de substâncias quanto a tese de que há infinitos mundos possíveis mutuamente

incompatíveis são imprescindíveis à metafísica de Leibniz não é, contudo, já uma solução suficiente para o problema acima levantado, pois, dado que as relações não encontram morada no nível ontológico mais fundamental das substâncias simples individuais, faz-se mister clarificar em que sentido as substâncias que pertencem a um certo mundo podem fazer parte de um todo. Sem uma resposta a essa questão permanece desprovida de fundamentação a afirmação de que cada mundo possível compreende todas as substâncias possíveis que são compossíveis, isto é, cuja existência não constitui um obstáculo para a existência das outras. É preciso que se mostre como substâncias possíveis que não estabelecem estrito senso nenhum tipo de relação umas com as outras podem travar mutuamente a rota para a existência, o que faz com que pertençam, assim, a mundos possíveis distintos. É aqui que uma outra propriedade constitutiva das substâncias leibnizianas desempenha um papel central. As mônadas caracterizam-se, de acordo com Leibniz, basicamente por serem simples, autônomas e, além disso, por possuírem uma natureza eminentemente representacional. Os estados internos de uma mônada consistem todos ou em percepções – que são representações da multiplicidade na unidade simples que é a mônada – ou em estados volitivos – os apetites – que fazem com que a mônada passe de uma percepção para outra. Enquanto Descartes toma o pensamento como sendo o atributo essencial dos sujeitos, de maneira que ele pode caracterizálos como sendo substâncias pensantes, isto é, como substâncias cujo ser consiste em pensar, Leibniz toma a representacionalidade como sendo o atributo definidor das substâncias simples. Uma diferença decisiva entre essas duas doutrinas reside no fato de que essa caracterização leibniziana permite que seu sistema abrigue a possibilidade tanto de estados internos inconscientes quanto de mônadas desprovidas de consciência, o que seria inadmissível no interior da metafísica cartesiana. Leibniz não apenas atribui a todas as mônadas - conscientes ou não - estados representacionais. Ele sustenta também a – para dizer o menos idiossincrática tese segundo a qual cada mônada expressa através de seus estados internos tudo o que ocorre no universo. A ideia é a de que cada mônada expressa todos os estados que constituem todas as outras mônadas que integram o mundo ao qual elas pertencem. Cada mônada consiste, assim, lançando mão de uma imagem de Leibniz, em um espelho vivo do universo, expressando o todo das mônadas a partir da perspectiva que lhe é própria. ⁵ Considero que é exatamente essa excêntrica tese da interexpressividade mútua das mônadas que fundamenta a noção leibniziana de mundo. Duas mônadas pertencem ao mesmo mundo única e exclusivamente quando os conteúdos constitutivos das suas respectivas percepções se deixam interpretar como representações de um mesmo todo. Quando essas representações não expressam um mesmo todo, estamos diante de possíveis que são mutualmente incompatíveis, o que significa dizer que eles não pertencem a um mesmo mundo, mas sim a diferentes mundos possíveis. Sendo assim, é forçoso admitir que, tomadas em conjunto, as percepções de todas as mônadas que pertencem a um mesmo mundo possuem o mesmo

conteúdo representacional, pois todas expressam a totalidade de fenômenos que constituem esse mundo que elas integram. Mas se for assim, como as mônadas podem se diferenciar umas das outras, uma vez que seus estados internos são todos percepções? ⁶ Se todas as mônadas representam exatamente o mesmo – a saber, a totalidade do universo –, como é possível que elas possam ser individuadas, uma vez que elas são simples e inextensas? A resposta leibniziana a esse enigma é sobejamente conhecida: as diferentes mônadas representam o mesmo, mas não do mesmo modo. As mônadas se deixam individuar em função de elas possuírem percepções com diferentes graus de distinção/confusão. Assim, apesar de expressarem todas elas igualmente a totalidade do mundo, as mônadas podem ser distinguidas umas das outras por possuírem percepções diversamente distintas ou confusas. As percepções, então, apresentam um certo conteúdo representacional de uma maneira mais ou menos distinta/confusa, fornecendo esses diferentes graus de distinção/confusão os fundamentos para a individuação das mônadas. É exatamente essa tese que Leibniz apresenta no parágrafo 60 da Monadologia , quando faz as seguintes considerações: Deus, ao regular o todo, considerou cada parte e particularmente cada mônada; cuja natureza sendo representativa não poderia ser limitada por coisa alguma a representar só uma parte das coisas, ainda que seja verdade que essa representação seja confusa quanto ao detalhe de todo o universo e distinta em apenas uma pequena parte das coisas (...) Não é no objeto, mas na modificação do objeto do conhecimento que as mônadas são limitadas. Todas elas tendem confusamente ao infinito, ao todo; mas são limitadas e distinguem-se pelos graus das percepções distintas.” As noções de distinção/confusão desempenham, assim, um papel central não apenas na epistemologia leibniziana, mas sim também em sua metafísica, pois é unicamente através do apelo aos diferentes graus de distinção/ confusão presentes nas diversas percepções das mônadas que se torna possível que as infinitas mônadas possam ser individuadas. Dizer que as diversas mônadas constituem diferentes perspectivas ou pontos de vista acerca do mundo não significa, na filosofia de Leibniz, nada além do que afirmar que as percepções das diferente mônadas são distintas/confusas de modos dessemelhantes, quer dizer, que apresentam graus desiguais de distinção/confusão. Dessa maneira, é essencial para a metafísica leibniziana que se tenha um critério claro para determinar em que consistem as diferenças de graus de distinção/confusão presentes nas percepções, possibilitando, então, que se possa fundamentar a individuação das mônadas com base nessas diferenças de grau de distinção/confusão de suas percepções. Antes de começar a examinar criticamente as duas concepções desenvolvidas para responder a essa questão que são objeto de análise do presente artigo, creio ser importante fazer duas observações preliminares que deverão nortear a avaliação dessas posições.

O primeiro ponto é trivial, mas ainda assim creio que o assinalar ajuda a eliminar logo de início mal-entendidos que poderiam surgir posteriormente. Leibniz contrapõe várias vezes em seus textos percepções distintas a percepções confusas, tratando-as por vezes como formando conjuntos mutuamente excludentes. Cada percepção seria, dessa maneira, ou distinta ou confusa, consistindo, então, a distinção em uma propriedade do tipo tudoou-nada, quer dizer, em uma propriedade que se tem completamente ou da qual se é absolutamente destituído. Caracterizada desse modo, essa contraposição é obviamente incompatível com a ideia de que existem graus de distinção. Essa incompatibilidade é, contudo, apenas aparente. Cotidianamente empregamos um mesmo predicado das duas maneiras sem que vejamos esses empregos como sendo conflitantes um com o outro. Podemos, por exemplo, considerar que todas as pessoas possuem algum grau de generosidade, o que não nos impede de considerar que apenas algumas pessoas, e não todas, são generosas. Ponderar que a generosidade é uma propriedade gradativa e que todas as pessoas a possuem em algum grau não nos impede de classificar algumas pessoas como generosas e outras como não o sendo. Nesse nosso exemplo, quando a generosidade ultrapassa um certo limiar, dizemos que a pessoa é generosa, não o sendo quando o grau de generosidade a ela atribuído se encontra abaixo desse limite. Generosidade é, assim, em um certo sentido, uma propriedade que comporta graus, havendo em cada pessoa um certo grau dela, ainda que ínfimo. Em um segundo sentido, entretanto, generosidade é uma propriedade que ou se possui ou não se possui simplesmente, sendo, assim, possível dizer de alguém que ele é ou não é generoso. Quando Leibniz divide as percepções em distintas e confusas, ele está caracterizando a propriedade da distinção nesse segundo sentido, o que não implica, como vimos, que a distinção não possa ser uma propriedade que se possui de maneira gradativa. Minha segunda observação preliminar envolve recordar que Leibniz se utiliza, ao longo de seus textos de maturidade, do termo “percepção” de duas maneiras diversas. Ele o emprega, em um primeiro sentido, para se referir, de maneira genérica, a estados representacionais quaisquer que constituem as mônadas. Em um segundo sentido, esse termo é empregado para designar um tipo específico de estado mental, em contraposição a dois outros, a saber, as sensações e as apercepções. Leibniz distingue três tipos de estados internos nas mônadas: (a) as meras percepções, que são, de acordo com o parágrafo 14 da Monadologia , estados passageiros que consistem em uma representação da multiplicidade na unidade, quer dizer, na substância simples; (b) as sensações, que são formadas quando certas impressões são mais distintas e ganham relevo, o que as faz se destacarem das demais impressões e passarem, a partir disso, a ser acompanhadas pela memória; (c) as apercepções, que compreendem um ato reflexivo através do qual o sujeito se volta sobre si mesmo, ganhando consciência de seus próprios estados internos. De acordo com Leibniz, seriam em nós meras percepções os estados internos que nos advêm quando estamos desmaiados ou nos encontramos em uma situação de torpor profundo, como quando caímos em um sono profundo sem sonhos. Já as sensações consistem em percepções que, em

função de se destacarem das demais, são registradas por nós ou, dito de outra forma, das quais nós ganhamos consciência. A esses dois tipos de estados internos representacionais das coisas externas Leibniz contrapõe as apercepções, que consistem na consciência reflexiva desses estados interiores. ⁷ Com base na diferenciação dos três tipos de estados internos das mônadas, Leibniz considera haver três tipos de mônadas: as enteléquias, que possuem apenas meras percepções e apetites; as almas, que, além de percepções e apetites, possuem também sensações; e, por último, as mentes ou espíritos, as quais, além de percepções, apetites e sensações, possuem também apercepções, isto é, possuem uma consciência reflexiva acerca das próprias percepções, apetites e sensações. O que é relevante aqui no que tange ao problema tratado no presente artigo é que qualquer interpretação que queira dar conta do critério por meio do qual se estabelecem os diferentes graus de distinção nas percepções terá de levar em conta o fato de que existem três tipos de percepções, não sendo garantido de antemão que um mesmo critério possa ser igualmente aplicado a esses três tipos, podendo bem ser que eles possuem características idiossincráticas que impeçam essa unidade criterial. Feitas essas observações preparatórias, passemos a um exame de duas interpretações encontráveis na literatura em relação ao critério de distinção das percepções em Leibniz. Podemos considerar inicialmente que o reconhecimento de que as percepções possuem graus diversos de distinção esteja de alguma maneira vinculado à noção de que há diferentes graus em que as mônadas podem ser conscientes das suas percepções, variando desde a situação em que ela não registra de nenhuma forma seus estados internos até uma situação em que os conteúdos desses estados são totalmente presentes a ela. Chamaríamos, assim, as percepções conscientes de distintas e as inconscientes de confusas, esclarecendo, desse modo, a noção de distinção através do apelo à noção de consciência. Em função de sua ampla difusão e aceitação na literatura secundária sobre Leibniz poderíamos chamar de clássica essa concepção que vincula a noção de distinção perceptual às noções de consciência e de registro. Furth, por exemplo, chega a considerar que distinção – ele utiliza, equivocadamente a meu ver, os termos “distinção” e “clareza” como se designassem uma única noção em Leibniz – e grau de consciência consistem no mesmo: […] parece que a diversidade numérica de mônadas harmônicas somente pode residir em diferenças na clareza ou grau de consciência com as quais elas experienciam porções variadas de seu(s) universo(s); se o discurso de Leibniz acerca da perspectiva chega a algo, é a isso que ele chega. ⁸ A mesma ideia parece se encontrar em Parkinson quando ele afirma que

[…] cada substância expressa todo o universo ao percebê-lo (…) mas é óbvio que em qualquer tempo dado uma tal alma não se dá conta de tudo o que ocorre no universo. Leibniz coloca isso ao dizer que embora a alma humana perceba todo o universo, as percepções que ela (e, efetivamente, toda substância criada) possui são confusas. ⁹ Assim, de acordo com Parkinson, dizer que há confusão em certas percepções equivale a afirmar que as mônadas às quais essas percepções inerem não possuem consciência do conteúdo representacional que esses estados internos expressam. Dessa maneira, quanto menor for a consciência da mônada daquilo que uma sua percepção expressa, mais confusa será essa percepção. Confusão e distinção não são, então, segundo essa interpretação, características que as percepções possuam quando tomadas em si mesmas, senão que dizem respeito a como as suas respectivas mônadas registram o conteúdo do qual essas percepções são portadoras. McRae concorda também que essa seja a concepção leibniziana: […] a diferença entre percepções distintas e confusas corresponde exatamente àquela entre percepções das quais somos conscientes ou das quais nos apercebemos e aquelas das quais não somos conscientes ou que não são aperceptíveis. Ela corresponde àquela entre percepções sensíveis e insensíveis. ¹⁰ O grau de distinção/confusão das percepções está, portanto, segundo McRae, internamente associado a quão sensível ou insensível as mônadas são às informações acerca do universo que essas percepções veiculam. O ponto central na determinação do grau de distinção de uma percepção diz respeito, então, a quanto do conteúdo representacional que essa percepção porta é, por assim dizer, acessado pela mônada na qual essa percepção se encontra. Entretanto, apesar da adesão de intérpretes respeitáveis como os acima nomeados, essa concepção simplesmente não pode fornecer a resposta para a nossa dificuldade relativa à individuação das mônadas, pois, como Robert Brandom acuradamente o sublinha em seu artigo sobre graus de percepção em Leibniz ¹¹ , ela, caso seja verdadeira, apenas pode ser aplicada a mônadas animais e a espíritos, que são dotados de sensações e de sensações e apercepções, respectivamente, e não apenas de meras percepções, ficando, assim, de fora as enteléquias, que são, como vimos, mônadas dotadas unicamente de percepções, sem qualquer tipo de senciência ou de reflexão. Sendo as enteléquias, de acordo com Leibniz, absolutamente desprovidas de qualquer capacidade de registro interno do conteúdo representacional de suas percepções, não faz sentido, então, explicar os diferentes graus de distinção ou de obscuridade dessas meras percepções – em contraposição às sensações e às apercepções - através do apelo à diversidade dos graus em que as mônadas seriam ou poderiam ser conscientes desse conteúdo. A questão aqui diz respeito, dessa maneira, ao fato de essa concepção lançar mão da noção de consciência senciente – uso essa expressão neste contexto em contraste com a de consciência reflexiva com o propósito de diferenciar a consciência do mundo da consciência de si - para dar conta da gradação

de distinção ou de obscuridade no interior do conjunto das diversas percepções, gradação esta que, como vimos acima, fornece o fundamento para a individuação das mônadas. O problema é que as puras enteléquias não são em nenhum grau sencientes, de tal forma que se explicarmos a gradação de distinção através do apelo à noção de senciência ou de registro interno não disporemos de nenhum princípio de individuação das mônadas que são meras enteléquias. A adoção dessa concepção teria como indesejada consequência a impossibilidade de individuação das enteléquias. Neste momento eu gostaria de responder preventivamente a uma crível objeção que poderia surgir à minha crítica. Poder-se-ia argumentar em favor da concepção ora criticada lançando mão da noção leibniziana de pequenas percepções. Leibniz, como todos devem se recordar, introduz essa noção para dar conta do fato de que muitas de nossas sensações parecem ser o produto de infinitas outras pequenas sensações, as quais, paradoxalmente, não são elas mesmas por nós registradas. Quando ouvimos, usando o repisado exemplo de Leibniz, o barulho de uma onda do mar quebrando, esse som escutado é obra do som produzido pela queda de cada uma das milhões de gotas de água que constituem a onda que se quebra. A sensação auditiva produzida pelo quebrar da onda é, dessa maneira, fruto da combinação dos imperceptíveis sons gerados pela queda particular de cada uma dessas gotas, podendo se considerar, então, que essa sensação consciente é produto de infinitas percepções das quais não temos consciência, mas que resultam naquela. O acúmulo de pequenas percepções permite assim que, uma vez ultrapassado um certo limiar, a percepção resultante se destaque e ganhe relevo, chamando a atenção da mônada que a porta e passando a ter seu conteúdo representacional acessado por ela. Quanto mais amplo for o acesso da mônada ao conteúdo das suas percepções maior será a consciência que a mônada possui delas e mais distintas elas serão. No sentido inverso, quanto mais restrito for o acesso, menor será a consciência que a mônada delas tem e mais confusa será a percepção. Parece, assim, haver um contínuo que vai das pequenas percepções apenas infinitesimalmente conscientes até aquelas das quais a mônada possui plena consciência, coincidindo essa série com uma linha que se pode traçar das percepções quase que completamente confusas até aquelas que são quase que plenamente distintas. Eu tenho duas observações críticas a fazer acerca dessa objeção. A primeira delas diz respeito à identificação tácita da qual ela parte entre pequenas percepções, por um lado, e percepções das meras enteléquias, por outro. Considero que essa identificação é equivocada, pois as pequenas percepções devem ser compreendidas como sendo de mesma natureza que as sensações, apenas dotadas de muito menor força. Essa identidade de natureza fica clara se considerarmos que são plenamente concebíveis processos naturais ou artificiais de amplificação que poderiam tornar essas pequenas percepções registráveis pelo sujeito que as porta. Tanto o sujeito poderia desenvolver através de meditação ou concentração sua sensibilidade auditiva de maneira a passar a poder tomar ciência de sons que cotidianamente lhe são indiferentes, quanto seria possível criar dispositivos que expandam seu volume, tornando-os mais audíveis do que originalmente o eram. O ponto fundamental aqui é que as pequenas percepções são de mesma natureza que as sensações, devendo-se a inconsciência delas à sua

tibieza, e não a uma impossibilidade qualquer de essência. Creio que precisamente isso é o que não pode ser dito das percepções que as meras enteléquias possuem. Exatamente por estarem ligados a corpos dotados de um nível muito baixo de complexidade, as meras enteléquias não possuem quaisquer percepções que sejam percepcionadas pela própria enteléquia, não sendo, portanto, suas percepções comparáveis, nesse sentido, às pequenas percepções presentes nas mônadas que possuem sensações. A segunda observação é relativa ao poder explicativo da concepção que busca esclarecer a noção de distinção recorrendo às noções de consciência ou de registro. Minha suspeita é a de que não avançamos em nada ao estabelecermos essa vinculação, pois quando dizemos – como McRae, por exemplo, o faz – que a contraposição entre percepções distintas e confusas coincide com o contraste entre percepções conscientes e inconscientes ou sensíveis e insensíveis isso não nos esclarece de forma nenhuma em que consiste propriamente a distinção, mas sim o que é unicamente afirmado é que a partir de um certo limiar de distinção a mônada animal torna-se consciente do conteúdo da percepção. Ao tornar-se distinta a percepção torna-se, assim, saliente, distinguida, registrável ou perceptível ¹² . Dessa maneira, poder ser tornada consciente a partir de um certo limiar de distinção é simplesmente um efeito de um alto grau de distinção e não aquilo em essa característica propriamente consiste. Tomar o grau de consciência como correlativo do grau de distinção das percepções é, assim, completamente inadequado, pois não permite que se diferencie as meras percepções das enteléquias umas das outras. É preciso que se encontre um outro critério de distintividade. Uma abordagem inovadora e promissora dessa noção de distinção perceptual pode ser encontrada no artigo de Roberto Brandom ao qual eu fiz referência pouco acima. ¹³ Brandom recorda, em primeiro lugar, que, de acordo com a metafísica leibniziana, percepções são simplesmente um tipo de expressão. Em resposta a uma indagação de Arnauld, Leibniz esclarece, em uma carta a este de 9 de outubro de 1687, a noção de expressão da seguinte forma: “uma coisa exprime a outra (na minha terminologia) quando há uma relação constante e regrada entre o que se pode dizer de uma e da outra.” ¹⁴ Esse é o tipo de relação que subsiste, por exemplo, entre um mapa e a região que ele representa, ou entre uma maquete ou as plantas e o prédio ao qual elas remetem. Podemos dizer, assim, que uma coisa expressa uma outra quando essa primeira carrega informações acerca da segunda, sendo possível, em função disso, que se conheça a segunda através da apreensão da primeira. A percepção consiste em uma modificação da mônada que expressa a multiplicidade na unidade, isto é, na substância simples que a mônada é. ¹⁵ De acordo com Leibniz, cada mônada expressa, por meio dessas suas modificações internas, a totalidade do que ocorre com ela própria e com todas as outras mônadas e corpos, isto é, a totalidade dos modos ou acidentes de todas as substâncias.

O insight de Brandom consiste em propor que tomemos a natureza representativa da percepção em Leibniz como consistindo em um tipo de potencial de inferências. A ideia é que o que caracteriza uma percepção é que da sua ocorrência em uma dada mônada pode ser inferida a subsistência de determinados modos ou acidentes relativos à própria mônada ou a outras mônadas. A amplitude do conjunto de inferências que se deixam extrair de uma certa percepção constitui, na terminologia de Brandom, o domínio expressivo – expressive range – próprio dessa percepção. Nos diferentes momentos do tempo as mônadas se encontram, de acordo com Brandom, em estados perceptivos formados por múltiplas percepções. E é nessa ideia de que várias percepções compõem um estado perceptivo que se encontra a chave para a elucidação que Brandom fornece tanto da natureza da distinção/confusão quanto dos princípios de individuação das mônadas. Segundo Brandom, uma percepção será tão mais distinta quanto maior for seu domínio expressivo, isto é, seu grau de distinção será função da quantidade de inferências que se deixam realizar a partir dela. Podemos comparar, assim, diferentes percepções e ordená-las em uma série que vai das menos distintas às mais distintas tomando como base seus respectivos domínios expressivos. Brandom pede que consideremos, à guisa de exemplo, três diferentes percepções – P1, P2 e P3 - de um mesmo objeto físico. P1 o representa como vermelho, P2 como cúbico e P3 como sendo vermelho e cúbico. Uma vez que de P3 pode-se inferir que o objeto em questão é vermelho e que é cúbico, P3 é, de acordo com esse critério, mais distinto e menos confuso do que P1 e P2, as quais possibilitam que se infira apenas, respectivamente, que o objeto é vermelho e que ele é cúbico. Partindo unicamente de P1 não seria possível distinguir esse objeto de uma esfera vermelha. Da mesma forma, a partir de P2 não se poderia diferenciá-lo de um cubo azul. Unicamente P3 possibilitaria que, com base nas percepções dessas mônadas, fossem discernidos uns dos outros o cubo vermelho, a esfera vermelha e o cubo azul. Os estados perceptivos em que as mônadas se encontram a cada momento expressam, de acordo com uma das mais características teses da metafísica leibniziana, a totalidade do universo, vale dizer, eles expressam todas as modificações de todas as mônadas. Essa interexpressividade mútua tem como base a harmonia preestabelecida entre todas as mônadas que compõem o mundo, e é isso que possibilita identificar os conteúdos de seus estados internos com seu poder de inferência. Nas palavras de Brandom: […] uma percepção provê sua mônada de informação acerca do resto do mundo apenas na medida em que a harmonia preestabelecida fornece princípios (leis da natureza) que permitem inferências da ocorrência dessa percepção particular, em vez de alguma outra possível, a conclusões acerca de fatos exteriores à mônada. ¹⁶ Uma vez que as mônadas não se deixam diferenciar umas das outras em função daquilo que elas representam, a saber, o universo como um todo, elas se individuam em função do modo como o conteúdo intencional relativo ao todo do universo se distribui entre as diversas percepções que constituem

seus estados perceptivos. Assim, retomando o exemplo acima, uma mônada A com a percepção P3 seria diferente de uma mônada B com as percepções P1 e P2, ainda que os conteúdos de P1 e P2 associados correspondam ao conteúdo de P3. Com isso, torna-se possível individuar as mônadas A e B ainda que o conteúdo expressivo total delas coincida. A diferença entre elas, e que possibilita que elas sejam indivíduos distintos um do outro, está relacionada, então, ao fato de elas possuírem percepções com diferentes domínios expressivos. No caso em tela, a mônada A possui a percepção P3, que é a mais distinta das três por possuir um maior poder inferencial, enquanto a mônada B possui as percepções comparativamente mais confusas P1 e P2. Desse modo, tomando como base unicamente essas três percepções, podemos diferenciar as mônadas A e B uma da outra e considerar a mônada A como sendo mais perfeita que a B, pois ela possui uma percepção mais distinta do que aquelas presentes nessa última. Margaret Wilson ¹⁷ identifica, a meu ver acertadamente, duas noções como sendo centrais nessa interpretação de Brandom: as de dedutibilidade externa, por um lado, e a de acessibilidade interna ao conteúdo ou intencionalidade interna, por outro. A seguinte passagem ilustra bem o compromisso de Brandom com essas duas noções: Para a mônada, seu mundo é um mundo de atributos físicos, perceptíveis. O fenomenalismo de Leibniz acarreta que as relações dedutivas entre percepções implicadas pela harmonia preestabelecida são refletidas pelas relações dedutivas entre essas percepções e propriedades das coisas fenomenais que aparecem para a mônada perceptiva como seus objetos. ¹⁸ A ideia de Brandom é que uma vez que as percepções são representações, seu conteúdo deve ser acessível ao sujeito ao qual esse estado representacional inere, sendo individuado pelos seus diferenciados domínios expressivos próprios a cada uma delas. É a pressuposição tácita dessa acessibilidade interna que possibilita a Brandom dizer, por exemplo, que as percepções fornecem às mônadas que as possuem informações acerca do mundo ou que essas mônadas experienciam o mundo por meio de suas percepções. Contudo, a adoção da ideia de acessibilidade interna padece de um problema capital no que diz respeito à questão que ora discutimos: ela não pode ser aplicada sem mais às puras enteléquias, isto é, às mônadas que possuem unicamente meras percepções e que não são, portanto, nem sencientes nem racionais. As enteléquias caracterizam-se exatamente por não registrarem o conteúdo das próprias percepções, não possuindo, assim, esses conteúdos nenhuma dimensão fenomenal, quer dizer, esses conteúdos não são vivenciados de nenhuma maneira pela mônada que os porta. Não há nas puras enteléquias, por assim dizer, nenhum acesso interno aos conteúdos de suas percepções, não sendo razoável, portanto, que se apele à noção de acessibilidade interna para dar conta dos critérios de distinção que sejam válidos para os três tipos de percepções monádicas.

No parágrafo 35 do Discurso de Metafísica , Leibniz introduz uma metáfora que talvez nos ajude a esclarecer um pouco melhor esse ponto. O objetivo do parágrafo 35 é o de sublinhar a radical diferença entre os espíritos, por um lado, e as outras almas ou formas substanciais, por outro. ¹⁹ Escreve Leibniz: […] consistindo toda a natureza, fim, virtude e função das substâncias apenas em exprimir Deus e o universo (...) não cabe duvidar de que as substâncias que o exprimem, com o conhecimento daquilo que fazem e que são capazes de conhecer grandes verdades acerca de Deus e do universo, não o exprimam incomparavelmente melhor do que essas naturezas, que são ou brutas e incapazes de conhecer verdades, ou completamente destituídas de sensação e de conhecimento. A diferença entre as substâncias inteligentes e as que não o são é tão grande como a que há entre o espelho e aquele que vê. ²⁰ O significado dessa metáfora é transparente: os espíritos, por serem dotados de razão e, portanto, de capacidade reflexiva, são como aquele que vê, isto é, possuem a aptidão de dar-se conta e de compreender os conteúdos que constituem suas percepções, enquanto que as outras almas - quer as “brutas e incapazes de conhecer verdades”, quer as “completamente destituídas de sensação e de conhecimento” - são como o espelho, quer dizer, elas possuem percepções que expressam o universo, mas não se assenhoram de seu conteúdo. Meu interesse aqui é simplesmente o de destacar que há, segundo Leibniz, almas que não possuem qualquer tipo de sensação ou de conhecimento, não fazendo sentido atribuir a elas um acesso qualquer aos conteúdos de suas percepções. Seria equivocado, contudo, rejeitar a interpretação de Brandom simplesmente em função de seu compromisso com a concepção de uma acessibilidade interna aos conteúdos das percepções, uma vez que a segunda tese, a saber, a de dedutibilidade externa parece independer conceitualmente da primeira. Assim, a rejeição da primeira tese não implica a recusa da segunda. Mas essa segunda tese se defronta com suas próprias dificuldades. Em primeiro lugar, como bem o sublinha Margaret Wilson ²¹ , ela depende da consideração de que um estado perceptivo em que uma mônada se encontra seja constituído por diversas percepções coocorrentes. Uma questão que se coloca aqui é a de como seria possível a individuação de percepções coocorrentes em meras enteléquias, isto é, em mônadas totalmente desprovidas quer de consciência fenomenal ou senciente quer de consciência reflexiva. Em mônadas conscientes podemos apelar para suas vivências sensoriais ou para os modos pelos quais elas se apercebem reflexivamente de suas percepções para diferenciar, no interior de um estado perceptivo, umas das outras as diversas percepções que o compõem. O problema, assim, é o de estabelecer como essas percepções podem ser individuadas nas meras enteléquias, uma vez que as percepções não são estados físicos e não se deixam acessar internamente pela mônada à qual elas inerem. Colocando em forma de pergunta: o que justifica a introdução da ideia de percepções coocorrentes em meras enteléquias, na medida em que essa ideia exige um critério não fornecido de individuação das percepções? Sem um tal critério, o que nos dá o direito de afirmar que há

diversas percepções coocorrentes com conteúdos distintos e não apenas uma única percepção que engloba em si todos esses conteúdos? O problema é que no caso dessa segunda alternativa não teríamos mais como diferenciar as meras enteléquias umas das outras. Resolveríamos a questão da individuação das enteléquias às custas da criação do enigma da individuação das percepções. Um segundo – e ainda mais grave - problema está relacionado à ideia mesma de se tomar o potencial inferencial das percepções como critério para determinação de seus respectivos graus de distinção/confusão e, consequentemente, como princípio de individuação dessas mônadas desprovidas consciência fenomenal e reflexiva. O ponto duvidoso aqui está ligado ao fato de as meras enteléquias não possuírem, como vimos, nenhuma capacidade de registrar, dar-se conta ou acessar os conteúdos de suas próprias percepções, o que faz com que seja absurdo considerar que caiba a elas a determinação das inferências que se seguem dos conteúdos de suas percepções. É preciso, então, que recorramos à noção de uma mente externa a essas mônadas e que possa deduzir dessas percepções estados de outras mônadas. O candidato natural a desempenhar esse papel no sistema leibniziano é obviamente o entendimento divino. Isso significa que a individuação das meras enteléquias repousaria de alguma maneira sobre a cognição divina, sendo, assim, de alguma forma, a individuação de cada enteléquia dependente do modo como ela é pensada por essa mente externa, e não do modo como ela é nela mesma e por si mesma. A grande dificuldade aqui é que, na metafísica leibniziana, a contraposição entre entes reais e fenômenos repousa exatamente no fato de esses últimos não serem unos por si, consistindo sua unidade – e, portanto, sua realidade em um certo modo de serem percebidos ou concebidos. Assim, um arco-íris, por exemplo, não é uno em si mesmo, uma vez que ele consiste, em última instância, em múltiplas gotas d’água sendo atravessadas por raios de luz, derivando-se sua unidade do fato de essa multiplicidade ser percebida por uma mente como constituindo uma unidade. Fenômenos não podem ser, assim, de acordo com Leibniz, entes reais ou substanciais, pois além de dependerem de Deus para existir – dependência essa compartilhada, como vimos, por todas as substâncias criadas – eles também têm sua unidade dependente do modo de ser pensado por uma mente externa. Ser um fenômeno é, então, um modo de ser derivado, e não um modo de ser fundamental, uma vez que um fenômeno é unicamente na medida em que ele é pensado por uma mente dele distinta. O incontornável apelo a uma mente externa – ainda que seja a mente divina – no caso da determinação do domínio expressivo das percepções das puras enteléquias traz, então, consigo o espinhoso problema de fenomenalização dessas enteléquias, as quais, entretanto, dito expressamente por Leibniz, são substâncias. As duas noções basilares que constituem a concepção de Brandom – a saber, dedutibilidade externa e acessibilidade interna – são, assim, para dizer o menos, dificilmente aplicáveis às meras percepções presentes nas enteléquias, não consistindo a interpretação de Brandom, portanto, em uma resposta viável para a questão da determinação do critério de distintividade das puras percepções presentes nas meras enteléquias.

Desse modo, as duas concepções examinadas são insatisfatórias no que tange à determinação de um critério de distintividade das percepções que seja aplicável às percepções constitutivas das enteléquias, que não envolvem nem consciência perceptual nem consciência reflexiva. Se há alguma saída desse labirinto – e eu sou pessimista a esse respeito -, ela não deve, a meu ver, envolver nem a noção de consciência nem a de dedutibilidade externa. 1 . Dedico, em agradecimento, este texto aos professores Raul Landim e Guido de Almeida, a quem devo não apenas minha compreensão do sentido e natureza da filosofia, mas também a alegria da convivência com pessoas tão generosas intelectualmente e íntegras pessoalmente. 2 . Ver os parágrafos 51 e 52 da primeira parte dos Princípios da Filosofia , em que Descartes esclarece que o termo “substância” não se aplica univocamente a Deus e às criaturas. Apenas Deus, que existe de forma absolutamente independente de qualquer outro ente, é uma substância em sentido próprio. Os entes criados são substâncias apenas em um sentido ampliado e qualificado do termo. 3 . Em uma carta a Des Bosses de 21 de abril de 1714 escreve Leibniz: “É assim que eu julgo as relações: a paternidade em Davi e a filiação em Salomão são duas coisas diferentes, mas a relação comum entre as duas é coisa simplesmente mental, que tem seu fundamento nas modificações dos singulares.” Leibniz, G.W., Obras Filosoficas y Cientí ficas , Volumen 14, Correspondencia I, Editorial Comares, Granada, 2007, pág. 422. Em nova carta a Des Bosses de 29 de maio de 1716 complementa ele acerca desse tópico: “as relações que ligam duas mônadas não são nem em uma nem em outra dessas mônadas, mas nas duas simultaneamente, quer dizer, não são verdadeiramente, em nenhuma das duas, mas no espírito somente.” Leibniz, G.W., op. cit., pág. 462. 4 . A imagem do abismo é forjada pelo próprio Leibniz: “ Sed ab hoc praeciptio retraxit me consideratio eorum possibilium, quae nec sunt, nec erunt, nec fuerunt nam si quaedam possibilia nunquan existunt, utique existentia non semper sunt necessária, alioqui ipsis alia existere impossibile foret, adeoque omnia nunquam existentia forent impossibilita .”, Leibniz, G.W., Sämtliche Schriften und Briefe , herausgegeben von der Preussischen bzw. der Deutschen Akademie der Wissenschaften zu Berlin, Reihe VI, Band 4, Teil B, p. 1953. [Doravante a referência a essa edição será feita simplesmente através do emprego da letra A seguida do número da série em algarismo romano, do número do volume em algarismo arábico e do número da página também em algarismo arábico.] 5 . Em carta a Remond de 11 de fevereiro de 1715 Leibniz escreve que “chaque monade est um miroir vivant de l’univers suivant son point de vue”.” In: Leibniz, G.W., Die philosophischen Schriften , Band 3, Herausgegeben von C. I. Gerhardt. Olms: Hildesheim, 1962, pág. 636. [Nas próximas referências a essa edição empregaremos simplesmente o nome Gerhardt seguido do número do volume em algarismos romanos e do número da página em algarismos arábicos.] 6 . Os apetites simplesmente explicam a passagem de uma percepção para a outra, podendo ser desconsiderados na presente discussão.

7 . No parágrafo 4 dos Princípios da Natureza e da Graça , Leibniz introduz da seguinte maneira o conceito de apercepção: “Assim, é bom distinguir entre a percepção, que é o estado interior da mônada representando as coisas externas, e a apercepção, que é a consciência ou conhecimento reflexivo desse estado interior, a qual não é dada a todas as almas e nem sempre à mesma alma.” Leibniz, Gottfried Wilhelm. Discurso de Metafísica e outros textos . Edição de Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pág. 155. 8 . “[…] it seems that the numerical diversity of harmonious monads can reside only in differences in the clearness or degree of consciousness with which they experience various portions of their universe(s); if Leibniz talk of perspective comes to anything, it must come to this.” Furth, Montgomery. “Monadology”. In Leibniz: a Collection of Critical Essays , edited by Frankfurt, H., 99-136. New York: Anchor Books, 1972, p. 129. 9 . “[…] each substance expresses the whole universe by perceiving it (…) but it is obvious that at any given time such a soul does not notice everything that occurs in the universe. Leibniz put this by saying that although the human soul perceives the whole universe, the perceptions that it (and, indeed, every created substance) has are confused.” Parkinson, G.H.R. “The ‘Intellectualization of Appearances’: Aspects of Leibniz’s Theory of Sensation and Thought”. In Hooker, M. (editor), Leibniz. Critical and Interpretative Essays . Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982, p. 6. 10 . “[…] the difference between distinct and confused perceptions corresponds exactly to that between perceptions of which we are conscious or which we apperceive and those of which we are not conscious or which are not apperceptible. It corresponds to that between sensible and insensible perceptions.” In McRae, Robert. Leibniz: Perception, Apperception, and Thought . Toronto and Buffalo: University of Toronto Press, 1976, p. 36. 11 . Brandom, Robert, “Leibniz and degrees of perception”, Journal of the History of Philosophy , vol. 19, n. 4, 1981, p. 451. 12 . Alison Simmons também adota essa concepção: “To say that sensations are distinct perceptions is therefore to say not that they are noticed, nor that they are noticings, but that they are noticeable or apt to be noticed”, Simmons, Alison. “Changing the Cartesian Mind: Leibniz on Sensation, Representation and Consciousness”. The Philosophical Review , 110, 2001, p. 57-58. 13 . Brandom, Robert, “Leibniz and degrees of perception”, Journal of the History of Philosophy , vol. 19, n. 4, 1981, 447-479. 14 . “Une chose exprime une autre (dans mon language) lorsqu’il y a un rapport constant et reglé entre ce qui se peut dire de l’une et de l’autre.”, Gerhardt, II, 112. 15 . Leibniz escreve no parágrafo 14 da Monadologia : “O estado passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na unidade ou na substância

simples não é outra coisa senão aquilo que se chama de percepção, que deve ser bem distinguida da apercepção ou da consciência.” Leibniz, Gottfried Wilhelm. Discurso de Metafísica e outros textos. Edição de Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pág. 133. 16 . “A perception provides its monad with information about the rest of the world only insofar as the preestablished harmony provides principles (laws of nature) which permit inferences from the occurrence of this particular perception, rather than any other possible one, to conclusions about facts outside that monad.”, Brandon, Op. cit., p. 462. 17 . Em seu artigo “Confused vs. Distinct Perception in Leibniz: Consciousness, Representation, and God’s Mind”. In Ideas and Mechanism. Essays on Early Modern Philosophy , edited by M. Wilson, Princeton: Princeton University Press, 1999, p. 336-352. 18 . “For the monad, its world is the world of physical, perceptible features. Leibniz’s phenomenalism entails that the deductive relations between perceptions implied by the preestablished harmony are reflected by deductive relations between those perceptions and features of the phenomenal things which appear to the perceiving monad as their objects.”, Brandon, Op. cit., p. 462. 19 . O termo “mônada” surge na obra de Leibniz apenas a partir de 1697. Antes desse período ele fala de formas substanciais, de almas e de átomos metafísicos. 20 . Leibniz, Gottfried Wilhelm. Discurso de Metafísica e outros textos . Edição de Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 74-75. 21 . Wilson, M., op. cit., p. 340. Bibliografia Barth, Christian. “Leibnizian Conscientia and its Cartesian Roots”. Studia Leibnitiana 43 (2011): 216-236. Barth, Christian, Intentionalität und Bewusstsein in der frühen Neuzeit , Klostermann, Frankfurt, 2017. Brandom, Robert, “Leibniz and degrees of perception”, Journal of the History of Philosophy , vol. 19, n. 4, 1981, 447-479. Cramer, Konrad. “Einfachheit, Perzeption und Apperzeption. Überlegungen zu Leibniz‘ Theorie der Substanz als Subjekt”. In Leibniz und die Frage nach der Subjektivität , herausgegeben von R. Cristin, 19-45. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1994. Furth, Montgomery. “Monadology”. In Leibniz: a Collection of Critical Essays , edited by Frankfurt, H., 99-136. New York: Anchor Books, 1972, 99-135. Jorgensen, Larry. “Leibniz on Memory and Consciousness”. British Journal for the History of Philosophy 19 (2011): 887-916.

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para Descartes seria, portanto, constituído de ideias claras e distintas, cuja verdade é garantida por Deus. A leitura acima descrita, entretanto, não está isenta de problemas. Além de envolver o (ao menos aparente) círculo apontado por Arnauld no conjunto das Quartas Objeções publicado com as Meditações [ AT VII : 214], já amplamente discutido e, em princípio, dissolvido pelos intérpretes e leitores da filosofia cartesiana ⁴ , envolve um outro problema, a partir do qual surge o tema do presente artigo. Essa leitura padrão parece claramente colidir com o que o próprio Descartes afirma ser seu objetivo e com algumas passagens das Meditações com relação aos seus dois aspectos fundamentais: a) a tese de que uma das etapas da dúvida cartesiana, a saber, a que introduz a hipótese do Deus enganador, é dedicada a pôr em questão a verdade das ideias da razão pura, isto é, as ideias claras e distintas; e b) a tese de que todo conhecimento para Descartes é constituído apenas de ideias claras e distintas cuja verdade seria garantida por Deus ⁵ . Nesse artigo apenas a primeira dessas dificuldades será tratada. Ao explicar seu objetivo nas Meditações , dirigindo-se ao editor Mersenne, Descartes afirma que ali fornece um modelo cognitivo alternativo ao modelo que se funda em princípios aristotélicos: […] posso afirmar, cá entre nós, que essas seis meditações contêm todo o fundamento de minha Física. Mas, por favor não diga às pessoas, pois isso tornaria mais difícil sua aprovação por parte daqueles que defendem Aristóteles. Tenho esperança que insensivelmente os leitores se acostumarão com meus princípios e reconhecerão sua verdade antes de notarem que eles destroem os princípios de Aristóteles”. [ AT III : 298] E no final das Meditações , ao fazer um balanço de suas antigas opiniões destruídas nas meditações anteriores, Descartes esclarece qual é o princípio epistêmico que é alvo de suas críticas, a saber, o princípio, atribuído a Aristóteles por Tomás de Aquino, segundo o qual todo conhecimento é dependente de dados sensíveis: “[…] facilmente me persuadia de que não tinha nenhuma ideia em meu espírito que não tivesse antes passado pelos meus sentidos”[ AT VII : 75]. Nada acerca de ideias claras e distintas é mencionado, mas apenas os sentidos.

A dificuldade de admitir que Descartes sustenta a tese de que a verdade das ideias claras e distintas é posta em questão é ainda manifesta em alguns textos das Meditações em que Descartes parece defender justamente o contrário. Por exemplo, nos parágrafos iniciais da Terceira Meditação, mesmo antes de qualquer prova da existência de Deus e de sua veracidade, o que segundo a interpretação tradicional acima descrita teria como fim eliminar a dúvida relativa às ideias claras e distintas, Descartes parece afirmar que é impossível duvidar das ideias claras e distintas. Nesses parágrafos da Terceira Meditação (e não na Primeira, quando Descartes sequer havia mencionado ideias claras e distintas), ao retomar os resultados obtidos nas duas primeiras meditações e, portanto, agora sim já de posse de uma ideia clara e distinta introduzida na Segunda Meditação pelo argumento do Cogito , Descartes flerta com a possibilidade de duvidar da verdade das ideias claras e distintas, isto é, das ideias manifestas e que são adquiridas por intuição: […] algum Deus podia me haver dado uma natureza tal que eu fosse enganado também acerca das coisas que me pareciam as mais manifestas ... [F]ácil lhe [a Deus] seria fazer que eu errasse também nas coisas que creio ver por intuição como as mais evidentes aos olhos da mente . [ AT VII : 36. Ênfase acrescentada] Entretanto, imediatamente na sequência da passagem Descartes conclui afirmando que não pode ser enganado quanto a ideias claras e distintas: Toda vez, ao contrário, que me volto para as coisas mesmas que julgo perceber mui claramente, sou por elas persuadido de modo tão completo que, espontaneamente, prorrompo a dizer: engane-me quem puder, nunca poderá fazer no entanto que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo ou que alguma vez seja verdadeiro que eu nunca fui, quando é verdadeiro que agora sou ou, talvez mesmo, que dois juntos a três fazem mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, nas quais reconheço manifesta contradição . [ loc.cit. Ênfase acrescentada] Nessa mesma Terceira Meditação, logo a seguir, também ainda antes de provar a existência de um Deus veraz que eliminaria a dúvida do Deus enganador segundo a leitura padrão, Descartes, do mesmo modo, sugere que as ideias claras e distintas nunca são postas em questão nas Meditações já que é impossível duvidar daquilo que a luz natural ensina. Com o objetivo de distinguir o que seria ensinado pela natureza do que é ensinado pela luz natural, Descartes ali afirma “[T]udo o que a luz natural me mostra – como que de duvidar segue-se que sou, e coisas semelhantes -, de modo algum pode ser duvidoso , porque não pode haver nenhuma outra faculdade em que confie tanto quanto nessa luz” [ AT VII : 38. Ênfase acrescentada]. Além disso, ainda com relação à tese de que por meio da hipótese de um Deus enganador Descartes põe em questão as ideias claras e distintas, há um ao menos aparente embaraço entre o texto da Primeira Meditação em que a dúvida do Deus enganador é introduzida e o texto do início da Terceira Meditação, ainda antes da prova da existência de um Deus veraz, onde Descartes enumera verdades indubitáveis. Em ambos os textos Descartes cita a Matemática, recorrendo a exatamente o mesmo exemplo, e afirma

coisas contrárias. Na Primeira Meditação Descartes, por meio da hipótese do Deus enganador, parece pôr em questão o conhecimento matemático: “[P]ode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três ... ou faço outra coisa que se possa imaginar ainda mais fácil?” [ AT VII : 21] e na Terceira Meditação parece negar a possibilidade de duvidar do conhecimento matemático, mesmo se Deus for enganador: “[…] engane-me quem puder, nunca poderá fazer […] que dois juntos a três fazem mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes [...]”. Se na Primeira Meditação, com o exemplo da Matemática, por meio do recurso à hipótese da existência de um Deus enganador, Descartes pretende estar pondo em questão a verdade das ideias claras e distintas, como explicar que na Terceira Meditação, utilizando o mesmo exemplo da Matemática e antes de eliminar a hipótese do Deus enganador, Descartes afirma a indubitabilidade das ideias claras e distintas? Admitindo-se que, em princípio, a “luz natural” é a faculdade que produz ou que permite reconhecer ideias claras e distintas e admitindo-se que as ideias claras e distintas são ideias cuja negação envolve contradição, ao contrário de sugerir que Descartes considera que as ideias claras e distintas estão em questão, essas passagens sugerem que ele as considera indubitáveis. Mais que isso, e essa é especificamente a questão a ser tratada aqui, as últimas passagens citadas que parecem se contradizer, a saber, os textos da Primeira Meditação onde a hipótese do Deus enganador é introduzida e os parágrafos iniciais da Terceira Meditações que afirmam a indubitabilidade das ideias clara e distintas, apontam para uma possível diferença entre uma compreensão de conhecimento matemático que é posto em questão na Primeira Meditação e a compreensão cartesiana de conhecimento matemático que é afirmado como indubitável na Terceira Meditação, mesmo antes da prova da existência de um Deus veraz. Considerando a possibilidade apontada por essas passagens das Meditações de que antes do que, segundo a leitura tradicional, seria a eliminação da razão para duvidar da Matemática e, por conseguinte, antes de eliminar a dúvida relativa às ideias claras e distintas, Descartes, de algum modo, admite a indubitabilidade da Matemática, isto é, a indubitabilidade das ideias claras e distintas, e considerando o objetivo expresso de Descartes de destruir o princípio epistêmico de orientação aristotélica, a hipótese a ser aqui defendida é a de que na Primeira Meditação o alvo da dúvida é o modelo cognitivo sustentado pela tradição escolástica de orientação aristotélica segundo o qual todo conhecimento, inclusive a Matemática, depende da matéria e de um processo abstrativo que, de algum modo, deixa de lado a matéria. Segundo essa concepção tradicional de conhecimento “não há nada no intelecto que não tenha antes passado pelos sentidos” e o conhecimento é universal e necessário o que implica que todo conhecimento depende de matéria e de um processo intelectual que, de um modo ou de outro, abstrai da matéria. Será sugerido, portanto, que na Primeira Meditação as ideias claras e distintas não são em momento algum alvo de dúvida e que o recurso à hipótese do Deus enganador teria como objetivo não o de pôr em questão o conhecimento matemático como este é concebido por Descartes, isto é, como obtido por ideias claras e distintas, mas sim o de chamar a atenção para o fato de que visto que os sentidos são postos em questão, todo o conhecimento, como é concebido como a tradição

escolástica de orientação aristotélica, inclusive a Matemática, está em questão porque está minada a possibilidade de produção do objeto das ciências por meio de um processo intelectual que abstrai da matéria. Mas se é assim, é possível dar um sentido a essas passagens mencionadas acima em que Descartes faz afirmações aparentemente contraditórias quanto à dubitabilidade ou não da Matemática. Segundo essa leitura sugerida, nas Meditações , Descartes está lidando com duas concepções diferentes de conhecimento e, por conseguinte, de conhecimento matemático. Na Primeira Meditação, o que está em questão é a concepção de conhecimento da tradição aristotélica, que sustenta que todas as ciências, inclusive a Matemática, dependem dos sentidos na medida em que seus objetos de estudo dependem de um processo intelectual que envolve a matéria e a abstração dessa. E na Terceira Meditação, quando já de posse da primeira ideia clara e distinta (fornecida pelo argumento do Cogito ), Descartes enumera ideias claras e distintas considerando-as indubitáveis e, dentre estas, inclui as ideias da Matemática, é a concepção cartesiana de Matemática que está em jogo, isto é, a concepção segundo a qual os objetos da Matemática são naturezas verdadeiras e imutáveis conhecidos por ideias claras e distintas. Abstração, Ciências Naturais e Matemática Para elucidar a hipótese de que a Matemática posta em questão na Primeira Meditação é a concepção de Matemática sustentada pela tradição escolástica aristotélica, segundo a qual, como todo conhecimento, a Matemática é dependente da matéria e de um processo que abstrai da matéria, pela clareza de suas exposições, tomaremos Tomás de Aquino como representante dos defensores do que seria o modelo cognitivo aristotélico relativo à Matemática, embora nada no texto de Descartes deixe claro haver um autor específico visado. ⁶ Visto que o objetivo último do artigo é apresentar uma alternativa à leitura padrão da dúvida apresentada por Descartes na Primeira Meditação, embora de indiscutível interesse por si só, por fugir do escopo do artigo, apenas será assumido e não discutido que a concepção cartesiana de Matemática, que se opõe à essa concepção tradicional, envolve a tese de que os objetos matemáticos são naturezas verdadeiras e imutáveis conhecidos por ideias claras e distintas. A partir da compreensão do que consiste o processo abstrativo, que, segundo Tomás de Aquino, está presente na constituição de todas as ciências de coisas materiais sensíveis e a partir da distinção do processo abstrativo específico que ocorre na ciência Matemática em relação ao processo abstrativo presente nas Ciências Naturais, sugiro que é possível compreender a passagem da Primeira Meditação em que Descartes refere a hipótese da existência de um Deus enganador às “coisas muito simples e universais”, sem relacionar essa hipótese às ideias claras e distintas. A análise dessa passagem da Primeira Meditação à luz do que consiste o processo abstrativo nas diferentes ciências segundo a escolástica de orientação aristotélica, permitirá defender a hipótese alternativa aqui sugerida de que o objetivo do recurso à hipótese do Deus enganador nas Meditações é chamar a atenção para o fato de que não apenas as ciências não matemáticas, mas também as ciências matemáticas, todas como são concebidas pela tradição tomista aristotélica (cujo objeto resulta de um

processo abstrativo específico) estão em questão uma vez mostrada a dubitabilidade dos sentidos. Não sendo o recurso ao Deus enganador, portanto, uma nova razão para duvidar de algum conhecimento não questionado até ali. Segundo Tomás de Aquino, o objeto de toda ciência deve ter duas características: deve ser imaterial, já que o conhecimento é intelectual e o intelecto é imaterial; e deve ser necessário, separado do devir, do movimento. Tanto as Ciências Naturais quanto a Matemática se distanciam da matéria determinada e do devir e têm como objeto de estudo o imaterial. Apesar desse distanciamento, tanto as propriedades físicas quanto as matemáticas dizem respeito às coisas sensíveis. As Ciências Naturais consideram diretamente aquilo que é universal nas coisas sensíveis e a Matemática considera exclusivamente a estrutura quantitativa das coisas sensíveis. No ato cognitivo que constitui todas as ciências, o intelecto realiza dois tipos de operação: a apreensão do objeto inteligível, seja do universal seja da forma quantitativa, e a operação do juízo por meio da qual o intelecto compõe ou separa o que apreende com a primeira operação. [ STB , q.5, a.3, r.]. No caso da primeira operação cognitiva, a saber, a apreensão do objeto inteligível, Tomás admite dois tipos. A operação que resulta na apreensão do universal por meio da abstração do particular, que é o objeto de estudo das Ciências Naturais em geral, na medida em que estas não levam em conta os acidentes, mas apenas o que é necessário. E a operação que resulta na apreensão da forma quantitativa por meio da abstração da matéria sensível, que é objeto da Matemática. Assim, de acordo com a afirmação de Tomás, assumindo a tese aristotélica de que todo conhecimento humano depende de dados materiais, o objeto natural próprio do intelecto humano são as coisas sensíveis e materiais [ ST I, q.87, a.1] e o conhecimento das diferentes ciências por um lado, e o conhecimento matemático por outro são, respectivamente, conhecimento do universal e conhecimento da forma quantitativa, ambos objetos produzidos por um processo de abstração que, de modos distintos, envolvem a matéria. No Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio (STB) ⁷ , depois de distinguir as ciências especulativas das ciência práticas, Tomás de Aquino se ocupa em distinguir as diversas ciências especulativas a partir do modo como estas visam as coisas sensíveis, tornando-as seus objetos específicos, explicando que no caso das diferentes Ciências Naturais e da Matemática essa visada se dá em virtude de processos distintos de abstração e que no caso da Metafísica ela se dá, mais precisamente, pelo processo de separação. O conhecimento especulativo é dividido, então, em dois tipos: conhecimento de objetos que de algum modo dependem da matéria e conhecimento de objetos que de modo algum dependem da matéria sensível. Dentre os objetos de conhecimento que de algum modo dependem da matéria sensível há ainda uma subdivisão: objetos que dependem da matéria sensível para serem e para serem inteligidos, isto é, objetos cuja definição inclui a matéria sensível, que são os objetos das Ciências Naturais, a saber, os universais; e os objetos que dependem da matéria sensível para serem, mas não para serem inteligidos, pois sua definição não inclui a matéria, que são os objetos da Matemática, a saber, a forma quantitativa. A ciência que trata dos objetos que não dependem da matéria sensível nem para serem nem para serem inteligidos é a Metafísica ⁸ . Em suas palavras,

Encontra-se, portanto, uma tríplice distinção na operação do intelecto: uma, de acordo com a operação do intelecto que compõe e divide, que é chamada propriamente de separação; esta compete à ciência divina ou metafísica; outra, de acordo com a operação pela qual são formadas as quididades das coisas, que é a abstração da forma da matéria sensível; esta compete à Matemática; a terceira, de acordo com essa mesma operação [que é a abstração] do universal do particular; esta compete à física e é comum a todas as ciências, porque em todas as ciências deixa-se de lado o que é acidental e toma-se o que é por si. [ SBT , q. 5, a. 3]. Assim, no que concerne às ciências distintas da Metafísica, são duas as operações abstrativas distintas do intelecto que resultam no objeto da Matemática, por um lado, e no objeto das Ciências Naturais por outro. Nessa mesma passagem, logo a seguir, Tomás explica ainda que o intelecto só pode abstrair coisas unidas na existência, e que, portanto, esses dois tipos de abstração correspondem aos dois tipos de união admitidos por Tomás . Assim, um processo de abstração corresponde à união da forma com a matéria, que é a abstração da forma quantitativa, e a outra abstração corresponde à união do todo com as partes, que corresponde à abstração do todo universal das partes acidentais. [ Ibid ] A diferença entre as ciências, não depende de uma mera consideração daquilo que está no mundo sensível independentemente do modo como é visado, mas depende, além disso, das distinções que a própria mente faz ao investigar o que está no mundo. Essa diferença é explicada por seu objeto, mas apenas na medida em que este depende da operação abstrativa específica exercida pelo intelecto. Isto é, a distinção entre as ciências envolve a perspectiva formal a partir da qual o intelecto considera os diversos possíveis objetos das diferentes ciências. O que distingue as Ciências Naturais da ciência Matemática não é meramente a especificidade da realidade a qual se referem, mas sim as respectivas operações de abstração operantes que produzem seus objetos. A determinação do objeto das Ciências Naturais e da Matemática, se universais ou se a forma quantitativa, depende, portanto, da operação específica do intelecto em cada caso. A esse respeito Tomás afirma: Há, pois, entre os especuláveis alguns que dependem da matéria no que se refere ao ser porque não podem ser senão da matéria. Estes distinguem-se, porque alguns dependem da matéria no que ser refere ao ser e ao inteligido , como aquilo em cuja definição é posta a matéria sensível; donde não poder ser inteligido sem a matéria sensível, como na definição do ente humano é preciso incluir a carnes e os ossos. Destes se ocupa a física ou ciência natural. Há, ainda, alguns, que apesar de dependerem da matéria no que se refere ao ser, não dependem no que se refere ao inteligido porque a matéria sensível não é posta em suas definições, como a linha e o número. Destes trata a matemática. [ SBT , q. 5, a.I, r.] O objeto das Ciências Naturais é o que há de universal nas coisas sensíveis e o objeto da matemática o que há de quantidade nas coisas sensíveis. A natureza universal das coisas, objeto das Ciências Naturais em geral, é imaterial na medida em que inclui apenas o que é comum a todos da mesma espécie, não incluindo, portanto, os aspectos particulares de cada indivíduo.

As sensações fornecem o contato cognitivo inicial da alma com o objeto. Na ocasião da sensação a alma sensitiva adquire a forma sensível do objeto. Essa forma sensível do objeto enquanto existente na alma é a species sensível do objeto. Assim, a species sensível do objeto é o que é compartilhado ou a semelhança através da qual a alma perceptiva é formalmente idêntica àquilo que ela percebe. Isso, entretanto, não é conhecimento na medida em que contem ainda todas as particularidades sensíveis não essenciais do objeto. Para que o conhecimento se dê, os elementos não essenciais devem ser separados. Cabe ao intelecto, (através do intelecto agente) abstrair de todas essas particularidades. Como essas particularidades dizem respeito às coisas existentes aqui e agora, isto é, envolvem a matéria determinada e atualmente existente, o processo abstrativo que produz o objeto das Ciências Naturais que tratam das essências das coisas existentes, abstrai da matéria determinada, preservando, entretanto, a matéria comum, indeterminada na medida em que esta explica a possibilidade da forma já que esta consiste em determinação de matéria. Feita a abstração o intelecto assume a forma universal, inteligível do objeto, isto é, a specie inteligível. Assim, nas Ciências Naturais, o que é produzido no final do processo abstrativo é o universal a partir do particular, abstraindo da matéria sensível determinada, mas mantendo ainda a matéria comum. Essa natureza universal é imaterial porque não contem as particularidades da matéria que servem para individualizar as coisas de um mesmo tipo, de uma mesma espécie. Em resumo, conhecer a natureza comum de algo material é o objetivo das outras ciências que não a ciência Matemática, isto é, conhecer o que há de universal em tudo que for de um mesmo tipo, e esse universal é imaterial porque o intelecto abstrai da matéria determinada, das particularidades, embora não da matéria comum […] é preciso que tais noções, de acordo com as quais as ciências podem tratar das coisas móveis, sejam consideradas sem a matéria indicada, e sem tudo o que se segue à matéria indicada, mas não sem a matéria nãoindicada, pois de sua noção depende a noção de forma que determina para si uma matéria. ... Visto que os singulares incluem na sua noção a matéria indicada e os universais a matéria comum, como se diz no livro VII da Metafísica , por isso a supracitada abstração não é denominada de forma em relação à matéria de modo absoluto, mas do universal em relação ao particular. [ SBT ,q.5,a.2,r.] No caso da Matemática, por sua vez, o processo abstrativo resulta na forma abstraída de toda matéria (sensível e comum). O que permite que o objeto da Matemática, a forma quantitativa, seja apreendida, por um lado, é que este existe na matéria sensível e, por outro, que sua inteligibilidade independe dessa matéria ou mesmo da matéria comum. A Matemática também trata das coisas sensíveis porque seu objeto de estudo, a forma quantitativa, existe nestas, mas este objeto, por ser separável das coisas sensíveis, é concebido separadamente. Ao explicar a peculiaridade do objeto da Matemática, a título de exemplo, Descartes sugere que esta se preocupa com o que seria uma forma côncava e não com um corpo material que tem a forma côncava (nariz arrebitado), que seria objeto de outras ciências.

Há certas coisas que, embora sejam na matéria, não incluem a matéria em sua definição; por exemplo, o curvo e nisto difere do arrebitado ... é preciso que haja uma parte da filosofia que trate do que é desse tipo, e esta é a Matemática ... [ SBT , q.5, a.3] Ainda nessa passagem, logo a seguir, Tomás explica por que o objeto da Matemática, a forma quantitativa, é concebível separadamente, portanto, por que a Matemática pode abstrair mesmo da matéria comum. Aquilo que resulta da operação abstrativa na Matemática, a forma quantitativa, embora exista na matéria sensível, é condição de possibilidade de qualquer divisão da matéria sensível, isto é, é condição de possibilidade da diversificação de corpos individuais de diferentes espécies: A matéria não é princípio da diversidade de acordo com o número senão na medida em que, dividida em muitas partes e recebendo em cada uma das partes a forma, da mesma espécie constitui vários indivíduos da mesma noção. Ora, a matéria não pode ser dividida a não ser que se pressuponha a quantidade, que se for removida, toda substância permanece indivisível. Assim, a primeira determinação na diversificação do que é da mesma espécie se dá de acordo com a quantidade. [ Ibid ., r.3] Tomás explica ainda que de acordo com a inteligibilidade de algo, é possível dizer que sua forma pode ser abstraída da matéria. A forma pode ser abstraída da matéria se sua determinação essencial não depender da matéria da qual é forma, portanto, se sua inteligibilidade não depende dessa matéria. A determinação dos acidentes depende da matéria sensível da qual são acidentes e, assim, os acidentes só podem ser inteligidos a partir da matéria sensível e, por isso, não se pode abstrair formas acidentais da matéria. A forma quantitativa, objeto da Matemática, por sua vez, é forma da matéria sensível e não da matéria comum e, nesse sentido, existe na matéria sensível. Sua inteligibilidade, portanto, não depende da matéria comum. Mais ainda, embora a forma quantitativa exista na matéria sensível, sua inteligibilidade também não depende da matéria sensível por que consiste na condição de possibilidade da diversidade que constitui esta matéria. Isto é, visto que os acidentes ocorrem na substância segundo uma certa ordem, a saber, primeiro a forma quantitativa, e depois a qualidade, as afecções e o movimento, e que a forma quantitativa pode ser considerada antes porque é condição de possibilidade das qualidades sensíveis, da qualidade e do movimento, então a própria substância é a “matéria” da quantidade, que algumas vezes Tomás chama de “matéria inteligível”. [ Ibid . ]: Mas, os acidentes sobrevêm à substância numa certa ordem: pois, primeiro lhe advém a quantidade, depois a qualidade, depois as afecções e o movimento. Donde a quantidade pode ser inteligida na matéria-sujeito antes que se intelijam nela as qualidades sensíveis pelas quais é denominada matéria sensível. [ Ibid ., r]

Assim, embora a quantidade dependa da matéria para ser, na medida em que existe na matéria sensível, sua apreensão não depende da matéria como depende o objeto das outras ciências, visto ser condição de possibilidade da divisão da matéria sensível da qual é forma, isto é, da matéria dividida em corpos, determinada. O processo abstrativo da Matemática é, portanto, análogo ao processo abstrativo das outras ciências já que, como nas outras ciências, esse processo deixa de lado aspectos da coisa material, mas diferentemente dessas outras ciências, os objetos da Matemática são elaborações mentais que culminam nas condições de possibilidade da diversidade sensível. A base próxima é uma construção mental e não dados sensíveis. A visada do objeto de estudo da Matemática, isto é, a separação da forma quantitativa, é possível, portanto, em virtude do processo abstrativo que deixa de lado toda a matéria determinada da qual é forma e isso é possível por que embora exista nessa matéria, é a condição de possibilidade das particularidades sensíveis que constituem essa matéria. O objeto da Matemática, a forma quantitativa das coisas sensíveis é, portanto, também condição de possibilidade das outras ciências na medida em que o processo abstrativo que resulta nos objetos de estudo destas depende de percepções sensíveis de coisas cuja condição de possibilidade é a forma quantitativa. Se, como diz Tomas, “as ciências especulativas se distinguem segundo a ordem de afastamento da matéria e do movimento”[ Ibid . , a.1.r.] então, a Matemática, porque seu objeto é condição de possibilidade da abstração do objeto das outras ciências, se distingue dessas outras ciências, por envolver um afastamento do devir mais radical do que estas, isto é, por envolver um grau mais alto de abstração da matéria. Deus enganador: universais e quantidade O ponto de partida da leitura sugerida é que toda a dúvida apresentada na Primeira Meditação tem como alvo o modelo cognitivo sustentado por essa tradição, isto é, a concepção segundo a qual todo conhecimento é dependente da matéria e depende de um processo de abstração desta já que, como vimos, Descartes na explicação de seu projeto a Mersenne diz que seu objetivo nas Meditações é destruir os princípios aristotélicos. A crítica às suas “antigas opiniões” é, portanto, a crítica de todo conhecimento e este é concebido como concebe a tradição escolástica aristotélica, já que que tudo o que até então recebera como verdadeiro o recebeu “dos sentidos ou pelos sentidos”. Se todo seu conhecimento até então é concebido como dependente dos sentidos, então, mesmo o conhecimento matemático a que se refere o recurso à hipótese do Deus enganador é o conhecimento matemático tal como é concebido pela escolástica, isto é, a Matemática que considera que seu objeto, a forma quantitativa das coisas sensíveis, é produzido por abstração da matéria. Se isso é correto, então, o recurso à hipótese do Deus enganador que se refere ao conhecimento matemático não se refere, como quer a leitura tradicional a um conhecimento que independe dos sentidos, produzido pela razão e que resulta em ideias claras e distintas, mas sim a um conhecimento cujo objeto resulta de um processo específico de abstração da matéria. Tendo em mente o que seriam, em linhas bem gerais, o processo abstrativo relativo à Matemática e o objeto resultante desse processo segundo a escolástica de orientação aristotélica, cabe agora

então examinar a passagem da Primeira Meditação onde é introduzida o recurso à hipótese do Deus enganador à luz desse processo Como vimos, o modelo escolástico de orientação aristotélica sustenta que todo conhecimento, inclusive a Matemática, depende do processo abstrativo e da matéria sensível, seja porque seu objeto depende da matéria sensível para existir e para ser apreendido já que é obtido por abstração de universais a partir do particular, seja porque seu objeto, a forma quantitativa, depende da matéria sensível para existir embora o processo de abstração pelo qual é apreendido independa e seja condição de possibilidade de dados sensíveis. O próximo passo aqui será, então, mostrar que na ordem da argumentação cartesiana na Primeira Meditação, no desenvolvimento da dúvida, o que vai sendo examinado são exatamente as etapas do que seria o ato cognitivo segundo esse modelo: a percepção sensível, a produção de imagens a partir dessas e o conhecimento de coisas “ainda mais simples e universais”, o objeto da Matemática e o das outras Ciências Naturais respectivamente. Assim, o foco central a seguir será examinar as passagens em que Descartes prepara e introduz a hipótese do Deus enganador tendo como objetivo explicitar a leitura sugerida de que a função do recurso à hipótese do Deus enganador não é a de introduzir uma nova razão para duvidar da verdade de ideias que independem totalmente dos sentidos (ideias claras e distintas), mas sim a de esclarecer que a partir das razões para duvidar introduzidas nas análise anteriores dos sentidos e da imaginação, já todo o conhecimento, como concebido pela tradição, está posto em questão. Se todo conhecimento segundo essa tradição depende da percepção e/ou da imagem sensíveis (ou porque seu objeto existe na e é inteligido a partir da matéria sensível, ou porque seu objeto existe na matéria sensível e é condição de possibilidade de sua determinação), e se a percepção e a imagem sensíveis são postas em questão antes do recurso ao Deus enganador, então não só as Ciências Naturais, mas também a ciência Matemática já estão em questão antes desse recurso. Em todas as etapas da dúvida, Descartes introduz a necessidade de uma nova etapa mostrando o que foi posto em questão e o que escapou da etapa anterior. No primeiro momento da dúvida Descartes põe em questão a percepção do que, segundo a tradição, é diretamente dado aos sentidos, a saber, as qualidades sensíveis das coisas particulares. Por meio do primeiro argumento Descartes recorre à discrepância das diversas percepções diretamente fornecidas pelos sentidos de certas coisas “miúdas e muito afastadas” [ AT VII : 18], pondo em questão a legitimidade destes, visto que notara “...que os sentidos às vezes enganam ...”.[ Ibid .] Ainda com relação à legitimidade do que é diretamente percebido pelos sentidos Descartes mostra o que escapa a esse primeiro argumento, a saber, a percepção sensível da existência das coisas e situações particulares, “por exemplo, que agora estou aqui, sentado junto ao fogo, vestindo essa roupa de inverno, tendo este papel às mãos ...”.[ Ibid .] Por meio do argumento que recorre à hipótese do sonho Descartes põe em questão, então, a legitimidade desse tipo de percepção diretamente dada pelos sentidos da existência das coisas e situações particulares. Como nos sonhos pensamos perceber coisas particulares existentes que, entretanto, não existem, e como “a vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos,” [ Ibid ., 19] é possível que o que considero ser percepção de coisas existentes na vigília seja, como nos

sonhos, fabricado pela minha imaginação. Para que esse argumento do sonho seja um argumento que ainda põe em questão as percepções sensíveis das coisas particulares, nesse caso a percepção da existência de coisas particulares, Descartes precisa, entretanto, dar um passo além e mostrar por que o fato de ser fabricada pela imaginação tornaria uma imagem dubitável. É essa complementação do argumento que recorre ao sonho que, então, dará margem a Descartes a na sequência pôr em questão uma outra etapa essencial do conhecimento segundo a tradição de inspiração aristotélica: a produção, pela imaginação, de imagens sensíveis. Supondo que talvez nossas percepções de coisas e situações particulares tais como “que abrimos os olhos, mexemos a cabeça, estendemos as mãos” não sejam verdadeiras e que “talvez não tenhamos também estas mãos, nem este corpo todo” [ Ibid .], isto é, admitindo que tudo o que supostamente percebemos pelos sentidos seja, como nos sonhos e que não sejam percepções sensíveis e sim formadas pela imaginação, ainda assim é possível, admite Descartes, que sejam formadas à semelhança de coisas verdadeiras, isto é, a partir de “coisas gerais - olhos, cabeça, mãos e o corpo todo”. Por meio de uma analogia com imagens pintadas, Descartes então argumenta que, as ideias da imaginação são compostas e que apesar de compostas a partir de “coisas gerais” supostamente verdadeiras, as imagens sensíveis produzidas na alma podem ser arbitrariamente compostas e, portanto, inventadas, como são alguns quadros dos pintores e por essa razão não são confiáveis como etapa para o conhecimento. Visto não haver meios para distinguir as composições arbitrárias das composições necessárias, ⁹ é possível que a composição de imagens a partir de experiências de dados sensíveis não siga nenhuma regra necessária e, por isso, sua legitimidade é dubitável. É, portanto, por meio dessa analogia entre as representações que temos em sonho, fabricadas pela imaginação, e os quadros ou pinturas que Descartes argumenta que a impossibilidade de distinção dentre as ideias compostas as que são “completamente fictícias e falsas” das que são “como imagens pintadas” (e que por isso não podem ser ficção), torna as ideias da imaginação em geral não confiáveis. Ao comparar nossas ideias nos sonhos que não são fornecidas pelos sentidos, mas sim produzidas pela imaginação, com os quadros pintados a partir da imaginação dos pintores, Descartes admite a possibilidade de que “a imaginação [seja] assaz extravagante para inventar algo de tão novo, que jamais tenhamos visto coisa semelhante e que assim sua obra nos represente uma coisa puramente fictícia e absolutamente falsa ... .”[ Ibid. : 20] Desse modo, ainda que pudéssemos confiar nas percepções sensíveis das qualidades acidentais das coisas particulares, ou ainda que pudéssemos confiar nos elementos a partir das quais as composições da imaginação são produzidas, a arbitrariedade da operação que, a partir dessas percepções (ou de percepções prévias), compõe as imagens é suficiente para desqualificar a imagem sensível como etapa legítima para o conhecimento das coisas. Assim, com base no texto da Primeira Meditação até esse momento da dúvida que se utiliza da analogia com os quadros para introduzir uma razão para duvidar da legitimidade do produto da composição da imaginação, parece bem plausível que Descartes esteja tratando exatamente do modelo cognitivo escolástico de orientação aristotélica, como anuncia na carta a Mersenne citada acima: as duas primeiras etapas desse modelo, a

modificação da alma pela species sensível das coisas particulares e a produção de imagens sensíveis a partir dessas modificações são dubitáveis, em última instância, porque não há critérios para distinguirmos percepções ou imagens legítimas de percepções ou imagens ilusórias ou arbitrariamente compostas. Até o momento em que a legitimidade das imagens sensíveis produzidas pela alma foi posta em questão, Descartes limitou-se a fazer o que explicou a Mersenne e anunciou no início das Meditações , a saber, mostrar a fragilidade da tese de que a percepção de dados sensíveis e a produção de imagens sensíveis a partir destas são sempre legítimas e servem como origem indubitável de conhecimento. O passo seguinte da argumentação de Descartes envolverá a introdução da hipótese do Deus enganador que, como veremos, é relacionada ao simples e ao universal, produtos de operações puramente intelectuais quando, seguindo seu procedimento das etapas anteriores, Descartes parece esclarecer o que até aqui não foi atingido pela dúvida. Tendo em vista que até esse ponto da Primeira Meditação nada foi dito acerca do que seria o modelo cognitivo cartesiano, que envolve ideias claras e distintas, por certo também esta etapa da argumentação pode dizer respeito não a este modelo, mas sim ainda ao modelo aristotélico de conhecimento, que envolve um processo intelectual abstrativo da matéria. Como segundo a tradição de inspiração aristotélica, a alma tem o poder de, através de uma função puramente racional exercida pelo intelecto agente, produzir o universal e a forma quantitativa por processos distintos de abstração da matéria, então parece plausível que a operação intelectual relacionada à hipótese do Deus enganador que está em jogo aqui seja essa operação puramente intelectual de abstrair da matéria resultando no universal ou na forma quantitativa e não a operação puramente intelectual que, segundo Descartes, resulta em ideias claras e distintas. Assim, seguindo seu procedimento geral na Primeira Meditação, imediatamente depois de conceber a possibilidade da arbitrariedade da operação compositiva da imaginação, Descartes parece dedicar-se à consideração daquilo que escapou a essa etapa. Em suas palavras, É preciso confessar, todavia, que são pelo menos necessariamente verdadeiras e existentes algumas outras coisas , ainda mais simples e universais , a partir das quais são figuradas, como a partir de cores verdadeiras, todas as imagens de coisas que estão em nosso pensamento, quer verdadeiras, quer falsas”. [ AT VII: 20. Ênfase acrescentada] E logo a seguir, explica o que são essas coisas universais e mais simples que parecem não ser atingidas até aqui pela dúvida: Desse gênero parecem ser a natureza corpórea comum e sua extensão; bem como a figura das coisas extensas, a quantidade, ou grandeza delas e seu número; o lugar onde existem e o tempo pelo qual duram e que mede sua duração e coisas semelhantes” [ AT VII : 20]. Como vimos, para Tomás, as propriedades físicas e as propriedades matemáticas dizem respeito às coisas sensíveis. A Física (bem como as Ciências Naturais de um modo geral) considera diretamente aquilo que é universal nas coisas sensíveis e a Matemática considera exclusivamente a

estrutura quantitativa das coisas sensíveis, que é condição de possibilidade destas. Por ser resultado da abstração que deixa de lado o que é particular na matéria sensível, os universais resultam da operação intelectual da abstração da matéria sensível. Por ser condição de possibilidade da diversidade das coisas sensíveis e por residir nas coisas sensíveis, o objeto da matemática é, por um lado dependente da matéria e, por outro, é algo ainda mais simples que as coisas sensíveis. Sendo assim, sugiro, as “coisas mais simples e universais” mencionadas por Descartes como escapando da dúvida relativa à imaginação e envolvidas no recurso ao Deus enganador são, o objeto das Ciências Naturais (os universais) e o objeto da Matemática (a forma quantitativa, o mais simples), ambos resultantes de operações de abstração da matéria. Isso é fortemente manifesto se levamos em conta a explicação citada acima do que são essas coisas simples e universais, a saber, “a natureza corpórea comum”, isto é, um universal, e a “quantidade, grandeza e número”, isto é, a forma quantitativa. Se é assim, Descartes nessas passagens anteriores ao recurso ao Deus enganador estaria afirmando que tanto as Ciências Naturais quanto a Matemática, assim como concebidas pela tradição escolástica aristotélica, até o momento imediatamente após a dúvida relativa à imaginação, escapariam da dúvida e teriam o mesmo grau de indubitabilidade, o que levantaria a expectativa no leitor de que em seguida, Descartes introduziria razões para duvidar de todas essas ciências (Ciências Naturais e Matemática). Apesar da expectativa de uma nova razão para duvidar de um novo alvo de dúvida que teria escapado da etapa anterior, as Ciências Naturais e a Matemática, não é isso o que ocorre. No lugar disso, Descartes parece, sem explicação, introduzir uma distinção entre essas ciências com base na sua dubitabilidade ou indubitabilidade, o que introduz um, ao menos aparente, embaraço: segundo a passagem anterior as Ciências Naturais e a Matemática teriam escapado das razões de duvidar e, sem que uma nova razão seja apresentada, na passagem imediatamente seguinte Descartes afirmaria que as primeiras seriam dubitáveis, mas a última não, isto é, as Ciências Naturais seriam dubitáveis mas não a Matemática. Eis as palavras de Descartes, […] partindo disso, não seria talvez incorreto concluir que a Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras disciplinas que dependem da consideração das coisas compostas são, na verdade, duvidosas, ao passo que a Aritmética, a Geometria e outras desse modo – que não tratam senão de coisas muito simples e muitos gerais, ... contêm algo de certo e fora de dúvida. ... Pois não parece possível que verdades tão manifestas incorram na suspeita de falsidade ou de incertezas. [ AT VII : 20 Ênfase acrescentado] Se a leitura aqui sugerida está correta, essas três passagens citadas, que ocorrem no texto cartesiano imediatamente seguidas uma da outra, parecem envolver o seguinte embaraço: nas duas primeiras passagens Descartes admite que universais (“a natureza corpórea comum”) e o simples (sua “quantidade, ou grandeza, e seu número”, ou sua forma quantitativa) escapam à dúvida até esse ponto e imediatamente a seguir parece afirmar, sem qualquer explicação, que o conhecimento dos universais, não escapa, mas o das quantidade sim. Isto é, as Ciências Naturais cujo objeto de estudo são os universais seriam duvidosas enquanto que a Matemática cujo objeto é

a forma quantitativa conteria algo de certo e fora da dúvida. Note-se ainda que essas três passagens fazem em conjunto a preparação para a logo seguinte introdução do recurso ao Deus enganador: […] de onde sei que ele [Deus] não tenha feito com que não haja de todo terra alguma, céu algum, coisa extensa alguma, figura alguma, grandeza alguma, lugar algum e que, no entanto, todas elas não me apareçam existir diferentemente de como me aparecem agora. [ AT VII :21. Ênfase acrescentada] O exame cuidadoso dessas passagens, entretanto, mostra que o embaraço é apenas aparente já que, sugiro, a passagem em que Descartes parece distinguir as ciências por sua dubitabilidade/indubitabilidade não tem como objetivo fazer essa distinção e sim a função específica de apontar para a tendência ao equívoco de se fazer essa distinção. E a introdução logo a seguir da hipótese do Deus enganador, complementa essa passagem chamando a atenção do leitor para o fato de que nenhuma ciência está a salvo da dúvida que atinge os sentidos, nem mesmo a Matemática (como concebida pela tradição aristotélica). Assim, o recurso à hipótese de um Deus enganador não consistiria na apresentação de uma nova razão para duvidar de um alvo até então indubitável, a saber, o conhecimento constituído de ideias claras e distintas de que a Matemática seria um exemplo. A função do recurso ao Deus enganador seria, em vez disso, a de evidenciar que apenas aparentemente se poderia distinguir a dubitabilidade das Ciências Naturais do que seria a indubitabilidade da Matemática com base na dubitabilidade dos sentidos e da imaginação. Para examinar e dissipar o aparente embaraço surgido na conjunção dessas passagens, sugiro, é necessário atentar para o tom hesitante da última passagem, a saber, a passagem onde Descartes parece admitir uma possível diferença entre a já dubitabilidade das outras ciências por um lado e a ainda indubitabilidade da Matemática por outro. Descartes afirma: no que concerne à Física, Astronomia e Medicina, “não seria talvez incorreto concluir” (“ Quapropter ex his forsan non male conludemus ) que são ciências duvidosas e incertas e no que concerne às Matemáticas até aqui “não parece possível que sejam falsas”. Minha hipótese nesse contexto é que os termos que expressam uma certa hesitação (“talvez”, “ forsan ”, “parece”, “ videtur” ) sugerem que essa diferença relativa a dubitabilidade ou não dessas diferentes ciências pode ser apenas aparente o que, então, justificaria a análise que virá na passagem seguinte com a introdução da hipótese de um Deus enganador. O recurso à hipótese do Deus enganador então viria dissipar a hesitação deixando claro que todo o conhecimento de coisas sensíveis, isto é, a ciência dos universais e a ciência da quantidade, está igualmente em questão uma vez postos em questão a percepção e a produção de imagens sensíveis. Assim, segundo a leitura aqui sugerida, na passagem em que parece distinguir as ciências quanto à sua dubitabilidade, Descartes estaria chamando a atenção para um possível equívoco. É possível que, a partir da dúvida relativa à composição da imaginação se conclua incorretamente que as Ciências Naturais estão em questão e que a Matemática não, uma vez que a operação de composição da imaginação está em questão e as Ciência

