Estudos de Direito da Propriedade Intelectual 9788567141053

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Estudos de Direito da Propriedade Intelectual
 9788567141053

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Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR

O GEDAI/UFPR possui como linhas de pesquisa as seguintes temáticas: Propriedade Intelectual – Inovação e Conhecimento: analisar a tutela jurídica dos novos bens intelectuais advindos da nova Tecnologia da Informação com vistas ao desenvolvimento socioeconômico que promova inovação, inclusão tecnológica e difusão do conhecimento.

Economia Criativa: Propriedade Intelectual e Desenvolvimento: estudar o Direito Autoral enquanto instrumento jurídico capaz de servir como marco regulatório para a formulação de políticas públicas a fim de fortalecer as indústrias criativas e dinâmicas, com vista a uma Economia Criativa sustentável para o país. Regime Internacional de Propriedade Intelectual: Estudo dos Tratados e Organizações Internacionais (OMC, OMPI e UNESCO) com o escopo de avaliar o Sistema Internacional de Tutela da Propriedade Intelectual face a revolução tecnológica da informação, bem como, das novas formas de comunicação, de expressão, de produção de bens intelectuais que com as novas redes sociais na Internet possibilitam a socialização do conhecimento. Sociedade da Informação: Democracia e Inclusão Tecnológica – analisar as novas formas de criação de bens intelectuais (obras colaborativas), de transformação criativa (samplers), de distribuição/compartilhamento advindas das redes sociais (P2P), e a socialização do conhecimento enquanto paradigma da cultura digital sobre a regulamentação dos diretos autorais. Direitos das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s): identificar o conteúdo da proteção jurídica e o alcance da circulação da produção cultural desenvolvida nas instituições públicas e do regime de concorrência aplicado às novas mídias na Internet. Propriedade Intelectual e Direito Concorrencial – compreender a interface do direito concorrencial e da propriedade intelectual nos novos modelos de negócios na Sociedade da Informação com foco no desenvolvimento dos setores produtivos da Economia Criativa. As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão disponíveis no site: www.gedai.com.br

Além disso, a obra reúne o esforço de doutrinadores de renomadas universidade europeias: Universidade Clássica de Lisboa (Portugal), Universidade Complutense de Madri (Espanha) e Universidade de Valência (Espanha). Ressalte-se o apoio fundamental das agências de fomento à pesquisa, CAPES e CNPq, imprescindível para a realização dos projetos de pesquisas que culminaram com o lançamento da presente obra.

Apoio e financiamento de:

Estudos de Direito da

PROPRIEDADE INTELECTUAL

A parceria internacional está capitaneada pelo Grupo i+d Propiedad Intelectual e Industrial da Universidade de Valência – Espanha.

ESTUDOS DE DIREITO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

Direito Autoral: Direitos Fundamentais e Diversidade Cultural: compreender os efeitos do direito fundamental à cultura sobre os limites do direitos autorais; a proteção e circulação da produção cultural desenvolvida nas instituições públicas; os papéis da cidadania cultural no processo de inclusão social; a função do Estado em matéria cultural, as políticas públicas de cultura e a regulamentação jurídica dos direitos culturais.

A obra é fruto de um intercâmbio acadêmico sólido realizado por pesquisadores do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI da Universidade Federal do Paraná – UFPR em parceria com grupos de pesquisa no Brasil, a saber: o Instituto de Propriedade Intelectual do Brasil – IBPI, o Instituto de Tecnologia e Sociedade - ITS do Rio de Janeiro e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

MARCOS WACHOWICZ Organizador

O GEDAI/UFPR busca a formação de uma rede nacional e internacional de cooperação acadêmica na área de propriedade intelectual, contando em suas publicações com um Conselho Editorial composto por especialistas nacionais e estrangeiros.

O livro propicia uma reflexão sobre os temas relacionados à propriedade intelectual, realizada por pesquisadores e especialistas em Direito reconhecidos pela comunidade científica nacional e internacional.

MARCOS WACHOWICZ ORGANIZADOR

Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR – O GEDAI/UFPR vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR tem como seu principal objetivo estudar o desenvolvimento dos Direitos de Propriedade Intelectual na Sociedade da Informação, através da comparação do sistema internacional de direitos autorais e industriais, da análise dos processos de concretização dos direitos e diversidades culturais e da reflexão sobre a regulamentação dos direitos intelectuais frente aos desafios da Sociedade da Informação. Para atingir essa finalidade por observa-se três objetivos específicos: (i) compreensão dos efeitos do direito fundamental à cultura e diversidade cultural na sociedade contemporânea, analisando os limites dos direitos autorais na tutela dos bens imateriais; (ii) avaliação das consequências da revolução tecnológica em andamento e do advento da cultura digital sobre a regulamentação dos direitos intelectuais; e (iii) identificação do conteúdo da proteção jurídica e o alcance da circulação da produção intelectual/cultural desenvolvida nas instituições públicas. Visando intensificar o intercambio da pesquisa no Brasil, o GEDAI/UFPR envolve-se em projetos com outras equipes acadêmicas de diversas instituições de ensino superior e de pesquisas brasileiras. Desta forma com a finalidade de ampliar os estudos sobre temas relacionados a Propriedade Intelectual e seus desafios na Sociedade da Informação o GEDAI/UFPR faz um convite para que os pesquisadores venham integrar esta grande rede de presquisa e publicação acadêmica. As publicações do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR – são espaços de criação e compartilhamento coletivo, visando facilitar o acesso às pesquisas pela INTERNET, disponibiliza-as gratuitamente para download. É mais uma alternativa para a publicação de pesquisas acadêmicas, formando uma rede de compartilhamento aberta para toda a comunidade científica. As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão disponíveis no site: www.gedai.com.br

Estudos de Direito da Propriedade Intelectual

Coordenador Marcos Wachowicz Colaboradores Denis Borges Barbosa Francisco Narcélio Ribeiro Guillermo Palao Moreno Heloisa Gomes Medeiros José de Oliveira Ascensão Karin Grau-Kuntz Marcos Wachowicz Patricia Carvalho da Rocha Porto Pedro Alberto de Miguel Asensio Sergio Branco Vitor Augusto Wagner Kist

GEDAI As publicações do GEDAI/UFPR são espaços de criação e compartilhamento coletivo. Fácil acesso às obras. Possibilidade de publicação de pesquisas acadêmicas. Formação de uma rede de cooperação acadêmica na área de Propriedade Intelectual.

Conselho Editorial Allan Rocha de Souza – UFRRJ/UFRJ Carla Eugenia Caldas Barros – UFS Carlos A. P. de Souza – CTS/FGV/Rio Carol Proner – UniBrasil Dario Moura Vicente – Univ.Lisboa/Portugal Denis Borges Barbosa – IBPI/Brasil Francisco Humberto Cunha Filho – Unifor Guilhermo P. Moreno – Univ.Valência/Espanha José Augusto Fontoura Costa – USP

José de Oliveira Ascensão – Univ. Lisboa/Portugal J. P. F. Remédio Marques – Univ.Coimbra/Port.l Karin Grau-Kuntz – IBPI/Alemanha Luiz Gonzaga S. Adolfo – Unisc/Ulbra Leandro J. L. R. de Mendonça – UFF Márcia Carla Pereira Ribeiro – UFPR Marcos Wachowicz – UFPR Sérgio Staut Júnior – UFPR Valentina Delich – Flacso/Argentina

Estudos de Direito da Propriedade Intelectual / organização de Marcos Wachowicz Wachowicz, Marcos ...[et al.] – Curitiba: GEDAI/UFPR, 2015. 302 p. Vários colaboradores Impresso: e-book:

ISBN 978-85-67141-05-3 ISBN 978-85-67141-08-4

1. Propriedade Intelectual. 2. Direito Autoral. 3. Domínio Público. 4. Inovação. 5 Transferência de tecnologia. 6 Retaliação cruzada I. Wachowicz, Marcos (org.). II. Título.

Endereço: UFPR – SCJ – GEDAI Praça Santos Andrade, n. 50 CEP: 80020-300 - Curitiba – PR E-mail: [email protected] Site: www.gedai.com.br GEDAI/UFPR - PREFIXO EDITORIAL 67141 –

Capa

Marcelle Cortiano

Diagramação

Monica Ardjomand

Revisão

Laura Rotunno Luciana Bitencourt Ruy Figueiredo de Almeida Barros Heloisa Medeiros Ana Luiza dos Santos Rocha

Endereço

Universidade Federal do Paraná - UFPR Faculdade de Direito Praça Santos Andrade, n, 50 CEP. 80020 300 Curitiba - Paraná Fone:(55) 41 33102750 / 41 3310 2688 E-mail: [email protected] Site: www.gedai.com.br

Esta obra é distribuída por meio da Licença CreativeCommons 3.0 Atribuição/Uso Não-Comercial/Vedada a Criação de Obras Derivadas / 3.0 / Brasil

Apresentação O Estudo do Direito da Propriedade Intelectual na sociedade informacional ganha relevo e novas dimensões teóricas, colocando o leitor, já desde as primeiras páginas, no plano dos conflitos e inquietudes que são perceptíveis na sociedade contemporânea. Percebe-se um grande movimento acadêmico, um crescente interesse sócio-político e econômico, que tem despertado nos estudiosos do direito as questões que delineiam novos contornos da disciplina de Propriedade Intelectual em suas mais variadas matizes doutrinárias. Neste sentido é que a presente obra aglutina inúmeros estudos realizados por pesquisadores do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI da Universidade Federal do Paraná – UFPR, em parceria com outros grupos de pesquisa no país, tais como: o Instituto de Propriedade Intelectual do Brasil – IBPI, o Instituto de Tecnologia e Sociedade - ITS do Rio de Janeiro e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. A parceria internacional está capitaneada pelo Grupo i+d Propiedad Intelectual e Industrial da Universidade de Valência – Espanha. A presente obra coletiva reúne o esforço de pesquisadores, estudiosos e doutrinadores de três renomados centros de pesquisas de excelência da União Européia na pesquisa sobre os Direitos da Propriedade Intelectual, a saber: Universidade Clássica de Lisboa – Portugal, Universidade Complutense de Madri – Espanha e Universidade de Valência – Espanha. As pesquisas agora publicadas foram anteriormente apresentadas em seminários, congressos e eventos realizados no Brasil e no exterior com apoio das agencias de fomento a pesquisa CAPES e CNPq. Os artigos agora publicados cumprem com excelência o aprofundamento das pesquisas devotadas aos Direito da Propriedade Intelectual, bem como provocam debates sobre seus fundamentos constitutivos e matizes ideológicas que por certo influenciarão a evolução do pensamento jurídico. A todos que contribuíram para a realização desta obra nosso muito obrigado. O resultado agora o leitor tem diante de si. Marcos Wachowicz 5

SUMÁRIO Prefácio ....................................................................................................... 9 REPRESENTATIVIDADE E LEGITIMIDADE DAS ENTIDADES DE GESTÃO COLETIVA DE DIREITOS AUTORAIS | José de Oliveira Ascensão ............... 13 DERECHOS FUNDAMENTALES Y OBSERVANCIA DE LOS DERECHOS DE AUTOR EN LA UNIÓN EUROPEA | Pedro Alberto de Miguel Asensio ... 41 PROPRIEDADE INTELECTUAL E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NA UNIÃO EUROPEIA | Guillermo Palao Moreno .......................................... 67 O DOMÍNIO PÚBLICO VOLUNTÁRIO | Sérgio Branco ................................... 85 A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A PROTEÇÃO DAS COMPOSIÇÕES DE PEÇAS DE VESTUÁRIO | Karin Grau-Kuntz .............................................. 105 DO DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DAS CELEBRIDADES | Denis Borges Barbosa................................................. 117 OS EFEITOS DA CUMULAÇÃO DE DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL – Direitos autorais x Marcas | Patricia Carvalho da Rocha Porto ..................... 199 RETALIAÇÃO CRUZADA EM PROPRIEDADE INTELECTUAL: uma alternativa aos países em desenvolvimento para a solução de disputas na organização mundial do comércio | Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist ...... 233 INSTRUMENTOS JURÍDICOS DA ECONOMIA DA INOVAÇÃO: CONTRATOS DE TRASNFERÊNCIA DE TECNOLOGIA E DIREITO DA CONCORRÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO | André Soares Oliveira e Heloisa Gomes Medeiros..................... 265 O DIREITO AUTORAL COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA INCOMUNICABILIDADE DOS PROVENTOS DO TRABALHO PESSOAL DE CADA CÔNJUGE | Francisco Narcélio Ribeiro ................................................ 289

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Prefácio É com satisfação que apresentamos a obra coletiva Estudos de Direito da Propriedade Intelectual, fruto dos projetos de pesquisa desenvolvidos e realizados pelo Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI, o qual está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – PPGD/UFPR. O livro oferece ao leitor uma abordagem transversal sobre os temas da Propriedade Intelectual na sociedade contemporânea, os desafios enfrentados em cada texto e no conjunto da obra cumprem com êxito a missão de revelar novos caminhos para o Direito Intelectual, bem como, de buscar no contexto social, político e econômico de um país com o Brasil, novos rumos para o desenvolvimento tecnológico que efetivamente promova a inovação e a inclusão social. Os estudos que agora se apresentam ao leitores vão além das discussões teóricas sobre a tutela da propriedade intelectual, mas lançam novas questões sobre o equilíbrio necessário à dimensão pública e privada que envolve a tutela jurídica do instituto a nível nacional e internacional. Tais desafios ensejaram vários projetos de pesquisas articulados entre diversas universidades brasileiras e estrangeiras, nos seus grupos de pesquisa e de especialistas, cujo alcance não se restringiu a barreiras nacionais e regionais. Juristas europeus dotados de grande sensibilidade científica, como os catedráticos José de Oliveira Ascensão, Pedro Alberto de Miguel Asensio e Guillermo Palao Moreno, contribuíram com a perspectiva do Direito da União Europeia, ao trabalharem temas extremamente atuais, como: representatividade das entidades de gestão coletiva, direitos fundamentais e Direito Internacional Privado. A reflexão desses juristas, ao buscarem respostas para os desafios do Direito Intelectual, brindaram a obra com novas ideias e delineamentos para sua compreensão na sociedade contemporânea. Contudo, boas surpresas não findaram. A participação de Sérgio Branco, do ITS/Rio de Janeiro, analisa as questões relativas ao domínio público voluntário, revela o instituto do Direito Autoral sob a ótica do Direito Comparado, apresentando um amplo cenário internacional no qual se percebe a necessidade do aperfeiçoamento da legislação brasileira atual. Com o objetivo de oferecer elementos para a compreensão da propriedade intelectual nos setores criativos da economia, mais especificamente no tocante à moda e à proteção das composições de peças de vestuário, Karin 9

Grau-Kuntz busca estabelecer noções fundamentais para compreensão do ato criativo que envolve a proteção da propriedade intelectual. Por sua vez, Denis Borges Barbosa apresenta um estudo de fôlego sobre o direito de propriedade intelectual das celebridades, no que toca o uso dessas imagens no direito estrangeiro e brasileiro, propugnando pela elaboração legislativa neste sentido, bem como, dos deveres resultantes da construção da notoriedade.

Estudos de Direito da Propriedade Intelectual

Numa abordagem ampla sobre a proteção jurídica dos institutos protegidos pela propriedade intelectual, Patrícia Carvalho da Rocha Porto, analisa o fenômeno e os efeitos da cumulação de direitos autorais e marcários, os quais tem sido objeto de discussões e controvérsias em diversos países, apreciando ações judiciais relativas ao tipo de cumulação comentada, com o objetivo de formular as bases técnicas que auxiliem a melhor compreensão dos conflitos da cumulação em casos práticos no cenário nacional e internacional. No tocante aos conflitos de que envolvem que envolvem a propriedade intelectual no cenário internacional está situado o estudo realizado por Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist, que analisam o instituto de retaliação cruzada de propriedade intelectual como uma alternativa aos países em desenvolvimento para a solução de disputas na Organização Mundial do Comércio – OMC. A pesquisa realizada com base na jurisprudência já existente na OMC revela que o instituto da retaliação cruzada se mostra como uma alternativa legal que pode solucionar o problema da ineficácia dos remédios usuais dos órgãos de solução de controvérsias, fazendo com que as reclamações dos países mais pobres sejam ouvidas mais claramente pelas potências mundiais. Cabe referenciar a participação de uma nova geração de especialistas em Direitos da Propriedade Intelectual que vem sendo reconhecida pela comunidade acadêmica por seus trabalhos e prêmios merecidamente conquistados. Citem-se, por exemplo, André Soares Oliveira e Heloisa Gomes Medeiros, que abordaram as questões relativas aos instrumentos jurídicos da Economia da Inovação, numa análise profunda sobre os contratos de transferência de tecnologia e direito da concorrência no País. Num trabalho de rigor técnico e científico, elucidam alguns procedimentos previstos nos arranjos contratuais para que, efetivamente se alcance a inovação, de forma que ocorra a circulação no mercado de forma competitiva no âmbito empresarial cada vez mais globalizado. Por fim, a participação de Francisco Narcélio Ribeiro, que desenvolve a temática do Direito Autoral como instrumento de efetivação do princípio da 10

dignidade da pessoa humana e dos princípios dele decorrentes, adentrando à discussão sobre a concepção do DIREITO CIVIL�CONSTITUCIONAL, necessária para entender o direito patrimonial do autor em suas questões relativas ao regime de bens instituídos pelo Código Civil atual. Assim, o leitor poderá perceber, nesta obra, além da reunião de juristas e pesquisadores de distintas nacionalidades, a construção de novos fundamentos para interpretação dos temas mais atuais relativos ao estudo do Direito da Propriedade Intelectual. Inequivocamente os trabalhos aqui coletados revelam as inquietudes, curiosidades, análise, investigações; mas, sobretudo, propostas e anseios de transformação da realidade para a solução dos conflitos inerentes à tutela da propriedade intelectual na Sociedade contemporânea. Por último, aproveito aqui para agradecer o amável convite do professor Marcos Wachowicz, que coordenou os estudos e organizou os trabalhos que culminaram com a publicação desta obra, assim como a todos os seus laboriosos autores. Prof. Dr. Luis Fernando Lopes Pereira Coordenador do PPGD/UFPR

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propriedade intelectual REPRESENTATIVIDADE E LEGITIMIDADE DAS ENTIDADES DE GESTÃO COLETIVA DE DIREITOS AUTORAIS José de Oliveira Ascensão1

1. O recurso à gestão coletiva e os seus efeitos Os titulares de direitos autorais – abrangendo nesta categoria os autores e os titulares de direitos conexos – detêm, indiscutidamente, um direito subjetivo, qualificado na generalidade dos casos por o conteúdo deste constituir um exclusivo. O exercício do exclusivo é manifestação de autonomia. Veja-se a disciplina do direito de autor, que é paradigmática. O art. 40 do CDADC2 atribui ao titular originário, bem como aos seus sucessores ou transmissários: • autorizar a utilização da obra • transmitir ou onerar, no todo ou em parte, o conteúdo patrimonial do direito. O titular tem assim a disponibilidade normalmente associada à titularidade dos direitos, explorando diretamente o bem intelectual ou praticando negócios jurídicos sobre ele. A liberdade outorgada é porém sempre relativa – está cerceada pela função social e outras cláusulas gerais, bem como pelas restrições especiais próprias do Direito Autoral. O titular pode recorrer a terceiros para praticar atos jurídicos que se repercutem sobre o objeto do seu direito. Pode, nomeadamente, mandatar outrem para a prática desses atos. Nesses casos haverá um terceiro, além do titular, que está igualmente legitimado para essa prática, nos termos do mandato recebido. O recurso a terceiros para a gestão dos direitos reveste feições diversas, consoante a natureza das obras e o conteúdo do contrato. No que respeita ao contrato de edição de obra científica, por exemplo, os autores, na grande maioria dos casos, contratam diretamente com as editoras. Nem lhes passa pela cabeça inscrever-se para o efeito em entidade 1 Professor Catedrático da Universidade de Lisboa. 2 O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos português. 13

de gestão coletiva. Mas podem fazê-lo, se assim o entenderem. Já no que respeita à obra musical a situação é a contrária. Se o autor quer dar a obra à exploração comercial, particularmente se o quiser fazer pela radiodifusão ou pelo audiovisual, o autor terá quase fatalmente de recorrer a outrem para o seu exercício. Não pode controlar todas as emissões, nem sequer é viável, na grande maioria dos casos, criar uma empresa para esse efeito. Tem de recorrer a entidade gestora que mandata para o efeito.

José de Oliveira Ascensão

Intervêm então as entidades de gestão coletiva. Neste caso, exercem a gestão coletiva que chamamos forçosa. O autor ou outros titulares não estão obrigados a recorrer a elas, mas na prática não têm outro remédio. A adesão ou contratação com entidade de gestão coletiva supõe‑se livre, mas eles fatalmente o terão de fazer para a eficácia da exploração dos direitos. O fundamento da gestão coletiva está assim no serviço prestado aos titulares dos direitos. É esta aliás a justificação sempre apresentada. Mas o recurso a esta gestão ultrapassa muito os casos de gestão coletiva forçosa. Pode não haver este constrangimento e o titular, voluntariamente, entregar a obra ou prestação ao cuidado de uma entidade de gestão. Este panorama será transtornado por uma figura anômala: a gestão coletiva forçada ou obrigatória3. Pode a lei, atribuindo direitos sobre bens intelectuais, determinar que estes só podem ser exercidos por uma entidade de gestão coletiva. Então todos os titulares de direitos daquela natureza ficam automaticamente sujeitos a uma entidade de gestão coletiva, se porventura quiserem explorar as suas obras ou prestações. É o que se passa no respeitante ao direito de autorizar ou proibir a retransmissão por cabo, que o art. 7/1 do Dec.-Lei n.º 333/97, de 27 de novembro, determina que “só pode ser exercido através de uma entidade de gestão coletiva do direito de autor, que se considere mandatada para gerir os direitos de todos os titulares, incluindo os que nela não estejam inscritos...”. É também o que é estabelecido pela Lei n.º 62/98, de 1 de setembro, que regula o disposto no art. 82 CDADC. A cópia privada é livre (art. 75/2 a e e CDADC), mas é sujeita a uma compensação equitativa a atribuir ao autor e, 3 Fizemos já esta distinção, aproveitando a diferença de sentidos das palavras forçosa e forçada na língua portuguesa, no nosso Gestão colectiva: síntese dos trabalhos e perspectivas futuras, in “Gestão colectiva do Direito de Autor e Direitos Conexos no ambiente digital”, Actas do Colóquio organizado pela Presidência Portuguesa da Comunidade Europeia em 23 e 24 de março de 2000, Gabinete do Direito de Autor / Ministério da Cultura (GDA), 2001, 273-292; in Revista da ABPI (São Paulo), n.º 48, Set/Out 2000, 21-30; in Derecho de la alta Tecnologia, Estudio Millé (Buenos Aires), ano XII, n.º 136/137, Dez/99-Jan/01, 25-35; in “Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação”, Almedina, 2001, 289-309; e in Direito da Internet e da Sociedade da Informação – Estudos, Editora Forense (Rio de Janeiro), 2002, com o título Gestão colectiva: perspectiva do autor, 283-304. 14

propriedade intelectual no âmbito analógico, também ao editor (art. 76/1b). A “compensação equitativa” é cobrada, gerida e distribuída por uma “pessoa coletiva” (arts. 3/2 e 5), que tem como associados os vários entes de gestão coletiva dos direitos dos beneficiários da remuneração. E por sua vez estes têm como associados uma classe de titulares específica. Outro esquema consiste na extensão aos não associados dos acordos coletivos celebrados por uma entidade de gestão. É o que se passa nos termos do Dec.-Lei n.º 333/97, de 27 de novembro, no que respeita aos acordos celebrados por uma entidade de gestão coletiva do direito de autor e um organismo de televisão, relativos a obras musicais, tendo por objeto a comunicação por satélite. A gestão coletiva forçada pode em certos casos ser justificada pela natureza da relação em causa, quando não se vislumbra maneira de um regime ser aplicável aos que forem membros de uma entidade de gestão coletiva e não o ser aos que o não forem. Mas há que ter em conta que é um instrumento muito perigoso, que só se poderá aceitar em última análise. Subverte o princípio da liberdade de associação. E a entidade de gestão coletiva beneficiária perde todo o estímulo para defender os interesses dos titulares. Se eles estão amarrados de toda a maneira às suas decisões, só os interesses próprios dessas entidades passam a ser determinantes. Por isso, a gestão coletiva forçada é o El Dorado dos entes de gestão, que não precisam de agradar e atrair os titulares não associados porque, de toda a maneira, os têm nas mãos. Isto já revela como é complexa a teia de interesses que se debate à volta da gestão coletiva de direitos de autor e conexos. Se ultrapassarmos a hoje enganosa designação de “sociedades de autores”, divisamos pelo menos seis categorias diferentes de interesses e interessados:  2. Os titulares de direitos autorais: os criadores, os artistas e os outros titulares de direitos conexos, bem como os sucessores e transmissários.  3. Os utilizadores (users), que são as entidades, tendencialmente empresariais, que fazem a exploração económica dos direitos intelectuais, como adquirentes derivados dos direitos ou de faculdades específicas.  4. As entidades de gestão coletiva, como intermediários e agregadores das posições dos titulares e intermediários na relação com os utilizadores, mas que prosseguem também interesses próprios muito relevantes. 15

 5. Os provedores de serviços na internete, indispensáveis no campo cada vez mais vasto da exploração em linha.  6. O consumidor ou utilizador final de obras intelectuais.  7. Sobre tudo isto se situam os interesses coletivos, como o da Cultura, que tanto se invoca e a que tão pouco se atende. Este interesse coletivo prolonga-se no interesse público, nomeadamente no interesse na supervisão por parte das instituições públicas, que é hoje fundamental. Há pois motivo para acrescentar pelo menos uma sexta categoria de interesses, de modo algum diminuída em relação às restantes.

José de Oliveira Ascensão

2. A posição do titular perante o ente de gestão Suscitou-se dissídio quanto a qualificar as entidades de gestão coletiva como mandatárias ou como representantes dos seus associados. Supomos que não vale a pena entrar nesta questão, porque os resultados são os mesmos. O art. 73/1 CDADC determina que essas entidades desempenham a sua função como representantes dos respetivos titulares. Efetivamente, os efeitos dos atos de gestão vão-se repercutir diretamente na esfera jurídica dos titulares, como é próprio da representação. Não vemos interesse em pôr em causa a qualificação legal, ou em discutir que neste caso haja um mandato com representação. Pode-se porém ir mais longe. Em países do centro e norte da Europa entidades de gestão coletiva exigem dos autores ou titulares de direitos a cessão fiduciária dos seus direitos para que sejam integrados na gestão a que procedem. O titular pratica uma autêntica cessão: a titularidade passa para a entidade de gestão coletiva. Mas a cessão é fiduciária, no sentido que essa entidade deve tipicamente exercer o direito no sentido da boa administração no interesse do titular. A situação resultante é muito gravosa para o titular. Assim, o autor perde todo o contato com a obra. Conserva apenas o direito pessoal (ou “moral”); de resto, não pode praticar nenhum ato que atinja o aproveitamento patrimonial. Não pode por exemplo autorizar uma utilização gratuita, para fins beneficentes, a qualquer agremiação da sua simpatia, porque todo o poder de autorizar passou para a entidade de gestão coletiva. Para ter acesso àquela gestão coletiva, tem de abrir mão de todo e qualquer poder sobre a sua obra ou prestação. Não está previsto, em Portugal ou no Brasil, que as entidades de gestão coletiva imponham a cessão fiduciária dos direitos. Mas também não está 16

propriedade intelectual proibida. Pelo que paira sempre a ameaça de, na prática, alguma entidade o vir, abertamente ou não, a estabelecer. Por isso propusemos, nos trabalhos de preparação do CDADC, que para defesa do autor ou demais titulares fosse expressamente proibida, dada a gravidade da situação, a cessão fiduciária dos direitos. Mas a proposta encontrou a oposição da Sociedade Portuguesa de Autores e não foi por diante. Há assim o risco de uma expropriação na prática do direito patrimonial do titular em contrapartida da adesão à entidade de gestão coletiva. Expropriação que pode igualmente surgir mesmo quando se não preveja a cessão fiduciária. Podem ser inseridas cláusulas que excluam que os titulares realizem atos de gestão, nomeadamente quaisquer autorizações graciosas. O titular ficaria então contratualmente impedido de as praticar. Mas a entidade de gestão coletiva também o não poderia fazer, porque só tem poderes de autorização no interesse (patrimonial) do autor; uma autorização gratuita não serve por natureza esse interesse patrimonial. O que implica que nunca uma obra ou prestação dada à gestão coletiva poderia então ter utilização beneficente, ou gratuita em geral. A distorção em relação às previsões legais é grave. O art. 68/3 CDADC dispõe que “Pertence em exclusivo ao titular do direito de autor a faculdade de escolher livremente os processos e as condições de utilização e exploração da obra”. Quanto ao art. 41, sobre o “Regime da autorização”, impõe a forma escrita (n.º 2), e dispõe que desta “devem constar, obrigatória e especificamente, a forma autorizada de divulgação, publicação e utilização, bem como as respetivas condições de tempo, lugar e preço”. Mas a assinatura dum contrato de adesão a uma entidade de gestão coletiva pode anular na prática estas previsões da lei. O autor passa a ocupar uma posição de cliente duma entidade de gestão, ficando vinculado por um contrato – que de contrato já não tem quase nada. A posição dos artistas intérpretes ou executantes é ainda mais frágil. O art. 178/1 CDADC atribui-lhes o direito exclusivo de autorizar, por si ou pelos seus representantes, a radiodifusão e a comunicação ao público, a fixação de prestações que não tenham sido fixadas e a reprodução das fixações realizadas. Mas se o artista autorizar a fixação para fins de radiodifusão a um produtor cinematográfico ou audiovisual ou videográfico, ou a um organismo de radiodifusão, entender-se-á que transmitiu esses direitos em contrapartida de uma remuneração inalienável, equitativa e única. Ainda por cima, a gestão desta remuneração única será exercida através de acordo coletivo celebrado entre os utilizadores e a entidade de gestão coletiva representativa 17

da categoria, “que se considera mandatada para gerir os direitos de todos os titulares dessa categoria, incluindo os que nela não se encontrem inscritos” (art. 178/2). Essa remuneração única abrangerá igualmente a autorização para novas transmissões, a retransmissão e a comercialização de fixações obtidas para fins exclusivos de radiodifusão (n.º 3). Há então manifestação potenciada de gestão coletiva forçada.

José de Oliveira Ascensão

Só fica de fora a faculdade contida no art. 178/1 d CDADC: “A colocação à disposição do público, da sua prestação, por fio ou sem fio, por forma que seja acessível a qualquer pessoa, a partir do local e no momento por ela escolhida”. É a fórmula utilizada pela lei para caracterizar a colocação em rede à disposição do público. Porém, mesmo esta é submetida à gestão coletiva obrigatória, nos termos do art. 178/4. Donde resulta que a lei se preocupa muito mais com uma proteção de interesses empresariais que com a proteção dos artistas intérpretes ou executantes. Outro aspecto deve ser preliminarmente esclarecido, para fixarmos os contornos da gestão coletiva: qual o estatuto da obra ou prestação que é entregue à gestão coletiva? Pensar-se-ia que a entidade de gestão negociaria cada obra ou prestação, atendendo ao seu significado ou valia particular. Atuaria assim como o faria o titular se não tivesse aderido à gestão coletiva. Não está, evidentemente, impedida de assim fazer. Mas na realidade é uma ocorrência meramente marginal. Consideremos à obra musical, que ilustra a situação com muita nitidez. A entidade de gestão coletiva de direitos musicais licencia todo um repertório. Pratica negócios de massa. Cada obra ou prestação individual é tendencialmente englobada num conjunto, e é esse que é colocado à disposição dos utilizadores. Sendo assim, a individualidade da obra esbate-se. Tanto faz ser excelente como medíocre. É objeto dos mesmos atos dispositivos. Isso satisfaz os utilizadores, que querem ter as mãos livres, e a entidade de gestão, que evita a discussão caso por caso. Mas cria numerosos problemas, em particular: • o da legitimidade das autorizações genéricas da entidade de gestão • o da remuneração do autor ou artista, cujas obras ou prestações são utilizadas. Estes problemas terão de ser ulteriormente examinados. 18

propriedade intelectual 3. A representação dos titulares: sua relatividade A gestão coletiva, na visão da lei, só se justifica pela defesa dos interesses dos titulares de direitos autorais. E efetivamente, neste domínio, afirma-se insistentemente que é esse interesse que é exclusivamente prosseguido por essas instituições. Elas apresentam-se como emanação dos autores e outros titulares, cujo benefício é constantemente invocado como diretriz de atuação. Mas a realidade não é bem essa. Por um lado, os quadros dessas entidades não são necessariamente titulares de direitos. Pode recorrer-se a técnicos ou gestores, por exemplo, que pouco ou nada tenham que ver com obras ou prestações. A categoria que se invoca começa a ficar descolorida perante esta realidade. Depois, porque os associados ou membros em geral não são necessariamente os autores ou os artistas que se proclama defender. Vejamos o que se passa com os “autores”. Os autores representados pelas entidades de gestão não são apenas os criadores intelectuais. O próprio art. 73/1 CDADC não refere “representantes dos autores”, fala antes em “representantes dos respetivos titulares”. Ora, os transmissários são também titulares. Portanto, mesmo em vida do autor, o substrato pessoal do ente de gestão pode exprimir interesses muito diferentes dos dos criadores intelectuais. Repare-se que os transmissários são usualmente empresas que procedem à exploração económica de bens intelectuais. Exprimem por isso interesses empresariais e de modo algum os interesses culturais que as entidades de gestão coletiva de direitos de autor se alegam defender. Uma simples observação estatística demonstra bem que “sociedades de autores” e associações ou cooperativas de criadores intelectuais não são a mesma coisa. As entidades de gestão coletiva acabam por ser sensíveis a outros interesses que não são os dos criadores intelectuais. Analogamente poderíamos dizer em relação às entidades de gestão dos direitos dos artistas. Acresce aquilo a que podemos chamar o drama do representado. É uma questão geral, mas que tem aqui também a sua manifestação. É uma decorrência da imperfeição humana. O poder do representante tem a sua justificação na prossecução do interesse do representado. Mas a natureza humana leva a que o representante pense mais no seu próprio interesse que no interesse do representado. Isso acontece em todos os setores: na representação política, como o demonstram os escândalos permanentes 19

que a comunicação social nos vai revelando em todos os países; na representação empresarial, em que representantes de uma maioria trabalham antes de mais na preservação das suas posições e dos seus próprios interesses; em relações simples de representação, como as que os emigrantes estabelecem deixando as suas terras confiadas a parentes ou amigos, e afinal... A boa formação humana, que permitiria que as finalidades da lei fossem asseguradas, é na realidade ocorrência rara. Mas há muito mais do que isto. Mesmo excluindo os transmissários, somos levados a concluir que as entidades de gestão não são agregados de criadores intelectuais ou de artistas intérpretes ou executantes. Exemplifiquemos com o caso dos autores, que é bem nítido.

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O direito de autor vigora paradigmaticamente durante a vida do criador intelectual e mais setenta anos pós-morte. Em vida, o criador intelectual terá no máximo uns 70 anos de proteção. Mesmo admitindo que criou aos 20 anos e faleceu aos 90, o que toma já em conta o prolongamento progressivo da vida humana, é um cálculo de duração máxima plausível. Mas o autor vai criando normalmente durante toda a vida, logo o gozo médio de cada direito em vida é muito menor. Após a morte do autor, os sucessores recebem o direito por um período normal de 70 anos. Aqui, período máximo e efetivo coincidem: são sempre 70 anos pós‑morte do autor. Como os sucessores são também titulares, que são representados (tal como os criadores) pelas entidades de gestão respetivas, temos de concluir que entre os membros destas entidades haverá muito mais titulares não criadores que criadores. Porque a soma dos transmissários e dos sucessores é muito superior seguramente ao número dos criadores intelectuais representados. Não há motivo para que isso se não repercuta fortemente sobre as entidades de gestão coletiva de direitos autorais. Os entes de gestão coletiva justificam‑se como representantes dos criadores e os artistas, mas representam-se antes de mais a si mesmos. Atuam como fortíssimos grupos de pressão, que se apoiam normalmente nos abundantes recursos financeiros de que dispõem. Isso permite-lhes manifestações faustosas, como saraus de gala que só podem sustentar-se com dinheiros que deviam reverter para os representados. A fidelidade destes entes é antes de mais aos interesses que os amparam e conservam. O autor, ou os titulares em geral, são mais o objeto da atuação que os sujeitos cujos interesses são efetivamente prosseguidos. 20

propriedade intelectual 4. A reversão de percentagens das receitas para interesses que não são diretamente dos titulares Esta situação é agravada pela atribuição, pela lei ou pela prática, de percentagens em benefício dos próprios entes de gestão. Estas são retiradas necessariamente das quantias cobradas como destinadas aos titulares. Temos antes de mais as quantias destinadas à administração do próprio ente. Têm sempre de existir, porque são a base para que a administração se possa realizar. A alternativa seria o Estado tomar sobre si esse encargo, o que acontece em certos casos, em países escandinavos e agora acontecerá na Espanha, na remuneração dos autores pela cópia privada: mas é uma ocorrência insólita. A questão está no volume desta percepção sobre os rendimentos. A Lei n.º 83/01, de 3 de agosto, que regula a gestão coletiva, não estabelece nenhum limite. Deveria estabelecê-lo. Tão-pouco o estabelecia a lei sobre compensação por cópia privada (Lei n.º 62/98, de 1 de setembro). Na prática as percentagens variam muito, chegando a atingir 30%, na previsão legal. Assim, a proposta de reforma da lei da cópia privada do GPEARI4, de 2011, que continua pendente, limitava os custos de funcionamento a 30% das receitas globais obtidas com a cobrança das compensações equitativas. Na versão da proposta de abril de 2011 o limite baixou para 20%, então no art. 11/45. Não é esta a única percepção que grava sobre as receitas arrecadadas. O art. 13 da Lei n.º 83/01, de 3 de agosto, atribui às entidades de gestão coletiva uma “função social e cultural”. A esta devia ser afetada uma percentagem não inferior a 5% das receitas. O PJL 118-XII6, sobre a reforma da lei da cópia privada, previa por sua vez que, das receitas líquidas apuradas para “compensação” da cópia privada, fossem ainda destinadas:  a) 10% a um Fundo Cultural  b) do remanescente, 5% ao Fundo Cultural do Ministério da Cultura  c) do remanescente, 10% à entidade pública de fiscalização Tudo isto é anômalo. 4 Do Ministério da Cultura. 5 E um projeto posterior do grupo do PSD na Assembleia da República baixava a percentagem para 15%. 6 Apresentado na Assembleia da República e discutido em comissão em 2012. Estava aliás muito mal estruturado e foi retirado. Não avançamos na interpretação deste para nos não afastarmos do nosso tema. 21

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Começando pela função cultural, essa está completamente deslocada. A “pessoa coletiva” prevista é uma entidade de arrecadação de receitas e de distribuição subsequente pelas entidades de gestão coletiva suas associadas. A isso se reduz a sua competência. Não tem nenhuma qualificação especial que lhe permita arvorar-se em difusora cultural, e muito menos a tem para o fazer à custa dos autores e outros beneficiários, mordendo nas verbas a estes destinadas. A função cultural, prevista logo na epígrafe do artigo, equivaleria muito provavelmente a auto-promoção da entidade de gestão coletiva. O Projeto acima referido, sob a epígrafe “Fundo Cultural”, previa no art. 12/1 que a entidade única de cobrança, como dissemos, destine 10% das receitas líquidas à constituição dum Fundo Cultural, pressupõe-se que da entidade única de cobrança. Reside aqui a grande falha desta entidade, que tem atuado de modo rotunda e manifestamente ilegal. A prática foi ainda pior que a lei: a entidade única, a AGECOP, não exerce a função cultural a que está adstrita por lei, antes repassa os fundos a isso destinados a alguns dos entes de gestão seus associados. Há assim uma dupla ilegalidade, a primeira por omissão, a segunda por disposição indevida de fundos consignados. E receiase que esses fundos sejam simplesmente arrecadados pelos entes associados para que são remetidos, sem afetação efetiva a finalidades culturais, porque não há satisfatória prestação de contas da destinação que se lhes atribui. Apareceu também uma referência à função social. Esta é em Direito uma categoria técnica, mas aqui tem um sentido completamente diferente. Traduz-se na “prossecução de atividades sociais e de assistência aos seus associados ou cooperadores”. Não se vê o que sejam “atividades sociais”: os titulares dos direitos agradeceriam decerto que o dinheiro para tal despendido lhes fosse antes diretamente entregue. E também uma entidade de gestão coletiva de arrecadação não tem nenhuma qualificação especial para tomar para si funções de assistência aos seus membros. Tudo isto correria muito melhor se as quantias eventualmente aplicadas seguissem o destino normal, sendo repartidas diretamente pelos titulares dos direitos administrados7. A seguir (art. 12/2) prevê-se que a mesma entidade única afete 5% das receitas líquidas percebidas ao Fundo Cultural do Ministério da Cultura, consignada ao pagamento do Subsídio de Mérito Cultural. Há aqui um óbvio aproveitamento parasitário: uma percepção extraordinária de dinheiros destinados aos autores vai reverter em benefício de um fundo público. É um 7 Não poderá deixar de se estranhar também que esta matéria venha submetida à epígrafe comum “Fundo Cultural”. 22

propriedade intelectual imposto? De todo o modo, não se explica por que é atingida esta remuneração, destinada a estes autores (e editores também), e não quaisquer outros proveitos que aos titulares se destinem. Com isto, já lá vão 35% das receitas, que são subtraídas aos seus destinatários! Ultrapassam-se até os 30% que inicialmente haviam sido previstos para os custos de funcionamento dos entes de gestão coletiva! Enfim, o art. 13 prevê que a fiscalização caiba ao IGAC e que para isso a entidade única pagará uma taxa correspondente a 10% dos custos de funcionamento – portanto, da quantia até 20% das receitas previstas. Também é anómalo que os custos da fiscalização no interesse público acabem por recair sobre os próprios fiscalizados. E com isto lá se vai mais uma fatia da receita que a lei justificara como compensação da cópia privada.

5. As autorizações globais de utilização dum repertório Um ponto ainda mais delicado está na repartição dos proventos obtidos pelos titulares a quem a lei os destina. Para o esclarecer, seria necessário apurar os critérios que presidem a essa repartição. Mas aí, espera-nos uma surpresa: a lei, em geral, nada diz. Procurando avançar, vamos distinguir os dois tipos fundamentais de situações em causa. Os direitos (ou faculdades) integrados no direito de autor podem basicamente ser: • direitos exclusivos • direitos de remuneração. Abstraímos do direito pessoal (“moral”) e de outras faculdades pessoais singulares que possam aparecer em certos direitos específicos. Como os direitos intelectuais são em si exclusivos, as grandes faculdades correspondentes também são, como é natural, exclusivas. Nessa categoria se integram os grandes direitos ou faculdades complexos de comunicação ao público, reprodução, distribuição e transformação. Mas também há ocorrência, como vimos, de direitos de remuneração. Aí abre-se uma fresta no exclusivo, não podendo o titular impedir a utilização por outrem, mas restando-lhe o direito de ser remunerado pela utilização. Qualifica-se então a compensação ou remuneração como “equitativa”: veja-se o art. 76/1 b CDADC. 23

Como se processa a autorização dos titulares, em ambos os casos, quando os direitos são confiados à gestão coletiva? Dissemos já que nos casos paradigmáticos a obra ou prestação, entregue à entidade de gestão coletiva, é objeto de negócios de massa. A obra perde a sua individualidade. Entra tudo no mesmo saco. É uma mónada mais, dentro da categoria que é objeto de negócios de autorização global. Abstrai-se completamente da índole de cada obra ou prestação ao se concederem licenças globais de utilização de todo um repertório.

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Os entes de gestão coletiva emitem tabelas ou tarifas, atendendo às utilizações que se tiverem em vista e que são então precisamente caracterizadas. Dependem de fatores externos e não da qualidade intrínseca de cada obra ou prestação. Atende-se por exemplo ao tipo de estabelecimento, área, função a desempenhar, época do ano, etc. Vai-se ao ponto de se especificar igualmente a música ambiental, os lares para idosos, os escritórios sem atendimento de público, a música que se ouve durante as esperas telefónicas...8 Mas nestas e noutras especificações, por vezes altamente contestáveis, não entra a ponderação da valia da obra ou prestação concreta. A licença é dada tipicamente “a peso”, abrangendo todo o repertório ou fração dele.

6. A problemática da legitimidade Isto cria, necessariamente, um problema grave de legitimidade. Como podem as entidades de gestão coletiva dar licenças universais de utilização? Isso suporia que representam todos os titulares do mundo. Começamos pelos casos de gestão coletiva forçada: aqueles em que a lei dispõe que certos direitos só podem ser exercidos por entidade de gestão coletiva. Vamos supor que há uma única entidade nesse setor, que essa entidade está constituída e que não há dissídio sobre a respetiva legitimidade. A entidade pode outorgar licenças globais. Mas, mesmo então, há uma incongruência. As entidades de gestão coletiva são territoriais, logo só podem autorizar para o território português. Se pretendem dar licenças referentes a obras ou prestações que têm por país de origem países estrangeiros, falta-lhes legitimidade para tanto. Procura-se então ultrapassar a dificuldade mediante convênios de representação recíproca. Por acordo entre as entidades gestoras do tipo de direitos 8 Podemos dar como exemplo as tabelas da entidade de gestão coletiva de direitos dos artistas.

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propriedade intelectual em causa, uma entidade de país estrangeiro representa os titulares portugueses daqueles direitos, enquanto a entidade portuguesa representa os desse país9. Isto resolve alguns problemas, mas não resolve todos. Por um lado, porque nem em todos os países do mundo há as entidades de gestão de todas as categorias; em certos casos não as há mesmo de categoria nenhuma. A licença universal concedida não cobre pois toda a utilização que possa ser realizada. A utilização que exceda esse limite constituiria possivelmente um crime, à luz da ordem jurídica portuguesa. Mas subsistem dificuldades, até quando há em Portugal uma representação coletiva forçada (o que dá a segurança máxima possível mas que é de ocorrência relativamente rara): basta que o mesmo não aconteça à luz da ordem jurídica estrangeira. Uma vez que o grande princípio é, como não podia deixar de ser, o de que cada entidade de gestão só representa os seus próprios representados, temos mais uma vez uma ilegitimidade na autorização global que for emitida. O usuário português estará em falta, porque não recebeu afinal uma autorização universal. E como é também fatal (uma vez que racionalmente não pode deixar de se concluir que é assim) pairam sobre ele todas as consequências negativas da falta de título suficiente. Passamos agora à situação meramente interna: a do utilizador que recebe a “licença” de uma entidade nacional, e só se propõe utilizar música ou em geral obras ou prestações que têm Portugal como país de origem: fado, por exemplo. Mesmo então, se não houver gestão coletiva forçada, os problemas de legitimidade persistem. De facto, as entidades de gestão continuarão a não poder autorizar universalmente aquele tipo de utilizações, porque a pertença a essas entidades é livre. Logo, o utilizador não fica universalmente garantido, mesmo nesta hipótese. Poderá ser sempre atacado como infrator pelos titulares que se não filiaram10. 9 Esses acordos podem ser de vários tipos. Podem as duas entidades: a – guardar para si as receitas correspondentes às autorizações dadas em representação dos titulares membros ou administrados pela outra entidade, o que pressupõe uma equivalência tendencial de valores; b – ou entregar as receitas correspondentes a titulares do país estrangeiro à entidade de gestão coletiva estrangeira com quem contrataram. É natural que neste caso se proceda à compensação de valores resultantes do exercício da representação recíproca. 10 De facto, as entidades de gestão coletiva não elaboram normalmente listas das obras ou prestações dos associados que constam do seu repertório; e igualmente não as têm, ou não as têm atualizadas, das dos titulares associados ou representados pelas entidades estrangeiras com quem celebraram acordos de representação recíproca. A questão da legitimidade é real – tal como consequentemente o é o risco que recai sobre o utilizador. 25

Concluímos assim que o sistema globalizante, fundado em licenças referentes a toda uma categoria de obras, tem pés de barro. Salvo na hipótese rara de ambos os contraentes beneficiarem de gestão coletiva forçada, não garante representatividade que dê em todos os casos uma segurança completa ao usuário no gozo da licença obtida. Excluindo a hipótese de se fornecer uma lista exaustiva de todas as obras ou prestações abrangidas pela representação, que não é na realidade praticável.

7. A repartição pelos titulares As licenças globais criam também grandes problemas de repartição.

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A repartição é uma fase extremamente delicada. Não há então, mesmo entre os titulares representados, solidariedade: há, sim, choque de interesses. Para os afrontar, deve haver critérios que permitam a justificação com transparência das posições adotadas pelo ente de gestão. Mas, com surpresa, verificamos que a Lei n.º 62/98 é completamente lacunosa neste ponto. Limita-se a remeter no art. 15/2  l para os estatutos de cada entidade, que deverão prever “os princípios e regras do sistema de repartição e distribuição dos rendimentos”. Lava daí as suas mãos. Pelo que o receio é grande de que se caia no domínio da arbitrariedade ou da subordinação a certas maiorias. Na realidade, como se pode saber quais as utilizações que efetivamente foram feitas, se a autorização é global? É claro que não se pode seguir a solução fácil de repartir igualmente por todos os titulares. Mas como também se não fazem distinções pelo mérito intrínseco das obras ou prestações, fica o campo aberto ao palpite – ou seja, à arbitrariedade. Se porventura se procedesse por amostragem já seria bem melhor, mas não cremos que seja habitual. Acresce até que, quando a lei intervém nesta matéria, o resultado é assustador. É o que acontece nos termos da Lei n.º 62/98, de 1 de setembro, que regula a compensação por cópia privada. O art. 5 prevê incaracteristicamente a “Pessoa coletiva”: é a entidade única de cobrança e distribuição das quantias destinadas a essa compensação. Esta é hoje em dia a AGECOP, que é constituída por sua vez pelas entidades de gestão coletiva de direitos autorais setoriais11. Ora bem, este art. 5/2 e determina que os estatutos da “pessoa coletiva” deverão prever “critérios de repartição das remunerações entre os Problema similar é o que respeita à legitimidade processual das entidades de gestão coletiva. Versámo-lo no nosso Direito Penal de Autor cit., n.os 25 e seguintes, e não o iremos retomar agora. 11 Incluindo dos editores, que todavia não são titulares de direitos autorais. É outra anomalia, que mostra como o centro de gravidade do Direito Autoral se deslocou para a defesa dos direitos empresariais. 26

propriedade intelectual membros dos associados, incluindo os modos de distribuição e pagamento aos beneficiários que não estejam inscritos nos respetivos organismos mas que se presume serem por estes representados”. É espantoso. Não são sequer os estatutos das entidades representativas dos beneficiários que determinam os critérios de repartição: são os estatutos da pessoa coletiva que as agremia, a AGECOP. A pessoa coletiva, entidade de Direito Privado, vai comandar o modo de proceder das entidades representativas dos setores compreendidos! Não temos dúvida em afirmar a inconstitucionalidade de semelhante previsão. A regulação geral desta matéria só poderia provir da lei. Colocar uma entidade privada a “legislar” sobre os modos de proceder das entidades de gestão que a compõem está fora de toda a legalidade institucional. A “pessoa coletiva” é uma mera entidade de cobrança e distribuição dos dinheiros destinados aos titulares12. A lei atribui ainda à “pessoa coletiva” a gestão das quantias arrecadadas, mas erradamente o faz. A pessoa coletiva é mera entidade de cobrança e distribuição. Deve distribuir os proventos pelos seus associados e não retê-los. Por isso, autonomizar ainda uma função de gestão dos dinheiros arrecadados é muito perigoso, pois sugere que a pessoa coletiva tenha um domínio sobre as receitas que só poderia funcionar em detrimento dos destinatários finais. De facto, a lei não pode eximir-se de estabelecer os grandes fundamentos da repartição final. O que se espera que aconteça nos trâmites da reforma da Lei n.º 62/98, atualmente em curso. O problema está, como dissemos, na técnica a adotar, de maneira a dar visos de credibilidade às repartições que se realizam. A questão é geral: sempre que há uma autorização global é este o problema primeiro que se defronta. São porém inúmeros os desvios que vamos encontrar neste domínio. Por vezes, as entidades não repartem, pura e simplesmente, os proventos recebidos ou certas classes destes. Assim, em Espanha, a AISGE, entidade representativa dos artistas, recebe a compensação equitativa por cópia privada, mas não a distribui pelos artistas: declara afetá-la a funções de tipo assistencial em benefício dos artistas necessitados. A legitimidade de semelhante tipo de destinação é altamente contestável, porque a lei prevê esta compensa12 Distinguimos distribuição e repartição, seguindo a terminologia tendencial da lei. A distribuição é realizada pela pessoa coletiva entre os seus associados, que são entidades de gestão coletiva; a repartição é feita por estas últimas entre os beneficiários finais seus associados. 27

ção em benefício dos artistas, como pessoas individualizadas, e não em benefício de um coletivo abstrato. Os critérios de atribuição são por outro lado discricionariamente fixados pelo AISGE, em termos de modo algum transparentes13.

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Suponhamos agora os casos em que há repartição pelos titulares a quem esta compensação se destina. O critério-base deveria ser o da utilização efetiva da obra ou prestação. As técnicas modernas permitem até encarar com otimismo a questão, através sobretudo do DRM, Digital Rights Management. Independentemente de alguma ambiguidade na expressão (que não é este o lugar para procurar esclarecer), temos que os meios digitais permitem hoje, com uma certa segurança, progredir muito neste domínio. Permitem nomeadamente apurar em muitos casos as utilizações efetivamente feitas: e não só as utilizações através da internete, mas também utilizações radiodifundidas e outras. O palpite pode ser sucessivamente arredado em benefício de métodos de segurança acrescida. Com isto, o autor (ou o titular em geral) ganha um novo protagonismo. Deixa de estar inerme perante a entidade de gestão, submetido passivamente aos entendimentos desta. Passa a poder controlar e participar ativamente na repartição. Os grandes titulares, como os grupos musicais de expansão mundial, podem até ir mais longe: desligar-se das entidades de gestão coletiva para passar a administrar diretamente os seus próprios direitos. Tal supõe evidentemente um investimento empresarial próprio, mas a digitalização é a arma que permite afastar métodos clássicos onerosos e uma sujeição indesejada, para estabelecer um sistema muito mais simples e transparente de gestão. Passa a ser mera decisão financeira de cada titular recorrer à gestão coletiva ou à gestão individual. Isto consolida o novo protagonismo do autor ou do titular em geral.

8. Suavização da subordinação dos titulares A situação do autor – ou mais amplamente, de todo o titular de direitos autorais – quer esteja legalmente subordinado a entidade de gestão coletiva, quer quando a elas voluntariamente adere, para gestão coletiva forçosa ou não – é como se viu precária. Mas ocorre observar que esta precariedade tem também os seus limites. Não a eliminam, mas suavizam-na. 13 Com a reforma da lei espanhola sobre cópia privada e a transferência para o Estado do encargo da atribuição da compensação, o volume desta compensação baixou radicalmente. A AISGE lamenta que, em vez dos 110 milhões que eram recebidos anteriormente, tenha passado a receber apenas 5 milhões: veja-se Celia Teijido, España da un paso atrás en la defensa de sus creadores, em ACTUA (Revista da AISGE), 80, jul/ set 12, 81. 28

propriedade intelectual I – Os direitos não patrimoniais São os autores quem tem direitos não patrimoniais bem qualificados14. O primeiro, e mais importante e decisivo, é o representado pelos direitos não patrimoniais (os impropriamente chamados direitos morais). Estes vêm previstos nos arts. 56 a 62 CDADC, sob o galicismo “Direitos morais”. No art. 56/2 dispõe-se, em relação às faculdades aí previstas, que são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis. Há uma evidente personalização do exercício que impede que os direitos não patrimoniais possam ser dados à gestão coletiva. Qualquer eventual intervenção das entidades de gestão coletiva neste domínio só se poderia imaginar dentro dos limites muito apertados em que é possível imaginar uma intervenção de terceiros em relação a faculdades que têm uma estreita ligação com bens ligados à personalidade de outrem. II – Limitação do conteúdo do contrato de gestão O art. 12 da Lei n.º 83/01, de 3.VIII, que como dissemos regula a gestão coletiva, restringe de vários modos o conteúdo do contrato de gestão. O contrato de gestão:  1. Não pode ser estabelecido para mais de 5 anos, embora se renove automaticamente se as partes não lhe puserem fim  2. Não pode impor a entrega à exploração coletiva de todas as obras ou prestações protegidas do aderente  3. Não pode prever que seja atribuída ao ente de gestão a produção que o aderente realize de futuro. Amacia-se, como se vê, a sujeição do titular. Há porém que observar que o remédio é parcial e insuficiente. Se há gestão coletiva forçada, o autor não pode discutir que obras entrega ou não à gestão coletiva: ou não as explora, ou se as pretende explorar ficam automaticamente abrangidas. E, se há gestão coletiva forçosa, o autor acaba mesmo por entregar as suas obras à exploração, mesmo que maldizendo interiormente o contrato que assina. III – Os entes de gestão têm também obrigações Não são muitas e a lei deixa inúmeros pontos por regular, mas é bom que estejam contempladas algumas. Particularmente importante é o art. 11 14 Fala-se também por vezes em direitos não patrimoniais dos titulares de direitos conexos: estariam em causa particularmente os artistas intérpretes ou executantes, que são pessoas físicas e podem assim invocar direitos ligados à personalidade. Mas independentemente da análise aprofundada do estatuto destes, que não caberia neste trabalho, pensamos que o artista tem efetivamente faculdades não patrimoniais; mas a estas não corresponde um direito não patrimonial, com a solidez que esta atribuição pressupõe. Por isso a lei, pensamos que com razão, não distingue na titularidade dos artistas um direito pessoal. 29

da Lei n.º 83/01, que estabelece o “Dever de gestão”. Foi difícil fazê-lo incluir na lei portuguesa, não obstante previsto em documentos internacionais15, mas é fundamental. Com efeito, se assim não acontecesse, os entes de gestão poderiam excluir as pessoas non gratae, reduzindo-as a uma espécie de condição de párias no seu universo. A expulsão dos recalcitrantes pairaria como ameaça sempre presente, para reduzir ao silêncio os mais ousados. De todo o modo, o desequilíbrio em benefício dos entes de gestão é acentuadíssimo. Dissemos que o titular de direitos está reduzido a uma espécie de posição de cliente do ente de gestão. Mas este cliente nem sequer tem em seu favor a tutela do consumidor, que tem o cliente comum.

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IV – A diminuição relativa dos poderes do representante em relação aos dos titulares O último elemento de suavização da subordinação do titular está na circunstância de a entidade de gestão coletiva não ter sobre a obra ou prestação poderes idênticos aos que tem o titular. E isto mesmo deixando de parte o que dissemos já em relação a poderes não patrimoniais. O titular tem em relação à obra ou prestação, em princípio, todos os poderes. Pode por isso explorá-la ou não, abandoná-la, proibir o aproveitamento gratuito por terceiros...16 A entidade de gestão coletiva não. Tem apenas poderes funcionais. Deve exercer a exploração da obra no interesse do titular. Não pode prescindir dessa exploração, nem exercê-la para finalidade diversa daquela. Em consequência, o titular pode admitir a utilização gratuita da obra ou prestação por terceiros – por exemplo, para fins beneficentes ou por uma causa a que particularmente se devote. A entidade de gestão coletiva não. A utilização gratuita não se presume ser do interesse do titular. Como ela está vinculada a servir este interesse, deve recusar sistematicamente autorizações dessa índole. Acontecendo então que, caso o titular fique contratual ou legalmente excluído de interferir na utilização da obra, nem o titular nem o ente de gestão poderão só por si autorizar utilizações gratuitas, ainda que seja manifesto o interesse para a comunidade dessas utilizações. 15 Dada a oposição das entidades de gestão coletiva nacionais. 16 Salvo casos excecionais de deveres de exercício. 30

propriedade intelectual 9. A intervenção pública É óbvio que há interesses coletivos ou públicos ligados aos direitos intelectuais e ao exercício destes. Tais interesses coletivos justificam a intervenção de órgãos públicos na matéria e, consequentemente, a supervisão dos organismos de gestão coletiva. Aí concorre até uma razão suplementar, porque além do interesse geral há a necessidade de tutela dos interesses dos titulares representados por estes entes de gestão coletiva. Por isso, os países do nosso sistema jurídico criaram organismos públicos a que atribuíram a supervisão da matéria. Estes organismos estão normalmente incumbidos também de coordenar a política nacional e internacional do país no domínio do direito de autor e direitos conexos. A conformação e as atribuições variam porém grandemente. E isto resulta desde logo de as próprias entidades de gestão coletiva manifestarem sentimentos contraditórios em relação à supervisão. Por um lado querem que ela exista para centralizar a fiscalização e repressão das atividades lesivas dos direitos autorais, aliviando-as dos esforços e custos de tais tarefas; mas por outro lado não querem que as suas próprias atividades sejam controladas. Neste último sentido foi paradigmática a posição tomada pelo Brasil com a aprovação da Lei n.º 9610, de 19.II.98, que é a lei ainda vigente em matéria de direitos autorais: o Conselho Nacional de Direito Autoral, órgão de supervisão, foi pura e simplesmente suprimido, sem que nenhum outro órgão o substituísse nas suas funções! Com isto o Brasil não só ficou sem entidade de supervisão, como ainda na situação rara de não ter um órgão centralizador da política pública no domínio autoral, o que tem inconvenientes manifestos que só agora se tenta, penosamente, superar17. Na situação legislativa normal, os entes de gestão coletiva estão sujeitos à supervisão por parte dos órgãos públicos. Esta supervisão destinar-se-ia a afastar as irregularidades e a assegurar que as finalidades da lei fossem efetivamente alcançadas. Mas, como em toda a supervisão, o resultado final depende da efetividade como esta se exerça. Particularmente quando recai sobre entidades económica e financeiramente poderosas como as entidades de gestão coletiva. No limite, há sempre a ameaça da captura do regulador: a entidade de supervisão pode ser capturada, de maneira a tornar-se um instrumento dos interesses dos entes de gestão junto do governo, em vez de um promotor do interesse geral – que inclui a proteção dos titulares representados. 17 A Proposta de lei em debate desde 2009 prevê a criação dum órgão com essas funções, mas a aprovação tem sido sucessivamente postergada. 31

A falta ou inoperância do regulador é uma situação política e economicamente inadmissível.

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Como dissemos, os direitos autorais consubstanciam-se normalmente em exclusivos. Os exclusivos, atuados na vida de negócios, constituem monopólios. O facto de as entidades de gestão coletiva gerirem monopólios bastaria já para tornar indispensável uma supervisão, para assegurar que as regras mínimas da concorrência sejam respeitadas. Mas isto é ainda agravado pela circunstância de em cada país as entidades de gestão coletiva serem elas próprias únicas no seu domínio. Têm um monopólio de direito, se a lei impõe que haja apenas uma entidade do seu tipo – é o caso da AGECOP em Portugal ou do ECAD no Brasil; ou têm um monopólio de facto, quando as vicissitudes históricas levaram a que num setor só uma entidade de gestão coletiva se criasse ou só uma entidade subsistisse. Em qualquer caso, mas mais agudamente quando elas próprias são monopolistas, têm de estar sujeitas às regras da concorrência18. Por isso, Schack pergunta se haverá um direito subjetivo público dos beneficiários a essa supervisão. Alinha com a posição dominantemente seguida, que é a afirmativa19. E isto permite ao público contestar tarifas desproporcionadas por parte dessas entidades monopolísticas. E tem ainda outra consequência: é a que respeita à atuação dos tribunais. Sabemos que os limites da intervenção dos tribunais no conteúdo dos contratos são apertados. Mas aqui verifica-se uma situação particular, consistente no caráter monopolista das entidades em presença. Há então uma necessidade acrescida de regulação das atividades no mercado. Os tribunais estão também legitimados para o fazer, para a resolução de litígios sobre regras da concorrência. Particularmente, dada a posição dominante que essas entidades detêm, é forte a tentação do abuso. Haverá que valorar o exercício à luz das regras da concorrência. Recentemente, as instâncias de supervisão têm tomado em vários países uma posição ativa no controlo dos abusos de posição dominante e outros desvios das entidades de gestão coletiva. É o caso da “Comisión Nacional de la Competencia” em Espanha20. Efetivamente, a grandes entidades de gestão co18 Se uma entidade única detém direitos musicais para efeitos de radiodifusão, por exemplo, essa entidade poderia impor as tarifas que quisesse, nas condições que determinasse, sem qualquer correlação com o valor relativo dos bens intelectuais em presença. 19 Haimo Schack, Urheber- und Urhebervertragsrecht, 2.ª ed., Mohr Siebeck, 2001, n.º 1191. 20 Esta autoridade publicou em 2009, sob a designação de Un nuevo impulso, um “Informe sobre la gestión 32

propriedade intelectual letiva, como a SGAE (autores) e a AISGE (artistas), têm sido aplicadas pesadas multas por parte das autoridades reguladoras da concorrência. Não é este porém o único fator relevante. As variações de país para país são grandes, mas a matéria não escapa hoje (podemos afirmá-lo nestes termos amplos) ao crivo do controlo judiciário. As entidades de gestão, na normalidade dos casos, estabelecem as suas tarifas, que não são sujeitas a discussão. Estas tarifas, tecnicamente, representam cláusulas negociais gerais21. Conduzem portanto àquilo a que se chamava e as leis ainda chamam o contrato de adesão. Os utilizadores potenciais dos bens em questão, perante os entes de gestão, são consumidores. Têm por isso um direito especial de proteção perante as cláusulas negociais gerais. Tudo isto é controlável judicialmente, se não for resolvido no nível da supervisão administrativa. Não é necessário sequer haver uma previsão na lei da figura técnica da lesão: a proteção legal da parte mais fraca, perante o abuso da entidade monopolista, dá hoje meios de defesa muito efetivos. Em última análise, o recurso aos tribunais garante a efetividade destes.

10. A integração econômica europeia e os exclusivos intelectuais Vimos que os direitos intelectuais constituem nuclearmente em exclusivos; e que esses exclusivos são passíveis de estar confiados a entidades de gestão coletiva que, paradigmaticamente, constituem elas próprias monopólios. Mas ainda há outro exclusivo, de caráter universal, que não pode deixar de ser referido – até pelos problemas que cria na União Europeia. Este último é o exclusivo que resulta da territorialidade dos direitos intelectuais. Não obstante todos os movimentos de harmonização / uniformização dos direitos intelectuais, estes continuam a ter como ponto de partida a territorialidade. Cada país é competente para regular estes direitos no seu próprio território: não se admite que entidades exteriores pretendam estender a sua disciplina a estas matérias. Por isso se harmoniza e se estabelecem mínimos internacionais, mas não se arreda a competência interna de cada Estado. Por mais densas que sejam (e são realmente) as vinculações internacionais. colectiva de derechos de propiedad intelectual”, que é arrasador na descrição dos desvios das entidades de gestão coletiva. 21 Ou “contratuais gerais”, como habitualmente são qualificadas, para retratar a situação mais frequente. 33

Isto arrasta consequentemente a territorialidade das entidades de gestão coletiva. Elas emergem de determinado país e consequentemente têm por limite as fronteiras desse país. Não podem pretender licenciar obras ou prestações com eficácia em países estrangeiros22. Por isso dissemos já que quando se querem estabelecer esquemas com eficácia extra-fronteiras as entidades de gestão coletiva procedem por acordos de representação recíproca. O princípio da territorialidade do direito autoral fica assim salvaguardado. Mas como é possível compatibilizar estes princípios com o movimento de integração económica europeia? A reação da União Europeia aos exclusivos intelectuais atravessou três fases: hostilidade, aceitação, promoção.

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No início, o exclusivo, como obstáculo à livre circulação de bens ou serviços, foi visto como um inimigo. Considerou-se que estava fora das competências da Comunidade e procurou-se de várias maneiras limitar os efeitos negativos sobre a integração económica. Vencida esta primeira fase, de demolição das barreiras à integração, a atitude dos órgãos centrais da Comunidade muda. Aceita-se a existência destes exclusivos e consequentes monopólios sob a cobertura do direito de propriedade, que os tratados comunitários garantiam, e procura-se harmonizá-los dentro do conjunto das previsões comunitárias. A terceira fase, que é a atual, corresponde à maturidade da integração comunitária e ao movimento de irradiação das potências dominantes sobre os outros países. Os monopólios intelectuais são sucessivamente empolados por vários instrumentos rotulados de harmonização, que reforçam a subordinação económica dos membros menos desenvolvidos; estes ficam vinculados, embora não estejam em condições de tirar deles proveito. A atual União passa assim a ser promotora ativa da exacerbação dos monopólios intelectuais, a nível interno e a nível internacional. Por outro lado, na política europeia do digital há uma limitação pouco compreensível. O ciberespaço não conhece fronteiras. Todos comunicamos ou podemos comunicar com todos pela Net. Pelo que a regulação em matéria da internete deve ser, por natureza, uma regulação universal. Mas a União Europeia, regulando a matéria antes de mais pelo prisma interno, da lógica do mercado interno e sua integração, omite frequentemen22 Tal como, reciprocamente, não se admite que entidades estrangeiras pretendam licenciar obras ou prestações nesse território. 34

propriedade intelectual te o que ocorre além das fronteiras da própria União. Não é o que fazem outras entidades, a começar pelos Estados Unidos da América. Porém, a União Europeia invoca a comitas gentium, a velha “cortesia internacional”, para se quedar aquém desse limite. Deixando a dúvida se não se tratará antes da política, habitualmente praticada, de deixar o campo livre aos Estados Unidos da América. Assim, há uma lacuna persistente na disciplina das repercussões dos direitos intelectuais além do espaço europeu. De facto, esta matéria foi discutida, justamente no domínio da gestão coletiva. Assim, Ferdinand Melichar, em livro sobre gestão coletiva23, põe a questão da necessidade duma “licença global”. Opõe-se a Hoeren, que se posicionara, em estudo para a Comissão Europeia, no sentido da formação de uma “Sociedade de Gestão Coletiva Internacional”. Considera que o confronto das entidades nacionais de gestão coletiva será suficiente para defrontar esta dificuldade. É pois um ponto em aberto. A União Europeia evitou-o, limitando-se quase à regulação, sempre fragmentária, do mercado único.

11. Territorialidade da gestão coletiva e construção do mercado único europeu Mas o empolamento dos direitos intelectuais e a territorialidade destes suscitam problemas de compatibilidade com o movimento crescente de integração económica europeia. A questão põe-se em particular justamente no domínio da territorialidade dos organismos de gestão coletiva. Como se compreenderia que no mercado interno cada país guardasse o exclusivo da gestão coletiva no seu próprio território? Não seria muito mais adequado abrir igualmente esta matéria à concorrência? Permitindo que as entidades de gestão coletiva, que são também empresas, entrassem em concorrência no espaço comunitário? Esboçou-se então, a nível da Comissão Europeia, o que parecia ser uma quarta fase: a da correção dos excessos monopolísticos no âmbito dos direitos intelectuais, abrindo a uma visão mais solidária e concorrencial, e simultaneamente sensível ao interesse público. Foram produzidos vários documentos de grande interesse, no primeiro mandato de Durão Barroso como Presidente da Comissão, que suscitaram esperanças. A preocupação que desencadeou esta mudança de atitude foi a da gestão coletiva transfronteiriça da música em rede, na sequência aliás de es23 Urheberrecht in Theorie und Praxis, Mohr Siebeck, 1999, 157. 35

forços e sugestões no sentido da criação dum guichet único e da preocupação demonstrada perante a inexistência de licenças pan-europeias. Assim, a 18 de maio de 2005 é emitida uma Recomendação da Comissão (2005/737/CE) “relativa à gestão transfronteiriça coletiva do direito de autor e dos direitos conexos no domínio dos serviços musicais em linha legais”. No mesmo ano, em 11 de outubro, é publicado um documento de trabalho da Comissão, sobre o impacto da reforma24. Lueder, ao tempo diretor dos serviços, desdobrou-se em declarações sobre essa política25.

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Mas tudo foi estéril, afinal. Por mais ousadas que fossem as proclamações, as realizações foram sempre no sentido oposto. É nomeadamente nessa altura que surge a ampliação da duração dos direitos dos artistas e dos produtores de fonogramas para uns absurdos 70 anos!26 No segundo mandato de Durão Barroso dá-se uma nova investida, na sequência da Agenda Digital27. A gestão coletiva volta a ser aí diretamente considerada (n.º 2.11.): “O regime e a transparência da gestão coletiva devem ser melhorados e adaptados ao progresso tecnológico”. Refere-se o “licenciamento transfronteiras e pan‑europeu do audiovisual”. Mas acrescenta-se que as licenças poderão continuar a ser restringidas a um território apenas. A posição é sustentada agora a um nível mais alto, que é o dos comissários: é a comissária Kroes quem coloca abertamente as questões. Mas o tempo passou e criou a dúvida: a História não se estará repetindo? Os discursos são muito bons mas afinal as realizações desmentem-nos. Vemos nomeadamente a Comissão da União Europeia participar ativamente, com vários países tutelados pelos Estados Unidos da América, na negociação, nada transparente, do Tratado ACTA 28; enquanto que, no sentido propugnado pela Comissão, não resultava afinal nada. Entretanto, é pronunciado um importante Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso Premier League. 24 SEC (2005) 1254. A 1.ª versão é de 7 de julho de 2005. 25 Veja-se sobre esta época o nosso O Direito de Autor e a Internete. Em particular as recentes orientações da Comunidade Europeia, in Direito da Sociedade da Informação, vol. VII, APDI/Coimbra Editora, 2008, 9-26. 26 Por evidente indução dos Estados Unidos da América. 27 COM (2010) 245 final. Já antes, em 3.I.08, a Comissão emitira outra comunicação, com o título Conteúdos criativos em linha no mercado único (COM (2007) 836 final, 03.01.2008), em que uma das ideias-base era a criação de licenças multiterritoriais para conteúdos criativos. A Agenda Digital retoma estes objetivos, apelando para o licenciamento transfronteiras e pan-europeu: observando que não existe na Europa um mercado unificado no setor dos conteúdos (n.º 2.11.). 28 Que acabou rejeitado pelo Parlamento Europeu.

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propriedade intelectual Um pub britânico pagava, como todos os outros, 700 libras por mês pela transmissão de jogos de futebol em que interviessem equipas inglesas. Resolve passar a comprá-los à Grécia, pagando apenas 800 libras por todo o ano. A questão foi levada a tribunal e discutida com base na livre circulação de serviços. Mas parece que não podia deixar de estar também em causa, ao menos implicitamente, a territorialidade da gestão coletiva. O Tribunal de Justiça (U.E.) acabou por dar razão à dona do pub29. Fá-lo com uma certa ambiguidade, como aliás é frequente. Se bem interpretamos, o Direito Autoral continuaria a ser territorial, mas os entes de gestão poderiam oferecer os seus serviços onde quisessem. A ser assim, perderiam a tranquilidade do exclusivo de gestão mas ganhariam um espaço muito mais amplo de exercício, em termos de livre concorrência. O Ac. procura não obstante moderar as consequências a que chegara, invocando por outro lado que, embora o espetáculo não fosse objeto de Direito Autoral, poderia haver nele elementos protegidos: seria o caso dos logotipos visíveis ou dos hinos que fossem tocados. É um desvio fútil e pouco convincente. A visão ou a audição destes elementos não é uma utilização ilegítima. No CDADC português estaria abrangida no art. 75/2 d (a comunicação pública de fragmentos de obras, “quando a sua inclusão em relatos de acontecimentos de atualidade for justificada pelo fim de informação prosseguido”) e pela al. r (“a inclusão episódica de uma obra ou outro material protegido noutro material”). Destes retira-se seguramente que há um princípio que permite excluir da proteção as obras que episodicamente possam ser vistas ou ouvidas no curso de uma emissão radiodifundida. E afinal, é esse o princípio que consta, até com maior generalidade, do art. 10-bis/2 da Convenção de Berna30. Este princípio foi expressamente acolhido pelo ADPIC/TRIPS, ao integrar as regras substantivas da Convenção de Berna (com excepção dos direitos não patrimoniais, art. 6 bis). E em nada contraria o teste dos três passos ou mesmo princípios como o do fair use. A reserva do Tribunal terá servido apenas o objetivo tático de prevenir que a decisão fosse criticada pelo facto de dar razão total apenas a uma das partes. 29 Ac. de 4 de outubro de 2011, em que se determina que uma licença para retransmissão de jogos de futebol, que interditasse a autorização para a utilização noutros Estados-membros, violaria o Direito Comunitário. 30 Eis o texto: “Fica igualmente reservada às legislações dos países da União a regulamentação das condições nas quais, por ocasião dos relatos de acontecimentos da actualidade por meio da fotografia ou da cinematografia, ou por meio da radiodifusão ou de transmissão por fio ao público, as obras literárias ou artísticas vistas ou ouvidas no decurso do acontecimento podem, na medida em que o objectivo de informação a atingir o justificar, ser reproduzidas e tornadas acessíveis ao público”. 37

12. A Proposta de Diretriz da Comissão Europeia sobre a gestão coletiva Era esta a situação quando foi publicada uma Proposta da Comissão Europeia de uma Diretriz sobre a gestão coletiva: COM (2012) 372 final, de 11.VII.2012, sobre a gestão coletiva do direito de autor e direitos conexos e o licenciamento multiterritorial de direitos sobre obras musicais para utilização em linha no mercado interno31. Não é, infelizmente, a altura adequada para examinar este documento, que é muito importante e exige um estudo aprofundado. Limitamo-nos a breves primeiras notas.

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A Proposta culmina anos de trabalho da Comissão, preparando uma intervenção neste domínio. Os esforços no sentido de autorregulação pelos interessados não deram resultado, pelo que se envereda agora – finalmente – pela proposta duma harmonização comunitária. Essa diretriz versaria na realidade dois capítulos diferentes, sinteticamente referidos como os do quadro geral e do passaporte europeu da gestão coletiva. Por um lado, disciplinaria a própria estrutura e atividade das entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos dos Estados-membros. A situação atual é preocupante, dada a ausência de padrões e limites satisfatórios. A proposta Diretriz harmonizaria aspetos como a transparência, os critérios de repartição, os acordos com outras entidades de gestão coletiva, a não discriminação... Por outro lado, a Diretriz interviria na distribuição de música on-line na União Europeia, coroando muitos estudos e propostas anteriores. Procura-se assegurar condições técnicas, nomeadamente digitais, que suportem a abertura desta frente. Fazem-se também exigências suplementares em numerosos setores implicados: as obras, os autores e outros titulares, os critérios de ponderação, a informação pública e atual, até a contabilidade dos entes de gestão coletiva... É pois uma proposta de reforma integrada e vasta, que abre um campo muito propício ao debate. Mantém-se a anomalia que anotamos já, de uma distribuição em linha, logo sem fronteiras, ser regulada apenas para o mercado único europeu. Que futuro se poderá prognosticar para esta iniciativa? Era fácil augurar que provocaria controvérsias acesas, tão fortes, crispados e múltiplos 31 Na mesma data foi publicado um documento de trabalho da Comissão, SWD (2012) 240 final, sobre o impacto da Proposta. A própria Proposta conheceu já várias versões, embora mantenha a mesma numeração. Isto exprime bem a intensidade do debate. 38

propriedade intelectual são os interesses que se debatem32. E assim aconteceu de fato. À hora em que encerramos a Proposta está em debate no Parlamento Europeu, não se vendo que se consigam consensos ampliados33. Mais surpreendentemente ainda, surge a notícia da preparação de uma Proposta de decreto-lei do Governo português sobre a gestão coletiva, destinada provavelmente a ficar desatualizada a curto prazo com a iminência da aprovação da diretriz comunitária. Mas terá êxito no final, mesmo que com maiores ou menores feridas na coerência do articulado? É natural que sim, tanto foi o trabalho de preparação, tão prementes as necessidades sentidas e tão clara a lógica integracionista da Proposta. Até porque o texto, não obstante a sua extensão, deixa logo pontos importantes por regular. Mas mesmo que se limite a uma primeira intervenção, já teria um sentido muito positivo. Que perspectivas se abrem, no plano da territorialidade da gestão coletiva? Tudo o que se disser é muito arriscado, pois só agora surgirão reações mais ponderadas. Imaginemos porém que se abria a livre concorrência no espaço europeu, no domínio da gestão coletiva. Muito provavelmente, tal como nos outros domínios, as entidades mais fortes, como a SACEM ou a GEMA, teriam condições de esmagar as outras. Para esse efeito poderiam criar federações pan-europeias (ou mesmo internacionais, se tivessem abertura para tanto) que reforçariam o seu poder. Por outro lado, porém, é também de supor que teriam de renunciar a grandes vantagens, como as tarifas muito elevadas que o monopólio assegura ou os custos exagerados de funcionamento. Doutra maneira arriscavam-se a defrontar pequenas entidades nacionais mais combativas, que oferecessem melhores condições aos aderentes. Mas também aqui a História se pode repetir e cair-se num novo monopólio de facto, por via da eliminação progressiva de concorrentes ou de fusões das atuais entidades nacionais. Neste caso, mais uma vez, a concorrência mataria a concorrência. Este receio, de o resultado de uma intervenção se traduzir numa hegemonia das entidades de gestão mais poderosas, parece confirmar-se. As 32 Pense-se por exemplo no que poderá implicar o art. 17/3 proposto: “As tarifas devem refletir o valor econômico dos direitos no tráfego e do serviço prestado pela entidade de gestão coletiva, não discriminarão entre os utilizadores sem justificação objetiva e serão determinadas com base em critérios objetivos”. 33 Simultaneamente estão em debate outros aspectos da harmonização do Direito Autoral mais ou menos relacionados, como a chamada portabilité transfronteiras dos serviços de acesso aos conteúdos e a compensação equitativa por cópia privada. 39

muitas exigências que são estabelecidas para que as entidades possam proceder ao licenciamento multiterritorial trazem seguramente esta consequência. Às de menor porte restará a consolação de serem dispensadas de algumas exigências gerais na sua atividade corrente, mas ficam limitadas ao mercado interno do seu país de origem. Tudo isto pode ter repercussões profundas sobre o próprio Direito Autoral – a começar no âmbito europeu. Mas semelhante prospeção extravasa já claramente o objeto deste estudo.

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Vamos acompanhar o debate. Mas devemos também participar, porque os grandes movimentos resultam igualmente de pequenos contributos.

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propriedade intelectual DERECHOS FUNDAMENTALES Y OBSERVANCIA DE LOS DERECHOS DE AUTOR EN LA UNIÓN EUROPEA 34 Pedro Alberto de Miguel Asensio35

1. Planteamiento Cuál debe ser el alcance de los derechos de autor y derechos conexos y cómo han de configurarse los mecanismos que permiten a sus titulares exigir su observancia a terceros resultan cuestiones esenciales en el debate actual acerca del desarrollo de la llamada sociedad de la información. Los derechos de autor son derechos subjetivos de carácter privado y alcance territorial que el ordenamiento atribuye ex lege y al margen de cualquier formalidad y que en Europa han sido objeto en las últimas décadas de un elaborado conjunto de normas jurídico-privadas de armonización contenidas en directivas. Pese a las características reseñadas de estos derechos, uno de los aspectos clave en su evolución actual y que está llamado a marcar el futuro de la propiedad intelectual – entendida aquí como referida a los derechos de autor y derechos conexos – es la constatación de la importancia del equilibrio entre derechos fundamentales o más exactamente entre la propiedad intelectual y otros derechos fundamentales como elemento determinante del alcance y los límites de los derechos de autor así como de las medidas que para su observancia pueden ser adoptadas. El debate acerca de la interacción entre la propiedad industrial e intelectual y otros derechos fundamentales, como los vinculados a la libertad de información, la libertad de expresión, la intimidad, la educación o la salud, ha sido ya intenso desde hace lustros36. Ese debate reviste gran importancia en el marco de la reflexión acerca del riesgo de sobreprotección de la propiedad intelectual y el alcance de los límites a los derechos de los titulares, que se encuentran básicamente destinados a satisfacer ciertos intereses sociales, como los vinculados al acceso a la cultura, la investigación y la información, así como a asegurar el equilibrio entre los intereses de los autores, titulares de derechos, competidores, proveedores de contenidos, usuarios y el conjunto de la sociedad. 34 Esta contribución se ha realizado en el marco del proyecto de investigación DER 2012-34086. 35 Catedrático de Direito Internacional Privado da Universidad Complutense de Madrid. 36 Vid. P.L.C. Torremans (ed.), Intellectual Property and Human Rights, Alphen aan den Rijn, Kluwer, 2008; W. Grosheide (ed.), Intellectual Property and Human Rights: A Paradox Cheltenham, Edward Elgar, 2010; y L.R. Helfer y G.W. Austin, Human Rights and Intellectual Property (Mapping the Global Interface), Cambridge, Cambridge UP, 2011. 41

Ahora bien, la rápida transformación de los mecanismos de tutela de la propiedad intelectual con el propósito de hacer frente a ciertos desafíos derivados de algunas aplicaciones y usos de Internet plantea nuevos y muy intensos conflictos entre los derechos de propiedad intelectual y otros derechos fundamentales, tanto de los usuarios de Internet como de prestadores de servicios de la sociedad de la información. La presente contribución se centra precisamente en el significado en el seno de la Unión Europea de los derechos fundamentales como límite a la configuración y alcance de las medidas para la observancia de la propiedad intelectual en el entorno digital.

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2. Propiedad intelectual y derechos fundamentales: marco básico en la UE El Tratado de Lisboa37, en vigor desde el 1 de diciembre de 2009, introdujo ciertas modificaciones de singular importancia en el ámbito de la propiedad industrial e intelectual. Entre las disposiciones relativas a la aproximación de las legislaciones, el Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea (TFUE) contempla ahora en su artículo 118 la competencia de la Unión para establecer títulos europeos que garanticen una protección uniforme de los derechos de propiedad intelectual e industrial en la Unión así como regímenes de autorización, coordinación y control centralizados a escala de la Unión. No obstante, en el ámbito de la propiedad intelectual –a diferencia de lo que sucede en diversos sectores de la propiedad industrial- no se ha asistido ni antes ni después del Tratado de Lisboa a la creación de derechos unitarios mediante reglamentos,38 de modo que en este ámbito –en el que la existencia de los derechos no está sometida a su previo registro- existen en el seno de la UE únicamente derechos de exclusiva de carácter nacional, objeto a escala 37 Tratado de Lisboa por el que se modifican el Tratado de la Unión Europea y el Tratado constitutivo de la Comunidad Europea, firmado en Lisboa el 13 de diciembre de 2007 (DO 2007 C 306, p. 1). 38 En ciertos sectores de la propiedad industrial como las marcas o los diseños esos logros se alcanzaron ya antes del Tratado de Lisboa con base en la posibilidad prevista en los Tratados constitutivos de adoptar las disposiciones adecuadas cuando se considere necesaria una acción de la Comunidad/Unión en el ámbito de las políticas definidas en los Tratados para alcanzar uno de los objetivos fijados por éstos, cuando no se hubieran previsto en ellos los poderes de actuación necesarios a tal efecto, posibilidad recogida previamente en el artículo 308 TCE (antes 235) y ahora en el artículo 352 TFUE aunque éste no resulte ya determinante en este ámbito como consecuencia de la inclusión como novedad del mencionado artículo 118 TFUE. De cara al futuro la creación de derechos unitarios en el ámbito de los derechos de autor y derechos conexos se contempla también como una posibilidad. Así, la Comisión en su documento de trabajo “Online services, including e-commerce, in the Single Market” -SEC(2011) 1641-, que acompaña a su Comunicación “A coherent framework to boost confidence in the Digital Single Market of e-commerce and other online services”, COM(2011) 942, menciona en la página 74 que valorará la posibilidad de establecer un “European Copyright Code” que podría codificar las diversas directivas adoptadas en la materia y proporcionar la oportunidad de examinar la eventual creación de derechos de autor unitarios –para el conjunto de la UE- de carácter facultativo. Se trataría sin duda de una transformación de gran alcance, habida cuenta de que la creación de derechos unitarios se ha limitado hasta la fecha al ámbito de los derechos de propiedad industrial. 42

propriedade intelectual europea de una significativa aunque fragmentaria armonización mediante directivas, que encuentran su base jurídica ahora típicamente en el artículo 114 TFUE (antiguo artículo 95 TCE). Desde la perspectiva del significado de un adecuado equilibrio entre derechos fundamentales como presupuesto de la fijación del nivel aceptable de protección de la propiedad intelectual39 reviste gran importancia que ahora el artículo 6 TFEU atribuye a la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea de 7 de diciembre de 200040 el mismo valor jurídico que los Tratados. Además, el artículo 6.3 TFEU atribuye la consideración de principios generales del Derecho de la Unión a los derechos garantizados en el Convenio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos y de las Libertades Fundamentales (CEDH) y a los que son fruto de las tradiciones constitucionales comunes a los Estados miembros. Al derecho de propiedad va referido el artículo 17 de la Carta que en su apartado segundo incluye expresamente la propiedad intelectual en sentido amplio como modalidad de propiedad objeto de protección. Asimismo, la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos (TEDH) ha puesto de relieve cómo el Artículo 1 del Protocolo nº 1 CEDH –relativo al derecho de toda persona al disfrute pacífico de sus bienes- resulta de aplicación a la propiedad intelectual e industrial, como reflejan ciertas decisiones del Tribunal en materia de patentes41, marcas42 o el derecho exclusivo a la utilización de un nombre de dominio43, pero también sobre derechos de autor.44 En el seno de la Unión Europea la jurisprudencia del Tribunal de Justicia también es reflejo de cómo los derechos de autor forman parte del derecho fundamental de propiedad.45 La formulación del artículo 17.2 de la Carta ha sido objeto de críticas en el contexto del debate acerca del nivel de protección adecuado de la propiedad intelectual y los riesgos de sobreprotección.46 En concreto, mientras 39 C. Geiger, “Intellectual ‘Property’ after the Treaty of Lisbon: Towards a Different Approach in the New European Legal Order?”, EIPR, 2010, pp. 255-257, at p. 256. 40 DO 2010 C 83, de 30.3.2010, p. 389. 41 Lenzing AG v. the United Kingdom (dec.) (no. 38817/97, 9 de septiembre de 1998), vid. ECHR (Research Division), “Internet: case-law of the European Court of Human Rights”, 2011, , p.18. 42 STEDH de 11 de enero de 2007, asunto Anheuser-Busch Inc. v. Portugal ([GC], no. 73049/01. 43 Paeffgen Gmbh v. Germany (dec.), nos. 25379/04, 21688/05, 21722/05 et 21770/05, 18 de septiembre de 2007), ECHR (Research Division), “Internet…”, loc. cit., p.19. 44 En relación con los derechos de los traductores vid. STEDH de 13 de mayo de 2008, SC Editura Orizonturi SRL v. Romania, no. 15872/03. 45 STJ de 12 de septiembre de 2006, Laserdisken, C-479/04, ap. 65. 46 Acerca de ese debate en relación con la legislación sobre derechos de autor de la UE, vid. K.J. Koelman, “Copyright Law and Economics in the EU Copyright Directive: Is the Droit d’Auteur Passé?”, IIC, vol. 35, 2004, 43

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que el apartado 1 con respecto al derecho de propiedad en general se refiere a la posibilidad de regular el uso de los bienes “en la medida en que resulte necesario para el interés general”, el apartado 2 se limita a prever escuetamente que “(s)e protege la propiedad intelectual”, sin hacer referencia a sus límites o posibles restricciones. 47 No obstante, aunque ciertamente la redacción de la Carta podría ser más precisa a este respecto, resulta ampliamente aceptado que también la propiedad intelectual puede ser objeto de restricciones para proteger el interés general de conformidad con la función del apartado 2 como una simple aclaración de que dentro del ámbito del derecho de propiedad se halla también comprendida la propiedad intelectual como modalidad específica de propiedad48, referida a bienes inmateriales y cuyo carácter exclusivo resulta de su régimen legal de protección. Junto al reconocimiento como derecho fundamental de la propiedad intelectual, en el régimen establecido tanto en la Carta como en el CEDH resulta esencial la exigencia de equilibrio con otros derechos fundamentales al establecer el nivel de protección de la propiedad intelectual por parte del legislador de la Unión Europea y de los legisladores de los Estados miembros, pero también en su aplicación por los tribunales. En el caso concreto de los mecanismos de tutela para la salvaguarda de la propiedad intelectual en el entorno digital ya la jurisprudencia inicial del Tribunal de Justicia puso de relieve que el adecuado equilibrio con otros derechos fundamentales resulta un elemento básico para valorar el nivel de protección admisible así como los límites a la configuración de las medidas de observancia. En el contexto de un procedimiento civil para la tutela de la propiedad intelectual, en relación con la solicitud por parte del titular de derechos de un mandamiento a un proveedor de acceso para que revelara la identidad y la dirección de determinados clientes de los que la demandante conocía la dirección IP así como que utilizaban programas de intercambio de archivos P2P en relación con obras cuyos derechos de explotación correspondían a titulares que la demandante representaba, el Tribunal de Justicia ya en su sentencia de 2008 en el asunto Promusicae puso de relieve la necesidad de conciliar las exigencias relacionadas con la protección de distintos derechos fundamentales. En ese caso, por una parte, los derechos a la protección de la propiedad intelectual y a la tutela judicial efectiva y, por otra parte, el derecho al respeto de la intimidad.49 También el Tribunal de Justicia destacó no sólo que los Estados deben garantizar un justo equilibrio entre los distintos pp. 603-638. 47 A. Peukert, “Intellectual Property as an End in Itself?”, EIPR, 2011, pp. 67-71, at p. 69. 48 C. Geiger, “Intellectual Property Shall be Protected!?- Article 17(2) of the Charter of Fundamental Rights of the European Union: a Mysterious Provision with an Unclear Scope”, EIPR, 2009, pp. 113-117, p. 116. 49 STJ de 29 de enero de 2008, C‑275/06, Promusicae, ap. 65. 44

propriedade intelectual derechos fundamentales protegidos por el ordenamiento jurídico comunitario en su legislación relativa a las medidas de observancia de los derechos de propiedad intelectual sino que también corresponde a sus autoridades y órganos jurisdiccionales velar por que su aplicación no entre en conflicto con derechos fundamentales o con principios generales del Derecho comunitario, como el de proporcionalidad50.