Naturais consideram as coisas compostas e uma vez que a Matemática considera as coisas mais simples. No decorrer do texto, ao introduzir o recurso ao Deus enganador, Descartes mostra que, ao contrário disso, o que é correto concluir é que todos os conhecimentos estão em questão ainda que alguns lidem com coisas sensíveis compostas e outros com as condições de possibilidade destas porque o objeto de estudo de todo conhecimento é o inteligível necessário: universais e/ou forma quantitativa. O movimento do texto parece então ser o seguinte: Descartes apresenta razões para duvidar do que é composto pela imaginação. Mostra que as razões para duvidar até aqui parecem não atingir o conhecimento do simples e do universal. Explicita que o simples e o universal são a quantidade, objeto da matemática e a natureza comum do corpo, objeto das Ciências Naturais. Afirma que porque as Ciências Naturais claramente dizem respeito a corpos compostos (corpos sensíveis existentes) e isso não é claro no caso da Matemática, somos inclinados a afirmar que as Ciências Naturais não escapam à dúvida relativa à composição, mas a Matemática sim. Que se trata de uma inclinação e não de uma certeza e que, portanto, se trata de um possível equívoco, fica sugerido pelo modo hesitante como essa afirmação é feita (“talvez”, “parece”, como vimos acima). Com a introdução da hipótese do Deus enganador fica claro que Descartes de fato não está considerando a dubitabilidade das ciências como distintas na medida em que o Deus enganador se refere tanto aos universais (“terra, céu, corpo extenso” e não o céu, a terra, o corpo extenso que percebo sensivelmente) quanto à quantidade (“figura, grandeza”), isto é, tanto aos objetos das Ciências Naturais quanto ao objeto da Matemática respectivamente. O recurso ao Deus enganador deixa claro que o objeto de estudo tanto das Ciência Naturais quanto da Matemática existem na matéria composta sensível (no céu, na terra, no corpo) mas, apesar disso, seus objetos de estudo não são essas composições materiais e sim o universal e a quantidade (o que quer que seja céu, terra, corpo, grandeza e número) que há nelas e que resultam do processo que abstrai delas e que todas essas ciências são igualmente dubitáveis. Ao mencionar os universais e a forma quantitativa como dubitáveis, Descartes estaria corrigindo a inclinação equivocada a afirmar a dubitabilidade das Ciências Naturais e a indubitabilidade da Matemática tendo como critério a dubitabilidade das composições da matéria sensível. O recurso ao Deus enganador mostra que é possível que esteja enganado como relação a todo conhecimento e isso porque o objeto de estudo de todo conhecimento é o inteligível, seja o universal, seja a forma quantitativa, obtido por abstração da matéria e esta está em questão uma vez postos em questão as percepções e as imagens sensíveis. Se é assim, o recurso à hipótese do Deus enganador não tem a função de introduzir uma nova razão para duvidar de um novo alvo, mas consiste, em vez disso, no modo de corrigir o possível equívoco afirmado de modo hesitante na passagem anterior. O texto de Tomás parece, portanto, ser um meio para explicarmos o porquê da passagem que parece distinguir as ciências por sua dubitabilidade/ indubitabilidade e compreender o recurso à hipótese de um Deus enganador não como introduzindo uma nova razão para duvidar que tem como alvo a concepção cartesiana da Matemática cujo objeto é percebido por ideias claras e distintas, mas como chamando a atenção do leitor para o fato de que toda a ciência, inclusive a Matemática, na medida em que são todas

concebidas como dependentes da matéria, visto que seus objetos dependem da abstração da matéria, são postas em questão quando os sentidos são postos em questão. Como vimos, segundo Tomás, o processo de abstração que resulta nos universais deixa de lado as particularidades dos dados sensíveis, mas mantêm a matéria comum e o processo de abstração que resulta na quantidade, deixa de lado inclusive a matéria comum resultando apenas na forma quantitativa. Ambos os processos, entretanto, dependem do sensível: a produção do universal depende diretamente da matéria dada aos sentidos e a produção da forma quantitativa depende remotamente da matéria dada aos sentidos na medida em que esta forma só existe na matéria sensível, sendo condição de possibilidade da divisão desta, isto é, da diversidade de corpos. Sendo assim, se os sentidos estão em questão, o alicerce da produção do universal e da forma quantitativa, a saber, a matéria está em questão e assim todas as ciências, incluindo a Matemática, já estão em questão visto que como admite o próprio Descartes, “se os fundamentos se afundam, desaba por si mesmo tudo o que foi edificado sobre eles”. [ AT VII : 18] Se essa alternativa interpretativa apresentada está correta parece, então, ser possível dissolver uma outra dificuldade apresentada no início desse artigo, a saber, que, recorrendo ao mesmo exemplo (dois e três são cinco), no final da Primeira Meditação, por meio da hipótese do Deus enganador, Descartes parece afirmar a dubitabilidade da Matemática e no início da Terceira Meditação, antes mesmo de eliminar essa hipótese de um Deus enganador, isto é, antes mesmo de provar a existência e a veracidade divinas, Descartes parece afirmar a indubitabilidade da Matemática. No final da Primeira Meditação, supondo a possibilidade de um Deus enganador Descartes afirma a dubitabilidade da Matemática ao se perguntar se não estaria errando: “cada vez que adiciono dois a três ou conto os lados do quadrado, ou faço outra coisa que se possa imaginar ainda mais fácil...”[ AT VII : 21]. No início da Terceira Meditação, ainda admitindo a possibilidade de um Deus enganador, Descartes afirma a indubitabilidade da Matemática ao afirmar: “engane-me quem puder, nunca poderá fazer no entanto que eu nada seja, enquanto eu pensar, ... ,que dois e três juntos façam mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes” [ AT VII :36]. Se está correta a interpretação aqui sugerida, então, na primeira passagem, ao afirmar a dubitabilidade da Matemática, Descartes está se referindo ao conhecimento matemático como concebido pela tradição escolástica de orientação aristotélica, isto é, o conhecimento cujo objeto depende do processo abstrativo da matéria. Na Terceira Meditação , entretanto, ao afirmar a indubitabilidade da Matemática, equiparando-a ao que foi revelado pelo argumento do Cogito , Descartes está se referindo ao conhecimento matemático tal como ele próprio o concebe, a saber, como constituído de ideias claras e distintas que independem dos sentidos. A consideração do conhecimento matemático como constituído por ideias claras e distintas já é possível nessa Terceira Meditação, mas ainda não é possível na Primeira, porque é só na Segunda Meditação, no argumento do Cogito , que as ideias claras e distintas são introduzidas e caracterizadas como indubitáveis e independentes dos sentidos. Descartes, portanto, nas Meditações está considerando duas concepções distintas de conhecimento matemático: na Primeira Meditação trata-se do conhecimento matemático como concebido pela tradição escolástica que, como todo conhecimento, depende de um

processo abstrativo da matéria e que por isso está em questão, e na Terceira Meditação trata-se do conhecimento matemático como concebido por Descartes, a saber, um conhecimento constituído por ideias claras e distintas produzidas pela razão sem auxilio dos sentidos que agora, nessa Meditação, já pode ser mencionado como indubitável uma vez que as ideias claras e distintas já foram introduzidas e caracterizadas como independentes dos sentidos. A partir do que foi dito, conclui-se que nas Meditações é o conhecimento matemático segundo uma certa concepção (escolástica aristotélica) que é posto em questão. E esse conhecimento é posto em questão não pela hipótese de um Deus enganador e sim, como todo conhecimento, por dúvidas relativas aos sentidos uma vez que todo conhecimento depende de um processo de abstração da matéria. Em particular, conclui-se que embora nas Meditações o conhecimento matemático (segundo uma certa concepção) seja posto em questão, as ideias claras e distintas não são. Restaria, então, examinar, entre outras coisas, qual seria o papel da prova da existência de um Deus veraz, se não o de eliminar a hipótese de um Deus enganador relativa às ideias claras e distintas, isto é, qual seria sua relevância (se alguma) para o projeto cartesiano relativo ao conhecimento, mas isso foge ao escopo desse artigo. 1 . Em agradecimento e expressão de minha admiração pelos professores Raul Landim e Guido Antonio de Almeida, pelo privilégio de ter sua amizade e pelo exemplo de rara competência e de respeito pela atividade filosófica. 2 . As citações de passagens das Meditaçõ es Metafísicas serão extraídas da tradução de F. Castilho (2008). As citações serão acompanhadas da notação da edição em latim Adan&Tannery (AT) da obra de Descartes seguida do número do volume e do número da página nessa edição. 3 . Veja-se, por exemplo, M. Gueroult (1953), B. Williams (2005), J. Broughton (2003), J. M. Beyssade (1979), M. Wilson (1978) e D. Garber (1992). 4 . Arnauld se pergunta se o argumento de Descartes que garante a verdade das ideias claras e distintas não seria circular visto depender prova a existência de Deus, que, por sua vez, depende da verdade da ideia clara e distinta por meio da qual percebemos a existência de Deus. Muitos autores que defendem a interpretação tradicional de que a hipótese do Deus enganador põe em questão as ideias claras e distintas e a de que as provas da existência e da veracidade de Deus eliminam essa hipótese, argumentam, de diferentes maneiras, na tentativa de mostrar que mesmo com essa interpretação é possível mostrar que não há círculo. Uma das estratégias mais fecundas para evitar a circularidade do argumento cartesiano é restringir o escopo da dúvida do Deus enganador. Veja-se, por exemplo, a leitura de J.M. Beyssade (1979) e a de A. Kenny (1970) que, com importantes diferenças, defendem uma leitura temporal segundo a qual as ideias claras e distintas são indubitáveis no momento em que são percebidas, mas não a regra da verdade segundo a qual toda ideia clara e distinta é verdadeira; ou ainda a de J. Carriero (2009) segundo a qual o que é provado ao eliminar a hipótese de Deus enganador é a estabilidade da verdade das ideias claras e

distintas. Veja-se a respeito do tema, A. Gewirtz, (1941 e 1970), D. Murdoch (1999), L. Rose (1965), W. Doney, (1955), L. Newman e A. Nelson, (1999), L. Loeb (1992) e J. Van Cleve (1979). 5 . Com base em diferentes argumentos, essas dificuldades são, de algum modo, com alguma ênfase, sugeridas nas alternativas interpretativas de M. Marlies (1978), H. Frankfurt (1987) e P.J Markie (1991), por exemplo. 6 . Segundo Roger Ariew (2011), Descartes não foi um bom leitor da escolástica. Embora tenha sido educado em la Flèche com a filosofia escolástica, abandonou esses estudos por aproximadamente 20 anos (1620-1640). Só voltando ao estudo da filosofia escolástica em 1640, época em que distribui as Meditações para possíveis objetores, visando prepararse para rebater objeções dos jesuítas. Assim foi a partir de 1640, com as Objeções e Respostas , as Meditações e os Princípios da Filosofia que Descartes reaprendeu a filosofia escolástica e sua terminologia. 7 . As citações de passagens do Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio ( SBT ) serão extraídas da tradução de C.A. R. do nascimento (1998). 8 . Nesse artigo não trato do modo como Descartes rejeita a compreensão escolástica de orientação aristotélica do que seria o conhecimento metafísico de objetos que não dependem dos sentidos para serem nem para serem inteligidos e que resultam, segundo essa compreensão, do processo de separação. O foco do artigo é mostrar que o alvo da Primeira Meditação é o conhecimento cujo objeto é compreendido pela tradição como resultante de processos de abstração e que de algum modo dependem da matéria sensível. 9 . Se para a tradição visada não há ideia no intelecto que não tenha antes passado pelos sentidos, qualquer critério por essa tradição admitido deverá ter os sentidos como base. Mas como os sentidos são dubitáveis, ao menos até esse momento das Meditações não se pode ter critérios legítimos de distinção. Descartes, ao contrário, mais tarde, na Quinta Meditação ao introduzir a Teoria das Naturezas Verdadeiras e Imutáveis, introduzirá critérios para distinguir as composições necessárias, que não terão os sentido como base, das composições arbitrárias da imaginação. Referências Bibliográficas R. Descartes Adam, C. and Tannery, P. (1964-76), (eds.) Oeuvres de Descartes (rev. edn., 12 vols. , Paris: Vrin/CNRS; Castilho, F. (2004) (trad.) Meditações sobre Filosofia Primeira - Coleção Multilíngues de Filosofia Unicamp, Série A, Cartesiana I, Unicamp T. de Aquino Super Boethium De Trinitate Questions 5-6, trad. Armand Mauer, Toronto, 1953 .

Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio – Questões 5 e 6, trad. e introd. Carlos Arthur R. do Nascimento, Ed. Unesp, São Paulo, 1998. Bibliografia secundária Ariew, R. (2011) Descartes among the Scholastics , Leiden: Brill; Beyssade, J.M. (1979) La Philosophie première de Descartes , Paris: Flamarion; Broughton (2003) Descartes’s Method of Doubt , Princeton University Press; Carriero, J. (2009) Between two Worlds , Princeton University Press; Doney, W (1955) “The Cartesian Circle”, Journal of the History of Ideas 16, pp. 324-338; Frankfurt, H. (1987) Demons, dreamers and Madmen , Garland Publishing, NY& London; Garber, D. (1992) Descartes Metaphysical Physics , The University of Chicago Press; Gewirtz, A. (1941) “The Cartesian Circle”, The Philosophical Review , 50, (4), pp. 368-395; ___ (1970) “The Cartesian Circle Reconsidered”, The Journal of Philosophy 67, (19), Sixty-Seventh Annual Meeting of the American Philosophical Association Eastern Division, pp. 668-685; Gueroult, M. (1953) Descartes selon l’ordre des raisons , 2 vols. Paris: Aubier; Kenny, A. (1970) “The Cartesian Circle and the Eternal Truths”, The Journal of Philosophy 67 (19), Sixty-Seventh Annual Meeting of the American Philosophical Association Eastern Division, pp. 685-700; Loeb, L. (1992) “The Cartesian circle”, The Cambridge Companion to Descartes , J. Cottingham (ed.), Cambridge University Press; Markie, P.J (1991) “Dreams and Deceivers in Meditation One”, The Philosophical Review 90 (2), pp. 185-209; Marlies, M. (1978) “Doubt, Reason, and cartesian Therapy”, Descartes – Critical and Interpretive Essays , Michael Hooker (ed), The Johns Hopkins University Press; Murdoch, D. (1999) “The Cartesian Circle ”, The Philosophical Review 108, (2), pp. 221-244; Newman, L e Nelson, A. (1999) “Circumventing Cartesian Circles”, Noûs 33 (3), pp. 370-404;

Rose, L. (1965) “The Cartesian Circle”, Philosophy and Phenomenological Research 2 (1), pp. 80-89; Van Cleve, J. (1979) “Foundationalism, Epistemic Principles, and the Cartesian Circle”, The Philosophical Review 88 (1), pp. 55-91; Williams, B. (2005) Descartes: The Project of Pure Enquire , Penguin Books, London; Wilson, M.D. (1978) Descartes , Routledge, London & New York. Filopono e a controvérsia acerca da relação entre natureza e movimento nos corpos elementares ¹ Fátima Regina R. Évora Depto. Filosofia - IFCH UNICAMP I Introdução O objetivo deste artigo é analisar a concepção de João Filopono de Alexandria (490-570) com respeito à relação entre natureza e movimento nos corpos elementares presente, especialmente, na versão latina dos fragmentos sobreviventes do tratado De aeternitate mundi contra Aritotelem , obra da maturidade de Filopono. Esta análise visa fornecer subsídios para um posterior exame da recepção latina do pensamento de Filopono no início da Idade Moderna e, por extensão, de sua influência nas mudanças ocorridas na discussão e na prática científicas, conhecidas como Revolução Científica dos séculos XVI e XVII. O De aeternitate mundi contra Aristotelem, escrito em grego, provavelmente entre 530 e 533/4, é dedicado a negar a tese aristotélica da eternidade do mundo principalmente atacando a teoria do éter, tal qual estabelecida no de Caelo (I, 2), e a tese de que a eternidade dos corpos celestes e de seus movimentos se deve a uma especial propriedade da substância da qual seriam feitos, a saber, o éter, elemento simples e primeiro que se move naturalmente em círculo. No seu comentário à Física, o ateniense Simplício (490-?560), afirma que Filopono declara que, no contra Aristotelem , ele demonstrará também […] que o mundo não se transforma em um absoluto nada, mas em algo diferente, maior e mais divino. É extraordinário [dirá Simplício] que, por um lado, [Filopono] crê que a destruição do mundo é uma mudança para algo que existe e que é mais divino, mas, por outro lado, diz que a geração não advém de algo que existiu. Ele declara que este mundo se transforma em outro mundo que mais divino – uma que ele elaborará nos livros seguintes – sem perceber que isso não é uma destruição do mundo, mas um aperfeiçoamento. (Filopono, De aeternitate mundi contra Aristotelem, frag. VI/132 , apud Simplicius, in Physica , 1177,38-1178,5) ² . Apesar de conhecido na Antiguidade Tardia e na Idade Média, o De aeternitate mundi contra Aristotelem perdeu-se posteriormente, restaram

dele apenas cento e trinta e quatro fragmentos, grande parte preservada por Simplício que incluiu, em seus comentários ao de Caelo, escrito por volta de 540, e à Física de Aristóteles ³ , extensos excertos desta obra, reproduzidos diretamente do tratado original, para em seguida atacá-los ⁴ . A análise a seguir será feita principalmente a partir dos fragmentos deste tratado presentes na versão latina do comentário de Simplicio ao de Caelo ⁵ devida a Guilherme de Moerbeke, considerando, para isso, a edição crítica da obra apresentada no Corpus Latinum Commentariorum in Aristotelem Graecorum (CLCAG). Minha hipótese é que as traduções latinas dos textos de Filopono fornecem uma importante chave de leitura para a análise da possível influência do autor sobre os filósofos do início da Idade Moderna e representam uma fonte histórica importante para a investigação da fixação da terminologia filosófica do período ⁶ . A primeira tradução latina de uma obra de Filopono data do século XIII: tradução do seu Comentário ao de Anima feita por Guilherme de Moerbeke (1215-35 – c. 1286) ⁷ . A difusão latina das ideias de Filopono, no século XIII, também se deu via a tradução latina, de 1271, de Moerbeke do Comentário de Simplício ao de Caelo, esta tradução contribuiu de maneira significativa para a divulgação, no Ocidente latino, da crítica de Filopono à doutrina aristotélica de eternidade do mundo, bem como de suas teses com respeito à matéria, à criação do universo, sobre a corruptibilidade dos corpos celestes e sobre a uniformidade do universo. É ainda uma questão aberta quão grande foi a influência do De aeternitate mundi contra Aristotelem quer no pensamento medieval, quer na filosofia do início da modernidade. Entre os medievais, pode-se dizer, como aponta Sorabji, que este tratado era conhecido, entre os latinos por São Boaventura (c1217-1274) e São Tomás de Aquino (c1224-1274), entre os árabes, por alFarabi (c873-950), pela Escola Filosófica Cristã de Bagdá (séc. X e XI) e por Avicena (980-1037). Também o pensador judeu Gersônides (c1288-1344) e o bizantino Gemitos Pleton (c1355-1452) parecem ter tido acesso ao contra Aristotelem. Diz Tomás de Aquino no seu Comentário a sobre o de Caelo , l.1, lect.6. Conhece-se devidamente sobre o primeiro, que alguns eram da opinião de que os corpos do céu são geráveis e corruptíveis segundo sua natureza, tal como pensa João, o gramático, que se chama Filopono. E para favorecer sua suposição de que o céu e o mundo inteiro tiveram o ser gerado, ele utilizouse da autoridade de Platão ⁸ . (Edição Leonina, t.3, 1886). Embora estas traduções de Moerbeke datem do século XIII, há hoje evidências com respeito à influência de Filopono no desenvolvimento da filosofia da natureza anterior ao século XIII. No que diz respeito à física, ela se deu principalmente através dos árabes Avicena, ou Ibn Sina (980-1037), e Avempace, ou Ibn Badja (1106-1138), que advogaram a tese de que a lei do movimento de Aristóteles deveria ser substituída pela lei da diferença aritmética, tal qual propôs Filopono. Diversos historiadores da filosofia e da ciência têm se dedicado nos últimos sessenta anos a encontrar evidências da influência da física e cosmologia de Filopono sobre a teoria do movimento desenvolvida dentro da tradição árabe; entre estes historiadores destacam-

se: A. Kraemer ⁹ , Mahdi ¹⁰ , Salomão Pinés ¹¹ , G. Endress, Ernest Moody e Fritz Zimmermann ¹² . Embora Filopono já fosse conhecido na Idade Média latina e árabe, este conhecimento era fragmentado, o que começa a alterarse a partir do século XV juntamente com o movimento de retomada do saber antigo característico deste período. Há neste momento na Europa Ocidental um genuíno interesse pelos tratados de filosofia da natureza, matemática, medicina e filosofia produzidos na Antiguidade clássica, além, é claro, do interesse pelos textos literários antigos. Este interesse, sem dúvida, contribuiu para a redescoberta dos tratados de Filopono. Na Itália quatrocentista, por exemplo, houve, como notou Charles Schmitt, uma certa difusão manuscrita do pensamento de Filopono. Segundo Schmitt, sabe-se que: Durante a segunda metade do século XV uma série de diferentes trabalhos, geralmente incluindo o comentário à Fí sica são encontrados na Biblioteca do Vaticano, na Biblioteca do Cardeal Bessarion (1402-1472), que mais tarde entrou na Biblioteca Marciana, Biblioteca de São Marco, em Florença, e na famosa Biblioteca privada de Giovanni Pico (1463-1494) (Schmitt, 1987, p. 215) Schmitt, pesquisando trabalhos de autores italianos do século XV, descobriu que o primeiro autor italiano a se referir explicitamente ao ataque de Filopono à filosofia aristotélica foi Gianfrancesco Pico della Mirandola (1469-1533), que aparentemente teve acesso à biblioteca de Giovanni Pico, onde encontravam-se alguns manuscritos de comentários de Filopono à Física . Pico della Mirandola defendeu, e divulgou, muitas das teses de Filopono, particularmente aquelas sobre o lugar e o vazio. No seu trabalho intitulado Examen vanitatis doctrinae gentium et veritatis Christianae Disciplinae , de 1520, Pico conclui sua análise sobre o vazio afirmando que: “eu tenho argumentado acerca do vácuo até aqui a partir de Filopono, que eu usei como interprete e como se fosse paráfrase” (Mirandolla , Examem vanitatis, VI, 5) ¹³ . Embora, neste momento histórico, houvesse um estímulo para a leitura das obras da antiguidade clássica em língua grega, o conhecimento do grego não era universal, gerando uma importante demanda por traduções latinas. A partir da segunda metade do século XVI, todos os comentários de Filopono sobre Aristóteles, além do seu De aeternitate mundi contra Proclum são traduzidos para o latim, as teses de Filopono são largamente difundidas e estudadas, tornando acessível o pensamento de Filopono para um público mais amplo. As primeiras edições do comentário de Filopono à Física de Aristóteles, que se tem notícias datam de 1535, numa versão grega ¹⁴ , e em 1539, em latim ¹⁵ . A edição de 1539 é seguida por uma série de edições de traduções latinas publicadas, em Veneza ¹⁶

Charles Schmitt, em seu artigo Philoponus’ Commentary on Aristotle’s Physics in the Sixteenth Century , ¹⁷ menciona a existência das seguintes outras traduções: 1) Guillermus Dorotheus 1550, Veneza, apud Octauianum Scotus , 2) Guillermus Dorotheus 1554, Veneza, apud Octauianum Scotus , 3) Giovanni Battista Rasario 1559, Veneza, apud Hieronymus Scotus e 4) Giovanni Battista Rasario 1581, Veneza , apud Hieronymus Scotus . Sem dúvida, estas edições refletem a repercussão do Comentário de Filopono à Física na comunidade acadêmica europeia. Isto também é evidenciado pelas diversas referências que a Filopono faz Galileo, principalmente nas suas obras de juventude. No De Motu Galileo ao discutir o movimento de queda dos corpos analisa exatamente o mesmo parágrafo do Livro IV da Física de Aristóteles a que Filopono se refere ao discutir a mesma questão. E chegam a conclusões semelhantes. No entanto, embora Galileo afirme que ninguém até aquele momento tinha se aventurado a negar a relação proposta por Aristóteles, ao propor seu famoso argumento sobre a igualdade dos tempos de queda de corpos de mesmo material e de diferentes pesos através do mesmo meio, Galileo deixa claro que conhecia Filopono. Diz ele, Mesmo os peripatéticos tinham reconhecido que a visão de Aristóteles sobre esta matéria estava errada, embora nenhum deles poderia refutar seu argumento [...]. E embora Scotus, São Tomás, Filopono e alguns outros sustentassem uma visão oposta àquela de Aristóteles, contudo eles chegaram à verdade mais por fé do que por verdadeira demonstração ou por refutar Aristóteles. (GALILEI, De Motu, Opere, I p. 284) ¹⁸ . Segundo Willian Wallace, nos seus escritos de juventude, Galileo menciona Filopono mais frequentemente do que Platão, Alberto Magnus e Duns Scotus. Filopono também é citado por diversos outros autores do século XVI, entre os quais destacam-se dois professores de Galileo, Francesco Buonamici e Girolamo Borro (1512-1592). Francesco Buonanici, por exemplo, refere-se, no seu tratado De Motu , literalmente à crítica de Filopono à dinâmica aristotélica. Diz Buonamici: Tendo rejeitado a opinião de Platão, Aristóteles decidiu que, pelo movente, uma força é impressa no ar, ou no meio, em virtude da sua natureza, que é dupla, nem grave apenas, nem leve; é por causa disso, justamente, que o ar pode receber o impetus não importa em que sentido. Como, todavia, o impetus nunca é conforme à sua natureza ... ele resiste-lhe, e assim que estiver um pouco separado do primeiro motor perderá pouco a pouco a força que lhe é impressa por este; esta força dissipa-se e, por fim, esgota-se, e assim o projétil, não experimentando mais violência, regressa à sua condição anterior, e, conformando-se a esta, apressa-se a voltar ao lugar de onde a força o fizera partir, ... . Sobre isto, Filopono e outros latinos atacaram muito fortemente Aristóteles, a ponto de recusarem a sua autoridade. II Filopono: Natureza e movimento nos corpos elementares

A concepção de Filopono com respeito à relação entre natureza e movimento nos corpos elementares é apresentada ao longo da sua crítica à teoria aristotélica do éter ( aithêr ) que foi exposta especialmente no De aeternitate mundi contra Aristotelem. Esta crítica se inicia com um ataque direto ao De caelo, I, 2 onde Aristóteles apresenta sua teoria do éter ( aithêr ), um elemento diferente dos quatro elementos terrestres, que não é nem leve nem pesado, cujo movimento natural é a rotação, e do qual são feitos todos os corpos celestes: as estrelas, os planetas e as esferas. Embora Filopono concorde com Aristóteles que os movimentos tenham a natureza como princípio, disso não segue, segundo ele, que corpos cujos movimentos são diferentes em espécie possuam naturezas diferentes. Segundo Filopono, se corpos simples cuja natureza não é da mesma espécie (como terra e água) movem-se com movimentos da mesma espécie (retilíneo para baixo), então é razoável supor que existam corpos simples de mesma espécie e que se movam com movimentos que são diferentes em espécie. Ou seja, não se deve concluir, como o faz Aristóteles, que aquilo que se move naturalmente em um círculo (como corpos celestes) e aquilo que se move naturalmente em linha reta (corpos terrestres) deveriam possuir naturezas diferentes. ¹⁹ De acordo com Aristóteles, todos os corpos do mundo são simples ou compostos de corpos simples, entendendo por “simples” os corpos “que possuem um princípio único de movimento em suas próprias naturezas, tal como o fogo e a terra” ( de Caelo , I, 2, 268 b 27-28). Os movimentos ²⁰ naturais dos corpos simples são simples, e os únicos movimentos simples são os retilíneos (para cima e para baixo) e o circular, pois somente estes percorrem as únicas magnitudes geometricamente simples: a reta e o círculo. Diz Aristóteles: “estas duas [a linha reta e a circular] são as únicas simples” ( de Caelo , I, 2, 268b 18) As coisas que pertencem à região terrestre são compostas dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), ou de uma combinação deles, e se movem naturalmente com movimento retilíneo, uns para cima (para longe do centro), outros para baixo (em direção ao centro). O movimento natural dos corpos compostos por mais de um elemento corresponde àquele do elemento preponderante ( de Caelo, IV, 4, 311 b 5-15). Quanto às coisas que compõem a região celeste, (a saber, as estrelas, os planetas e as esferas) são feitas de éter , um elemento simples e primeiro, que não é nem leve nem pesado, cujo movimento natural é a rotação. De acordo com Aristóteles, no de Caelo , livro I, a existência deste elemento celeste é uma consequência da sua teoria do movimento e de sua aceitação de algumas premissas. A meu ver, a partir da teoria aristotélica do movimento tem-se que: 1) todos os corpos naturais são capazes de mover-se por si com respeito ao lugar (ver: De caelo , 268 b 11); 2) a natureza [ physis ] é princípio de movimento (ver: De caelo , 268 b 11; Física , 200 b 12-5 e Fí sica , 192 b 20); 3) todos os movimentos locais são ou retilíneos ou circulares ou uma combinação destes dois; 4) os dois únicos movimentos simples são o retilíneo (para cima e para baixo) e o circular [...]; 5) os corpos são simples ou compostos de corpos simples [...] (ver: de Caelo , 268 b 26); 6) movimentos simples pertencem naturalmente a corpos simples; 7) uma coisa

simples tem um contrário simples; 8) todo movimento é ou natural ou contrário à natureza; 9) o movimento que é contranatural para um corpo é natural para outro (ver: de Caelo , 269 a 12-3), e, 10) os quatro elementos terrestres movem-se naturalmente com movimento retilíneo” (Évora, 2013, p. 114). Uma vez que os quatro elementos terrestres se movem retilineamente, fazse necessário outro elemento simples, diferente dos corpos terrestres, cujo movimento natural é o circular, visto que o movimento circular existe, é simples e é o movimento de um corpo simples. Aristóteles reconhece que o movimento circular não poderia ser natural para os corpos terrestres pois cada corpo simples tem um único movimento natural simples e os movimentos naturais dos corpos terrestres são retilíneos (para cima e para baixo). Além disso, o movimento circular não poderia ser contranatural nem para os corpos terrestres, nem para os celestes, pois se o corpo que se move contranaturalmente em círculo fosse o fogo ou algum outro elemento terrestre, sua locomoção natural seria contrária ao movimento circular. Mas [diz Aristóteles] uma coisa simples tem um contrário simples, e os movimentos para cima e o para baixo são [sempre] contrários um ao outro [...]. Mas, se o corpo movido contranaturalmente em um círculo fosse algum outro corpo, então algum outro movimento pertenceria a ele naturalmente. Mas, isto é impossível, pois se ele fosse um movimento para cima aquele corpo seria o fogo ou o ar, enquanto se fosse um movimento para baixo seria água ou terra ( de Caelo , 269 a 12-18). Portanto, movimento circular não poderia ser nem natural nem contrário à natureza dos corpos terrestres. Tampouco, ele poderia ser contrário à natureza de algum outro corpo diferente dos corpos terrestres, logo, conclui Aristóteles, o movimento circular só poderia ser o deslocamento natural de algum outro corpo, diferente e separado daqueles que compõem a região terrestre, de uma natureza tanto superior quanto mais afastado está do mundo sublunar. “Está claro [diz Aristóteles] que há entre os corpos simples e primeiros algum que se move naturalmente em círculo, como faz o fogo para cima e a terra para baixo” ( de Caelo , 269 a 31-269 b 6). Estes corpos de natureza superior preenchem toda a região celeste. Portanto, é a partir da circularidade do movimento celeste que Aristóteles infere a existência de um elemento de natureza diferente daquela dos corpos terrestres. Ao refletir sobre o movimento feito por Aristóteles no capítulo 2 do livro I do de Caelo para mostrar que é necessário postular a existência do éter, Filopono argumenta que, Aristóteles defende que os céus são um quinto elemento, diferente dos quatro elementos terrestres, pois, os primeiros movem-se naturalmente com movimento circular, diferentemente dos elementos terrestres que se movem em linha reta, mas “corpos com movimentos diferentes possuem também diferentes naturezas”, portanto, se “eles movem-se com movimentos diferentes; logo, são diferentes em natureza e em espécie”. Filopono se opõe a este argumento a partir da sua crítica à concepção aristotélica com respeito à relação entre natureza e movimento dos corpos elementares. Diz Filopono, no contra Aristotelem , segundo relata Simplício

²¹ , se está correto afirmar que. […] movimentos diversos se fazem por naturezas diversas, então apokleroticum , isto é, será fortuito, em todo caso, que movimentos iguais não [se façam por] uma e mesma natureza ²² ; portanto, uma vez que terra e água se movam ambas para o centro, também serão da mesma natureza e da mesma espécie; semelhantemente, fogo e ar, que são carregados ²³ ambos para cima ²⁴ (Filopono, contra Aristotelem , apud Simplício, in De caelo , 26,32–27,4). Nesta passagem, Filopono parece aceitar o princípio aristotélico de que todos os corpos naturais são móveis com respeito ao lugar e que a natureza é princípio de movimento, tal qual afirmada no primeiro livro do de Caelo (268 b 14-16) e em outras obras de Aristóteles, por exemplo, na Física , onde é afirmado que “a natureza ( physis ) é princípio de movimento ( kinesis ) e de mudança” ( Física , 200 b 12). (Ver também F ísica , 192 b 20). Contudo, Filopono se opõe ao restante do argumento que se segue. Segundo Filopono, se a natureza gera em dois corpos com um e mesmo movimento, então eles deveriam ter a mesma natureza e a mesma espécie, tal que se a […] terra e água, uma vez que sejam corpos simples e se movam ambas para o meio [do universo], mover-se-ão também pela mesma natureza, segundo Aristóteles. Mas, porque elas se movem pela mesma natureza, são da mesma natureza e da mesma espécie. De acordo com isto, terra e água são da mesma espécie, o que de fato ele diz ser evidentemente inconveniente, se for verdade que, de fato, aquela é seca e esta é úmida ²⁵ (FILOPONO, contra Aristotelem , apud : Simplicius, in de Caelo , 27,1-4). Portanto, Filopono rejeita a tese de que a cada natureza corresponde um único e exclusivo movimento natural. O pensador árabe al-Farabi (c873-950) também comenta esta objeção de Filopono. Segundo al-Farabi, Filopono considera que Aristóteles não tem como defender, sem cair em contradição, que corpos simples, como a água e a terra, que são diferentes em espécie, movam-se com um e mesmo movimento retilíneo para o centro do mundo ²⁶ . Do mesmo modo, Aristóteles não teria como defender, segundo Filopono, que o ar e o fogo, também corpos simples e diferentes, movam-se com o mesmo movimento, retilíneo para cima. É evidente, dirá Filopono, neste fragmento preservado por al-Farabi, que Aristóteles teria que concluir que se a terra e a água se movem com um movimento que é ‘um’ em espécie, então a natureza pela qual ambos elementos se movem teria que ser a mesma em espécie, assim como a natureza do ar teria que ser idêntica àquela do fogo. O que é evidentemente absurdo. Poder-se-ia responder à crítica de Filopono a Aristóteles, diferenciando os movimentos da terra e da água pela rapidez e lentidão, uma vez que a terra se move mais rápido do que a água, portanto seus movimentos não seriam exatamente iguais, logo não haveria necessidade de se concluir que natureza da terra teria que ser idêntica em espécie que àquela da água. Contudo, o próprio Aristóteles afirmou, na Física 228b26-31, que […] rapidez e lentidão não são espécies de movimento nem constituem diferenças específicas de movimento, porque essa distinção ocorre em conexão com todas as distintas espécies de movimento. ( Física, 228b26-31)

O argumento de Filopono vai na mesma direção, diz ele, a rapidez e a lentidão não alteram as espécies dos movimentos da terra e da água. Portanto, terra e água movem-se com movimentos da mesma espécie: retilíneos para baixo. E, se admitirmos, seguindo Aristóteles, que corpos que se movem com um e mesmo movimento deveriam ter a mesma natureza e a mesma espécie, então teríamos que reduzir o número de elementos de quatro para dois. O que, Filopono afirma, ser evidentemente falso. Assim, conclui Filopono, se terra e água, que são corpos simples de naturezas diferentes em espécie, movem-se, ambos, com movimentos retilíneos para baixo, ou seja, com movimentos da mesma espécie, então não seria absurdo supor que existam corpos simples que são da mesma espécie e que se movem com movimentos que são diferentes em espécie. Eventualmente, corpos com movimentos diferentes em espécie poderiam possuir a mesma natureza. Portanto, Filopono defende que não se deve concluir, seguindo Aristóteles, que aquilo que se move em um círculo e aquilo que se move em linha reta deveriam necessariamente possuir naturezas diferentes. Diz Filopono, […] se acontece aos que são de natureza diferente, como terra e água, de moverem-se com o mesmo movimento, [então] diz, convertendo pela negação, também nada proíbe os que se movem, mas não com o mesmo movimento, de serem da mesma natureza. Logo, embora, de fato, o céu se mova em círculo, e o que está abaixo da Lua em linha reta, nada proíbe que o céu seja da mesma natureza [dos corpos] sublunares e [seja] corruptível como eles ²⁷ . (FIlopono, apud Simplício, in de Caelo , 28,6-11) Portanto, de acordo com Filopono, a inferência aristotélica com respeito à existência de um elemento ( éter ) de natureza diferente daquela dos corpos sublunares não é necessária. 1 . Artigo desenvolvido como parte das atividades da pesquisa “A recepção latina do conceito de matéria de Filopono no início da Filosofia Moderna”, bolsa de produtividade em Pesquisa CNPq, na categoria ou nível 1B, concedida pelo CNPq, Processo nº 311017/2017-7, com vigência de 01/03/2018 a 28/02/2022; e do projeto Temático FAPESP – Teorias da Causalidade e Ação Humana na Filosofia Grega Antiga, Proc. nº 2015/05317-8, de 01/09/2015 a 31/08/2020. 2 . A edição utilizada nesta citação é a seguinte: Philoponus, J. Against Aristotle on the eternity of the world , traduzida por C. Wildberg (1987) (vide bibliografia). Esclareço que utilizei colchetes, […], para incluir palavras na citação visando torná-la mais clara. Quando este tipo de inclusão foi feito pelo tradutor, Wildberg, mantive os parênteses pontiagudos por ele utilizados. 3 . De fato, os comentários de Simplicio à Física e ao de Caelo são muito mais do que uma exegese ao texto aristotélico. Neles, além de comentar o texto aristotélico em questão, Simplício apresenta sua crítica aos, por ele considerados, ataques dos cristãos à filosofia aristotélica, especialmente aqueles feitos por Filopono. Simplício também inseriu, nestes comentários,

trechos da filosofia grega precedentes, preservando alguns fragmentos de importantes tratados que posteriormente perderam-se. Segundo Hankinson, Simplício “compôs a maior parte de seus comentários sobre Aristóteles, na esperança piedosa [...] de manter a chama da velha racionalidade viva contra a escuridão invasora (como ele o via) do dogma Cristão” (Hankinson, 2002, p. 1). 4 . Destes 134 fragmentos sobreviventes do De aeternitate mundi, contra Aristotelem, 128 foram recuperados dos comentários em grego de Simplício e um fragmento foi extraído de um tratado intitulado Conspectus rerum naturalium escrito em grego no século sétimo pelo estudioso bizantino Symion Seth. Além destes, há um trecho em siríaco e quatro trechos em árabe, dos quais três foram extraídos de um tratado de al-Farabi, escrito, no século X, contra Filopono. Recentemente, Christian Wildberg reuniu e traduziu para o inglês esses 134 fragmentos, e os publicou numa reconstrução hipotética, com introdução e notas. Esta é a única versão completa, em uma língua moderna, do que restou desta obra. 5 . Em 2004, foi reeditada esta tradução: Simplicius, Commentaire sur le traité du ciel d’Aristote . trad. Guillaume de Moerbeke. Volume I. Ed. Fernand Bossier; Chr Vande Veire; Guy Guldentops. ( Corpus Latinum Commentariorum in Aristotelem Graecorum ). Leuven: Leuven University Press, 2004. 6 . O trabalho de tradução para o português das versões latinas dos textos de Filopono e do comentário de Simplicio ao de Caelo está sendo desenvolvida junto ao Grupo de Estudos Philoponus Latinus , criado em 2016 e coordenado por mim, que reúne pesquisadores que se dedicam a leitura, tradução e interpretação das obras de Filopono traduzidas para o latim, com discussão pormenorizada de problemas filológicos, que têm grande impacto na formulação de argumentos filosóficos presentes nestes textos. Fazem parte deste Grupo os seguintes orientandos meus: 1) Matheus Henrique Gomes Monteiro, doutorando do Programa de pós-graduação em Filosofia da UNICAMP, desde 03/2016, com o projeto intitulado “A possibilidade de geração e corrupção nos corpos celestes: a recepção na filosofia de Tomás de Aquino da crítica de João Filopono à cosmologia aristotélica”, bolsista CAPES; 2) Thiago Henrique Rosales Marques, doutorando do Programa de pós-graduação em Filosofia da UNICAMP, desde 03/2019, com o projeto intitulado “Tradição e Inovação em Les Météores de Renné Descartes: entre o rompimento com o aristotelismo e a continuidade com pensamento escolástico”, bolsista CNPq, e 3) Tennessee Williams Monteiro Matos, doutorando do Programa de pós-graduação em Filosofia da UNICAMP, desde 03/2017, com o projeto intitulado “João Filopono: a doutrina da queda dos corpos”. 7 . Recentemente, foi publicada uma edição crítica desta tradução com introdução sobre a psicologia de Filopono: Philopon, Jean, Commentaire sur le de Anima d’Aristote , trad. Guillaume de Moerbeke, introduction et édition Guillaume Verbeke ( Corpus Latinum Commentariorum in Aristotelem Graecorum III), Louvain: Publications Universitaires de Louvain, 1966.

8 . Tradução de Matheus Monteiro. “ Sciendum est autem circa primum, quod quidam posuerunt corpus caeli esse generabile et corruptibile secundum suam naturam, sicut Ioannes grammaticus, qui dictus est Philoponus. Et ad suam intentionem adstruendam, primo utitur auctoritate Platonis, qui posuit caelum esse genitum et totum mundum. ” 9 . Kraemer. A Lost Passage from Philoponus’ Contra Aristotelem in Arabic Translation. Journal of the American Oriental Society 85, No. 3. (Jul. - Sep, 1965: 318-327. 10 . Mahdi. Alfarabi against Philoponus. Journal of Near Eastern Studies , Vol. 26, No. 4. (Oct., 1967), pp. 233-260. 11 . Pinés, S. An Arabic Summary of a lost Work of John Philoponus. In: The Collected Works of Sholomo Pines, vol. II (Studies in Arabic Versions of Greek texts and in Mediaeval Science), Jerusalem: The Magnes Press, 2000, p. 294-328 12 . Zimmermann. Philoponus’ Impetus Theory in the Arabic Tradition . In: SORABJI, R. (ed.), Philoponus and the Rejection of Aristoteliam Sciences. New York: Cornell University Press, 1987, p.121-129. 13 . “ Et de vacuo hactenus ex Philopono vice interpretis et quasi paraphrastis functus disputavi” (Mirandolla, Examem Vanitatis, VI, 5 , Apud Schmitt, 1987, p.220. 14 . Esta edição, em grego, foi feita por Victor Trincavelli. 15 . Guillermus Dorotheus, 1539, Veneza, apud Octauianum Scotus) Ioannis Grammatici cognomento Philoponi eruditissima Commentaria in primos quatuor Aristotelis De naturali auscultatione libros. Impressum Venetijs per Brandinum [et] Octauianum Scotum, M D XXX IX. 16 . 1) 1539: Guillermus Dorotheus , Veneza, apud Octauianum Scotus. Ioannis Grammatici cognomento Philoponi eruditissima Commentaria in primos quatuor Aristotelis De naturali auscultatione libros. Impressum Venetijs per Brandinum [et] Octauianum Scotum, M D XXX IX. 2) 1542: Guillermus Dorotheus, Veneza. Ioannis Grammatici cognomento Philoponi Eruditissima commentaria in primos quatuor Aristotelis de naturali auscultatione libros. Per Brandinum et Octauianum Scotum , M D XL II. 3) 1546: Guillermus Dorotheus, Veneza, apud Octauianum Scotus) Ioannis Grammatici cognomento Philoponi Eruditissima commentaria in primos quatuor Aristotelis de naturali auscultatione libros. Cautum est Priuilegio Senati Veneti, ne quis hunc Librum intra decennium imprimat uendatue. Venetiis. M D XXXX VI (Google Books). 4) 1558: Giovanni Battista Rasario, Veneza, apud Hieronymus Scotus. Aristotelis Physicorum Libri Quatuor, cum Ioannis Grammatici, Cognomento Philoponu Commentariis. Quos nuper ad graecorum codicum sidem summa diligentia restituit Ioannes Baptista Rasarius, Nouariensis Medicus, et in singulis paginis errores innumeros sustulit, ut plane alia nunc interpretatio uideatur. Venetiis, apud Hieronymum Scotum . M D LVIII. 5) 1569: Giovanni Battista Rasario, Veneza, apud Vincentius Valgrisius) Ioannis Grammatici cognomento

Philoponi in Aristotelis Physicorum Libros Quatuor Explanatio. Ioannis Baptista Rasario, Nouariensi, interprete. cum priuilegio et indice copiosissimo. Venetiis, apud Vincentium Valgrisium. 1569. 6) 1589: Guillermus Dorotheus 1589, Veneza, apud Octauianum Scotus. Ioannis Grammatici cognomento Philoponi eruditissima commentaria in primos quatuor Aristotelis de naturali auscultatione libros. Nunc primum e Graeco in Latinum fideliter translata. Guilelmo Dorotheo Veneto, Theologo Interprete. Cautum est Priuilegio Senati Veneti, ne quis hunc Librum intra decennium imprimat uendatue. Venetiis. M D XXXXII. (Archive.org). 7) 1592: Guillermus Dorotheus 1592, Veneza, apud Octauianum Scotus. Ioannis Grammatici cognomento Philoponi eruditissima commentaria in primos quatuor Aristotelis de naturali auscultatione libros. Nunc primum e Graeco in Latinum fideliter translata. Guilelmo Dorotheo Veneto, Theologo Interprete. Cautum est Priuilegio Senati Veneti, ne quis hunc Librum intra decennium imprimat uendatue. Venetiis . M D XXXXII. (Google Books) 17 . Schmitt, 1987, p. 229. 18 . “ Peripatetici huius sententiae Aristotelis falsitatem cognoverint, quanvis eorum nullus cmmode Aristotelis argumenta diluere potuerit. Nec certe ullus unquam argumentum, quod 4º Phys. t. 71 et 72 scribitur, evertere potuit: nunquam enim adhuc illius fallacia observata fuit; et quamvis Scotus, D. Thomas, Philoponus et alii nonnulli contrariam Aristoteli teneant sententiam, attamen veritatem fide potius quam vera demonstratione, aut quod Aristoteli responderint, sunt consecuti.” (GALILEI, De Motu, Opere, I, p. 284). 19 . Este artigo é uma continuação da pesquisa publicada em Évora 2012, Évora 2013 e debatida em ÉVORA, F. R., Filopono e a negação da teoria aristotélica do éter . Conferência proferida no SIFG 2016: III Congresso Internacional de Filosofia Grega, que teve lugar na Universidade de Lisboa nos dias 20-22 de abril de 2016, promovido pela La Sociedad Ibérica de Filosofía Griega. Cabe destacar que a discussão feita a seguir é devedora dos estudos feitos por Richard Sorabji e Christian Wildberg (vide bibliografia). 20 . Segundo Aristóteles todos os corpos naturais estão sujeitos ao movimento com respeito ao lugar. 21 . Filopono, De aeternitate mundi contra Aristotelem, apud Simplício, in De caelo , 26,32–27,4, trad. Moerbeke, Ed. F. Bossier; Chr Vande Veire; G. Guldentops. ( Corpus Latinum Commentariorum in Aristotelem Graecorum ). Leuven: Leuven University Press, 2004, 36,83–94. As citações deste texto serão feitas doravante a partir da tradução para o português, ainda não publicada, feita por Matheus Henrique Gomes Monteiro, Thiago Henrique Rosales Marques, Tennessee Williams Monteiro Matos e por mim no interior do Grupo de Estudos sobre Philoponus Latinus: MONTEIRO, M. H. G.; MARQUES T. H. R., MATOS T. W. M. & ÉVORA, F., A relação entre natureza e os elementos segundo o De aeternitate mundi contra Aristotelem, de Filopono: tradução e comentários (no prelo). 22 . “Em sentido literal, tem-se “que não seja uma e mesma natureza dos mesmos movimentos”. Contudo, esta versão do texto leva a equívocos na

interpretação do argumento. Pois, neste caso, “natureza” significa, para Aristóteles, o princípio de movimento e repouso, que seria único e igual para diferentes corpos e seus respectivos movimentos, mas, tal como se escreveria em português, ficaria a impressão de que, na verdade, o termo significasse uma propriedade ou característica que possibilita reunir vários movimentos sob o mesmo gênero. Talvez a ambiguidade fosse intencional. Contudo, nós quisemos evitá-la, para preservar e destacar a validade do argumento” (nota dos tradutores Monteiro, Marques, Monteiro & Évora). 23 . “O verbo fero está no depoente, possibilitando dupla interpretação: ou o fogo e o ar são movidos pela sua própria natureza, ou esses corpos simples sofrem a ação de outro corpo ou de outro princípio motor (com ênfase na voz passiva). A primeira opção destaca o fato do movimento, que os corpos simples têm um movimento natural — o fogo e o ar, particularmente, um movimento retilíneo e para longe do centro, ou para cima. A segunda opção também expressa a ideia do movimento, porém sugere que, sendo os corpos passivos (eles “são carregados”), há um motor que os carrega. Essa ambiguidade pode estar relacionada a outras discussões de Filopono, como o papel do lugar natural na explicação do movimento natural. Além disso, Filopono tem uma discussão sobre o movimento dos elementos, sua causa e o lugar natural, mas isto é mais evidente em outros momentos” (nota dos tradutores, Monteiro, Marques, Monteiro & Évora). 24 . “ si diversi motus a diversis fiunt naturis, apokleroticum, id est exsortiale, utique erit quod non et eorundem motuum una et eadem sit natura : quoniam igitur terra et aqua ambo ad centrum moventur, eiusdem utique erunt nature et eiusdem speciei; similiter autem et ignis et aer ambo sursum lata” 25 . “terra et aqua, cum sint simplicia corpora et ad medium ambo ferantur, ab eadem utique natura movebuntur secundum Aristotilem; que autem ab eadem natura moventur, eiusdem nature et eiusdem speciei sunt; terra autem et aqua secundum hec eiusdem speciei sunt, quod quidem ait evidenter inconveniens esse, si vere hoc quidem siccum est hoc autem humidum” 26 . Nestes fragmentos, Filopono parece aceitar a tese aristotélica de que há duas magnitudes geometricamente simples: o círculo e a linha reta. Portanto, haveria os seguintes tipos de locomoções simples: a circular (em torno do centro), a retilínea para cima (a partir do centro) e a retilínea para baixo (em direção ao centro). 27 . “si que differentis nature sunt, sicut terra et aqua, contingit moveri eodem motu, cum oppositione ait convertens et que non eodem motu moventur nichil prohibet eiusdem nature esse; quare, quamuis celum quidem circulo moveatur, que autem sub luna recte, nichil prohibet eiusdem nature esse celum cum hiis que sub luna et similiter illis corruptibile”. Bibliografia primária Aristotle, Physics , A revised text with introduction and commentary by W.D. Ross, Oxford: Oxford University Press, 1998

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Para tanto, retomarei (I) brevemente alguns pontos de um artigo anterior sobre o tema (2017) ³ para, em seguida, dar prosseguimento ao estudo ali iniciado. Infelizmente, não será possível neste texto apresentar todos os argumentos necessários para dar início a esse debate com Landim. No entanto, espero que os que serão aqui expostos ao menos agucem sua curiosidade na expectativa dos argumentos restantes. Com efeito, três contextos argumentativos são relevantes para o exame da noção de atenção: (i) o tratamento psicofísico da atenção; (ii) as condições para a busca da verdade, no qual a atenção designa prima facie , uma modulação do pensar, que é relevante para o método; (iii) a explicação do caráter intencional do pensar humano, no qual a atenção é um aspecto do pensar concernente à seleção do conteúdo pensado no tempo presente ( presença ). Somente o segundo será considerado aqui. Após a retomada dos resultados anteriores, apresentarei indícios da relação ente a atenção e o conceito de intenção na história da filosofia que precede Descartes e, em seguida, farei uma breve análise das ocorrências do texto na obra cartesiana (II), Por fim, na seção (III), e passarei à análise daquelas ocorrências ligadas ao método do filósofo, tanto no que se refere à sua intervenção na determinação do critério de reconhecimento da verdade (a regra geral da verdade, ou regra do claro e do distinto), quanto no esclarecimento da via analítica do método de demonstração geométrico. I Em um artigo recente (2017), dei início a um estudo mais amplo sobre a noção de atenção na filosofia de Descartes, cujo objetivo geral é oferecer uma explicação para seu sentido e função nos argumentos cartesianos. Uma preocupação central desse estudo consiste em determinar o quanto essa explicação pode igualmente ser adequada à letra dos textos e não comprometer a dimensão justificacionista do projeto metafísico cartesiano, assegurando, por exemplo, o valor normativo (e não apenas descritivo) da regra geral da verdade. Com efeito, embora esse tema tenha sido objeto de muitos estudos recentes ⁴ , esse interesse resulta antes da confluência de duas linhas distintas e separadas de investigação: os estudos sobre a recepção da teoria aristotélica do conhecimento no que se refere à questão da necessidade de se introduzir um sentido agente na explicação do conhecimento ⁵ ; as pesquisas sobre a pré-história da psicologia cognitiva e da filosofia da mente, configurada nos textos filosóficos clássicos e focada na construção de epistemologias naturalizadas ⁶ . Nesse sentido, surgiram diversos trabalhos sobre essa noção nas filosofias do início da modernidade ⁷ e, em particular, sobre Descartes ⁸ . Eles deixam, portanto, intocado o problema de saber se e como a atenção pode fazer parte de um critério de reconhecimento da verdade, ou seja, de uma regra que se pretenda normativa no âmbito de um projeto justificacionista da ciência ⁹ , e não apenas uma regra descritiva de como efetivamente procedemos ao reconhecer ideias como elementos de juízos verdadeiros. Para evidenciar que a atenção é um elemento constitutivo do projeto justificacionista cartesiano, basta assinalar a relação entre atenção e

clareza, conceito que, juntamente com o de distinção, participa do enunciado da chamada Regra Geral da Verdade. Embora essa relação não seja tão explícita nas Meditações Metafísicas , como virá a ser na definição de clareza no art. 45 da primeira parte dos Princípios da Filosofia , ela pode ser identificada quando levamos em conta a relação entre os conceitos de evidência, clareza e distinção, certeza e dúvida. Sobre essa relação, Raul Landim (1992) é particularmente claro: “É considerado evidente um conhecimento (expresso em um juízo) indubitável. Um juízo é indubitável se as ideias que são os seus elementos constitutivos são claras e distintas” (p. 101) ¹⁰ . Por outro lado, contudo, a essa articulação de conceitos, Descartes acrescenta, nas Meditações , duas teses sobre a natureza da mente, das quais a noção de atenção também participa: 1. A mente humana é tal natureza que sua vontade, que é uma capacidade livre de afirmar e negar a verdade de uma ideia, não pode deixar de afirmar que uma ideia clara e distinta é verdadeira durante o tempo em que a mente a contempla. 2. A mente humana é de tal natureza que não pode manter a atenção fixada no mesmo objeto por muito tempo ¹¹ . Essas teses parecem apenas descrever o modo de funcionamento da nossa mente enquanto fluxo de pensamento submetido ao tempo em relação à verdade e em relação ao foco do pensamento. Elas parecem estar associadas a uma compreensão naturalizada da mente humana e, portanto, da atenção, inserindo-se aparentemente em um tratamento independente do problema da justificação da ciência. Esse problema é interpretado por R. Landim (2009) no quadro de uma filosofia da consciência. Como observa (p. 39) ¹² , se o predicado no enunciado Eu p designa um ato consciência, que é o ponto de partida da análise filosófica no caso das filosofias da consciência, esse ponto de partida, embora possa ser interpretado como desfrutando de um valor epistêmico privilegiado, põe um problema quanto à sua utilidade para a sequência da análise. Isso porque ele pode ser interpretado tanto como mera expressão de um estado mental do sujeito ao qual se refere ( Eu ), deixando de ter – como tal – valor cognitivo, quanto como descrição de um estado mental do sujeito. Nesse último caso, ainda que desempenhe uma função cognitiva, sua inquestionabilidade passa a ser problemática mesmo para o próprio sujeito. Qualquer que seja a solução para essa dificuldade, o ponto que me interessa assinalar é que em nenhum dos dois casos esse ponto partida parece ser suficiente para fundar uma regra normativa de reconhecimento da verdade: no primeiro caso, porque não tem valor cognitivo, mas expressivo; no segundo, seu valor cognitivo o transforma em ponto de partida de uma descrição mais geral e, eventualmente científica, de um universo de fenômenos, os fenômenos mentais. Ao final da Quinta Meditação ¹³ (AT VII, 69-70; IX, 55), porém, Descartes explicita o modo como essas duas teses participam do problema da justificação da ciência: qualquer que seja seu estatuto, ela são fundamentais para formular o problema da justificação, na medida em que suas

implicações limitantes para o nosso conhecimento devem ser superadas. Caberá ao conhecimento certo da veracidade divina estabelecer que tais limitações da nossa natureza não implicam que estamos destinados a ter apenas “vagas e inconstantes opiniões”, mas que nos é possível alcançar “uma ciência verdadeira e certa”. Reconhecendo essa importância, Landim busca contornar essas dificuldades com um exímio tratamento lógico-proposicional dos conceitos de consciência, consciência de si, ideia e juízo. Não obstante, ao fazê-lo, ele aponta a dificuldade de contemplar a função da noção de atenção, que perpassa muitos dos textos relevantes para sua análise. Com efeito, em 1992 ¹⁴ ele volta-se para esse problema (p. 102-103), notando que “se a atenção é um elemento essencial da clareza, a definição cartesiana não pode ser compreendida exclusivamente pelo seu caráter lógico/ Ela seria uma definição que os filósofos analíticos considerariam mentalista ou psicológica...” (p. 102). Sua proposta de solução para o que considera um problema, o autor aproxima a noção de atenção ao conceito de consciência, sugere que a primeira indica meramente a exigência de um ato reflexivo: “a atenção exprimiria apenas que o sujeito deve ser consciente , através de um ato de reflexão, da presença deste conteúdo par que ele possa ser considerado como claro”(p. 102). Essa solução parece-me evidenciar o reconhecimento de que o que é designado noção de atenção é resistente a um tratamento lógicoproposicional, estando destinada a ser recuperada na filosofia contemporânea somente no quadro de leituras fenomenológicas da filosofia cartesiana ¹⁵ . Se talvez essa tentativa de tradução seja mesmo inglória e desnecessária para a compreensão do cartesianismo e de sua capacidade de responder a objeções feitas a partir dos novos parâmetros da análise linguística, parece-me que uma tentativa de compreendê-la à luz da tarefa justificacionista das Meditações não é em vão e poderá, eventualmente, fornecer pistas para um futuro tratamento proposicional de seu aporte para a teoria cartesiana do conhecimento e da verdade ¹⁶ . No artigo mencionado (2017) ¹⁷ , as análises indicaram a necessidade de se distinguir entre dois conjuntos de textos na obra cartesiana cujas teses e argumentos fazem referência ou recorrem à noção de atenção de modo manifestamente relevante: (a) aqueles em que o autor a trata en physicien , ou seja como um fenômeno mental ligado à condição psicofísica do ser humano, para o qual é preciso oferecer explicações naturalizadas ¹⁸ ; (b) aqueles em que o autor a considera en métaphysicien , como um elemento explicativo de seus conceitos relativos ao conhecimento humano e sua fundamentação ¹⁹ . Essa distinção permite supor que o termo seja utilizado em sentidos distintos em cada uma desses abordagens, embora não tenha ainda obtidos razões suficientes que confirmem essa suposição. De qualquer modo, essa dupla abordagem não recobre exatamente a distinção entre filosofia primeira e filosofia segunda, ou entre metafísica e ciência no sentido contemporâneo. Isso porque, para Descartes, não é possível naturalizar completamente o tratamento da mente, como, por exemplo, em Espinosa. A mente é um objeto próprio e exclusivo da metafísica para Descartes. Os modos do pensamento estão, em certa

medida, submetidos às determinações da vontade livre e não podem, por isso, ser compreendidos inteiramente a partir de leis e regularidades. Essa impossibilidade, contudo, deve ser precisada, pois, em razão da união substancial, esses modos podem ser determinados pela ação do corpo. Não se trata aqui de justificar mais amplamente essa tese ²⁰ , mas utilizá-la para compreender melhor a distinção e as interações entre as abordagens en physicien e en métaphysicien . Esta última, considera o modo de funcionamento próprio do nosso pensamento enquanto atributo principal de uma substância realmente distinta do corpo (assumindo, sob esse aspecto, uma dimensão descritiva), mas também enquanto essa substância possui em si um poder intrínseco de se auto determinar (assumindo, sob esse aspecto, uma dimensão normativa). A abordagem en physicien , por sua vez, considera o modo de funcionamento próprio do nosso pensamento enquanto atributo principal de uma substância realmente unida ao corpo, assumindo, sob esse aspecto uma dimensão exclusivamente descritiva. Apoiando-me nessa distinção, introduzi a hipótese de que é possível atribuir à noção de atenção um sentido não meramente psicológico (e, portanto, descritivo e pertencente à explicação en physicien que considera a natureza psicofísica do ser humano), mas também metafísico (que considera exclusivamente a natureza pensante do ser humano) relacionando-a à dimensão temporal da substância pensante finita. Nesse segundo sentido, minha expectativa é ser capaz de caracterizar a atenção, em termos proposicionais, como o índice temporal de ideias e juízos. Assinalo que minha proposta é apoiada na interpretação de Jean-Marie Beyssade (1978, 1997), a qual, até onde eu saiba, é a única que objetiva mostrar que o fato dos conceitos epistemológicos cartesianos envolverem uma dimensão psicológica não vai de encontro ao projeto de fundamentar a ciência, mas, ao contrário, dá sentido a esse projeto. Segundo o autor, essa dimensão não implica qualquer consequência relativista, porque o sujeito cartesiano é, desde sempre, embora individual, marcado por características não idiossincráticas, e a atenção a que o filósofo se refere é aquela própria da temporalidade subjetiva, ou seja, de qualquer mente criada enquanto tal. Segundo sua leitura ²¹ , a tarefa da metafísica é determinar a possibilidade de se ultrapassar “o tempo natural do espírito”, marcado pelo ritmo da atenção e da distração, no qual a possibilidade de se revisar o valor de verdade de crenças tomadas como verdadeiras no passado não é destituída de sentido, para que se instaure o “tempo da ciência”, homogêneo e vetorial, no qual não é logicamente possível “que algum dia seja verdade que eu não tenha jamais existido, sendo verdade agora que eu existo” (AT VII, IX. 28). A determinação do valor de verdade de uma proposição, não obstante seu enraizamento na temporalidade psicológica, deve ser capaz, se é um marco na construção de uma ciência possível, de ser legitimamente destacada desse enraizamento e constituir um momento da série aberta e irreversível do tempo da ciência. Raul Landim (1992) ²² e Michael Della Rocca adotam uma perspectiva semelhante, embora mais restrita, ao considerar a dimensão temporal do problema enfrentado nas Meditações . Em seu livro, Landim procura

mostrar que a justificação da nossa pretensão a conhecer cientificamente as coisas envolve o estabelecimento de três teses acerca da evidência ²³ : (1) a constatação, através do cogito , de que clareza e distinção dessa percepção particular - e durante o tempo em que foi atual - “constrange o sujeito a aceitá-la como verdadeira”(p. 103); (2) a universalização da clareza e distinção, que os torna regra para o reconhecimento de toda e qualquer verdade; (3) a desvinculação da evidência em relação à demanda de atualidade, que marca o primeiro passo, determinando, assim, a estabilidade da evidência (cf. 103 et seq ). Em sua leitura, portanto, diferentemente da de Beyssade, a superação da dimensão temporal do nosso conhecimento constitui apenas uma das tarefas da metafísica, mas não a única ou a principal. Em um artigo recente (2005), Della Rocca, ao propor uma leitura para a solução cartesiana à objeção de circularidade, adota uma perspectiva semelhante, embora mais restrita, ao enfatizar a dimensão temporal da formulação mesma do problema enfrentado das Meditações . Ele procura mostrar que o problema da circularidade se põe apenas quando se considera, injustificadamente segundo ele, que a regra do claro e do distinto não tem – e não pode ter - força normativa antes de sua validação pela prova da existência de um Deus veraz. Para mostrar o equívoco dessa suposição, ele introduz uma compreensão de clareza e distinção totalmente independente de qualquer referência à atenção, mas – e o que é aqui mais relevante – ele defende, como J.-M. Beyssade (1978) e R. Landim (1992), que a regra requer justificação especificamente devido à restrição temporal do valor normativo de sua aplicação. Em sua leitura, o tempo constitui um fator bem mais relevante, mas ela não explora, como a de Beyssade, o impacto dessa relevância para a metafísica cartesiana como um todo. A hipótese que gostaria de apresentar vai, assim, na direção dessas interpretações, defendendo que cabe ao conceito de atenção marcar a restrição temporal na definição de clareza e, por consequência, na de distinção, de modo a caracterizar, senão completamente, ao menos em parte o problema da justificação da ciência. Se aceitamos que o ritmo da atenção e da distração não são apenas recursos estilísticos e literários usados por Descartes nas Meditações Metafísicas, mas constitui o ponto de partida da construção conceitual do problema a ser resolvido, a saber a legitimação da validade objetiva e normativa da regra de reconhecimento da verdade, então, proponho que a noção de atenção (e, consequentemente, de distração) tenha seu sentido especificado na sua relação com os conceitos cartesianos de duração e tempo em sua conexão com a mente humana. Sob essa perspectiva, a atenção não designaria primariamente um estado psicológico disposicional (indicando que a mente está disposta ao conhecimento), como propõe Tomás de Aquino, mas apenas poderia adquirir esse sentido na medida em que significaria a dimensão presente da duração da mente tomada como fluxo contínuo de pensamentos. E ela é condição de possibilidade do ato de conhecer um objeto enquanto tal, ou seja, enquanto uma unidade à qual – em princípio – mais de uma propriedade pode ser referida, para a mente na medida em que sua existência é determinada temporalmente. Esta dimensão explica a possibilidade de considerar um ponto desse fluxo, tomando-o como uma unidade que, mesmo que inclua

uma pluralidade de objetos pensados, referidos ou não ao presente, torna-os todos concomitantemente presentes à alma sob a forma do agora , e disponíveis para serem percorridos em diversas ordens e sentidos. II Em nenhum dos textos, contudo, a noção é definida ou tomada como objeto de reflexão, sendo sempre utilizada como se fosse uma noção cujo sentido dispensasse explicação ou definição. Ela não é, porém, mencionada como um dos conceitos que não podem ser definidos na medida em que são condição de possibilidade de outros conceitos, como ocorre com o caso do conceito de verdade (AT IX, 225-226; AT II, 596-598). Essa situação levou-me a supor que o uso corrente e desacompanhado de tratamento formal por parte de Descartes era indício de que o autor o estava empregando como um termo pertencente ao vocabulário filosófico comum da época. Duas investigações se impuseram a partir de então. Por um lado, foi preciso analisar de modo mais detalhado as ocorrências do termo e seus cognatos com vistas a circunscrever com mais clareza, para além do tipo de abordagem com que a noção é tratada, as questões em que é chamada a intervir. Este artigo apresenta o resultado parcial desse estudo, mostrando que suas ocorrências colocam essa noção em relação direta com o tratamento de dois problemas em princípio distintos: o da determinação das condições do valor e da dimensão representativa ou de certos modos da substância pensante (as ideias), que é um problema de natureza semântica, e o da determinação do valor probante da via analítica de demonstrar, que é um problema de natureza metodológica e, portanto, epistêmica. Por outro lado, foi preciso buscar retraçar, ao menos de modo preliminar e breve, uma história do uso do conceito de atenção na filosofia. Se no artigo anterior, as posições de Aristóteles, Tomás de Aquino e outros autores ligados à recepção latina do aristotelismo foram rapidamente mencionados, foi preciso examinar o tratamento agostiniano da atenção e sua influência nos autores medievais latinos. Esse estudo revela que, que o uso do termo ‘ attentio’ guarda importantes relações com o uso do termo ‘ intentio ’, participando, portanto, de algumas das teorias da intencionalidade examinadas (em particular as de Agostinho ²⁴ , Pedro de Olivi ²⁵ e Francisco Suárez ²⁶ ). Esse breve percurso pelo uso do termo na história da filosofia sugere que, no caso da participação da noção de atenção na teoria cartesiana da representação, ela está inserida em uma tradição conhecida de seus interlocutores, o que lhe autorizaria a usá-la como parte do vocabulário filosófico comum de sua época. Nesse sentido, os leitores de Descartes que tivessem algum conhecimento das teorias envolvidas nesse debate de modo algum estranhariam o apelo à noção de atenção como condição do conhecimento, embora a ocorrência exclusiva do termo ‘ attentio’ e a ausência do termo ‘ intentio’ ²⁷ pudesse causar alguma surpresa. De qualquer modo, seus interlocutores não teriam dificuldade em associar essa noção ao problema dos limites de uma explicação diádica ou bifurcada da intencionalidade ( intentio ), quer no contexto de uma concepção do conhecimento como receptividade, quer no contexto de uma concepção do

conhecimento como pura atividade. Eles estariam também familiarizados com os problemas que o fenômeno que hoje chamamos de atenção seletiva traz para essas teorias psicológicas do conhecimento, no sentido aristotélico e não contemporâneo do termo ²⁸ . Torna-se plausível, assim, que Descartes supusesse que seus leitores compreenderiam o que ele queria dizer quando empregasse o termo “ attentio ” / “ attention ”. A análise mais detalhada das ocorrências do termo ‘atenção’ e suas variantes mostra que, muitas vezes, a ocorrência do termo pode ser tratada de modo não técnico como parte de uma recomendação genérica de que uma certa atitude e disciplina é necessária quando se trata de considerar questões filosóficas, sejam elas teóricas ou práticas ²⁹ . Ainda assim, outras ocorrências expressam claramente um uso filosoficamente relevante, o que indica que ele designa uma noção que deve compor o entendimento mesmo da filosofia cartesiana. Se excluímos a participação explícita do vocábulo ‘atenção’ e seus cognatos na definição do conceito de intuição nas Regras ³⁰ , por ocorrer em uma obra que permaneceu incompleta e inédita ao longo da vida de Descartes, e as passagens ligadas ao tratamento psicofísico da atenção ( en physicien ) ³¹ , são as Meditações , juntamente com as Objeções e Respostas, o artigo 45 da primeira parte dos Princípios da Filosofia ³² e algumas cartas que evidenciam a importância que Descartes reconhece à atenção em ao menos dois contextos distintos, embora relacionados: as discussões sobre as condições necessárias à busca da verdade (método) e os argumentos sobre as relações entre a atividade humana de pensar e a temporalidade. Podemos listar agora os seguintes contextos argumentativos em que a noção de atenção desempenha papel relevante, além da formulação mesma do problema da justificação da ciência já mencionado e as respostas cartesianas ao chamado problema do círculo ³³ apresentado por seus interlocutores como objeção à sua solução ³⁴ : Definição do conceito de clareza ³⁵ ; Caracterização da via analítica de demonstrar ³⁶ ; Distinção entre o ato de abstrair e o de distinguir, que é fundamental para o estabelecimento da tese do dualismo de atributos ³⁷ ; Teoria das ideias inatas ³⁸ . Nesses contextos, observa-se distribuição de formas gramaticais diferentes: nas passagens relativas ao problema do método, observa-se sobretudo o uso das formas adverbiais, adjetivas e verbais, ao passo que, nas demais, sobressai a forma substantiva , a atenção , que é sujeito de considerações por parte do autor. A função adjetiva qualifica a mente ou algum de seus estados. Ela indica uma atitude ou disposição da alma, estar atenta , a qual está associada tanto a uma certa forma de pensar, atentamente (uso adverbial) ou atentar / prestar a atenção (uso verbal) ³⁹ , quanto à característica dos modos da alma produzidos quando a alma se encontra nessa nesse estado psicológico disposicional (indicando que a mente está disposta a ou pronta para

conhecer). A função adverbial é utilizada para qualificar o próprio pensar e seus atos e, sem ser propriamente um modo ou maneira de pensar, designa primariamente uma espécie de modulação ⁴⁰ desses atos, que pode sofrer variações de graus ⁴¹ . Essa modulação é frequentemente apresentada por Descartes como uma condição diretamente relacionada à dimensão epistêmica do nosso pensamento. Em muitas de suas respostas às objeções e críticas que recebeu, mas não apenas nessas circunstâncias, ele insiste que se não consideramos algo ou um argumento atentamente , não compreenderemos bem esse algo ⁴² , nem o argumento ⁴³ , de tal modo que ela atravessa muitos de seus textos voltados para a questão do método. A atenção como modulação do pensar está relacionada ao que, no método cartesiano, funda-se em sua teoria do conhecimento e em sua fundamentação metafísica, na convergência das teses do dualismo substancial entre mente e corpo e da natureza humana como sendo união substancial entre mente e corpo. Nas variantes acima mencionadas, a atenção é uma modulação voluntária do pensar, necessária à busca da verdade para que evitemos que nossa razão seja distraída pelos preconceitos dos sentidos, ou seja, pela ação do corpo sobre a mente, e se concentre no objeto investigado. No entanto, sabemos pelo tratamento en physicien que Descartes dedica à atenção que essa não é apenas determinada pela vontade, mas também por condições e/ou processos fisiológicos , automáticos e explicados por causalidades estritamente mecânicas, ou bem de estados intencionais não voluntários , como as percepções sensíveis e as paixões e as memórias que também têm origem no corpo ⁴⁴ . No âmbito de sua relação com o corpo, a atenção está associada aos movimentos que a glândula pineal pode receber dos - ou imprimir aos - espíritos animais. Além disso, Descartes, ainda en physicien , examina e explica os mecanismos passionais que exercem influência sobre a atenção, distraindo-a, bem como estabelece os limites e o poder da vontade para que possamos comandar o nosso pensar e construir novos hábitos que favoreçam esse comando.  Sua concepção de atenção enquanto modulação do pensar não é, portanto, nem exclusivamente exógena , ou seja, regida apenas por princípios externos à mente, nem exclusivamente endógena , isto é, governada pela vontade. E é justamente por ser suscetível a esses dois tipos de princípios que a atenção se torna um elemento chave do método cartesiano ⁴⁵ . No contexto específico dos textos metodológicos, pensar atentamente em algo, estar atento a algo significa, através de nossa vontade, controlar nossa atenção nesse algo, não deixando que ela se desvie, ou seja, fazendo com que mente aja sobre o corpo evitando a influência da ação do corpo sobre ela. Em outros termos, o sentido do termo ‘atenção, em suas variantes verbais, adverbiais e adjetivas, supõe, como já assinalado, o esclarecimento do sentido do termo quando usado exclusivamente na forma substantiva. Nesse sentido, o uso metodológico da noção de atenção é tributário da teoria psicofísica de Descartes e do que, no século XVII, é considerado psicologia, ou seja, metafísica da mente e suas operações, inclusive as

cognitivas e pode ser comparada com as demais teorias contemporâneas a Descartes e a de seus predecessores. É também nessa medida que pode, extemporaneamente, ser aproximado do que hoje chamamos de neuropsicologia, em razão do tipo de explicação mecânico-fisiológica que ele propõe para os fenômenos cerebrais que interferem, de diferentes maneiras, em estados mentais. Mas essas aproximações não esgotam o papel da atenção na filosofia de Descartes, pois as teses em que se apoiam servem apenas para determinar os limites nos quais a nossa vontade pode se exercer. O sentido específico que a atenção adquire nos textos metodológicos, considerada tão-somente em sua dependência da livre vontade humana, possui dimensão normativa e as formulações de que participa não podem ser interpretadas apenas em sentido descritivoexplicativo. O uso metodológico, e a significação com que aí é empregado, não é o único que encontramos na obra cartesiana para o termo ‘atenção’ e seus cognatos. Mais ainda, quando compreendido no quadro das relações entre a mente e o corpo, ele se mostra derivado de condições relativas ao conteúdo desses atos de pensar para que o preceito metodológico tenha algum valor epistemológico: pois, se faz algum sentido afirmar que devemos prestar atenção quando buscamos a verdade, é apenas na medida em que aquilo a que  devemos estar atentos é relevante para essa busca e, portanto, submetido à aplicação de algum critério de seleção epistêmica ⁴⁶ . Se as formas adjetivas e adverbiais designam, prima facie , uma certa modalização ou qualificação do pensar (como pensar – mais ou menos – atentamente ou estar – mais ou menos – atento ), é apenas na medida em que tal modalização pode ser traduzida em termos do uso substantivo do termo atenção, como uma forma de indicador dos conteúdos pensados e associada à aplicação de algum critério de seleção epistêmica Por isso, a compreensão da função metodológica da atenção depende da elucidação do aporte que o uso dessa noção traz ao conceito de pensar e, do ponto de vista das ocorrências, da elucidação da significação do uso da forma substantiva: pensar atentamente significa pensar em algo de tal modo que a nossa atenção seja determinada a dirigir-se para esse algo. Chamo esse segundo uso de semântico-epistêmico porque ele opera na construção do conceito cartesiano de pensar, e consequentemente de conhecer, embora o faça de modo menos manifesto do que os demais componentes desse conceito. E será o exame da função da noção de atenção nesse contexto que nos permitirá compreender seu emprego nas passagens em que Descartes formula o problema metafísico da justificação da ciência. Para proceder de forma regressiva, porém, vou começar por examinar a função da atenção no método cartesiano. III Dois contextos são particularmente relevantes para esse exame: a definição de clareza no artigo 45 da primeira parte dos Princípios da Filosofia e a explicação apresentada por Descartes, nas Respostas às Segundas Objeções sobre o que entende por método de demonstrar e, em particular, o que chama de via analítica.

A definição de clareza Como havia comentado, as Meditações caracterizam explicitamente a clareza pela atenção e, portanto, não oferece indícios suplementares de que sua noção de clareza deva ser entendida em termos meramente psicológicos e disposicionais, variando de indivíduo para indivíduo. Ainda assim, foi assim que muitos de seus interlocutores interpretaram o apelo à clareza e à distinção em seu critério de reconhecimento da verdade e, muito antes de seus críticos ligados à análise linguística, fizeram fortes objeções à proposta cartesiana ⁴⁷ . Gassendi ⁴⁸ , em particular, apresenta uma série de quatro argumentos contra a regra cartesiana, que amplificam e desenvolvem o problema de atribuir força normativa a um princípio que parece apenas constatar uma característica humana que, como tal não faz problema e, portanto, segundo Gassendi não demanda grande esforço de confirmação. A dificuldade, diz o objetor, surge quando consideramos que esse princípio, justamente por enunciar uma característica da natureza humana, está na raiz de divergências radicais não apenas entre os seres humanos, mas entre as diversas crenças que podemos assumir ao longo do tempo. Essa reação tão imediata e forte à dimensão aparentemente psicológica e, mais ainda, relativista do critério cartesiano, por envolver o que parece ser uma mera atitude ou disposição pessoal, como a atenção, e o modo como Descartes responde aos seus objetores torna ainda mais surpreendente que ele tenha decidido reiterar, agora explicitamente, essa articulação nas definições de clareza e distinção que apresenta nos Princípios de Filosofia , ao invés da relação entre o critério e os procedimentos utilizados nas Meditações : Chamo clara a [percepção] que é presente e aparente a uma mente atenta; assim como dizemos que são vistos claramente por nós os objetos que, presentes à visão do olho, movem-no bastante fortemente e abertamente. Chamo distinta, por sua vez, aquela que, além de ser clara, é tão precisa e separada das outras que não contém em si absolutamente mais nada além do que aparece claramente a quem lhe considera como se deve. ( Princípios I, art. 45) ⁴⁹ Essa definição embora não pareça à primeira vista, retoma a definição de intuição contida na Regra III ⁵⁰ , formalizando o papel que a noção de atenção desempenha informalmente em muitos de seus argumentos e a traz explicitamente para o centro de sua filosofia. Se a regra da clareza e distinção é a marca da racionalidade para Descartes, o critério que deve orientar a razão na busca pela verdade, então, esse artigo da primeira parte dos Princípios da Filosofia associa o destino do projeto cartesiano ao destino da noção de atenção. Com efeito, se uma percepção somente pode ser considerada distinta se for clara ⁵¹ , e se uma percepção somente pode ser considerada clara para uma mente atenta , então, com essa definição, a racionalidade cartesiana parece abrir de novo o flanco para a teimosia dos que defendem sua opinião com paixão (como lhe objeta Hobbes, AT VII, 191-192; IX, 149) e para que os ímpios professem sua fé livremente, na medida em que sua convicção parece ser suficiente para lhes assegurar a verdade de suas crenças (como lhe objetam os autores das Segundas Objeções, AT IX, 100; VI, 126).

Deve-se assinalar, contudo, que a definição não caracteriza a clareza apenas pela atenção do sujeito pensante. Como observa corretamente Ethel Rocha (2013) ⁵² , ela depende “também de seu conteúdo estar disponível à atenção da mente” (p. 361) ⁵³ e, portanto, de condições objetivas. O exemplo que ilustra a definição enfatiza esse aspecto, ressaltando que a mera presença de objetos em nosso campo de visão, embora evidentemente necessária, não é suficiente para explicar que os vejamos. É ainda preciso que esses objetos ajam sobre nossos olhos, movendo-os com suficiente força e impacto ⁵⁴ . A determinação do que significa essa contrapartida para o caso da percepção em geral, que está associada à função dos adjetivos ‘ aperta ’, em latim, e ‘ manifeste ’, em francês, (traduzidos por mim por ‘ aparente’ ) é tratada nos artigos 70 e 75-76 das Paixões da Alma . Ainda assim, a noção de atenção desempenha um papel fundamental, pois ela designa a condição subjetiva da clareza de uma percepção qualquer: retirado o adjetivo ‘atento’ da definição, a clareza das percepções seria única e exclusivamente função da presença dos objetos e da força com que eles agem sobre nossa mente ⁵⁵ . A via analítica do método Nessa conhecida passagem das Respostas às Segundas Objeções , Descartes apresenta sua concepção de método geométrico, distinguindo entre a ordem e a maneira de demonstrar, a qual, por sua vez, é dupla: por análise ou resolução, ou por síntese ou composição. Sem querer retomar em detalhe essa importante doutrina cartesiana ⁵⁶ , assinalo apenas a menção à atenção como uma das diferenças entre as forças probantes da demonstração por análise e da demonstração por síntese: A análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta [...], de sorte que, se o leitor quiser segui-la e atentar suficientemente a tudo o que contém [ ad omnia satis attendere ], não entenderá menos perfeitamente a coisa assim demonstrada e não a tornará menos sua do que se ele próprio a houvesse descoberto. Mas tal espécie de demonstração não é capaz de convencer os leitores teimosos ou pouco atentos [ minus attentum ]: pois se não se atenta [ non advertatur ], a todas as coisas que ela propõe, por menor que seja, não será manifesta a necessidade de suas conclusões. Muitas mal são mencionadas, embora sejam comumente as que se deve mais levar em conta, pois são perspícuas a quem se lhes atente ⁵⁷ . [...] A síntese, ao contrário, por um caminho todo diverso, [...] demostra, na verdade, claramente o que está contido em suas conclusões, [...] para que, caso lhe neguem algumas consequências, mostre como elas se contém nos antecedentes, de modo a arrancar o consentimento do leitor, por mais obstinado e teimoso que seja; mas não dá, como a outra, inteira satisfação aos espíritos dos que desejam aprender, porque não ensina o método pelo qual a coisa foi descoberta. (AT VII, 155-156; IX, 121-122) A atenção aparece, portanto, como condição do caráter probante apenas da análise. Será dito, mais adiante, que é mesmo quase desnecessária no caso da síntese, a qual, não apresenta qualquer dificuldade, “exceto a de deduzir

devidamente as consequências, o que que pode ser feito por pessoas de toda espécie, mesmo os menos atentos” desde e que que se recordem apenas das coisas precedentes” e que não haja dificuldades quanto à aceitação das noções primeiras. A explicação cartesiana da análise retoma a caracterização da dedução, tal como ela é apresentada na Regra III: […] o que se conclui necessariamente de outras coisas conhecidas com certeza [...] por um movimento contínuo e ininterrupto do pensamento, que intui nitidamente cada coisa em particular : eis o único modo de sabermos que o último elo de uma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo que não aprendamos intuitivamente num só e mesmo olhar o conjunto dos elos intermédios, de que depende a ligação; basta que os tenhamos examinado sucessivamente e que nos lembremos que, do primeiro ao último, cada um deles está ligado aos seus vizinhos imediatos. (AT X, 369-370). No entanto, observa-se uma importante diferença entre as duas obras: enquanto nas Regras, Descartes afirma a necessidade da intervenção da memória para a certeza das conclusões em geral ⁵⁸ , nas Respostas às Segundas Objeções , essa intervenção é dita ser requerida apenas para o caso das demonstrações pela via sintética: “...[supondo que aceitação das primeiras noções] não apresenta qualquer dificuldade, exceto a de tirar bem as consequências, o que pode ser feito por pessoas de toda espécie, desde que se recordem apenas das coisas precedentes” (AT VII,156-157; IX, 122; grifos meus). Mais ainda, os elementos que compõem essa via (definições, axiomas, teoremas, problemas, etc...) têm sua função associada às exigências da memória ⁵⁹ . Sob esse aspecto, a distinção entre as condições do caráter probante das vias analítica e sintética apoia-se na diferença entre as funções epistêmicas da atenção e da memória. Pois, se a tese de que a necessidade da conclusão não pode ser apreendida senão quando conhecemos que – e como - ela está conectada à primeira premissa é preservada, as condições epistêmicas que nos permitem sabê-lo são distinguidas: na análise, “o conjunto dos elos intermédios, de que depende a ligação” é apreendido coletivamente por um único ato de atenção ou, ao menos, distributivamente, um por um em sua relação com o anterior por um movimento contínuo e ininterrupto da atenção; ao passo que, na síntese, a intervenção da memória é suficiente para que a necessidade desta se torne manifesta, mesmo que torne presente de modo inatual cada elo da cadeia dedutiva, sendo necessária apenas a apreensão, “num só e mesmo olhar”. Apesar da aparente vantagem pedagógica e argumentativa da síntese, é a via analítica que Descartes defende como sendo a maneira de demonstrar “mais verdadeira” e “mais própria a ensinar”, sobretudo no que se refere à metafísica (AT VII, 156; IX, 122). Ele alega que, particularmente nesse caso, não estão dadas as condições necessárias para a demonstração sintética, pois, para tanto, é preciso que as primeiras noções sejam não apenas claras, mas também facilmente admitidas por todos. Pois há essa diferença, que as primeiras noções supostas para demonstrar as proposições geométricas, estando de acordo com os sentidos, são facilmente aceitas por cada qual. [...]. Mas, ao contrário, no atinente às

questões que pertencem à Metafísica, a principal dificuldade é conceber clara e distintamente as noções primeiras... (AT VII, 156-157; IX, 122-123) A introdução dessa condição é surpreendente, pois parece se superpor à clareza que, juntamente com a distinção, são os únicos atributos explicitamente associados à evidência nas obras cartesianas. “Ser facilmente admitida” não é uma expressão explicitamente tratada por Descartes nem nessa passagem, nem, ao que eu saiba, em outro lugar de sua obra. Todavia, ele a associa a uma outra característica: “estar de acordo com os sentidos”. Mencionada en passant na explicação da inadequação da via sintética para demonstrações metafísicas, ela é melhor desenvolvida na explicação das vantagens da via analítica: Mas ao contrário, no atinente às questões que pertencem à Metafísica, a principal dificuldade é conceber clara e distintamente as noções primeiras. Pois, ainda que por sua natureza não sejam menos claras, sendo mesmo muitas vezes mais claras do que as consideradas pelos geômetras, não obstante, posto que parecem não acordar com muitos prejuízos que recebemos através dos sentidos, e aos quais nos habituamos desde a infância, são perfeitamente compreendidas apenas pelos que são muito atentos [ valde attentis ] e se empenham em apartar, tanto quanto podem, o espírito do comércio dos sentidos, eis por que, se as propuséssemos, seriam facilmente negadas por aqueles cujo espírito é propenso à contradição. (AT VII, 156-157; IX, 122-123) As primeiras noções da metafísica são, portanto, tão ou, por vezes, mais claras que as da Geometria, mas não são “facilmente admitidas por todos” porque parecem divergir de preconceitos que, desde a nossa infância, habituamo-nos a receber dos sentidos. Essa, por sua vez, é uma tese cartesiana recorrente em sua filosofia, desde suas primeiras obras. Assim, é preciso um esforço metodológico para combater esses preconceitos de modo que eles não nos impeçam de admitir essas noções, o que na passagem, é tratado como concebê-las clara e distintamente. O adjetivo ‘atento’ ocorre nessas passagens em um terceiro sentido derivado do que apontamos inicialmente acima, pois qualifica o indivíduo que pensa, e não algum de seus estados ou atos: Descartes se refere a pessoas pouco atentas e bastante atentas. Destarte, revela-se a segunda função metodológica: ela é requerida não apenas para a apreensão da necessidade da conclusão, mas também para a percepção clara e distinta das noções primeiras da metafísica, isto é, daquelas que não se acordam com o que acreditamos ser estabelecido pelos sentidos ⁶⁰ . A noção de atenção revela-se, assim, intimamente relacionada ao método cartesiano, o que desfaz o caráter excepcional de sua intervenção nas definições de intuição e de dedução, nas Regras , e de clareza, nos Princípios . Ademais, o esclarecimento da função que lhe é atribuída para o estabelecimento do caráter probante da análise mostra, também, que as inúmeras passagens onde Descartes alega que seus argumentos metafísicos não foram compreendidos por falta de atenção do leitor não são apenas um recurso retórico para se eximir de fornecer explicações suplementares, mas uma posição consistente e coerente com sua concepção acerca da maneira apropriada de argumentar em metafísica.

1 . LANDIM, R. Sobre a verdade.  Síntese , v. 20, n. 63, pp. 459-475, 1993. Revisado e republicado in:  Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento . Coleção “Philosophia”. São Paulo: Discurso Editorial, pp. 35-62, 2009.  2 . LANDIM, R.  Evidência e verdade no sistema cartesiano . São Paulo: Ed. Loyola, 1992. 3 . LEVY, Lia. Notas sobre o conceito de atenção em Descartes.  Modernos & Contemporâneos , v. 1, n. 2, pp. 46-56, 2017. 4 . Cf. S. Watlz (2011). 5 . Cf. Pasnau (1997); D. Perler (2003), T. Aho (2007), C. Leijenhorst (2008), J. Toivanem (2009), J. F. Silva e J. Toivanem (2010), P. Corkum (2010), L. F. Silva & M. Yrjönsuuri (2014), J. P. Tellkamp (2012) entre outros. No caso particular de Descartes, ver C. Wee (2014). 6 . G. Hatfield (1995), C. McMahon (2007). 7 . O número 171/1 (2017) da revista Études Philosophiques é dedicado à publicação das comunicações apresentadas no Colóquio Internacional Conceptions et usages de l’attention au XVIIe siècle , em 2014 na cidade de Liège, e que reuniu especialistas na filosofia do período de diferentes tradições interpretativas. Cf. ainda S. Peppers-Bates (2005), D. Simonetta (2013) e C. Santinelli, 2018. 8 . Cf. os trabalhos de G. Hatfield (1992, 1995, 2000, 2007, 2017), que vem desenvolvendo pesquisas sobre a psicologia cartesiana sob a perspectiva de suas eventuais relações com teorias atuais sobre o funcionamento do mental. Cf. ainda D. Brown (2007), que compara as teorias cartesianas e agostinianas sobre a atenção, examinando, assim como T. Barrier (2017), o modo como as paixões, em especial a admiratio , podem determinar a atenção; O. Dubouclez (2017), que mostra como o tratamento da atenção em Descartes, Espinosa e Clauberg enraíza-se no debate medieval sobre a possibilidade de pensarmos em mais de uma coisa de uma vez. Cf. ainda C. Wee (2014). 9 . Cabe mencionar aqui o artigo de L. Newman (2015) que avança nessa direção ao procurar oferecer uma linha de solução para tratar do problema da compatibilidade entre as teses cartesianas de que a vontade não pode não afirmar percepções claras e distintas impossibilita não afirmar sua verdade, e a de que nossos juízos são frutos de uma vontade livre porque indeterminada. Ele defende que a teoria do juízo de Descartes envolve o que ele chama de voluntarismo indireto , segundo o qual a vontade possui duas funções distintas, embora relacionadas: a função atencional, mais fundamental, que direciona a atenção da mente para determinados conteúdos (razões ou percepções), e a função doxástica, secundária e dependente da primeira e das percepções sobre as quais recai nossa atenção, responsável pela ocorrência dos três estados doxásticos (afirmação, negação e suspensão do juízo).

10 . LANDIM, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Ed. Loyola, 1992. 11 . Para ocorrências das teses mencionadas, cf. Quarta Meditação (AT IX, 46-47; VII, 58-59), Quinta Meditação (AT VII, 65 e 69), Carta a Clerserlier (Respostas às Instâncias de Gassendi), Entrevista com Burman , texto 65 (ed. J.-M. Beyssade, 146; AT V, 178), Carta a Regius de 24 de maio de 1640 (AT III, 64-65) e Carta a Mesland de 2 de maio de 1644 (AT IV, 110-111 e 116-117), Carta a Elisabeth de 15 de maio de 1645, entre outros. Todas as citações às obras de Descartes serão acompanhadas de referência à edição de C. Adam e P. Tannery, abreviadas por AT, seguida do volume, em algarismos romanos, e da página, em algarismos arábicos. 12 .  LANDIM, R.  Evidência e verdade no sistema cartesiano . São Paulo: Ed. Loyola, 1992.  13 . (AT VII, 69-70; IX, 55). Formulações equivalentes encontram-se nas Respostas às Quartas Objeções , no art. 13 da primeira parte dos Princípios (AT VIII, 9-10; IX, 30-31), e na Carta a Mesland de 2 de maio de 1644 (AT IV, 110-111 e 116-117). 14 . LANDIM, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano . São Paulo: Ed. Loyola, 1992. 15 . Ver, por exemplo, as Méditations Cartésiennes de Husserl (1929; ), a conferência de Paul Ricoeur, Étude phénoménologique de l’attention et de ses connexions philosophiques (1939; ) e a interpretação de Michel Henry do cogito cartesiano em Généologie de la psychanalyse (1985). 16 . Nesse caso, será preciso averiguar, em outro momento, as relações entre atenção e consciência. 17 . LEVY, Lia. Notas sobre o conceito de atenção em Descartes. Modernos & Contemporâneos , v. 1, n. 2, pp. 46-56, 2017. 18 . Tratado do Homem , Compêndio de Música , Discurso do Método V, a Dióptrica , Sexta Meditação , Princípios da Filosofia I e IV e as Paixões da Alma . Esse tratamento faz convergir as seguintes ordens de considerações cartesianas: (a) sua metafísica (ao envolver suas concepções de dualismo substancial e união substancial para a explicação da natureza humana), (b) sua física (mais precisamente, sua ótica e sua teoria da percepção sensível naquilo em que ela depende do corpo); (c) sua “fisiologia” (ou ainda, sua teoria das relações possíveis entre o corpo humano e a mente humana). Ver ainda as Cartas a Mersenne de 1629, de 8 de outubro (AT I, 27) e de 18 de dezembro (AT I, 87). Sobre esse aspecto do tratamento cartesiano da atenção, cf. em especial Gary Hatfield (1992, 1995, 2000, 2007, 2017), Deborah Brown (2007), Cees Leijenhorst (2008).

19 . Regras para Direção do Espírito, Discurso do Método IV, Meditações Metafisicas , em particular a segunda, a terceira e a quarta; as Objeções e Respostas que acompanham as Meditações (aí incluídas aquelas discutidas por correspondência, mas que não vieram a ser publicadas juntamente com a obra) , Princípios da Filosofia I, a Busca da verdade e a Conversa com Burman . 20 . Aponto apenas que, aceitando-se essa tese, o que poderíamos, de modo impróprio e apenas por analogia, chamar de psicologia cartesiana leva-nos sempre à sua metafísica. Para uma posição distinta, ver artigos de Gary Hatflied citados na nota anterior. Esse autor vem desenvolvendo senão a tese contrária, ao menos argumentos para qualificar essa afirmação e tem sido a principal referência no que seria psicologia cartesiana, entendida como uma ciência de fenômenos psicofísicos. Ele afirma, com razão, que Descartes trata a mente como natural no sentido em que esse adjetivo era compreendido no XVII, que não se reduz de modo algum corporal e que se opõe, antes, a sobrenatural. Mesmo concedendo esse ponto, que me parece correto, a tese de que a vontade, enquanto um princípio de ação intencional, é livre, isto é, absolutamente capaz de autodeterminação, restringe a extensão dessa naturalização ao domínio dos fenômenos ligados à união substancial, que é, ao fim e ao cabo, o ponto central para Hatfield. 21 . Cf. J.-M. Beyssade (1978), pp. 5-9; 25-28; 143-150; 196-201; 339-358. 22 . LANDIM, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Ed. Loyola, 1992.  23 . Observo en passant que compreendo a evidência como um conceito ao registro da ideia e não do juízo, como sugere R. Landim (1992), mas esse ponto não é relevante para este artigo e precisa ser mais detalhadamente justificado do que posso fazer aqui. 24 . De musica , De quantitate animae e De Trinitate (Livro XI), obra na qual encontra-se a versão mais completa de que ‘atenção’ (‘ attentio ’), enquanto termo intercambiável com ‘ intentio ’, é introduzida como um conceito constitutivo da teoria do conhecimento, em particular de sua explicação da intencionalidade sensível. A esse respeito, cf. O Daily (1987), V. Caston (2001) e D. Brown (2007). 25 . Cf. em especial II Sent . q. 72; Ill, 9. Sobre a tradução de “ aspectus ”, por “atenção”, cf. L. Spruit (1994, 216 n.184). Ver ainda R. Pasnau (1997) e F. Silva e J. Toivanen (2010). 26 . Cf. em Commentaria una cum quaestionibus in libros Aristotelis De anima , Disp. 5, q. 4. Ver ainda L. Spruit (1995), T. Aho (2007) e J. P. Tellkamp (2012), S. Knuutikla (2016). 27 . A análise das poucas ocorrências desse termo na obra de Descartes sugere que o termo ‘intentio ’/’ intention ’ não designa um conceito na filosofia de Descartes. É verdade que, em algumas ocorrências, ele deve ser associado ao sentido semântico próprio ao debate escolástico (cf. Carta de a Mersenne de 19 de junho de 1639; Carta a Mersenne de 28 de outubro de 1640, AT III, 206; a Mersenne de 18 de março de 1641, AT III, 597; Carta a

Gibieuf de 19 de janeiro de 1642; AT III, 473; Carta a Elizabeth de 1 de fevereiro de 1643; AT V, 613; Carta a Mersenne em setembro de 1647, AT V, 76), sendo mesmo substituído pelo termo ‘ significatio ’. Da mesma forma, em outras ocorrências, é utilizado para designar o que é visado pela ação de um agente (cf. Paixões da Alma , art. 193; AT XI, 474); em outras ainda, à expressão ‘espécies intencionais ’ (cf. Dióptrica I, AT VI, 85; Respostas às Quartas Objeções , AT VII, 249, IX 192; Respostas às Sextas Objeções , AT VII, IX 236-237; Carta a Plempius de 3 de outubro de 1637, AT I, 418; Carta a Mersenne de 30 de julho de 1640; AT III, 128). Esse uso sugere que Descartes estava, como era de se esperar dada sua formação, perfeitamente familiarizado com os diferentes sentidos com que o termo era empregado nos debates e teorias escolásticos, mas me parece insuficiente para sua inclusão no quadro conceitual próprio ao filósofo. Uma ocorrência, contudo, merece ser assinalada, embora não possa ser aqui analisada, por associar o exercício de um ato intencional à possibilidade de que ele seja ignorado pelo agente. Ao explicar, no terceiro discurso da Dióptrica (AT VI, 108), o que se passa em nosso olho quando fixamos nosso olhar em uma coisa qualquer, Descartes afirma que “este movimento deve ser chamado voluntário, não obstante seja ordinariamente ignorado daqueles que o fazem , pois não deixa, por isso, de ser dependente e seguir-se da vontade que eles têm de ver bem”, de tal modo que o humor vítreo torna-se “ora mais arqueado, ora mais achatado segundo a intenção que se tem de ver objetos próximos ou afastados.” (grifos meus). 28 . Sobre o tratamento desse tema nos séculos XV a XVII, cf. C. Leijenhorst (2007). 29 . Assim, por exemplo, Discurso do Método , p. VI (AT VI, 750) e em duas Cartas a Plempius de 3 de outubro de 1637 onde afirma que sua Geometria , bem como sua Dióptrica , demanda leitores laboriosos, engenhosos e atentos (AT I, 411 e 422; grifo meu), e na resposta de Descartes a Mersenne de 18 de fevereiro de 1641, onde, referindo-se a algumas teses e demonstrações de Hobbes, das quais acaba de ter conhecimento, ele acrescenta que não ousa fazer mais do que suposições pois não as leu com a devida atenção (AT III, 318; grifo meu). Ou ainda, por fim, em Carta a Elizabeth de junho de 1645, onde defende as vantagens, após a experiência de um sofrimento ou de uma doença, de desviar a atenção dos males imaginados anteriormente (AT IV, 237; grifo meu). 30 . Regra III : “Por intuição entendo (...) o conceito da mente pura e atenta [ mentis purae et attentae ] tão fácil e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito da mente pura e atenta [ mentis purae et attentae ], sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão...” (AT X, 318; trad. de João Gama). 31 . Tratado do Homem (AT XI, 182 e 186), Dióptrica ; Paixões da Alma (arts. 43, 46, 70, 75, 76, 78 e 144), Compêndium de música (AT X, 137-138). 32 . A relação entre clareza e atenção apresentada neste artigo não é mencionada na quarta parte do Discurso do Método , onde, no entanto, é antecipada uma das dificuldades que será posteriormente indicada por seus críticos: “...je jugeais que je pouvais prendre pour règle générale, que les

choses que 185-186) nous concevons fort clairement & fort distinctement sont toutes vraies; mais qu’il y a seulement quelque difficulté a bien remarquer quelles sont celles que nous concevons distinctement .” (AT VI, 33; grifo meu). 33 . Sobre essa designação, ver Quartas Objeções ; AT-VII-214 l.7; IX(I)-166. 34 . Carta a Regius de 24 de maio de 1640; AT, III, 64-65; Respostas às Quartas Objeções , AT-VII-245-246; IX(I)-190, Entrevista com Burman, AT V, 146, 147 e 148. 35 . Princípios I, art. 45; Carta a Hyperaspistes 01 de agosto de 1641. Ver ainda Regra III , definição de intuição. 36 . Respostas às segundas objeções, Exposição Geométrica e a maioria das ocorrências no Discurso do Método e nas Meditações . 37 . Carta a Gibieuf, 19 de janeiro de 1642 (AT III, 475–478), Carta a Launay de 22 julho de 1641 (AT III, 419-420) . Ver ainda. Princípios I, art. 59; II, arts. 8 e 11. 38 . Carta a Hyperaspistes 01 de agosto de 1641: “ela [uma criança] não possui menos, nela mesma, as ideias de Deus, de si mesmo e de todas essas verdades que são ditas conhecidas por si do que as pessoas adultas quando não lhes prestam atenção... [ cum ad ipsas non attendunt ]” (AT III, 424). 39 . Por vezes, esse sentido é expresso pelas formas verbais ‘ attendo’ ou ‘ ănĭmadverto’ / ‘ attenter’ ou ‘ prêter attention’ . 40 . Cf., entre outras passagens: Primeira Meditação (AT VII, 19,) Segunda Meditação (AT IX, 21, 24, 25); Quarta Meditação (AT VII, 55, 62), Quinta Meditação (AT VII, 69); Sexta Meditação (AT VII, 71); Paixões da Alma , arts. 70, 75 e 76; Notas sobre um programa (AT VIII, 361). 41 . Cf., entre outras passagens: Segunda Meditação (AT IX, 36), Respostas às segundas objeções (AT VII, 155 et passim ), Carta a [Hogeland?] de dezembro de 1647 (AT V, 110). 42 . Cf., entre outras passagens: Respostas às primeiras objeções (AT VII, 119); Cartas a Mersenne de 11 de outubro de 1638 (AT II, 401) e de 30 de abril de 1639 (AT II, 536). 43 . Comentarei mais adiante essa relação entre atenção e o caráter cogente de certos tipos de argumento. Cf., entre outras passagens: Respostas às Segundas Objeções (AT VII, 130; IX, ); Respostas às Sextas Objeções ; Respostas às Sétimas Objeções ; Cartas a Mersenne de janeiro de 1638 (AT I, 411), de 30 de abril de 1639 (AT II, 536), de 21 de janeiro de 1641 (AT III, 282-283); Carta a Gibieuf de 11 de novembro de 1640 (AT III, 237-238). 44 . Tratado do Homem , AT XI, 179-188. Para uma excelente análise dessa passagem, onde Descartes detalha os mecanismos fisiológicos cerebrais relacionados às alterações da glândula pineal, cf. G. Hatfield (2017), p. 15-22. Ainda assim, elas não estão inteiramente de fora do escopo do

exercício da nossa vontade. Sobre esse ponto, cabe assinalar passagem surpreendente da Dióptrica : “Et enfin que, demeurant au même jour, et regardant le même objet, s’il tâche d’en distinguer les moindres parties, sa prunelle sera plus petite, que s’il ne le considère que tout entier, et sans attention. Et notez que ce mouvement doit être appelé volontaire , nonobstant qu’il soit ordinairement ignoré de ceux qui le font , car il ne laisse pas pour cela d’être dépendant et de suivre de la volonté qu’ils ont de bien voir ; ainsi que les mouvements des lèvres et de la langue, qui servent à prononcer les paroles, se nomment volontaires, à cause qu’ils suivent de la volonté qu’on a de parler, nonobstant qu’on ignore souvent quels ils doivent être pour servir à la prononciation de chaque lettre.” (AT VI, 107; grifos meus) 45 . Oponho-me em parte aqui às conclusões de D. Brown (2007): “The mind, for Descartes, needs also to be “attentive” if it is to perceive what is clear and distinct in its ideas ( Principles of Philosophy I, 45; AT VIIIA, 21– 22). But in the theory of perception, Descartes is more inclined to treat attention as exogenously controlled. (…). We should, however, view this as primarily a difference in emphasis between endogenous and exogenous factors” (p. 169). 46 . Cf., entre outras, essa passagem da carta a Mersenne: “...sur ce qu’il mande en celle qu’il vous a écrite, je n’ai autre chose à dire, sinon qu’il est vrai que je me suis mépris faute d’attention . Car, ayant trouvé d’abord tout ce qui me semblait contenir de la difficulté en la question, qui était de donner autant d’ellipses rationnelles qu’on voudrait, qui eussent une même ligne pour plus grand diamètre, & ayant d’autres pensées en l’esprit , je ne me suis pas arrêté à considérer toutes les exceptions qu’il fallait faire ... (AT II, 536; grifos meus). 47 . Terceiras Objeções , 13 a Objeção: AT VII, 191-192; IX, 149. Cf. ainda o quinto ponto das Segundas Objeções (AT IX, 100; VI, 126), o final das Sextas objeções, juntamente com a primeira questão dos acréscimos (AT VII, 418-419; IX, 233) e a Carta de Hyperaspistes (AT III, 407-408). Em suas respostas a essas objeções, porém, com exceção dessa última (AT III, 431), Descartes não faz referência à atenção. 48 . Quintas Objeções (AT VII, 278-279). Cf. ainda as repercussões de outras críticas de mesmo teor feitas por Gassendi em seu livro Instances na Carta a Clerselier de 12 de janeiro de 1646 (AT IX, 203-204). Para uma análise desse debate a partir da perspectiva de Gassendi, cf. A. Lolordo (2005). 49 . Tomei a liberdade de apresentar aqui uma tradução que tenta levar em consideração tanto a versão original latina de 1644, quanto a tradução francesa feita pelo Duque de Luynes e publicada em 1647, autorizada por Descartes. Eis os dois textos: “ Claram voco illam [i.e. perceptionem], quae menti attendenti praesens & aperta est: sicut ea clarè à nobis videri dicimus, quæ, oculo intuenti præsentia, satis fortiter & apertè illum movente. Distinctam autem illam, quae, cùm clara sit, ab omnibus aliis ita sejuncta est & praecisa, ut nihil planè aliud, quàm quod clarum est, in se contineat ” (AT VIII, 21-22); “J’appelle claire celle qui est présente et manifeste à un esprit attentif ; de même que nous disons voir clairement les objets lorsque, étant

présents, ils agissent assez fort, et que nos yeux sont disposés à les regarder; et distincte, celle qui est tellement précise et différente de toutes les autres, qu’elle ne comprend en soi que ce qui paraît manifestement à celui qui la considère comme il faut”. (AT IX, 44). Para uma excelente tradução da versão latina da primeira parte dos Princípios , cf. a edição coordenada por G. de Ameida (2002), na qual me apoio, e para a tradução da versão francesa, cf. a tradução de João Gama (1997). Observo apenas que segui a leitura de G. de Almeida e de J. Cottingham et al, autores da tradução inglesa, da definição de distinção, que é diferente daquela de B. Widmar e E. Lojacono responsáveis pela tradução italiana de 1994, e de G. Belgioioso et al , responsáveis pela tradução italiana recente (2009). O ponto da divergência entre as traduções é relevante para a determinação do conceito de distinção, pois gira em torno do sentido em que a clareza é condição da distinção. Assim, os primeiros decidem pela tese de que a clareza é condição necessária, mas não suficiente, e que é preciso acrescentar a separação precisa de uma ideia clara das demais, o que não seria função da clareza, para que ela seja considerada distinta; ao passo que os demais optam pela leitura de que a clareza implica a separação de uma ideia clara das outras, mas que ainda preciso acrescentar a precisão , que é característica segundo a qual a ideia clara contém exclusivamente o que é claro, sendo, portanto, uma propriedade relacionada à ampliação do grau de clareza: “Chiamo, invece, distinta quella percezione che, essendo chiara, è separata da tutte le altre, e precisa così da non contenere nient’altro se non ciò che è chiaro.” G. Belgioioso et al , por sua vez, propõem: “Chiamo, invece, distinta quella percezione che, oltre che chiara, è separata da tutte le altre, e precisa così da non contenere nient’altro se non ciò che è chiaro.” A interpretação de R. Landim (1992), citada mais acima, segue na segunda direção considerando a distinção, e a propriedade da precisão que ela reclama, como resultado ampliação do grau de clareza. Como, no entanto, essa discussão não afeta a questão examinada neste artigo, contento-me em apontá-la, embora futuramente ela deva se enfrentada. 50 . E. Curley (1978), observa, porém, uma diferença entre a relação entre intuição e clareza nas Regras e a relação entre certeza e clareza e distinção nos Princípios , como mostra essa passagem da Regra XI , que visa esclarecer o conceito de intuição em relação à dedução ( Regra III ) e à enumeração ( Regra VII ): “para a intuição intelectual, duas condições se exigem, a saber, que a proposição seja compreendida clara e distintamente e que, em seguida, seja também compreendida toda ao mesmo tempo e não sucessivamente” (AT X, 407). Uma percepção clara e distinta não é o mesmo que uma intuição, mas apenas uma das condições para intuição. 51 . Embora nem toda ideia clara seja distinta: cf. Princípios I, art. 46. 52 . ROCHA, E. “Clareza e distinção e motivação da vontade”.  Analytica , v. 17, n. 2, pp. 355–371, 2013. 53 . Por essa razão, ela propõe uma tradução mais literal da primeira frase da definição, tal como ela ocorre na versão latina: “Clara chamo àquela [ideia] que é presente e aberta [ praesens & aperta est ] a uma mente atenta.” ( idem ). Na esteira de J. M. Humber (1981), ela propõe, então, que o sentido da referência à atenção deve ser esclarecido na determinação do

escopo dessa atenção, apoiando-se em de duas passagens: uma da Busca da Verdade (AT X, 515-516) e outra dos Princípios I, art. 74. Com efeito, nessas passagens e outras passagens (p. ex. Respostas às Sextas Objeções , AT IX, 225), Descartes alega que erramos porque damos atenção às palavras e não ao que pensamos. Embora concorde com essa leitura, creio que ela deve ser completada por outras passagens onde o filósofo afirma que são os preconceitos e o que nos acostumamos sentir e imaginar que dificultam que dirijamos nossa atenção como devemos ao que é puramente inteligível (por exemplo, Respostas às Primeiras Objeções , AT IX, 92 e 109; Respostas às Segundas Objeções ; AT IX, 156; os artigos 13, 18, 68, 73 dessa mesma primeira parte). Além disso, minha intenção aqui é tentar precisar melhor o sentido da noção de atenção e não apenas seu escopo. 54 . Embora essa passagem ocorra aqui apenas a título de exemplo, ela, na realidade, representa de forma razoavelmente fiel a concepção cartesiana da visão, tal como ele a explica na Dióptrica , em particular nos Discursos V e VI. No entanto, será preciso determinar que sentido ela pode assumir quando se trata de objetos não-corpóreos. 55 . Como bem observa R. Landim (1992), p. 102-103. 56 . Sobre essa doutrina, cf. entre outros, D. Garber e L. Cohen (1982), E. Curley (1986), H. Duncan (1989), J.-M. Beyssade (1996); C. A. Battisti (2002), O. Dubouclez (2013). D. Cunning (2015). 57 . A tradução da segunda frase do segundo parágrafo é de minha responsabilidade, sendo relevante, a meu ver, tornar visível para o leitor o uso que Descartes faz do termo ‘atenção’ e suas variantes no texto latino. Segue a passagem traduzida: “ Nam si vel minimum quid ex iis quae proponit non advertatur, ejus conclusionum necessitas non apparet, saepeque multa vix attingit, quia satis attendenti perspicua sunt, quae tamen praecipue sunt advertenda .” 58 . Regra III: “além disso, para a dedução não é necessário, como para a intuição, uma evidência atual, mas é antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza.” (AT X, 122). 59 . Cf. a sequência da frase citada precedentemente: “...e é fácil obrigá-las a se recordarem , distinguindo tantas proposições diversas quantas coisas haja a observar na dificuldade proposta, a fim de que se detenham em cada uma, e que se lhes possam citar em seguida para adverti-las daquelas em que devem pensar. (AT VII,156-157; IX, 122; grifos meus). Cf. ainda a segunda parte do Discurso do Método , onde Descartes declara a utilidade da representação aritmética para melhor reter as coisas particulares ou concebê-las em conjunto (AT VI, 20). 60 . O que nos faz reencontrar, nas Respostas às Objeções, a atribuição à atenção de uma função epistêmica àquela que lhe foi reconhecida nas Regras , no caso da definição de intuição : Por intuição entendo [...] o conceito da mente pura e atenta [ mentis purae et attentae ] tão fácil [ facilem ] e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito da mente pura e atenta [ mentis purae et attentae ], sem dúvida possível, que nasce apenas

da luz da razão...(AT III, 368). Deve-se assinalar, contudo, que o adjetivo ‘fácil’ é empregado aqui em sentido diametralmente oposto ao que foi utilizado nas Respostas às Segunda Objeções , sendo aqui marca do caráter exclusivamente intelectual da percepção, ao passo que lá indicava senão a origem sensível, ao menos sua concordância com pensamentos daí originados. Referências Bibliográficas AHO, T. (2007). “Suárez on cognitive intentions”. In: n: P. Bakker & H. Thijssen (eds), Mind, Perception and Cognition: The Commentary Tradition on Aristotle’s De anima . Ashgate, p. 179-204. BARRIER, T. (2017). La capture de l’esprit : attention et admiration chez Descartes et Spinoza. Les Études Philosophiques , 171(1), 43–58. BATTISTI, C. A. (2002). O método de análise em Descartes: da resolução de problemas à constituição do sistema do conhecimento . Cascavel: Ed. UNIOESTE. BEYSSADE, Jean-Marie (1996). Scientia Perfectissima . Analyse et synthèse dans les Principia . In: J.-R. Armogathe, G. Belgioioso (eds). Descartes: Principia Philosophiae (1644-1994), Nápoles: Vivarium : 5-36. BROWN, Deborah (2007). Augustine and Descartes on the function of attention in perceptual awareness.” In: S. Heinämaa, V. Lähteenmäki, P. Remes (eds.). Consciousness: From perception to reflection in the history of philosophy . Springer: 153–175. CASTON, V. (2001). Augustine and the greeks on intentionality. In: D. Perler (ed). Ancient and Medieval Theories of Intentionality . Leiden: Brill, 23-48. CORKUM, P. (2010). “Attention, Perception, and Thought in Aristotle”. Dialogue. Canadian Journal of Philosophy , 49(02): 199–222. CUNNING, D. (2015). “Analysis versus Synthesis”. In: L. Nolan (ed.). The Cambridge Descartes Lexicon . Cambridge: Cambridge University Press: pp. 7–12 CURLEY, E. M. (1978). Descartes Against the Skeptics . Cambridge, MA: Harvard University Press. CURLEY, E. M. (1986). “Analysis in the Meditations : The quest for clear and distinct ideas”. In: A. O. Rorty (ed.). Descartes . Berkeley: University of California Press, 153-176. DESCARTES, R. (1962). Descartes: obras escolhidas . Introdução de GillesGaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de Jacob Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Difel – Difusão Européia do Livro. DESCARTES, R. (1981). Entretien avec Burman . Ed., trad. e notas: JeanMarie Beyssade. Paris: P.U.F.

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sentenças do De Interpretatione . Depois de listar os itens que primeiramente devem ser determinados/fixados, o nome, o verbo, a negação, a afirmação, o enunciado e a frase (“16a1 - First we must settle what a name is and what a verb is, and then what a negation, an affirmation, a statement and a sentence are.”), Aristóteles apresenta em poucas sentenças, não uma teoria sobre a linguagem (ou sobre relações simbólicas de um modo geral), mas uma imagem da linguagem, uma imagem que de alguma forma funcionou e continua funcionando como uma espécie de teoria materna do significado , uma espécie de matriz para boa parte de nossos estudos sobre a natureza da linguagem e do significado linguístico. Na tradução de J. L. Ackrill lemos: 16a3. “Now spoken sounds are symbols of affections in the soul, and written marks symbols of spoken sounds. And just as written marks are not the same for all men, neither are spoken sounds. But what these are in the first place signs of - affections of the soul - are the same for all; and what these affections are likenesses of - actual things - are also the same. These matters have been discussed in the work on the soul and do not belong to the present subject.” (Ackrill, 2002, p. 43) Mais uma vez recorrendo à (talvez hiperbólica) avaliação de Kretzmann, “[essas] few sentences near the beginning of De Interpretatione (16a3-8) constitute the most influential text in the history of semantics.” [Kretzman, 1974, p. 3] Como disse acima, não encontramos aqui uma teoria sobre a natureza da linguagem e do significado linguístico, mas tão somente uma imagem muito geral de certas relações simbólicas e não simbólicas, de relações que vigem entre elocuções (linguagem), a alma/espírito/mente e as coisas (a realidade), uma imagem que, justamente por ser tão geral, é capaz de acomodar diferentes concepções e “intuições” pré-filosóficas/pré-científicas dos que usam a linguagem ² , e mesmo teorias propostas para dar conta da natureza da linguagem e do significado linguístico. De acordo com essa imagem, os sons orais (sons dados nas elocuções) são símbolos para alguma coisa que está “dentro” de nós, as afecções em nossa alma. As marcas escritas que usamos, quando existem, são símbolos para os sons orais (sons dados nas elocuções). Segundo Aristóteles, os homens usam diferentes sons e diferentes marcas escritas (falamos diferentes línguas), mas as afecções e as coisas são as mesmas para todos, e dessas últimas as afecções são semelhanças. Voltando agora a Locke, deixarei de lado as claras semelhanças de superfície (a referência aos sons articulados, a explícita aceitação da natureza convencional do significado linguístico), e me concentrarei na relação entre os sons articulados que produzimos e as ideias das quais servem como sinais/marcas. Locke nos diz no Ensaio em III.2.4:

“The use Men have of these Marks being either to record their own Thoughts, for the Assistance of their own Memory; or as it were, to bring out their Ideas, and lay them before the view of others: Words, in their primary or immediate signification, stand for nothing but the ideas in the mind of him that uses them , how imperfectly soever or carelessly those Ideas are collected from the Things which they are supposed to represent.” Encontramos aqui a proposta de que nossas palavras têm como uma de suas funções precípuas servir de marcas, signos sensíveis, de nossas ideias, de modo a colocá-las diante de outros (a outra função das palavras seria a função mnemônica). Encontramos aqui também a proposta de que essas ideias que estão dentro de nós , de alguma forma são obtidas das coisas que supostamente representam. Mas essa passagem claramente acrescenta elementos novos à matriz aristotélica, a saber, (1) a noção de “significação primária ou imediata” e (2) a referência ao sujeito que usa a linguagem. Não se trata apenas de considerar certos sons como símbolos de alguma coisa que está dentro de nós, nossas ideias/nossas afecções, mas se trata agora de uma relação primária ou imediata de significação (arbitrária e convencional) que é estabelecida pelo falante entre o som e uma ideia que se encontra em sua mente. No início do mesmo segundo capítulo do terceiro livro Locke nos diz: “Man, though he have great variety of Thoughts, and such, from which others, as well as himself, might receive Profit and Delight; yet they are all within his own Breast, invisible, and hidden from others, nor can of themselves be made to appear.” ( Essay , III.2.1, p.404) Parece óbvio que quando combinamos a caracterização de significado primário ou imediato de uma palavra com a natureza de nossas ideias, invisíveis e escondidas dos outros, encontramos um sério problema para o desempenho da função comunicacional da linguagem. Essa obviedade não passou despercebida a Locke: se o significado primário ou imediato de uma palavra depende de uma associação que o falante faz entre uma ideia que tem em sua mente e um som articulado que produz (ideia da qual a palavra é uma marca sensível), e se essa ideia só é (imediatamente) acessível ao próprio falante, pois “they are all within his own breast, invisible and hidden from others, nor can of themselves be made to appear”, então como é possível que a linguagem desempenhe a sua função comunicacional? Como podemos saber com certeza que a ideia que associamos a um determinado som será a mesma ideia que nosso interlocutor associará a esse som ao ouvilo? É claro que o som é compartilhado, mas como garantir que as associações feitas pelo falante e pelo ouvinte serão as mesmas? Como o falante S poderia estar certo de que, ao usar um som X com significado Y, o ouvinte S’ ao ouvir o som X não associa ao som X o significado Z? É importante registrar que o problema não se restringe a saber se temos ou não as mesmas ideias. Mesmo que, acompanhando Aristóteles, assumíssemos que as ideias (afecções) são compartilhadas, ainda restaria, como vimos, o problema da própria associação, que continuaria sendo privada. Locke parece ter encontrado em sua noção de significado primário ou imediato o solo semântico perfeito para o florescimento de linguagens que seriam sempre primária e imediatamente privadas, e sem dúvida

alguma isso parece ser apenas um desenvolvimento coerente e natural, ainda que radical, da matriz Aristotélica. Resumindo a “armadilha” montada pela noção de “significado primário e imediato” podemos dizer: Nossas ideias estão em nossas mentes invisíveis e escondidas. O falante só tem acesso imediato as ideias que estão em sua mente e só o falante tem acesso imediato às ideias que lá estão. Para que o som que o falante produz tenha significado, para que se torne palavra, o falante deve estabelecer uma associação entre o som que produz e uma ideia, fazer desse som uma marca/um sinal de uma ideia. Para criar uma associação entre o som e a ideia, o falante deve ter acesso ao som e à ideia. Como as únicas ideias a que tem acesso (imediato) são as suas próprias ideias, o significado primário e imediato de uma palavra será sempre um significado (privado) do falante. Parece estar sendo criada assim uma “tempestade perfeita” no horizonte da comunicação, e uma tempestade que não é nada mais do que uma consequência natural de uma certa versão idealista/associacionista da natureza do significado linguístico. ³ A solução proposta por Locke para essa dificuldade é bem conhecida e aparece em uma curiosa passagem no início da seção 4 do mesmo capítulo 2: But though Words, as they are used by Men, can properly and immediately signify nothing but the Ideas that are in the Mind of the Speaker; yet they in their Thoughts give them a secret reference to two other things. First, they suppose their Words to be Marks of the Ideas in the Minds also of other Men, with whom they communicate : For else they should talk in vain, and could not be understood, if the Sounds they applied to one Idea, were such, as by the Hearer, were applied to another, which is to speak two Languages. But in this, Men stand not usually to examine, whether the idea they, and those they discourse with have in their Minds, be the same: But think it enough, that they use the Word, as they imagine, in the common Acceptation of that Language; in which they suppose, that the Idea, they make it a Sign of, is precisely the same, to which the Understanding Men of that Country apply that Name. ( Essay , III.2.2, p. 407) Mas como entender essa ideia de referência secreta ? Para evitar o que poderíamos conceber como uma forma de insulamento linguístico , o falante supõe que as palavras que usa são marcas de ideias na mente de seu interlocutor e, obviamente, que as palavras que usa são marcas das mesmas ideias (ou pelo menos de ideias muito semelhantes) na mente de seu interlocutor, “for else they should talk in vain, and could not be understood, if the sounds they applied to one idea were such as by the hearer were applied to another which is to speak two languages.” (a segunda referência secreta seria à “realidade das coisas”).

Mas então estaria Locke defendendo uma concepção de significado linguístico que faria com que a função comunicacional da linguagem estivesse sustentada por uma mera suposição feita pelos falantes, por uma mera hipótese de compreensão ? Dito de forma bem direta: que garantia os usuários da linguagem teriam de que estariam sendo realmente bemsucedidos no uso comunicacional que fazem das palavras? Que garantia teria um sujeito S que utiliza um som X associado a uma ideia Y, de que o seu interlocutor S* vai associar a mesma ideia Y (ou pelo menos uma ideia muito semelhante) ao som X que ouve? Temos aqui a famosa imagem da comunicação como um processo de codificação/decodificação. O falante ao usar um certo som X, codifica nesse som uma ideia que está (escondida, invisível) em sua mente, e o ouvinte procede a uma decodificação de uma ideia contida nesse som X. ⁴ Ian Hacking afirma que o texto citado acima está carregado “com a ironia característica de Locke” (“Does Locke support this doctrine ‘secret reference’? I think the very phrase is loaded with Locke’s characteristic irony.” Hacking, 1975, p. 47). Acredito que há de fato uma ironia nessa passagem, mas é uma ironia muito mais geral e muito mais fina, uma ironia que se dirige a todos aqueles insatisfeitos órfãos epistêmicos que figuram como personagens de duas famosas figuras utilizadas por Locke na Introdução ao Essay : Men may find Matter sufficient to busy their Heads, and employ their Hands with Variety, Delight, and Satisfaction: if they will not boldly quarrel with their own Constitution, and throw away the Blessings their hands are fill’d with, because they are not big enough to grasp everything. We shall not have much Reason to complain of the narrowness of our Minds, if we will but employ them about what may be of use to us; for of that they are very capable: And it will be an unpardonable, as well as Childish Peevishness, if we undervalue the Advantages of our Knowledge, and neglect to improve it to the ends for which it was given us, because there are some Things that are set out of the reach of it. It will be no Excuse to an idle and untoward Servant, who would not attend his Business by Candle-light, to plead that he had not broad Sun-shine. The Candle, that is set up in us, shines bright enough for all our purposes. The Discoveries we can make with this, ought to satisfy us: And we shall then use our Understandings right, when we entertain all Objects in that Way and Proportion that they are suited to our Faculties; and upon those Grounds, they are capable of being propos’d to us; and not peremptorily, or intemperately require Demonstration, and demand Certainty, where Probability only is to be had, and which is sufficient to govern all our Concernments. If we will disbelieve everything, because we cannot certainly know all things; we shall do much-what as wisely as he, who would not use his Legs, but sit still and perish, because he had no Wings to fly. ( Essay , Introduction, p. 46) Não entender a diferença entre o que demanda demonstração e certeza e o que é da ordem da probabilidade é não entender o projeto do Essay . Segundo Locke, devemos ser capazes de distinguir entre o que podemos conhecer com certeza e aquilo sobre o que somente podemos ter algum grau de probabilidade, e devemos, é claro, ser capazes de entender que esse último caso é perfeitamente adequado para o nosso comércio com as coisas

do mundo. Locke parece simplesmente reconhecer, mesmo que não explicitamente, que no caso da linguagem não devemos “peremptorily or intemperately require demonstration, and demand certainty, where probability only is to be had, and which is sufficient to govern all our concernments.” Exigir demonstração e certeza no domínio da linguagem seria para Locke não compreender a própria natureza da linguagem. Antes de terminar, gostaria de fazer uma breve consideração sobre a necessidade de termos gerais e a função comunicacional da linguagem. No início do capítulo III do livro III do Ensaio , Locke apresenta três argumentos para justificar a necessidade de termos gerais. Por exemplo, no primeiro argumento afirma que “It is impossible, that every particular Thing should have a distinct peculiar name”, e a razão para essa impossibilidade é que “it is beyond the Power of humane Capacity to frame and retain distinct Ideas of all the particular Things we meet with”, o que parece simplesmente indicar uma limitação de fato de nossa memória humana (imagine “to call every Leaf of Plants, or every Grain of Sand that came in their way [in the way of Men], by a peculiar name.” Essay , III.3.2, p. 409). Em contraste com a necessidade associada à limitação da memória, Locke afirma que: “If it were possible [associar um nome a cada coisa particular], it would yet be useless, because it would not serve to the chief end of language. Men would in vain heap up names of particular Things, that would not serve them to communicate their Thoughts.” ( Essay , III.3.3, p. 409) Aqui claramente Locke parece justificar a necessidade de termos gerais baseando-se na ideia de que mesmo que pudéssemos nomear cada coisa particular, isso não serviria para a comunicação. Locke poderia ter sido mais enfático e ter dito que o uso de termos gerais é absolutamente necessário para que a linguagem desempenhe sua função comunicacional. Vejamos o que diz Locke: “Men learn Names, and use them in Talk with others, only that they may be understood; which is then only done, when by Use or Consent, the Sound I make by the Organs of Speech, excites in another Man’s mind, who hears it, the Idea I apply it to in mine, when I speak it. This cannot be done by Names, applied to particular Things, whereof I alone having the Ideas in my mind, the Names of them could not be significant, or intelligible to another, who was not acquainted with all those very particular Things, which had fallen under my notice.” ( Essay , III.3.3, p. 410) A ideia aqui parece ser: o uso de termos gerais é uma condição necessária para a função comunicacional da linguagem, pois sem termos gerais, para que pudéssemos nos compreender, a própria experiência deveria ser compartilhada. O uso de termos gerais parece garantir algumas ideias que podem (e devem) ser compartilhadas (de alguma forma reencontramos aqui as - ou algumas das - afecções que podem ser as mesmas para todos ). Meu objetivo com essa brevíssima nota não foi o de defender a concepção lockiana de significado linguístico (aceitando é claro que ele espose alguma

concepção de significado linguístico!), mas foi simplesmente o de explorar um pouco mais a solução que Locke propõe para o problema da função comunicacional da linguagem e, como consequência dessa exploração, aí sim, concordar com Locke que não devemos “peremptorily or intemperately require demonstration, and demand certainty” no caso da linguagem. 1 . Algumas partes do presente texto apareceram no texto Sons são símbolos de afecções na alma (silêncios também ). 2 . De alguma forma, nos reconhecemos nessa imagem. 3 . Poderíamos tentar encontrar algum abrigo dessa “tempestade” em nossas práticas verbais e não verbais: estamos certos de estar sendo compreendidos porque a reação de nossos interlocutores é uma demonstração (evidência conclusiva) dessa compreensão. Há alguns anos atrás eu ouvi a descrição da seguinte situação fictícia (estou quase certo que foi descrita pelo professor Marcelo Dascal!): Imagine um grupo de pessoas reunidas para um jantar, e imagine também que todas as pessoas desse grupo se odeiam “mortalmente”. Um participante S do jantar associa ao som “açúcar” a ideia “AÇUCAR”. Esse participante S pede ao participante S* o açúcar. O participante S* associa ao som “açúcar” a ideia “SAL”. Mas como S* odeia S, ele pensa: não vou passar o sal, mas sim o açúcar! E de fato S* passa o açúcar para S. Um observador inocente poderia pensar: “Me disseram que essas pessoas se odeiam “mortalmente”, mas as encontro muito gentis e educadas – S pede o açúcar e S* lhe passa o açúcar!” O que aconteceria se essa situação pudesse ser o que normalmente ocorre em nossas práticas linguísticas? 4 . Essa imagem, com as devidas diferenças, ocorre também no Leviatã, quando Hobbes afirma que “The general use of speech is to transfer our mental discourse into verbal, or the train of our thoughts into a train of words, and that for two commodities; whereof one is the registering of the consequences of our thoughts, ... Another, is when many use the same words to signify, by their connexion and order one to another, what they conceive or think of each matter...” (Hobbes, Leviathan, Chapter IV, p. 54) Bibliografia Aristóteles – Categories and De Interpretatione - Translated with Notes by J. L. Ackrill, Clarendon Press, Oxford, 2002. Hacking, Ian – Why does language matter to Philosophy , Cambridge University Press, 1975. Hobbes, Thomas – Leviathan, Great Books of the Western World, vol. 23, 1952. Kretzmann, Norman, - The Main Thesis of Locke’s Semantic Theory, The Philosophical Review , 77, issue 2, 1968, pp. 175 – 196.

Kretzmann, Norman - Aristotle on Spoken Sound Significant by Convention, in ed. J. Corcoran, Ancient Logic and Its Modern Interpretations , Volume 9, Synthese Historical Library, 1974, pp 3-21]. Locke, John – Essays on Human Understanding . Ed. with an Introduction by P. H. Nidditch, Clarendon Press, Oxford, 1979. Pereira, Luiz Carlos - Sons são símbolos de afecções na alma (silêncios também), in eds. Hans Ruin & Jonna Bornemark, Ad Marciam , Södertörn Philosophical Studies, Stockholm, 2017. Espinosa expositor e crítico da explicação cartesiana do erro Marcos André Gleizer UERJ/CNPq Para Landim e Guido, com profunda admiração e gratidão 1. Introdução É bem conhecida a importância capital que a reflexão sobre o pensamento de Descartes exerceu na elaboração da filosofia de Espinosa. Para indicar esta importância, basta lembrar que a única obra de Espinosa publicada em vida sob seu nome foi dedicada a Descartes – trata-se dos Princípios da Filosofia de Descartes demonstrados à maneira dos geômetras ¹ – e que Descartes é o único filósofo explicitamente citado na Ética . Essa reflexão, como sabemos, nunca implicou a adesão por parte de Espinosa à filosofia cartesiana, mas foi marcada desde o início por uma perspectiva crítica. Com efeito, se Descartes é apresentado no Prefácio aos PFD como “o mais esplêndido astro de nosso século”, como alguém que conseguiu introduzir na Filosofia a “ordem e certeza matemáticas”, o mesmo Prefácio sublinha que Espinosa não apenas não concorda com todas as teses de Descartes que ele expõe, mas também que ele julga que a via demonstrativa escolhida por este “mais esplêndido astro” não lhe permitiu iluminar as coisas “mais sublimes e sutis” e levou-o a sustentar que “isso ou aquilo supera a compreensão humana”. A este respeito, Meyer escreve: E tampouco cumpre passar por cima do fato de que deve ser entendido no mesmo sentido, isto é, dito apenas conforme o pensamento de Descartes, o que se encontra em alguns lugares: isso ou aquilo supera a compreensão humana . Nem deve ser recebido como se o proferisse nosso autor a partir de sua própria posição. Ele julga que todas essas coisas, e ainda várias outras mais sublimes e sutis, podem ser não apenas clara e distintamente concebidas por nós como também muito comodamente explicadas; contanto que o intelecto humano, na investigação da verdade e no conhecimento das coisas, conduza-se por uma via outra que a aberta e palmilhada por Descartes; e assim, os fundamentos da ciência erigidos por Descartes, e o que sobre eles foi edificado pelo próprio, não são suficientes para elucidar e

resolver todas as dificílimas questões que ocorrem na metafísica, mas se requerem outros se desejamos alçar nosso intelecto ao fastígio do conhecimento. ² Essa passagem enfatiza fortemente a rejeição de qualquer limitação de “direito” ao alcance de nosso conhecimento claro e distinto, e a adesão de Espinosa ao princípio da inteligibilidade integral do real. É a adesão a esse princípio e, portanto, a recusa em dar espaço ao incompreensível no âmbito da filosofia, que sustenta sua perspectiva crítica e que está na raiz de suas divergências em relação às teses de Descartes. Encontramos a primeira manifestação explícita dessa recepção crítica do pensamento de Descartes já na mais antiga carta conhecida de Espinosa, a saber, a carta 2 a Henry Oldenburg. Nesta carta, Oldenburg pergunta a Espinosa que erros ele observou nas filosofias de Descartes e Bacon. Espinosa lhe responde que, por não terem compreendido a causa primeira de todas as coisas e a verdadeira natureza da mente humana, eles não atingiram a verdadeira causa do erro. Após ter reduzido a explicação de Bacon à explicação cartesiana, segundo a qual a causa do erro consiste “no fato de que a vontade é livre e mais ampla que o intelecto”, Espinosa mostra a falsidade desta explicação indicando (i) que a vontade é apenas um ser da razão e não pode ser a causa de nenhuma volição particular; (ii) que as volições particulares requerem causas que lhes determinem necessariamente a existir e, portanto, não podem ser chamadas de livres. Esta primeira crítica da explicação cartesiana do erro reaparece no Prefácio dos PFD . Após ter dito que Espinosa quis apenas expor “as meras posições de Descartes e suas demonstrações, conforme encontram-se nos escritos dele ou tais quais deveriam ser deduzidas por legítimas consequências a partir dos fundamentos por ele lançados”, Louis Meyer enfatiza que não se deve crer que Espinosa ensine “aqui ou coisas suas ou apenas as que aprova. E embora julgue ele umas verdadeiras e confesse ter acrescentado algumas de si mesmo, ocorrem muitas todavia que rejeita como falsas e a propósito das quais acalenta uma posição bem diversa”. Ora, todos os exemplos de teses falsas que ele cita em seguida referem-se às passagens dos PFD e dos PM que se relacionam com o que Descartes sustenta acerca das faculdades da alma, da liberdade da vontade e da explicação de erro. Em suma, a explicação cartesiana do erro é eleita no Prefácio como exemplo paradigmático de erro cartesiano: Para mencionar apenas um caso de muitos, há as que se têm sobre a vontade no esc. da prop. 15 da 1ª parte dos Princípios e no cap. 12 da 2ª parte do Apêndice ; embora pareçam provadas com grande desvelo e aparato. Com efeito, ele não a estima distinta do intelecto e muito menos que seja dotada de tal liberdade. Ao asserir isso, de fato, como transparece na 4ª parte do Discurso do Método e na 2ª Meditação e em outros lugares, Descartes apenas supõe, não prova, ser a mente uma substância absolutamente pensante. Ao contrário, nosso autor admite por certo haver na natureza das coisas a substância pensante, mas todavia nega que ela constitua a essência da mente humana, mas sustenta que, do mesmo modo como a extensão não é determinada por quaisquer limites, tampouco o pensamento é determinado por quaisquer limites; portanto, tal como o corpo

humano não é absolutamente, mas é apenas a extensão determinada de modo certo pelo movimento e repouso segundo as leis da natureza extensa, assim também a mente ou alma humana não é absolutamente, mas é apenas o pensamento determinado de modo certo pelas ideias segundo leis da natureza pensante, e ela, conclui-se, dá-se necessariamente quando o corpo humano começa a existir. Definição a partir da qual o autor crê não ser difícil de demonstrar que a vontade não se distingue do intelecto, e muito menos possui aquela liberdade que lhe adscreve Descartes; mais ainda, que a própria faculdade de afirmar e negar é totalmente fictícia; o afirmar e o negar nada são além de ideias; já as demais faculdades, como o intelecto, o desejo, etc., devem ser contadas no número das ficções, ou ao menos no das noções que os homens formaram por conceber as coisas abstratamente, quais sejam, a humanidade, a pedridade e outras do gênero. ³ A crítica resumida aqui retoma e completa os pontos apresentados na carta a Oldenburg e será repetida ainda uma vez no final da segunda parte da Ética , onde receberá sua formulação mais rigorosa. Com efeito, após ter demonstrado, na primeira parte da Ética , que “a causa primeira de todas as coisas”, a saber, Deus, é a única substância que existe, e deduzir, na segunda parte, que “a verdadeira natureza da mente humana” consiste em ser apenas um modo finito dessa substância, Espinosa apresenta, nas proposições 48 e 49, sua prova do caráter determinado de toda volição e de sua identidade com a ideia. Daí ele deduz, nos escólios dessas duas proposições, uma verdadeira desconstrução da teoria cartesiana do juízo e da explicação do erro que ela sustenta. Sem nomear Descartes, ele chama a atenção para este ponto no escólio da proposição 49, onde afirma que “suprimimos, assim, a causa à qual, comumente, se atribui o erro”, e apresenta em seguida um pastiche das Objeções e Respostas em que ele mede a força de sua própria concepção da relação entre ideia e juízo a partir das respostas a quatro objeções de origem cartesiana. Vemos assim a importância central que Espinosa concede à reflexão sobre a solução cartesiana do problema do erro para a formulação e defesa de seu próprio pensamento. Neste trabalho, proponho examinar dois momentos dessa reflexão. Indicarei primeiro alguns traços característicos da maneira como Espinosa expõe a solução cartesiana do problema do erro; em seguida, me concentrarei sobre os principais elementos da desconstrução desta explicação que ele propõe em sua Ética . 1. Espinosa expositor de Descartes  No Prefácio dos PFD , Meyer afirma que o objetivo de Espinosa neste trabalho foi expor “as meras posições de Descartes e suas demonstrações, conforme encontram-se nos escritos dele ou tais quais deviam ser deduzidas por legítima consequência a partir dos fundamentos por ele lançados”, e enfatiza que “fez-se-lhe religião não afastar-se nem por uma unha das posições desse autor nem ditar algo que não correspondesse aos dogmas dele”. Apesar desta declaração de fidelidade, a frase “tais quais deviam ser deduzidas por legítima consequência a partir dos fundamentos por ele lançados” indica que a exposição de Espinosa não pretende ser um mero resumo literal da doutrina cartesiana, mas envolve um trabalho de interpretação e reconstrução argumentativa.