3. Evolución de las medidas de observancia de los derechos de autor en la Unión Europea La exigencia de un justo equilibrio entre la protección del derecho de propiedad intelectual y otros derechos fundamentales, como es el derecho a la vida privada y a la protección de datos personales, ha alcanzado especial importancia como consecuencia de la evolución de las medidas adoptadas con vistas a combatir ciertas prácticas comunes en Internet como las vinculadas al intercambio o descarga de archivos con contenido protegido por la propiedad intelectual.51 Ante el limitado alcance de normas comunes en el seno de la UE, los diversos Estados miembros han reaccionado frente a la utilización masiva de redes P2P para el intercambio de contenidos protegidos por la propiedad intelectual y otros servicios que facilitan su descarga sin autorización de los titulares de derechos adoptando normas que prevén mecanismos específicos de sanción frente a esas conductas.52 El enfoque más extendido en el seno de la UE se basa en la implantación de mecanismos de sanción frente a los usuarios que intercambian archivos de ese tipo, que se fundan en el establecimiento de sistemas de respuesta gradual. Dichos sistemas contemplan la eventual interrupción del servicio de acceso a Internet de los usuarios que llevan a cabo esas prácticas, como mecanismo paralelo y complementario de sanción a la tutela civil y penal fundada en el ejercicio de acciones por la infracción de derechos de propiedad intelectual. Se trata de un modelo incorporado en los ordenamientos de varios Estados miembros, habiendo adquirido especial notoriedad la legislación francesa y la británica. En Francia la Loi n° 2009-669 favorisant la diffusion et la protection de la création sur Internet53 impone la obligación a los abonados a un servicio de 50 Ibid., ap. 68. 51 A. González Gonzalo, “El conflicto entre la propiedad intelectual y el derecho a la protección de datos de carácter personal en las redes peer to peer”, Pe.i., nº 28, 2008, pp. 13-68. 52 Más ampliamente, vid. P.A. De Miguel Asensio, Derecho privado de Internet, 4ª ed., Thomson-Reuters Civitas, Navarra, 2011, pp. 756-763. 53 JORF n°0135, de 13 de junio de 2009, p. 9666. Esta ley de 12 de junio de 2009 es conocida como Ley Hadopi, en referencia a la Haute Autorité pour la diffusion des œuvres et la protection des droits sur Internet 45

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acceso a Internet de velar por que la conexión no sea empleada para infringir derechos de terceros, implantando un mecanismo de respuesta gradual bajo el control de la Alta Autoridad o Hadopi que puede concluir con la interrupción del acceso a Internet del abonado, si bien el Conseil constitutionnel, para salvaguardar el derecho fundamental a la libertad de comunicación de ideas y opiniones, declaró contrarias a la Constitución las normas que hacían posible la privación del servicio de acceso a Internet sin una decisión judicial54. Determinante del carácter gradual de la respuesta es que como primer paso se contempla el envío de un mensaje por medio del proveedor de acceso a aquellos abonados respecto de los cuales los titulares de derechos hayan presentado ante la Hadopi elementos que revelen un incumplimiento de la obligación de que la conexión no sea utilizada en el marco de actividades que constituyan infracción de los derechos de propiedad intelectual. Este primer mensaje comunica al abonado que se han detectado descargas ilegales a través de su conexión, le recuerda sus obligaciones en relación con el uso del acceso a Internet y le ordena que las respete, advirtiéndole de las sanciones previstas en caso de incumplimiento. Si persiste en el incumplimiento, la ley contempla el envío de un segundo aviso por un medio que permita acreditar la recepción por el abonado en el que se le insta nuevamente a poner fin a las prácticas de infracción. Por último, en el caso de perseverar en el incumplimiento, se contempla la posibilidad de acordar la interrupción temporal del servicio de acceso a Internet del abonado y la prohibición durante ese periodo de contratar el acceso con cualquier otro operador. Uno de los aspectos más controvertidos de este mecanismo es el relativo a la recogida y tratamiento de la información sobre las actividades de los abonados, que plantea especiales riesgos desde la perspectiva de la protección de datos personales. La puesta en marcha de la respuesta gradual parte de la comunicación por parte de los titulares de derechos a la Hadopi de ciertos elementos que revelen las actividades de infracción -típicamente descargas de contenidos con infracción de derechos- con respecto a direcciones IP, pudiendo la Hadopi instar a los proveedores de acceso para que procedan a la identificación de los titulares de las direcciones IP en cuestión. Por su parte la Digital Economy Act 2010 del Reino Unido55 adoptada en abril de 2010 contempla la introducción de normas destinadas a reforzar la (Hadopi), que se establece en dicha Ley 54 Decisión núm. 2009-580 DC de 10 de junio de 2009. 55 http://www.opsi.gov.uk/acts/acts2010/pdf/ukpga_20100024_en.pdf. Acerca de su interpretación reviste gran importancia la sentencia de 6 de marzo de 2012 de la England and Wales Court of Appeal (Civil Division) en el asunto British Telecommunications Plc. y TalkTalk Telecom Group Plc. contra Secretary of State for Culture, Olympics, Media and Sport, [2012] EWCA Civ 232, cuyas implicaciones en especial en relación con la interacción de esta normativa con el derecho a la protección de datos personales son objeto de análisis en apartados posteriores.

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propriedade intelectual protección de la propiedad intelectual fundamentalmente para luchar contra el intercambio de archivos y otras actividades similares en Internet. Aunque en su aplicación práctica podría llevar a resultados en buena medida similares al criterio de los tres avisos del legislador francés, la legislación británica responde al menos en parte a un modelo propio. Sus disposiciones establecen ciertos mecanismos tendentes a restringir la prestación de servicios de acceso a Internet a quienes infrinjan derechos de propiedad intelectual, al tiempo que contempla también la posibilidad de que los tribunales adopten medidas para bloquear sitios de Internet a través de los que se infringen tales derechos. Estos mecanismos de control y los establecidos en otras legislaciones de Estados de la UE que han optado por modelos semejantes tienen en común el que su aplicación se basa en el desarrollo previo por parte de ciertos particulares o entidades privadas -típicamente, los titulares de derechos o sus representantes- de actividades de supervisión masiva del tráfico en Internet que implican normalmente el control y almacenamiento de datos de tráfico susceptibles de ser considerados datos personales, en circunstancias en las que puede resultar controvertida la compatibilidad de tales actividades de supervisión con la normativa comunitaria sobre protección de datos y, muy especialmente, con los derechos fundamentales en esta materia.56 Se trata además de un ámbito en el que entran en conflicto intereses muy diversos y las opciones de política legislativa tienen un extraordinario impacto social y económico, no sólo sobre la utilización de obras protegidas sino también en especial al considerar la posición del conjunto de los usuarios de Internet y otros actores implicados, muy especialmente, los proveedores de acceso a Internet y otros prestadores de servicios de intermediación, sobre los que se pretende hacer recaer la labor de supervisión. La puesta en marcha de estos mecanismos de tutela de la propiedad intelectual puede basarse en el empleo de sistemas de supervisión de las comunicaciones electrónicas de muy amplio alcance, pues en ocasiones la 56 Aunque en un ámbito material diferente como es el relativo a la retención de datos de tráfico de Internet en relación con la investigación de delitos graves, cabe hacer referencia como reflejo de la importancia del derecho fundamental a la protección de datos personales a la sentencia del Tribunal constitucional rumano de 8 de octubre de 2009 - http://www.legi-internet.ro/english/jurisprudenta-it-romania/decizii-it/ romanian-constitutional-court-decision-regarding-data-retention.html.- y del Tribunal constitucional alemán de 2 de marzo de 2010 -http://www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/rs20100302_1bvr025608.html - acerca de la inconstitucionalidad de normas adoptadas en transposición de la Directiva 2006/24/CE sobre la conservación de datos generados o tratados en relación con la prestación de servicios de comunicaciones electrónicas. Sobre las dudas acerca de la compatibilidad de esta Directiva con diversos derechos fundamentales de la Carta y del CEDH –entre otros, los derechos al respeto a la vida privada, la protección de datos de carácter personal y a la libertad de expresión- resulta muy relevante la petición de decisión prejudicial planteada por la High Court of Ireland (Irlanda) en el asunto pendiente C-293/12, Digital Rights Ireland. 47

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aplicación de estas normas con respecto a los clientes de servicios de acceso a Internet que intercambian archivos se funda en que los titulares de derechos de propiedad intelectual llevan a cabo una actividad previa de fiscalización del tráfico en la Red. Esa actividad de supervisión va referida en realidad con gran frecuencia a datos personales pues precisamente son esos datos los que hacen posible conocer la identidad del usuario (en particular, en la medida en que incluyen la dirección IP), al tiempo que también comprende información sobre el contenido de los archivos transmitidos y en ocasiones puede implicar el tratamiento de información muy sensible incluso de personas que no cometen ninguna infracción pero cuyas actividades son también fiscalizadas en busca de eventuales infracciones. En España la llamada “Ley Sinde”57 -desarrollada por medio de RD 1.889/2011, de 30 de diciembre, por el que se regula el funcionamiento de la Comisión de Propiedad Intelectual- optó por un modelo de regulación diverso al de la respuesta gradual y que no se centra en la persecución de los usuarios. El legislador español al adoptar esta normativa rechazó esa última posibilidad, lo que cabe entender que puede resultar razonable, no tanto por el coste político de la introducción de tales mecanismos, sino porque precisamente la experiencia de otros países europeos ilustra, de momento, su lenta y muy escasa aplicación, así como los inciertos problemas legales asociados a su introducción, en particular los que plantea su compatibilidad con el derecho fundamental a la protección de datos personales (en todo caso, su escasa aplicación efectiva no excluye que la mera introducción de ese tipo de mecanismos basados en la sanción de los usuarios haya podido producir un efecto disuasorio). La “Ley Sinde” no modifica la legislación sobre propiedad intelectual ni el Código Penal en lo que concierne a la determinación de qué actividades son ilícitas. Básicamente lo que crea es un mecanismo para que un órgano administrativo pueda declarar acreditada la existencia de una vulneración de derechos de propiedad intelectual por el responsable de un servicio de la sociedad de la información y que dicho órgano pueda ordenar a ese prestador “la retirada de los contenidos que vulneren derechos de propiedad intelectual o la interrupción de la prestación del servicio de la sociedad de la información que vulnere los citados derechos objeto del procedimiento”. La función asignada en esta normativa a los Juzgados Centrales de lo Contencioso Administrativo como encargados de autorizar la ejecución de las 57 Disposición final cuadragésima tercera de la Ley 2/2011, de 4 de marzo, de Economía Sostenible (BOE núm. 55, de 05.03.11), por la que se modifican la LSSI, el RD legislativo 1/1996, por el que se aprueba el Texto Refundido de la Ley de Propiedad Intelectual, y la Ley 29/1998, reguladora de la Jurisdicción Contencioso-administrativa, para la protección de la propiedad intelectual en el ámbito de la sociedad de la información y de comercio electrónico. 48

propriedade intelectual medidas acordadas por un órgano como la Comisión de la Propiedad Intelectual resulta insólita y poco apropiada. Tratándose de la defensa de derechos privados en relación con supuestos que constituyen infracción de derechos de la propiedad intelectual, la vía adecuada para obtener la cesación de esas conductas debe ser el ejercicio de acciones civiles o, en su caso, penales. A ese respecto, la gran aportación de este mecanismo parece ser que permite a los titulares de derechos acudir a la mencionada Comisión para tramitar este procedimiento, dejando a un lado la vía civil o la penal (ciertamente, supuestos en los que se prevé que actúe la Comisión conforme al art. 13.3 RD 1.889/2011pueden ser constitutivos de infracción penal, pero el art. 13.4 contempla que la Comisión siga actuando salvo que el órgano jurisdiccional penal ordene lo contrario) y con ello el ejercicio de otras acciones frente a los responsables como las indemnizatorias. No sólo para los eventuales infractores sino también para los titulares de derechos cabe entender que lo apropiado sería que en estos casos el titular de los derechos acudiera –y pudiera encontrar cuando corresponda conforme a Derecho- tutela efectiva por la vía civil y penal, como ocurre típicamente en los países de nuestro entorno de la UE, en los que –dejando de nuevo a un lado los mecanismos destinados a sancionar a usuarios- no ha tenido lugar una creación de órganos administrativos con el fin específico de declarar las infracciones de derechos de propiedad intelectual en estos casos (cuestión muy distinta podría ser la introducción de mecanismos específicos con respecto a la aplicación de sistemas de detección y retirada de contenidos por prestadores de servicios intermediarios). Como dice el artículo 13.3 RD 1.889/2011 reproduciendo el nuevo artículo 158.4 LPI, la actividad de la Comisión de la Propiedad Intelectual en este ámbito se limita “a los casos de vulneración de los derechos de propiedad intelectual, por el responsable de un servicio de la sociedad de la información, siempre que dicho responsable, directa o indirectamente, actúe con ánimo de lucro o haya causado o sea susceptible de causar un daño patrimonial al titular de tales derechos” y las medidas que puede adoptar se limitan a ordenar a ese prestador la retirada de los contenidos o la suspensión del servicio (art. 22.2 RD 1.889/2011) y en caso de incumplimiento de tal orden la suspensión del servicio por el prestador intermediario que corresponda (art. 22.3). Pero en nuestro ordenamiento el ejercicio de acciones en la vía civil permite obtener (como en el resto de los Estados de la UE) ordenes de ese tipo no sólo contra quienes infringen derechos sino también contra prestadores intermediarios cuyos servicios son utilizados para la infracción, incluso si el intermediario no puede ser considerado responsable de infracción alguna y con independencia de que se beneficie o no de las normas 49

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específicas sobre limitación de responsabilidad de los prestadores de servicios de la sociedad de la información intermediarios. Desde la perspectiva comparada cabe reseñar que las decisiones de la High Court (Chancery Division) inglesa en el asunto Twentieth Century Fox Film Corp v British Telecommunications PLC de 28 de julio de 201158 y 26 de octubre de 201159. En este asunto la High Court accedió a la petición de seis de los principales estudios cinematográficos estadounidenses de imponer al proveedor de acceso a Internet British Telecom medidas de bloqueo a todas las direcciones IP y URLs desde las que se pueda acceder al sitio web conocido como Newzbin o Newzbin2 en el que se infringían derechos de propiedad intelectual de los estudios demandantes. Antecedente de este asunto es una decisión previa en la que los tribunales ingleses a petición de esos demandantes habían ordenado la cesación de sus actividades infractoras de la propiedad intelectual a la sociedad Newzbin Ltd que operaba ese sitio de Internet. Aunque el sitio web había cesado su actividad posteriormente volvió a estar disponible con una actividad similar pero en circunstancias en las que sus responsables resultaban desconocidos y parecían operar desde el extranjero, lo que obstaculizaba la posibilidad de hacer efectivo el mandato de cesación en el Reino Unido. Ante esa situación, los estudios cinematográficos optaron por solicitar al tribunal la imposición al principal proveedor de acceso a Internet del Reino Unido de medidas para bloquear el acceso (de sus clientes) al sitio infractor, poniendo de relieve que de tener éxito los demandantes se proponían solicitar posteriormente medidas similares contra otros proveedores británicos de acceso a Internet. Como ha quedado dicho, la High Court accedió a la petición de los demandantes, lo que da pie a ciertas reflexiones. Esta decisión refleja un importante mecanismo de reacción por la vía civil frente a actividades de infracción de la propiedad intelectual llevadas a cabo a través de servicios de la sociedad de la información que escapan al alcance de la jurisdicción en la que los derechos resultan lesionados, que se funda en una posibilidad semejante a la prevista en el ordenamiento español en el artículo 139.1.h) LPI, según el cual las medidas de cesación de la actividad ilícita pueden comprender: “La suspensión de los servicios prestados por intermediarios a terceros que se valgan de ellos para infringir derechos de propiedad intelectual, sin perjuicio de lo dispuesto en la LSSI”. En relación con la situación en España, donde el potencial de nuestro ordenamiento para una más eficaz tutela de la propiedad intelectual en Internet (antes ya de la negativa aportación que representa la llamada “Ley Sinde”) se ha visto lastrado por 58 [2011] EWHC 1981 (Ch). 59 [2011] EWHC 2714 (Ch). 50

propriedade intelectual cierta confusión jurisprudencial en el ámbito civil en relación con el significado de las acciones de cesación dirigidas contra intermediarios60, decisiones como las reseñadas en el asunto Twentieth Century Fox Film Corp v British Telecommunications PLC son muy significativas porque ilustran el potencial en este entorno del ejercicio de acciones contra los intermediarios, pues determinante en la decisión de la High Court es la aplicación del artículo 11 Directiva 2004/48 (y artículo 8.3 Directiva 2001/29/CE) a la luz de la interpretación hecha por el Tribunal de Justicia en su sentencia de 2011 en el asunto L’Oreal.61 En la Sentencia L’Oreal el Tribunal de Justicia se pronunció sobre el significado de la previsión del artículo 11 Directiva 2004/48 sobre la tutela de los derechos de propiedad intelectual que impone a los Estados miembros la obligación de garantizar “que los titulares de derechos tengan la posibilidad de solicitar que se dicte un [requerimiento] judicial contra los intermediarios cuyos servicios hayan sido utilizados por terceros para infringir un derecho de propiedad intelectual”. Según el Tribunal se trata de una disposición que no puede ser objeto de una interpretación restrictiva, derivándose de esa norma la exigencia de que los Estados miembros garanticen que ciertos prestadores intermediarios (en el asunto litigioso, un operador de un mercado electrónico como eBay) pueden verse obligados a adoptar, además de medidas destinadas a poner término a las infracciones de derechos de propiedad intelectual causadas por los usuarios de sus servicios, medidas destinadas a evitar que se produzcan nuevas lesiones de este tipo. Como ejemplo de las medidas que pueden adoptarse, la sentencia menciona la imposición al operador del mercado electrónico de la obligación de suspender la cuenta del usuario que vulneró los derechos de marca para evitar que vuelva a cometer infracciones en relación con las mismas marcas. Asimismo, la sentencia prevé que puede dirigirse un requerimiento al operador de un mercado electrónico para que adopte medidas que faciliten la identificación de sus clientes vendedores, destacando que quien actúa en el tráfico comercial y no en el ámbito de la esfera de su vida privada debe ser claramente identificable, de modo que en tales circunstancias la protección de datos personales no debe ser un obstáculo a su identificación (ap. 142) si bien debe reitera la necesidad de garantizar el equilibrio entre los derechos y deberes implicados (ap. 143 con expresa referencia a la sentencia Promusicae). En relación con la potencial repercusión de esta sentencia, debe tenerse presente que la posibilidad de adoptar requerimientos contra los prestadores intermediarios aparece además recogida en el artículo 8.3 Directiva 2001/29/CE en relación con los derechos de 60 Vid. P.A. De Miguel Asensio, Derecho…, op. cit., pp. 776-780. 61 STJ de 12 de julio de 2011, C-324/09, L’Oreal. 51

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autor. Desde la perspectiva de la práctica española se trata de una cuestión de gran trascendencia –especialmente en el contexto de los derechos de autor- que debe condicionar la evolución de la práctica de nuestros tribunales, habida cuenta de que varias decisiones de tribunales españoles han negado la posibilidad de ejercitar acciones de cesación o tendentes a la suspensión de la prestación de algunos de sus servicios frente a tales intermediarios.62 En la medida en que tal negativa se ha fundamentado en la circunstancia de que así resultaba de la circunstancia de que esos intermediarios reunían los requisitos para beneficiarse de la limitación de responsabilidad del artículo 14 DCE (16 LSSI) cabe considerar que la negativa a la adopción de las medidas no resultaba justificada y contrasta abiertamente con el contenido y fundamento de los artículos 8.3 Directiva 2001/29/CE y 11 Directiva 2004/48/CE (así como de las normas españolas de transposición), lo que viene a quedar confirmado a la luz del significado que según el Tribunal de Justicia debe atribuirse al mencionado artículo 11 (y a su equivalente en el ámbito de los derechos de autor, el art. 8.3 Directiva 2001/29). Ciertamente, para una efectiva tutela de los derechos de propiedad intelectual en Internet resulta relevante la posibilidad de imponer a proveedores locales de acceso a Internet (en este caso españoles) el bloqueo (a sus clientes) del acceso a ciertos servicios de Internet (en concreto, típicamente a las URLs desde las que están accesibles), pues ello permite reaccionar frente a prestadores de servicios (infractores) que se encuentran establecidos fuera del país al que pertenece el tribunal pero cuyas actividades producen efectos significativos en ese país, sin tener que proceder a la ejecución de la decisión en el extranjero. En España, en el marco del mecanismo de la “Ley Sinde” el artículo 22.3 RD 1.889/2011 puede llevar a adoptar tales medidas, pero no cabe desconocer que esto no resulta en realidad una innovación con respecto a lo que ya previamente era posible –conforme a la LPI y la LSSI- en el marco del ejercicio de acciones penales y civiles por infracción de la propiedad intelectual. Sobre este punto precisamente cabe pensar que en la redacción del RD 1.889/2011 se desliza –sin duda de manera involuntaria- una restricción 62 Vid. Sentencia de 20 de septiembre de 2010 del Juzgado de lo Mercantil número 7 de Madrid en el asunto Telecinco c. YouTube. En el Fundamento de Derecho 4º de esta sentencia se considera “de una evidencia cegadora” que el texto de los artículos 138 y 139 LPI elimina de raíz la posibilidad de interponer una acción de cesación frente a los intermediarios que queden exentos de responsabilidad conforme al artículo 16 LSSI. No obstante, cabe entender que en realidad es todo lo contrario. La posibilidad de adoptar medidas de cesación frente a intermediarios que queden exentos de responsabilidad conforme al artículo 16 LSSI (14 DCE) resulta una exigencia tanto de la Directiva 2001/29/CE como de la Directiva 2004/48/CE; al tiempo que es algo que contempla expresamente el artículo 14.3 DCE y es bien conocido que resulta necesario interpretar de conformidad con esta norma el artículo 16 LSSI, así como es necesario interpretar la LPI de conformidad con la Directiva 2001/29/CE. 52

propriedade intelectual para la posición de los titulares de derechos que no viene exigida por el Derecho de la UE. En concreto, el último inciso del párrafo segundo del apartado IV de la Exposición de Motivos del RD sólo contempla que se impida el acceso “a servicios o contenidos… de prestadores establecidos fuera de la Unión Europea y del Espacio Económico Europeo”. En realidad, habida cuenta de que este mecanismo va referido únicamente a infracciones de la propiedad intelectual carece de justificación excluir (si bien puede pretenderse encontrar el origen de esta deficiencia en la propia LSSI) la posibilidad de bloquear el acceso desde España a prestadores establecidos en la UE o en el EEE. Así resulta de lo dispuesto en el artículo 3 y en el Anexo I de la Directiva 2000/31 sobre el comercio electrónico (que incorpora la LSSI) pues dicho Anexo prevé de manera expresa que tales restricciones –las relativas al bloqueo del acceso a los servicios de prestadores establecidos en un Estado Miembro- no operan en el ámbito de la propiedad intelectual (lo que tiene su reflejo en el art. 3.1.a LSSI). En todo caso, el alcance de la eventual afectación de otros derechos fundamentales como consecuencia de tales medidas de bloqueo de acceso refuerza la idea de que el ejercicio de acciones ante la jurisdicción civil y penal resulta una vía más apropiada para la adopción de tales medidas que el diseño de un mecanismo como el desarrollado en este RD. Aunque el mecanismo que desarrolla el RD 1.889/2011 no esté destinado a sancionar a los usuarios, el respeto al derecho a la protección de los datos personales de tales usuarios puede presentar especial relevancia en relación con su eventual tratamiento por los titulares de derechos de propiedad intelectual de cara a acreditar la explotación de la obra o el ánimo de lucro en el supuesto responsable o los daños causados al titular. En relación con los mecanismos legales instaurados para combatir ciertas prácticas potencialmente infractoras de la propiedad intelectual en Internet y sancionar civilmente a los usuarios que participan en las misma reviste especial importancia el control de los límites dentro de los cuales cabe requerir a prestadores de servicios de intermediación que proporcionen los datos que puedan conducir a la identificación de los usuarios a los que se pretende exigir responsabilidad. A esos efectos la llamada “ley Sinde” introdujo en la legislación española un nuevo apartado segundo en el artículo 8 LSSI, que prevé la posibilidad de que los órganos competentes puedan requerir a los prestadores de servicios de la sociedad de la información la cesión de los datos que permitan identificar al responsable del servicio de la sociedad de la información que está realizando la conducta presuntamente vulneradora de la propiedad intelectual. Ciertamente, no cabe desconocer que desde la perspectiva de los 53

titulares de derechos una aportación significativa de esta normativa es que contempla un mecanismo específico para obtener la identificación del responsable del servicio, lo que tiene su reflejo en el artículo 18 del RD 1.889/2011. No obstante, precisamente a la luz del estado del Derecho de la UE sobre protección de datos en la aplicación del texto de la LES y del RD sobre este resulta de gran importancia valorar si contiene todos los elementos precisos para asegurar un justo equilibrio entre la tutela de los derechos de propiedad intelectual y el derecho fundamental a la protección de datos personales (que sorprendentemente no aparece mencionado en el último párrafo del apartado IV de la Exposición de Motivos del RD entre aquellos derechos fundamentales con los que es preciso lograr tal equilibrio).

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4. Dimensión internacional: ACTA El desarrollo a escala internacional de estándares específicos en materia de observancia de la propiedad intelectual en las redes digitales ha sido objeto de especial atención en el marco del Acuerdo Comercial contra la Falsificación (Anti-Counterfeiting Trade Agreement), más conocido como ACTA.63 Se trata de una cuestión acerca de la cual las negociaciones de este acuerdo, que tuvieron lugar de manera reservada desde 2007, generó mucha preocupación, hasta el punto de que cuando el 21 de abril de 2010 se hizo público oficialmente por primera vez el texto del Borrador del Acuerdo se presentó con carácter previo una Declaración conjunta que destacaba que finalmente no se preveía incluir en el Acuerdo ningún mecanismo de control de las infracciones de derechos de autor en Internet del tipo del sistema de los tres avisos, como el instaurado poco antes en Francia y en otros países. La eventual inclusión de este tipo de medidas y su potencial impacto sobre los usuarios de Internet era una de las cuestiones que habían suscitado más expectación y polémica al hilo de las filtraciones previas sobre las negociaciones. A este respecto, cabe reseñar que el Supervisor Europeo de Protección de Datos puso de relieve en un Dictamen relativo a las negociaciones del ACTA que una legislación de ese tipo puede resultar contraria a la normativa comunitaria sobre protección de datos personales, destacando que impone medidas de control generalizado sobre el conjunto de los usuarios que resultan desproporcionadas, existiendo medidas alternativas a disposición de los 63 El texto final puede verse en la Propuesta de Decisión del Consejo relativa a la celebración del Acuerdo Comercial de Lucha contra la Falsificación entre la Unión Europea y sus Estados miembros, Australia, Canadá, la República de Corea, los Estados Unidos de América, Japón, el Reino de Marruecos, los Estados Unidos Mexicanos, Nueva Zelanda, la República de Singapur y la Confederación Suiza, COM(2011) 380 final, de 24 de junio de 2011. 54

propriedade intelectual titulares de derechos de propiedad industrial y de las autoridades competentes que podrían resultar eficaces.64 Pese a que ciertamente el Acuerdo no impone el establecimiento de mecanismos de respuesta gradual, su texto final contempla normas de gran trascendencia con respecto a la regulación de las actividades desarrolladas a través de Internet. Interesa detenerse en la Sección 5 del Capítulo II, dedicada a la tutela de los derechos de propiedad intelectual en el entorno digital. Desde la perspectiva de la UE, cabe señalar que el ACTA no era el marco adecuado para regular aspectos complejos que no han sido todavía objeto de armonización en el seno de la UE. Por ello, debe ser bien valorado que finalmente no se incluyeran en su texto normas que prevean la adopción de mecanismos específicos frente a infracciones a través de ciertos servicios como los fundados en una respuesta gradual o sistema de los tres avisos que puede concluir con la terminación del contrato de acceso a Internet de los usuarios afectados. En este sentido, la solución adoptada en el ACTA en lo relativo a la interacción entre derechos de propiedad intelectual y derecho fundamental a la protección de datos personales en el marco de los procesos por infracción en el entorno digital y la eventual obligación de ciertos prestadores de servicios de la sociedad de la información de proporcionar datos sobre usuarios de sus servicios, se funda en atribuir en normas no vinculantes un amplio margen de apreciación a los Estados miembros, como refleja la disposición más relevante en la materia contenida en el artículo 27.4 ACTA65, que cabe entender que se corresponde con los límites a la armonización de esta cuestión en la UE, en línea con el criterio adoptado por el Tribunal de Justicia en el asunto Promusicae, antes mencionado. No obstante, a la luz de la flexibilidad y falta de precisión de los términos del texto final del Acuerdo, en su segundo Dictamen sobre el ACTA66 el Supervisor Europeo de Protección de Datos ha insistido en 64 Dictamen del Supervisor Europeo de Protección de Datos sobre las negociaciones que mantiene la Unión Europea sobre un Acuerdo Comercial de Lucha contra la Falsificación (ACTA), DO C 147 de 5.6.2010, p. 1. 65 En concreto, el artículo 27.4 ACTA establece: “Una Parte podrá establecer, conforme a sus leyes y reglamentos, que sus autoridades competentes estén facultadas para ordenar a un proveedor de servicios en línea, que divulgue de forma expedita al titular de los derechos, información suficiente para identificar a un suscriptor cuya cuenta se presume fue utilizada para cometer una infracción, cuando dicho titular de los derechos haya presentado una reclamación con suficiente fundamento jurídico de infracción de marca de fábrica o de comercio o derechos de autor y derechos conexos, y donde dicha información se busque para efectos de protección u observancia de dichos derechos. Estos procedimientos serán implementados de forma tal que eviten la creación de obstáculos para actividades legítimas, incluido el comercio electrónico y, conforme a la legislación de cada una de las Partes, que preserven los principios fundamentales tales como libertad de expresión, procesos justos y privacidad.” 66 Opinion of the European Data Protection Supervisor on the proposal for a Council Decision on the Conclusion of the Anti-Counterfeiting Trade Agreement between the European Union and its Member States, Australia, Canada, Japan, the Republic of Korea, the United Mexican States, the Kingdom of Morocco, New 55

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que muchas de las medidas previstas en el contexto de la observancia de los derechos de propiedad intelectual en el entorno digital implicarían la supervisión del comportamiento de los usuarios y sus comunicaciones electrónicas en Internet y pueden llegar a interferir en los derechos a la intimidad, la protección de datos y la confidencialidad de las comunicaciones si no se aplican de manera adecuada. Cabe reseñar, en particular, su preocupación en relación no sólo con el artículo 27.4 sino también con la referencia contenida en el artículo 27.3 ACTA a que “cada Parte procurará promover esfuerzos de cooperación dentro de la comunidad empresarial, para tratar de forma eficaz las infracciones de marcas de fábrica o de comercio y los derechos de autor o derechos conexos”; en la medida en que su vinculación con el deseo expresado en el preámbulo “de promover la cooperación entre los proveedores de servicios y titulares de los derechos para enfrentar las infracciones pertinentes en el entorno digital” pueda facilitar la puesta en marcha de una supervisión de amplio alcance del tráfico de datos en Internet, para controlar ciertas conductas y poder conocer el contenido de los archivos objeto de intercambio o de descarga por usuarios así como obtener la información que permita eventualmente identificar a quienes introducen los archivos, los intercambian o descargan a través de Internet. En el apartado 70 de dicho Dictamen el Supervisor concluye que resulta preciso asegurar que las medidas de tutela que puedan adoptarse en el seno de la UE como consecuencia de una eventual participación en el ACTA respeten que la afectación a la protección de datos resulta proporcional al objetivo perseguido de tutelar la propiedad intelectual, lo que considera que excluye medidas amplias de supervisión de las actividades y comunicaciones de los usuarios de Internet, en particular en relación con vulneraciones de la propiedad intelectual de escasa entidad. En este contexto, mediante votación celebrada el 4 de julio de 2012 el Parlamento Europeo rechazó la ratificación por la UE de este Acuerdo.

5. Intimidad y protección de datos En el debate sobre la tutela de la propiedad intelectual en Internet y los posibles limites que para la configuración de las medidas de protección a favor de de los titulares de derechos derivan del derecho fundamental a la protección de los datos personales resultan de gran interés tres recientes sentencias del Tribunal de Justicia. Por una parte, la sentencia en el asunto Zealand, the Republic of Singapore, the Swiss Confederation and the United States of America 24 de abril de 2012, . 56

propriedade intelectual SABAM67 debe ser analizada conjuntamente con la pronunciada un par de meses antes también por el Tribunal de Justicia en el asunto Scarlet Extended68. Ciertamente, la sentencia SABAM viene a confirmar en relación con los prestadores de servicios de alojamiento de datos en general -y los proveedores de redes sociales en particular- el criterio ya establecido por el Tribunal de Justicia con respecto a los proveedores de acceso a Internet en su sentencia Scarlet Extended en lo que concierne a ciertos límites que las medidas de tutela de la propiedad intelectual deben respetar. En el origen de estas sentencias se encuentran sendos litigios ante los tribunales belgas entre una sociedad de gestión de derechos de propiedad intelectual (SABAM) y un proveedor de acceso a Internet (en el asunto Scarlet) y un proveedor de una red social (en el asunto SABAM). Tras constatar la infracción de derechos respecto de las obras musicales del repertorio de la demandante mediante la utilización por terceros de los servicios del proveedor de acceso a Internet y del proveedor de la red social, la parte demandante pretendía en ambos casos la adopción de mandamientos judiciales que exigieran a la parte demandada (proveedor de acceso a Internet o proveedor de red social) la instauración de medidas de supervisión generalizada de amplísimo alcance. En concreto, en el asunto SABAM la demandante instaba un mandamiento judicial que impusiera al prestador de servicios de red social la instauración de un sistema de filtrado de la información alojada por sus usuarios aplicable con carácter preventivo a toda su clientela, exclusivamente a expensas del prestador de tales servicios y sin limitación de tiempo. Tal medida tenía su origen en que la entidad de gestión de derechos demandante consideraba que la red social ofrecía a sus usuarios la posibilidad de utilizar, a través de su perfil, obras musicales y audiovisuales de su repertorio. El resultado de ambas sentencias es que la imposición a esos proveedores intermediarios de medidas de amplio alcance de supervisión del tráfico de sus usuarios con el propósito de controlar si éstos intercambian contenidos que infringen los derechos de propiedad intelectual pueden resultar contrarias al Derecho de la UE. En particular, tales medidas de supervisión menoscabarían el derecho a la a la protección de datos de carácter personal, ya que un sistema de filtrado como ese implicaría, por ejemplo, un análisis sistemático de las informaciones relativas a los perfiles de los usuarios de la red social que son datos protegidos de carácter personal, ya que permiten identificar, en principio, a tales clientes, al igual que las direcciones IP de los usuarios de los servicios de acceso a Internet. Ciertamente, la sentencia SABAM destaca que las informaciones relativas 67 STJ de 16 de febrero de 2012, C-360/10, SABAM. 68 STJ de 24 de noviembre de 2011, C-70/10, Scarlet Extended. 57

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a los perfiles de las redes sociales son típicamente datos personales ya que permiten, en principio, identificar a sus clientes. Previamente, ya la sentencia en el asunto Scarlet Extended había confirmado la condición de dato personal de la dirección IP. Reflejo de la importancia que tiene la protección de datos personales como límite a las disposiciones específicas introducidas en los ordenamientos de varios Estados miembros de la UE para proteger los derechos de propiedad intelectual frente a sistemas de intercambio de archivos u otras vías utilizadas supuestamente para la infracción de tales derechos en Internet, es la posterior sentencia del Tribunal de Justicia en el asunto Bonnier.69 La aplicación efectiva de esos mecanismos legales presupone el tratamiento (y la comunicación) de datos personales de los supuestos responsables de las infracciones o incluso de otros usuarios en general cuyas actividades puedan ser determinantes para apreciar la infracción de tales derechos. La sentencia del Tribunal de Justicia en el asunto C-461/10, Bonnier, aborda precisamente en relación con la legislación sueca los límites dentro de los cuales la autoridad judicial en el marco de un proceso civil por infracción de la propiedad intelectual puede requerir a prestadores de servicios de intermediación que proporcionen los datos de tráfico que puedan conducir a la identificación de los usuarios de sistemas de intercambio de archivos que los han utilizado para la supuesta infracción de derechos. La aportación de la sentencia Bonnier debe ser apreciada en función de su valor para precisar cuáles son los límites a la aplicación de esos mecanismos que derivan de la interacción entre los derechos fundamentales en materia de protección de datos personales y de la vida privada, por un lado, y en materia de protección de la propiedad intelectual por otro, desarrollando las decisiones previas del Tribunal de Justicia al respecto, en particular, la sentencia Promusicae ya mencionada.70 Aspecto clave de la sentencia es la valoración de si el contenido de la legislación sueca sobre este punto es compatible con el derecho fundamental a la protección de datos personales y los límites que eventualmente éste puede imponer a su aplicación. La disposición básica sobre el particular de la normativa sueca analizada en la sentencia, es decir, el artículo 53 c de la Ley sobre los derechos de autor71 encuentra su fundamento en el Derecho de la UE principalmente en 69 STJ de 19 de abril de 2012, C-461/10, Bonnier. 70 Así como en el Auto TJ de 19 de febrero de 2009, C 557/07, LSG Gesellschaft zur Wahrnehmung von Leistungsschutzrechten. 71 Un extracto de esa norma, reproducida en el apartado 19 de la Sentencia, es el siguiente: “Cuando el demandante presente pruebas evidentes de que se han vulnerado los derechos de autor sobre una obra 58

propriedade intelectual la previsión contenida en el artículo 8.1 de la Directiva 2004/48. Este precepto establece que los Estados miembros deben garantizar que en los procedimientos por infracción de la propiedad intelectual las autoridades judiciales con base en una petición proporcionada del demandante puedan ordenar que faciliten datos sobre el origen y las redes de distribución de las mercancías o servicios, entre otras, a cualquier persona que haya sido hallada prestando a escala comercial servicios utilizados en las actividades infractoras. En su sentencia Bonnier el Tribunal de Justicia se muestra en principio favorable a considerar que una normativa como la sueca pueda ser compatible con el derecho fundamental a la protección de datos y encontrar amparo en la Directiva 2004/48, en la medida en que las normas en cuestión permitan al tribunal que debe decidir si adopta el requerimiento de datos personales ponderar los intereses contrapuestos existentes, con especial referencia al principio de proporcionalidad. Se trata de una conclusión que resulta sin duda coherente con la jurisprudencia previa del Tribunal de Justicia en la materia –en particular, la sentencia Promusicae y en el auto LSG-Gesellschaft zur Wahrnehmung von Leistungsschutzrechten- y deja claro que los mecanismos legales relativos a la tutela civil de la propiedad intelectual pueden incluir la posibilidad de que los tribunales competentes requieran a prestadores de servicios de Internet la comunicación de datos personales que puedan ser relevantes para la tutela de los derechos de propiedad intelectual supuestamente infringidos. Ahora bien, tras la sentencia Bonnier quedan muchas cuestiones abiertas y un marco normativo en el seno de la UE susceptible de generar inseguridad jurídica. La más obvia de esas cuestiones abiertas se desprende precisamente del párrafo del fallo que remite a la jurisdiccional nacional la valoración en el caso concreto acerca de si la legislación en cuestión es respetuosa con la exigencia de que “el fin perseguido por dicho requerimiento sea más importante que el daño o perjuicio que se puedan causar a la persona afectada o a otros intereses contrapuestos”. Esta exigencia resulta determinante para asegurar el equilibrio a la luz de las circunstancias del caso concreto entre, de una parte, el derecho de propiedad intelectual y, de otra, el dereprevista en el artículo 53, los órganos jurisdiccionales podrán ordenar, so pena de sanciones, a las personas mencionadas en el segundo párrafo que faciliten la información relativa a la fuente y a la red de distribución de los bienes o servicios que infringen o vulneran un derecho (requerimiento judicial de revelación de información).[…] La obligación de revelación de información afecta a cualquier persona: 1º) autora o cómplice de la vulneración o infracción del derecho; 2º) que haya dispuesto a escala comercial de un bien que vulnere o infrinja un derecho; 3º) que haya utilizado a escala comercial un servicio que vulnere o infrinja un derecho; 4º) que haya prestado a escala comercial un servicio de comunicación electrónica o de otro tipo utilizado para cometer la infracción o vulneración del derecho, o 5º) que haya sido identificada por una de las personas a las que se refieren los apartados 2º) a 4º) supra como participante en la producción o distribución de un bien o en la prestación de un servicio que vulnere o infrinja un derecho.[…]” 59

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cho de protección de datos, sin que el Tribunal aporte criterios adicionales al respecto. Se trata de un planteamiento que otorga una gran trascendencia a la apreciación judicial, en términos alejados de la tradición continental y que puede comprometer la seguridad jurídica así como la exigencia de interpretación vinculada a los objetivos de integración en el seno de la UE. Pero, cabe destacar otros dos importantes elementos de incertidumbre que persisten en relación con la compatibilidad de ese tipo de legislaciones y el derecho fundamental a la protección de datos personales (y la normativa que lo desarrolla). El primero de esos elementos se desprende de la comparación de la sentencia con las conclusiones del Abogado General Jääskinen sobre este mismo asunto.72 Aparentemente las conclusiones resultaban más restrictivas en lo que se refiere a los límites de ese tipo de legislaciones para la tutela de la propiedad intelectual. En concreto, en el apartado 60 de sus conclusiones el Abogado General consideraba que: “Para que sea posible la comunicación de datos personales, el Derecho comunitario exige que la legislación nacional establezca una obligación de conservación, con el fin de precisar las categorías de datos que hay que conservar, el fin de la conservación, su duración y las personas con acceso a los mismos. El uso de bases de datos existentes para fines distintos a los establecidos por el legislador es contrario a los principios de protección de datos personales”. En línea con esta afirmación en el apartado 62 el Abogado General concluyó que: “…no procede privilegiar a los titulares de derechos de propiedad intelectual permitiéndoles el uso de datos personales legalmente recogidos o conservados para fines ajenos a la protección de sus derechos. La recopilación y utilización de dichos datos para tales fines respetando el Derecho comunitario en materia de protección de datos personales requeriría la previa adopción por el legislador nacional de disposiciones detalladas, conforme al artículo 15 de la Directiva 2002/58”. Se trata de una exigencia muy importante en la medida en que determina que los requerimiento de comunicación de datos deban ir referidos a datos conservados para esa finalidad de protección de la propiedad intelectual en virtud de obligaciones legales impuestas a los prestadores de servicios de Internet en cumplimiento de lo dispuesto en el artículo 15 Directiva 2002/85/CE.73 La sentencia Bonnier aparentemente no hace referencia a esta cuestión, de modo que cabría sostener que la compatibilidad con el marco legal en materia de protección de datos de ese tipo de legislaciones para la tutela de la propiedad intelectual no se subordina a la existencia previa 72 Conclusiones presentadas el 17 de noviembre de 2011. 73 Directiva 2002/58/CE, de 12 de julio de 2002, relativa al tratamiento de los datos personales y a la protección de la intimidad en el sector de las comunicaciones electrónicas (Directiva sobre la privacidad y las comunicaciones electrónicas) (DO L 201/37, de 31.7.2002). 60

propriedade intelectual de normas que impongan la obligación de retener los datos con la específica finalidad de ser comunicados cuando medie requerimiento por ser relevantes en procesos civiles relativos a la tutela de la propiedad intelectual. Ahora bien, al inicio de su fundamentación jurídica, en el apartado 37 de la sentencia, el Tribunal de Justicia incluye la siguiente afirmación como presupuesto del resto de su análisis: “Interesa señalar, con carácter preliminar, por una parte, que el Tribunal de Justicia se basa en la premisa de que los datos que son objeto del procedimiento principal se han conservado con arreglo a la normativa nacional, respetando los requisitos establecidos en el artículo 15, apartado 1, de la Directiva 2002/58, extremo que corresponde verificar al órgano jurisdiccional remitente.” El Tribunal en la sentencia no aporta ninguna precisión adicional acerca cómo deben ser interpretados los requisitos establecidos en ese artículo y no descarta de manera expresa la interpretación de los mismos llevada a cabo por el Abogado General. Conforme a la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos el mero almacenamiento de datos personales constituye una intromisión en el derecho a la vida privada de los afectados que aunque puede llegar a estar legitimado en ciertos casos requiere en todo caso la previsión en normas legales.74 Un último elemento de incertidumbre tiene que ver con que para la adopción de medidas este tipo de legislaciones se basan típicamente en que “el demandante presente pruebas evidentes de que se han vulnerado los derechos de autor sobre una obra” –como dice la legislación sueca a la que va referida esta sentencia- (por su parte en España el art. 17.2 RD 1889/2011, de 30 de diciembre, por el que se regula el funcionamiento de la Comisión de Propiedad Intelectual –si bien es cierto que se basa en un modelo distinto no centrado en la sanción de los usuarios- hace referencia a que el titular de los derechos debe aportar la información que acredite que la obra o prestación está siendo objeto de explotación a través del servicio de la sociedad de la información objeto de la solicitud, así como los datos de los que disponga que coadyuven a identificar al responsable…). En relación con este presupuesto de la aplicación de estas legislaciones de protección de la propiedad intelectual parece resultar también muy relevante que en la medida en que el titular de derechos aporte datos personales (por ejemplo, datos de los usuarios del servicio para acreditar que éste se usa para infringir derechos en España) dichos datos deberán haber sido recopilados y tratados por el titular de los derechos respetando el derecho a la protección de datos de los usuarios afectados. No obstante, en la jurisprudencia nacional resulta de particular interés la práctica reciente en el Reino Unido, en concreto la sentencia de la Court of 74 STEDH de 3 de abril de 2007, Copland v. the United Kingdom, no. 62617/00, ap. 44. 61

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Appeal (Civil Division) de 6 de marzo de 2012, en el asunto British Telecommunications Plc. y TalkTalk Telecom Group Plc. contra Secretary of State for Culture, Olympics, Media and Sport.75 Esta sentencia referida a la impugnación de la normativa británica sobre la tutela de la propiedad intelectual en Internet contenidas en la Digital Economy Act de 2010, aborda, entre otras cuestiones, su compatibilidad con la normativa europea sobre protección de datos personales, proporcionando una respuesta afirmativa y cuestionando el Dictamen del Supervisor Europeo de Protección de Datos sobre el particular antes reseñado. Con base en la sentencia Promusicae del Tribunal de Justicia así como que tratándose de datos de tráfico el artículo 15 de la Directiva 2002/58 debe ser entendido en el sentido de que permite a los Estados miembros limitar los derechos que en relación con el tratamiento de los datos de tráfico establece el artículo 6 de la Directiva, cuando la limitación constituya una medida necesaria proporcionada y apropiada en una sociedad democrática para proteger la propiedad intelectual.76

6. Actividades de supervisión y libertades de información, expresión y empresa Básico en el análisis que lleva a cabo el Tribunal de Justicia tanto en Scarlet Extended como en SABAM es que la fijación de los límites dentro de los cuales medidas de ese tipo fundadas en el objetivo de proteger los derechos de propiedad intelectual son admisibles requiere una ponderación entre diversos derechos fundamentales, atribuyendo una particular importancia no sólo al derecho fundamental a la protección de datos de los usuarios, sino también a la libertad de empresa de los prestadores de servicios de Internet así como del derecho a la libertad de información, que considera que pueden resultar menoscabados como consecuencia de la imposición de obligaciones de supervisión de conductas en Internet tendentes a evitar ciertas infracciones de la propiedad intelectual. En la sentencia SABAM el Tribunal confirma que tratándose de medidas de supervisión de ese tipo y alcance tan general también su imposición con respecto a prestadores de servicios de alojamiento de datos resulta contraria al Derecho de la UE no sólo por infringir la prohibición de imponer una obligación general de supervisión establecida en el artículo 15 de la Directiva 2000/31 sobre el comercio electrónico sino además por vulnerar la libertad de empresa del prestador de servicios de alojamiento (red social), vulnerar 75 [2012] EWCA Civ 232 76 En esta línea resulta de interés la STEDH de 2 de diciembre de 2008, K.U. v. Finland, no. 2872/02, si bien en el ámbito de la persecución de ilícitos penales.

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propriedade intelectual eventualmente la libertad de información de los usuarios en la medida en que el sistema de filtrado no distinga adecuadamente entre contenidos lícitos e ilícitos y el derecho fundamental a la protección de datos de los usuarios. Punto de partida para valorar la ilicitud de las medidas objeto de las cuestiones prejudiciales que han dado lugar a estos dos asuntos es que obligar a un prestador de servicios intermediario, como los proveedores de acceso a Internet o de alojamiento de datos, a proceder a una supervisión activa del conjunto de datos de cada uno de sus clientes con el fin de evitar cualquier futura lesión de los derechos de propiedad intelectual resulta incompatible con el artículo 15.1 de la Directiva 2001/31, que prohíbe la imposición de una obligación general de supervisar los datos que los intermediarios transmitan o almacenen. Ahora bien, más allá de su incompatibilidad con esa prohibición así como con la exigencia del artículo 3.1 Directiva 2004/48 sobre el respeto a la propiedad intelectual de que las medidas para garantizar la tutela de los derechos de propiedad intelectual no sean inútilmente complejas o gravosas, de estas dos sentencias resulta ahora que una medida de supervisión tan amplia puede también vulnerar otros derechos fundamentales, ya que resulta esencial que la configuración de las medidas asegure un justo equilibrio entre la protección del derecho a la propiedad intelectual y la protección de los derechos fundamentales de las personas afectadas por tales medidas. Por una parte, resultaría vulnerado el derecho a la libertad de empresa que ampara a los prestadores de servicios de intermediación, habida cuenta de que una supervisión de alcance tan amplio como la resultante de las medidas objeto del litigio principal podría implicar una vulneración sustancial de tal libertad, en la medida en que obliga al intermediario a establecer un sistema de supervisión gravoso, permanente y exclusivamente a sus expensas que abarca prácticamente la totalidad de la información almacenada en la red del prestador de servicios afectado. Por otra parte, medidas de supervisión de esa naturaleza menoscabarían la libertad de recibir o comunicar informaciones en el caso de que la insuficiente distinción por parte del sistema entre contenidos lícitos e ilícitos tenga como consecuencia el bloqueo de contenidos lícitos. Con respecto a esta última libertad, cabe reseñar que la jurisprudencia del TEDH ha destacado el importante papel de Internet –vinculado a su accesibilidad y capacidad para almacenar y comunicar grandes cantidades de información- para el acceso del público a información y para la difusión de ésta.77 Si bien en el litigio principal en el asunto SABAM, al igual que en el asunto Scarlet, el mandato de supervisión tiene su origen en una decisión judi77 STEDH de 10 de marzo de 2009, Times Newspapers Ltd v. the United Kingdom (nos. 1 and 2), nos. 3002/03 and 23676/03, § 27. 63

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cial, el análisis que lleva a cabo el Tribunal de Justicia resulta también relevante con respecto a la valoración de la compatibilidad con el Derecho de la UE de las iniciativas legales para combatir las infracciones de los derechos de propiedad intelectual en Internet mediante mecanismos de sanción frente a usuarios de ciertos servicios (en particular en relación con el uso de servicios de Internet para el intercambio de archivos) que se basan en la imposición de amplias obligaciones de supervisión a los prestadores de servicios intermediarios. No obstante, al valorar el significado de las sentencias en los asuntos SABAM y Scarlet es muy relevante tener en cuenta que el resultado alcanzado en ambos casos viene determinado por las características de las medidas de supervisión que pretendían imponerse que presentaban un amplísimo alcance de modo que exigían “una vigilancia activa de los archivos almacenados por los usuarios en los servicios de almacenamiento del prestador de que se trata y que afecta tanto a casi la totalidad de la información almacenada como a los usuarios de los servicios de ese prestador”.78 Cabe considerar, por lo tanto, que estas sentencias dejan abierta la posibilidad de que otro tipo de medidas que impliquen una supervisión de menor alcance sean plenamente compatibles con el Derecho de la Unión, reiterando que corresponde a las autoridades y tribunales nacionales asegurar el justo equilibrio entre la tutela de los derechos de propiedad intelectual y la protección de los derechos fundamentales de las personas afectadas por tales medidas al concretar cuáles son admisibles. De hecho, en sus apartados 28 y 29 la Sentencia recuerda que los artículos 8.3 Directiva 2001/29 y 11 Directiva 2004/48 permiten la adopción de medidas cautelares contra prestadores de servicios intermediarios –como las redes sociales- cuyos servicios puedan ser utilizados por sus usuarios para infringir derechos de propiedad intelectual y que tales medidas pueden incluir medidas preventivas destinadas a evitar lesiones futuras de sus derechos, como en relación a la tutela de los derechos de marca en el contexto de mercados electrónicos (sitios de subastas) puso ya de relieve el Tribunal en su sentencia L’Oréal, ya reseñada. En este contexto, resulta relevante tener presente que los considerandos 47 y 48 del Preámbulo de la Directiva 2001/31 destacan que la prohibición de obligaciones generales de supervisión no excluye la imposición de obligaciones de supervisión en casos específicos ni afecta a la posibilidad de exigir a los prestadores de servicios de alojamiento que apliquen un deber de diligencia a fin de detectar y prevenir determinados tipos de actividades ilegales. 78 STJ de 24 de noviembre de 2011, C‑70/10, Scarlet Extended, ap. 37; y STJ de 16 de febrero de 2012, C-360/10, SABAM., ap. 36. 64

propriedade intelectual 7. Conclusión Aunque la necesidad de ponderar los diversos derechos fundamentales implicados para determinar el alcance de la protección de la propiedad intelectual no resulta algo novedoso, la reciente evolución de los mecanismos de tutela de la propiedad intelectual en el entorno digital va unida a la particular relevancia de la interacción entre dicha tutela y ciertos derechos fundamentales, especialmente el derecho a la protección de datos personales, el derecho a la información y a la libertad de empresa. El limitado alcance de la armonización de la legislación europea sobre el particular, así como el margen de apreciación que resulta de la jurisprudencia del Tribunal de Justicia y del TEDH determinan que el panorama europeo actual en este ámbito adolezca de una significativa inseguridad jurídica, que puede menoscabar objetivos básicos de la integración europea en un ámbito de especial importancia para el desarrollo del mercado interior así como para la efectiva protección de los importantes intereses implicados.

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propriedade intelectual PROPRIEDADE INTELECTUAL E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NA UNIÃO EUROPEIA Guillermo Palao Moreno79

1. A Propriedade Intelectual na União Europeia: uma matéria e duas políticas A regulação dos direitos de Propriedade Intelectual, quando estes possuem uma natureza internacional, constitui uma matéria que desperta o interesse de duas políticas diferentes da União Europeia (adiante, UE). Por um lado, a Política de Mercado internacional e, por outro lado, a Política de Justiça e Assuntos de interior – em concreto, Cooperação judicial em matéria civil -. Esta acumulação de interesses se justifica pela estrita vinculação que possui a regulação dos bens imateriais com a consolidação do mercado único e com o fomento das liberdades europeias de circulação – principalmente de bens e de serviços -. Assim como, pelo cada vez mais frequente caráter transfronteiriço das relações vinculadas à regulação dos direitos de propriedade intelectual e, em consequência, das ações judiciais destinadas à sua tutela desde o âmbito do Direito privado. Essa duplicidade, ainda que possa contar com uma plena justificativa desde o ponto de vista do singular processo normativo europeu e da divisão de competência em seu seno, também é suscetível de ocasionar sérias distorções em seu tratamento legal quando os elementos possuem uma natureza internacional. Uma circunstância que já se constatou na própria jurisprudência do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia (adiante, TJCE)80. A partir dessa perspectiva é preciso conscientizar as instituições europeias da necessidade de oferecer um tratamento à Propriedade intelectual – tanto normativo quanto jurisprudencial – o mais homogêneo possível, 79 Catedrático de Direito Internacional privado, Universitat de València (España). Membro do GI+dPI (Grupo I+D, Propiedad Intelectual e Industrial, Universitat de València). E-mail: [email protected]. Este trabalho realizou-se através do Projeto I+D número DER2010-21327, financiado pelo Ministério de Ciência e Inovação (Programa I+D): “Propiedad intelectual y Universidades y Centros de Investigación”. Traduzido com a colaboração de Thiago Paluma (Doutorando em Direito Internacional Privado pela Universitat de València, sob a orientação do Prof. Dr. Guillermo Palao). 80 A partir de 2009, Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Vid. a STJCE (Sala Primeira) de 13 de julho de 2006, no caso C-539/03, Roche Nederland BV y otros y Frederick Primus, Milton Goldenberg; e a STJCE (Sala Primeira) de 13 de julho de 2006, no caso C-4/03, Gesellschaft für Antriebstechnik mbH & Co. KGy Lamellen und Kupplungsbau Beteiligungs KG. Ambas disponíveis em: http://www.curia.eu [visitadas em 1 de Julho de 2013]. 67

tratando de evitar tais problemas. Mais ainda, quando o caso conta com um caráter internacional, fato este frequente nesse âmbito. O presente estudo pretende abordar esta problemática, desde a ótica do Direito internacional privado, centrando-se principalmente na regulação dos Direitos autorais. 1.1. Conceito de Propriedade intelectual

Guillermo Palao Moreno

De forma prévia à análise da regulação da propriedade intelectual no âmbito da UE em situações transfronteiriças, e apesar do exposto, cabe sublinhar como a assinalada duplicidade de políticas não comportou uma diferenciada delimitação dos direitos de propriedade intelectual na normativa europeia. Assim, se pode comprovar como, em relação com ambas as políticas, se chega a uma compreensão ampla e omnicompreensiva da matéria. Nesse sentido, o conceito que os instrumentos europeus cultivam é coincidente com o utilizado em outros centros de codificação internacional da propriedade intelectual – mais especificamente os utilizados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual e a Organização Mundial do Comércio -. De tal modo que, ao que diz respeito ao tratamento deste instituto por parte do Direito internacional privado, esta coincidência conceitual despeja grande parte dos problemas de delimitação que possam ser suscitados. 1) Assim, de uma parte e a respeito da Política de Mercado interior, o art. 36 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (adiante, TFUE) se refere a esta noção em termos gerais e amplos81. Algo que, devido às exigências dos princípios e liberdades básicas do mercado interior, conduziu à elaboração de uma extensa normativa que abarca com grande generosidade esta matéria. Neste sentido, na própria página web da Direção Geral de Mercado Interior e Serviços da Comissão Europeia, se adverte como esta mantém uma concepção ampla desta categoria, englobando os Direitos de autor e conexos, assim como os Direitos relativos à propriedade industrial, incluindo também o direito sui generis das bases de dados82. 2) Junto a ele, de outra parte, desde a perspectiva da Política de cooperação judicial em matéria civil, encontramos uma delimitação – igualmente ampla – desta matéria no Considerando 26 do Regulamento (CE) n° 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de julho de 2007, relativo à lei 81 PLENDER, R./ WILDERSPIN, M., The European Private International Law of Obligations, Londres, Sweet & Maxwell/ Thomson Reuters, 2009, p. 655. 82 Assim, http://ec.europa.eu/internal_market/copyright/index_en.htm y http://europa.eu/legislation_ summaries/internal_market/businesses/intellectual_property/index_es.htm [visitadas em 1 de Julho de 2013]. 68

propriedade intelectual aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») (adiante, Regulamento Roma II)83. O qual, em referência ao seu art. 8 (“Infração dos direitos de propriedade intelectual”), estabelece que: “(…) Para efeitos do presente regulamento, a expressão direitos de propriedade intelectual deverá ser interpretada como abrangendo, nomeadamente, o direito de autor, os direitos conexos, o direito sui generis para a proteção das bases de dados, bem como os direitos de propriedade industrial”. Pois bem, há que destacar que esta aproximação coincidente está chamada a evitar uma grande parte dos problemas qualificatórios que puderem surgir neste âmbito, principalmente a respeito de sua delimitação com outras instituições próximas84. 1.2. Mercado interior e propriedade intelectual Os direitos de propriedade intelectual interessam à política de mercado internacional, da que se ocupa a Direção Geral de Mercado Único e Serviços da Comissão Europeia85, cuja regulamentação básica se situa nos arts. 26 e 27 TFUE. E ele, desde o momento em que sua tutela jurídica ingressa entre as restrições permitidas pelo art. 36 TFUE, em relação com as liberdades de circulação europeias, permitindo que se estabeleçam monopólios de exploração para o território de cada Estado membro principalmente em atenção ao tradicional caráter territorial desses direitos86. Este interesse deu lugar a um frutífero processo codificador que, em última análise, conduziu à conclusão de um nutrido conjunto de Diretivas e, em menor quantidade, de Regulamentos vinculados a esta matéria87. O qual se viu revitalizado com a Comunicação de 2011 “um mercado único dos direitos de propriedade intelectual”88. 83

D.O.U.E. nº L 199/40, de 31 de julho de 2007.

84 Sobre esta questão, BASEDOW, J., “Foundations of Private International Law in Intellectual Property”, en: BASEDOW, J./ KONO, T./ METZGER, A. (Eds.), Intellectual Property in the Global Arena, Tubinga, Mohr Siebeck, 2010, p. 5-29, p. 11-12. 85 Vid. http://ec.europa.eu/dgs/internal_market/contact/index_en.htm e de forma particular http:// ec.europa.eu/internal_market/top_layer/intellectual-property/index_en.htm [visitadas em 1 de Julho de 2013]. 86 A esse respeito, SABIDO RODRÍGUEZ, M., La creación intelectual como objeto de intercambios comerciales internacionales, Cáceres, Universidad de Extremadura, 2000, p. 75 e ss. De interesse, a STJUE (Sala Quarta) de 21 de junho de 2012, no caso C-5/2011, Titus Alexander Jochen Donner (disponível em: http:// www.curia.eu) [visitada em 1 de Julho de 2013]. 87 A esse respeito ver: COUTO GONÇALVES, L.M., “O espaço europeu da propiedade industrial”, Actas de Derecho Industrial, nº 26, 2005-2006, p. 85-100; MOURA VICENTE, D., A Tutela Internacional da Propiedade Intelectual, Coimbra, Almedina, 2008, p. 99 e ss.; UBERTAZZI, L.C., “Para una introducción al Derecho europeo de la propiedad intelectual”, Actas de Derecho Industrial y Derecho de Autor 2004/2005, p. 305-321. 88 COM (2011) 287 final. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2011:0287:FIN:ES:PDF [visitada em 1 de Julho de 2013]. 69

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Em definitivo, com esta política como pano de fundo se alcançou um corpus normativo com o que se buscou, de um lado, evitar o falseamento da competência no interior da UE; assim como, de outro lado, se perseguiu alcançar uma adequada e similar proteção de tais direitos dentro do mercado interior – sempre em conformidade com as obrigações internacionais assumidas e o processo de harmonização de tais direitos levado a cabo na Europa-. Todo ele, definitivamente, com o fim de favorecer a integração europeia e, portanto, o respeito das liberdades de circulação89. Uns instrumentos que permitiram uma destacável aproximação (ou unificação, em alguns casos) de natureza substantiva (e em menor medida processual) dos direitos de propriedade intelectual, ainda quando contam com limitações em seu alcance90. Dessa forma, há que sublinhar como nos instrumentos que se empregou essa base jurídica e, portanto, se elaborou no marco da política de mercado interior, nos encontramos com normas pontuais de Direito internacional privado. Neste sentido, apesar de contar normalmente com uma natureza substantiva – seja harmonizadora ou unificadora -, em alguns desses instrumentos elaborados se podem encontrar normas de competência judicial internacional, de determinação da lei aplicável e inclusive menções ao reconhecimento e à execução de decisões judiciais estrangeiras. 1.3. Espaço Europeu de Justiça Civil e Propriedade Intelectual Por sua parte, a consolidação do mercado interior –ad intra-, assim como fenômenos como o da globalização –ad extra-, fomentaram o caráter internacional dos direitos relativos à propriedade intelectual. Uma circunstância que, ao que diz respeito à UE, trouxe consigo o emprego cada vez mais frequente de normas elaboradas desde a Direção Geral de Justiça91, no âmbito da Cooperação judicial civil. Nesse aspecto, em atenção à base jurídica que proporciona o art. 81 TFUE, com o objetivo de ordenar as relações relativas à propriedade intelectual quando conte com uma natureza transfronteiriça “quando resultar necessário para o bom funcionamento do mercado interior”. Estas normas não vieram a substituir, senão a complementar, as já existentes no âmbito da Política de mercado interior, sendo que precisamente 89 A esse respeito: http://ec.europa.eu/internal_market/top_layer/index_52_en.htm, e http://europa. eu/legislation_summaries/internal_market/businesses/intellectual_property/index_es.htm [visitadas em 1 de Julho de 2013]. 90 MOURA VICENTE, D., “Direito de autor e comercio electrónico. Aspectos internacionais”, en: WACHOWICZ, M./ PALAO MORENO, G. (Coord.), Propiedade intelectual. Inovação e Conhecimento, Curitiba, Juruá, 201, p. 83-101, p. 87-89. 91 Vid. http://ec.europa.eu/justice/contact/index_es.htm e singularmente http://ec.europa.eu/justice/ civil/index_es.htm [visitadas em 1 de Julho de 2013]. 70

propriedade intelectual seu objetivo final se concentra no bom funcionamento desse mercado. Não obstante, faz-se necessário destacar como neste âmbito existem outros interesses que qualificam de forma particular os instrumentos elaborados ao amparo desta política. Tal e como são: a livre circulação das resoluções judiciais no território da UE, a promoção da segurança jurídica e a boa administração da justiça. Todavia e diferente do que sucedeu em relação com a Política de mercado interior, nestes casos a atitude do legislador comunitário nem sempre favoreceu a elaboração de instrumentos especialmente desenhados para disciplinarem tais direitos, porém tão pouco se viram excluídos dos mesmos. Assim, junto a disposições concebidas para atender às particularidades da propriedade intelectual, este tipo de relações igualmente serão disciplinados por instrumentos de carácter más geral, pois como assinalado não estão excluídas dos mesmos. Como consequência, frequentemente tem-se que recorrer também a soluções mais gerais, para regular certos litígios internacionais em matéria de direitos de propriedade intelectual. 1.4. Problemas que explicam esta aproximação e perspectivas de futuro Do exposto até agora, se deriva que a duplicidade de tratamento que se dispensa aos direitos de propriedade intelectual no âmbito da UE, tanto por parte da Direção Geral Mercado Interior e Serviços como por parte da Direção Geral de Justiça, é suscetível de gerar uma série de problemas que é necessário terem em conta. Assim, pode-se, exemplificativamente, menciona-los: 1) Incialmente, desde o ponto de vista das fontes aplicáveis, esta situação de duplicidade de bases jurídicas e de políticas involucradas, convida à dispersão do sistema e, em definitivo, pode chegar a complicar o trabalho de concretizar o sistema de fontes aplicável às situações internacionais nas que se estão envolvidos direitos de propriedade intelectual. 2) Desde a perspectiva da colocação em andamento do ordenamento jurídico europeu, este duplo interesse por esta matéria, não deu lugar – nem de longe-, a uma codificação sistemática da mesma (o que se observa claramente em relação com os casos transfronteiriços), carecendo o resultado alcançado de lógica interna, sendo por sua vez, diversas as lacunas que resultam. 3) Por sua vez, o fato de que se elabore cada norma de Direito internacional privado, dependendo da base jurídica aplicável, é possível que responda a uma lógica diferente e inclusive potencialmente contraditória; não 71

permitindo um tratamento homogêneo de tais direito em sua dimensão transfronteiriça no âmbito da UE.

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Ante esta situação, tal e como se adiantou, resultaria aconselhável levar adiante uma rediscussão da questão. O qual poderia ir, desde a coordenação do momento em que propõe um novo instrumento –seja com base em uma política ou outra-, as eventuais respostas internacional-privatistas que se colocaram, até derivar todo tratamento de Direito internacional privado a uma de tais políticas –ex.: Justiça no âmbito da cooperação judicial civil-, excluindo seu tratamento nos instrumentos elaborados no marco da outra –isto é, mercado interior-. Seja uma ou outra alternativa -ou outras que puderam idealizar-se-, o certo é que uma maior coordenação resultaria imprescindível. Frente a este complexo panorama normativo se apresentam iniciativas de grande interesse como a dos Principles for Conflicts of Laws in Intellectual Property (cuja versão definitiva “The Draft” está datada em 25 de Março de 2011)92. Uns “Princípios” elaborados por um grupo de prestigiosos acadêmicos especialistas na matéria que trabalha sob o nome de CLIP (European Max-Planck Group on Conflict of Laws in Intellectual Property), que constituem um autêntico sistema aplicável aos direitos de propriedade intelectual quando a relação possua uma natureza internacional. Tais textos se baseiam em uns princípios comuns aplicáveis a esta matéria e possuem uma lógica interna. Um modelo que, sem dúvida, é chamado a exercer sua influência sobre o legislador europeu e que, em linha de princípio, poderia permitir superar alguns dos problemas que mencionaram.

2. Aspectos de competência Judicial Internacional e de reconhecimento e execução de Resoluções Estrangeiras Dois são os elementos característicos das normas de Direito internacional privado, relativos aos setores de competência e reconhecimento aplicáveis aos litígios em matéria de propriedade intelectual que encontramos nos instrumentos europeus. 1) Por um lado, a pluralidade e a existência, junto às soluções mais específicas relativas a estes setores (principalmente para disciplinar direitos de natureza unitária para toda a UE e baseados na política de mercado interior) de textos de carácter mais geral no âmbito da justiça civil aplicáveis a um bom 92 Texto disponível em: http://www.cl-ip.eu/ [visitada em 1 de Julho de 2013]. Uma sucinta apresentação dos mesmos pode ser vista em: KUR, A., “Are there any Common European Principles of Private International Law with regard to Intellectual Property”, en: LEIBLE, S./ OHLY, A. (Eds.), Intellectual Property and Private International Law, Tubinga, Mohr Siebeck, 2009, 1-14, p. 9-14. 72

propriedade intelectual número de situações não cobertas pelos Regulamentos mais específicos. 2) Por outro lado, tais instrumentos estão previstos para cobrir principalmente situações litigiosas intracomunitárias, definidas neste âmbito em função da presença do domicílio (ou, em seu caso, do estabelecimento) do demandado em um Estado membro. Uma limitação que obrigará a recorrer aos sistemas autônomos de Direito internacional privado naqueles casos excluídos de seu âmbito de aplicação. 2.1. A posição central do Regulamento Bruxelas I no sistema São escassas as normas que, em relação com os setores da competência judicial internacional e do reconhecimento e execução de resoluções estrangeiras, foram desenhadas de forma específica para ordenar os litígios internacionais que se vinculem à matéria de propriedade intelectual. Uma circunstância que se converte ao Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judicial internacional, o reconhecimento e execução de resoluções judiciais em matéria civil e comercial93 - conhecido como Regulamento Bruxelas I (adiante, Regulamento Bruxelas I)-, no instrumento central na hora de regulamentar os litígios internacionais relativos a direitos de propriedade intelectual. Este Regulamento foi recentemente modificado (ainda que sem afetar de modo radical a matéria tratada neste trabalho), por meio do homônimo Regulamento (UE) nº 1215/2012 (conhecido como Regulamento Bruxelas I bis)94. Não obstante, dito Regulamento Bruxelas I bis será aplicado a partir de 10 de janeiro de 2015 (como dispõe seu art. 81), pelo que toda referência se entenderá feita a respeito do texto de 2001. E ele, resguardadas as modificações que possam ser incorporadas pela versão de 2012. Em definitivo, o Regulamento Bruxelas I constitui um importante instrumento na hora de regulamentar os litígios internacionais em matéria de propriedade intelectual no âmbito da UE. O qual encontra sua base jurídica no art. 61 do tratado da Comunidade Europeia (antecedente do art. 81 TFUE), constituindo a pedra angular da política de cooperação em matéria de justiça civil. Esta posição central se vê reafirmada pelo fato de que os escassos instrumentos que, sobre determinados direitos de propriedade intelectual em particular, incluem disposições relativas a estes setores, coincidem em referir-se a este concreto Regulamento, como texto supletivo aos mesmos, quando assim se faz necessário. Algo que se manifesta no âmbito da propriedade industrial, 93

D.O.C.E. nº L 12, de 16 de Janeiro de 2001.

94

D.O.U.E. nº L 351/1 20.12.2012. 73

mais que no setor dos Direito autorais, aonde não se criou direitos com um caráter unitário95. 2.2. Soluções previstas no Regulamento Bruxelas I

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Desde a perspectiva da determinação da competência judicial internacional, o Regulamento Bruxelas I oferece a este tipo de litígios tanto normas que estabelecem foros atributivos de competência, como disposições que contêm normas de aplicação do sistema. Um conjunto normativo que se aplicará, em relação com os casos de direitos unitários e outros específicos, também a litígios em que o demandado possua um estabelecimento em um Estado membro, ainda quando não tenha ali seu domicílio. 1) Em uma rápida revisão, e se começar pelos foros de competência judicial internacional e sua aplicação aos litígios em matéria de propriedade intelectual96, deve-se destacar como o regulamento dispõe de foros exclusivos a favor dos tribunais do Estado membro aonde se situa o registro público para os litígios em matéria de inscrição ou validade de direitos de propriedade intelectual (art. 22.497). Assim como foros gerais baseados na submissão ex95 Assim, o art. 94 do Regulamento (CE) nº 201/2009, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária (D.O.C.E. nº L 78/1, de 24 de março de 2009); o art. 79 do Regulamento (CE) nº 6/2002, sobre os desenhos e modelos industriais (D.O.C.E. nº L 3/1, de 5 de janeiro de 2002) e o art. 101 do Regulamento (CE) nº 2100/94, relativo à proteção comunitária das obtenções vegetais (D.O.C.E. nº L 227/1, de 1 de setembro de 1994. Modificado pelo Regulamento (CE) nº 873/2004 (D.O.C.E. nº L 162/38, de 30 de abril de 2004). Sobre as respostas de competência judicial internacional previstas nestes instrumentos ver: DESANTES REAL, M., “La marca comunitaria y el Derecho internacional privado”, en: BERCOVITZ RODRÍGUEZ-CANO, A. (DIr.), Marca y Diseño Comunitario, Pamplona, Aranzadi, 1996, p. 225-260; LÓPEZ TARRUELLA MARTÍNEZ, A., Litigios transfronterizos sobre derechos de propiedad industrial e intelectual, op.cit., p. 64 e ss. e 143 e ss.; PALAO MORENO, G., “La protección internacional de los dibujos y modelos comunitarios”, pe.i. revista de propiedad intelectual 2002, nº 10, p. 65-95. 96 Vid. ESPLUGUES MOTA, C., “Normas de competencia judicial internacional en materia de propiedad intelectual”, en AA.VV., Los derechos de la propiedad intelectual en la nueva Sociedad de la Información, Granada, Comares, 1998, p. 191 e ss.; FAWCETT, J., “Special rules of Private International Law for special cases: what should we do about Intellkectual Property?”, en: FAWCETT, J. (ed.), Reform and development of private international law: essays in honour of Sir Peter North, Oxford, Oxford University Press, 2002, pp. 137-166; FUMAGALLI, L., “Litigating Intellectual Property Rights disputes cross.botder: jurisdiction and recognition of judgements under the Brussels I regulation”, en: BARIATTI, S. (ed.), Litigating Intellectual Property Rights disputes cross.botder: EU Regulations, ALI Principles, CLIP Project, Milán, Cedam, 2010, pp. 15-37; LÓPEZ TARRUELLA MARTÍNEZ, A., Litigios transfronterizos sobre derechos de propiedad industrial e intelectual, Madrid, Dykinson, 2008, p. 39 e ss, e 88 e ss.; MOURA VICENTE, D., A Tutela Internacional da Propiedade Intelectual, op.cit., p. 369 e ss. También, el estudio elaborado por NUYTS, A./ SZYCHOWSKA, K./ HATZIMIHAIL, N., “Cross-border litigation in Intellectual Property matters in Europe” de 2006 (disponible en: http://www.ulb.ac.be/droit/ipit/docs/HeidelbergBackgPaper1.pdf) [visitada em 1 de Julho de 2013]. 97 Sobre o tema sobressai a STJCE (Sala Primeira) de 13 de julho de 2006, no caso C‑4/03, Gesellschaft für Antriebstechnik mbH & Co. KGy Lamellen und Kupplungsbau Beteiligungs KG. Mais recentemente, a STJUE (Sala Terceira) de 1 de dezembro de 2011, no Assunto C‑145/10, Eva-Maria Painer contra Standard Verlags GmbH, Axel Springer AG, Süddeutsche Zeitung GmbH, Spiegel-Verlag Rudolf Augstein GmbH & Co KG, Verlag M. DuMont Schauberg Expedition der Kölnischen Zeitung GmbH & Co KG.; e la STJUE (Sala Terceira) de 12 de julho de 2012, no caso C-616/10, Solvay SA/Honeywell Fluorine Products Europe BV e outros, (D.O.U.E. nº C 89/9, de 19 de Março de 2011) (disponíveis em: http://www.curia.eu) [visitadas em 1 de Julho de 2013]. 74

propriedade intelectual pressa ou tácita (arts. 23 e 2498). De tal forma que, na ausência dos critérios anteriores, o demandante poderá optar entre os tribunais do domicílio do demandado (art. 2) e dos foros especiais do art. 599. O que diz respeito aos foros atributivos de carácter específico que contempla o Regulamento Bruxelas I, há que mencionar o idealizado para atender aos litígios relativos aos direitos de propriedade em matéria contratual, o qual se encontra baseado no lugar de cumprimento da obrigação que sirva de base para a demanda (art. 5.1100); como também o incorporado para as controvérsias em matéria não contratual, fundamentado no tradicional fórum delicti commissi (art. 5.3), com uma complexa aplicação para os casos de infração no meio digital101. Junto a ele e de especial interesse nos casos de infração de tais direitos, também se contempla um foro para os casos de pluralidade de demandados (art. 6.1102). 2) Vinculado ao anterior, cabe fazer referência às normas de aplicação do sistema de competência judicial que se contemplam, em particular, para a comprovação da competência e a admissibilidade (arts. 25 e 26), para os casos de litispendência e conexão (arts. 27 a 30)103, igual a que –e de singular significado para os litígios relativos a tais direitos- o estabelecimento de medidas cautelares e provisórias (art. 31)104. 98 Ainda que com os limites que se estabeleçam para os direitos unitários, nos arts. 97.4 Regulamento marca comunitária, 82.4 Regulamento Desenho comunitário e 102.2 Regulamento obtenções vegetais. 99 Em relação com estes três preceitos, há que se ter em conta os limites que, para os direitos unitários, constituem os arts. 94.2 a) Regulamento marca comunitária, 79.3 a) Regulamento desenho comunitário e 102.1 Regulamento obtenções vegetais. 100 Este preceito foi interpretado pelo TJCE em relação com os contratos sobre direitos de propriedade intelectual na Sentencia (Sala Quarta) de 23 de abril de 2009, no caso C-533/07, Falco Privatstiftung, Thomas Rabitsch y Gisela Weller-Lindhorst (disponível em: http://www.curia.eu) [visitada em 1 de Julho de 2013]. 101 ESTEVE GONZÁLEZ, L., Aspectos internacionales de las infracciones de derechos de autor en internet, Granada, Comares, 2006, p. 133-163; LÓPEZ-TARRUELLA MARTÍNEZ, A, “Criterio de “focalización” y forum delicti commissi em las infracciones de propiedad industrial e intelectual em internet”, Pe.i. revista de propiedad intelectual 2009, nº 31, pp. 13-51; METZGER, A., “Jurisdiction in Cases Concerning Intellectual Property Infringements on the Internet”, en: LEIBLE, S./ OHLY, A. (Eds)., Intellectual Property and Private International Law, Tubinga, Moh Siebeck, 2009, pp. 250-257; TORREMANS, P., “Private International Law Aspects of IP-Internet Disputes”, en: EDWRADS, L./ WAELDE, C. (Eds.), Law and the Internet. A framework for Electronic Commerce, Oxford, Hart, 2000 (2ª ed.), pp. 225 e ss. 102 A respeito destaca a STJCE (Sala Primeira) de 13 de julho de 2006, no Caso C-539/03, Roche Nederland BV e otros y Frederick Primus, Milton Goldenberg (disponível em: http://www.curia.eu) [visitada em 1 de Julho de 2013]. 103 HOLTMANN YDOATE, M., “Litispendencia y conexidad de procesos de propiedad industrial planteados ante tribunales de diferentes Estados de la Comunidad Europea”, Diario La Ley, ref. D-252, Tomo 4, 1996. 104 Ter em conta, a STJUE (Sala Terceira) de 12 de julho de 2012, no Caso C-616/10, Solvay SA/Honeywell Fluorine Products Europe BV e outros, (D.O.U.E. nº C 89/9, de 19 de Março de 2011) (disponível em: http:// www.curia.eu) [visitada em 1 de Julho de 2013]. Vid., JIMÉNEZ BLANCO, P., “Cooperación internacional en la práctica de pruebas y adopción de medidas cautelares en los derechos de propiedad intelectual” AEDIPr 2000, pp. 285-297. 75

No que tange ao reconhecimento e execução de decisões estrangeiras sobre direitos de propriedade intelectual, há que se mencionar a possibilidade de acudir ao estabelecido nos arts. 32 a 56105. Nesses casos, sem limitação alguma de aplicação para os litígios sobre direitos unitários. Ainda sendo certo que a existência do sistema geral que significa o Regulamento Bruxelas I deve ser valorado de modo positivo, igualmente deve-se criticar o fato de que precisamente dito caráter genérico pode chegar a implicar uma resposta inadaptada para os litígios transfronteiriços em matéria de direitos de propriedade intelectual. Por ele, seria recomendável contar com um conjunto de disposições uniformes e adaptadas às particularidades deste tipo de controvérsias, como sucederia com os “Princípios CLIP”.

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3. Aspectos da lei aplicável No que tange às normas de conflito de leis elaboradas pela UE para regulamentar os direitos de propriedade intelectual destacam, de modo diferente ao que sucede em matéria jurisdicional e de reconhecimento, três extremos fundamentais. 1) Por uma parte, destaca o fato de que não existem instrumentos que com um caráter geral regulem as questões de lei aplicável relativas aos direitos de propriedade intelectual, e que se apliquem na ausência de textos específicos. A este fato, soma-se a distinta aproximação dispensada a esta matéria em cada política. Assim, enquanto as normas incorporadas nos instrumentos relativos à cooperação judicial em matéria civil são, normalmente, normas de conflito bilaterais, as próprias normas da política de mercado interior consistem em normas de extensão baseadas no “princípio do país de origem” com as que se fomenta o “reconhecimento mútuo” neste setor. 2) Por outra parte, na maior parte dos casos cobertos, as normas europeias possuem uma natureza universal que as converte em aplicáveis à situações tanto intra como extracomunitárias. Não obstante, há de destacar como existem pontuais normas de conflito em importantes Convênios internacionais em matéria de propriedade intelectual – como o art. 5.2 do Convênio de Berna de 1886, para proteção das obras literárias e artísticas106-. Uma circunstância significativa devido a que os dois Regulamentos mais importan105 A respeito dessa questão: LÓPEZ TARRUELLA MARTÍNEZ, A., Litigios transfronterizos sobre derechos de propiedad industrial e intelectual, op.cit., p. 233 e ss. 106 Vid. CARRASCOSA GONZÁLEZ, J., La propiedad intelectual en el Derecho internacional privado español, Granada, Comares, 1994, pp.m 64-71; RICKETSON, S. y GINSBURG, J.C., International Copyright and neighbouring Rights. The Berne Convention and Beyond, Oxford, Oxford University Press, 2007 (2ª ed.), Vol. II, pp. 1297-1327. 76

propriedade intelectual tes nesse âmbito – os Regulamentos Roma I e Roma II que serão analisados em seguida- preveem a aplicação de forma preferencial das normas de lei aplicável contidas em tais Convênios, deslocando as respostas previstas em tais Regulamentos dentro de seu âmbito de aplicação107. 3.1. A ausência de soluções gerais na matéria Diferentemente do que sucede em matéria jurisdicional, não existem instrumentos gerais em matéria de conflito de leis no marco da UE que, por sua vez, resultem aplicáveis aos litígios internacionais sobre direitos de propriedade intelectual; situando-se a regulação de aspectos significativos de lei aplicável relativa aos direitos de propriedade intelectual nos sistemas autônomos de Direito internacional privado108. Algo que não implica que as normas do TFUE sejam alheias a esta questão, já que as soluções nacionais que se elaboram para ordenar esta matéria não poderão contrariar os princípios e liberdades fundamentais do Direito da UE109, de igual modo que as soluções tradicionais na matéria como o recurso da lex loci protectionis devem ser examinadas à luz de tais princípios e liberdades110. Dessa ausência de soluções deriva que extremos de grande importância na matéria analisada, como a lei reguladora em matéria de sua inscrição ou validade, os aspectos jurídicos-reais que se derivam dos mesmos ou questões mais específicas tal qual como seria a questão de uma lei regulamentadora da autoria e a titularidade de tais direitos, ficam nas mãos do legislador estatal111. Uma remissão à normativa nacional, incluindo seu sistema de Direito Internacional privado, que se explicita em alguns instrumentos sobre direitos unitários112. Essa circunstância não apresenta demasiadas dificuldade devido à ampla utilização que se faz, desde um perspectiva comparada da lex fori – no 107 Arts. 25 e 28, respectivamente. Sobre sua incidência no Regulamento Roma II, BRIÈRE, C., “Réflexions sur les interactions entre la proposition de règlement «Rome II» et les conventions internationales, J.D.I. 2005, p. 677-694. 108 Uma análise comparativa dessa matéria no âmbito europeu em: “Study on Intellectual Property and the Conflict of Laws”, de 2000 (Disponível em: http://ec.europa.eu/internal_market/copyright/docs/studies/etd1999b53000e16_en.pdf). Acesso em 1 de Julho de 2013. 109 Assim, o TJCE em sua Sentença (Sala Segunda) de 30 de junho de 2005, no assunto C-28/04, Tod’s SpA, Tod’s France SARL y Heyraud SA (Disponível em: http://www.curia.eu). Acesso em 1 de Julio de 2013. 110 SABIDO RODRÍGUEZ, M., op.cit., pp. 209 e ss. 111 À respeito, TORREMANS, P., “Authorship, ownership and Works created by employees: which law applies?”, E.I.P.R. 2005, pp. 220-224; VAN EECHOUD, M., “Alternatives to the Lex Protectionis as the Choice-of-law rule for initial ownership of Copyright”, ”, en: DREXL, J. y KUR, A. (Eds.), Intellectual Property and Private International Law –Heading for the future, Oxford, Hart, 2005, pp. 289-307; XALABARDER, R., “La protección internacional de la obra audiovisual: cuestiones relativas a la autoría y titularidad inicial”, Revue Internationale du Droit d’Auteur, nº 193, 2002, p. 3-147. 112 Assim os arts. 101.2 Regulamento marca comunitária e 88.2 Regulamento desenho comunitário. 77

primeiro caso – à lex loci protectionis – no segundo. Todavia, maiores problemas se apresentam com respeito à questão da titularidade dos direitos de propriedade intelectual, ao dividir-se os Estados membros da UE, entre aqueles que aplicam a lex originis e aqueles que optam pela lex loci protectionis. Em todo caso, como já se há destacado, resultaria aconselhável que se estabelecessem normas uniformes sobre a determinação da lei aplicável em matéria de direitos de propriedade intelectual no âmbito europeu. E, com o objetivo de evitar a disparidade nesta matéria que poderiam gerar distorções no mercado interior. Uma vez mais, o caminho marcado pelos “Princípios CLIP” ofereceriam um modelo que poderia ser explorado por parte do legislador comunitário.

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3.2. Revisão das soluções especiais presentes nos instrumentos europeus Os poucos instrumentos comunitários que contêm normas de conflito de leis aplicáveis aos direitos de propriedade intelectual em sua dimensão internacional se referem, em particular, a casos de infração aos mesmos; tais instrumentos são também aplicáveis àqueles conflitos em matéria contratual, ainda quando não prevejam respostas especializadas para esses casos.  a) Em matéria de infração de direitos No que diz respeito à determinação da lei aplicável aos litígios internacionais de infrações de direitos de propriedade intelectual, possui-se um especial protagonismo o art. 8 Regulamento Roma II113, vinculado à política de cooperação judicial em matéria civil. Não obstante à posição central deste preceito, não se pode esquecer a importância que para esta matéria terão as soluções presentes em outros artigos como no art. 6, ao regular as questões de lei aplicável relativas à matéria tão próximas como os referentes à livre 113 Vid. BARIATTI, S., “The law applicable to the infringement of IP Rights under the Rome II Regulation”, en: BARIATTI, S. (Ed.), Litigating Intellectual Property Rights Disputes Cross-border: EU Regulations, ALI Principles, CLIP Project, Milán, Cedam, 2010, pp. 63-88; BOSCHIERO, N., “Infringement of Intellectual Property Rights. A commentary on Article 8 of the Rome II Regulation”, YbPIL 2007, pp. 87-113; DE MIGUEL ASENSIO, P.A., “La lex loci protectionis tras el Reglamento “Roma II””, AEDIPr 2007, pp. 375-406; ILLMER, M., “Article 8”, en: HUBER, P. (ed.), Rome II Regulation. Pocket Commentary, Munich, Sellier, pp. 226-259; MICHINEL ÁLVAREZ, M.A., “La regulación del derecho de autor internacional en España ante el Proyecto de Reglamento sobre ley aplicable a las obligaciones extracontractuales (“Roma II”)”, A.D.I. 2006-2007, pp. 275-308; OBERGFELL, E.I., “Das Schutzlandprinzip und “Rom II”. Bedeutung und Konsequenzen für das Internationale Urheberrecht”, IPRax 2005, pp. 9-13, pp. 10-11; PALAO MORENO, G., “La protección de los derechos de propiedad intelectual en Europa: el art. 8 del Reglamento Roma II”, Revisa Aranzadi de Derecho de Deporte y Entretenimiento 2008-3, nº 24, pp. 557-571; PERTEGÁS, M., “Intellectual Property and choice of law rules”, en: MALATESTA, A. (Ed.), The Unification of choice of law rules on Torts and other non-contractual Obligations in Europe. The “Rome II” Proposal, Padua, Cedam, 2006, pp. 221-248; OBERGFELL, E.I., “Das Schutzlandprinzip und “Rom II”. Bedeutung und Konsequenzen für das Internationale Urheberrecht”, IPRax 2005, pp. 9-13. 78

propriedade intelectual concorrência e os litígios de concorrência desleal. Pois bem, o texto literal do art. 8 prevê: “Artigo 8º - Violação de direitos de propriedade intelectual: 1. A lei aplicável à obrigação extracontratual que decorra da violação de um direito de propriedade intelectual é a lei do país para o qual a proteção é reivindicada. 2. No caso de obrigação extracontratual que decorra da violação de um direito de propriedade intelectual comunitário com carácter unitário, a lei aplicável a qualquer questão que não seja regida pelo instrumento comunitário pertinente é a lei do país em que a violação tenha sido cometida. 3. A lei aplicável ao abrigo do presente artigo não pode ser afastada por acordos celebrados em aplicação do artigo 14”. Desse singular preceito, com o que se regula esta matéria de forma uniforme e com caráter universal para todos os Estados membros pela primeira vez, destacam os seguintes extremos: 1) Para começar, no item 3º se situa como uma solução comum aos princípios 1º e 2º. Um item onde se exclua a possibilidade que as partes possam eleger a lei aplicável para todo litígio de infração dos Direitos sobre bens imateriais; evitando assim o jogo do art. 14 Regulamento Roma II nesses casos. Uma eliminação que se apresenta em termos absolutos, talvez de forma excessivamente rígida114. 2) Junto a ele, o item 1º oferece a solução geral do sistema aplicável aos litígios de infração transfronteiriça aos direitos de propriedade intelectual, realizando uma opção a favor da lei “do país para cujo território se reclama proteção”. Uma solução inspirada na tradicional e ampliadamente estendido “princípio de territoriedade”, ainda que não isenta de problemas e críticas115. Nesse sentido, não só dificulta uma plena coincidência entre as soluções desenhadas para os setores da competência judicial e a lei aplicável116, embora isso suscite problemas complexos quando se reclama a proteção de diversos 114 MATULIONYTE, R., “Calling for Party Autonomy in Intellectual Property Infringement Cases”, Journal pf Private International Law 2013, Vol. 9, nº 1, pp. 77-99. 115 Sobre essa questão, BERGÉ, J.-S., “Droit d’auteur, conflit de lois et réseaux numériques: rétrospective et prospective”, Rev.crit.dr.internat.privé 2000, pp. 357-397; VAN EECHOUD, M., Choice of Law in Copyright and Related Rights, La Haya, Kluwer, 2003, pp. 169-232. 116 Assim, o Considerando 7 do Regulamento Roma II. No mesmo sentido, FAWCETT, J., “Special rules for Private international Law for special cases: what should we do about Intellectual Property?”, en: AA.VV., Reform and Development of Private International Law. Essays in honour of Sir Peter North, Oxford, Oxford University Press, 2002, pp. 137-166, p. 166. 79

ornamentos, tal e como propicia a Internet117. 3) Por último, o 2º item regula os litígios de infração para o direito de Propriedade Intelectual comunitários de caráter unitário118 por meio da “lei do país em que se tenha cometido a infração”. Uma solução próxima à lex loci delicti commissi – presente no art. 4.1 Regulamento Roma II -, favorecedora da coincidência entre o fórum e o ius nos litígios, e que se fundamentaria no feito de que a proteção que se garantiria aos mesmos é única e comunitária, assim como porque sua infração unicamente poderia ter lugar no interior da UE119.  b) Em matéria contratual

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Ainda que não regule de forma particular os aspectos contratuais relativos aos direitos de propriedade intelectual – por expresso desejo do legislador europeu -, as questões da lei aplicável sobre a licença ou cessão dos mesmos se encontram ordenadas de conformidade ao disposto no Regulamento Roma I. Em particular, resultarão de aplicação aos mesmos o estabelecido em seus arts. 3, 4 e 9 principalmente120. 1) Por uma parte e segundo seu art. 3, as partes poderão eleger o ordenamento regulamentador de seu contrato internacional na matéria de propriedade intelectual, seja de forma expressa ou tacitamente. 2) A ausência de tal eleição, se acudirá ao previsto no art. 4121. Assim, 117 Vid. DESSEMONTET, F., “Internet, la propiété intellectuelle et le droit international privé”, en: AA.VV., Internet. Which Court Decides? Which Law Applies, La Haya, Kluwer, 2001, pp. 47-64; ESTEVE GONZÁLEZ, L., “Infracción internacional de la propiedad intelectual en el medio digital: adaptación de las respuestas del Derecho Internacional privado”, en: PALAO MORENO, G./ PLAZA PENADÉS, J. (Dirs.), Nuevos retos de la Propiedad Intelectual, Aranzadi/ Thomson Reuters, Cizur Menor (Navarra) , 2009, pp. 93-154; GINSBURG, J.C., “The Private International Law of Copyright in an Era of Technological Change”, R. des C. 1998 (273), pp. 239-406; OHLY, A., “Choice of Law in the Digital Environment –Problems and Possible Solutions”, en: DREXL, J. y KUR, A. (Eds.), Intellectual Property and Private International Law –Heading for the future, Oxford, Hart, 2005, pp. 241-256; PALAO MORENO, G., “Internet e a determinaçao do lugar da infraçao da propiedade intellectual na Uniao Europeia”, en: WACHOWICZ, M. (Org.), Propiedade intellectual & Internet, Curitiba, Jurua, 2011, Vol. II, pp. 421-442. 118 Isto é, a marca comunitária, os desenhos e modelos industriais comunitários, as indicações geográficas e das denominações de origem dos produtos agrícolas e alimentício ou as variedades vegetais. 119 HUBER, P. y BACH, I., “Die Rom II-VO. Kommissionsentwurf und aktuelle Entwicklungen”, IPRax 2005, pp. 73-84, p. 80. 120 Entre outros, PALAO MORENO, G., “Tendencias actuals en Europa, en material de contratación internacional sobre derechos de propiedad intellectual”, en: CÁRDENAS MUÑOZ, A. (Comp.), Derecho Internacional de los Negocios. Alcances, Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 2012, T. IV, pp. 197-226, pp. 212-220; PERTEGÁS, M., “Cross border litigation in intellectual property rights: choice of law rules in IP rights under the Rome I Regulation”, en: BARIATTI, S (ed.), Litigating Intellectual Property Rights Disputes Cross-border: EU Regulations, ALI Principles, CLIP Project, Milán, Cedam, 2010, 55-61; TORREMANS, P., “Licenses and assignments of intellectual property rights under the Rome I Regulation”, Journal of Private International Law 2008, pp. 397-420. 121 À respeito, DE MIGUEL ASENSIO, P.A., “Applicable law in the absence of choice to contracts relating to intellectual or industrial property rights”, Yearbook of Private International Law 2008, pp. 199-219. 80

propriedade intelectual seu item 2 permitiria localizar a regulamentação do contrato no ordenamento do país de residência habitual da parte a que se exija a execução da ação que caracteriza o contrato; enquanto que os itens 3 e 4 permitiria flexibilizar esta resposta (em atenção ao princípio dos vínculos mais estreitos) para os litígios nos quais, ou não é possível determinar a prestação característica do contrato, o existe ou exige um ordenamento mais vinculado ou próximo. 3) O art. 9 se refere às disposições de caráter imperativo, suscetíveis de afetar ao regime legal estes contratos internacionais. Tal e qual sucederia com a normativa protetora da Propriedade intelectual122, o Direito da Concorrência123 e as normas de controle das transferências de tecnologia124.  c) Outras matérias Junto aos aspectos mencionados, tem-se que fazer referência também a uma solução de leis aplicáveis específicas de origem comunitária, em distintos âmbitos especializados dos Direitos de autor que se encontram relacionados com a Política de mercado interior. 1) Para começar, cabe referir-se a relativa aos supostos de propriedade intelectual vinculados à radiodifusão via satélite125. Assim em atenção aos dispostos no art. 1.2,a) da Diretiva 93/83/CEE, sobre coordenações de determinadas disposições relativas aos direitos do autor e direitos afins aos direitos de autor no âmbito da radiodifusão via satélite e da distribuição por cabo126, o legislador europeu se decantou por sua regulação de conformidade com o ordenamento do país de emissão – “princípio de origem” -127, encontrando-se esta resposta complementada para litígios extra-comunitários – ex art. 1.2,d)- 128. 122 Relacionada com essa questão, ademais das disposições próprias da lex loci protectionis, se encontra o Regulamento (CE) nº 1383/2003, relativo à intervenção das autoridades aduaneiras nos casos de mercadorias suspeitas de vulnerar determinados direitos de propriedade intelectual e as medidas que devem tomar-se à respeito das mercadorias que vulneram esses direitos (acompanhado do Regulamento (CE) nº 1891/2004, de aplicação do anterior. 123 Nesse âmbito, e desde uma perspectiva europeia, cabe referir – entre outras – o Regulamento (CE) nº 772/2004,, relativo à aplicação do apartado 3 do art. 81 do Tratado a determinadas categorias de acordos de transferência de tecnologia. 124 Tem-se que citar, entre outras disposições, o Regulamento (CE) nº 428/2009 do Conselho, de 5 de maio de 2009, por ele que se estabelece um regime comunitário de controle das exportações, a transferência, e o trânsito de produtos de uso dobrado. Por sua parte, a Diretiva 2009/43/CE busca precisamente, o contrário, simplificar a transferência de produtos relacionados com a defesa dentro da UE. 125 Vid., MICHINEL ÁLVAREZ, M.A., La radiodifusión vía satélite en la regulación española de Derecho de autor internacional, Granada, Comares, 1998, pp. 100-108; MOURA VICENTE, D., “Direito de autor e comercio electrónico. Aspectos internacionais”, op.cit., p. 95. 126 D.O.C.E. nº L 248/15, de 6 de Octubre de 1993. 127 “b) A comunicação ao público por satélite verifica-se apenas no Estado-membro onde os sinais portadores do programa são introduzidos, sob o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão, numa cadeia ininterrupta de comunicação conducente ao satélite e deste para a terra;”. 128 “Sempre que um ato de comunicação ao público por satélite se verifique num país terceiro que não 81

2) Em outra ordem de ideias, também encontramos uma norma de lei aplicável, baseada no “princípio de reconhecimento mútuo”, no art. 4 da recente Diretiva 2012/28/UE, sobre certos usos autorizados das obras órfãs, ao regular a questão relativa ao “Reconhecimento mútuo da condição de obras órfãs” 129. 3) Por último, as mais recentes iniciativas neste âmbito igualmente se baseiam no “princípio de origem”, com a finalidade de facilitar a concessão de licenças multiterritoriais de direitos de autor em linha, válidas para todo o mercado europeu. Tal e qual como se aprecia tanto o “Livro Verde de 2011 sobre a distribuição em linha de obras audiovisuais na União Europeia - Rumo a um mercado único digital: oportunidades e desafios”130, como no art. 21 da “Proposta de Diretiva de 2012 relativa à gestão coletiva dos direitos de autor e direitos afins e a concessão de licenças multiterritoriais de direitos sobre obras musicais para sua utilização em linha no mercado interior” 131.