Este trabalho suscita uma controvérsia entre os comentaristas sobre o grau de fidelidade de Espinosa ao pensamento de Descartes. Alguns, como Gilson, consideram que os PFD oferecem um modelo de exposição rigorosa do pensamento de Descartes. ⁴ Outros, no entanto, procuram mostrar como o rigor geométrico dessa exposição sintética produz efeitos de deslocamento em relação à doutrina, efeitos que resultam seja da alteração da ordem da demonstração, seja da formulação de demonstrações alternativas àquelas fornecidas por Descartes, seja da apresentação de demonstrações para teses não demonstradas por Descartes, seja, enfim, pelos aspectos da doutrina cartesiana que são acentuados e aqueles que são ocultados na exposição. ⁵ Com relação à explicação do erro, parece-me claro que a adoção do princípio da inteligibilidade integral do real produz efeitos de deslocamento. Essa adoção conduz Espinosa a remover qualquer referência à incompreensibilidade de Deus, a enfatizar a afirmação da perfeição de nossa natureza ⁶ e, em seguida, a explorar (especialmente nos PM e na correspondência com Blyenbergh) ⁷ as consequências necessitaristas de certas teses de Descartes (como a doutrina da criação continuada e a tese da identidade entre entendimento e vontade em Deus) ⁸ para o questionamento das noções de liberdade e de privação das quais depende esta explicação. Esses deslocamentos preparam a supressão de nossa responsabilidade epistêmica pelo erro e, assim, anunciam a recusa espinosista da teodiceia epistêmica proposta por Descartes. Eles conduzirão Espinosa a substituir na Ética a explicação do erro como uma falha imputável ao sujeito por uma explicação determinista em que ele decorre de ilusões naturais que se enraízam em nossas ideias inadequadas e ocorrem necessariamente em certas circunstâncias epistêmicas. Como não é possível discutir aqui em detalhes o escólio da proposição 15 dos PFD , bem como as passagens relevantes dos PM e das cartas a Blyenbergh, me contentarei simplesmente em indicar os desvios em relação a Descartes que me parecem os mais importantes neste escólio, bem como um deslocamento introduzido na carta 21 a Blyenbergh. É preciso primeiro lembrar que os únicos textos de Descartes que Espinosa cita em sua reconstrução são a Quarta Meditação e os Princípios da Filosofia (I, art.39). Nas suas observações sobre a liberdade da vontade, noção central na explicação cartesiana do erro, Espinosa não menciona as Respostas às Sextas Objeções ou as cartas a Mesland de 2 de maio de1644 e de 9 de fevereiro de 1645. Visto que ele não cita estas cartas a Mesland, ele não aborda o problema de uma eventual evolução no pensamento de Descartes sobre a liberdade. Espinosa não faz jamais qualquer alusão à função da liberdade da vontade na condução da atenção (e, portanto, na constituição da evidência racional, uma vez que a clareza pressupõe a atenção), nem à possibilidade de “nos reter de perseguir um bem claramente conhecido ou admitir uma verdade evidente” em nome da afirmação de nosso livre arbítrio tomado como um bem ⁹ , nem tampouco à distinção entre a indiferença negativa e a indiferença positiva. A palavra “indiferença” aparece sempre em sua exposição para designar o menor grau de liberdade, caracterizado pelo estado de indiferença no qual a vontade se encontra por falta de inclinação. Como Espinosa não cita a Resposta às Sextas Objeções , ele tampouco faz qualquer menção à comparação entre a

indiferença divina e a indiferença humana que aparece no ponto nº 6. Aliás, ele não faz nenhuma comparação entre o homem e Deus, e suprime toda referência às passagens de Descartes que incidem sobre o tema da vontade humana como “imagem e semelhança de Deus” e como a principal perfeição do homem. Ele afirma, no entanto, que a nossa vontade é “perfeita” e a qualifica como “infinita”, sem jamais qualificar essa afirmação por um “ quodammodo ”. ¹⁰ Em consonância com a supressão do tema da “ similitudo Dei ”, Espinosa não faz nenhuma menção explícita à vontade tomada formalmente em si mesma como um poder indivisível de sim ou não, em suma, à caracterização da infinitude da vontade como absoluteidade. ¹¹ Além disso, ele não discute as duas definições de liberdade dadas no difícil §9 da Quarta Meditação . Ele apenas afirma que sentimos em nós mesmos que “a vontade é livre para se determinar”, sem entrar em uma discussão sobre as modalidades do exercício dessa autodeterminação. É claro, no entanto, que ele privilegia (como, aliás, Descartes também o faz) a segunda definição, aquela que se caracteriza pela espontaneidade da adesão infalível ao verdadeiro e ao bem percebidos pelo intelecto. Com efeito, uma vez que a vontade como poder absoluto de escolha não tem graus, é a espontaneidade que possibilita a teoria dos graus de liberdade sobre a qual ele insistirá, pois é ela que permite estabelecer uma relação de dependência estreita entre a maneira pela qual os atos volitivos se exercem e o grau de clareza e distinção das ideias do entendimento. A propósito desta dependência, quando Espinosa menciona explicitamente a amplitude da vontade, sua infinitude em extensão como capacidade de se aplicar a todos os objetos possíveis ¹² , ele não usa nenhuma formulação que possa sugerir que nossa vontade poderia dar o assentimento àquilo de que “o entendimento não tem nenhum conhecimento”. Todas as formulações encontradas no escólio enfatizam que podemos afirmar não apenas o que percebemos de forma clara e distinta, mas também o que percebemos de outra maneira (confusamente), sem jamais dizer que podemos afirmar o que não percebemos de nenhuma maneira. ¹³ Em suma, a desproporção entre a vontade e o entendimento é entendida como desproporção entre a vontade e o entendimento no sentido estrito (tomado como o conjunto de ideias claras e distintas), mas nunca no sentido amplo (tomado como o conjunto das percepções). Neste sentido, há sempre uma proporção entre volição e percepção (o que, aliás, está de acordo com a dependência, estabelecida por Descartes no §6 da Terceira Meditação , dos diversos modos do pensamento em relação à ideia). Este ponto importante, que prepara a posição propriamente espinosista da relação entre ideia e vontade, será explorado por Espinosa na Ética em sua resposta à primeira objeção formulada no escólio da proposição 49. Espinosa faz também um uso implícito da noção de infinito como “aspiração infinita em direção a algumas perfeições que o homem não possui”, em um argumento construído para demonstrar que a impossibilidade de recusar o assentimento às ideias claras e distintas “não vem da fraqueza, mas apenas da liberdade e perfeição de nossa vontade”, ou seja, em um argumento construído para sustentar a liberdade esclarecida. Este argumento, que não é explicitado por Descartes, repousa sobre as seguintes teses:

“Afirmar é uma perfeição” ( per se nota ). “A vontade nunca é mais perfeita nem mais livre do que quando se determina por completo”. Essa tese significa que há graus de perfeição e de liberdade na vontade que variam em função do seu grau de autodeterminação, pois se a vontade pode “se determinar por completo” ela também deve poder se determinar parcialmente. “O que pode acontecer tão logo a mente entenda algo clara e distintamente”. O grau de autodeterminação da vontade é, portanto, função do grau de clareza e distinção das percepções. “Se uma coisa pensante vier a conhecer algumas perfeições que ela não possui, ela se lhes dará imediatamente se estiverem em seu poder” (pelo axioma V). Este axioma, fundado por Espinosa com base na introspecção, retoma o axioma VII da Exposição Geométrica de Descartes que funda sobre a própria essência da vontade a aspiração que esta possui de dar a si quaisquer perfeições conhecidas que não sejam por ela possuídas. ¹⁴ Logo, se não podemos nos recusar a nos dar a perfeição que consiste em afirmar o claro e distinto, isto não é um sinal de fraqueza, e assim somos tanto mais livres quanto mais perfeito é o conhecimento que temos e quanto menos indiferentes somos. É preciso sublinhar que, de acordo com este argumento, há graus de perfeição das volições (afirmações ou negações) que variam em função do grau de perfeição dos modos de perceber. ¹⁵ O reconhecimento da existência de graus de perfeição nos modos de querer será explorado por Espinosa em sua resposta à terceira objeção da EIIP49S, onde ele argumentará que as afirmações, e não apenas as ideias, podem ter mais ou menos perfeição ou realidade (o que será muito importante na defesa de sua tese da internalização da volição na ideia). Espinosa suprime do escólio toda referência ao tema da incompreensibilidade de Deus e qualquer consideração sobre a finalidade divina. Para explicar por que Deus não nos fez infalíveis ainda que tivesse o poder de fazê-lo, nenhuma menção é feita ao papel que Deus teria concedido ao homem como parte de um todo maior, onde a imperfeição da parte pode contribuir para a perfeição do todo. ¹⁶ Toda a explicação do fato de que nossos erros são simples negações em relação a Deus repousa sobre a tese de que a natureza de um efeito (criatura) não pode exigir nada de sua primeira causa. ¹⁷ Espinosa substitui a referência cartesiana ao nosso papel ou função no universo por um exemplo geométrico que liga intrinsecamente nossas propriedades (e nossos poderes) a nossas essências: “Deus não nos privou de um intelecto maior, ou seja, de uma mais perfeita faculdade de entender, mais do que privou o círculo das propriedades do globo e a circunferência das propriedades da esfera”. Espinosa enfatiza com força a natureza puramente comparativa (portanto, puramente extrínseca) da noção de grau de perfeição e, assim, reduz qualquer imperfeição a uma menor perfeição (o que é uma outra maneira de acentuar a perfeição intrínseca de cada coisa). ¹⁸ Isso aparece primeiro em relação aos modos de perceber:

[...] por percebermos muitas coisas além daquelas que entendemos claramente, somos mais perfeitos do que se não as percebêssemos; como consta claramente a partir de que, supondo que não percebêssemos nada clara e distintamente, mas apenas confusamente, nada teríamos de mais perfeito do que perceber as coisas confusamente, e nada outro se poderia desejar de nossa natureza” Em seguida, essa natureza comparativa também é atribuída aos modos de afirmar. Uma vez que “assentir às coisas, ainda que confusas, enquanto também é uma ação, é uma perfeição”, se nossa natureza incluísse apenas percepções confusas, nós seríamos mais perfeitos e livres por afirmá-las do que se permanecêssemos indiferentes (ou seja, no mais baixo grau de liberdade). Assim, todos os modos de pensamento, tomados em si mesmos, são perfeitos. Segue-se daí que “não pode residir neles o que constitui a forma de erro”, mas esta forma reenvia a um tipo de negação, a saber, uma privação. Ora, a explicação final do erro como uma privação em relação a nós, a saber, uma privação do bom uso da liberdade, também será apresentada de uma maneira que acentua fortemente seu enraizamento em uma comparação. Com efeito, os modos de querer nunca são imperfeitos em si mesmos (pois “assentir às coisas confusas, enquanto é algo positivo, não contém nada de imperfeição nem a forma do erro”), mas são ditos mais ou menos perfeitos na medida em que tornam a vontade mais ou menos indiferente, portanto mais ou menos livre. Ora, durante o tempo em que afirmamos as coisas confusas nos tornamos menos capazes de discernir o verdadeiro do falso e, assim, nos privamos da melhor liberdade “que pertence à nossa natureza e está em nosso poder”. A imperfeição do erro não está no ato positivo que realizamos, mas reenvia à comparação com o que deixamos de fazer com base nisso e que poderíamos ter feito. Ela é assim a falta de uma perfeição maior que poderíamos ter tido. Nessa explicação, Espinosa enfatiza com Descartes a perfeição de nossas faculdades e de nossas operações na medida em que dependem de Deus, mas, ao contrário de Descartes, ele acentua também a perfeição intrínseca do ato positivo que realizamos (portanto, a perfeição do ato em relação a nós). A privação não se confunde para ele com o ato de privar, mas reside em uma consequência negativa do ato, a saber, o grau de perfeição comparativa que eu deixo de ter e que eu poderia ter tido. Descartes, por outro lado, afirma que “a privação, digo, encontra-se na operação [inest in ipsa operatione] na medida em que procede de mim; mas ela não se acha no poder que recebi de Deus, nem mesmo na operação na medida em que ela depende dele”. ¹⁹ Embora Espinosa enfatize o aspecto comparativo envolvido na noção de privação, essa comparação com um estado de coisas contrafactual (a perfeição que eu poderia ter tido) ainda se enraíza na concepção de privação como “falta de uma perfeição que me seria devida”, que é “reclamada por minha natureza”, “que pertence à minha natureza e está em nosso poder”. Assim, ele permanece fiel à explicação de Descartes quando afirma que “a imperfeição do erro consiste só na privação da melhor liberdade, o que é chamado erro. Diz-se privação porque nos privamos de uma perfeição que compete a nossa natureza; e erro, já que por nossa culpa carecemos desta perfeição, enquanto não contemos a vontade dentro dos limites do intelecto

o quanto podemos”. A privação permanece ainda ligada a uma transgressão e deriva alguma positividade da positividade psicológica do ato livre que a engendra. Na fascinante discussão epistolar que Espinosa manterá com Blyenbergh sobre o problema do mal (ou seja, do erro moral) ele suprimirá esse resíduo de positividade e reduzirá inteiramente a privação a uma comparação puramente imaginativa. Essa supressão e redução são realizadas a partir de uma radicalização das consequências necessitaristas de certas teses autenticamente cartesianas, como a tese da criação continuada e a consideração da natureza imutável da vontade de Deus e de sua providência. Com efeito, como nada pode ocorrer que seja contrário à vontade de Deus, o que pertence à natureza de uma coisa a cada momento é o que foi decretado por Deus que lhe deve pertencer. Cada coisa possui assim a cada momento toda a perfeição que pode possuir. A privação perde desta forma o apoio positivo que recebia do ato livre (“a privação não é o ato de privar, mas apenas a ausência pura e simples, que não é nada em si”) e se torna um puro “ser da razão, em outras palavras, um modo de pensar que formamos quando comparamos as coisas umas com as outras”. ²⁰ A privação não é mais definida pela falta de uma perfeição que pertence à minha natureza (portanto, que eu posso e devo ter), mas pela mera ausência de uma perfeição que eu creio imaginativamente que deveria me pertencer. Em suma, ela é inteiramente reduzida a uma comparação imaginativa que decorre da nossa ignorância dos decretos de Deus e do que pertence à natureza das coisas singulares. Assim entendida, essa concepção de privação não tem mais nenhum valor objetivo. 1. Espinosa crítico de Descartes 3.1 Desconstrução da teoria cartesiana do juízo Vejamos agora os principais aspectos da crítica de Espinosa à explicação cartesiana do erro formulada em sua Ética . Nas proposições 48 e 49 da segunda parte, Espinosa se opõe a todos os elementos da teoria cartesiana do juízo sobre à qual essa explicação se baseia. Contra Descartes, ele sustenta as quatro teses seguintes que já haviam sido anunciadas no Prefácio dos PFD : A mente humana não tem uma vontade absoluta ou livre. A mente humana não tem nenhuma faculdade absoluta. As faculdades da mente não são nada além de seres da razão. Ideias singulares e volições singulares são uma e a mesma coisa. A tese (i) é um caso particular da tese (ii), mas dada a sua extrema importância doutrinal e polêmica, é ela que Espinosa demonstra explicitamente na proposição 48, enquanto a tese (ii) é anunciada em seu escólio como podendo ser demonstrada da mesma maneira. Seu fundamento demonstrativo repousa sobre a incompatibilidade entre a natureza modal da mente e a noção de faculdade absoluta. ²¹ Para ter uma faculdade absoluta é preciso ser causa livre, isto é, trazer em si, de maneira incondicionada, o

princípio de sua existência (ser causa de si mesmo) e de sua ação, ou seja, existir e agir pela exclusiva necessidade de sua natureza. ²² Ora, essa autossuficiência absoluta é incompatível com a natureza modal da mente. Como foi mostrado na primeira parte da Ética , apenas uma substância pode preencher essas duas condições, e “Além de Deus, não pode existir nem ser concebida nenhuma substância”. ²³ Como Espinosa também indicou no Prefácio aos PFD , é porque Descartes apenas supôs que pode haver substâncias pensantes finitas que ele pôde cair no erro de nos atribuir uma vontade absoluta. O escólio dessa proposição assinala ainda que o erro relativo ao status ontológico da mente é acompanhado e reforçado pela crença ilusória no livre arbítrio. Para indicar a origem dessa ilusão, Espinosa nos remete à explicação que ele lhe deu no apêndice da Ética I: “por estarem conscientes de suas volições e de seus apetites, os homens se creem livres, mas nem em sonhos pensam nas causas que os dispõem a ter essas volições e apetites, porque as ignoram”. Vemos nessa passagem que sua recusa do valor epistêmico do testemunho da consciência imediata acarreta a rejeição da posição cartesiana de que a “prova” de nossa liberdade repousa sobre sua experiência interna, isto é, no fato de experimentá-la. ²⁴ Uma vez que a mente humana não é uma substância e não pode possuir nenhuma faculdade absoluta, o escólio conclui que todas essas faculdades (de entender, querer, desejar, etc.) “ou são absolutamente fictícias ou não passam de entes metafísicos ou universais, os quais costumamos formar a partir de coisas particulares”. A tese (iii) reduz assim as faculdades a puras abstrações de origem imaginativa. ²⁵ Essa redução baseia-se não apenas em uma crítica de inspiração nominalista do valor objetivo dos universais imaginativos, mas também no necessitarismo radical de Espinosa. ²⁶ Com efeito, se a recusa do caráter absoluto das faculdades acarreta a recusa em conceder também à mente faculdades reais cujo exercício seria no entanto sempre condicionado, é porque as próprias noções de ser em potência ou de potência virtual desaparecem com o necessitarismo. No contexto do necessitarismo radical, fazemos sempre tudo o que podemos nas condições dadas, de modo que toda a realidade da potência reside nos atos singulares realizados. ²⁷ As “faculdades”, portanto, não têm realidade, sua única função é ajudar nossa memória a reter e classificar os diferentes tipos de atos singulares. ²⁸ No escólio da proposição 48, Espinosa não examina a causa pela qual tendemos tão facilmente a tomar noções abstratas por seres reais ²⁹ , nem as várias consequências que decorrem da crítica da reificação das noções abstratas de vontade e entendimento para a refutação da teoria cartesiana do juízo. O exame dessas consequências, como veremos, será tratado no escólio da proposição 49, onde a crítica da reificação das faculdades desempenhará um papel muito importante na refutação da tese cartesiana da distinção e desproporção entre a vontade infinita e o entendimento finito. ³⁰ Como não há nenhuma faculdade na mente, existem apenas ideias singulares e volições singulares. Embora já esteja estabelecido que o juízo não é o ato de uma vontade livre (e, portanto, que o erro não é devido ao

mau uso do livre arbítrio), ainda não está excluída a hipótese segundo a qual as ideias singulares e as volições singulares seriam modos distintos de pensamento cujas relações seriam determinadas por leis necessárias. Poderíamos supor que a cada ideia corresponderia, de acordo com as leis do pensamento, seja uma volição singular pela qual se afirmaria ou negaria o que a ideia apresenta, seja a ausência de uma volição que corresponderia à suspensão do juízo. Isso manteria uma distinção modal entre o ato de perceber um conteúdo de pensamento e o de afirmar ou negar esse conteúdo, o que tornaria possível manter uma distinção, central em Descartes, entre o processo cognitivo pelo qual um conteúdo proposicional é considerado e aquele pelo qual ele se inscreve sob uma modalidade volitiva, enfim, uma distinção entre perceber e julgar. Ora, na EIIP49 Espinosa suprime esta hipótese demonstrando a tese (iv), segundo a qual “não há, na mente, nenhuma volição, ou seja, nenhuma afirmação ou negação, além daquela que a ideia, enquanto ideia, envolve”. Esta demonstração é decisiva para estabelecer, contra Descartes, que as ideias não são “pinturas mudas sobre um quadro”, isto é, estados mentais passivos, mas atos que afirmam ou negam a verdade de seus conteúdos, logo, para estabelecer que perceber é julgar. ³¹ O argumento espinosista consiste em mostrar que a volição pertence à essência da ideia. Segundo a definição 2 da Ética II , pertence à essência de uma coisa “aquilo sem o qual a coisa não pode ser nem ser concebida e viceversa, isto é, aquilo que sem a coisa não pode ser nem ser concebida”. É necessário, portanto, mostrar que a relação entre a ideia e a volição preenche essas duas condições. Espinosa toma como exemplo a afirmação de que a soma dos ângulos internos do triângulo é igual a dois retos. Ele demonstra que: 1) Esta afirmação envolve o conceito ou ideia do triângulo, isto é, não pode ser concebida sem a ideia do triângulo. Esta afirmação tampouco pode existir na mente sem a ideia do triângulo, pois, de acordo com o axioma 3 da Ética II , todos os modos de pensamento existentes na mente pressupõem que haja previamente nesta mente uma ideia. 2) A ideia do triângulo deve envolver esta afirmação, isto é, ela não pode ser concebida sem esta afirmação, nem pode tampouco existir sem ela. Ora, embora a primeira parte da demonstração não coloque nenhum problema para um cartesiano ³² , a segunda parte – essencial para o estabelecimento da tese – permanece problemática, pois Espinosa se limita a afirmar a impossibilidade para a ideia de existir e de ser concebida sem esta afirmação particular, sem justificar esta tese por quaisquer meios demonstrativos. Embora Espinosa não tenha fornecido uma demonstração explícita dessa tese essencial, é possível formular uma prova a partir da teoria dos conatus . Ainda que esta teoria seja formulada apenas na terceira parte da Ética , todos os seus elementos demonstrativos são conceitualmente independentes das teses da segunda parte e são baseados na ontologia da potência desenvolvida na primeira parte. Com efeito, uma vez que as coisas singulares são modos que expressam de maneira certa e determinada a

potência de Deus, e uma vez que toda potência é ativa, a essência de cada coisa tem uma potência causal da qual segue algum efeito. ³³ Por outro lado, como nenhuma coisa tem em si, isto é, em sua essência, nada que suprima ou destrua sua existência ³⁴ , “cada coisa, tanto quanto está em si, esforça-se por perseverar em seu ser”. ³⁵ Ora, ideias são modos do pensamento, isto é, coisas mentais singulares. Elas têm, portanto, uma potência pela qual se esforçam para afirmar seus conteúdos (a existência de seus objetos) e desdobrar suas consequências (produzir outras ideias). Esse conatus das ideias é o que Espinosa explicitamente chama de “Vontade” no escólio da EIIIP9: “Esse esforço, à medida que está referido apenas à mente, chama-se vontade”. Este esforço, como sublinha o enunciado da proposição 9, é referido à mente “quer enquanto tem ideias claras e distintas, quer enquanto tem ideias confusas”. ³⁶ Como Espinosa já demostrou que as faculdades da mente não são coisas reais, a Vontade “pela qual a mente afirma ou nega a verdade ou a falsidade de alguma coisa” ³⁷ é reduzida a um simples nome geral, do qual podemos nos servir para designar as afirmações ou negações singulares envolvidas tanto nas ideias adequadas quanto nas ideias inadequadas. Assim, a aplicação da teoria geral do conatus ao caso particular das ideias permite legitimamente concluir que, se cada ideia singular envolve uma volição, isto é, uma afirmação ou negação singular, é porque tal volição nada mais é que o conatus dessa ideia. A explicação da volição pelo conatus da ideia significa, como Chantal Jaquet enfatiza, que “a crítica de uma faculdade de querer livre e a redução da vontade ao entendimento não levam Espinosa a fazer pura e simplesmente a economia deste conceito, mas a propor uma reformulação”. ³⁸ A função assertiva não é abolida, mas integrada à natureza da ideia. Não se deve crer, no entanto, como o fazem Jaquet ³⁹ e Marion ⁴⁰ , que Espinosa reduza a afirmação da ideia à evidência da ideia adequada. Essa redução não permite explicar a universalidade da tese da identidade entre ideia e volição estabelecida pela EIIP49 e expressamente indicada ao final da demonstração dessa proposição: “o que dissemos dessa volição deve ser igualmente dito (por termos escolhido um exemplo ao acaso) de qualquer volição, ou seja, que ela nada mais é do que a própria ideia”. Essa universalidade também é claramente indicada pelo exemplo dado no escólio desta mesma proposição referente à afirmação envolvida na percepção de um cavalo alado, percepção esta que é uma ideia inadequada da imaginação. ⁴¹ Finalmente, uma vez que toda ideia, seja adequada ou inadequada, é um modo do pensamento que se esforça por perseverar em seu ser, é preciso que toda ideia envolva uma volição. Assim, dada a universalidade da tese, quando Espinosa afirma que “a vontade e o entendimento são uma e a mesma coisa” (EIIP49C), devemos tomar a palavra “entendimento” neste contexto como tendo um significado amplo, isto é, como um nome que designa o conjunto das ideias. Este sentido amplo da palavra é justificado também –e até requerido – pela passagem do escólio da EIIP49 onde Espinosa rejeita a tese cartesiana segundo a qual a vontade se estende além do entendimento: Se por intelecto se compreendem apenas as ideias claras e distintas, admito que a vontade tem uma extensão maior que a do intelecto. Nego, entretanto, que a vontade tenha uma extensão maior que a das percepções, ou seja, da

faculdade de conceber. E não vejo, realmente, por que se pode dizer que a faculdade de querer seria infinita e não a de sentir. 3.2 Objeções e Respostas Para concluir, então, vejamos brevemente como Espinosa responde neste escólio às quatro objeções de origem cartesiana com as quais ele mede a força de sua tese da identidade entre vontade e entendimento. A primeira objeção consiste em afirmar que a experiência parece mostrar que a vontade se estende além do entendimento. Logo, que ela é infinita, enquanto ele é finito. ⁴² Em sua resposta, como acabamos de ver na citação acima, Espinosa aceita que a vontade se estende além do entendimento tomado no sentido estrito, mas não no sentido amplo da faculdade de perceber. Sua refutação da desproporção entre essas faculdades contém duas etapas: (1) A primeira considera a infinitude da vontade como infinito em extensão, como a capacidade de aplicar-se a todos os objetos possíveis, e sustenta: (1.1) que essa capacidade de afirmar uma “infinidade de coisas” não ser exercida por nós senão sucessivamente , sendo, portanto, apenas um poder indefinido; (1.2) que uma capacidade indefinida pode ser atribuída também à faculdade de perceber ⁴³ ; (1.3) que uma faculdade de querer só pode ser exercida efetivamente se os objetos das volições forem percebidos de alguma forma. Com efeito, o que não podemos perceber, não podemos alcançar por qualquer pensamento e, portanto, não podemos afirmar ou negar. ⁴⁴ 2) A segunda considera a infinitude da vontade tomada formalmente como poder indivisível. Quando ele ataca a tese segundo a qual, se Deus quisesse fazer com que nós percebêssemos mais coisas, ele deveria nos dar uma maior capacidade de perceber, mas não uma maior capacidade de querer para afirmá-las ou negá-las, Espinosa indica em sua resposta que essa crença na suficiência da vontade surge de uma consideração abstrata e confusa acerca de sua forma. ⁴⁵ Com efeito, ele defende: (2.1) que considerar o ato volitivo (afirmação ou negação) formalmente (ou seja, sem as condições concretas do seu exercício) é tomá-lo de uma maneira abstrata, ou seja, formar uma ideia universal do que é comum a todas as volições singulares, deixando de lado suas essências singulares; (2.2) que considerar esta ideia universal como referindo-se a um poder infinito é confundir uma ideia cuja extensão lógica é infinita com um ser real (uma faculdade) que seria infinito. ⁴⁶ A tese cartesiana contém assim, segundo Espinosa, uma confusão que consiste em reificar a ideia universal de vontade e acreditar que um conceito que pode ser aplicado a uma infinidade de indivíduos é uma faculdade cuja forma ou essência seria infinita. É também uma confusão entre noção abstrata e essência real que é apontada por Spinoza como estando na raiz da terceira objeção. Essa objeção consiste em sustentar que a distinção entre vontade e entendimento procede do fato de não encontrarmos diferença de realidade, perfeição ou potência entre as volições, enquanto a encontramos entre as ideias tomadas como ideias de objetos. ⁴⁷ Para refutar isso, Espinosa mostra que é preciso mais uma vez evitar qualquer confusão entre a noção universal de vontade

(noção abstrata que significa o que as volições têm em comum) e as volições concretas que constituem as essências das ideias singulares. ⁴⁸ Vemos então que não apenas as volições singulares são tão diferentes quanto as ideias singulares (a afirmação envolvida na ideia do círculo difere daquela envolvida na ideia do triângulo), mas também que elas são desiguais quanto a seus graus de perfeição ou potência. Com efeito, é preciso mais potência de pensar para afirmar que o que é verdadeiro é verdadeiro do que para afirmar que o que é falso é verdadeiro, pois “essas duas afirmações, quando se considera a mente, estão uma para a outra, assim como o ente está para o não-ente”. Como não há “nada de positivo nas ideias que constitua a forma da falsidade” ⁴⁹ e nenhuma vontade livre na mente, a falsidade não se refere a uma suposta privação do bom uso do livre-arbítrio, mas a uma privação (um tipo de não-ser) de conhecimento envolvido nas ideias inadequadas. ⁵⁰ A desigualdade de potência entre as afirmações é assim explicada pela presença ou ausência de relações dedutivas com outras afirmações (outras ideias) presentes na mente. De fato, é preciso menos potência de pensar para formar uma falsa afirmação a partir de uma ideia inadequada, afirmação que é “como uma conclusão destacada de suas premissas”, do que para formar uma afirmação verdadeira que deriva de uma ideia adequada, ou seja, que é deduzida e justificada a partir de outras ideias. A segunda objeção reenvia à experiência da suspensão do juízo para argumentar que ela ensina claramente que a vontade é livre e que perceber não é julgar. ⁵¹ Em sua resposta, Espinosa não nega a experiência da suspensão, mas mostra que em si mesma ela não ensina nada sobre sua causa, pois ela pode ser perfeitamente reinterpretada a partir de sua tese da identidade entre ideia e volição. De acordo com esta tese, longe de ser um ato incondicionado de uma vontade livre, a suspensão do juízo é na realidade um estado passivo no qual a alma necessariamente se encontra quando surge certa situação de conflito entre duas ideias inadequadas. ⁵² Este estado consiste em uma oscilação entre essas ideias. ⁵³ Como toda ideia envolve uma afirmação, a dúvida não consiste em suprimir inteiramente a afirmação da ideia, mas em torná-la instável em virtude da presença de outra ideia (outra afirmação) que concorre com ela. Essa instabilidade lógica significa que, na situação epistêmica da dúvida, a alma se torna incapaz de chegar a uma conclusão definitiva quanto ao objeto da dúvida, de modo que a afirmação envolvida em sua ideia não tem força suficiente para acarretar uma crença. A quarta objeção, por fim, usa o exemplo do asno de Buridan para argumentar que um homem, diferentemente de um animal, tem o poder de se determinar livremente em uma situação de equilíbrio total. ⁵⁴ Este exemplo ilustra a posição cartesiana de que nossa liberdade pode ser exercida (mesmo que seja em seu grau mais baixo) no estado de absoluta indiferença. Ele foi usado por Espinosa no capítulo 12 dos PM para defender, em nome de Descartes, que o homem não é como um asno estúpido, que perece de fome e de sede em uma tal posição de equilíbrio, mas um ser capaz de se determinar livremente, como o exemplifica a decisão de rejeitar coisas duvidosas como falsas. Na Ética , depois de refutar a noção de faculdade real e a crença no livre arbítrio, Espinosa sustenta sua verdadeira posição, aquela que ele ocultou quando fingiu ter refutado o segundo argumento dos oponentes do livre-arbítrio no capítulo 12 dos PM . Em

consonância com a sua explicação da dúvida como um estado passivo de flutuação mental (explicação da qual se segue que não podemos rejeitar como falso o que é duvidoso, esta rejeição sendo puramente verbal), ele agora concede que um homem colocado em um estado de equilíbrio perfeito terá o mesmo comportamento de um asno, em suma, “morrerá de fome e de sede”. Com efeito, uma vontade indeterminada não pode se determinar pois não encontra em si mesma a determinação que deve dar a si mesma. Essa impossibilidade de autodeterminação ex nihilo , demonstrada nas proposições 26 e 27 da Ética I , baseia-se no EI ax.3 (“de uma causa dada e determinada segue-se necessariamente um efeito; e, inversamente, se não existe nenhuma causa determinada, é impossível que se siga um efeito”) e resulta, em última análise, da adesão de Espinosa ao princípio da inteligibilidade integral do real. 1 . Utilizarei doravante a abreviação PFD , assim como PM para os Pensamentos Metafísicos e BT para o Breve Tratado . As citações da Ética (E) indicam a parte da obra em algarismos romanos, seguida da definição (def.), axioma (ax.), proposição (P), demonstração (D), corolário (C) ou escolio (S) em algarismos arábicos. Todas as passagens sublinhadas nas citações foram sublinhadas por mim. 2 . Cf. PFD , Prefácio (GI/132-133). 3 . Cf. PFD , Prefácio (GI/132). 4 . “Quando se trata da metafísica de Descartes, dispomos de um comentador incomparável que, antes de construir sua própria obra, pensou, meditou e viveu a doutrina do mestre, a saber, Espinosa. Escrito primeiramente para ensinar o cartesianismo a um aluno, completado em seguida em função da demanda insistente de Louis Meyer, os Principia Philosophiae Cartesianae são uma exposição do sistema cuja densidade e fortes articulações merecem reter o historiador da filosofia; em nenhum lugar, nem mesmo sempre no texto de Descartes, o encadeamento das ideias fundamentais aparece com tal rigor e nitidez” (Gilson, 1984, p.299-300). 5 . Cf. Chaui (1998), Jaquet (2009) e Prelorentzos (in Jaquet, 2004). 6 . Essa supressão e essa ênfase foram bem sublinhadas por Jaquet (1999). 7 . Cabe observar que os PM são um apêndice aos PFD e que a discussão epistolar com Blyenbergh foi desencadeada pela leitura destas duas obras e se concentra sobre as consequências da exposição espinosista da solução cartesiana do problema do erro para o problema do mal. 8 . Cf. PM capítulos 8, 9 et 11. 9 . Cf. carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645. 10 . Estes pontos foram sublinhados por Prelorentzos (in Jaquet, 2004, pp. 105-112). 11 . Eu adoto aqui a distinção das três formas de infinitude da vontade proposta por Gueroult (1968, p.324-328).

12 . Cf. P15S: “pois nossa vontade não é determinada por quaisquer limites. O que cada um pode claramente ver, contanto que atente para o fato de que, se Deus quisesse tornar infinita a nossa vontade de entender, não seria preciso dar-nos uma faculdade de assentir mais ampla que esta que já temos, para que pudéssemos assentir a tudo que é por nós entendido, mas esta mesma que já temos seria suficiente para assentir a infinitas coisas” (GI/173-174). 13 . Cf. Quarta Meditação : “E essa indiferença não se estende somente às coisas das quais o entendimento não tem nenhum conhecimento , mas geralmente também a todas aquelas que ele não descobre com uma clareza perfeita [...]” (AT IX 47). 14 . “A vontade se dirige voluntária e livremente (pois isso é de sua essência), mas no entanto de modo infalível, ao bem que lhe é claramente conhecido. Daí por que, se ela chega a conhecer quaisquer perfeições que não possua, entregar-se-lhes-á imediatamente, caso estejam ao seu alcance; pois reconhecerá que lhe é um maior bem possuí-las, do que não as possuir” (AT IX 128). 15 . Cf. P15S: “[…] se atentarmos para os modos de querer, conforme diferem uns dos outros, descobriremos uns mais perfeitos que outros, conforme uns mais que outros tornam a vontade menos indiferente, isto é, mas livre” (GI/175). 16 . Cf. Quarta Meditação : “E não tenho nenhum direito de me lastimar se Deus, tendo-me colocado no mundo, não me tenha querido colocar na ordem das coisas mais nobres e perfeitas” (AT IX 49). 17 . Cf. P15S: “[…] pois a natureza de coisa alguma pode exigir algo de Deus, nem pertence a uma coisa algo além daquilo que a vontade de Deus quis outorgar-lhe; com efeito, nada existe nem pode ser concebido antes da vontade de Deus (como se explica profusamente em nosso Apêndice, parte 2, cap.7 e 8) (GI/176). 18 . Cf. a este propósito Jaquet (2009). 19 . Cf. Quarta Meditação : “Pois, com efeito, não é uma imperfeição em Deus o fato de ele me haver concedido a liberdade de dar meu juízo ou de não o dar sobre certas coisas, a cujo respeito ele não pôs um claro e distinto saber em meu entendimento; mas, sem dúvida, é em mim uma imperfeição o fato de eu não a usar corretamente e de dar temerariamente meu juízo sobre coisas que eu concebo apenas com obscuridade e confusão” (AT IX 48). 20 . Cf. Carta 21(GIV/128). 21 . Cf. EIIP48D: « A mente é um modo definido e determinado do pensar (pela P11). Portanto, (pelo corolário 2 da EIP17), ela não pode ser causa livre de suas ações, ou seja, não pode ter a faculdade absoluta de querer e de não querer; ela deve ser determinada a querer isto ou aquilo (pela EIP28) por uma causa que é, também ela, determinada por outra, e esta última, por sua vez, por outra, etc.” (GII/129).

22 . Cf. EI def.7. 23 . Cf. EIP14. 24 . Cf. Princípios I, artigos 6 et 39. A propósito da recusa por Espinosa do valor epistêmico da consciência imediata, vide a carta 58 a Schuller. 25 . Sobre a origem imaginativa das ideias abstratas, cf. EIIP40S1. 26 . Segundo esta forma de necessitarismo, as leis da Natureza e o nexo infinito de causas finitas que determinam todas as coisas e acontecimentos particulares são absolutamente necessários. 27 . Como indica Voelke, Espinosa recusa assim a psicologia das faculdades de origem aristotélica “que considerava as funções da alma como propriedades essencial e logicamente distintas, presentes em potência quando elas não se exercem em ato” (p.28-29), e adota uma psicologia de origem estoica (Crisipo), na medida em que ele “faz consistir a realidade das funções psíquicas nos atos singulares do sujeito individual”. Segundo esta psicologia, “as funções do hegemonikon seriam, portanto, puras operações, toda a realidade da dynamis ou potência residiria na energeia , isto é, na própria ação” (1973, p.27). 28 . Cf. a este propósito os PM , parte I, cap.1. 29 . Este ponto foi explicitamente abordado nos PM , parte I, cap.1. 30 . No BT (Parte II, cap.16, nota 3). Espinosa oferece um longo argumento (que desaparece na Ética ) para mostrar que, no limite, essa reificação das faculdades coloca um problema de interação no interior da mente, pois ela torna impossível qualquer interação entre os modos da vontade e os modos do entendimento: “Mas, no que me concerne, quando as considero com atenção, elas me parecem ser universais e não lhes posso atribuir nada de real. Porém, se fossem reais, seria preciso supor que a volição é um modo da vontade e as ideias modos do entendimento. Daí se segue que o entendimento e a vontade são necessariamente distintos e substâncias realmente distintas, pois a substância é modificada, não o modo. Caso se diga que a mente governa essas duas substâncias, é porque existe então uma terceira substância; o que torna as coisas tão confusas que é impossível fazer delas um conceito claro e distinto. Pois como a ideia não está na vontade, mas no entendimento, em virtude da máxima segundo a qual o modo de uma substância não pode passar para uma outra, não pode nascer qualquer amor na vontade: pois é contraditório que se possa querer algo cuja ideia não está no poder que quer [...] (Spinoza, 2009, pp.333-334, tradução minha) 31 . Para a crítica de Espinosa ao modelo da ideia-quadro, cf. EII def.3, EIIP43S, EIIP48S, EIIP49S. 32 . Esta parte da demonstração repousa sobre EII ax.3: “os modos de pensar tais como o amor, o desejo, ou qualquer outro que se designa pelo nome de afeto do ânimo, não podem existir se não existir, no mesmo indivíduo, a ideia da coisa amada, desejada, etc. Uma ideia, em troca, pode

existir ainda que não exista qualquer outro modo do pensar” (GII/86). Este axioma não coloca nenhum problema para um leitor cartesiano, pois, como observa Beyssade, ele retoma uma tese formulada por Descartes na Terceira Meditação (AT IX 29), segundo a qual “ todo pensamento, se ele não é uma ideia, contém uma ideia ou representação de objeto à qual ele acrescenta uma forma” (1979, p.207, nota 4). 33 . Cf. EIIIP6. 34 . Cf. EIIIP4. 35 . Cf. EIIIP6. 36 . Em suma, como o explicita a referência da demonstração à EIIIP3, enquanto a mente se compõe de várias ideias, “algumas das quais (pela EIIP38C) são adequadas, enquanto outras são inadequadas (pela EIIP29C)”. 37 . EIIP48S. 38 . Cf. Jaquet (2005, p.91-92). 39 . Na primeira metade de seu artigo, Jaquet analisa a essência da vontade e sugere duas interpretações para o termo “apenas” utilizado na expressão “à medida em que [o conatus ] está referido apenas à mente”. Segundo sua análise, este termo pode ser empregado seja para excluir toda causa exterior à mente, seja para significar a ausência de relação ao corpo. Estas duas interpretações conduzem-na a identificar a vontade ao entendimento no sentido estrito, isto é, ao conjunto de ideias adequadas que constituem a parte ativa e eterna da mente (cf. EVP40C). Este resultado, no entanto, é problemático, pois ele não permite dar conta da universalidade da tese da identidade entre ideia e volição estabelecida pela EIIP49. Parece-me assim que o termo “apenas”, que fixa o significado do termo “Vontade”, deve receber uma interpretação mais fraca que o torna compatível com as volições envolvidas tanto nas ideias adequadas quanto nas ideias inadequadas. Essa interpretação consiste em lembrar que certos termos só têm sentido para Espinosa na descrição de modos em um atributo específico (como “ideia”, “vontade” ou “decreto”, na descrição dos modos do atributo pensamento, e “repouso”, “movimento” e “determinação do corpo”, na descrição dos modos do atributo extensão. Cf. EIIP2S), enquanto outros termos se aplicam de uma maneira unívoca aos modos (considerados distributivamente ou coletivamente) nos dois atributos que nós conhecemos, possuindo um mesmo sentido nos dois registros. Assim, as palavras “potência” e “ conatus ” podem se aplicar distributivamente aos modos dos dois atributos, enquanto as palavras “apetite” e “desejo” se aplicam à mente e ao corpo tomados em conjunto (cf. EIIIP9S). A propósito desta prática terminológica de Espinosa, cf. Beyssade (1999, p.114). 40 . Em seu Cours sur la Volonté , Marion (2014) sustenta que “Espinosa põe um princípio fundamental: a afirmação, ou a negação, está ligada à evidência da ideia” (p.71), e ele conecta em seguida este princípio à tese espinosista do verum index sui e à sua concepção da certeza (p.71-72). Ora, Espinosa sustenta explicitamente que as ideias inadequadas também envolvem uma afirmação, ainda que o tipo de adesão que elas acarretam

(qualquer que seja aliás a força dessa adesão) não constitui a certeza: “quando dizemos que um homem se satisfaz com ideias falsas e não duvida delas [ hominem in falsis acquiescere, nec de iis dubitare ], não dizemos com isso que ele está certo, mas apenas que não duvida, ou seja, que se satisfaz com ideias falsas porque não existe qualquer causa que faça com que sua imaginação flutue” (EIIP49S). 41 . Cf. EIIP49S: “[...] nego que um homem, à medida que percebe, nada afirma. Pois que outra coisa é perceber um cavalo alado senão afirmar de um cavalo que ele tem asas?”. 42 . “[...] dizem saber, por experiência, que para dar nosso assentimento a uma infinidade de diferentes coisas que não percebemos não nos falta uma faculdade de assentir – ou seja, de afirmar e de negar – maior do que a que já temos, mas uma maior faculdade de compreender. A vontade distingue-se, pois, do intelecto, por este ser finito e aquela, infinita” (GII/132). 43 . “Pois, assim como, por essa faculdade de querer, podemos afirmar infinitas coisas (uma por vez, entretanto, pois não podemos afirmar infinitas coisas ao mesmo tempo”), da mesma maneira, por essa faculdade de sentir, podemos, igualmente, sentir ou perceber infinitos corpos (um por vez, evidentemente)” (GII/133). 44 . “E se dizem que existem infinitas coisas que não podemos perceber? Replico que não podemos apreendê-las por nenhum pensamento e, consequentemente, por nenhuma faculdade de querer” (GII/133). Esta resposta retoma a maneira como Espinosa expõe Descartes nos PFD e decorre da tese cartesiana segundo a qual o juízo supõe, como todo modo do pensamento, uma ideia e nasce do concurso das duas faculdades. 45 . Essa tese da suficiência da vontade aparecia nos PFD conectada à consideração da infinitude da vontade tomada em extensão, sem ser vinculada por Espinosa à consideração da infinitude da vontade tomada como poder formalmente indivisível. 46 . “O que é a mesma coisa que dizer que se Deus tivesse querido fazer com que compreendêssemos uma infinidade de outros entes, teria sido necessário, na verdade, que nos tivesse dado, para abarcar essa infinidade de entes, um intelecto maior do que o que nos deu e não uma ideia mais universal do ente. Mostramos, com efeito, que a vontade é um ente universal, quer dizer, uma ideia pela qual explicamos todas as volições singulares, isto é, aquilo que é comum a todas elas. E, portanto, como acreditam que essa ideia comum ou universal de todas as volições é uma faculdade, não é nada surpreendente que digam que essa faculdade tem uma extensão infinita, para além dos limites do intelecto. Pois o universal se diz igualmente de um e de muitos, assim como de uma infinidade de indivíduos” (GII/133-134). 47 . “Uma afirmação não parece conter mais realidade que outra, isto é, não parecemos precisar de uma potência maior para afirmar que o verdadeiro é verdadeiro do que para afirmar que o falso é verdadeiro. Percebemos, entretanto, que uma ideia tem mais realidade ou perfeição do que outra, pois é à medida que certos objetos são melhores que outros que as

respectivas ideias de uns são melhores que as de outros, o que, igualmente, parece permitir que se estabeleça uma diferença entre a vontade e o intelecto” (GII/133). 48 . “[...] a vontade é algo de universal, que se predica de todas as ideias, e que significa apenas aquilo que é comum a todas elas, isto é, a afirmação, cuja essência abstrata, enquanto é assim abstratamente concebida, deve, por isso, existir em cada uma das ideias, e apenas segundo essa relação é a mesma em todas elas, o que não ocorre enquanto a afirmação é considerada como constituindo a essência da ideia, pois, segundo essa última relação, as afirmações singulares diferem entre si tanto quanto as próprias ideias” (GII/ 135). 49 . Cf. EIIP33. 50 . Cf. EIIP35. Espinosa mantém a noção de privação em sua explicação da falsidade. Tendo em vista sua crítica do uso cartesiano desta noção na carta 21, é preciso determinar o sentido exato que ele lhe atribui na Ética . No entanto, esta importante tarefa para a compreensão da explicação propriamente espinosista do erro ultrapassa os objetivos deste artigo. 51 . “[...] a experiência parece ensinar, mais claramente do que tudo, que podemos suspender nosso juízo para não dar nosso assentimento a coisas que não percebemos, o que seria confirmado por não se dizer que alguém se engana enquanto percebe algo, mas apenas enquanto assente ou dissente” (GII/132). 52 . “Com efeito, quando dizemos que alguém suspende o seu juízo, não dizemos senão que ele vê que não percebe adequadamente a coisa. A suspensão do juízo é, portanto, na realidade, uma percepção e não uma vontade livre” (GII/134). 53 . Na EIIIP17S, Espinosa afirma que entre a dúvida e a flutuação afetiva há apenas uma diferença de grau e não de natureza: “O estado da mente que provém de dois afetos contrários é chamado de flutuação de ânimo e está para o afeto assim como a dúvida está para a imaginação (veja-se o esc. Da prop.44 da EII); a flutuação de ânimo e a dúvida não diferem entre si a não ser por uma questão de grau” (GII/153). 54 . Se o homem não age de acordo com a liberdade de sua vontade, o que acontecerá, então, quando, tal como o asno de Buridan, ele estiver indeciso entre uma opção e outra? Morrerá de fome e de sede? Se respondo sim, vai parecer que estou pensando em um asno ou em uma estátua de homem e não em um homem. Se, ao contrário, respondo não, a conclusão será, então, que ele se determinaria por si mesmo e teria, consequentemente, a faculdade de se mover e de fazer qualquer coisa que quisesse” (GII/133). Bibliografia Beyssade, Jean-Marie, La Philosophie Première de Descartes , Flammarion, Paris, 1979.

___, “Nostri Corporis Affectus: Can an Affect in Spinoza be ‘of the Body’?”, in Y. Yovel (ed.), Desire and Affect: Spinoza as Psychologist , Little Room Press, New York, 1999, pp. 113-128. Chaui, Marilena, “Fidelidade infiel: Espinosa comentador dos Princípios da Filosofia de Descartes”, in Revista Analytica , vol. 3, n° 1, 1998. Descartes, René, Œuvres Philosophiques , F. Alquié, (éd.), 3 tomes, Garnier, Paris, 1963/1973. Gilson, Étienne, Etudes sur le rôle de la Pensée Médiévale dans la Formation du Systè me Cartésien , Vrin, Paris, 1984. Gueroult, Martial, Descartes selon l’ordre des raisons , vol.1, Aubier, Paris, 1968. Jaquet, Chantal, “L’erreur dans les Principes de la Philosophie de Descartes de Spinoza, I, XV”, in Revista Analytica , vol.13, nº2, 2009, pp. 13-27. Jaquet, Chantal, « Le rôle positif de la volonté chez Spinoza », in Les expressions de la puissance d’agir chez Spinoza , Publications de la Sorbonne, Paris, 2005. Marion, Jean-Luc, Cours sur la Volonté , édité par Christophe Perrin, UCL Presses Universitaires de Louvain, Louvain, 2014. Prelorentzos, Yannis, in C. Jaquet, (éd.), Les pensées métaphysiques de Spinoza , Publications de la Sorbonne, Paris, 2004, pp.97-122. Spinoza, Baruch, Spinoza Opera , C. Gebhardt (ed.), 4 volumes, Carl Winters, Heidelberg, 1924. ___, Œ uvres 1 , trad. et notes de Ch. Appuhn, Garnier Flammarion, Paris, 1964. ___, Éthique , présenté et traduit pas B. Pautrat, Éditions du Seuil, Paris, 1999. ___, Ética , tradução T. Tadeu, Autêntica, Belo Horizonte, 2008. ___, Œuvres I, P.-F Moreau (dir.), PUF, Paris, 2009. ___, Correspondance , présentation et traduction par M. Rovere, Garnier Flammarion, Paris, 2010. ___, Princípios da Filosofia Cartesiana e Pensamentos Metafísicos , tradução H. Santiago e L.C.G. Oliva, Autêntica, Belo Horizonte, 2015. Voelke, André-Jean, L’id ée de volonté dans le stoïcisme , Paris, PUF, 1973. Forma e predicado em Tomás de Aquino – uma crítica a Form and existence . ¹

Markos Klemz Guerrero (UFRRJ) É um truísmo filosófico a tese de que os itens da linguagem ordinária capazes de expressar conteúdos verdadeira ou falsamente são as orações predicativas, complexos como ‘Sócrates é homem’ ou ‘Todo cisne é amarelo’. Mais polêmico, porém, é o grau de perspicuidade lógica atingido pela análise gramatical em sujeito e predicado desses signos complexos verdadeiros ou falsos. Assim, ainda que seja claro que orações como ‘Sócrates é homem’ e várias outras que apresentam uma estrutura gramatical similar sejam os signos verdadeiros ou falsos por excelência na linguagem ordinária, não é claro se a análise dessa predicação no sujeito ‘Sócrates’ e no predicado ‘é homem’ capta, ainda que parcialmente, aquilo que é fundamental para a verdade ou falsidade do complexo. Isso ou porque a distinção em sujeito e predicado poderia ser acidental em relação à verdade ou falsidade da proposição analisada, ou porque essa distinção é adequada, mas ‘Sócrates’ e ‘é homem’ simplesmente não são sujeito e predicado no sentido logicamente relevante. A filosofia analítica da linguagem notabilizou-se, entre outras coisas, por desafiar a adequação e relevância filosóficas da análise gramatical, tanto do ponto de vista da divisão em sujeito e predicado, quanto do ponto de vista da identificação do sujeito e predicado lógicos de signos verdadeiros ou falsos. Do primeiro ponto de vista, tomado de modo genérico, esses signos poderiam ser mais bem divididos em funções proposicionais, variáveis, constantes e quantificadores; do segundo ponto de vista, ainda que se pudesse reservar algum espaço para a noção de um sujeito de predicação, não necessariamente esse deveria se identificar com o sujeito gramatical da respectiva oração. Sem dúvida, o advento de linguagens formalizadas embutido no desenvolvimento da lógica contemporânea teve decisivo papel contextual na proeminência desse gênero de questionamento, que não é, todavia, inteiramente uma inovação da filosofia da linguagem a partir do século XX. Embora se deva admitir que a semântica clássica de Aristóteles e seus seguidores escolásticos apresentou, em suas diversas manifestações, muito menos suspeitas e mais boa vontade com a pertinência filosófica da análise gramatical, esse acolhimento teórico não se fez de maneira acrítica. Se por um lado sujeito e predicado são categorias onipresentes na análise filosófica medieval do discurso enunciativo, por outro lado, o modo como se dá a relação entre essas duas funções lógicas na constituição de uma predicação é tema de numerosas controvérsias: como é obtida uma unidade entre esses dois elementos e por que ela é necessária para veicular verdade ou falsidade? Qual é o papel do verbo ‘é’ em enunciados de 2º e 3º adjacentes, como, respectivamente, ‘Sócrates é’ e ‘Sócrates é homem’? Que gênero de contribuição o predicado dá ao sujeito? Essas controvérsias se manifestam não apenas por meio de quadros conceituais de diferentes autores, mas também nas interpretações alternativas que se podem dar para o tema na obra de um mesmo filósofo. A controvérsia pertinente à forma lógica dos enunciados apofânticos, do ponto de vista da teoria da predicação de Tomás de Aquino, se manifesta em duas teses proeminentes dentre a tendência filosófica que se costuma denominar

tomismo analítico. Ambas põem em xeque, em alguma medida, a adesão de Tomás de Aquino à análise gramatical, isto é, ambas questionam até que ponto a análise de certos juízos predicativos na forma S é P captaria de modo perspícuo sua genuína estrutura lógica. De acordo com a primeira dessas teses, predicações como ‘Existem homens’ ou ‘Homem é’ na verdade não deveriam ser analisadas como sendo constituídas pelo sujeito ‘homem(s)’ e pelo predicado ‘existe’(é), mas sim, como consistindo na atribuição do predicado ‘homem’ a algo, de tal forma que, de um ponto de vista lógico, a forma gramatical ‘S é’ poderia e deveria ser traduzida pela forma ‘Algo é S’. Nessa perspectiva, o sujeito gramatical de enunciados existenciais, em particular daqueles nos quais é afirmada ou negada a instanciação efetiva de um conceito geral, é, na verdade, o predicado lógico desses signos veritativos. Denominaremos essa tese, assumida de modo explícito no célebre artigo de P. Geach, Form and existence , ‘interpretação quantificacional’, na medida em que ela pretende encontrar na teoria tomista da predicação uma precursora da análise fregeana do uso existencial do verbo ‘é’, ao menos no que diz respeito ao domínio restrito dos enunciados cujo sujeito gramatical é um termo geral, ao invés de um nome próprio. De acordo com a segunda dessas teses, por sua vez, aquilo que é significado por predicados como ‘branco’ em ‘Sócrates é branco’ seria um item ontológico distinto daquele que é significado pelo sujeito ‘Sócrates’. Esse item ontológico que seria o conteúdo semântico de predicados atributivos consistiria, nesse exemplo, numa forma acidental conjugada, mediante o verbo ‘é’, ao supósito significado pelo sujeito do enunciado. Assim, ‘Sócrates é branco’ enunciaria a atribuição da forma acidental de brancura ao indivíduo Sócrates. Denominaremos essa tese, também assumida por Geach no artigo referido, ‘leitura de re do hilemorfismo predicacional ’, pois, de acordo com ela, a comparação feita por Tomás entre a relação sujeito-predicado e a relação matéria-forma consiste em que o termo predicado de um enunciado tenha como conteúdo semântico uma forma que, caso a predicação seja verdadeira, é forma da entidade que é conteúdo semântico do termo sujeito. A leitura de re do hilemorfismo predicacional é um dos alicerces do que se convencionou chamar ‘teoria da predicação como inerência’ na literatura secundária acerca de teorias medievais da predicação. J. Malcolm, por exemplo, identifica como aspecto distintivo dessa família de teorias que “o termo predicado significa alguma coisa que não o sujeito, e a inerência dessa outra entidade no sujeito é expressa pela cópula somada à expressão predicada.” ²

Ambas as teses defendidas por Geach são interpretações distorcidas do pensamento de Tomás de Aquino, que decorrem de uma incompreensão acerca da natureza da relação entre sujeito e predicado segundo uma perspectiva tomista. A interpretação quantificacional pode ser útil numa versão enfraquecida que não afirme a necessidade, mas sim a mera possibilidade de converter enunciados da forma ‘S é’ em enunciados da forma ‘Algo é S’; nesse sentido, ela certamente é autorizada por Tomás ao menos no caso de predicações nas quais se afirme que algum não-ente, como a cegueira ou o mal, existem. A leitura de re do hilemorfismo predicacional, entretanto, envolve uma perniciosa e inaceitável contaminação platônica do pensamento de Tomás. Ao longo do presente trabalho, tomaremos como foco o exame dessa última tese no artigo Form and existence. ³ I. Geach contra a teoria dos dois nomes. Geach não resiste a assinalar a notável proximidade que enxerga entre a teoria fregeana e a teoria tomista da predicação: “Frege, como Tomás, sustentou que há uma distinção fundamental in rebus correspondendo à distinção lógica entre sujeito e predicado [...]” ⁴ . Ele chega a essa conclusão através de dois argumentos. O primeiro consiste numa desqualificação do que ele considera um dos obstáculos para que se aceite que “essa distinção lógica [entre sujeito e predicado] corresponde a alguma distinção real” ⁵ . Esse obstáculo é a interpretação da predicação como consistindo meramente em algum gênero de identificação, por meio da cópula ‘é’, entre os significados de dois termos, o termo sujeito e o termo predicado. Assim, ‘Homem é branco’ consistiria somente na identificação entre algo que é homem e algo que é branco, respeitando as devidas qualificações que podem ser introduzidas por quantificadores. Geach expressa grande descaso por aquilo que ele chama de ‘teoria dos dois nomes’, relegando sua aparente ocorrência nos textos de Tomás ⁶ ao mero papel de uma descrição de condições de verdade extrínseca e posterior à forma lógica de uma predicação. O segundo argumento oferece uma razão para que se aceite que não apenas há alguma assimetria lógica entre sujeito e predicado, mas a função lógica típica de termos predicados exige que eles signifiquem formas, de tal modo que em ‘S é P’ ‘é P’ significaria a forma de P que não é individual por si mesma, mas se encontra individualizada em S. Podemos identificar dois aspectos distintos na crítica de Geach à teoria dos dois nomes. Segundo ele, a teoria é inadequada, em primeiro lugar, na medida em que reduz a predicação a uma identificação entre aquilo que na realidade seria significado pelo termo sujeito e pelo termo predicado, apagando qualquer assimetria entre funções lógicas no interior do predicado. Mas mesmo que sustentasse apenas que uma das coisas que está ocorrendo numa predicação é aquele gênero de identificação, ainda assim a teoria dos dois nomes seria inadequada. É apenas o segundo aspecto da crítica que implicaria por si só a necessidade de postular uma distinção in rebus correspondente à distinção lógica entre sujeito e predicado, afinal, como o próprio Geach reconhece, sujeito e predicado poderiam ter funções lógicas distintas em virtude de uma mera diferença de modo de significação, sem a necessidade de um correlato real para essa diferença lógica.

Quanto ao primeiro aspecto, Geach não chega a explicitar nenhuma razão clara para que devamos encontrar alguma assimetria lógica entre sujeito e predicado, tomando como suposição amplamente difundida que esse seja o caso. Talvez um defensor radical da teoria dos dois nomes pudesse protestar que a distinção entre as funções de sujeito e de predicado é meramente gramatical, mas logicamente irrelevante no enunciado ‘Todo homem é branco’, pois esse apresenta as mesmas condições de verdade do enunciado ‘A extensão inteira do conceito de homem coincide com alguma parte da extensão do conceito de branco’, onde ‘homem’ e ‘branco’ podem ser intercambiados desde que respeitadas as respectivas quantificações. Tomás, de sua parte, demonstra reservas em relação à quantificação de predicados, que toma como uma operação lógica ao menos desviante: [...] não é conveniente nem que o signo universal nem que o particular [isto é, nem ‘todo’ nem ‘algum’] seja adicionado ao predicado, mas antes ao sujeito: pois é mais conveniente dizer que ‘Nenhum homem é asno’ do que ‘Todo homem é nenhum asno’; e semelhantemente é mais conveniente dizer que ‘Algum homem é branco’ do que ‘Homem é algum branco’ ⁷ Vale notar que nessa passagem Tomás não expressa uma recusa categórica a quantificação de predicados, mas vê apenas uma diferença de conveniência. Quantificar o predicado é apenas menos adequado que quantificar o sujeito. De fato, na sequência do texto, ele concede a validade da opção que considera menos conveniente, ao notar que Embora o signo universal negativo ou o particular afirmativo seja mais convenientemente posto na parte do sujeito, ainda assim não repugna à verdade se também são postos na parte do predicado. Com efeito, acontece de tais enunciações serem verdadeiras em alguma matéria: assim, pois, é verdade que ‘todo homem é nenhuma pedra’, e similarmente, é verdade que ‘Todo homem é algum animal’. ⁸ A quantificação de predicados é, embora possível, inconveniente. Essa inconveniência é explicada mais à frente pelo fato de que “o predicado é como que a parte formal da enunciação, porém o sujeito é parte material” ⁹ . Em outras palavras, a quantificação, ao determinar o modo pelo qual um universal é tomado em relação aos indivíduos que caem sob ele, diz respeito à determinação material de um universal, isto é, à determinação de quais coisas caem sob ele. Desse modo, haveria um descompasso entre a função lógica do predicado e o gênero de determinação que é acrescentada a um universal pelos quantificadores ‘todo’ e ‘algum’, embora não haja um tal descompasso no que tange à função lógica do sujeito. Se, de um lado, essas considerações constituem apenas uma indicação de que haveria algum gênero de analogia entre a distinção sujeito-predicado e a distinção matériaforma, por outro lado, elas não deixam margem a dúvidas sobre a vigência de uma assimetria lógica entre sujeito e predicado. Desse modo, nesse ponto, a crítica de Geach à teoria dos dois nomes é genuinamente tomista. Se enunciados com a estrutura ‘S é P’ se limitam apenas e tão somente a afirmar a identidade entre dois grupos de entes, como sustenta a teoria dos dois nomes que ele descreve, não há como distinguir sujeito e predicado em um juízo. O que não está comprovado, porém, é que o gênero de assimetria entre sujeito e predicado deva ser uma distinção de tipo entre o item real

que é conteúdo semântico do sujeito e o item real que é conteúdo semântico do predicado. Na verdade, Tomás nega essa assimetria semântica ao mesmo tempo em que afirma uma assimetria lógica. Antes de voltarmos nossa atenção para isso, vejamos o segundo aspecto da crítica de Geach à teoria dos dois nomes. De acordo com essa teoria da predicação, a relação entre ‘homem’ e ‘branco’ na predicação ‘um homem é branco’ seria explicada como uma relação de identidade de referência entre os termos ‘algo que é homem’ e ‘algo que é branco’. Mas esses termos, por sua vez, supõem uma estrutura predicativa análoga àquela que se pretendia explicar em primeiro lugar ¹⁰ . Assim, a frivolidade da teoria dos dois nomes se manifestaria no fato de ela envolver a sinonímia entre termos como ‘branco’ e termos como ‘algo que é branco’, os quais, por sua vez, não seriam menos problemáticos que predicações como ‘Algo é branco’. Como consequência, não se deve aceitar que um termo predicado ‘P’ seja equivalente a um termo predicado ‘algo que é P’, ou ao menos não se deve aceitar que essa equivalência possa ser em alguma medida frutífera para explicar a forma lógica de uma predicação. No entanto, não é totalmente claro em que sentido ou até que ponto a equivalência entre ‘P’ e ‘algo que é P’ transfere o problema da predicação para o interior de um termo predicado. Certamente, não se pode dizer que o verbo ‘é’ desempenhe, em ‘algo que é P’, a função que desempenha em ‘Algo é P’, visto que as propriedades lógicas dessas duas expressões são significativamente distintas: ao contrário de ‘algo que é P’, ‘algo é P’ é uma predicação e, enquanto tal, é verdadeira ou falsa. Resta supor que a ocorrência do verbo ‘é’ na expressão nominalizada tem um dos dois sentidos que o verbo ´é’ assume para Tomás: “[...] ser se diz em dois sentidos: de um modo significa o ato de ser; de outro modo, significa a composição de uma proposição, à qual a alma chega unindo um predicado a um sujeito.” ¹¹ Caso ‘é’ tenha o primeiro sentido na expressão ‘algo que é P’, a equivalência entre ela e ‘P’ simplesmente indicaria que o discurso no qual ela é usada faz uma referência à atualidade daquilo de que ela é signo, isto é, que ‘P’ é o conceito de algo atual. Talvez essa análise seja aceitável em muitos casos, como quando ‘P’ é o termo ‘branco’, visto que apenas entes reais podem ser brancos e a brancura é uma determinação categorial, isto é, uma determinação cujo ser pode ser posto numa das categorias. Por outro lado, essa análise criaria consideráveis constrangimentos quando aplicada a conceitos de privações como a cegueira ou não-entes como a quimera. Assim, numa análise mais uniforme de expressões nominalizadas como ‘algo que é P’, o verbo ‘é’ deve apresentar seu segundo sentido, de acordo com o qual significaria a composição de uma proposição. Mas não era justamente esse o ponto de Geach? Se o ‘é’ de ‘algo que é P’ apresenta seu sentido predicativo, parece que somos obrigados a conceder que ‘algo que é P’ herda os problemas da predicação ‘Algo é P’. Examinemos melhor, para diluir essa impressão, quais são as consequências de assumir que o verbo ‘é’, em expressões nominalizadas, apresenta de algum modo o sentido de cópula predicativa. Como já vimos, essa interpretação não pode de modo algum nos levar a considerar que ‘é P’ esteja sendo predicado de algo em ‘algo que é P’. Mas ao menos é preciso admitir que a expressão “algo que é P” apresenta algo

como um possível candidato a sujeito do predicado ‘P’ – caso leiamos a expressão enfatizando ‘ algo que é P’ – ao mesmo tempo em que apresenta ‘P’ como um possível predicado de algo – caso leiamos a expressão enfatizando ‘algo que é P ’. Assim, a equivalência entre ‘P’ e ‘algo que é P’ apenas indicaria que as partes de uma predicação, tomadas isoladamente, já contêm uma referência à possibilidade de sua ocorrência em predicações. Esse resultado não apenas parece inofensivo, mas desejável do ponto de vista da psicologia cognitiva de Tomás, onde a segunda operação do intelecto, que constitui juízos predicativos, desfruta de uma certa prioridade lógica sobre a primeira operação, responsável por constituir conceitos. Essa prioridade lógica, naturalmente, não se coloca no nível composicional (juízos são compostos por conceitos, os quais precedem enquanto partes os respectivos juízos), mas sim na medida em que a formação de conceitos é orientada, ou seja, tem como finalidade intrínseca, seu uso em juízos predicativos onde se exprime verdade ou falsidade. Mas como é possível então que ‘algo que é P’ exprima o mesmo que ‘P’? ‘Algo’ (ou thing , no original), nesse caso, não parece estar sendo usado no sentido técnico que tem no pensamento de Tomás, isto é, como o transcendental ‘algo’, que exprime a distinção de um ente em relação aos demais, nem como o transcendental ‘coisa’, que exprime a determinação que um ente tem tomado em si mesmo. ‘Algo’, nessa expressão, é simplesmente um pronome indefinido, de tal modo que a equivalência entre ‘algo que é P’ e ‘P’ é a equivalência entre ‘o que é P’ e ‘P’. Com isso, uma vez que ‘ente’, particípio presente do verbo ‘é’, e ‘o que é’ são explicitamente considerados sinônimos por Tomás ¹² , aceitar que ‘P’ tenha o mesmo sentido que ‘algo que é P’ não é nada mais que aceitar que, por exemplo, ‘branco’ tenha o mesmo sentido de ‘ente branco’. Novamente, temos aqui não uma dificuldade para a filosofia tomista, mas um resultado acolhido e previsível: tudo que é concebido, é concebido enquanto ente ¹³ – seja na posição sujeito, seja na posição predicado. Desse modo, essa primeira crítica de Geach à “teoria dos dois nomes” não faz jus à filosofia de Tomás de Aquino.

Além disso, caso a equivalência entre o ‘branco’ que é predicado e ‘o que é branco’ apenas deslocasse o problema da predicação para o interior do predicado, o mesmo problema ocorreria no que diz respeito ao sujeito. Em outras palavras, uma teoria da predicação na qual o predicado contivesse indiretamente uma estrutura predicativa não seria mais inepta do que o seria uma teoria na qual o sujeito contivesse o mesmo gênero de estrutura. Mas Geach em momento algum contesta a equivalência entre ‘S’, usado como sujeito, e expressões da forma ‘o que é S’. Na verdade, ele considera que a função do sujeito é nomear aquilo de que o predicado é dito verdadeira ou falsamente, e que um nome ‘S’ é equivalente a uma expressão como ‘o que é S’ – justamente por isso a teoria dos dois nomes deve assumir que termo sujeito e termo predicado, na medida em que são igualmente nomes, nomeiam respectivamente algo que é S e algo que é P. Mas suponhamos que Geach não assumisse que um termo sujeito ‘S’ deve ser equivalente a ‘o que é S’ para nomear. Nesse caso, tampouco um termo predicado ‘P’ precisaria ser equivalente a ‘o que é P’ para nomear, livrando a teoria dos dois nomes da acusação de precisar postular esse tipo de equivalência para o termo predicado. Ou bem a acusação de Geach se volta contra ele mesmo no que diz respeito ao termo sujeito, ou bem ela não se aplica à teoria dos dois nomes no que diz respeito ao termo predicado. II. A tentação platônica de Geach. Após criticar a teoria dos dois nomes, visando remover o principal obstáculo à aceitação da variedade de hilemorfismo predicacional que ele defende, Geach apresenta um argumento positivo em prol de sua posição. Esse argumento já insinua uma defesa da interpretação quantificacional que será desenvolvida na segunda parte do artigo, mas pode ser reconstruído sem que entremos no mérito dessa defesa posterior. Segundo ele, é preciso afirmar que o predicado corresponde a algo realmente distinto daquilo a que o sujeito corresponde porque enunciados que atribuem multiplicidade a algo não podem atribuí-la a indivíduos, uma vez que indivíduos não são multiplicáveis em princípio. Esse algo que, ao contrário do indivíduo, é multiplicável, é a forma, que se distingue ontologicamente do indivíduo ou conjunto de indivíduos entre os quais normalmente está o sujeito lógico de uma predicação. Assim, seguindo o exemplo de Geach, ao responder à pergunta ‘Quantos patos estão nadando na Fonte Chamberlain?’ com a resposta ‘3’, está-se atribuindo triplicidade à forma significada pelo predicado ‘pato nadando na Fonte Chamberlain’ ¹⁴ . Pode-se perceber, já neste ponto, uma certa excentricidade na análise da estrutura da referida resposta que é proposta por ele. A resposta ‘3’ parece atribuir o predicado ‘nadar no lago’ a 3 patos, ao invés de atribuir uma propriedade numérica a um item real não-individual. A análise de Geach é tão artificial quanto seria sugerir que, ao responder ‘Bolsonaro’ à pergunta ‘Quem é presidente do Brasil?’, alguém estaria atribuindo “bolsonaridade” à forma de presidente do Brasil. Talvez essa comparação seja injusta e devamos preservar o pronome interrogativo ‘quantos’ ao formular uma analogia precisa, ainda mais levando em conta que o argumento apresentado depende da impossibilidade de se atribuir multiplicidade a algo individual. Suponhamos, então, que alguém perguntasse ‘Quantos eleitores de Bolsonaro são fascistas?’ Ao responder ‘Todos’, alguém estaria atribuindo algo como “totalidade” ao predicado ‘fascista eleitor de Bolsonaro’? Se fosse esse o caso, deveríamos

tratar toda e qualquer quantificação de um conceito como dizendo respeito a predicados. Entretanto, como vimos na seção anterior, Tomás de Aquino considera que a quantificação convém primariamente à função lógica de sujeito. Além disso, se a distinção lógica entre sujeito e predicado corresponde a uma “absolutamente nítida e rígida” ¹⁵ distinção ontológica entre indivíduo e forma não-individual, torna-se difícil compreender como enunciados de identidade estrita podem ser considerados predicações, pois eles contêm algo não-multiplicável como predicado. De modo análogo, ficariam desprovidas de sujeito predicações nas quais se esteja atribuindo um predicado a algo não-individualizado, como ‘Homem é animal racional’, que por hipótese não atribui animalidade e racionalidade a nenhum indivíduo ou conjunto de indivíduos em particular. Se não é certo que Tomás admita o segundo tipo de predicação, ele se compromete, como já dissemos e veremos na próxima seção, com a tese de que a distinção entre sujeito e predicado se aplica a enunciados de identidade. É preciso ao menos conceder a Geach, no que pese a artificialidade de sua análise, que um enunciado que descreva múltiplas instâncias de um mesmo tipo de coisa supõe o uso de termos que signifiquem algo sem expressar nada acerca de sua unidade ou multiplicidade numéricas, do modo como falar de 3 homens supõe o uso de uma palavra, ‘homem’, que não contenha por si mesma qualquer referência explícita à quantidade de homens, mas apenas àquilo que caracteriza um homem enquanto tal, como sua animalidade ou racionalidade. Porém não se segue desse modo abstrato de expressar o que é homem que deva haver um tipo de coisa realmente nãoindividual que se distinga do indivíduo. Há passagens na obra de Tomás que sugerem que ele reconheceria algo de realmente comum perpassando vários indivíduos de uma mesma espécie, assim como há passagens negando categoricamente que algo realmente presente num indivíduo não esteja individuado ¹⁶ . Porém, independentemente do status ontológico que se queira atribuir ao ser comum no quadro conceitual de Tomás, ele não pode ser diretamente derivado do modo como conceitos expressam seus conteúdos, sob pena de incorrer no erro platônico que Tomás não se cansa de apontar, a projeção de propriedades do modo de representar no modo de ser do representado ¹⁷ . É esse mesmo erro que leva Geach não só a postular entidades não-individuais que sirvam como o significado de predicados, mas, de um modo mais geral, a postular uma contraparte ontológica da distinção lógica vigente entre sujeito e predicado. Ele se compromete a tal ponto com esse paralelismo entre, de um lado, forma e indivíduo e, de outro, predicado e sujeito, que, ao se ver confrontado com a impossibilidade de enunciar algo acerca de formas que é assim acarretada, Geach se vê obrigado a forjar uma “reconhecidamente esquisita” ¹⁸ notação que preserve o caráter predicativo da expressão mesmo que ela ocorra na posição sujeito. De acordo com essa notação, para se falar algo sobre a forma que torna um homem aquilo que ele é, seria necessário usar a expressão ‘a humanidade de...’, onde, embora o preenchimento da lacuna seja necessário para que a expressão seja gramaticalmente bem formada e tenha significado, apenas a parte incompleta da expressão designaria uma forma multiplicável. Apesar de tão rígida, a distinção entre o conteúdo semântico de termo sujeito e de termo predicado pode ser driblada por meio de um artificioso modo de escrever.

III. O hilemorfismo predicacional em Tomás de Aquino. A despeito da insuficiência conceitual da argumentação de Geach, ele pretende ter razões textuais para afirmar que a distinção lógica entre sujeito e predicado corresponde a uma distinção ontológica. Esse apoio textual é buscado no artigo 12 da questão 13 da 1ª parte da Suma Teológica e no artigo 5 da questão 85 da mesma parte. Vejamos os trechos relevantes nessas passagens, que Geach não discrimina explicitamente, mas que é plausível supor serem esses: [...] o que o intelecto põe da parte do sujeito, transfere para o supósito; mas, o que põe da parte predicada, transfere para a natureza de forma no supósito existente, conforme se diz que os predicados se assumem formalmente e os sujeitos materialmente ¹⁹ Assim, há dois modos de composição na coisa material. Primeiro, o da forma com a matéria: a isso corresponde no intelecto a composição segundo a qual um todo universal é atribuído à sua parte. O gênero, com efeito, se toma da matéria comum; a diferença específica, da forma; o particular, porém, da matéria individual. O segundo modo de composição é o da substância com o acidente: a essa composição nas coisas corresponde no intelecto a atribuição de acidente ao sujeito. Por exemplo, o homem é branco. ²⁰ Essas passagens, consideradas isoladamente, constituem um poderoso indício de que Tomás efetivamente professa o gênero de hilemorfismo predicacional que Geach atribui a ele, ou seja, que Tomás sustenta haver uma distinção ontológica correspondendo à distinção entre sujeito e predicado, de tal modo que o predicado significa uma forma que é dita estar naquilo que é significado pelo sujeito. Na primeira passagem, Tomás explicaria a assimetria lógica entre sujeito e predicado pela relação que eles têm, respectivamente, com um supósito e com uma forma, ao passo que na segunda passagem, uma estrita correspondência seria afirmada entre um par de composições ontológicas e um par de composições representacionais. Do lado do juízo predicativo, teríamos predicações essenciais (onde um todo universal, como o gênero animal, seria predicado de suas partes subjetivas, a espécie macaco ou a espécie homem, que por sua vez pode ser predicada das partes subjetivas Sócrates ou Aristóteles) e predicações acidentais, como aquela expressa por ‘Sócrates é branco’. Do lado da coisa representada, teríamos a composição substancial entre forma e matéria e a composição acidental entre substância e acidente. No entanto, essas passagens ocorrem em contextos nos quais há, também, fortes indícios de que Tomás aceitaria um aspecto restrito envolvido na teoria dos dois nomes, a saber, que conceito sujeito e conceito predicado se distinguem enquanto intenções intelectuais distintas, mas seus conteúdos semânticos são indistintos in rebus . São esses indícios que Geach procura escamotear, tomando-os como marginais para a compreensão da forma lógica da predicação, reduzindo-os a maneiras alternativas de enunciar as condições de verdade de uma predicação. Esses indícios contrários à leitura de re não apenas convivem com toda a evidência textual a favor dessa leitura, mas também são recorrentes em outros contextos argumentativos. A partir de agora, analisaremos essas evidências textuais e, em seguida,

mostraremos como é possível reinterpretar as passagens que mencionamos como acrescentando uma contribuição que, embora importante para a compreensão da teoria tomista da predicação, é compatível com a indistinção real entre conteúdo semântico do sujeito e do predicado. Vejamos, primeiramente, a evidência contra a leitura de re que acompanha a primeira das duas passagens que citamos acima, ressaltando tratar-se de um texto que em parte antecede e em parte sucede, no mesmo parágrafo, o texto que já citamos. [...] é preciso saber que, em qualquer proposição afirmativa verdadeira, o predicado e o sujeito devem de algum modo significar o mesmo segundo a coisa , e coisas diversas segundo a razão. Isso se manifesta tanto nas proposições de predicado acidental, quanto nas de predicado substancial. É claro que homem e branco são o mesmo de acordo com o sujeito , e diferem segundo a razão; pois uma é a razão de homem, outra é a razão de branco. Semelhantemente quando digo ‘o homem é animal’, aquilo mesmo que é homem de fato é animal; visto que no mesmo supósito está a natureza sensível pela qual é dito animal e a natureza racional pela qual é dito homem. Daí, também aqui o predicado e o sujeito são o mesmo quanto ao supósito , mas diversos segundo a razão. Mas, nas proposições em que o mesmo se predica de si mesmo, isso se encontra ainda de algum modo[...][ aqui, aparece a passagem citada anteriormente ] De fato, a essa diversidade que é de razão, corresponde a pluralidade do predicado e do sujeito; ao passo que o intelecto significa a identidade da coisa por essa mesma composição. ²¹ Antes de mais nada, convém lembrar que a passagem em questão tem em vista viabilizar a possibilidade de um discurso afirmativo verdadeiro acerca de Deus, ente no qual nenhuma composição é encontrada. Duas das objeções enfrentadas colocam explicitamente como problema para esse gênero de discurso o contraste entre a complexidade que caracteriza todas as predicações e essa perfeita simplicidade que caracteriza Deus, enquanto a outra, embora não aponte esse problema explicitamente, é interpretada por Tomás como envolvendo-o na mesma medida. A estratégia de Tomás para responder a essas objeções, delineada na parte do corpo do artigo que citamos, é clara: ao invés de tratar o discurso acerca de Deus como uma exceção à estrutura típica dos juízos predicativos, ele procura mostrar que a simplicidade divina não é obstáculo a um discurso complexo sobre Ele justamente porque todo e qualquer juízo significa, através de seu sujeito e de seu predicado, uma mesma entidade real. Em outras palavras, a heterogeneidade entre a forma lógica da predicação e a estrutura ontológica daquilo de que ela trata não é um problema no caso particular de Deus porque essa heterogeneidade se apresenta no caso de qualquer predicação ordinária. A composição entre sujeito e predicado expressa pelo verbo ‘é’ tem como significado, na realidade, a identidade daquilo que é significado por cada um dos dois termos de uma predicação. Ainda que quiséssemos atenuar a insistência com que Tomás declara que sujeito e predicado significam uma única e mesma realidade, a estratégia argumentativa dessa questão perderia seu sentido sem essa tese. Se as partes de uma predicação devessem significar partes de algo real, nada se poderia predicar de Deus pois ele não tem partes, ou a estrutura lógica de predicações acerca de Deus deveria ser sui generis . Porém isso não é necessário, pois qualquer

predicação expressa a identidade entre aquilo que é significado pelo predicado e aquilo que é significado pelo sujeito. Mas não basta dizer isso. O fato de aquilo significado pelo sujeito e aquilo significado pelo predicado serem identificados por meio da composição predicativa não apaga a distinção entre sujeito e predicado. Continua havendo uma distinção de razão entre eles, na medida em que, ainda que diferentes conceitos signifiquem o mesmo, eles o fazem de acordo com determinações distintas. Mais ainda, sujeito e predicado significam um mesmo algo não apenas segundo razões distintas, mas também segundo diferentes modos de significação: o primeiro o significa como algo que está posto para receber determinações, e o segundo o significa como algo que está posto para acrescentar determinações. Nessa medida, um se comporta como parte material de um juízo e o outro como parte formal do juízo. Conceder à teoria dos dois nomes que há uma relação de indistinção real entre o significado do sujeito e o do predicado não é suficiente, portanto, para eliminar a distinção lógica entre ambos. Tomás realça a circunstância de que essa diferença se coloca apenas no nível da representação, mas não no nível do representado, quando escolhe usar as noções de forma e matéria adverbialmente, qualificando o modo como cada uma dessas intenções se relaciona no interior de uma predicação. Porque a função do predicado é acrescentar determinações àquilo que é discriminado na realidade pelo sujeito, a quantificação do predicado é uma operação lógica imprópria, na medida em que, por meio de uma quantificação, nenhuma determinação inteligível pode ser acrescentada ao sujeito. Em outras palavras, a relação com indivíduos introduzida por quantificadores é supérflua para a função distintiva de predicados, que é o acréscimo de determinações a um sujeito. Diversamente, o modo e a extensão da relação entre universal e indivíduos, isto é, entre um conceito e os vários entes reais discriminados por ele, é um aspecto relevante na função do sujeito de indicar as coisas reais das quais se pretende dizer algo. Vejamos, agora, a evidência que contraria a leitura de re do hilemorfismo predicacional e sucede imediatamente a segunda passagem que havíamos citado anteriormente: “Todavia, a composição do intelecto difere da composição da coisa, pois as coisas são compostas de elementos diversos, enquanto a composição do intelecto é sinal de identidade dos elementos que se compõem. O intelecto, com efeito, não compõe de tal forma que afirme “o homem é brancura”, mas diz “o homem é branco”, isto é, o que possui a brancura, pois é o mesmo sujeito que é homem e que é possuidor de brancura. Igualmente, no caso da composição da matéria com a forma: animal significa o que tem natureza sensível, racional o que tem natureza intelectiva, homem o que tem ambas e Sócrates o que tem tudo isso com matéria individual. É segundo essa razão de identidade que o nosso intelecto compõe um com outro predicando. ” ²² Novamente, Tomás insiste na ideia de que há uma relação de identidade entre o que é significado no sujeito e no predicado, mas desta vez acrescenta que essa relação de identidade é a própria ratio da composição predicativa. Isso torna insustentável defender, como vimos Geach fazer na primeira seção deste artigo, que a indistinção real entre conteúdo semântico do sujeito e do predicado seria uma formulação acessória das condições de

verdade de uma predicação, do ponto de vista de Tomás. A passagem acima constitui a réplica a uma objeção segundo a qual a composição (e divisão, no caso de negações) não se encontraria no intelecto. Isso porque a identidade entre o ente real significado pelo sujeito e aquele significado pelo predicado é condição de verdade de predicações afirmativas, identidade essa que seria incompatível com o caráter composicional de uma predicação. Mas, de acordo com Tomás, que essa identidade seja condição de verdade não é casual nem incompatível com a complexidade lógica da predicação; pelo contrário, essa identidade é justamente o que é afirmado nos juízos predicativos por meio de uma composição. A composição que, no caso das coisas materiais, se dá entre princípios distintos, forma e matéria ou substância e acidente, é descrita pelo intelecto por uma composição de outro gênero, na qual o mesmo é identificado segundo razões e modos de significação distintos no sujeito e no predicado. Isso só é possível porque não há problema algum em o modo de representar ser diferente do modo de ser do representado: “O modo do intelecto ao inteligir é outro que o modo da coisa ao ser” ²³ . Significativamente, Tomás conclui pela possibilidade de que a composição predicativa não seja espelhada parte a parte numa composição daquilo que é descrito por uma predicação recorrendo ao mesmo motivo pelo qual, como vimos na seção anterior, conclui, contra Platão, que inteligir universalmente não implica inteligir realidades universais. Mais que não ter amparo textual na obra de Tomás, a interpretação proposta por Geach viola um dos pilares do pensamento tomista, a oposição ao platonismo quanto à relação entre representação e representado. Mas como explicar que “O gênero, com efeito, se toma da matéria comum; a diferença específica, da forma”? Ora, aqui é claro que cada intenção intelectual é derivada de um aspecto distinto da realidade, sendo o gênero derivado das determinações que condicionam e precedem a perfeição última de uma coisa, como sua corporeidade e potência sensível, ao passo que a diferença é derivada de sua perfeição última, como sua racionalidade. Mas isso não quer dizer que cada uma dessas intenções signifique apenas aquele aspecto do qual é derivada. Na verdade, Tomás chega a negar isso explicitamente no Ente e Essência , oferecendo a posição alternativa compatível com sua doutrina da forma lógica da predicação como razão de identidade: A partir disso fica clara a razão por que o gênero, a espécie e a diferença estejam proporcionalmente para com a matéria, a forma e o composto, embora não sejam idênticos a eles; pois nem o gênero é a matéria, mas tomado da matéria como significando o todo; nem a diferença é a forma, mas tomada da forma, como significando o todo. ²⁴ Quando Tomás afirma haver uma correspondência entre, respectivamente, unidades essenciais e unidades acidentais, e predicações essenciais e predicações acidentais, ele não pretende sustentar uma homogeneidade entre complexidade lógica e ontológica. A correspondência que ele aponta é meramente semântica, mas não estrutural. Temos aqui a inofensiva tese de que unidades acidentais são descritas por meio de predicações acidentais e unidades substanciais são descritas por meio de predicações essenciais nas quais se diz algo sobre uma substância.

É intrigante que Geach não se satisfaça com a mera distinção de modo de significação entre sujeito e predicado defendida por Tomás, uma vez que esse gênero de distinção é invocado pelo próprio autor para justificar a possibilidade de introduzir uma notação peculiar por meio da qual formas ocupem a posição de sujeitos lógicos: Pode-se perguntar: Como uma forma pode ser significada tanto pelo predicado lógico ‘é sábio’ quanto por uma expressão como ‘a sabedoria de...’? (…) Eu acho que podemos mostrar que a diferença entre elas é somente segundo modo de significação, não segundo a coisa significada. ²⁵ Talvez a distorção operada por ele tenha raiz no desejo, aparente ao longo de todo seu artigo, de projetar o pensamento de Frege, platonista notório que não resiste a equiparar distinções linguísticas e epistêmicas a distinções ontológicas, no pensamento de Tomás. Essa aproximação forçada se revela no argumento que ele usa para introduzir as formas comuns como correlatos reais de predicados, a partir da noção de multiplicidade. Trata-se de uma adaptação do argumento de Frege nos Fundamentos da Aritmética que visa demonstrar que atribuições de números são propriedades de conceitos. É natural que esse gênero de abordagem do pensamento de Tomás tenha como risco e custo sua platonização e consequente desvirtuação. E é também natural que essa desvirtuação seja recorrente no tomismo analítico, para o qual pode ser difícil distinguir e conciliar as inclinações de Tomás de Aquino e as de um dos pais da filosofia analítica. III. Conclusão Buscamos mostrar que uma das teses defendidas por Geach em seu artigo seminal Form and existence não é nem uma exegese bem-sucedida do pensamento de Tomás de Aquino, nem tampouco é, por assim dizer, animada pelo espírito desse pensamento. A falha dele consiste em considerar que as partes de uma predicação significam, na realidade, partes de um todo que é descrito pela predicação inteira. De certo modo, esse desvio é ocasionado por tensões e ambiguidades efetivamente presentes nos textos de Tomás. Mas não é apenas a frequência com que Tomás explica uma relação lógica por analogia a uma relação ontológica que torna tentador supor uma isomorfia entre composição predicativa e composto hilemórfico. Encontrar algo em comum entre uma representação e seu conteúdo representacional é uma maneira natural de estabelecer um nexo entre ambos, nexo esse que é imprescindível para explicar a relação de representação que é mantida entre eles. O próprio Tomás considera que algum tipo de semelhança é requerido para que seja possível representar algo. Porém, essa semelhança entre representação e representado não se dá no nível da forma lógica da predicação, mas sim no nível dos itens representacionais de que se compõe uma predicação. Assim, Tomás explica que, devido à definição de verdade como adequação entre intelecto e coisa, [...] a razão de verdade encontra-se primeiramente no intelecto tão logo o intelecto começa a ter algo próprio que a coisa fora da alma não tem, mas que lhe corresponde, para que possa ocorrer adequação entre eles. Porém, o intelecto que forma a quididade das coisas não tem senão a semelhança da coisa existente fora da alma, assim como o sentido enquanto apreende a

species sensível; mas, quando começa a julgar sobre a coisa apreendida, então o próprio juízo do intelecto é algo próprio dele, que não se encontra fora na coisa. Mas quando se adequa a o que está fora na coisa, se diz verdadeiro o juízo [...] ²⁶ Do ponto de vista de Tomás, a heterogeneidade estrutural entre predicação verdadeira e coisa real que ela descreve não é um entrave para o modo como a realidade é descrita verdadeira ou falsamente numa predicação, mas uma das condições para que se dê a relação de adequação em que consiste a verdade. A opção teórica por requerer o tipo de isomorfia que Tomás recusa é um dos motes que levaram Frege a supor que, assim como ‘Sócrates é filósofo’ faz referência ao valor de verdade Verdadeiro, Sócrates e a função referida por ‘é filósofo’ são, de alguma misteriosa maneira, partes do Verdadeiro. Do mesmo modo, essa opção conduziu o Wittgenstein do Tractatus a sustentar uma ontologia cujas unidades autônomas elementares são estados de coisas compostos de objetos significados pelos nomes que compõe proposições ²⁷ . A especificidade do pensamento tomista nesse ponto permite, diversamente, que a estrutura metafísica da realidade obedeça a princípios distintos e, até certo ponto, independentes daqueles que regem a sua representação. 1 . Quaisquer virtudes que porventura se encontrem neste artigo devem-se inteiramente, de maneira direta e indireta, ao professor Landim, respeitadas as restrições impostas pelo princípio de que tudo que é recebido, é recebido segundo o modo de ser do recipiente. Os erros indubitavelmente presentes nele, por sua vez, devem-se ao descompasso entre meu intelecto limitado e meu incomensurável desejo de participar desta homenagem. 2 . Malcolm (1979), pp. 385-386. Nesse artigo, ele faz uma espécie de recenseamento de defensores de que a teoria da predicação como inerência é um fenômeno medieval. Formulação equivalente dessa teoria pode ser encontrada em Klima (1996), p. 115: “ A concrete common term P is true of a particular thing u iff the form (ultimately) signified by P is actual in u. ” 3 . Veatch (1974) e Malcolm, no artigo mencionado acima (pp. 394-396), também criticam a leitura de Geach. A argumentação deles encontra paralelos sobretudo na seção III deste artigo, que se alinha a eles no que diz respeito à recusa de que, segundo Tomás, uma distinção ontológica corresponda à distinção lógica entre sujeito e predicado. 4 . Geach (1955), p. 254. 5 . Ibidem, p. 252. 6 . Veremos essas passagens mais à frente. 7 . “[...]neque signum universale neque particulare convenienter additur praedicato, sed magis subiecto:convenientius enim dicitur, nullus homo est asinus, quam, omnis homo est nullus asinus; et similiter convenientius dicitur, aliquis homo est albus, quam, homo est aliquid album.” Expositio Libri Peryermeneias Lib. I Lectio 10. Todas as citações das obras de Tomás são das edições reunidas no sítio www.corpusthomisticum.org . As traduções são minhas, assim como negritos ou adições em colchetes.

8 . “ Signum autem universale negativum, vel particulare affirmativum, etsi convenientius ponantur ex parte subiecti, non tamen repugnat veritati etiam si ponantur ex parte praedicati. Contingit enim huiusmodi enunciationes in aliqua materia esse veras: haec enim est vera, omnis homo nullus lapis est; et similiter haec est vera, omnis homo aliquod animal est .” Ibidem . 9 . “[...] praedicatum est quasi pars formalis enunciationis, subiectum autem est pars materialis ipsius [...]” Ibidem . 10 . “ The futility of the two-name theory comes out clearly at the beginning of Lewis Carroll’s Game of Logic. Lewis Carroll professes to find a difficulty over saying “some pigs are pink “; as it stands, this suggests an impossible identity between certain things (pigs) and a certain attribute (signified by “ pink “)! He seeks to remove this difficulty by expounding the statement as meaning “ some pigs are pink pigs “, where “ are “ signifies real identity. But “ pink pigs “ means “pigs that are pink “, and there is as much or as little difficulty about this phrase as about the predication “ pigs are pink “ at which he stumbles .” Geach (1955), p. 252. 11 . “[...] esse dupliciter dicitur, uno modo, significat actum essendi; alio modo, significat compositionem propositionis, quam anima adinvenit coniungens praedicatum subiecto.” Summa Theologiae q.3 a.4 ad 2. 12 . “(...) o que é , isto é, ente, e corrente são significados em concreto como branco.” “(…) quod est, ides tens et currens significantur in concreto, velut album.” Expositio libri Boetii De ebdomadibus lectio 2 . “(...) ente, ou o que é, se diz de modo múltiplo.” “(...) ens sive quod est, dicitur multipliciter.” Sententia Metaphysicae, lib. 4 l. 1 n. 7. 13 . “(...) o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto.” “(...) ens autem et essentia sunt quae primo intellectu concipiuntur.” De Ente et essentia, proemium. 14 . Geach (1955), p. 253. 15 . Geach (1955), p. 254. 16 . “(...) não se encontra nenhuma comunidade em Sócrates, mas que tudo o que está nele é individualizado.” “(…) in Socrate non invenitur communitas aliqua, sed quicquid est in eo est individuatum.” De Ente et Essentia, cap.2. 17 . “Parece que nesse ponto Platão se afastou da verdade, porque, como avaliou que todo conhecimento é por meio de algumas semelhanças, acreditou que a forma do que é conhecido necessariamente estaria no cognoscente do mesmo modo que está no que é conhecido. Mas considerava que a forma da coisa inteligida está no intelecto universalmente, imaterialmente e imovelmente, o que é aparente a partir da própria operação do intelecto, que intelige universalmente e de com uma certa necessidade (...)” “Videtur autem in hoc Plato deviasse a veritate, quia, cum aestimaret omnem cognitionem per modum alicuius similitudinis esse, credidit quod forma cogniti ex necessitate sit in cognoscente eo modo quo est in cognito. Consideravit autem quod forma rei intellectae est in intellectu

universaliter et immaterialiter et immobiliter, quod ex ipsa operatione intellectus apparet, qui intelligit universaliter et per modum necessitatis cuiusdam (...)” Summae Theologiae q.84 a1 co. 18 . Geach (1955), p. 258. 19 . “[...] inquantum intellectus id quod ponit ex parte subiecti, trahit ad partem suppositi, quod vero ponit ex parte praedicati, trahit ad naturam formae in supposito existentis, secundum quod dicitur quod praedicata tenentur formaliter, et subiecta materialiter.” Summae Theologiae q. 13 a.12 co. 20 . “ Invenitur autem duplex compositio in re materiali. Prima quidem, formae ad materiam, et huic respondet compositio intellectus qua totum universale de sua parte praedicatur; nam genus sumitur a materia communi, differentia vero completiva speciei a forma, particulare vero a materia individuali. Secunda vero compositio est accidentis ad subiectum, et huic reali compositioni respondet compositio intellectus secundum quam praedicatur accidens de subiecto, ut cum dicitur, homo est albus.” Summae Theologiae q. 85 a.5 ad 3. 21 . “[...] sciendum est quod in qualibet propositione affirmativa vera, oportet quod praedicatum et subiectum significent idem secundum rem aliquo modo, et diversum secundum rationem. Et hoc patet tam in propositionibus quae sunt de praedicato accidentali, quam in illis quae sunt de praedicato substantiali. Manifestum est enim quod homo et albus sunt idem subiecto, et differunt ratione, alia enim est ratio hominis, et alia ratio albi. Et similiter cum dico homo est animal, illud enim ipsum quod est homo, vere animal est; in eodem enim supposito est et natura sensibilis, a qua dicitur animal, et rationalis, a qua dicitur homo. Unde hic etiam praedicatum et subiectum sunt idem supposito, sed diversa ratione. Sed et in propositionibus in quibus idem praedicatur de seipso, hoc aliquo modo invenitur. (…) Huic vero diversitati quae est secundum rationem, respondet pluralitas praedicati et subiecti, identitatem vero rei significat intellectus per ipsam compositionem.” Summae Theologiae q. 13 a.12 co. 22 . “Tamen differt compositio intellectus a compositione rei, nam ea quae componuntur in re, sunt diversa; compositio autem intellectus est signum identitatis eorum quae componuntur. Non enim intellectus sic componit, ut dicat quod homo est albedo; sed dicit quod homo est albus, idest habens albedinem, idem autem est subiecto quod est homo, et quod est habens albedinem. Et simile est de compositione formae et materiae, nam animal significat id quod habet naturam sensitivam, rationale vero quod habet naturam intellectivam, homo vero quod habet utrumque, Socrates vero quod habet omnia haec cum materia individuali; et secundum hanc identitatis rationem, intellectus noster unum componit alteri praedicando.” Summae Theologiae q. 85 a.5 ad 3. 23 . “Alius est enim modus intellectus in intelligendo, quam rei in essendo.” Summae Theologiae q. 13 a.12 ad. 3 24 . “Ex hoc patet ratio quare genus, species et differentia se habent proportionaliter ad materiam et formam et compositum in natura, quamvis

non sint idem quod illa, quia neque genus est materia, sed a materia sumptum ut significans totum, neque differentia forma, sed a forma sumpta ut significans totum.” De Ente et Essentia, cap.2 25 . Geach (1955), p. 257. 26 . [...] primo invenitur ratio veritatis in intellectu ubi primo intellectus incipit aliquid proprium habere quod res extra animam non habet, sed aliquid ei correspondens, inter quae adaequatio attendi potest. Intellectus autem formans quidditatem rerum, non habet nisi similitudinem rei existentis extra animam, sicut et sensus in quantum accipit speciem sensibilis; sed quando incipit iudicare de re apprehensa, tunc ipsum iudicium intellectus est quoddam proprium ei, quod non invenitur extra in re. Sed quando adaequatur ei quod est extra in re, dicitur iudicium verum [...] Quaestiones Disputatae De Veritate q.1 a.3 co. 27 . Veatch (cf. pp. 410 - 413) percebe que um dos pontos centrais da teoria tomista da predicação é a recusa do tipo de isomorfia entre linguagem e realidade que se exige no primeiro Wittgenstein, mas não identifica a raiz dessa exigência no platonismo representacional sistematicamente recusado por Tomás. Referências bibliográficas: AQUINO, Tomás de. Opera Omnia . Organização de Enrique Alárcon. Universidad de Navarra, 2000. Disponível em < http:// www.corpusthomisticum.org/iopera.html >. Acesso em 30 de julho de 2019. GEACH, Paul. “Form and existence.” Proceedings of the Aristotelian Society , New Series, vol. 55, 1955, pp. 251-272. KLIMA, Gyula. “The Semantical Principles Underlying St. Thomas Aquinas’s Metaphysics of Being.” Medieval Philosophy and Theology , vol. 5, nº 1, 1996, pp. 87-141. MALCOLM, John. “A Reconsideration of the Identity and Inherence Theories of the Copula.” Journal of the History of Philosophy , vol. 17, nº 4, 1979, pp. 383-400. VEATCH, Henry. “St. Thomas’ Doctrine of Subject and Predicate.” In: Maurer, Armand (ed.). St. Thomas Aquinas, 1274-1974; commemorative studies . Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1974, pp.401-422. Um breve videtur quod non acerca da estrutura bipartida da proposição predicativa Rodrigo Guerizoli Em alguns dos que considero momentos-chave de sua produção filosófica – mas nisso, é claro, meu juízo é altamente subjetivo –, Raul Landim Filho (doravante RL) examina aquela que ficou conhecida como a interpretação bipartida da proposição predicativa . O tratamento proposto apresenta-se amiúde como uma interpretação da teoria do juízo de Tomás de Aquino

(1225-1274). No entanto, eu ousaria dizer que, nesse caso, o intérprete não se incomodaria em assumir o que, fundamentalmente, foi defendido pelo interpretado. Ocorre, porém, que a interpretação bipartida da proposição predicativa já foi alvo de diversas críticas, algumas delas, creio, assaz perspicazes e pertinentes, como, por exemplo, a que aponta para dificuldades da teoria com respeito a conversão de enunciados. ¹ Seguindo essa trilha, gostaria de traçar aqui um breve videtur quod non e expor uma certa linha de leitura, historicamente embasada, que aponta para uma outra dificuldade da teoria, a de se identificar o referente de certos predicados de determinados enunciados que dela decorreriam. A interpretação bipartida da proposição consiste, como formulado no início de “Predicação e existência na semântica clássica”, numa teoria que “analisa a proposição predicativa como uma sequência formada por um nome seguido de um verbo”. ² Fundamental no contexto é reconhecer que as noções de “nome” e de “verbo” se distinguem e se associam, desempenhando funções “heterogêneas, mas complementares” ³ no interior da proposição. Em “Predicação e juízo em Tomás de Aquino” tais funções são descritas com precisão: “o conceito-sujeito menciona coisas (uma determinada coisa ou algumas coisas ou todas as coisas que têm em comum uma propriedade) e o predicado só classifica ou determina inteligivelmente as coisas pela mediação do conceito-sujeito.” ⁴ Nesse mesmo texto RL aprofunda sua exposição, que gira em torno da ideia de classificação mediante propriedades . Tal ato consistiria na “atribuição de uma propriedade, expressa pelo predicado, a uma coisa, mencionada pelo sujeito do juízo” ⁵ . À tal atribuição corresponderia, ainda, nos juízos verdadeiros, a posse, por parte do sujeito, da propriedade que lhe é atribuída. ⁶ Assim, paulatinamente se constrói uma sequência de atos que concatena classificação por meio de propriedades , atribuiçã o de propriedades e posse de propriedades e que, além disso, parece indicar um crescente aumento de compromisso ontológico com respeito ao que é expresso através de predicados. Tradicionalmente, a posse da propriedade indicada pela proposição predicativa foi lida, na tradição que podemos chamar de latu sensu aristotélica, em termos de inerência ( inesse ), ou seja, como presença nos indivíduos mencionados pelo conceito-sujeito da propriedade significada pelo conceito-predicado. Nesse sentido, tornou-se comum falar de uma teoria de inerência da predicação . ⁷ RL parece evitar tal nomenclatura, e, no que pude verificar, apenas em um momento, num contexto ligeiramente distinto, a menciona. Com efeito, no já citado “Predicação e juízo em Tomás de Aquino”, ao comentar a análise que Tomás oferece do verbo “ser” em seu comentário ao De Interpretatione , ele escreve: “ ser pode ser interpretado como nome, significando ente ( o que é ), portanto, significando coisas (objetos); pode ser interpretado como predicado (significando propriedades de coisas): seja como parte de um predicado complexo, exprimindo a inerência de propriedades nas coisas que foram mencionadas pelo sujeito [...]”. ⁸ Ora, desse arranjo conceitual eu gostaria de fazer decorrer uma tese que RL não exprime, mas que, parece-me, seria levado a admitir. Ele teria de aceitar, a saber, que expressões do tipo “ S é P ” e “ A propriedade-P (a Pdade , admitamos) está em (ou inere em ) S ” são intercambiáveis, fazendo referência ao mesmo estado de coisas. Tal reciprocidade semântica, aliás,

valeria independentemente do fato de P significar uma propriedade essencial ou acidental de S . Afinal, “[u]m enunciado atributivo caracteriza, assim, um objeto mediante propriedades, sejam elas propriedades essenciais ou meramente acidentais .” ⁹ Ora, nesse sentido, enunciados como, por exemplo, “ Só crates é homem ” e “ A humanidade está em Sócrates ” deveriam ser vistos como intercambiáveis. Uma frase cuja origem de há muito associo à convivência com RL, e que tomo como um marco metodológico na tentativa de construir uma reflexão filosófica de algum valor, é – numa formulação pela qual assumo inteira responsabilidade – a seguinte: “quem se compromete com uma tese se compromete com tudo o que dela decorre”. Ora, nesse gesto de amistosa provocação, espero ter com alguma plausibilidade mostrado que da interpretação bipartida da proposição decorre a equivalência entre proposições do tipo “ S é P ” e “ A P-dade está em S ”. O próximo passo consiste em tentar indicar a fragilidade de um tal consequente. Com efeito, a equivalência para a qual apontei foi alvo de críticas já no ambiente acadêmico no qual se movia Tomás de Aquino. Sigo aqui uma certa análise, apresentando, de modo às vezes adaptado, o argumento de Guilherme de Ockham (c. 1285-1347), localizado no início do segundo volume de sua Suma de Lógica . No segundo capítulo do que se poderia descrever como um tratado sobre a proposição, Ockham busca delimitar “o que é requerido para a verdade de uma proposição singular de inerência”. ¹⁰ De início ele descarta que para a verdade daquele tipo de proposição seja necessário “que o predicado, no que diz respeito às coisas ( ex parte rei ), exista no sujeito ou inira realmente no sujeito, e nem que, no que diz respeito às coisas fora da alma, esteja unido ao sujeito”. Segundo Ockham, para a verdade de uma proposição como aquela é suficiente “que o sujeito e o predicado suponham pela mesma coisa”. ¹¹ Não abordarei o lado construtivo da posição ockhamiana. Interessa-me, antes, sua pars destruens , da qual faz parte uma rejeição da verdade de “ A humanidade está em Sócrates ”. Ora, rejeitada tal tese, rejeitada também estaria sua equivalência com respeito a “ Sócrates é homem ”, assumida como verdadeira por todos os que tomam parte na disputa. De acordo com Ockham, a falsidade de “ A humanidade está em Sócrates ”, assim como, de passagem, a de “ Só crates possui humanidade ”, se estabelece por um argumento grosso modo disjuntivo, no qual são identificados os possíveis referentes do termo “ humanidade ” e se mostra que de nenhum deles pode-se verdadeiramente dizer que de fato “ está em Sócrates ”. A divisão entre mente e mundo marca a clivagem básica dentre os supostos referentes de “ humanidade ”. Trata-se, assim, de um termo que ou bem se refere a uma coisa exterior à alma do falante ( res vera extra anima ) ou a uma intenção de sua alma ( intentio animae ). ¹² Caso se pense que se trata de uma intenção da alma, a falsidade de “ A humanidade está em Sócrates ” é patente: nenhuma intenção da alma do falante pode estar ao mesmo tempo no objeto sobre o qual se fala. ¹³ Em se presumindo, por sua vez, que se trata de uma coisa exterior à alma, tal item deve fazer parte de um dos seguintes conjuntos: ou será Sócrates como um todo ou uma de suas partes ou, ainda, algo distinto tanto de Sócrates quanto, por conseguinte, de

suas partes. ¹⁴ Decerto “ A humanidade está em Sócrates ” seria um enunciado falso caso “ humanidade ” se referisse a Sócrates como um todo. Afinal, nem Sócrates “ está em ” Sócrates, nem Sócrates “ possui ” Sócrates. ¹⁵ Similarmente, fosse algo distinto de Sócrates o referente de “ humanidade ”, isso seria, indica Ockham, ou bem um acidente de Sócrates ou bem algo de outro, que não seria nem uma parte nem um acidente de Sócrates. Ora, um candidato desse último tipo certamente não “ está em ” Sócrates. Por outro lado, há acidentes que de fato “ estão em ” Sócrates. No entanto, admitir que “ humanidade ” se referira a um acidente implica, de imediato, aceitar que o elo predicativo expresso em “ Só crates é homem ” é de ordem acidental – um resultado que, de novo, nenhum interlocutor da disputa estaria disposto a conceder. ¹⁶ Resta avaliar se “ humanidade ” não pode se referir a uma parte de Sócrates. Ora, deve-se de início esclarecer que parte poderia ser essa. Certamente, “ humanidade ” não pode ser referir a uma parte integral de Sócrates: ela não se refere nem a um de seus pés, ou mãos, nem à sua cabeça, por exemplo. Tampouco a matéria de Sócrates pode ser o item ao qual “ humanidade ” se refere. Isso porque, lembremos, é a presença de tal item em Sócrates que justifica, de acordo com a teoria de inerência , a verdade de “ Sócrates é homem ”. Mas decerto não é o aspecto material (ou corporal) ¹⁷ de Sócrates, composto de uma matéria capaz inclusive de resistir ao seu desaparecimento, que justifica o fato dele ser um membro da espécie humana. Mas, e quanto à forma de Sócrates, ou seja, e quanto à sua alma intelectiva? Não poderia ser ela o referente do termo “ humanidade ”? Aqui, infelizmente, o argumento apresentado por Ockham segue um caminho teológico, que não vale a pena reconstruir. ¹⁸ Sendo assim, temos de ficar com uma nota genérica que também se apresenta e sobre a qual me detenho, sem disfarçar sua fragilidade. Ei-la: “[...] nenhuma parte de Sócrates é a humanidade, mas apenas uma parte da humanidade; e, por conseguinte, não pode supor por uma parte de Sócrates.” ¹⁹ O argumento por detrás da passagem parece querer dizer que, uma vez que “ humanidade ” se refere a Sócrates como um todo, ela não pode ser o item a que se refere nenhuma de suas partes tomada separadamente. Ora, o passo-chave do raciocínio está na ideia de que “ humanidade ” se refere a Sócrates como um todo. O que quer dizer mais concretamente tal tese? Como ela se justifica? Uma resposta remete ao tratamento dispensado por Ockham aos termos “ homem ” e “ humanidade ”, por ele vistos como sinônimos. ²⁰ Mas, por óbvio, tal estratégia não seria bem vista num contexto de diálogo com RL e o tomismo. Assim, resta alterar a tática de argumentação e apontar que, no contexto do tomismo, “ humanidade ” tampouco se refere apenas a uma parte de Sócrates. Sendo esse o caso, então, mesmo que o raciocínio de Ockham não fosse aceito, isso não ocorreria devido a uma rejeição de sua conclusão. Noutros termos, ambos os autores estariam de acordo no ponto aqui em jogo, ainda que por diferentes motivos. E de fato podemos apontar que, para Tomás, “ humanidade ” não se refere exclusivamente a uma parte de Sócrates ou, mais especificamente, não se refere somente à sua alma intelectiva. Em poucas palavras, “ humanidade ”, segundo Tomás, “compreende em si o que entra na definição de homem.” ²¹ É evidente, assim, dado que a definição de homem não se esgota na referência à alma intelectiva, que, diferentemente de “ alma ”, “ humanidade ” significa também algo distinto da alma intelectiva – e que me seja permitido deixar

aqui em aberto em que sentido esse elemento a mais, certamente a matéria, seria objeto de significação. Assim, ao fim e ao cabo, a lição ensinada por Ockham é a de que não há referente capaz de tornar verdadeiro o enunciado “ A humanidade está em Sócrates ”. Ora, se a verdade desse enunciado deve decorrer da interpretação bipartida da proposição , então tal interpretação tem um problema. No entanto, já posso até imaginar, o nó assim que se forma dificilmente parecerá impossível de ser desfeito – seja à luz da eloquência do Tomás histórico seja através da perspicácia do redivivus . 1 . Cf. Alberto de Saxônia, Perutilis logica III.1: “[...] aliqui dicunt propositionem cathegoricam solum habere duas partes principales sui, puta subiectum et praedicatum; unde dicunt illud quod praecedit verbum esse subiectum, et si illud verbum non aliquid sequitur, tunc dicunt illud verbum esse praedicatum, ut dicendo ‘homo est’; si autem aliquid sequitur illum verbum, hoc dicunt una cum verbo esse praedicatum, ut in ista ‘homo est animal’; dicunt enim quod in ista totum hoc ‘est animal’ est praedicatum. Sed, breviter, haec non valent: tunc haec non esset conversio ‘homo est animal, ergo animal est homo’, ex eo quod de subiecto non fieret praedicatum, nec de praedicato subiectum. Nam, secundum istos, in ista ‘homo est animal’ hoc totum ‘est animal’ est praedicatum, et ly ‘homo’ subiectum. Et in ista ‘animal est homo’ ly ‘animal’ est praedicatum. Et ergo, in secunda minus subiicitur quam praedicabatur in prima, et plus praedicabatur in secunda quam subiiciebatur in prima. Melius est ergo dicere quod propositio cathegorica est quae habet subiectum, et praedicatum, et copulam, pricipales partes sui.” Devo a atenção a esse texto a C. Normore, “Buridan’s Ontology” in: J. Bogen/J. E. McGuire (eds.), How things are: Studies in Predication and the History of Philosophy and Science , Dordrecht, Springer, 1985, pp. 189-203, aqui p. 201. 2 . In: Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento , São Paulo, Discurso Editorial, 2009, pp. 339-371, aqui p. 339 (originalmente publicado em J. C. Salles (org.), Plenárias da ANPOF 2004/2006 , Salvador, Quarteto, 2006, pp. 181-203). 3 . Id., p. 343. 4 . In: Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento , São Paulo, Discurso Editorial, 2009, pp. 375-406, aqui p. 385 (originalmente publicado em Kriterion. Revista de Filosofia 113 (2006), pp. 27-49). Cf. tb. ibid.: “[...] só o conceito-sujeito na predicação pode fazer suposição de existência; os predicados apenas classificam, mediante propriedades, as coisas mencionadas pelo conceito-sujeito”. 5 . Id., p. 391. 6 . Cf. tb. “A questão dos universais segundo Tomás de Aquino” in: Questõ es disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento , São Paulo, Discurso Editorial, 2009, pp. 405-428, aqui p. 410 (originalmente publicado em Tensões e passagens: filosofia crítica e modernidade , São Paulo, Esfera Pública, 2008, pp. 131-145): “Para a semântica tomásica, formulada no seu Comentário ao De Interpretatione , só tem sentido quantificar o conceito-

sujeito quando ele significa indivíduos que têm as propriedades expressas pelo conceito .” (grifo meu) 7 . Cf., p. ex., G. Klima, “Theory of Language” in: B. Davies/E. Stump (eds.), The Oxford Handbook of Aquinas , Oxford, Oxford University Press, 2012, pp. 371-389, esp. 376s. 8 . Op. cit., p. 375 (o grifo do termo “inerência” é meu). 9 . “Predicação e existência na semântica clássica”, op. cit. , p. 351. 10 . Summa logicae II.1: “ Quid requiritur ad veritatem propositionis quae est singularis et de inesse ”. 11 . Ibid.: “ Circa quod dicendum est quod ad veritatem talis propositionis singularis quae non aequivalet multis propositionibus non requiritur quod subiectum et praedicatum sint idem realiter, nec quod praedicatum ex parte rei sit in subiecto vel insit realiter subiecto, nec quod uniatur a parte rei extra animam ipsi subiecto, [...] sed sufficit et requiritur quod subiectum et praedicatum supponant pro eodem. ” 12 . Ibid.: “[...] nam accipio unam istarum, scilicet istam ‘humanitas est in Sorte’ et quaero, pro quo stat li humanitas? Aut pro re aut pro intentione, hoc est aut denotatur per istam quod res vera extra animam sit in Sorte, uel quod intentio animae sit in Sorte. ” 13 . Ibid.: “ Si autem ‘humanitas’ supponat pro intentione animae, tunc est manifeste falsa, quia intentio animae non est in Sorte. Et ita patet quod ista est omnino falsa ‘humanitas est in Sorte’. ” 14 . Ibid.: “ Si supponat pro re, quaero: pro qua re? Aut pro Sorte, aut pro parte Sortis, aut pro re quae nec est Sortes nec pars Sortis. ” 15 . Ibid.: “ Si pro Sorte, tunc est falsa, quia nulla res quae est Sortes est in Sorte, quia Sortes non est in Sorte, quamvis Sortes sit Sortes. ” 16 . Ibid.: “ Si supponat pro re quae nec est Sortes nec pars Sortis, cum talis res non sit nisi accidens vel aliqua alia res quae non est in Sorte, ‘humanitas’ supponeret pro accidente Sortis vel pro aliqua alia re quae nec est Sortes nec pars Sortis, quod manifestum est esse falsum. ” 17 . O tratamento dispensado por Ockham à noção de corpo parece, no contexto da passagem, pressupor a existência de uma forma corporeitatis . Por se tratar de uma noção que escapa ao tomismo, deixo intocado tal aspecto do argumento. 18 . Cf. Summa logicae II.2: “[...] quia anima intellectiva non est humanitas; tunc enim vera humanitas remansisset in Christo in triduo, et vere fuisset humanitas unita Verbo in triduo, et per consequens vere fuisset homo, quod falsum est. ” 19 . Ibid.: “[...] nulla pars Sortis est humanitas sed tantum pars humanitatis, et per consequens ‘humanitas’ non potest supponere pro parte Sortis. ”

20 . Cf. Summa logicae I.6-7. 21 . STh I.3.3: “[...] humanitas comprehendit in se ea quae cadunt in definition hominis ”. Consciência como base para a diferença entre modos de conhecer em Kant Sílvia Altmann ¹ Para Kant, nosso conhecimento envolve necessariamente a associação de dois modos de representar: discursivo, universal, por conceitos e intuitivo, singular, por intuições. O objetivo deste texto é explorar uma afirmação da Lógica de Jäsche segundo a qual “a diferença da forma do conhecimento baseia-se numa condição que acompanha todo conhecer – a consciência .” ( Log 09 33) ² A seção V da Introdução à Lógica de Jäsche apresenta a diferença entre conhecimento intuitivo e conhecimento discursivo. O texto inicia do seguinte modo: Todo o nosso conhecimento envolve uma dupla relação: primeiro , uma relação com o objeto , segundo , uma relação com o sujeito . Sob o primeiro aspecto, ele relaciona-se com a representação ; sob o segundo, com a consci ência , a condição universal de todo conhecimento em geral. (A rigor, a consciência é uma representação de que uma outra representação está em mim.) ( Log 09 33) Para compreender essa afirmação, pode ser útil lembrarmos que, para Kant, animais não têm conhecimento ou cognição ³ , precisamente porque não têm consciência. ⁴ Por outro lado, embora não tenham, segundo Kant, consciência, os animais teriam representações na medida em que são seres vivos, dotados de alma, isto é, animados. ⁵ Como seres vivos, animais agem segundo representações. ⁶ Com efeito, parece natural dizer que, ao ouvir o barulho do pote de comida, algo no “princípio anímico” do gato representa a comida e essa representação o leva a direcionar-se para o prato de comida. Assim como podemos dizer que uma representação “apresenta” ao gato o objeto da representação (por exemplo, a comida), também no caso das nossas cognições ou conhecimentos é enquanto representação que uma cognição nos apresenta um objeto. Assim, sob o aspecto da relação com o objeto, a cognição se relaciona com a representação. No entanto, nós humanos podemos ter mais do que a apresentação do objeto ao nosso ânimo por uma representação: não só há algo na nossa mente que por assim dizer substitui o objeto e interage com outras representações eventualmente influenciando nosso comportamento, mas podemos representar a representação , podemos saber que estamos representando, podemos representar com ciência de fazer isso, podemos representar conscientemente . Esse é um aspecto que diz respeito à relação do conhecimento com o sujeito , diz respeito ao modo como o sujeito se representa o objeto no conhecimento. Temos, portanto, de distinguir entre o que é representado e como um sujeito representa esse representado. O parágrafo seguinte da Introdução da

Lógica de Jäsche comenta então a diferença entre matéria e forma do conhecimento: Em todo conhecimento é preciso distinguir a matéria , isto é, o objeto, e a forma , isto é, o modo como conhecemos o objeto. Assim, por exemplo, se um selvagem vê à distância uma casa cujo uso não conhece, ele tem, é verdade, diante de si na representação o mesmo objeto representado por uma outra pessoa que o conhece de maneira determinada como uma habitação destinada a pessoas. Mas, segundo a forma, esse conhecimento de um e o mesmo objeto é diverso em ambos. Em um, é uma mera intuição , no outro, intuição e conceito ao mesmo tempo. ( Log 09 33) Voltaremos mais adiante a esse exemplo do selvagem para ver em que medida poderíamos dizer que ele teria uma mera intuição. Por ora, observemos somente que a passagem diz que o selvagem não conhece um aspecto do que um europeu, por exemplo, se representa em uma casa (ser uma habitação destinada a pessoas). Como consequência, temos de distinguir entre a matéria da representação ou o representado (que é comum à representação do selvagem e à do europeu) e o modo de representar (que é distinto nos dois casos). O parágrafo seguinte traz a afirmação cujo objetivo deste texto é elucidar: A diferença da forma do conhecimento baseia-se numa condição que acompanha todo conhecer – a consciência . Se estou consciente da representação, então ela é clara , se não estou consciente dela, obscura . ( Log 09 33) Somos naturalmente levados a ler essa afirmação como sugerindo que a mera intuição é obscura no sentido de não ser consciente. Essa leitura parece reforçada pela continuação do texto dizer que a lógica só se ocupa de representações claras, pois “ocupa-se meramente das regras do pensamento em conceitos, juízos e inferências” ( Log 09 33). Como, para Kant, conhecimento ou cognição envolve sempre conceitos, é natural dizer que o próprio do conceito é introduzir a consciência. No entanto, há mais a ser dito aqui. Para Kant, nem toda representação consciente parece ser cognição. Na Lógica de Jäsche encontramos os seguintes graus de representação: Com respeito ao conteúdo objetivo de nosso conhecimento [cognição] em geral, podem-se pensar os seguintes graus segundo os quais ele pode ser intensificado deste ponto de vista: O primeiro grau do conhecimento é: representar-se algo; O segundo : representar-se algo com consciência ou perceber ( percipere ). O terceiro: notar < kennen > ( noscere ) algo ou representar-se algo em comparação com outras coisas tanto no que toca à identidade < Einerleiheit > quanto no que diz respeito à diferença.

O quarto : notar algo com consciência , quer dizer, conhecer < erkennen> (cognocere). Os animais também notam < kennen > objetos, mas não conhecem. ( Log 9: 64-5) ⁷ ⁸ Que percepção envolva consciência, mas não seja necessariamente cognição, aparece em diversas outras notas de alunos, como, por exemplo, as seguintes: Se alma é consciente de si para si mesma, sem ser consciente de seu estado, isso é apercepção. Se é também consciente de seu estado, então isso é sensação ou percepção. ( V-Met Mron II 29:882) A representação pode ser combinada também com apercepção – a consciência da representação. Uma representação combinada com consciência é chamada percepção, perception . Essa percepção se torna cognição na medida em que a representação é relacionada com consciência a um objeto. ( V-Log Dohna Logic 24: 752) Por fim, essa distinção é claramente utilizada por Kant na primeira Crítica , onde lemos que “a primeira coisa que nos é dada é o fenômeno, que se denomina percepção quando ligado à consciência” ( KrV A119-120), que a síntese da apreensão é a “a composição do diverso em uma intuição empírica pela qual se torna possível a percepção, i.e., a consciência empírica da mesma (como fenômeno)” ( KrV B160) e que “a experiência é uma cognição empírica, i.e., uma cognição que determina um objeto por meio de percepções” ( KrV B218). É necessário, portanto, diferenciar cognição e apreensão consciente da matéria de uma intuição empírica, mera consciência de sermos afetados de certo modo (uma percepção), que não é necessariamente cognição ⁹ . Se temos consciência de nosso estado de sermos afetados, temos uma percepção, temos consciência de que algo gerou um certo efeito em nós. Para cognoscermos o objeto, no entanto, precisamos, como explicita a passagem da Lógica Dohna citada acima, conscientemente relacionar a representação com o objeto. Temos, assim, uma primeira indicação de uma diferença na consciência (consciência da representação e consciência da relação da representação com o objeto). Uma segunda necessidade de sofisticação é colocada por uma ressalva que a Crítica da razão pura faz quanto ao modo como os lógicos compreendem a clareza de representações: A clareza não é, como dizem os lógicos, a consciência de uma representação; pois um certo grau de consciência que não baste para a rememoração pode ser encontrado até mesmo em representações obscuras, já que sem consciência alguma nós não faríamos nenhuma diferença na ligação de representações obscuras, e isto é algo que conseguimos fazer quanto às características de muitos conceitos (como aqueles do direito e da equidade, ou do músico que, no fantasiar, compreende muitas notas ao mesmo tempo). Uma representação é clara, isto sim, quando a consciência é nela suficiente para a consciência da diferença entre ela e as demais. Se ela é suficiente para a diferenciação, mas não para a consciência da diferença, então a representação teria ainda de ser denominada obscura. Há incontáveis graus da consciência, portanto, até o seu desaparecimento. ( KrV B414-5 nota, tradução modificada)

Deixarei de lado a última frase da nota, cujo propósito se deve ao contexto na recusa kantiana da prova da permanência da alma por Mendelsohn. Para meus propósitos aqui, devemos reter o seguinte. Algumas representações que envolvem algum grau de consciência devem também ser chamadas de obscuras, a saber, quando a consciência de algo não é suficiente para a rememoração pois não é suficiente para a consciência da diferença desse algo em relação a algo outro, embora suficiente para a diferenciação. Como evidência de algum grau de consciência em pelo menos algumas representações obscuras, Kant nos oferece como exemplos o conceito que temos de direito ou equidade ou o do músico que fantasia ou improvisa. Devemos, portanto, compreender, em exemplos como esses, de que modo há alguma consciência que seria suficiente para a diferenciação, mas não para a consciência da diferença. Quanto aos conceitos de direito ou equidade, parece razoável dizer que podemos ser capazes de diferenciar princípios de direito por oposição a de equidade, sem necessariamente sermos capazes de formular claramente com base em que notas dos conceitos de direito e de equidade fazemos tal diferenciação: somos conscientes de diferenciar, mas não sabemos como diferenciamos. O trabalho de esclarecimento conceitual consiste justamente em procurar explicitar em que esses conceitos se diferenciam. O exemplo do músico é apresentado com mais detalhe na Antropologia de um ponto de vista pragmático . A seção intitulada “Das representações que temos sem delas termos consciência” ( Ant 07 135) inicia procurando descartar o aparente paradoxo de como poderíamos saber de representações das quais não somos conscientes. A resposta de Kant é que, embora não sem consciência imediata de representações obscuras, podemos concluir que temos tais representações. O primeiro exemplo de Kant é o de quando vemos um ser humano à distância em um prado. Se a distância for muito grande, não temos consciência de ver os olhos e o nariz. Ainda assim, diz Kant, podemos concluir que estamos vendo olhos e nariz, uma vez que a representação de um ser humano como um todo é composta por essas representações parciais. Em seguida, Kant oferece dois exemplos do quão imenso é o campo das representações obscuras. O primeiro é o da consciência obtida por meio de telescópios ou microscópios. As representações parciais das quais só esses instrumentos nos permitem tomar consciência já eram vistas quando víamos, a olho nu, o todo. E, de fato, se não víssemos as partes, não veríamos o todo. O exemplo do músico é oferecido como o equivalente para sensações auditivas: Precisamente o mesmo vale para as sensações auditivas: quando um músico toca com dez dedos e ambos os pés uma fantasia ao órgão, e ainda fala com alguém que se encontra a seu lado, um grande número de representações é em poucos instantes despertado na alma, representações que exigiriam, para a escolha de cada uma delas, um juízo particular sobre sua adequação, porque um só movimento de dedo destoando da harmonia seria imediatamente percebido como dissonância; e no entanto o todo produz tal resultado, que o músico, improvisando livremente, desejaria com frequência conservar, em notação musical, algumas das peças executadas com êxito por

ele, peças que, por mais que se aplique, talvez não tenha esperança de realizar de novo tão bem. ( Ant 07 136) Ao improvisar e ao mesmo tempo conversar com alguém, o organista não está com a atenção voltada para as notas tocadas, não está representando que tocará tal e tal nota musical e em seguida determinada outra nota tantos tons mais acima combinada com tal ou tal modulação dos pedais. Ainda assim, alguma consciência das notas tocadas ele tem, já que perceberia imediatamente uma desarmonia. No entanto, devemos usar com cuidado a aproximação entre o exemplo da nota da Crítica e o da Antropologia . Nessa última, o objetivo é atestar que temos representações inconscientes , tratando toda representação obscura como inconsciente , do mesmo modo como visto na Lógica de Jäsche e ao contrário da Crítica da razão pura . Além disso, como veremos, a Antropologia diz que clareza é a consciência que basta para diferenciar um objeto de outro ( Ant 07 137-8), o que a Crítica diz ter de estar presente em pelo menos algumas representações obscuras, sendo o próprio da clareza a consciência de e que representações se diferem. No entanto, talvez não seja difícil justificar a ausência de sofisticação na Lógica e na Antropologia . Em primeiro lugar, é importante lembrar que tanto o texto da Lógica de Jäsche quanto o da Antropologia tiveram por base as aulas de Kant, sendo que o texto da Lógica foi escrito por Jäsche (embora como incumbência e a partir dos manuais anotados de Kant). Mais importante, levando em conta a especificidade das disciplinas da lógica e da antropologia de um ponto vista pragmático, a desconsideração da precisão introduzida na Crítica da razão pura é explicável. Em primeiro lugar, a consciência de representações que podem em algum sentido ser ditas obscuras parece irrelevante para a disciplina da lógica geral: “[...] a Lógica não pode e não deve se ocupar de nada senão representações claras, mas não de representações obscuras. Na Lógica não vemos como surgem as representações, mas unicamente como elas concordam com a forma lógica. A rigor, a Lógica não pode de modo algum tratar das meras representações e sua possibilidade. Isso, ela deixa ao encargo da Metafísica. Ela própria ocupa-se meramente das regras do pensamento em conceitos, juízos e inferências, na qualidade de meios pelos quais tem lugar todo pensamento.” ( Log A41 Ak33) Assim, temos que, como a lógica só se ocupa do pensamento (representação por conceitos, discursiva), ela só se ocupa de representações claras. E a clareza aqui é a envolvida em conceitos, no pensamento. Como para ela qualquer outra espécie de consciência seria irrelevante, a lógica pode simplesmente equiparar representações obscuras e inconscientes. Algo parecido, embora não exatamente idêntico, se passa no caso na Antropologia de um ponto de vista pragmático . Após o exemplo do organista, Kant faz a seguinte observação: Assim, o campo das representações obscuras é o maior no ser humano. – Mas como só deixa perceber o ser humano em sua parte passiva, como jogo das sensações, a teoria dessas representações pertence apenas à

antropologia fisiológica, não à pragmática, que é a propriamente visada aqui. ( Log 136) A antropologia de um ponto de vista fisiológico é, segundo Kant, uma doutrina do conhecimento humano que deve “investigar o que a natureza faz do homem”, ao passo que o conhecimento pragmático do ser humano investiga “o que ele faz de si mesmo” ( Ant 07 119). Do ponto de vista fisiológico, falaríamos sobre as causas naturais que podem basear a faculdade de recordar, por exemplo. De um ponto de vista fisiológico, poderíamos argumentar “sobre os traços deixados no cérebro pelas impressões das sensações sofridas”. Mas temos quanto a isso mero conhecimento teórico, de espectador, e o ser humano “tem de deixar a natureza agir, porque não conhece as fibras e nervos cefálicos, nem sabe manejá-los para seu propósito” ( Ant 07 119 ) . Já do ponto de vista pragmático, a antropologia ocupa-se de conhecer o ser humano para, por exemplo, procurar que percepções podem ampliar ou agilizar a memória ( Ant 07 119). Assim, a antropologia do ponto de vista pragmático não pode teorizar sobre as representações obscuras. Por outro lado, no entanto, todas as representações obscuras das quais o ser humano pode vir a tratar voluntariamente parecem ser levadas em conta na antropologia do ponto de vista pragmático. O texto da Antropologia está repleto de considerações sobre como “lidar” com elas e, com isso, fazermos algo de nós mesmos. Um exemplo dado por Kant faz apelo a um provérbio russo: O provérbio russo diz: “Recebe-se o hóspede conforme o traje dele, e se lhe faz companhia de acordo com seu entendimento”; o entendimento, porém, não pode evitar a impressão de representações obscuras, a impressão de uma certa importância causada por uma pessoa bem vestida, mas quando muito, pode ter somente o propósito de corrigir posteriormente o juízo que provisoriamente fez a respeito dela. ( Ant 07 137) Conforme a distinção traçada entre antropologia fisiológica e pragmática, somos passivos em relação aos efeitos obscuros da percepção do traje do hóspede. Mas a representação do traje parece justamente encaixar-se no que a Crítica da razão pura chamava de representações obscuras conscientes: ela é suficiente para diferenciar entre trajes. O que não temos clareza (exceto indiretamente) é do efeito de tal diferenciação na avaliação da importância do hóspede.

Assim, parece que, para os propósitos específicos das disciplinas da lógica e da antropologia, a sofisticação da nota em B414 na Crítica da razão pura não é necessária. A ausência dessa sofisticação deve nos levar a usar com cuidado o termo “clareza” ao considerar essas três obras em conjunto. Ou seja, devemos atentar para o fato de que talvez o termo “clareza” seja usado diferentemente na Lógica e na nota da Crítica em B414 e que, com certeza, ele é usado diferentemente no caso dessa nota e da Antropologia . Tomado esse cuidado, ainda assim o exemplo da Antropologia pode ser útil para melhor compreender a peculiaridade da consciência envolvida em representações claras no sentido da Crítica , onde uma representação é clara se temos consciência não somente para diferenciar, mas para saber em que uma certa representação é diferente de outras. O organista, no exemplo, obviamente diferencia uma nota da outra, mas não é capaz de dizer em que uma nota é diferente da outra. Dando mais autoridade à Crítica da razão pura e observando a diferença entre ter consciência suficiente para diferenciar e, além disso, ter consciência de em que consiste a diferença, vejamos de que modo isso pode ajudar a compreender a distinção entre modos singular e universal de representar um mesmo objeto. Para tanto, o próximo passo é analisar a divisão entre representações claras distintas e claras indistintas. Temos caracterizações ligeiramente diferentes na Lógica de Jäsche e na Antropologia : Todas as representações claras, às quais só podemos aplicar as regras lógicas, podem agora ser diferenciadas com respeito à distinção e à indistinção . Se estamos conscientes da representação inteira, mas não do múltiplo que está nela contido, então a representação é indistinta. ( Log 09 34) A consciência das próprias representações que basta para diferenciar um objeto de outro é a clareza . Aquela, porém, pela qual se torna clara também a composição das representações, se chama distinção . ( Ant 07 137-8) A lógica caracteriza a clareza como consciência do todo e a distinção como consciência do múltiplo ; a antropologia caracteriza a clareza como consciência suficiente para diferenciação e a distinção como clareza da composi ção . Essas diferenças parecem contornáveis, se tomar propriamente consciência do múltiplo envolver também ter clareza sobre o modo como ele se compõe em um todo. Por outro lado, como já observado, não há como compatibilizar com a Crítica da razão pura a redução, na Antropologia, da clareza à mera consciência capaz de diferenciar um objeto de outro. No entanto, deixando de lado os termos clareza e distinção, o que importará será distinguir entre, de um lado, ter consciência de algo como um todo ou ser capaz de diferenciar esse algo; de outro lado, ter consciência do múltiplo ou da composição. Vejamos como isso se aplicaria ao exemplo do organista que improvisa ao mesmo tempo em que conversa com alguém. Como já visto, parece trivial que o músico tenha consciência da melodia como um todo e que seja capaz de diferenciar a melodia de outras coisas, como, por exemplo, a conversa com seu acompanhante. Mas parece que devemos dizer mais: o organista tem alguma consciência de em que a

melodia se diferencia da conversa. A questão interessante é quanto às notas tocadas. Segundo a Crítica , parece que devemos dizer que o organista tem alguma consciência das notas, mas não consciência de em que elas se diferenciam. Para tanto, ele teria de não só diferenciar as notas, mas ter também consciência de em que elas são diferentes. Para dar mais um passo na direção de compreender o papel disso na consciência como base para a diferença entre representar singularmente e representar universalmente, é útil examinar a sequência da passagem citada da Antropologia : Essa última [distinção] é a única que faz de uma soma de representações um conhecimento ; no que então é pensada uma ordem no diverso, porque toda composição com consciência pressupõe unidade da mesma, por conseguinte uma regra para a composição. ( Ant 07 137-8, tradução modificada) Para compreender por que só a distinção faz de uma soma de representações um conhecimento, lembremos o que caracteriza um conhecimento ou cognição: trata-se de uma representação consciente relacionada a um objeto ( KrV B377). Para tanto, não basta uma série de representações, não basta a consideração “em conjunto” de um diverso, não basta a “soma” de um diverso. A “remissão” a um objeto depende de esse diverso ser unificado (conforme a representação de uma unidade), e a expressão universal dessa regra de unificação é justamente um conceito. Vejamos então como o modo de representar universal, por conceitos, está necessariamente envolvido em todo conhecimento ou cognição. Podemos fazer isso comentando uma passagem do Prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura : [...] não posso permanecer nessas intuições caso elas devam tornar-se conhecimentos, mas tenho antes de referi-las, enquanto representações, a um algo como objeto e determinar este por meio daquelas, [...] ( KrV BXVII) A passagem deixa claro que intuições não se bastam para serem cognições ou conhecimento e deixa também claro o que elas (as intuições) não são capazes de fazer por si só: a intuição por si só não é capaz de fornecer a referência de algo como representação a algo como objeto . Algo semelhante aparece quando Kant apresenta a necessidade do entendimento para a cognição de objetos na Introdução à Lógica transcendental: […] por meio da [espontaneidade dos conceitos] [um objeto] é pensado em relação àquela representação (como mera determinação da mente). ( KrV B74) Assim, por meio da espontaneidade dos conceitos tomamos algo como representação (como mera determinação da mente), relacionado a algo como objeto. E, segundo a passagem do Prefácio, fazemos essa referência, isto é, pensamos o objeto como objeto de uma representação ao determinar um objeto através das representações. E, como deixa clara a continuação da passagem do Prefácio, tal determinação do objeto é feita por meio de conceitos :

[...] não posso permanecer nessas intuições caso elas devam tornar-se conhecimentos, mas tenho antes de referi-las, enquanto representações, a um algo como objeto e determinar este por meio daquelas, [...] então eu posso ou assumir que os conceitos com que realizo esta determinação [...] ( KrV BXVII, ênfase minha) A passagem segue apresentando a possibilidade de que os conceitos pelos quais determinamos os objetos regulem a experiência (ponto irrelevante para meus propósitos aqui). O que me interessa e fica claro pela passagem é a necessidade, para que a intuição seja uma cognição, da determinação do objeto por conceitos . Que tal determinação se dê por conceitos pode ser elucidado por apelo a uma passagem da Lógica de Jäsche . Pensar por conceitos é pensar por marcas ou notas características. Uma nota característica é (i) uma representação parcial (ii) na medida em que é considerada razão ou fundamento de conhecimento da representação inteira ( Log 09: 58). O que explica que “branco”, por exemplo, sirva para pensar, digamos, essa folha de papel não é simplesmente que a “brancura” seja parte da representação que tenho da folha de papel, mas é preciso que essa parte seja tomada como algo que me permite conhecer, cognoscer, representar o papel – preciso tomar essa representação parcial (a brancura) como marca, como algo que serve para conhecer o papel. Por isso, segundo a Lógica de J äsche , “a universalidade ou validade universal do conceito não se baseia no fato de que o conceito é um conceito parcial , mas no fato de que ele é uma razão de conhecimento” ( Log 09: 96). Podemos dizer que um fundamento de cognição parece ser o fundamento, a base ou aquilo que permite que uma determinada coisa seja representada (no sentido de “cognoscida” ou conhecida). Ora, como se trata de uma representação parcial, uma vez assim tomada como algo que não é a própria brancura do papel, mas como algo que serve para representá-lo por expressar uma marca sua, tal representação servirá igualmente para representar qualquer coisa que tiver como parte essa mesma marca: será uma representação universal quanto à forma, isto é, um conceito. Conforme essa interpretação, alguma conceitualização está sempre envolvida na cognição porque, para que tenha consciência da representação como representação de algo como objeto, preciso ter, do objeto, uma representação em algum sentido independente dele (preciso representar algo como sendo uma representação no sentido de ser algo em mim ) e tomada como servindo para cognoscê-lo. Esse algo em mim pode sempre, em princípio, abstração feita da própria presença do objeto no espaço e no tempo, referir-se a qualquer outro objeto que tiver como determinações o que tiver sido usado para pensar um certo objeto em particular. Assim, precisamos combinar conceitos e intuição, representação singular e representação universal, para termos algo referido como representação a algo como objeto. Para um conhecimento ou cognição, temos de relacionar a representação com consciência ao objeto. Para isso, precisamos conscientemente distinguir o representado e o representar e, mais, temos de ter consciência de como o representar se refere ao representado. ¹⁰ Vejamos a continuação da passagem da Antropologia sobre a necessidade de, para haver conhecimento ou cognição, pensar ordem no diverso, para o que é necessário consciência da composição:

Em toda representação de conteúdo múltiplo ( perceptivo complexa ), como é cada conhecimento (porque para ele sempre se exigem intuição e conceito), a nitidez está na ordem segundo a qual são compostas as representações parciais, [...] ordem mediante a qual o conhecimento se torna distinto. – Bem se vê que se a faculdade de conhecer deve ser denominada em geral entendimento (na significação mais geral da palavra), este tem de conter a faculdade de apreensão ( attentio ) das representações dadas para produzir a intuição ; a faculdade de abstração ( abstratio ) do que é comum a várias representações para produzir o conceito ; e a faculdade de reflexão ( reflexio ), para produzir conhecimento do objeto. ( Ant 07 138) Para chegarmos a uma cognição do objeto, temos, em primeiro lugar de ser capazes de diferenciar as partes. Mas não basta isso, é necessário também tomar as partes como fundamento de conhecimento do todo. Assim, precisamos de uma consciência particular, das partes como marcas . Consideremos novamente o exemplo na Lógica do selvagem: Assim, por exemplo, se um selvagem vê à distância uma casa cujo uso ele não conhece, ele tem, é verdade, diante de si na representação o mesmo objeto representado por outra pessoa que o conhece de maneira determinada como uma habitação destinada a pessoas. Mas, segundo a forma, essa cognição de um e mesmo objeto é diverso em ambos. Em um, é uma mera intuição , no outro, intuição e conceito ao mesmo tempo. ( Log 09 33) Antes de prosseguir, convém deter-se brevemente sobre em que sentido poder-se-ia dizer que o selvagem tem uma mera intuição. A passagem é muito clara sobre o selvagem não conhecer um aspecto específico do que o europeu se representa: que se trata de uma habitação destinada a pessoas. Assim, a passagem não parece adequada como evidência da possibilidade de uma mera intuição. Afinal, trivialmente, do fato do selvagem não dispor do conceito de casa, daí não se segue que ele não utilize qualquer conceito . ¹¹ Passar sem mais de o selvagem não dispor do conceito de casa como habitação destinada a pessoas para a afirmação segundo a qual ele não tem nenhum conceito do objeto diante dele parece supor que, para cada objeto, há um conceito que é o conceito do objeto e que, se não dispomos de uma nota desse conceito, então não temos nenhum conceito do objeto, o que é obviamente falso. Ora, essa mesma observação (atentar para o fato de não haver o único conceito adequado de um objeto) já oferece uma indicação de uma melhor leitura da passagem. A passagem é perfeita para ilustrar o ponto em questão nessa altura da Introdução da Lógica : o exemplo deixa clara a necessidade de diferenciar entre a cognição do selvagem e a do europeu, e, mais importante, deixa claro que essa não é uma diferença no objeto ou no que é recebido intuitivamente , mas uma diferença no modo de representar uma e mesma coisa. Do ponto de vista da mera intuição (abstração feita da conceitualização ¹² ), o que é dado à sensibilidade do selvagem é o mesmo que ao europeu. O que há de comum entre o selvagem e o civilizado é, no que diz respeito ao que

pode ser representado como uma casa , meramente o que é dado na intuição. Os traços da casa que permitem ao europeu reconhecê-la como casa, que permitem determiná-la como habitação destinada a pessoas, também são dados ao selvagem. Mas esses traços são dados ao selvagem como mera intuição pelo menos no que diz respeito ao conceito de casa , ¹³ que ele não possui. Daquilo que caracteriza uma intuição como cognição de casa , ele só tem a mera intuição, o que ele conhece de uma casa , é só o que é dado pela intuição. Isso é independente da questão se ele possui ou não outro conceito para dispor da cognição de casa. Ou seja, independe da insuficiência para provar que o selvagem não possui nenhum conceito do objeto em questão, o exemplo é perfeito para provar a irredutibilidade da representação intuitiva à conceitual. ¹⁴ Ressaltar essa irredutibilidade é fundamental para a continuação da seção na Lógica de Jäsche , com a apresentação (após a divisão das representações claras em distintas e indistintas) da diferença entre distinção conceitual e distinção intuitiva. Para explicar a diferença entre distinção conceitual e intuitiva, a Lógica dá dois exemplos de indistinção – indistinção na intuição e indistinção no conceito. O exemplo de indistinção na intuição é o de quando vejo uma casa na campanha. Se tenho consciência que o objeto representado é uma casa, necessariamente tenho a representação das partes da casa. E posso dizer que vejo as partes da casa, já que vejo a própria casa. Mas não tenho consciência de ver as partes na intuição – não tenho consciência do que há de intuitivo na minha representação das partes da casa. O exemplo de indistinção dos conceitos é quando as notas características de um conceito (por exemplo, o conceito de “belo”) não são explicitadas. Para a compreensão da diferença entre modos universal e singular de representação, o central para a discussão é a distinção intuitiva. Kant utiliza o exemplo de partes da casa associado ao exemplo do selvagem em uma nota em Sobre uma descoberta segundo a qual qualquer nova crítica da razão pura é tornada supérflua por uma anterior (a chamada Resposta a Eberhard ) justamente para insistir na especificidade da distinção intuitiva e consequente irredutibilidade da representação sensível à intelectual: Pois há igualmente uma clareza na intuição, portanto, na própria representação do individual, não somente das coisas em geral, clareza que pode ser chamada estética, e que é absolutamente distinta da clareza lógica, por meio de conceitos, (como aquela do aborígene australiano que visse uma casa pela primeira vez e estivesse suficientemente perto dela para lhe distinguir todas as partes, sem todavia ter disso [ davon ] o menor conceito) mas que não figuraria, com certeza, num manual de lógica. ( ÜE 08 217) Antes de mais nada, é importante considerar o contexto do exemplo. Kant pretende, a essa altura do texto, tratar da afirmação de Eberhard segundo a qual existe também uma intuição nã o sensível . Segundo Kant, Eberhard estaria sustentando a possibilidade de um acesso às coisas em si via intuição não sensível em função do seguinte raciocínio. Os primeiros elementos do espaço e do tempo concretos não são (segundo esse raciocínio atribuído a Eberhard) aparências, pois não são objetos da intuição sensível (não vemos as partes simples dos objetos no espaço e no tempo). Ora, como, para Eberhard, o que caracteriza o sensível é ser representado indistintamente ,

essas partes simples seriam representadas confusamente no sensório e distintamente em uma intuição não sensível. A esse raciocínio, Kant responde que, se essas partes são partes da intuição sensível, então a intuição dessas partes continua sensível. Ocorre somente que podemos não ter consciência dessas partes da intuição sensível. Supondo que a coisa tenha partes simples, representamos essas partes simples como conclusão de um raciocínio intelectual, mas, diz Kant, poderíamos também tomar consciência de uma representação sensível sem que ela deixe de ser sensível por causa da tomada de consciência: A consciência de uma representação não faz diferença no que diz respeito à sua natureza específica. A consciência de uma intuição empírica é chamada percepção . Portanto, o fato de essas partes supostamente simples não serem percebidas não faz a menor diferença na sua natureza como intuições sensórias. ( ÜE 08 217) Ou seja, mesmo que me represente algo em um objeto intuído não por ter percebido essas partes pelos sentidos (se, por exemplo, dizemos que uma mesa é constituída por moléculas atômicas que não percebo ao ver a mesa), daí não segue que eu tenha uma intuição não-sensível dessas partes. Supor que do fato de não termos consciência das representações dessas partes como partes da intuição sensível seguir-se-ia que sua representação é uma intuição não-sensível levaria ao absurdo, continua Kant, de dizermos que, caso nossos sentidos e capacidade da imaginação fossem aguçados e fôssemos capazes de obter consciência do múltiplo dessa intuição, então perceberíamos nelas algo de não-sensível (pois distinto): O fato de essas partes pretensamente simples não serem percebidas não introduz, portanto, a menor mudança na sua qualidade sensível, de sorte que, se nossos sentidos fossem mais agudos e nossa imaginação ao mesmo tempo suficientemente extensa para apreender com consciência o diverso da sua intuição, eles poderiam, graça à distinção dessas representações, perceber nelas qualquer coisa de não sensível. Talvez o leitor se pergunte a esse respeito por que o Sr. Eberhard, elevando-se acima da esfera da sensibilidade, continue a empregar a expressão não sensível em lugar de suprassensível . Mas, é corretamente que o faz, pois essa última mostraria de maneira evidente que ele não poderia extrair o suprassensível da intuição sensível precisamente porque ela é sensível. ( ÜE 08 217)

Assim, Kant reconhece que a representação dessas partes da intuição que não são percebidas (as partes atômicas dessa folha de papel, por exemplo) são introduzidas na representação do objeto por meio de algo outro que representações sensíveis. Vimos que o mesmo ocorria no exemplo de um ser humano percebido à distância, no qual podemos saber por conclusão , mas não por consciência imediata, que víamos olhos e boca. Mas, segundo Kant, isso não torna olhos e boca ou as partes microscópicas da folha de papel objetos não-sensíveis . O que segundo Eberhard é introduzido como nãosensível (partes que não percebo) só é introduzido por uma via que não a da sensibilidade devido a uma deficiência na consciência da representação dessas partes ( ÜE 08 218). Mas, se são partes do objeto, são sensíveis e poderiam, em princípio, ser percebidas, caso sentidos e imaginação fossem mais aguçados. Portanto, são sensíveis e pertencem à intuição sensível do objeto. É nesse momento que Kant utiliza, em uma nota, o exemplo do selvagem da Nova Holanda. E o objetivo do exemplo é ilustrar a possibilidade de a intuição sensível tornar-se distinta (isto é, ilustrar a possibilidade de obtermos consciência da representação das partes) graças à sensibilidade, não graças ao conceito envolvido (como ocorre com a representação dos olhos e da boca quando vemos um ser humano de muito longe ou quanto a partes microscópicas de algo percebido). O exemplo é evidência de que a distinção (a consciência da multiplicidade, a consciência da representação das partes da casa) não depende necessariamente da posse do conceito de casa com as partes da casa como notas características. O propósito é mostrar que podemos obter consciência das partes de algo (no exemplo, da casa) sem ser por conclusão a partir do conceito utilizado para pensar o objeto. Obtemos essa consciência das partes da casa sem o conceito “casa” porque não dependemos, para isso, das notas do conceito “casa”. O selvagem pode obter essa consciência por meio do que lhe é oferecido na intuição. Por isso, a distinção (consciência da representação das partes) não se deve, no caso do selvagem, a uma explicitação de notas características do conceito “casa”. Trata-se de uma distinção sensível, não intelectual (exatamente como explicara Jäsche, ( Log 09 44)), obtida pela percepção e não dependente do conceito utilizado para pensar o objeto. Podemos agora voltar para a questão sobre de que modo a consciência está na base da diferença entre representar universalmente e representar singularmente. Consideremos novamente o exemplo do organista improvisando sem prestar atenção à sua fantasia. Ele tem clareza de estar tocando uma melodia, pois tem consciência de estar tocando uma melodia enquanto conversa com alguém ao invés de estar fazendo tricô, por exemplo. Assim, ele não só diferencia estar tocando uma melodia de fazer tricô como sabe em que as duas coisas se diferenciam. Isso significa que ele representa a melodia via certas notas características que servem pelo menos para representar melodias em geral. Ele não tem, contudo, tal clareza das notas e sua composição, ainda que tenha delas uma consciência obscura. Ele tem consciência das notas, uma vez que é capaz de diferenciar uma nota de outra e perceber diferenças em sua combinação, como atesta o fato de que estranharia um acorde desarmônico. Essa consciência é obscura, contudo, na medida em que não saberia dizer em que essas notas se diferenciam. O que esse exemplo nos esclarece sobre a diferença entre formas de

representar? Sem saber em que as notas se distinguem uma das outras, o organista não tem, das notas, uma cognição. Para tanto, teria de tomar uma representação universal adequada às notas, com a consciência de que essas notas e sua composição, essa melodia em particular, se diferencia de outras. Para ter consciência de em que essas notas se diferenciam, ele teria de ser capaz de tomar certas características como marca de uma nota musical e como não sendo marca de outra, ele teria de tomar certas representações parciais das notas musicais como fundamento de conhecimento dessas notas, e isso é, vimos, representar universalmente. Voltando ao exemplo do selvagem na Lógica , percebemos que embora o selvagem tenha, no objeto representado na intuição, a mesma matéria que o civilizado, ele não saberia diferenciar uma forma sólida que serve para a habitação de pessoas de uma outra com outro propósito (como uma igreja, ou destinada à habitação de animais) e eventualmente de uma forma natural sem nenhum propósito particular. Ele dispõe na intuição do mesmo que o europeu, mas ele não toma as representações parciais que se representam intuitivamente como fundamento de conhecimento, como servindo para representar universalmente o objeto como um algo que serve para alojar pessoas. Isso significa que o selvagem só tem uma representação obscura da casa ou das partes da casa? Não necessariamente, pois talvez possa obter a clareza necessária para cognição graças a outros conceitos, talvez ele possa usar as partes que percebe da casa como fundamento de determinação do objeto através de um conceito distinto do civilizado. Mas o exemplo ilustra, de um lado, de que modo o representar universalmente não se reduz ao oferecimento de algo na intuição nem mesmo à consciência das partes da intuição. E, por outro lado, os exemplos de introdução de distinção intuitiva ilustram de que modo a representação intuitiva é irredutível à representação universal: há algo representado intuitivamente que não se reduz ao conceito utilizado para pensar o objeto. Assim, se só temos consciência da diferença de uma representação A de outras coisas, mas não consciência de em que A se diferencia de outras coisas, não representamos A universalmente, não determinamos A por notas comuns. Se, além da diferenciação, representamos em que A se diferencia de B, tomamos certas representações parciais de A como fundamento de conhecimento de A e, com isso, temos uma representação universal quanto à forma. No entanto, essa representação universal não esgota a representação de A. Dispondo somente de representação universal, podemos representar notas que diferenciam os indivíduos que cairiam sob o conceito de um A dos que não poderiam ser subsumidos sob esse conceito. No entanto, só com essa representação universal, não representamos um objeto que é A. Para tanto, precisarmos da representação individual de algo sob a representação universal. E essa representação individual, justamente por poder oferecer algo com objeto (por oposição a uma mera representação ), não pode ser totalmente capturada conceitualmente. Isto é, há uma irredutibilidade da representação sensível que sempre poderá, por distinção intuitiva, ao percebermos, ao tomarmos consciência do oferecido na intuição, fornecer elementos não desde sempre pensados no conceito.