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4. Valoração A consolidação do mercado interior e o incremento das relações transfronteiriças se situam detrás da paulatina elaboração de normas de Direito internacional privado relacionadas com a ordenação dos Direitos de propriedade intelectual. Este esforço legislativo se caracteriza por sua dispersão em um significativo número de instrumentos europeus que têm encontrado suas bases jurídicas na política de mercado interior ou na justiça em matéria civil. O resultado alcançado tem sido um conjunto normativo assistemático preveja o nível de proteção previsto no capítulo II da presente diretiva: i) se os sinais portadores de programas forem transmitidos para o satélite por uma estação de ligação ascendente localizada num Estado-membro, considera-se que esse ato de comunicação ao público por satélite ocorreu nesse Estado-membro, podendo ser exercidos os direitos previstos no capítulo II contra a pessoa que opera a estação de ligação ascendente, ou ii) se não for utilizada uma estação de ligação ascendente localizada num Estado-membro mas um organismo de radiodifusão constituído num Estado-membro tiver incumbido outrem desse ato de comunicação ao público por satélite, considerar-se-á que esse ato ocorreu no Estado-membro em que a organização de radiodifusão tem o seu estabelecimento principal na Comunidade, podendo ser exercidos os direitos previstos no capítulo II contra o organismo de radiodifusão.”. 129 D.O.U.E. nº L 299/5, de 27 de Outubro de 2012. O texto do preceito dispõe: “As obras ou fonogramas considerados obras órfãs num Estado- -Membro nos termos do artigo 2. o são considerados obras órfãs em todos os Estados-Membros. Essas obras ou fonogramas podem ser utilizados e colocados à disposição do público nos termos da presente diretiva em todos os Estados-Membros. Tal aplica-se igualmente às obras e aos fonogramas referidos no artigo 2. o , n. o 2, no que se refere aos direitos dos titulares de direitos não identificados ou não localizados.”. 130 COM (2011) 427 final. Disponível em: http://ec.europa.eu/internal_market/consultations/docs/2011/ audiovisual/green_paper_COM2011_427_es.pdf. Acesso em: 1 de Julio de 2013. 131 COM (2012) 372 final. Disponível em: http://ec.europa.eu/internal_market/copyright/docs/management/com-2012-3722_es.pdf Acesso em: 1 de Julio de 2013. 82

propriedade intelectual que suscita problemas de aplicação prática. Por ele, o objetivo deste estudo tem sido elaborar um inventário de tais normas e algumas das dificuldades que geram. À vista desse panorama pode-se afirmar que resultaria aconselhável redefinir dito processo legislativo, para dotá-lo de coerência e caráter sistemático. Nesse sentido, se entende que o modelo que oferecem os “Princípios CLIP” se apresenta como uma interessante aproximação que poderia ser levado em conta pelo legislador europeu neste âmbito.

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propriedade intelectual O DOMÍNIO PÚBLICO VOLUNTÁRIO Sérgio Branco132

1. Introdução A lei de direitos autorais brasileira estabelece critérios para uma obra ingressar em domínio público, sendo o mais evidente o decurso do tempo. Em regra, as obras de um autor entram em domínio público setenta anos após sua morte, havendo contudo exceções para obras fotográficas e audiovisuais (entre outras), que seguem curso cronológico distinto. Indaga-se, entretanto, se seria possível a dedicação voluntária de uma obra ao domínio público, bastanto-se para isso a vontade do autor. Como o caso não é expressamente tratado na lei, mas desperta interesse prático, julgamos relevante analisar a hipótese a partir dos princípios hoje vigentes no sistema de direitos autorais brasileiro. De maneira sintética, podemos entender o ingresso de uma obra no domínio público como decorrência do esgotamento dos direitos patrimoniais previstos na lei brasileira de direitos autorais (Lei 9.610/98, doravante designada “LDA”). Como se sabe, a criação de uma obra intelectual passível de proteção por direitos autorais confere a seu autor duas gamas de direitos, os morais e os patrimoniais. Os primeiros, elencados no art. 24 da LDA, são direitos não econômicos. Apesar da falta de homogeneidade entre os sete incisos de referido artigo, são comumente compreendidos como direitos de natureza pessoal (não patrimonial), o que justificaria o texto do art. 27 da LDA, que determina serem os direitos morais de autor inalienáveis e irrenunciáveis. Já os direitos patrimoniais têm, como o próprio nome nos faz perceber, caráter econômico. Estão previstos no art. 29 da LDA, e incluem, entre outros, os direitos de reproduzir a obra protegida, editá-la, adaptá-la para outros meios de comunicação, traduzi-la e distribuí-la. Ao contrário dos direitos morais, que subsistem parcialmente após a morte do autor e mesmo além do ingresso da obra em domínio público, os direitos patrimoniais se extinguem, em regra, setenta anos depois da morte do criador da obra protegida. Para fotografias e obras audiovisuais, contudo, o 132 Professor e pesquisador do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 85

prazo é de setenta anos contados de sua publicação. E é justamente ao cabo desse prazo que a obra entra em domínio público. A partir desse momento, qualquer pessoa pode praticar os atos previstos no art. 29 da LDA sem necessidade de autorização de terceiros ou de pagamento pelo uso. Ainda que o decurso do prazo de proteção seja a causa mais recorrente para o ingresso de uma obra em domínio público, não é a única. A LDA determina, em seu art. 45, as hipóteses de extinção dos direitos patrimoniais de autor. Prescreve o mencionado artigo: Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público: I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;

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II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais. Como se vê, as hipóteses legalmente previstas são três. A primeira (e mais comum) é aquela da qual tratamos acima – o fim do prazo de proteção. A segunda diz respeito a autor que tenha falecido sem deixar herdeiros (e, veja-se bem, sem ter transferido os direitos a terceiro, ainda em vida. Afinal, mesmo que não tenha deixado herdeiros, pode ter celebrado contrato com pessoa física ou jurídica, sendo necessário, em tal caso, aguardar-se o prazo final do contrato, se de licença, ou o até mesmo o fim do prazo de proteção, caso o contrato seja de cessão de direitos). A terceira e última hipótese legalmente enunciada diz respeito a obras de autoria desconhecida. A LDA parece fazer distinção entre obra anônima e obra de autor desconhecido. Por uma questão lógico-jurídica, obra de autor desconhecido não é a obra anônima de que trata o art. 43. Se assim fosse, haveria uma incompatibilidade entre o previsto nesse artigo (que atribui proteção às obras anônimas) e o previsto no art. 45, II, ao estabelecer que as obras de autor desconhecido estão em domínio público. Assim, obra de autor desconhecido é diferente de obra anônima (que a LDA melhor qualificaria como “obra de autoria anônima”). Que vem a ser obra de autor desconhecido, então? Enquanto as obras anônimas são aquelas em que o autor optou pelo anonimato quando poderia ter optado por publicá-la sob seu próprio nome ou pseudônimo, as obras de autor desconhecido são aquelas cuja indicação de autoria se perdeu no tempo, ainda que esse (atual) desconhecimento de autoria tenha se dado à revelia do autor. Observamos que o tema é complexo e sua análise minuciosa extrapolaria os limites deste trabalho. 86

propriedade intelectual Avançamos, assim, para a hipótese de que cuidamos e que não está expressamente prevista na LDA: a possibilidade de uma obra entrar em domínio público pela vontade do autor. A primeira indagação que se deve fazer é: faz sentido alguém dedicar uma obra intelectual ao domínio público? O ingresso voluntário da obra no domínio público não iria contra todo o esforço de se proteger as obras autorais construído ao longo dos dois últimos séculos? Por que alguém desejaria destinar sua obra ao domínio público?

2. Novas Perspectivas do Direito Autoral Nos termos da LDA, as obras intelectuais são protegidas (se protegidas) independentemente da vontade do autor e mesmo contra a sua vontade. Um autor pode ter interesse em ver sua obra circular livremente, pode querer abrir mão do direito de autorizar individualmente a reprodução de sua obra, pode, em síntese, querer que ela possa ser acessada e distribuída na íntegra, diferentemente do que a LDA prevê como padrão. A hipótese não é descabida. O homem sempre criou, independentemente de leis que assegurem monopólios e independentemente da percepção de lucro pela exploração econômica da obra. Shakespeare, Dante, Chaucer, Cervantes, Montaigne, Milton, Gil Vicente, Bocage e Padre Antônio Vieira, entre muitos outros que poderíamos citar, criaram obras-primas da literatura sem que houvesse, à época, qualquer proteção a direitos autorais. Se o monopólio existe para estimular a criação, não é, entretanto, condição sine qua non para esta. Ademais, a internet veio, em meados dos anos 1990, pôr à prova não apenas o papel dos direitos autorais como de todos os modelos de negócio de cultura consolidados no século XX. Até os anos 1980, a produção e a difusão da cultura de massa eram controladas, exclusivamente, pelos grandes conglomerados da mídia. À sociedade apenas se permitia acessar aqueles bens físicos que eram tornados disponíveis por quem detinha o controle da obra. Depois do ingresso da obra original no mercado, sua reprodução não autorizada era quase sempre difícil de ser obtida, muitas vezes a qualidade era baixa e não raro o custo era alto133. 133 Até o início dos anos 1990, LPs e fitas de vídeo cassete eram copiadas apenas em outras fitas, sendo que a qualidade da cópia era muitas vezes sofrível e seu desgaste se dava com bastante rapidez. Além disso, seria indispensável ter acesso à obra original para dela se obter uma cópia, e o acesso nem sempre era simples, pois em um mundo ainda não digital, o acesso se restringia às cópias físicas das obras que houvesse em circulação. A propósito, cabe lembrar que até 1998, a cópia de qualquer obra na íntegra não violava os direitos autorais nos termos da lei 5.988/73, em vigor até então, que permitia uma cópia integral de qualquer obra, desde que para fins privados. 87

Após o surgimento da internet, os direitos autorais, que antes interessavam, em regra, apenas a produtores de música e de obras audiovisuais e aos editores de obras literárias, passou a dizer respeito à vida de todos. Essa mudança de abrangência na importância da matéria decorre muito certamente da popularização dos meios de tecnologia e sua apreensão pela classe média e pelas periferias globais.

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Atualmente, é muito provável que qualquer pessoa munida de um telefone celular e de um computador com acesso à internet possa distribuir sua própria produção literária e audiovisual, além de acessar, modificar e distribuir a produção alheia. É isso o que ocorre diariamente em websites como Youtube, Flickr, Blogger e Facebook, apenas para ficar com algumas das ferramentas mais poderosas globalmente. Mas não só. Até canais outrora tradicionais, como o jornal O Globo, vêm recebendo contribuição cada vez maior de pessoas não profissionais, que submetem ao periódico fotos ou textos de sua autoria para publicação. A rede de acesso e distribuição de conteúdo que constitui a base da Web 2.0134 não se ajusta ao modelo de direitos autorais forjado a partir da Convenção de Berna de 1886 e construído pelas diversas leis nacionais que tratam do assunto. Pelo sistema legal vigente, copiar a foto de um amigo de seu perfil do Facebook ou de qualquer outra rede social, sem sua autorização, constitui violação de direitos autorais. Assim como, muitas vezes, baixar vídeos do Youtube ou copiar textos hospedados em um dos blogs do Blogger ou do Wordpress. Ainda que a conduta seja praticada sem fins lucrativos, com correta indicação de autoria e de procedência e mesmo que o autor não se incomode com a prática, o ato de fazer reprodução integral da obra seu autorização do autor poderá ser visto como infração à LDA135. É bem verdade que muitas vezes a obra objeto de reprodução não tem qualquer ambição artística, não passando de um registro textual ou audiovisual de um momento. Nesses casos, o autor não tem interesse na exploração da obra e ela se encontra disponível na internet tão somente para ser acessada por seus amigos e conhecidos. É o que ocorre com boa parte das informações constantes das redes sociais. Por outro lado, pode o autor tornar sua obra disponível na internet exatamente por acreditar em seu potencial econômico. Em tais casos, é comum o 134 O termo foi concebido em 2004 por Dale Dougherty e popularizado por Tim O´Reilly. Hoje, a convergência de utilidades permitida a partir da conexão com a internet (é possível acessar vídeos, músicas, fotos e textos de terceiros, manipulá-los e, do mesmo modo – porém em via oposta – disponibilizar vídeos, músicas, fotos e textos) está se espalhando para além dos computadores, em celulares e, em breve, na televisão. 135 Basta confrontar o disposto nos artigos 28, 29 e 46 da LDA para a violação se tornar evidente. 88

propriedade intelectual autor crer que a proteção conferida pela LDA serve de entrave à circulação da obra e que esse entrave acaba por ser maléfico a seus interesses comerciais. Para um autor estreante, talvez faça mais sentido que sua obra se torne disponível de graça na internet, podendo qualquer pessoa fazer cópia dela, do que esperar por uma proteção que muitas vezes não se reverterá nem em um público maior desfrutando da obra nem em benefícios financeiros. Não apenas artistas iniciantes têm dispensado a proteção legal. Grupos como Radiohead se valem de estratégias comerciais pouco ortodoxas (até o momento) para promover seus novos trabalhos, tentando torná-los disponíveis por valores mais palatáveis ao público consumidor além de se aproximar dos fãs por meio de contato direto em websites136. A profusão de conteúdo existente na internet certamente contribuiu para a busca de novos modelos de negócio. Novos porque se distinguem daqueles desenvolvidos e consagrados ao longo do século XX e que, atualmente, são insuficientes para distribuir obras culturais e remunerar artistas. Nesse sentido, o modelo musical do tecnobrega137 e a produção audiovisual nigeriana138 são bons exemplos. Tais modelos se caracterizam sobretudo pela renúncia a (ou pela flexibilização de) determinados direitos autorais previstos pela LDA. No modelo do tecnobrega, por exemplo, muitas vezes não se impede a reprodução da obra (no caso, dos CDs). Ao contrário, a reprodução é estimulada para que o artista se torne conhecido e passe a se remunerar por meio de shows, não apenas pela venda de CDs139. Ocorre que o simples fato de a obra estar disponível na internet não significa que o autor tenha consentido com sua reprodução por quem quer que seja140. Muito menos, evidentemente, que a obra esteja em domínio pú136 Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/10/01/297954778.asp. 137 Ver, de Ronaldo Lemos e Oona Castro, “Tecnobrega – o Pará Reinventando o Negócio da Música”. LEMOS, Ronaldo e CASTRO, Oona. Tecnobrega – o Pará Reinventando o Negócio da Música. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. 138 IGWE, Charles. A Indústria Cinematográfica Nigeriana e KUSAMOTU, Ayo. Um Olhar sobre o Cinema Nigeriano. LEMOS, Ronaldo; SOUZA, Carlos Affonso Pereira de e MACIEL, Marília (orgs). Três Dimensões do Cinema – Economia, Direitos Autorais e Tecnologia. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2010; pp. 107 e ss. 139 Desnecessário dizer que tais práticas devem ser encaradas como alternativas ao modelo tradicional e não como imposições. Aos autores – e somente a eles – competirá decidir se devem se valer do direito autoral previsto na LDA ou de práticas inovadoras. Ademais, cada setor da indústria cultural conta com suas peculiaridades e, por hipótese, o que pode funcionar para a música pode ser inviável para livros. Finalmente, uma coisa é a remuneração dos artistas – cantores e músicos. Outra, distinta, é a remuneração dos autores. Para cada classe devem ser perseguidas as melhores soluções. 140 Sobre o tema, ver dissertação de mestrado: BRANCO JR., Sérgio Vieira. Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. A obra pode ser acessada também em http:// bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2832. 89

blico. Para as obras disponíveis na internet, vigoram exatamente as mesmas regras jurídicas de direitos autorais para obras em meio físico, ainda que na internet seja consideravelmente mais difícil dar eficácia a tais normas.

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De fato, a (falta de) eficácia da LDA na internet é mais uma evidência de como os modelos de proteção construídos a partir do final do século XIX são hoje insuficientes para dar conta da revolução tecnológica que vivemos. E nem se trata apenas do acesso a obras alheias, que pode se dar contra a vontade do autor; mencionamos, aqui, o fato de a LDA proteger demais os autores, mesmo quando eles dispensam a proteção. Se um autor, por um motivo qualquer (porque entende que é inútil proteger sua obra - que carece de importância econômica, ou porque prefere vê-la difundida para auferir lucros por meio de outras modalidades de negócio), deseja que sua obra seja copiada pelos usuários da internet, não basta apenas não coibir a reprodução. Quem copia obra na íntegra, ainda que o autor nada faça para impedir a cópia, viola direitos autorais. Por isso, tornou-se necessário que o autor consinta expressamente com a reprodução de sua obra. Surgiram, assim, as licenças públicas gerais, sendo a licença Creative Commons uma das mais notórias. Para entendê-las, devemos tratar primeiro do conceito de commons.

3. As licenças públicas O conceito de commons tem sido muito debatido atualmente. Autores como Lawrence Lessig e James Boyle, em obras a respeito de direitos autorais141, vêm delimitando o tema com bastante precisão. Em síntese estreita, Lessig parte do princípio de “commons” como algo a que as pessoas de determinada comunidade têm acesso sem a necessidade de se obter qualquer permissão. Aponta o autor como exemplos de “commons”: (i) ruas públicas; (ii) praças e praias; (iii) a teoria da relatividade de Einstein e (iv) escritos em domínio público. Distingue, ainda, os dois primeiros itens dos dois últimos a partir das seguintes considerações142: A teoria da relatividade de Einstein é diferente das ruas ou praias públicas. A teoria de Einstein é totalmente “não-rival” [no sentido de que não há 141 “Cultura Livre” e “The Public Domain”, respectivamente. 142 LESSIG, Lawrence. The Future of Ideas – The Fate of the Commons in a Connected World. New York: Random House, 2001., p. 21. No original, lê-se que: “Einstein’s theory of relativity is different from the streets or public beaches. Einstein’s theory is fully “nonrivalrous”; the streets and beaches are not. If you use the theory of relativity, there is much left over afterward as there was before. Your consumption, in other words, does not rival my own. But roads and beaches are very different. If everyone tries to use the roads at the very same time (something that apparently happens out here in California often), then their use rivals my own. Traffic jams; public beaches crowded”.

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propriedade intelectual rivalidade no uso por mais de uma pessoa]; as ruas e as praias não são. Se você usa a teoria da relatividade, há tanto para ser usado depois quanto havia para ser usado antes. Seu consumo, em outras palavras, não rivaliza com o meu próprio. Mas estradas e praias são muito diferentes. Se todos tentam usar as estradas ao mesmo tempo (algo que aparentemente acontece na Califórnia com freqüência), então o seu uso das estradas rivaliza com o meu. Engarrafamentos, praias públicas lotadas. Na opinião de James Boyle, vivemos o que pode ser chamado de “second enclosure movement”. De acordo com o professor da Duke University143, o “primeiro movimento de cercamento”, se pudermos assim nos expressar, teria sido a tomada de terras pertencentes a todos (common land) para, por meio de sua delimitação física, torná-la particular144. O segundo momento é o do cercamento da propriedade intelectual. A reação a esse aprisionamento da propriedade intelectual tem sido o desenvolvimento de mecanismos de abertura do conteúdo, como o software livre e as licenças Creative Commons145. As licenças Creative Commons (assim como quaisquer outras licenças públicas gerais que tenham a mesma finalidade) resolvem um dos grandes problemas da nossa lei autoral: a impossibilidade de cópia integral da obra sem prévia e expressa autorização do autor. A depender da vontade do autor (que é quem determina a extensão da licença), outros direitos também podem ser conferidos aos usuários, como o direito de modificar a obra original e, inclusive (caso o autor assim deseje), o direito de explorar a obra economicamente. Dessa forma, tem se tornado muito comum o licenciamento de obras por meio de licenças públicas pelas quais o autor permite a cópia integral da obra independentemente de autorização específica para cada usuário. Na verdade, a própria licença é uma forma de autorização prévia. 143 BOYLE, James. The Second Enclosure Movement and the Construction of the Public Domain. Law and Contemporary Problems – vol. 66; pp. 33 e ss. Disponível em http://www.law.duke.edu/shell/cite. pl?66+Law+&+Contemp.+Probs.+33+(WinterSpring+2003). 144 Este movimento de privatização foi bastante criticado por Rousseau, a ponto de fazê-lo afirmar que “[o] primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: ‘isto é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. 145 Para aprofundamento do tema, ver, entre outros, “Cultura Livre”, de Lawrence Lessig e “Direito, Tecnologia e Cultura”, de Ronaldo Lemos. LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2005. Já tivemos a oportunidade de escrevermos sobre o tema em BRANCO Jr., Sérgio Vieira. Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, disponível em http:// bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2832 e em LEMOS, Ronaldo e BRANCO, Sérgio. Copyleft, Software Livre e Creative Commons: A Nova Feição dos Direitos Autorais e as Obras Colaborativas. Revista de Direito Administrativo – vol. 243. São Paulo: ed. Atlas, 2006; pp. 148 e ss. 91

Em sua versão 3.0, de 2010, as licenças Creative Commons traduzidas para o português e adaptadas a nosso ordenamento jurídico contam com quatro elementos intercambiáveis que geram seis possíveis licenças. Os elementos são atribuição (obrigatório, em respeito ao direito moral de paternidade); uso não comercial (a obra somente pode ser usada sem fins comerciais); vedação à criação de obra derivada (a obra deve ser usada sem qualquer alteração); compartilhamento pela mesma licença (é permitida obra derivada, desde que esta seja objeto de licenciamento idêntico ao da obra original)146.

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Ao atribuir uma das licenças à sua obra, o autor informa à sociedade, a priori, que tipo de uso pode fazer de seu trabalho: com ou sem fins comerciais, permitidas ou não alterações etc. No mínimo – ou seja, pela licença mais rigorosa –, deverá ser conferido o direito de se fazer cópia integral da obra para uso privado. Por outro lado, a licença mais ampla de todas, denominada apenas de “Atribuição”, autoriza terceiros a fazerem qualquer uso da obra licenciada, desde que sua autoria seja mencionada corretamente. Apesar de não ser uma licença de domínio público, os efeitos produzidos por sua utilização dele se aproximam, tanto na esfera dos direitos morais quanto na dos direitos patrimoniais147. Por tais motivos, esta a licença que por hora mais nos interessa. A licença “Atribuição”, em sua versão atual, decorre da escolha do autor em permitir uso comercial de sua própria obra e criação de obras derivadas, renunciando expressamente ao recolhimento de direitos autorais. Portanto, nos aspectos patrimoniais, já que pode ser explorada comercialmente e livremente modificada, sem autorização ou licença específica por parte do titular, existe aproximação dos efeitos gerados com o ingresso da obra em domínio público148. 146 As licenças que resultam da combinação dos referidos elementos são: (i) atribuição; (ii) atribuição uso não comercial; (iii) atribuição - não a obras derivadas; (iv) atribuição - compartilhamento pela mesma licença; (v) atribuição - uso não comercial - não a obras derivadas e (vi) atribuição - uso não comercial - compartilhamento pela mesma licença. 147 César Iglesias Rebollo classifica iniciativas como o software livre e as licenças Creative Commons como “apoiadas no domínio público voluntário”. REBOLLO, César Iglesias. Software Libre y Otras Formas de Domínio Público Anticipado. Coord.: Carlos Rogel Vide. Madri: Réus, 2005; p. 200. 148 Prevê o texto da licença: 3. Concessão da licença. O Licenciante concede a Você uma licença de abrangência mundial, sem royalties, não-exclusiva, perpétua (pela duração do direito autoral aplicável), sujeita aos termos e condições desta Licença, para exercer os direitos sobre a Obra definidos abaixo: Reproduzir a Obra, incorporar a Obra em uma ou mais Obras Coletivas e Reproduzir a Obra quando incorporada em Obras Coletivas; Criar e Reproduzir Obras Derivadas, desde que qualquer Obra Derivada, inclusive qualquer tradução, em qualquer meio, adote razoáveis medidas para claramente indicar, demarcar ou de qualquer maneira identificar que mudanças foram feitas à Obra original. Uma tradução, por exemplo, poderia assinalar que “A Obra original foi traduzida do Inglês para o Português” ou uma modificação poderia indicar que “A Obra original foi modificada”; Distribuir e Executar Publicamente a Obra, incluindo as Obras incorporadas em Obras Coletivas; e, Distribuir e Executar Publicamente Obras Derivadas. O Licenciante renuncia ao direito de recolher royalties, seja individualmente ou, na hipótese de o Licenciante ser membro de uma socieda92

propriedade intelectual Na verdade, os efeitos produzidos pela aplicação da licença “Atribuição” muito se assemelham aos do domínio público, mas ambos não se equivalem. De acordo com o texto da licença, sua abrangência é mundial. O ingresso da obra em domínio público, por outro lado, depende da lei de cada um dos países onde a proteção é demandada. Além disso, o domínio público afeta diretamente o exercício de determinados direitos morais149, enquanto que o texto da licença “Atribuição” expressamente informa que “na extensão em que reconhecidos e considerados indisponíveis pela legislação aplicável, direitos morais não são afetados por esta Licença”. Do ponto de vista do direito autoral patrimonial, a licença “Atribuição” produz os mesmos efeitos decorrentes da entrada de determinada obra em domínio público, só que em âmbito mundial. Além disso, um outro efeito idêntico ao do ingresso de obra em domínio público é que as licenças Creative Commons são outorgadas em caráter perpétuo. A rigor, a licença confere ao titular o direito de difundir a obra sob outros termos ou de cessar a distribuição da obra licenciada a qualquer momento. No entanto, nenhuma dessas condutas será considerada revogação da licença e naturalmente os direitos adquiridos durante o período em que a obra esteve em circulação por vontade do titular deverão ser respeitados150. Por tudo isso, a outorga da licença Creative Commons do tipo “Atribuição” a determinada obra em muito se assemelha a dedicá-la ao domínio público por conta da proximidade de seus efeitos151. de de gestão coletiva de direitos (por exemplo, ECAD, ASCAP, BMI, SESAC), via essa sociedade, por qualquer exercício Seu sobre os direitos concedidos sob esta Licença. Os direitos acima podem ser exercidos em todas as mídias e formatos, independente de serem conhecidos agora ou concebidos posteriormente. Os direitos acima incluem o direito de fazer as modificações que forem tecnicamente necessárias para exercer os direitos em outras mídias, meios e formatos. Todos os direitos não concedidos expressamente pelo Licenciante ficam ora reservados. Disponível em http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/legalcode. 149 Ver Branco, Sérgio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/9137. 150 Prevê ainda o texto da licença: 7. Terminação. Esta Licença e os direitos aqui concedidos terminarão automaticamente no caso de qualquer violação dos termos desta Licença por Você. Pessoas físicas ou jurídicas que tenham recebido Obras Derivadas ou Obras Coletivas de Você sob esta Licença, entretanto, não terão suas licenças terminadas desde que tais pessoas físicas ou jurídicas permaneçam em total cumprimento com essas licenças. As Seções 1, 2, 5, 6, 7 e 8 subsistirão a qualquer terminação desta Licença. Sujeito aos termos e condições dispostos acima, a licença aqui concedida é perpétua (pela duração do direito autoral aplicável à Obra). Não obstante o disposto acima, o Licenciante reserva-se o direito de difundir a Obra sob termos diferentes de licença ou de cessar a distribuição da Obra a qualquer momento; desde que, no entanto, quaisquer destas ações não sirvam como meio de retratação desta Licença (ou de qualquer outra licença que tenha sido concedida sob os termos desta Licença, ou que deva ser concedida sob os termos desta Licença) e esta Licença continuará válida e eficaz a não ser que seja terminada de acordo com o disposto acima. Disponível em http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/legalcode. 151 Amy J. Benjamin e John LaBarre defendem que, para os que querem permitir o uso de suas obras por terceiros, as licenças públicas são uma solução melhor do que o domínio público voluntário. Segundo os autores, as licenças públicas permitem ao autor ter um controle mínimo sobre o modo como a obra é 93

Ainda assim, o projeto Creative Commons conta com uma licença específica para que autores dediquem suas obras ao domínio público, a licença CC0. Em razão das diversas especificidades legais, que variam de país para país, a CC0 permite que autores dediquem ao domínio público suas obras “no limite permitido por lei”152. Ou seja, os efeitos da licença seriam distintos a depender de como a lei local regula a possibilidade de os autores abrirem mão de seus direitos autorais.

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Dessa forma, pelo menos assim nos parece, no Brasil, a licença CC0 seria admissível desde que respeitados os direitos morais que subsistem após o ingresso da obra em domínio público, já que quanto aos direitos patrimoniais não há nada que impeça sua renúncia. Afinal, assim como se dá com o uso da licença “Atribuição”, a licença CC0 apenas antecipa os efeitos do domínio público sobre a obra licenciada. Há que se atentar, entretanto, para o fato de que a licença CC0 automaticamente promove o ingresso da obra licenciada no domínio público de todos os países do mundo, não apenas naquele onde se dá o licenciamento. Mesmo que eventualmente venha a se considerar que a licença CC0 não pode ser utilizada para licenciar obras no Brasil, em razão de incompatibilidade com os direitos morais previstos na LDA, é importante apontarmos que o texto da própria licença determina que “se qualquer parte da licença for considerada legalmente inválida ou ineficaz de acordo com a lei aplicável, então a licença deverá ser preservada no limite máximo permitido de acordo com a manifestação de vontade do licenciante”153. Como os direitos patrimoniais são normalmente aqueles sobre os quais versam as maiores controvérsias – e quanto à sua disponibilidade parece não haver contestação significativa – ainda que a licença CC0 viesse a ser considerada parcialmente inválida diante do ordenamento jurídico brasileiro, os efeitos decorrentes da disposição dos direitos patrimoniais já nos parecem suficientes para atender tanto a vontade do autor-licenciante quanto a vontade do usuário-licenciado. utilizada, inclusive obrigando que obras derivadas também sejam licenciadas. No caso do domínio público, entretanto, terceiros podem modificar a obra original e impedir sua circulação em sua versão modificada, já que a nova obra estará protegida por direitos autorais. BENJAMIN, Amy J. e LABARRE, John. Donating Works to the Public Domain Isn’t Always the Best Way to Provide the Public Access to Your Work. Disponível em: http://www.accessmylibrary.com/article-1G1-148278643/donating-works-public-domain.html. 152  Disponível em http://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/. Para maiores informações, ver http://wiki.creativecommons.org/CC0_FAQ e http://creativecommons.org/choose/zero/. De acordo com informações no website de questões frequentemente propostas (FAQ, ou frequently asked questions), a diferença entre a licença “Atribuição” e a licença “Domínio Público” seria que a adoção da segunda não obrigaria ao terceiro, ao usar a obra, que indicasse sua autoria. No entanto, em razão da LDA, essa obrigação resistiria por força do disposto no art. 24, I. 153 Tradução livre do autor. No original, lê-se que “[s]hould any part of the Waiver for any reason be judged legally invalid or ineffective under applicable law, then the Waiver shall be preserved to the maximum extent permitted taking into account Affirmer’s express Statement of Purpose”. Disponível em http://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/legalcode. 94

propriedade intelectual Em outubro de 2010, o projeto Creative Commons anunciou o lançamento do Creative Commons Mark, ferramenta que permite que trabalhos em domínio público sejam facilmente identificados e encontrados na internet. A iniciativa foi saudada com bastante entusiasmo e a rede Europeana154, que contém mais de 14 milhões de itens de imagens, textos, arquivos em áudio e em vídeo155, comunicou a adoção da marca a partir de 2011 para indicar obras em domínio público156. A grande vantagem da adoção do Creative Commons Mark é a identificação de obras em domínio público, uma vez que não existe um sistema de registro de obras mundial que possa ser consultado. Se o sistema não é infalível, sua adoção por grandes museus, galerias e arquivos públicos poderá, entretanto, ser fundamental para dar maior segurança jurídica ao uso de obras culturais por parte de terceiros.

4. O Domínio Público Voluntário Caso não se deseje usar uma licença pública geral, seria possível dedicar obra ao domínio público de outra maneira? Entendemos que sim. Em detalhado estudo de análise das leis de Argélia, Austrália, Brasil, Chile, China, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Estados Unidos, França, Itália, Quênia, Malásia e Ruanda, Séverine Dussolier aponta que países como o Chile e Quênia autorizam, de alguma forma, o domínio público voluntário157. A lei chilena158, por exemplo, prevê expressamente que pertencem ao patrimônio cultural comum, entre outras hipóteses, as obras cujos titulares renunciaram à proteção outorgada pela lei159 (ainda que a lei silencie sobre a forma da renúncia, bem como a precisa abrangência de seus efeitos). Por sua vez, a legislação do Quênia determina que pertencem ao domínio público, entre outras, as obras cujos autores renunciaram a seus direi154 Disponível em http://www.europeana.eu/portal/index.html. 155 Disponível em http://www.europeana.eu/portal/aboutus.html. 156 Disponível em http://creativecommons.org/press-releases/entry/23755. 157 DUSSOLIER, Séverine. Scoping Study on Copyright and Related Rights and the Public Domain; p. 33. Disponível em http://www.wipo.int/ip-development/en/agenda/news/2010/news_0007.html. 158 Cabe lembrar que o Chile adota o sistema legal romano-germânico, tal qual o Brasil, e se filia ao droit d’auteur, de modo que tais características não podem ser consideradas, em si mesmas, obstáculo à existência de um domínio público voluntário. 159 Artículo 11º- Pertenecen al patrimonio cultural común: a) Las obras cuyo plazo de protección se haya extinguido; b) La obra de autor desconocido, incluyéndose las canciones, leyendas, danzas y las expresiones del acervo folklórico; c) Las obras cuyos titulares renunciaraon a la protección que otorga esta ley; d) Las obras de autores extranjeros, domiciliados en el exterior que no estén protegidos en la forma establecida en el artículo 2°, y e) Las obras que fueren expropiadas por el Estado, salvo que la ley especifique un beneficiario. Las obras del patrimonio cultural común podrán ser utilizadas por cualquiera, siempre que se respete la paternidad y la integridad de la obra. Disponível em http://www.leychile.cl/. 95

tos. A seguir, prevê que a renúncia por parte do autor ou de seu sucessor deve se dar por escrito e tornada pública, não podendo contrariar obrigações contratuais prévias160.

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Exceto pelos casos previstos em lei, a possibilidade de dedicar obras ao domínio público pode ser de fato controvertida. Séverine Dussolier afirma que em algumas legislações não está claro se o titular do direito pode renunciar ao exercício completo de seus direitos exclusivos. E se por um lado a discussão acerca da disponibilidade dos direitos patrimoniais é menos duvidosa (exatamente por conta da possibilidade de disposição de bens patrimoniais em geral), dúvida maior se põe acerca dos efeitos do domínio público voluntário em relação aos direitos morais161. Quanto ao aspecto patrimonial, a possibilidade se verifica quer se entendam os direitos autorais como objeto de propriedade, quer se entendam como objeto de monopólio. Sendo propriedade, o Código Civil brasileiro (Lei 10.406/02, doravante “CCB”) é expresso em determinar que perde-se a propriedade pela renúncia162. Nesse caso, não se trataria de uma renúncia em favor de terceiro específico, mas em favor de toda a sociedade. Sendo monopólio, deve vigorar, por analogia, o mesmo sistema da Lei de Propriedade Industrial (lei 9.279/96, doravante “LPI”), que autoriza a extinção das patentes pela renúncia de seu titular, ressalvado o direito de terceiros163. Em qualquer caso, trata-se de renúncia a direitos. Será, portanto, consumada pela simples declaração do titular, por se tratar de ato unilateral. A renúncia deverá ser irrevogável164 (assim como a cessão, assim como a doação, exceto em casos especialíssimos, como o de manifestação de vontade viciada). Finalmente, a renúncia deve ser interpretada restritivamente. 160 45.(1) The following works shall belong to the public domain: (a) works whose terms of protection have expired; (b) works in respect of which authors have renounced their rights; and (c) foreign works which do not enjoy protection in Kenya. (2) For the purposes of paragraph (b), renunciation by an author or his successor in title of his rights shall be in writing and made public but any such renunciation shall not be contrary to any previous contractual obligation relating to the work. Disponível em http://portal.unesco. org/culture/en/files/30229/11416612103ke_copyright_2001_en.pdf/ke_copyright_2001_en.pdf. 161 DUSSOLIER, Séverine. Scoping Study on Copyright and Related Rights and the Public Domain; p. 33. Disponível em http://www.wipo.int/ip-development/en/agenda/news/2010/news_0007.html. 162 Código Civil brasileiro, art. 1.275, II. Em tal caso, seria necessário observar as peculiaridades de se tratar de uma propriedade que, embora renunciada por seu titular, não poderia vir a integrar o patrimônio de terceiro com exclusividade, ao contrário do que acontece em regra com as res derelictae corpóreas. 163 LPI, art. 78, II. 164 “O ingresso no domínio público em cada sistema jurídico é incondicional, universal e definitivo; a criação passa a ser comum de todos, e todos têm o direito de mantê-la em comunhão, impedindo a apropriação singular. Não se trata de abandono da obra, res nullius ou res derelicta, suscetível de apropriação singular por simples ocupação” (grifos do  autor).  BARBOSA,  Denis  Borges,  Domínio  Público  e  Patrimônio Cultural; p. 12. Disponível em http://www.denisbarbosa.addr.com/bruno.pdf.. 96

propriedade intelectual Uma vez que a lei não exige forma especial para a renúncia de direitos, bastaria a vontade inequívoca do autor. Dessa forma, o autor poderia publicar a obra com manifestação expressa no sentido de que sua obra se encontra, por sua vontade, em domínio público. Poderia, ainda, registrar sua manifestação de vontade em registro de títulos e documentos ou publicá-la no Diário Oficial. A forma nos parece indiferente, desde que seja inequívoca165. Nos Estados Unidos, é possível a um autor dedicar sua obra ao domínio público. Sem que haja uma forma específica de fazê-lo, basta, por exemplo, que o autor mencione expressamente “esta obra é dedicada ao domínio público”. É possível também fazer a declaração oralmente, mas haveria uma dificuldade em se constituir prova inequívoca da intenção do autor166. Ainda que se alegue que a LDA, ao contrário da LPI, não é expressa em prever a possibilidade de renúncia ao direito autoral, também é de se considerar que não a proíbe, e tratando-se de direito patrimonial, deve vigorar o princípio geral do ordenamento jurídico brasileiro, que prevê a possibilidade de sua disposição desde que observados determinados limites (como os que veremos a seguir). Além disso, uma vez que a própria LDA autoriza aos autores que celebrem contratos de cessão de direitos sobre suas obras a terceiros específicos – o que acarreta o fim do monopólio do autor sobre a exploração econômica da obra, ou ao menos o transfere a outrem – não nos parece haver qualquer motivo jurídico que impeça o autor de abrir mão dos direitos autorais não em favor de um terceiro determinado, mas em favor de toda a sociedade. Ainda assim, é importante, neste momento, indagarmos se haveria aqui alguma limitação relacionada aos artigos 549167, 1.789168, 1.846169, 1.967170 165 Conforme observa BAINTON, Toby. The Public Domain and the Librarian. Intellectual Property – The Many Faces of the Public Domain. Cheltenham: 2007; p. 128. 166 FISHMAN, Stephen. The Public Domain – How to Find & Use Copyright-Free Writings, Music, Art & More. Berkeley: Nolo, 2008; p. 58. David Lange dedicou seu texto “Reimagining the Public Domain” ao domínio público ao publicá-lo com a seguinte informação: “Copyright in this work is hereby disclaimed and abandoned”. LANGE, David. Reimaginig the Public Domain. Law and Contemporary Problems – vol. 66; pp. 463 e ss. Disponível em http://www.law.duke.edu/shell/cite.pl?66+Law+&+Contemp.+Probs.+463+(WinterSpring+2003). 167 Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. 168 Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança. 169 Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima. 170 Art. 1.967. As disposições que excederem a parte disponível reduzir-se-ão aos limites dela, de conformidade com o disposto nos parágrafos seguintes. § 1o Em se verificando excederem as disposições testamentárias a porção disponível, serão proporcionalmente reduzidas as quotas do herdeiro ou herdeiros instituídos, até onde baste, e, não bastando, também os legados, na proporção do seu valor. § 2o Se o tes97

e 2.007171 do CCB, que tratam do contrato de doação e da legítima. Seria a antecipação dos efeitos do domínio público equivalente à doação à sociedade? Nesse caso, deveria ser observado o limite da meação previsto no art. 1.789 acima mencionado? O art. 549 do CCB estabelece que será nula a doação quanto à parte que exceder àquilo que o doador poderia doar no momento da celebração do ato.

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Imaginemos a hipótese de autor que tenha antecipado os efeitos do domínio público sobre sua obra para a data de sua morte. No entanto, quando de seu falecimento, deixou herdeiros necessários, mas não qualquer bem material. Considerando-se, ainda, que sua obra venha sendo comercializada com relativo sucesso, poderiam os sucessores se valer do art. 1.789 do Código Civil para anular a manifestação da vontade do autor por analogia ao princípio de que ultrapassou o que poderia dispor em testamento? Ou, de outra maneira, o fato de os bens imateriais serem não-rivais simplesmente não autorizariam que os sucessores assim procedessem? O tema é instigante e não comporta uma resposta óbvia. Afinal, se por um lado estariam prejudicados em seu direito de uso exclusivo da obra pelo prazo legal, por outro poderiam se valer da obra economicamente, ainda que em concorrência com todas as demais pessoas interessadas. A bem da verdade, a hipótese é altamente improvável e bastante excepcional. Primeiro, um autor deveria se dispor a fazer determinada obra ingressar em domínio público antecipadamente. A obra – no momento em que entra em domínio público pela vontade de seu criador – deve ter um valor que ultrapasse a parte disponível do patrimônio do autor. Finalmente, herdeiros necessários deveriam contestar judicialmente o ato praticado. Teoricamente, nos parece possível, nesse caso, que seja questionada a inserção da obra no domínio público, a despeito de todas as improbabilidades. tador, prevenindo o caso, dispuser que se inteirem, de preferência, certos herdeiros e legatários, a redução far-se-á nos outros quinhões ou legados, observando-se a seu respeito a ordem estabelecida no parágrafo antecedente. 171 Art. 2.007. São sujeitas à redução as doações em que se apurar excesso quanto ao que o doador poderia dispor, no momento da liberalidade. § 1o O excesso será apurado com base no valor que os bens doados tinham, no momento da liberalidade. § 2o A redução da liberalidade far-se-á pela restituição ao monte do excesso assim apurado; a restituição será em espécie, ou, se não mais existir o bem em poder do donatário, em dinheiro, segundo o seu valor ao tempo da abertura da sucessão, observadas, no que forem aplicáveis, as regras deste Código sobre a redução das disposições testamentárias. § 3o Sujeita-se a redução, nos termos do parágrafo antecedente, a parte da doação feita a herdeiros necessários que exceder a legítima e mais a quota disponível. § 4o Sendo várias as doações a herdeiros necessários, feitas em diferentes datas, serão elas reduzidas a partir da última, até a eliminação do excesso. 98

propriedade intelectual Já com relação aos direitos morais, as dificuldades decorrem do texto do art. 27 da LDA, que estipula que “os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis”. Tal dispositivo seria suficiente para impedir que um autor dedicasse sua obra ao domínio público? Parece-nos que não. Ao fazê-lo, o que ocorre é simplesmente a antecipação dos efeitos que o domínio público acarretaria de qualquer maneira aos direitos morais do autor. Por isso, caso o autor coloque sua obra em domínio público ou antecipe seu ingresso no domínio público para o momento de sua morte (ainda que conte com sucessores), por exemplo, o que estará fazendo, de fato, é renunciar aos direitos patrimoniais do autor bem como antecipar os efeitos do domínio público sobre os direitos morais. Assim, quanto aos direitos morais, podemos afirmar: (i) o direito de paternidade, previsto no art. 24, I e II, da LDA, permanece intocado. Afinal, trata-se não apenas de direito moral do autor, mas de verdadeiro direito de personalidade. Nesse sentido, é realmente indisponível. Há também outras questões envolvidas: ordem pública, atribuição de responsabilidade pela autoria, vedação à apropriação de obra alheia. O direito de paternidade deve inclusive ser tutelado pelo Estado após o ingresso da obra em domínio público. Não é direito que se extinga e permanece intocado ainda que o autor faça a obra ingressar em domínio público exclusivamente por sua vontade; (ii) o direito de inédito, previsto no art. 24, III, da LDA, está sendo exercido pelo autor no sentido de não manter a obra inédita. Afinal, sua decisão de colocar a obra em domínio público apenas faz sentido na medida em que a obra pode ser acessada por terceiros. Do contrário, não há razão para determinar que a obra passará a integrar o domínio público. Por isso, uma vez em domínio público, não há mais que se discutir o direito de inédito. (iii) o direito de assegurar a integridade da obra, previsto no art. 24, IV, da LDA, é frontalmente atingido pelo domínio público. Afinal, esgotados os direitos patrimoniais, pode qualquer terceiro fazer da obra o uso que desejar. Ocorre que este direito moral de autor se relaciona diretamente às faculdades patrimoniais, de modo que a extinção destas justifica o fim daquele. Por outro lado, mesmo que o autor dedique sua obra ao domínio público, continua protegido nos termos do art. 24, IV, in fine, da LDA. Qualquer ato que possa prejudicar a obra ou atingir o autor em sua reputação ou honra poderá ser proibido pelo autor, por seus sucessores ou pelo Estado. Este direito moral subsiste após o autor ter feito sua obra ingressar em domínio público por dois motivos. Em primeiro lugar, porque trata-se aqui 99

também de preservar direitos da personalidade. Em segundo lugar, porque mesmo após ter sido atingido o prazo legal de proteção, competirá ao Estado defender a integridade da obra. Se este direito permanece após a obra entrar em domínio público pelo decurso do prazo, então também deve permanecer se o motivo da entrada da obra em domínio público for a vontade do autor. É o mesmo princípio a reger o direito de paternidade.

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(iv) o direito de modificar a obra, previsto no art. 24, V, da LDA, continua existindo, ainda que em concorrência com toda a sociedade. Esse direito não é transmitido aos sucessores nos termos do art. 24, §1º, porque os sucessores, pela sucessão, não se convertem em autor e portanto não podem agir como se ele fossem, modificando a obra. Mas com a obra ingressando em domínio público pela vontade do autor, este – se ainda vivo – poderá continuar a modificar a obra, garantindo o direito consubstanciado no art. 24, V, da LDA. No entanto, por se tratar de obra em domínio público, qualquer terceiro também poderá modificá-la. (v) o direito moral de retirar a obra de circulação, previsto no art. 24, VI, da LDA, é o único que poderia, em um primeiro momento, apresentar óbice ao ingresso antecipado, pela vontade do autor, da obra em domínio público. Trata-se de direito personalíssimo a ser exercido pelo autor, já que não se transmite aos herdeiros. No entanto, pela redação da LDA, infere-se que esse direito é condicionado. Prevê a lei que o autor tem o direito moral de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação ou imagem. Vê-se que a lei trata aqui da proteção, mais uma vez, a direitos de personalidade travestidos de direitos morais do autor. Pode, portanto, o autor dedicar sua obra ao domínio público. No entanto, se a circulação da obra acabar por implicar afronta a sua reputação ou imagem (seus direitos de personalidade), o direito de retirar a obra de circulação poderá ser exercido. Parece claro que a LDA não autoriza a retirada de circulação da obra por simples capricho; é necessário que haja justificativas para a decisão do autor172. Por isso, não apenas por se tratar de direito moral, mas especialmente por serem atingidos direitos de personalidade, o autor não pode ser dele privado. No entanto, por se tratar de direito personalíssimo, não poderão os sucessores do autor, nem tampouco o Estado, invocar tal direito para fazer 172 Em outras legislações, a razão também é relevante para se proceder à retirada da obra de circulação. A lei alemã prevê, em seu art. 42 (1), que o autor pode revogar o direito de exploração no caso de a obra não mais refletir suas convicções. A lei italiana, por sua vez, estabelece no art. 142 a necessidade de “sérias razões morais” para que a retirada da obra de circulação se efetive. 100

propriedade intelectual retirar obra de circulação se não o fez o autor, quando vivo. No máximo, poderão os sucessores se valer do art. 24, IV, que igualmente visa a proteger a reputação e a honra do autor quando houver modificação em sua obra. Subsiste, contudo, a dúvida quanto aos direitos de terceiros e às obras derivadas que, à época do recolhimento da obra original dedicada ao domínio público, estejam em circulação, gozando de proteção autoral. Em tal caso, somente a hipótese concreta poderia oferecer elementos suficientes para a decisão. Por exemplo, quanto mais a obra derivada se afasta da original (por conter mais elementos próprios de criatividade de seu autor), talvez menos implique afronta à reputação ou imagem do autor. Por outro lado, quanto menos criativa a obra, mais próxima do original e, assim, mais sujeita aos efeitos do art. 24, VI, da LDA. Aqui também tratamos de um caso bastante excepcional em que um autor tenha dedicado obra ao domínio público e depois deseje exercer seu direito moral porque a circulação ou utilização da obra implica afronta à sua reputação ou imagem. Como é direito personalíssimo e tratado por lei como irrenunciável, sua previsão legal pode parecer um obstáculo ao ingresso voluntário de obra em domínio público, já que dele o autor não poderia abrir mão. No entanto, essa impressão nos soa equivocada. O mesmo problema acima apontado se apresenta em outra situação, muito mais corriqueira: se um autor celebra contratos de licença ou cessão permitindo o uso de sua obra em obras derivadas e depois decide retirar sua obra original de circulação (pelo exercício de seu direito moral), terceiros terão seus direitos afetados e, dependendo dos limites dos contratos, vai ser bastante difícil controlar o uso da obra por parte de outras pessoas. É certo que a inserção da obra em domínio público potencializa os efeitos de seu uso e dificulta – ainda mais – o exercício deste direito moral especificamente. De toda forma, a hipótese aqui prevista não é de todo inexistente diante do texto em vigor da LDA e o ingresso voluntário da obra em domínio público não criaria uma dificuldade, relacionada aos direitos morais de autor, que já não possa existir na prática. (vi) finalmente, o direito moral de o autor ter acesso a exemplar único e raro de obra sua, previsto no art. 24, VII, da LDA, é visto como personalíssimo, já que não pode ser exercido pelos herdeiros. Entretanto, aqui é importante levarmos em consideração a função social da propriedade, que autorizaria o acesso ao suporte físico das obras intelectuais ainda que a obra em si estivesse em domínio público. A antecipação dos efeitos do domínio público não seria, portanto, prejudicial ao autor uma vez que por conta da função social da propriedade ele ainda teria direito de acesso à obra. 101

Uma vez que a obra ingresse em domínio público, não se torna mais passível de apropriação, quer pelo particular – mesmo seu autor, quer pelo Estado. A única exceção à regra seria promulgação de lei que prorrogasse o prazo de proteção dos direitos autorais e devolvesse ao domínio privado obras em domínio público, ato que imputamos inconstitucional de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro. O fenômeno ocorreu nos Estados Unidos e na União Europeia, mas a LDA repudiou expressamente tal possibilidade ao prever, em seu art. 112, que uma vez em domínio público, as obras não poderiam retornar ao domínio privado pela dilação no prazo de proteção.

5. Conclusão

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Regidos pela lei 11.484/07, os circuitos integrados173 são protegidos por meio de registro, que extingue-se, entre outras hipóteses, pela renúncia de seu titular, mediante documento hábil, ressalvado o direito de terceiro. Acresce a referida lei que, “extinto o registro, o objeto da proteção cai em domínio público”174. Aqui, faz-se uma analogia. Os circuitos integrados também figuram na grande classe da propriedade intelectual, conforme disposto pelo tratado TRIPs175. A seus titulares é conferido um monopólio legal, assim como ocorre com o direito autoral. Esse monopólio, entretanto, pode ser renunciado, o que tem como consequência o ingresso da obra no domínio público. A LPI tem dispositivos semelhantes a respeito de patentes176, marcas177 e desenhos industriais178. O dispositivo que trata das patentes, art. 78, 173 Circuito integrado “é um aparelhinho com um circuito eletrônico completo, funcionando como transistores, resistências e suas interconexões, fabricado em uma peça de material semicondutor, como o silício, germânio ou arsenídio de gálio, folheados em wafers de 8 ou 12 camadas”. BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; p. 765. 174 Lei 11.484/07, art. 38, parágrafo único. 175 Acordo internacional que dispõe sobre propriedade intelectual no âmbito da OMC – Organização Mundial do Comércio, TRIPS significa Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights. Em Português, “Acordo sobre Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”. Seu texto foi incorporado a nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto nº 1.355 de 30 de dezembro de 1994. 176 Art. 78. A patente extingue-se: I - pela expiração do prazo de vigência; II - pela renúncia de seu titular, ressalvado o direito de terceiros; III - pela caducidade; IV - pela falta de pagamento da retribuição anual, nos prazos previstos no § 2º do art. 84 e no art. 87; e V - pela inobservância do disposto no art. 217. Parágrafo único. Extinta a patente, o seu objeto cai em domínio público (grifamos). 177 Art. 142. O registro da marca extingue-se: I - pela expiração do prazo de vigência; II - pela renúncia, que poderá ser total ou parcial em relação aos produtos ou serviços assinalados pela marca; III - pela caducidade; ou IV - pela inobservância do disposto no art. 217 (grifamos). 178 Art. 119. O registro extingue-se: I- pela expiração do prazo de vigência; II- pela renúncia de seu titular, ressalvado o direito de terceiros; III - pela falta de pagamento da retribuição prevista nos arts. 108 e 120; 102

propriedade intelectual também prevê que poderá a patente se extinguir pela renúncia de seu titular, ressalvado o direito de terceiros e, uma vez extinta a patente, seu objeto ingressará no domínio público. Marcas e desenhos industriais também podem ser objeto de renúncia e, ainda que a lei nada preveja nesse sentido, entendemos que – em regra – a consequência da renúncia será a entrada da obra intelectual na seara do domínio público. Acreditamos que a mesma disciplina existente na propriedade industrial deve se aplicar aos direitos autorais, neste particular. Se é possível ao titular da patente renunciá-la, não há motivo para se negar tal direito ao titular de uma obra artística. Naturalmente, direitos de terceiros devem ser respeitados. Os direitos autorais patrimoniais podem circular por meio de licença ou de cessão. Entendemos que, no primeiro caso, há apenas autorização de uso da obra, sem que haja, entretanto, transferência da titularidade dos direitos – que ocorre apenas na cessão. A LDA não trata com profundidade dos aspectos contratuais dos direitos autorais. Por isso, conceber o que vem a ser, em seu âmbito, “ressalvado o direito de terceiros” é bastante difícil in abstracto. Em regra, no caso de licenças, seria necessário aguardar até que seu prazo expirasse para que, voltando a ser titular pleno dos direitos patrimoniais da obra, pudesse o autor dedicá-la ao domínio público. O fato de a licença ser gratuita ou onerosa também pode ser um fato a ser levado em conta. Por outro lado, tendo havido cessão dos direitos patrimoniais, não teria mais o autor legitimidade para dispor de sua obra. Dessa forma, apenas com a anuência do titular dos direitos se poderia fazê-la ingressar no domínio público. Acreditamos que a cessão opera em definitivo a transferência dos direitos patrimoniais do autor. Por isso, tendo havido cessão, o autor não poderá mais dispor de seus direitos patrimoniais, o que o impediria de dedicar sua obra ao domínio público. Finalmente, indagamos: mas por que alguém dedicaria sua obra ao domínio público?179 Parece-nos que são vários os motivos. De pronto, conforme sempre mencionado, lembramos o fato de vivermos uma fase de criação ou IV - pela inobservância do disposto no art. 217 (grifamos). 179 O fenômeno já vem se verificando e por isso não pode ser ignorado. A internet facilita a difusão de canais para obras em domínio público voluntário serem publicadas. Algumas obras audiovisuais licenciadas em Creative Commons se iniciam com o texto: “no limite permitido em lei, [nome] renunciou a todos os direitos autorais, direitos morais, direitos a bases de dados e quaisquer outros direitos que possam ser alegados sobre o filme que se segue”. Parece-nos que é o quanto basta para que o autor demonstre de modo irrefutável seu desejo de dedicar a obra ao domínio público. Ver, entre outros, websites como Vimeo (http://vimeo.com/publicdomain), que contam com seções específicas onde obras em domínio público voluntário podem ser encontradas. 103

colaborativa, com a redefinição do papel do autor individual. Além disso, podemos citar180: (i) alguns criadores não têm interesse na exploração econômica de sua obra e, em troca, buscam outras metas: autopromoção, divulgação de ideias, contribuição com o bem comum; (ii) o uso das obras permite o desenvolvimento de modelos de cooperação que favorece aqueles que cooperam; (iii) o uso público das obras é um método de criação, como se dá com a Wikipedia;

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(iv) o interesse geral justifica que determinadas obras, como as científicas, sejam publicamente acessíveis.

180 REBOLLO, César Iglesias. Software Libre y Otras Formas de Domínio Público Anticipado. Cit.; p. 201. 104

propriedade intelectual A PROPRIEDADE INTELECTUAL E A PROTEÇÃO DAS COMPOSIÇÕES DE PEÇAS DE VESTUÁRIO Karin Grau-Kuntz181

1. Introdução Na versão online da revista americana Forbes de abril de 2011 foi editado um artigo sobre um jovem advogado americano – Charles “Chuck” Colman – e sua atuação em um campo da propriedade intelectual ali denominado como fashion law, para o qual vem-se reclamando contornos de área especializada. Especificamente sobre a tal fashion law, assim disse Colman: I think most practitioners who work in this area would agree with me that intellectual property protection— specifically, trademark protection — is at the heart of fashion law. Counterfeiting, a central concern for the fashion industry, is one type of trademark infringement. But a ‘fashion lawyer’ will regularly encounter legal issues in many other areas of the law, from relatively straightforward contract disputes to arcane rules governing the importation and taxation of garments and textiles; from regulatory restrictions on advertising and labeling to fashion industry-specific quirks in real estate and employment. With greater frequency, people are using the term ‘fashion law’ as a sort of shorthand for all of these issues. 182

Enquanto o advogado identifica no direito de marcas o eixo da tal fashion law, a OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual – destaca, em um manual sobre propriedade intelectual e indústria têxtil, a especial importância do sistema legal de proteção de desenho industrial para a indústria da moda: A moda é o epicentro das indústrias têxtil e de tecidos. Novos designs são apresentados em cada estação. Entre as diversas formas de proteção por PI a de desenhos industriais – também referidos simplesmente como designs – é claramente a mais relevante para a indústria da moda. Registrar um design ajuda o proprietário a impedir que outros explorem seus ornamentos novos, originais ou seus aspectos estéticos, sejam elas características tridimensionais, tais como formas atraentes, ou características bidimensionais, tais como impressões têxteis esteticamente agradáveis.183 181 Doutora em Direito - Ludwig Maximilian Universität (2005) e Mestre em Direito - Ludwig Maximilian Universität (1996). Coordenadora acadêmica e pesquisadora na Alemanha (Estudos Europeus) do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual. 182 J. Maureen Henderson, Meet The Man Who Upholds The Laws Of Fashion, Forbes 10/04/2011. 183 Um ponto no tempo – o uso inteligente da propriedade intelectual por empresas do setor têxtil, OMPI – Organização Mundial da Propriedade Intelectual. 105

WESTIN (2013), por sua vez, considerando estar “a indústria da moda (…) intrinsecamente ligada à inovação e à criatividade”, explora a questão que envolve os chamados designs apenas em consideração a uma possível proteção pelo instituto do direito de autor. A autora conclui que a Lei de Direitos Autorais brasileira não é capaz de cumprir com o fim cogitado e destaca a necessidade de uma “proposta [legislativa] específica para proteger os designs de moda”.184

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Se as três fontes citadas têm em comum tratarem de um mesmo tema, cada uma delas adota uma perspectiva própria de enfoque de proteção – direito de marcas, proteção dos desenhos industriais e proteção autoral. Cum grano salis, isto é deixando de considerar traços próprio do direito americano, que poderiam ter inspirado o advogado citado a ver no direito de marcas o eixo da chamada fashion law, e ainda ignorando as razões que levaram WESTIN a não mencionar a possibilidade de proteção dos “design de moda” por meio do registro como desenho industrial, é necessário esclarecer a situação: qual é o instituto adequado – ou quais institutos são mais ou menos adequados e em que circunstâncias – para proteger as composições185 de peças de vestuário? Especificamente em relação ao direito de autor, seria ele um instrumento adequado de proteção?. Isto posto resta delineado o objetivo deste ensaio, que pretendo atingir propondo uma linha própria de percepção do problema, que permitirá vincular o tipo de proteção – direito de marcas ou proteção por meio de registro de desenho industrial – a categorias funcionais, bem como recusar a proteção pelo direito de autor.

2. Noções fundamentais A palavra vestuário – ou peça de vestuário186 – reporta necessariamente ao corpo humano como espaço definitório, isto é, só é vestuário aquilo que veste, enquanto vestir pressupõe um corpo a ser vestido. A seu turno a expressão moda, ao contrário da forma como é empregada usualmente, não reporta, sob uma perspectiva científica, diretamente às peças de vestuário, mas antes a padrões – ou códigos – comunicativos aprovados socialmente. 184 WESTIN, Roberta. Design de moda: a legislação de direitos autorais brasileira está adequada à realidade desta indústria?, in Boletim da ASPI Nr. 40, Abril/Junho de 2013, (28-37). 185 A expressão composição é empregada no contexto deste ensaio como soma das formas, cores, linhas, aplicações etc. que, quando consideradas em conjunto, resultam na aparência da peça de vestuário. 186 Empregarei neste ensaio a expressão de forma ampla, não limitada a roupas, mas abrangendo sapatos, bolsas, luvas etc. 106

propriedade intelectual A aprovação social é um aspecto essencial da definição proposta. Pela negativa, a reprovação social de um padrão comunicativo faz impossível falarse em moda. O recurso a um exemplo auxiliará a compreensão da proposição. LOSCHEK (2007)187 menciona um modelo da estilista Rei Kawakubo denominado “Body Meets Dress” e datado de 1997, onde almofadas aplicadas a um vestido justo de lycra na altura dos ombros e costas imitavam uma deformação semelhante a uma corcunda. Com o recurso aos enchimentos a estilista, de acordo com sua própria explicação, visava oferecer uma nova dimensão de percepção do corpo. Neste sentido ela propôs à coletividade a composição em referência como um padrão comunicativo que, a seu turno, foi recusado socialmente como tal, o que é evidente quando temos em mente não ter o recurso aos enchimentos nos ombros e costas imitando uma corcunda determinado um padrão “moda” nos anos 90 do século passado. Pois bem, o efeito bizarro que a descrição da peça de vestuário desenhada por Kawakubo pode despertar no leitor perderá força ao lembrarmos dos vestidos com “enchimentos”188 nos quadris, comuns nas décadas de 70 a 90 do século XIX.189 Naquela época, de forma inversa ao que ocorreu na década de 90 do século passado, o recurso a “enchimentos” na composição de vestidos foi aprovado socialmente como um padrão criando, assim, moda. 187 LOSCHEK, Ingrid. Wann ist Mode? Strukturen, Strategien und Innovationen, Dietrich Reimer Verlag, Berlin (2007) 188 O volume aqui não resultava da costura de pedaços de espuma ao vestido, mas era antes alcançado por meio de pregas de tecido. 189 Peço atenção especial ao último vestido da última linha. O desenho, que foi retirado da página eletrônica Wikipédia, apresenta o desenvolvimento dos padrões de vestuário (moda) no século XIX.

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As razões que explicam a reprovação e a aprovação da transformação da silhueta do corpo humano são simples: em 1997 a composição da peça de vestuário apresentada por Kawakubo foi associada à ideia de uma deformação física (uma mensagem – comunicação - negativa); nos anos 70-90 do século XIX, uma época que correspondeu a uma fase de desenvolvimento econômico na Europa, o recurso de transformação da silhueta foi associada a ideia de fartura (uma mensagem – comunicação – positiva)190, criando moda.

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Neste ponto vale mencionar as palavras de Yohji Yamamoto,191 no sentido de que se moda fosse peça de vestuário, então ela seria supérflua, mas se antes ela for uma forma de possibilitar a compreensão do nosso cotidiano, então será dotada de importância. Se bem compreendido o conteúdo comunicativo a que reporta a expressão “moda”, então é possível compreender não ser o estilista quem cria a moda. Estilistas criam composições de peças de vestuário. Eles poderão192, por meio de suas composições, propor novos padrões comunicativos. Esses padrões propostos estão sujeitos a aprovação social para que permitam serem vinculados a ideia de moda. No mesmo sentido a moda também não é criação da indústria têxtil (ou, em outras palavras, criação do capital), como produto de um esforço de renovação constante da indumentária individual193. Não há, assim, “indústria da moda”. Tendo o elemento comunicativo como ponto de referência de definição, e seguindo a proposição geral do trabalho de LOSCHEK194 que, por sua vez, inspira-se na conhecida Teoria dos Sistemas de Luhmann, identifica-se um sistema funcional moda, caracterizado como auto-referencial, organizado e reproduzido pela dinâmica interna de seus próprios elementos constitutivos. 190 Infelizmente não posso oferecer a fonte da informação sobre a simbologia das pregas de tecido (transformação da silhueta) nos anos 70-90 do século XIX. Impulsionada por um grande interesse em iconografia leio com frequência trabalhos sobre o tema, e pela leitura de um deles aprendi sobre a simbologia dos vestidos. Porém, não sendo possível localizar o trabalho no momento, e tendo em vista a riqueza da informação como ferramenta para a compreensão do valor comunicativo dos padrões que fazem moda, decidi reproduzir a informação, mesmo sem poder fornecer ao leitor a fonte exata de onde as retirei. 191 Na forma como oferecida por LOSCHEK, ob. cit, pág. 159: “Wenn Mode Kleidung ist, dann ist sie entbehrlich,. Aber wenn Mode eine Form ist, unseren Alltag zu begreifen, dann ist sie wichtig.” Yohji Yamamoto é um estilista japonês. 192 Digo “poderão” porque, como demonstrarei a seguir, a proposição de novos padrões comunicativos não é característica necessária da composição de peças de vestuário. Pelo contrário, e sem ignorar os traços de preocupação estética, grande parte das composições oferecidas ao mercado é produzida em observância a padrões já aprovados socialmente, isto é, essas composições “seguem” a moda, ao invés de pretenderem “fazer moda”. 193 Vide LOSCHEK, ob. cit., pág. 159 ss. Pelo contrário, como se verá adiante, a indústria, aqui, atua geralmente no âmbito dos padrões já aprovados socialmente, posto a aprovação anterior resultar em determinado grau de segurança em relação ao risco vinculado aos investimento de capital. 194 LOSCHEK, ob. cit.. 108

propriedade intelectual Em miúdos, a expressão moda reporta a sistema social comunicativo.195

3. Ato criativo Invertendo a perspectiva adotada no curso desse ensaio – até o momento tive a moda em foco, tratando da composição da peça de vestuário em função dela – deito agora minha atenção a composição da peça de vestuário, para então relacioná-la com o sistema moda, o que permite detectar duas situações distintas196: a) a composição da peças de vestuário apresentada pretende expressar um padrão estético-comunicativo diferente daqueles vigentes no momento. As palavras-chave aqui é intenção de transformação, ou b) a composição corresponde – isto é, é produzida em atenção – aos padrões válidos no momento. A palavra-chave aqui é adequação. Partindo do pressuposto que o leitor já tenha tido em mãos alguma revista que se ocupa com os padrões de vestuário em voga, ou que tenha lido nos jornais notícias sobre os desfiles “de moda”197, penso restar evidente serem distintos os espaços criativos em uma ou na outra situação. Para ilustrar o afirmado peço ao leitor que se recorde da linha de composição das peças apresentadas pelos estilistas de ponta, isto é, por aqueles que, gozando de grande liberdade criativa, procuram “fazer moda”, em comparação com as composições das peças da linha do prêt-à-porter198. Ainda, também são distintos os objetivos atrelados ao ato criativo. Enquanto a preocupação daqueles primeiros está centrada no valor iconográfico199 (= comunicação por meio de linguagem simbólica) da peça de vestuário, o que implica relegar a um segundo plano (se não as excluem completamente) 195 No que toca comunicação por meio de linguagem simbólica (iconográfica) vide GRAU-KUNTZ, Karin. Domínio público e Direito de Autor: do requisito da originalidade como contribuição, in Revista Eletrônica do IBPI, Nr. 6, 2012, (5-67), http://www.wogf4yv1u.homepage.t-online.de/media/fc1a1cbd42ddbd27ffff8033ffffffef.PDF. No que tange a proposição da moda como um sistema nos termos da teoria proposta por LUHMANN, vide LOSCHEK, ob.cit., especialmente págs. 29 ss. Por fim, noto que no momento em que afirmo ser a moda um sistema, tomo distância de sua consideração como um fenômeno. 196 Apesar de LOSCHEK, ob.cit. não oferecer uma distinção deste tipo, os elementos que deram suporte a minha proposição estão fortemente vinculados a tese defendida pela autora. 197 O termo é empregado aqui em sua concepção usual. Sob uma perspectiva técnica, nos moldes da forma de compreensão da expressão proposta neste ensaio, não haverá “desfile de moda”, mas desfile de peças de vestuário. A eventual e posterior incorporação dos padrões oferecidos nesses desfiles é que fará deles moda. 198 Deve agora restar clara a razão de não ser rara a apresentação nos desfiles dos estilistas de ponta de peças de vestuário ousadas, provocativas, bizarras ou até mesmo chocantes, isto é, de peças que a maioria das pessoas não vestiria. 199 Isto é, pela comunicação por meio de linguagem simbólica. 109

considerações que envolvam o valor (e não a função) da peça como vestimenta ou, ainda, como mercadoria, os segundos concentram-se no valor da peça como vestuário e como mercadoria, o que explica a adequação aos padrões estéticos em vigor, uma estratégia eficiente quando se trata de minimalização de riscos no mercado200. Por certo não estou aqui negando caráter criativo aos modelos da linha prêt-à-porter, mas postulando que o espaço criativo é limitado pelos fatores indicados (adequação aos padrões do sistema moda, adequação a funcionalidade da peça, isto é, valor como vestimenta).

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Influenciada pela teoria apresentada por SIMMEL (1957)201 e assim considerando a dualidade imitação-individualidade, ressalto a adequação aos padrões já aprovados socialmente (=moda), mas não nego a expressão individual (= criativa) nesse âmbito. De forma muito breve, especialmente porque não pretendo aqui explorar a vertente da teoria que considera as classes sociais, o sociólogo encontra na imitação um fator de adaptação social. O indivíduo que imita identificase com o grupo social e, tirando as consequências da compreensão da moda como um sistema social comunicativo, eles expressam adaptação social pela adequação (imitação) dos padrões de vestuário aprovados. Um exemplo auxiliará na compreensão da proposição complexa. Nos anos 60, e em especial atenção ao movimento hippie, as pessoas vestiamse de uma forma determinada202. Hoje as lojas na Alemanha oferecem especialmente na época de carnaval como fantasia203 peças de roupa que seguem aqueles padrões que vigoraram nos anos 60. Por meio do exemplo procuro demonstrar que nós, mesmo que de forma inconsciente, nos curvamos aos padrões relacionados ao sistema comunicativo moda. Quem iria hoje a uma festa de casamento vestido com peças 200 Por exemplo, o agente de mercado que tivesse investido na produção em peças de vestuário que seguissem a proposta comunicativa de Kawakubo acima mencionada – de enchimentos nos ombros e nas costas – provavelmente não teria logrado vender suas peças e, consequentemente, teria sofrido um prejuízo econômico. De outra forma, o agente de mercado que adequa a produção de suas peças de vestuário aos padrões já aprovados socialmente, que são inclusive fornecidos às indústria de vestuário compilados na forma de guias de estilo (vide aqui LOSCHEK, ob.cit.), evita assumir um risco considerável. . 201 Simmel, Georg. Fashion, in The American Journal of Sociology, Volume LXII, Nr. 6, May 1957 (541- 558). Especificamente: “Fashion is the imitation of a given example and satisfied the demand for social adaptation; it leads the individual upon the road which all travel, it furnishes a general condition, which resolves the conduct of every individual into a mere example”. (S. 543). 202 Presumo que o leitor já tenha visto alguma fotografia vinculada ao movimento hippie. Nelas as pessoas aparecem vestidas de uma forma bem característica. 203 Note o leitor que o que foi padrão de moda nos anos 60 hoje reporta a um conteúdo comunicativo diverso (fantasia). 110

propriedade intelectual adequadas aos padrões que vigoraram como moda no tempo dos hippies? Os noivos não se sentiriam afrontados com a indumentária? O sistema moda produz assim um tipo de convenção social204. Considerando a outra faceta da teoria de SIMMEL, qual seja a individualidade, noto que apesar dos convidados em uma festa de casamento vestirem-se de uma forma adequada em relação aos padrões do sistema moda, cada um deles estará vestido de uma maneira própria. Ou seja, os convidados expressam suas individualidades por meio das indumentárias escolhidas, porém, a liberdade de escolha vem condicionada ao desejo de adequação social, que se expressa pela reprodução (imitação) dos padrões aprovados socialmente. Isso faz compreender porque uma festa de casamento, aos contrário de um desfile de peças de vestuário de estilistas que denominei como de ponta, não é ocasião adequada para a proposição de padrões comunicativos inovadores, que expressem a pretensão de serem transformados em moda. Aqui a essência da dualidade imitação-individualidade, de onde retira-se, por fim, dois aspectos que merecem destaque. Primeiramente, além da composição da peça de vestuário poder, como indicado acima, ser empregada a) como meio de proposição de padrão comunicativo (transformação), b) como suporte de reprodução (imitação) de padrões aceitos socialmente (adaptação), determino uma terceira função, quando c) o individuo lança mão da composição como meio de individualização. Esta terceira função é exercida nos limites do mesmo espaço criativo relacionado a função b). A segunda consequência reporta àquilo que denomino como “mitificação do criador”. No que toca a propriedade intelectual, e em especial referência à retórica vinculada ao direito de autor, o sujeito individual é considerado como um tipo de semideus, como se criasse do nada205. Ao termos em conta a importância do fator imitação no âmbito do sistema comunicativo moda, a criatividade dos seres humanos ganha conotação ordinária (no sentido de comum). A perspectiva da moda como sistema e a determinação das funções exercidas pela composição da peça de vestuário 204 Trata-se de um tipo de convenção social porque nem toda convenção social de vestimenta reporta ao sistema da moda. Por exemplo, nós não vamos a uma festa de casamento vestidos como se fossemos a praia, e isso nada tem a ver com a moda. 205 Vide aqui GRAU-KUNTZ, Karin, ob.cit. Ainda, com a tônica centrada na idealização em torno da figura do autor, vide GRAU-KUNTZ, Karin, A quem pertence conhecimento e cultura? Uma reflexão sobre o discurso de legitimação do direito de autor, in LiiNC em Revista, Nr.7, 2011; http://revista.ibict.br/liinc/index.php/ liinc/article/view/437. 111

como uma forma comunicativa, bem como a delimitação de âmbitos criativos distintos a elas vinculados, permite adotar em relação ao tema proteção das composições de peças de vestuário uma atitude sóbria

4. A expressão fashion law O raciocínio até aqui apresentado já basta para indicar a inadequação da expressão fashion law206 Um direito que protege a moda seria aquele que teria por objeto a proteção de padrões socias comunicativos. Esses padrões, porém, não são passíveis de proteção pela propriedade intelectual, da mesma forma que ideias também não o são. Ilustrando, uma abordagem coerente entre o denominador fashion law e o objeto fashion, levaria a concluir haver proteção exclusiva em relação a um padrão como o de calças de cós baixo, ou de blusas com babados.

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É necessário ainda tratar da expressão design, que sob uma perspectiva jurídica nada mais é do que sinônimo de desenho industrial207. O artigo 95 da Lei de Propriedade Industrial (LPI/96) assim define o desenho industrial: Considera-se desenho industrial a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial.

No que toca o requisito novidade, o Artigo 96 do mesmo diploma legal determina ser considerado novo o desenho quando não compreendido no estado da técnica. Por sua vez estado da técnica é constituído „por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido, no Brasil ou no exterior, por uso ou qualquer outro meio.“ O requisito da originalidade vem definido no Artigo 97 nos seguintes termos: „o desenho industrial é considerado original quando dele resulte uma configuração visual distintiva, em relação a outros objetos anteriores“. Ainda, segue disposto, „o resultado visual original poderá ser decorrente da combinação de elementos conhecidos“. 206 Trata-se aqui de uma expressão em língua inglesa, e o correto seria adotar a referência correspondente em português, isto é direito da moda. Porém, levando em conta a tendência de adoção de termos estrangeiros no Brasil, mesmo quando reportem a conteúdos jurídicos típicos do direito pátrio, mesmo quando os conteúdos estrangeiros e nacionais não correspondam exatamente uns aos outros, não me preocuparei em traduzi-la. 207 SILVEIRA, Direito de Autor no Desenho Industrial , São Paulo: Revista dos Tribunais (1982), pág. 27 ensina que “a expressão desenho industrial deriva da expressão inglesa “industrial design,” e complementa “cujo significado, por sua vez, não coincide com o do Código de Propriedade Industrial”. 112

propriedade intelectual Por fim, no Artigo 98 vem traçada a linha distintiva entre desenhos industriais e obra artística, objeto de proteção do direito de autor: „não se considera desenho industrial qualquer obra de caráter puramente artístico.“ Das definições percebe-se estar o desenho industrial (design) vinculado a duas condições, quais sejam a) funcionalidade (no contexto deste ensaio funcionalidade como vestuário) e b) efeito estético. Nesta linha resta evidente não ser possível vincular desenho industrial (design) a ideia de obra de arte, posto, por um lado, uma peça de vestuário só poder ser transformada em obra de arte quando destacada de sua funcionalidade como vestuário e, por outra, a transformação de uma peça de vestuário em obra de arte independe de eventuais traços criativos aplicados à peça. Em outras palavras, não interessa o quanto original possa vir a ser a composição de um vestido; enquanto composição do vestido a proteção possível será sempre aquela vinculada ao registro como desenho industrial. Ao contrário, o vestido – e a referência aqui recai sobre o objeto vestido, sem reporte necessário a composição do vestido – por menos original que sua aparência possa vir ser, poderá ser transformado em obra de arte quando vinculado a um contexto que induz o receptor208, isto é aquele que tem contato com a peça, a adotar uma postura diversa daquela que ele adotará quando tem em mente o objeto em sua função comum de vestimenta (vestido). 209 Por esta razão o vestido apresentado no museu gozará, no âmbito desse contexto estético (e apenas nesse contexto), de proteção autoral, enquanto em relação a apresentação estética do vestido nunca reporta a ideia de obra de arte, mas antes a um desenho industrial (design)210. O raciocínio desenvolvido suporta concluir pelo não cabimento de proteção autoral para proteger composições aplicadas a peças de vestuário, posto tratar-se em uma ou outra hipótese de objeto distinto de proteção (o vestido expressando uma contribuição reflexivo-transformadora = proteção autoral; a composição nova ou original do vestido = proteção por meio de registro como modelo industrial). Nesse sentido a coincidência com a posição defendida por WESTIN (2013) acima mencionada, sem que isto implique em concordância com o raciocínio desenvolvido pela autora. 208 A arte, a exemplo da moda, também consiste em um sistema comunicativo e nesse sentido faço referência ao receptor, isto é, o receptor da mensagem embutida na linguagem simbólica (iconográfica). 209 Vide a análise procedida em GRAU-KUNTZ, Karin, em http://www.wogf4yv1u.homepage.t-online.de/ media/fc1a1cbd42ddbd27ffff8033ffffffef.PDF. 210 Feita a distinção de objetos é possível entender não haver possibilidade de dupla proteção 113

5. A expressão design

Karin Grau-Kuntz

Se a expressão design reporta a uma composição nova ou original, isto é, a um desenho industrial211, então a composição estético funcional que não satisfaça as condições da novidade ou da originalidade não deverá, sob uma perspectiva jurídica, ser indicada pelo emprego da expressão design (ou pela expressão desenho industrial) 212. Mas mesmo as composições que não satisfaçam os requisitos da novidade ou da originalidade, portanto que não satisfaçam as condições que permitem serem denominadas como design (ou como desenho industrial), e consequentemente que não possam gozar de proteção por esta via, poderão ser protegidas pela propriedade intelectual. Isto ocorrerá quando, independentemente do grau ou da presença de considerações relacionadas a aspirações estéticas213, a aparência da peça de vestuário for capaz de desencadear na mente dos consumidores um processo associativo que culmina na individualização e, consequentemente, na diferenciação da peça em relação a outras peças oferecidas no mercado por outros produtores214. Neste caso caberá proteção pelo direito da concorrência em estrito senso (isto é, coibição de atos de concorrência desleal) ou, ainda, quando um ou alguns elementos da composição for ou forem empregados como “ponte” (e não de forma direta) de significação de individualização e diferenciação do produto peça de vestuário, caso em que, pressuposto haver sido procedido registro, caberá proteção pelo direito de marcas.

6. Conclusões A título de conclusão e em síntese, as composições das peças de vestuário poderão gozar de proteção pela propriedade intelectual a) se pressuposta a satisfação do requisito novidade ou originalidade e procedido o devido registro, como desenho industrial: b) se pressuposta função identificadora no mercado, seja pela própria composição expressiva da peça de vestuário, seja pela utilização simbólica de seus elementos (pressuposto aqui registro como marca), pelo direito da con211 Não pretendo me ater no âmbito deste ensaio na análise dos requisitos vinculados ao registro de desenho industrial, quais sejam novidade e originalidade. Para um aprofundamento na matéria vide SILVEIRA (1982), ob. cit. 212 Do ponto de vista legal a referência a design de marca e tão incorreta quanto a referência a design como obra de arte. 213 Note-se que aspirações estéticas nada tem a ver com originalidade. O belo não depende de originalidade. 214 Trata-se aqui da proteção concorrencial do trade dress. 114

propriedade intelectual corrência e pelo direito de marcas, respectivamente. O direito de autor não consubstancia instrumento jurídico adequado de proteção. Às composições que não satisfaçam os requisitos da novidade ou da originalidade, isto é, que não possam ser protegidas como design (desenho industrial), e que ainda não sejam capazes de reportar a uma função identificadora no mercado, não se há cogitar proteção qualquer.

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propriedade intelectual DO DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL DAS CELEBRIDADES Denis Borges Barbosa215

A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. (Machado de Assis, A Teoria do Medalhão) Melius est nomen bonum quam unguenta pretiosa. Eclesiates, 7.1.

1. Introdução Como notava David Vaver em 1978: As pessoas que adquiriram fama e chamam a atenção e a imaginação do público descobriram que eles podem transformar a sua celebridade em dinheiro. Os anunciantes os querem para endossar seus produtos. Grupos como os Beatles ou, mais recentemente, Abba descobriram que sua capacidade de se vender vai muito além além da esfera de discos e shows ao vivo, e se estende a parafernália como brinquedos, camisetas, cosméticos, emblemas, pingentes e cartazes - na verdade a faixa de bens e serviços possíveis é limitado apenas pela imaginação de empresário 216. Conforme publicação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual : 217

215 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito pela Columbia University School Law, Nova York. Docente do Programa de Pós-graduação em Direito da Propriedade Intelectual e Inovação do INPI e em Políticas Públicas (PPED) do Instituto de Economia da UERJ. 216 “People who have acquired fame and caught the public attention and imagination have found that they can turn their celebrity into cash. Advertisers want to endorse their products. Pop singing groups such as the Beatles or, more recently, Abba have found their marketability extends well beyond the sphere of records and live shows and into such assorted paraphernalia as toys, T-shirts, cosmetics, badges, pendants and posters - indeed the range of possible goods and services is limited only by the imagination of entrepreneurs” VAVER, David, The Protection of Character Merchandising- A Survey of Some Common Law Jurisdictions, IIC 1978 Heft 6 541 217 “Using someone’s image for commercial benefit. Many countries recognize that individuals have a right of publicity. The right of publicity is the direct opposite of the right of privacy. It recognizes that a person’s image has economic value that is presumed to be the result of the person’s own effort and it gives to each person the right to exploit their own image. (…) Although the right of publicity is frequently associated with celebrities, every person, regardless of how famous, has a right to prevent unauthorized use of their name or image for commercial purposes. However, as a matter of practice, right of publicity suits are typically brought by celebrities, who are in a better position than ordinary individuals to demonstrate that their identity has commercial value”. VERBAUWHEDE, Lien, Legal Pitfalls in Taking or Using Photographs of 117

Usando a imagem de alguém para benefício comercial. Muitos países reconhecem que os indivíduos têm o direito de publicidade. O direito de publicidade é o oposto direto do direito de privacidade. Ele reconhece que a imagem de uma pessoa tem valor econômico que se presume ser o resultado do esforço da própria pessoa e dá a cada pessoa o direito de explorar sua própria imagem. (...) Embora o direito de publicidade seja freqüentemente associada com celebridades, todas as pessoas, independentemente de quão famosas, têm o direito de impedir o uso não autorizado de seu nome ou imagem para fins comerciais. No entanto, como uma questão de prática, o direito de ternos publicidade são geralmente trazidos por celebridades, que estão em melhor posição do que os indivíduos comuns para demonstrar que a sua identidade tem valor comercial. (...)

Denis Borges Barbosa

E, ainda218: Sugerindo que alguém está autorizando ou endossando um produto ou serviço. A estrela do golfe Tiger Woods atua em comerciais de Buick, a tenista Anna Kournikova promove Omega Relógios e Nicole Kidman é o rosto da Chanel n º 5. As empresas têm muito apreciado o valor que as celebridades trazer para a promoção de seus produtos. A presença de uma celebridade parece ser uma ferramenta eficaz de rapidamente atrair a atenção do consumidor para um produto ou serviço e criação de valor percebido alto e credibilidade219. Copyright Material,Trademarks and People, encontrado em http://www.wipo.int/export/sites/www/sme/ en/documents/pdf/ip_photography.pdf; e VERBAUWHEDE, Lien, Savvy Marketing: Merchandising of Intellectual Property rights, 2004, http://www.wipo.int/sme/en/documents/merchandising.htm. 218 Suggesting that someone is authorizing or endorsing a product or service. Golf star Tiger Woods acts in Buick commercials, tennis player Anna Kournikova promotes Omega Watches and Nicole Kidman is the face of Chanel No 5. Businesses have long appreciated the value that celebrities bring to the promotion of their wares. The presence of a celebrity seems to be an effective tool of quickly attracting consumer attention to a product or service and creating high-perceived value and credibility. However, before using the photograph of a person in an advertisement to sell products or promote services, it is strongly advisable to get prior explicit permission of that person. Without authorization, that person would have grounds to take action against you for “passing off” or for “unfair trade practices.” 219 Outra incursão da OMPI neste campo é o seu relatório sobre merchandising de imagens de 1991, Document AB/XXII/2.: RUIJSENAARS, Heijo E., The WIPO Report on Character Merchandising, IIC 1994 Heft 4 532. The International Bureau observes that no country has enacted sui generis legislation and that there exists no international treaty dealing specifically with the protection of character merchandising. Therefore, for this protection one has to rely on the legislation on copyright, trade or service marks and industrial designs, together with protection against unfair competition and passing off, whereas other areas of law concerning personality or “publicity” rights are relevant to personality merchandising. After a short introduction of the characteristics of the intellectual property law involved, the Report explains which aspects of the particular law are relevant and under what circumstances a character will be considered as protec118

propriedade intelectual Como diz a publicação, “muitos países” teriam algum tipo de proteção para esses interesses específicos de quem detém celebridade o suficiente para carrear o interesse do público para os bens ou serviços a que eles se associam. Esse interesse encontra descrição precisa em obra brasileira consagrada220: “Há outra figura que, comumente, participa da publicidade e que influencia diretamente na decisão do consumidor. Trata-se dos artistas, pessoas públicas famosas, ou dos especialistas de produtos e serviços, que, sem dúvida, exercem grande influência sobre os consumidores ou sobre determinado grupo deles, dando-lhes, às vezes, uma falsa segurança sobre as qualidades do produto ou do serviço, seja por afirmações, conselhos, recomendações, seja pela simples vinculação de sua imagem ou nome ao bem ou serviço. Assume, assim, a celebridade, diante do consumidor, uma posição de ‘garante’. Este tipo de publicidade desencadeia ‘um comportamento no consumidor, em nível consciente e inconsciente, gerando uma resposta imediata devido ao conceito preexistente que se tem daquela pessoa ou grupo que está testemunhando a favor do produto, agregando-lhe valores como admiração, sucesso, riqueza, beleza, juventude, alegria, internacionalidade, tradição, notoriedade etc.”.

2. A criação do herói Em trabalho no mesmo sentido, já no campo do direito argentino221, traz-se uma interessante distinção entre a cultura popular, que tem criação autóctone – por exemplo, no folclore – e a cultura de massa. Aquela cria seus próprios heróis 222, enquanto essa escuta as celebridades, esperando que estable according to that law. Whereas most fictional characters would be protectable under copyright and trade mark law statutes, real personalities usually would have to rely on protection by unfair competition law, including passing off, and by personality or “publicity” rights. (...) The Report mentions the advantage of copyright protection, as it would cover all unauthorized uses, irrespective of the goods or services and the question whether the work is used in a different medium, in a different dimension or for decorative or promotional use. Also, the availability of moral rights, in particular the right with respect to the integrity of the work, could be useful for licensing agreements. Under trade mark law, the rights conferred to registered trade or service marks would cover situations of confusion. If the mark is well known or famous, extended protection against the use of the mark for non-similar goods or services causing prejudice to the owner of the mark or taking unfair advantage of the reputation of the mark is or will be available in a number of countries.” 220 Guimarães, Paulo Jorge Scartezzini, A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam, ed. RT, v. 16, 2001, p. 155. Note-se que o texto, como alguns outros, trata da eventual responsabilidade da celebridade sobre o endosso que faz de produtos ou serviços alheios; nossa análise se volta ao elemento antinômico dessa responsabilidade, que é o poder de negar tal endosso. Mas o núcleo dos dois interesses jurídicos é um só fenômeno, o descrito por Scatezzini. 221 ALVAREZ LARRONDO, Federico M., La responsabilidad de las celebridades por su participación en publicidades, RCyS 2010-II, 44. 222 “Uma das manifestações mais fortes do mito, também presente em quase todas as áreas da cultura de massa, é o herói. Seja no cinema, na literatura, na televisão ou nas histórias em quadrinhos, o herói surge na 119

tas ensinem e liderem seus gostos e preferências. São elas os novos heróis olímpicos223. Assim se nota, em texto de tal trabalho argentino:

Denis Borges Barbosa

“Em geral, os resultados desses estudos têm mostrado que as celebridades são mais eficazes do que as não-celebridades. A razão principalmente usada para explicar por que isso acontece é que os anúncios com as celebridades são mais distintivos e chamam mais nossa atenção do que aqueles que utilizam pessoas menos conhecidas. Os famosos são considerados mais dinâmicos, mais atraentes e são dotados de qualidades pessoais que não são atribuídas a pessoas menos conhecidas. Isso pode afetar, entre outras coisas, a confiança atribuída à fonte, as respostas emocionais geradas por esses anúncios e, em última análise, a forma como eles são processados.”224 vida dos povos como guardião de seus valores mais nobres e justos e como responsável, não só pela defesa dos homens, mas pela transmissão, através de suas narrativas, de ensinamentos para as gerações futuras. (...) Assim, a função primordial do herói, seja qual for sua origem ou época, seria servir, velar, defender, vigiar. Ele é, portanto, aquele que põe o interesse coletivo acima de seus próprios, que se sacrifica por uma causa, um ideal, por um mundo justo onde o bem-comum está acima de tudo. O sociólogo Ronaldo Helal faz uma comparação entre os ídolos da mídia, colocando os do futebol mais próximos do herói clássico que os demais, como os da música. Segundo Helal, a trajetória do herói do futebol, ligada à luta, à disputa, ao sucesso em virtude da derrota de um oponente, é semelhante às batalhas dos mitos da Antigüidade. Segundo ele, “esta característica do ‘ídolo-herói’ acaba por transformar o universo do futebol em um terreno extremamente fértil para a produção de mitos e ritos relevantes para a comunidade”. (HELAL, 1999) Para ele, o herói atual tem sua narrativa “construída” segundo um padrão midiático para corresponder aos anseios do público. (...) Assim, se por um lado as qualidades colocam o ídolo acima do público, os defeitos os identificam. Isto, ao invés de enfraquecer a couraça do ídolo, apenas a reforça, pois é por meio deste lado “humano” que o herói deixa de ser uma figura inatingível, abrindo a qualquer fã a possibilidade de, um dia, ser como ele.” VIEIRA, Marcos Fábio, Mito e herói na contemporaneidade: as histórias em quadrinhos como instrumento de crítica social, Contemporânea, no. 8, 2007, [Revista on-line do grupo de pesquisa Comunicação, Arte e Cidade da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.} http://www.contemporanea. uerj.br/pdf/ed_08/07MARCOS.pdf 223 MORIN, Edgar, L’esprit du temps, Editions Grasset Fasquelle, 1962, «Les olympiens sont: stars de cinéma, champions, princes, rois, play-boys, explorateurs, artistes célèbres, Picasso, Cocteau, Dali, Sagan. L’information transforme ces olympiens en vedettes de l’actualité. Elle porte à la dignité d’événements historiques des événements dépourvus de toute signification politique. Ce nouvel Olympe est le produit le plus original du cours nouveau de la culture de masse. Les nouveaux olympiens sont à la fois aimantés sur l’imaginaire et sur le réel, à la fois idéaux inimitables et modèles imitables; leur double nature est analogue à la double nature théologique du héros-dieu de la religion chrétienne: olympiennes et olympiens sont surhumains dans le rôle qu’ils incarnent, humains dans l’existence privée qu’ils vivent. Ils sont des condensateurs énérgétiques de la culture de masse. Ils sont des modèles de culture au sens ethnographique du terme, c’est-à-dire des modèles de vie qui tendent à détrôner les anciens modèles (parents, éducateurs, héros nationaux).» 224 RODRIGUEZ M. A. - del Barrio S. - Castañeda J.A., “Procesamiento diferencial entre la publicidad comparativa y la publicidad con famosos en condiciones de baja implicación”, Universidad de Granada, http:// www.ugr.es/~jalberto/Investigacion/Del%20Barrio_Rodriguez_Casta%25eda_2003.pdf. ““en general, los resultados de estos trabajos han demostrado que los famosos son más efectivos que los no famosos. La razón que principalmente se utiliza para explicar por qué esto es así se encuentra en que los anuncios con famosos son más distintivos y llaman más la atención que los que usan a personas menos conocidas. Los famosos se consideran más dinámicos, más atractivos y están dotados de cualidades personales que no se atribuyen a personas menos conocidas. Esto podría afectar, entre otras cosas, a la confianza atribuida a la fuente, a las respuestas afectivas que generan estos anuncios y, en definitiva, al modo en que se procesan”. 120

propriedade intelectual O autor argentino nota, especialmente, que o endosso da celebridade induz uma reação do público de massa de caráter mais emocional, e não racional como no caso da propaganda comparativa, com um resultado mais eficaz: Mas o interessante do estudo em questão, é que, como resultado dos testes empíricos realizados, conclui-se que em casos de baixo envolvimento são as mais comuns (concentração, ou seja baixo do que você está ouvindo ou assistindo), “... a publicidade famosa é processado em uma publicidade comparativa mais periférica, que se traduz em uma maior atitude em relação à marca anunciada e, portanto, a intenção de compra”. Claro assim o interesse econômico, cabe, no entanto, determinar o vínculo de juridicidade que permite aos sistemas nacionais conferir proteção a esse fenômeno. Mais ainda, como vincular tal proteção ao sistema de propriedade intelectual.