Por isso, precisamos do concurso de duas faculdades, sensibilidade e entendimento. Nos Progressos da metafísica , Kant caracteriza do seguinte modo conhecimento discursivo e conhecimento intuitivo: O conhecimento por meio de conceitos é chamado de discursivo , o na intuição , intuitivo ; na verdade para um conhecimento são requeridos ambos conectados um com o outro, mas ele será chamado daquele pelo qual, como fundamento de determinação do mesmo, eu a cada vez atento preferencialmente. ( FM 20 325) Lembremos que, para intuições tornarem-se cognições ou conhecimentos, tínhamos que referir as intuições enquanto representações a algo enquanto objeto e determinar um objeto por meio de conceitos. Para tanto, temos de tomar representações parciais como algo que não é simplesmente parte do representado em um todo, mas como fundamento de conhecimento, como algo que, como representação, serve para conhecer o objeto, o que ocorre quando essa representação serve para diferenciar o objeto de outros. Nesse caso, não só diferencio o objeto, mas tenho consciência de uma marca que diferencia o objeto em relação a outros. Se fizermos essa determinação em função da distinção lógica, em função da clareza quanto às partes do conceito utilizado para pensar o objeto, então utilizamos como fundamento a clareza lógica e, atentando para esse aspecto como fundamento de determinação, chamamos o conhecido obtido de discursivo. Mas podemos também usar como fundamento de determinação o oferecido na intuição. Podemos fazer a determinação por distinção estética, graças à clareza estética do que é oferecido na intuição. Mesmo nesse caso, contudo, o que obtenho por distinção estética só proverá conhecimento ou cogni ção se for tomado como fundamento de conhecimento, o que implicará representar universalmente o objeto caracterizado por essa parte sensível da qual tomo consciência e que com consciência tomo diferenciando esse objeto de outros. Só com isso terei consciência não só da parte, não da representação parcial, mas da representação como parte que serve para representar o todo. E, nesse caso, passarei a representar também universalmente graças a essa parte cuja consciência obtive graças à intuição. Mas o fundamento de determinação aqui não foi discursivo, pois foi utilizada a representação individual oferecida na intuição, que não se esgota na sua representação discursiva. Assim, se tivermos consciência do que nos permite cognoscer o objeto, se tivermos consciência de em quê em algo se distingue de outro, temos uma representação universal quanto à forma, temos consciência sobre de que modo se dá a relação entre representação e objeto, sobre de que modo a representação nos apresenta o objeto. Por outro lado, uma cognição em sentido próprio não se esgota no que representamos universalmente do objeto, portanto, não se esgota naquilo de que temos consciência de como se relaciona com o objeto. Devemos lembrar que nenhum conceito é totalmente determinado, mas uma coisa é, para Kant, sujeita ao princípio de determinação completa – tudo que existe é completamente determinado a todo e qualquer predicado possível (cf. KrV A572-3/B600-1). Assim, representar-se algo como singular é representar-se algo que é considerado completamente determinado. Mas, é claro, dada nossa finitude, não podemos em pensamento representar essa determinação completa, mas ela

é representada como dada na intuição. Se tomarmos agora consciência de partes dadas na intuição, onde essa consciência se deve à clareza estética, se deve à mera consciência de uma diferença, e não à consciência de em que consiste essa diferença (o que dependeria da representação universal, pois dependeria de representar algo como marca), poderemos ter uma cognição intuitiva. Ela será cognição na medida em que usar essas partes assim apreendidas como fundamento de cognição, portanto, será cognição na medida em que representar universalmente essas partes. Mas ela será intuitiva por usar como fundamento de determinação algo que não foi derivado de uma representação universal, mas da apreensão sensível. 1 . Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (Proc. no. 310731/2017-8). 2 . Como é usual, mencionarei somente a abreviação da Academia para as obras de Kant e a paginação das edições A e B, no caso da Crítica da razão pura , e da edição da Academia para as demais obras. Salvo indicação em contrário, segui a tradução especificada na bibliografia. Nos demais casos, a responsabilidade da tradução do alemão para o português é minha. 3 . Usarei muitas vezes o termo “cognição”, ao invés de “conhecimento” para “Erkenntnis” e “cognoscer” para “erkennen”. Embora insatisfeita com essa solução, dada a inexistência desses termos em língua portuguesa, creio ser importante a distinção em relação a “conhecimento” e “conhecer”, dada a especificidade do sentido técnico do termo “ Erkenntniss ”, como uma representação consciente referida a um objeto ( KrV A320/B276-7). Para uma defesa da pertinência de diferenciar cognição e conhecimento, cf., por exemplo, Willaschek, M. & Watkins, E. (2017). 4 . “Nós percebemos em nós mesmos um traço específico do entendimento e da razão, a saber, a consciência.” ( V-Met/Volckmann 28:449), “A faculdade da consciência não pode ser atribuída a animais.” ( V-Met L2/Pölitz 28: 584). 5 . “ Viver significa, propriamente falando, ter uma capacidade de levar a cabo ações em conformidade com suas representações. Dizemos que um animal é vivo porque tem a capacidade de alterar seu próprio estado como consequência de suas representações” ( V-Met/Volckmann 28:449). “Alma é o princípio que anima um animal. A matéria não pode viver por si mesma” ( VMet K2/Henize 28:753). 6 . “ Vida é a faculdade de um ente de agir segundo leis da faculdade da apetição. A faculdade da apetição é a faculdade do mesmo ente de ser, mediante suas representações, causa da efetividade dos objetos destas representações.” ( KpV 5: 9) 7 . No caso dessa passagem, alterei a tradução de Guido de Almeida de kennen para “notar” (ao invés de “conhecer”) e de erkennen para “conhecer” (ao invés de reconhecer). Embora a solução do tradutor seja com certeza melhor isoladamente, quis preservar a relação de erkennen com conhecer.

8 . Procurei, em “Representações sensíveis e apercepção originária” (2018) justificar por que essa passagem não deve ser lida como atribuindo percepção (e, portanto, consciência) aos animais. 9 . Essa distinção é necessária ainda que (como farei aqui) deixemos em aberto o ponto sobre se é ou não possível essa apreensão sem qualquer conceitualização. 10 . Diversos autores, em especial em um debate conhecido sobre o que ficou rotulado como “não-conceitualismo kantiano” procuram chamar atenção para a especificidade do papel de conceitos como necessários para um certo tipo específico de relação de representações. Tolley, adicionalmente, é bastante cuidadoso em distinguir percepção e cognição (cf. Tolley (2013 e 2018). Embora com divergências em relação à sua solução (não creio que atenda adequadamente às afirmações kantianas segundo as quais a unidade da intuição não é outra senão a da categoria e a intuição não tem nenhuma relação com objetos independente das funções do entendimento), este texto aproveitou muito das suas distinções. Deixarei aqui de lado o papel das funções do entendimento no caso da percepção , que, ainda que não seja cognição, depende das funções do entendimento expressas pelas categorias, bem como o problema de como e se intuições podem ser independentes dessas funções do entendimento. Também sobre a necessidade de distinção entre cognição e percepção, destacando ainda a importância de tal papel também para a possibilidade da intuição cf. Fonseca (2017). Ainda sobre o papel das funções do entendimento na percepção, conferir p.e., Torres (2008) e Grifith (2010). 11 . Uma leitura alternativa seria dizer que, para Kant, o selvagem não tem nenhum conceito da casa porque, embora selvagens tenham as faculdades necessárias para a produção de conhecimento, eles só as têm em potência, sem serem capazes de desenvolvê-las e sem serem capazes de cognição (agradeço à Hannah Ginsborg por lembrar essa possibilidade). Essa leitura é improvável, pois torna difícil de justificar que Kant mencione algo tão específico que é desconhecido pelo selvagem (ser habitação para pessoas) e, além disso, Kant diz que o selvagem tem cognição (que sempre envolve conceito). Por isso, privilegiarei a leitura mais caridosa, segundo a qual não está aqui cometendo uma falácia de passar de não dispor do conceito de “casa” para não dispor de nenhum conceito. Ainda assim, o ponto central que será obtido da análise dessa passagem, a saber, a irredutibilidade da representação sensível à representação conceitual, seguir-se-ia também da suposição de que o selvagem não tem cognição por não ter nenhum conceito. 12 . Quer dizer, se, na leitura mais caridosa, aceitamos que alguma conceitualização seja parte tanto da representação do selvagem quando do europeu, devemos considerar o que resta fazendo abstração da conceitualização de ambos. Se supusermos que o selvagem não tem qualquer cognição, então abstraímos da conceitualização do europeu. 13 . Ou com respeito a qualquer conceito, caso o selvagem não tenha cognição ou conhecimento.

14 . Heidemann (2012), embora com muitas diferenças em relação ao que desenvolvo aqui, também explora de modo instigante a importância de representações obscuras na explicação da irredutibilidade da representação sensível à intelectual. Bibliografia ALTMANN, Sílvia. “Representações sensíveis e apercepção originária”. Studia kantiana . v. 16/6, p. 27-45 (2018) FONSECA, R. D. “Percepção Objetiva, Espaço Egocêntrico e NãoConceitualismo Kantiano: Uma Primeira Aproximação”. Kant E-prints , v. 12, p. 104-130, 2017 GRIFFITH, Aron. “Perception and the categories: a conceptualist reading of Kant’s Critique of pure reason ”. European journal of Philosophy 20(2) (2010) pp. 193-222 HEIDEMANN, Dietmar. “The ‘I think’ be able to accompany all my representations”. In: Giordanetti, P., Pozzo, R., Sgarbi, M (eds.). Kant’s philosophy of the unconscious . De Gruyter, 2012 KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático . Trad. Clélia Aparecida Martins. São Paulo, Iluminuras (2009) KANT, Immanuel. Crítica da razão prática . Trad. Valeiro Rohden, Martins Fontes (2015) KANT, Immanuel. Crítica da razão pura . Trad. Fernando C. Mattos, Editora Vozes (2012 KANT, Immanuel. Lectures on logic (The Cambridge edition of the works of Immanuel Kant) , Trad. J. M. Young, Cambridge, Cambridge University Press (1992) KANT, Immanuel. Lectures on Metaphysics (The Cambridge edition of the works of Immanuel Kant) . Trad. K. Ameriks and S. Naragon, Cambridge, Cambridge University Press (1997) KANT, Immanuel. Lógica de Jäsche . Trad. de Guido Antônio de Almeida, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro (1992 TOLLEY, Clinton. “The meaning of perception in Kant and his historical context”, In: WAIBEL, Violetta, RUFFING, Margit, WAGNER, David. Acten des XII. Internationalen Kant-Kongresses , Berlin/Boston, De Gruyter (2018) pp. 3243-3252 TOLLEY, Clinton. “The non-conceptuality of the content of intuitions: a new approach”. Kantian review 18(1) (2013) pp. 107-136 TORRES, J. C. B. “Determinação categorial e síntese da apreensão. Studia Kantiana , v. 6/7, p. 62-81 (2008)

WILLASCHEK, Marcus. & WATKINS, Eric. “Kant on cognition and knowledge”. Synthese . (2017).   https://doi.org/10.1007/s11229-017-1624-4 Produz o gênio suas obras (de arte) como a macieira, suas maçãs? ¹ Virginia Figueiredo UFMG/FAPEMIG ² “Ampliar a arte? “Não. Antes toma a arte para ir contigo na via que é mais estreitamente a tua. “E liberta-te.” (Paul Celan, O Meridiano) Introdução Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à professora Ethel Rocha, e às demais organizadoras e organizadores, pelo gentil convite para participar desta preciosa e mais do que merecida homenagem aos notabilíssimos professores Guido de Almeida e Raul Landim. Quero ainda parabenizar toda a equipe pela iniciativa, assim como pela oportunidade que nos deram de manifestar nossa profunda gratidão. Gratidão de mais de uma geração de alunas e alunos! Provavelmente a minha contribuição ficará marginal nesta coletânea em homenagem aos dois professores luminares do ambiente filosófico brasileiro, na medida em que provenho da Estética, esfera na qual as majestosas faculdades inteligíveis – como razão e entendimento – têm um lugar de reduzida importância, ao contrário da posição privilegiada que ocupam nas demais disciplinas da Filosofia, de onde provirão, com certeza, a maioria das contribuições. Mesmo hesitante e algo constrangida, decidi aceitar o honroso convite e enviar este modesto texto sobre a questão do gênio kantiano, o qual, além desta extensa Introdução e de uma Conclusão bem menor para a saúde e felicidade do/da pobre leitor/a, dividir-se-á em duas partes: a primeira, intitulada “O terror do filósofo” e a segunda, “A angústia do poeta natural”. Começo, então, pelo conceito de finalidade da natureza, convencida da possibilidade de ele desempenhar o papel de um fecundo princípio transcendental da faculdade de julgar, participando, como pressuposto, de todos os acordos que estão em jogo na Crítica da Faculdade de Julgar , ³ e a fortiori dos dois acordos que hoje aqui nos interessam: tanto do lado do gosto, o acordo entre imaginação e entendimento com relação ao belo da natureza; quanto do lado do gênio, um semelhante acordo entre imaginação e entendimento, com a diferença de que, do lado do gênio, ele é feito tendo em vista o belo (ou o sublime) na arte. É necessário dizer que, apesar de sua importância, há pouquíssimas passagens no corpo principal da CFJ – pelo menos tanto quanto eu o conheço – nas quais se exponha claramente este

conceito de finalidade da natureza que, no entanto, aparece com toda sua força nas duas Introduções à terceira Crítica . Cito um desses inúmeros trechos da Primeira Introdução. Depois de afirmar que “a faculdade de julgar necessita de um princí pio próprio de sua reflexão, igualmente transcendental ” ⁴ , Kant o define: O princípio da faculdade de julgar reflexionante, por meio do qual a natureza é pensada como sistema segundo leis empíricas, é tão somente um princípio para uso lógico da faculdade de julgar ; um princípio transcendental no que diz respeito à sua origem, mas apenas para considerar, a priori , a natureza como qualificada para um sistema lógico de sua diversidade sob leis empíricas. ⁵ Ao final do quarto momento da Analítica do Belo (§ 22), Kant apresenta duas importantes questões, adiando, indefinida e infelizmente, a sua investigação. Kant as apresenta sob a forma de duas alternativas, as quais, por sua vez, ele preferiu manter indecidíveis. São elas: 1) se o sentido comum ( sensus communis ) é um “princípio constitutivo da possibilidade da experiência” ou um “princípio regulativo”; 2) se o “gosto é uma faculdade originária e natural ou apenas uma ideia artificial a ser ainda adquirida [...] uma exigência da razão”. ⁶ Impelida por ambas questões, que dizem respeito a um possível fundamento do gosto, mas sem querer contudo resolvê-las (longe de mim), acreditei ser legítimo defender que: 1) senão específica e diretamente como um fundamento do gosto, o conceito de finalidade da natureza poderia ser entendido com um princípio próprio à faculdade de julgar, capaz de fornecer-lhe “régua e compasso”, dispensando-a, por conseguinte, de qualquer empréstimo ou dívida (heteronomia) com relação a qualquer outra faculdade dentro do sistema kantiano, dentro do qual se costuma destacar justamente a razão; 2) além disso, tal princípio cumpriria sua função de orientação da experiência, de maneira rigorosa e estritamente regulativa e, portanto, jamais de modo constitutivo . A base para resistir à tese que acaba por localizar na razão o princípio transcendental da faculdade de julgar é que ela ignora a séria reivindicação kantiana de autonomia (no caso, “heautonomia”, sobre a qual voltarei a falar adiante) da faculdade, a qual depende sempre da existência de um princípio próprio e exclusivo. A meu ver, na famosa carta a Reinhold, de 28 de dezembro de 1787, Kant estava comemorando a “descoberta” exatamente do conceito de finalidade da natureza como um princípio próprio e intransferível da faculdade de julgar. ⁷ Defendo que esse princípio constituiu para a faculdade de julgar a senha exclusiva de acesso ao Olimpo do Transcendental. Mas não só isso, uma vez lá, entre as demais divinas faculdades, ela é “empoderada” (como se gosta tanto de dizer atualmente), isto é, torna-se capaz de exercer a sua máxima prerrogativa, característica em geral do jogo entre as faculdades, que é o de candidatar-se ao governo das demais faculdades participantes no acordo, no caso da CFJ: do acordo estético ⁸ . Com outras palavras: autônoma e livre, a imaginação deixa a sua posição de submissão ao entendimento (juízos teóricos), quando era obrigada a produzir esquemas, e passa ao lugar de uma espécie de comando (mas aqui, o “comando” é estimulante e não opressor, na medida em que produz o prazer), capaz de liderar o entendimento. Permitam-me uma breve

divagação aqui, pois creio que a imaginação seja uma faculdade diferente das demais; ousaria dizer até que estamos diante de uma faculdade feminista , cujo “prazer” (ou poder?) não consiste na dominação das outras, mas antes na emancipação de suas fraternas companheiras de apropriação do mundo, por isso, a sua liderança significa sobretudo liberdade! ⁹ Sucumbindo ao jogo de palavras: ao liderar, a imaginação libera as outras faculdades . A segunda parte da minha proposta, de que a função do princípio é somente regulativa e não constitutiva, baseia-se na especificação kantiana da validade e até da universalidade dos juízos estéticos como sendo estritamente subjetivos. Referindo-se à autonomia da faculdade de julgar, Kant afirma que sua validade não é objetiva como aquela que ocorre “por meio dos conceitos de coisas ou ações possíveis”, mas só pode valer subjetivamente”. ¹⁰ Do mesmo modo, Kant teve de restringir o alcance do conceito de finalidade da natureza à própria faculdade de julgar, chamando sua “legislação” de heautônoma ¹¹ ao invés de autônoma, na medida em que não poderia impor à natureza qualquer limitação ou regra. Pois, aplicar à natureza uma noção de finalidade, provocaria, sem dúvida, um verdadeiro transtorno na razão. Por outro lado, considerando que a heterogeneidade e a diversidade das leis naturais poderiam ser infinitas, ilimitadas, e que, desse modo, impediriam a nossa própria experiência, ele percebeu que era absolutamente imprescindível haver um princípio que orientasse o sujeito em direção à unificação, num conceito, da natureza segundo as leis empíricas. Isso quer dizer que, apesar de a faculdade de julgar ter seu princípio próprio, garantindo assim ao conceito de finalidade da natureza o nobre adjetivo de “transcendental”, ela não goza/usufrui de um domínio próprio (ou de fenômenos ou das coisas em si) sob sua legislação. A heautonomia significa precisamente a necessária prescrição de uma lei - a unidade da natureza - da faculdade de julgar para si mesma . Como Allison nos chama atenção: […] ao contrário tanto do entendimento, que é normativo com relação à natureza, quanto da razão [...] que é normativa a respeito da liberdade, [a faculdade de julgar] não parece ter sua própria esfera de normatividade. E isso, nos termos da metáfora política que Kant usa na Segunda Introdu ção , deve-se [ao fato que], diferentemente delas, a faculdade de julgar não tem ‘domínio’[ Gebiet ]. ¹² Ainda no âmbito da Introdução, gostaria de referir-me à posição que a teoria do gênio ocupa na terceira Crítica: uma posição que, segundo Allison, é “bastante polêmica”. ¹³ Ela ocupa os parágrafos 46 a 50 da CFJ, isso quer dizer dentro da primeira parte intitulada “Crítica da faculdade de julgar estética ”, depois das duas Analíticas: do Belo e do Sublime e antes da “Dialética da faculdade de julgar estética”. É necessário ainda completar que esses (apenas) cinco , e nem tão grandes assim, parágrafos sobre o gênio ocupam o centro da “teoria da arte”, sobre a qual o mesmo Allison nos autoriza dizer que ela existe . No entanto, esta afirmação de que existe uma teoria kantiana da arte já é também, por si só, polêmica. Trata-se mesmo de uma difícil tarefa enfrentar a interpretação quase cristalizada que aponta que, se não foi negativamente, foi de modo bastante

ambíguo que Kant inseriu, dentro da sua fenomenal Estética, o problema da arte. São vários argumentos bastante consistentes, aliás, que levaram o comentário oficial a decidir por aquela posição negativa diante da arte. O primeiro desses argumentos afirma: como o principal problema da Estética de Kant é o juízo estético , o ponto de vista nela privilegiado é o do espectador e não o do artista. ¹⁴ Com outras palavras, trata-se de uma teoria do gosto ou, como diz Allison ¹⁵ , mais de uma “Estética da Recepção” do que de uma “Estética da Produção (ou Criação)”. Em seguida, alega-se que, em geral, para Kant, o belo que é digno de toda atenção é aquele que a natureza produz involuntária e espontaneamente, i.e., sem qualquer intenção ou finalidade. Em contrapartida, o caráter inegavelmente intencional e artificial das obras de arte despertaria no filósofo muito pouca (ou até nenhuma) simpatia por elas. O argumento fatal e definitivo, no entanto, os intérpretes costumam encontrar explicitado de modo incontestável no § 42 da CFJ, o qual estabelece literalmente uma diferença entre os homens de gosto que admiram a beleza da natureza, e aqueles que cultivam o belo artístico, diferença essa que é bastante desfavorável aos últimos: enquanto os primeiros denotariam uma “disposição de ânimo favorável ao sentimento moral” ¹⁶ , os amantes da arte seriam “habitualmente vaidosos, caprichosos [e] entregues a perniciosas paixões”. Como o sistema da filosofia kantiana foi entendido tradicionalmente como convergência rumo à moralidade, podese avaliar o quanto essa indisposição dos admiradores do belo artístico para o “moralmente bom” ¹⁷ constituiu um argumento fatal contra a arte. Além disso, o único artista, que entra e sai da pólis kantiana sem ser barrado, é o gênio, pois, na verdade, a sua regra é a mesma da natureza , isso quer dizer, pelo menos paradoxal e aparentemente, que a regra do gênio, em última análise, não é... artística. Gostaria ainda de acrescentar mais uma observação de Allison que apontou para o fato de Kant ter oscilado entre duas concepções de gênio, as quais ele claramente distinguiu: uma, “pesada/ densa /ampla” ( thick ) e outra, “leve/ rala /rarefeita/restrita” ( thin ). Descrevo-as abaixo citando Allison: Uma concepção ‘pesada/densa’ ( thick ) está operando na maior parte da discussão sobre as belas artes. É a concepção que é caracterizada como uma ‘originalidade exemplar’ e que inclui o entendimento e, na verdade, o juízo, junto com uma imaginação inventiva, enquanto componentes essenciais. É também o gênio no sentido que ‘dá a regra à arte’, e desse modo distinguindo os produtos genuínos do gênio do ‘nonsense original’. No entanto, noutros momentos, particularmente no § 50, Kant apresenta uma concepção rala ( thin ) de gênio, de acordo com a qual o gênio parece estar restrito meramente a uma capacidade imaginativa, a qual não está, por conseguinte, envolvida por si mesma com o entendimento, o juízo e o gosto. Consequentemente, nesses momentos, Kant enfatiza a necessidade de ‘cortar as asas’ do gênio, ‘tornando-o bem-comportado e polido’, através do gosto e do juízo, evitando que a imaginação na sua ‘liberdade sem leis’ nada mais produza, senão o absurdo ( nonsense ) original. ¹⁸

Ousaria dizer que o próprio Allison oscila também, a exemplo de Kant, entre duas posições: 1) acompanhar a corrente mais convencional e situar a teoria do gênio num lugar “parergonal”, junto com a teoria da arte e do sublime (o título da IV a parte do seu importante livro Kant´s theory of taste , dedicada à Analítica do Sublime e aos últimos parágrafos - §§ 43 a 54 - dedicados, como acabamos de ver, às Belas Artes e ao Gênio, é justamente revelador dessa posição, pois intitula-se “ Parerga to the theory of taste”), assumindo que a terceira Crítica é essencialmente uma “Estética da Recepção” ¹⁹ e não uma “Estética da criação ou produção”. ²⁰ E que “a questão principal de Kant é a da natureza do juízo estético, e não a da produção artística”. ²¹ Ou 2) “apesar de sua obscuridade e dificuldade”, tentar através de uma interpretação mais sistemática e original, apelando para aquela “concepção densa de gênio”, reconstruir a possibilidade de uma Estética kantiana da criação, i.e., “suas considerações sobre a natureza do belo artístico e as condições de possibilidade de sua produção.” ²² É evidente que tentarei defender, junto com certo Allison, a “concepção densa de gênio”, aquela que, talvez como todas as teses desenvolvidas por Kant na terceira Crítica (do belo, do gosto, do sublime etc.), pressupõe uma relação essencial entre arte e natureza. Com isso, reconhecer o quanto essa ligação da arte com a beleza, através da mediação do conceito de natureza, constitui uma das mais poderosas chaves de leitura da Estética kantiana. O gênio kantiano depende não só de uma reflexão sobre a natureza, como também de uma “séria discussão kantiana sobre a arte” que só “começa no § 45” ²³ , lembrando que a teoria do gênio (§§ 46 a 50) vem logo a seguir. De fato, o § 46 se intitula: “As belas artes são artes do gênio”. I. O terror do filósofo Começo com uma longa citação de Deleuze e Guattari, extraída do último capítulo do livro O que é a filosofia? , intitulado “Do caos ao cérebro”: Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas ideias. E por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contiguidade, causalidade, que nos permitam colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa ‘fantasia’ (o delírio, a loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo. Mas não haveria nem um pouco de ordem nas ideias, se não houvesse também nas coisas ou estados de coisas, como um anti-caos objetivo: ‘Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado..., minha imaginação não encontraria a ocasião para receber, no

pensamento, o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha.’ ²⁴ E, enfim, para que haja acordo entre coisas e pensamento, é preciso que a sensação se re-produza, como a garantia ou o testemunho de seu acordo, a sensação de pesado cada vez que tomamos o cinábrio na mão, a de vermelho cada vez que o vemos, com nossos órgãos do corpo, que não percebem o presente, sem lhe impor uma conformidade com o passado. É tudo isso que pedimos para formar uma opinião, como uma espécie de ‘guarda-sol’ a nos proteger do caos. ²⁵ Tenho a impressão de que essa ameaça de caos, “delírio e loucura”, descrita com certo humor por Deleuze e Guattari, afetou também e de modo obsessivo a mente esclarecida de Kant. Talvez, o filósofo de Königsberg tenha traduzido esse perigo do caos não através de termos como o delírio e a loucura, mas sim através da possibilidade de uma natureza que poderia comportar-se de maneira irregular e se perguntasse: “E se diante da sensação do verde de uma folha, eu não puder de jeito algum “incluí-la” (comparando-a com sensações anteriores) ou “classificá-la” dentro de um conceito empírico de uma subespécie, por exemplo, um carvalho, uma amendoeira ou outra planta qualquer, e continuar subindo na série em direção à espécie “vegetal”, e logo, alcançar o gênero “ser vivo”? Se diante das folhas verdes de uma árvore, eu tivesse de suspeitar estar diante de algum mineral como a malaquita ou o quartzo e não pudesse, às custas de uma noção muito cara a Kant, que é a de “sistema”, perceber que o mundo mineral se apresenta com características bem distintas e inconfundíveis do mundo vegetal? E sem qualquer ajuda de uma “regra protetora”, atribuir sentido e significação ao mundo, então a experiência do particular (ou singular) empírico revelar-se-ia...totalmente impossível! Como ocorria no célebre exemplo da primeira Crítica : ““Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado...” . ²⁶ Nunca é demais lembrar que, na sequência dessa passagem, o outro exemplo que Kant dá é o do próprio ser humano: nesta mesma passagem, Kant chega a dar como exemplo o próprio homem: “[…] se se transformasse ora nesta, ora naquela figura animal”; e sobre as estações do ano: “[…] se a terra aparecesse coberta ora por frutos, ora pelo gelo e a neve”. ²⁷ No meu modo de entender, o que Deleuze e Guattari apontam como tudo aquilo “que pedimos para formar uma opinião, como uma espécie de ‘guarda-sol’ que nos protege do caos”, Kant chamou de sensus communis (fundado no? baseado no) conceito de finalidade da natureza, cuja função seria exatamente a mesma, isto é, a de responder àquela dolorosa experiência de medo ou sentimento desesperado; de dar a nós, seres humanos, um sossego, um consolo. Esse sensus communis nos prometeria alguma ordem, algum entendimento, capaz de proteger-nos contra a liberdade sem lei da natureza, a qual exatamente como a imaginação desenfreada do gênio, nada produziria, a não ser contrassensos e “disparates”. ²⁸ Essa regra protetora nos assegura a confiança e a legitimidade do movimento da nossa faculdade (ou poder) de julgar, a qual Kant denominou, apenas na terceira Crítica, de “reflexionante”. Esse movimento consiste em, partindo de uma intuição empírica, buscar conceitos cada vez mais gerais (das subespécies às espécies e, logo, destas, aos gêneros) ou gêneros superiores, em vista de uma classificação, generalização ou, melhor dizendo: de uma unidade do conceito de natureza.

No caso dos juízos determinantes , a faculdade de julgar agia comandada pelos conceitos, e tinha, portanto, como princípio ou fundamento, um conceito a priori do entendimento. Já no seu uso reflexionante, a faculdade de julgar exigiu um princípio transcendental próprio, e com isso, candidatou-se ao modo de agir autônomo e, como já vimos, possibilitou as gêneses dos vários acordos que estão em jogo na terceira Crítica. É possível, então, concluir que é exatamente o conceito de finalidade da natureza que, cumprindo o papel de um princípio ou pressuposição transcendental, nos permite construir um “sistema”, i.e., dar sentido ao mundo e à nossa experiência; ou, nas palavras rigorosamente precisas de Kant: concedendo “legalidade a uma ligação em si contingente”. ²⁹ Portanto, a descoberta desse princípio parece ter constituído a principal senha para a faculdade de julgar ascender ao Olimpo do Transcendental, obrigando Kant a considerála, ao lado do entendimento e da razão, como uma das três faculdades “superiores”. Embora não seja óbvio, é possível defender que, pelo menos, indireta ou analogamente o conceito de finalidade da natureza forneça um fundamento para o juízo de gosto. Com outras palavras, o mencionado princípio orientaria o/a espectador/a do belo na natureza ou na arte (tanto faz). Enquanto um princípio formal e subjetivo , a pergunta à qual aquele princípio de finalidade da natureza está tentando responder jamais pretenderia alcançar um “ methodus ”, até porque se reconhece a impossibilidade de qualquer “ciência do belo”. O conceito de finalidade da natureza diz respeito, no máximo, à “maneira” ou “ modus ” externo de proceder da natureza ³⁰ . Ele é o fundamento do modo artístico ou técnico de encarar a natureza e, por isso, deve liberar o olhar de toda restrição conceitual, tornando-o mesmo superficial, exterior , detido nas formas , como quem olha uma paisagem. A reflexão estética, como sabemos, não é um ato que visa o conhecimento do objeto. A chamada “contemplação” é a atitude da reflexão, que sustenta o olhar do espectador da obra de arte ou da natureza como paisagem; é ela que nos permite ficar atentos às (ou distraídos com as) formas; é ela que suspende ou decreta a “greve” do olhar do cientista que examina por dentro e faz a anatomia dos corpos; em oposição ao biólogo que revira os órgãos da cobaia pelo avesso, a reflexão permite o esteta ou o flâneur , numa palavra, o homem/a mulher de gosto passear pelas obras belas da natureza (ou da arte), mantendo-o/a sempre numa certa distância , medida pelo pudor e pela admiração. Como afirma Jean-Yves Chateau: “Na percepção estética, não consumo o objeto, ele permanece intacto; ou melhor, ele se torna a cada vez mais ele mesmo, ele parece enriquecer-se de determinações a cada vez mais numerosas e complexas, na medida em que me sinto a cada vez mais invadido de prazer.” ³¹ Definiria a relação entre o sujeito e o objeto estéticos como uma intimidade respeitosa e não invasiva. No modo da conservação, o princípio da finalidade da natureza atua como uma espécie de simples garantia ou manutenção da regularidade . Na simples experiência cotidiana, quando distraidamente apenas observamos a natureza, transformada em mera paisagem, nossos olhos não se detêm diante de nada, passamos de uma forma a outra, sem estranhamentos ou interrupções. O fato de podermos passar das espécies aos gêneros, ou, em

outras palavras, mesmo dentro da escala empírica, dos conceitos mais singulares aos mais gerais, nos é assegurado precisamente pelo conceito de finalidade da natureza, na medida em que é sobre ele que se funda a possibilidade de experimentarmos como um sistema particular, a cada momento diferente, a natureza. Mas, precisamente este fato, quer dizer, nada mais nada menos do que as condições de possibilidade da experiência particular (e não geral), como todo transcendental em Kant, costuma nos passar totalmente desapercebido . Com outras palavras, o fato de estarmos, a cada vez, a produzir sistemas, unificando a natureza (ou o mundo), que é o modo único e exclusivo, segundo Kant, de experimentá-la, permanece cuidadosa e zelosamente escondido , velado, inatingível . Não se pode viver na intensidade das revelações ou dos desvelamentos (da aletheia ) heideggerianos! É a experiência da monotonia cotidiana do senso comum. O salto qualitativo que ocorre no sentimento do prazer com o belo deriva de uma intensificação produzida diante de um objeto que se destaca da ordem regular e, num certo sentido, enfadonha da natureza, chamando a nossa atenção, provocando o que poderíamos chamar de um momento de estranhamento, Unheimlich , quando, a meu ver, põem-se a nu as nossas próprias condições, mostrando-se como são simultaneamente condições da subjetividade e do fenômeno. Dito de outro modo, é como se aparecessem as condições atravé s das quais as coisas aparecem para nós ; num sentido extra-kantiano, i.e., além da letra, como se o próprio transcendental se... apresentasse! Intensamente, pela primeira vez, revelando (desocultando, descobrindo) uma profunda afinidade, amizade ou fraternidade entre nós e a natureza. A beleza da natureza desperta uma admiração em nós porque ela desnuda certa adequação entre a lei técnica da natureza e nosso modo de perceber, a de que a nossa lei das generalizações crescentes, de algum modo, está de acordo com a lei das especificações da natureza. Se não for a constatação desta coincidência, afinidade ou adequação, no que consistirá o prazer que Kant dizia ter, com certeza, existido noutros tempos ? ³² No que consistirá ainda a ideia de que o sentimento de prazer vivifica ou anima as faculdades a produzirem entre si um acordo? E assim talvez pudéssemos pensar a experiência do belo como uma operação de resgate ou ainda como sentimento ou sensação do transcendental . A angústia do poeta natural Uma ansiedade semelhante à do filósofo, com o possível caos objetivo da natureza, desenrola-se na intimidade subjetiva do artista moderno (e também do contemporâneo), como já anunciavam as celebérrimas Observações sobre o Édipo : A fim de assegurar aos poetas, também entre nós, uma existência de cidadão, seria bom elevar a poesia, também entre nós, levando em conta a diferença das épocas e das condições, à altura da mèkhanè dos Antigos. ³³ A citação de Hölderlin nos leva ao problema imediatamente suscitado pelo paradigma, digamos assim, natural da arte. Trata-se da queixa do artista moderno, mas que continua vigente na contemporaneidade que, diga-se de passagem, com o seu “tudo é permitido” ³⁴ , só aumentou a desorientação e agravou o problema. A questão que obcecava Hölderlin era menos “ o que

fazer?” Pergunta à qual ele talvez respondesse sem hesitar: “Escrever poesia, teatro”; mas a questão “ como escrever a poesia e o teatro dos Modernos uma vez que a ´regra dos Antigos´, justamente a aristotélica, já estava perdida?” Hölderlin estava às voltas com sua produção, à procura desesperada de um princípio técnico, artístico, capaz de orientá-lo na construção de sua obra, deparando apenas com uma natureza muda e insondável. Há um inegável tom de súplica nas suas palavras, uma explícita reivindicação de “cidadania” para a arte. E o que é “cidadania” senão lei, regra, orientação de como agir? O que é isso senão uma torturada pergunta sobre a possibilidade da arte moderna? O que é isso senão o reconhecimento da dificuldade da arte moderna? Daquela pergunta adorniana, traduzida nos termos de Kant, sobre as (conturbadas) condições de possibilidade da arte hoje? Tentando dar algumas indicações do contexto histórico e filosófico, no qual a citação acima ocorre, diria que a “Alemanha” ³⁵ vivia uma época de crise, de passagem do modelo clássico ao romântico; da poética mimética à da criação original. Estava ainda em vigor a velha Querela entre os Antigos e os Modernos, à qual Schiller daria novos nomes: Ingênuo e Sentimental . Momento de uma provável ruptura com a leitura normativa da Poética de Aristóteles, característica do teatro francês do século XVII, que consistia em buscar os preceitos e as regras para se escrever a boa tragédia, que seria avaliada pelo público também segundo o cumprimento (ou não) daquelas mesmas regras. Naquele ambiente clássico é provável que tanto o artista criador quanto o público espectador encontrassem seu respectivo critério (tanto do gênio e quanto do gosto) na regra aristotélica. Não há dúvida de que essa época estava testemunhando um inédito e até revolucionário deslocamento: em direção à natureza. Foi a ela que os artistas passaram a dirigir sua aflita pergunta sobre a possibilidade da arte... Na falta das regras artísticas, o poeta devia buscar na natureza suas novas regras. O típico artista moderno , o fenômeno Shakespeare ³⁶ veio questionar a validade das regras (sobretudo, as aristotélicas) da tragédia antiga. Era preciso, com urgência, encontrar novos paradigmas e novos preceitos. Se o século XVII tinha se caracterizado, segundo Dobránszky, principalmente na Europa continental, por uma violenta campanha contra a imaginação, ³⁷ o século seguinte, o “estético” por excelência, inaugurava, com as artes e a filosofia modernas, uma espécie de revanche da imaginação contra a razão. Uma luta entre o homem de gosto, moderado e amante dos artifícios versus o gênio original, excessivo, quase louco, ³⁸ inspirado pela natureza. Contra a artificiosa corte francesa (quem seria o público do Teatro Francês do Século XVII?), surge o vulto fantasmagórico, sublime, da natureza desregrada... De quem é esse vulto grandioso, senão o do gênio? Figura emblemática da arte sublime? É, portanto, nesse contexto, grosseira e rapidamente descrito, no qual podemos ouvir, de um lado, a queixa de Hölderlin, mas de outro, a exclamação entusiasmada de Goethe sobre personagens de Shakespeare! Era do Olimpo, do cume da arte clássica ou ingê nua , para onde o próprio Goethe ascendera ainda em vida, segundo a aguda análise de Walter Benjamin da novela As afinidades eletivas , ³⁹ que ele consagra Shakespeare como o Artista, o Gênio Romântico : “Natureza! Natureza! Nada é tão

natureza quanto o são os homens criados por Shakespeare!” ⁴⁰ . Nesse elogio, constatamos a falência do modelo antigo e imitativo e a consagração do novo paradigma , do gênio , do artista moderno! Se houver algum modelo a seguir, ele não será mais encontrado nas antigas regras clássicas; esse modelo, se é que ainda existe, deverá ser buscado, a partir de agora, na natureza. É ela que fornecerá, como estava escrito na terceira Crítica, as “regras” da arte moderna: “Gênio é a disposição inata do ânimo ( ingenium ) pela qual a natureza dá a regra à arte.” ⁴¹ Será que o princípio de finalidade da natureza virá salvar o poeta do seu caos? De sua desorientação? Pois, sabemos que a natureza se fecha em copas e não costuma revelar seus modos tão heterogêneos quanto (até um certo limite, pelo menos, para nós) casuais e contingentes. Diante da pergunta desesperada de Hölderlin, que a natureza apresente, mostre seus modos de fazer, que a macieira o ensine como fazer a maçã! Constatamos que a resposta é um único e insondável silêncio! Talvez aqui nem mesmo o conceito de finalidade da natureza sirva de “guarda-sol” ou sombrinha, protetora contra o caos. O delírio e a loucura que ameaçam o gênio são mais profundos e extremos do que aqueles que atingem o filósofo. Talvez, apelando para a célebre quarta proposição de Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita , gênios nada mais sejam do que seres humanos nos quais a lei natural, a que orienta a espécie , prevaleça sobre a humana, que diz respeito ao indivíduo . Ao sustentar que o gênio é um “talento ou dom natural”, ⁴² é possível que Kant estivesse tentando somente diferenciar aqueles seres humanos nos quais, por alguma razão igualmente insondável (ou, de novo, casual e contingente), a finalidade da espécie soasse mais alto do que a individual. Pois, como afirma na mencionada proposição: “a natureza sabe mais [do que os seres humanos] o que é melhor para a espécie”. ⁴³ Não é difícil verificar esse ponto e, concordando com Kant, testemunhar o quanto artistas (se não for a totalidade dos/das artistas , pelo menos uma grande maioria) sacrificaram suas vidas ou existências individuais (e, não deliberadamente) em favor de suas obras, de sua arte. Por quantos sofrimentos e angústias não passaram artistas? Exemplos aqui não nos faltam: de Arthur Bispo do Rosário a Cézanne, de Amy Winehouse a Beethoven, de Antonin Artaud a Lima Barreto, de Celan a Hölderlin, a lista poderia multiplicar-se indefinidamente. Pode-se dizer da capacidade do gênio de “apreender o jogo fugaz da imaginação e unificá-lo em um conceito (que é justamente por isso original e, ao mesmo tempo, cria uma nova regra que não poderia seguir-se de exemplos ou princípios prévios)”, ⁴⁴ que ela é um “favor da natureza”, recorrendo aos mesmos termos através dos quais Kant definiu o prazer com a beleza da natureza. ⁴⁵ Ora, continuando com o filósofo, não alcançamos essa faculdade através de qualquer técnica, conhecimento ou estudo; e dela não se apodera nem mesmo aquele que recebeu a doação e o benefício. Como aconteceu com Rousseau, segundo Kant, que sequer compreendeu o que ele mesmo “descobriu”: “Rousseau se esforçou para esboçar a natureza humana. Todo original é ininteligível : mesmo aquele que descobre não entende .” ⁴⁶ Por isso, a nossa dificuldade de compreender e absorver o que é original e inédito. Sendo um dote pessoal e intransferível da natureza, àquele que é o beneficiário só cabe exercitar-se, muitas vezes, de modo cego, até vegetal , como sugere Edward Young, no texto seminal Conjecturas

sobre a composição original , o qual Suzuki apresenta como “um dos momentos mais representativos da discussão sobre o gênio no século XVIII” ⁴⁷ e de uma verdadeira clivagem entre duas concepções da criação poética: a mecanicista e a organicista (obra de arte comparada a um organismo): Pode-se dizer que um original é de natureza vegetal ; surge espontaneamente da raiz vital do Gênio; germina , não é feito . Imitações são frequentemente uma espécie de manufatura , produzidas por uma tal mecânica, arte e trabalho , a partir de materiais preexistentes, não próprios delas. ⁴⁸ Também Philippe Lacoue-Labarthe se debruçou sobre a teoria kantiana do gênio ⁴⁹ e a interpretou à luz de sua inédita concepção da mimese. Apesar de solicitar um inegável suporte à relação essencial entre arte e natureza, a partir da noção de gênio, ou do “artista sublime”, o filósofo francês liberou a concepção kantiana da arte da sua conexão exclusiva com o organismo, ⁵⁰ da qual os Românticos se tornaram reféns. Ele recorreu de modo bastante original a uma definição aristotélica da mimese que não se encontra na Poética , mas antes na Física II , ⁵¹ onde fica estabelecido que a techne (ou arte e não técnica) conduz a seu termo ( telos ) aquilo que a natureza ( phusis ) é incapaz de realizar. ⁵² O principal objetivo da reformulação do conceito de mimese e que permitiu a Lacoue-Labarthe atualizar a teoria do gênio kantiano, ⁵³ era o de abandonar a teoria tradicional da arte, que defendia ser a arte mera imitação da natureza, em favor de outra relação entre arte e natureza: a de reciprocidade ou de complementaridade. A partir dessa releitura, o gênio kantiano é entendido como origem de uma nova Estética ou Filosofia da Arte, não mais alicerçada no modelo da imitação , mas antes na ausência de qualquer modelo, i.e., fundada na produção original ou na criação . Isso significaria que o artista deixaria de imitar a forma acabada e dada pela natureza, e passaria a criar sua obra (de arte) seguindo o mesmo obscuro princípio através do qual a natureza também produz sua obra ? Invocando termos spinozistas, poderíamos dizer que o artista (ou o gênio) deixaria de representar (imitar) a “natureza naturada” para representar (seria ainda representar?) a “natureza naturante”. Conclusão Se filosoficamente, o problema do gosto e, em certa medida, até o da arte moderna parecem estar resolvidos, a pergunta do artista “ como fazer?”, no entanto, parece continuar sem resposta e permanecer encurralada, debatendo-se num típico raciocínio double bind . Pois, o artista tem o direito de continuar perguntando: o que significa agir conforme a natureza naturante ? Afinal de contas, por mais que o botânico explique cientificamente como a macieira produz suas maçãs, nem por isso qualquer cientista (ou qualquer aluno de um curso de botânica que tiver aprendido muito bem sua lição) se tornará capaz de produzir uma maçã! Ao que parece, nem aquela suposição aristotélica tão instigante de uma complementaridade entre arte e natureza, nem o princípio de finalidade da natureza forneceram uma resposta suficiente para sossegar a angústia do poeta. A única saída que encontro para escapar da armadilha do double bind é apelar para a liberdade. Talvez, uma concepção de liberdade, relacionada menos com a moralidade e muito mais à beleza e à arte, como descrita por

Schiller. Infelizmente, não terei tempo de dedicar-me à sua famosa definição de beleza como “a única expressão possível da liberdade no fenômeno” ⁵⁴ . Certamente, nessa definição temos de ler o espírito de Kant e segui-lo além de sua letra, pois precisamos ser capazes de imaginar a possibilidade de uma apresentação positiva da liberdade! ⁵⁵ E sabemos que, segundo a letra rigorosa de Kant, a ideia de liberdade é uma apresentação negativa . Por isso, o conceito de liberdade que nos interessa aqui, não tem nada a ver com livre arbítrio e muito menos com a sua definição moral, de um agir obediente à lei ou à vontade racional. A liberdade do artista só pode ter um sentido extra-moral, uma vez que a ação genial não depende de uma decisão e, portanto, ao contrário da moralidade, não é um ato voluntário ! Talvez a obra de arte seja a forma da liberdade, ou ainda, talvez ela resulte da ação , do trabalho , da técnica , do exerc ício da liberdade .... Todos esses nomes, diga-se de passagem, impróprios, poderiam substituir aqueles velhos termos de originalidade e genialidade . Talvez o melhor e mais adequado conceito de liberdade para nós seja aquele que Hannah Arendt, inspirada por um inédito Agostinho, nos concedeu: o de um começo . E começo pode traduzir precisamente uma das fórmulas através da qual Kant definiu o gênio, como aquele capaz de criar “[…] uma outra [segunda] natureza [...] a partir do conteúdo que a verdadeira lhe dá”. ⁵⁶ Do lado do espectador, o prazer advém de uma experiência de ampliação de mundo. O tempo e o espaço do mundo são ampliados pela liberdade da forma. Tanto na natureza que parece arte, quanto na arte que parece natureza encontramos esta força do inaugural, do começo. Retornando à questão do título: “Produz o gênio suas obras (de arte) como a macieira, suas maçãs? Infelizmente, só poderei responder à questão de um modo muito ambíguo e insuficiente: “Sim e não!” Sim, porque o impulso do gênio para produzir alguma coisa como uma obra de arte não depende da sua vontade, como já foi dito acima. Diferentemente de um ato racional, seu ímpeto inicial funciona como um instinto natural e inconsciente, o que nos permite reivindicar uma verdadeira semelhança (verossimilhança) entre a macieira e o nosso gênio. De modo similar à rosa de Angelus Silesius ⁵⁷ , o artista não controla a exigência e móbil que lhe são feitos pela própria natureza e que têm, portanto, uma origem bem diferente da intenção racional que orienta uma ação moral. Nos termos kantianos, talvez, esse “instinto natural” do gênio possa ser chamado de “faculdade de apresentação das ideias estéticas”. ⁵⁸ Uma possível tradução desta importante faculdade de apresentação das ideias estéticas, sem a qual o gênio kantiano não existe, está numa longa passagem do belíssimo e erudito livro O gênio romântico, na qual Márcio Suzuki parte, junto com Kant, em defesa de um “princípio formal” ⁵⁹ , suprasensível, orientador de todas as forças ou faculdades naturais (como imaginação, memória, entendimento e razão). Cito-o mais uma vez aqui: Mas, afinal, o que é essa natureza que os [os gênios] leva a agir assim? [...] Para Kant, este é o ponto em que Herder e todos aqueles que buscaram as causas naturais do gênio parecem ter se equivocado: a força que o impele ao florescimento não está ali onde se pensa, na natureza vegetal ou animal agindo espontânea ou instintivamente. É preciso ter isso em vista, se não se

quiser escorregar pelo misticismo: quando se fala da natureza do gênio (aquela que dá regras à arte), se quer dizer o substrato supra-sensível, a natureza inteligível do homem. A natureza a que o gênio inconscientemente obedece não é uma força física ou vegetal: trata-se, ao contrário, da ‘natureza no sujeito ’ e da ‘ disposição das faculdades do mesmo ’. As próprias forças naturais são, na verdade, comandadas por esse princípio, entendido, é claro, como mero princípio heurístico e não como fundamento real de determinação. ⁶⁰ Ao mesmo tempo, somos obrigados a responder também “Não”, porque a liberdade da macieira é muito limitada . Todo mundo sabe que é somente através de certa subrepção ⁶¹ que é possível falar de uma “liberdade natural ”, mesmo se é exatamente isso que propicia o sentimento de prazer na mulher e no homem de gosto kantianos, quando ela/ele percebem o belo (ou o aparentemente livre) nos objetos (nas obras?) da natureza. Amamos a beleza natural como se ela fosse livre ! No entanto, a liberdade da macieira não lhe permite produzir laranjas em vez de maçãs. Enquanto que no caso da liberdade do artista, ele/ela tem o direito, senão o dever, como prescrito pela antiga fórmula aristotélica, repito: de “completar o que a natureza ( physis ) não foi capaz de levar a termo”. Mas também como Schiller nos ensinou, insistindo sobre o caráter rebelde que resiste em toda arte digna desse nome, ao afirmar que o gênio pode “unificar com liberdade ilimitada o que a natureza separou, tão logo lhe seja concebível esta união, e pode separar o que a natureza havia unificado, tão logo consiga realizar a separação em seu entendimento.” ⁶² Para concluir, faço uma longa citação de bela passagem de Arendt sobre o conceito de liberdade: Se a história das ideias fosse tão coerente como às vezes seus historiadores imaginam, deveríamos ter ainda menos esperança de encontrar uma ideia política válida de liberdade em Agostinho, o grande pensador cristão que de fato introduziu o livre arbítrio de Paulo, juntamente com suas perplexidades, na História da Filosofia. Entretanto, não encontramos em Agostinho apenas a discussão de liberdade como liberum arbitrium , embora essa discussão se [tenha tornado] decisiva para a tradição, mas também uma noção, concebida de modo inteiramente diverso, que surge, caracteristicamente, em seu único tratado político, De Civitate Dei . Em A Cidade de Deus, [...] a liberdade é concebida não como uma disposição humana íntima, mas como um caráter da existência humana no mundo. Não se trata tanto de que o homem possua a liberdade como de equacioná-lo, ou melhor, equacionar sua aparição no mundo, ao surgimento da liberdade no universo; o homem é livre porque ele é um começo e, assim, foi criado depois que o universo passara a existir: [ Initium ] ut esset, creatus est homo, ante quem Nemo fuit . ⁶³ No nascimento de cada homem esse começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já existente alguma coisa nova que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade. ⁶⁴ Para fechar o círculo, quero voltar à epígrafe de Paul Celan, para tentar decifrar seu conteúdo, agora, a partir dessa sugestiva noção de liberdade.

Se, como diz Arendt, ao nascer, cada ser humano é um começo, a liberdade de cada um encontra-se na sua singularização, na afirmação de sua existência singular, que é sempre e involuntariamente, uma ampliação de mundo. Compreendido à luz dessa ideia de “começo”, o gênio deixa de ser uma subjetividade excepcional, ou mesmo, como entendera Deleuze, uma “intersubjetividade excepcional” ⁶⁵ , mas uma espécie de protótipo da subjetividade transcendental . Uma subjetividade que, como qualquer outra (antes mesmo do acesso à razão, à moralidade etc.), já nasce e “vem ao mundo”, enquanto ser vivo, regida por um princípio genético indeterminado (e para nós, contingente), cujo principal ato em nada mais consista senão, como a própria vida, em querer superar-se a si mesmo. ⁶⁶ Talvez o gênio nada mais seja do que alguém que levou às últimas consequências sua “singularização”, sua capacidade de “começar”, como diria uma Arendt inspirada por Santo Agostinho. Finalmente, parafraseando a epígrafe de Celan, alguém que estreitou a via que era a sua, e libertou-se . 1 . Uma primeira versão deste texto foi apresentada em inglês no IIIº Workshop do Grupo de pesquisa Contemporary Kantian Philosophy, realizado na cidade do México em dezembro de 2017. Depois, um pouco modificado e já em português, reapresentei-o no VI Congresso Nacional da Sociedade Kant Brasileira, ocorrido na UNICAMP em junho de 2018. Contudo esclareço que se trata aqui de publicação inédita, pois, nas duas ocasiões, o texto foi apresentado apenas oralmente. 2 . Este texto é um dos resultados do Projeto de Pesquisa (KANTINSA – Kant in South America), desenvolvido junto com as professoras Patrícia KauarkLeite e Giorgia Cecchinato (Departamento de Filosofia da UFMG), financiado no Brasil pela FAPEMIG e no Exterior pela Comissão Europeia Marie-Sklodowska Curie. 3 . KANT, I., Kritik der Urteilskraft . Crí tica da Faculdade de Julgar , tradução de Fernando Costa Mattos, Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária, 2016. Ocasionalmente, recorrerei à tradução mais antiga, Crítica da Faculdade do Juízo , de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. Usarei as datas de publicação para distingui-las. A partir daqui designada por “Terceira Crítica” ou simplesmente pelas iniciais CFJ. 4 . KANT, I. Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskraft , AA, 20: 213. CFJ, 2016, p. 29. 5 . KANT, I. Idem , AA, 20: 214. CFJ, 2016, p. 30. 6 . KANT, I. KdU, AA: 05, 240. CFJ, 2016, p. 136. Não haveria espaço aqui suficiente para discutir as intrincadas relações entre o conceito de finalidade da natureza e o sensus communis . Sobre o problema da comunicabilidade do juízo de gosto, cf. GRUPILLO, Arthur. O homem de gosto e o egoísta lógico . São Paulo: Edições Loyola, 2016. 7 . Kant, Oeuvres Complètes, org. Ferdinand Alquié. Paris: Gallimard, 1986, p. 550: “Trabalho agora na Crítica do Gosto, por ocasião da qual foi descoberta uma nova espécie de princípio a priori, diferente dos precedentes. Pois as faculdades do espírito são três: faculdade do

conhecimento, sentimento de prazer e de dor, e faculdade de desejar. Encontrei os princípios a priori para a primeira, na Crítica da Razão Pura (teórica), para a terceira, na Crítica da Razão Prática. Procurei-os também para a segunda, e mesmo que, uma vez, tenha considerado impossível encontrá-los, fui posto nesta via pela sistematicidade que a análise das faculdades consideradas anteriormente me fizera descobrir no espírito humano, e que me fornecerá matéria a admirar e a aprofundar, na medida do possível, suficiente para o resto da minha vida.” 8 . Se Gilles Deleuze (La philosophie critique de Kant, Paris: Ed. PUF, 1991) tiver razão, será legítimo encarar a filosofia kantiana como uma verdadeira doutrina das faculdades. Faculdades às quais Kant, num gesto inédito, concedeu autonomia e liberdade. Mas a tese revolucionária (por exemplo, quanto à sensibilidade e à imaginação) da heterogeneidade das faculdades não iria esperar muito tempo para apresentar seu lado problemático, justamente, o de como faculdades totalmente diferentes e heterogêneas, i.e., em conflito, podem relacionar-se, produzir seus acordos e combinações? Extraio uma possível resposta do livro citado de Deleuze: elas entram num acordo que guarda alguma semelhança com um acordo político, ou seja, levando adiante a analogia, exatamente como ocorre na sociedade: esse acordo será tanto melhor, promovendo até o prazer e a felicidade, quanto mais liberdade for garantida ao exercício de cada uma das faculdades. Isso quer dizer, cada faculdade exercendo-se intensamente na sua diferença, estimulada pelas outras faculdades. 9 . Esse raciocínio está inspirado numa nota à XXIIIª Carta sobre educação estética do homem, na qual Schiller distingue o comportamento nobre (do artista) do comportamento digno ou sublime (característico da ação moral). Cf. SCHILLER, Fr. A educação estética do homem numa série de cartas. Trad. de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki, São Paulo: Ed. Iluminuras, 1990, p. 120: “Um espírito nobre não se basta com ser livre; precisa pôr em liberdade todo o mais à sua volta, mesmo o inerte.” 10 . KANT, I., Erste Einleitung AA: 20, 225. CFJ, 2016, p. 41. 11 . KANT, I., Einleitung in die Kritik der Urteilskraft, AA: 05; A XXV, B XXXVII. Duas introduções à Crítica do Juízo . Ricardo Terra [org.]. São Paulo: Editora Iluminuras, 1995, p. 30. A partir daqui denominada “Segunda Introdução” ou simplesmente SI. A faculdade de julgar não pode ser autônoma porque não tem domínio específico de objetos (nem fenômenos nem coisas em si); então, diz-se dela que é “heautônoma”, i.e., ela prescreve apenas para si mesma uma lei, que lhe permite refletir sobre a natureza. 12 . ALLISON, H. Reflective judgment and the purposiveness of nature. In: Kant´s theory of taste. A Reading of the Critique of Aesthetic judgment. Cambridge University Press, 2001, p. 13. 13 . ALLISON, H. Fine arts and Genius. Op.cit. p. 301. 14 . Foi Nietzsche que fez a crítica mais famosa e talvez a mais feroz à Estética de Kant. Para ele, ao deixar de ser um ensinamento dos mecanismos através dos quais o criador melhor realizaria seu objeto (papel que a Poética de Aristóteles havia desempenhado), a Estética teria

abandonado seu caráter ativo e “viril”, sua ligação com o polo criativo e produtor para assumir a “feminilidade” ou moleza de uma reflexão sobre os sentimentos do espectador. Por isso, a Estética kantiana que privilegiava o ponto de vista do espectador parecia totalmente irreconciliável com a “Estética viril”, defendida por ele. 15 . ALLISON, H., “Fine Art and Genius”. Op.cit. No entanto, Allison situa-se justamente entre os autores que subvertem aquela perspectiva tradicional e conseguem encontrar um lugar de muita importância para a arte na Estética de Kant. 16 . KANT, I., KdU, AA, 05: 165-166, CFJ, 1993, p.144-145: “Foi com as melhores intenções que aqueles que de bom grado quiseram dirigir para o fim último da humanidade, ou seja, o moralmente-bom, todas as ocupações dos homens, às quais a disposição interna da natureza os impele, consideraram o interesse pelo belo em geral um sinal de um bom caráter moral. Não sem razão foi-lhes todavia contestado por outros que apelam ao fato da experiência, que virtuosos do gosto são não só frequentemente mas até habitualmente vaidosos, caprichosos, entregues a perniciosas paixões, e talvez pudessem ainda menos que outros reivindicar o mérito da afeição a princípios morais; e assim parece que o sentimento pelo belo é não apenas especificamente (como também de fato) distinto do sentimento moral, mas que ainda o interesse que se pode ligar àquele é dificilmente compatível com o interesse moral, de modo algum, porém, por afinidade interna [...] Ora, na verdade concedo de bom grado que o interesse pelo belo da arte (entre o qual conto também o uso artificial das belezas da natureza para o adorno, por conseguinte para a vaidade) não fornece absolutamente nenhuma prova de uma maneira de pensar afeiçoada ao moralmente-bom ou sequer inclinada a ele. Contrariamente, porém, afirmo que tomar um interesse imediato pela beleza da natureza (não simplesmente ter gosto para ajuizá-la) é sempre sinal de uma boa alma; e que se este interesse é habitual e liga-se de bom grado à contemplação da natureza, ele denota pelo menos uma disposição de ânimo favorável ao sentimento moral.” 17 . Cf. CRAWFORD, D. “Kant´s Theory of creative imagination”. In: Essays in Kant´s Aesthetics . Eds. Ted Cohen & Paul Guyer. University of Chicago Press, 1985. Sobre essa celebérrima passagem, do belo natural ao moralmente bom, Donald Crawford comenta o quão desajeitada, incompleta e até mesmo falha se dá esta transição: “Here Kant does a rather uneasy transition from the pleasant to the good, but only with respect to the pleasure taken immediately in natural beauty.” (p. 168) E esta transição diz respeito apenas ao prazer sentido com a beleza natural. Deve-se sublinhar aqui “beleza natural”, uma vez que, como sabemos, Kant dá total primazia a ela em detrimento da artística (como está dito, aliás, literalmente em AA, 05: 299: “Essa primazia da beleza natural frente à artística...”). A prova disso é que Kant nem chega a tratar de semelhante transição no caso da beleza artística: “Leaving the particulars of Kant´s argument aside, it is clear that Kant has not provided a complete transition from the pleasant to the good, for the very least he has made out no case for artistic beauty.” ( Idem , p. 169). Crawford continua demonstrando desconfiança no argumento kantiano que, segundo ele, não é de modo algum “persuasivo”, nem sequer quanto à beleza natural: “I think that he fails to make the case for natural beauty as

well [as for artistic beauty]” ( Idem , p. 169) Finalmente, pergunta com razão, a meu ver, citando o próprio Kant: por que mesmo, de “alguém que tem interesse imediato pela beleza da natureza”, podemos supor “que ele tem ao menos uma disposição para a atitude moralmente boa”? 18 . ALLISON, H. Fine art and genius. Op.cit. , p. 301. 19 . ALLISON, H. Fine art and genius. Op.cit. , p. 271. 20 . Idem, Ibid. 21 . Idem, Ibid. 22 . ALLISON, H. Fine art and genius. Op.cit. , p. 301. 23 . ALLISON, H., “Fine arts and Genius”, op.cit., p. 274. 24 . KANT, Crítica da Raz ão Pura , Analítica, “Da síntese da reprodução na imaginação” apud DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2ª edição, 1997 (5ª reimpressão 2007), p. 259. 25 . Idem , pp. 259-260. 26 . KANT, I. Kritik der reinen Vernunft (AA, 3-4: A 100); Crítica da razão pura, trad. Fernando Costa Mattos, Petrópolis: Ed. Vozes, 2013, p.154. A passagem inteira diz: ““Se o cinábrio fosse ora vermelho, ora preto, ora leve, ora pesado..., minha imaginação não encontraria a ocasião para receber, no pensamento, o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha [...] e nenhuma síntese empírica da reprodução ocorreria.” 27 . Idem, Ibid. 28 . KANT, I. KdU, AA, 05: 319. CFJ, 1993, p. 165. 29 . KANT, I. Erste Einleitung etc., AA, 20: 217 e 228. CFJ, 2016, p. 33 e 43. 30 . KANT, I. KdU, AA, 05: 355. CPJ, 2016, p. 252: “A divisão de uma crítica em doutrina dos elementos e doutrina do método, que antecede a ciência, não pode ser aplicada à crítica do gosto; // pois não pode haver uma ciência do belo, e o juízo de gosto não é determinável por princípios. Pois o elemento científico de cada arte, que diz respeito à verdade na exposição do seu objeto, é por certo a condição incontornável (conditio sine qua non) da arte bela, mas não ela mesma. Só há, portanto, uma maneira (modus) para as belas artes, e não um modo de ensiná-las (methodus).” Grifos do autor. 31 . CHATEAU, Jean-Yves, “Avant propos” in GUILLERMIT, L. Critique de la faculté de juger esthétique, Paris: Editions Pédagogie Moderne, 1981p. 14. 32 . KANT, I. SI, AA, 05: 187. CPJ, 2016, p. 88. Tradução ligeiramente modificada à luz da tradução anterior de Valério Rohden e António Marques (1993).