3. Do uso dessa imagem no direito estrangeiro e brasileiro Na verdade, há alguns fundamentos diversos utilizados pelos sistemas nacionais para conferir alguma, ou mesmo extensa proteção a esse valor econômico específico. 3.1. A construção pretoriana do direito americano do right of publicity O mais notável desses sistemas é a construção pretoriana de um direito de publicidade, de que já dava notícia na segunda edição de meu Uma Introdução à Propriedade Intelectual: O Direito Americano abrange, além das formas tradicionais, dois sistemas de patente de plantas, a proteção às topografias de semicondutores, a repressão específica à publicidade enganosa, os direitos de publicidade e o princípio da submissão de idéia, seja como criação legal ou jurisprudencial225 Neste sistema, em bibliografia que é extensa 226, assim se define tal 225 [Nota do original] Chisum e Jacobs, Understanding Intellectual Property Law, Matthew Bender 1992, p. 6-1 a 6-90. 226 ROTHMAN, Jennifer E., Copyright Preemption and the Right of Publicity. UC Davis Law Review, Vol. 36, p. 199, 2002. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=309659 or doi:10.2139/ssrn.309659; MCKENNA, Mark P., The Right of Publicity and Autonomous Self-Definition (December 30, 2010). University of Pittsburgh Law Review, Vol. 67, 2005. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=794844; KWALL, Roberta Rosenthal, The Right of Publicity vs. The First Amendment: A Property and Liability Rule Analysis. Indiana Law Journal, Vol. 70, p. 47, 1994. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=849745; BARNETT, Stephen R., ‘The Right to One’s Own Image’: Publicity and Privacy Rights in the United States and Spain. American Journal of Comparative Law, Vol. 47, P. 555, Fall 1999. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=224628 or doi:10.2139/ssrn.224628; KARCHER, Richard T., The Use of Players’ Identities in Fantasy Sports Leagues: Developing Workable Standards for Right of Publicity Claims. Penn State Law Review, Vol. 111, p. 557, Winter 2007. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=964295; BARTOW, Ann, Trademarks of Privilege: Naming 121

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direito227: O direito de publicidade é, em essência, um direito de natureza empresarial de controlar o uso de uma identidade no comércio. Embora os tribunais e comentaristas tenham oferecido vários fundamentos para tal direito, as decisões judiciais mais modernas defendem alguma combinação de incentivo, justa compensação, e enriquecimento sem causa: as celebridades devem ter um incentivo para desenvolver as suas valiosas personas públicas, seus esforços devem ser recompensados, e os terceiros que se aproveitam dos benefícios financeiros decorrentes das identidades valiosas devem pagar por isso. Os direitos de publicidade surgem mais frequentemente em casos de endosso de celebridades, mas o direito se estende a qualquer uso da imagem de uma celebridade, chamando a atenção para os interesses comerciais ou produtos. O direito de publicidade era originariamente aplicado apenas para o uso do nome de uma celebridade, ou sua fotografia; ao longo do tempo, no entanto, os tribunais ampliaram-no para o uso de “identidade”, refletindo que limitar o uso de determinados aspectos específicos de uma celebridade iria prejudicar o objetivo de dar a elas “um interesse pecuniário protegido na exploração comercial de [sua] identidades]228.” Aqui – como em outros sistemas – a raiz histórica do direito se encontrou na noção de privacidade229, mas, como nota o estudo da OMPI, em sua Rights and the Physical Public Domain. UC Davis Law Review, Vol. 40, p. 919, 2007. Available at SSRN: http:// ssrn.com/abstract=981199; DOGAN, Stacey L. and LEMLEY, Mark A., What the Right of Publicity Can Learn from Trademark Law. Stanford Law Review, Vol. 58, p. 1161, 2006. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=862965; KWALL, Roberta Rosenthal, Preserving Personality and Reputational Interests of Constructed Personas through Moral Rights: A Blueprint for the Twenty-First Century; 2001 U. Ill. L. Rev. 151 (2001); KLINK, Jan, 50 Years of Publicity Rights in the United States and the never-ending Hassle with Intellectual Property and Personality Rights in Europe, [2003] I.P.Q.: NO. 4 © Sweet & Maxwell LTD and contributors 2003, encontrado em http://www.ruger-patent.de/downloads/publicity_rights.pdf. LIPTON, Jacqueline D., Celebrity in Cyberspace: A Personality Rights Paradigm for Personal Domain Name Disputes. Washington and Lee Law Review, Forthcoming. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1124596 227 “The right of publicity is, at core, a business right to control use of one’s identity in commerce. Although courts and commentators have offered various rationales for the right, most modern cases defend it on some combination of incentive, just deserts, and unjust enrichment grounds: celebrities should have an incentive to develop valuable public personas, their efforts should be rewarded, and others deriving financial benefits from those valuable identities should pay. Publicity claims arise most often in celebrity endorsement cases, but the right extends to any use of a celebrity image calling attention to commercial interests or products. The publicity right originally applied only to the use of a celebrity’s name or photograph; over time, however, courts extended it to the use of a celebrity’s “identity,” reasoning that to limit the right to the use of particular features of the celebrity would defeat the objective of giving celebrities “a protected pecuniary interest in the commercial exploitation of [their] identities].” DOGAN, Stacey L., An Exclusive Right to Evoke. Boston College Law Review, Vol. 44, 2003. Available at SSRN: http://ssrn.com/ abstract=410547 or doi:10.2139/ssrn.410547 228 [Nota do Original] Carson v. Here’s Johnny Portable Toilets, Inc., 698 F.2d 831, 835 (6th Cir. 1983) (“If the celebrity’s identity is commercially exploited, there has been an invasion of his right whether or not his ‘name or likeness’ is used.”). 229 DOGAN, op. Cit.,: “The right emanated originally from the common-law right to privacy. See Samuel D. Warren & Louis D. Brandeis, The Right to Privacy, 4 Harv. L. Rev. 193, 213–20 (1890). In the middle of 122

propriedade intelectual vertente inversa: já não um interesse de preservação, mas a contemplação de um valor econômico que a privacidade torna suscetível de reserva e, no plano econômico, de escassez230. A análise econômica desse interesse revela dois elementos complementares: o primeiro, de conter o uso indiscriminado da imagem, que reduziria, pela vulgarização, a capacidade do retorno do favorecido231; o segundo, de assegurar o retorno personalizado do potencial econômico da fama. 3.2. Das celebridades em outros direitos Como já mencionado, alguns aspectos do interesse relativo à celebridade como constructo tem merecido proteção nos vários sistemas jurídicos com base na tutela da personalidade232. the last century, however, courts decided that the general right of individuals to be left alone was not well suited to remedying uses of celebrity identities (because the celebrities had deliberately cast themselves into the limelight) and accordingly developed the modern right of publicity. See Haelan Labs., Inc. v. Topps Chewing Gum, Inc., 202 F.2d 866, 868 (2d Cir. 1953) (holding that “in addition to and independent of . . . right of privacy . . . , a man has a right in the publicity value of his photograph”); see also Melville Nimmer, The Right of Publicity, 19 Law & Contemp. Probs. 203, 215–23 (1954) (advocating publicity rights).” 230 Num texto crucial para nosso estudo, diz COOMBE, Rosemary J., Authorizing the celebrity: publicity rights, postmodern Politics, and unauthorized genders, in WOODMANSEE, Martha and Peter Jaszi Editors. The Construction of Authorship - Textual Appropriation In Law And Literature. United States of America: Duke University Press, 1994, p.101-122: “Anglo-American legal jurisdictions recognize the right of individuals to protect publicly identifiable attributes from unauthorized and unremunerated appropriation by others for , commercial purposes or economic benefit. Originally developed primarily to deal with an unauthorized use of a person’s name or picture in advertising that suggested the individual’s endorsement of a product, the right of publicity has been greatly expanded in the twentieth century. It is no longer limited to the name or likeness of an individual, but now extends to a person’s nickname, signature, physical pose, characterizations, singing style, vocal characteristics, body parts, frequently used phrases, car, performance style, mannerisms, and gestures, provided that these are distinctive and publicly identified with the person dal1m’mg the right. Although most cases still involve the unauthorized advertising of commodities, rights of publicity have evoked to prohibit the distribution of memorial posters, novelty souvenirs, magazine parodies, and the presentation of nostalgic musical reviews, television docudramas, and satirical theatrical performances, Increasingly it seems that any publicly recognizable characteristic will be legally recognized as having a commercial value that is likely to be diminished by its unauthorized or unremunerated appropriation by others. The right is recognized as proprietary in nature and may therefore be assigned, and the various components of an individual’s persona may be independently licensed. A celebrity could, theoretically at least, license her signature for use on fashion scarves, grant exclusive rights to reproduce her face to a perfume manufacturer, her voice to a charitable organization, her legs to a pantyhose company, particular publicity stills for distribution as postcards, and continue to market her services as a actor, and composer. The human persona is capable of almost infinite commodification, because exclusive, non-exclusive and temporally, spatially, and functionally limited licenses be granted for the use of any aspect of the celebrity’s public presence. Furthermore, the right of publicity has been extended the celebrity, her licensees, and assignees, to protect the ‘s descendants and their assignees and licensees”. 231 LANDES, William M. e POSNER, Richard A., “Indefinitely Renewable Copyright, 70 University of Chicago Law Review 471 (2003). Para não fugirmos a uma citação integral, vale mencionar um desses autores num texto pertinente: “Geralmente, somente a forma verbal exata é totalmente protegida: um autor é livre para utilizar o mesmo gênero, técnica, estilo e até – em determinada extensão, mas não ilimitadamente – o enredo e personagens de outro autor” (Richard A. Posner – Law and Literature, Harvard University Press, Cambridge, USA, 1988, p. 340). 232 Vide para uma comparação da casuística pertinente, FROTA, Hidemberg Alves da. Os limites à liberdade de informação jornalística em face dos direitos da personalidade, à luz do Direito brasileiro e da jurispru123

No direito espanhol, por exemplo, a Constituição prevê no seu art. 7 algumas instâncias de proteção à personalidade, com especial ênfase no direito positivo de controlar o uso publicitário da persona233, o que faz certa doutrina considerar tal disposição como comparável ao publicity right234. Na Alemanha, a casuística construiu, a partir de 1956, a doutrina da autodeterminação econômica em face da persona, ou seja, que se expressaria num poder geral de determinar quais elementos da personalidade de uma pessoa, ou se quaisquer aspectos dessa personalidade, venham a ser utilizados para os propósitos econômicos de terceiros235. Mais recentemente, aos tribunais vêm conferindo tal posição jurídica aos sucessores da pessoa236, o que, incidentalmente, tem merecido discussão normativa – já não mais consdência estrangeira. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 8, n. 15, p. 191-227, jan.-jun. 2006, encontrado e em http://www.unigran.br/revistas/juridica/ed_anteriores/15/artigos/10.pdf, visitado em 6/12/2011.

Denis Borges Barbosa

233 Art. 7.5 “La captación, reproducción o publicación por fotografía, filme, o cualquier otro procedimiento, de la imagen de una persona en lugares o momentos de su vida privada o fuera de ellos . . . “ e, particularmente, Art. 7.6“[L]a utilización del nombre, de la voz o de la imagen de una persona para fines publicitarios, comerciales o de naturaleza análoga.” 234 “Thus Article 7.6, with its requirement of a “commercial” purpose, seems comparable to the American right of publicity; while Article 7.5, with its focus on “private life,” seems analogous to the U.S. right of privacy”, BARNETT, Stephen R., ‘The Right to One’s Own Image’: Publicity and Privacy Rights in the United States and Spain. American Journal of Comparative Law, Vol. 47, P. 555, Fall 1999. Available at SSRN: http:// ssrn.com/abstract=224628 or doi:10.2139/ssrn.224628 235 “At its heart, the right prevents deception or confusion as to the identity of the name holder. Thus, infringement means the designation of someone else but the name holder by the holder’s name. Accordingly, the mere mentioning of the holder’s name in an advertisement may not constitute any deception or confusion about his identity. But German courts have held that in these cases the general public might assume that the holder gave his consent to being connected with the advertised item. If in fact no consent was given or the name holder does not support the advertised products and maybe does not even have economic, organisational or other links with the advertising company, such advertising misleads about the way he has chosen his identity to be used—namely, not being connected with the advertised items. Stretched this way, the name right has proved able to cover all forms of unauthorized use of popular names: be it on t-shirts, on book and film titles or for fictional characters. (...) In addition, and since 1956 (Mephisto (1968) N.J.W. 1773, BGH.), the German Federal Supreme Court has recognized the commercial interests in personality as a part of the general personality right and called it a right of economic self-determination (Rennsportgemeinschaft (1981) G.R.U.R. 846, 847, BGH.). This right provides the freedom to decide if and how one’s personality or personality features are used for the business interests of others (Paul Dahlke (1956) N.J.W. 1554, BGH; Carrera (1981) N.J.W. 2402, BGH; Marlene Dietrich (2000) N.J.W. 2195, BGH.).” KLINK, Jan, 50 Years of Publicity Rights in the United States and the never-ending Hassle with Intellectual Property and Personality Rights in Europe, [2003] I.P.Q.: NO. 4 © Sweet & Maxwell Ltd And Contributors 2003, encontrado em http://www.ruger-patent.de/downloads/publicity_rights.pdf. 236 “However, the German Federal Supreme Court, in an attempt legally to reflect business reality, in the more recent Marlene Dietrich judgment (Marlene Dietrich (2000) N.J.W. 2195, BGH.) made another effort to read some aspects of a typical publicity right into the general personality right. The daughter of Marlene Dietrich wanted to prevent a musical producer from granting unauthorized licenses of the likeness and name of the deceased famous actress for cars, cosmetics and merchandise articles. The District Court and the Court of Appeal followed the traditional interpretation and only granted an injunction to the daughter. Damages were denied because human rights neither are transferable nor inheritable and thus the daughter could not have obtained any rights. The Federal Supreme Court went further and granted damages on the grounds of a renewed economic personality right which not only provides the right to control the economic use of one’s personality features but also to earn the profits of its commercial value”. Id. Eadem. 124

propriedade intelectual trução pretoriana – no direito americano237. Na França e Itália, a julgar-se dos estudos sobre a questão, igualmente a proteção dos interesses das celebridades em sua persona tem encontrado fundamento nos direitos da personalidade, ainda que, atentando a sua manifestação econômica, enfatizando a ponderação devida com outros interesses constitucionais, em particular, o da informação238. No Canadá239, Índia240 e, com certo retardo, no Reino Unido241, tam237 Sobre a consolidação do right of publicity como norma legal, vide ZUBER, Thomas F., The Statutory Right of Publicity for Deceased Celebrities in California and the Impact of Sb 771, encontrado em http:// www.articlesbase.com/intellectual-property-articles/the-statutory-right-of-publicity-for-deceased-celebrities-in-california-and-the-impact-of-sb-771-574762.html, visitado em 26/11/2011. 238 “France has strong laws enabling individuals to prevent the unauthorized exploitation of their name and image. As in most countries with a publicity right, this right has stemmed from the right of privacy for individuals – something which English law has never had. Prior to 1970, when the right of privacy was enshrined in the French Civil Code, the Courts were prepared to protect the unauthorized use of images. Protection of a person’s privacy protects their identity, their health, and their private and social relations. (...) One of the first French cases involved Petula Clark [Paris 15 Dec 1965, JCP 66 II, 14711. 8. Paris 10.10.96, Gazette 18.22/05/99 p28] who had authorized an agency to interview and photograph her for a particular publication. The agency concerned, however, sold the photographs to another agency who used them in a weekly publication. Petula Clark was successfully awarded damages by the French Court proportional to the loss of her opportunity to earn revenue from the publication of the photographs. This has been followed consistently in France. One of the more recent cases concerned a photograph of Eric Cantona on the front cover of a weekly sports publication without his consent. The Court held that the absence of any authorization had prevented Cantona from being able not only to control how his image was used in the magazine but also to earn money for its use. Publicity rights are provided in statute in Italy, Germany and the Netherlands similar to those granted under French law. The legal framework in these territories, however, provide for the right to use the name and image of people in public life without consent when it is in the interests of free speech to do so. Case law provides a balance between the protection of a celebrity’s image and the right of free speech, i.e. a biographical work of a well-known individual. The use of a well-known individual’s image for advertising purposes, however, without authorization, would be unlawful”. OWEN, Mark e PENFOLD, Richard, IP Protection For Personalities - From Elvis To Eddie, les Nouvelles, Volume XXXVIII No. 1 March 2003 239 “Canadian common law recognizes the right to personality on a limited basis. This was first acknowledged in Krouse v Chrysler Canada Ltd. [Krouse v Chrysler Canada Ltd (1971), 5 C P R (2d) 30] The court held that where a person has marketable value in their likeness and such a likeness has been used in a manner that suggests an endorsement of a product then there are grounds for an action in appropriation of personality. This right was later expanded upon in Athans v Canadian Adventure Camps,[Athans v Canadian Adventure Camps, (1977), 17 O.R. (2d) 425.] where the court held that the personality right included both image and name.” AHMAD, Tabrez and SWAIN, Satya Ranjan, Celebrity Rights: Protection under IP Laws (January 30, 2011). Journal of Intellectual Property Rights, Vol. 16, pp. 7-16, January 2011. Available at SSRN: http:// ssrn.com/abstract=1940926 240 “The Hon’ble Delhi High Court, in ICC Development (International) Ltd v Arvee Enterprises [Smt Manu Bhandari v Kala Vikas Pictures Pvt Ltd and another 1986( 2) Arb L R 151 (Delhi)] , gave a statement on publicity rights, which is the only authoritative discussion of publicity rights in Indian legal jurisprudence. ‘The right of publicity has evolved from the right of privacy and can inhere only in an individual or in any indicia of an individual’s personality like his name, personality trait, signature, voice etc. An individual may acquire the right of publicity by virtue of his association with an event, sport, movie, etc. …. Any effort to take away the right of publicity from the individuals, to the organizer /non-human entity of the event would be violative of Articles 19 and 2l of the Constitution of India - No persona can be monopolized. The right of publicity vests in an individual and he alone is entitled to profit from it.’.” AHMAD, Tabrez and SWAIN, Satya Ranjan,op. cit. 241 “ (…) the concept of publicity rights was settled in the case of Irvine v Talksport. [Irvine v Talksport [2003] EWCA Civ 423.] In this case a successful Formula I driver, Edmund Irvine’s image was used without his 125

bém se nota tal proteção.

4. A construção brasileira A construção brasileira relativa à proteção dos interesses positivos patrimoniais da personalidade é bem estabelecida. Ilustra-o julgado do Tribunal paulista:

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“As pessoas famosas pagam um preço pela fama, o que explica constantes reclamações sobre desrespeito dos direitos de privacidade e intimidade. Ocorre que as pessoas destacadas são titulares de uma tutela diferenciada quando a lesão de seus direitos decorre de exploração parasitária da celebridade que alcançaram por conquistas meritórias A fama é utilizada para vender o programa que ofende a honra e a reputação e foi isso o que se sucedeu” TJSP, AC 315 678-4/0, Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, voto de Ênio Zuliani, 28 de agosto de 2008. Por algum tempo derivado diretamente do texto constitucional, este interesse ganha mais proximidade com o Código Civil de 2002. Assim dispõe o Código Civil: Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais242 Como nota Guilherme Calmon243: consent in an advertisement for a radio station. The court held that he had a property right in the goodwill attached to his image, and he was entitled to compensation on the basis of a reasonable endorsement fee..” AHMAD, Tabrez and SWAIN, Satya Ranjan,op. cit. 242 Assim disciplina o artigo 79 (Direito à imagem) do Código Civil Português: 1- O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada. 2- Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente. 3- O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada. 243 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, Direitos da personalidade e código civil de 2002: uma abordagem contemporânea, Revista dos Tribunais | vol. 853 | p. 58 | Nov / 2006 | DTR\2011\1503. Quanto 126

propriedade intelectual No que pertine ao art. 18, do CC/2002, a imagem da pessoa é protegida contra a exploração em propaganda comercial dentro da noção de imagem-atributo.244 O direito à imagem, sob o prisma da imagem-retrato e da imagem-atributo, vem tratado no art. 20 do CC/2002. Mais uma vez o legislador não se preocupou apenas com o direito à imagem, mas também com o direito à informação, realizando um juízo de ponderação da imagem de uma pessoa quando não lhe macule a honra ou quando tenha finalidade lucrativa. “Deve-se notar que, apesar do artigo fazer referência à divulgação de escritos e à transmissão da palavra, estes devem ser entendidos somente em relação ao que representam para a construção da imagem de uma pessoa e não para outros aspectos de sua personalidade, como a sua privacidade, por exemplo”.245

5. Da personalidade ao atributo Fixemo-nos aqui na noção de imagem-atributo246. Dos muitos exemplos de interesses jurídicos atinentes à personalidade, é o que mais se aproxima ao nosso tema de análise247. Diz Maria Helena Diniz que tal seria: à noção de imagem-atributo, vide RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos Tribunais | vol. 827 | p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563: “Daí poderem-se destacar dois aspectos da imagem: o físico e o moral, ou, falar em duas espécies de imagem, a imagem-retrato e a imagem-atributo. A primeira referente à representação do corpo da pessoa, pelo menos por uma parte que a identifica, e, a segunda, representada pela imagem construída pela pessoa diante da sociedade ou, em outras palavras, pelos seus modos de operar na vida de relação humana e profissional (...) A imagem-atributo, isto é, a imagem construída não se confunde com a honra, embora dela se aproxime, pois os atributos associados à pessoa, sejam por conhecidos ou desconhecidos, nem sempre derivam de sua reputação. Ser retraído, por exemplo, embora seja uma característica da imagem construída, nada tem a ver com a honra, a reputação da pessoa. Em sentido contrário: MORAES, Walter. “Direito à própria imagem”. Revista da ABPI 9/25, São Paulo, 1993, para quem a imagem moral nada mais é do que a reputação pessoal.” 244 [Nota do original] BARRETO, Wanderlei de Paula, op. cit., p. 158 [BARRETO, Wanderlei de Paula et alii. Comentários ao Código Civil brasileiro. v. 1. coord. Arruda Alvim e Thereza Alvim. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 111-116] 245 [Nota do original] DONEDA, Danilo, op. cit., p. 52 [DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no novo CC. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 40.] 246 Segundo decisão do STJ, a imagem-retrato seria “a projeção dos elementos visíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própria pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizam. (...) a sua reprodução, consequentemente, somente pode ser autorizada pela pessoa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com a sua própria utilização indevida”. STJ, REsp 58101-SP, Quarta Turma, Min. Cesar Asfor Rocha, 16/09/1997. 247 Pertinentes à essa linha de ponderação, vide GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, Direitos da personalidade e código civil de 2002: uma abordagem contemporânea, Revista dos Tribunais | vol. 853 | p. 58 | Nov / 2006 | DTR\2011\1503; RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos Tribunais | vol. 827 | p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563 ; FERREIRA, Ivette Senise, A intimidade e o direito penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 5 | p. 96 | Jan / 1994 | DTR\1994\6; SILVA NETO, Manoel Jorge E,A proteção constitucional à imagem do empregado e da empresa, Revista de Direito do Trabalho 127

(...) o conjunto de atributos cultivados pela pessoa, reconhecidos socialmente. É a visão social a respeito do indivíduo, hipótese em que se configura a imagem atributo, imagem social, ou, ainda, imagem moral, protegida pelo art. 5º, V, da CF/1988, sendo distinta da honra (CC, arts. 20, in fine, e 953), que envolve a pessoa no círculo social, indicando suas qualidades, como, por exemplo, de hábil advogado, de médico competente, de mestre dedicado, etc. (ESTF, 1801:284). Enfim, é personalidade moral (reputação, fama, etc.) do indivíduo no mundo exterior.248

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Enfatizando, na imagem-atributo, exatamente o aspecto do constructo, e sua propensão à utilização publicitária: [a imagem-atributo] se faz caracterizar pelos traços próprios, construídos por seu titular ou com o seu consentimento; não se está falando de qualquer traço físico ou de composição da fisionomia. Estamos falando, na verdade, da figura pública que é assumida pelo indivíduo. (essa imagem tem um caráter (mesmo que longínquo) de fundo publicitário. (...) Criamos nossa imagem, apresentamos nossa imagem, vivemos com a nossa imagem e imaginamos que as pessoas nos procurem profissionalmente pela imagem que construímos.249

6. Da elaboração brasileira do direito das celebridades esportivas Num campo específico do direito das celebridades, a elaboração legislativa, doutrinária e jurisprudencial tem tido vasta extensão250. Por suas ca| vol. 112 | p. 157 | Out / 2003 | DTR\2003\560; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel, A liberdade de expressão e de imprensa. Homem público. Político. Limites frente à função social da informação, Revista dos Tribunais | vol. 884 | p. 111 | Jun / 2009 | DTR\2009\719; BASTERRA, Marcela I, El Derecho a la Intimidad como límite a la Libertad de Información. A propósito del caso “V., J. s/medidas precautorias”, DFyP 2011 (octubre), 243; BENJAMIN, Antonio Hermen de Vasconcellos e, A repressão penal aos desvios do “marketing”, Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 6 | p. 87 | Abr / 1994 | DTR\1994\507; CARRANZA LATRUBESSE, Gustavo, La intimidad de los hombres públicos, LA LEY 19/11/2004, 1; PALHARES, Cinara, Direito à informação e direito à privacidade: conflito ou complementaridade? Revista dos Tribunais | vol. 878 | p. 42 | Dez / 2008 | DTR\2008\727; ADLERS, Leandro Bittencourt, O cabimento da tutela inibitória na defesa de direitos fundamentais e da personalidade violados por excesso na liberdade de expressão e informação, Revista de Direito Privado | vol. 31 | p. 303 | Jul / 2007 | DTR\2007\446.; RODRIGUES JUNIOR, Álvaro, A responsabilidade civil dos apresentadores de programas de rádio e televisão pela publicidade enganosa ou abusiva, Revista de Direito do Consumidor | vol. 46 | p. 305 | Abr / 2003 | DTR\2003\ 248 DINIZ, Maria Helena. Estudos de direitos de autor, direito da personalidade, direito do consumidor e anos morais. 1. ed. Forense Universitária, 2002. p. 79. 249 ARAÚJO , Luiz Alberto David de, O conteúdo do direito à própria imagem: um exercício de aplicação de critérios de efetivação constitucional , Revista do Advogado, São Paulo, v. 23, n. 73, p. 119-126, nov. 2003. 250 EZABELLA, Felipe Legrazie. O direito desportivo e a imagem do atleta. IOB Thomson, 2006. MELO FILHO, Álvaro . Direito desportivo: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: IOB Thomson, 2002 ; ALMEIDA , Silmara Chinelato e, Direito de Arena, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, v. 3, p. 127-134, p. 127. SANTOS, Roberto Martinho dos, SCHAAL, Flavia Mansur Murad, O direito à imagem no

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propriedade intelectual racterísticas e principalmente pelas complexidades de sua pragmática, pejada de problemas tributários e trabalhistas, a questão foge claramente ao escopo desta análise. No entanto, a evolução do instituto, tão notadamente nacional, é crucial como parâmetro de legitimdade da construção que vimos fazendo. Como se sabe, o direito de arena iniciou seu trajeto histórico como um instituto inserido na norma autoral251. O instituto, como tal, mereceu análise específica de Antonio Chaves 252 e combate acérrimo de Walter Moraes253. A questão – num tema que ecoará nessa análise -, repassa a natureza criativa ou não da prestação da celebridade esportiva no imaginário da sociedade; e pelo aceso da discussão, chegou a suscitar a comparação dos direito desportivo: suas virtudes comerciais e publicidade, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 11 | p. 147 | Jun / 2007 | DTR\2011\2157. SÁ FILHO, Fábio Menezes de, A teoria zainaghiana do direito de arena e suas influências na remuneração do empregado futebolista na renovada lei dos desportos, Revista de Direito do Trabalho | vol. 142 | p. 275 | Abr / 2011 | DTR\2011\1728. BRAGA, Hugo Albuquerque, O contrato de trabalho do atleta profissional de futebol, Revista de Direito do Trabalho | vol. 137 | p. 143 | Jan / 2010 | DTR\2010\68. SANTIAGO, Mariana Ribeiro, Direito de arena, Revista de Direito Privado | vol. 22 | p. 224 | Abr / 2005 | DTR\2005\919 MOTA, Mateus Scisinio, Direitos de imagem e de arena: reposicionando questões controvertidas, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 18 | p. 88 | Jul / 2010 | DTR\2010\957. SÁ FILHO, Fábio Menezes de, Aspectos sobressalentes da remuneração do empregado futebolista, Revista de Direito do Trabalho | vol. 135 | p. 53 | Jul / 2009 | DTR\2009\439. SANTOS, Roberto Martinho dos, O Direito à Imagem no Direito Desportivo: Suas Virtudes Comerciais e Publicidade, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 11 | p. 147 | Jun / 2007. PINTO FILHO, José Alexandre Cid, A Utilização do Contrato de Licença de Uso de Imagem do Atleta Profissional Como Mecanismo de Violação da Legislação Trabalhista Brasileira, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 12 | p. 116 | Dez / 2007 | DTR\2011\2243. 251 “O direito de arena esteve estatuído na antiga Lei de Direitos Autorais (de 1973), inserido dentre os direitos conexos, o que provocou inúmeras críticas entre renomados autoralistas, que não consideravam os “atletas” como “autores, artistas, intérpretes ou executantes”, ao negar a existência, no espetáculo desportivo, de produto intelectual semelhante à obra ou à execução artística. Por conta de suas peculiaridades, o direito de arena foi previsto na primeira lei específica para tutela sistemática e ampla dos desportos, a denominada “Lei Zico” ( Lei 8.672, de 06.07.1993) em seu art. 24. Tal lei, no entanto, foi posteriormente revogada pela Lei 9.615, de 24.03.1998, mais conhecida como “Lei Pelé”, atualmente vigente, que agora consagra o referido direito em seu art. 42.” MOTA , Mateus Scisinio, Direito de Imagem, op. Cit. O texto original era o seguinte: Art. 100: À entidade a que esteja vinculado o atleta, pertence o direito de autorizar, ou proibir a fixação, transmissão, retransmissão, por quaisquer meios ou processos, de espetáculo desportivo público, com entrada paga. Parágrafo único: Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo. Art. 101: O disposto no artigo anterior não se aplica à fixação de partes do espetáculo, cuja duração, no conjunto, não exceda a três minutos para fins exclusivamente informativos, na imprensa, cinema ou televisão. 252 CHAVES, Antônio. Direitos conexos. LTr, p. 607 e seguintes. No campo autoral, vide ainda, entre muitos, ASCENSÃO , José de Oliveira, Direito Autoral, 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.503 e RABELLO , José Geraldo de Jacobina, Do “Direito de Arena”, Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, v. 5, p. 53-59, p. 56. De outro lado: “Esta teoria parte do pressuposto de que o direito à imagem e o direito do autor são semelhantes. [...] A existência de um vazio legislativo em relação ao direito à imagem possibilitou o surgimento desta teoria. Assim, por muito tempo aplicou-se no Direito brasileiro a norma do art. 666, inciso X, do Código Civil, para solucionar questões pertinentes ao direito à imagem.” FACHIN, Zulmar Antonio. A proteção jurídica da imagem. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p.61 253 MORAES , Walter, Questões de Direito Autoral, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977. 129

jogadores de futebol aos grandes artistas da raça humanidade255.

254

, e aos pensadores da

Há que se distinguir, nesse contexto, o interesse jurídico relativo à imagem coletiva, e aquele atinente à imagem individual, como nota Alvaro Melo Filho256:

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Direito de arena: (a) decorre da lei; (b) é coletivamente usufruído; (c) não se reveste de periodicidade; (d) ocorre dentro do contexto do evento desportivo transmitido; (e) tem natureza salarial; (f) Deve ser limitado a 20% do que recebe o clube, valor este rateado entre todos os atletas participantes do evento transmitido. Direito de Imagem: (a) decorre de contrato; (b) é individualmente usufruído; (c) normalmente reveste-se de periodicidade; (d) ocorre fora do contexto do evento desportivo transmitido; (e) não tem natureza salarial; (f) gera 100% para o atleta cedente do uso da imagem, sem rateio para os demais atletas. Assim, tem-se o direito de arena, relativo à imagem coletiva, o direito pertinente à celebridade individual do esportista, desvinculada do espetáculo257. A doutrina aponta, inclusive, matriz constitucional diversa para a proteção jurídica dos dois interesses. O direito de arena, com base explícita em lei ordinária 258, se fundaria no art. 5º., XXVIII, num dispositivo topologicamente dedicado aos interesse 254 Em obra anterior especializada, Antonio Chaves dizia que “de alguma forma, o desempenho dos grandes atletas aproxima-se ao de verdadeiros artistas”. Antônio Chaves, Direito de Arena, Campinas: Jurulex, 1988. 255 No que se convenciona indicar como o primeiro acórdão quanto ao direito das celebridades entre nós: Ap. Cív. nº 26.108, Rel. Des. Rui Domingues, j. em 27.6.74, in Revista Forense, vol. 250, abr./jun. 75, pp. 269273. “A escola de futebol criada pelo Brasil tem raízes humildes, vem do povo humilde, assim como a coreografia e cânticos carnavalescos, modelos de organização, de disciplina, de espírito de equipe. Os heróis do futebol são admirados e contemplados pelas massas e pelos seus representantes, inclusive pelas mais altas autoridades federais. Não há assunto mais sério no Brasil . (...) Um grande jogador de futebol como Jairzinho é tão importante para o povo brasileiro como Kant ou Heidegger para um estudante de filosofia na Alemanha. Tais nomes, tais imagens, não podem ser tomadas em vão, nem a troco de nada.” 256 MELO FILHO, Álvaro, Direito desportivo.... op. Cit. 257 MOTA, Mateus Scisinio, Direito de Imagem ... op. Cit. , “O que se tutela com o direito de arena é a exploração da imagem coletiva dos atletas durante a participação em eventos e espetáculos esportivos, enquanto o direito à imagem se refere ao uso da imagem individual do atleta, desvinculada do espetáculo desportivo.” 258 Lei 9.615/1998, Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem [Redação dada pela Lei 12.395/2011]. § 1.º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil [Redação dada pela Lei 12.395/2011]. 130

propriedade intelectual autorais259. Ainda que assim ancorado, distinguir-se-ía sua raiz no direito geral de imagem, mas restrito e especializado: “Direito de Arena – Limitação – Direito de Imagem – O direito de Arena é uma exceção ao direito de imagem, e deve ser interpretado restritivamente. A utilização com intuito comercial da imagem do atleta fora do contexto do evento esportivo não está por ele autorizado. Dever de indenizar que se impõe (...)” STJ, AgRg no AI nº 141987 – SP, 3ª. Turma, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 15/12/1997; v.u.. Levando em conta a distribuição legal de verbas, a doutrina distingue o direito de arena patronal daquele desigando como profissional, que se destina aos esportistas em caráter individual, mas não em consideração de sua celebridade individual260. De outro lado, o interesse à imagem pessoal, como celebridade esportiva, teria radicação, além do dispositivo citado, no Art. 5.º, V e X da Constituição261. A distinção é possível, não obstante o tecimento confuso e por vezes fraudulento dos dois institutos no campo empírico: 259 Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à produção da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; 260 Como distingue SÁ FILHO, Fábio Menezes de, A teoria..., op. cit. : “Em síntese, a titularidade do direito de arena pertence aos clubes de futebol. Em contrapartida, a titularidade do direito de imagem, em virtude do seu caráter personalíssimo, pertence a cada pessoa, quer seja física ou jurídica. Quando houver a realização da transmissão, por exemplo, de uma partida de futebol, o clube é responsável pela negociação antecipada desta exibição. Nos termos do caput e § 1.º do art. 42, da Lei dos Desportos, com a redação dada pela Lei 12.395/2011, clube negociante terá direito a 95% (noventa por cento) do valor total da autorização negociada por ele mesmo, em virtude da exposição da sua imagem coletivizada, equivalendo ao direito de arena patronal. O que é negociado, conforme disposição do supracitado artigo da Lei dos Desportos, é a imagem coletiva, cuja titularidade pertence aos clubes de futebol. A partir desta negociação é que um percentual do valor total negociado será destacado e repassado aos atletas profissionais, os quais são, nesta oportunidade, representados pelos sindicatos profissionais da categoria. Sendo assim, pode-se afirmar que o direito de arena profissional e o direito de arena patronal são espécies do gênero direito de arena. Assim, o direito de arena profissional diz respeito apenas ao percentual de 5% (cinco por cento) devido aos empregados futebolistas a título de repasse dos clubes de futebol daquele montante total da autorização negociada (pacote de partidas a serem disputadas), em virtude de contribuírem participando do espetáculo ou evento desportivo, durante o exercício das funções oriundas das obrigações pactuadas no contrato de emprego.” 261 Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...) 131

“DIREITO AUTORAL – Direito à própria imagem – Uso de fotografias de jogadores de futebol para compor ‘álbum de figurinhas’ – Inadmissibilidade – Hipótese em que o direito de arena atribuído às atividades esportivas limita-se à fixação, transmissão e retransmissão do espetáculo desportivo público – Inteligência das leis 5.989/73, art. 100 e 8.672/93 (‘Lei Zico’)”. STJ, Resp 46.420-0-SP-J. 12.9.94, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – DJU 5.12.94.262 E, autonomamente de qualquer direito de arena: “DIREITO AUTORAL. DIREITO À IMAGEM. PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA E VIDEOGRÁFICA. FUTEBOL. GARRINCHA E PELÉ. PARTICIPAÇÃO DO ATLETA. UTILIZAÇÃO ECONÔMICA DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA, SEM AUTORIZAÇÃO. DIREITOS EXTRAPATRIMONIAL E PATRIMONIAL. LOCUPLETAMENTO. FATOS ANTERIORES ÀS NORMAS CONSTITUCIONAIS VIGENTES. PREJUDICIALIDADE. RE NÃO CONHECIDO. DOUTRINA. DIREITO DOS SUCESSORES À INDENIZAÇÃO. RECURSO PROVIDO. UNÂNIME.

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I - O direito à imagem reveste-se de duplo conteúdo: moral, porque direito de personalidade; patrimonial, porque assentado no princípio segundo o qual a ninguém é lícito locupletar-se à custa alheia. II - O direito à imagem constitui um direito de personalidade, extrapatrimonial e de caráter personalíssimo, protegendo o interesse que tem a pessoa de opor-se à divulgação dessa imagem, em circunstâncias concernentes à sua vida privada. III - Na vertente patrimonial o direito à imagem protege o interesse material na exploração econômica, regendo-se pelos princípios aplicáveis aos demais direitos patrimoniais. IV - A utilização da imagem de atleta mundialmente conhecido, com fins econômicos, sem a devida autorização do titular, constitui locupletamento indevido ensejando a indenização, sendo legítima a pretensão dos seus sucessores”. STJ, Resp. 74473-RJ. 4a. Turma, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Julgamento ocorrido em 23.02.1999. DJU, 21 jun. 1999.

7. A Persona como constructo Qual o núcleo desse interesse jurídico de que se trata? A noção de persona, como sinônimo de imagem de celebridade 263, ou seja, a exteriorização de um constructo que não se identifica com a pessoa natural264. Seria o 262 Curiosamente, o caso judicial americano que detonou a criação dos publicity rights versou exatamente sobre figurinhas de esportistas: Haelan Laboratories Inc. v. Topps Chewing Gum, Inc. 202 F.2d 866, 868 (2nd Cir. 1953). Tal caso foi objeto de análise por NIMMER, Melville B. , The Right of Publicity, 19 Law & Contemp. Probs. 203 (1954). 263 COOMBE,Rosemary J.: “I will use the term “celebrity image” to designate not only the celebrity’s visual likeness, but rather, all elements of the complex constellation of visual, verbal and aural signs that circulate in society and constitute the celebrity’s recognition value. The term “persona” will also refer to this configuration of significations. I will also use the terms “celebrity” and “star” interchangeably.” 264 “Persona é uma palavra de origem latina que pode designar tanto ‘máscara’ quanto ‘pessoa’. Goffman [GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1999.] cita Robert Ezra Park 132

propriedade intelectual valor de reconhecimento da celebridade. A possível definição deste objeto de direito seria o seguinte265: A persona pode representar um personagem inteiro, imagem e estilo de vida, enquanto obras escritas de um autor consistem em apenas expressões específicas. Por outro lado, um romance pode ser uma representação mais precisa da personalidade de alguns escritores porque o trabalho é uma expressão intencional do criador, enquanto a persona é ações intencionais e não intencionais do indivíduo combinada com a reação popular a essas ações. De fato, é difícil encaixar em ambos a persona seja na teoria laboral, seja na teoria da personalidade, que explicam a propriedade intelectual. Às vezes a persona é o resultado de trabalho árduo no sentido de garantir uma imagem pública com base em uma visão interna. Mas muitas vezes ela é uma criações de puro acaso, talvez a única “propriedade intelectual” sem intencionalidade.” Como se verá, ao focarmos nossa atenção ao constructo, à persona resultante do trabalho árduo no sentido de garantir uma imagem pública com base em uma visão interna, nos fixaremos no produto de uma intencionalidade, muitas vezes longa e contínua, na ereção de um personagem da história corrente. Alguns analistas da economia da cultura apontam que, tomando, por exemplo, o autor literário transformado em celebridade, essa celebridade cria uma espaço de atuação, de performance, que transcende até mesmo a figura do autor romântico como gênio266: seria como um direito conexo à autoria literária. para dizer que não é por acidente histórico que “a palavra pessoa, em sua acepção primeira, queria dizer máscara”, pois, conforme ele, em todos os lugares estamos desempenhando papéis. Na vida, ainda segundo Goffman, os papéis desempenhados revelam “o nosso mais verdadeiro eu”. (1999: 27-29). Conforme Ryngaert [RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996.], no teatro grego da Antigüidade Clássica, a máscara era exatamente a instância que cabia ao papel desempenhado pelo ator, papel este que não se confundia com quem o interpretava. A máscara distanciava o ator do personagem, resguardando sua individualidade, de forma que um e outro não se confundiam (1996: 126)”. PIMENTEL,Márcia Cristina,, op. cit. 265 Tomamos aqui a definição de um dos textos clássicos da propriedade intelectual, Hughes, Justin, The Philosophy of Intellectual Property, 77 Geo. L.J. 287, December, 1988: “Persona” is a term used when discussing the right of publicity and the right to one’s image, name, or likeness. Hengham & Wamsley, The Service Mark Alternative to the Right of Publicity: Estate of Presley v. Russen, 14 PAC. L.J. 181, 182 (1983).” Indeed, it is hard to say whether an author’s writing or an author’s persona is the better medium for expressing personality. The persona may be more important because it represents a whole character, image, and lifestyle, while an author’s written works consist of only specific expressions. On the other hand, a novel may be a more accurate representation of personality for some writers because the work is an intentional expression of the creator, while the persona is the individual’s intentional and unintentional actions combined with popular reaction to these actions. Indeed, it is difficult to fit personas into both the labor and personality theories of intellectual property. They are sometimes the result of hard work towards securing a public image based on an internal vision. But quite often they are creations of pure chance, perhaps the only “intellectual property” without intentionality.” 266 “Há direito conexo ao de autor (ou seja, o direito de interpretação), quando caracterizada a pessoa na representação de um determinado personagem (como um ator ou humorista enquanto vive um papel). 133

8. O do sujeito desse interesse Quem é o sujeito desse direito cuja existência se alvitra? É certamente “aquele que detém celebridade o suficiente para carrear interesse do público para os bens ou serviços a que eles se associam”; não é a simples condição de celebridade por quinze minutos a que celebrizou Andy Warhol267, mas a relativa perenidade que permite captar e manter o endosso268. Voltaremos abaixo a essa questão.

9. Do conteúdo econômico do constructo Vale estabelecer aqui qual o núcleo econômico dessa construção, que, como nota Newton Silveira em estudo relativo à noção de personagem

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Ambos não se confundem com o direito de autor propriamente dito, que incide sobre a obra intelectual, estética, de cunho literário, artístico ou científico (assim, na fotografia, na pintura, na cinematografia, na obra publicitária)” (CARLOS ALBERTO BITTAR, ob. cit., pág. 90)”. TJSP, Ac 199.530-1, Segunda Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, J. Roberto Bedran, 19 de outubro de 1999.LEX - JTJ - Volume 243 - Página 201 267 “The expression was coined by Andy Warhol, who said in 1968 that “In the future, everyone will be world-famous for 15 minutes.” http://en.wikipedia.org/wiki/15_minutes_of_fame. Na verdade a própria frase ilustra a noção de celebridade. Andy Warhol não criou coisa alguma. Na verdade, sem o benefício da celebridade, mas com a doação maior do talento, já dizia muito antes Lima Barreto: “Anedotas deste, casos com aquele, expedientes daquele outro, ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que parece, a figura de seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que nunca teve seu quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente esquecido” Clara dos Anjos. E, também: “Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de celebridade” O triste fim de Policarpo Quaresma. Mas também se encontra, por exemplo, em Gide: « Le vieux savant, théoricien buté, avait eu son heure de célébrité » (Si le grain ne meurt, 1924, p. 415). 268 O requisito da perenidade foi analisado em ANDACHT, Fernando, Uma proposta analítica da imagem da celebridade na mídia, encontrado em http://revistas.utfpr.edu.br/ct/tecnologiaesociedade/index. php/000/article/view/20/20, visitado em 6/12/2011. Quanto a diferença entre a celebridade relativa ou efêmera, e a que constitui o objeto de nossas cogitações, lembra o TRF2: “Ressalte-se, também, que há alguns anos, quando ainda não havia um acesso maciço aos meios de comunicação de massa, quando uma pessoa se celebrizava, havia um destaque imenso em torno dela, já que poucas eram as personagens realmente celebrizadas. Atualmente, há multiplicação de meios de telecomunicação. Há o youtube, a TV a cabo, tantos outros meios em acréscimo àqueles existentes, por exemplo, em meados da década de 80 do Século passado, que até mesmo o conceito de celebridade vem um tanto diluído na mídia, posto que vem ao lado de talvez uma ou mais centena de pessoas, também celebrizadas pela mesma mídia.” TRF2, AC 2003.51.01.540786-9, Primeira Turma Especializada do TRF 2ª Região, por unanimidade, JFC Marcello Ferreira de Souza Granado, 29 de março de 2011. Celebridade não é, e nunca foi, criação da mídia contemporânea. Como se lê num capítulo exatamente denominado “Celebridades” do livro Filomena Borges, de Aluísio Azevedo: “”Que frenesi! Todos queriam ser o primeiro a vê-la. O cais Pharoux parecia diminuir sob a multidão que o coalhava. Viam-se enormes grupos, esparsos, por aqui e por ali, galgando a muralha, invadindo as lanchas e os escaleres. Nas ruas faziam-se comentários a respeito da baronesa de Itassu; os jornais pregavam na parede notícias a respeito dela; vendia-se o seu retrato em todas as proporções; inventavamse biografias. Uns afirmavam que Filomena Borges era um modelo de virtudes; outros que era uma grande velhaca. Este jurava que a vira já muito por baixo, num hotel; aquele dizia que ela fora sempre riquíssima, e que só trabalhava em público por amor à arte. Aqui afiançavam havê-la visto, em tal época dançar uma habanera em casa de tal figurão; logo, ali, negavam: - Que não! que essa Filomena era outra, falecida havia já coisa de cinco anos, e que esta, a nova, a do teatro, não tinha absolutamente nada de comum com a outra, com a tal Filomena, cujos bailes, por tão luxuosos e originais, ainda se conservavam na memória de toda a gente!” 134

propriedade intelectual gráfico, se traduz no valor da notoriedade. Os elementos simbólicos da fama, naquilo que capturam a boa vontade do público, representam um dos mais relevantes potenciais de mercado da sociedade contemporânea.269 Sobre tal fenômeno, e seus efeitos jurígenos no campo da Propriedade Intelectual, discutimos seu impacto no direito de marcas270: Curiosamente, o fluxo simbólico interage com o econômico, mas com efeitos jurígenos. Uma marca solidamente registrada pode perder a exclusividade, pelo fenômeno da generificação, ou seja, no fluxo de comunicação a marca deixa de ser daquele produto ou serviço, originário do titular, e passa a ser um descritor funcional (celofane e fórmica são casos consagrados pela jurisprudência), que emigra para o domínio comum. Tal fenômeno será uma patologia da notoriedade, como sugere Faria Correa271, usando extensa e adequadamente da metáfora: A notoriedade, no seu sentido mais amplo, é o fenômeno pelo qual a marca, tal qual um balão de gás, se solta, desprendendo-se do ambiente em que originariamente inserida, sendo reconhecida independentemente de seu campo lógico-sensorial primitivo. A notoriedade é correlata à genericidade. A genericidade é o negativo (= imprestabilidade universal para servir como elemento de identificação de um produto ou serviço, por refletir, no plano lógico-sensorial, o próprio produto ou serviço). A notoriedade é o positivo (= idoneidade universal, absoluta para servir de elemento de identificação de um produto ou serviço). Notoriedade é magia e magia é a capacidade de se criar o efeito sem a causa, produzindo do nada. Notória a marca, e a sua utilização impregna de magia qualquer produto, tornando-o vendável. A vendabilidade do produto emerge do poder de distinguir, do poder de atrair o público. A construção da imagem-de-marca, em especial pelas técnicas persuasórias e de sedução, cria eficácia simbólica além do alcance da concorrência 269 COOMBE, op. cit.: “It is impossible to deny the potential value of the celebrity persona in an age of mass production and communications technologies. The aura of the celebrity is a potent force in an era in which standardization, rationalization and the controlled programming of production characterize the creation and distribution of goods and the capacity of mass media communications to convey imagery and information across vast distances is harnessed to ensure consumer demand. As mass market products become functionally indistinguishable, manufacturers must increasingly sell them by symbolically associating them with the aura of the celebrity - which may be the quickest way to establish a share of the market. It is suggested that fame has become the most valuable (and also the most perishable) of commodities and that celebrity will be the greatest growth industry in the nineties. 270 Proteção de Marcas, Lumen Juris, 2008, 3.1.2. Uso simbólico da marca e criação de direito. Vide, aliás, o texto de Dogan e Lemley, citado neste estudo, em que os autores correlacionam o interesse jurídico das celebridades sobre seu endosso como correlato ao interesso marcário de evitar a diluição das marcas, ou seja, o da notoriedade que, no nosso sistema jurídico, encontra guarida no art. 125 da Lei 9.279/96. 271 [Nota do original] CORREA, José Antonio B. L. Faria. “O Fenômeno da Diluição e o Conflito de Marcas”, Revista da ABPI, Nº 37, nov/dez 1998, p. 31. 135

e dos direitos de exclusiva. Ou seja, o significante da marca significa – aponta origens – que não necessariamente correspondem à circulação de produtos e serviços. O símbolo extravasa o mercado, o vinculum juris, ou ambos. Convencionalmente, dá-se a esse fenômeno o nome de notoriedade, eis que a marca capaz de ter esse efeito é descrita como notória272. Já falando do mesmo efeito, na construção de personagens no campo autoral, disse Newton Silveira, nos seu Ensaios e Pareceres273 A revista jurídica italiana “IL DIRITTO DI AUTORE”, de março/98, publica interessante artigo de Luciano Menozzi, sob o título “IMMAGINE E NOTORIETÀ NELLA COMUNICAZIONE ICONICA”.

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Embora o autor do texto se refira ao direito à imagem (direito de personalidade), e não ao direito de autor do fotógrafo (como no caso em exame), suas considerações têm plena aplicação ao tema da presente consulta. Referindo-se à notoriedade adquirida pela imagem de determinada pessoa, afirma: “Siamo qui all’estremo grado di oggettivazione dell’immagine di una persona, che arriva fino al punto di staccarla dalla persona reale.” E acrescenta: “In sostanza, può dirsi che il diritto positivo considera tradizionalmente l’immagine della persona prendendo come riferimento l’immagine nella sua realtà immediata e nei suoi riflessi morali, senza soffermarsi particolarmente su altri riflessi, che possano avere carattere diverso e valore prevalentemente commerciale. Le situazioni alle quali ci riferiamo sono ben diverse: sono situazioni che riguardano immagini non dirette della realtà, ma immagini che potremmo dire “di secondo grado”, rispetto alle quali la “notorietà” costituisce un elemento costitutivo dell’utilizzo delle immagini stesse.” Para concluir que: “Le immagini a cui ci referiamo... esistono solo in fuzione della loro “circolazione” e specialmente della loro utilizzazione per fini pubblicitari... Sono quindi situazioni nelle quali l’elemento economico è in primo piano e l’immagine notoria è trattata alla stregua di un bene commerciale.” 272 Id. Ead., 4.3.3. O extravasamento simbólico. 273 SILVEIRA, Newton, Direito autoral sobre “Mamíferos” Parmalat, 08/10/1998, Estudos e pareceres de propriedade intelectual, Lumen Juris, 2009. 136

propriedade intelectual A seguir, afirma: “...l’immagine con i mezzi di comunicazione di massa è diventata “un vero e proprio prodotto di consumo”.” destacando que: “immagine notoria” è infatti un “plus valore” E finaliza: “In conclusione, ci sembra di poter affermare che “l’immagine notoria” costituisce un bene immateriale autonomo rispetto all’immagine-ritratto; bene che per le sua caratteristiche e la sua funzione travalica l’ambito dei diritti della personalità come regolati dal diritto positivo e trova più consona collocazione fra i segni distintivi commerciali. Tutta la materia della publicità andrebbe comunque rivista in un’ottica che tenga conto dell’evoluzione sociale e del costume, con riconoscimento e regolamento di quel “right of publicity” del quale da tempo si parla.” Nessas condições, sem outras considerações acerca de obra coletiva, ou direito à paternidade, ou exploração comercial de obra artística, parece claro que, face ao contrato com a PARMALAT, as ilustrações de TOM ARMA assumiram, no território do contrato, uma importância comercial e uma capacidade de licenciamento com que não contavam antes, o que liga TOM ARMA à PARMALAT, obrigando o autor das ilustrações, da mesma forma que a PARMALAT no contrato, a não proceder de maneira que diminua ou prejudique a força publicitária com que as figuras e ilustrações agora contam. No campo dos direitos da personalidade, a questão da notoriedade introduz um diferencial específico274: O mesmo fenômeno também pode ser notado na publicidade que explora a imagem de pessoas notórias no Brasil. Segundo constatação de Carlos Alberto Bittar Filho: “O fenômeno ganha vulto em nossos tempos, em que a vinculação publicitária de pessoas bem-sucedidas em suas atividades representa estímulo ao consumo mediante a atração que exercem junto ao público; assim acontece com grandes estadistas, políticos, artistas, escritores, esportistas. Explora-se, nesse passo, a ânsia do espectador de se identificar com os seus ídolos, com os seus hábitos, os seus gostos, as suas preferências, levando-o, pois, ao 274 SOUZA, Carlos Affonso Pereira de, Contornos atuais do direito à imagem, Revista Forense – Vol. 367 Doutrina, Pág. 45 137

consumo do produto anunciado, direta ou indiretamente, conforme o caso.”275 Note-se que ambos os perfis do direito à imagem podem ser envolvidos em uma campanha publicitária, uma vez que se poderá explorar: (i) a fisionomia de determinada pessoa, com acento em particularidades físicas especiais que atraiam a atenção do consumidor; e/ou (ii) atributos de uma pessoa notória que estejam em consonância com as características do produto ou com o público-alvo da publicidade.

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A exemplificação do uso da imagem-retrato no âmbito da publicidade não apresenta maiores dificuldades, uma vez que basta apontar as obras publicitárias que exploram, como visto acima, celebridades para a divulgação de produtos pelo simples fato de as mesmas gozarem de notoriedade. Outras hipóteses poderiam ser indicadas, como a extensiva utilização de mulheres esculturais (ou, mais notadamente, de partes específicas de seus corpos) para a promoção de produtos cujo público-consumidor seja majoritariamente masculino. A imagem-atributo, por sua vez, encontra grande utilidade na produção de obras publicitárias, dado que a publicidade visa à persuasão do consumidor através de uma operação de reconhecimento, gerando, por fim, a necessidade de consumo. Com efeito, a publicidade busca proporcionar esse resultado através da identificação do consumidor com determinadas qualidades do produto ou atributos da pessoa utilizada na obra publicitária. Assim, introduzir em um comercial de curso de línguas estrangeiras para jovens um ator que possua expressividade junto ao público juvenil cumpre a função de identificação do consumidor com o produto. Da mesma forma, a utilização de um jogador de futebol conhecido pelo seu temperamento explosivo, e por vezes agressivo, em um anúncio de inseticida, ressalta a sua ação eficaz e mortífera no combate aos insetos. Trata-se de uma exploração de características da pessoa, não necessariamente físicas, que podem ser notadas através de seu comportamento nas relações sociais.

10. Da titularidade desse interesse Enfatizemos, por amor à precisão doutrinária, que o titular desse interesse será, em princípio, a celebridade a quem se imputam os atributos notórios do constructo276. 275 [Nota do original] Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho, Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 58. 276 Vale lembrar que o right of publicity americano tem sido categoricamente separado dos direitos pessoais, como notou Nimmer no texto doutrinário inaugural dessa nova categoria jurídica: “Moreover, since animals may be endowed with publicity values, the human owners of these non-human entities should have a right of publicity in such property . “ NIMMER, Melville B. , The Right of Publicity, 19 Law & Contemp. 138

propriedade intelectual Quem será seu originador? Oferecemos a hipótese de que – dentro de certos limites muito precisos - a celebridade se constrói a si mesma; sua persona dela mesma se origina como fulcro na deliberação de um constructo que se aliena de si mesmo para afirmar um valor de reconhecimento que seja autônomo do individuo tangível e sofrível. Provavelmente de um self-made man como Sílvio Santos isso será verdade. Num universo de image consultants, cujo ofício é, como descreve o Decreto dec. 82.385 de 05 de outubro de 1978 para o diretor de arte na obra cinematográfica, a construção plástico-emocional de cada personagem dentro do contexto geral, possivelmente em algum momento se verificará a cesura entre titularidade e autoria com que o direito tanto se debate. Voltaremos a essa questão ao discutirmos quem é o autor da persona no campo do direito autoral.

11. Dos ônus e dos benefícios de ser celebridade É parte dos direitos fundamentais o direito à informação277. Há, no entanto, uma barreira à informação, que é a esfera da intimidade, que a todos atine; dela se distingue, porém, a privacidade, que se esgarça na proporção em que a pessoa se faz ou se torna pública. Em muitos casos, como no dos políticos e servidores, essa redução é correlativa ao interesse público no acesso à informação a que lhes diz resProbs. 203 (1954). Como nota Husband, B. Paul Husband, Horses In Entertainment, Sports And The Law, encontrado em http://www.husbandlaw.com/~/media/Firm%20Galleries/Organizations/6/9/1/0/69102/ horses-entertainment.ashx, visitado em 26/11/2011, há alguma justificativa jurisprudencial, naquele direito, para tal afirmação. 277 “O direito à informação considera o ser humano tanto na dimensão coletiva, que se refere ao direito difuso do povo de receber informações, para que possa participar efetivamente da esfera pública, quanto na dimensão individual, que se refere ao direito de cada pessoa de receber e transmitir as informações necessárias para a formação das suas convicções, bem como o de expressar as suas opiniões.” (...) No direito nacional, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à informação em diversos dispositivos. Na perspectiva interna, tem-se a proteção da liberdade de consciência e de crença [art. {5.º, VI}, : “é inviolável a liberdade de consciência e de crença (...).”],e na perspectiva externa tem-se a proteção da livre manifestação do pensamento [art. {5.º, IV}: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; e Art. 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”],do livre exercício dos cultos religiosos e proteção aos locais de culto e a suas liturgias [art. {5.º, VI}: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”],da liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação [art. {5.º, IX}: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”; e Art. 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”] e da liberdade de acesso à informação [art. {5.º, XIV}: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.”].PALHARES, Cinara, Direito à informação e direito à privacidade: conflito ou complementaridade? Revista dos Tribunais | vol. 878 | p. 42 | Dez / 2008 | DTR\2008\727 139

peito278. De outro lado, nota-se essa redução de proteção no caso das celebridades, agora também por entender-se que teria havido um construção voluntária dessa notoriedade279. “(...) o grau de resguardo e de tutela das pessoas famosas e notórias não pode ser o mesmo do homem comum, até porque a fama e o prestígio costumam ser a meta optate de certas pessoas e celebridades e, assim, o meio e modo pelo qual obterão esse desiderato”5 Portanto, pode-se afirmar que essa invasão de privacidade por parte dos meios de comunicação (imprensa ou mídia) é consentida, ainda que de forma tácita, na medida em que não há fama se a imagem não é exteriorizada e divulgada pelos meios que a tecnologia dispõe.”280

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E o repete a casuística: “Por ser ator de televisão que participou de inúmeras novelas (pessoa pública e/ou notória) e estar em local aberto (estacionamento de veículos), o recorrido possui direito de imagem mais restrito, mas não afastado; - Na espécie, restou caracterizada a abusividade do uso da imagem do recorrido na reportagem, realizado com nítido propósito de incrementar as vendas da publicação;” STJ, REsp 1082878/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14.10.08 “É certo que uma das conseqüências da fama é a perda da privacidade, já que uma coisa implica na outra, reciprocamente: da notoriedade decorre uma maior exposição pública e desta exposição obtêm-se maior notoriedade. Assim, atores, cantores, jogadores de futebol e qualquer pessoa privada que se torna publicamente conhecida faz da exposição da imagem seu instrumento de trabalho, devendo estar mais acostumados a uma maior ingerência 278 “Assim sendo, é possível afirmar que a intimidade de uma pessoa não representa qualquer interesse público que justifique a sua violação, salvo raríssimas exceções, como para a apuração da prática de crime (caso seja necessário, por exemplo, escuta telefônica ou violação de correspondência e de domicílio). a privacidade, uma vez que envolve necessariamente uma face pública, comportará maior flexibilização em razão do interesse público envolvido. Portanto, dependendo da relevância social de determinado fato, ou de uma qualidade especial de um indivíduo, como é o caso das pessoas públicas (políticos, pessoas que exercem cargos públicos) ou famosas (artistas, cantores, pessoas notórias em razão da sua profissão), a esfera privada poderá ser reduzida (...)Pessoas famosas ou notórias no seu campo de atuação, consideradas “pessoas da história do tempo em sentido absoluto”, também sofrem maiores restrições à sua privacidade. Quanto às pessoas famosas, cuja atividade requer necessariamente a exposição à mídia (artistas, cantores, apresentadores de programas televisivos, participantes de reality shows etc.), a esfera privada sofre restrições por razões óbvias. Esses indivíduos construíram a sua imagem e a sua personalidade à custa da exposição pública, de maneira que, quando estiverem em locais públicos, é natural que ocorra interferência na sua vida privada. PALHARES, Cinara, op. Cit. 279 O consentimento é um elemento, mas não determinante, na delimitação dos interesses das celebridades quanto a sua persona. Como se verá mais adiante, há outros condicionantes que se impõem independentemente da vontade expressa ou tácita da pessoa famosa. 280 STOCO, Rui, Tratado de Responsabilidade Civil, Revista dos Tribunais, 7a edição, p. 1663 140

propriedade intelectual da mídia em suas vidas particulares, inclusive com uma interpretação negativa de atos e fatos que as envolva. No entanto, isso não significa que essas pessoas não sejam dotadas de intimidade, privacidade e honra, pelo simples fato de estarem sujeitas à maior exposição.” AC TJSP, 0287205-74.2009.8.26.0000, 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, unanimidade, Des. João Carlos Garcia, 24 de maio de 2011 Neste último caso, distingue-se o interesse público na informação, quando tais personalidades atuam em espaço ostensivo281, daquela informação a que preside o interesse privado, por exemplo, o uso como endosso de serviços ou produtos282. A questão aqui é claramente a da ponderação do interesse público283, que não se dissolve no interesse do público284: este, que deriva da notoriedade, pode ou não preponderar sobre o interesse à privacidade. Em quaisquer circunstâncias, distingue-se o interesse das celebridades no seu núcleo essencial de intimidade, a ser defendido com base na dignidade285, e o uso 281 “Portanto, duas são as situações a serem observadas: a) admite-se a utilização da imagem de pessoas famosas ou notórias em razão do direito à informação, presente o interesse público, caso em que a face pública da esfera privada poderá sofrer limitações (assim ocorre quando esses indivíduos comparecem em eventos sociais, espetáculos públicos, festas, teatro, ou seja, quando são fotografados ou filmados em locais públicos, pois a sua simples presença já denota interesse público)”. Idem, Eadem. 282 “ (...) quando a utilização da imagem comportar alguma finalidade, seja ela comercial ou até mesmo filantrópica, como a promoção declarada de alguma causa social, deverá, necessariamente, ser precedida de autorização, podendo ou não ser ajustada uma contraprestação.” Idem, Eadem. 283 “ (…) in any given case, the determination of appropriate relief should be made by balancing the relevant harms triggered by allowing unauthorized uses of publicity rights against the benefits that society derives from such uses.” Kwall, Roberta Rosenthal, The Right of Publicity vs. The First Amendment: A Property and Liability Rule Analysis. Indiana Law Journal, Vol. 70, p. 47, 1994. Available at SSRN: http://ssrn.com/ abstract=849745. No direito brasileiro, vale a observação: “A admissibilidade dessa limitação voluntária está ligada à interpretação dos direitos da personalidade a partir dos três extratos que os compõem: (i) núcleo duro: é sempre indisponível e inegociável, estando demarcada pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pela ética; (ii) a periferia: as limitações são admitidas apenas no caráter patrimonial, tendo como ponto de vista a relação de um terceiro como o titular do direito; e (iii) a orla: aceita-se as limitações, a partir de um ato de disponibilidade de vontade do titular do direito no exercício do mesmo, dentro da autonomia de cada um.” FREITAS, Luciana da Silva, Estudo de caso: a técnica da ponderação na colisão entre o direito à imagem e o direito de informação dentro da sociedade de informação, Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010, p. 3943. 284 “Não se pode confundir, no entanto, interesse público com interesse popular ou do público, que é mera curiosidade coletiva, muitas vezes movida pela maledicência ou até pela bisbilhotice mórbida.” D’Elboux, Sonia Maria, A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade: tensões e limites, Tese de Doutorado, FDUSP, 2005. 285 “Portanto, em todos os casos nos quais o interesse público não for de tal forma relevante, e não tendo a própria pessoa dado ensejo à informação depreciativa, o direito à informação não poderá significar uma violação da honra do indivíduo. A exibição da imagem de uma pessoa famosa em situação constrangedora, pelo simples prazer mórbido de se deleitar com a desgraça alheia, não pode ser admitida. É certo que entre essas situações extremas surgirão situações duvidosas, que exigirão a ponderação no caso concreto.” PALHARES, Cinara, op. Cit. Mas mesmo antes dos limites extremos, se garante por vezes a reserva da intimidade, por exemplo, quanto aos paparazzi: “Direito Constitucional. Direito Civil. Embargos Infringentes. Direito 141

parasitário para fins comerciais ou publicitários, que tende a recair na esfera de negativa ou interdição da celebridade286. Assim, a celebridade incorre primordialmente num ônus perante o dever geral de informação; como contrapartida da sua notoriedade, que se supõe lhes ser consentida e favorável287, ela deve suportar uma maior penetração.

12. Os deveres resultantes da construção da notoriedade

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A celebridade não eventual, mas deliberada, se faz pública, que se faz como pessoa da história tem sido onerada com esse acréscimo de exposição necessário, resultante do aumento do interesse público em sua atuação na sociedade288. Distingue-se ela, pela construção contínua e intencional, da pesà privacidade. Art. 5º, X da Constituição Federal. Artigo 20 do Código Civil. Exposição de atriz e sua filha menor, com cinco anos de idade, em matéria jornalística expressamente desautorizada antes da publicação. Violação do direito à privacidade e intimidade das autoras. Fotos clandestinas que destacam detalhes privados da vida da atriz e de sua filha com revelação do nome da escola em que estuda a pequena. Direito ao respeito e à preservação da imagem da menor. Infração ao disposto nos artigos 15 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A editora vende informação ao público e incontáveis vezes se vale de fotos tiradas por “paparazzi” para ilustrar suas reportagens que são lidas por um enorme público, cada dia mais fiel e ávido por conhecer detalhes sobre aspectos íntimos e privados da vida das celebridades. O confronto entre direitos fundamentais de índole constitucional tem sido decidido através de critérios de ponderabilidade, mas nunca é demais registrar que perante a Constituição Federal não há direitos absolutos ou ilimitados – nem mesmo os da mídia de qualquer natureza. Recurso desprovido.” TJRJ, Embargos Infringentes 008027436.2006.8.19.0001, Vigésima Câmara Cível, Des. Marco Antonio Ibrahim, 24 de agosto de 2011. 286 “Two types of publicity claims have raised particular problems for the courts. The first involves merchandising claims, in which individuals claim violation of their publicity right not by the use of a name in advertising, but by people who sell products that bear their name or likeness. Courts have generally resolved these claims by making a distinction between news or art, on the one hand, and merchandise, on the other - but as art and information become increasingly commodified, this distinction - if it ever made sense - has become ever harder to sustain. The second type of problematic claim involves cases in which a use draws attention away from the celebrity, or arguably sullies the celebrity’s reputation in some way that harms the overall value of her identity.” Dogan, Stacey L. and Lemley, Mark A., What the Right of Publicity Can Learn from Trademark Law. Stanford Law Review, Vol. 58, p. 1161, 2006. Available at SSRN: http://ssrn. com/abstract=862965 287 Aqui, a distinção da notoriedade involuntária, que restringe o acesso da informação da pessoa ao evento que a tornou objeto do interesse público, mas não justifica o excesso além desse. “Pessoas comuns podem, em determinados fatos da vida, tornar-se pessoas da história do tempo “em sentido relativo”. [BARROSO, Luís Roberto, Colisão entre liberdade de expressão e direitos de personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucional adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 270.] São pessoas envolvidas em acontecimentos da atualidade que revelam interesse à coletividade, como catástrofes naturais, graves acidentes, descoberta de algum fato importante para a humanidade, vítimas de perseguição racial ou social, conflitos sociais. Nesses casos, há redução da esfera de privacidade, mas que deve se limitar ao acontecimento notório e enquanto perdurar o interesse da coletividade.” PALHARES, Cinara, op. Cit. 288 “Segundo Manuel da Costa Andrade, “a doutrina e a jurisprudência maioritárias propendem hoje a subscrever, tanto no plano categorial como prático-normativo, a distinção proposta por Neumann-Duesberg entre pessoas da história do tempo em sentido absoluto e em sentido relativo (absolute e relative Personen der Zeitgeschichte). Pertencerão à primeira categoria as pessoas que na sua época lideram a vida política, econômica, social, cultural, científica, tecnológica, desportiva, do mundo do espetáculo, etc. 142

propriedade intelectual soa apenas colhida pela eventualidade de um acidente, de um momento em que sua atuação, ainda que involuntária, a faz objeto obrigatório do direito de informação. Assim, essa construção da notoriedade tem uma dupla projeção no campo do direito: a celebridade não fica impune, no campo social, de obrigações perante o direito de todos à informação, que lhe tolhem o exercício da privacidade. Parafraseando o dizer da constituição alemã, a celebridade obriga. Assim, a construção de si mesma como pessoa da história tem claras implicações jurídicas. A celebridade não desfruta de uma posição de privilégio imoderado ou irresponsável. O seu constructo é multidimensional, ainda quando a visão pública de sua projeção no tempo seja elaborada como fabulação, como uma deliberado tecimento de uma persona distinta de si mesma.

13. A distinção entre a pessoa e a persona Num importante acórdão, o STJ chegou por si à noção desse constructo distinto da pessoa, ainda que para discutir a questão no plano do direito de personalidade. Assim, ao discutir se Maitê Proença tinha o direito de desvincular-se de uma publicidade que acabou por apor-se a uma séria infração do Direito do Consumidor, o relator chegou a entender que a atriz como pessoa poderia – sim – ficar afetada pelo empréstimo de fama numa função de celebridade: Na publicidade, há a utilização, não só da imagem física, a chamada imagem-retrato, mas, também da imagem-atributo, que é reconhecida pela doutrina como sendo o conjunto de atributos de uma pessoa identificados no meio social. O Procurador Regional da República, Luiz Alberto David Araújo, assim a conceitua: “A imagem-atributo é conseqüência da vida em sociedade. O homem moderno, em seu ambiente familiar, profissional ou mesmo em suas relações de lazer, tende a ser visto de determinada forma pela sociedade que o cerca. Muitas pessoas não fazem questão de serem consideradas relaxadas, meticulosas, organizadas, estudiosas, pontuais ou impontuais. São característicos que acompanham determinada pessoa em seu conceito social. É importante verificar que tal característico não se confunde com qualquer e em relação às quais subsiste um interesse público de informação particularmente alargado. Um interesse que cobre toda a esfera da publicidade e se estende a muitos dos domínios em geral considerados como pertinentes à esfera da privacidade, stricto sensu” (Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal: uma perspectiva jurídico-criminal. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 262)”. PALHARES, Cinara, op. Cit. 143

outro bem correlato à imagem, como a honra, por exemplo, como será visto adiante. A palavra imagem, portanto, tem apresentado sentido diferente do utilizado inicialmente (e analisado pelos civilistas apontados acima). Trata-se de concepção moderna do termo.(...) Dessa maneira, podemos afirmar que existem duas imagens no texto constitucional: a primeira, a imagem-retrato, decorrente da expressão física do indivíduo; a segunda, a imagem-atributo, como o conjunto de características apresentados socialmente por determinado indivíduo.” (“A proteção constitucional da própria imagem”, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p. 31).

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Associar o nome ou a imagem de uma pessoa pública, seja desportista ou artista a produtos e serviços, prática comum e cotidiana na publicidade atual, permite agregar ao produto ou serviço as características positivas dessa personalidade que, graças ao seu prestígio e bom conceito, por certo, contribuirá na valorização do produto e/ou de seu fabricante. A propaganda, não raro, vincula um produto à imagem de uma pessoa. O que se busca é fazer crer que a coisa anunciada tenha as vantagens apregoadas pela pessoa que as afirma. E o efeito positivo do anúncio em muito dependerá do prestígio público de quem faz a propaganda. Compulsando os autos, verifica-se que a autora, ora recorrente, foi escolhida justamente por sua aceitação junto ao público. E principalmente o feminino, à conta da credibilidade conquistada, não só como atriz, mas pela participação em campanhas sociais, como “Ação da cidadania contra a fome e a miséria”; “O câncer de mama no alvo da moda”; “Ação criança” e “Pró-criança” (fls.555). Logo, não há como negar que a campanha promovida pela ré, na busca do resgate de seu nome junto ao público feminino, valeu-se do prestígio da atriz e, defeituoso o produto, pela qualidade ou quantidade, a imagem da autora foi atingida. Com efeito, em situações que tais, a credibilidade das pessoas ou da celebridade que faz o anúncio é transferida para o produto. O argumento de inocorrência de dano moral pelo fato de não haver vinculação do nome da autora ao produto é frágil. Não resiste, principalmente in casu, ante o fato de o próprio contrato prever o caráter testemunhal pelo qual a atriz devia garantir a segurança do produto e o conceito de seu fabricante, o que acabou por converter a atriz em intermediária de uma “ propaganda enganosa”. STJ, Resp 578.777 - RJ (2003/0162647-7), Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, voto do relator, Ministro Humberto Gomes de Barros, 24 de agosto de 2004. 144

propriedade intelectual Porém a maioria desvinculou enfaticamente a pessoa da atriz daquela imagem elaborada e ficcional da celebridade. Na distinção que veio a prevalecer, enfatizou-se o elemento emocional, mítico, que – como nota a análise argentina já citada – tem maior efeito do que qualquer vinculação racional: A campanha testemunhal foi contratada pela recorrida com o intuito de estimular os espectadores usuários a creditar, sob a nova embalagem de tom azul, segurança e confiança no produto MICROVLAR, cuja credibilidade estava abalada. Para tanto, a imagem-atributo da atriz recorrente foi utilizada, tão-somente, com o intuito de apresentar o novo produto e, assim, angariar simpatia dos espectadores para o novo padrão qualitativo do produto, então simbolizado pela troca da cor da embalagem. Neste contexto considerado, a vinculação da atriz ao produto se dá em estrita observância aos parâmetros eleitos pela publicidade divulgada, a saber, utilização de pessoa leiga no tema relacionado aos efeitos terapêuticos do fármaco (a atriz não é médica ou farmacêutica) , o que autoriza concluir que: a) a mensagem emitida pela campanha televisiva limitou-se tão-somente a estimular, mediante o uso da publicidade protagonizada pela atriz, o público a retomar sua crença no produto; b) no sentido prestado pela atriz, leiga quanto ao produto e todos os riscos de fabricação, condições de assegurar ao público, com rigor técnico e científico, as qualidades terapêuticas e segurança nos métodos de fabricação do medicamento; e c) como resultado dos itens ‘a’ e ‘b’: a campanha testemunhal não assegura ao público as qualidades do produto, apenas estimula-o a confiar nos novos parâmetros de qualidade. Conclui-se, assim, nos termos da fundamentação adotada pelo TJRJ, não ser factível a vinculação da honra-profissional de atriz, leiga no tema técnico, à credibilidade nos componentes qualitativos do produto MICROVLAR, porquanto o espectador reconhece na pessoa da atriz, tão-somente, o apelo artístico no afã de resgatar a credibilidade do anticoncepcional. (voto vencedor da Ministra Nancy Andrighi) A distinção entre a pessoa (objeto do direito de personalidade) e o constructo fica clara no mesmo voto: 145

Nesse contexto, distinção importante a ser feita é aquela estabelecida entre a pessoa da recorrente - no que concerne aos seus sentimentos, isto porque sempre esteve muito comprometida com campanhas sociais ou governamentais em prol da cidadania - e a atriz, profissional cujo conceito continua intacto no meio artístico e na opinião pública. Em conclusão, a análise de ofensa, ou não, à honra profissional constitui, nesses termos, a única questão a ser apreciada neste processo. E, pelos motivos expostos, inexiste dano moral à honra-profissional da recorrente, porquanto ausente a alegada vinculação entre ela e as características farmacológicas do anticoncepcional.

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Em outro voto, o Ministro Humberto Gomes de Barros enfatizou que o empréstimo de celebridade era apenas uma persona, e não punha em jogo a atriz, ela mesma: Por outro lado, se eu pudesse revê-los, pediria novamente vênia para dizer que, na verdade, a eminente, respeitada e querida recorrente fez um contrato de propaganda, no qual funcionou exercendo sua profissão de atriz. Há circunstâncias – não me lembro de a recorrente haver atuado como megera – em que várias atrizes exercem o papel de vilãs, por contrato profissional. Nem por isso, elas são contaminadas pelo personagem que estão encarnando. A recorrente continua a ser uma das grandes damas do teatro brasileiro. No caso em exame, a atriz reconhece que não garantiu a qualidade do produto, mas que simplesmente agiu como atriz. Se o personagem que representou não traduzia a realidade, a culpa não é dela, tanto que não perdeu prestígio ou credibilidade. Verdade é que Maitê Proença representou um papel, a de Maitê ­ roença, mas não a da pessoa natural, a que sofre, e sim a que corresponde à P imagem pública – a persona da celebridade. A natureza do contrato de celebridade, a que se vinculou Maitê Proença, aliás, se precisa e aresto paulista289: 289 Tive ocasião de discutir a figura em texto anterior : BARBOSA, Denis Borges, Nota sobre o Contrato de Patrocínio, in A Eficácia do Decreto Autônomo, Estudos de Direito Público, Lumen juris, 2003. “Não encontro no chamado “Contrato de Patrocínio” (não obstante as citações que lhe faz a Lei Rouanet) tipicidade que o caracterize como categoria jurídica a parte. No caso, quando o chamado patrocínio importa em compra antecipada dos exemplares, é pelas regras do contrato de compra e venda que se deve governar o negócio jurídico. Não me parece impossível o contrato de compra e venda de coisa futura, inclusive nas modalidades emptio spei e emptio rei speratae a que se refere a doutrina civilista clássica. Uma vez que realmente há uma apreciação qualitativa da obra, tal modalidade de compra se aproxima da coedição, dela só se distinguindo, por sua vez, pelo fato de que o Município não assume os riscos pela edição. Pagará, se e quando receber a edição. O que distingue este “patrocínio” da simples compra e venda de coisa futura é a consignação, nos exemplares a serem impressos, do endosso do Município, o que empresta talvez maior 146

propriedade intelectual “Como assinalei em meu voto lançado nos autos do AI ns 023069859.2010.8.26.0000 (990.10.230698-4), julgado nesta mesma oportunidade, o contrato de patrocínio, segundo doutrina do Dr. ALEXANDRE LIBÓRIO DIAS PEREIRA (da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), “designa uma série de contratos identificada e caracterizada pela sua função económico-social, a saber: a realização de uma forma especial de publicidade”. Ainda a respeito do tema, diz o ilustre estudioso da matéria: “Tratase, com efeito, de um instrumento de promoção da “imagem empresarial” do patrocinador, isto é, de um “instrumento da política de imagem” das empresas, mediante associação de um seu sinal distintivo, maxime a marca, à fama ou celebridade de uma pessoa e/ou à notoriedade do evento patrocinados, participando na repercussão mediática do seu êxito (“Imagetransfer”)”. TJSP, AC 0222466-83.2009.8.26.0100, 25a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, unânime, Des. Amorim Cantuária, 01 de março de 2011. Como dizem os votos, no caso de um endosso como a de Maitê Proença, transfere-se a imagem da celebridade, mas a imagem da persona construída290.

peso de prestígio à edição, assim como o propósito específico de viabilizá-la, mais do que de obter a coisa em si mesma. Este último ponto é que nos obriga a ponderar se o patrocínio, expressando o apoio do ente público, não seria sujeito à regra da isonomia, da transparência, da publicidade e da impessoalidade. O que se tem por inexigível é a satisfação de uma necessidade do Município pela aquisição de uma obra cuja fonte é única. Neste caso, não há, como se notou, demanda do produto em si mesmo, mas a verificação de uma eventual conveniência de que a obra venha à luz. Ocorre que quando a obra está por fazer-se, não existe a unicidade de fonte que torna inexigível a licitação. Pelo contrário, no mundo das possibilidades conceberse-ia um dicionário com desenho de Oscar Niemayer e texto de João Cabral de Mello Neto. O que indicaria a Constituição como caminho reto e límpido é a abertura de concurso, com o desígnio do Município sendo aberto à satisfação dos mais aptos. Pois quando os príncipes Esterhazy exerciam o mecenato subvencionando a obra de Haydn, faziam-no com patrimônio próprio. Exercer o mecenato com fundos públicos exige cuidados outros, que são os que o art. 37, caput, da Carta de 1988 aponta. O poder, quando público, e quando democrático, não admite o fulgor de um Vaux le Vicomte, e certamente marca menos a História com o alcance da visão dos administradores. Tais providências, que tendem a assegurar o princípio radicalmente democrático de que “todos devem ter acesso às oportunidades conferidas pela Poder Público”, têm toda a aparência de estulta burocracia. É esta natureza própria da Administração, por mais fúria que cause aos grandes espíritos.” 290 «Sous quelque titre que ce soit - droit des interprètes comme droit voisin en Europe, droit à l’image aux Etats-Unis et en Europe aussi -, les traditions juridiques protègent une double réalité : - l’acteur comme personne physique : James Dean, Alain Delon, Elisabeth Taylor comme individus. - l’acteur dans un rôle : Humphrey Bogart dans son imperméable du Faucon Maltais, Nicolaï Tcherkassof comme Ivan le Terrible, Marylin Monroe dans «Some Like It Hot». 9. Cette double réalité n’appelle pas les mêmes mesures de protection légale. Les considérations relatives au droit de publicité portent sur l’usage de l’image personnelle de l’acteur dans la commercialisation de produits («merchandising»)». DESSEMONTET, François, Les droits des acteurs face à la digitalisation, http://www.unil.ch/webdav/site/cedidac/shared/Articles/Dt%20des%20 auteurs%20digitalisation.pdf 147

14. Dos benefícios econômicos do constructo O principal resultante da notoriedade, ou pelo menos o que seria natural, é o que recai sobre a atuação célebre. O cantor famoso adquire seu próprio fundo de comércio, sua clientela, que lhe vem em retorno pelos ingressos e discos adquiridos; a socialite obtém acesso a meios e a facilidades que os obscuros precisam conquistar a grandes ônus291. Mas o objeto desse estudo é o valor econômico que resulta da transferibilidade da fama, seja pelo endosso de produtos e serviços de terceiros, seja pelo merchandising de imagens, seja pelas múltiplas oportunidades a que se referia David Vaver na citação inicial deste trabalho.

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Seja como tutela da imagem-atributo no âmbito do direito de personalidade, seja como elemento integral da exclusiva autoral, reconhece-se ao titular do direito sobre a persona um poder de negar, daí de autorizar, o uso comercial do objeto de seu interesse. Como se expôs, o próprio fundamento do interesse econômico que se discute, a notoriedade, garante à sociedade um uso público que lhe é vedado no caso da pessoa privada292. Os interesses contrapostos, aqui da sociedade como um todo, prevalecem frequentemente quando a personalidade famosa recai sob a atenção de todos, ou atua num sentido público. A não ser em limites muito estrei291 Tal notoriedade não importa só em poder econômico. O mais célebre sociólogo das celebridades, o ALBERONI, Francesco que escreveu L’élite senza potere, Bompiani, Milano, 1963, recentemente notou: “Ma a decidere chi arriverà sullo schermo e prenderà la parola è una élite formata dai grandi conduttori, divi, cineasti, cantanti, giornalisti, comici che si cooptano fra di loro. Essi si presentano come modelli da imitare, poi giudicano, danno consigli, lanciano slogan, animano e dirigono i dibattiti. Il tutto poi viene ripreso dai quotidiani, dai settimanali e da internet. Non esistono perciò più una élite del potere ed una élite senza potere, ma due élite del potere: quella politica e quella dello spettacolo. La prima si forma attraverso il dibattito politico e le elezioni, la seconda attraverso la cooptazione e l’audience. Inoltre le due sfere della politica e dello spettacolo spesso si sovrappongono e, nel campo del costume e dei valori, l’élite dello spettacolo tende a prevalere su quella politica. L’audience ha più peso del voto.” Lo spettacolo e la politica, sono le élite del potere, ‘il Corriere della Sera’ del 6 luglio 2009, pag. 1. Reagan, Schwarzenegger e Tiririca se elegem. 292 “Y es que no le falta razón al Juez Cabral Barreto cuando incide en el hecho de que Carolina de Mónaco ejerce, de hecho, un importante rol en la vida pública europea, que, creo también, justifica sobradamente su calificación como personaje público. Es más, a mi juicio, a los efectos que nos ocupan, en esa categoría estarían integradas incluso las personas que sin profesión conocida, hacen de la exhibición pública de su vida privada auténtica dedicación profesional, en definitiva, las personas -cada vez más numerosas- que se dedican al ejercicio de una auténtica “profesión”, la de famoso. (...) En esta línea, el propio TC ha entendido que personaje con notoriedad pública, es además del que “expone al conocimiento de terceros su actividad profesional”, el que “difunde habitualmente hechos y acontecimientos de su vida privada”. En ambas hipótesis, se corre el riesgo de que, tanto su actividad profesional, como la información revelada sobre su vida privada se pueda ver sometida a una mayor difusión de la pretendida por su fuente o a la opinión, refutación y crítica de terceros. Cfr. STC 134-1999, de 15 de julio (RTC 1999- 134).” PASCUAL MEDRANO, Amelia, Personajes públicos y derecho a la propia imagen, Puntolex, Santiago,Chile 2009-11-20 14:47:08.352248-03. 148

propriedade intelectual tos293, a celebridade tem menos poderes sobre si mesma do que a pessoa comum; ela é pública. Mas se reconhece a ela certos interesses que toda a pessoa tem294, mas que são economicamente mais significativos quanto às pessoas famosas. Essencialmente, se reconhece a elas o poder de não endossar com sua celebridade determinadas atuações de cunho econômico 295. Neste caso, não vigora a limitação que impede as pessoas famosas de resistir à própria notoriedade em face do interesse de informação296. Dá-se assim, às celebridades, o poder 293 “Sin duda, la decisión final del magistrado se enrola en la doctrina que entiende que aún siendo muy elevado el nivel de notoriedad que posea una persona, no implica desconocer que goza de la prerrogativa del derecho a la intimidad. Efectivamente, el carácter de celebridad de un determinado individuo, no autoriza la publicidad indiscriminada, ni suprime la protección de su esfera privada. Máxime cuando las fotografías difundidas, en modo alguno revistan carácter de interés público. Ciertamente, esta tesis parece la más adecuada a fin de garantizar una convivencia armónica entre dos derechos fundamentales, que se encuentran en constante antagonismo.” BASTERRA, Marcela I., El Derecho a la Intimidad como límite a la Libertad de Información. A propósito del caso “V., J. s/medidas precautorias” Publicado en: DFyP 2011 (octubre), 243. 294 SANTOS, Roberto Martinho dos, O Direito à Imagem no Direito Desportivo: Suas Virtudes Comerciais e Publicidade. Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 11 | p. 147 | Jun / 2007 | DTR\2011\2157: EZABELLA, Felipe Legrazie. O direito desportivo e a imagem do atleta. Monografia (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, USP. IOB Thomson, 2006. “O consentimento quanto a utilização da imagem não se presume unicamente pelo fato da pessoa retratada ser famosa ou atuar no mundo artístico, ou por não auferir-se vantagem econômica, ou mesmo pela ausência de resistência do retratado no momento da captação da imagem, devendo-se levar em conta uma conjunção de fatores, tais como a habitualidade da pessoa consentir na sua retratação, a sua notoriedade, a sua ausência de relação com a vida privada ou violação à honra, a finalidade de utilização e outros, nem sempre sendo tarefa simples dirimir-se tal controvérsia havendo arrependimento posterior do retratado. Admitindo-se a possibilidade de haver consentimento tácito quanto à utilização da imagem, aquele somente se evidenciará pela atitude de tolerância do retratado, e o ônus da sua demonstração compete àquele que dela se utiliza” ( A pessoa pública e seu direito de imagem: políticos, artistas, modelos, personagens históricos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 42). 295 A questão do consentimento presume na aceitação do vínculo de algum aspecto da pessoa a um endosso de atuação publicitária. Vide o Código Civil da California, em dispositivo incluído em 1971: CAL. CIV. CODE § 3344 : California Code- Section 3344- (a)Any person who knowingly uses another’s name, voice, signature, photograph, or likeness, in any manner, on or in products, merchandise, or goods, or for purposes of advertising or selling, or soliciting purchases of, products, merchandise, goods or services, without such person’s prior consent, or, in the case of a minor, the prior consent of his parent or legal guardian, shall be liable for any damages sustained by the person or persons injured as a result thereof. (...) (d)For purposes of this section, a use of a name, voice, signature, photograph, or likeness in connection with any news, public affairs, or sports broadcast or account, or any political campaign, shall not constitute a use for which consent is required under subdivision (a).(e)The use of a name, voice, signature, photograph, or likeness in a commercial medium shall not constitute a use for which consent is required under subdivision (a) solely because the material containing such use is commercially sponsored or contains paid advertising. Rather it shall be a question of fact whether or not the use of the person’s name, voice, signature, photograph, or likeness was so directly connected with the commercial sponsorship or with the paid advertising as to constitute a use for which consent is required under subdivision (a). (...) 296 “Igualmente, para uso de imagem fotográfica de jogadores de futebol ou de artistas em figurinhas para colocar em álbuns (RJTSSP, 11:71), ante o intuito especulativo, será preciso a autorização dos retratados, não vingando o argumento de que são personagens da história contemporânea. Tal argumento só seria admitido em favor de imprensa falada, escrita ou sonora, a título de informação jornalística (RJTJSP, 44:61; RT, 519:3). Assim, se alguém quiser reproduzir fotografia de um cantor famoso em propaganda de alguma promoção, desfile, campanha ou produto, deverá pedir sua autorização e remunerá-lo sob pena de ter de 149

de autorizar ou negar esse uso297 Assim, a falta da autorização, ou o excesso em face do uso consentido importa, no plano do direito de personalidade, ao poder de interditar298, e ao direito à indenização299. O extrato jurídico desse poder pode ser encontrado em duplo fundamento: tanto no direito de personalidade quanto, o que cobre também uma pretensão autoral, o simples locupletamento: “Direito a imagem. Fotografia. Publicidade comercial. Indenização. A divulgação da imagem de pessoa, sem o seu consentimento, para fins de publicidade comercial, implica em locupletamento ilícito a custa de outrem, que impõe a reparação do dano. Recurso extraordinário não conhecido. (...) “Aí é

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pagar uma indenização. A divulgação da imagem de uma pessoa, sem o seu consentimento, para fins de publicidade comercial, implica locupletamento ilícito à custa de outrem, que impõe reparação do dano (RT, 568:215).” DINIZ, Maria Helena. Novo Código Civil Comentado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, p. 89. 297 O que não significa que esse consentimento deva ser formal e explícito: “Todos os famosos que se hospedam na ilha convivem com ações de marketing de empresas privadas, eis que o projeto “ilha de caras” somente pode ser viabilizado em razão das empresas que patrocinam os eventos realizados na ilha. Restou comprovado que, embora não houvesse autorização escrita da parte autora, havia autorização tácita da mesma, tendo em vista que a apelante, bem como todas as celebridades que se hospedam na ilha de caras sabem que as fotos tiradas serão publicadas na revista e que as mesmas podem eventualmente contemplar alguma marca de empresa que patrocina o evento. O artigo 20 do código civil brasileiro e o artigo 79 do código civil português não exigem que a autorização seja expressa, podendo ser tácita.” TJRJ, AC 042234946.2008.8.19.0001, Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo, 09 de fevereiro de 2011. 298 ADLERS, Leandro Bittencourt, O cabimento da tutela inibitória na defesa de direitos fundamentais e da personalidade violados por excesso na liberdade de expressão e informação, Revista de Direito Privado | vol. 31 | p. 303 | Jul / 2007 | DTR\2007\446. “A doutrina é uníssona em reconhecer a utilidade da tutela inibitória em casos de ofensa ao direito à imagem por meios de comunicação, até porque isso está previsto no art. 12 e 21, do Código Civil, valendo mencionar a obra de EDUARDO TALAMINI, Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer, RT, 2001, p. 440, que sugere aplicação da multa para dissuadir o ofensor. No campo da informática, destaca-se a doutrina autorizada de DEMÓCRITO RAMOS REINALDO FILHO [Responsabilidade por publicações na Internet, Forense, 2005, p. 149] e RICARDO LUIZ LORENZETTI [Comércio Eletrônico, RT, 2004, p. 435]. ELIMAR SZANIAWSKI afirmou [Direitos de personalidade e sua tutela, 2ª edição, RT, p. 2005]: “A vítima terá por escopo obter, por parte do Judiciário, a cessação da execução da violação. A interdição da perturbação dar-se-á através de tutela inibitória, que além de fazer cessar o atentado atual e contínuo, removendo os efeitos danosos que são produzidos e que se protraem no tempo, possui natureza preventiva contra a possível prática de novos atentados pelo mesmo autor. As ações típicas destinadas para tutelar preventivamente a vítima de atos atentatórios ao seu direito de personalidade, consiste na ação inibitória antecipada, na ação de preceito cominatório, da tutela antecipada e das medidas cautelares atípicas, como a busca e apreensão e o seqüestro, e das medidas cautelares atípicas”. TJSP, Ag 472.738-4, 4ª Câmara Direito Privado, Ênio Zuliani. 299 “São, basicamente, três as formas de violação do direito à imagem: quanto ao consentimento, quanto ao uso e quanto à ausência de finalidades que justifiquem o uso da imagem sem o consentimento do titular. O primeiro caso, como nos parece elementar, é quando a imagem de alguém é utilizada sem autorização de seu titular; o segundo caso é quando, muito embora tenha havido tal consentimento, o uso feito da imagem extrapola os limites da autorização concedida; e o terceiro caso é quando, embora se trate de imagem de pessoa célebre, ou fotografia de interesse público, a maneira como a imagem é utilizada não permite que seja invocada a exceção.” FAVA, Irineu Jorge, O (abuso) do direito à própria imagem na publicidade. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) – PUC/SP, São Paulo, out. 2004, p. 139. 150

propriedade intelectual que se surpreendeu a ilicitude e se estabeleceu o fundamento para a reparação. Tirando proveito econômico da utilização da imagem da sambista, sem o seu consentimento e sem que se lhe retribua por uma apropriação que é significante economicamente, e portanto, pagável, o Recorrente incorreu em mácula de locupletamento ilícito à custa de outrem, ou de enriquecimento injusto, princípios consagrados que impõem a reparação do dano”. STF, RE 95.872.RJ(DJ 1º.10.82), Ministro Rafael Mayer “o direito à imagem reveste-se de duplo conteúdo: moral, porque direito de personalidade; patrimonial, porque assentado no princípio segundo o qual a ninguém é lícito locupletar-se à custa alheia. A utilização da imagem de cidadão, com fins econômicos, sema sua devida autorização, constitui locupletamento indevido, ensejando a indenização. O direito à imagem qualifica-se como direito de personalidade, extrapatrimonial, de caráter personalíssimo, por proteger o interesse que tem a pessoa de opor-se à divulgação dessa imagem, em circunstâncias concernentes à sua vida privada. Em se tratando de direito à imagem, a obrigação da reparação decorre do próprio uso indevido do direito personalíssimo, não havendo de cogitar-se da prova da existência de prejuízo ou dano. O dano é a própria utilização indevida da imagem, não sendo necessária a demonstração do prejuízo material ou moral.” STJ, REsp 267529/RJ, Quarta Turma, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 03/10/2000, DJ 18/12/2000 p. 208, JBCC vol. 187 p. 407. “Na lição de Jacqueline Sarmento Dias, “a falta de consentimento para a divulgação da imagem, o merchandising sem autorização, o desrespeito dos limites acordados entre as partes são formas de violação do direito à imagem. Podemos acrescentar, ainda, o simples fato da usurpação do poder de exclusividade que cabe à pessoa, com relação à sua imagem, mesmo diante da não caracterização de conseqüências danosas.” (O Direito à Imagem, Del Rey, p. 143). No presente caso, a violação do direito à imagem da autora ainda é mais evidente, pois o seu uso não autorizado teve inequívoco intuito comercial, para fins de publicidade. De nada adianta a apelante insurgir-se contra tal assertiva, pois é óbvio que se valeu da boa figura da autora para aumentar a venda de roupas e produtos de beleza e estética. As fotografias dos painéis publicitários que instruem a inicial constituem provas veementes da utilização ilícita de imagem alheia para fins comerciais.” TJSP, AC 469.161.4/0-00, Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, Des. Francisco Loureiro, 10 de abril de 2.008.

15. A responsabilidade pelo endosso Parte da doutrina, de outro lado, aponta que o aproveitamento da notoriedade pelo endosso de produtos e serviços de terceiros, que é um po151

der que se reconhece300, importa em responsabilidade. Tal responsabilidade é distinta do simples ônus de tolerar a perda de privacidade; como a notoriedade é utilizada para proveito próprio, e de cunho econômico muitas vezes diverso da simples prática da atividade célebre, se estabelecem parâmetros e contenções em favor do público que sofre e frui dos efeitos passivos da fama. Do ponto de vista do ordenamento privado do mercado publicitário, o Código de Ética do CONAR (Anexo Q)301 impõe tais obrigações à atividade de uso do endosso: Testemunhais, Atestados, Endossos 2. Testemunhal de pessoa famosa: é o prestado por pessoa cuja imagem, voz ou qualquer outra peculiaridade a torne facilmente reconhecida pelo público. (...)

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“(a) o anúncio que abrigar o depoimento de pessoa famosa deverá, mais do que qualquer outro, observar rigorosamente as recomendações do Código; (b) o anúncio apoiado em testemunhal de pessoa famosa não deverá ser estruturado de forma a inibir o senso crítico do consumidor em relação ao produto; (c) não será aceito o anúncio que atribuir o sucesso ou fama da testemunha ao uso do produto, a menos que isso seja comprovado e; (d) o anunciante que recorrer ao testemunhal de pessoa famosa deverá, sob pena de ver-se privado da presunção de boa-fé, ter presente a sua responsabilidade para com o público.” De outro lado, ressalta-se o entendimento de certa doutrina pela responsabilização da celebridade, ela mesma302. Essa responsabilidade pode 300 O endosso é uma das formas de aproveitamento econômico da persona da celebridade; como representa uma atuação consensual em face de um produto ou serviço, induz a um empréstimo específico de notoriedade. Outra forma seria o merchandising de imagem: RUIJSENAARS, Heijo E., The WIPO Report on Character Merchandising, IIC 1994 Heft 4 532. “Character merchandising is defined by the Report as “the adaption or secondary exploitation, by the creator of a fictional character or by a real person or by one of several authorized third parties, of the essential personality features of a character in relation to various goods and/or services with a view to creating in prospective consumers a desire to acquire those goods and/or to use those services because of the consumers’ affinity to that character”. The following examples are given by the Report:- A toy being the three-dimensional reproduction of the fictional character “Mickey Mouse”; - a T-shirt bearing the name or image of the fictional characters “Ninja Turtles”; - a perfume bottle labelled with the name “Alain Delon”;- tennis shoes bearing the name “André Agassi”;- an advertising movie campaign for the drink Coca Cola Light showing the popstar Elton John drinking Coca Cola Light.” 301 Encontrado em http://www.conar.org.br/html/codigos/todos%20os%20capitulos.htm, visitado em 28/11/2011. Para as regras americanas, vide http://www.ftc.gov/os/2009/10/091005revisedendorsementguides.pdf, visitado em 30/11/2011. 302 O já citado Guimarães, Paulo Jorge Scartezzini, A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam, ed. RT, v. 16, 2001, p. 155. Mas também ALVAREZ LARRONDO, Federico M., La responsabilidad de las celebridades por su participación en publicidades, RCyS 2010-II, 44 e, num 152

propriedade intelectual chegar à esfera penal303.

16. Da construção da persona no campo da propriedade intelectual Do que já se citou, parece pelo menos razoável entender que a persona, como constructo, tenha proteção em direito, e em particular, no nosso direito. Tanto a elaboração no campo do direito de personalidade, quanto, no caso brasileiro, a relevância da construção específica do direito das celebridades esportivas apontam para um direito absoluto304, ainda que não como fruto de direitos exclusivos da propriedade intelectual. sentido diverso, RODRIGUES JUNIOR, Álvaro, A responsabilidade civil dos apresentadores de programas de rádio e televisão pela publicidade enganosa ou abusiva, Revista de Direito do Consumidor | vol. 46 | p. 305 | Abr / 2003 | DTR\2003\. Este último nota: “Contudo, ao vincularem a sua imagem ao produto, visando tão-somente ao lucro, sem qualquer preocupação com a qualidade do produto ofertado ao consumidor, os apresentadores “assumem, diante do consumidor, uma posição de garante”, pois a credibilidade que as pessoas têm no apresentador é imediatamente transferida para o comercial, acarretando em grande credibilidade ao produto anunciado. É evidente que nesses casos o apresentador do programa torna-se parceiro, ou melhor, verdadeiro aliado do fornecedor, pois transforma-se no principal meio de propagação dos produtos do fornecedor.” 303 O CDC considera crime “fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa” (art. 67). “Ademais, o juízo de enganosidade levará em conta, além das informações falsas propriamente ditas, outras que sejam ambíguas e até aquelas que, embora sendo literalmente verdadeiras, emanem um entendimento global - a impressão total - capaz de induzir em erro o consumidor.” BENJAMIN, Antonio Hermen de Vasconcellos e, A repressão penal aos desvios do “marketing”, Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 6 | p. 87 | Abr / 1994 | DTR\1994\507. Embora a doutrina não venha citando a celebridade, veja o CDC: “Art. 75. Quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste Código, incide nas penas a esses cominadas, na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas”. 304 Há uma certa alergia, mas atécnica, em se classificarem certos interesses jurídicos como absolutos. Em no fazendo, apenas seguimos a mansa acepção de que esses interesses não são relativos. Classificando esses interesse de que falamos como absolutos: “Converge a doutrina em estabelecer que são os direitos da personalidade absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, necessários, inatos, vitalícios, indisponíveis e irrenunciáveis. Diante dessas características e por sua própria natureza podemos dizer que estes são oponíveis erga omnes, implicando em dever de abstenção geral, sendo imposto à generalidade dos homens e, inclusive, ao Estado. “ MOTA, Mateus Scisinio, Direitos de imagem e de arena: reposicionando questões controvertidas, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 18 | p. 88 | Jul / 2010 | DTR\2010\957. “Considerando que a imagem constitui um direito de personalidade, inato, absoluto, extrapatrimonial, imprescritível, impenhorável, vitalício, necessário, oponível erga omnes e de caráter personalíssimo, protegendo o interesse que tem a pessoa de opor-se à divulgação dessa imagem, em circunstâncias concernentes à sua vida privada, deve-se destacar que a imagem de pessoas notórias, como a dos atletas, não pode ser utilizada com fins econômicos, sem a devida autorização do titular.” EZABELLA, Felipe Legrazie, , Direito de Arena, Revista Brasileira de Direito Desportivo | vol. 3 | p. 84 | Jun / 2003 | DTR\2011\2028. O mesmo se dirá dos direitos “morais” do campo estritamente autoral: ESPÍRITO SANTO, Marcelo do, Omissão e inclusão indevida de créditos autorais: aspectos peculiares da autoria e coautoria das criações intelectuais, Revista de Direito Privado | vol. 32 | p. 201 | Out / 2007 | DTR\2007\626: “Essa assertiva se fortalece quando se percebe que determinadas características emanam dos direitos morais, quais sejam: i) é irrenunciável- o autor não pode renunciar, abandonar, desprezar os seus direitos morais; ii) é imprescritível- não prescreve e pode ser reclamado por via judicial a qualquer tempo; é perpétuo- não se esvai com o tempo; iii) é inalienável- mesmo na hipótese de cessão ou licença de seus direitos patrimoniais, os direitos morais se conservam íntegros; é impenhorável- não pode ser alienável; iv) é absoluto- é oponível contra todos ( erga omnes); v) é extrapatrimonial - não pode ser quantificado em termos pecuniários.” 153

No entanto, cabe-nos apontar para uma faceta específica da proteção da persona das celebridades, que é a sua deliberada construção como personagem de si mesmas, como um dos heróis de nossa contemporaneidade, mas herói ficcional ou pelo menos fabular305. A par da construção de um direito sui generis das celebridades, tem sido adiantada a proposta de subsumir tal interesse jurídico tanto ao campo autoral, quanto ao direito de marcas306. Quanto este último, é de se notar que já Gama Cerqueira já o consignava307; mas não será objeto de nossas cogitações neste texto308, muito embora ilustrada doutrina milite no sentido de ser

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305 Na observação acima, “o herói atual tem sua narrativa “construída” segundo um padrão midiático para corresponder aos anseios do público.”, Vieira, M., op. Cit. 306 O direito britânico tem sido algo reticente na consagração dos interesses das celebridades. No entanto, anteciparam-se a muitos outros regimes no campo da proteção das marcas de pessoas famosas, para as quais permitem um efeito similar a do art. 125 da lei brasileira, ou seja, proteção em múltiplas atividades. “The Notice recognises that, in many cases, the famous name attached to any product will indicate to consumers that the product is “about the person whose name it is rather than as an indication that the goods/services are supplied by, or under the control of, one undertaking.”25 In this situation, any use of the celebrity’s name in relation to the product will not be taken as an indication of the origin or quality of the goods, the purposes usually performed by trade marks, but as descriptive of the subject matter of the goods. Where the use is purely descriptive it will of course fall within the absolute grounds for refusal set down in section 3(1)(c) of the Act.” DAVIES, Gillian, Celebrity and Trade Marks: the next installment, Scripted, Volume 1, Issue 2, June 2004, DOI: 10.2966/scrip.010204.230 307 É de se notar a curiosa apreensão de Gama Cerqueira, no no. 174 de seu Tratado, ao cuidar do personagem e da celebridade no tocante às marcas, denotando sempre a autonomia do personagem em face da simples representação gráfica: “Tratando-se do retrato de pessoas célebres, de personagens históricas, ou da representação de personagens fictícias, quem primeiro o tiver adotado como marca está no direito de impedir o uso do retrato da mesma pessoa ou personagem para distinguir artigos similares, ainda que a pessoa seja representada em atitude diferente ou que o retrato se diferencie por detalhes diversos, pois, nesses casos, o que constitui ou caracteriza a marca é mais a personalidade representada do que o próprio retrato.” Note-se que tal consideração é ainda mais pertinente a luz da atual lei, a respeito da qual dissemos: “8.1.7.1. Conciliação com outros tipos de proteção: direito autoral. Como vimos, não podem incorporar-se à marca registrada obra literária, artística ou científica, assim como os títulos que estejam protegidos pelo direito autoral e sejam suscetíveis de causar confusão ou associação, salvo com consentimento do autor ou outro titular. Assim, protege-se, no caso, direito exclusivo alheio. Superaram-se no texto vigentes algumas notáveis omissões do dispositivo anterior. Com efeito, somente era irregistrável o nome da obra; não havia referência, por exemplo, a seus personagens característicos, ou (o que é especialmente relevante no caso de marca) ao seu próprio texto. (...) Não pode integrar marca um desenho artístico, um nome, personagem ou texto de terceiros, salvo autorização, desde que haja possibilidade de proteção por direito autoral.”. Proteção da Marcas, Lumen Juris, 2008. 308 Nota-se também a hipótese de proteção da persona pela concorrência desleal, desde que haja concorrência. Como se lê em outro trecho deste estudo, Hermano Duval menciona mesmo a hipótese de uma proteção extra-concorrencial das personas através da chamada concorrência parasitária. Este parecerista não subscreve essa hipótese. Como notou sobre nossa posição um aresto paulista: “Discorrendo acerca do parasitismo, Wilson Pinheiro Jabur, citando o Professor Denis Barbosa, leciona que “...apenas no caso de que se possa induzir confusão entre o público quanto à origem dos produtos ou serviços, ou quando possa ocorrer o denigramento do titular original, ou ainda diluição de sua marca no mercado, se teria algo contra o que se poderia argüir, no caso, alguma iniqüidade da regra da livre concorrência. Ou seja, não é o parasitismo, mas a lesão sobre o parasitado que se visaria prevenir e compor” (BARBOSA, 2003, p.321) (Criações Industriais, Segredos de Negócio e Concorrência Desleal, Ed.Saraiva, série GVlaw). “Frise-se que a cópia servil ou o aproveitamento parasitário, ou seja, a imitação dos elementos característicos de um produto ou serviço ou estabelecimento, do aviamento de uma empresa, quando feito em seus aspectos 154

propriedade intelectual sua topologia mais adequada309. Nossa tarefa é sugerir a construção desse interesse no campo autoral. Por que fazê-lo? Dir-se-ia que a simples proteção da imagem-atributo no campo do direito da personalidade o bastaria. Mas não é fato. Na verdade, como se viu, a casuística distingue a proteção da pessoa da celebridade e o interesse relativo à persona como constructo. Esse constructo não necessariamente terá o abrigo dos direitos de personalidade. De outro lado, o constructo da persona tem características de criação intelectual, minuciosamente análogos a de uma personagem. Há índices, que este parecerista sente como relevantes, que fazem da persona uma obra de fabulação310, se não de ficção. Muitas razões há para prevenir a extensão de novos objetos de direito autoral; mas tais razões são essencialmente ligadas à expansão das exclusivas, sem consentânea contrapartida dos direitos de acesso do público às obras protegidas. Quando se postula o reconhecimento de novos objetos, no funcionais, necessários para o funcionamento de um negócio semelhante, ou para a elaboração de um produto, ou prestação de um serviço, até pratica um ato de concorrência parasitária, mas este ato não é per si um ato ilícito nem de concorrência desleal.” “A concorrência parasitária será a concorrência desleal, quando constatada neste ato a possibilidade de confusão entre produtos, serviços e estabelecimentos de origens distintas.” TJSP, APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n° 648.585-4/9-00, Sexta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Des. Reis Kuntz, 06 de agosto de 2009. 309 “Yet a review of the cases and literature reveals that no one seems to be able to explain exactly why individuals should have this right. A right of privacy can’t justify it, for the right of publicity has been applied in a wide range of situations that don’t implicate privacy at all. Some commentators have proposed a natural or moral right of control over one’s name or likeness, but there seems no policy justification for giving such control, and the absence of such a right in most of the world and indeed throughout most of U.S. history should make us skeptical of claims based on some consensus moral belief. The moral claim to own uses of one’s name also seems inconsistent with the absence of natural or moral rights justifications for other forms of intellectual property. Of late, and particularly in the merchandising and dilution-like cases, courts and commentators have turned to the incentive-based rationale underlying copyright law in search of both a justification for and limitations on the right of publicity. Reasoning that the right of publicity gives individuals the incentive to develop valuable personas, courts reason that depriving them of the fruits of their labors will interfere with those economic incentives. Some courts have even gone so far as to create a fair use doctrine, importing from copyright law judicially created limits on the enforcement of the right. This approach turns the right of publicity into a new form of intellectual property, one based explicitly on analogies to and justifications for real property. (…)A proper understanding of the right of publicity would draw more completely on trademark principles, limiting the right to circumstances in which the use of an individual’s name or likeness is either likely to confuse consumers or is likely to dilute the significance of a famous name.” DOGAN, Stacey L. and LEMLEY, Mark A., What the Right of Publicity Can Learn from Trademark Law. Stanford Law Review, Vol. 58, p. 1161, 2006. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=862965. Note-se, porém, que na análise de Posner, essa perspectiva apenas atenderia a um dos interesses econômicos das celebridades, e não a ambos. 310 .Quint. 2, 4, 2 : haec res agetur nobis, vobis fabula, Plaut. Capt. prol. 52 : peregrino narrare fabulas, id. Men. 5, 1, 24 : num igitur me cogis etiam fabulis credere? quae delectationis habeant quantum voles ... auctoritatem quidem nullam debemus nec fidem commenticiis rebus adjungere, etc., Cic. Div. 2, 55, 113 ; cf.:fictis fabulis, id. Mil. 3, 8 : antiquitas recepit fabulas, fictas etiam nonnumquam incondite, id. Rep. 2, 10; cf.: a fabulis ad facta venire, id. ib. 2. LEWIS, SHORT, Ed. A Latin Dictionary, Claredon Press, 1879. 155

entanto, com aplicação dos limites e condicionantes do exercício, que garantem a legitimidade desse exercício, no entanto, não há que se ver lesão, mas enriquecimento dos interesses somados, públicos e privados, que incidem sobre o objeto em questão. Assim é que, após propugnar pela hipótese do direito autoral da fabulação das celebridades, nos demoraremos nos condicionantes de seu exercício, em minucioso cuidado por seus limites e sua função social.

17. Do constructo como criação intelectual  a) O que é criação intelectual

Denis Borges Barbosa

Como já mencionado acima, definimos “criação intelectual” da seguinte forma: Para os fins de nosso estudo, é a “criação intelectual”. Um corpo de conhecimentos tecnológicos, ou texto literário, musical ou científico, ou um desempenho de intérprete suscetível de fixação, ou um artefato (escultura, quadro...). Algo que, sempre intelectual (pois distinto de qualquer materialização), seja:  b) destacado do seu originador, por ser objetivo, e não exclusivamente contido em sua subjetividade;  c) tendo uma existência em si, reconhecível em face do universo circundante. Assim, o atributo capital da criação intelectual é sua objetividade311. Criações intelectuais existem em muitos campos, inclusive no campo da propriedade intelectual: 311 “Já Tulio Ascarelli, em sua Teoria de la Concurrencia y de los Bienes Inmateriales (ed. espanhola de 1970), estabelece a diferenciação entre o ato de criação e a criação intelectual objetivamente identificável (pp. 264 e ss.), a qual, por sua vez, se contrapõe às coisas nas quais se exterioriza. (...) Ascarelli emprega a expressão bem imaterial para indicar a criação intelectual individualizada e tutelada, objeto de um direito absoluto, e não em contraposição às coisas corpóreas (p. 286).” SILVEIRA, Newton, Propriedade imaterial e concorrência, Revista dos Tribunais | vol. 604 | p. 264 | Fev / 1986 | DTR\1986\66. De outro lado, pode argumentar-se que a ato intelectual não seja pressuposto de proteção pela propriedade intelectual: “(...) em relação às marcas e outros sinais distintivos, que não podem ser considerados como concepções ou criações intelectuais. (...) tratando-se de marcas que se distingam pelo seu cunho artístico, como verdadeira criação ou concepção intelectual, o direito resultante dessa criação constituiria propriedade artística de seu autor e, como tal, deveria colocar-se na primeira categoria das produções intelectuais.” GAMA CERQUEIRA, João da, Tratado, no. 127. Por isso distinguimos como elemento inaugural do direito sobre a marca a criação como marca. Como noto em nosso Proteção (2007): “Neste sentido, a criação não se identifica com a criação no conceito do direito autoral, por exemplo, do elemento figurativo (inventio). Essa “criação” de que se fala aqui é a concepção de que um signo, nominativo ou figurativo, seja empregado para os fins de distinção de um produto ou serviço no mercado. Ou seja, não é da criação abstrata, mas da afetação do elemento nominativo ou figurativo a um fim determinado - é a criação como marca. Assim, pode-se simplesmente - por exemplo - tomar um elemento qualquer de domínio público e dedicá-lo ao fim determinado, ou obter em cessão um elemento figurativo cujo direito autoral seja de terceiros, e igualmente afetá-lo ao fim marcário, em uso real e prático. 156

propriedade intelectual “Abrange, portanto, os direitos autorais e os direitos de propriedade industrial, num reconhecimento à interrelação entre as todas as formas de criação intelectual. Cada uma destas espécies, porém, cuida de proteger tais criações de modo diverso, respeitando a singularidade de seus formatos e aplicações. Assim é que, no Brasil, possuem seus próprios princípios e disciplinas - regendo-se os direitos de propriedade industrial pela Lei nº 9.279/96 e os direitos autorais pela Lei nº 9.610/98, seguindo, aliás, orientação internacional firmada pelas Convenções de Paris e de Berna, respectivamente. Vale transcrever pequenos trechos de especialistas destes dois ramos do direito: Denis Borges Barbosa, já citado, e José Carlos Costa Netto. (...) E o segundo oportunamente enfatiza, em sua obra “Direito Autoral no Brasil” (2ª ed. - FTD - 2008 - pp.29/30): “Não há como contestar que a criação intelectual é a peça fundamental na descoberta de uma invenção, de um determinado modelo industrial original, ou de um desenho - ou arte gráfica - de uma ‘marca’ para identificar um produto, uma empresa industrial ou comercial..” TJSP, AC 0021455-57.2010.8.26.0006, Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. José Reynaldo, 16 de agosto de 2011. E há criação intelectual, sensível ao direito, fora do campo da propriedade intelectual312. Quem cria, em qualquer campo ou forma, deve ter sua intervenção reconhecida pela imputação necessária do ato inaugural a um originador. Singular ou coletiva, autor de obra certa ou comunidade a quem se deve a construção imemorial, a ação humana é vinculada à coisa criada. Assim é que em nada lesa o direito, e em tudo o prestigia, quem aponta de uma descoberta quem a fez; quem honra o cirurgião, que precisou um novo método de curar, designando-o com seu nome; quem aponta de uma receita gastronômica o seu inventor. Fora de qualquer exclusiva, o Tratado de Genebra de Registro de Descobertas Científicas cuida apenas dessa imputação313. 312 BARBOSA, Denis Borges, O que o direito tem a ver com a criação, in In: Marcos Wachowicz. (Org.). Propriedade Intelectual e internet. 1ª ed. Curitiba: Juruá Editora, 2011. 313 [Nota do original] “Scientific discoveries, the remaining area mentioned in the WIPO Convention, are not the same as inventions. The Geneva Treaty on the International Recording of Scientific Discoveries (1978) defines a scientific discovery as “the recognition of phenomena, properties or laws of the material universe not hitherto recognized and capable of verification” (Article 1(1)(i)). Inventions are new solutions to specific technical problems. Such solutions must, naturally, rely on the properties or laws of the material universe (otherwise they could not be materially or “technically” applied), but those properties or laws need not be properties or laws “not hitherto recognized.” An invention puts to new use, to new technical use, the said properties or laws, whether they are recognized (“discovered”) simultaneously with the making of the invention or whether they were already recognized (“discovered”) before, and indepen157

Assim, a criação em geral – e no criar se presume aqui um quid novum que será abaixo discutido – deflagra-se automaticamente uma pretensão: a de que se impute ao criador a coisa criada.  b) Mas nem toda criação intelectual cabe no campo autoral Mas, no texto mais recente citado, tivemos de precisar que nem toda criação intelectual se aduna no campo autoral:

Denis Borges Barbosa

Como regra, a simples criação, desde que expressa ou fixada (ou seja, objetivada), pode deflagrar um conjunto de consequências jurídicas. Entre tais consequências pode acontecer - como ocorre no direito autoral brasileiro vigente - a constituição de um direito de exclusiva, se este direito específico não for denegado pela lei para o tipo específico de criação. Em outros casos, a criação apenas deflagra uma faculdade de obter posteriormente o direito de exclusiva, sem a automaticidade do direito autoral (como no caso de cultivares, topografias de semicondutores, patentes, etc.) Essa criação objetiva e autônoma, assim, capaz de deflagrar seja um direito de exclusiva, sejam outras consequências jurídicas diferentes de um direito de exclusiva, constitui uma criação intelectual. Além do filtro de entrada, todos os sistemas vigentes de propriedade intelectual ainda tem pelo menos dois requisitos complementares (e alguns mais outros): que a criação intelectual não seja copiada; e de que haja um mínimo de contribuição diferencial à sociedade que justifique uma exclusiva. Como suscitado pela Suprema Corte americana no caso Feist314, não é o simples trabalho que merece exclusiva, é preciso (pelo menos para se ter uma exclusiva, que não se identifica obviamente com o retorno material) que a criação intelectual represente uma contribuição à sociedade. Em primeiro lugar, é necessário que a criação intelectual passe em um filtro positivo, qual seja ela, que ela seja resultante de um ato humano específico de instauração de uma nova ordem simbólica: a originação, metaforicamente assimilada à geração de um novo ser315. Esse elemento não é típico dently of, the invention”. Encontrado em http://www.wipo.int/about-ip/en/iprm/pdf/ch1.pdf, visitado em 15/3/2011. Vide Friedrich-Karl Beier & Joseph Straus, Der Schutz Wissenschaftlicher Forschungsergebnisse: Wugleich eine Würdigung des Genfer Vertrages über die Internationale Eintragung Wissenschaftlicher Entdeckungen (1982) (F.R.G). 314 [Nota do original] Feist Publications, Inc., v. Rural Telephone Service Co., 499 U.S. 340 (1991) 315 “Portanto, diversamente da tutela constitucional e da civil, a tutela autoral tem como finalidade a proteção não da imagem em si mesmo considerada, mas sim da obra resultante do uso da imagem por meio de processo de criação intelectual.” RODRIGUES, Cláudia, op. cit. “Portanto, para o Direito de Autor a noção de obra sempre pressupõe um processo de criação, considerado tanto no seu aspecto dinâmico (ato criativo) quanto no aspecto do resultado do esforço intelectual. Pierre-Yves Gautier compara-o à geração humana:“En suite, le processus de création artistique ne serait autre qu’un enfantement, analogue à celui 158

propriedade intelectual da criação autoral, mas preside a todo ato de originação316. Assim, ela deve ser ... uma criação... do espírito. Sobre isso, notamos317: 3. O que a lei diz ser protegido A construção legal é particularmente defectiva: Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro (...) Ora, obras intelectuais – pelo menos em tese - são todos os objetos da Propriedade Intelectual. Com efeito, este ramo do Direito somente protege criações intelectuais e não elementos naturais, ou seja, o que existe na natureza sem ter sofrido a intervenção humana. Igualmente, “criações do espírito” são marcas, patentes, enfim, tudo aquilo que resulta da operação intelectual criativa. Assim o diz texto oficial da OMPI: Le terme “propriété intellectuelle” désigne les créations de l’esprit, à savoir les inventions, les œuvres littéraires et artistiques et les symboles, noms, images et dessins et modèles utilisés dans le commerce318. de l’être humain: l’oeuvre est conçue – c’est l’ ; puis intervient la gestation: préparation, assemblement, coordination (plan) croissance – c’est la; enfin, l’oeuvre vient au monde: écriture du roman, de lapièce, du scénario – c’est l’; l’ art. L. 112-1 C. prop. Int., employant les mots irait en ce sens”. No entanto, como muito bem observa Zara Algardi, o momento da existência da obra intelectual é juridicamente distinto do processo da criação intelectual na medida em que este somente produz efeito jurídico para o Direito de Autor no momento em que a obra é concretizada. Isto porque nem “todo trabalho conclui-se como obra”. Dessa noção decorre a preceito de que objeto da tutela legal é a obra intelectual enquanto realidade objetiva, embora imaterial, e não o processo de criação intelectual em si, seja como uma abstração, seja como projeto.” SANTOS, Manoel J. Pereira dos, BARBOSA, Denis Borges, A questão da autoria e da originalidade em direito de autor, in SANTOS, JABUR e BARBOSA, Org., Direitos Autorais, Publicações GVLaw, Saraiva, 2012 316 E certamente distingue o campo do direito de personalidade em face do direito de autor: “Pretender classificar o direito à imagem dentre os direitos do autor é ignorar o traço essencial que um invento deve ter para ser considerado obra intelectual, qual seja, a criatividade. Somente as obras intelectuais são passíveis de proteção pelo direito autoral. Todavia, a imagem humana carece de qualquer ato de criação por parte de seu titular. Sendo assim, não há como sustentar a teoria de que o direito à imagem seja espécie de direito autoral. [...] Não tem mérito e nem participação na produção de sua imagem, mas apenas a recebeu como dádiva divina.” FACHIN, Zulmar Antonio. A proteção jurídica da imagem. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p.61 Ainda: “A imagem não pode ser protegida pelo direito autoral, porque este se ocupa em proteger as criações intelectuais, enquanto aquela é uma expressão da personalidade humana, sem ser criação intelectual”. op. cit., p.62). 317 BARBOSA, Denis Borges e SANTOS, Manoel J. P. dos, Os requisitos da forma livre e da originalidade na proteção de textos técnicos e científicos, in SANTOS, JABUR e BARBOSA, Org., , Direitos Autorais, Publicações GVLaw, Saraiva, 2012. 318 [Nota do original] http://www.wipo.int/about-ip/fr/, visitado em 28/7/2010. O texto correspondente em outros idiomas é: “Intellectual property (IP) refers to creations of the mind: inventions, literary and artistic works, and symbols, names, images, and designsused in commerce”; “ La propiedad intelectual (P.I.) tiene que ver con las creaciones de la mente: las invenciones, las obras literarias y artísticas, los símbolos, los nombres, las imágenes y los dibujos y modelos utilizados en el comercio”. 159

Escrevendo no sec. XIX, Eugène Pouillet descrevia o campo de patentes da seguinte forma: “a lei não protege as descobertas, as criações intelectuais científicas e artísticas, senão, exclusivamente, as criações do espírito que se operam no domínio das indústrias...”319. A fórmula legal, assim, é particularmente infeliz320. Na verdade, a Convenção de Berna, ao definir seu campo próprio, usa o mesmo procedimento que a lei brasileira: renunciando a definir positivamente seu objeto, o texto internacional cita uma multiplicidade de criações que lhe fariam objeto. Tal procedimento terá a virtude, se virtude o é, de relacionar uma soma de objetos que historicamente se reconhece como o campo próprio da proteção autoral. É uma taxonomia que renuncia a um conceito de obra autoral, mas resolve problemas práticos, e permite distinções entre obras que têm prazos de proteção ou requisitos diversos321.

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Para entrar no campo autoral, além disso, é preciso passar num filtro negativo específico322: Ao contrário das nossas leis anteriores, a norma de 1998 explicita quais são os objetos excluídos da proteção autoral: Art. 8º Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: I - as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais; II - os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; III - os formulários em branco para serem preenchidos por qualquer tipo de informação, científica ou não, e suas instruções323; 319 [Nota do original] Traité Théorique Et Pratique Des Brevets D’invention 1899, n. 15 320 [Nota do original] A lei anterior dispunha de forma similar: “ Art. 6º. São obras intelectuais as criações do espírito, de qualquer modo exteriorizadas...” 321 [Nota do original] PILA, Justine, Copyright and Its Categories of Original Works, Oxford J Legal Studies, 2010, 30 (2), p. 229, demonstra que até agora os sistemas jurídicos não conseguem superar a essa construção pragmática. 322 BARBOSA, Denis Borges e SANTOS, Manoel J. Pereira, Os requisitos da forma livre e da originalidade na proteção de textos técnicos e científicos, op. Cit. . 323 [Nota do original] Embora se pudesse argumentar que a proibição de proteger tais formulários manifestasse mais uma instância de falta de originalidade, na verdade entendo ter-se aqui uma restrição de política pública. Pode haver originalidade em formulários, como nota CHISUM, Donald S. & JACOBS, Michael. Understanding Intellectual Property Law . United States of America. Ed. Matthew Bender & Company Incorporated, 1995, p. 26-31: In Harcourt; Brace & World, [Harcourt, Brace & World Inc. v. Graphic Controls Corp., 329 F. Supp. 517, 171 U.S.P.Q. 219 (S.O. N.Y. 1971)] 73 the district court upheld the copyrightability of printed answer sheets for standardized tests designed to be corrected by optical scanning machines. The an160

propriedade intelectual IV - os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais; V - as informações de uso comum tais como calendários, agendas, cadastros ou legendas; VI - os nomes e títulos isolados; VII - o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras. A listagem, também aqui, tem uma irrazoabilidade digna de Borges: as coisas mais disparatadas são postas num só lugar. As leis de patentes de 1945 a 1971 incorriam igualmente em recitais parecidos, que juntavam elementos de definição de que sistema aplicar (a noção de “invenção”), noções gerais de contributo mínimo e proibições diretas por razão de política pública. A lista, além de desconexa, é também incompleta: mesmo sem constar da relação, seriam denegados direitos autorais para um novo satélite de Saturno, um padrão monetário, ou um golpe de estado. Mas a listagem aponta para exemplos de hipóteses que manifestam princípios de não-proteção subjacentes. A soma das “idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais; esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras” aponta para uma regra geral segundo a qual não se protegem idéias, mesmo se sujeitas a uma formalização que fosse classificada entre os tipos consagrados. Na intuição de Camões, Mas esta linda e pura semidéia (...) Está no pensamento como idéia/ O vivo e puro amor de que sou feito/ Como a matéria simples busca a forma. É certamente um princípio básico de direito de autor324: swer sheets embodied original expression: “(T) he area for originality of design is limited by the requirements of the optical scanning machine used .... However, within these confines the designer may structure the division of response positions across the page, may ask what information (name, age, date, etc.) the student should record on the face of the answer sheet, may devise the symbolic code indicating what question is being asked and what possible alternative answer slots may be selected, may insert any instruction explaining how to use the answer sheet in conjunction with an examination, may set forth examples illustrating such use, etc. . . . The creation of an answer sheet requires the skill, expertise and expertise and experience together with the personal judgment and analysis of the designer or author.” 324 [Nota do original] Claude Colombet, Grands Principes du Droit d’Auteur et des Droits Voisins dans le Monde, 2a. Ed. LITEC/UNESCO, 1992, p. 10 « En effect, le droit d’auter créant un monopole au profit du createur, droit qui est vigorseumente sanctioné, il serait paralysant de tolerer cette mise sous tutelle des idées; les créations seraient entravées par la necessité de réquérir l’autorisation des penseurs: on imagine, par example, que dans le domaine scientifique, toute narration des progrès serait difficile puisqu’elle imposerait l’accord des savants, dont les idées auraient été à la base de decouvertes (…) Aussi cette exclusion des idées du domaine d’application du droit d’auteur este-elle une constante universelle ». 161

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Com efeito, criando o Direito de Autor um monopólio em proveito do criador, direito este que é sancionado com vigor, tornar-se-ía paralisante tolerar que esta tutela recaísse sobre as idéias; as criações seriam entravadas pela necessidade de requerer a autorização dos pensadores: pode-se imaginar, por exemplo, que, no domínio científico, toda narração dos progressos seria difícil por que elas imporiam a concordância dos pensadores, dos quais as idéias seriam a base das descobertas. Também esta exclusão das idéias do domínio do direito do autor é uma constante universal. Tais exemplos também apontam para outro princípio de não-proteção: qualquer instância não expressiva está fora do alcance da proteção autoral: realizar atos mentais, jogos ou negócios; o aproveitamento industrial ou comercial. Não temos aqui uma recusa quanto à destinação da obra: será igualmente um princípio geral do direito de autor que não se denega proteção, por exemplo, ao texto de propaganda política ou comercial ou às instruções de como empinar uma pipa325, desde que dotadas dos requisitos gerais de arbitrariedade e contributo mínimo. O exemplo sempre lembrado do Relatório Municipal de Graciliano Ramos vem à memória: Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam. A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá. (...)326 O que se recusa a falar das realizações e aproveitamentos são as instâncias pragmáticas de aplicações de idéias, em tudo que ultrapasse a conformação expressiva. Na vedação de dar exclusivas às informações de uso comum tais como calendários, agendas, cadastros ou legendas e aos nomes e títulos isolados se têm exemplos da exigência geral de contributo mínimo. No direito comparado tais hipóteses são excluídas seja sob a regra de minimis non curat praetor, seja diretamente pela aplicação do “nível mínimo de criatividade”, originalidade, etc., sobre o que discorreremos logo adiante. Aqui também a regra de não-proteção não é literal, mas manifestação de um requisito de proteção. 325 [Nota do original] Colombet, op. cit., p. 16. 326 [Nota do original] Encontrado em http://novoirisalagoense.blogspot.com/2006/03/primeiro-relatriograciliano-ramos.html, visitado em 29/7/2010. Desses relatórios nasceu o convite de Augusto Frederico Schmidt, que levou Gracialiano a escrever e publicar Caetés (1933). 162

propriedade intelectual Ao dizer que não incide direito autoral nos textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais mais uma vez se aponta para uma regra geral, pelo menos do direito brasileiro: os textos originados do Estado, com caráter oficial, não podem ser denegados à comunicação ao público com base em exclusiva autoral. Note-se que nenhuma dessas hipóteses é de exceção ou limitação dos direitos autorais. O princípio de proteção da expressão - não das idéias - é uma norma positiva de incidência. O sistema autoral não incide no âmbito das idéias; não se excepciona ou limita o que nem sequer se inclui. Não se excepcionam ou limitam a ações pragmáticas ou aproveitamentos não expressivos: apenas eles não se inserem no campo de incidência do sistema autoral, seja para entrar em outro sistema, seja para permanecerem de livre utilização. A regra do contributo mínimo igualmente não é exceção ou limitação: os objetos que não alcançam o nível mínimo de proteção destarte não incidem no campo de proteção. Assim, não cabe aplicar interpretação restritiva às enunciações do art. 8º. da lei autoral, para reduzir sua aplicação às hipóteses nominais listadas; trata-se aqui de um estilo normativo pars pro toto, em que se usam exemplos como manifestação de hipóteses de não incidência do sistema autoral, ou de um requisito de limiar mínimo de acesso. As regras de interpretação restritiva da lei autoral de alcance são unilaterais, eis que se se dirigem ao autor (que se presume hipossuficiente327); e são regras relativas aos negócios jurídicos e não à aplicação do texto normativo. O próprio Supremo Tribunal Federal já entendeu que mesmo o capítulo das exceções ou limitações permite interpretação não restritiva328. E ilustramos a eficácia desse filtro de entrada em julgado do STJ: 327 Art. 4º Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais. Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações: (...)VI- não havendo especificações quanto à modalidade de utilização, o contrato será interpretado restritivamente, entendendo-se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato. 328 Tendo em vista a natureza do direito de autor, a interpretação extensiva da exceção em que se traduz o direito de citação é admitida pela doutrina. Essa admissão tanto mais se justifica quanto é certo que o inciso III do artigo 49 da Lei 5988/73 é reprodução quase literal do artigo 666 do Código Civil, redigido este numa época em que não havia organismo de radiodifusão, e que, na atualidade, não tem sentido que o que é lícito, em matéria de citação para a imprensa escrita, não o seja para a falada ou televisionada. A mesma justificativa que existe para o direito de citação na obra (informativa ou crítica) publicada em jornais ou revistas de feição gráfica se aplica, evidentemente, aos programas informativos, ilustrativos ou críticos do rádio e da televisão. Recurso extraordinário não conhecido”. Recurso Extraordinário N° 113.505-1 – Rio de Janeiro – 1° Turma – S.T.F. – 28.2.1989 – Ministro Moreira Alves. 163

O acórdão embargado não negou que a autora, ora embargante, tenha sido a criadora do estilo denominado “fragmentismo”. Nem poderia fazê-lo, porque tal fato foi estabelecido no acórdão recorrido. Ocorre que, mesmo tendo a autora criado o “fragmentismo”, tal técnica é “apenas um meio, um procedimento, para a formação de obras artísticas”. É “maneira de fazer arte”, como está na inicial (fl. 8). Exatamente por isso não está albergado pela Lei dos Direitos Autorais. Como constou do acórdão embargado: “O resultado da utilização da técnica é que tem guarida legal: somente se sujeita à proteção intelectual a obra formada pela utilização do estilo (v.g., quadros, telas, fotos, filmes etc.), individualmente considerada.”

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Em palavras diretas: fragmentismo não é obra (não no sentido jurídico do termo, que não se confunde com outras acepções admitidas e conhecidas). Trata-se de método, técnica, procedimento para a criação de obras, estas sim cobertas pelo direito previsto no Art. 5º, XXVII, da Constituição Federal. Pelas carregadas palavras da embargante, fica claro que ela gostaria que a Lei protegesse, também, os criadores de estilos, de técnicas. É uma posição defensável, bastante razoável. Mas não é a opção da Lei, à qual devo obediência.” EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 906.269 - BA (2006/0248923-0) A questão chave de nossa tarefa é assim demonstrar o porquê a criação de uma persona por uma celebridade caberia no campo autoral. Para isso é preciso demonstrar que há originação e que não se exclui a criação do campo autoral.

18. A construção doutrinária da persona no direito autoral pátrio Não parece haver qualquer discussão de que as criações de imagem – aqui no sentido de “retrato”, como distingue a doutrina dos direitos de personalidade – se acha no âmbito autoral. No entanto, para postular que a construção de uma persona, que em muito excede as lindes do simples retrato, também possa ter uma tessitura no mesmo direito, é preciso alguma demonstração329. 329 Pelo contrário, autores há que expelem categoricamente a imagem-atributo do campo autoral. “Na lei civil a proteção à imagem é feita por meio de limitações impostas ao seu uso. Já na lei autoral o que se protege não é a imagem em si mesmo considerada, mas sim qualquer forma de reprodução da imagem 164

propriedade intelectual 18.1. A questão da proteção autoral dos personagens Parte respeitável da doutrina autoral brasileira se inclina pela proteção aos personagens como elemento pertinente ao campo autoral330. Há que distinguir-se aqui, no entanto, o personagem como imagem-retrato, como o define a doutrina dos direitos de personalidade; o personagem como objeto de uma encenação, ou seja, como construção imanente aos direitos conexos; e a personagem como persona, ou elemento autoral e não de direitos conexos. 18.2. Da personagem-retrato A discussão judicial relativa aos personagens-retrato é vasta, e muito condicionada à questão do merchandising de elementos de ficção, como as figuras de quadrinhos ou de desenho animado331. que se assente em ato criador. O traço distintivo entre a imagem enquanto direito da personalidade e como direito de autor assenta-se no ato criador, bastando que falte o elemento da criação intelectual para que o direito à imagem não pertença a este. Ao direito autoral interessa apenas a imagem-retrato, isto é, a imagem enquanto representação gráfica da figura humana mediante um procedimento técnico ou mecânico de reprodução.” RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos Tribunais | vol. 827 | p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563. D’ Elboux, Sonia Maria, A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade: tensões e limites, Tese de Doutorado, FDUSP, 2005 também manifesta crítica quanto à noção de imagem-atributo como objeto singular de direitos. 330 Sobre a questão, disse Bittar: “26. Acentue-se, de outro lado, que recebem proteção tanto as obras em si como os títulos, os personagens, os nomes, as expressões e elementos outros que as integram, pois o Direito de Autor protege a forma externa e a interna da criação (V. na doutrina, dentre outros tantos autores: Mário ARE. “L’oggetto del Diritto di autore”. Milano: Giuffrè, 1963, p. 130 e s.; Tullio ASCARELLI, “Teoría de la concurrencia y de los bienes inmateriales”. trad., Barcelona: Bosch, 1970, p. 34 e s. e 163 e s.; Roben PLAISANT. «Le droit des auteurs et des artistes exécutants». Paris: Delmas, 1970, p. 15 e s.; LE TARNEC. op. cit., p. 193 e s.; François VALANCOGNE. «Le titre de roman, de journal, de film, sa protection». Paris: Sirey, 1963, p. 59 e s. e 305 e s. 27. Ficam, então, proibidos quaisquer usos que não provenham de autorização e que importem, de outra pane, em modificação ou alteração unilateral da expressão da obra, ou de seus personagens, ou de seu título, ou, enfim, de qualquer componente ou pane criativa de seu contexto.” (BITTAR, Carlos Alberto, Direitos Autorais Sobre Personagens de Desenho Animado). O Autor aponta - como apoiando a proteção de personagens - Henri JESSEN. “Derechos intelectuales”. Santiago: Tipografia Stanley, 1970, p. 39 e s.; em seus próprios livros, “Direito de Autor”. Rio: Forense Universitária, 1992, p. 14 e s.; “Contornos atuais do Direito de Autor”. SP: RT, 1992, p. 13 e s.; e “A Lei de Direitos Autorais na jurisprudência”. SP: RT, 1989, p. 13 e s. e 16 e s.). Mais recentemente, e tomando a questão do personagem no âmbito do direito conexo, vide ABRÃO, Eliane Y., Personagem: algumas considerações à luz do direito, Revista da ABPI nº 90 - Set/Out 2007 p. 3-8.. No direito estrageiro, vide Vide KRISHNAWAT, Dharmveer Singh, ‘Protection of Cartoon Characters under Intellectual Property Law Regime: An Analysis of Copyright and Trademark Laws(May 29, 2007). Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=989577. 331 Vide, além dos julgados citados adiante neste estudo, sempre no tocante a imagens: ““É indubitável que o alegado conflito de normas alegado pela culta magistrada é apenas aparente, na medida em que o fato apontado nas indagações policiais consistiu, a priori, na reprodução desautorizada de figuras de desenho animado e histórias em quadrinhos concebidas e criadas pelo engenho intelectual de seu autor, diferentemente do que ocorre com um nome ou uma marca industrial ou comercial, cujo objeto é apenas o da obtenção do lucro pelo uso da marca ou nome .O produto da criação intelectual, embora secundariamente possa vir a ser objeto de lucro, originalmente consiste em uma necessidade vital de exprimir através de qualquer sinal externo as concepções, pensamentos, ideias e ambições de seu autor, independentemente de sua aceitação ao meio ao qual se dirige. (...) As criações intelectuais representadas pelos desenhos de Walt Disney, que aparecem em filmes, na televisão, em revistas, jornais, confecções, etc., 165

A imagem-retrato, em geral, e não só como personagem, como objeto de direitos autorais, inclusive a pictórica e fotográfica, em particular na difícil relação entre a criação e seu eventual modelo humano, tem sido objeto de considerável elaboração332, que, no entanto, deixamos de lado para os propósitos deste estudo. 18.3. Da personagem encenada

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A relação do intérprete e o personagem suscita interessantes questões jurídicas não só no campo exato dos direitos conexos, como também na intercessão sutil entre os direitos morais conexos333, e os direitos de personaconstituem criações do respectivo autor que mantém direito sobre elas e que não podem ser reproduzidas sem ordem expressa de quem as pode emitir.[Incorporando o parecer do MPF). “ STJ, Resp 19.866-0,Quinta Turma, Ministro Costa Lima, DJ, 18.05.1992.” Dessarte, antes de tudo, personagens como os anotados pelas empresas que aqui se entendem prejudicadas (Pernalonga, Patolino, Piu-Piu, Frajola, Flintstones etc.) não seriam representativos de simples marcas registradas, postos sob a proteção da Lei nº 9.279/96. É que, na essência, quando da utilização de imitações fraudulentas ligadas a tais figuras, colocando-as em produtos destinados à venda, com evidente intuito de lucro e sem dispor de autorização a cargo de quem lhes detenha a titularidade, o agente não está, propriamente, visando violar a marca da mercadoria, mas sim valer-se da atração que ditos personagens exercem sobre clientes em potencial.” TJMG, Conf. Neg. de Jurisd. nº 1.0000.05.429471-5/000(1), 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Des. Beatriz Pinheiro Caires, 25 de janeiro de 2007. Revista Forense - Vol. 395 Jurisprudência Penal, Pág. 598. Apelação Cível - Direito Autoral - Ação de reparação de prejuízos decorrentes da comercialização não autorizada de tecidos estampados com personagens registrados(...) Substrato probatório que confirma a ocorrência de lesão aos direitos autorais - Teoria Da Circulação - Exegese Dos Arts. 6o, Viii, 21, 30, Iv, 123 E 124, da então vigente lei N. 5.988/73, Superada Pela Lei N. 9.610/98, que manteve o mesmo grau de proteção - Decisão Mantida - recurso conhecido e desprovido. TJSC, AC 2002.014193, 3ª. Câmara de Direito COMERCIAL, Marco Aurélio Gastaldi Buzzi, 2/06/2005. “..os desenhos do Patolino, Piu-Piu, Frajola, Taz entre outros, cujos direitos autorais as recorrentes são detentora não se tratam de marcas do produto, e sim figuras empregadas no comércio com o intuito de aumentar as vendas, pela chamatividade dos personagens das historietas, mas nem por isso deixam de ser a expressão intelectual de seu autor, gozando da proteção da Lei dos Direitos Autorais” (TJSP - RSE 329.175-3/8 -SP, Rei. Pedro Gagliardi, j. 19.04.2001, v.u.). “Destarte, é possível entrever que os personagens, cujos direitos pertencem às empresas já mencionadas, não são marcas, tendo em vista que esses desenhos são inábeis para apontar distinção dos produtos ou mercadorias que carregam suas estampas, ou mesmo para diferenciar seus fabricantes”, TJSP, HC 00970836.3/50000-000,13a Câmara do 7o. Grupo da Seção Criminal, Des. Rene Ricupero, 24 de agosto de 2006Ainda: TJRS, AC 596062497.Quinta Câmara Cível, Araken de Assis, 03/04/1996 e TJRS, AC 595175720, Quinta Câmara Cível. Des. Clarindo Favretto, 03/04/1996. E um caso particularmente picaresco: TJSP, AC 293.386-4/9, Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, Des. Carlos Teixeira Leite Filho, 14 de junho de 2007, 332 Vide, por exemplo, RODRIGUES, Cláudia, Direito autoral e direito de imagem, Revista dos Tribunais | vol. 827 | p. 59 | Set / 2004 | DTR\2004\563. 333 Cabe questionar-se na verdade se existe a plenitude de direitos morais sobre os personagens, aqui tratados no campo estritamente autoral. Num acórdão onde se negaram direitos morais sobre personagens, disse o tribunal paulista: “Considera-se que os autores, de um modo geral, não aceitam alterações de suas obras artísticas, porque isso representaria um golpe intelectual e de consciência. Porém, nos casos das telenovelas, os autores não desconhecem as imposições de mercado, sabido que os rumos das histórias são guiados pelo interesse popular, existindo empresas que são contratadas para coletar informações dos telespectadores, exatamente para sentir, mediante pesquisa de campo, a atmosfera do drama que se desenrola no dia a dia das pessoas. Quando a opinião pública interage com determinado personagem, a direção aumenta sua figuração e quando as pessoas cansam de um deles, é momento de fazê-lo desaparecer. Portanto, o enredo muda para cumprir uma lógica de mercado que é medido pelo Ibope, o que obriga celebrar cláusula que reserva a palavra final à direção artística e administrativa.” TJSP, AC 258.236-4/9-00, 166

propriedade intelectual lidade. Discute-se, inclusive na casuística brasileira, os eventuais direitos do intérprete em face de seu personagem, entre os quais o de aceitação de papel e o de manutenção do cunho de interpretação334. Tem-se recente e valioso estudo de Eliane Y. Abrão335, no tocante à personagem como fato da construção dos direito autorais dos intérpretes: Um personagem não existe, portanto, apenas em função da representação do ator. O seu criador original parte de uma idéia que se materializa em um texto, delineando um caráter a esse “ser de papel” que na pele do artista, além dos elementos intrínsecos à sua personalidade - imagem e voz -, recebe, por interferências do diretor, inflexões próprias, gestos, movimentos, expressões, maquiagem, figurino e adereços. Sem contar que, geralmente, o personagem é insertado em um cenário onde também exercem influência a iluminação e a música de fundo (trilha sonora). Todos esses elementos compõem um personagem na representação ao vivo ou na gravação. Filmes há, outrossim, em que a personagem é uma câmera, ou um terceiro invisível, protagonista da trama. De outro lado, a alternância dos elementos e das pessoas físicas que interferem na composição de um mesmo personagem faz com que se tornem (paradoxalmente) inconfundíveis. O personagem Othelo, criado textualmente por William Shakespare e interpretado do por Richard Burton, não possui as mesmas características do Othelo shakespeareano representado tempos depois por Lawrence Fishburne. Do mesmo modo que a personagem Isaura - criação textual de José de Alencar vivida nas telas por Lucélia Santos em “A Escrava Isaura” e dirigida por Herval Rossano (Globo) - não se confunde com a Isaura interpretada por Bianca Rinaldi e dirigida pelo mesmo Herval Rossano (Record). Esses aspectos garantem, de outra vertente, a inconfundibilidade, a independência, das respectivas obras audiovisuais. E, agora notando a autonomia jurídica do personagem em face da pessoa do ator: Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, unânime, Ênio Zuliani, 15 de fevereiro de 2007. 334 François Dessemontet, tratando do direito suíço, mas mencionando o contexto europeu do direitos do interprete em relação a “seu” personagem, assim descreve: “12. Deux principes s’en dégagent avec netteté : a) «L’acteur a le droit de ne paraître que dans des films et sous des aspects ou personnalités qu’il estime conformes à ses convenances artistiques ou à l’intérêt de sa carrière, sans qu’il puisse lui être opposé un usage quelconque». 13. b) Il s’ensuit que «les artistes interprètes sont fondés à exiger que leur interprétation ne reçoive pas d’autre utilisation que celle par eux autorisée». DESSEMONTET, François, Les droits des acteurs face à la digitalisation, http://www.unil.ch/webdav/site/cedidac/shared/Articles/Dt%20des%20 auteurs%20digitalisation.pdf. O tema central deste autor, aliás, é a interessantíssima questão dos direitos dos intérpretes em face da manipulação digital de seus personagens. 335 ABRÃO, Op. Cit. 167

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Dois outros artigos da atual Lei Autoral, Lei 9.610/98, são igual­mente importantes na análise jurídico-autoral do personagem. O art. 83, em uma demonstração da preferência de tratamento jurídi­co concedido ao autor do texto em que se baseou o personagem em detrimento ao do ator que o interpreta, autoriza a lei a substituição do ator pelo diretor quando aquele tenha de interromper temporá­ria ou definitivamente sua atuação. Mas o personagem tem assegu­rada sua continuidade na obra, audiovisual ou radiodifundida, não importando o ator que o represente. Diferencia-se, assim, o perso­nagem intelectual do personagem representado e resguarda-se os direitos patrimoniais de todos: da produtora/emissora que conti­nuará a veicular a obra; do diretor, a quem cabe dar continuidade artística a ela; do ator substituído, que fará jus à percepção de di­reitos patrimoniais proporcionais à duração de sua participação (o que se repete no § único do art. 92); do ator substituto, que rece­berá salários e que, igualmente, participará proporcionalmente dos rendimentos patrimoniais nas futuras reexibições da obra gravada336. Neste ponto, e ainda em outros segmentos da legislação em vigor, enfatiza-se o personagem como constructo, como algo definido pelas suas características pessoais, identificáveis, autônomas em face da pessoa a que ele se apõe337. A verdade, outra consideração, ainda que estranha ao campo autoral, é que personagens em face dos quais se constrói uma clientela338, como no 336 A autora ainda nota um pronunciamento judicial sobre a autonomia de personagem como objeto singular de direitos: “Em recente demanda que teve lugar na cidade de São Paulo (23ª Vara Cível, autos nº 643.118-2), em que co-titulares de marca de personagem, na qualidade de sócios de empresa, disputavam a autoria intelectual de um determinado personagem humorístico, a sentença julgou improcedente o pedido de declaração de coautoria, baseada em provas, e declarou autor do personagem apenas um dos coautores. Voto do relator em sede de Agravo de Instrumento (190.997-4/6), apreciando pedido de concessão de tutela antecipada, condiciona-a à declaração de autoria em função da valoração das provas: “Em sendo controvertidos e dependentes de apuração judicial os direitos de criação e de utilização do personagem e da marca ‘Homem Cueca’, não era caso de deferimento da medida prevista no artigo 273 do Código de Processo Civil- Mínimos os benefícios com a cessão pretendida de uso do personagem pelo autor - Se a lei especial prevê, como penalidade a quem tenha direito de coautor e utilize personagem sem autorização do outro autor, perdas e danos, inadmissível vedação de sua utilização, se inexistentes motivos sérios para suspeitar de insolvência do requerido - Recurso não provido”. 337 Em adição à precisa análise da autora, vale notar que, no anexo ao dec. 82.385 de 05 de outubro de 1978, consta como elemento da definição doa profissão de diretor de arte cinematográfico: “Diretor de Arte: Cria, conceitua, planeja e supervisiona a produção de todos os componentes visuais de um filme ou espetáculos, traduz em formas concretas as relações dramáticas imaginadas pelo Diretor Cinematográfico e sugeridas pelo roteiro; define a construção plástico-emocional de cada cena e de cada personagem dentro do contexto geral do espetáculo (...). O mesmo decreto ainda menciona a construção de personagem, mas como imagem gráfica, quanto aos desenhos animados. Ainda, lê-se na Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978: Art . 10 - O contrato de trabalho conterá, obrigatoriamente: (...) IV - título do programa, espetáculo ou produção, ainda que provisório, com indicação do personagem nos casos de contrato por tempo determinado; 338 Lembre-se que não pareceria impossível classificar esse aproveitamento de personagens típicos, dotados de suficiente poder distintivo (o que adiante se caracterizará como o núcleo da persona como obra), como parasitismo. DUVAL, Hermano. Concorrência Desleal. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 314-319.”Final168

propriedade intelectual caso de novelas, constituem elementos de fundo de comércio, com a tutela que se reserva a tais elementos de aviamento339. 18.4. Da personagem como obra autoral A questão dos personagens como obra, no entanto, valeu-nos suscitar pesquisa complementar340. Segundo André Andrade e Carolina Tinoco Ramos, No Brasil, não há consenso a respeito da questão da proteção autoral a personagens. A própria Lei n.º 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais - LDA) apresenta, tanto para o que é protegido quanto para o que não é, apenas um rol exemplificativo. Como a personagem não está incluída em nenhuma das listas, a questão é deixada para a interpretação sistemática da lei pela doutrina e pela jurisprudência. Contudo, nem a doutrina tem desenvolvido o tema, nem os tribunais têm se ocupado do assunto, posto que as controvérsias e as ações judiciais ainda são raras. Outra dificuldade encontrada é que o inciso VIII do artigo 7º da LDA determina expressamente que “obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética” são protegidas por direito autoral. Isso faz com que, muitas vezes, se confunda o desenho da personagem (imagem da personagem) com a personagem341 em si. Quando se trata de personagens, mente, passando ao Direito Autoral, a imitação de personagens típicos, dotados de suficiente poder distintivo, como Buffalo Bill, Nick Carter, os Quatro Mosqueteiros, Sherlock Holmes, o whisky Johnny Walker, Topolino, Charles Chaplin, o Tigre da Esso etc., podem, como desenhos artísticos, ser protegidos contra a CP (Fusi, op. cit., n9 28). Do exposto, resulta que a autonomia da Concorrência Parasitária, segundo conhecido trabalho do especialista Yves st. Gal, define-se como “a imitação da criação alheia” com que se está em relação de concorrência ou dos “processos de aproveitamento dos esforços, do renome ou da reputação alheios, mesmo fora da relação de concorrência” (consulte-se “Conc. déloyale et conc. parasitaire”, in Rev. Int. Prop. Int., 1956, pág. 36). De tal conceituação aproximou-se, no ano seguinte, o erudito Tullio Ascarelli quando referiu-se ao nódulo do “aproveitamento da fama” ou do “aviamento” alheios (Teoria della conc., Milano, 1957, pág. 193). Pela mesma época, Franceschelli, grande especialista na CP, estendeu-a “à adoção mais ou menos imediata, se não integral, de qualquer iniciativa de terceiro” (consulte-se “Conc. parassitaria”, in Riv. Dir. Ind., 1956, voI. I, pág. 265).” 339 Como nota precedente judicial de Hong Kong: “I see no reason why that should not be applied to a case where a character is created not by the actor but by the script writer or by others responsible for the production. The advent of radio and televison has given us numerous examples of parts in serial programmes which have been played for a time by one actor and subsequently by another actor. No doubt the newcomer has brought his own interpretation to the part (not always with the approval of the listeners or viewers) but the character remains essentially the same. If that character still attracts the listener or viewer and induces him to watch the programme, there is the goodwill which has attached to the programme and constitutes the property in the character.” Shaw Bros (HK) Ltd v. Golden Harvest (HK) Ltd [1972] R.P.C. 559. 340 ANDRADE, André; RAMOS, Carolina Tinoco. Proteção autoral de personagens na era da informação. Revista Criação do Instituto Brasileiro da Propriedade Intelectual, n. 2, ano 1, p. 103-114, 2009. Parte de um pleito de interesse acadêmico pessoal deste parecerista, o estudo em questão representou contribuição pessoal, independente e valiosa de seus autores. 341 [Nota do original] “Personagem: [Do fr. personnage.] S. f. e m. 1. Pessoa notável, eminente, importante; personalidade, pessoa. 2. Cada um dos papéis que figuram numa peça teatral ou filme, e que devem ser encarnados por um ator ou uma atriz; figura dramática. 3. P. ext. Cada uma das pessoas que figuram em 169

deve-se ter em mente a construção de um ser fictício que irá desenvolver relações e comportamentos. E será dessas personagens que o presente artigo se ocupará. Fixado o problema, assim se configura a questão: Dentre os doutrinadores que se posicionam no sentido de proteção de personagens encontra-se Antônio Chaves: O fato de alguém se apropriar de personagens criados por outrem, para, sem a indispensável licença, utilizá-los em outras histórias, para finalidades diferentes, ou mesmo para degradá-los para a propaganda de produtos comerciais, não constitui apenas ilícito civil: pode caracterizar verdadeiro crime, em casos que se apresentam cada vez com maior freqüência. (CHAVES, 1987, p. 188) (...)342

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Já entre os que se posicionam contrariamente à proteção de personagens encontra-se Eliane Abrão: E há, finalmente, um campo de verdadeira imunidade a qualquer proteção de caráter autoral: é o das idéias, dos conceitos, dos métodos, dos sistemas, dos cálculos. O resultado material dessas idéias, métodos, etc., isto é, sua expressão fixada em base corpórea, concreta, palpável é que é protegido pela lei autoral e não as idéias, os métodos, os cálculos em si. Exemplifica-se: o livro de ensino de matemática é de criação de determinado autor, mas não os cálculos embutidos em cada exercício. O direito autoral não cobre qualquer idéia ou conceito existente por detrás da obra criada nem qualquer personagem nele retratado (in Circular 45, Copyright Office, EUA).343 A questão tomaria outra concretude, porém, em face de evento jurisprudencial especifico: Por este ser um tema que pouco chega aos tribunais, há apenas uma decisão , do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que aborda a questão e 344

uma narrativa, romance, poema ou acontecimento. 4. P. ext. ser humano representado em uma obra de arte.” (FERREIRA, 1999). [FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999] 342 Nota do parecerista: Antonio Chaves refere-se à questão em outro texto, “A lei não protege apenas a criação literária ou artística como um todo; ampara também cada um dos seus elementos constitutivos: denominação, idéia central, roteiro e desenvolvimento, personagens, cenários, música, diálogos, descrições, criações de moda, etc.“(Antônio Chaves, “Direito de Autor”, Forense, 1987, . 174/175). 343 ABRÃO, E. O que é propriedade imaterial. A disciplina: Seu conteúdo e limites. Disponível em: . Acesso em 26 mai. 2008 344 [Nota do original] Outras decisões a respeito de proteção de personagens foram encontradas: STJ, Resp 19866/RS, Min. Rel. Jesus Costa Lima, Quinta Turma, julgado em 04/05/1992, DJ 18/05/1992, p. 6988; e TJES, AgI 035.06.900077-2, Des. Rel. Rômulo Taddei, Terceira Câmara Cível, julgado em 16/05/2006, DJ 170

propriedade intelectual que acaba por reconhecer a proteção de personagens por direito autoral, no caso a personagem ‘Harry Potter’: A autora escreveu as obras literárias centradas no personagem “Harry Potter”, seus companheiros e professores de uma escola inglesa bruxaria. Isso é fato notório (artigo 334, inciso I, do CPC). A empresa produtora de espetáculos teatrais – Jotaelle Ltda. – organizou a peça “Harry Potter – o aprendiz de feiticeiro” (ut - fls.36), inclusive convocando candidatos à representação do personagem principal (fls.32 e 38). Depois de um contato dos advogados da escritora, o nome “Harry Potter” foi retirado dos cartazes de propaganda (fls.99/100). Contudo, a produtora manteve, nos anúncios do espetáculo teatral, todas as características físicas dos personagens, bem como o enredo básico da história dos jovens aprendizes de magia negra. Isso está bem claro nos documentos juntados pela primeira apelante (Jotaelle Ltda.), quando de sua contestação. O fato de o roteiro da apresentação teatral afastar-se da versão dos livros da autora-apelada não exclui a existência de plágio. As características físicas dos personagens são iguais, bem como os figurinos e até o título “Aprendiz de feiticeiro” que neste contexto, evidenciam a violação de direitos autorais. A Lei Federal 9610, de 19 de fevereiro de 1998, protege o autor das adaptações de suas obras (artigo 29, inciso III) com o intuito de garantir-lhe a integridade (artigo 24, IV). A divulgação da peça (fls.32, 36, 38 e 50) está demonstrada inclusive pela documentação trazida com a contestação da Jotaelle Ltda. (fls.99 e 100). O simples confronto entre o anúncio de um filme autorizado (fls.39) e os cartazes da peça produzida pela primeira apelante evidencia a violação aos direitos autorais. Isso tem como conseqüência a obrigação de indenizar, conforme artigo 186 da Lei Federal 9610. (TJRJ, ApC 2008.001.05609, Des. Rel. Bernardo Moreira Garcez Neto, Décima Câmara Cível, julgado em 02/04/2008, DJ 28/04/2008, p. 29)

A contribuição dos autores, porém, é tanto mais relevante quanto se propõem critérios para essa protectibilidade dos personagens: A partir desse ponto será adotada a nomenclatura personagens-constructos para as que aqui defendemos que devem receber o tratamento de obras e personagens-idéias para as que, como o próprio nome diz, não passam de meras idéias, não merecendo, portanto, proteção. Entretanto, deixamos de adotar a nomenclatura literária, posto que a mesma não apresenta o grau de precisão necessária. Mesmo na literatura en29/05/2006. Entretanto tratavam da imagem das personagens e não das personagens em si e, portanto, não foram consideradas. 171

contramos outras nomenclaturas que são passíveis de confusão345. Portanto, justifica-se assim a adoção da terminologia personagens-constructos e personagens-idéias. Os autores propõem dois testes para distinguir o que é um personagem-constructo – a persona:  a) Personagens são Obras? É a partir da análise do conjunto de características que se pode determinar se uma personagem possui ou não proteção por direito autoral. Em outras palavras, se a personagem chega a ser um constructo ou se é mera idéia.

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Para que a personagem-constructo seja considerada obra literária protegida por direito autoral, dela tem que ser possível criar obras derivadas346. Cabe ressaltar que não se trata de mera derivação das imagens das personagens e sim das personagens como um todo. Outro teste que precisa ser feito para determinar se a personagem pode ser objeto de proteção por direito autoral diz respeito ao plágio. Pode uma personagem ser plagiada? A objetivação do constructo como requisito da obra Entenda-se: há personagens inexpressivos, incapazes de se transformarem em objeto destacado da obra na qual elas se inserem347. A objetivação da personagem é crucial para se transformar em objeto singular de direitos. Assim notamos em nosso Tratado da Propriedade Intelectual: The poet’s eye, in a fine frenzy rolling, doth glance from heaven to earth, 345 [Nota do original] Antonio Candido ainda apresenta a distinção entre personagens de costumes e personagens de natureza: “As ‘personagens de costumes” são, portanto, apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora. Estes traços são fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a personagem surge na ação, basta invocar um deles. (...) As ‘personagens de natureza’ são apresentadas, além dos traços superficiais, pelo seu modo íntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros. Não são imediatamente identificáveis, e o autor precisa, a cada mudança do seu modo de ser, lançar mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica, não pitoresca.” (CANDIDO, 2007, p. 119). 346 Ilustram os autores: “Ainda que tal conceito possa, à primeira vista, parecer estranho, é possível uma obra derivada de personagem e o universo da ficção está repleto de exemplos. As personagens “Looney Tunes” possuem vários exemplos de personagens derivadas de outras cuja existência lhes antecede, mantidas suas características principais, ainda que sejam, por sua vez, inseridos em contextos e enredos novos. Exemplos desses são a personagem ‘Perninha’, versão (derivação) mais jovem da personagem ‘Perna Longa’, e ‘Plucky’, personagem derivada de ‘Patolino’ . Essas derivações das personagens “Looney Tunes” da Warner Brothers chamam-se “Tiny Toons” e são a versão adolescente das primeiras, que já se encontravam em fase adulta.” 347 A observação, aliás, é do Juiz Learned Hand: “ It follows that the less developed the characters, the less they can be copyrighted; that is the penalty an author must bear for marking them too indistinctly.” Learned Hand, Nichols v. Universal Pictures, Corp 45 F. 2d 119, 121 (1929). 172

propriedade intelectual from earth to heaven; And as imagination bodies forth The forms of things unknown, the poet’s pen Turns them to shape, and gives to airy nothing A local habitation and a name. (Sonhos de uma noite de Verão) O ponto crucial para fixação do resultado de um processo de produção intelectual, para que tenha relevância jurídica, é a transformação que Shakespeare descreve com precisão: a pena do poeta transmuda a imaginação em forma e lhe dá um espaço preciso e identificável. O texto poético é, aliás, extremamente interessante ao distinguir os elementos mais abstratos da massa intelectual (“forms of things”) da sua expressão (“shape”, dicionarizada como “a perceptual structure”) É assim que, para que haja “criação intelectual”, é preciso que o resultado da produção intelectual seja destacado do seu originador, por ser objetivo, e não exclusivamente contido em sua subjetividade; e, além disso, que tenha uma existência em si, reconhecível em face do universo circundante.348  b) O que se origina, neste processo? Para os fins de nosso estudo, é a “criação intelectual”. Um corpo de conhecimentos tecnológicos, ou texto literário, musical ou científico, ou um desempenho de intérprete suscetível de fixação, ou um artefato (escultura, quadro...). Algo que, sempre intelectual (pois distinto de qualquer materialização), seja:  c) destacado do seu originador, por ser objetivo, e não exclusivamente contido em sua subjetividade;  d) tendo uma existência em si, reconhecível em face do universo circundante. Assim, um poema que se enuncia em público, ainda que não levado a papel, ou gravado, é um ente em si, provavelmente capaz de ser memorizado e repetido, distinto da subjetividade do poeta, e distinto também de uma infinidade de outros poemas. Como regra, a simples criação, desde que expressa ou fixada (ou seja, objetivada), pode deflagrar um conjunto de consequências jurídicas. Entre tais consequências pode acontecer - como ocorre no direito autoral brasileiro vi348 BARBOSA, Denis Borges, Tratado da Propriedade Intelectual, Lumen Juris, 2010, vol. I, Cap. , [ 4 ] § 1. 4. - O estatuto jurídico das criações não objetivizadas 173

gente349 - a constituição de um direito de exclusiva, se este direito específico não for denegado pela lei para o tipo específico de criação350. Em outros casos, a criação apenas deflagra uma faculdade de obter posteriormente o direito de exclusiva, sem a automaticidade do direito autoral (como no caso de cultivares, topografias de semicondutores, patentes, etc.) Essa criação objetiva e autônoma, assim, capaz de deflagrar seja um direito de exclusiva, sejam outras consequências jurídicas diferentes de um direito de exclusiva, constitui um bem imaterial351.

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O que propõem os autores para distinguir o personagem que é obra, ou constructo, do que é seja elemento integrante, mas indissociável da obra, ou ainda (o que os autores não consideraram) mera pertença352 da obra em que se insere, são os testes de derivação e de plágio. Se for possível tomar a personagem (não a obra na qual ela é atuante) como base de criação de outras obras, tem-se um constructo. Se for possível plagiar as características singulares e destacadas da personagem, e dela se remeter à obra plagiada, ter-se-ia um índice de constructo.

19. Como se faz o constructo como obra Voltando agora ao texto de Tinoco e Andrade, e concluindo: Através dos testes propostos é possível analisar, no caso concreto, a possibilidade de proteção de personagem como obra autoral. Mas é importante deixar claro que em momento algum se defende, aqui, que todas as personagens sejam obras e, portanto, merecedoras de tal proteção. Esta proteção deve ser conferida tão somente as que designamos como constructos, ou seja, as personagens esféricas de que trata Antonio Candido. 349 [Nota do original] Lei 9.610/98, Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. 350 [Nota do original] O filtro de qual bem incorpóreo nasce dotado de exclusiva autoral, e o que não tem exclusiva, é dado, essencialmente, pelo art. 8º da mesma Lei. 351 Op. Cit. Loc. Cit., [ 4 ] § 1. 2. - Os pressupostos da criação intelectual: originador e criação 352 Como dizia Vicente Rao, O direito e a vida dos direitos., v. 2, n. 195: “Chamam-se pertences as coisas destinadas e emprestadas ao uso, ao serviço, ou ao ornamento duradouro de outra coisa, a qual, segundo a opinião comum, continuaria a ser considerada como completa, ainda que estes acessórios lhe faltassem: tais são as coisas imóveis por destino, os acessórios que servem ao uso das coisas móveis como o estojo das joias, a bainha da espada etc.”. “Pertença não é parte integrante, nem essencial, nem não-essencial (5. Umrath, Der Begriff des wesentlzchen Bestandtes, 74 s.). O que não é parte integrante da coisa, mas se destina a servir ao fim, econômico ou técnico, de outra coisa, inserindo-se em relação especifica, (...)” PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. II, § 143. Pertenças.

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propriedade intelectual Carolina Tinoco Ramos, por sua vez, definiu em obra à parte353 as características desse personagem que se torna obra: Em outro trabalho, tratamos, em co-autoria com André Andrade, da proteção de personagens por si só, independentemente das histórias de que fazem parte, como criação objeto de direito de autor, isto é, como obra354. Lá propomos a divisão dos personagens em duas categorias: personagens-constructos e personagens ideias.355 Chamamos de personagens-constructo aquelas que pelo seu conjunto de características podem ser consideradas obra e de personagens-ideias aquelas que, por não possuírem um conjunto marcante de características não podem ser identificadas de maneira isolada das histórias que as contêm e, assim, destas não podem se desprender para ganhar vida própria como obra. Portanto, quando se fala em personagem protegida por direito autoral deve-se ter em mente o conjunto de características dessa personagem (esta é a obra), e não apenas sua imagem ou seu nome. Até porque, a imagem de uma personagem é indiscutivelmente protegida por direito autoral, na condição de desenho (art. 7º, inciso VIII, da LDA), enquanto que o nome de uma personagem (art. 8º, inciso VI, da LDA) só é protegido em associação com a obra. De modo a deixar essa diferença bem clara: qualquer um pode montar uma peça de teatro com uma personagem chamada ‘Mônica’, pois este nome, isoladamente, não possui qualquer proteção. No entanto, não poderia montá-la com uma personagem que se chame ‘Carla’ e que possua todas as outras características da personagem ‘Mônica’. É essa a personagem como constructo: o conjunto de todas as características de uma personagem, tais como seu modo de se comportar, de se vestir, de se relacionar com outros, de agir de determinada maneira perante determinadas condições, seus sentimentos, suas características físicas etc.; tudo isso de forma independente de sua imagem e seu nome, sem, contudo, deixar de se considerar sua imagem e seu nome como características. 353 BARBOSA, Denis Borges ; RAMOS, C. T. ; MAIOR, R. S. . O Contributo Mínimo na Propriedade Intelectual: Atividade Inventiva, originalidade, Distinguibilidade e Margem Mínima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 354 ANDRADE, André; RAMOS, Carolina Tinoco. Proteção autoral de personagens na era da informação. Revista Criação, n. 2, ano 1, p. 103-114, 2009. 355 [Nota do Original] Essa divisão encontra amparo na literatura específica e encontra correspondência no que Antonio Candido aponta que é chamado de personagens esféricas e personagens planas, ou ainda personagens de costumes e personagens de natureza. CANDIDO, Antonio; GOMES, Paulo Emílio Salles; PRADO, Décio de Almeida; ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 61-63.

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20. A celebridade como personagem autoral Em outro exercício separado, este parecerista induziu a pesquisa sobre a construção da noção de uma celebridade como obra no direito brasileiro. No ensaio de Maria Angélica Teixeira Barbosa 356, a questão era a personificação de Sílvio Santos – como uma personagem de si mesmo.

21. A fabulação do personagem-celebridade Em essência, o que afirma o ensaio é que a construção da persona é uma fabulação, uma construção deliberada, contínua, e ficcional, no sentido de que se destaca da pessoa real, viva, e objeto de uma personalidade como ser humano357.

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Nota a autora: Antes de tratarmos dos aspectos literários e teatrais da personagem é importante verificarmos o seu conceito. No dicionário Aurélio (; 1316) assim se define personagem: 1.Pessoa notável, eminente, importante; personalidade pessoa.2. Cada um dos papéis que figuram numa peça teatral ou filme, e que devem ser encarnados por um ator ou uma atriz; figura dramática. 3 P. ext. Cada uma das pessoas que figuram em uma narrativa, romance, poema ou acontecimento. 4. P. ext. Ser humano representado em obra de arte. Note-se que o dicionário apenas relaciona personagem com pessoa e, apesar desse ser o aspecto fundamental da monografia, devemos ressaltar que representa uma limitação à sua concepção, posto que personagem pode referir-se a uma animal, um objeto, uma paisagem - vide a Combray de Proust, no Caminho de Swann. Dito isso, é nossa preferência a definição do Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Personagem), elemento vivo de uma obra narrativa, com uma pequena modificação, em vez de obra narrativa, obra ficcional. Desse modo, personagem seria elemento vivo de uma obra ficcional. “Elemento vivo” porque esse elemento transmite sensações, sentimentos ao destinatário daquela obra; “obra ficcional” no sentido de criação de um mundo imaginário. É a “ilusão do real”, ou seja, a impressão da “presença real” do obje356 BARBOSA, Maria Angelica Teixeira. A Constituição de Auto-Traço Personagens Famosos. 2007. Monografia. (Aperfeiçoamento/Especialização em Especialização Em Propriedade Industrial) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Denis Borges Barbosa 357 “Imagem, forma de certo modo desconcertante por situar-se a meio-caminho entre o concreto e o abstrato [porque pode ser inventada, criada, falsificada pelo interesse de seu emissor], é um princípio gerador de real – mas o real do “quase”: quase-presença, quase-mundo, quase-verdade.’ SODRÉ, Muniz. Pensar como Debord. In: GUTFRIEND, Cristiane Freitas; SILVA, Juremir Machado da (org.). Guy Debord: antes e depois do espetáculo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. 176

propriedade intelectual to, no qual se insere o leitor, em termos literários, ou espectador, no caso da autoconstrução de uma personagem pela celebridade. Tanto o leitor como espectador participam dessa “ilusão do real”. Assim como o leitor anima através de sua imaginação o personagem de um livro de um autor de ficção, nós, espectadores da “vida real”, tendemos humanizar, vivificar aquilo que nos é apresentado pela celebridade como sua “realidade”, quando, na verdade, é apenas sua personagem. Melhor explicando, a pessoa à que se refere a personagem é vivificada perante os olhos do espectador, o que cria a ilusão mencionada.358 A fabulação da celebridade é construir-se como um personagem que, no entanto, mantém verossimilhança359: A ficção, portanto, é o lugar no qual o homem pode viver e contemplar, através das personagens, a plenitude de sua condição, em que se transforma imaginariamente no outro, vive outros papéis, destaca-se de si mesmo, distancia-se de si mesmo360. O espectador –participante de uma celebridade, através da personagem criada por ela, “se transforma” nessa personagem, “vive” outra vida que não a sua, distancia-se de si mesmo, construindo uma identidade não original, mas fabricada sob o prisma de um símbolo, uma criação. Sobreleva notar que há uma diferença fundamental entre a ficção literária e a auto-ficção criada por uma celebridade. A primeira ajuda você a compreender melhor a si próprio enquanto a última ajuda você a enganar a si próprio. Resumindo as idéias até então apresentadas, podemos afirmar que a personagem é elemento vivo de uma obra ficcional, o que causa a “ilusão do real”; é limitada e fragmentada; possibilita ao leitor de um romance ou espec358 [Nota do original] ROSENFELD, Anatol e outros. A personagem de ficção. Perspectiva: 2007, p. 27.. p.27 a 31. 359 “Pode-se ilustrar as consequências deste deslocamento com o conceito de verossimilhança, da teoria literária. A figura histórica de Napoleão, um homem nascido na Córsega e falecido em Santa Helena, que foi imperador da França, preenche o personagem Napoleão de Tolstoi, em Guerra e Paz. O reconhecimento da pessoa empírica, histórica, contribui para a atmosfera do romance, mas o Napoleão de Tolstoi só existe no texto literário, e é construído para os fins literários. A tentativa de fazer corresponder o homem com o personagem resultaria em enfraquecimento do efeito estético; reversamente, um estudo histórico baseado no personagem seria um absurdo epistemológico. A verossimilhança vem a ser exatamente o aproveitamento estético desta presença de um mesmo elemento no mundo empírico e no universo romanesco. A fruição de um texto de ficção necessita de pontos de apoio, de pontes entre o mundo do leitor e o do romance; ao atravessar a ponte, e ao ter consciência que na outra margem, o Napoleão dos livros de História tem um outro valor, o valor que lhe atribui o sistema ficcional do livro, o leitor percebe que este sistema é diferente da estrutura do universo empírico. A eficácia da obra depende exatamente deste reconhecimento, pelo leitor, de que a narrativa é criação, e não descrição de fatos históricos.” BARBOSA, Denis Borges, A Causa e a Autoridade (Porque Direito não é Ciência), in Estudos de Direito Público, Lumen Juris, 2003. 360 Idem.Ibidem,p.48. 177

tador de uma celebridade contemplar e participar, através da personagem, de situações e sensações que o fazem se destacar de suas realidades imediatas, cotidianas. Acrescente-se, ainda, mais uma idéia: o personagem é um ser fictício. Tal paradoxo ocasiona o problema da verossimilhança, o qual pode ser expresso na seguinte indagação: como pode existir o que não existe, já que a personagem é fruto do mundo imaginário do ser humano?361 Antes de nos imiscuirmos na resposta de tal questão, averigüemos o significado de verossimilhança. Verossimilhança, segundo o Dicionário Aurélio,(;1768) é aquilo que parece verdadeiro, é algo que contém a aparência de verdade.

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Vamos à resposta. A personagem, apesar de ser uma criação da fantasia, provoca essa impressão de verdade existencial (verossimilhança). Reside justamente nessa palavra a chave de toda questão: verdade. A verdade está nos olhos de quem vê, de quem lê. É o espectadorparticipante, o leitor, que imprime existência à personagem, seja ela criada por um autor de uma obra literária, seja ela criada por um showman como Silvio Santo ou qualquer outra celebridade. É a conhecida e referida “ilusão do real” do início de nosso texto362. No entanto, somente o trabalho desse leitor ou espectador não é o bastante para configurar esse sentimento de realidade, de verdade, o qual necessita também da contribuição do autor, romancista ou celebridade, porquanto uma personagem nos parece real quando esse criador sabe tudo a seu respeito ou, pelo menos, dá essa impressão363. Sendo assim, no caso de uma autoconstrução de uma personagem por uma celebridade, não há ninguém melhor do que ela própria, a celebridade, para dar essa impressão. Assim, a celebridade torna-se personagem: Em termos literários, a autoconstrução de uma personagem por uma celebridade apresenta similitudes com a personagem de um romance. Ambos são elementos vivos de uma obra ficcional, porém esta vida ou verossimilhança é criada de modo diverso pelo autor de um livro e por uma celebridade. No caso da personagem de uma pessoa famosa é a conjunção de três fatores, os quais possibilitam aquela sensação de realidade: espectador, a celebridade-autora e o contexto. 361 [Nota do original] CANDIDO, Antonio e outros. Personagem de Ficção. Perspectiva: 2007, p. 55. 362 [Nota do original] ROSENFELD, Anatol e outros. A personagem de ficção. Perspectiva: 2007, p. 27. 363 [Nota do original] CANDIDO, Antonio e outros. Personagem de Ficção. Perspectiva: 2007, p. 58 e 59 178

propriedade intelectual O espectador tende a humanizar, vivificar aquilo que é apresentada pela celebridade como sua verdade, quando nada mais é que uma personagem, um elemento de ficção. Isso é o que chamamos ilusão do real. São seus próprios olhos que o enganam. Por isso, em vez de olhar, vejamos o que se significa aquela máscara, na qual nos fixamos, a fim de apreendermos o seu real valor.

22. Da verossimilhança e da pessoa real Saindo da análise literária, a autora vale-se da teoria de Stanislavski para distinguir a personagem construída e a pessoa em torno da qual ela se constrói: Não se pode querer proteger a criação de uma personagem por uma pessoa em si própria pelo direito de personalidade, uma vez que esta se mantém intacta364. À imagem externa criada pela pessoa correspondem faculdades interiores que se adaptam a ela, porém sem perder o seu eu interior365. Assim, o ator reconhece não o seu eu interior, mas a sua criação, O Crítico, assim como há celebridades as quais somente se referem a si próprias na terceira pessoa, como, por exemplo, o Pelé, pois a sua personalidade não se confunde com sua personagem366. As celebridades são fábricas de sonhos para seus espectadores. Elas criam e vendem sonhos através de suas personagens e ao mesmo tempo buscam, na verossimilhança, a concretização dessa fantasia. Em relação ao segundo aspecto, a verossimilhança precisa de três elementos: autor, o espectador e a mídia. O autor é a própria pessoa famosa, que, no ato de criar sua personagem, acredita na sua verdade e assim a transmite ao público, o qual também participa desse processo, posto que o espectador vivifica aquele ser fictício, a personagem. E a mídia cumpre seu papel ao fornecer elementos fictícios ou não que auxiliam a produzir essa sensação de realidade. A criação da personagem, portanto, resulta de uma realidade circundante, ou seja, a personagem nasce de uma celebridade, sua fonte criadora, e, além disso, essa pessoa famosa, juntamente com o público e a mídia, ajudam na aparência de veracidade existencial dessa personagem. 364 [Nota do original] STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Rio de janeiro: Civilização Brasileira 2006,p.30 e 31. 365 [Nota do original] Idem.Ibidem.p.30 e 31. 366 [Nota do original] Idem.Ibidem.p.44 e 45 179

E aplicando a caso concreto a análise: Celebridades como Silvio Santos construíram a partir de si próprios personagens. Eles encarnam tais personagens (suas criações) e transmitem uma sensação de realidade, de verossimilhança, auxiliados pela mídia e pelo próprio espectador.  a) A celebridade pessoa real?

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Silvio Santos é o autor de sua criação, e a compõe através de caracteres físicos, psíquicos, gestuais, comportamentais. Personalidade e personagem não se confundem, porém o segundo tem sua fonte no primeiro. A personalidade faz parte da estrutura interna do indivíduo, seu íntimo, e se exprime nas suas emoções, reações, caráter, enquanto a personagem é criação, uma invenção do ser humano. A mídia envolve tal personagem em fatos e o espectador, ante sua credulidade, vivifica aquela criação perante seus olhos, acredita piamente que a ficção, a personagem é real, é aquele ser vivo que se apresenta nos meio de comunicação. Para o espectador não há diferença entre personalidade e personagem. É interessante aqui notar a distinção entre personagem e heterônimo ; as celebridades não são necessariamente heterônimas, muito embora Silvio Santos, sob seu nom de plume, ou nome de antena, por caso o seja. 367

A autora, examinando as várias formas de inserção desse personagem-celebridade no sistema jurídico brasileiro, termina por classificá-lo no âmbito autoral: Nesse contexto, o direito autoral tem muito a oferecer, pois caso aceite-se que se trata de criação de uma auto-personagem, então a pessoa estaria admitindo que aquilo que os outros vêem dela é uma ficção, a ser protegida pelo Direito Autoral. 367 “Invocando Charles Baudelaire: “Le poète jouit de cet incomparable privilege, qu’il peut à sa guise être lui-même et autrui”, distingue o heterônimo, não somente do pseudônimo como do personagem de um romance ou de uma peça de teatro: o personagem é a criação de um autor, o heterônimo é um personagem que é um autor. Não basta que o autor nos diga que Barnabooth, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são poetas, como Balzac nos diz que Canalis é um poeta; é necessário que nos mostre suas obras e que essas obras possuam individualidade e caráter próprios.” CHAVES, Antonio, Obras Pseudônimas. Heterônimas. Anônimas., Revista dos Tribunais | vol. 695 | p. 7 | Set / 1993 | DTR\1993\635

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propriedade intelectual  b) A celebridade é obra do espírito? O ato de engendrar uma persona, como algo distinto da pessoa privada, pode incorrer em verossimilhanças, points de rattachement com a pessoa tangível que se dotou de certidão de nascimento, e não registro na Biblioteca Nacional. Verossimilhança, porém não previne a fabulação, e mais, não previne a ficção que – legitimamente – faz de um récit uma obra literária. Na observação de Teixeira Barbosa, Pelé se refere a si mesmo na terceira pessoa. Na verdade, Édson Arantes do Nascimento contempla e identifica num espelho lacaniano uma imagem que sendo a sua, não é de si mesmo. Não é essa desidentificação que faz de Pelé uma criação do espírito, mas sim sua deliberação criadora, o processo contínuo de construção e manutenção do constructo, zelando inclusive para que a artificialidade que o público conhece e que seduz a clientela não se esbata, dilua e dissipe. A pessoa privada, no entanto, subsiste, como outra. Essa terá, no campo da personalidade, o resguardo da intimidade. Quando a notoriedade se constitui como algo distinto e objetivizado, haverá obra. Exige-se, assim, que o constructo seja expressivo368: Não existe no direito vigente nenhuma exigência de qualidade estética (e muito menos de valor estético369). Assim a noção de “expressivo” não se esgota no estético. Abrange o que mais? Todas aquelas criações intelectuais cujo propósito central é propiciar a instrução, a informação, ou o prazer no processo de comunicação370. Central, vale dizer: nem acessório nem subsidiário: o processo de fruição do público se volta para o elemento comunicativo. A função diferencial desta modalidade de objeto da Propriedade Intelectual é promover a criação de objetos de construção simbólica voltados à instrução, à informação, ou ao prazer num processo de comunicação humana. 368 BARBOSA e SANTOS, op. Cit. 369 [Nota do original] Quanto a isso, note-se a eminente discussão da impossibilidade de avaliação do “mérito” das obras no direito francês, tema que tanto tem a ver com a liberdade de expressão e a negativa de censura. Vide CARREAU, Caroline. Mérite et droit d’auter. Paris: Librairie Générale de droit et de jurisprudence, 1981. 370 [Nota do original} Citando aqui o acórdão do tribunal britânico: “intended to afford instruction, or information, or pleasure in the form of literary enjoyment”. Exxon v Exxon Insurance Corp, [1982] Ch 119 (Ch).