33 . HÖLDERLIN, Fr. Observações sobre o Édipo. I n Hölderlin & Beaufret. Trad. Pedro Süssekind. Roberto Machado [org.]. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2008, p. 67. São muitos exemplos de poetas e artistas que eu poderia dar aqui. Dentre os inúmeros, Paul Valéry, que descreveu o ato de criação poética como a experiência de um “drama da criação”. Cf. VALÉRY, P. “Discurso sobre a Estética”, trad. de Eduardo Viveiros de Castro, in Teoria da Literatura em suas Fontes. Luiz Costa Lima [org.]. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1975, p. 53. 34 . DANTO, A. After the end of art . Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1997, p. 12: “The contemporary is ... Everything is permitted.” 35 . Mesmo se ainda não podemos falar propriamente de um “país”... 36 . GADAMER, H.G., The relevance of the beautiful. Transl. Nicholas Walker, ed. Robert Bernasconi. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p. 21. 37 . DOBRÁNSZKY, E.A. No tear de Palas: Imaginação e Gênio no Século XVIII - Uma Introdução . Campinas: Editora Papirus, da Universidade de Campinas, 1992, p. 47. A autora nos propõe à la Schiller um adorável exame da história seguindo a distribuição das faculdades humanas. Assim, se no final do século XVII, início do século XVIII, principalmente na Europa continental, houve uma violenta campanha contra a imaginação, o empirismo, em revanche, provocou uma importante mudança no conceito de razão no século XVIII, ao fazer deslizar a ênfase do geral para o particular, e exigiu assim que a razão se tornasse menos arrogante e aprendesse a compartilhar seus poderes com as outras faculdades. 38 . Seria um capítulo à parte (e não pequeno) se resolvesse me dedicar às relações entre o gênio/ o artista e a loucura, estabelecidas “filosoficamente” desde os antigos gregos Platão ( Ion ) e Aristóteles, até mais moderna e contemporaneamente, através dos diagnósticos médicos e da “expertise psiquiátrica” que afetou não poucos artistas (a lista é grande): o próprio Hölderlin, Van Gogh, Artaud... E até filósofos como foi o caso de Nietzsche. Cf. DE DUVE, Kant after Duchamp . Cambridge: MIT Press, 1999, pp. 318-319. Tomando a universalização como o ponto de partida principal da Estética de Kant, Thierry De Duve defende não só uma verdadeira atualização dessa Estética, como também especificamente da noção kantiana de gênio. Opondo-se à tese romântica da excepcionalidade do gênio, De Duve interpreta a noção kantiana de gênio como um possível fundamento para a tese de Beuys: “todo mundo é artista!”. Segui essa inspiração e a tentativa de atualização de De Duve, mais precisamente, em dois capítulos do meu livro Horizontes do Belo (Cf. FIGUEIREDO, V. “O gênio kantiano ou o refém da natureza” e “Kant e a arte contemporânea”. In: Horizontes do Belo, ensaios sobre a Estética de Kant. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2017). No seu admirável livro, De Duve sustenta que uma reivindicação de universalidade - insistindo: possivelmente a questão principal da Estética de Kant - atravessa toda a história, infelizmente, degradante, da noção de gênio: “da inocência natural na poesia de Hölderlin à criminologia de Lombroso”: “O fato de que a noção romântica de gênio,

iniciada enquanto inocência natural na poesia de Hölderlin, possa, no fim do século, ter se tornado degeneração natural na criminologia de Lombroso é indício de que uma reivindicação de universalidade nela estava embutida desde o início.” (Tradutor não indicado. Capítulo do livro Kant after Duchamp publicado na Revista do Mestrado em História da Arte da UFRJ, ano V, número 5, 2º semestre de 1998, p. 145. 39 . BENJAMIN, W., “Les Affinités électives de Goethe” in Oeuvres I. Trad. de Maurice Gandillac. Paris: Gallimard, 2000, pp.274-395 40 . GOETHE, J.W. Ecrits sur l´art. Trad.J.M. Schaeffer. Paris: Ed. Klincksieck, 1983, p.214. 41 . KANT, I. KdU, AA, 05: 307. CFJ, 2016, p. 205. Na famosa passagem do § 46 da CFJ, Kant sustenta que o “Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Uma vez que o talento, como faculdade produtiva inata do artista, pertence ele mesmo à natureza, poderíamos nos exprimir assim: g ênio é a disposição inata do ânimo ( ingenium ) pela qual a natureza dá a regra à arte.” Tradução ligeiramente modificada. 42 . Idem, Ibidem . 43 . KANT, I., Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Trad. de Rodrigo Naves e Ricardo Terra; organização de Ricardo Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 9. 44 . KANT, I. KdU, AA, 05: 317. CFJ, 2016, p. 215. 45 . KANT, I. KdU, AA, 05: 210. CFJ, 2016, p. 106. 46 . KANT, Logik Phillippi , apud SUZUKI, M. O gênio romântico . São Paulo: Editora Iluminuras, 1998, p. 47. 47 . SUZUKI, M. op.cit. , p. 59. 48 . YOUNG, E. Conjectures on original composition apud SUZUKI, M. op.cit. p. 60. 49 . LACOUE-LABARTHE, P. “A Verdade sublime” In: A imitação dos Modernos . Tradução de Virginia Figueiredo. João Camillo Penna e Virginia Figueiredo [orgs.]. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 50 . Idem , p. 226. Sobre essa questão do organismo, a meu ver, seria totalmente legítimo aproximar Lacoue-Labarthe e Suzuki. Este último (Cf. SUZUKI, M. op. cit. p. 69), citando Kant ( Reflexionen zur Logik. Edição Akademie, vol. XVI, 1847, p. 136: “o gênio é arquitetônico”), sustenta um paralelismo na relação entre o filósofo e o gênio: enquanto o filósofo ocupa uma posição arquitetônica na “metafísica ou no sistema da razão pura”, o gênio desempenha a mesma função no “sistema da crítica”. ( idem , p. 76) Além disso, ele conclui que “a frase [“o gênio é arquitetônico”] sintetiza, sem dúvida, o resultado de uma longa elaboração, pela qual o gênio, sem perder tudo aquilo que ganhou na analogia com organismo , deixa de ser a ‘unidade da alma do mundo’ [ Reflexionen zur Anthropologie, 938] para se

transformar na unidade vivificadora das faculdades da mente”. Grifos meus. Quero enfatizar esse aspecto: a arquitetônica do gênio não se reduz ao organismo, embora não possa desperdiçar o que “ganhou” com a relação de reciprocidade e complementaridade entre arte e natureza. 51 . ARISTÓTELES, Física II, 192 b 8. Um dos mais belos comentários que li sobre essa passagem de Aristóteles encontra-se num texto tão pequeno quanto magnífico de Jean Beaufret, “Physis et Tékhne” BEAUFRET, J., “Physis et Tékhne” in Aléthèia, nºs 1-2. 52 . ARISTÓTELES, Física II, 199 b 17 apud BEAUFRET, J., Physis et Tékhne in Aléthèia, nºs 1-2. Philippe Lacoue-Labarthe recorre frequentemente a essa passagem que inspira sua (de Ph.L-L) teoria da mimese. Cito aqui a passagem completa, traduzida por Lucas Angioni [publicada nos Cadernos Clássicos de Filosofia, nº 1, IFCH/Unicamp, Fevereiro de 2002, p. 57]. “[192 b 8] Entre os entes, uns são por natureza, ao passo que outros são por outras causas; por natureza, seguramente, são os animais e as partes deles, bem como as plantas e os corpos simples, isto é, terra, fogo, ar e água [...] e todos eles manifestam-se diferentes em comparação com os que não se constituem por natureza. Pois cada um deles tem em si mesmo princípio de movimento e repouso – uns, segundo o lugar, outros segundo crescimento e definhamento, ao passo que outros, segundo alteração –; no entanto, cama e veste, por sua vez, e qualquer outro gênero de tal tipo, na medida precisamente em que comportam a respectiva designação e enquanto são a partir da técnica, não tem nenhum impulso inato para a mudança.” Ou ainda ARISTÓTELES, idem: Física II, trad. de Lucas Angioni, op.cit. [199 b 17] “Em geral, a techne perfaz algumas coisas que a natureza é incapaz de elaborar - e imita outras.” 53 . É preciso lembrar como a teoria do gênio foi duramente criticada, sobretudo pelas Estéticas ditas marxistas, que nela viram um dos principais sustentáculos da mistificação burguesa da arte. Até mesmo Walter Benjamin não escapou desse preconceito que acarretou, entre outros efeitos, o abandono provisório da teoria do gênio. Insistindo: a meu ver, se não fossem as relações entre arte e natureza, que funcionam como um baixo contínuo ao texto da CPJ, não seria possível a reabilitação da teoria do gênio “fora” do, digamos assim, vulgarizado modelo romântico de uma subjetividade especial ou ideal. Como indica SUZUKI (op.cit. p. 68), houve muitas formas de explicar a genialidade: “delírio inspirado dos poetas, divindade interior, a atividade instintiva dos seres naturais”. 54 . SCHILLER, Fr. Cartas sobre Educação Estética do Homem , op.cit., p. 120. 55 . Talvez, Schiller tenha encontrado aí aquilo que perseguiu ao longo de sua vida: uma teoria objetiva do belo (ou da arte); um critério capaz de distinguir uma obra de arte que poderia ser formulado assim: quanto mais livre, tanto maior a obra de arte será.

56 . KANT, I. KdU – AA, 05:314. CPJ, 2016, p. 212. Na realidade, o verdadeiro sujeito dessa oração é a imaginação. Kant escrevera que a “A imaginação (como faculdade produtiva do conhecimento) é, com efeito, muito poderosa etc.”... Dei-me o direito de substituir a imaginação por gênio ... 57 . Angelus Silesius (1624-1677) foi um físico e padre católico, conhecido como um poeta religioso e místico. Escreveu estes famosos versos em seu “Errante querubínico”: “ Die Ros´ist ohn´Warum; sie blühet, weil sie blühet/ Sie acht´t nicht ihrer selbst, fragt nicht, ob man sie siehet. ” [A rosa é sem porquê; ela floresce porque floresce. Não presta atenção em si mesma e nem se pergunta se alguém a vê]. 58 . KANT. I. KdU, AA: 05; 314. CFJ, op.cit. , p. 211. Tradução ligeiramente modificada. 59 . KANT, I. ( Reflexionen zur Anthropologie , 960) apud SUZUKI, op.cit. , p. 68: “Não busco a causa física do gênio, e.g., imaginação – memória, pois estas não estão em nosso poder, mas as forças diretrizes [ leitende Kräfte ], que dão rumo às forças naturais, portanto meramente o principium formal.” Estaremos retornando ao princípio de finalidade da natureza? 60 . SUZUKI, op.cit. , pp-67-68. 61 . Uma sub-repção similar ocorre no Sublime kantiano, quando confundimos “um respeito pelo objeto com o respeito pela ideia de humanidade em nosso sujeito” (Cf. KANT, I., KdU, AA 05: 257, CFJ, 2016, p. 154. 62 . SCHILLER, op.cit. p. 136. 63 . AGOSTINHO, Cidade de Deus , Livro XII, apud ARENDT, “Que é a liberdade?” In: Entre o passado e o futuro , trad. de Mauro Barbosa, São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000, p. 216. 64 . ARENDT, H., op.cit., p. 215-216. 65 . DELEUZE, G. “L´idée de genèse dans l´esthétique de Kant” in Revue d’Esthétique , 1963, pp. 131-132. 66 . É assim que Novalis avaliava o processo de reflexão, relacionando-o com a própria vida: “Superar-se a si mesmo é por toda parte o mais elevado, o ponto originário, a gênese da vida...” (NOVALIS, Schriften, apud BENJAMIN, O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Tradução de Márcio Seligmann-Silva, 2ª Ed., São Paulo: Ed. Iluminuras, 1999, p.75). Πάθος: um emaranhamento conceitual? Marco Zingano No presente estudo, pretendo examinar a definição aristotélica de cólera (ὀργή), porém não a título de um estudo desta emoção ou, eventualmente, de outras emoções a ela associadas. O estudo pioneiro de Pierre Aubenque a este respeito serve ainda de excelente introdução a uma tal análise. ¹ Meu

intuito é outro: intentarei mostrar que a noção de πάθος guarda uma homonímia que, por passar despercebida, provoca uma série de ranhuras conceituais, as quais podem já ser pressentidas quando o tradutor hesita entre afecção ou emoção para verter πάθος. Esta homonímia, na qual uma certa conexão evita o caso de um puro fenômeno linguístico de homonímia acidental, ficou sem exame inclusive pelo próprio Aristóteles; uma parte deste estudo visa, destarte, a compreender o que o levou a silenciar-se a respeito. Se meu argumento tiver sucesso, a noção de πάθος nos servirá como um exemplo – particularmente importante, mas certamente não único – de um fenômeno conceitual não negligenciável, que chamarei aqui de emaranhamento conceitual . ² Estamos todos acostumados a ver em Aristóteles uma forte sensibilidade no tocante à diversidade de acepções que um termo pode possuir. O livro Δ da Metafísica propõe-se justamente a fazer isso em relação a termos com importante uso na filosofia. Algumas distinções ali feitas são bem delicadas, como, em Δ 16, a entre completo e perfeito , duas noções que o mesmo termo τέλειον veicula e que ainda hoje vemos por vezes confundidas. Por vezes elas se distinguem, como no caso da feijoada completa que, infelizmente, não é perfeita; por vezes se confundem, e, nesse último caso, por vezes algo é perfeito porque completo ou completo porque perfeito. Aristóteles desenvolveu uma série de dispositivos para justamente descobrir esses diversos sentidos. Em I 15 dos Tópicos encontramos as linhas gerais de sua estratégia. A própria metafísica é diretamente dependente destas distinções, pois Aristóteles considera que o famoso problema do ser só encontra solução se for formulado em termos de uma doutrina da substância, a acepção primeira, mas não única, de ser; as outras acepções, as categorias, são os demais gêneros supremos do ser. Há várias questões que merecem ser analisadas a este propósito. Em primeiro lugar, e isto em direta relação com as diferentes acepções de ser, não raramente é difícil ver que um termo não tem uma acepção única, mas que deve ser dividido, e é ainda mais difícil ver de que maneira deve ser dividido. Eis o que Aristóteles escreve nas Refutações Sofísticas a respeito do ser e do um, sob a forma de comentário aos paralogismos baseados na homonímia, a qual pode ser evidente para qualquer um, mas pode também passar despercebida ao mais arguto investigador: σημεῖον δὲ τούτου ὅτι μάχονται πολλάκις περὶ τῶν ὀνομάτων, οἷον πότερον ταὐτὸ σημαίνει κατὰ πάντων τὸ ὂν καὶ τὸ ἕν, ἢ ἕτερον· τοῖς μὲν γὰρ δοκεῖ ταὐτὸ σημαίνειν τὸ ὂν καὶ τὸ ἕν, οἱ δὲ τὸν Ζήνωνος λόγον καὶ Παρμενίδου λύουσι διὰ τὸ πολλαχῶς φάναι τὸ ἓν λέγεσθαι καὶ τὸ ὄν. ( Soph. El. 33 182b22-27) Um sinal disso é que disputam frequentemente sobre os termos, por exemplo: se ser e um significam a mesma coisa em todos os casos, ou se têm sentidos diferentes; com efeito, uns opinam que ser e um significam a mesma coisa; outros solucionam o argumento de Zenão e de Parmênides por meio da afirmação que ser e um se dizem de muitos modos. Entre estes “outros” encontra-se o próprio Aristóteles, ele que, aparentemente por modéstia, não se nomeia, ou talvez porque se trate de

um tema ainda controverso, em relação ao qual prefere não se manifestar. Com efeito, ele próprio nos adverte, sempre nas Refutaçõ es Sofísticas , que, entre os termos que se dizem de muitos modos, alguns não se deixam dividir com facilidade, “por exemplo : um, ser, mesmo ” (7 164a24-25: ἔνια γὰρ οὐκ εὔπορον διελεῖν, οἷον τὸ ἓν καὶ τὸ ὂν καὶ τὸ ταὐτόν), ainda que possivelmente “um” e “ser” tenham muitas acepções (10 170b21-22 : οἷον ἴσως τὸ ὂν ἢ τὸ ἓν πολλὰ σημαίνει); mesmo assim, é frequente que interrogador e respondente pensem que lidam com um termo com uma única significação. O certo é que é exatamente esta a solução que Aristóteles propõe para os paradoxos de Melisso e Parmênides: ἐπειδὴ πολλαχῶς λέγεται τὸ ὄν, πῶς λέγουσιν οἱ λέγοντες εἶναι ἓν τὰ πάντα, πότερον οὐσίαν τὰ πάντα ἢ ποσὰ ἢ ποιά, καὶ πάλιν πότερον οὐσίαν μίαν τὰ πάντα, οἷον ἄνθρωπον ἕνα ἢ ἵππον ἕνα ἢ ψυχὴν μίαν, ἢ ποιὸν ἓν δὲ τοῦτο, οἷον λευκὸν ἢ θερμὸν ἢ τῶν ἄλλων τι τῶν τοιούτων. ( Phys . I 2 185a21) Dado que ser se diz de muitos modos, em que sentido afirmam os que dizem que todas as coisas são um: se todas as coisas são substância, quantidades ou qualidades, e, ainda, se todas as coisas são uma substância única, por exemplo um único homem, um único cavalo ou uma única alma, ou se isto é uma quantidade única, por exemplo branco, quente ou algo deste tipo? A quem segue a trilha indicada por Aristóteles, parece impossível que tudo seja um: os argumentos de Melisso e Parmênides “não são difíceis de resolver, pois ambos argumentam de modo erístico” ( Phys . I 3 186a4-5: λύειν οὐ χαλεπόν. ἀμφότεροι γὰρ ἐριστικῶς συλλογίζονται). Na perspectiva de Aristóteles, se vê claramente que ser se diz em múltiplas acepções, mas pode ser que não se veja com clareza como unificar estas diversas acepções – uma coisa é mostrar que o ser não é um gênero; outra, de que modo ele goza de uma certa unidade conceitual. As Refutações preparam o caminho ao mostrar que ser pode ter várias acepções; cabe à Metafísica explicitar a unidade focal ( pros hen ) do ser por meio da substância como ser primeiro ao qual todos os demais modos de ser fazem referência. Conhecemos bem o argumento que, no livro Γ, substitui a disputa do ser por uma doutrina unificada da substância. Há duas etapas: (i) a identificação dos sentidos e (ii) sua unificação por algum meio que faz as vezes de um gênero ou universal inexistente. No caso do ser, a estrutura pros hen garantirá a unidade fora do diapasão genérico e universal. A significação focal, por isso mesmo, ganhará renome, mas não é o único modo de unificar uma dada multiplicidade de acepções. A unidade por série, por exemplo, é outro modo, tendo sido aplicada aos diferentes tipos de alma, e difere consideravelmente da significação focal para que não se caia na tentação de reduzir tudo à unidade pros hen . Não pretendo apresentar os diversos mecanismos que Aristóteles concebeu para lidar com homonímias atenuadas ³ ; quero aqui mencionar dois casos em que o sucesso ou não existe, ou é parcial. Primeiro o caso parcial: podem-se identificar as diversas acepções, mas não se ter um mecanismo conceitual adequado para unificá-las. É o que ocorre, temo, com movimento , que se dá em quatro categorias (substância, qualidade, quantidade e lugar), sendo, por conseguinte, dito de quatro modos, sem que haja um

modo satisfatório para unificar estas suas diferentes acepções. ⁴ O segundo caso é o que de fato me interessa aqui. Pode-se fracassar na primeira fase, não se identificando as diferentes acepções, de modo que nada motive a passar à segunda fase, quando se busca unificar de algum modo as diferentes acepções identificadas. Este é o caso que denomino de emaranhamento conceitual : a despeito do termo ser homônimo (de modo atenuado), sua homonímia passa despercebida. O que proponho é que πάθος se encontra exatamente nesta situação. A noção de πάθος me parece, com efeito, possuir pelo menos as seguintes três acepções: πάθος designa o atributo ou propriedade que um objeto possui, que de algum modo ele sofre ou produz: é a noção normalmente traduzida por afecção (que vale igualmente no caso das sensações dos animais, em que é vista como uma certa afecção , πάθος τι); πάθος designa também o prazer ou desprazer que o sujeito (no caso, um animal) sente em função de ter tido uma sensação, uma αἴσθησις; πάθη designam o que normalmente traduzimos por emoções , a saber, estados anímicos ligados a uma avaliação da situação em que se encontra o agente que são tais que podem contaminar os juízos que temos sobre outros objetos . Ao longo deste trabalho, vou tentar mostrar que πάθος é um emaranhado conceitual, no qual os sentidos (i) e (ii) contrastam entre si como o lado objetivo e o aspecto subjetivo do ser afetado em geral, o que pode de certo modo ser posto sob uma mesma rubrica, mas, por outro lado, divergem consideravelmente do sentido (iii), o que faz com que a noção de πάθος se mostre refratária a um sentido único. Se estiver correto, veremos então que tal situação de emaranhamento conceitual passou despercebida pelo próprio Aristóteles, o que nos permitirá elucidar alguns detalhes de sua argumentação, que denunciam a homonímia na medida em que evidenciam um desajuste conceitual. –I– Para obter este resultado, um primeiro passo consiste em inspecionar a passagem do livro Δ na qual Aristóteles nos lista as diferentes acepções de πάθος: Πάθος λέγεται ἕνα μὲν τρόπον ποιότης καθ’ ἣν ἀλλοιοῦσθαι ἐνδέχεται, οἷον τὸ λευκὸν καὶ τὸ μέλαν, καὶ γλυκὺ καὶ πικρόν, καὶ βαρύτης καὶ κουφότης, καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα· ἕνα δὲ αἱ τούτων ἐνέργειαι καὶ ἀλλοιώσεις ἤδη. ἔτι τούτων μᾶλλον αἱ βλαβεραὶ ἀλλοιώσεις καὶ κινήσεις, καὶ μάλιστα αἱ λυπηραὶ βλάβαι. ἔτι τὰ μεγέθη τῶν συμφορῶν καὶ λυπηρῶν πάθη λέγεται. ( Met . Δ 21 1022b15-21) É dito πάθος, em um sentido, a qualidade com base na qual algo pode ser alterado, por exemplo: o branco e o negro, doce e amargo, pesado e leve, bem como as outras determinações deste tipo. Em outro sentido, os atos destas qualidades e daí as alterações. Ademais, dentre estas, particularmente as alterações e os movimentos nefastos, sobretudo os danos penosos. Enfim, são ditos πάθη os grandes e cruéis infortúnios.

Pode-se pensar que se encontra aqui o núcleo do sentido geral de πάθος; pelo menos, é assim que Grimaldi comenta esta passagem: The definition given in Met. 1022b15-21 conveys the central idea that πάθος denotes change – either the change and alteration itself, or the effect of the alteration, i.e., the quality resulting from the change. ⁵ Pode-se, porém, ficar insatisfeito, pois nesta passagem Arisóteles distingue: a qualidade que uma coisa tem a título de seu atributo; o ato destas qualidades ou atributos, ipsa mutatio per quam ad illam qualitatem pervenitur (como escreve Bonitz no Index ), donde (ἤδη) a alteração sofrida; as alterações e movimentos perniciosos, principalmente os que penosos; os grandes e cruéis infortúnios. De fato, Δ 21 apresenta somente variações de uso no que distingui como sendo o sentido (a) de atributo ou propriedade que um objeto possui. Este é o sentido (i), de onde sai o uso (ii), a própria alteração, por conta justamente da relação entre qualidade e alteração: a alteração é a mudança por meio da qual um objeto ganha uma dada qualidade ou atributo, de modo que o próprio modificar-se (no caso, o alterar-se) é visto como uma afecção. ⁶ De seu lado, os casos (iii) e (iv) são casos intensificados (com marca negativa), respectivamente, de (ii) e (i). Em seu comentário a esta passagem, Alexandre fornece como exemplos para (iii) et (iv) os estados mórbidos e a tristeza causada pela perda de um filho, sublinhando que são casos exponenciais negativos relativamente aos dois primeiros tipos. ⁷ Tudo gira, portanto, em torno de (i) e (ii), que são modos internos ao sentido (a) exclusivamente. Christopher Kirwan escreve o seguinte a propósito de Δ 21: This brief chapter does not give a satisfactory survey of the senses in which Aristotle actually uses the word ‘affection’ (‘ pathos ’), the chief of which are: (1) state or condition, (2) property, (3) coincident, i.e. non-essential property, (4) quality, (5) feeling, (6) happening, (7) misfortune. ⁸ Kirwan refere-se a esta lista de sentidos como uma “slipshod semantics” da parte de Aristóteles (p. 172). É verdade que Δ 21 não nos fornece os diversos sentidos de πάθος; mesmo assim, não é uma semântica desleixada , como supõe Kirwan, pois nos fornece os diversos sentidos de πάθος no interior unicamente da rubrica (a), mas o faz de modo organizado: primeiro a própria afeção ou atributo; depois, o alterar-se por meio do qual tal qualidade vem a ser; enfim, os casos exponencias negativos de um e outro. Ocorre, contudo, que Δ 21 está truncado, pois se limita aos sentidos internos a (a), o que justifica o sentimento de Kirwan que se trata de uma lista insatisfatória, pois é claramente incompleta. Mas quão incompleta ela é? Vou dedicar o resto deste trabalho para mostrar que de fato está incompleta, e isto em um sentido muito forte: Aristóteles deixou inanalisada a homonímia que o sentido (c) inevitavelmente causa em relação a (a) e (b). Neste sentido, não vou me preocupar em examinar (b), o prazer ou desprazer que sentimos por conta das afecções que temos, pois este é o lado

subjetivo (a sensação) que toda percepção (como πάθος τι) causa em nós, e que, no meu entender, pode ser reduzido ao sentido (a) em termos do efeito que o πάθος provoca nos sujeitos afetados. Meu interesse vai, assim, concentrar-se em (c), os estados anímicos em que nos encontramos, as πάθη ou emoções que sentimos. – II – A este propósito, começo com uma nota positiva. Eis o que Robert Solomon escreve ao comentar a noção aristotélica de emoção: We might note that Aristotle, who was so precocious in so many disciplines, seems to have anticipated most of the main contemporary theories. His analysis of anger includes a distinctive cognitive component, a specified social context, a behavioral tendency, and a recognition of physical arousal. ⁹ Solomon tem razão, mas é preciso ver como Aristóteles põe todos estes elementos em conjunto com vistas a uma doutrina coerente das emoções. Dito de outro modo: sobre que pano de fundo pode Aristóteles nos introduzir à concepção moderna de emoção? Neste sentido, eis uma apresentação da noção aristotélica de emoção que retoma o esquema proposto por Solomon e que, justamente, opera sobre este pano de fundo: According to Aristotle, being in a passionate state constitutes an affirmation by the subject herself (not only by a part of her soul) of the way things are represented as being the way things are, and that the representations involved are the result of exercising a capacity he calls phantasia (roughly, “appearances”) … and typically gives the subject some inclination to behave in ways that are appropriate only if these representations are true (perhaps to alleviate the suffering). ¹⁰ Tudo isso é bem possível, e mesmo provavelmente verdadeiro, pelo menos em parte. Porém, quero estudar a noção de πάθος na medida em que é portadora de uma homonímia (atenuada, com algo em comum) que resiste a toda tentativa de eliminação e que deixa certos vestígios no modo como Aristóteles examina as emoções humanas a título de πάθη, sem, contudo, investigar a própria homonímia: este é o meu pano de fundo. Há assim que se reconhecer uma dificuldade contra a qual se bate a própria investigação de Aristóteles. As raízes desta dificuldade são bem profundas e se conectam com outros pontos em sua epistemologia e metafísica; aqui, me limito a examiná-las sob a perspectiva de uma doutrina das emoções a título de certas afecções ou πάθη. Um primeiro indício que há aqui um problema mais profundo, que toca em questões de unidade de significação, se encontra na própria noção de phantasia , empregada por Dow em sua apresentação da natureza das emoções em Aristóteles. Tomemos como guia a definição aristotélica da cólera: Ἔστω δὴ ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας φαινομένης διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν εἰς αὐτὸν ἤ τῶν αὐτοῦ, τοῦ ὀλιγωρεῖν μὴ προσήκοντος. ἀνάγκη τὸν ὀργιζόμενον ὀργίζεσθαι ἀεὶ τῶν καθ’ ἕκαστόν τινι, οἷον Κλέωνι ἀλλ’ οὐκ ἀνθρώπῳ, καὶ ὅτι αὑτὸν ἢ τῶν αὑτοῦ τί πεποίηκεν ἢ ἤμελλεν, καὶ

πάσῃ ὀργῇ ἕπεσθαί τινα ἡδονήν, τὴν ἀπὸ τῆς ἐλπίδος τοῦ τιμωρήσασθαι· ἡδὺ μὲν γὰρ τὸ οἴεσθαι τεύξεσθαι ὧν ἐφίεται, οὐδεὶς δὲ τῶν φαινομένων ἀδυνάτων ἐφίεται αὑτῷ, [ὁ δὲ ὀργιζόμενος ἐφίεται δυνατῶν αὑτῷ.] A seguir, forneço três traduções propostas para esta passagem que divergem quanto ao modo como se deve entender a noção de φαινόμενον, a qual comparece por três vezes nesta passagem. Vou argumentar em defesa da terceira tradução, mas me interessa sobretudo entender o que está causando tanta dificuldade de tradução. Eis os textos: Anger may be defined as a desire accompanied by pain, for a conspicuous revenge for a conspicuous slight at the hands of men who have no call to slight oneself or one’s friends. If this is a proper definition of anger, it must always be felt towards some particular individual, e.g . Cleon, and not a man in general. It must be felt because the other has done or intended to do something to him or one of his friends. It must always be attended by a certain pleasure – that which arises from the expectation of revenge. For it is pleasant to think that you will attain what you aim at, and nobody aims at what he thinks he cannot attain. (W. Rhys Roberts, ROT ) Es soll also Zorn ein mit Schmerz verbundenes Streben nach einer vermeintlichen Vergeltung sein für eine vermeintliche Herabsetzung einem selbst oder einem der Seinigen gegenüber von solchen, denen eine Herabsetzung nicht zusteht. Wenn dies also Zorn ist, dann ist es notwendig, dass der Zürnende immer einem Einzelnen zürnt, wie zum Beispiel dem Kleon, nicht aber dem Menschen, und zwar weil der Betreffenden einem selbst oder einem der Seinigen etwas getan hat oder etwas tun wollte; auch (ist notwendig, dass) jedem Zorn eine gewisse Lust folgt, welche aus der Hoffnung auf Vergeltung herrührt; denn es ist angenehm zu meinen, dass man das erreichen wird, wonach man strebt, keiner aber strebt nach dem, was für ihn unmöglich zu erreichen ist . (C. Rapp) Définissons la colère comme le désir, accompagné de douleur, de vengeance manifeste , provoquée par ce qui apparaît comme un dédain en ce qui regarde notre personne ou celle des nôtres, ce dédain n’étant pas mérité. Si c’est bien en cela que consiste la colère, il s’ensuit nécessairement que l’on se met toujours en colère contre un individu déterminé, par exemple Cléon, et non pas contre l’homme en général, et que l’on a fait ou voulu faire contre nous-mêmes ou l’un des nôtres une action déterminée, et qu’à toute colère est consécutif un certain plaisir dû à l’espoir de se venger. Car il est doux de croire que l’on va obtenir ce que l’on poursuit, mais personne ne poursuit des choses qui lui sont manifestement impossibles. (Cristina Viano, versão não publicada) Coloquei em itálico as expressões em que φαινόμενον ocorre. De fato, meu interesse porta mormente sobre as duas primeiras ocorrências, de modo que vou deixar de lado maiores considerações sobre a terceira. As duas primeiras ocorrências estão em 1378a30-32, que é a parte central da passagem. Se estas linhas captam a natureza da cólera (a despeito de deixarem de lado seu aspecto físico; vou voltar sobre este ponto mais adiante), pode-se tirar já daqui dois corolários: (a) a vingança opera sobre indivíduos e (b) ela engendra um certo prazer, corolários que Aristóteles

torna expressos. Fixando nossa atenção nas linhas a30-32, podemos introduzir a dificuldade que causa perturbação nas traduções do seguinte modo: trata-se de uma vingança notória, pública, assim como o desdém é público e conhecido de muitos, embora não seja justificado, ou é antes algo que o sujeito colérico crê – correta ou incorretamente – ser um desdém imerecido e do qual imagina uma certa vingança, sem que necessariamente tudo isso ocorra em praça pública? Cope não hesita em adotar a primeira opção: φαινομένης and φαινομένην are both emphatic; not merely ‘apparent’ and ‘unreal’, but ‘manifest, conspicuous, evident’… a slight which is so manifest that it cannot escape observation; and therefore because it has been noticed by everybody, requires the more exemplary punishment in the way of compensation. ¹¹ Cope toma φαινομένης em τιμωρίας φαινομένης como equivalente a φανερᾶς, vingança evidente, manifesta , termo que encontramos, alias, no comentário anônimo transmitido pelo ms. Vaticanus gr. 1340, que pertenceu à biblioteca de Fulvio Orsini: Ἔστω δὴ ὀργὴ ὄρεξις τιμωρίας φαινομένης ἤτοι φανερᾶς μετὰ λύπης (89, 8-9) ( Anonymi in Rhet. , CAG 21, 1 ed. Rabe) Na segunda opção, porém, se trata antes de uma suposta vingança provocada pelo fato que o sujeito toma algo como menosprezo não merecido, que bem poderia não ser desdém algum, ou real, mas merecido. Neste caso, o que está em pauta é o lado subjetivo , as crenças que possui a pessoa que se encoleriza, de sorte que o espaço público, a á gora grega, perde muito de sua importância: que outros, e mesmo muitos, assim o tomem não é o elemento importante para que o sujeito se ponha em estado de cólera: o decisivo está em seu ato individual de tomar o que está ocorrendo a ele de um certo modo, a saber, como desprezo não merecido, e buscar algo que toma como sendo uma vingança adequada. Para ganhar alguma clareza neste assunto, será preciso fazer um desvio e examinar, ainda que rapidamente, a noção de crença. Com efeito, Aristóteles põe em evidência o elemento cognitivo de nossas crenças no interior de nossas emoções. Este fator cognitivo foi fortemente sublinhado por William Fortenbaugh em seu estudo sobre as emoções em Aristóteles: By insisting on the essential involvement of cognition in emotional response Aristotle has rejected the view of James that emotion is properly a bodily sensation and aligned himself with Bedford in opposition to Pitcher, who thinks cognitions characteristic of but not essential to emotional response. ¹² Segundo esta perspectiva, alguém tem medo, por exemplo, desde que tome algo como ameaçador, ainda que isso seja de fato em nada ameaçador. A crença do sujeito tem assim um papel importante na formação de uma emoção. Na psicologia moderna das emoções, tende-se a falar menos em ‘crenças’ e mais em ‘juízos’ ou ‘avaliações’, pois as primeiras são mais estáveis e destarte menos aptas a capturar o aspecto fugaz das emoções, enquanto os últimos respondem mais prontamente às condições circunstanciais, provisórias e eventualmente momentâneas das emoções

(Pitcher, por exemplo, privilegia o termo evaluation ). ¹³ Neste sentido, Aristóteles talvez vá ainda mais longe, pois emprega a noção de ‘imaginação’ ou phantasia ; no caso citado da cólera, por exemplo, ele fala em buscar vingança διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν, por causa de um menosprezo imaginado . A φαντασία é uma faculdade de discriminação, portanto uma faculdade com função cognitiva, mas é uma faculdade certamente inferior ao da crença e ao da avaliação racional, além de poder ser partilhado por todos os outros animais, os quais não possuem razão. Isso parece mobilizar uma faculdade cognitiva mínima ou esmaecida ¹⁴ , por assim dizer, pois algo pode somente parecer como tal e tal, sem que o seja assim, e parecer de um certo modo em função da potência de aparência que as coisas mesmas possuem, o que nos aproxima não somente do erro, mas também da ilusão (posso ter a ilusão de ter desembarcado em Gommerville, quando desci em Monnerville, e ficar um bom momento lá procurando a Praça do Dízimo, que só existe em Gommerville). O conflito pode persistir mesmo que tenha crenças corretas: posso ter a crença que a Terra é menor que o Sol, e mesmo estar inteiramente convencido a este respeito; mesmo assim, o Sol parece ter o tamanho de meu pé, e isso de modo recorrente, a despeito de minha certeza sobre seu tamanho: φαίνεται δέ γε καὶ ψευδῆ, περὶ ὧν ἅμα ὑπόληψιν ἀληθῆ ἔχει, οἷον φαίνεται μὲν ὁ ἥλιος ποδιαῖος, πιστεύεται δ’ εἶναι μείζων τῆς οἰκουμένης. ( De anima III 3 428b2-4) Algumas sobre as quais se tem um juízo verdadeiro se manifestam de modo falso; por exemplo, o Sol parece bem ter o diâmetro de um pé, mas se é seguro que é maior que a Terra. Ou ainda: τούτου δὲ σημεῖον ὅτι φαίνεται μὲν ὁ ἥλιος ποδιαῖος, ἀντίφησι δὲ πολλάκις ἕτερόν τι πρὸς τὴν φαντασίαν ( De insomn . 460b18-20) É prova disso o fato que o Sol parece ter o diâmetro de um pé, mas repetidamente outra coisa contradiz a imaginação. Na passagem citada do De anima , Aristóteles está reagindo à proposição feita por Platão no Timeu que imaginação e opinião estão intimamente conectadas; sua observação mostra que, ao contrário, elas frequentemente estão desconectadas. Mesmo assim, Aristóteles, ao falar de imaginação para a cólera e outras emoções, não pretende, no caso preciso das emoções, apelar a uma faculdade esmaecida de discriminação em contraste com a opinião ou juízo. ¹⁵ No epílogo à nova edição de seu livro sobre a noção aristotélica de emoção, Fortenbaugh volta a este tema: He is not offering an analysis of human emotion in terms of phantasia apart from belief. ¹⁶ Fortenbaugh, me parece, tem razão ao insistir na presença de uma crença ou opinião por trás das emoções humanas, na perspectiva de Aristóteles. No tocante ao comportamento animal, a phantasia é bem a faculdade que nos permite explicar como certas coisas são apreendidas de um certo ângulo, e este ângulo em muito depende da natureza da coisa mesma e de sua

potência de parecer sob tal ângulo. No caso humano, porém, a situação é bem distinta. Aristóteles não hesita em substituir phantasia por hupolêpsis , uma concepção de natureza proposicional. Quando estuda, nos Tópicos VI, as definições mal-formadas no formato tode meta toude ¹⁷ , Aristóteles não deixa de assinalar que também há casos bem formados, que dizem respeito justamente a emoções: Ἔνια δὲ τῶν οὕτως ἀποδιδομένων οὐδαμῶς ὑπὸ τὴν εἰρημένην πίπτει διαίρεσιν, οἷον εἰ ἡ ὀργὴ λύπη μεθ’ ὑπολήψεως τοῦ ὀλιγωρεῖσθαι. ὅτι γὰρ διὰ τὴν ὑπόληψιν τὴν τοιαύτην ἡ λύπη γίνεται, τοῦτο βούλεται δηλοῦν· τὸ δὲ διὰ τόδε γίνεσθαί τι οὐκ ἔστι ταὐτὸ τῷ μετὰ τούτου τόδ’ εἶναι κατ’ οὐδένα τῶν εἰρημένων τρόπων. ( Top. VI 13 151a14-19) Algumas destas fórmulas dadas neste formato, porém, não pertencem de modo algum ao grupo indicado; por exemplo, se se define a cólera como “dor com representação de ser desdenhado”. Com efeito, quer-se evidenciar que foi por causa de tal representação que a dor surge; ora, algo surgir por causa disto não é idêntico a isso com isto em nenhum dos casos indicados. Esta passagem nos fornece duas lições. Primeiramente, a hupolêpsis ocupa o lugar da phantasia : a primeira é necessariamente proposicional, ao passo que a segunda não o é. ¹⁸ Em segundo lugar, a representação de ser desdenhado é a causa da aflição. Com efeito, na fórmula λύπη μεθ’ ὑπολήψεως τοῦ ὀλιγωρεῖσθαι, o fato de se ver menoscabado está na origem da aflição sentida, de modo que a fórmula a plus b é uma versão escamoteada do ponto de vista sintático de uma relação de causalidade, a por causa de b¸b sendo a causa de a ser o caso. Reencontramos a mesma relação de causalidade nas outras emoções, como o medo: ἔστω δὴ ὁ φόβος λύπη τις ἢ ταραχὴ ἐκ φαντασίας μέλλοντος κακοῦ φθαρτικοῦ ἢ λυπηροῦ. ( Rhet. II 5 1382a21-22) Seja o medo um sofrimento ou perturbação proveniente da imaginação de um mal próximo, destruidor ou doloroso. A percepção de algo como um mal iminente é a causa de termos medo. Encontramos novamente aqui a noção de phantasia ; um pouco adiante, porém, a phantasia é substituída pela crença que o sujeito porta sobre algo: εἰ δή ἐστιν ὁ φόβος μετὰ προσδοκίας τινὸς τοῦ πείσεσθαί τι φθαρτικὸν πάθος, φανερὸν ὅτι οὐδεὶς φοβεῖται τῶν οἰομένων μηδὲν ἂν παθεῖν, οὐδὲ ταῦτα ἃ μὴ οἴονται παθεῖν οὐδὲ τούτους ὑφ’ ὧν μὴ οἴονται, οὐδὲ τότε ὅτε μὴ οἴονται. ( Rhet. II 5 1382b29-32) Se o medo, então, se dá com uma expectativa de sofrer um mal destruidor, é claro que ninguém que pensa que nada lhe pode ocorrer tem medo, nem teme o que não crê sofrer, nem de quem não crê sofrer, nem quando não crê sofrer. A noção de crença está bem presente nesta passagem. E isso não surpreende, pois a função causal que o fator cognitivo porta na formação de uma emoção parece exigir uma espessura maior do que uma fugaz e evaescente aparência de algo sob certo ângulo. Retomemos, assim, a

definição da cólera dada na Retórica . Como traduzir as duas primeiras ocorrências de phantasia  em ἔστω δὴ ὀργὴ ὄρεξις μετὰ λύπης τιμωρίας φαινομένης διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν? Parece-me claro que o fato de se julgar desdenhado de modo imerecido é uma condição não somente necessária, mas também suficiente para que o sujeito se ponha em estado de cólera. Porém, que tipo de vingança procura ele assim que se põe em estado de cólera? O que ele crê ser uma vingança, ou o que é reputado ser uma vingança, uma vingança, portanto, pública e notória? A solução proposta por Cristina Viano parece-me a melhor: o sujeito que se crê injustamente desdenhado busca uma vingança pública, manifesta. ¹⁹ De fato, percebe-se no φαινομένη de τιμωρίας φαινομένης “a specified social context” (Solomon) no qual unicamente a vingança pode ser efetiva, ao passo que o φαινομένη de διὰ φαινομένην ὀλιγωρίαν nos faz penetrar na zona incerta e obscura das considerações e crenças do sujeito que tem cólera. A vingança há de ser pública e notória, como o faz Aquiles, depois de julgar-se menosprezado injustamente por Agamênon, retirando-se da guerra e, por isso, fazendo com que muitos aqueus morram na batalha contra os troianos – vingança notória para quem se julga desprezado imerecidamente. Pode, porém, φαινομένη portar dois sentidos em uma mesma frase; mais ainda, em uma frase definitória? Ora, todo o problema reside aqui: a noção de pathos abriga uma ambiguidade que vem à superfície unicamente quando nos pomos a traduzir a frase em nossas línguas modernas, permanecendo, porém, submersa na versão grega. – III – Para melhor compreender este duplo sentido, é preciso examinar a emoção do ponto de vista da mudança ou alteração física que ela provoca no agente. Este elemento não é mencionado na definição que a Retórica fornece, mas está posto em evidência no estudo feito sobre ela no De anima . Em uma passagem bem conhecida, Aristóteles opõe a definição dialética da cólera, aquela na qual unicamente vem expresso o elemento formal, à definição física, na qual, ao contrário, as condições materiais ganham prioridade. Face a estas duas definições, cada uma deficiente ao seu modo, Aristóteles propõe uma terceira, que justamente tenta unificar aquelas duas anteriores: διαφερόντως δ’ ἂν ὁρίσαιντο ὁ φυσικὸς τε καὶ ὁ διαλεκτικὸς ἕκαστον αὐτῶν, οἷον ὀργὴ τί ἐστιν· ὁ μὲν γὰρ ὄρεξιν ἀντιλυπήσεως ἤ τι τοιοῦτον, ὁ δὲ ζέσιν τοῦ περὶ καρδίαν αἵματος καὶ θερμοῦ. τούτων δὲ ὁ μὲν τὴν ὕλην ἀποδίδωσιν, ὁ δὲ τὸ εἶδος καὶ τὸν λόγον. ὁ μὲν γὰρ λόγος εἶδος τοῦ πράγματος, ἀνάγκη δ’ εἶναι τοῦτον ἐν ὕλῃ τοιᾳδί, εἰ ἔσται· ὥσπερ οἰκίας ὁ μὲν λόγος τοιοῦτος, ὅτι σκέπασμα κωλυτικὸν φθορᾶς ὑπ’ ἀνέμων καὶ ὄμβρων καὶ καυμάτων, ὁ δὲ φήσει λίθους καὶ πλίνθους καὶ ξύλα, ἕτερος δ’ ἐν τούτοις τὸ εἶδος ἕνεκα τωνδί. ( De anima I 1 403a29-b7) É de modo bem diverso que o físico e o dialético definem cada uma destas afecções. Por exemplo: o que é a cólera? O dialético: “desejo de vingança” ou algo similar; o físico: “o aquecimento do sangue e do elemento quente na região pericárdia”. Um dá conta da matéria; o outro, da forma e da noção. Esta passagem contém diversas dificuldades, que não vou analisar aqui. Limito-me a observar que há três casos aqui: (i) a fórmula puramente

formal; (ii) a fórmula exclusivamente material; (iii) a fórmula que unifica forma e matéria, de modo que a matéria é vista em função do fim que a forma cumpre. Os três casos são mencionados novamente nas linhas imediatamente seguintes, com um marcador sintático de preferência para o terceiro caso (b8-9: ἢ μᾶλλον ὁ ἐξ ἀμφοῖν); ademais, Aristóteles assinala em sequência que nenhum dos dois outros casos responde propriamente ao conhecimento físico. O que quero pôr em evidência, contudo, ocorre precisamente antes desta passagem. Eis o texto: ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη πάντα εἶναι μετὰ σώματος, θυμός, πραότης, φόβος, ἔλεος, θάρσος, ἔτι χαρὰ καὶ τὸ φιλεῖν τε καὶ μισεῖν· ἅμα γὰρ τούτοις πάσχει τι τὸ σῶμα. μηνύει δὲ τὸ ποτὲ μὲν ἰσχυρῶν καὶ ἐναργῶν παθημάτων συμβαινόντων μηδὲν παροξύνεσθαι ἢ φοβεῖσθαι, ἐνίοτε δ’ ὑπὸ μικρῶν καὶ ἀμαυρῶν κινεῖσθαι, ὅταν ὀργᾷ τὸ σῶμα καὶ οὕτως ἔχῃ ὥσπερ ὅταν ὀργίζηται. ἔτι δὲ μᾶλλον τοῦτο φανερόν· μηθενὸς γὰρ φοβεροῦ συμβαίνοντος ἐν τοῖς πάθεσι γίνονται τοῖς τοῦ φοβουμένου . εἰ δ’ οὕτως ἔχει, δῆλον ὅτι τὰ πάθη λόγοι ἔνυλοί εἰσιν· ὥστε οἱ ὅροι τοιοῦτοι οἷον “τὸ ὀργίζεσθαι κίνησίς τις τοῦ τοιουδὶ σώματος ἢ μέρους ἢ δυνάμεως ὑπὸ τοῦδε ἕνεκα τοῦδε”, καὶ διὰ ταῦτα ἤδη φυσικοῦ τὸ θεωρῆσαι περὶ ψυχῆς, ἢ πάσης ἢ τῆς τοιαύτης. ( De anima I 1 403a16-28; meus itálicos)  Trata-se de uma passagem igualmente bem conhecida, e não menos controversa. Notemos, inicialmente, que a conjunção καί (em ἔοικε δὲ καὶ τὰ τῆς ψυχῆς πάθη) com que se abre a passagem remete aos objetos matemáticos, que tinham sido mencionados como objetos que existem somente na matéria, embora o matemático os considere sem levar em conta o fator material; as emoções estão ligadas a uma matéria, elas também (καί). Notemos, em seguida, que παθημάτων na linha a20 designa as causas externas de um movimento psíquico interno, isto é, designa o que fora de nós nos causa medo, cólera e assim por diante ( cf. Alex. De anima 13, 1: ποτὲ μὲν γὰρ ἰσχυρῶν ὄντων τῶν ἐκτὸς αἰτίων). Forneço agora duas traduções para esta passagem: Or il semble que les affections de l’âme soient données avec un corps: courage, douceur, crainte, pitié, audace, la joie aussi et l’amour comme la haine; dans tous ces cas le corps éprouve une certaine passion. En voici un indice: tantôt des excitations violentes et caractérisées surviennent sans produire ni colère, ni frayeur; tantôt par contre des causes faibles et peu sensibles déclenchent des émotions, si le corps est déjà surexcité et dans un état semblable à celui qui accompagne la colère. Mais voici une preuve encore plus manifeste: en l’absence de toute cause d’effroi, on peut éprouver les affections mêmes qui caractérisent la frayeur. Dans ces conditions, il est évident que les affections de l’âme sont des formes engagées dans la matière. Aussi les définitions doivent-elles être formulées en conséquence, par exemple: la colère est le mouvement d’un corps donné, d’une partie ou d’une faculté de ce corps, produit par telle cause en vue de telle fin. Voilà pourquoi il appartient donc au physicien de traiter de l’âme, soit toute espèce de l’âme, soit de l’âme telle que nous la décrivons. (Barbotin) So, too, the attributes of the soul appear to be all conjoined with body: such attributes, viz. as anger, mildness, fear, pity, courage; also joy, love and hate;

all of which are attended by some particular affection of the body. This indeed is shown by the fact that sometimes violent and palpable incentives occur without producing in us exasperation or fear, while at other times we are moved by slight and scarcely perceptible causes, when the blood is up and the bodily condition that of anger. Still more is this evident from the fact that sometimes even without the occurrence of anything terrible men exhibit all the symptoms of terror. If this be so, the attributes are evidently forms or notions realised in matter. Hence they must be defined accordingly: anger, for instance, as a certain movement in a body of a given kind, or some part or faculty of it, produced by such and such a cause and for such and such an end. These facts at once bring the investigation of soul, whether in its entirety or in the particular aspect described, within the province of the natural philosopher. (Hicks) Estas duas traduções são concordantes, embora tenham escolhido variantes diferentes. Com efeito, os manuscritos divergem na linha 403a25. Segundo o aparato crítico de Jannone, assim eles se dividem: • ECHa (Barbotin): λόγοι ἐν ὕλῃ • UVXyFb e os comentadores antigos (Hicks): λόγοι ἔνυλοι A expressão é opaca, o que por si só explica a existência de variantes. Tomando λόγοι no sentido daquilo que é definido (correspondendo, portanto, a εἴδη), as duas expressões concordam na medida em que ambas afirmam que as formas estão sempre em uma dada matéria, ainda que divirjam sobre o modo como se dá esta presença na matéria: ou bem se supõe que os estados psíquicos estão necessária ou essencialmente ligados à matéria (λόγοι ἔνυλοι), apoiando assim uma versão forte do hilomorfismo, ou bem se deixa imprecisa essa ligação, ao mesmo tempo em que se reconhece que deve haver alguma ligação (λόγοι ἐν ὕλῃ), em uma versão menos rígida do hilomorfismo, compatível com definições nas quais a matéria não faz necessariamente parte do definiens , ainda que tudo exista em uma dada matéria. ²⁰ Apesar desta diferença de leitura, o texto segue bem de perto a analogia com os objetos matemáticos: são formas na matéria (ainda que o matemático as estude fazendo abstração da matéria). No tocante às emoções, elas seriam também formas na matéria. Pode haver certa dúvida a respeito do intelecto, que eventualmente poderia existir sem matéria, mas, no que tange às emoções, elas são formas que existem unicamente na matéria, independentemente do modo como se compreende esta ligação. Esta passagem faria assim parte de um grupo de textos que portariam sobre como definir os objetos naturais ou físicos, na medida em que nos diria que se deve sempre fazer menção à matéria, assim como, a propósito do círculo de bronze, a sua definição deve fazer menção do tipo de matéria em que o círculo se realiza: ὁ δὴ χαλκοῦς κύκλος ἔχει ἐν τῷ λόγῳ τὴν ὕλην. ( Mét. Z 7 1033a4-5)  Ou ainda, segundo o comentário de Hicks: logos = notion, content of definition, which is opposed precisely as is form or quiddity, to matter. ²¹

Porém, é isto exatamente o que está sendo dito nesta passagem? Para se chegar à conclusão que as emoções são λόγοι ἔνυλοι, são dadas três evidências. A primeira é que por vezes, por mais grandiloquentes que sejam os objetos exteriores, nada sentimos. Em que sentido isto seria uma evidência que as emoções são formas na matéria ? A segunda é que, outras vezes, embora o objeto exterior seja muito fraco, mesmo assim nos pomos em um estado emotivo, por exemplo o de cólera. ²² O terceiro indício é dito ser o mais importante: é o fato que, na ausência de toda causa real externa de medo, pode-se mesmo assim experimentar a afecção que caracteriza o medo (ἔτι δὲ μᾶλλον τοῦτο φανερόν· μηθενὸς γὰρ φοβεροῦ συμβαίνοντος ἐν τοῖς πάθεσι γίνονται τοῖς τοῦ φοβουμένου). Ora, tudo isso vai em uma outra direção, em especial o terceiro indício, a saber: não tanto que as emoções se dão em uma matéria, mas antes que se pode sofrer certas alterações corpóreas simplesmente por se crer que se está em uma dada situação, no caso: em uma situação de medo, mesmo que nada exista lá fora que possa servir de justificação para isso; igualmente, podemos nada sentir, embora exista algo lá fora que é grandemente amedrontador. Voltamos, assim, à ideia que uma dada concepção que fazemos do mundo pode nos colocar no mesmo estado em que estaríamos se o mundo fosse tal e tal e o apreendêssemos corretamente, ou que o mundo pode passar ignorado, por mais amedrontador que seja, se não o tomamos como ele de fato é. Se é este o ponto que ilustram os três indícios, em especial o terceiro, então os λόγοι parecem fazer referência às concepçõ es que temos (corretas ou não) do mundo, dado que estas concepções são suficientes para que soframos certas alterações físicas, haja vista ao fato que estas concepções têm função causal em relação às emoções que elas engendram e emoções se repercutem fisicamente no corpo. Se isto estiver correto, então os λόγοι ἔνυλοι não visariam a indicar as formas ou εἴδη em uma dada matéria, nem as fórmulas que exibem estas εἴδη de algum modo ligadas à matéria, mas seriam, antes, as concepções que se materializam , que o mundo seja ou não tal como elas o descrevem. Temos assim uma terceira possibilidade de tradução: os λόγοι ἔνυλοι são as concepções que se materializam fisicamente, raciocínios que têm uma consequência em nossos corpos, crenças que se difundem no corpo ao alterá-lo de certo modo , assim como a concepção de algo amedrontador faz com que nossos pelos se arrepiem, ainda que, lá fora, no mundo exterior, nada haja que seja de fato amedrontador. O hilemorfismo não é o que está em questão aqui; ele é pressuposto e é a partir dele que se quer pensar a relação da emoção com a alteração física que necessariamente a acompanha. O que está em jogo aqui é o papel das concepções na constituição das emoções, inevitavelmente ligadas a uma matéria, mas causadas não por um estado material ou pela afecção que um objeto causa, mas pelas crenças que o sujeito tem a respeito de certas coisas que o afetam ou que ele pensa que o afetam, que o mundo seja ou não seja tal como suas crenças o descrevem. Este é, quer-me parecer, o elemento chave desta passagem: uma dada concepção que tem papel causal no engendramento de uma emoção e que, deste modo, provoca uma alteração no corpo. É uma crença que se materializa: λόγος ἔνυλος. ²³ Vimos, com efeito, que a emoção se produz assim que uma certa hupolêpsis provoca no corpo certas alterações. Dado isso, deve-se concluir que, na fórmula generalizada para toda emoção (com base no exame da cólera), a saber, τὸ ὀργίζεσθαι κίνησίς τις τοῦ τοιουδὶ

σώματος ἢ μέρους ἢ δυνάμεως ὑπὸ τοῦδε ἕνεκα τοῦδε, o encolerizar-se (ou, em geral, toda emoção) é (a) um certo movimento deste corpo aqui, ou de uma parte ou de uma faculdade dele, no qual (b) ὑπὸ τοῦδε designa a causa e remete deste modo não propriamente a um objeto exterior ao sujeito, mas sim a uma concepção que possui a pessoa que tem a emoção, isto é, a um logos que enuncia sua crença que algo é de tal tipo ( s é p ), ao passo que (c) ἕνεκα τοῦδε indica o fim em vista do qual este estado anímico vem a ser: no caso da cólera, visto que me julgo menosprezado, desejo vingar-me, tudo isso provocando em mim certas alterações físicas. – IV – Para concluir, gostaria de voltar, mais uma vez, à apresentação geral das emoções que a Retórica nos fornece ao final do primeiro capítulo do segundo livro: ἔστι δὲ τὰ πάθη δι’ ὅσα μεταβάλλοντες διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις οἷς ἕπεται λύπη καὶ ἡδονή, οἷον ὀργὴ ἔλεος φόβος καὶ ὅσα ἄλλα τοιαῦτα, καὶ τὰ τούτοις ἐναντία. ( Rhet . II 1 1378a19-22)  Emoções são os por meio dos quais, tendo alterações físicas, os homens variam em seus julgamentos, que são acompanhados de dor e prazer, como a cólera, a piedade, o medo e tudo mais que for deste tipo, bem como seus contrários. ²⁴ A ideia aqui me parece ser que as emoções são um tipo muito peculiar de πάθος, visto que o sujeito não as sofre realmente do exterior (como no caso das outras afecções), mas as tem em função de uma concepção que entretém em relação a algo que toma como vindo do exterior de um certo modo (mas que pode ser uma simples ilusão, de modo que pode ser que nada se passe no mundo, ou se passe de modo muito diferente do que crê), estas concepções possuindo um efeito no corpo do sujeito que as tem e, sobretudo, sendo capazes de contaminar os julgamentos que o sujeito tem a respeito de outros objetos dado o estado emotivo em que se encontra. Temos aqui o sentido (c) πάθη como emoções: estados mentais causados por uma avaliação da situação em que se encontra o agente, que sofre deste modo uma alteração física e que se encontra em um estado tal que seus outros juízos podem ser contaminados por este estado mental, fazendo-os variar. Ora, isso é, para Aristóteles, em um sentido importante, um πάθος, muito possivelmente porque é algo que acomete o sujeito, que não o adota de modo deliberado, mas em algum sentido o sofre, mas é um πάθος muito distinto de um atributo que nos qualifica e certamente não se confunde com o prazer ou desprazer que acompanha toda emoção. ²⁵ Porém, por que Aristóteles escreveu por duas vezes, na sua definição da cólera, que se trata de uma phantasia , quando seu ponto, se tenho razão, consiste em demarcar este tipo de πάθος dos outros πάθη na medida em que a emoção contém uma atitude proposicional da parte do sujeito, uma crença em função unicamente da qual ele sofre certas alterações físicas e se encontra deste modo em um estado tal que pode ter seus outros juízos contaminados por tal emoção? Vejamos o que diz John Cooper a este respeito:

It seems likely that Aristotle is using phantasia here to indicate the sort of nonepistemic appearance to which he draws attention once in De anima 3.3 (428b2-4), according to which something may appear to, or strike one, in some way (say, as being insulting or belittling) even if one knows there is no good reason for one to take it so. ²⁶ O que descreve Cooper é um fenômeno real, e mesmo recorrente, que requer uma explicação, sobretudo por conta de sua persistência. No entanto, não é o que Aristóteles está examinando aqui. Com efeito, há uma outra coisa que atrai muito mais seu interesse: o fato que, quando tomamos algo a um certo título (por exemplo, como amedrontador), sentimos por isso mesmo medo, ainda que, se algo amedrontador aparecer diante de nós, mas não cremos que possa nos causar um mal, não sentimos nenhum medo: ἔτι δὲ ὅταν μὲν δοξάσωμεν δεινόν τι ἢ φοβερόν, εὐθὺς συμπάσχομεν, ὁμοίως δὲ κἂν θαρραλέον· κατὰ δὲ τὴν φαντασίαν ὡσαύτως ἔχομεν ὥσπερ ἂν εἰ θεώμενοι ἐν γραφῇ τὰ δεινὰ ἢ θαρραλέα. ( De anima III 3 427b21-4) Ademais, quando cremos que algo é terrível ou amedrontador, de pronto sentimos a emoção correspondente – do mesmo modo se o objeto é tranquilizador; ao contrário, pela imaginação, nosso comportamento é o mesmo que teríamos se contemplássemos em uma pintura objetos amedrontadores ou tranquilizadores. A opinião é contrastada aqui com a imaginação: pela imaginação, kata tên phantasian , ficaríamos impassíveis, ou quase – quem grita e foge desesperado ao ver um quadro de Goya? Na verdade, Aristóteles distingue claramente dois casos, o primeiro dos quais é (i) o fenômeno do Sol parecer do diâmetro de um pé (ao qual Cooper faz referência); apesar de estar convencido do contrário, o Sol continua parecendo ser do diâmetro de um pé. Por outro lado, (ii) se me encontro em um dado estado emocional, tal estado pode fazer variar meus julgamentos a um ponto tal que mesmo as minhas percepções ficam desfiguradas: πρὸς δὲ τούτοις ὅτι ῥᾳδίως ἀπατώμεθα περὶ τὰς αἰσθήσεις ἐν τοῖς πάθεσιν ὄντες, ἄλλοι δὲ ἐν ἄλλοις, οἷον ὁ δειλὸς ἐν φόβῳ, ὁ δ’ ἐρωτικὸς ἐν ἔρωτι, ὥστε δοκεῖν ἀπὸ μικρᾶς ὁμοιότητος τὸν μὲν τοὺς πολεμίους ὁρᾶν, τὸν δὲ τὸν ἐρώμενον· καὶ ταῦτα ὅσῳ ἂν ἐμπαθέστερος ᾖ, τοσούτῳ ἀπ’ ἐλάσσονος ὁμοιότητος φαίνεται. ( De insomn. 2 460b3-8) Ademais, estabeleçamos que facilmente nos enganamos em relação às percepções quando nos encontramos em estados emotivos, cada um com seu engano: o covarde enganando-se em situação de medo, o amante enganando-se em situação de amor, de modo que creem ver, por conta de uma ligeira semelhança, um os seus inimigos; o outro, o objeto de seu amor. Estas impressões se fundam em uma semelhança tanto mais ligeira quanto mais forte for o estado emotivo em que se encontram. Aristóteles continua descrevendo, na sequência desta passagem, estes animais ferozes que aparecem aos que têm febre nos muros de seus quartos por conta de uma ligeiríssima semelhança de linhas que se projetam nos muros, o que não engana quem não tem muita febre, mas, no caso de uma forte febre, as pessoas são de fato movidas por estas representações

(b15-16: καὶ κινεῖσθαι πρὸς αὐτά). Na verdade, trata-se da situação contrária àquela em que não damos sequência a uma sensação, ainda que recorrente, visto que não acreditamos nela; em nosso caso, por estarmos em tais estados (ἐν τοῖς πάθεσιν ὄντες), mesmo nossas percepções são transfiguradas por aquilo que acreditamos ver. ²⁷ Por que então Aristóteles fala em phantasia , se a noção chave é a de uma hupolêpsis com base na qual algo aparece a um certo título, a ponto mesmo de tornar enganosas nossas percepções? No tocante às emoções, não é tanto a força e o impacto do mundo o que nos leva a vê-lo sob um certo ângulo, mas antes, em sentido contrário, o fato que projetamos sobre as coisas do mundo um certo ângulo que nos põe em determinados estados emotivos e, aí, ficamos suscetíveis a uma contaminação que pode tingir de diferentes tons nossos julgamentos sobre outras coisas e pessoas. Na minha opinião, é a ideia de algo que se dá a nós de modo não deliberado, nos acometendo e podendo alastrar-se a outros juízos sob a forma de engano que faz com que Aristóteles empregue a noção de phantasia para as emoções, visto que a phantasia explica um erro de percepção a despeito de nossas crenças, e erro e engano são fenômenos muito próximos, embora seja a projeção de nossas crenças no mundo que causa o engano e não algo que nos afete de fora. Ao pôr a emoção sob a égide da phantasia , por outro lado, Aristóteles não deixa de ter como bônus o fato de poder colocar sob uma mesma rubrica filosófica o que a língua oferecia como casos de uma mesma coisa, o πάθος que designa por um mesmo termo atributos, afecções e emoções – justamente esta (alegada) unidade entidade linguística que está na raiz da dificuldade filosófica de se pensar as emoções como πάθη em sua distinção do atributo e da alteração, que são πάθη que nos acometem a título de afecções que vêm de fora, ao passo que as emoções seguem outra dinâmica. A homonímia passando despercebida, não é feita a tentativa de unificar os sentidos divergentes – se é que tal unificação é possível. Nenhum filósofo salta sobre sua própria sombra nem tem como deslindar todos os emaranhados conceituais que sua língua urdiu ao longo dos tempos. No De anima, os λόγοι ἔνυλοι, as concepçõ es que se materializam em alterações físicas poderiam dar o mote para se compreender o fenômeno do engano e sua força de contaminação de outros juízos em nossos estados emotivos, ao preço, porém, de tornar robustas as crenças que geram os estados emotivos, como se fossem nossas crenças como o são as outras crenças e conhecimentos que temos, que estão sob nosso controle, e não algo que nos toma de súbito, que nos assola e nos acomete a despeito de nós mesmos. Aristóteles parece ter preferido ater-se à linguagem de sua época, preservando a menção à phantasia no interior das emoções. Procedendo deste modo, Aristóteles aproveitou-se da vantagem de assim melhor captar o elemento fugaz, provisório e não premeditado das emoções, mas ficou difícil para ele explicar a potência de contaminação que o estado emotivo possui em nossas outras crenças, o que era, no entanto, ponto crucial para seu exame das emoções na Retórica , bem como a exata dimensão da crença que as engendra. 1 . Pierre Aubenque, Sur la définition aristotélicienne de la colère . Revue Philosophique de la France et de l’Etranger 147 (1957), pp. 300-317.

2 . Um estudo importante a este propósito é o artigo clássico de H. Bonitz, Über πάθος und πάθημα im Aristotelischen Sprachgebrauche (Sitzungsberichte der philolosophisch-historischen Classe der kaiserlichen Akademie der Wissenschaften LV 1 1867, pp. 13-55), no qual, com a intenção de recusar a distinção proposta por Bernays entre πάθος e πάθημα, é feita uma lista dos diversos usos de πάθος em Aristóteles (ver igualmente o Index Aristotelicum 555b60-557b18). Eu próprio procurei estudar estes usos em Émotion, action et bonheur (em P. Destrée, Aristote – bonheur et vertus , PUF 2003, pp. 107-131), ainda com a ideia que havia um núcleo comum que unia seus diferentes significados, tese que, justamente, abandono aqui. 3 . Um estudo preliminar, no qual examino quatro destes mecanismos (dois hierárquicos e dois não-hierárquicos), foi feito em Unidade do gênero e outras unidades em Aristóteles: significação focal, relação de consecução, semelhança, analogia , publicado na Analytica (UFRJ), v. 17, p. 393-430, 2013. 4 . Argumentei a este respeito em É a física aristotélica uma ciência bem formada? Analytica, v. 19, p. 9-43, 2015; a resposta, como se imagina, é negativa. 5 . William Grimaldi, Aristotle – Rhetoric II , Fordham University Press 1988, p. 14. 6 . A alteração é definida como a mudança em relação à qualidade ( Phys . V 2 226a26-7) e daqui a mudança em relação a um πάθος (Λ 2 1069b9-12), donde pode ela própria ser tomada como um πάθος. 7 . Alexandre in Met. 418, 27-33: ἔτι δὲ μᾶλλον τῶν προειρημένων παθῶν πάθη φησὶ λέγεσθαι τὰς βλαβερὰς ἀλλοιώσεις, εἴτε κατὰ ψυχὴν εἶεν εἴτε κατὰ σῶμα, καὶ μάλιστα τὰς πρὸς τῷ βλαβερῷ καὶ τὸ λυπηρὸν ἐχούσας, ὡς τὰς νοσώδεις ἐνοχλήσεις καὶ τὰς λυπηρὰς τὰς ἡμαρτημένας. ἔτι καὶ τὰ μεγέθη τῶν συμφορῶν πάθη λέγεται, ὡς τοῦ πάθους ὄντος ἐν μεγέθει λυπηροῦ κακοῦ. οὕτως ἐν πάθει λέγεται ὁ τέκνων στερηθεὶς ἢ πατρίδος ἤ τι ἐξαίσιον λυπηρὸν παθών. William Dooley relata que Richard Sorabji observou que, aqui, ἐνόχλησις não tem o sentido aristotélico de simples perturbação, mas sim o sentido estoico de uma perturbação emocional de peso (DL VII 112: ἐνόχλησιν λύπην στενοχωροῦσαν καὶ δυσχωρίαν παρασκευάζουσαν, “o tormento é uma aflição que nos leva à ansiedade e confusão”, sendo um dos tipos de aflição, esta última definida como “uma contração irracional”), emoções forçosamente mórbidas ou patológicas ( cf. Disp. Tusc. IV 16-18). Tampouco é claro o que designa aqui a expressão τὰς λυπηρὰς τὰς ἡμαρτημένας. Na minha opinião, são estados de aflição que temos em função de erros cometidos, em especial quando se trata de um erro moral. Ademais, a expressão ἐν πάθει, empregada na explicação do caso (iv), significa aqui “estar em aflição”, o que é ilustrado pelo fato de se perder uma criança ou ficar apátrida. Convém assinalar que, na EE , a expressão ἐν τοῖς πάθεσιν designa o fato de se estar sob o domínio de uma paixão na medida em que se responde unicamente ao prazer ligado a esta emoção, isto é, se age por prazer (ver EE II 10 1225b29-30; aplicada à acrasia: VII 2 1237a9; cf. EN VII 5 1147a14-15); é o que é designado na EN

pela expressão τὸ κατὰ πάθος ζῆν, ver pelo prazer, deixar-se guiar pelas paixões (I 1 1095a8; VIII 3 1156a32, b2; 7 1157b32; IX 8 1169a5 e X 10 1179b27). Na divisão que propus, este sentido se liga a (b) πάθος como o prazer ou desprazer sentido por conta de uma percepção, uma αἴσθησις, o que costumamos designar por sensação . 8 . C. Kirwan, Aristotle – Metaphysics Books Γ, Δ, and E, Clarendon 1993, 2 nd . edition, p. 171. 9 . R. Solomon, The Philosophy of Emotions, in Handbook of Emotions , ed. Michael Lewis e Jeannette Haviland-Jones, Guilford Press NY, 2 nd ed. 2000, pp. 3-15; aqui p. 4. 10 . Jamie Dow, Feeling Fantastic Again – Passions, Appearances and Belief in Aristotle (OSAP 46 2014), texto no qual retoma boa parte de suas teses defendidas em Feeling Fantastic? (OSAP 37 2009). 11 . Edward Cope, The Rhetoric of Aristotle , editado por John Sandys , Cambridge University Press, vol. II p. 10. 12 . W. Fortenbaugh, Aristotle on Emotion , 2 nd ed 2002, p. 12. Fortenbaugh faz referência aqui ao livro pioneiro de William James, The Principles of Psychology , 2 vols., New York 1890 (o artigo What is an Emotion saiu na Mind 9 1884, pp. 188-205), bem como aos artigos mais recentes de Errol Bedford ( Emotions , PAS 57 1956-7, pp. 281-304) e George Pitcher ( Emotion , Mind 74 1965, pp. 326-346). 13 . Um caso de cólera, porém, que certamente funciona como paradigma para o pensamento antigo – inclusive o aristotélico – é a cólera de Aquiles descrita na Ilíada , que certamente não é momentânea ou de curta duração, mas tende a perdurar e exige um processo de reflexão sobre as formas de vingança: não fosse a morte de Pátroclo, teria certamente perdurado por mais tempo em sua longa e pública retaliação à atitude de Agamêmnon. Neste sentido, como veremos, Aristóteles se serve de uma panóplia de termos para o elemento avaliativo na emoção, alguns dos quais – doxa, logos – podendo ter longa duração. 14 . Cícero nos diz que os estoicos, que consideram que todas as paixões procedem do juízo e da opinião, as marcam como esmaecidas: tendo fornecido a definição do pesar como “opinião atual de um mal presente”, a da alegria como “opinião atual de um bem presente”, a do medo como “opinião de um mal iminente e que parece insuportável”, Cícero acrescenta que “opinationem autem quam in omnis definitiones superiores inclusimus, uolunt esse inbecillam adsensionem”, isto é, entendem estas opiniões como um assentimento fraco, débil ( Tusc . IV 15). 15 . A. W. Price faz o seguinte comentário sobre este ponto, defendendo a imaginação em contraste com a opinião: “one advantage in tying emotion to imagination rather than to conviction is that it is then unproblematic how we can be emotionally affected, even intensely, by what we take to be fictitious” ( Emotions in Plato and Aristotle pp.121-42, aqui 138, in The Oxford Handbook of Philosophy of Emotions , Oxford 2010, ed. Peter Goldie). Este, contudo, é um outro ponto, que não vou tratar aqui senão liminarmente. É

uma operação complexa a de ter uma emoção estética ou trágica, pois requer (em especial no caso do teatro) distinguir entre ator e personagem representada, o tempo e o relato em certa ordem causal, a história contada, entre tantas outras coisas, o que requer operações intelectuais bem sofisticadas, as quais a versão esmaecida da imaginação certamente não poderia suportar. As emoções estéticas requerem um tratamento especial, à luz dos resultados da análise sobre as emoções em geral , não podendo, assim, fornecer elementos para elucidar estas últimas, mas justamente dependendo desta elucidação para serem compreendidas em sua especificidade. 16 . W. Fortenbaugh, Aristotle on Emotions: Epilogue , p. 100. 17 . Um exemplo ocorre quando se define a coragem como tolma + dianoia orthê: o problema é que se pode ter uma concepção correta sobre outras coisas (sobre, por exemplo, a formação das folhas nas árvores) e não sobre o que se deve enfrentar; mais ainda, a crença correta pode ser sobre o que se deve enfrentar, mas ocorre que isso não é coragem, como no caso de uma cirurgia em que se têm tolma meta dianoias orthês , a crença portando sobre a necessidade da cirurgia: mesmo assim, isso não é coragem, pois a coragem requer um objeto preciso (a chamada bela morte , a morte no campo de batalha e não no leito hospitalar). 18 . Ver (a) Mét . A 1 981a5-7: γίγνεται δὲ τέχνη ὅταν ἐκ πολλῶν τῆς ἐμπειρίας ἐννοημάτων μία καθόλου γένηται περὶ τῶν ὁμοίων ὑπόληψις; (b) De anima III 3 427b24-26: εἰσὶ δὲ καὶ αὐτῆς τῆς ὑπολήψεως διαφοραί, ἐπιστήμη καὶ δόξα καὶ φρόνησις καὶ τἀναντία τούτων e (c) EN VII 5 1147b3-5 os animais não podem ser acráticos porque a acrasia é um conflito entre uma opinião, dirigida pelo apetite, e a razão: ὥστε καὶ διὰ τοῦτο τὰ θηρία οὐκ ἀκρατῆ, ὅτι οὐκ ἔχει καθόλου ὑπόληψιν ἀλλὰ τῶν καθ’ ἕκαστα φαντασίαν καὶ μνήμην. 19 . Na tradução proposta por Rapp, as duas ocorrências de φαινομένη guardam o mesmo sentido de “suposto”, “tomado a um certo título”, o que, em estrito sentido linguístico, tem seus méritos. Rapp, porém, adota esta tradução cum grano salis , pois, embora aceite o cognitivismo como fator central, dado que causal, na constituição das emoções humanas, ele assinala que a emoção não pode reduzir-se a um juízo, o que atenua sua posição e permite mesmo entender o segundo φαινομένη ao modo de “público”, “notório”. 20 . Sobre estas duas possibilidades, ver o comentário de Shields 2016 pp. 98-9. 21 . Hicks, p. 199. 22 . O texto aqui permite duas leituras, segundo a variante adotada. Uns manuscritos dão como texto (segundo o aparato crítico de Jannone) ἐὰν ὀργᾷ τὸ σῶμα καὶ οὕτως ἔχῃ ὥσπερ ὅταν ὀργίζηται, “sempre que o corpo esteja em estado de cólera, isto é, seja tal como quando se está em cólera”, supondo assim que esta condição material precisa ser satisfeita para que algo pequeno possa nos encolerizar. É verdade que, quando estamos em cólera, algo pequeno ainda mais nos encoleriza, mas tal observação não

parece ser pertinente aqui, pois colide com a primeira (objetos intensos não nos afetam) e, sobretudo, com a terceira (nos afetamos mesmo na ausência de objetos que deem razão à cólera); ademais, esta perspectiva materialista causal está ausente na análise aristotélica das emoções. Os mss. Ey dão, porém, como texto ὅταν ὀργᾷ τὸ σῶμα καὶ οὕτως ἔχῃ ὥσπερ ὅταν ὀργίζηται, que pode ser vertido então como “situações nas quais o corpo entra em estado de cólera, isto é, fica tal como quando estamos em cólera”, o que parece mais condizente com o andamento do argumento. 23 . Adoto, assim, λόγοι ἔνυλοι de UVXyFb e dos comentadores antigos, e entendo ἔνυλος no mesmo sentido em que ti enudros é uma coisa aquática , algo que se desdobra na água. O crocodilo de rio é um exemplo dado por Hicks: é um crocodilo que, como animal terrestre, tem lugar para a língua, mas, como animal aquático , não possui língua ( De part. anim. IV 11 690b23-4: διὰ μὲν οὖν τὸ χερσαῖος εἶναι ἔχει χώραν γλώττης, διὰ δὲ τὸ ἔνυδρος ἄγλωττος). O ponto é que a causa das emoções são concepções, às quais Aristóteles se refere com uma variada terminologia: phantasiai , hupolêpseis, doxai, logoi . 24 . Na tradução que proponho, διαφέρουσι πρὸς τὰς κρίσεις refere-se não ao fato que um homem pensa algo, outro homem pensa outra coisa, mas que, em um estado emotivo, o mesmo homem que pensava de um modo pode passar a pensar de outro, caso ocorra contaminação em suas crenças por conta da emoção em que se encontra. Para efeitos de comparação, forneço outras traduções: (a) Rapp: “Die Emotionen sind die Dinge, durch welche sich (die Menschen), indem sie sich verändern, hinsichtlich ihrer Urteilen unterscheiden und welchen Lust oder Schmerz folgt”; (b) Grimaldi: “‘all these modifications because of which men undergoing a change [μεταβάλλοντες is intransitive] differ in respect to the judgments they make’. This is to say that an emotion introduces an alteration within the person which affects the critical faculty of the judgment” (não entendo seu modifications ). Grimaldi commenta, ao distinguir as emoções dos sentimentos de dor e prazer: “emotions are more complex affective states of stronger intensity occasioned by a stimulus which causes a psychic state accompanied by physiological changes in the body. In order for the stimulus (object or situation) to arouse an emotion, it must be seen by the person as beneficial or harmful; thus some kind of knowledge is prerequisite for an emotion” (II 15). Por outro lado, a tradução de Chiron me parece difícil de sustentar: “les passions qui conduisent à modifier ses jugements sont celles qui s’accompagnent de peine ou de plaisir”. Ora, toda emoção provoca mudanças no corpo e todas podem modificar o juízo (mas não é necessário que o façam). Chiron assim comenta sua tradução: “le pathos est un état consécutif à une sensation , état d’intense activité psychique accompagné de modifications physiologiques et d’une espèce de connaissance fruste ” (p. 263 ; itálicos meus). Temo que não somente sua tradução, mas também sua interpretação da natureza das emoções seja de difícil sustentação. 25 . Sobre este últipo ponto, ver, em direção contrária, Jamie Dow, Aristotle’s Theory of the Emotions: emotions as pleasures and pains , in M. Pakaluk e G. Pearson, Moral Psychology and Human Action in Aristotle , Oxford University Press 2011, pp. 47-74.