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23. De novo a autoria e a titularidade da persona Uma questão crucial não apenas para definição de titularidade dos interesses resultante da criação da persona, mas também para extensão dos limites destes, no entanto, é a noção de que – como ocorre na construção da imagem de marca371 – a celebridade pode ser um atuante central na construção, mas grande parte do valor de reconhecimento deriva da interação do público e de outros agentes.  a) A construção da persona

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Como acontece no caso da imagem de marca372, a construção da persona por múltiplas fontes não impede a titularidade por aquele a quem a deliberação e o intuito de construção do mito acede. É no fim das contas uma escolha do sistema jurídico como um todo, a quem imputa os interesse jurídicos relativos a um fato jurígeno. Haverá, em princípio, no caso de uma celebridade que se propõe sê-lo e atua contínua e deliberadamente nesse sentido (por oposição à celebridade eventual e espontânea), uma construção decisória que direciona elementos essenciais da fabulação que aponta para o fulcro autoral373. 371 BARBOSA, Denis Borges, Developing New Technologies: A Changing Intellectual Property System. Policy Options For Latin America, SELA (1987): Some authors have remarked that the building up of a trademark by means of massive advertisement has much in common with the construction of a character in a novel; in both cases only sometimes the result is a “roman a clef” bearing any resemblance to reality.” Mas quem é o autor da marca? BOSLAND, Jason. The Culture of Trade Marks: An Alternative Cultural Theory Perspective, Intellectual Property. Research Institute of Australia The University of Melbourne Intellectual Property Research Institute of Australia. Working Paper No. 13/05..: “Stephen Wilf suggests that by associating a symbol with an object, the public contributes to the authorship of trade marks. Because the meaning of a mark results not from the efforts of an individual trader but the interpretive acts of the public, Wilf argues that the public should be attributed ownership. Trade mark law, on the contrary, is said to incorrectly formalise the trade mark originator as the arbiter of meaning by recognising only the efforts of the originator in generating the meaning and interpretation of a trade mark”. Numa análise mais informal, vide Gunnar Swanson: “For instance, in many ways Coca Cola does not own their brand. They own the trademark but the brand resides in the minds of a billion or so people around the world. The brand is what people think of the fizzy sugar water, what people feel when they see old red vending machines, thoughts of Santa Claus paintings, reactions to Mexican kids wearing t-shirts that say “Come Caca” in a script similar to the trademark, associations with American culture and politics. . .”, http://lists.webtic.nl/pipermail/ infodesign-cafe/2004-June/1010478.html, visitado em 26/10/2006. A referência se faz a Steven Wilf , Who Authors Trademarks? http://www.law.uconn.edu/academics/ip/wilf.html. 372 ““In determining whether to grant a property right in a celebrity’s persona, we might consider traditional liberal justifications in support of private property. The idea that people are entitled to the fruits of their own labor, and that property rights in one’s body and its labor entail property rights in the products of that labor, derives from John Locke [john locke. second treatise of civil government. ch. 5 (Wm. B. Eerdmans Publishing Co. 1978) (1690)] and is persuasive as a point of departure. It does not, however, advance the argument in favor of exclusive property rights very far. As Edwin Hettinger [Edwin Hettinger, Justifying Intellectual Property, 18 PHIL. & PUB. An. 37 (1989)] remarks, “assuming that labor’s fruits are valuable, and that laboring gives the laborer a property right in this value, this would entitle the laborer only to the value she added, and not to the total value of the resulting product.” COOMBE, op. Cit 373 BARBOSA, Denis Borges, O orientador é coautor?. Revista da Associação Brasileira de Direito Autoral, Rio de Janeiro, v. 1o., 2004: “Assim, pode-se entender que é autor aquele que exerce a liberdade de esco182

propriedade intelectual Lidando com uma matéria prima, a mídia e público, a celebridade – sempre a deliberada e contínua – molda seu próprio valor de reconhecimento. A matéria é resistente, e pode rejeitar a direção. A persona pode não resultar; a persona pode falhar, como tantas obras de outro gênero. Mas é a escolha última da celebridade que determina a construção da persona374. Assim, ainda que se identifique na construção da persona um espaço de construção de obra, não se deve contaminar tal noção, essencialmente técnica, de qualquer excesso no sentido de apoderamentos excessivos em face da função social deste constructo: a saciedade do desejo da sociedade por heróis e pessoas da história corrente375. Embora possivelmente o estigma lha entre alternativas de expressão. O exercício dessa liberdade não só configura a criação, mas indica seu originador. A liberdade aqui é de escolha dos meios de expressão e não do objeto da expressão. Lembram Lucas e Lucas, Traité de la Propriété Litteraire et Artistique, Litec, 1994, p. 67 : « L’oeuvre de l’esprit peut-elle se limiter à un choix ? L’article L. 112-3 CPI (L. 1957, art. 4) incline à répondre par l’affirmative en accordant le bénéfice du droit d’auteur aux «auteurs d’anthologies ou recueils d’oeuvres diverses qui, par le choix et la disposition des matières, constituent des créations intellectuelles». On observera toutefois que, dans une interprétation littérale, le choix ne suffit pas ici à fonder la protection puisque l’activité créative doit également se manifester dans la «disposition des matières».-De manière générale, l’originalité de l’oeuvre se révèlera parfois dans les choix effectués par l’auteur, par exemple dans le domaine de la photographie, mais il n’est pas possible d’admettre que le seul choix constitue une oeuvre. On ne saurait donc en principe accorder protection à des objets trouvés (ready-modes) revendiqués par leur «inventeur» en tant qu’oeuvres d’art. » 374 “Giorgio Vasari, a contemporary of Michelangelo, explained how Michelangelo destroyed valuable works that he believed to be of inferior quality: [H]e often abandoned his works, or rather ruined many of them . . . just before his death he burned a large number of his own drawings, sketches, and cartoons to prevent anyone from seeing the labours he endured or the ways he tested his genius, for fear that he might seem less than perfect . . . .[Giorgio Vasari, The Lives Of The Artists 418, 423-24 (Julia Conaway Bondanella & Peter Bondanella trans., Oxford Univ. Press 1998, supra note 7, at 472)]. Michelangelo could certainly have sold off these inferior drawings and sketches in order to benefit himself or his friends. Instead, where his reputational interests and financial interests appeared to diverge, he protected his reputation. Some might lament the loss of those destroyed drawings, and see Michelangelo’s pursuit of a perfect reputation as excessive. But the paradox is that the reputation dynamic that drove Michelangelo to destroy his work was also the dynamic that drove him to strive for perfection and to create his most celebrated works. Michelangelo decided that only a certain quality of artistic work would further his reputational interests, and it was this type of work that he struggled to produce.” Lastowka, The Trademark Function Of Authorship, Boston University Law Review [Vol. 85:1171, encontrado em http://www.bu.edu/law/central/jd/organizations/journals/bulr/volume85n4/Lastowka.pd, visitado em 1/12/2011. 375 COOMBE, op. Cit. “Star images must be made, and, like other cultural products, their creation occurs in social contexts and draws upon other resources, institutions, and technologies. Star images are authored by studios, the mass media, public relations agencies, fan clubs, gossip columnists, photographers, hairdressers, body-building coaches, athletic trainers, teachers, screenwriters, ghostwriters, directors, lawyers, and doctors. Even if we only consider the production and dissemination of the star image, and see its value as solely the result of human labor, this value cannot be entirely attributed to the efforts of a single author. Moreover, as Richard Dyer shows, the star image is authored by its consumers as well as its producers; the audience makes the celebrity image the unique phenomenon that it is [See Richard Dyer. Heavenly bodies: film stars and society (1986); Richard Dyer. Stars (1979)].] Selecting from the complexities of the images and texts they encounter they produce new values for the celebrity and find in stars sources of significance that speak to their own experience. These new meanings of the star’s image are freely mined by media producers to further enhance its market value. As Marilyn Monroe said in her last recorded words in public, “I want to say that the people-if I am a star-the people made me a star, no studio, no person, but the people did.” [Dean MacCannell, Marilyn Monroe Was Not a Man, 17 DIACRITlCS 114, 115 (1987)]. .. “O autor da fábula de uma ‘celebridade’ midiática é sempre coletivo. Afinal, o padrão de reconhecimento propiciado 183

da celebridade seja irrenunciável, pode toda celebridade optar pelo destino de Greta Garbo376, de ser um ponto cego no discurso da fama.  b) A celebridade é excluída pelo rol do art. 8º? A persona não é uma ideia; é um conjunto de apreensões pelo público, resultantes da formalização de uma imagem pública; há uma práxis expressiva e voltada especificamente ao ato de comunicar. Como se notou, não é a destinação da obra que a exclui do âmbito autoral, eis que nele se inclui o texto de propaganda política ou comercial ou às instruções de como empinar uma pipa, desde que dotadas dos requisitos gerais de arbitrariedade e contributo mínimo.

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Da lista do art. 8º. (e do requisito primordial da novidade) não se encontra nenhuma rejeição em abstrato que permita a uma determinada celebridade valer-se da proteção autoral. Quem pretende a celebridade por uma cópia dos agissements de outra celebridade consagrada não terá, perante a anterior, sequer a alteridade, que lhe destaca como obra. E só mais um requisito essencial de proteção – que não se julga em abstrato -, dirá se uma celebridade específica não é tão fugaz, tão irrelevante para o tecimento das comunicacionais demandas do público, que chega a merecer a tutela de que se fala377: A questão é simples: basta que a criação, para ser objeto de uma proteção exclusiva pelos sistemas da Propriedade Intelectual, seja nova? A noção de novo, neste caso, é simplesmente aquilo a que a sociedade ainda não tinha acesso. O pressuposto deste requisito é que, em cada modalidade dessas exclusivas, uma exigência de fundo constitucional se impõe, para exigir, como um elemento objetivo da criação, um aporte à sociedade de algo a mais do que o simplesmente novo. Numa destilação ainda mais incisiva do problema, a pergunta é: o direito exclusivo que se atribui ao criador – ou àquele que deriva seu título do criador, por cessão ou operação de lei – é proporcional ao acesso obtido pela sociedade? Há uma correlação razoável entre os benefícios que o pelas mídias tem dimensão histórico-social. A trama e a intriga da narrativa vão, assim, sendo alimentadas e tecidas junto com as revelações pessoais da própria ‘celebridade’, as opiniões do jornalista, do amigo e do inimigo, as estratégias comunicacionais e os flagrantes dos paparazzi. Não se pode esquecer ainda que o folhetim da vida de uma celebridade é escrito também pelo público em geral. PIMENTEL, Márcia Cristina, A construção da celebridade midiática,, Contemporânea, no. 4, 2005, [Revista on-line do grupo de pesquisa Comunicação, Arte e Cidade da Faculdade de Comunicação Social da UERJ.] http://www.contemporanea. uerj.br/pdf/ed_04/contemporanea_n04_17_MarciaCris.pdf 376 Que optou por isolar-se na impossível solidão de sua casa na 450 East 52nd Street em Manhattan, em frente à qual este parecerista, como todo mundo a quem o caso favoreceu, a viu em 1982. Veja-se http://

en.wikipedia.org/wiki/Greta_Garbo, visitado em 1/12/2011.

377 BARBOSA e SANTOS, op. Cit. 184

propriedade intelectual criador obtém do sistema jurídico pela criação que fez, em face daquilo que todos demais tem de benefício? Enfim, é a exigência de originalidade378.

24. Das limitações ao direito Protegido pela tutela autoral, ou classificado como direito de personalidade, o exercício dos direitos de celebridade estão severamente contidos por limitações intrínsecas. O que são tais limitações? Dissemos em outro texto379, falando de patentes, mas em tudo pertinente ao nosso assunto: Natureza da limitação. A lei de 1996 assim considera fora da exclusividade da patente uma série de atos que podem ser praticados sem a permissão do titular do privilégio. Da mesma forma que ocorre na Lei Autoral , trata-se de um rol de limitações legais (daí, involuntárias), objetivas e incondicionais à exploração da patente . Interpretação das limitações. Tratando-se de restrições a uma norma excepcional, como é a das patentes, as limitações são interpretadas extensamente, ou melhor, com toda a dimensão necessária para implementar os interesses que pretendem tutelar. De forma alguma as limitações deste artigo são exceções380, a serem interpretadas restritamente. 378 Vide BARBOSA, Denis Borges; RAMOS, C. T. ; MAIOR, R. S. . O Contributo Mínimo na Propriedade Intelectual: Atividade Inventiva, originalidade, Distinguibilidade e Margem Mínima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Dessa visão societal de originalidade como um valor objetivo, não discrepa a hipótese da marca pessoal do autor: “The practice of artistic signature persists today. It is neither a recent nor an exclusively Western phenomenon. Even where works are not signed by artists, one might argue that all artistic works are intimately bound up with the artist’s identity, making the work itself a form of personal signature. Works of artistic production generally bear traces that may betray the true identity of the creator.7 In various small details, authors leave unconscious “fingerprints” on their works that, like handwriting, reveal their personal involvement with the creation.8 Just as an actor’s facial expressions, style of walking, or manner of speech may be unconsidered yet potentially expressive, so an artist’s efforts at self-expression are at least partially governed by unconscious mannerisms.And obviously, there are some conscious mannerisms that appear in authorial styles – certain skills, themes, interests, and ideologies are reliably associated with particular authors.” Lastowka, op. cit. 379 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes, e BARBOSA, Denis Borges, O Código da Propriedade Industrial Conforme os Tribunais, Comentado com Precedentes judiciais, Lumen Juris, 2012. Vide, em particular, LEWICKI, Bruno Costa. Limitações aos direitos de autor: releitura na perspectiva do direito civil contemporâneo. 2007. 299 f. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Centro de Ciências Sociais, Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RISE, Maria Elaine , Das Limitações Aos Direitos Autorais, Lumen Juris 2008, LOPES, Cláudia Possi, Limitações aos Direitos de Autor e de Imagem. Utilização de Obras e Imagens em Produtos Multimídia, Revista da ABPI, (35): 27-35, jul.-ago. 1998. SANTOS, Manoel J. Pereira e BARBOSA, Denis Borges, As Limitações Aos Direitos Autorais, in SANTOS, JABUR e BARBOSA, Org.,, Direitos Autorais, Publicações GVLaw, Saraiva, 2012. 380 Narra SANTOS, Manoel J. Pereira dos, Objeto e Limites da Proteção Autoral de Programas de Computador, Ed. Lumen Juris, 2008: “ Eduardo Vieira Manso designa como “exceção” o gênero do qual as derrogações e limitações são as espécies (cf. Direito autoral: exceções impostas aos direitos autorais (derrogações e limitações), São Paulo: Bushatsky, 1980, p. 42/43), José de Oliveira Acensão entende que “ os limites não são exceções ” porquanto não há direitos absolutos e os limites são apenas regras negativas (Direito Autoral, 2ª. ed., ref. e ampl., Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 256; “O fair use no Direito Autoral”, in Anais do XXII Seminário Nacional da Propriedade Intelectual da ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, 185

Para que fique claro: a interpretação dessas limitações leva em conta – simultaneamente- a máxima eficiência no alcance da função de cada uma delas e o mínimo de ônus ao titular necessário para o plena satisfação de tais objetivos . Isto se dá porque aslimitações aos direitos exclusivos representam, no nosso sistema jurídico, uma ponderação de interesses constitucionais incorporada ao direito normativado. Tais limitações podem ocorrer em todo caso que os interesses dos titulares de exclusivas colidem com interesses ou princípios constitucionais, em especial: quando se colidem interesses privados do criador ou investidor e direitos fundamentais;

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quando há que se conciliar tais interesses privados com interesses públicos; quando outros interesses competitivos na economia também merecem proteção do Direito. Limitação não é licença obrigatória. Note-se que em todos casos deste artigo 43, não se tem licença obrigatória, pela qual não se precise autorização, mas seja necessário pagar. Ao contrário, em todos os casos deste artigo, os atos declarados livres de consentimento também serão livres de pagamento ou qualquer outro ônus. Os atos são livres. E, em nosso Tratado381: As limitações legais em matéria de propriedade intelectual – patentes, registro de cultivares, direitos autorais, etc. - representam uma conciliação entre interesses constitucionais fundamentais. De um lado, a esfera moral e patrimonial da criação humana, protegida pelo texto básico; de outros, interesses tais como a tutela à educação, o direito de citação, o direito à informação, o cultivo das artes no ambiente doméstico, etc. Argumentar-se-ía, talvez, que tais limitações seriam tomadas sempre como exceções, a serem restritamente interpretadas. Mas exceções não são, e sim confrontos entre interesses de fundo constitucional. Como já tive tam2002, p. 94). Mas essas limitações aos direitos patrimoniais de autor eram classificadas como exceções, entre outros, por Henri Desbois (Le Droit d’Auteur en France, 3e. ed., Paris: Dalloz, 1978, p. 312, 351)” 381 BARBOSA, Denis Borges, Tratado da Propriedade Intelectual, vol. I, Cap. II, Lumen Juris, 2010, [ 4 ] § 5.7. (C) Da razoabilidade como limitação legal aos direitos 186

propriedade intelectual bém a oportunidade de considerar, citando Canotilho: “As idéias de ponderação (Abwängung) ou de balanceamento (balancing) surge em todo o lado onde haja necessidade de “encontrar o Direito” para resolver “casos de tensão” (Ossenbühl) entre bens juridicamente protegidos. Assim, não é interpretação restrita, mas equilíbrio, balanceamento e racionalidade que se impõe. De uma forma particular, mas não menos presentes, as limitações se aplicam aos direitos de personalidade. Diz Guilherme Calmon382: Os direitos da personalidade integram-se em nosso ordenamento jurídico com outras proposições e outros poderes jurídicos de conteúdo diverso. Assim sendo, tais direitos são dotados de certa finitude, condicionando sua existência, validade e, com maior razão, seu exercício. O primeiro desses limites que pode ser apontado diz respeito ao abuso de direito. Embora seja a liberdade um bem essencial da personalidade e verdadeiro alicerce da própria dignidade da pessoa humana, o espaço deixado à autonomia privada deve ser sempre restringido quando houver excesso manifesto dos limites impostos pelo fim social ou econômico desse direito, conforme previsão contida no art. 187, do CC/2002 . Na própria dicção do art. 5.º, II, da CF/1988 , observa-se que a liberdade pode sofrer restrições tais como outros bens jurídicos, daí a função do princípio da dignidade da pessoa humana como restrição ao direito da liberdade. “Assim, no exercício dos diferentes poderes, faculdades e simples liberdades de agir que integram o direito geral de personalidade, o respectivo titular não está sujeito a realizar uma determinada e tipificadora função legal, podendo exercê-los dentro da sua autonomia privada. Todavia, em tal exercício, não pode exceder manifestamente o fim sócio-econômico do direito geral de personalidade, ou seja, o objetivo de permitir, igualitária e harmonicamente, a cada um e a todos os homens a preservação e o desenvolvimento das suas personalidades individuais”.383 Em particular no tema de nosso estudo, diz Sonia Maria D’Elboux384: Esses limites decorrem do fato de que, em determinadas circunstâncias, sobre o direito à imagem prevalecem o direito à informação, a necessidade de manutenção da ordem pública e/ou da segurança nacional, o aten382 Op. Cit. 383 [Nota do original] SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de, op. cit., p. 520-521. [SOUSA, Rabindranath V. A. Capelo de. O Direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.] 384 Op. Cit. 187

dimento do interesse público ou social. Como ensina Maria Helena Diniz, “há uma relativização do direito à imagem, que sofre algumas restrições em prol da coletividade”385. Assim, conforme construção doutrinária e jurisprudencial, é dispensada a anuência da pessoa retratada para a divulgação de sua imagem (desde que sem conotação comercial), nas seguintes situações:  a) Acontecimentos da atualidade – notícias. Essa limitação é motivada pelo direito coletivo à informação jornalís-

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tica:  b) Se o tema da foto for paisagens, cenas de rua e eventos públicos e as pessoas retratadas sejam apenas parte do cenário. (...)  c) Se as pessoas retratadas forem vultos da história contemporânea (políticos, escritores famosos, artistas, modelos, atletas etc.), desde que não sejam retratados em momentos de intimidade. (...)  d) Caso a divulgação da imagem vise atender à administração ou serviço da Justiça, Polícia ou segurança pública. (...)  e) Se a divulgação do retrato tiver a finalidade de atender ao interesse público, aos fins culturais, científicos e didáticos. Postulando a hipótese de tutela dos interesses das celebridades sobre sua persona no duplo aspecto dos direitos de personalidade e dos direitos autorais, passemos assim a pormenorizar as limitações que recaem sobre tais interesses.

25. Das limitações inerentes ao estatuto autoral A distinção que já se mencionou, entre o interesse público, motor das limitações e o interesse do público, é aqui crucial386. Cabe aqui ressaltar uma distinção que a doutrina estabelece entre o interesse público, ou seja, o interesse de todos de caráter mais geral, e o interesse do público no sentido do destinatário da obra intelectual, que é mais particular, mas que deve refletir sempre um interesse coletivo387. A questão que se coloca é se o interesse privado do autor contrapõe-se ao interesse público 385 [Nota do original] “Direito à imagem e sua tutela”. In: Estudos de direito de autor, direito da personalidade, direito do consumidor e danos morais, pp. 98-99. [In: Estudos de direito de autor, direito da personalidade, direito do consumidor e danos morais: Homenagem ao professor Carlos Alberto Bittar. Coord. de Eduardo C. B. Bittar e Silmara Juny Chinelato. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.] 386 SANTOS, Manoel J. Pereira e BARBOSA, Denis Borges, As Limitações Aos Direitos Autorais, in SANTOS, JABUR e BARBOSA, Org.,, Direitos Autorais, Publicações GVLaw, Saraiva, 2012 387 [Nota do Original] Vide CARRE, Stéphanie, op. cit., p. 30. [CARRE, Stéphanie. L’Interet du Public en Droit d’Auteur. Tese (Doutorado em Direito). - Universidade de Montpellier, Montpellier, 2004] 188

propriedade intelectual ou ao interesse do público? O exame desta matéria não se exaure no interesse direto do usuário, mesmo como um direito difuso, uma vez que é necessário considerar que a criação intelectual integra o patrimônio cultural do povo e, assim, há um interesse público não só na criação de obras para desfrute do usuário, mas também no acesso e na preservação do acervo intelectual. Assim sendo, a exclusividade reconhecida ao autor não deve impedir o exercício de outros direitos fundamentais, em especial o direito de acesso à informação e à cultura388. Imbricada com esse ponto é a teoria de “livre utilização” da Lei Autoral alemã, segundo a qual um autor pode se inspirar em obra preexistente, desde que não se aproprie de sua essência criativa389. Esta doutrina favorece a conciliação de outro direito fundamental – a Liberdade de Expressão – com o Direito de Autor. Assim, a celebridade é parte da cultura e deve à cultura sua criação390. Os interesses econômicos e pessoais relativos aos objetos dos direitos autorais devem sujeição genérica - ou ponderação específica - aos direitos fundamentais à cultura391, e ao admitir-se tutela autoral à persona faz-se concentrar-se sobre ela o impacto dessa consideração. Parte central do dito a celebridade obriga vem da demanda de que, como expressão cultural singularizada em obra, impõe-se à persona a fruição cultural da sociedade392 e o dever de – como parte do fluxo cultural – não se 388 [Nota do original] Zechariah Chafee Jr., em seu estudo sobre os seis pressupostos para o Direito Autoral, afirmava que, embora ninguém pudesse comercializar a obra de um autor, todos deveriam poder utilizá-la. Vide CHAFEE JR., Zechariah. Reflections on the Law of Copyright, Columbia Law Review, vol. 45, n. 4, pp. 503-529, 1945. 389 [Nota do original] Vide Adolf Dietz, Germany, § 8[2][b][ii], in: GELLER, Paul Edward (coord.), op. cit.. [GELLER, Paul Edward (coord.). International Copyright Law and Practice. New York: Lexis Nexis, 2010] 390 COOMBE, op. cit. “The Marx Brothers themselves might be seen as imitative or derivative works, whose creation and success as icons in popular culture derive from their own creative reworkings of the signifying repertoire of the vaudeville community. Contemporary stars are authored in a similar fashion. How much does Elvis Costello owe to Buddy Holly, Prince to Jimi Hendrix, or Michae1 Jackson to Diana Ross? Take the image of Madonna, an icon whose meaning and value lie partially in its evocation and ironic reconfiguration of several twentieth-century sex-goddesses and ice queens (Marilyn Monroe obviously, but also Jean Harlow, Greta Garbo, and Marlene Dietrich) that speaks with multiple tongues to diverse audiences. Descriptions of the Madonna image as semiotic montage abound.” 391 Vide FERNANDES, José Ricardo Oriá. A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas. In: Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira. vol. 1. Brasília, 2008. SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura. Coimbra: Almedina, 2007.PEREIRA, Larissa Alcântara. Direitos fundamentais mitigados: em busca de um novo direito de autor. Curitiba: UniBrasil, 2010. SOUZA, Allan Rocha de. Os direitos culturais e as obras audiovisuais cinematográficas: entre a proteção e o acesso. Rio de Janeiro: UERJ, 2010. 392 “Nas modernas sociedades democráticas todas as pessoas devem ter acesso à cultura, pelo que, para além do direito fundamental de criação cultural, é preciso garantir igualmente o direito fundamental de fruição cultural. O direito de fruição cultural surgiu, assim, ligado à afirmação da necessidade do Estado criar condições de acesso de todas as pessoas aos bens culturais, ou seja, como um direito à actuação dos poderes públicos para obter tal resultado (com a “segunda geração” de direitos fundamentais), mas, nem 189

excluir de sua reelaboração393. Em particular, o uso da persona como elemento da própria ação criadora da sociedade não pode ser contida desponderamente, em particular quando há a transformação criativa que legitime o uso da persona como insumo394. Como nota certo precedente estadual americano, uma coisa é o uso da imagem da celebridade como centro da obra a qual se examina a eventual contaminação395; outra é utilizá-la como matéria de partida para obra nova396. Neste último caso, as

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por isso, ele deixa de possuir igualmente uma dimensão negativa, enquanto direito de defesa contra agressões de entidades públicas e privadas na “liberdade” individual de fruir tais bens (na lógica da “primeira geração dos bens culturais).” SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura. Coimbra: Almedina, 2007. 393 “Num processo muito conhecido pelos economistas da propriedade intelectual e pelos constitucionalistas, o criador sempre consome elementos da criação de autores precedentes, muitas vezes, mas não sempre, já em domínio público. Tal reaproveitamento - como transformação criativa - caracteriza longo período da história, pelo menos até a consolidação dos direitos de exclusiva. No contexto de uma produção expressiva para o mercado de consumo de massa, como maximização de mercado e compressão do conteúdo inovador das obras, esse reaproveitamento de material prévio toma a forma de cópia de segmentos narrativos, de desenho de personagem, de situações já testadas perante o público. Mas essa figura de direito é particularmente importante para descrever ou conceituar a mudança introduzida por um originador sobre material intelectual preexistente, como ocorre no aperfeiçoamento das invenções , derivação das obras autorais ou de software , ou dos cultivares. Em cada um desses casos, aplica-se o princípio que a modificação constitui propriedade do modificador, sendo que no caso das leis autorais se exige para que tal se dê a autorização do titular da obra originária. Assim, é particularmente relevante na geração de bens incorpóreos relativos a criações intelectuais este reprocessamento de material alheio.” BARBOSA, Denis Borges, Prefácio, in BARBOSA, D.B. (Org.) ; Lélio Denicoli Schmidt; Elisabeth Kasznar Fekete; Letícia Provedel; Marissol Gómez Rodrigues, Reivindicando a Criação Usurpada (A Adjudicação dos Interesses relativos à Propriedade Industrial no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 394 “Nesse sentido, Jed Rubenfeld afirma que não se deve tomar o método do fair use como substituto da análise sobre os limites do direito autoral frente à liberdade de expressão, prevista na Primeira Emenda à Constituição norte-americana, pois o fair use seria “econocêntrico” ao direcionar os seus elementos para uma apreciação dos efeitos econômicos que o uso da obra causa ao seu autor ou titular dos direitos autorais. Segundo o autor: “A exceção do fair use ao direito autoral é largamente econocêntrica; ela é organizada em grande parte em torno da idéia de adequação aos interesses econômicos do titular do direito autoral.” (“The freedom of Imagination: copyright´s constitutionality”, in Yale Law Journal , v.112, nº 01 (oct/2002); p. 19).” SOUZA, Carlos Affonso Pereira de Souza, O Abuso Do Direito Autoral, Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do Grau de Doutor em Direito Civil. Rio de Janeiro 2009. 395 “Saber se uma obra é originária ou derivada passa pela análise da quantidade criativa da segunda em relação à primeira. Em outras palavras, cabe saber se houve de fato uma transformação da obra primígena ou se há apenas a utilização de alguns de seus elementos pela obra derivada. Dessa forma, o que determinará se uma determinada obra é originária ou derivada será o quantum de grau mínimo criativo (contributo mínimo) que uma possui em relação à outra.” RAMOS, Carolina Tinoco, Contributo ... op. cit. ”In reviewing the U.S. Court of Appeals for the Sixth Circuit’s rejection of 2 Live Crew’s fair use defense, the Supreme Court [Campbell v. AcuffRose Music, Inc., 510 U.S. 569 (1994)] emphasized the lower court’s error in giving essentially conclusive effect to the fact that the defendants had profited financially. The Court stated that the first fair use factor, the purpose and character of the use, focuses on determining “whether the new work merely supersede[s] the objects of the original creation . . . or instead adds something new, with a further purpose or different character, altering the first with new expression, meaning, or message; it asks, in other words, whether and to what extent the new work is transformative.” The Court noted that the more transformative the use, the less important other considerations such as commercialism will be.” LANGVARDT e LANGVARDT, op. cit. 396 “We developed a test to determine whether a work merely appropriates a celebrity’s economic value, and thus is not entitled to First Amendment protection, or has been transformed into a creative product that the First Amendment protects. The “inquiry is whether the celebrity likeness is one of the ‘raw materials’ 190

propriedade intelectual obrigações perante a cultura não comportam oposição categórica397. Um exemplo importante, ainda que tirado do campo das marcas, foi o uso do nome de Ginger Rogers no filme de Fellini Fred e Ginger, título que foi objetado nos Estados Unidos pelos titulares dos direitos relativos à atriz398. Mesmo considerando os interesses mais ingentes da integridade de marca, entendeu-se que a necessariedade estética superava qualquer interesse da persona399. from which an original work is synthesized, or whether the depiction or imitation of the celebrity is the very sum and substance of the work in question. We ask, in other words, whether a product containing a celebrity’s likeness is so transformed that it has become primarily the defendant’s own expression rather than the celebrity’s likeness. And when we use the word ‘expression,’ we mean expression of something other than the likeness of the celebrity.” Winter v. DC Comics, supra note75, at 888 (Cal. 2003) (quoting Comedy III, 25 Cal. 4th at 406). Assim, justifica-se a crítica de COOMBE, op. cit., às hipóteses em que se utiliza a celebridade como marco de cultura ou de época: “In Groucho Marx Productions, Inc. v. Day and Night Co., [523 F. Supp. 485 (S.D.N.Y. 1981), rev’d, 689 F.2d 317 (2d Cir. 1982] those who held rights in the Marx Brothers made a successful publicity rights claim against the creators of the play A Day in Hollywood, A Night in the Ukraine. The play’s authors intended to satirize the excesses of Hollywood in the thirties and invoked the Marx Brothers as characters playfully imagined interpreting a Chekhov drama. The defendants were found liable, and their First Amendment claim was dismissed on the ground that the play was an imitative work.” Como diz a autora, sem essa percepção aguda, “Publicity rights enable stars to “establish dynasties on the memory of fame.” 397 “I believe the answer to the question of justification turns primarily on whether, and to what extent, the challenged use is transformative. The use must be productive and must employ the quoted matter in a different manner or for a different purpose from the original. A quotation of copyrighted material that merely repackages or republishes the original is unlikely to pass the test; in Justice Story’s words, it would merely “supersede the objects” of the original. If, on the other hand, the secondary use adds value to the original--if the quoted matter is used as raw material, transformed in the creation of new information, new aesthetics, new insights and understandings-- this is the very type of activity that the fair use doctrine intends to protect for the enrichment of society.” A noção de transformação criativa como uma forma específica de limitação – forma essa que à luz do precedente do STJ não careceria de previsão normativa – se encontra originalmente neste texto de LEVAL, Pierre N., Toward a Fair Use Standard 103 Harv. L. Rev. 1105 (1990), encontrado em http://docs.law.gwu.edu/facweb/claw/LevalFrUStd.htm, visitado em 7/12/2011. Sobre a relevância de tal texto, vide KELLER, Bruce P., e TUSHNET, Rebecca, Even more parodic than the real thing: parody lawsuits revisited, Trademark Reporter, Vol. 94 TMR 979. Dentro desse pressupostos, a transformação criativa resulta direta e inexoravelmente da liberdade de criação constitucional. 398 A construção das marcas, inclusive pelo aspecto de autoria plúrima e difusa, tem muito em contato com a das celebridades. “Having embarked on that endeavor, the originator of the symbol necessarily - and justly - must give up some measure of control. The originator must understand that the mark or symbol or image is no longer entirely its own, and that in some sense it also belongs to all those other minds who have received and integrated it. This does not imply a total loss of control, however, only that the public’s right to make use of the word or image must be considered in the balance as we decide what rights the owner is entitled to assert.” KOZINSKI, Alex, Judge, United States Court of Appeals for the Ninth Circuit, Trademarks Unplugged, New York University Law Review, October 1993, 68 N.Y.U.L. Rev. 960. De outro lado, vide Jason Bosland, The Culture of Trade Marks: An Alternative Cultural Theory Perspective, http://papers.ssrn.com/ sol3/papers.cfm?abstract_id=771184, vistado em 26/10/2206: “The underlying difficulty with shaping a dilution right is balancing the competing interests in allowing the public to use a mark as an expressive resource through criticism or commentary, while at the same time, preventing harm which is adverse to a trade mark’s continued cultural use. To balance these interests, I propose that the expressive use of a mark should be protected from dilution in the context of trade, that is, where a plaintiff ’s mark is being used in the advertising context to market a defendant’s goods or services. This is to be compared with a commercial situation where the defendant’s expressive use of a trade mark forms part of the goods on offer, such as in the title or lyrics of a song, or where the trade mark is used in a poster or on a t-shirt.” 399 “In Rogers v. Grimaldi [875 F. 2d 994?2d Cir. N.Y. 1989], the Second Circuit adopted a balancing test for trademark infringement in cases implicating artistic expression to accommodate these dual interests: “The 191

Note-se que nem sequer é um interesse comercial subsidiário que impede o uso do valor de reconhecimento da celebridade na construção da cultura e da sociedade, inclusive como expressão política.

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Como já se enfatizou, a camiseta que inclui a facies de uma celebridade apoiando ou rejeitando algum elemento da ideologia política ou social em relação a qual a fama da estrela é notória não pode ser coarctada com base em direitos autorais, ou em direito da personalidade. Os jornais são pagos, e nem por isso se retira a eles a plenitude da livre informação, e uma camiseta, ou banner terá função igual enquanto discutindo fatos ou ideias400. Coisa diversa, sem dúvida, é usar a mesma imagem para apoiar a venda de um produto ou serviço. Tratamos aqui das limitações em abstrato. Não só se reconhece a impropriedade da listagem corrente da Lei 9.610/98, objeto de proposta legislativa em curso, como o fato, que sempre afirmamos, que as limitações da propriedade intelectual são exercícios de ponderação. Cristalizam certas propostas de equilíbrio de interesses de guarida constitucional, sem proscrever outros401, observadas - no pertinente e enquanto compatíveis com a Constituição - as restrições oriundas dos tratados.

26. Das limitações relevantes do confronte de interesses públicos Muitas das limitações pertinentes ao objeto protegido pelo direito autoral resultam do antagonismo entre interesses relativos às criações da Lanham Act should be construed to apply to artistic works only where the public interest in avoiding consumer confusion outweighs the public interest in free expression. . . . It insulates from restriction titles with at least minimal artistic relevance that are ambiguous or only implicitly misleading but leaves vulnerable to claims of deception titles that are explicitly misleading as to source or content, or that have no artistic relevance at all.” MCDERMOTT, John, Permitted Use of Trademarks in the United States, 〈日本知財学会 誌) Vol.5 No.4 2009 : 23 43, encontrado em http://www.ipaj.org/english_journal/pdf/5-4_Mcdermott.pdf, visitado em 3/12/2011. 400 GARON, Jon M., Beyond the First Amendment: Shaping the Contours of Commercial Speech in Video Games, Virtual Worlds and Social Media (November 20, 2011). Available at SSRN: http://ssrn.com/ abstract=1962369. COTTER, Thomas F., DMITRIEVA, Irina Y., Integrating the Right of Publicity with First Amendment and Copyright Preemption Analysis, http://works.bepress.com/thomas_cotter/5, visitado em 30/11/2011. 401 “Necessidade de interpretação sistemática e teleológica do enunciado normativo do art. 46 da Lei n. 9610.98 a luz das limitações estabelecidas pela própria lei especial, assegurando a tutela de direitos fundamentais e princípios constitucionais em colisão com os direitos do autor, como a intimidade, a vida privada, a cultura, a educação e a religião. O âmbito efetivo de proteção do direito a propriedade autoral (art. 5o, XXVII, da CF) surge somente apos a consideração das restrições e limitações a ele opostas, devendo ser consideradas, como tais, as resultantes do rol exemplificativo extraído dos enunciados dos artigos 46, 47 e 48 da Lei 9.610.98, interpretadas e aplicadas de acordo com os direitos fundamentais. Utilização, como critério para a identificação das restrições e limitações, da regra do teste dos três passos (‘three step test’), disciplinada pela Convenção de Berna e pelo Acordo OMC.TRIPS.” Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial , No 964.404- ES (2007.0144450-5), Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, Ministro Paulo De Tarso Sanseverino, 15 de março de 2011.

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propriedade intelectual cultura (paródia e citação, por exemplo) e o do contraste entre o direito de acesso da sociedade aos frutos da sua cultura e o interesse em reservar singularmente os frutos morais e materiais da criação cultural. Assim, as limitações são instrumentos de coerência e eficácia do próprio direito autoral como instrumento da cultura. Esses interesses, mas em pesos diversos, atuam no tocante a outros exercícios de direitos individuais que fujam ao escopo autoral. Quando se assegura o direito de reproduzir o texto integral de notícia ou artigo informativo em outro órgão de imprensa a lei autoral vai bem além de garantir o conteúdo da informação veiculada, o que em tese bastaria para atender o direito fundamental ao acesso à história402; garante-se, pela sua relevância perante o direito fundamental, ao acesso à informação a real expressão do informe original. Aqui, não temos uma relação interna à coerência do sistema jurídico autoral, mas sua permeação entre outros interesse constitucionais. Por isso, a pertinência da lista de vulnerações necessárias aos interesses das celebridades, mesmo sem apelo ao estatuto autoral, a que se refere Sonia D’Elboux: acontecimentos da atualidade em que o constructo da celebridade aceda; as aparições inconspícuas da celebridade, que sejam apenas parte do cenário; o uso da imagem da celebridade para fins da administração ou serviço da Justiça, Polícia ou segurança pública; ou quando, de resto, o uso tiver a finalidade de atender ao interesse público, aos fins culturais, científicos e didáticos. Em cada um desses casos, não se veja uma legitimação absoluta, ou à outrance. Trata-se sempre de um ajuste entre interesses constranstates, em que o interesse privado não pode inexoravelmente preponderar, nem ser eliminado irremissivelmente. Essa ponderação necessária encontra, às vezes, voz constitucional explícita403; mas dela não carece.

27. Das limitações inerentes ao princípio da veracidade O uso da persona, mesmo em atuações consentidas, não pode descurar de interesse outros, a que se dedica a tutela pública. O uso é lícito, mesmo se não estritamente exercício de direito de personalidade, mas de titularidade 402 Lei 9.610/98 Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; 403 Constituição espanhola, Art. 8.1. “No se reputarán, con carácter general, intromisiones ilegítimas . . . cuando predomine un interés histórico, científico o cultural relevante.” “2. En particular, el derecho a la propia imagen no impedirá: (a) Su captación, reproducción o publicación por qualquier medio, cuando se trate de personas que ejerzan un cargo público o una profesión de notoriedad o proyección pública y la imagen se capte durante un acto público o en lugares abiertos al público.” 193

da persona, quando haja empréstimo de verossimilhança, mas não sanção de verdade inexistente. Assim é porque, não obstante a persona ser resultado de uma fabulação, que exatamente por isso adquire sedução, o emprego desse fascínio para associar-se a venda de produtos e serviços não pode ser atraído para o plano de um engano; a fama pode conotar por empréstimo a operação comercial, mas não pode nunca romper a barreira da verossimilhança. Como lembrou a maioria do STJ no caso Maitê Proença,  a) a mensagem emitida pela campanha televisiva limitou-se tão-somente a estimular, mediante o uso da publicidade protagonizada pela atriz, o público a retomar sua crença no produto;

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 b) no sentido prestado pela atriz, leiga quanto ao produto e todos os riscos de fabricação, condições de assegurar ao público, com rigor técnico e científico, as qualidades terapêuticas e segurança nos métodos de fabricação do medicamento; e  c) como resultado dos itens ‘a’ e ‘b’: a campanha testemunhal não assegura ao público as qualidades do produto, apenas estimula-o a confiar nos novos parâmetros de qualidade. Na verdade, o limite aqui é manter o estranhamento404, a consciência do público que se tem um enredo fabular, um empréstimo conotativo de valores, e não um endosso denotativo, ainda que isso se dê num fio sensível de faca. Como se nota quanto a este dever da arte, e de todo constructo405: 404 “A arte tem como procedimento o estranhamento das obras e da forma de acesso difícil que aumenta a dificuldade e o tempo da percepção, visto que, em arte, o processo perceptivo é um fim em si mesmo e deve ser prolongado”. Chklovski, Victor. “A arte como procedimento”. Tradução de Ana Maria Ribeiro Filipouski et al. In: Toledo, Dionísio (org). Teoria da Literatura: Formalistas russos. 1.ed. Porto Alegre: Globo, 1973, p. 39-56. “Um juízo do tipo “Deus é bom”, expresso em linguagem verbal, é reelaborado em poesia, através de imagens, rima, efeitos, etc., de tal forma que a proposição universal se resuma em particular - Deus é bom neste poema. Desta forma, a visão de mundo (proposição universal) fica reduzida ao texto poético e sua ação na linguagem específica (verbal) se torna evidente.” Danusia Bárbara e BARBOSA, Denis Borges. In Revista Littera Rio, Ed. Grife, 1972, no. 6, setembro/ dezembro, p. 38. No sentido mais próximo ao que se fala neste contexto: Los formalistas rusos, especialmente Víktor Shklovski usaron la palabra otstranenie (отстранение) para referirse a aquellos modos de proceder en el lenguaje literario que tiene como fin el de dar una nueva perspectiva de la habitual visión de la realidad al presentarla en contextos diversos a los acostumbrados o al representarla de un modo en el cual se nota que la representación es una ficción -por ejemplo mediante la exageración, el grotesco, la parodia, el absurdo etc.-. Esto generalmente puede ser experimentado en tres niveles: el lingüístico (por ejemplo al recurrir a palabras o formas estilísticas inusuales, anormales); el nivel de los géneros literarios ya definidos pero insertos en esquemas insólitos y el nivel de la percepción de la realidad creando situaciones o relaciones imprevistas. 405 MIRANDA, Álvaro Guilherme, A visão pessimista da literatura brasileira do século XIX sobre o Direito, Resenha sobre o ensaio “Direito e Literatura”, de Denis Borges Barbosa, in Da Tecnologia à Cultura: Ensaios e Estudos de Propriedade Intelectual Lumen Juris (2011), Tópicos Especiais em Propriedade Intelectual: Semiologia e Propriedade Intelectual (INPI / PPED) 194

propriedade intelectual Denis Barbosa observa que a questão da verossimilhança e da retórica de sistemas desempenha papel ordenador do Direito: “A coerência do sistema jurídico corresponde à ordem natural e também à ordem da ciência. (...) há uma verossimilhança de autoridade científica, resultante do poder intrínseco da logicidade e da correspondência.” (2011, pp: 726-727). O sistema da construção literária também tem sua ordenação, mas a diferença é que o Direito, segundo ele, se vende como fazendo parte da ordem “imutável e serena da Natureza, enquanto que a eficácia da obra literária ficcional se baseia na consciência do leitor de que o universo que se lhe apresenta é (...) artificial, obra do homem – no mecanismo mágico do estranhamento.” (2011: 727). A questão, porém, desse estranhamento é que a literatura ficcional pode nos fazer compreender de forma mais aguda as profundezas da natureza humana, se é que existe uma natureza humana, do que um tratado científico de neurociência ou psicanálise. Denis Barbosa observa que: como notou Lukacs, a ideologia burguesa refletida nos romances de Balzac teria uma pungência e clareza mais veemente do que todo o corpo crítico da ciência social contemporânea a Eugene Grandet. Exatamente como Jhering, Marx sentiu que a clareza da visão literária ultrapassaria de muito a crítica científica de então. Claramente se evoca aqui a noção de estranhamento (...). Para essa perspectiva marxista, o Direito seria outro dos discursos da ideologia, caracterizado por uma ilusão de que a instância do jurídico predominaria sobre outras práticas sociais. (2011, pp: 730-731). Se determinadas situações da arte podem requerer o caráter de verossimilhança, esta pode ser pensada como elemento convincente, mas sempre deixando claro tratar-se da não realidade. É nesse sentido que se deve entender os critérios do CONAR ou de outras fontes em face dos deveres das celebridades.

28. Da responsabilidade contida no tocante ao direito de marcas Curiosamente, pode-se notar que a possível vinculação da celebridade por seu endosso, no campo do direito de personalidade ou no campo autoral, talvez não encontrasse igual agravo, se se tratasse a questão no campo das marcas. Em análise sobre a questão406, tivemos ocasião de notar quanto a julgado da Corte Européia: 406 BARBOSA, Denis Borges, Pode uma pessoa “vender” seu nome para uma marca da qual não exerce controle de qualidade? (2008), Encontrado em http://denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/ pode_uma_pessoa.pdf 195

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16.15 Dúvidas têm sido suscitadas perante a ECJ concernentes a cessão de marcas que consistem em nomes de indivíduos famosos. Em particular se quando tal cessão ocorre, mas o indivíduo não permanece envolvido com o negócio, se resultaria em engano ao consumidor. Elizabeth Emanuel v Continental Shelf (Elizabeth Florence Emanuel v Continental Shelf 128 Case C-259/04, AG Opinion para 63) relativamente a concessão, por Elizabeth Emanuel, da marca portando seu nome junto com o logo formado por dois ‘E’s de costas para o outro. Após a titularidade da marca ter mudado diversas vezes, a Sra. Emanuel fez uma oposição quanto à uma mudança na marca registrada e pediu sua revogação baseando-se que deixar a marca permanecer registrada seria como enganar o público nos termos do Artigo 3 (1) g da Diretiva. Foi argumentado, que uma significativa proporção do público relevante acreditaria que o uso da marca indicaria que o indivíduo permanecia envolvido com o design ou criação dos produtos em relação com os quais a marca era usada, e ao usar assim a marca em um negócio em que o indivíduo não estivesse envolvido seria enganoso. A ECJ não aceitou o argumento. A corte decidiu que a marca que corresponde ao nome da designer e primeira produtora dos produtos não, por tal razão, passível de revogação com base em que levaria o público a se enganar. Isto se dava particularmente onde o fundo de comércio associado com a marca tenha sido cedido juntamente com o negócio que produz os bens relacionados à marca. Portanto uma marca consistindo em um nome famoso pode ser cedida mesmo se o indivíduo não permaneça posteriormente associado com o negócio. Ainda que isso pareça um estranho resultado sob a ótica de que um consumidor pode confundir-se achando que o designer em questão não tenha de fato participado do design dos produtos, é indubitavelmente um reflexo do que ocorre na vida comercial. Até que ponto, por exemplo, a Naomi Campbell participa do desenvolvimento dos perfumes vendidos sob seu nome? Como o Procurador Geral argumentou: ‘o usuário tem ciência da possibilidade de divergências entre nomes pessoais usados como marcas e a participação de tais pessoas na produção dos bens ou serviços por ele abrangidos: Todos os consumidores sabem que um designer de moda pode transferir seu negócio a qualquer tempo’407 407 MACQUEEN, Hector & Charlotte Waelde & Graeme Laurie. Contemporary Intellectual Property: Law and Policy. OXFORD: Oxford University Press, 2008, p. 669-670. 16.15 Questions have been raised before

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propriedade intelectual Ou seja, não há lesão ao consumidor quando o titular da fama deixa a sociedade; na economia presente a flutuação dos nomes e dos signos é esperada e faz parte da sensibilidade do consumidor. Ninguém espera que os produtos da “Xuxa” sejam manufaturados pela artista pessoalmente, como não espera que a Mônica – que endossa miríades de produtos – incorpore-se em pessoa física e exerça controle de especificações408. Num outro plano, mas igualmente relevante, vale mencionar a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos ao repelir o uso da marca para afirmar a subsistência de direitos exclusivos em obras autorais de domínio público409. the ECJ concerning the assignation of trade marks which consist of the names of well-known individuals. In particular as to whether where such an assignation occurs, but the individual does not remain involved with the business, whether consumer deception would result. Elizabeth Emanuel v Continental Shelf (Elizabeth Florence Emanuel v Continental Shelf 128 Case C-259/04, AG Opinion para 63) concerned the assignation, by Elizabeth Emanuel, of the trade mark bearing her name along with a crest made up of two ‘E’s back to back. After ownership of the trade mark had changed hands several times, Ms Emanuel opposed a proposed amendment to the registered trade mark and applied for revocation of the existing mark on the grounds that to let the mark stay on the register would be to deceive the public within the meaning of Article 3 (1) (g) of the Directive. It was argued ,that a significant proportion of the relevant public would believe that use of the trade mark indicated that the individual remained involved with the design or creation of the goods in relation to which the marks was used, and so using the name mark in a business in which the individual was not concerned would be deceptive. The ECJ did not accept this argument. The court ruled that a trade mark which corresponds to the name of the designer and first manufacturer of the goods is not, for that reason, liable to revocation on the ground that that mark would mislead the public. This was particularly so where the goodwill associated with that mark has been assigned together with the business making the goods to which the mark relates. Thus a trade mark consisting of a well-known name can be assigned even if the individual does not thereafter remain associated with the business. Although this might seem an odd result if the view is taken that a consumer might be confused that the named individual designer had not actually had a hand in designing the goods, it undoubtedly reflects what happens in commercial life. To what extent, for example, does Naomi Campbell have a hand in developing perfumes sold under her name? As the AG had argued: ‘a user is aware of the possibility of divergences between personal names used as trade marks and the participation of those persons in the production of the goods or the provision of the services which they cover: All consumers know that a fashion designer is entitled to transfer his or her business at any time’. 408 Não assim na economia de há 90 anos atrás: MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 99-100.” Se na marca há nome de pessoa, que figura como o titular, não pode ser transferida, porque passaria a conter indicação inverídica (certo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, 1.° de julho de 1918, R . dos T., 26, 370, cf. 27, 19)”. 409 “The consumer who buys a branded product does not automatically assume that the brand-name company is the same entity that came up with the idea for the product, or designed the product – and typically does not care whether it is. The words of the Lanham Act should not be stretched to cover matters that are typically of no consequence to purchasers.” (...) The problem with this argument according special treatment to communicative products is that it causes the Lanham Act to conflict with the law of copyright, which addresses that subject specifically.” Dastar Corp. v. Twentieth Century Fox Film Corp., 539 U.S. 23, 34 (2003). Vide, igualmente, a nota que se faz neste estudo sobre o caso relativa ao filme de Fellini, Fred e Ginger.

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propriedade intelectual OS EFEITOS DA CUMULAÇÃO DE DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL – Direitos autorais x Marcas Patricia Carvalho da Rocha Porto410

1. Introdução A cumulação de direitos de propriedade intelectual é uma questão comum a todos os institutos protegidos por estes direitos. Esse fenômeno e seus possíveis problemas têm sido objeto grandes discussões e controvérsias em diversos países, inclusive, no Brasil. Por essa razão, o tema tem sido debatido de forma intensa no âmbito internacional. A ação judicial envolvendo o maior valor já discutido no Brasil sobre o pagamento indevido de royalties pela exploração de direitos de propriedade intelectual tem como objeto central o questionamento da cumulação de direitos de propriedade intelectual e seus efeitos deletérios para os interesses nacionais e para o desenvolvimento econômico e tecnológico do país411. Entretanto, em que pese a relevância, controvérsia e a urgência do tema, as quais dão causa à ações judiciais e a estudos em busca da solução do problema. Ainda não se chegou a um consenso acerca da abordagem adequada da questão, nem sobre os critérios apropriados para a resolução ou compatibilização dos problemas originados por essas cumulações disfuncionais. Em vista do acima exposto, o objeto do presente artigo é realizar uma análise introdutória sobre o fenômeno da cumulação de direitos de propriedade intelectual, particularmente no tocante aos diretos de marcas cumulados com os direitos autorais. Iniciaremos a nossa análise examinando de forma introdutória o fenômeno da cumulação de direitos de propriedade intelectual. Nessa etapa, definiremos o tema, discutiremos sobre a sua relevância, examinaremos as razões apresentadas pela doutrina para a evolução desse fenômeno e os motivos que contribuíram para que essa questão, em alguns casos, se tornasse uma ameaça ao equilíbrio do sistema de propriedade intelectual. Posteriormente, concentraremos nosso estudo sobre a cumulação de direitos de marcas e direitos autorais. Examinaremos alguns tipos de cumulação entre 410 Doutoranda em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (UFRJ), Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação (INPI) e Especialista em Direito da Propriedade Intelectual (PUC-RJ) 411 A ação encontra-se em curso no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº 001/1.09.01069152 /Autores: Sindicato Rural de Passo Fundo-RS e outros /Réus: Monsanto do Brasil Ltda. e Monsanto Techonology LLC /Natureza: Ação Coletiva. 199

esses dois institutos e em cada seção pertinente discutiremos ações judiciais relativas ao tipo de cumulação comentada. A partir da matéria discutida nos casos judiciais, tentaremos levantar elementos e questões a serem objetos de estudos posteriores, com o objetivo de auxiliem no melhor entendimento das questões que permeiam o fenômeno da cumulação de direitos de PI.

2. Cumulação de Direitos de Propriedade Intelectual - Dpi

Patricia Carvalho da Rocha Porto

2.1. Definição

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Derclaye & Leistner (2011, p. 3) definem a cumulação de direitos como “the situation where two or more IPRs apply to the same physical object, where they have partially or fully the same legal subject matter”. Tomkowikz (2012, p. 5-7) divide o tema em duas dimensões para melhor defini-lo. Para esse autor, existem dois tipos de cumulação de direitos: (a) overlaps in fact, que segundo o autor são as tensões entre direitos de propriedade intelectual que protegem diferentes bens intelectuais inseridos ou fixados em um bem material e; (b) overlaps in Law, que em sua concepção são as cumulações de diferentes DPI sobre um mesmo bem imaterial, devido ao fato deste exercer duas funções distintas protegíveis por diferentes direitos.

propriedade intelectual Em estudo anterior sobre a questão assim ilustramos a incidência de vários bens intelectuais distintamente funcionalizados em um bem corpóreo e a incidência da dupla ou múltipla funcionalidade de um mesmo bem intelectual que coexiste em um bem corpóreo: “Sobre um mesmo corpus mechanicum pode existir um ou vários corpus mysticum, ou seja, sobre um mesmo bem material podem coexistir um ou vários bens incorpóreos. Cada corpus mysticum coexistente em um mesmo suporte pode ser412 tutelado por um direito de propriedade intelectual que, de acordo com a natureza daquele direito, gera uma forma determinada de proteção exclusiva. Assim, sobre um mesmo corpus mechanicum pode existir a cumulação de diversos direitos de exclusivas oriundos da proteção do corpus mysticuns sobre ele existente. Por exemplo, uma garrafa de refrigerante (corpus mechanicum) pode ter uma criação plástica e ornamental (corpus mysticum) que pode ser protegida por desenho industrial; pode ter um sinal formado por um nome estilizado (corpus mysticum) aposto em sua garrafa, distinguindo a garrafa e seu conteúdo de produtos idênticos ou similares, que pode ser objeto de proteção marcária; e a garrafa pode ser feita de um material cuja composição é uma invenção (corpus mysticum) que pode ser objeto de proteção patentária. O corpus mysticum, normalmente exerce uma única função sobre o bem corpóreo e por conseqüência é tutelado por um único direito de propriedade intelectual, que, de acordo com a natureza daquele direito, gera uma forma determinada de proteção exclusiva.413 Entretanto, há situações em um mesmo corpus mysticum existente sobre um corpus mechanicum exerce duas ou mais funções distintas, ou seja, ele passa a ser dois objetos de PI distintos, a natureza intrínseca do bem de divide em duas.414 Por exemplo, um bem é originalmente criado para ser era uma obra de desenho tutelado pelo direito autoral e passa a ser também uma marca, sem deixar de ser uma obra artística. 412 [Nota do original] “Outro fundamento de grande importância do direito de participação reside na diferença entre “corpus mysticum” e “corpus mechanicum”. O primeiro elemento é o espiritual, imaterial, incorpóreo. O segundo, é o suporte material, o mundo físico onde a obra se exterioriza. ”MORAIS, Rodrigo. O Direito Autoral do Artista plástico na revenda de suas obras. Artigo publicado no Jornal de Cultura da Bahia, http://www.rodrigomoraes.adv.br/artigos.php?cod_pub=32&pagina=1. Acesso em 1 de fevereiro de 2009. 413 [Nota do original] BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual, v. III. Rio de Janeiro, Lumens Juris, 2010: Em primeiro lugar, não é todo bem incorpóreo resultante da produção intelectual. Há alguns desses bens que não são protegidos por nenhum sistema de exclusiva. Alguns desses bens são protegidos por algum desses sistemas, sob certas condições. Assim, esses bens incorpóreos são suscetíveis de proteção jurídica mesmo quando não o são (ou ainda não são) pelas exclusivas concorrenciais 414 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual, v. I. Rio de Janeiro, Lumens Juris, 2010, p. 87. 201

O Mickey Mouse sempre foi conhecido por ser o personagem de um desenho dos Estúdios Disney, com o passar do tempo, essa empresa investiu na imagem do personagem como símbolo da Disney e a imagem do ratinho simpático passou à identificar os produtos e serviços do conglomerado Disney, tornando-se marca dessa empresa. Verifica-se na situação acima, que em um primeiro momento o desenho do ratinho simpático (corpus mysticum) era uma expressão artística, este ratinho estava funcionalizado como um desenho que representava um personagem em uma obra artística, função esta tutelada pelo regime de direito autoral. Com essa tutela, incidia sobre o desenho uma exclusiva cuja característica é uma proteção ampla, mas limitada no tempo.

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Com o passar dos anos, o mesmo desenho do ratinho simpático passou à ser associado à imagem da Disney e passou a identificar produtos e serviços desse conglomerado empresarial. Com isso, além da função de obra protegida pelo direito autoral, ele passou a funcionar como signo distintivo e, por essa razão, quando estava cumprindo esse papel de sinal distintivo, era tutelado pelo regime jurídico marcário e passou a ter proteção, naquelas circunstâncias, por tempo indeterminado, dentro das classes que protegem as atividades exercidas pelas indústrias Disney. Isso ocorre em situações especiais, quando um mesmo bem incorpóreo tem a capacidade de exercer duas ou mais funções distintas. Cada função é tutelada por um regime jurídico diferente. Na hipótese de um mesmo bem incorpóreo exercer duas funções tuteladas por regimes jurídico distintos, podemos ter uma cumulação de direitos (Porto, 2010, p. 4 e 5).”

2.2. Relevância do tema A cumulação de direitos de propriedade intelectual não é uma questão nova. No entanto, o debate acerca do tema e de seus efeitos tornou-se urgente. Tal se dá, em grande parte, por causa das mudanças ocorridas no sistema de propriedade intelectual nas últimas décadas. O aumento da relevância financeira dos direitos de propriedade intelectual tem estimulado a criação de novos tipos de DPI, bem como incentivado ampliação do escopo de proteção de DPIs já existentes. Essa ampliação de proteção gerou mais oportunidades para a ocorrência de cumulações de DPI disfuncionais. Essas disfunções afetam de forma deletéria o arranjo cuidadosamente desenhado de um ou mais DPI, a ponto de um direito anular a eficácia e os limites do outro. As patologias advindas de uma cumulação disfuncional podem trazer inúmeras consequências negativas para a sociedade, entre elas, o aumento do tempo no qual esta é privada do livre acesso ao um bem intelectual. Os sérios problemas gerados pelas cumulações disfuncionais já são objeto de importantes litígios judiciais no país. Para melhor ilustrarmos alguns

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propriedade intelectual dos danos possíveis de cumulações patológicas, expomos abaixo os fragmentos de recentes decisões nacionais que ilustram de forma clara e objetiva a relevância do tema e a sua atualidade: “. Forçoso é reconhecer que, em tais circunstâncias, impedir o plantio, ou condicioná-lo a que os orizicultores assinem contratos de pagamentos de royalties à cessionária, é causar dano irreparável ou de difícil reparação tanto à economia do Estado do RS, por ser um de seus principais pilares, quanto à cadeia produtiva, e bem assim à população em geral que necessita do produto para se alimentar. (...) A meu ver, porém, o que aqui importa é estabelecer a respeito da dupla proteção e respectivos atos que se entendem legais para o fim de evitar que os recorrentes pratiquem aqueles antes referidos como direito seu decorrente que são de seu direito de propriedade atento ao fim social a que se destina também. Não se pode admitir a prefalada dupla proteção modo a autorizar o proceder que se pretende com este recurso obstaculizar. Até porque pela Lei da Propriedade Industrial, tendo por objeto tecnologia, no caso, denominada Clearfield e pela Lei de Cultivares, tendo por objeto variedade de arroz, no caso, denominada IRGA 422CL (mutagenia) porque daí decorre que, em princípio, também não se pode admitir dupla cobrança de royalties pelo detentor dos direitos da Carta-Patente pelo detentor do Certificado de Proteção de Cultivar, isso porque os cultivares incorporam a tecnologia, como é sabido, e não sendo outro o motivo por que o art. 2º da Lei 9.456/97, estabelece que o Certificado é a “única forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa no País.” TJRS, AI Nº 70021344197, Primeira Câmara Cível, Des. Irineu Marian, 12 de dezembro de 2007. (grifo nosso) “... Saliento, outrossim, que as questões debatidas na presente demanda transcendem os interesses meramente individuais, uma vez que estamos tratando de bem imprescindível para própria existência humana, o ALIMENTO, cuja necessidade é urgente e permanente. (grifo nosso) ... ... imprescindível a análise histórica das duas legislações ora em comento (Lei de Proteção de Cultivares nº 9.456/97 e Lei de Propriedade Industrial nº 9.279/96), especialmente sobre a possibilidade ou não da dupla proteção, passando pela UPOV de 1978 (opção brasileira), o modelo TRIPS, bem como pela possibilidade de duplicidade (ou triplicidade) de cobrança pelas requeridas consistentes em cobrar royalties, taxa tecnológica ou indenização por ocasião do licenciamento da tecnologia Roundup Ready (RR) para que terceiros desenvolvam cultivares de soja com a tecnologia, no fornecimento das sementes geneticamente modificadas (tecnologia RR) e, após 203

ao plantio, cultivo e colheita, nos royalties (2%) sobre o total da produção; e, por fim, a análise individualizada das patentes trazidas pelas requeridas (fls. 605/1002), inclusive sobre a eventual inconstitucionalidade ou não dos arts. 230 231 da Lei de Patentes (denominadas patentes pipeline) por força da ADIN Nº 4234-3/600. (grifo nosso) ...

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O Brasil, mesmo pinçando aspectos das duas Atas (78 e 91), optou pela revisão de 1978 que proíbe explicitamente a dupla proteção dos direitos de exclusiva. No entanto, existem possibilidades de proteção por patentes de invenção em aberto no quadro jurídico da Lei de 9.279/96, por força do artigo 18, inciso III, para organismos geneticamente modificados. COMARCA DE PORTO ALEGRE – 15ª VARA CÍVEL – 1º JUIZADO / Processo nº 001/1.09.0106915-2 /Autores: Sindicato Rural de Passo Fundo-RS e outros /Réus: Monsanto do Brasil Ltda. e Monsanto Techonology LLC /Natureza: Ação Coletiva /Data da Sentença: 04.04.2012 /Juiz Prolator: GIOVANNI CONTI” (Grifo nossos.).

A doutrina igualmente se mostra sensível ao tema e enumera os danos que a cumulação deletéria pode causar para a sociedade e para o sistema de PI. Dentre eles podemos citar a mitigação do domínio público, a extensão indevida de diretos exclusivos sobre bens em detrimento dos interesses sociais, do direito à livre concorrência, da exaustão de direitos de propriedade intelectual415, o desestímulo na criação de mais ativos intelectuais devido ao alto custo para a obtenção de direitos que já deveriam estar em domínio público, etc: “Overlapping copyright and trademark protection for these two characters not only means that their creators receive all the benefits flowing from both the copyright regime and the trademark system, but it also means that many of the benefits that would otherwise flow to the public—to consumers, competitors, later creators, and the public domain are withheld (Viva Moffat 2004)”. … “regardless of whether creative works can theoretically fit under both sets of copyright and trademark protection, extending trade415 Irene Calboli (2014b), da universidade de Singapura, dedica-se neste momento a ao estudo dos impactos da cumulação de direitos de PI nos princípios da exaustão de direitos e importação paralela. The Impact of Overlapping Rights on Intellectual Property Exhaustion and Free Movement of Products: A Comparative Analysis of the EU (EEA) and NAFTA: This project explores the impact that overlapping intellectual property rights on the same products (or on separate components of the same products) may have on the application of the principle of intellectual property exhaustion to parallel imports across, respectively, member countries of the EU (EEA) and NAFTA. In particular, this project criticizes how the exercise of overlapping intellectual property rights can be used by intellectual property owners in order to restrict free trade in free trade areas, both in brick-and-mortar world as well as online trade, especially with respect to physical products that are purchased online in one country and shipped and delivered in another country of the same free trade area.

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propriedade intelectual mark protection to creative works may inevitably result in breaching the societal bargain upon which copyright law and policies were originally built (Calboli, 2014a)”. “This expansion has erased the clear delineation between patent, copyright, and trademark law. It has also led to overprotection of intellectual property in the form of overlaps that allow multiple bodies of intellectual property law to simultaneously protect the same subject matter. Such overlapping protection is problematic because it interferes with the carefully developed doctrines that have evolved over time to balance the private property rights in intellectual creations against public access to such creations. These overlaps, arguably, are the unintended consequence of the fragmented nature of the field of intellectual property law. Few attorneys practice across the broad spectrum of intellectual (Beckerman-Rodau, 2010)”

Constatamos pelo exposto acima que a cumulação de DPI, quando não compatibilizada com as regras e as finalidades do sistema propriedade intelectual e com o interesse público, além de afetar os direitos dos sujeitos envolvidos diretamente no conflito, atinge direitos e interesses fundamentais de terceiros, inclusive, enquanto coletividade, relacionados ao uso e ao acesso do bem intelectual protegido. A cumulação de direitos se não ponderadas e cotejadas com os limites e as funções de cada instituto, muitas vezes limitam o acesso a um bem que já deveria estar livre para a sociedade, em virtude da expiração de um regime de exclusividade, pela existência de outro regime de exclusividade ainda em vigor, que coexiste neste bem devido a múltiplas proteções. Na prática, verifica-se a pertinência e a conveniência de estudos mais aprofundados acerca dos impactos das cumulações de DPI para o equilíbrio do sistema de proteção de propriedade intelectual e para a preservação e proteção dos interesses sociais e do desenvolvimento econômico e tecnológico do país. 2.3. Cumulação DPI: um fenômeno sempre deletério ao sistema de propriedade intelectual ou nem sempre? Ao pesquisarmos sobre a cumulação de direitos na literatura corrente, encontramos autores que entendem que esta é danosa ao equilíbrio do sistema de PI, e, por essa razão, deve ser sempre evitada: “Given the likelihood that intellectual property rights will continue to expand, those rights are likely to continue to overlap, and to do so in more instances and in more significant ways unless a more systematic approach is taken and more thought is given to the federal intellectual property system as a whole. Because overlapping protection presents a variety of challenges to the intellectual property system, disrupts the intellectual property balance, and impoverishes the public domain, we should work to eliminate 205

the overlaps that do exist and, perhaps more importantly and more realistically, attempt to avoid creating overlaps in the future (Moffat, 2004).

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Já outros autores, com os quais concordamos, entendem que o fenômeno não é por si só um problema que sempre terá que ser evitado ou resolvido (Kur, 2009). Para esses autores, tal fenômeno é consequência da própria natureza intangível do bem intelectual que permite a existência de múltiplas funções a serem exercidas por um mesmo bem intangível. O que deve ser analisado e compatibilizado são os casos de desequilíbrio no sistema de propriedade intelectual e de danos ao interesse público, causados por disfunções apresentadas em alguns casos de cumulação de DPI. Algumas vezes a multiplicidade de funções exercidas por um bem desequilibra o sistema. Em outras, os titulares de direitos intelectuais aproveitam-se da natureza das características do bem intelectual e do pouco conhecimento da sociedade, sobre as particularidades e funções de cada bem protegido, bem como, acerca das estruturas e limite de cada instituto de PI, para burlar os limites do sistema, prolongando seus direitos de exclusiva indevidamente (Kur, 2009, 159). Annette Kur, em notável análise de padrões que tornam as cumulações de direitos de propriedade intelectual - DPI deletérias estabeleceu os seguintes critérios: O fenômeno da sobreposição não será deletério se: a) os requisitos de proteção ao abrigo de regimes legais são formulados e aplicados de modo a justificar plenamente a proteção concedida; e b) cada um dos direitos aplicados é adequado e equilibrado em si mesmo, em especial, no que se refere à relação entre os requisitos, o alcance geral de proteção e suas limitações. (Kur, 2009, p. 159)

Portanto, para Kur (2009) fora das hipóteses acima, as cumulações de DPI serão deletérias e devem ser compatibilizadas. 2.4. O fenômeno e a causa da sua evolução para um problema em potencial Pouillet(1903, nº 64), já discutia a questão com relação aos desenhos industriais, marcas, patentes e os direitos autorais. Mesmo que as primeiras discussões acerca da cumulação de direitos de propriedade intelectual não sejam recentes, estudos indicam (Derclaye & Leistner, 2011; Moffat, 2004) que seus efeitos deletérios ocorriam com menor frequência e gravidade. Uma das principais explicações para tal fato se encontra no restrito número de DPI criados inicialmente para tutelar de forma específica os bens intelectuais. No início da criação de um arcabouço legislativo para a proteção dos direitos imateriais não existiam tantos institutos de propriedade intelectual como hoje 206

propriedade intelectual existem e, por esta razão, os limites entre eles não eram cruzados com tanta frequência. Inicialmente, havia a regulamentação e/ou proteção dos institutos das patentes, das marcas, dos direitos autorais e dos desenhos industriais. Hoje, existem novos institutos de propriedade intelectual como o de software, nome de domínio, topografia de circuitos integrados, entre outros. Esses institutos têm funções diversas e – em seus primórdios – pouca intercessão se verificava entre esses direitos. A doutrina acerca do assunto se preocupava em justamente definir o tema e delimitar o seu alcance, de forma a impedir a transposição dos limites dessa proteção para ser uma exceção, não uma regra. Nas últimas três décadas o cenário mudou radicalmente. Desde os anos 80 verifica-se a constante criação de novas formas de proteção para o bem intelectual, bem como a ampliação do escopo de proteção dos direitos já existentes. Tais práticas dificultam cada vez mais o livre acesso ao conhecimento (Coriat& Orsi, 2006, p. 4 e ss). Duas são as razões principais da modificação do sistema de PI e seus objetivos, as quais também são as causas do aumento de casos de cumulação de direitos de DPI e de suas disfunções. A primeira e, para a doutrina (Moffat, 2004, p. 1496; Dinwoodie, 2001, p. 9), a de menor influência, é a necessidade de adequação do sistema de PI às mudanças geradas pelo desenvolvimento econômico e tecnológico mundial. A segunda, e essa sim, a razão maior, tem se dado pela crescente valorização econômica dos bens intelectuais, alçados a bens de interesse fundamental para o comércio mundial. Os interesses políticos e financeiros de titulares e de grupos que se beneficiam com os direitos exclusivos de exploração desses bens416 motivaram buscas desmedidas pela expansão do escopo de proteção exclusiva do bem intelectual, assim como pela perpetuação de seu monopólio. Verdadeiras cruzadas foram planejadas e executadas, segundo Dinwoodie (2001, p. 9-10), por uma “advocacia oportunista” em detrimento dos interesses sociais e da mitigação dos princípios que criaram e delimitaram cada instituto de propriedade intelectual.417 Importante fazermos uma breve retrospectiva histórica da mudança comentada para melhor contextualizar o tema. 416 Análises dos motivos e razões por trás das mudanças no cenário da propriedade intelectual, bem como informações fático-históricas de como tais mudanças foram articuladas para convencer Governo, Legislativo, Judiciário e Órgãos internacionais a apoiar e viabilizar o recrudecimento desproporcional dos direitos de propriedade intelectual podem ser obtidas em Sell (2003), Coriat & Orsi (2006), Coriat, Orsi, & D`Almeida (2007) e Maskus & Reichman (2005), 417 Crítica também endereçada por Anner Kur (2001, p.1): Furthermore, there is a human factor adding to the structural changes addressed in the previous paragraph. Rising awareness of the opportunities offered by IP rights and growing sophistication among IP lawyers – plus, not to forget, the sometimes rather forceful lobbying activities of interest groups – have created a climate where the possibilities inherent in each type of IP right are put the to test and pushed to their limits with more confidence and liberty than previously . If copyright is too weak – why not try trademark law? (and vice versa). 207

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Internacionalmente, a Convenção de Paris, criada em 1884 - assim como a Convenção de Berna, no campo dos direitos autorais - permitia as assimetrias entre os regimes de propriedade intelectual dos países membros e regulava um número limitado de direitos industriais. Entretanto, em meados do século XX, as funções, os limites e o alcance patrimonial desses direitos expandiram418. Com o advento do Acordo TRIPS, os países passaram a ser obrigados a garantir um patamar mínimo de tutela para os direitos de propriedade intelectual e novas possibilidades de salvaguarda para novos institutos foram estabelecidas por esse tratado. Com isso, as questões a serem solucionadas tornaram-se mais complexas419. Houve ainda um deslocamento da propriedade intelectual de uma gestão técnica liderada pela Organização da Propriedade Intelectual (OMPI), para uma gestão comercial e econômica, dirigida pela Organização Mundial do Comércio (OMC)420. Essa mudança estratégica vinculou a adesão de TRIPS por todos os países que quisessem participar do tratado geral de comércio internacional. A propriedade intelectual foi posicionada, então, como uma questão de estratégia político-econômica mundial. Portanto, percebemos que o movimento expansionista é causa central para aumento dos casos de cumulação de DPI. Verificamos ainda que este aumento que está acontecendo de forma não planejada. A consequência é o crescimento de casos de cumulações disfuncionais, com efeitos deletérios para o sistema de PI e para toda a sociedade moderna.421 418 Com o recrudescimento dos direitos de propriedade intelectual, com o aumento de objetos protegidos pelo mesmo direito, com a criação de novos institutos de propriedade intelectual, com os escopos iniciais de proteção alargados, com legislações que geravam interpretações errôneas, e com a livre utilização do instituto da concorrência desleal como argumento comum para a extensão da proteção exclusiva, novos problemas envolvendo sobreposição de direitos entre institutos de propriedade intelectual apareceram. DERCLAYE & LEISTNER. ( 2011, p. 5). 419 Dentre elas podemos citar o aumento do escopo das proteções já existentes, a criação de mais formas de proteção dentro de um mesmo instituto, o aumento do tempo de proteção, à relevância dessa proteção para os titulares do direito, a ampliação geográfica dessa proteção. 420 “With the signing of the TRIPS5 in 1994, the international protection of IPR, until then organized exclusively under the aegis of the World Intellectual Property Organization (WIPO), moved into the sphere of competence of the WTO (Zhang, 1994) This adoption of IPR protection into the domain of the WTO was of considerable importance. It signified the enforcement, for and on behalf of the WTO, of international standards largely based on the ones established in the most advanced countries. Coming after the considerable reinforcement of IPR in the Northern countries, the signing of the TRIPS heralded the enforcement of this new, stricter patent regime on a worldwide scale (Remiche and Desterbecq,1996; Reichman and Lange, 2000). The new treaty, by implementing so-called minimum standards, insured a dramatic worldwide upward harmonization and has introduced a radical break with some of the foundations and rules which had hitherto shaped international IPR protection.”CORIAT, ORSI, & D`ALMEIDA (2007, p. 07). 421 Tal conclusão é corroborada pela análise de autores que pesquisam extensamente o tema, como Viva Moffat e Dinwoodie, que atribuem o aumento dos tipos de cumulação de direitos sobre um bem intelectual, assim como a maior incidência de cumulações deletérias muito mais ao expansionismo indevido dos direitos de DPI do que a uma necessidade de evolução do sistema para se adequar às mudanças econômicas e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas: “… overlapping protection has arisen mostly by accretion, as a result of the expansion of intellectual property rights, rather than by design. An examination of the 208

propriedade intelectual Para finalizarmos essa seção, achamos importante também para a contextualização da questão aqui estudada ponderamos que a propriedade intelectual e seu regime de exclusão são criações artificiais, um direito que nasce da Lei e não um direito natural. Os direitos de exclusividade foram criados artificialmente pelo Estado para reequilibrar o mercado e beneficiar a sociedade. Uma das teorias econômicas que justificam o sistema de exclusiva hoje vigente é a defensora do equilíbrio da falha de mercado.422 Entretanto, o que deve ser observado nesta teoria é que o objetivo principal da criação artificial de um regime jurídico e econômico de propriedade intelectual, que gera a restrição ao acesso desses bens pela sociedade, é justamente a geração de mais bens intelectuais com base nos conhecimentos gerados pelos bens já criados e a livre utilização deles pela sociedade, ao final de um determinado período, após o razoável retorno do investimento gasto pelo titular do bem intelectual.423 reasons for the expansion of intellectual property rights supports the notion that the overlapping protection that has arisen has been less intentional and more likely a byproduct of a general expansionist, pro-property rights trend. Interest group politics, resource disparities, and, to some extent, rent-seeking account for the growth of intellectual property rights in almost all directions. Some expansion certainly can be attributed to the demands of changing technology, but the overwhelming influence of powerful interest groups cannot be discounted in examining the nature of the expansion that has occurred (Moffat, 2004, p. 1496).”. “To these theoretical explanations of the causes underlying the increased overlap of different intellectual property rights, there must be added two practical, historical reasons: the inter-relationship of different intellectual property rights, and the role of opportunistic lawyering. The expansion of trade dress protection in the United States beyond packaging and the shape of containers can be traced to 1976, when the long-awaited revision of the U.S. copyright statute occurred. Up until the last minute, the copyright statute contained two titles. The first was what became the Copyright Revision Act of 1976. The second was a copyright-like design law, which would have offered design protection to original ornamental designs. At the last minute, that second title was dropped.29 The same year saw the first recognition by a federal appellate court that the design or shape of a product could itself be protected as a trademark.30 These events are probably not unrelated: the pressure to grant trademark protection to product designs starting in 1976 would surely have been less intense had Congress enacted an appropriate form of design protection. This highlights an important point, namely that the expansion of protection in one intellectual property regime is often a product as much of external developments than reforms internal to that regime. And, perhaps, the normative validity of those expansions should also take account of such external considerations (Dinwwodie, 2001, p. 9). 422 Essa teoria, resumida de forma livre, sustenta que a regra é a livre concorrência de mercado e a liberdade de cópia. No entanto, tais regras para os bens intelectuais acabam por gerar uma eliminação do valor econômico desses, pois quando um bem intelectual é colocado no mercado, sem a devida regulação, a liberdade de cópia elimina o retorno do investimento feito para a criação dessa obra desestimulando o investimento e a inovação na geração de novos bens desta natureza, que muito auxiliam o desenvolvimento de nossa sociedade. Como o que gera valor em nossa economia de mercado é a escassez, a tendência é que esses bens de livre e ampla utilização percam o seu valor econômico, levando, por consequência, ao não desenvolvimento da sociedade, uma vez que tanto criadores quanto investidores não inovarão mais na geração de conhecimentos para melhorar a qualidade de vida de todos. Tal falha desequilibra o mercado e a livre iniciativa, forçando o Estado a intervir e criar uma limitação artificial para o acesso aos bens intelectuais, o que torna o abundante escasso, aumentando assim, o valor do bem. Vide neste sentido: Denis Barbosa, Op. Cit, 2003; GORDON, Wendy. Fair Use as Market Failure: A Structural and Economic Analysis of the Betamax Case and Its Predecessors, Columbia Law Reviw. n. 82, 1982, p. 1600-1657 . 423 Como colocamos em texto anterior: “A propriedade intelectual seria um remédio para o desbalanceamento do mercado, estimulando os inventores a criarem e os comerciantes a investirem para beneficio 209

Para atender ao objetivo e finalidade do sistema de propriedade intelectual, cada instituto foi criado com fundamento em uma justificativa político-econômica e, no caso de alguns países, como o Brasil, também constitucional. Cada um deles tem uma função determinada, devendo respeitar o princípio da especificidade das proteções424. Seus domínios devem ficar adstritos aos limites, principalmente ao de espaço e tempo, criados por essa justificativa e delimitados por essas funções e especificidades.425 É o que demonstra a discussão sobre a superação do paradigma “One size fits all” para um sistema “Self Taylored” para cada bem tutelado por PI, que se discute a necessidade de tratamento personalizado para cada bem de PI (Kur & Mizaras, 2011; Dinwoodie, 2011).

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3. A cumulação do Regime de Direito Autoral - da com o Regime do Direito Marcário Concentraremo-nos agora a analisar algumas questões que envolvem a cumulação de DPI a partir do recorte da cumulação dos regimes de proteção das marcas e dos direitos autorais. É importante demonstrarmos e discutirmos algumas das formas de cumulação de direitos autorais com o direito marcário, pois nem sempre estas cumulações são óbvias e de fácil percepção. Inclusive,como já falado, nem todas desvirtuam a finalidade dos institutos em comento e, por consequência, não geram efeitos deletérios. Algumas são, inclusive, previstas pela lei. Outras, por ter seus efeitos nocivos patentes, já são vedadas pelo diploma legal pertinente. Temos ainda outras formas danosas que, por permaneceram em uma zona cinzenta e sem legislação que as proíba, são utilizadas por titulares para estender seus monopólios de forma indevida. final da sociedade e da economia de mercado no caso das marcas. Entretanto, o sistema de proteção de PI se torna um veneno se utilizado em excesso e a consequência desse excesso de direitos é o desequilíbrio novamente do sistema. É exatamente o que acontece com a sobreposição de direitos de PI, que acaba por dar mais direitos para o titular e diminuir a contrapartida justa que a sociedade deveria receber.” PORTO. Patricia Carvalho da Rocha. Limites à Sobreposição de Direitos de Propriedade Intelectual. Revista da ABPI nº 109, 2010, p. 6. 424 Denis Barbosa (v. II, 2010) em notável contribuição à discussão acima, estabeleceu o princípio da especificidade do bem intelectual com relação à necessidade de se individualizar o modelo de proteção de cada criação enquanto objeto de um direito de exclusiva, levando em conta as características singulares desta. Segundo Barbosa (v. II, 2010), tal princípio poderia ser assim expresso: “Cada direito de propriedade intelectual terá a proteção adequada a seu desenho constitucional e ao equilíbrio ponderado dos interesses aplicáveis, respeitado a regra de que só se pode apropriar o que não está no domínio comum”. Verificamos, portanto, que é tarefa difícil, e, em alguns casos, impossível, tratá-los e regulá-los, protegê-los, incentivá-los de forma homogênea. 425 Vide maiores explicações sobre esta ponderação em: BARBOSA (2010, v. 1 p. 84-85 e 310 a 311).

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propriedade intelectual 3.1. Justificativas para a existência do sistema de propriedade das marcas e dos direitos Autorais426 O regime marcário objetiva a proteção ao investimento do titular e a sua posição na concorrência, bem como a proteção ao consumidor contra a confusão e redução do custo de informação que esse consumidor terá para escolher o produto ou serviço desejado427. A marca tem como funções principais a o assinalamento e a distinção do produto ou do serviço pelo signo individualizando-os e diferenciando-os de outros da mesma espécie, mas de origens distintas, evitando assim a confusão quanto a esta origem no mercado. Essa distinção garante à sociedade uma informação que a protege quanto ao erro de origem do produto ou serviço e proporciona uma percepção por parte do consumidor de qualidade e consistência do produto consumido, gerando assim, um vínculo de confiança entre marca e consumidor, mesmo que esses efeitos sejam somente mercadológicos.428 Por conta de seus objetivos e finalidades, o regime geral de proteção marcária oferece uma tutela exclusiva, em teoria, eternamente prorrogável, desde que os requisitos para a proteção da marca continuem presentes. Entretanto, essa proteção é restringida ao território onde a marca foi requerida ou atua economicamente e somente nas áreas de atuação econômica do objeto assinalado pela marca. Levando em conta a justificativa acima, é razoável o recorte de proteção escolhido para a marca, possibilitando uma proteção sem limitação no tempo, pois a manutenção de sua distinção e a sua vinculação constante a uma única origem beneficiam tanto o seu titular quanto a sociedade. A justificativa atual do sistema de proteção dos direitos autorais é a retribuição econômica ao autor por sua criação intelectual para que este tenha meios e estímulos para continuar com a sua produção criativa. Objetivase por meio da difusão das obras intelectuais o aumento do acesso por parte da sociedade ao conhecimento e à cultura, estimulando, assim, a produção de novas criações (Souza, 2006, p. 284 e ss). A tutela autoral teve suas raízes em dois objetivos e justificativas de proteção distintos. Na Inglaterra, com o estatuto da Rainha Anna em 1710, ini426 Mais informações sobre a justificativa jurídica e político-econômica dos regimes marcário e de direito autoral podem ser obtidas nas obras: LANDES, William & Richard Posner The Economic Structure of Intellectual Proprety Law. Cambridge: Belknap Press, 2003; Souza, Allan Rocha. A Função Social dos Direitos Autorais. Campos: Faculdade de Direito de Campos. 2006; ASCENSÃO. José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: 2007, 427 Assim entendeu o Senado Americano ao estabelecer o propósito da Lei de Marcas dos Estados Unídos em 1946. SEN. REP. No. 1333, 79th Cong., 2d Sess. 3 (1946). 428 Mais informações sobre a percepção da qualidade nas marcas pelos podem ser obtidas na obra: Quando a propriedade industrial representa qualidade. Patricia Carvalho da Rocha Porto. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011. 211

cialmente deu-se ao autor o privilégio sobre a reprodução material da obra, com o objetivo de proteger os investimentos dos editores e impedir a reprodução não autorizada das obras por eles impressas publicadas (Ascensão, 2007, p. 4-5;Souza, 2006, p. 284 e ss). Logo após, ainda no sec. XVIII, principalmente na França, por causa da Revolução Francesa, a proteção passou a recair sobre produção literária em sua essência, esta como propriedade do Autor, e não somente na sua materialidade. (Ascensão, 2007, p. 4-5). Estabeleceram-se então dois sistemas de proteção vigentes simultaneamente em diferentes países.

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O atual regime geral de proteção dos direitos autorais garante a exclusividade ao autor ou ao titular da obra na exploração desta em todo o mundo. Todavia, essa proteção tem um tempo limitado, devendo após o seu término ser franqueada a utilização da obra ao domínio público. Segundo a justificativa do sistema de DPI, a proteção autoral por ser uma limitada no tempo atende às necessidades tantos dos autores, quanto da sociedade. Verifica-se do exposto, que os objetivos do sistema de proteção marcária e autoral são distintos em seu modelo de tempo e escopo de proteção, pois diferentes são seus objetivos e finalidades quando da criação e do uso do bem. Ressalta-se que a não observância quanto aos limites e objetivos de cada sistema quando da cumulação desses direitos pode trazer sérios danos para a sociedade, pois tem-se o risco de que a suplementação de um modelo de proteção sobre o outro beneficie somente interesses individuais e em detrimento dos direitos da coletividade. 3.2. Razões para o aumento da cumulação dos regimes de proteção de marca e de direito autoral em obras intelectuais Muitos dos elementos passíveis de proteção exclusiva pelo direito autoral podem ser os mesmos habilitados para a proteção do regime marcário, caso atendam os requisitos de proteção de cada instituto e sejam funcionalizados para se adequar à finalidade de proteção de cada modelo429. Dessa 429 A questão do que se apropria exclusivamente por direitos de propriedade intelectual é uma das questões cruciais para o melhor entendimento da questão da cumulação de direitos. Como o nosso objetivo no presente artigo é abordar de forma introdutório o tema geral e nos concentrarmos nos tipos de cumulação de marca e DA apresentaremos aqui para fins de esclarecimento, o que Denis Borges Barbosa (2010, p. 54 e ss expõe sobre o que se protege pela exclusiva intelectual: “Quando o bem incorpóreo se faz propriedade Cada um desses bens pode ter existência autônoma em direito. Por exemplo, a criação de uma nova solução técnica, por si só, legitima o poder de requerer patente, e gera um direito autoral de nominação. Mas não é objeto de propriedade. Se-lo-á, no entanto, se o inventor requerer e obtiver a patente; neste caso, passa a ter um título de exclusividade do uso do bem imaterial, na concorrência. Essa exclusividade não recai sobre o mercado, nem sobre o bem imaterial, mas tão somente na intercessão dos dois fenômenos, ou seja, quando o bem incorpóreo é trazido ao mercado (ou seja, ele se torna um bem-de-mercado). Assim, a possibilidade de uma propriedade intelectual surge quando se produz, se conforma, ou se transforma o bem intelectual com vistas ao mercado.” 212

propriedade intelectual forma, por exemplo, as palavras, os desenhos, a música430 e elementos olfativos431, as esculturas, as obras plásticas, podem, quando funcionalizadas e usadas no mercado, dentro de determinados parâmetros, gozar de proteção por um ou outro instituto e, muitas vezes, pelos dois. Muitas vezes uma obra protegida inicialmente pelo direito autoral pode vir a ser utilizada como parte figurativa de uma marca e acaba, nesse contexto, passando a também exercer funções distintivas e marcária. O contrário também ocorre. Os desenhos, elementos verbais e visuais e demais elementos simbólicos (Barbosa, 2013, p.2 )432 que constituem uma marca registrada podem também exercer funções passíveis de tutela também pelo direito autoral, desde que observem determinadas condições que veremos a seguir. Essa dupla proteção é possível, como explica Denis Barbosa (2013), visto que “ a criação intelectual de um elemento qualquer, que seja caracterizável como obra intelectual433, mesmo que legalmente suscetível de ser protegido como marca, é, de origem, plausível de proteção pelo direito autoral.” A dinâmica expansionista do sistema de PI tem aumentado as possibilidades de apropriação exclusiva da criação intelectual pelos direitos marcários e autoral aumentando significativamente os casos de sobreposição de direitos de marca e de DA. Veremos agora alguns elementos que, ao longo dos últimos anos, têm colaborado para a expansão das possibilidades de dupla proteção e para o efetivo aumento de número de casos de cumulação entre esses direitos. 430 No caso das marcas sonoras. 431 Na França as essências dos perfumes são objeto de tutela por direito autoral. Nos Estados unidos as marcas olfativas gozam de proteção. 432 “O ponto sensível aqui é: por exemplo- a criação de elementos simbólicos de uma embalagem terá caráter autoral? Segundo doutrina relevante, não será a aplicação em um fim industrial (embalagem) que lhe tirará o caráter da criação: “Aparentemente, suprimiu a norma do art. 6o, XI, da lei revogada, que tutelava as obras de arte aplicada. Mas, se não as excluiu expressamente, é que continuam tuteladas, com a ressalva do art. 8o, VII, que considera não objeto de proteção da lei “o aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras”. A norma não diverge da anterior, que protegia as obras de arte aplicada, “desde que seu valor artístico possa dissociar-se do caráter industrial do objeto a que estiverem sobrepostas.” Assim, o plágio, a cópia, o uso não autorizado em geral dos elementos cobertos pelo direito autoral, constantes da embalagem, mereceriam tal proteção. (Barbosa, 2013, p. 2) 433 [Nota do autor] “A “obra intelectual” de que tratam as leis de Direitos Autorais configura uma criação humana concretizada em determinada forma, exteriorizada de alguma maneira e resultante do aporte individual ou da contribuição coletiva de determinadas pessoas. Outras criações humanas existem que não estão compreendidas na noção legal de obra seja em virtude da tradicional dicotomia forma-conteúdo ou idéia-expressão, seja em face da natureza da criação que constitui objeto desta disciplina, distinguindo-a de outros ramos da Propriedade Intelectual.”SANTOS, Manoel J. Pereira dos. A Questão da Autoria, Direitos Autorais. São Paulo: Direito Autoral - Propriedade Intelectual - Série Gvlaw - Manoel J. Pereira dos Santos, Wilson Pinheiro Jabur Editora: SARAIVA 2014 213

A marca como gênero tem ampliado sua abrangência de proteção e, a cada dia, é subdividida em mais espécies que permitem a apropriação de elementos ou, melhor, do uso desses elementos no mercado434. Esses elementos, até então, não eram tutelados por direito de exclusiva, somente, em certos casos, contra atos de concorrência desleal. Hoje temos no Brasil novos tipos de marcas, como a marca tridimensionais, as marcas em movimento e as holográficas435. Alguns países aceitam o registro do tradress como marca436, assim como as chamadas marcas não tradicionais, como a sonora e a olfativa.

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Dessa forma, atualmente já é possível o registro como marca437 de roupas e acessórios, de móveis, de embalagens, de músicas e fragrância, praticamente tudo o que assinale, distinga e indique a origem e não esteja nas proibições legais. Nos últimos, apesar de quase não ter sofrido alterações no seu modelo de proteção, ao contrário do modelo de tutela marcária, o direito autoral também tem protegido obras que antes eram consideradas sem originalidade artística (Dinwoodie, 2001, p. 2 e 11; Kur, 2001, p 2). Com o desenvolvimento cada vez maior da criatividade na elaboração de produtos voltados para indústria, artigos como vidros de perfume, embalagens, elementos de ornamentação hoje gozam também da proteção do direito autoral.438 434 “Essa exclusividade não recai sobre o mercado, nem sobre o bem imaterial, mas tão somente na intercessão dos dois fenômenos, ou seja, quando o bem incorpóreo é trazido ao mercado (ou seja, ele se torna um bem-de-mercado). Assim, a possibilidade de uma propriedade intelectual surge quando se produz, se conforma, ou se transforma o bem intelectual com vistas ao mercado (Barbosa, 2008, p.217).” 435 Com relação a proteção dessas marcas no país vide artigo “Marcas em movimento: proteção possível em direito brasileiro (Barbosa, 2013,b)” 436 Desde que sejam distintivos e não funcionais The Supreme Court held that “the breadth of the definition of marks registrable under §2, and of the confusion-producing elements recited as actionable by §43(a), has been held to embrace not just word marks, such as “Nike,” and symbol marks, such as Nike’s “swoosh” symbol, but also “trade dress”–a category that originally included only the packaging, or “dressing,” of a product, but in recent years has been expanded by many courts of appeals to encompass the design of a product. See, e.g., Ashley Furniture Industries, Inc. v. Sangiacomo N. A., Ltd., 187 F.3d 363 (CA4 1999) (bedroom furniture);Knitwaves, Inc. v. Lollytogs, Ltd., 71 F.3d 996 (CA2 1995) (sweaters); Stuart Hall Co., Inc. v. Ampad Corp., 51 F.3d 780 (CA8 1995).” [5].(Prasannam., 2011): http://legalonline.blogspot.com. br/2011/04/lanham-act-scope-of-trade-dress.html 437 Desde que atendam aos requisitos de proteção marcária de cada país, que são diferentes. No Brasil, por exemplo, só se permite registro de signo distintivo visualmente perceptível, mas muitos países protegem também signos não visualmente perceptíveis.. 438 “(…) the efforts vested in the development of new product designs, new labels, logos and even wordmarks – and certainly also slogans and jingles – are regularly considerable to enormous. And there is no reason in general to look down on such efforts and their results – what may look quite banal to the uneducated eye, like a plastic yoghurt container, may be, and often is, the result of intense labour, professional skill and – why not? – artistic inspiration of one or several top designers. Of course, this does not mean that copyright is or should be granted indiscriminately to all the items mentioned before. However, there is no doubt that they are eligible for copyright protection in principle, their actual entitlement to protection 214

propriedade intelectual Outro elemento importante que influenciou na ampliação do número de obras protegidas foi a mudança na interpretação do que deve ser considerado para a concessão de direitos sobre um bem. Nos dias atuais a interpretação dos requisitos de proteção de um bem por DPI não é mais categorizada, levando em conta se o bem se encaixa em categorias protegíveis. O que é levado em consideração atualmente é a funcionalização do bem. A proteção está sendo avaliada de forma mais conceitual, calcada no nível de originalidade apresentada pela obra e ligada à finalidade do uso da obra, independente desta se encaixar em uma categoria. Essa interpretação atual não se restringe ao sistema de direito autoral, vem sendo também aplicada para avaliar a proteção de criações pelos demais institutos de propriedade intelectual.439 Por último, é importante considerar que o aumento das possibilidades de usos do bem para diferentes finalidades no mercado, em conjunto com o maior potencial de exploração econômica dessas finalidades, têm incentivado os titulares a buscarem todas as formas de proteções disponíveis para esses usos. Como cada instituto de propriedade intelectual protege somente determinadas funções, os titulares buscam a guarida em diferentes institutos para garantirem todas as possibilidades de proteção. O resultado do somatório das modificações acima descritas é um crescimento exponencial no número de casos de cumulação de direitos autorais e de direitos marcários em um mesmo bem intelectual. E, como dissemos anteriormente, exponecial também tem sido o aumento de casos de cumulações disfuncionais, que desvirtuam a finalidade do sistema e causam enormes danos à sociedade. Pois o aumento dessas proteções está sendo realizado de forma desordenada. Ele não é calcado no desenvolvimento de novos tipos de criações intelectuais, mas sim na gana de proteção do maior número de usos possíveis para aumentar a rentabilidade com a exploração exclusiva do bem. being only subject to the level of originality required. And it is submitted here that there is a certain tendency to lower that threshold, not least in view of the fact that also the notion of creativity and the attitude towards creative achievements worthy of protection nowadays tends to be somewhat different – i.e. more materialistic (and realistic?) – than before.” (Kur, 2001, p. 2-3) 439 “In this climate, the scope of protection under a particular intellectual property regime is defined conceptually and purposively, rather than categorically. For example, the limits of copyright protection will now be set by the concepts of originality and fixation, rather than by inclusion within classifications such as “work of art.”17 In the United States, the standard of originality requires only that the work be independently created and possess a minimal degree of creativity.18 The limits of trademark subject matter will be set by notions of distinctiveness: does the design serve to identify the product as that of one undertaking as opposed to another? Design protection will be available if the design is new and differs sufficiently from what has gone before (Dinwoodie, 2001, p. 5-6) 215

3.3. A dupla proteção no ordenamento nacional Passamos a expor agora os dispositivos nacionais que versam de forma geral sobre a possibilidade de dupla proteção de um mesmo bem pelo regime das marcas e dos direitos autorais e os limites. O artigo 7º, VIII da Lei 9610/98 – LDA prescreve que as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética são passíveis de proteção pelos direitos autorais. O artigo 8º da mesma lei esclarece, entretanto, que o aproveitamento comercial e industrial das ideias contidas nas obras não gozam dessa proteção.

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Observamos que as obras intelectuais que consistam em desenhos, esculturas, pinturas, gravuras, artes cinéticas - todos eles elementos que podem constituir parte ou todo de marcas registradas, incluindo marcas tridimensionais - podem ser protegidos pelo direito autoral desde que (1) atendam aos requisitos de proteção pelo direito autoral; (2) não constituam aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras Com relação à proteção como signo distintivo, o artigo 124, XVII da Lei 9279/96 – LPI estipula que não são registráveis como marca as obras literária, artística ou científica, assim como os títulos que estejam protegidos pelo direito autoral e sejam suscetíveis de causar confusão ou associação, salvo com consentimento do autor ou titular. Ao interpretarmos o conteúdo da norma acima, verificamos que as obras intelectuais e seus títulos protegidos pelo direito autoral podem ser registrados como marca desde que (1) atendam aos requisitos gerais para aquisição da proteção marcária; (2) não sejam suscetíveis de causar confusão ou associação; e (3) que o autor ou titular da obra intelectual dê autorização para o registro desta como marca. As diretrizes de análise de marcas do INPI, de 11/12/2012, na seção 3.4.11, interpretam as disposições do inciso XVII da LPI e estabelecem parâmetros – inclusive com exemplos - que devem ser seguidos pelos técnicos quando do exame para a concessão de registro para esse tipo de marca. Após o a análise das normas acima, notamos que elas, dentro de certas condições, permitem a dupla proteção de uma obra como marca e como direito autoral. Entretanto, não verificamos em tais normas e diretrizes disposições que estabeleçam limites ou parâmetros que devam ser observados em caso de conflitos relativos a esta dupla proteção.

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propriedade intelectual 4. D.A. X Marcas: tipos de cumulação Veremos agora algum dos tipos de cumulações possíveis entre DA e marca, assim como seus limites. Quando pertinente, indicaremos na legislação pátria os dispositivos que regulam o tipo específico de dupla proteção. Apresentaremos também alguns casos judiciais relativos às cumulações aqui identificadas. 4.1. A forma escrita e o desenho Um dos tipos mais comuns de dupla proteção por marca e pelo direito autoral o que incide sobre criações fixadas por meio de palavras e de desenhos. As diretrizes de análises de marcas do INPI (2012), no item 1.3, especifica que as marcas no ordenamento jurídico nacional podem ser apresentadas sob a forma nominativa, figurativa, mista e tridimensional. Como já discutido acima, desenhos, palavras e expressões que compõem as marcas mistas, verbais e figurativas podem, em alguns casos, gozar também da proteção autoral. Ilustrando como pode ocorrer potencial cumulação de direitos de marca e direitos autorais em desenhos, trazemos caso decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesse julgado, o juízo resolveu a contenda definindo e delimitando o escopo do direito do titular de um logotipo que teve este utilizado por terceiro como marca, sem sua autorização. No caso em questão, ficou comprovado nos autos que o Autor da ação contratou uma empresa para desenhar o logotipo para que ele utilizasse em sua marca. No entanto, o INPI não deferiu o registro para a marca do Autor. O Réu, posteriormente, utilizou o logotipo em sua marca mista “Personna”. Indignado, o Autor promoveu ação para que o Réu se abstivesse de utilizar a marca “Personna”, alegando que ela seria de sua titularidade. Em sua decisão, o Juízo determinou que o Réu se abstivesse de utilizar em sua marca somente o logotipo na exata forma criada pelo Autor. Interessante destacar que o Tribunal entendeu que o Réu poderia continuar utilizando sua a marca “Personna” - ou seja, o uso comercial do conteúdo protegido poderia continuar sendo comercializado e assinalado pela marca “Personna”, desde que sem a criação gráfica. “Ora, na espécie, o logotipo Personna na forma evidenciada nos autos, foi obra de encomenda do autor e, sem embargo do registro tardio perante a Escola Nacional de Belas Artes, dúvida não há que foi idealizada por encomenda do autor. Assim, ainda que não tenha eficácia como marca, na medida em que não logrou o autor a obtenção de seu registro junto

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ao INPÍ, vale como obra artística e, assim, prospera também em parte a reconvenção ofertada pelo autor (fls. 241), apenas para condenar a reconvinda a abster-se do uso do logotipo Personna na forma idealizada pela empresa Dap Design - Projeto e Consultoria S/C Ltda, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00. (...)

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No mesmo diapasão, a ação, nos termos em que foi posta, é procedente apenas em parte, na medida em que fica condenada a ré a abster-se do uso do logotipo Personna, na forma idealizada pela empresa de design contratada pelo autor em sua atividade comercial, sem embargo do uso da marca Personna da qual é titular, empresa da qual a ré é sócia, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00.” Décima Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, AC 61.692-4/8, Des. Ruy Camilo, 24 de novembro de 1998.

Percebemos que o Tribunal delimitou o direito do titular do logotipo aos limites previstos pelo direito autoral, não ampliando o direito deste para impedir que o Réu utilizasse a sua marca já registrada, mas somente concedendo ao Autor o que ele realmente tinha direito, qual seja, o direito de impedir que a sua obra fosse reproduzida para fins comerciais sem sua autorização. Ao analisar a decisão que comentamos acima Denis Barbosa assim se manifesta: “Assim, não viola o direito autoral quem “importa, exporta, vende, oferece ou expõe à venda, oculta ou tem em estoque: produto assinalado com marca ilicitamente reproduzida ou imitada, de outrem, no todo ou em parte; ou II - produto de sua indústria ou comércio, contido em vasilhame, recipiente ou embalagem que contenha marca legítima de outrem” (art. 190 do CPI/96) – ou seja, quem usa a marca no comércio, mas somente quem assinala a marca no produto. Pois o assinalar, como ato de reprodução coberto pela lei autoral, é contrafação autoral.(Barbosa, 2013. p. 2)

Nesse sentido, verificamos que coube ao Autor da ação somente o direito de requerer a abstenção do uso da obra para fins comerciais na forma protegida pelo direito autoral. Não gozou o titular do direito de se opor ao uso comercial dessa obra como marca (Barbosa, 2013). Com relação ao reconhecimento da proteção do direito autoral a elementos já protegidos como marca, Denis Barbosa (2013, p.3), esclarece que esta proteção pelo direito autoral só é possível e subsistirá nos elementos da marca que assim atenderem os requisitos para essa segunda tutela: “no que tais elementos constituam elemento de marca registrada, a incorporação da criação figurativa no registro não lhe elimina a independência da criação autoral, no que ela existir. Mas só no que existir.” (grifo nosso). Este autor esclarece ainda que a proteção autoral “não se estende ao uso comercial do elemento como marca” (Barbosa, 2013, p.3). Verificamos que o caso narrado acima não chegou a versar sobre cumulação de direitos de marca e de DA, pois o Autor da ação não chegou a

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propriedade intelectual ter direitos marcários sobre o desenho. Ele tentou ter o desenho de sua titularidade registrado como marca pelo INPI, mas conseguiu. O titular do logotipo gozava somente de tutela pelo direito autoral. Entretanto, a decisão proferida pelo Juízo no caso acima também versa sobre a identificação de direitos, seus limites e o que por ele deve ser tutelado em uma relação onde, de início, se tentou reivindicar duplo direito sobre o bem violado. Esta reivindicação só não foi levada em consideração na demanda, segundo se pode depreender de trecho citado acima, porque o titular do bem teve negado o pedido de concessão do segundo direito relativo ao bem. Dessa forma, entendemos que essa decisão é pertinente ao assunto aqui discutido e pode nos fornecer informações relevantes para tentarmos entender o fenômeno, bem como o que deve se levar em consideração para se compatibilizar conflitos sobre cumulação de DPI. 4.2. Dupla proteção de personagens Não obstante também versarem sobre criações gráficas, discutimos em seção específica a dupla proteção de personagens como obras resguardadas pelo direito autoral e pelo regime marcário. Esse tipo de dupla proteção é um dos apresenta os casos mais analisados pela doutrina que estuda o tema. Duas razões podem ser apontadas para tanto. Geralmente esses casos envolvem personagens famosos e conhecidos pelo grande público, repercutindo, assim, mundialmente. Além disso, as decisões proferidas nesses casos judiciais, normalmente, têm rico suporte teórico e traçam critérios interessantes de serem analisados e discutidos como estudos de caso e em artigos acadêmicos. Como vimos na seção que discute os aspectos gerais dessa dupla proteção, a LPI veda o registro desses personagens sem a autorização do titular por força no disposto no art. 124, VII.440 Por serem famosos, os personagens objeto dos litígios geralmente são um dos maiores ativos das empresas titulares. Estas, visando a máxima proteção desses ativos, buscam todas as proteções possíveis (e muitas vezes impossíveis) para que a exploração exclusiva dessas obras seja estendida ao máximo. Essas empresas ganham anualmente enormes quantias de dinheiro a título de royalties proporcionados pela exploração desses personagens. Por conseguinte, elas estão dispostas a gastar milhões e fazer o que tiver ao alcan440 As diretrizes de análise de marcas (2012) assim se manifestam acerca da proteção dos personagens; “Os nomes de personagens não estão protegidos pelo inciso XVII do Art.124 da LPI e nem pela lei de Direitos Autorais, não merecendo proteção excessiva. O que se protege é o desenho do personagem (por ser obra artística), que esteja associado ou não ao seu nome. Entretanto, em casos que o nome do personagem remeta apenas à obra e seja suscetível de causar confusão ou associação com aquela, será formulada exigência para que seja apresentada autorização do detentor do direito autoral, caso não seja o próprio ou terceiros por ele autorizados.” 219

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ce para impedir que o fim de um direito signifique o fim da possibilidade da exploração exclusiva da obra. Portanto, ao fim da proteção de algum dos direitos de propriedade intelectual relativos aos seus personagens, essas empresas travam intermináveis batalhas judiciais para de alguma forma ter reconhecido outros direitos que as possibilitem estender o tempo e o escopo da proteção exclusiva sobre o personagem. O comportamento incisivo, persistente e, por vezes, desleal e agressivo das empresas titulares dos direitos de personagens famosos também pode vir a prejudicar a livre e lícita concorrência. Em muitos dos casos nos quais a vigência de algum dos direitos sobre os personagens expira, os titulares atacam seus concorrentes ao menor uso por estes obras na modalidade já expirada. A alegação desses titulares é a de que a proteção que lhes resta é suficiente para coibir o uso do bem mesmo na função já livre. O que resulta em agressivas ações judiciais contra seus concorrentes. Os titulares, ainda, utilizam-se de inúmeros expedientes para convencer o juízo a impedir o acesso de terceiros a obra. E, em não conseguindo em primeira instância, perpetuam o litígio com os recursos judiciais possíveis. O objetivo é tornar a defesa judicial do concorrente inviável e, dessa forma, forçar a desistência do uso da obra por este. Algumas das consequências do cenário destacado é o desbalanceamento do sistema de PI, a mitigação do domínio público, o desequilíbrio da livre concorrência, a limitação do acesso da sociedade à cultura entre outros danos. Por conseguinte os autores encontram nesse tema rico material para discussão e de grande relevância, dado ao potencia lesivo do assunto. Trazemos como exemplos três casos que versam sobre personagens mundialmente conhecidos. Ao que pese uma das ações ter acabado em acordo entre as partes, todos os casos proporcionam relevantes reflexões. A primeira diz respeito aos direitos do coelhinho Peter Rabbit, que ilustra obra de autoria de Beatrix Potter. A autora criou o desenho do simpático coelhinho Peter Rabbit para ilustrar a história de sua autoria denominada “The Tale of Petter Rabbit”, a qual tinha o coelhinho como personagem central. Em 1902, a Editora de Frederick Warne editou a história de autoria de Beatrix, bem como adquiriu os direitos materiais relativos à obra e ao coelhinho. Anos depois, mesmo com os direitos autorais sobre as obras já expirados a empresa Waner ingressou na Justiça contra um concorrente441 que estava utilizando o desenho do coelhinho em domínio público para ilustrar obras de sua autoria. Warner pediu na justiça a proibição da utilização do desenho de Petter Rabbit alegando que detinha sobre tal desenho, além de direitos auto441 Frederick Warne & Co. v. Book Sales, Inc., 481 F.Supp. 1191, 1195 (S.D.N.Y. 1979) 220

propriedade intelectual rais, direitos marcários. Por tal razão, mesmo que os direitos autorais já tivessem expirados o concorrente não poderia utilizá-los, pois estaria violando o seu direito marcário. Em audiência preliminar o Tribunal competente se manifestou no sentido de permitir a cumulação subsequente de direitos, caso a Warne conseguisse comprovar que o personagem Peter Rabbit passou a ser associado pelo público como marca da empresa por meio de significação secundária. O caso terminou em acordo (Moffat, 2004), mas a manifestação preliminar do juízo acenou para uma aceitação da proteção subsequente do bem como marca, e seu uso exclusivo por parte da Warne, sob o argumento de que o uso por terceiro do desenho, mesmo que fossem em livros, violaria o direito de marca por causar confusão nos consumidores.442 Ao comentar o caso em artigo sobre cumulação de direitos, Viva Moffat (2004) argumentou que se tal decisão por parte do Tribunal se concretizasse, esta configuraria uma ampliação indevida dos direitos exclusivos sobre esse bem, em detrimento do interesse da sociedade ao livre acesso da obra após a expiração da sua proteção por direito autoral.443 Apresentamos outro caso de enorme repercussão mundial, dessa vez recente, o qual teve início em 2013 e decisão final proferida em junho de 2014. O referido caso versa sobre a proteção exclusiva do personagem Sherlock Holmes. Os direitos sobre as primeiras obras de autoria de Connan Doyle (falecido em 1930), onde o personagem aparece, já se encontram em domínio público. Entretanto, os herdeiros do autor se insurgiram contra a o Editor Leslie Klinger que estava para publicar uma antologia sobre as obras com o personagem. Os herdeiros exigiram o pagamento de direitos autorais pela utilização do personagem alegando direitos cumulados subsequentes relativo às obras cuja data de criação ainda estava dentro do prazo de tutela pelo direito auto442 Vide trecho da decisão na parte pertinente: “fact that a copyrightable character or design has fallen into the public domain should not preclude protection under the trademark laws so long as it is shown to have acquired independent trademark significance, identifying in some way the source or sponsorship of the goods.” (…) “It would not be enough that the illustrations in question have come to signify Beatrix Potter as author of the books; [Warne] must show that they have come to represent its goodwill and reputation as Publisher of those books.” Frederick Warne & Co. v. Book Sales, Inc., 481 F.Supp. 1191, 1195 (S.D.N.Y. 1979) 443 Frederick Warne & Co. sought to establish and maintain its trademark rights in the pictures of Peter Rabbit while the copyright was in effect and then continued to press those trademark rights after the copyright expired. Here as well, the drawings of Peter Rabbit initially were the product, or part of the product, and then became, at least according to the plaintiff, a trademark signifying the source of the product. Frederick Warne demonstrates the way in which the expanded notion of trademarks and trademark rights has led to overlap. The conclusion that Peter Rabbit has risen to trademark status is a stretch, yet the court did not appear reluctant to confer trademark rights on Frederick Warne & Co. It is hard to believe that the picture of Peter Rabbit has come to function as a trademark or that there is really a significant risk of confusion in this instance. Indeed, it is only if the trademark rights are granted here that people will come to associate Peter Rabbit with a single source rather than believing that he is part of the public domain (Moffat, 2004. p. 1509).” 221

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ral. Após ameaças concretas dos herdeiros no sentido de impedir, inclusive na justiça o uso das obras, Klinger se viu obrigado a propor ação declaratória de não violação de direitos de exclusiva e de reconhecimento do domínio público das obras. Os autores perderam em primeira instância, mas recorreram argumentando que as características do personagem não poderiam ser divididas em aspectos protegidos ou não protegidos. Alegaram ao juízo que permitir que terceiros utilizem o personagem de forma livre em outras obras acarreta a alteração nas características intrínsecas do personagem criado por Doyle e que essa alteração viola os direitos morais sobre o personagem, devendo, assim, serem estes resguardados. Os argumentos dos herdeiros não prosperaram. O juízo entendeu indevida a requerida cumulação subsequente de direitos em detrimento do direito principal em domínio público. Ademais, deixou claro em seu julgado que constatou que a real intenção da oposição dos herdeiros aos usos livres da obra não residia na proteção moral das características do personagem, mas sim no objetivo de perpetuar os ganhos com a utilização exclusiva dos mesmos em detrimento da sociedade. O juízo ainda esclareceu que permitir naquela circunstância a extensão da proteção da obra prejudicaria a sociedade, frustrando o objetivo final do sistema de direitos autoais e violando as disposições da Constituição americana. Dessa forma, os direitos sobre o personagem Sherlock Holmes foram considerados em domínio público nos Estados Unidos de forma definitiva. Abaixo trazemos as passagens que consideramos mais relevante da decisão: “.. We cannot find any basis in statute or case law for ex-tending a copyright beyond its expiration. When a story falls into the public domain, story elements—including charac-ters covered by the expired copyright—become fair game for follow-on authors, as held in Silverman v. CBS Inc., 870 F.2d 40, 49–51 (2d Cir. 1989), a case much like this one. (…) More important, extending copyright protection is a two-edged sword from the standpoint of inducing creativity, as it would reduce the incentive of subsequent authors to create derivative works (such as new versions of popular fictional characters like Holmes and Watson) by shrinking the public domain. For the longer the copyright term is, the less public-domain material there will be and so the greater will be the cost of authorship, because authors will have to obtain li-censes from copyright holders for more material—as illus-trated by the estate’s demand in this case for a license fee from Pegasus. Most copyrighted works include some, and often a great deal of, public domain material—words, phrases, data, en-tire sentences, quoted mate222

propriedade intelectual rial, and so forth. The smaller the public domain, the more work is involved in the creation of a new work. The defendant’s proposed rule would also en-courage authors to continue to write stories involving old characters in an effort to prolong copyright protection, ra-ther than encouraging them to create stories with entirely new characters. The effect would be to discourage creativity. (...) Anyway it appears that the Doyle estate is concerned not with specific alterations in the depiction of Holmes or Watson in Holmes–Watson stories written by authors other than Arthur Conan Doyle, but with any such story that is published without payment to the estate of a licensing fee. (..) The spectre of perpetual, or at least nearly perpetual, copyright (perpetual copyright would vio-late the copyright clause of the Constitution, Art. I, § 8, cl. 8, which authorizes copyright protection only for “limited Times”) looms, once one realizes that the Doyle estate is seeking 135 years (1887–2022) of copyright protection for the character of Sherlock Holmes as depicted in the first Sher-lock Holmes story” Klinger v. Conan Doyle Estate, Ltd., US 7th Cir. June 16, 2014 as written by Jude Richard Posner.

Nota-se que a primeira decisão apresentada nessa seção versa acerca da cumulação subsequente entre marca e DA. Já segunda diz respeito à proteção subsequente de um direito autoral por outro, em razão de alegada existência de direitos subsequentes sobre elementos diferentes de um personagem. Entretanto, as duas decisões lidam com a mesma questão de forma distinta: a possibilidade de se estender a proteção exclusiva sobre um bem cujo direito sobre uma determinada função já expirou. Com relação a esse ponto, verificamos que a manifestação do juízo no caso Sherlock Holmes diferiu do entendimento firmado no caso Petter Rabbit. Tal fato reforça nossas suspeitas de que a justiça ainda se encontra dividida sobre a questão da cumulação de direitos, notadamente no que concerne a discussão sobre a tutela dos direitos privados x a tutela do interesse público. O que nos faz perceber a necessidade de maiores discussões acerca dos direitos e consequências em jogo em casos como esses. Não obstante serem necessários maiores estudos para averiguar a questão nos casos concretos, seguimos os entendimentos esposados por Moffat (2004, p. 1509) e pelo Juiz Posner. Tais seguem no sentido de que em casos cuja proteção cumulada é arguida com a manifesta intenção de ampliar o tempo da exclusividade sobre o bem, e cujo direito já tenha expirado devem ser rechaçado. 223

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A terceira decisão apresentada nos permite perceber alguns elementos que podem auxiliar também futura investigação acerca da correta identificação de direito a ser protegidos em casos de cumulação de DPI. O caso em questão versa sobre a violação por um terceiro de personagens em quadrinho de titularidade das empresas Warner, Hanna Barbera e Disney. Inconformadas com tal uso não autorizado, as empresas titulares entraram na justiça pedindo a abstenção do uso da obra por parte do terceiro e a condenação deste por violação de direitos autorais e de marca, bem como respectiva indenização. O juízo, em sede de Recurso Adesivo, entendeu que o uso se tratava de uso como marca e não de uso dos personagens como objeto de direitos autorais. Restou para o juízo comprovada a contrafação marcária e o Réu foi condenado a indenizar os Autores na forma da LPI. Entretanto, as Autoras recorreram da decisão requerendo não só a indenização prevista na LPI acerca da contrafação marcária, mas também a indenização prevista no artigo 103 da LDA, sob a alegação de serem titulares também dos direitos autorais dos personagens. Ou seja, as Autoras queriam o reconhecimento da dupla proteção para fazer jus a uma “dupla indenização”. Nesse caso, o Tribunal entendeu ainda que no âmbito do conflito, os personagens só foram utilizados pela empresa Ré como marca e, que, portanto, as Autoras titulares só gozavam de um direito a ser tutelado pela Corte. Nesse sentido, a Décima Câmara Cível proferiu a decisão abaixo, utilizando, ao que nos parece, os critérios do uso funcionalizado do bem no âmbito do conflito em conjunto com os critérios da proporcionalidade e razoabilidade para identificar qual direito assistia ao autor e qual o escopo e limite da sua proteção: “... 1. Incabível, no caso, a pretensão de que a indenização seja calculada, cumulativamente, com base nos parâmetros fixados pela Lei de Proteção Industrial e pela Lei de Direitos Autorais, na medida em que a aplicação de uma exclui a aplicação da outra, além de que a cumulação pode implicar em enriquecimento indevido, ferindo padrões de proporcionalidade e razoabilidade. 2. Não fora isso, a própria Lei de Direitos Autorais, que as apelantes querem ver aplicada em “adição” à Lei de Proteção à Propriedade Industrial, prevê que o direito autoral protegido é o oriundo da experiência ou espírito humano, excluindo expressamente de sua tutela o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas em cada obra, que é o que fazem as autoras em praticamente todo o mundo.  Versa sobre a aplicação não só da  Lei de Propriedade Industrial (9.279/96),mas também da Lei  9.610/98 ao caso, mais precisamente no que se refere à indenização. Segundo as recorrentes adesivas, o desenho de seus personagens é obra intelectual, protegida pela Lei de Direitos Autorais, não se referindo a de-

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propriedade intelectual senhos industriais, “mas sim, a marca registrada, nos termos do art. 129 da LPI”, de sorte que, “os atos das Recorridas decorreram tanto em violação das obras intelectuais ..., como em infração de marca registrada e de concorrência desleal, ...” (f. 2295). Por isso entendem que à indenização já fixada na sentença deve ser acrescida a indenização prevista na Lei 9.610/98, em especial quanto à previsão de seu art. 103 e seu parágrafo único. (...) 3. A despeito desse necessário intróito, tenho que o recurso adesivo não merece provimento. 3.1. Nem sempre é fácil distinguir direito autoral de direito à propriedade industrial, o que dificulta, na prática, a definição da tutela legal incidente. A propósito, veja-se o que anota o doutrinador português José de Oliveira Ascensão, tratando da legislação brasileira: “A Propriedade Industrial refere-se a diferentes bens, como as marcas e os inventos. Neste último caso é máximo o seu parentesco com o direito de autor, pois o autor da invenção também é protegido (...). Noutros casos pode haver dúvidas sobre a atribuição de certa matéria ao Direito de Autor ou à Propriedade Industrial. (...)”4. Esse parece ser bem o caso dos autos. A sentença, no que se refere à indenização, determinou a aplicação da Lei de Proteção à Propriedade Industrial (artigos 208 a 210), e as apelantes adesivas querem que também seja aplicada a Lei de Proteção ao Direito Autoral (artigos 102 e 103), em “adição” (f. 2.296). Com a devida vênia, não vejo como aplicar referidas leis em conjunto, no caso, para fins de fixação da indenização devida. O autor acima citado fez esse questionamento ao tratar de obras de arte aplicadas: “E pode recorrer [o prejudicado] cumulativamente a ambos [tutela do direito autoral e tutela do direito industrial]?” E assim respondeu: “Embora o ponto seja duvidoso, inclinamo-nos para a resposta negativa. Cada qualificação traz um sistema completo de proteção ...”.5 Assim, já tendo sido aplicadas as disposições da Lei de Proteção Industrial, é de se repelir a incidência cumulativa das disposições da Lei de Proteção ao Direito Autoral, até para afastar o risco de”bis in idem”. 3.2. Além disso, a indenização também deve se nortear por critérios de proporcionalidade e razoabilidade. E isso inegavelmente foi observado pela sentença, posto que a aplicação da Lei de Propriedade Industrial, no caso, mostra-se suficiente para o ressarcimento das apelantes, na medida em que elas não demonstraram, concretamente, o contrário (o que, 225

inclusive, traz o risco de eventual enriquecimento indevido, a ser sempre evitado).  E veja-se o que também ensina a doutrina ao comentar essas disposições:  “Na verdade, o sistema brasileiro de reparação civil não tem o caráter punitivo; e tal característica é tão arraigada e central, que merece, a nosso ver, proteção da cláusula do substantive processo of Law da Constituição de 1988. Assim, para não infringir a Constituição, o juiz tem de escolher em cada caso o método mais adequado a corrigir o dano, ainda que não seja o mais favorável ao titular (...). As regras do art. 210 do CPI/96 permitem, certamente, tal aplicação prudente do princípio da plena indenização, desde que se modere o excesso do dispositivo, ajustando-o ao standard constitucional” 6.  (...) 3.3. Não fora isso, parece mesmo não ser o caso de aplicar a Lei do Direito Autoral. 

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(...) 3.4. Por fim, também a Lei de Proteção Autoral é expressa ao prever que escapam de sua proteção, dentre outros, o”aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras” (inc. VII, do art. 8º). No caso, é inegável o caráter industrial e comercial das autoras, que reproduzem seus personagens praticamente no mundo todo.  DIANTE DO EXPOSTO, VOTO pelo provimento parcial da apelação, apenas no que se refere aos honorários advocatícios (15% sobre o valor da condenação em relação a cada um dos réus), e pelo não provimento do recurso adesivo.  Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná por unanimidade de votos em DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO E NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ADESIVO, nos termos do voto do relator.  Apelação Cível nº 0604332-5. Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná Relator Des. Valter Ressel. Julgamento dia 04/02/2010.

No caso exposto, fazemos a ressalva de que entendermos que na realidade o uso dos personagens feito pelo terceiro se tratava de uso protegido pelo direito de autor. A finalidade de se apor os personagens aos artigos de varejo não foi vincular estes à origem do terceiro, e sim valorizar os produtos incitando nos consumidores as características dos personagens como obra intelectual. Entretanto, em que pese a identificação errônea do direito violado444, o que é importante para a nossa análise, porém, é verificar o enten444 *Fato que só corrobora com o nosso entendimento de que endereçar corretamente a solução de um conflito de cumulação de DPI é tarefa complexa e que demanda análise cuidadosa das partes e suas relações com o bem. E, inclusive, esta dificuldade de entendimento do tema pelas partes envolvidas no conflito e, até mesmo, pelos magistrados, é um dos elementos que facilitam atos oportunistas dos titulares. 226

propriedade intelectual dimento do Tribunal de que “já tendo sido aplicadas as disposições da Lei de Proteção Industrial, é de se repelir a incidência cumulativa das disposições da Lei de Proteção ao Direito Autoral. 4.3. Proteções de títulos de obras intelectuais como DA e MARCA No Brasil, tanto a legislação marcária quanto a legislação autoral permitem e dispõem acerca da a proteção de títulos de obras intelectuais, impondo, entretanto alguns requisitos e ressalvas. A LDA dispõe em seu artigo 8º, VII que nomes e títulos isolados não são protegidos pelo direito autoral. Já o artigo 10º da mesma lei esclarece que a proteção à obra intelectual abrange o seu título, se original e inconfundível com o de obra do mesmo gênero divulgada anteriormente por outro autor. Dessas duas disposições verificamos que o título isolado não é passível de proteção pelo DA. Entretanto, este gozará de proteção se (1) for parte integrante de uma obra intelectual445; (2) se original; e (3) inconfundível com o de obra de mesmo gênero446 divulgada anteriormente. Com relação à proteção de título como marca, conforme verificamos no item acima, o artigo 124, XVII da LPI, permite o registro de títulos como marca desde que (1) não sejam suscetíveis de causar confusão ou associação e (2) que o autor ou titular da obra intelectual dê autorização para o registro desta como marca. As diretrizes de análise de marcas do INPI, de 11/12/2012, na seção 3.4.11, dedicam trecho específico sobre títulos de obra. 4.4. Dupla proteção de produtos, rótulos e embalagens A princípio, a dupla proteção de rótulos e embalagens como marca e como direito autoral é possível e, inclusive, regulada em nosso ordenamento jurídico. Esses elementos, se distintivos, encontram possibilidade de proteção 445 José de Oliveira Ascensão (2002) guarda entendimento que alguns títulos, em casos relativamente raros, têm originalidade, significado e estrutura complexa o suficiente para serem considerados por si só pequenas obras. Nesses casos, o autor entende que essas obras seriam passíveis de proteção pelo direito autoral, inclusive, isoladamente. 446 Acerca da interpretação dos termos “original”, “inconfundível” e “gênero” no âmbito do artigo 10 da LDA, vide decisão proferida pela Juíza Fernanda Rosado Sousa, no processo nº 2001.001.0203867, em trâmite na 26ª Vara Cível da cidade do Rio de Janeiro, em 31/01/2012. Com relação ao requisito da originalidade, a juíza entendeu que um título para ser considerado original não pode ser reconhecido como expressão comunmente associada ao tema da obra. A Juíza entendeu que para ser considerado “inconfundível” o título deve e ser distinto de outros títulos já existentes. Por fim, acerca da expressão “gênero” a magistrada informou que esta expressão se refere à categorização da obra segundo o seu gênero, ou seja, obra do gênero se literária, audiovisual, musical, etc. 227

na LPI. De forma geral a LPI no artigo 122 garante proteção marcária para sinais visualmente perceptíveis não compreendidos nas proibições legais, bem como, no artigo 123, I que protege as marcas de produtos. As embalagens e os produtos são protegidas como marcas tridimensionais. As diretrizes de análises de marca do INPI (2012), no item 1.3.4, conceitua a marca tridimensional como o sinal constituído pela forma plástica distintiva do produto ou do seu acondicionamento ou da sua embalagem.

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Cabe observar a ressalva feita pelo artigo 124, XXI da LPI que proíbe o registro como marca da forma necessária, comum ou vulgar do produto ou de acondicionamento, ou, ainda, aquela que não possa ser dissociada de efeito técnico. Ou seja, a marca tridimensional não pode (a) ser uma forma comum ou vulgar e (b) deve ser capaz de ser dissociada de efeito técnico. Cumpre observar, acompanhando as lições de Denis Barbosa (2008), que os produtos, as embalagens e seus rótulos não são de forma primígena obras criadas para distinguir e criar um vínculo entre o produto e a sua origem, mas sim para se presentificar como produtos, acondicioná-los e funcionarem como objeto propaganda, tornando o produto mais atrativo447. Tal indicativo nos informa que originalmente a função exercida por produtos, embalagens e rótulos se encaixa nos recortes de proteção de DA, no que tiverem de caráter artístico e de desenho industrial – DI, no que tiverem de aplicáveis à industria. Nesse sentido, entendemos que um produto, uma embalagem ou um rótulo só pode gozar de proteção marcária de forma legítima, se ficar comprovado que tal elemento adquiriu na percepção do público consumidor um significado secundário de signo indicativo da sua origem ou da origem do produto que acondiciona ou evidencia. Portanto, seguindo as lições de Barbosa (2008), entendemos ser inconstitucional o registro de produtos, embalagens e rótulos como marca sem a aquisição de uma função distintiva secundária. A LDA também protege esses elementos pelo direito autoral (art, 7º, VIII), desde que eles atendam aos requisitos para a proteção pelo DA, dentre eles, a originalidade. Abaixo trazemos interessante caso envolvendo a alegação de dupla proteção da embalagem do perfume Dior como marca e como DA para impedir uso da embalagem por revendedor autorizados em encarte promocional de farmácia. 447 Vide leading case sobre a questão: Wal-Mart Stores, Inc. V. Samara Brothers, Inc.. Caso decidido em 22 de março de 2000 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. 228

propriedade intelectual 4.5. Caso Dior x Evora A empresa Christian Dior além de titular dos direitos autorais dos desenhos dos frascos de seus perfumes é titular de marcas constituídas por tais elementos. Os perfumes Dior são bens destinados ao segmento de luxo e são vendidos para um público diferenciado. Em 1996, a Rede de farmácias Évora vendia os perfumes da Dior. Os produtos em questão eram importados, mas adquiridos de forma legal. A Rede Évora anunciou alguns dos perfumes da Dior que revendia em seu encarte promocional de natal. Para ilustrar a sua propaganda, utilizou a imagem dos frascos dos perfumes que estava vendendo. As imagens dos perfumes indicavam fielmente os produtos pela rede licitamente vendidos e a publicidade foi realizada de forma compatível com o costume do segmento mercadológico. Não obstante, a Dior não aprovou a utilização da imagem das embalagens de seus perfumes em um encarte proporcional de farmácia. Ela entendia que tal uso denegria a imagem da marca prejudicava o seu prestígio perante aos clientes de luxo. Inconformada por não poder se opor à exposição da imagem dos frascos com base no direito marcário, visto que a Rede Évora tinha o direito de vender os produtos, assim como anunciá-los em seus veículos de promoção. A empresa Dior entrou com uma ação no Tribunal de Benelux pedindo que a rede Évora fosse impedida de publicar as imagens dos seus perfumes com base nos direitos autorais que a Dior detinha sobre os desenhos dos frascos. Um conflito de interpretação acerca de uma norma da Comunidade Europeia fez com que o caso fosse encaminhado para ser decidido pela Corte de Justiça dessa Comunidade. A Corte entendeu que independente de reconhecimento cumulativo ou não de direitos, a proteção conferida pelo direito de autor, no que diz respeito à reprodução de obras exibidas em publicidade de revendedor não pode, em qualquer caso, ser mais ampla do que aquela que é conferida pelo direito marcário nas mesmas circunstâncias: “...there being no need to consider the question whether copyright and trade mark rights may be relied on simultaneously in respect of the same product —, it is sufficient to hold that, in circumstances such as those in point in the main proceedings, the protection conferred by copyright as regards the reproduction of protected works in a reseller’s advertising may not, in any event, be broader than that which is conferred on a trade mark owner in the same circumstances.” Case C-337/95 (Parfums Christian Dior SA and Parfums Christian Dior BV v. Evora BV). – ECR 1997, p. I-06013.

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No caso presente entendemos que, não obstante a Corte entender não haver necessidade de entrar no mérito da possibilidade ou não da dupla proteção, a presente decisão apresenta interessante índice de compatibilização em casos com potencial capacidade de desequilibrar o balanceamento de institutos de PI. E acreditamos que tal índice possa ser melhor examinado em futuros estudos para verificar a possibilidade de sua aplicação em casos de cumulações deletérias de DPI. Ao estipular que proteção conferida por um direito não pode ser mais ampla do que a conferida a outro direito que proteger bens idênticos ou semelhantes (perfumes) em uma mesma situação (propaganda em encarte de loja de departamento, farmácia, ou afins), a Corte Europeia impediu que em casos idênticos ou similares os titulares se utilizassem de expedientes oportunistas para obter de forma indevida maior ou melhor proteção de seus direitos e interesses optando em utilizar um sistema ou outro.

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4.6. Considerações sobre as decisões As decisões acima expostas nos forneceram informações relevantes e suscitam questões que consideramos pertinentes investigar na continuidade do estudo sobre o tema. Dentre os questionamentos já apresentados ao longo das seções acima, outra questão que entendemos relevante maiores investigações para responder é: em que casos a cumulação de direitos deve ser permitida e quais os limites que devem ser observados para que ela não viole direitos e interesses de terceiros? Em que pese em abstrato a cumulação de direitos não ser um problema por si só (Kur & Dinwoodie, 2001), constata-se a existência de muitos casos nos quais disfunções ocorrem e suas consequências apresentam riscos substanciais para o equilíbrio do sistema de PI e para o interesse público. Como por exemplo, como vimos, casos em que os titulares de obras vão além dos direitos que gozam para tentar estender sua exclusividade, bem como para aumentar os seus ganhos fazendo uso das ferramentas disponíveis em cada modelo de proteção para excluir terceiro do uso do bem utilizando a ferramenta que melhor lhe servir (Dinwoodie, 2001)448. Essas atitudes acabam 448 “…- These developments pose dangers as well as opportunities for authors. While trademark law can easily be seen as a means by which copyright owners can fill gaps in the fabric of copyright protection, it is by no means certain that the doctrinal (and theoretical) integration of separate intellectual property regimes will effect the transposition only of “filling” principles that accord more expansive protection. Instead, the “limiting” principles of trademark law (and design law and patent law) may as easily come to shape the contours of intellectual property protection of works of authorship, to the detriment of both the body of copyright law and the rights of authors. Moreover, the balance intentionally infused into copyright law (from which authors benefit) may inappropriately be disrupted by opportunistic exploitation of the differences between copyright and trademark (and design) law (Dinwoodie, 2001,p.2)”…“…Opportunistic litigation is also a practical cause of these recent developments: trademark can fill the holes in the fabric of copyright protection that a plaintiff receives. (Dinwoodie, 2001,p.9)” … 230

propriedade intelectual por gerar disfunções nos casos de cumulação de direitos que devem ser compatibilizados.

5. Conclusão Verificamos que a cumulação de direitos de propriedade intelectual, a princípio, ao sistema de PI. Entretanto, abusos de direito por parte dos titulares na busca pela expansão e perpetuação de seus direitos exclusivos têm o potencial de gerar cumulações disfuncionais. Verificamos que nas últimas décadas, com as mudanças no sistema de PI, as cumulações criadas de forma desordenada e não ponderadas estão gerando cada vez mais resultados danosos. As cumulações deletérias podem ser extremamente lesivas para o interesse público e para o equilíbrio do sistema de PI. Dentre as consequências indesejadas desse acúmulo de direitos podemos elencar a expansão indevida de direitos exclusivos, a mitigação do domínio público, a violações de direitos adquiridos da sociedade ao acesso de bens intelectuais que já deveriam estar livres, dentre outros resultados que devem ser evitados. Nesse sentido, entendemos que se cumulação de direitos não for devidamente analisada, balanceada e limitada segundo as funcionalidades e os objetivos constitucionais de cada instituto de propriedade intelectual, aqui, particularmente quanto aos institutos marcário e de direito autoral, haverá danos de difícil reparação para a o sistema de PI e para o interesse público. Como o tema ainda é recente e controverso acreditamos ser de crucial importância a realização de estudos mais aprofundados sobre esse tema, bem como sobre as suas consequências para a sociedade e para o equilíbrio do sistema de PI. Wilhelm Grosheide has described this as the rise of the “ipr entrepreneuer” as a right owner, seeking indiscriminately to obtain an advantage over rivals through application of whatever legal rights it can find.36 Annette Kur has described this as the “human factor” in modern intellectual property litigation.37 But however, we describe it, it is important to recognize that while we may rationalize and theorize the reasons for the convergence in the different intellectual property regimes, it is in large part attributable not to universal truths about the nature of the different property rights but rather to historical circumstance ((Dinwoodie, 2001,p.10 e 11).

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propriedade intelectual RETALIAÇÃO CRUZADA EM PROPRIEDADE INTELECTUAL: uma alternativa aos países em desenvolvimento para a solução de disputas na organização mundial do comércio* Marcos Wachowicz449 e Vitor Augusto Wagner Kist450

1. Introdução Com a criação da Organização Mundial do Comércio surgiu também o Órgão de Solução de Controvérsias, que apesar de trazer incisivas melhoras ao sistema de solução de conflitos ainda é bastante deficiente quando estão em jogo os interesses de países economicamente díspares, o que gera grandes dificuldades aos Estados em desenvolvimento. A alternativa para suprir essa deficiência, aumentando a efetividade das decisões favoráveis aos países mais pobres, é a utilização da chamada Retaliação Cruzada em direitos de Propriedade Intelectual, regulados pelo acordo TRIPS, mais precisamente na área de patentes industriais. Essa medida é assegurada pelo próprio Entendimento relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias que regula o Órgão de Solução de Controvérsias e nunca foi utilizada devido a pressão exercida pelos Estados detentores dos direitos de propriedade intelectual, mas a simples ameaça de utilização do dispositivo já gerou efeitos favoráveis a países em desenvolvimento no momento de negociação sobre a resolução da controvérsia, como no caso Equador – Bananas III e Brasil – Estados Unidos, Caso do algodão. Esse trabalho visa tratar sobre a Retaliação Cruzada como uma alternativa legal aos países em desenvolvimento nos casos em que litigam no Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio. Aborda-se a problemática na efetivação das retaliações e dos demais remédios habitualmente utilizados no âmbito do Órgão de Solução de Controvérsias, indicando a retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual, Este artigo foi produzido mediante apoio da Capes e CNPq. * 449 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, Portugal. Professor de Propriedade Intelectual da Faculdade de Direito da UFPR e docente do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Coordenador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR. E-mail: [email protected]. 450 Especialista em Propriedade Industrial e Biotecnologia pela Justus-Liebig University Giessen, Alemanha. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR. E-mail: [email protected]. 233

regulados pelo TRIPS451, como uma alternativa legal e mais proveitosa aos países em desenvolvimento. Por fim, com o intuito de dar maior esclarecimento ao assunto, tratase dos casos em que essa alternativa foi autorizada pelo Órgão de Solução de Controvérsias e suas peculiaridades, bem como os acordos que decorreram dessas disputas.

2. O Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio

Marcos Wachowicz e Vitor Augusto Wagner Kist

O Órgão de Solução de Controvérsias é um dos pilares da Organização Mundial do Comércio e visa promover a segurança e previsibilidade nos acordos multilaterais. Criado durante a Rodada do Uruguai, propicia aos membros a resolução de seus conflitos de forma pacífica, com base em regras predefinidas e aceitas livremente pelos países em questão. Essa resolução se dá por meio de abertura de procedimentos chamados de consultas e painéis junto ao OSC. Tais procedimentos visam averiguar se os Estados membros da OMC agem de maneira diferente àquilo que se comprometeram. Quando comprovado esse desvio, recomenda-se ao membro irregular que modifique sua conduta, a fim de se enquadrar aos ditames da OMC. Quando o Estado se nega a cumprir a decisão da OSC surgem os remédios e contramedidas. Os remédios oferecidos pelo Órgão de Solução de Controvérsias são a recomendação, sugestão e compensação. A primeira, prevista no artigo 19 do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos Sobre Solução de Controvérsias (ESC), se resume a uma recomendação sem força coativa para que o país infrator adeque sua conduta. A Sugestão é um acréscimo à Recomendação, pois sugerem um caminho a ser tomado pelo membro desviante. A Compensação, por sua vez, deve ser efetivada de imediato e apresentada em uma reunião do OSC, que deve ser realizada em até 30 dias após a adoção do relatório. Nos casos em que nenhum desses remédios surtam efeitos, a Organização Mundial do Comércio defere a utilização das contramedidas. As contramedidas, são a Retaliação e a Retaliação Cruzada, esta última que será mais profundamente analisada neste artigo. Por retaliação deve 451 Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, em inglês Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, é o instrumento internacional mais importante para a globalização das leis de propriedade intelectual, visto que prevê padrões mínimos de proteção de direitos de Propriedade Intelectual e regula de forma geral o sistema. 234

propriedade intelectual ser entendido a suspensão temporária de vantagens comerciais negociadas na OMC, ou, como explicou Schefer452, medidas que discriminatoriamente colocam o membro sucumbente em piores condições de competição quando comparado aos demais membros da organização. As contramedidas devem ser adotadas preferencialmente no mesmo setor em que o OSC tenha constatado a infração453. Se ainda assim a parte considerar impraticável aplicar a contramedida no mesmo acordo, “poderá procurar suspender concessões e outras obrigações abarcadas por outro acordo abrangido”454, é o que chamamos de Retaliação Cruzada. Contudo, as contramedidas comumente oferecidas pela OMC vêm se demonstrando ineficientes quando estão em jogo os interesses de países com economias assimétricas, como se passará a analisar abaixo. 2.1. Dificuldades na efetivação das disputas entre jogadores assimétricos O maior problema do sistema de solução de controvérsias é, e sempre foi, o seu modo de implementação. É verdade que 83% das disputas comerciais são cumpridas, e sem dúvida esse é um número expressivo para um sistema internacional455. Contudo, esse índice mascara alguns pontos cruciais. Primeiramente, leva em consideração as decisões que foram apenas parcialmente cumpridas, tendo o restante de seu conteúdo sido modificado por negociações entre as partes. Essas negociações geralmente se dão em uma situação de hipossuficiência dos países com economias menores, o que leva a um abrandamento no cumprimento da decisão. Em outras palavras, sob o risco de ver a decisão não cumprida pela parte reclamada, o país reclamante aceita um cumprimento parcial e se dá por satisfeito, ficando o caso como encerrado, a decisão como cumprida, e sendo computado desse modo nos índices da OMC. Desde a data de sua criação em 1995 até abril de 2012 o OSC havia lidado com exatos 436 disputas internacionais. Dessas, apenas 8456 chegaram 452 SCHEFER, Krista Nadakavuraken. Social Regulation in the WTO: Trade Policy and International Legal Development. Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing Limited, 2010. P. 147. 453 Artigo 22.3 a, do ESC. 454 Artigo 22.3 c, do ESC. 455 DAVEY, William J. The WTO Dispute Settlement System: the first decade. In: Journal of International Economic Law. Vol. 8, Oxford University Press. 2005. P. 17-50. 456 EC-Bananas, EC-Hormones, US–Gambling, US-Cotton Subsidies, US-FSC, US-Byrd Amendment, Brazil-Aircraft e Canada-Aircraft. 235

a ter a retaliação aprovada.457 Aliado a essa relativa falta de efetividade na imposição das decisões do OSC está o fato de que as medidas autorizadas visam apenas o reequilíbrio comercial entre os países litigantes. A OMC não tem o objetivo de sancionar o país violador. Ou seja, só permite que seja retaliado o montante gerado como prejuízo ao reclamante. Ainda, é importante ressaltar que as autorizações para retaliações só são obtidas após anos de trâmites legais junto ao OSC, e que neste interim o país afetado negativamente pode ter sido prejudicado de uma forma irreversível.

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Devido à falta de caráter sancionador das decisões da OSC, podese dizer que o país que puder arcar economicamente com as contramedidas pode simplesmente pagá-las e continuar violando o acordo. Para reforçar o argumento faz-se imprescindível a declaração dada em 2004 pela Mesa Consultiva ao Diretor Geral da Organização Mundial do Comércio: It has been argued by some that WTO member finding itself in a losing position in the WTO dispute settlement system has a free choice on whether or not to actually implement the obligations spelled out in the adopted Appellate Body or panel reports: the alternatives being simply to provide compensation or endure retaliation. This is as erroneous belief. (…) To allow governments to “buy out” of their obligations by providing “compensation” or enduring “suspension of obligation” also creates major asymmetries of treatment in the system. It favors the rich and powerful countries which can afford such “buy outs” while retaining measures that harm and distort trade in a manner inconsistent with the rules of the system.458

Pascal Lamy, comissário de comércio internacional da Comunidade Europeia, no mesmo sentido, afirmou em 2000 ao tratar do assunto que, “contanto que se pague a penalidade, você pode continuar como está” 459. Em uma analogia simplista, e utilizando-se da metáfora de Rudolf von Ihering “(...) a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito”.460. 457 VARGAS, Renata. 2012. P. 97-102. 458 SUTHERLAND, Peter, BHAGWATI, Jagdish, BOTCHWEY, Kwesi, FITZGERALD, Niall, HAMADA, Koichi, JACKSON, John H., LAFER, Celso, MONTBRIAL, Thierry de. The Future of the WTO: Addressing Institutional challenges in the new millennium. Report by the Consultative Board to the Director-General Supachai Panitchpakdi. World Trade Organization. Switzerland, 2004 P. 54 Disponível em http://www.ipu.org/splz-e/ wto-symp05/future_WTO.pdf acessado em 03/09/2014. 459 MATSUSHITA, Mitsuo, Schoenbaum, Thomas J. and Mavroidis, Petro C. The World Trade Organization: Law, Practice, and Policy. New York: Oxford University Press, US, 2003. P. 93. Livre tradução de “As long as you pay the penalties, you can go as you are”. 460 IHERING, Rudolf von. A Luta Pelo Direito. Coleção a obra-prima de cada autor. Tradução de Pietro Nasseti. 2ª Edição, Editora Martin Claret Ltda. São Paulo - SP, 2000. Título original “Der Kampf um’s Recht. P. 27.

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propriedade intelectual A falta de caráter sancionador e a ausência de força impositiva das decisões da OSC, devido a questões de soberania Estatal, fazem com que a justiça da Organização Mundial do Comércio seja uma Themis sem espada, que espera que suas decisões sejam cumpridas por opção dos países membros. Nos subtítulos que seguem serão analisados mais detalhadamente os fatores que geram esta problemática, bem como as possíveis opções legais oferecidas pelo ESC para que os países em desenvolvimento vejam seus direitos efetivados. O Órgão de Solução de Controvérsias como uma instituição pautada em regras preestabelecidas e legalmente acordadas trouxe a promessa de que seria ampliado o âmbito de participação dos países em desenvolvimento junto à OMC. A participação dos países com menor capacidade econômica no contexto do GATT era bastante reduzida, visto que o sistema de resolução de controvérsias no qual era pautado o acordo anterior era puramente diplomático e sofria pesadas limitações devido as diferenças de peso político dos envolvidos. Essa situação vem melhorando com a criação da OSC. Dados estatísticos comprovam que no período de 1995 até 2001 um terço das reclamações junto ao órgão foram feitas por países em desenvolvimento, número maior do que no período do GATT461. Contudo, insta salientar que apesar desse crescente número de ações intentadas por países menos desenvolvidos, até 2007 apenas dez países em desenvolvimento haviam se utilizado do sistema de resolução de controvérsias. Ademais, em 76% desses casos a iniciativa foi dada por um grupo de seis países, sendo eles Brasil, Argentina, Índia, México, Coréia do Sul e Tailândia462. Isto posto, pode-se afirmar que apesar da existência de um aumento na participação dos países em desenvolvimento das disputas junto ao OSC, o sistema está longe de ser equitativo e oferecer iguais condições a todos os membros. É patente a existência de assimetrias relativas ao tamanho dos mer461 BUSCH, Marc L. REINHARDT, Eric. Developing Countries and GATT/WTO Dispute Settlement. Journal of World Trade. Edição 37(4). Países Baixos: Kluwer Law International. 2003. P. 719-721. Disponível em: http:// www.researchgate.net/publication/228559226_Developing_countries_and_general_agreement_on_tariffs_and_tradeworld_trade_organization_dispute_settlement/links/00b495230a0305ec8c000000. Acessado em 04/09/2014. 462 NORDSTROM, Hakan; SHAFFER, Gregory. Acces to Justice in the World Trade Organization: The Case for a Small Claims Procedure? A preliminary Analysis. Issue Paper number 2.International Centre for Trade and Sustainable Development: Genebra, 2007, p. V. Disponível em http://www.ictsd.org/themes/global-economic-governance/research/access-to-justice-in-the-wto-the-case-for-small-claims e http://ictsd. org/i/publications/11306/. Acessado em 04/09/2014. 237

cados e de poder político entre os países membros da OMC. O que gera um grande problema quando o assunto é o Órgão de Solução de Controvérsias, como passará a ser explicado adiante. 2.2. Custos legais e carência de capacidade técnica Como primeiro ponto, deve-se levar em consideração que os custos para se participar de um procedimento junto ao OSC são bastante elevados e requer profissionais treinados na área, o que é um empecilho aos países mais pobres.

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Como analisado por Busch e Reinhardt463, os países necessitam de um time de advogados treinados e com experiência na área, instituições formadas para participar e monitorar o comércio, bem como representantes que julguem a viabilidade do procedimento, por último, os membros devem dispor de uma equipe em Genebra para acompanhar o processo de perto. Esse tipo de mão de obra especializada é rara em todo mundo, mais ainda em países pobres, que possuem menos capacidade de formação de uma equipe preparada para lidar com tais demandas, visto que são obrigados a gastar seus limitados recursos com necessidades mais básicas, como alimentação e saúde. Segundo Norstrom e Shaffer464, os custos para se levar uma causa até o órgão de apelação variam de 300 a 900 mil dólares, sendo que em alguns casos, como o do Japão – Filmes Fotográficos, o montante chegou a 10 milhões de dólares. Esses valores, podem parecer ínfimos quando se pensa em economias como os Estados Unidos e União Europeia, mas 10 milhões de dólares corresponde a aproximadamente 15% das exportações anuais de membros como Burundi, Gambia ou Guiné Bissau465. Evidentemente esses requisitos não podem ser supridos de forma eficaz pelos países menos abastados. Dessa feita, fica evidente que as economias mais desenvolvidas estão muito mais aptas a obter êxito nas disputas do OSC. Analisando a situação dessa forma, vê-se que na grande maioria dos casos 463 BUSCH, Marc L. Reinhardt, Eric. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries. In: Trade Brief on the WTO Dispute Settlement. Sida: Department for Infrastructure and Economic Cooperation. Stockholm: Edita Sverige AB, 2004. 464 NORDSTROM, Hakan; SHAFFER, Gregory. Acces to Justice in the World Trade Organization: The Case for a Small Claims Procedure? A preliminary Analysis. Issue Paper number 2.International Centre for Trade and Sustainable Development: Genebra, 2007, p. 10. Disponível em http://www.ictsd.org/themes/global-economic-governance/research/access-to-justice-in-the-wto-the-case-for-small-claims e http://ictsd.org/i/ publications/11306/. Acessado em 04/09/2014. 465 NORSTROM, SHAFFER. P. 1. 238

propriedade intelectual não é economicamente viável a países pequenos entrar em disputas junto ao OSC, pois o montante em discussão seria superado pelos custos judiciais. Ainda, tem-se que colocar na balança o tempo de demora até que uma possível retaliação ou outra solução seja autorizada, que em alguns casos leva até 3 anos466. Feita essa brevíssima análise do problema de falta de recursos e capacidade técnica por qual passam os países subdesenvolvidos para promover uma disputa comercial, passar-se-á a análise dos problemas de efetivação propriamente dita das retaliações autorizadas pelo OSC. 2.3. Danos colaterais ao país reclamante Primeiramente, deve-se ter em conta o paradoxo que representa a figura da retaliação comercial na OMC. A organização tem como princípio basilar, a liberalização do comércio internacional, enquanto a retaliação tem o sentido oposto, tendo como parâmetro a tomada de medidas protecionistas467. Segundo as teorias clássicas de Adam Smith e David Ricardo, adeptos da teoria econômica liberal, reduzir barreiras é positivo, uma vez que gera ganhos de eficiência no mercado, através da promoção da concorrência e otimização da produção e distribuição de bens e serviços. É aliás o que diz o primeiro parágrafo do acordo que estabelece a OMC, “reconhecendo que as relações nos campos de trocas e esforços econômicos devem ser conduzidas visualizando o aumento do padrão de vida, a assegurar o pleno emprego e o aumento real de lucros e eficiência além de expandir a produção de bens e serviços ao mesmo passo que permite a otimização do desenvolvimento sustentável.”468 E continua no parágrafo terceiro afirmando que os países membros “são desejosos em contribuir para esses objetivos por meio de reciprocas e mutuas negociações dirigidas para a redução substancial de tarifas e outras barreiras (...)”. Nessa lógica, aumentar as barreiras geraria o efeito contrário, prejudicando a eficiência do mercado e a livre concorrência, causando prejuízos ao membro. 466 NORSTROM, SHAFFER. P. 1. 467 SPADANO, Lucas Eduardo F. A. Cross-agreement retaliation in the WTO dispute settlement system: an important enforcement mechanism for developing countries? World Trade Review. Oxford. Oxford Press, 2008. P. 521. 468 Acordo que estabelece a Organização Mundial do Comércio. P.9. Disponível em: http://www.wto.org/ english/docs_e/legal_e/04-wto.pdf. Acessado em: 09/09/2014. 239

A teoria que rege a retaliação é a de que se um país aumentar as barreiras tarifárias em face de outro os agentes internos do membro retaliado exercerão pressão sobre o governo para que se enquadre no previsto pela OMC, a fim de fazer com que as contramedidas cessem. Uma boa estratégia para o membro reclamante é adotar a contramedida em um setor dominado por pessoas com influência política, pois isso geraria maior pressão, aumentando a eficácia da medida. Ainda, o membro reclamante pode optar por um setor que gere menos dano para si mesmo, visto que em última análise o aumento das taxas de importação encarece o preço do produto para os seus cidadãos.

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Contudo, essa análise pressupõe uma disputa ideal entre dois membros com poder econômico equiparável, o que raramente acontece. Na grande maioria dos casos as retaliações ocorrem em acordos envolvendo membros com economias muito discrepantes, surtindo mais danos ao país em desenvolvimento do que ao desenvolvido. Isso ocorre por alguns motivos chaves. Primeiramente, pode-se afirmar que normalmente o montante retaliado por um país em desenvolvimento é insignificante para o membro desenvolvido, não gerando pressão para que este implemente a decisão. Em segundo lugar, a medida causa danos colaterais ao país retaliante, pois aumenta os custos de importação de produtos advindos do país retaliado. O que pode ser um montante de vital importância para um país menos favorecido, representando seu principal setor de exportação ou importação, pode não fazer diferença para o membro com maior poder econômico. Isso faz com que a retaliação seja simplesmente inefetiva, visto que não é capaz de exercer pressão. Segundo Bown469, as motivações para que os países levem os casos ao OSC são de natureza econômica. A decisão se baseia na probabilidade de sucesso e a efetiva ameaça de retaliação que resultará da disputa. Dessa forma, os países em desenvolvimento, após breve sopesamento, não se sentem encorajados a levar as disputas nem ao Órgão de Solução de Controvérsias, menos ainda a efetivar uma retaliação. Busch e Reinhardt470 tem uma opinião semelhante. Segundo os autores, a carência de capacidade jurídica combinada com a limitada capacidade 469 BOWN, C.P. (2004), “Developing Countries as Plaintiffs and Defendants in GATT/WTO Trade Disputes,” The World Economy, 27: P. 59-80. Disponível em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j. 1467-9701.2004.00588.x/abstract. Acessado em 05/09/2014. 470 BUSCH,Marc L; REINHARDT, Eric. The WTO Dispute Settlement Mechanism and developing countries. SIDA, 2004. Disponível em: http://faculty.georgetown.edu/mlb66/SIDA.pdf . Acessado em 09/09/2014. 240

propriedade intelectual de retaliação faz com que os países desenvolvidos sejam capazes de induzir os membros menos privilegiados a firmarem acordos antes que o OSC seja provocado. Ainda, tem-se que pensar nos danos colaterais causados por uma retaliação na economia do país retaliante. O aumento das taxas alfandegárias gera o aumento do preço de importação, o que encarece o preço dos produtos ao consumidor. Tome-se o exemplo de um país em desenvolvimento que tem como base econômica a exportação de produtos agrícolas, e que depende diretamente de insumos agrícolas advindos do país desenvolvido. Um impasse comercial que resulte em uma retaliação por parte do país com menor potencial econômico encareceria o preço de produção de seu principal produto, tornando-o menos competitivo no mercado internacional e reduzindo os seus lucros com exportação. Nesse caso o produtor do país retaliante sairia severamente prejudicado, além de que o país acabaria, em última análise, por arrecadar menos impostos com a cadeia produtiva, um ato prejudicial para si mesmo. Pode-se cogitar a possibilidade de retaliação em serviços como uma solução para esse problema, supondo-se que os competidores internos sairiam beneficiados com a retirada, ou ao menos a diminuição da capacidade competitiva, do prestador estrangeiro. Contudo, essa precariedade de competição fará com que os competidores internos aumentem seus preços ou diminuam a qualidade do serviço, devido simplesmente ao desequilíbrio imediato no binômio oferta e procura, o que gerará malefício aos consumidores finais. Somado ao argumento acima, importante frisar que é muito provável que a suspensão de concessões na área de serviços não seja forte o suficiente, por não envolver valores significativos quando comparada às suspensões na área de bens. O fato é que, tanto nas suspensões das concessões sobre importações de bens, quanto no setor de serviços, os maiores lesados serão os consumidores do país em desenvolvimento. Em última análise, as suspensões nessas áreas acabam por ser um ato contraproducente para o país com economia mais fraca, causando muito mais dano do que benefícios econômicos. Pelas razões acima expostas, as retaliações comerciais nos campos de bens ou serviços não são remédios efetivos para a proteção das economias em desenvolvimento quando em face de membros com mercados mais desenvolvidos. 241

2.4. Retaliação cruzada em patentes como alternativa a jogadores assimétricos Tendo em vista o quadro de ineficiência das medidas usuais de retaliação, os países em desenvolvimento devem buscar soluções que possibilitem a efetivação de seus direitos. Segundo Spadano471, os países em desenvolvimento devem buscar entender as regras da OMC da melhor forma possível para que possam utilizá-las a seu favor. Ou seja, os países em desenvolvimento devem se utilizar das possibilidades legais da forma que lhes provenha mais benefícios. Se o jogo é desfavorável, deve-se procurar um modo de reverter essa situação.

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A alternativa que se demonstra mais suscetível a cumprir esse papel já é prevista no próprio ESC, porém muito pouco utilizada. É a retaliação cruzada em propriedade intelectual. O maior exemplo dessa efetividade é o medo com que a medida é vista pelos países desenvolvidos, junto com a pressão destes para que elas não sejam tomadas. Indícios de sua efetividade prática. Os membros que ameaçam exercer contramedidas dessa feita são usualmente referidos como “piratas”, que não ocorre quando as contramedidas são tomadas nos campos usuais.472 Esse tipo de linguagem hiperbólica reflete o medo e a pressão exercida pelas indústrias detentoras de direitos de Propriedade Intelectual para que a retaliação não ocorra no TRIPS, e é exatamente esse um dos motivos pelos quais essa medida deve ser seriamente considerada, pois, somente afetando um segmento com força política que se pode convencer o membro desviante a se enquadrar aos compromissos assumidos perante a organização. Segundo essa propaganda das indústrias, as medidas legais que limitam o exercício de monopólio de direitos de Propriedade Intelectual são comparáveis ao furto, enquanto o aumento dos preços de bens importados é visto meramente como atividade regulatória usual.473 As razões para esse temor passarão a ser explicadas nos subtítulos que seguem.

471 “... developing countries should seek to understand the rules of the game properly so that they can be used in their favour.” SPADANO, Lucas Eduardo F. A. Cross-agreement retaliation in the WTO dispute settlement system: an important enforcement mechanism for developing countries? World Trade Review. Oxford: Oxford Press, 2008. P. 523. 472 ABBOT, Frederick M. – Cross-Retaliation in TRIPS: Options for Developing Countries. P. 9-11. 473 ABBOT, Frederick M. – Cross-Retaliation in TRIPS: Options for Developing Countries. P. 9-11.

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propriedade intelectual 2.5. Diferenças da Retaliação Cruzada no TRIPS As retaliações sobre o acordo TRIPS, primeiramente, por não promoverem o aumento dos preços de importação, deixariam de gerar efeitos negativos ao país retaliante, o que pode ser o principal problema da retaliação no setor de bens e serviços. Isso ocorre pois a suspensão de direitos de propriedade intelectual faria com que o país vencedor da disputa deixasse de pagar os royalties sobre o produto, diminuindo o preço final ao invés de aumenta-lo, como ocorre na retaliação em outros setores. Tal suspensão elevaria a prosperidade do mercado do membro em desenvolvimento, ao mesmo tempo que exerceria uma pressão real e forte o suficiente para que o país sucumbente mudasse seu comportamento desviante.474 A retaliação cruzada no TRIPS eliminaria a maior desvantagem da retaliação comum, ao mesmo tempo que afetaria de forma incisiva os detentores de direitos de Propriedade Intelectual do país sucumbente, aumentando a eficácia da contramedida de uma forma muito significativa. Contudo, essa medida radical também tem suas desvantagens. Afirma Abbot475 que retaliar no TRIPS pode provocar uma ruptura nas relações comerciais em andamento entre os membros envolvidos. Alguns detentores de direitos de Propriedade Intelectual podem optar por não mais exportar os bens sujeitos a royalties durante o período da suspensão ao mesmo passo que pode ocorrer o desencorajamento de novos investimentos no país vencedor, visto seu posicionamento perante as políticas de fomento a inovação. Pode-se arguir, também, que a suspensão de direitos de propriedade intelectual podem afetar de modo adverso o sistema de pesquisa e desenvolvimento do país desviante, ocasionando um empecilho ao desenvolvimento de novas tecnologias ao redor do mundo. Visto que todas as modalidades de retaliação trazem algum tipo de desvantagem ao país retaliante, resta a esse o sopesamento dos benefícios e ônus de cada uma delas. Calculando as desvantagens entre a retaliação no TRIPS e a dos setores comuns, fica evidente que os efeitos negativos da primeira são preferíveis aos preços cobrados por uma retaliação no setor de bens ou serviços. 474 BOWN , Chad P. PAUWELYN, Joost. The Law, Economics and Politics of Retaliation in WTO Dispute Settlement. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. P. 14. 475 ABBOT, Frederick M. P. 9-12. 243

Enquanto a contramedida tradicional gera prejuízos a ambas as partes, esta nova, gera, em primeira análise, muito mais prejuízos ao membro desviante e relativamente poucos ônus ao reclamante, além de vantagens no que tange a redução de preços. Mesmo que a empresa opte por deixar de exportar seus produtos ao país requerente, ela estará sofrendo prejuízos muito maiores, pois nesse caso não se está colocando na balança as economias de ambos os países, e sim a economia de um país inteiro em contraponto ao poder econômico de uma empresa. A empresa, na grande maioria dos casos, não tem poder o suficiente para exercer uma pressão efetiva sobre o estado membro. Utiliza-se nesse caso a mesma lógica de jogadores assimétricos apresentada anteriormente.

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No que tange a problemática de possível desencorajamento a novos investimentos, esta pode ser facilmente contornada por incentivos governamentais a empresas que se demonstrem interessadas a investir em pesquisa e desenvolvimento no país reclamante. A própria decisão de suspender uma patente farmacêutica, por exemplo, ocasionaria a produção desse medicamento pelo país reclamante, gerando lucros à indústria que seriam reinvestidos em pesquisa. Quanto à ultima possível desvantagem cogitada por Abbot, de que a retaliação no TRIPS desencorajaria a pesquisa e desenvolvimento mundial, pode-se afirmar que esta hipótese é muito improvável, visto que retaliações de países subdesenvolvidos simplesmente não teriam força para afetar o sistema de incentivo e, ainda assim, caso ocorresse, não seria de todo o mal. Se após seguidas retaliações no TRIPS esse sintoma surgir, ele afetaria todos os países desenvolvidos, que detém a grande maioria dos direitos de propriedade intelectual. Sendo assim, por serem os maiores interessados em manter o acordo nos moldes em que está, exerceriam pressão política para que o membro desviante ajustasse sua conduta, mantendo o status quo. Tendo em vista o disposto acima, pode-se afirmar seguramente que a retaliação no TRIPS é a melhor opção prevista no ESC a ser adotada por países em desenvolvimento quando litigarem com membros de maior poder econômico. 2.6. Legalidade da retaliação em direitos de propriedade intelectual A retaliação cruzada é prevista no artigo 22, parágrafo 3º, alínea “c” do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos Sobre Solução de Controvérsias. 244

propriedade intelectual (c) se a parte considera que é impraticável ou ineficaz suspender concessões ou outras obrigações relativas a outros setores abarcados pelo mesmo acordo abrangido, e que as circunstâncias são suficientemente graves, poderá procurar suspender concessões ou outras obrigações abarcadas por outro acordo abrangido; Supridos os requisitos do ESC, a retaliação em setor diverso do que ocorreu a disputa deve ser autorizado quando requerido. Contudo, apesar de já ter sido autorizada algumas vezes, a retaliação cruzada no setor de propriedade intelectual, por ser relativamente nova e nunca utilizada, gera várias dúvidas, como passar-se-á a dissertar a seguir. O acordo TRIPS incorpora outros acordos anteriores que tratam do tema da Propriedade Intelectual, entre eles as convenções de Berna e de Paris. Em seu artigo 2.2, o TRIPS476 afirma que nada constante nas partes I a IV do acordo pode derrogar as obrigações assumidas na Convenção de Berna, de Paris, a de Roma e o Tratado de Propriedade Intelectual sobre Circuitos Integrados. A primeira vista, essa cláusula poderia dar a entender que a retaliação cruzada seria vetada no setor de propriedade intelectual, pois a suspensão das concessões de PI derrogaria as obrigações assumidas previamente ao TRIPS. Contudo, o Entendimento Sobre Solução de Controvérsias e o mecanismo do Órgão de Solução de Controvérsias são previstos na parte V do TRIPS477, motivo pelo qual uma medida autorizada pelo órgão não desrespeitaria tal cláusula. Para Abbot478, ao passo que o acordo engloba os demais tratados sobre propriedade intelectual, que ainda são vigentes, poderia se pensar que uma suspensão no TRIPS abriria uma brecha para que o membro reclamado pudesse separadamente litigar em face do reclamante no âmbito da Convenção de Berna ou de Paris junto ao Tribunal Internacional de Justiça. Para o próprio autor esse raciocínio é falho na medida em que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, dispõe que nos tratados sucessivos assinados pelas mesmas partes, como é o caso, o posterior derroga o anterior na medida de suas incompatibilidades. 476 Acordo disponível em: http://www.inpi.gov.br/images/stories/27-trips-portugues1.pdf. Acessado em 05/10/2014. 477 Acordo disponível no site da OMC http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips.pdf. Acessado em 06/10/2014. 478 ABBOT, Frederick M. P. 13-16. 245

Além disso, o Tribunal Internacional de Justiça iria chegar à conclusão de que o estado reclamante estaria agindo em desacordo com o previamente acordado, visto que expressamente aceitou o regime do OSC, caracterizando o chamado venire contra factum proprium. Afirma ainda Abbot479 que a utilização do Tribunal Internacional de Justiça seria inconsistente com o artigo 23.1 do ESC, que dispõe que “os Membros deverão recorrer e acatar as normas e procedimentos do presente Entendimento.”

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É importante perceber que quando se trata de contramedidas no TRIPS está se lidando com direitos privados, em contraponto às medidas usuais que dizem respeito a classes de produtores, e que consequentemente afetam todos os operadores econômicos que participam da produção ou comercialização de determinado bem ou serviço, não pertencendo a nenhum deles especificamente. Até se tentou argumentar de forma diferente no caso europeu, em que os produtores alemães de banana uniram esforços na esperança de coibir o Conselho Europeu de aumentar as tarifas e regulamentação com base em direitos de propriedade e expectativas legítimas, tese que foi rejeitada480. Na retaliação no TRIPS o alvo é específico. Quando um governo decide por suspender os privilégios de determinadas patentes ele está afetando direta e especificamente um detentor de direitos. Isso pode fazer com que esses detentores apresentem reclamações quanto à legalidade da medida devido ao desrespeito ao direito de propriedade previamente concedido. Contudo, segundo Abbot481, tendo em vista que os governos historicamente modificaram e ainda modificam direitos de propriedade intelectual, as suspensões baseadas no TRIPS devem ser tratadas como formas de modificação na regulação, tal qual a regulação de tarifas em geral. Superados esses pontos, faz-se necessário uma análise da constitucionalidade da medida no ordenamento jurídico brasileiro, visto que os direitos de PI são garantias constitucionais consagradas no artigo 5º de nossa Carta Magna. Como se pode ler na redação do inciso XXIX do artigo 5º “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua uti479 ABBOT, Frederick M. P. 13-16. 480 Ver European Court of Justice (1994), Federal Republic of Germany v Council of the European Union – Bananas – Common Organisation of the Markets – Import Regime. 481 ABBOT, Frederick M. P. 13. 246

propriedade intelectual lização (...) tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.” Esses dois requisitos são um vetor interpretativo para o sistema de propriedade intelectual e devem balizar as decisões do legislador e do executivo quando tratarem da matéria.482 É de clareza solar o interesse social em suspender as patentes nos casos de retaliação cruzada, principalmente quando se trata de patentes farmacêuticas, visto que essa medida trará benefícios econômicos e de saúde pública ao País, além de proporcionar um incremento no desenvolvimento tecnológico. Aliás, os pedidos de licenciamento compulsório de remédios também se baseiam nessa cláusula de restrição aos privilégios dos inventores e, apesar de serem consideradas medidas mais radicais, são plenamente constitucionais. Desse modo, não há espaço para se falar em inconstitucionalidade das medidas de suspensão de direitos de propriedade intelectual, em especial no caso de patentes farmacêuticas, visto a ressalva do artigo 5º, inciso XXIX da Constituição Federal. Sendo assim, pelas regras acordadas no ESC e de acordo com a Constituição Brasileira, do TRIPS, da Convenção de Berna, Paris e Viena, bem como com os princípios e regras da OMC, a retaliação cruzada no TRIPS é uma medida claramente legal. Não assiste razão ao raciocínio que entende como ilegal a retaliação cruzada no setor de direitos de propriedade intelectual e nesse sentido é a jurisprudência do OSC, como veremos em capítulo próprio. 2.7. Facilidades trazidas pela retaliação em patentes Existe um grande problema no campo de PI quanto à quantificação do impacto causado por modificações na legislação que regula o campo das patentes. Para Abbot483, isso acontece por três principais motivos. Primeiramente não se consegue quantificar a extensão da influência que a proteção da propriedade intelectual traz para a área de pesquisa e desenvolvimento. Em segundo lugar não se consegue estudar os impactos causados pela modificação no regime de proteção aos direitos de PI isoladamente. Isso 482 LEONARDOS, Gustavo Starling; SOUTO MAIOR, Rodrigo de Azevedo. Retaliação Cruzada e Propriedade Intelectual: o Projeto de Lei Número 1893, de 2007. Disponível em: http://www.iabnacional.org.br/IMG/ pdf/doc-1249.pdf acessado em 16/09/2014. Acessado em 01/10/2014. 483 ABBOT, Frederick M. P. 21-27. 247

porque elas fazem parte de um quadro político muito mais amplo que ajuda a determinar as direções da atividade econômica. Por último, tecnologias se modificam e são criadas a cada dia, modificando o cenário do mercado, o que faz com que seja difícil predizer o impacto de novas tecnologias no mercado econômico, além de afetarem de modos diferentes os grupos envolvidos, seja de empresas ou de consumidores, o que torna o cenário ainda mais complexo e ilegível. Contudo, diferentemente da quantificação dos resultados advindos da mudança de critérios de patenteabilidade ou outras modificações nas leis de PI que tenham projeções futuras, o resultado econômico da suspensão de direitos de patentes já concedidas é de fácil constatação.

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Esse tipo de análise é feito diariamente por instituições que prestam serviços ao mercado de aquisição e fusão de empresas. Quando se analisa o valor de uma empresa é necessário analisar o seu portfólio de direitos de propriedade intelectual.484 No caso específico de uma suspensão em direitos de patentes farmacêuticas, o cálculo do nível de suspensão se daria pela simples análise da perda de valor em vendas do remédio em questão após a introdução do genérico nacional no mercado. Ao contrário do que se pode pensar a primeira vista, devido à dificuldade de análise dos impactos causados por possíveis modificações na regulamentação dos direitos de propriedade intelectual, a suspensão de direitos já previamente concedidos não apresenta o mesmo problema. Além disso, presumivelmente o titular da patente teve que revelar sua invenção e seus detalhes no momento em que patenteou o produto, propiciando a terceiros que à reproduzam em um caso de retaliação, o que faz com que o país reclamante poupe esforços para conseguir tais informações. Por fim, vale lembrar que a nacionalidade do detentor da patente é de banal constatação, pois elas são registradas e concedidas pelos órgãos nacionais que regulam a matéria. O único problema aqui seria nos casos de empresas multinacionais que registraram a patente em país diverso do logradouro da controladora. Nessa hipótese a suspensão deve ser direcionada ao beneficiário final da patente.485 Por ser de fácil mensuração e aplicação, tem-se que uma retaliação cruzada no TRIPS, em especial na área de patentes, gera o maior benefício 484 ABBOT, Frederick M. P. 21-27. 485 ABBOT, Frederick M. P. 21-27. 248

propriedade intelectual ao país em desenvolvimento e deve passar a ser utilizada por eles para que consigam efetivamente exercer pressão sobre os membros desenvolvidos, ou obter a reparação dos danos causados.

3. As Experiências sobre Retaliação Cruzada em Propriedade Intelectual na Organização Mundial do Comércio 3.1. Jurisprudência da Organização Mundial do Comércio A jurisprudência sobre retaliação cruzada no TRIPS é bastante escassa, tendo sido autorizada em apenas três casos. Contudo, a medida nunca foi aplicada, visto que as disputas que deram origem à autorização foram finalizadas prematuramente, mediante acordos. Os três casos em comento são: Equador versus Comunidade Europeia, Bananas III; Antígua e Barbuda versus Estados Unidos da América, Jogos de Azar; e Brasil versus Estados Unidos da América, Algodão, que serão estudados em títulos próprios. Importante perceber que a retaliação cruzada foi requisitada por países em situação de clara desproporção econômica. Em todos os casos o membro reclamante tem significativamente menos poder econômico que o reclamado, e somente a partir dessa constatação de assimetria econômica, somada às sérias situações de infringência, que causaram prejuízos bastante significativos ao desenvolvimento dos membros menos favorecidos, é que a retaliação cruzada foi autorizada pelos árbitros do OSC. 3.2. Equador versus Comunidade Europeia, Bananas III O caso Equador versus Comunidade Europeia sobre o regime de importação, venda e distribuição de bananas contou também com a participação dos Estados Unidos, Guatemala, Honduras e México como demandantes. No dia 5 de fevereiro de 1996 os autores requisitaram uma consulta com a União Europeia, alegando o descumprimento dos artigos I, II, III, X, XI e XIII do GATT no regime europeu de importação, venda e distribuição de bananas. Após a consulta os interessados requereram a abertura de um Painel (DS27), no dia 11 de abril do mesmo ano. O painel486 teve decisão favorável aos requerentes, o que fez com que a União Europeia optasse por apelar da decisão. 486 Disponível no site da Organização Mundial do Comércio em: http://www.wto.org/english/tratop_e/ dispu_e/cases_e/ds27_e.htm. Acessado em 08/10/2014. 249

Em sede de recurso, confirmando quase todas as conclusões do painel, ficou decidido que o sistema de importação de bananas, bem como o de concessão de licenças para importação, adotado pela Comunidade Europeia era inconsistente com o GATT de 1994. Foi revogada apenas a decisão que determinava a incompatibilidade com o artigo XIII, por entender que existia uma exceção às regras da OMC dada pelo Convênio de Lomé487. Iniciada a fase de implementação, a União Europeia deixou de implementar as decisões do OSC, o que fez com que o Equador requeresse um pedido de retaliação cruzada.

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Esse pedido de retaliação cruzada se baseou no artigo 22.3 (c) do ESC, visto que não era prático nem eficaz a aplicação de retaliação no mesmo setor da disputa. O setor escolhido pelo Equador foi o de propriedade intelectual, regulado pelo TRIPS, com o intuito de suspender direitos de PI pertencentes a membros da Comunidade Europeia. Esse foi o primeiro caso em que um membro da OMC requisitou uma retaliação cruzada no TRIPS, surpreendendo os demais Estados e abrindo espaço para uma ampla discussão sobre a legalidade e moralidade das medidas488. Os árbitros da disputa entenderam que o pedido era legalmente embasado, e que, tendo em vista que o objetivo da retaliação é induzir o membro desviante a implementar a decisão, combinado com a extrema dificuldade de fazê-lo em casos de disparidade econômica entre os membros litigantes, o requerimento de retaliação cruzada no TRIPS se demonstrava uma alternativa viável à resolução do caso concreto.489 Se entendeu também que, uma retaliação em bens de importação advindos da União Europeia seria contra produtiva ao Equador, visto que aumentaria os custos para os produtores locais, que são dependentes de produtos estrangeiros. Além de ter ficado demonstrado a importância econômica do comércio de bananas para o país reclamante e os resultados nefastos das medidas tomada pela UE, que, segundo o painel, somavam um prejuízo de pouco mais de U$ 201 milhões ao ano. Todos esses fatores demonstraram aos árbitros que as circunstâncias eram sérias o suficiente para que fosse autorizada uma retaliação cruzada, que, como visto ao longo desse trabalho, só deve ser utilizada como última alternativa. 487 Convênio de Lomé IV regulava o comércio e cooperação entre a União Europeia, Ásia, Caribe e Pacífico (ACP), determinando condições especiais para o comércio de bananas, rum, carne e coco, e contava com a participação de 40 países. Foi substituído pelo Acordo Cotonou, de 2000. 488 ABBOT, Frederick M. 2009. P 5-7. 489 ABBOT, Frederick M. 2009. P 5-7. 250

propriedade intelectual Apesar de não estar expresso no artigo 22 que os árbitros devem dar sugestões sobre como o país membro deve implementar sua retaliação, tendo em vista que foi a primeira suspensão no setor do TRIPS, o Equador expressou seu interesse em conhecer o ponto de vista dos árbitros. Estes, por sua vez, esclareceram que o reclamante deveria se assegurar que a suspensão em direitos de PI afetasse somente membros da Comunidade Europeia, podendo ser de difícil constatação a nacionalidade dos detentores dos direitos. Para tanto, os árbitros sugeriram que a contramedida se desse em direitos que passem por um sistema de licenciamento governamental, tais quais direitos protegidos por copyright, designs industriais, indicações geográficas, o que seria mais fácil do que simplesmente abolir direitos de PI genericamente e coloca-los em domínio público em seu território. Direitos de PI sujeitos a um sistema de licenciamento permitiriam ao Equador monitorar o nível de suspensão, e retirá-la quando se demonstrar apropriado. Além disso, os árbitros informaram que o retaliante não deveria exportar produtos que tivessem sido produzidos sob a suspensão dos direitos de propriedade intelectual, para evitar distorções em outros mercados. A autorização de suspensão do Equador não dá direito a outros membros da OMC de se furtar de suas obrigações perante a organização, o que impediria a importação de produtos sem o desrespeito aos direitos de propriedade intelectual. É evidente que uma autorização do OSC para o Equador suspender certas obrigações do TRIPS se referem somente a ele. Esta autorização não exonera outro membro da OMC de suas obrigações, incluindo as referentes ao acordo TRIPS.490

Apesar de ter sido autorizado a suspender os direitos de propriedade intelectual de origem da Comunidade Europeia, o Equador nunca implementou essa medida, pois firmou um acordo de resolução de conflito com a outra parte. Um estudo feito pelo Professor James McCall Smith491, sobre a experiência equatoriana, revela que a simples ameaça de retaliação no setor de propriedade intelectual induziu a União Europeia a concordar com termos substancialmente mais favoráveis ao acesso das bananas advindas do país tropical, além de ter influenciado positivamente nas renegociações de sua dívida externa. 490 Arbitragem do DS27. WT/DS27/ARB/ECU. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds27_e.htm. Acessado em 09/10/2014. 491 SMITH, James McCall. “Compliance Bargaining in the WTO: Ecuador and the Banana Dispute.” In. Negotiating Trade: Developing Countries in the WTO and NAFTA, ed. J. Odell, 257. Cambridge University Press, 2006. Disponível em: http://vi.unctad.org/digital-library/?act=show&doc_name=ecuador-wtocompbarg. Acessado em 09/10/2014. 251

Conclui-se, portanto, que o requerimento de suspensão no TRIPS e a ameaça de executar a medida, feita pelo Equador em face da União Europeia, trouxe vantagens significativas ao país em desenvolvimento que não teriam sido possíveis sem a utilização desses recursos. 3.3. Antígua e Barbuda versus Estados Unidos da América, Jogos de Azar No dia 13 de março de 2003, Antígua e Barbuda (Antígua), um pequeno país caribenho constituído por 27 ilhas e com a economia dependente basicamente do turismo, requereu a abertura de uma consulta com os Estados Unidos da América.

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Antígua alegava o descumprimento dos artigos II, VI, VIII, XI, XVI, e XVII do GATS, por parte dos Estados Unidos com relação ao suprimento de jogos e apostas. De acordo com o reclamante, os Estados Unidos adotavam práticas protetivas inconsistentes com o GATS, com o intuito de evitar o fornecimento dos serviços supramencionados por outros membros da OMC. Após a consulta, deu-se início ao painel, que no dia 10 de novembro de 2004 decidiu pela inconsistência das leis americanas com o GATS, sagrando Antígua como vencedora da disputa. Veiculada a decisão por parte do Órgão de Solução de Controvérsias, ambas as partes apelaram. Contudo, o veredicto foi mantido pelo Corpo de Apelação para declarar que os EUA infringiam os artigos XVI, 1; XVI, 2 subparágrafos (a) e (c), mantendo limites de acesso ao mercado não previstos em sua agenda. Entendeu também o Corpo de Apelação que os Estados Unidos tomaram como compromisso dar acesso total a jogos de azar e serviços de apostas492. Visto que os Estados Unidos não estavam cumprindo a decisão do OSC, o que foi reconhecido pelo órgão no dia 30 de março de 2007, em um painel próprio. Antígua requisitou a retaliação cruzada no TRIPS, em valor equivalente a seu prejuízo, que era de U$21 milhões anuais. Segundo Abbot493, os árbitros, analisando a disparidade econômica entre os Estados membros, a dependência do país em desenvolvimento da indústria de serviços, combinado com a necessidade de Antígua diversificar sua economia, entenderam que a situação era suficientemente séria para permitir uma retaliação cruzada. Entenderam ainda, que seria extremamente difícil para o governo de Antígua induzir o cumprimento da decisão com retaliações no GATS, por dois 492 AMARAL, Renata Vargas. P 188-189. 493 ABBOT, Frederick M. 2009. P 7-8. 252

propriedade intelectual principais motivos: (i) o mercado de importação de serviços de Antígua era muito pequeno, e uma retaliação nessa área seria inefetiva contra os Estados Unidos e; (ii) as suspensões no setor de serviços iriam causar custos adicionais ao consumidor do país caribenho, prejudicando os setores de viagens e turismo, bem como outras áreas de prestação de serviços. Ainda segundo o autor, esses fundamentos levaram os árbitros a dar provimento ao pedido do país caribenho, permitindo a retaliação cruzada no TRIPS, de acordo com o artigo 22.6 do ESC. Após o provimento, Antígua indicou sua intenção de suspender direitos de copyright, marcas, design industrial, patentes, e proteção de informações não reveladas. Contudo, segundo alegações dos EUA, deixou de detalhar o modo como procederia com as suspensões, o que impossibilitaria o país a controlar o nível das contramedidas, possibilitando um verdadeiro paraíso à pirataria de produtos.494 Os árbitros, por sua vez, entenderam que não estava em seu âmbito de competência considerar a natureza específica da obrigação a ser suspendida, de acordo com o artigo 22.7 do ESC. O painel assim afirmou: Ao mesmo tempo, é importante que a forma escolhida para aplicar a suspensão possa assegurar que, uma vez autorizada, a equivalência na efetivação dessa seja respeitada. A forma deve ser também transparente, a fim de permitir a avaliação se o nível da suspensão não excede o nível da nulificação. Nós também notamos que as suspensões de obrigações sob o Acordo TRIPS pode envolver meios mais complexos de implementação que, por exemplo, a imposição de maiores taxas de importação em bens, e a avaliação exata do valor dos direitos afetados pela suspensão é também mais complexa.495

Por fim, invocaram a decisão do caso Bananas III496, indicando que as mesmas considerações se aplicariam ao regime de suspensão de Antígua. Apesar de ter sido autorizada a retaliar no dia 28 de janeiro de 2013 e ameaçado utilizar-se da medida no dia 26 de março do mesmo ano, até o momento em que este trabalho é escrito, o país caribenho não suspendeu os direitos sob a proteção do Acordo TRIPS. 494 ABBOT, Frederick M. 2009. P 7-8. 495 Tradução livre de “At the same time, it is important that the form that is chosen in order to enact the suspension is such as to ensure that equivalence can and will be respected in the application of the suspension, once authorised. The form should also be transparent, so as to allow an assessment of whether the level of suspension does not exceed the level of nullification. We also note that the suspension of obligations under the TRIPS Agreement may involve more complex means of implementation than, for example, the imposition of higher import duties on goods, and that the exact assessment of the value of the rights affected by the suspension is also likely to be more complex. WTO (2007 US – Gambling, para.5.3) 496 Ponto 3.1.1 desse trabalho. 253

Segundo Abbot497, a adoção da medida é mais preocupante aos EUA por se tratar de um precedente aberto que pode encorajar outros membros a utilizar-se da contramedida, do que efetivamente com as consequências econômicas resultantes, visto o minúsculo mercado do país caribenho. Essa preocupação americana sobre a ameaça de uma retaliação cruzada no TRIPS faz com que Antígua se encontre em uma posição mais favorável na mesa de negociações, exercendo mais pressão sobre o Estado norte americano do que seria possível sem a utilização da medida. Apesar de a ameaça de retaliação cruzada no TRIPS não ter surtido, até então, nenhum efeito concreto no caso Antígua versus EUA – Jogos de azar, visto que foi autorizada há pouco mais de 1 ano, entende-se que o temor causado pela medida pode influenciar de maneira decisiva as negociações, e essas tendam a ser vantajosas ao país em desenvolvimento.