26 . John Cooper, An aristotelian theory of emotions , p. 247. 27 . Aristóteles está, assim, a distinguir entre erro e engano, fenômenos vizinhos, mas distintos: a imaginação nos faz errar (mas o juízo pode consertar o erro, e frequentemente o corrige), ao passo que as emoções nos colocam no domínio do engano, que persiste durante o estado emotivo, porque procedem de crenças e podem mesmo transfigurar as percepções. Referências Bibliográficas Aubenque, Pierre. Sur la dé finition aristotélicienne de la colère . Revue Philosophique de la France et de l’Etranger 147, 1957. Bedford, Errol. Emotions , Proceedings of the Aristotelian Society 57 1956-7, pp. 281-304. Bonitz, H. Über πάθος und πάθημα im Aristotelischen Sprachgebrauche (Sitzungsberichte der philolosophisch-historischen Classe der kaiserlichen Akademie der Wissenschaften LV 1 1867, pp. 13-55. Chiron, P. Aristote  Rhétorique . Flammarion 2007. Cooper, John. An aristotelian theory of emotions , in Reason and Emotion , Princeton University Press 1999, pp. 406-423. Cope, Edward. The Rhetoric of Aristotle , ed. por John Sandys , Cambridge University Press, 1877. Dow, Jamie. Aristotle’s Theory of the Emotions: emotions as pleasures and pains , in M. Pakaluk e G. Pearson, Moral Psychology and Human Action in Aristotle , Oxford University Press 2011, pp. 47-74. Dow, Jamie. Feeling Fantastic Again – Passions, Appearances and Belief in Aristotle, Oxford Studies in Ancient Philosophy 46 2014. Dow, Jamie. Feeling Fantastic? Oxford Studies in Ancient Philosophy 37 2009. Fortenbaugh, W. Aristotle on Emotion , 2 nd ed 2002. Grimaldi, William. Aristotle – Rhetoric II , Fordham University Press 1988. Hicks, R. Aristotle De Anima , Cambridge University Press 1907. James, William. The Principles of Psychology , 2 vols., New York 1890. James, William. What is an Emotion ? Mind 9 1884, pp. 188-205. Kirwan, C. Aristotle – Metaphysics Books Γ, Δ, and E , Clarendon 1993, 2 nd . edition. Pitcher, George. Emotion , Mind 74 1965, pp. 326-346.

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Malebranche). Mas no homem, a afirmação constante do livre arbítrio e de sua superioridade sobre todos os outros bens (é o soberano bem do homem, diz Descartes na grande carta a Cristina de 20 de novembro de 1647) ³ não impede o reconhecimento da Providência de Deus e, mesmo, a preordenação de todas as coisas, incluindo nossos pensamentos e os movimentos de nossa vontade. De uma certa maneira, essa é uma consequência direta da fulgurante teoria da livre criação das verdades eternas; pois, se até as verdades que são ditas eternas são criadas por Deus, então, com mais forte razão, deve-se dizer o mesmo dos pensamentos que entram no espírito de um homem e dos movimentos voluntários. Mas, então, como conciliar (se, todavia, for necessário) essa determinação absoluta de todas as coisas com a existência de um livre arbítrio do qual Descartes afirma, a propósito da vontade “que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e a semelhança de Deus” ⁴ ? Não parece que Descartes tenha se inquietado com esse conflito ou antinomia antes dos Princípios da Filosofia (p. I, art. 41), ainda que esse problema tenha sido amplamente discutido entre os teólogos desde, pelo menos, Santo Agostinho ⁵ , que põe o problema da conciliação em termos idênticos (“...abraçamos uma e outra verdade, uma e outra confessamos fiel e sinceramente — uma para bem querer, a outra para bem viver. (...) não seria o destino, nem a fortuna, nem outra qualquer causa, mas que seria o próprio homem que iria pecar”) ⁶ . Todavia, a partir dos Princípios e da correspondência que se seguiu com Elisabeth, que lhe observou diversas vezes o caráter incompreensível dessa dupla afirmação, Descartes precisará se explicar de modo preciso sobre a nãoincompatibilidade dessas duas teses ⁷ , que decorrem, uma e outra, diretamente de duas ideias inseparáveis: de Deus e da alma. Ele deverá, segundo a famosa formulação de Bossuet, “segurar fortemente as duas pontas da cadeia, ainda que não se veja o meio por onde o encadeamento continua” ⁸ . Ele não irá, contudo, se engajar na via especulativa ou teológica para resolver essa questão de maneira puramente conceitual. Ele busca, antes, separar ordens de coisas ou diferentes planos de racionalidade e fazer de uma tese de teologia (mais do que de metafísica) um uso muito mais prático do que especulativo (donde a surpreendente presença dessa tese em um tratado das paixões...), destinado a rejeitar o mito ou a quimera do destino ou da fortuna, de modo a conferir à tese do livre arbítrio um extensão ainda maior ao lhe atribuir, como nunca havia feito até então, uma significação e uma destinação práticas. 1. O livre arbítrio como experiência certa e constante “É preciso observar”, diz Hobbes sobre a Quarta Meditação , “que a liberdade do franco-arbítrio é suposta sem ser provada, ainda que essa suposição seja contrária à opinião dos calvinistas” (AT VII, 190; AT IX, 148). Ao que Descartes responde, resumindo em uma frase sua concepção de liberdade e de seu modo de comprovação: Eu nada supus ou adiantei no que toca à liberdade, senão o que nós sentimos todos os dias em nós mesmos e que é muito conhecido pela luz natural. [...] Mas ainda que, talvez, haja muitos que, quando consideram a preordenação de Deus, não podem compreender como nossa liberdade pode

subsistir e se conciliar com ela, não há, porém, ninguém que, considerando apenas a si mesmo, não sinta e não experimente que a vontade e a liberdade são uma mesma coisa, ou melhor, que não há diferença entre o que é voluntário e o que é livre. E não é aqui o lugar de examinar qual é a opinião dos calvinistas a esse respeito. ( Respostas às Terceiras Objeções , AT VII, 190-191; AT IX, 148; ALQUIÉ II, p. 624) Há, todavia, um ponto – e não qualquer um – sobre o qual os dois filósofos concordam: a afirmação da onipotência de Deus e a predeterminação de todos os eventos do mundo e de todos os pensamentos dos homens. No fundo, qual é a diferença entre a tese de Hobbes e a de Descartes? Esse declara que nenhum pensamento ocorre na mente de um homem sem que tenha sido querido por Deus, o que é o mesmo que o que Hobbes afirma sobre a necessidade. Descartes não opõe, portanto, a necessidade à liberdade, visto que essa não impede aquela. Mas distingue dois planos: o da necessidade divina e o do livre arbítrio humano. A questão é, portanto, menos a da liberdade enquanto tal do que a do seu modo de apreensão: ele é específico a esse tipo de realidade ou deve ser aquele que se aplica igualmente a todas as coisas segundo o modelo de uma racionalidade unívoca? (Reencontramos aqui, de certa forma, a questão das três noções primitivas: há lugar para uma noção própria da união ou não há senão duas ideias: a da alma e a do corpo?). Esse ato originário que é o ato de querer uma coisa em lugar de outra, de afirmar ou de negar, de perseguir ou de fugir, supõe a independência do homem em relação à natureza considerada como totalidade das coisas existentes. Certamente, o homem faz parte da natureza criada por Deus e, nessa qualidade, não podemos considerá-lo à parte, como se não houvesse senão ele no mundo e que ele devesse, nesse sentido, receber um máximo de perfeição. E mesmo que Descartes pareça não ter concebido uma causalidade universal em rede, como Pascal, Hobbes ou Espinosa, mas uma causalidade apenas transitiva, ele, talvez mais ainda do que outros filósofos do seu tempo, afirmou a necessidade que rege as criaturas finitas do universo, enfatizou o império da Providência, a infalibilidade da presciência divina, em termos bem conhecidos, e afirmou, ao mesmo tempo, a existência do livre arbítrio e o caráter indubitável da experiência que dele fazemos. No entanto, ele tem o cuidado de preservar o que, em termos pascalianos, chamaríamos de diferenças de ordens ou pluralidade irredutível dos pontos de vista. “Os movimentos do livre arbítrio são conhecidos unicamente por Deus”, escreve Descartes na carta de 3 de novembro de 1645 (AT IV, 334), na qual separa as duas ordens de coisas : “a independência que nós sentimos em nós mesmos não é incompatível com uma dependência que é de outra natureza, segundo a qual todas as coisas são sujeitas a Deus”. Descartes quer dizer que há razões ou causas para as nossas ações que procedem de nosso livre arbítrio (as ações que fazemos espontaneamente e sem que nos sintamos constrangidos, de acordo com a Quarta Meditação), mas que elas são conhecidas apenas por Deus e que, consequentemente, devemos fazer como se elas não existissem, uma vez que as ignoramos. Jogo duplo: nada pode ser subtraído da onipotência de Deus, mas nós não temos nada com que nos preocupar, porquanto, de todo modo, isso nos escapa completamente. Efeito

benéfico da nossa finitude: ela nos dissuade de querer participar dos conselhos de Deus e de sustentar, juntamente com ele, o peso do mundo; mas, ao mesmo tempo, autoriza-nos a afirmar nosso livre arbítrio, pois sabemos, por um saber finito, que temos um livre arbítrio e que não temos o conhecimento infinito, único capaz de ligar nossas ações à ordem inteira do universo. A certeza que temos da preordenação de Deus é uma certeza, por assim dizer, cega; ela tira sua evidência daquela da ideia de Deus da qual ela deriva, como a consequência de uma premissa indubitável (“uma verdade de simples consequência”, diz Vuillemin muito bem, “... que já se assemelha a um postulado racional, ao objeto de uma fé”) ⁹ . No entanto, nós o sabemos sem compreendê-lo, sabemos que não se pode compreendê-lo e que seria mesmo impertinente ¹⁰ querer ou pretender compreendê-lo. Ao passo que o livre arbítrio é conhecido sem provas, é experimentado mais claramente do que qualquer outra coisa e pode ser tomado como uma noção primeira, diz Descartes, pois ele o é verdadeiramente. Por um lado, então, uma certeza deduzida da ideia de Deus, a qual (ela, e apenas ela) é um dado fundamental do entendimento; de outro, uma certeza que é indistinguível da consciência de si. A independência do livre arbítrio é de outra ordem (ou “de outra natureza” ¹¹ ) que a dependência absoluta do homem enquanto criatura de Deus. Por que outra ordem ? Porque essa independência que experimentamos, de modo diferenciado, aliás, na experiência da indiferença, no reconhecimento da verdade ou na generosidade não é separável da consciência que temos de nós mesmos. Ao passo que a dependência que sabemos ser necessariamente a da criatura em relação a seu criador não é da ordem da experiência, mas da ordem da necessidade racional; ela é uma consequência tirada do princípio que constitui a ideia de Deus, inseparável da ideia de mim mesmo ( Terceira Meditação ). Logo, Descartes está perfeitamente autorizado a dizer, na Quarta Meditação e, com ainda mais força daí em diante ( Princípios , Carta a Cristina de 20 de novembro de 1647), que é ela, a vontade ou liberdade de arbítrio, que lhe faz conhecer que ele traz a imagem e a semelhança de Deus. Se a liberdade, entendida como o uso de nosso livre arbítrio, é, de fato, uma noção primeira como o disse Descartes (“o senhor tem razão em dizer que somos tão certos do nosso livre arbítrio quanto o somos de qualquer outra noção primeira; pois trata-se verdadeiramente de uma”) ¹² , essa noção não pode ser conhecida do mesmo modo que uma ou outra das duas noções primitivas do corpo e da alma, mas como a terceira noção, a da união da alma e do corpo, muito claramente conhecida pelos sentidos, pelas conversas ordinárias, pelas experiências repetidas e infalíveis. Há, de fato, um tipo de certeza que é própria à experiência da liberdade como àquela da união da alma e do corpo. Fazer a experiência da união da alma e do corpo é sentir a ação, nos dois sentidos, de uma substância sobre a outra: a força que a alma tem de mover o corpo e, reciprocamente, o poder do corpo de afetar a alma, dando-lhe a ocasião de ter sentimentos e paixões. Se a liberdade do homem consiste na experiência da ação de sua vontade para colocar o corpo em movimento, para ir e vir livremente, i. e por si mesmo, mas também em não consentir às ações ditadas pelas paixões, tal como golpear em um movimento súbito e violento de raiva, então a experiência da

liberdade que é, ao mesmo tempo, experiência de um poder, de uma ação eficaz por intermédio do nosso corpo sobre as coisas exteriores, experiência da resistência das coisas (aí incluído o nosso corpo) a esse poder, constitui a prova permanente da união da alma e do corpo. É ela, a liberdade, mas liberdade como poder, que permite conceber claramente a união da alma e do corpo com uma noção primitiva distinta das duas outras. A liberdade com o poder de agir prolonga e completa a liberdade como poder de escolha entre dois contrários: sem este poder da alma de agir sobre e com o corpo ao qual ela está intimamente ligada haveria ainda uma liberdade de escolha? Essa não pressupõe aquela como condição factual do seu exercício no mundo? Assim, não há em Descartes um equivalente do coração pascaliano, que conhece de uma só vez e com certeza algo de que o entendimento não chega a fazer uma ideia clara e distinta? Ver, a este respeito, a interessante passagem das Regulae sobre os diferentes tipos de espontaneidade (de uma “outra ordem” aqui também?): “É por impulso que compõem os seus juízos sobre as coisas aqueles que se deixam levar espontaneamente a alguma crença, sem serem convencidos por razão alguma e não estando a isso determinados senão por alguma potência superior, ou pela sua própria liberdade , ou pela disposição da sua fantasia: a primeira nunca engana, a segunda, raramente e a terceira, quase sempre” ¹³ (ver também a Carta a Silhon sobre a maneira de conhecer Deus nessa vida). Mas não se trata aqui de Deus, mas de si (ver a expressão do artigo 154 das Paixões da alma : “Os que têm esse conhecimento e sentimento de si próprios [...]” ¹⁴ ; é uma modulação do conhecimento e não uma dualidade de modos de conhecer). Esse estatuto da experiência não é próximo da função e da competência do coração em Pascal? Mas porque há um sentimento vivo do livre arbítrio e não da necessidade (como em Hume, para quem a ideia de necessidade é produzida por uma impressão de reflexão, a tendência à inferência sendo produzida pelo costume)? Por que não nos sentimos determinados como nos sentimos indiferentes? De fato, sentimo-nos também impelidos, fortemente inclinados, como na crença e na fé. Mas esse sentimento de necessidade não é o contrário daquele de ser livre: ser inteiramente livre, sem ser jamais indiferente, como diz Descartes na Quarta Meditação . 1. A certeza da preordenação (bem mais do que da presciência) divina Apoiar-nos-emos nas seguintes passagens da primeira parte dos Princípios da Filosofia : Sabemos também com segurança que Deus ordenou previamente todas as coisas (artigo 40) ¹⁵ NT : [...] Enredar-nos-íamos em enormes dificuldades se tentássemos acordar a liberdade da nossa vontade com as suas ordens e se procurássemos compreender [ambas], isto é, abarcar e como que limitar com o nosso entendimento toda a extensão do nosso livre arbítrio e a ordem da Providência eterna. Como se pode acordar a nossa liberdade com a preordenação divina (artigo 41):

Não teremos qualquer dificuldade em evitarmos isso se tivermos em conta que o nosso pensamento é finito e que a omnipot ência de Deus é infinita e Lhe permite conhecer tudo o que é ou que pode ser desde toda a eternidade, como foi Sua vontade. Por isso, também temos inteligência suficiente para conhecer clara e distintamente que tal poder está em Deus, mas não a necessária para compreender a sua extensão de tal modo que possamos saber como permite que as a ções dos homens sejam inteiramente livres e indeterminadas . E, por outro lado, estamos de tal modo seguros da liberdade e da indiferença que existe em nós que não há nada que conheçamos mais claramente; assim, a omnipotência de Deus não deve impedir-nos de crer nela. Não devemos duvidar daquilo que observamos interiormente, pois por experiência sabemos que está em nós o facto de não compreendermos uma outra coisa cuja natureza sabemos ser incompreensível em si. (grifos do autor) Aceita-se essa ideia porque ela é incompreensível, porque ela nos excede e porque um pensamento finito não pode nada determinar a propósito de uma coisa que sabemos ser infinita. A passagem ao infinito é como a passagem a uma ordem de inteligibilidade superior, na qual as questões de ordem inferior (o finito) não procedem mais. O infinito destitui o finito de sua pretensão absoluta a compreender e a legislar (cf. Malebranche, que pensa poder dizer o que Deus pode ou não fazer). Se eu compreendesse o infinito, ele não seria mais infinito. Compreendo, então, que não devo buscar compreender como, na ordem do infinito, conciliam-se, ou mesmo se formulam, questões que colocamos porque nosso entendimento é finito. Não podemos, portanto, determinar o que Deus pode ou não fazer; podemos apenas dizer que ele pode fazer tudo porque isso é a ideia do infinito e porque essa ideia está em nós antes mesmo daquela do finito. Ele pode pois fazer, sem que saibamos como é possível (no fundo isso não nos diz respeito), com que seja compatível o que nos parece (porque somos finitos) contraditório: de um lado, a preordenação de todas as coisas no universo (logo, das ações humanas), que está implicada na noção de onipotência, não sendo, portanto, experimentada pelo pensamento, mas a ele imposto; de outro, o livre arbítrio, que, ele, é experimentado e, porque é experimentado, não pode ser negado. Não podemos negar a extensão da Providência porque não a compreendemos, mas, ao contrário, é porque não a compreendemos que devemos aceitá-la. Não compreender o infinito é justamente compreendê-lo como infinito ¹⁶ . Se eu compreendesse o que Deus faz, ele não seria mais Deus, assim como, ao compreender as verdades matemáticas, meu espírito as excede; elas são menos do que ele, como diz Descartes nas cartas de 1630. Se eu pudesse compreender clara e distintamente como se conciliam a preordenação e o livre arbítrio ou, inversamente, compreender por que é impossível e que uma das duas afirmações é necessariamente falsa, meu entendimento seria superior ao de Deus. Vendo, ao contrário, que é infinito, meu entendimento para no limiar desse problema e se abstém de torná-lo um problema para ele. Não lhe diz respeito; não fazemos parte do conselho de Deus... Mas essa suspensão do entendimento ou da vontade de compreender, essa abstenção que se assemelha à suspensão do juízo na dúvida hiperbólica, não envolve, contudo, o espírito na incerteza; assim como a radicalização da dúvida ao fim da Primeira Meditação não suspendeu a luz natural (por exemplo: o princípio de causalidade). Em outras palavras,

há coisas que a dúvida, mesmo a mais radical (hiperbólica), não pode pôr em dúvida: a luz natural e, aqui, o livre arbítrio, pois uma e outro são experimentados como verdades que precedem o juízo. Assim, a luz natural me mostra que deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto no efeito, que o nada não tem propriedades, etc. com tanta evidência quanto experimento em mim o poder de escolher uma coisa ou seu contrário sem ser constrangido por nenhuma força exterior. E, por outro lado, estamos de tal modo seguros da liberdade e da indiferença que existe em nós que não há nada que conheçamos mais claramente [ nos ita conscios esse, ut nihil sit quod evidentius et perfectius compreendamus ]; assim, a omnipotência de Deus não deve impedir-nos de crer nela. Não devemos duvidar daquilo que observamos interiormente, pois por experiência sabemos que está em nós o facto de não compreendermos uma outra coisa cuja natureza sabemos ser incompreensível em si. ¹⁷ A solução cartesiana pode parecer decepcionante porque ela consiste em nos dissuadir de querer procurar uma solução..., mas não é, contudo, da ordem do mistério, como em Pascal. Com efeito, a incompreensibilidade de Deus é uma razão positiva para não buscar compreender, e a existência do livre arbítrio é um dado mais claro do que nenhum outro. Não são dois tipos de verdades que conhecemos da mesma maneira. A primeira é conhecida pelo entendimento, que, sabendo que é finito, sabe, por isso mesmo, que não pode compreender o infinito. A segunda noção não parecer concernir à intelecção em sentido estrito. Cada vez que Descartes evoca o livre arbítrio, ele o faz em termos de experiência, de sentimento, como ocorre no caso da união da alma e do corpo, terceira noção primitiva que é bem melhor conhecida pelos sentidos e pelas conversas ordinárias do que pelo entendimento apenas. A causa da união é bastante difícil de compreender ou mesmo de conhecer; é quase incompreensível ¹⁸ , porque o fato da união parece ser contraditório com a distinção real entre a alma e o corpo ¹⁹ . 1. A Providência e o livre arbítrio contra a “Fortuna” ou o Destino Lembro a frase do artigo 38 da primeira parte dos Princípios : “... o poder que Deus tem sobre o universo é muito absoluto e livre” ²⁰ . Paradoxo assumido por Descartes: a marca da onipotência de Deus é o fato de que ela cria um sujeito livre, isto é, independente dela e, nesse sentido, semelhante a Deus. Se Deus não fosse todo-poderoso, o homem não seria livre (como na filosofia de Espinosa, na qual Deus segue as leis de sua natureza sem transferir nada de sua potência às suas “criaturas”). Tudo se deve à generosidade: assim como um homem generoso não pode desejar se submeter aos outros, Deus não pode querer uma criatura submissa e obediente. Mas que relação pode haver entre os dois remédios: o reconhecimento de uma providência e a generosidade, que parecem opostas (necessidade de um lado, bom uso do livre arbítrio do outro)? A solução não está em suas naturezas comuns enquanto remédio? Uma e outra representação ajudam a superar a experiência da decepção (eventos trágicos, fracasso de nossos empreendimentos, o curso da fortuna: tanto a necessidade quanto a liberdade se opõem à crença de que há uma fortuna à qual estamos submetidos, e que agiria como uma forma de divindade

caprichosa que manipula os seres humanos como marionetes). Quando dizemos que as coisas não poderiam ocorrer diferentemente do modo que ocorreram, liberamo-nos do peso da lamentação e do arrependimento. De fato, essa representação (mais do que tese ou verdade metafísica) possui uma função catártica como o teatro cujo exemplo permite nos colocarmos à distância do que nos acontece e nos afeta e de olhá-lo com o olhar do espectador. Há uma grande diferença entre a fatalidade, expressão de uma necessidade cega (ou acaso), e a providência, que supõe uma escolha e uma decisão que não temos os meios de compreender, em razão da finitude de nosso entendimento, e que não devemos, pela mesma razão, tentar compreender, o que nos desviaria do que temos a fazer nesse mundo. Questão: por que o sujeito cartesiano se dá a si mesmo regras ou máximas de ação, se ele sabe que Deus as determinou de toda a eternidade? Como compreender desse ponto de vista a moral por provisão, em particular a terceira máxima dessa moral ²¹ ? Somos confrontados aqui não com uma dialética da necessidade e da liberdade, mas com uma estratégia de pensamento que consiste em reforçar a necessidade a fim de fazer aparecer mais nitidamente o domínio de ação da liberdade, pois se trata de duas ordens de consideração paralelas e não de um entrecruzamento e, portanto, de um conflito entre duas teses sobre a mesma coisa. A função da Providência e da necessidade que a acompanha ²² é desenraizar de nosso espírito a crença em uma fortuna, que seria uma espécie de mistura entre a necessidade e o acaso, e cujo efeito prático é de nos tornar dependentes das coisas exteriores, o que nos faz contentes ou descontentes conforme essas coisas nos sejam favoráveis ou desfavoráveis. Descartes procede aqui como na metafísica, onde decide tomar toda crença por falsa ou ilusória e suspender seu juízo até que tenha podido reconhecer com certeza o que é necessariamente verdadeiro. Ao sustentar, de uma maneira que Leibniz julgará ainda mais dura do que a tese calvinista ²³ , que Deus determinou tudo, até os menores de nossos pensamentos e de nossas ações ²⁴ , Descartes desmonta a crença em uma Fortuna caprichosa que nos torna dependentes das “coisas exteriores”. Isso lhe permite circunscrever, como faz no Discurso do Método , nosso poder nos limites de nossos pensamentos (ao invés de expô-lo “ao fora” e de arriscar perdê-lo): somente nossos pensamentos estão absolutamente em nosso poder. O fatum tem algo de positivo ao nos livrar da esperança estéril, da inclinação humana a esperar os favores da Fortuna e de se lamentar quando eles não ocorrem como se esperava O recurso cartesiano à ideia de Providência, concebida como preordenação e necessidade absoluta do curso dos acontecimentos, não tem sobretudo um valor ansiolítico? Descartes não espera dessa ideia que ela tranquilize o espírito? Que ela o livre da preocupação de encontrar um sentido em tudo que nos acontece, para o bem ou para o mal? De acordo com a moral por provisão e com a ambição de encontrar enfim uma filosofia “mais prática do que especulativa”, Descartes substitui a questão teológica do sentido da vida ou da história pela questão mais prática (e também mais antiga) de saber como conduzir sua vida (“ quod vitae sectabor iter? ”). A ideia de um Deus todo-poderoso, que confere à natureza suas leis, suprime a crença na potência da natureza ²⁵ ; essa mesma ideia, sob o nome de Providência, suprime a crença na fortuna ²⁶ , equivalente de uma natureza que rege mais particularmente o curso dos negócios humanos. Nesses dois

planos, a determinação absoluta (as leis da natureza, os decretos sobre as ações humanas) libera o espírito da crença em um poder oculto e da busca de um sentido. De certa maneira, a ideia de que tanto os fenômenos naturais quanto as ações humanas são determinadas por Deus, e não por potências anônimas e ocultas, confere ao conhecimento da natureza e à ação humana uma autonomia que não teriam se nos inquietássemos com os signos de uma razão na natureza, ou de uma razão na história. Sendo Deus o único autor das leis e dos acontecimentos humanos, não pode haver causas segundas que sejam verdadeiras causas (Deus não é apenas causa universal, mas também causa total: nada pode acontecer sem sua vontade) ²⁷ . Pode-se presumir que ocorre com os acontecimentos o que ocorre com os fenômenos naturais, os quais resultam todos de um pequeno número de leis e não têm poder ou eficácia própria. Com a diferença, contudo, que as ações humanas não são, como os fenômenos naturais, todas inteiramente determinadas, mas há algumas que dependem do livre arbítrio dos homens ²⁸ . O problema é que, evidentemente, nós não podemos saber e não saberemos jamais quais são as ações que Deus quis tornar dependentes do nosso livre arbítrio. Nesse caso (estratégia tipicamente cartesiana), devemos fazer como se elas o fossem todas, ao menos em parte, dependentes de nós, mesmo que (suposição extrema, como frequentemente em Descartes) nossas ações sejam secretamente urdidas pela Providência, que pode em certos momentos assumir a forma do destino, como o mostra o célebre exemplo dos duelistas da carta a Elisabeth de janeiro de 1646. Descartes compara a ação da preordenação de Deus com a de um rei que, tendo proibido os duelos em seu reino, envia dois cavalheiros, que ele sabe serem inimigos, a uma mesma cidade, onde não deixarão de se encontrar e de duelar, infringindo, assim, o seu decreto. Ora, mesmo nesse caso, em que pareceria que a vontade de duelar tenha sido predeterminada pela ação do rei e que era necessário que os dois homens duelassem, diz Descartes de modo um pouco surpreendente: “é voluntariamente e livremente que eles duelam”, e podem, a justo título, ser punidos... Note-se o caráter hiperbólico do exemplo, que nos faz pensar na hipótese de um Deus enganador ou na ficção de um gênio maligno (maquiavelismo). Podemos, com efeito, maximizar a determinação da ação, o que se faz ainda mais ao colocar Deus no lugar do rei, porém, não se retirará do homem o uso de seu livre arbítrio e a inteira responsabilidade de seus atos. Descartes vai ainda mais longe nessa carta ao afirmar que, antes de nos ter enviado a esse mundo, Deus soube exatamente quais seriam todas as inclinações da nossa vontade, que foi ele mesmo que as colocou em nós e dispôs todas as outras coisas que estão fora de nós para fazer com que tais e tais objetos se apresentassem aos nossos sentidos em tal e tal tempo, à ocasião dos quais ele soube que nosso livre arbítrio nos determinaria a tal e tal coisa. E ele assim o quis, conclui Descartes do mesmo modo que no caso da criação das verdades das cartas de 1630, mas não quis por isso constranger a vontade (AT IV, 353-354). Não é uma só e mesma tese? As verdades criadas por Deus são todas mentis nostris ingenitae , o que significa que elas são nossas, assim como também são nossas as inclinações de nossa vontade, que Deus conheceu antes que nós as atualizássemos. Deus não pôs essas verdades e essas inclinações como coerções que impõem ao ser humano seus pensamentos e seus atos, como um destino do qual ele não poderia se esquivar. Ele lhe deixou também a possibilidade e a responsabilidade de usá-

las, para o bem ou para o mal, e é nisso que consiste a generosidade, a mais alta virtude, o outro remédio, depois daquele que é a reflexão sobre a Providência divina, contra esses “desejos vãos”, que nos desviam da única coisa que nos torna dignos de estima: o uso de nosso livre arbítrio ²⁹ . Uma reflexão do Diário de Kierkegaard (citado sem referência por Sartre) caracteriza bem esse “paradoxo”: A omnipotência deveria tornar dependente. Mas, caso se queira bem refletir sobre a onipotência, ver-se-á que é necessário, precisamente, que ela implique, ao mesmo tempo, o poder de se retirar, a fim de que, dessa forma, a criatura possa ser independente (...). Pois a bondade está em doar sem reserva, mas de modo a, retomando-se como onipotência, tornar independente; só ela pode produzir do nada o que tem consistência em si, do fato de que a onipotência não cessa de se retomar (...) Se o homem tivesse de antemão o mínimo que fosse de existência autônoma diante de Deus (enquanto matéria), Deus não poderia torná-lo livre. ³⁰ Conclusão Para o que a representação da necessidade e a generosidade são remédios ? Assim como no Discurso do Método , Descartes não recomenda a resignação. Sua ideia, desde o Discurso às Paixões da Alma , é que, ao reduzir o campo das possibilidades da ação, essa se torna eficaz e, por isso, satisfatória para aquele a faz. Rejeitando como impossível tudo o que não é alcançável por nossas próprias forças, ele circunscreve nossos desejos no círculo das coisas possíveis. Mas não nossas ações, pois elas concernem inevitavelmente às coisas que não dependem de nós e devem, consequentemente, ser conduzidas com prudência e razão. A ideias da Providência reduz o campo do desejável, não o da ação; ela não desempenha o papel de uma regra de ação, ou antes de inação, mas, antes, o de uma representação que nos ajuda a superar as vicissitudes da fortuna e, assim, reduzir sua importância. De forma semelhante, como que concorrente, a generosidade, que é, ela também, da ordem da representação, torna essenciais as razões de se estimar a si mesmo, e acidentais aquelas que dizem respeito ao curso da fortuna (sucesso, poder, riqueza, reconhecimento: as razões do indivíduo hobbesiano...). A representação da Providência e a da generosidade formam, então, como que bastiões do bom uso do livre arbítrio, libertado da crença quimérica no poder da fortuna, equivalente ao destino, ao menos no sentido vulgar. Uma comparação ou confronto entre Descartes e Kant sobe o problema da antinomia e da dialética da razão poderia nos esclarecer. Por que, em Descartes, a ideia de uma dialética da razão ou de uma antinomia não pode nem mesmo ser colocada? Por que a razão não pode se contradizer a ela mesma? Por uma razão que posso somente indicar aqui ³¹ . Lembremos uma célebre passagem da terceira seção dos Fundamentos da metafísica dos costumes sobre a dialética da razão: [...] nesta bifurcação, a razão acha a via da necessidade natural muito mais desimpedida e útil que a da liberdade de um ponto de vista especulativo, no entanto, sob o ponto de vista prático, a trilha da liberdade é a única em que é possível fazer uso da razão nas nossas ações e omissões; por isso, torna-se

impossível à mais sutil filosofia e à mais comum razão humana eliminar a liberdade por meio de argúcias. ³² Pode-se perguntar se não é uma “dialética” do mesmo gênero que Descartes constata entre a tese da providência e a do livre arbítrio, com única diferença de que não se trata de uma dialética, mas de uma separação entre duas ordens de coisas, de onde emergem duas maneiras de compreender ou de legitimar: o caráter necessário da preordenação divina das ações humanas decorre da ideia mesma de Deus, como todo-poderoso; o caráter manifesto do livre arbítrio é experimentado por cada um. De um lado, uma certeza intelectual ou metafísica, de outro, uma evidência sensível; mas não há que se escolher entre uma e outra. É bastante análoga à dificuldade de conciliar a distinção substancial da alma e do corpo e sua união, ela também, substancial: compreendê-las a uma só vez como duas e como uma única (esse tema das primeiras cartas a Elisabeth está na origem da doutrina das três noções primitivas). Distingo, diz Descartes, tanto quanto posso, uma coisa da outra: presença alternada dos objetos e dos conceitos, sem “síntese” em uma unidade superior. Filosofia da distinção, e não filosofia da totalização. As verdades, os objetos, as ideias permanecem distintos uns dos outros. Eles não se fundem em um todo dialético. Como a filosofia de Kant, a de Descartes, ou antes, a filosofia para Descartes, reencontra o senso comum ³³ quando se trata “dos fins essenciais da natureza humana”. Tradução de Lia Levy Revisão da tradução: Marcos André Gleizer 1 . NT Para a tradução das obras mais citadas no texto, utilizarei as seguintes edições em língua portuguesa: Princípios da Filosofia . Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1997 (referida por JOÃO GAMA), escolhida por traduzir o texto completo da versão francesa da obra, a mesma utilizada pelo autor ao longo do texto; Descartes . Coleção “Os Pensadores”, 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (referida por PENSADORES). As demais serão mencionadas individualmente; quando não mencionada a fonte da tradução, essa é de minha responsabilidade e feita a partir da versão dos textos citadas pelo autor. Para uma tradução da primeira parte dos Princípios da Filosofia , feita a partir da versão original latina, ver Princípios da Filosofia. Primeira Parte . Trad. Guido de Almeida, Raul Landim et al. Coleção “Philosophia”. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002. 2 . Carta a Mersenne de 15 de abril de 1630 (AT I, 145), citada segundo a tradução de Marcos Gleizer em: “Textos de Descartes sobre a livre criação das verdades eternas”. Analytica , v. 16, n. 1-2, p. 78, 2012. As indicações AT e ALQUIÉ referem-se a: Œuvres de Descartes , ed. Ch. Adam e P. Tannery, 11 tomos (13 v.). Paris: Vrin-CNRS, 1969 (reedição com nova apresentação em 1996) e R. Descartes, Œuvres philosophiques . Ed. F. Alquié, 3 v., Paris: Garnier, 1963-1973. 3 . AT V, 81-86. 4 . Quarta Meditação ; AT, IX, 45; ALQUIÉ II, p. 461; PENSADORES, 118.

5 . Santo Agostinho. A Cidade de Deus V, X, in: Œuvres , t. II, Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, pp. 190-191, 2000; ver a discussão sobre Cícero no início da p. 184, IX). 6 . A Cidade de Deus. Tradução de J. Dias Pereira, 2ª edição, Lisboa: Calouste Gulbenkian, V, X, p. 495, 1996). 7 . Cartas de Elisabeth a Descartes de 28 de outubro de 1645 (AT IV, 324) e de 30 de novembro de 1645 (AT IV, 336). 8 . Traduzido da passagem de J.-B. Bossuet, Traité du Libre Arbitre . Texto apresentado e anotado por A. Hupé. Houilles : Éditions Manucius, capítulo IV, p. 74, 2006. Cf. J. Laporte, Études d’histoire de la philosophie française au XVIIè me siècle , Paris: Vrin, p. 38, 1953. 9 . J. Vuillemin. Nécessité ou contingence, l’aporie de Diodore et les systèmes philosophiques . Paris: Les Éditions de Minuit, p. 226, 1984. 10 . A palavra é usada por Elisabeth, na carta de 28 de outubro de 1645 (AT IV, 324), e por Descartes, na carta de 15 de setembro de 1645 (AT IV, 292): “entrando em uma presunção impertinente, queremos participar do conselho de Deus e assumir com ele a tarefa de conduzir o mundo”. 11 . Carta a Elisabeth de 3 de novembro de 1645 (AT IV, 333). 12 . Carta a Mersenne de dezembro de 1640; ALQUIÉ II, p. 288. Ver também o artigo 39 dos Princípios da Filosofia : “...é evidente que possuímos uma vontade livre, que pode ou não dar o seu consentimento, e isso pode ser considerado uma das noções mais comuns” (JOÃO GAMA, p. 41). 13 . Regra XII, AT X, 424; ALQUIÉ I, pp. 150-151; Regras para a direção do espírito . Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, p. 26, 1989. 14 . PENSADORES, p. 276. 15 . NT JOÃO GAMA, p. 41. 16 . Cf. E. Levinas: “… essa ausência do outro é precisamente sua presença como outro” ( Le temps et l’autre. Paris: P.U.F., p. 89, 1983). 17 . Princípios I, 41 (AT IX-2, 42; JOÃO GAMA, p. 41). 18 . Cf. cartas a Arnauld e a Elisabeth. 19 . Ver Princípios da Filosofia I, os seguintes artigos: “mesmo que Aquele que nos criou fosse todo-poderoso, e mesmo que sentisse prazer em nos enganar, nem por isso, e sempre que nos aprouver, deixaríamos de sentir em nós a liberdade de evitar receber as coisas que não conhecemos bem...” (art. 6); “A principal perfeição do homem é ter livre arbítrio...” (art. 37); “A liberdade da nossa vontade conhece-se sem provas, apenas pela experiência que temos dela” (art. 39); “... estamos de tal modo seguros da liberdade e da indiferença que existe em nós que não há nada que conheçamos mais claramente...”, “Não devemos duvidar daquilo que observamos interiormente e que sabemos por experiência [ experimur ] estar em nós”

(art. 41) (JOÃO GAMA). Ver também a Quarta Meditação (onde, deve-se dizer en passant ) o verbo ‘ experior’ é frequentemente utilizado por Descartes: “eu a experimento ( experior ) tão vaga e tão extensa que ela não está encerrada em quaisquer limites”; “Resta tão-somente a vontade [ sive arbitrii libertas , expressão presente na versão latina] que eu sinto ( experior ) ser em mim tão grande...” (AT IX, 45; ALQUIÉ II, pp. 459-460; PENSADORES , p. 118); Respostas às Quintas Objeções feitas por Gassendi: “... isso [a indiferença da vontade] é tal que cada um deve antes sentir e experimentar em si mesmo do que se persuadir pela razão” (ALQUIÉ II, p. 825). 20 . JOÃO GAMA, p. 40. 21 . “...procurar sempre antes vencer a mim próprio do que a fortuna, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral, a acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos. De sorte que, depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. E só isso me parecia suficiente para impedir-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse adquirir, e, assim, para me tornar contente” (PENSADORES, p. 43). 22 . Esse ponto fica ainda mais claro nos artigos 145 e 146 do fim da segunda parte das Paixões da Alma. 23 . “Calvino jamais disse algo tão duro” ( Essais de théodicée . in: Die Philosophischen Schriften , hrsg. von C. I. Gerhardt, Bd. VI. Berlim: Weidman, § 164, p. 207, 1885 (Hildesheim: Olms, 1961). 24 . Carta a Elisabeth de 6 de outubro de 1645 (AT V, 314). 25 . “Saiba, portanto, que, por Natureza, não entendo de modo algum aqui alguma Deusa ou qualquer outra forma de potência imaginária, mas que me sirvo dessa palavra para significar a própria Matéria...” ( Tratado do Mundo , capítulo VII, ALQUIÉ I, p. 349. NT: para uma tradução diferente para a língua portuguesa da passagem, ver O mundo ou tratado da luz . Tradução de Érico Andrade. São Paulo: Hedra, 2008). 26 . Ver essa passagem do art. 145 das Paixões da Alma (“...e o que é a fortuna”): “...que cumpre opor [a providência] à fortuna para destruí-la como uma quimera” (PENSADORES, p. 269,). 27 . Ver Carta a Elisabeth de 6 de outubro de 1645, AT IV, 314). 28 . Ver essa passagem do art. 146 das Paixões da Alma : “... tudo é conduzido pela providência divina, cujo decreto eterno é de tal modo infalível e imutável que, excetuando as coisas que este mesmo decreto quis pôr na dependência de nosso livre arbítrio, devemos pensar que, com respeito a nós, nada acontece que não seja necessário e como que fatal...” (PENSADORES, p. 270). 29 . Paixões da Alma , artigos 152 e 153.

30 . J.-P. Sartre. Situations IX, L’universel singulier . Paris : Gallimard, p. 313-314, 1990. 31 . Ver P. Guenancia. La question de la vérité dans la philosophie de Descartes . In : Lire Descartes , 2a parte, capítulo VIII. Paris : Gallimard, pp. 454-491, 2000. 32 . E. Kant. Fondements de la mé taphysique des mœurs . In: Œuvres philosophiques . Edição publicada sob a direção de F. Alquié, t. II, Bibliothèque de la Pléiade, Paris: Gallimard, p. 327, 1985; Fundamentaçã o da metafísica dos costumes . Trad. e notas: Guido de Almeida. Coleção “Philosophia”, São Paulo: Discurso Editorial / Editora Barcarolla, pp. 381 e 383, 2009. 33 . Voir E. Kant. Critique de la raison pure . in : Œuvres philosophiques , Edição publicada sob a direção de F. Alquié, t. I, Bibliothèque de la Pléiade, Paris : Gallimard, p. 1384, 1980. Liberdade e imputabilidade em Kant Pedro Costa Rego UFRJ/PPGLM/CNPq É razoavelmente consensual entre os intérpretes do kantismo que o ponto nevrálgico da filosofia prática de Kant ¹ se situa no estabelecimento do princípio supremo da moralidade como um imperativo para nós , sujeitos agentes dotados de uma vontade imperfeitamente racional. Em poucas palavras, o desafio aqui é o de fornecer uma justificativa convincente do que Kant considera uma síntese apriorística expressa na lei moral como imperativo categórico: que nós, sujeitos agentes que nem sempre – porque não necessariamente – agimos por dever moral, apesar disso, ou justamente por isso, temos necessariamente o dever de o fazer, isto é, devemos nos comportar a partir do (e não meramente em conformidade com o) princípio de que a máxima da nossa ação deva valer sempre como princípio de uma legislação universal. No contexto do desenvolvimento desse problema fundamental da razão prática encontram-se pressupostos e corolários que a hermenêutica do kantismo tendeu a harmonizar, mitigando uma importante dificuldade que se trata nesta ocasião de tematizar: o problema da imputabilidade das decisões imorais. O primeiro dos pressupostos, baseado nas mais óbvias e intuitivas evidências e derivado analiticamente do projeto mesmo de fundamentação de um imperativo categórico, é o de que nós, sujeitos agentes, somos moralmente imperfeitos, isto é, estamos expostos à possibilidade da falta moral. Kant parece deixar claro diversas vezes que a lei moral, para uma vontade perfeitamente racional, não é imperativa, não sendo sequer um princípio sintético a demandar uma justificação por um tertius ² ; é simplesmente uma proposição analítica. A lei moral é um princípio prático derivado por mera análise do conceito de uma vontade que é apenas pura e infalivelmente razão prática. Portanto, se a questão da justificação da

síntese a priori contida no imperativo categórico é uma questão que faz sentido, agentes a que se refere esse imperativo são agentes que podem se desviar – mais que isso, desviam-se de fato ³ - do comando da racionalidade moral. Em uma palavra, decisões e ações moralmente condenáveis existem e “nós” somos os seus autores. O segundo pressuposto é o de que aquela imperfeição da vontade a que se dirige a lei moral como imperativo se deve à presença - e ao desempenho de um certo papel - da sensibilidade no processo deliberativo. Não agem necessariamente por dever moral, mas apenas devem o fazer, aqueles seres que são, além de racionais, sensíveis. No encaminhamento que Kant dá ao problema ainda na primeira Crítica , a formulação é a de que, como seres imperfeitos e finitos, somos dotados de um arbítrio que, ainda que não seja bruto, animal, e sim liberum ( sic .), é um arbítrio liberum “ sensitivum ”, caracterizado como afetado ( affiziert ), mas não necessitado ( genö tigt ), por impulsos sensíveis ( sinnliche Antriebe ) (A534/B562 e A803/B830). Como premissa para o argumento que visa a estabelecer a validade do princípio da moralidade, a tese parece perfeitamente aceitável, na medida em que uma vontade puramente racional (sem qualquer “influência” de sensibilidade), por não poder deixar de deliberar segundo a racionalidade do princípio moral, não está sujeita a ele em sua forma imperativa. Mas no que exatamente a “presença” da sensibilidade torna a liberdade do arbítrio sobre a qual ela atua, é fonte de sérias dificuldades hermenêuticas. Finalmente, um importante corolário do estabelecimento da lei moral como imperativo categórico parece ser o de que, na condição de autores legítimos e únicos de decisões e ações que confrontam a lei moral, nós somos imputáveis por elas e responsáveis por sua imoralidade. O motivo reside na definição mesma que Kant fornece para a imputabilidade ( Zurechnung ), a saber, como “o juízo pelo qual alguém é considerado como autor originário ( causa libera ) de uma ação” ⁴ . Sendo a liberdade do ato da deliberação ou da instância que o gera condição necessária e suficiente da imputabilidade, e sendo, ademais, essa mesma liberdade ratio essendi da moralidade, que é, para aquela liberdade, ratio cognoscendi ⁵ , segue que a solução do problema fundamental da filosofia prática – justificação da moralidade como imperativo para nós - é ipso facto uma justificação de que somos sujeitosagentes livres e por isso responsáveis por todas as nossas decisões, inclusive as que colidem com a moralidade. Acredito que as três posições conceituais acima que orbitam a “prova” kantiana da moralidade imperativa sejam fiéis ao espírito e a uma boa parte da letra da filosofia prática de Kant, considerando o conjunto dos textos da década de 1780 e a obra madura a partir de 1793. Entretanto, a maneira como elas são entendidas e compatibilizadas no âmbito da interpretação corrente do kantismo tende a ser essencialmente problemática. 1 – Vontade, arbítrio e a instabilidade conceitual na definição de liberdade prática relevante para o problema da imputabilidade das decisões imorais O primeiro ponto para o qual eu gostaria aqui de chamar a atenção é que a reflexão kantiana sobre a imputabilidade do mal apresenta importantes evoluções e indecisões relativamente à natureza da liberdade que cabe à

instância deliberativa que deve responder por suas escolhas, bem como relativamente à própria natureza dessa instância deliberativa, identificada ora com a vontade ( Wille ), ora com o arbítrio ( Willkür ), ora simplesmente com o sujeito agente. Em boa parte da solução da terceira Antinomia, na Crítica da Razão Pura , o sujeito agente aparece como dotado de um arbítrio ( Willkür ) cuja liberdade em sentido positivo consiste em espontaneidade, e que é responsabilizado por suas decisões em função do princípio das possibilidades alternativas a que se acha submetido ⁶ . Em resumo, ele responde por suas escolhas na medida em que, não sendo um arbitrium brutum , ainda que seja sensivelmente “afetado” ( affiziert ), sempre poderia ter escolhido diferentemente. Mas nas obras fundacionais da moralidade, notadamente Fundamentação e Crítica da Razão Prática , assistimos ao estabelecimento do conceito de autonomia como expressão da liberdade prática em sentido positivo e a um aparente deslocamento da instância deliberativa na direção da vontade ( Wille ) autolegislante. Ademais, fortes indícios textuais levam à conclusão de que, agora, nossa vontade é livre não exatamente (ou primordialmente) porque pode decidir diferentemente do que o fez, mas porque é sempre e necessariamente governada e determinada por um tipo de causalidade chamada racional, portanto, por uma legalidade que pertence a e provém dela mesma (autonomia), vontade, definida, justamente, como raz ão prática ⁷ . Se assim for, o que muitos intérpretes não deixaram de constatar é que a liberdade da vontade assim compreendida dificilmente funciona como fundamento da imputabilidade de decisões imorais. Mais que isso, sequer autoriza a possibilidade da escolha pelo mal, já que uma vontade que se define como razão (livre porque autônoma) não pode decidir, ao menos não sem contradição, contra sua própria natureza racional. A impugnação da imputabilidade do mal moral daí decorrente á assim formulada por Allison: “Uma vez que a vontade é razão prática, todas as ações que não são moralmente motivadas não passam de meros ‘ bits of behavior ’, e de modo algum produtos genuínos de uma vontade” (Allison 1990: 95). A objeção remonta evidentemente a Reinhold, seu principal proponente, na sua segunda edição, de 1792, das Briefe über die Kantische Philosophie : “Da confusão entre nada mais do que a livre ação da razão prática, a qual é, com efeito, espontânea, mas não faz nada além de fornecer a lei, com a ação da vontade, a qual somente age como vontade pura na medida em que livremente adota essa lei, dessa confusão resulta nada menos do que a impossibilidade da liberdade para ações imorais. Tão logo se aceita que a liberdade da pura vontade consiste meramente na espontaneidade da razão prática, deve-se também admitir que a vontade impura, que não é determinada causalmente pela razão prática, simplesmente não é de modo algum livre” (Reinhold 1792: 268) ⁸ . Finalmente, provavelmente mobilizado por esse impasse, Kant parece reabilitar na década de 90 algo da concepção de liberdade da Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura e a ênfase no arbítrio como instância deliberativa relevante para o tema da imputação. No texto da Religião , na Metafísica dos Costumes e nas Lições de Ética , encontramos frequentemente a célebre e problemática distinção entre vontade ( Wille ) e arbítrio ( Willkür ), cuja presença parece expressar o interesse por encontrar um espaço conceitual para escolhas legitimamente livres,

imputáveis e não-contraditórias pelo mal moral. Nos termos de Allison, tratar-se-ia de “abandonar a conexão analítica entre autonomia e querer moral que é característica da Fundamentação (e mesmo da Crítica da Razão Prática ), introduzindo em seu lugar uma concepção pré-moral ou moralmente neutra de autonomia” (ALLISON 1990: 95) ⁹ . Mas isso, também aparentemente, ao preço de uma problemática duplicação da liberdade. Com efeito, na Metafísica dos Costumes lemos que “O arbítrio é portanto livre para fazer ou deixar de fazer o que a lei ordena . Mas a vontade é de um outro modo livre , porque ela é legisladora e não subordinada, nem à lei da natureza, nem a qualquer outra” (VAMS AA 23: 249, 8-10, meu grifo). Ou mesmo ao preço da supressão da liberdade da vontade. É o que Kant parece pretender na mesma obra, ao defender que “a vontade, que não se dirige a nada senão à lei, não pode ser dita nem livre, nem não livre, pois ela não se dirige a ações, mas imediatamente à legislação para as máximas das ações (portanto, é a própria razão prática), e por isso é simplesmente necessária e mesmo incapaz de ser necessitada. Apenas o arbítrio pode ser denominado livre” (MS AA 06: 226). Ao ainda talvez ao preço de um simples silêncio sobre no que deve consistir a liberdade do arbítrio que, segundo o testemunho da experiência, escolhe frequentemente o caminho da irracionalidade e da imoralidade. Sobre esse ponto, observe-se que para Jens Timmermann, caberia a Kant “uma franca admissão de fracasso” (TIMMERMANN, 2007: 164-7) na solução do problema da imputabilidade do mal moral. E para Paul Guyer, na mesma direção, o Kant das obras tardias de filosofia prática (notadamente na Religião ), apenas se esquiva (“ skirts ”) da questão fundamental da imputabilidade do mal moral, originada pela concepção de liberdade prática estabelecida nas obras fundacionais dos anos 80. Em sua formulação: “se a lei moral é a lei causal do Eu numênico, como o Eu numênico poderia alguma vez querer uma ação imoral (isto é, uma máxima imoral)? E ainda [...] como o eu fenomênico chegaria a poder mesmo parecer agir imoralmente?” (GUYER, 2009: 189) 2 – A “solução popular” ¹⁰ para o problema da imputabilidade do mal moral no kantismo: a desqualificação da radicalidade do problema O segundo ponto que eu gostaria de propor aqui é que, diante desse impasse e do caráter errático do texto kantiano no seu encaminhamento, a interpretação tradicional e quase unânime do problema da imputabilidade no kantismo fez a problemática opção hermenêutica pela substituição da vontade (intrinsecamente moral) pelo arbítrio (moralmente neutro), como se Kant sempre tivesse querido dizer, mesmo na Fundamentação e na Crítica da Razão Prática , que a liberdade prática consiste no poder de escolher a moralidade, e não em sua efetiva observância. Mas ao fazer isso, parecem ter descuidado do fato de que a neutralidade moral do arbítrio que criaram precisa implicar também sua pré-racionalidade, bem como sua consequente incapacidade de operar escolhas segundo padrões de justificação. Assim, ao fim e ao cabo, tentaram explicar a responsabilidade do sujeito agente por suas escolhas imorais adotando uma concepção de liberdade prática autocontraditória: uma liberdade que deveria permitir ao agente, entendido como o arbítrio, escolher - segundo padrões de justificação racional e imputável - submeter-se à irracionalidade do sensível, ao princípio da felicidade e à satisfação das inclinações em situações de conflito moral. Ou ainda: para mostrar que somos responsáveis por decisões que em nós se

explicam apenas em função do caráter sensível de nosso arbítrio e da liberdade peculiar que lhe cabe, esses intérpretes acabaram adotando, explícita ou tacitamente, o pressuposto intrinsecamente contraditório de uma instância deliberativa moralmente e racionalmente neutra (para ser capaz de escolher o mal) que, não obstante, precisa operar nas escolhas a partir da racionalidade (para ser capaz de responder pela escolha do mal). No contexto desse diagnóstico, e contra o mainstream da interpretação “popular” do problema do mal no kantismo, subscrevo, ao menos metodologicamente, as teses de Paul Guyer, Jens Timmermann e Courtney Fugate que, em uníssono, defendem de saída que existe um grave problema de compatibilidade no kantismo entre a tese da imputabilidade das decisões imorais e a acepção de liberdade prática vastamente predominante nas obras fundacionais sobre o tema, a saber, como causalidade racional de uma vontade ( Wille ) autônoma definida como razão prática ¹¹ . Nesse sentido, a assimilação entre liberdade e moralidade – vale dizer, a tese de que uma vontade livre é uma vontade efetivamente procedendo segundo causalidade racional e, consequentemente, moral – não é, como quis toda a tradição de leitura na esteira de Reinhold, uma maneira desajeitada - ou mal explicada por alunos ¹² – de dizer que uma vontade livre é apenas aquela que pode escolher a moralidade (ou recusá-la). Em vez disso, é uma concepção de liberdade perfeitamente coerente com o pressuposto de que a instância deliberativa é essencialmente razão (prática) e que a imperfeição que a sujeita ao risco do mal moral consiste na contingência de sua exposição à sensibilidade na forma de sinnliche Antriebe . Mas se assim for, isto é, se o sujeito agente livre “tão somente enquanto inteligência é o Eu propriamente dito ( das eigentliche Selbst )”, de modo que a sensibilidade é pare ele um “outro” que, enquanto “natureza inteira do mundo sensível ( die ganze Natur der Sinnenwelt )”, é a fonte das “inclinações e impulsos ( Neigungen und Antriebe )”, a tal ponto que por elas ele não responde ( so gar, dass er die ersteren nicht verantwortet )”, resta necessário concluir que a decisão imoral será ou bem contraditória: razão deliberando pela des-razão, ou bem inimputável: a força da natureza assumindo o comando das deliberações. Enfim, que Kant recusa a chamada solução popular, parece bastante claro em sua resposta a Reinhold (quem primeiro a propôs) na Metafísica dos Costumes , segundo a qual um eventual deslocamento de ênfase da vontade para o arbítrio a fim de encaminhar a aporia da imputabilidade não pode vir acompanhado nem da construção de uma instância deliberativa autocontraditória, nem de um arbítrio dotado de liberdade de indiferença ¹³ – alternativas nas quais a interpretação tradicional acaba despercebidamente se enredando. 3 - O lugar da sensibilidade na especificação da liberdade do arbítrio humano O terceiro e último ponto que eu gostaria de defender aqui, também muito laconicamente, é que qualquer solução possível para a aporia da imputabilidade do mal moral precisa necessariamente passar por uma revisão do lugar e do papel da sensibilidade no processo deliberativo de um arbítrio imperfeitamente racional como o humano.

A primeira alternativa de solução aponta na direção de que a imputabilidade das decisões imorais exige de fato algum nível de flexibilização da relação analítica entre liberdade e moralidade (efetiva causalidade racional) – o que teria que ser encontrado na letra e no espírito do texto kantiano sem incorrer no equívoco de tornar contra-racional a razão prática (vontade) que decide, assim como no erro de tornar indiferente ( libertas indifferentiae ) o arbítrio ( Willkür ) que a parece substituir no papel de instância deliberativa propriamente livre nos textos da década de 1790. Mas para essa hipótese fazer sentido, a flexibilização da assimilação entre liberdade e efetiva moralidade, bem como o decorrente deslocamento conceitual da instância deliberativa, que – com alguma surpresa, do ponto de vista da letra do texto kantiano - precisaria deixar de ser a vontade ( Wille ) em sentido estrito, devem vir acompanhados de uma profunda e arriscada revisão do sentido da liberdade de escolha do arbítrio. Em poucas palavras, se o arbítrio precisa ser moral e racionalmente neutro para não ser contraditório na escolha do mal, sua escolha livre deve ser produzida a partir de uma sensibilidade (a saber, o “outro” da razão) que, “afetante”, embora não “necessitante”, não pode ser tomada como externa e heterogênea em relação ao Eu que decide, sob pena de a decisão não ser legitimamente imputável – isto é, ser apenas, nos termos de Allison, “ bits of behavior ” (Allison 1990: 95); trata-se, portanto, de uma sensibilidade que, não podendo ser “natureza”, deve ser constitutiva da essência do sujeito agente como livre, ou, de sua liberdade mesma. A hipótese interpretativa alternativa a ser avaliada parte do princípio de que não se deve aceitar a flexibilização da relação analítica entre liberdade, racionalidade e moralidade. Com isso, buscar-se-ia seguir ao pé da letra a resposta de Kant à objeção de Reinhold e sua explícita recusa da liberdade de indiferença que lhe seria uma consequência. Mas, nesse caso, teria que ser possível demonstrar que, a partir de algum exercício de afetação (sem necessitação) por parte da sensibilidade, o sujeito agente, no pleno e efetivo exercício da racionalidade, seria capaz de perpetrar o mal moral e responder por ele. Em princípio, a letra do texto kantiano atesta que isso é impossível. Quando Kant afirma que “não somos capazes de explicar essa possibilidade [de escolher contra a lei]” (MS AA 06: 226), e que “até onde percebemos, um crime dessa natureza, de uma tal maldade formal (sem sentido), é impossível a um humano de cometer” (MS AA 06: 227, 4-5), sustenta a tese perfeitamente aceitável de que a razão não pode racionalmente recusar operar a partir do seu próprio elemento. Mas se a vontade for, no humano, uma razão prática sob afecção de sensibilidade, e se ela puder ser entendida não como uma razão externamente afetada por sinnliche Antriebe , mas internamente determinada por um princípio “pático”, então talvez a deliberação imoral possa ser o resultado de uma falência da racionalidade (e não uma escolha da razão contra a razão), imputável a ela mesma porque produzida a partir de seu próprio elemento sensível. O importante é que em qualquer das alternativas – a de um arbítrio moralmente neutro e sensivelmente conduzido à imoralidade e a de uma vontade como razão prática que é sensivelmente levada a parar de operar se a decisão pelo mal moral é ao mesmo tempo imputável e explicada pela presença do sensível, a sensibilidade que nos afeta – e reitero, sem nos

necessitar -, precisa deixar de ser interpretada como ameaça externa ou força alienada de promoção de sedução. Ela precisa ser de algum modo constitutiva da e essencial à operação da deliberação prática. No contexto dessa revisão do lugar e papel da sensibilidade no processo deliberativo do sujeito agente que é liberum / sensitivum , teria que ser possível explicar a possibilidade de um sujeito agente que, considerado do ponto de vista numênico e de seu caráter exclusivamente inteligível – como reza a cartilha da solução da terceira Antinomia na Dialética Transcendental da primeira Crítica -, seja, interna e constitutivamente, mais do que logicamente livre e algo além de racionalidade prática a-pática . Essa seria a condição para se encontrar um espaço conceitual no kantismo para uma liberdade, garantidora de toda imputabilidade, que comporte um elemento pático préracional - assim evitando a contradição da escolha racional pela imoralidade - sem desandar na necessitação patológica de um arbítrio bruto. 1 . Como referência para as citações da Crítica da Razão Pura , utilizarei a edição da Felix Meiner: Kritik der Reinen Venunft , Hamburg, 1990, seguindo, na maior parte das vezes, a tradução de Santos e Morujão (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008). Como é praxe, indicarei no corpo do texto apenas a paginação das edições originais de 1781 e 1787, A e B respectivamente. Para as demais obras de Kant, utilizarei a Edição da Academia (doravante AA): KANT, I. Gesammelte Schriften . Hrsg.: Bd. 1-22: Preussische Akademie der Wissenschaften, Bd 23: Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin, ab Bd. 24: Akademie der Wissenschaften zu Göttingen. Berlin: 1900ff. 2 . “Se eu fosse isso apenas [membro de um mundo inteligível], todas as minhas ações seriam sempre conformes à autonomia da vontade...” (GMS AA 4: 454); “Que essa regra prática seja um imperativo, isto é, que a vontade de todo ser racional esteja necessariamente ligada a ela como condição, não pode ser provado por mera análise dos conceitos que nele [ in ihm - no princípio da autonomia] ocorrem, porque se trata de uma proposição sintética” (GMS AA 04: 440). Assim, o que caracteriza a imperatividade moral para nós é que ela “é sempre uma proposição sint ética ” – já que “por análise do conceito de uma vontade absolutamente boa essa propriedade da máxima [poder sempre conter a si mesma, considerada como lei universal, dentro de si] não pode ser encontrada. Tais proposições sintéticas, porém, só são possíveis pelo fato de que ambas as cognições podem ser ligadas entre si mediante a conexão com uma terceira ( durch die Verknüpfung mit einem dritten )” (GMS AA 04: 447, meus grifos). 3 . “O homem como um ser sensível apresenta, segundo a experiência, um poder de escolher nem sempre de acordo com a lei, mas também contra ela”; “o sujeito racional também pode adotar uma escolha conflitante com sua razão (legislante)”; “a experiência frequentemente mostra que isso ocorre (ainda que não sejamos capazes de dar conta dessa possibilidade)” (MS AA 06: 226). 4 . “Zurechnung ( imputatio ) in moralischer Bedeutung ist das Urtheil, wodurch jemand als Urheber ( causa libera ) einer Handlung, die alsdann That ( factum ) heißt und unter Gesetzen steht” (MS AA 06: 227, 21-23).

5 . Cf. KPV AA 05: 04. 6 . “...nem por isso se censura menos o autor [da ação] [...] pois se pressupõe que ele se podia pôr inteiramente de parte essa conduta [anterior] e considerar a série passada de condições como não tendo acontecido e essa ação inteiramente incondicionada em relação ao estado anterior, como se o autor começasse absolutamente com ela uma série de consequências” (A555/B583). Importa observar que, mesmo comprometida como uma prova da liberdade que visa à vontade ( Wille ) e se explicita como exercício de causalidade racional, a Crítica da Razão Prática não abandona o princípio das possibilidades alternativas como expressão da liberdade do sujeito agente: “... se não pressupuséssemos que tudo o que emerge de seu arbítrio (como, sem dúvida, cada ação praticada intencionalmente) tem como fundamento uma causalidade livre, que desde cedo expressa seu caráter em seus fenômenos (as ações), os quais, em virtude da conformidade da conduta, dão a conhecer um nexo natural que, porém, não torna necessária a qualidade viciosa da vontade, mas, muito antes, é a consequência de proposições fundamentais más e imutáveis, livremente assumidas, as quais só tornam a vontade tanto mais reprovável e condenável.” (KpV AA 05: 100) 7 . Que, nos termos de Guyer, “a lei moral seja a lei causal do Eu noumênico” (GUYER 2009: 189), e não uma mera recomendação prática produzida pela razão e dirigida ao arbítrio, parece fortemente sugerido por importantes passagens textuais da Fundamentação : “a causalidade dessas ações [que só podem acontecer com o descaso de todos os apetites e inclinações] reside nele enquanto inteligência e nas leis dos efeitos e ações segundo os princípios de um mundo inteligível ” (GMS AA 04: 457, meu grifo); “Visto que o conceito de causalidade traz consigo o de leis , segundo as quais, por algo que chamamos de causa tem de ser posto algo de outro, a saber, a consequência, então a liberdade, embora não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais, nem por isso é de todo sem lei, mas antes, pelo contrário, tem de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, porém de espécie peculiar ; pois de outro modo, uma vontade livre seria uma coisa absurda” (GMS AA 04: 446, meu grifo). 8 . Thomas Hill fornece um resumo dessa linha de objeção em seu Kant’s Argument for the Rationality of Moral Conduct (HILL 1985: 7-8) e indica Robert Paul Wolff de The Autonomy of Reason, A Commentary on Kant’s Groundwork of the Metaphysic of Morals como um importante defensor: WOLFF 1973. A tradução de Reinhold acima é de minha responsabilidade. 9 . Essa interpretação é advogada primordialmente por John Silber em The Ethical Significance of Kant’s Religion (SILBER 1960: lxxix-cxxxvii ) e ainda mais detalhadamente por Gerold Prauss em Kant uber Freiheit als Autonomie (PRAUSS 1983). 10 . Tomo aqui emprestada a expressão de Courtney Fugate para designar a solução predominante na literatura secundária sobre a filosofia prática de Kant para aquilo que ele denomina “controvérsia Reinhold/Sidgwick”, que não é outra coisa senão o aqui chamo de paradoxo, impasse ou aporia da imputabilidade das decisões imorais. Cf. FUGATE 2012.

11 . Particularmente quanto a Paul Guyer, sua posição sobre o tema foi tornada ambígua após seu recente artigo de 2017: The Struggle for Freedom: Freedom of the Will in Kant and Reinhold . Para o Guyer de 2009, a definição kantiana positiva de liberdade da vontade implica que “a lei moral é a lei causal do nosso Eu numênico” (GUYER 2009: 178), o único que pode ser dito propriamente livre. Ora, se “o Eu numênico é inteiramente racional [...], positivamente governado pela lei moral, - se, como afirma Kant [...] a ‘liberdade... deve ser causalidade de acordo com leis imutáveis, mas de um tipo especial’”, torna-se impossível explicar “como a vontade numênica pode escolher em confronto com a lei moral” (GUYER 2009: 188-9). Segundo o comentador ainda nesse artigo, Kant aborda prioritariamente o tema da escolha livre a favor ou contra a moralidade na Religião , mas simplesmente dribla esse problema (“ skirts the question ”). Ocorre que em 2017 o comentador parece rever sua posição sobre o tema. De fato, defende ele, pelo menos na primeira parte da Fundamentação III, Kant assimila liberdade ao efetivo exercício da causalidade racional. Mas esse seria um “argumento anômalo”, abandonado imediatamente, quando Kant voltaria a aderir ao que sempre teria sido sua posição refletida e coerente sobre a liberdade do arbítrio: um poder de escolher a favor ou contra a moralidade, ainda que, por razões que não podemos investigar aqui, nisso não possa consistir a “definição” dessa liberdade. 12 . “Não é sua culpa [de Kant] se esses modo de expressão, os quais, quando usados por ele apenas para exposições são completamente verdadeiros, são elevados por seus alunos ao estatuto de definições, e precisamente por isso tornam-se completamente falsos” (REINHOLD 1792: 268–9). 13 . Cf. MS AA 6 226-7. Bibliografia citada: ALLISON, H. Kant`s Theory of Freedom . Cambridge, Cambridge University Press, 1990 FUGATE. C. D. “On a Supposed Solution to the Reinhold/Sidgwick Problem in Kant’s Metaphysics of Morals”. European Journal of Philosophy , doi: 10.1111/j.1468-0378.2012.00531.x., 2012 GUYER, P. “Problems with Freedom: Kant’s Argument in Groundwork III and its Subsequent Emendations”. In: TIMMERMANN, J. (ed.) Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals : A Critical Guide . Cambridge, UK: Cambridge University Press 2009, p.176-202 GUYER, P. “The Struggle for Freedom: Freedom of the Will in Kant and Reinhold”. In: WATKINS, Eric. Kant on Persons and Agency . Cambridge University Press 2017, pp. 120-37 HILL, T. “Kant’s Argument for the Rationality of Moral Conduct”. Pacific Philosophical Quarterly 66, 1985

KANT, I. Gesammelte Schriften . Hrsg.: Bd. 1-22: Preußische Akademie der Wissenschaften, Bd 23: Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin, ab Bd. 24: Akademie der Wissenschaften zu Göttingen. Berlin: 1900ff. PRAUSS, Gerald. Kant über Freiheit als Autonomie . Frankfurt am Main: Klostermann 1983 REINHOLD. C. L. Briefe über die Kantische Philosophie . vol. 2. Leipzig: Göschen 1792 SILBER, J. “The Ethical Significance of Kant’s Religion”. In: Kant, I. Kant’s Religion Within the Limits of Reason Alone . Trans. T. M. Greene and H. H. Hudson. New York: Harper & Row 1960 TIMMERMANN, J. Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals: A Commentary . Cambridge: Cambridge University Press 2007 WOLFF, R. P. The Autonomy of Reason, A Commentary on Kant’s Groundwork of the Metaphysic of Morals . New York: Harper & Row 1973