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3.4. Brasil versus Estados Unidos da América, Algodão O último e mais importante caso em que a retaliação cruzada no TRIPS foi permitida é o do Brasil versus Estados Unidos da América – Algodão. O caso envolve dois países com grandes mercados e cifras significativas em jogo. A controvérsia se estendeu de 2002 a 2014, e tratou sobre a legalidade dos subsídios americanos aos produtores de algodão de seu país frente aos acordos da OMC, culminando com um acordo entre as partes que foi comemorado pelos produtores de algodão brasileiros como uma vitória.  a) Um breve panorama do mercado mundial de algodão O algodão é um commodity muito importante para o mercado global, sendo sua produção anual estimada em 25 milhões de toneladas498 concentrada em basicamente em China, Índia, Paquistão, Uzbequistão, Brasil, Turquia e Estados Unidos, sendo esse último responsável por 40% do comércio mundial do produto. Segundo Watkins499, um bilhão de pessoas em países em desenvolvimento estão direta ou indiretamente envolvidas com a produção e comércio de algodão, sendo assim, o mercado mundial do commodity é de crucial importância para as necessidades dessa população. 497 ABBOT, Frederick M. 2009. P 7-8. 498 Dado fornecido pela CONAB. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/file/camaras_setoriais/Algodao/27RO/App_Propespec%C3%A7%C3%A3o_safra_Algod%C3%A3o.pdf. Acessado em 12/10/2014. 499 WATKINS, K. 2002. Cultivating proverty: The impact os US cotton subsidies on Africa. Oxfam Briefing Paper 30. Oxford, UK: Oxfam. 254

propriedade intelectual Por se tratar de um produto com alto custo de produção, os países com mais tecnologia e poder econômico são capazes de influenciar com maior eficácia os preços do mercado global. Atualmente os estoques de algodão mundial estão muito altos, e isso vem ocorrendo desde a década de 90, por causa de um excesso de oferta, protagonizado notavelmente pelos Estados Unidos. Esse excesso de oferta ocasionado por incentivos à produção faz com que os preços baixem, por efeito lógico da lei da oferta e procura. Segundo o sistema de medição de preços de algodão Cotlook Index, o preço do algodão chegou a U$ 0,46 por libra no ano de 2002, enquanto o mesmo peso do produto era vendido por U$ 0,97 no ano de 1995. Na safra 2001/2002, os Estados Unidos produziram o recorde de 20.3 milhões de toneladas métricas de algodão, representando um aumento de 42% se comparado ao ano de 1998. Para o autor Fuzhi Cheng, esses dados deveriam comprovar que os Estados Unidos têm a produção de algodão mais eficiente que a de seus concorrentes, visto que, quando os preços baixam, somente aqueles com preços de produção muito mais baixos estariam aptos a expandir a produção.500 Contudo, o Estado norte americano não é um produtor eficaz como se poderia imaginar. Segundo o International Cotton Advisory Committee (ICAC), países como Benim e Burkina Faso produzem algodão ao custo de U$ 0,30 por libra, enquanto os Estados Unidos gastam U$ 0,70 para produzir o mesmo peso do produto. Apesar disso, os Estados Unidos foram capazes de aumentar sua área de cultivo, bem como sua produção, ao passo que países com uma produção muito mais barata foram forçados a diminuir os seus investimentos em plantio devido aos baixos preços. Segundo o autor501, o motivo disso são os subsídios oferecidos pelo governo americano aos produtores de algodão. No ano de 2001 os gastos do governo com subsídios ao algodão passaram de U$ 4 bilhões, maior que a própria produção do país, que foi de U$ 3 bilhões. 500 CHENG, Fuzhi. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries: The Brazil-U.S. Cotton Case. In “Case Study #9-4 of the program: Food Policy for Developing Countries: The Role of Government in the Global Food System”. Cornell University, Ithaca, New York, Estados Unidos. 2007. P. 3. 501 CHENG, Fuzhi. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries: The Brazil-U.S. Cotton Case. In “Case Study #9-4 of the program: Food Policy for Developing Countries: The Role of Government in the Global Food System”. Cornell University, Ithaca, New York, Estados Unidos. 2007. P. 3. 255

Com o Farm Act de 2002 os agricultores americanos o preço garantido a no mínimo U$ 0,52 centavos por libra, sem contar outros incentivos para aumentar seus lucros. O resultado disso foi que os algodoeiros americanos receberam na safra 2001/2002 U$ 0,72 por libra, enquanto a média de mercado mundial era de U$ 0,46. Esse tipo de subsídio impede uma concorrência justa por parte dos demais países, fazendo com que os demais Estados produtores de algodão sofram sérios prejuízos. Foi nesse contexto de insatisfação e desequilíbrio do mercado que o Brasil requereu a abertura de uma consulta com os Estados Unidos da América junto ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, no ano de 2002.

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 b) Relatório do procedimento do OSC no caso DS267 A controvérsia teve início no dia 27 de setembro de 2002, quando o Brasil requisitou uma consulta com os Estados Unidos da América questionando os subsídios governamentais para os produtores de algodão do país norte americano. Segundo o Brasil, alguns dos subsídios eram proibidos ou acionáveis502, sendo inconsistentes com os artigos 5 (c), 6.3 (b), (c) e (d), 3.1 (a), (b), e 3.2 do Acordo de Medidas de Subsídios e Compensação (ASCM); Artigos 3.3, 7.1, 8, 9.1e 10.1 do Acordo de Agricultura503; e Artigo III:4 do GATT de 1994. O painel foi criado no ano seguinte, tendo seu relatório circulado aos membros no dia 8 de setembro de 2004, decidindo favoravelmente ao Brasil na medida que: 1. As garantias de crédito para a exportação agrícola são sujeitas à disciplina de subsídios da OMC, e três programas americanos de garantia de crédito para a exportação, que não tem Cláusula de 502 Os subsídios dentro da OMC são regulados pelo Acordo em Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC), que disciplina os subsídios específicos em três formas: os subsídios proibidos, elencados no artigo 3º; os subsídios acionáveis do artigo 5º, e os subsídios permitidos, dispostos no artigo 8º. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/conheca-o-ministerio/tecnologicos/cgc/solucao-de-controversias/mais-informacoes/texto-dos-acordos-da-omc-portugues/1.1.11-acordo-sobre-subsidios-e-medidascompensatorias/view. Acessado em 14/10/2014. 503 Segundo o documento, “o objetivo de longo prazo cima mencionado consiste em proporcionar reduções progressivas substanciais em matéria de apoio e proteção à agricultura, a serem mantidas durante um período acordado de tempo, resultando na correção e prevenção de restrições e distorções em mercados agrícolas mundiais. “Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/co-

nheca-o-ministerio/tecnologicos/cgc/solucao-de-controversias/mais-informacoes/ texto-dos-acordos-da-omc-portugues/1.1.2-acordo-sobre-agricultura/view. Acessado em 14/10/2014.

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propriedade intelectual Paz504, são proibidos e estão violando a disciplina da OMC. 2. Os Estados Unidos proporcionam aos produtores de algodão vários outros subsídios proibidos. 3. Os programas de suporte doméstico dos Estados Unidos em relação ao algodão não são protegidos pela Cláusula de Paz, e alguns desses programas resultam em sérios prejuízos aos interesses brasileiros na forma de supressão de preços no mercado mundial.505 Circulada a decisão, os EUA recorreram ao Corpo de Apelação, que, por sua vez, manteve a determinação do painel em todos os pontos atacados pelo país norte americano. Em outubro de 2006, o então Diretor Geral da OMC Pascal Lamy abriu um painel de observação, a pedido de ambos os Estados. Esse painel decidiu que: Os Estados Unidos agiram de forma inconsistente com o Artigo 10.1 do Acordo de Agricultura ao aplicar subsídios de exportação numa forma que resultou na evasão de compromissos de subsídio de exportação dos EUA com respeito a certos produtos programados e não programados, tendo como resultado atos inconsistentes com o Artigo 8 do Acordo de Agricultura. Com relação ao GSM102 (Garantia de Crédito para Exportação) emitido depois do dia 1 de julho de 2005, também agiu de forma inconsistente com Artigos 3.1(a) e 3.2 do ASCM ao dar subsídios de exportação a produtos não programados e dar subsídios em excesso a produtos programados, de acordo com o Acordo de Agricultura. Ao agir inconsistentemente com os artigos 10.1 e 8 do Acordo de Agricultura e Artigos 3.1(a) e 3.2 do ASCM, os EUA falharam em trazer suas medidas em conformidade com o Acordo de Agricultura e falharam também em retirar o subsídio sem demora.506 504 A Cláusula de Paz teve vigência até o ano de 2003, e protegia os subsídios agrícolas dos países desenvolvidos contra reclamações junto à OMC desde que atendam aos compromissos nacionais de redução de subsídios negociados na Rodada do Uruguai. 505 Resumo da decisão do painel dada pela OMC. Disponível em http://www.wto.org/english/tratop_e/ dispu_e/cases_e/ds267_e.htm. Acessado em 14/10/2014. 506 Livre tradução de: ―Regarding GSM 102 export credit guarantees issued after 1 July 2005 the United States acts inconsistently with Article 10.1 of the Agreement on Agriculture by applying export subsidies in a manner which results in the circumvention of US export subsidy commitments with respect to certain unscheduled products and certain scheduled products, and as a result acts inconsistently with Article 8 of the Agreement on Agriculture. Regarding GSM 102 export credit guarantees issued after 1 July 2005 also acts inconsistently with Articles 3.1(a) and 3.2 of the SCM Agreement by providing export subsidies to unscheduled products and by providing export subsidies to scheduled products in excess of the commitments of the United States under the Agreement on Agriculture. By acting inconsistently with Articles 10.1 and 8 of the Agreement on Agriculture and Articles 3.1(a) and 3.2 of the SCM Agreement the United States has failed to comply with the DSB recommendations and rulings. Specifically, the United States has failed to 257

Dessa decisão do painel de observação ambas as partes apelaram ao Corpo de Apelação, que, por sua vez, manteve quase que integralmente a sentença, afirmando que o programa de suporte aos produtores de algodão não havia sido criado com o intuito de cobrir custos e perdas dos agricultores, e sim, subsidiar a exportação do setor, prejudicando a livre concorrência.  c) Da efetivação da decisão

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No tocante a efetivação da decisão do OSC no caso DS267, envolvendo Brasil e Estados Unidos da América, apesar de as discussões sobre o cumprimento ou não das decisões do primeiro painel se estenderem até 2009, os pedidos de autorização para suspensão de concessões se deu ainda em 2005. Esses pedidos tratavam dos subsídios proibidos e subsídios acionáveis O Brasil, alegando que o período razoável de tempo já havia então expirado, requisitou a suspensão de concessões de obrigações tarifárias reguladas pelo GATT 1994, impondo custos adicionais aos produtos advindos do país norte americano. Ainda, por entender que não era prático e efetivo aplicar exclusivamente as medidas de retaliação no GATT, o Estado membro requereu ainda que fossem autorizadas suspensões em direitos de propriedade intelectual regulados pelo TRIPS, bem como impostos de serviços regulados pelo GATS. Os Estados Unidos, assim como fizeram no caso Antígua e Barbuda, desafiaram o requerimento de retaliação cruzada, tanto no nível das suspensões requisitadas, como alegando que o artigo 22.3 do ESC não havia sido respeitado. Em agosto de 2005, antes de serem julgadas os contra argumentos do país norte americano, ambos os litigantes requereram a suspensão do pedido de retaliação cruzada do artigo 22.6 por estarem em negociações para a resolução da controvérsia. Essa suspensão durou até agosto de 2008, quando o Brasil requereu a continuidade do processamento dos pedidos, que foram decididos em agosto do ano seguinte. Os árbitros entenderam que, no tocante a subsídios proibidos, o Brasil poderia retaliar os Estados Unidos em bens de consumo regulados pelo GATT em um valor que não excedesse U$147.7 milhões no ano de 2006, e para os bring its measures into conformity with the Agreement on Agriculture and has failed to withdraw the subsidy without delay – Site da OMC, DS267. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/ cases_e/ds267_e.htm. Acessado em 12/10/2014. 258

propriedade intelectual anos subsequentes, uma quantia a ser determinada mediante a metodologia apresentada na decisão. Os árbitros entenderam ainda, que no caso de o nível total de contramedidas para os anos subsequentes viessem a exceder o limite descrito na decisão, o Brasil poderia suspender obrigações protegidas pelo TRIPS e GATS, desde que não excedessem o limiar determinado. No tocante aos subsídios acionáveis, os árbitros entenderam que o Brasil poderia retaliar o estado norte americano em U$147.3 milhões, nos mesmos termos da decisão dos subsídios proibidos, podendo utilizar-se da retaliação cruzada no caso do valor passível de retaliação nos anos subsequentes se tornar maior que o valor homologado na decisão. Com essas decisões, o Brasil se encontrou em posição bastante vantajosa em face aos EUA, que se viram obrigados a entrar em negociações. Esse diálogo teve início em 2010, e fez com que o país sul americano requeresse a suspensão da aplicação das medidas, que durou até o ano de 2014, quando os países finalmente chegaram a um acordo, como passará a ser tratado no item seguinte. 3.5 Os acordos resultantes dos casos tratados Os acordos resultantes dos casos em que a Retaliação Cruzada no TRIPS foi autorizada foram significativamente proveitosos aos países em desenvolvimento, se comparados a casos similares em que as medidas não foram requeridas. O estudo apresentado por McCall Smith507 demonstra claramente que o Equador obteve uma vitória histórica no caso em que litigou em face da União Europeia, que ficou conhecido como Bananas III, como já explicado em título próprio. No mesmo sentido, Brasil e Estados Unidos vinham tentando chegar a um acordo sobre o caso do algodão desde o início da controvérsia, pois são importantes parceiros de negócios, o que proporciona vantagens múltiplas a ambos os Estados. Um procedimento junto ao Órgão de Solução de Controvérsias era um fator que atravancava as relações entre os países. Ocorre que os Estados Unidos obtêm vantagem por meio de seus subsídios do algodão, retirando vários países produtores do commodity do 507 SMITH, James McCall. “Compliance Bargaining in the WTO: Ecuador and the Banana Dispute.” In. Negotiating Trade: Developing Countries in the WTO and NAFTA, ed. J. Odell, 257. Cambridge University Press, 2006. Disponível em: http://vi.unctad.org/digital-library/?act=show&doc_name=ecuador-wtocompbarg. Acessado em 09/10/2014. 259

mercado global, além disso a capacidade de retaliação do Brasil é limitada, pelo tamanho de sua economia e pelos efeitos adversos que essa medida poderia causar ao país em desenvolvimento. Como demonstrado acima, o Brasil, seguindo o precedente aberto pelo Equador no caso Bananas III, optou por requerer a retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual, de acordo com o Artigo 22.6 do ESC.

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Existe certa dose de ironia nesta situação, como mencionado por Karin Klempp Franco508, pois os Estados Unidos foram os principais incentivadores do acordo TRIPS, exercendo enorme pressão para que este se tornasse um acordo imprescindível aos membros que quisessem aderir à Organização Mundial do Comércio, como visto acima. Agora, é exatamente a partir do TRIPS que o Brasil consegue forçar uma negociação favorável no contencioso do algodão. A autorização dada ao Estado sul americano pelo OSC fez com que o seu poder de retaliação aumentasse substancialmente, pois essa modalidade de retaliação traz diversos benefícios ao país retaliante, como já demonstrado nesse trabalho. Com a finalidade de evitar uma efetiva retaliação, o Estado norte americano se viu obrigado a se sentar junto ao Brasil na mesa de negociações para dar fim ao litígio. As negociações entre os Estados se estenderam do ano de 2010 até o dia 1º de outubro de 2014, quando, em Washington, o ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, o ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Neri Gelller e o secretário de Agricultura dos Estados Unidos, Tom Vilsack juntamente com o representante americano do Comércio, Michael Froman, firmaram um acordo resolvendo o contencioso do algodão. No acordo ficou estabelecido que o governo americano fará o pagamento de US$ 300 milhões, no prazo de 21 dias, ao Instituto Brasileiro do Algodão. Esses recursos serão destinados a investimentos em tecnologia, infraestrutura e logística para o produto. O montante será somado aos US$ 505 milhões pagos ao instituto entre 2010 e 2013 para que o Brasil não exercesse o direito de retaliação. Além disso, o programa de créditos à exportação (GSM102) será revisto pelo governo americano, os agricultores que até então podiam exportar 508 FRANCO, Karin Klempp. Dois criadores e duas criaturas – Da relação entre a proteção à propriedade intelectual no Brasil e os Subsídios governamentais americanos aos produtores de algodão. 260

propriedade intelectual o produto com prêmio-seguro de 36 meses, passarão a ter esse benefício por apenas 18 meses, o que deve causar um aumento de competitividade para os demais países509. Para o presidente da Abrapa Gilson Pinesso510, essas alterações no programa de créditos à exportação americana foram as maiores conquistas do acordo, pois não valem apenas para os incentivos ao algodão, e sim ao agronegócio americano como um todo. Em contrapartida, o Brasil se compromete a não recorrer à OMC para discutir a questão dos subsídios americanos no setor algodoeiro até o ano de 2018, quando acaba a vigência da lei agrícola americana (Farm Bill). Welber Barral511, que assessorou Abrapa no contencioso, afirmou que esse é um acordo histórico, por dar uma solução ao principal entrave comercial entre Estados Unidos e Brasil, segundo o autor é possível que as relações entre os países melhorem daqui para frente. O acordo está sendo comemorado como uma vitória também pelos algodoeiros nacionais, visto que após 12 anos de contencioso conseguiram uma compensação pelos prejuízos causados pelas políticas de subsídio americanas. Não há dúvidas de que a negociação só chegou a termos tão benéficos aos agricultores brasileiros devido, em grande parte, ao receio americano de que a retaliação cruzada no TRIPS fosse utilizada pelo governo brasileiro. Assim como nos outros casos estudados neste trabalho, a mera ameaça de retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual leva os países desenvolvidos a negociar com os menos abastados, por saberem dos resultados que a contramedida pode trazer. O único caso em que ainda não se chegou a um acordo é o de Antígua e Barbuda versus Estados Unidos, visto que Antígua requereu a autorização para retaliação cruzada apenas em 2013. Contudo, analisando os outros casos, em que as negociações levaram anos, pode-se supor que os Estados chegarão a um acordo em médio prazo. 509 Notícia veiculada pelo Correio Braziliense em 02/10/2014. Disponível em http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2014/10/02/internas_economia,450189/ministro-diz-que-pagamento-de-us-300-mi-pelos-eua-zera-debitos-do-algodao.shtml. Acessado em 12/10/2014. 510 Notícia veiculada pela revista Veja em 02/10/2014. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/ economia/eua-e-brasil-acertam-fim-de-disputa-em-mercado-de-algodao. Acessado em 12/10/2014. 511 Notícia veiculada pela revista Veja em 02/10/2014. Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/ economia/eua-e-brasil-acertam-fim-de-disputa-em-mercado-de-algodao. Acessado em 12/10/2014. 261

4. Considerações finais O OSC é tido como uma inovação muito positiva e importante para o comércio mundial, pois traz um sistema baseado em regras preestabelecidas e muito menos suscetível a pressão exercida pelos Estados membros. Isso faz com que diminuam as diferenças de poder entre os membros, e as decisões sejam pautadas nas normas, e não no poder dos Estados membros512. No entanto, o problema do OSC se dá no momento de implementação de suas decisões. Pode-se afirmar que falta eficiência aos veredictos dados no âmbito do comércio mundial, quando estão em jogo os interesses de países com diferentes potenciais econômicos, o que prejudica principalmente os países em desenvolvimento.

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Esse problema ocorre devido à falta de coercibilidade das decisões tomadas pelo órgão, tendo em vista a soberania estatal de seus membros. Isto é, o Estado membro, por ser soberano, pode optar por enquadrar ou não sua conduta tida como desviante em face o acordado com a OMC. Os remédios normalmente oferecidos pelo OSC, quais sejam, a recomendação, sugestão e compensação, sofrem do mesmo problema. Os países desviantes podem optar por cumpri-los ou não. O que torna essas medidas ineficazes em significativo número de casos. O único remédio que independe da livre decisão do membro desviante é a retaliação, mas como visto neste trabalho, essa medida causa severos efeitos colaterais, aumentando os preços dos produtos importados do membro retaliado, elevando os custos para os consumidores, além de ser ineficaz como ferramenta para exercer pressão sobre o membro desviante, fim último dos remédios do OSC. Esses defeitos da retaliação são potencializados quando estão em jogo os interesses de países economicamente assimétricos, tornando o remédio inócuo em inúmeros casos. Contudo, existe uma solução legal, prevista no artigo 22.6 do ESC, para esses sérios problemas da retaliação. A solução proposta por esse trabalho é a retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual, mais precisamente na área de patentes, por diversos motivos: 1. Ao passo que a retaliação em bens de consumo ou serviço aumenta o preço dos produtos e serviços oriundos do país retaliado, preju512 CHENG, Fuzhi. The WTO Dispute Settlement Mechanism and Developing Countries: The Brazil-U.S. Cotton Case. In “Case Study #9-4 of the program: Food Policy for Developing Countries: The Role of Government in the Global Food System”. Cornell University, Ithaca, New York, Estados Unidos. 2007. P. 1. 262

propriedade intelectual dicando o consumidor do Estado retaliante, a retaliação cruzada no TRIPS diminui os preços de importação, fomentando a economia. 2. A retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual causa uma pressão muito forte sobre os países desenvolvidos, principais detentores desses direitos, obrigando esses a se enquadrar aos ditames da OMC ou oferecer acordos generosos aos países vencedores da disputa. 3. As patentes têm registro nacional, o que facilita a investigação sobre sua origem, evitando possíveis erros de retaliação a direitos pertencentes a empresas ou pessoas que não sejam nacionais do membro retaliado. 4. A mensuração econômica de patentes é relativamente simples, este tipo de avaliação é feito diariamente por empresas especializadas em compra e venda de ativos intangíveis, ou fusão e incorporação de empresas. 5. Os dados protegidos pela patente estão previamente publicados, portanto, para que se tenha acesso ao produto protegido a fim de que seja produzido pelo país retaliante, não é necessário qualquer tipo de processo de requerimento de dados. 6. A produção dos produtos retaliados pelo membro em desenvolvimento geraria lucros que poderiam ser reinvestidos em pesquisa e fomento à indústria nacional, promovendo o desenvolvimento do membro mais pobre, princípio balizador da Organização Mundial do Comércio. Por fim, os casos concretos apresentados neste trabalho513 dão indícios da eficiência dessa modalidade de retaliação, visto que, tanto no caso brasileiro quanto no caso equatoriano, os acordos firmados para que se desse fim ao contencioso foram muito positivos aos países com economias mais frágeis, ao contrário do histórico dos outros remédios fornecidos pelo OSC. Por todos esses motivos acima expostos, a retaliação cruzada em direitos de propriedade intelectual se monstra como a alternativa legal que pode solucionar o problema da ineficácia das decisões e remédios usuais do Órgão de Solução de Controvérsias, fazendo com que as reclamações dos países mais pobres sejam ouvidas mais claramente pelas potencias mundiais. 513 O segundo caso apresentado, Antígua e Barbuda versus Estados Unidos, teve a retaliação no TRIPS autorizada recentemente, motivo pelo qual ainda não é possível saber o seu desfecho. 263

propriedade intelectual INSTRUMENTOS JURÍDICOS DA ECONOMIA DA INOVAÇÃO: CONTRATOS DE TRASNFERÊNCIA DE TECNOLOGIA E DIREITO DA CONCORRÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO* André Soares Oliveira514 e Heloisa Gomes Medeiros515

1. Introdução O conhecimento – enquanto inovação – é a base de um novo paradigma econômico: a economia da inovação. A presente investigação teve como objetivo demonstrar o modo de circulação da inovação neste paradigma econômico por meio dos contratos de transferência de tecnologia. Os resultados foram que para o pleno desenvolvimento da economia da inovação é necessário que os contratos de transferência de tecnologia se submetam aos princípios relacionados ao direito concorrencial, sob pena de causarem prejuízos ao mercado, e, consequentemente, à sociedade. Inserido em um contexto de economia globalizada e alta competividade, o empresário vai tomando consciência que a concorrência e a posição que ele conquista no mercado são baseadas não apenas no quesito ‘menor preço’, mas também em melhores serviços e melhores produtos, ou seja, numa concorrência denominada de non price. De certo, o elemento central desta concorrência são os conhecimentos que ele gera e o diferenciam no mercado. Esses conhecimentos, denominados de inovação, fazem parte do modo de produção capitalista que não sobrevive sem se reinventar constantemente. O objetivo da presente investigação é elucidar alguns procedimentos que os contratos e arranjos destinados a fazer com que a inovação – especialmente aquela protegida por meio de títulos de propriedade industrial –circule no mercado de forma competitiva, seja por meio de arranjos contratuais dentro do âmbito empresarial. Este artigo foi produzido mediante apoio da Capes e CNPq. * 514 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). 515 Doutoranda e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]. 265

Para tanto, divide-se o texto em três partes. Na primeira parte, será evidenciada a importância que a inovação possui para a economia contemporânea, em especial para o inovador empresário, enquanto tática de concorrência non price, assim como a proteção do conhecimento gerado por meio de títulos de propriedade intelectual. No segundo momento, será evidenciado como esses títulos de propriedade intelectual podem circular no ambiente empresarial por meio de contratos de transferência de tecnologia, em especial os licenciamentos. E em terceiro lugar, os contratos de transferência de tecnologia serão analisados tendo em vista o direito de concorrência brasileiro estabelecido pela lei 8.884/1994.

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2. Economia da inovação e propriedade intelectual A tecnologia, entendida como inovação ou aplicação econômica/comercial de conhecimentos, representa uma condição essencial para o progresso econômico e é um elemento crítico na luta concorrencial das empresas e nações. De fato, a inovação fomenta um aumento da riqueza das nações, modificando a qualidade de vida dos indivíduos ao permitir que os mesmos façam coisas que apenas imaginavam fazer. Sobretudo, a inovação deve ser uma preocupação daqueles que desejam mudar a direção do avanço econômico em busca de melhor qualidade de vida, principalmente estimulando inovações no sentido de economizar recursos naturais, uma demanda tão em voga na sociedade atual. (FREEMAN; SOETE, 2008). Hoje, a propriedade imaterial corresponde por, pelo menos, cerca de 30% dos ativos econômicos das empresas, sendo que isso tende a ser maior principalmente em empresas cuja base é essencialmente tecnológica, como empresas de software, biotecnologia, entre outras (BARROS, 2007). Contudo, até pouco tempo atrás, os economistas pouco preocupavam-se com a inovação tecnológica, sendo vítimas de seus próprios pressupostos e da devoção a sistemas aceitos de pensamento que tendiam a encarar os fluxos de novos conhecimentos, das invenções e inovações como fatores externos ao arcabouço dos modelos econômicos ou, mais estritamente, como variáveis exógenas (FREEMAN; SOETE, 2008, p.20).

Apesar disso, considerações sobre o papel da inovação-tecnologia no modo de produção capitalista aparecem já em obras fundamentais. Analisando aspectos relativos à divisão do trabalho, Adam Smith (1985), em A Riqueza 266

propriedade intelectual das Nações – obra escrita em 1776 – já sinalizou, ainda que não fosse uma preocupação central sua, a importância que a inovação tem no processo econômico, em especial no âmbito do capitalismo. Em algumas páginas dessa sua obra, Smith (1985) observa que o aumento da quantidade de trabalho, em consequência de sua divisão, seria devido a três circunstancias. As duas primeiras estão relacionadas à especialização do trabalhador e à poupança de tempo que a divisão do trabalho levaria. Uma terceira característica que Smith aponta é o próprio maquinário que abrevia e facilita o trabalho. Smith (1985) ainda observa que o próprio processo de invenção de um maquinário mais eficiente para a realização do trabalhado seria uma consequência da própria divisão do trabalho, pois assim o indivíduo, ao ficar concentrado na realização de determinada tarefa, conseguiria antever meios de fazê-la de modo mais rápido do que se estivesse ocupado com todo o processo de produção. Mesmo com essa observação, Adam Smith (1985) ressalta que muito do maquinário não era apenas originado da intuição dos operários que, em função da divisão do trabalho, procurariam realizar suas tarefas de modo mais rápido e, com isso, produziriam inovações. Elas provinham também, e principalmente, dos fabricantes das máquinas, cujo trabalho seria exatamente observar e combinar conhecimentos. Com isso surge um novo ofício, de pessoas destacadas exclusivamente para a pesquisa ou, como chama Adam Smith, de um trabalho filosófico também sujeito à divisão do trabalho. Hoje, há uma tendência que enxerga o sistema capitalista como um processo evolutivo e impulsionado pela inovação. Inovação, em sentido lato, que engloba a criação (geração de uma nova ideia) e a inovação em sentido estrito (o aproveitamento econômico da criação). A inovação, deste modo, importa numa diferenciação da oferta que o empresário faz no mercado, constituindo-se em uma nonprince competition. A origem da compreensão da inovação como elemento central do sistema capitalista e, em especial, como novo paradigma para o direito da concorrência, provém da recuperação das teses de Schumpeter sobre a concorrência em termos de inovação e não mais de preços (MOURA E SILVA, 2003). Séculos depois da obra de Adam Smith, em 1942, o economista austríaco Joseph Alois Schumpeter, na obra ‘Capitalismo, socialismo e democracia’ reaviva algumas ideias já presentes na literatura de economia política – principalmente em Marx e Engels – e formula novos conceitos sobre o papel da inovação no desenvolvimento econômico. 267

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Schumpeter (1961) salienta ao longo de sua obra que o “[...] capitalismo é, por natureza, uma forma ou método de transformação e não, apenas, reveste caráter estacionário, pois jamais poderia sê-lo” (SCHUMPETER, 1961, p.105). Segundo o autor, o desenvolvimento do capitalismo implica em um processo de transformação em termos qualitativos e não apenas quantitativos, decorrentes de uma acumulação de capital. Nesse sentido, o que sustenta o capitalismo é o impulso de inovação, ou seja, são “os novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados e das novas formas de organização industrial criadas pela empresa capitalista” (SCHUMPETER, 1961, p.105). Schumpeter (1961) chama esse processo de destruição criadora, sendo essencial para a compreensão do capitalismo que dele decorre e para o qual toda a empresa capitalista – e como tal o empresário – deve estar preparada. De fato, esse processo de destruição criativa pode ser compreendido como um “[...] processo de mutação industrial – se é que podemos usar esse termo biológico – que revoluciona incessantemente a estrutura econômica a partir de dentro, destruindo incessantemente o antigo e criando elementos novos” (SCHUMPETER, 1961, p.106). Crítico dos modelos vigentes, Schumpeter (1961) salienta que as pesquisas econômicas de sua época voltavam-se mais sobre o modo como o capitalismo administrava as estruturas vigentes do que sobre o modo como ele cria e destrói essas estruturas. Nesse sentido, por exemplo, a concorrência era compreendida apenas em termos de preço. Apenas algum tempo depois outras variáveis como a concorrência de qualidade entram na teoria, mas a concorrência de preços continua dominando a atenção dos economistas. Porém, esse tipo de concorrência tinha limitações e que não seria, na verdade, a concorrência mais importante. Schumpeter (1961) afirma que a concorrência mais importante é aquela que provém da novidade da organização dos fatores de produção, ou seja, na inserção da inovação no processo produtivo. Essa concorrência se sente na empresa capitalista e pode ser mensurada não apenas em termos de preço e aumento de lucro, mas no sentido dos alicerces de sua própria existência. Esse tipo de concorrência é muito mais importante que qualquer outro tipo, de modo que não importa se seu impacto é imediato ou não, porque seus efeitos apenas são sensíveis a longo prazo quando expande a produção e reduz preços. Como se pode constatar, economistas como Adam Smith e Schumpeter já reconheciam o papel que o conhecimento tinha na formação da sociedade capitalista, contudo um exame econômico mais acurado do papel da 268

propriedade intelectual inovação dentro da economia é algo recente. Até os anos 80, os economistas estavam voltados a modelos econômicos que encaravam a inovação como algo externo. Novas teorias do crescimento, desenvolvidas sobretudo a partir dos anos 80, tendem a colocar a mudança técnica mais ao centro de suas análises sistemáticas, reconhecendo ideias defendidas por economistas históricos, como Schumpeter. Na esteira desse reconhecimento, modifica-se o próprio conceito de investimento, que passa a ser definido “tanto em termos da distribuição e produção de conhecimento como pela produção e uso de bens de capital, os quais incorporam os avanços da ciência e da tecnologia” (FREEMAN; SOETE, 2008, p.22). Hoje, não apenas a participação percentual da indústria na economia vem diminuindo, ao mesmo tempo que aumente a participação do ramo de serviços, mas deve-se assinalar que a maioria da mão de obra empregada seja na indústria ou nos serviços está crescentemente voltada para a produção de conhecimento e não de produtos. Nessa indústria da informação, por assim dizer, assume um papel central os sistemas de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) já que é deles que emanam os conhecimentos aplicados ao processo produtivo. Nesse sentido: Os esforços para gerar descobertas e invenções têm sido crescentemente centrados em instituições especializadas, como as entidades de Pesquisa e Desenvolvimento Experimental [...] A expansão dessas entidades foi talvez a mudança social e econômica mais importante para a inovação no século XX [...] A interação deste sistema com outras indústrias do conhecimento e com a produção industrial e o marketing tem uma importância crucial em qualquer economia. (FREEMAN; SOETE, 2008, p.25).

Há algum tempo, a economia americana já registra uma explosão de crescimento relacionado a serviços e produtos de base tecnológica mais sofisticada. Porém, a impossibilidade de uma avaliação financeira direta dos bens intelectuais desestimula algumas empresas a investir neles tais como o fazem com maquinário e outros bens tangíveis. Com isso elas acabam perdendo elementos preciosos que comporiam seu acervo patrimonial e, além do mais, estimulariam seus negócios e as posicionariam melhor em termos de concorrência que, cada dia mais, se faz em termos outros que não de preço (BOUCHOUX, 2001). A princípio sempre houve, pelo menos é que se depreende pelos mencionados trechos de Adam Smith, que sempre houve uma ligação clara entre ciência e produção. As estruturas de inovação, mais exatamente pesquisa e desenvolvimento (P&D), e que hoje constituem a chamada ‘indústria da 269

inovação’, nem sempre operam no sentido unidirecional, mas mediante uma interação entre produção e ciência (FREEMAN; SOETE, 2008).516 Hoje as grandes empresas de base tecnológica mantem profissionais e laboratórios de P&D dentro de suas estruturas, ou seja, profissionais que atuam não apenas nas funções técnicas, mas também na pesquisa, além do contato com a universidade.

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Ao longo do século XIX, a inovação ocorria principalmente por obra de inventores individuais. Foi no início do século passado que começaram a surgir grandes laboratórios dedicados à pesquisa de aplicação industrial e, mesmo na primeira década, foram surgindo grandes departamentos nas empresas dedicados à P&D, ou mesmo no âmbito do governo – principalmente forças armadas e universidades (FREEMAN; SOETE, 2008). Essa realidade mudou até mesmo o quadro de empregados das empresas que lidavam com tecnologias de base científicas, já que a maioria do quadro de funcionários pode estar voltado não para a produção de bens e produtos, mas dedicados à produção, processamento e aplicação de conhecimentos. Nesse sentido, a inovação é uma atividade interativa que implica reconhecimento de um mercado potencial e disponibilidade de conhecimentos, pelo menos iniciais, além daqueles que serão desenvolvidos em pesquisa. Pode-se sintetizar em dez pontos as características das firmas bem sucedidas em termos de inovação durante o século XX: 1.Uma forte P&D profissional interna; 2. Execução de pesquisas básicas ou vínculos próximos com os que faziam tais pesquisas; 3. O uso de patentes para obter proteção e para negociar com os concorrentes; 4. Um tamanho suficientemente grande para poder financiar gastos relativamente pesados de P&D por um longo período de tempo; 5. Menores períodos de experimentação que os dos concorrentes; 6. Disposição para correr altos riscos; 7. A identificação precoce e imaginativa de um mercado potencial; 8. Uma atenção cuidadosa com o mercado potencial e esforços substanciais para envolver, educar e proporcionar assistência aos usuários e consumidores; 9. Um empreendedorismo suficientemente forte para coordenar a P&D, a produção e o marketing; 10. Boas comunicações com o mundo cientifico externo, assim como com os consumidores (FREEMAN; SOETE, 2008, p.353). 516 As analises propostas pela teoria da inovação, em especial aquela revista por Freeman e Soete na obra que se utiliza nesta pesquisa, pode ser dividida numa análise macroeconômica e microeconômica da inovação. As análises macroeconômicas centram-se, sobretudo, no papel do Estado enquanto indutor de inovação, por meio de sistemas e políticas de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Já as análises microeconômicas têm como principal núcleo de análises a firma, ou seja, a inovação na escala empresarial. Considerando que na sua segunda parte a presente investigação abordará os contratos como meio de circulação de inovação no ambiente empresarial, procurar-se-á dar mais relevância às abordagens microeconômicas. 270

propriedade intelectual Contudo, a inovação não é uma exclusividade de firmas grandes. De fato, a mesma ocorre também em firmas pequenas. Pode-se dar como exemplo aquelas que começaram para desenvolver ou explorar uma nova invenção; aquelas altamente especializadas, com habilidades específicas e sustentadas por programas de pesquisa em um âmbito bem delimitados e aquelas que se esforçam em permanecer em mercados com novos produtos, devendo elas também se esforçarem em investigar em P&D. Ainda assim, uma das dificuldades que o empresário tem no que toca à inovação é a sua mensurabilidade imediata, por assim dizer. De fato, quando a inovação é inserida em um determinado produto, existe uma tendência para a agregação de um potencial poder de mercado. Porém, esse poder de mercado só poder aferido ex post, ou seja, depois de realizado o investimento, caracterizado por um grau de incerteza sobre o investimento feito em inovação (MOURA E SILVA, 2003). Contemporaneamente ainda existem empresas que não protegem seu capital intelectual como deveriam porque elas normalmente sequer compreendem que elementos até mesmo simples podem ser protegidos. De fato, até os anos noventa, o capital de uma empresa era composto essencialmente de bens materiais. Contudo, nos últimos anos tem se assistido um aumento vertiginoso de atenção a outro tipo de capital, àquele capital decorrente das atividades intelectuais da criatividade humana, inventividade e inteligência. Mesmo que intangível, a propriedade intelectual possui um valor igual ou maior que os bens tangíveis (BOUCHOUX, 2001). São vários os desafios às empresas no contexto de uma economia globalizada de inovação industrial, talvez o mais atroz deles seja exatamente “identificar os ativos ocultos e as pesquisas chaves, a fim de valorizá-los para aperfeiçoar e melhorar suas performances e, por conseguinte, a sua competividade no mercado” (BARROS, 2003, p.53). Contudo, uma das características relacionadas à inovação, como bem foi salientado, é a produção não de produtos necessariamente tangíveis, mas na produção de conhecimento, de informação. Esse conhecimento ganha um tratamento jurídico especial ao ser protegido por meio de direitos de propriedade, os assim denominados de direitos de propriedade intelectual (direitos de propriedade industrial e direitos de autor) que garantem ao seu proprietário uma posição privilegiada no mercado e uma segurança jurídica para a exploração, por determinado tempo, da inovação por ele realizada (BOUCHOUX, 2001; MOURA E SILVA, 2003). 271

Títulos de proteção que conferem exclusividade para a exploração e, por isso mesmo, o procedimento para sua concessão segue requisitos complexos e fixados em lei. Contudo, diferentemente do direito de propriedade comum, a sua exclusividade é assegurada apenas um determinado tempo. Isso confere, como foi abordado, uma posição privilegiada no mercado ao detentor daquela patente (PARANAGUÁ; REIS, 2009).

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Nesse sentido, principalmente as grandes firmas atribuem um papel fundamental às patentes – o título de propriedade industrial mais conhecido – e dispõem de grandes departamentos dedicados ao patenteamento das inovações produzidas nos seus laboratórios de P&D ou em conjunto com o governo e/ou universidade. Isso garante a elas um título de propriedade que elas podem negociar mediante cessão (venda) ou mesmo por licenças (FREEMAN, SOETE, 2008). Contudo, não basta a uma empresa deter direitos de propriedade intelectual – patentes e outros títulos – se eles não forem devidamente e contemporaneamente explorados mediante táticas de mercado adequadas. Deve-se evitar aquilo que os especialistas chamam de patentes de prateleira, ou seja, não exploradas. Além disso, a não-exploração econômica de um título de propriedade intelectual também pode, de certa forma, ser uma tática – ainda que moralmente censurável – de exploração econômica, já que a detenção do título impede que outros agentes econômicos realizem aquela exploração (BARROS, 2003). Porém, o papel do direito de propriedade industrial em conferir esses direitos de exclusividade sofre algumas considerações, sendo que Desde logo, cabe informar que não há consenso entre os estudiosos quanto à relação direta entre inovação, patentes e desenvolvimento. Alguns autores destacam a importância da inovação para impulsionar a competitividade ampliando os mercados, enquanto outros sustentam que o excesso de proteção pode desacelerar as inovações (PARANAGUÁ; REIS, 2009, p.14).

São inúmeras as vantagens do sistema de proteção dos conhecimentos gerados por meios títulos de propriedade intelectual. Contudo, também existem críticas a esse sistema. Os próprios economistas salientam que, ao contrário do que pode parecer, a proteção patentária pode prejudicar o livrecomércio e os consumidores, em especial dos países em desenvolvimento, ao propiciar a criação de monopólios. (PARANAGUÁ; REIS, 2009).

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propriedade intelectual 3. Contrato de transferência de tecnologia como instrumento jurídico da economia da inovação A transferência de tecnologia pode ser entendida como um processo que compreende a permissão dada pelo titular do direito da inovação para vender ou ceder a terceiros o produto de sua criação. Deste modo, trata-se de uma negociação que deve atender a determinados preceitos legais e que não implica na transferência da propriedade dos direitos de inovação, mas favorece o fluxo de comércio e disseminação de novas tecnologias (SANTOS et al, 2007). Entre os objetivos da transferência de tecnologia, ressalta Maurício Prado (1997), deve-se destacar, para o transferente, a maximização da remuneração da tecnologia mediante a otimização de sua exploração, recuperando os investimentos empreendidos em pesquisa e desenvolvimento; além de servir de porta de entrada em outros mercados. Já para o receptor/licenciado de uma tecnologia/patente busca com esse negócio, basicamente, obter inovação tecnológica e capacitação tecnológica. Com isso, ele pode manter-se no mercado, ocupando novos espaços, aperfeiçoando processos e produtos que já comercializa, atendendo exigências do mercado consumidor ou mesmo da legislação. Entre os riscos do processo de transferência de tecnologia está a criação de uma relação de dependência do receptor para com o transferente. Essa situação decorre de uma incapacidade técnica do receptor para a exploração da tecnologia e se materializa por serviços de prestação de assistência técnica do transferente para o receptor que podem ser incluídos nas cláusulas dos contratos de transferência, de um modo geral (PRADO, 1997). A transferência de tecnologia aparece em duas situações: a) Transferência como finalidade: tecnologia incorporada em produtos e compra e venda de equipamentos e projetos de pesquisa e desenvolvimento e b) Transferência como objeto: contratos de licenciamento e de know-how propriamente dito (SANTOS et al, 2007). Silvio Venosa (2004) assinala que o termo ‘contratos de transferência de tecnologia’ reúne um conjunto de instrumentos, com características próprias, cujo o objeto é o conhecimento – passível ou não de proteção por um título de propriedade intelectual – produzido/detido por uma das partes, que pode genericamente ser denominada de transferente, para que outra parte, genericamente denominada de receptora, explore empresarialmente esse conhecimento por sua conta e risco. 273

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Deste modo, o transferente disponibiliza para o receptor um título de propriedade industrial (patentes, marcas, modelos de utilidade, etc.) e/ ou conhecimento técnicos, procedimentos e formulas não protegidos ou não protegíveis por esses títulos (mediante o que se denomina de segredo industrial, know-how) para que o mesmo o incorpore a sua atividade empresária. Na verdade, trata-se de um conjunto de contratos atípicos que ainda provocam dubiedade na doutrina nacional e comparada, quer sobre a nomenclatura mais adequada ou mesmo sobre o conteúdo caraterístico de cada um (VENOSA, 2004). Entretanto, o conceito amplo de transferência de tecnologia pode englobar tipos contratuais nos quais pouco ou mesmo nada contém de efetiva transmissão de tecnologia. A redação de tais contratos exige do profissional entendimento para as necessidades estratégicas do cliente e para auxiliá-lo a eleger a melhor tática de proteção dos seus bens intangíveis; conhecimento e sensibilidade, seja a elaboração dos documentos necessários e sua averbação junto ao INPI ou para a participação em negociações nem sempre fáceis (VIEGAS, 2007). O objeto contratual é conhecimento ou conjunto de informações confidenciais de teor tecnológico, ocorrendo a transmissão de dados técnicos não confidenciais sob condição de cláusulas estritas de confidencialidade. Uma característica dos processos de negociação dos contratos de transferência de tecnologia é que a parte geradora da tecnologia procura disponibilizar à parte receptora a menor quantidade possível de informações sob o maior preço possível, impondo as denominadas cláusulas restritivas nos contratos de transferência de tecnologia, que “restringem ou limitam os direitos da empresa receptora de exigir da empresa cedente informações referentes à tecnologia descrita como objeto contratual” (SANTOS et al, 2007, p.48). Os contratos devem ser claros, completos e, se possível, individualizados. Clareza e completude são características desejáveis em todos os contratos, de modo geral, e remetem a um documento objetivo, compreensível às partes sem necessidade de intermediação, principalmente porque eles são os executores das avenças. A completude, por sua vez, remete à ideia que todos os termos pactuados devem estar expressos. A individualização pede que, no mesmo contrato, não se unam diferentes objetos com tratamentos cambiais e tributários distintos (VIEGAS, 2007). Silvio Venosa (2004) sinaliza aquelas cláusulas que para ele são comuns aos mais variados contratos de transferência de tecnologia, além daquelas relacionadas à natureza do conhecimento objeto da avença, deve-se estar 274

propriedade intelectual atento às obrigações do transferente e do receptor; o caráter definitivo ou temporário; a modalidade de pagamento de royalties; responsabilidade fiscal sobre o negócio; prazo de duração (que, no caso dos conhecimentos protegidos por títulos de propriedade industrial, deve ter, no máximo, o período de proteção conferido pela lei), limitação de uso e designação do foro competente ou instituição de juízo arbitral. O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), por meio do Ato Normativo nº 135, de 15.4.1997, tratando sobre averbação e o registro de contratos de transferência de tecnologia e franquia, define como contratos de transferência de tecnologia “assim entendidos os de licença de direitos (exploração de patentes ou de uso de marcas) e os de aquisição de conhecimentos tecnológicos fornecimento de tecnologia e prestação de serviços de assistência técnica e científica), e os contratos de franquia”. Contudo, é a Lei nº 10.168/2000 que, no artigo 2º, §1º, define como contratos de transferência de tecnologia os relativos à exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica. Entre esses variados contratos de transferência de tecnologia, encontram-se os contratos de licenciamento, sendo que nesses contratos: o licenciante, titular de patente, desenho ou modelo industrial, concede do licenciado, por tempo determinado ou indeterminado, autorização para a utilização, sob exclusiva responsabilidade deste, segundo a forma convencionada, mediante o pagamento de um preço. Há figuras semelhantes que se aproximam da licença, como a cessão de patente de invenção, que implica alienação do direito (VENOSA, 2004, p. 600).

No contrato de licença, o titular de uma patente, denominado licenciante ou licenciador, autoriza outrem, o licenciado, a usá-la ou explorá-la empresarialmente, sem que isso implique a transferência da titularidade (VENOSA, 2004) Assim, o contrato de Licenciamento “é o documento jurídico em que uma parte autoriza a utilização de ativos de propriedade intelectual mediante remuneração (royalties). Há duas partes envolvidas: o licenciador, que concede a licença, e o licenciado, que paga pela licença” (SANTOS et al, 2007, p.49). O licenciante deve ser titular da propriedade intelectual a ser transferida ou ter autorização do titular para celebrar tal avença. A tecnologia deve ser protegida por um título ou passível de proteção (licenciamento do pedido), sendo que a patente depositada apenas poderá constituir objeto de licença depois da publicação do pedido de privilégio e quando já requerido o pedido de exame (DINIZ, 2002). 275

Deve-se notar que o licenciamento distingue-se substancialmente da cessão pelo fato que, na primeira, ocorre apenas a transferência de um desdobramento do direito de propriedade, ou seja, o seu uso e exploração, enquanto na cessão ocorre a transferência do direito por inteiro (SANTOS et al, 2007).

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Entre as vantagens do contrato de licenciamento para o licenciante deve-se ressaltar a possibilidade de retorno dos investimentos realizados com atividades em Pesquisa & Desenvolvimento (SANTOS et al, 2007). Entretanto, observa Prado (1997), dificilmente o preço acordado na transferência de tecnologia será suficiente para suprir a inteireza dos investimentos realizados e ainda prover lucro ao licenciante/transferente. De fato, os custos do desenvolvimento vão além da manutenção das estruturas de laboratórios e pagamento de técnicos, mas inclui também os revesses ao longo do caminho das pesquisas até chegar ao conhecimento desejado Outros benefícios são a possível ampliação da entrada daquela tecnologia em um nicho onde o licenciante não poderia ele mesmo explorar, além da possibilidade de obter vantagens de uma melhoria técnica realizada pelo licenciado. Ao colocar a patente em circulação, o licenciante também fomenta o investimento contínuo em atividades de desenvolvimento e evita litígios pela contrafação de patente (SANTOS et al, 2007). Ainda que se trate de um contrato para transmissão de dados já protegidos formalmente por um título de propriedade intelectual, é salutar, assim como nos Acordos de P&D, que seja firmado um acordo de confidencialidade, principalmente quando trafegam também dados sobre a utilização da patente (um know-how do titular não abrangido no título). Porém, mais uma vez, devese atentar que acordo não é garantia de segurança se não for adequadamente redigido, podendo provocar mais problemas que soluções em um eventual litígio (OLIVEIRA, 2014). A licença pode ser total ou parcial, geograficamente delimitada ou não, com ou sem exclusividade. O licenciante não se responsabiliza pelos negócios de produção e comercialização do licenciado, mas este se responsabiliza perante o licenciante “se fizer mal uso da patente ou desenho, trazendo prejuízo para a credibilidade e imagem do produto ou serviço” (VENOSA, 2004, p.600). A Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96) trata ao longo dos seus dispositivos sobre o licenciamento de patentes, ao qual este trabalho irá se ater. De fato, bem salienta Barros (2003), a patente é instrumento legitimo para a garantia de direitos sobre a invenção (20 anos) ou modelo de utilidade (15 anos). 276

propriedade intelectual O seu detentor poderá explorá-la ou conferir o direito de exploração a terceiros, mediante contrato de licença ou cessão (exploração no direito patentário). São previstas pela Lei de Propriedade Industrial (LPI) dois tipos de licença: a licença voluntária e a licença involuntárias, que ocorrem ambas mediante contrato bilateral e oneroso. A Licença Voluntária é promovida mediante iniciativa das partes ou oferta publicada pelo INPI, podendo ser simples ou exclusiva. Na licença simples, o titular do direito pode licenciá-la outras vezes, ao passo que na exclusiva isso não pode ocorrer. Nas patentes estrangeiras, além da averbação no INPI, deve haver registro no Banco Central, para fins tributários e de entrada e saída de divisas (BARROS, 2003). Por sua vez, a licença não-voluntária ocorre nas hipóteses previstas na lei e também materializa-se por meio de um contrato bilateral e oneroso. Nessa situação, o titular da patente exerceu os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticou abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial. Como situações que ensejam a licença não-voluntária, ou compulsória, o art. 69 destaca quando não ocorre a exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação ou a comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado. A licença voluntária materializa-se mediante um contrato, no qual o titular pode delegar ao licenciado todos os poderes relativos à defesa da patente, ou seja, a permissão de uso ou exploração do objeto por prazo ajustado entre as partes, mas não transfere o direito real sobre a patente ou pedido de patente. Contrato atípico, o licenciamento voluntário segue as regras do Código Civil quanto aos elementos do objeto, preço, prazo, território e partes capazes, sendo necessária a averbação no INPI para que tenha eficácia, não interferindo em sua validade de prova de uso. O titular pode, no contrato de licenciamento, transferir apenas alguns direitos sobre a patente ou pedido de patente. Esses direitos podem ser os de “proibir que terceiros utilizem, ponham à venda, vendam ou importem produto ou processo patenteado. As exceções, decerto, referem-se aos direitos de usuário anterior, atos com finalidades experimentais e os comerciais, ainda, aos medicamentos individuais” (BARROS, 2003, p.271). 277

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Ao licenciado cabe defender a patente das contrafações, além de propor ações que protejam a patente, caso o titular não o faça, promovendo uma exploração correta e legítima da patente, pedido de patente ou modelo de utilidade licenciada. Além disso, o licenciado está obrigado a explorar a patente em nome próprio e sob sua conta e risco. A remuneração do licenciado que pode ser fixo, ajustado previamente ou flexível, de acordo com o lucro auferido pelo licenciado. São obrigações do licenciante a de pagar as taxas perante o INPI, a garantia da evicção e vícios pré-existentes, a garantia da exploração e comunicar os aperfeiçoamentos. Sobre essa última obrigação, ela possui um desdobramento relevante. De modo geral, o entendimento consolidado está no sentido de que, ao momento da assinatura do contrato, sob pena de responsabilidade civil, o licenciante deve transmitir ao licenciado todas os aperfeiçoamentos disponíveis, porém “quanto ao aprimoramento posterior, já que tanto o licenciante quanto o licenciado pode desenvolvê-lo, ele pertence ao autor, assegurando-se à parte não-autora a preferência no licenciamento” (BARROS, 2003, p.274). Maurício Prado (1997) relaciona cláusulas que considera centrais aos contratos de transferência de tecnologia como aquelas que lidam diretamente com a tecnologia: sua transferência e exploração. Nesse âmbito estão relacionadas aquelas que determinam o objeto que está sendo transferido e sua definição. As partes também devem acordar sobre os melhoramentos tecnológicos eventualmente desenvolvidos ao longo do contrato, havendo ou não a obrigação que as mesmas sejam transmitidas entre as partes. Cláusula interessante na transferência de tecnologia é aquela sobre de garantia de resultado. Nesta cláusula deverá ser determinada a responsabilidade – ou não – do transferente pelos resultados econômicos que o licenciante deseja obter. Quando uma patente é licenciada, juntamente com ela podem estar inclusivos no objeto do contrato, a transmissão de conhecimento que não estão descritos no documento da patente, ou seja, um know-how sem o qual não será possível o proveito econômico do negócio. Vale saber assim que: [...] as cláusulas usualmente designadas como garantias de resultado fixam obrigações, ao transferente, de fazer com que o receptor alcance determinados objetivos mediante a exploração da tecnologia, atestando sua transferência. Essas disposições são de extrema relevância para o receptor, pois o fato de atingir metas objetivamente estabelecidas constitui forma de constatar a adequada absorção da tecnologia e comprovar sua autonomia na gestão do processo tecnológico, ou seja, sua capacitação tecnológica (PRADO, 1997, p.100). 278

propriedade intelectual Entre as cláusulas sobre exploração, encontram-se aquelas que podem limitar o uso da patente territorialmente. Nesse sentido, é interessante notar um julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível nº 7011675337, julgada em 14.07.2005 de relatoria do Desembargador Dorval B. Marques. Entre outros assuntos de cunho processual, discute-se nesse caso um contrato de licenciamento em que o titular de uma patente de invenção (PI 9103071-4 B1) licencia o uso em uma determinada jazida de propriedade da licenciada. Em suas alegações, o autor da ação – o titular da patente – alega que o licenciado ter tomado utiliza-se de outro equipamento, de processo similar ao da patente de invenção (contrafação), extrapolando e desvirtuando o contrato avençado, causando-lhe inúmeros prejuízos. No mérito, o relator observa que não há comprovação da contrafação. Além disso, os contratos de licença devem ser específicos, caso contrário, a licença deve ser interpretada no sentido mais amplo, beneficiando o licenciado. Sobre o caso, o relator conclui, analisando os termos da licença, que [...] tal cláusula autoriza à empresa ré a utilização de forma ampla da patente de invenção, havendo, como única limitação, o local de seu uso, qual seja, na jazida descrita na cláusula primeira, denominada “Cerro dos Peixotos”. Assim, ante a não limitação da licença concedida à empresa ré, deve-se entender que a mesma estava autorizada a explorar a patente de forma ampla, desde que nos limites da jazida mencionada (TJRS. Décima Quarta Câmara Cível. Apelação Cível nº 7011675337, de Mineração Serra Geral Ltda. vs. Geraldo Antunes Cacique e Sistop Granitos Ltda. Relator: Desembargador Dorval B. Marques. Julgado em 14 de julho de 2005).

Deste modo, o relator julga procedente o apelo da empresa licenciada contra a sentença do juiz monocrático que deu ganho de causa ao titular da patente. Por fim, ressalte-se a necessidade de registro do contrato de licenciamento no INPI, por força do art. 62 da Lei nº 9.279/1996, para que produza efeitos em relação a terceiros. Do mesmo modo, por força da Lei nº 4.131/1962, disciplinada pela Resolução nº 3.844/2010 do Banco Central do Brasil, ficam sujeitos a registro no BCB os contratos que versem sobre uso ou cessão de patentes, de marcas de indústria ou de comércio, fornecimento de tecnologia ou outros contratos da mesma espécie, para efeito de transferências financeiras ao exterior a título de pagamento de royalties. Além disso, o registro é necessário para permitir a dedutibilidade fiscal prevista nas leis nº 4.131/1962 e nº 8.383/1991, Decreto nº 3.000/1999 e Portaria MF nº 436/1958. 279

Sobre a extensão e finalidade do registro no INPI é interessante mencionar o Recurso Especial nº 1.046.324/RJ, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti e julgado em 14 de setembro de 2010. Nesse caso, uma sociedade empresária (Videolar Ltda.) acionou outra (Koninklijke Philips Eletronics), juntamente com o INPI, na Justiça Federal do Rio de Janeiro, demandando a revisão de contratos de licença de patente de invenção, discutindo, entre outros assuntos, o pagamento de royalties.

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O que se sobressai nesse caso e o fez chegar ao Superior Tribunal de Justiça é a discussão da competência da Justiça Federal para o feito, já que o INPI também fora acionado. Em resposta ao recurso, o INPI ressalta sua competência quando registra contratos de transferência de tecnologia, entre os quais se encontram os licenciamentos, afirmando que: Dito de outra forma, em realidade o INPI não interfere nem participa na pactuação de cláusulas contratuais, mas não averbará contratos ou cláusulas de contratos que firam normas legais brasileiras. O INPI só analisa a questão quando ela é apresentada em sede administrativa, através de contratos, de aditamento aos contratos (ou, no presente caso, também quando a concessão das patentes, daqueles pedidos de patentes que são objetos do contrato em discussão) ou, ainda, de ofício, se verificar algum contrato, mesmo já averbado, está afrontando alguma de tais normas legais (STJ, RESp nº 1.046.324/RJ, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti e julgado em 14 de setembro de 2010).

No julgamento, o relator observa que a discussão cinge-se a cláusulas contratuais sobre licenciamento de patente e pagamento de royalties e, nesse sentido, sobre a observância da Portaria do Ministério da Fazenda nº 436/58. Não há debate sobre uma norma emanada do INPI, cuja atuação no feito é extraprocessual e de natureza registral, sendo a causa de interesse totalmente particular. Não havendo interesse no feito pela autarquia, o relator conclui, ratificando a decisão a quo, que o INPI deve ser excluído da demanda e o feito processado apenas na Justiça Estadual. Além da interação com o INPI, os contratos de transferência de tecnologia guardam estreita relação com o direito da concorrência quando incide em algum dos casos previstos pela lei 8.884/1994, que trata do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica.

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propriedade intelectual 4. Contrato de transferência de tecnologia frente ao direito da concorrência 4.1. Propriedade intelectual e concorrência A propriedade intelectual consiste no direito de exclusividade sobre bens imateriais, uma propriedade privada temporária, garantida pelo Estado que a concede, para aquele que cria uma obra técnica ou estética, desde que em conformidade com os balizamentos legais, possa usufruir exclusivamente de tal obra durante o prazo de proteção. Tal direito de exclusiva (ASCARELLI, 1970) é o desenho forjado, dentre outras possibilidades, como o patronato (BARBOSA, 2010), para a organização econômica de bens imateriais, como meio de estimular a criação, e, consequentemente, promover o desenvolvimento tecnológico, cultural e econômico. Observa-se que a propriedade intelectual quanto ao seu caráter exclusivista, proibindo terceiros não titulares da exploração patrimonial do bem protegido, possui as mesmas características estruturais do instituto da propriedade. O Código Civil brasileiro não conceitua a propriedade, mas estabelece no art. 1.228 que: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Nesse sentido, a propriedade intelectual estruturalmente assemelha-se à propriedade em geral. Por outro lado, a propriedade intangível, por não ser passível de apropriação direta como a propriedade tangível, uma vez colocada no mercado permite sua reprodução e uso por qualquer pessoa que tenha acesso ao bem, o que é considerado uma falha de mercado. Essa situação ignora o fato de que, na maioria das vezes, uma criação intelectual é precedida de significativos investimentos de ordem financeira, temporal e laboral. Em seu aspecto econômico, o instituto da propriedade intelectual é uma forma artificial, juridicamente criada, para corrigir essa falha de mercado, permitindo que o criador de um bem intelectual, científico, literário ou artístico, possa ter seu investimento e esforço recompensados pelo direito exclusivo de o explorar e impedir que terceiros não autorizados o explorem. A exclusividade, como salienta Denis Borges Barbosa, incide no momento em que o bem imaterial adentra o mercado, tornando-se um “bem-de-mercado” (BARBOSA, 2010, p. 58). 281

Por um aspecto moral, a propriedade intelectual funciona como uma premiação ao inventor de ter seu nome vinculado a sua criação (CERQUEIRA, 2010). Defende-se que a falta desses reconhecimentos acarretaria num desestímulo a novas criações. Assim, classicamente a propriedade intelectual é tida como um direito de propriedade, porém, recentemente, a propriedade intelectual tem sido concebida como um monopólio.

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Conceber a propriedade intelectual e os instrumentos oriundos de sua exploração simplesmente como propriedade pura, muita das vezes, peca por aferir àquela um sentido privatista absoluto, já a visão concorrencial traz a este direito uma perspectiva de interesse coletivo (BARBOSA, 2010). Assim, se estruturalmente os direitos de propriedade intelectual são semelhantes ao instituto da propriedade, é propício dizer que funcionalmente tais direitos se relacionam com a disciplina da concorrência (ASCARELLI, 1970), que regula o uso do bem no mercado para que este mantenha-se de forma competitiva. Nesse sentido, Calixto Salomão Filho (2003, p. 131) expõe que: A superação desse tipo de justificativa e raciocínio decorre menos de uma evolução do Direito Industrial e mais de uma nova concepção de concorrência. Evoluindo o Direito Concorrencial de uma defesa privada do concorrente para uma defesa pública da instituição “concorrência” (o que rigorosamente passa a ocorrer desde a promulgação da primeira lei de direito antitruste no sentido publicista, o Sherman Act, em 1890), o tratamento de qualquer instituto que a restrinja tem de ser modificado. Monopólios devem ser admitidos na menor extensão possível e, mesmo quando admitidos, é de ser reconhecida sua função social. A essa luz, a função econômico-jurídica dos institutos de Direito Industrial muda substancialmente de figura.

A relação entre propriedade intelectual e direito antitruste não surgiu desde o momento da criação desses dois institutos, que possuem escopos e justificativas diversas (BRANCHER, 2010). Cabe recordar que o direito da concorrência contemporaneamente possui como marco relevante o Sherman Act, dos Estados Unidos, que entrou em vigor em 1890; e na Europa este direito teve surgimento nos idos de 1920. O que ressalta que o tratamento do direito da concorrência é até mesmo posterior, em pelo menos 100 anos, ao da propriedade intelectual. Assim, esta interseção é fruto de uma construção doutrinária e jurisprudencial em resposta a supremacia intocável com que era tida a propriedade intelectual, que não se submetia as normas anticoncorrencias pelo simples fato de serem consideradas um exclusivo legal que permite qualquer uso realizado por seu titular (LESLIE, 2011).

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propriedade intelectual Referida confusão decorria também da falta de uma distinção adequada entre o monopólio legal ou jurídico (SALOMÃO FILHO, 2003), de que trata a propriedade intelectual e que exclui esse direito da seara concorrencial, do monopólio econômico, que deve ser evitado sob pena de causar prejuízos ao mercado. Com a confusão desses dois termos acreditava-se numa forte tensão entre os direitos de propriedade intelectual e o direito antitruste, já que a primeira visa garantir direitos de exclusividade para um concorrente em detrimento dos outros e as políticas de concorrência objetivam o controle da concentração de mercados. Como explica Luís Pinto Monteiro (2010, p.41): Os objetivos do direito de concorrência estão à partida associados à promoção da eficiência alocativa a curto prazo. Isto é, estão ligados à promoção de condutas tendentes a trazer os preços dos bens e serviços para o seu custo marginal e assim, maximizar os recursos sociais existentes. Este propósito pode vir a conflituar com os exclusivos conferidos através dos direitos de propriedade intelectual. Tal deve-se ao facto de a utilização da informação correspondente aos direitos de propriedade intelectual ter um custo marginal igual a zero. A informação, devido à sua natureza imaterial, pode ser usada por um número infinito de pessoas, múltiplas vezes e em simultâneo sem que isso conduza à sua escassez ou exaustão.

O monopólio legal de que trata a propriedade intelectual não está relacionado diretamente ao controle da concentração de mercados. Com a exclusiva da propriedade intelectual podem ser encontrados casos em que essa concentração exista ou não, e na primeira situação algumas serão legais e outras ilegais. Quanto a estas últimas - concentração de mercado ilegal por meio de direitos de propriedade intelectual - o direito antitruste deverá coibir tais práticas. Além do que, um exclusivo nem sempre irá significar dominação de mercado tendo em vista muitos produtos protegidos por direitos de propriedade intelectual possuem substitutos. Como explica Calixto Salomão Filho (2003, p. 133-134): A demonstração da instrumentalidade da utilização do termo “monopólio legal” e a evidenciação do tipo de direito que se pretende conferir por meio das marcas e patentes ficam também claras, uma vez analisado o dado econômico. Como destaca a doutrina, já vai longe o tempo em que se acreditava que marcas e patentes conferiam verdadeiro monopólio no sentido econômico. Em um mundo que se sofistica e se especializa, as marcas e patentes nem sempre conferem poder no mercado. A não ser nos ramos de alta tecnologia, em que a patente efetivamente gera monopólio, ao menos temporário, praticamente todos os produtos, mesmo quando substituíveis, são dotados de patentes. Produtos patenteados concorrem com outros produtos patenteados ou até sem patentes. 283

A partir da expansão do direito antitruste em todo o mundo observou-se também o avanço da leitura conjunta deste instituto com a propriedade intelectual, numa tentativa de equilibrar os interesses dos titulares de direitos de propriedade intelectual e os interesses do mercado competitivo. Assim, a propriedade intelectual assume um perfil eminentemente concorrencial, com a maximização do bem-estar social por meio do desenvolvimento econômico e tecnológico (MONTEIRO, 2010; SALOMÃO FILHO, 2003) A aplicação do direito antitruste na propriedade intelectual tem obtido grande realce nas questões envolvendo contratos de transferência de tecnologia, em especial nos licenciamentos, caso que será analisado a seguir neste trabalho.

André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

4.2. Contratos de transferência de tecnologia e direito concorrencial no Brasil Os contratos de transferência de tecnologia, como qualquer contrato, são capazes de provocar problemas concorrenciais ao mercado, e, consequentemente, estão também sujeito ao regime do direito antitruste. Esta relação é inclusive destacada pelo próprio Acordo TRIPS (artigo 40), no qual os Membros concordam que algumas práticas ou condições de licenciamento relativas a direitos de propriedade intelectual que restringem a concorrência podem afetar adversamente o comércio e impedir a transferência e disseminação de tecnologia, e, em razão deste reconhecimento, permite que os mesmos possam adotar medidas apropriadas para evitar ou controlar tais práticas. No Brasil, coube a lei 8.884/1994, com atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), regular sobre os contratos que possam ter efeitos adversos no mercado, incluindo os que versam sobre transferência de tecnologia. As condutas qualificadas como anticompetitivas estão presentes nos artigos 20 e 21 da referida Lei. O artigo 20, de forma geral, estabelece que: Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; 284

propriedade intelectual IV - exercer de forma abusiva posição dominante.

De forma mais específica o artigo 21 exemplifica vinte e quatro comportamentos que se encaixam na formulação geral do artigo 20, dos quais se destacam (ASSAFIM, 2005) – sem excluir a possibilidade de incidência dos demais – no caso dos contratos de transferência de tecnologia: - fixar ou praticar, em acordo com concorrente, sob qualquer forma, preços e condições de venda de bens ou de prestação de serviços (inciso I); - dividir os mercados de serviços ou de produtos, acabados ou semi-acabados, ou as fontes de matérias-primas ou de produtos intermediários (inciso III); - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição (inciso VI); - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição (inciso X); - dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais (inciso XIV); - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem (inciso XXIII); - impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem ou serviço (inciso XXIV).

Luciano Benetti Timm (2009, p. 104), com base nas condutas do artigo 21, lista como cláusulas tipicamente problemáticas nos contratos de transferência de tecnologia: - cláusulas de licença reversa (grant back) - é a cláusula por meio da qual um dos contratantes (geralmente o licenciado) deve conceder os diretos em relação a qualquer melhoria introduzida na tecnologia negociada; proibições de utilização de tecnologia após a expiração do contrato (post expiry); - cláusulas proibindo o questionamento administrativo ou judicial a respeito da validade do direito de propriedade intelectual (no challange) - cláusulas que vedam o questionamento, quando o licenciado se compromete a não questionar a validade dos direitos de propriedade intelectual objeto do contrato; 285

- vendas casadas (tying arrangements) – cláusula de condicionamento é o acordo pelo qual o licenciado é obrigado a comprar, do cedente, bens ou serviços vinculados ao objeto principal do contrato; - proibição ou de restrição à concorrência (non-competition clauses), - fixação de preços (price fixing) – fixação de preço ocorre quando o cedente impõe ao licenciado o preço que o produto deve ser vendido no mercado; - restrições de quantidade (volume restrictions), - restrições de utilização (field-of-use restrictions) – restrição de finalidade significa uma limitação de propósitos pelos quais o licenciado pode explorar a tecnologia licenciada; - licenças-pacote (package license) – licença conjunta ocorre quando o cedente confere, na mesma transação, ao licenciado o direito de explorar dois ou mais direitos de propriedade intelectual separados. - cláusulas de não-concorrência; André Soares Oliveira e Heloísa Gomes Medeiros

- restrições de exportação (export restrictions); - licença cruzada (cross licensing) – licença cruzada é uma forma específica de contrato, no qual dois ou mais agentes econômicos licenciam, um para o outro, o uso de suas respectivas tecnologias; - acordo de patentes (pooling patents) – Acordo de patentes é uma forma horizontal de acordo em que dois ou mais agentes econômicos pactuam dividir sua tecnologia proprietária.

Assim, todos os contratos de transferência de tecnologia que possuam cláusulas cujo conteúdo trate dos atos que configurem o disposto no artigo 20 ou 21 devem ser submetidos a apreciação do CADE. Para tanto, a Lei 8.884/1994 estabelece no artigo 54 o procedimento a ser seguido. O contrato deve ser apresentado para exame, no prazo máximo de quinze dias úteis de sua realização, em três vias à Secretaria de Direito Econômico (SDE), que imediatamente enviará uma via ao CADE e outra à Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE). Da análise dos documentos a SDE deverá proferir parecer técnico e remeter para o CADE, que deverá tomar decisão final em até 60 dias sob implicação de autorização automática (§§ 6º e 7º). No entanto, o CADE poderá autorizar atos que possa limitam a livre concorrência, ou que resultem na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, desde que: a) tenham por objetivo, cumulada ou alternativamente: aumentar a produtividade, melhorar a qualidade de bens ou serviço, ou propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico; b) os

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propriedade intelectual benefícios decorrentes sejam distribuídos equitativamente entre os seus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro, c) não impliquem eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante de bens e serviços; d) sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados (art. 54, §1º). Também poderão ser considerados legítimos os atos previstos no artigo 54, desde que atendidaspelo menos três das condições previstas nos incisos do §1º, quando necessários por motivo preponderantes da economia nacional e do bem comum, e desde que não impliquem prejuízo aoconsumidor ou usuário final. A aprovação do contrato poderá ser revista pelo CADE, de ofício ou mediante provocação da SDE, se a decisão for baseada em informações falsas ou enganosas prestadas pelo interessado, se ocorrer o descumprimento de quaisquer das obrigações assumidas ou não foremalcançados os benefícios visados (art. 55).

5. Considerações finais Em tempos de economia da inovação, o conhecimento adquire importância central enquanto elemento de uma concorrência non price entre as empresas. A geração, proteção e aquisição de conhecimentos – protegidos ou não por títulos de propriedade industrial – ganha destaque na agenda de preocupações não apenas dos grandes conglomerados industriais, mas também dos pequenos empresários, sobretudo daquelas pequenas empresas de base tecnológica. Não se pode esquecer que a geração e circulação de conhecimentos ocorre também sem a presença do Estado. Por meio de contratos de transferência de tecnologia, em especial os de licenciamento, o empresário impulsiona, por meio de arranjos contratuais atípicos, a circulação desse conhecimento e movimenta a economia da inovação. Contudo, tais contratos devem também ser submetidos a análise pelo direito concorrencial, visto que existe um interesse de ordem pública na concessão e circulação de direitos de propriedade intelectual: o incentivo a inovação, ao desenvolvimento e ao progresso científico e tecnológico que só podem ocorrer dentro de um ambiente concorrencial saudável.

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propriedade intelectual O DIREITO AUTORAL COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA INCOMUNICABILIDADE DOS PROVENTOS DO TRABALHO PESSOAL DE CADA CÔNJUGE Francisco Narcélio Ribeiro517

1. Introdução O presente estudo tem como objetivo analisar, à luz do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana e dos princípios dele decorrentes, quais sejam, igualdade, integridade física e moral (psicofísica), liberdade e solidariedade, a incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal de bens. Para tanto, necessário entender a função instrumental da família na concepção do direito civil-constitucional, bem como a importância do princípio da unidade da família. Nessa medida, destaca-se decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que afasta a aplicação literal do inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil e realiza interpretação restritiva para mantê-lo em consonância com os ditames da Constituição Federal de 1988. Entretanto, ponto importante para a questão é o caminho adotado pela lei autoral brasileira para determinar a incomunicabilidade do direito patrimonial de autor, em virtude de afirmar que os rendimentos de tal direito são comunicáveis. Ou seja, o direito patrimonial de autor é incomunicável, mas os rendimentos que dele decorrem não. As normas civilista e autoral muito se assemelham, só que a segunda tem redação mais adequada aos ditames constitucionais que a primeira. Dessa forma, a lei 9.610 de 1998 pode ser utilizada, por analogia, para preservar a constitucionalidade do dispositivo da norma civilista que trata dos proventos pessoais de cada cônjuge. A problemática da constitucionalidade, ou não, dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e universal de bens é algo que merece a devida análise. Como se admitir, por exemplo, a comunicabilidade quando um dos cônjuges utiliza seus proventos de traba517 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Professor substituto da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, na área de Direito Civil, no período de 2005 a 2007. Professor da Faculdade Luciano Feijão em Sobral (CE) das disciplinas de Introdução à Ciência do Direito e Direito do Consumidor. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais – UNIFOR. 289

lho para a família e a incomunicabilidade quando o outro os utiliza para seus investimentos pessoais? Observa-se, claramente, a inadequação e a injustiça, tendo em vista a possibilidade do enriquecimento indevido de um consorte em detrimento do outro, quando do encerramento da relação. Entretanto, a pergunta a ser devidamente realizada é a seguinte: o inciso VI, do artigo 1.659 do Código Civil, é inconstitucional? Ora, o enlace conjugal é fulcrado, principalmente, nos princípios da igualdade e da solidariedade econômica, que são corolários do princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, percebe-se, logo de início, que a interpretação literal indicando a incomunicabilidade patrimonial não é constitucional.

Francisco Narcélio Ribeiro

Importante se torna situar os caminhos a serem trilhados no presente trabalho. Inicia-se com uma abordagem na perspectiva do princípio da dignidade da pessoa humana que, por sua vez, traz à baila os princípios da igualdade, da solidariedade social e da unidade da família. Em consonância com tais princípios, abordam-se as relações conjugais, bem como o princípio da solidariedade econômica, à luz da solidariedade familiar. Na sequência, passa-se a analisar a questão patrimonial nas relações conjugais, os bens adquiridos na constância da união e a sua divisão no caso de dissolução do enlace. Depois, analisa-se a (in)constitucionalidade do inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil, haja vista a possibilidade de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. Em seguida, colaciona-se recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na qual restou consignada a comunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, afirmando-se ainda que a incomunicabilidade residia apenas no direito. Tal solução do problema merece críticas, haja vista que não enfrenta a situação como deveria e estabelece uma interpretação irrazoável e inverossímil da norma legal. Logo após, realiza-se um estudo do artigo 39 da norma autoral brasileira, qual seja, lei 9.610 de 1998, que estabelece um caminho que melhor efetiva a dignidade da pessoa humana nos casos de comunicabilidade ou não de bens na relação conjugal, ao afirmar que o direito de autor é incomunicável, mas seus rendimentos não. Ressalta-se a relevância do tema em virtude da necessidade do Código Civil estar em consonância com os ditames da Constituição Federal de 1988, portanto, dentro da linha do direito civil-constitucional. Para a realização do trabalho, utiliza-se do método qualitativo, pautada em doutrina nacional e estrangeira, bem como em decisão de Tribunal Superior pátrio. 290

propriedade intelectual 2. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais Fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, da CF/88), o princípio da dignidade da pessoa humana é a base para a construção de uma sociedade em que o ser humano é colocado como um fim em si mesmo, inclusive de toda ordem jurídica. O imperativo categórico de Kant introduz tal máxima como algo essencial à humanidade. Sobre o assunto, discorre Maria Celina Bodin de Moraes (2010, p. 81): Compõe o imperativo categórico a exigência de que o ser humano jamais seja visto, ou usado, como meio para atingir outras finalidades, mas sempre seja considerado como um fim em si mesmo. Isto significa que todas as normas decorrentes da vontade legisladora dos homens precisam ter como finalidade o homem, a espécie humana enquanto tal. O imperativo categórico orienta-se, então, pelo valor básico, absoluto, universal e incondicional da dignidade humana. É esta dignidade que inspira a regra ética maior: o respeito pelo outro.

Para Kant, o homem é um ser racional e isso o diferencia dos animais. Devido a essa racionalidade é que era chamado de pessoa humana. Disso resulta que ele possui uma essência superior a qualquer ser vivo, surgindo daí a ideia de dignidade (HOLANDA, 2014, p. 21). Percebe-se a valorização do homem enquanto pessoa, merecedor de dignidade, jamais podendo ser objeto, e sim, fim. A sociedade, a economia, o direito, a política, dentre outras, existem para realizar o valor maior, qual seja, dignidade ao ser humano. O homem, assim como todo ser racional, existe como fim em si mesmo, jamais podendo ser meio para satisfação arbitrária desta ou daquela vontade. No entanto, o valor dos objetos materiais que se pode adquirir é sempre condicional. Assim, observa-se que tudo tem uma dignidade ou um preço. Quando uma coisa tem um preço, pode ser substituída por outra equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, então ela tem dignidade. Esta apreciação dá a conhecer como dignidade o valor de uma disposição do espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço (SARLET, 2004, p. 33-34). Segundo José Afonso da Silva (1998, p. 90), essa concepção kantiana tem natureza filosófica: A filosofia mostra que o homem, como ser racional, existe como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto seres, desprovidos de razão, têm um valor relativo e condicionado, o de meios, eis porque se lhe chamam coisas; ao contrário, os seres racionais são chamados de pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como meio e que, por conseguin-

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te, limita na mesma proporção o nosso arbítrio por ser objeto de respeito. (…) do mesmo princípio racional que vale para mim, é, pois, ao mesmo tempo, um princípio objetivo que vale para outra pessoa.

A doutrina nacional é unânime em afirmar a importância e a significação do fundamento do artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Neste diapasão, esclarece Flávia Piovesan (s/d, p. 05) que o valor da dignidade humana, elevado à condição de princípio constitucional, impõe-se como núcleo básico do ordenamento jurídico pátrio, sendo parâmetro de valoração para orientar a interpretação e compreensão de sobredito ordenamento.

Francisco Narcélio Ribeiro

Afirma ainda Flávia Piovesan que a dignidade humana e os direitos fundamentais conferem suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Portanto, ambos têm um papel singular na ordem jurídica. Diante disso, pergunta-se: qual a relação entre dignidade humana e direitos fundamentais? Sobre o assunto, Ana Maria D’Ávila Lopes (2001, p. 35), ao definir direitos fundamentais “como os princípios jurídica e positivamente vigentes em uma ordem constitucional que traduzem a concepção de dignidade humana de uma sociedade e legitimam o sistema jurídico estatal”, estabelece uma relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana numa perspectiva de que os primeiros são instrumentos de efetivação do segundo, haja vista que se começa a constatar um conteúdo no fundamento constitucional. É através dos direitos fundamentais que se realiza a dignidade humana. O conceito acima exarado possibilita um caminho para se estudar a problemática situação da efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Ora, não resta dúvida acerca de sua importância; no entanto, diante da generalidade que lhe é inerente, são necessários instrumentos para sua concretização. Sobre o assunto, afirma Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 563): A despeito das inúmeras tentativas formuladas ao longo dos tempos, notadamente (mas não exclusivamente) no âmbito da fecunda tradição filosófica ocidental, verifica-se que uma conceituação mais precisa do que efetivamente seja esta dignidade, inclusive para efeitos de definição do seu âmbito de proteção na esfera do Direito, continua a ser um desafio para todos os que se ocupam do tema. Tal dificuldade, consoante exaustiva e corretamente destacado na doutrina, decorre certamente (ao menos também) da circunstância de que se cuida de conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por uma ‘ambiguidade e porosidade’, assim como por sua natureza necessariamente polissêmica.

Assim, os direitos fundamentais são as linhas orientadoras para a realização do fundamento da dignidade da pessoa humana, posto que traduzem 292

propriedade intelectual sua concepção. Nesse contexto, insere-se o tema do mínimo existencial para concretização do referido postulado. Ana Paula de Barcellos (2008, p. 288), no campo dos direitos sociais, identifica o mínimo existencial como núcleo da dignidade da pessoa humana. Esse mínimo é composto de quatro elementos: educação fundamental, saúde básica, assistência aos desemparados e acesso à justiça. Tal identificação é pautada numa visão sistemática, integradora, em que os direitos fundamentais se destacam. Dessa forma, constata-se um mínimo possível, o qual, uma vez afrontado, será atingida a própria dignidade humana. Isso não quer dizer que o postulado constitucional ora em estudo se limite ao referido núcleo existencial, mas sim que esse núcleo é a base mínima de percepção e realização do fundamento. Lembra-se, para tanto, que todos os direitos fundamentais traduzem a concepção da dignidade humana, e não somente um núcleo mínimo. Em concepção semelhante, no campo do direito civil-constitucional, Maria Celina Bodin de Morais (2010, p. 85) afirma a existência de um substrato material ao princípio expresso no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Tal substrato se encontra nos seguintes postulados: O substrato material da dignidade deste modo entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica -, da liberdade e da solidariedade. De fato, quando se reconhece a existência de outros iguais, daí dimana o princípio da igualdade; se os iguais merecem idêntico respeito à sua integridade psicofísica, será preciso construir o princípio que protege tal integridade; sendo a pessoa essencialmente dotada de vontade livre, será preciso garantir, juridicamente, esta liberdade; enfim, fazendo a pessoa, necessariamente, parte do grupo social, disso decorrerá o princípio da solidariedade social.

Assim, conforme ensina a professora Maria Celina, são corolários de tais postulados os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral (psicofísica), da liberdade e da solidariedade. A integridade psicofísica, conforme se percebe, é uma decorrência do princípio da igualdade, mas também busca garantir o direito a uma vida digna. Para a autora, o fundamento constitucional ora comentado será minimamente atendido se, diante das situações concretas, buscarem-se efetivar tais direitos fundamentais. 293

O Código Civil de 2002, que teve importante influência do jusfilósofo Miguel Reale, estabeleceu suas bases nos princípios acima destacados; ou seja, foi uma tentativa de consolidar a visão da dignidade da pessoa humana nos ditames do direito civil-constitucional. Francisco Amaral ensina o seguinte (2005, p. 11):

Francisco Narcélio Ribeiro

A influência de Miguel Reale, culturalista e anti-positivista crítico, foi decisiva no processo de elaboração do novo Código Civil brasileiro. Nesta obra está a marca da concepção axiológico-experiencial desse jurista-filósofo, com a sua idéia de modelo jurídico, in casu, modelos hermenêuticos que se ligam, direta ou indiretamente, à existência de determinados valores, como o da pessoa humana, o da liberdade, o da igualdade, o da solidariedade, valores esses considerados “invariantes axiológicas” (REALE, 1994, p. 115), que fundamentam as diretrizes básicas do Código Civil (a socialidade, a eticidade e a operabilidade) e influenciam o processo metodológico de sua interpretação.

É na perspectiva acima que se pauta o presente estudo, ou seja, na visão do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana efetivado através dos princípios da igualdade, da liberdade, da integridade psicofísica e da solidariedade. Dessa forma, em qualquer estudo que se faça no sentido de interpretar e aplicar as normas jurídicas, é necessário observar a efetivação do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, sob pena de inconstitucionalidade de tais normas. Neste diapasão, a interpretação e aplicação do inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil devem atentar para tal mister, sob pena de se tornar inconstitucional.

3. Família instrumento Na perspectiva do direito civil-constitucional, a família deve ser instrumento de realização e construção da dignidade humana de cada um dos seus membros. Isso ocorrerá, conforme visualizado nas lições de Maria Celina Bodin de Morais, na medida em que forem preservados e defendidos, dentro do núcleo familiar, os princípios da igualdade, da liberdade, da integridade psicofísica e da solidariedade. Na visão da família instrumento, ensina Pietro Perlingieri (2007, p. 179): Este interesse não exclusivo ora resta individual, ora assume o papel de interesse coletivo, no sentido de realizar diretamente a tutela de todos os componentes da família. Em uma e em outra hipótese, a titularidade do direito compete aos membros da família e não à família como tal. Esta não é uma pessoa jurídica, nem pode ser concebida como um sujeito com direitos autônomos: ela é formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes; de maneira que exprime uma função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes. (Grifo nosso.)

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propriedade intelectual Dentro das relações familiares está a conjugal. Esta, hodiernamente, pauta-se no princípio da igualdade. O texto constitucional de 1988 abraça tal princípio nos artigos 5º, I e 226, § 5º, e o Código Civil de 2002 o estabelece no artigo 1.511. Exige-se, portanto, a igualdade material entre os cônjuges. Os demais princípios também devem ser objeto de observação entre o casal, haja vista a preservação dos sentimentos, do afeto e da harmonia do núcleo familiar. Assim, a relação desenvolvida e construída deve ser tal que preserve a liberdade de cada um, inclusive o respeito à individualidade, tendo por pressuposto que a liberdade está sempre associada à responsabilidade; bem como o respeito à integridade psicofísica, ou seja, um relacionamento que desenvolva o ser humano em seus aspectos psicológico e físico e, finalmente, a plenitude da solidariedade familiar, tanto no aspecto existencial quanto no patrimonial, haja vista que, nesse contexto, a solidariedade econômica é consequência da familiar. Essa nova concepção de família supera completamente aquela existente no Código Civil de 1916, que tinha como características: superioridade masculina (mulher submissa e incapaz), pautada na família tradicional, proteção do patrimônio (valores patrimoniais acima dos valores existenciais), desigualdade entre os filhos (filhos legítimos e ilegítimos), dentre outras. Tal visão defendia a família como instituto jurídico. Entretanto, hodiernamente, conforme já relatado, a família é instrumento de efetivação da dignidade da pessoa humana de cada um de seus membros, e, nessa medida, deve atentar para os princípios atrás consignados.

4. Unidade da Família O parágrafo segundo do artigo 29 do Código Civil italiano expressa que “o casamento é ordenado sobre a igualdade moral e jurídica dos cônjuges, com os limites da lei como garantia da unidade familiar”. Constata-se a garantia do princípio da igualdade e a preservação da unidade familiar. Entretanto, alerta Pietro Perlingieri (2007, p. 250-252), que “é necessário colocar em evidência que ‘unidade da família’ não deve ser confundida nem com ‘indissolubilidade do casamento’ nem com ‘unidade do casamento’”. Na verdade, a unidade da família é uma concepção consciencial de preservação do princípio da dignidade da pessoa humana dos membros do núcleo familiar, aplicando-se mesmo no caso de dissolução do casamento. É algo que estabelece o enfrentamento de problemas vividos na realidade da família, em nome da união que deve pautar os seres humanos entre si, mesmo quando discordam, posto que esta discordância resulta da própria família democrática, em que todos os membros são individualmente considerados. 295

Cotejando o que se afirmou acima com as normas do Código Civil brasileiro, principalmente os artigos 1.511, 1.565, 1.567 e 1.568, percebe-se que a unidade da família está caracterizada de forma implícita no ordenamento pátrio, abrangendo situações que devem pautar a relação conjugal, ainda que no processo de sua dissolução, notadamente na preocupação com o bem estar psicofísico e econômico-financeiro dos dois membros de sobredita relação. Destaca-se, também, da referida análise, a obrigação dos cônjuges de concorrerem, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família, qualquer que seja o regime patrimonial.

Francisco Narcélio Ribeiro

5. O princípio da solidariedade e a questão patrimonial na relação conjugal O princípio da solidariedade é um dos subprincípios efetivadores do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, e dele resulta o princípio da solidariedade familiar. No presente estudo, tal solidariedade familiar perfaz-se na materialização do patrimônio do casal em benefício da família, tanto no aspecto da relação conjugal, quanto nas relações de parentesco. Tem-se, com isso, a solidariedade econômica como consequência da solidariedade familiar. Corrobora tal entendimento Pietro Perlingieri (2007, p. 266), que afirma: A solidariedade familiar, longe de apresentar-se como expressão de uma concepção publicista ou como fundamento da família como célula produtora, traduz-se em uma nova solidariedade econômica fundada não somente na propriedade mas, sobretudo, no trabalho dos componentes, que legitima uma mais justa proporcionalidade no cumprimento do dever de contribuição. Os cônjuges devem contribuir também em relação à própria capacidade de trabalho, levando em consideração que para eles o trabalho é um dever.

Perlingieri destaca o instituto da propriedade como fundamento da solidariedade econômica, juntamente com o trabalho dos componentes da família. Trabalho esse que se torna uma obrigação, haja vista a qualidade de vida dos membros do grupo familiar, bem como a possibilidade de aquisição de bens móveis e imóveis, títulos e valores, entre outros, razão pela qual se constata a existência de um patrimônio comum do casal, nos regimes de comunhão parcial e universal de bens. Esse patrimônio comum, resultado da solidariedade econômica, deverá ser partilhado igualmente, caso haja dissolução da sociedade conjugal. Entretanto, conforme reza o artigo 1.659 do Código Civil, existem bens que 296

propriedade intelectual são incomunicáveis, dentre eles destaca-se os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge. Tal dispositivo foi inovação da norma civilista de 2002 e está expresso no inciso VI do artigo citado.

6. A questionada incomunicabilidade Tendo-se por base a efetivação do fundamento da dignidade da pessoa humana através dos subprincípios já mencionados e a unidade da família, insere-se a questão da (in)constitucionalidade do dispositivo legal constante no inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil pátrio. Ora, tornar incomunicável os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, além de poder configurar enriquecimento indevido de um dos consortes em detrimento do outro, pode ensejar um completo desrespeito aos princípios da igualdade e da solidariedade familiar, ou, em última análise, do próprio fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. Merece o devido cuidado a incomunicabilidade questionada, posto que se um dos cônjuges utilizar seus proventos em benefício da família, a lei determina a comunicabilidade; ao passo que se o outro consorte utilizar os frutos do seu trabalho para seus investimentos pessoais, a mencionada norma veda a comunicabilidade. Acerca do assunto, leciona ainda Maria Berenice Dias (s/d, p. 3): Flagrantemente injusto que o cônjuge que trabalha por contraprestação pecuniária, mas não converte suas economias em patrimônio, seja privilegiado e suas reservas consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal lógica compromete o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. Descabido premiar o cônjuge que se esquiva de amealhar patrimônio, preferindo conservar em espécie os proventos do seu trabalho pessoal.

Dessa forma, resta equivocada a aplicação da interpretação literal do inciso VI, do artigo 1.659 do Código Civil, posto que absolutamente irrazoável. Por conseguinte, é necessária a realização de uma interpretação que possa preservar a constitucionalidade de tal dispositivo legal ou, de forma mais contundente, considerá-lo inconstitucional, por ofensa ao fundamento da dignidade da pessoa humana, em especial no que pertine aos princípios da igualdade e da solidariedade econômica no seio familiar. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recente decisão datada de 17 de abril de 2013, enfrentou a questão. A ementa do recurso especial número 1.295.991-MG, tendo como relator o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, será destacada e analisada adiante.

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7. Decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ): proventos dos trabalhos pessoais Ressalte-se aqui o acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, em foco: RECURSO ESPECIAL Nº 1.295.991 - MG (2011/0287583-5) RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO RECORRENTE : A C F ADVOGADOS : ALEXANDRE MIRANDA OLIVEIRA ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA E OUTRO(S) RECORRIDO : E G M ADVOGADOS : MARCELO SOARES E OUTRO(S) MATHEUS DANTAS DE CARVALHO E OUTRO(S)

Francisco Narcélio Ribeiro

MOZART VICTOR RUSSOMANO NETO E OUTRO(S) THIAGO DOS SANTOS BARRAL EMENTA RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. COMUNHÃO PARCIAL. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO. PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE CONTRIBUIÇÃO DE AMBOS OS CONVIVENTES. PATRIMÔNIO COMUM. SUB-ROGAÇÃO DE BENS QUE JÁ PERTENCIAM A CADA UM ANTES DA UNIÃO. PATRIMÔNIO PARTICULAR. FRUTOS CIVIS DO TRABALHO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INCOMUNICABILIDADE APENAS DO DIREITO E NÃO DOS PROVENTOS. 1. Ausência de violação do art. 535 do Código de Processo Civil, quando o acórdão recorrido aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamento da lide, com abordagem integral do tema e fundamentação compatível. 2. Na união estável, vigente o regime da comunhão parcial, há presunção absoluta de que os bens adquiridos onerosamente na constância da união são resultado do esforço comum dos conviventes. 3. Desnecessidade de comprovação da participação financeira de ambos os conviventes na aquisição de bens, considerando que o suporte emocional e o apoio afetivo também configuram elemento imprescindível para a construção do patrimônio comum. 4. Os bens adquiridos onerosamente apenas não se comunicam quando configuram bens de uso pessoal ou instrumentos da profissão ou ainda quando há sub-rogação de bens particulares, o que deve ser provado em cada caso. 298

propriedade intelectual 5. A interpretação restritiva preserva o conteúdo da norma, não a desnatura, simplesmente restringindo sua aplicação. 6. Interpretação restritiva do art. 1.659, VI, do Código Civil, sob pena de se malferir a própria natureza do regime da comunhão parcial. 7. Caso concreto em que o automóvel deve integrar a partilha, por ser presumido o esforço do recorrente na construção da vida conjugal, a despeito de qualquer participação financeira. 8. Sub-rogação de bem particular da recorrida que deve ser preservada, devendo integrar a partilha apenas a parte do bem imóvel integrante do patrimônio comum. 9.RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. (Grifo nosso)

Propedeuticamente, observa-se que o recurso especial trata de alguns assuntos importantes, tais como: a presunção absoluta na união estável de que os bens adquiridos onerosamente na constância de sobredita união são resultado do esforço comum dos conviventes; desnecessidade de comprovação da participação financeira de ambos os conviventes na aquisição de bens, considerando que o suporte emocional e o apoio afetivo também configuram elemento imprescindível para a construção do patrimônio comum. Entretanto, o presente trabalho tem como objetivo analisar a incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoas de cada cônjuge. Dessa forma, atendendo ao objetivo estabelecido, importa considerar na ementa acima a questão da comunicabilidade ou não dos proventos do trabalho pessoal de cada consorte. E, nesse sentido, verifica-se, de imediato, que o tribunal buscou fugir da literalidade do inciso VI, do artigo 1.659 do Código Civil. Ora, isso ocorre porque, conforme já atrás consignado, a interpretação literal de tal norma é absolutamente inaceitável, por não atentar para o princípio da igualdade e da solidariedade familiar. Conforme aduz o item seis daquela ementa, foi realizada uma interpretação restritiva da norma, sob pena de se malferir a própria natureza do regime da comunhão parcial. No entanto, tal atitude do Superior Tribunal de Justiça (STJ) merece crítica, haja vista que não se trata de uma interpretação restritiva, mas sim de uma interpretação contra legem. Consigne-se que a interpretação restritiva preserva o conteúdo da norma, não a desnatura, ela simplesmente restringe sua aplicação. O entendimento do STJ, contudo, é completamente contrário ao conteúdo do inciso VI, do artigo 1.659 do Código Civil. Quanto ao assunto, o ministro relator em seu voto registra o seguinte: Ressalto, ademais, que, embora o Código Civil preveja, em seu art. 1.659, inciso, VI, excluírem-se da comunhão os proventos do trabalho pessoal de 299

cada cônjuge, a interpretação desse dispositivo deve sofrer temperamentos. Com efeito, tanto a doutrina como a jurisprudência tem interpretado esse enunciado normativo de forma restritiva, entendendo que a incomunicabilidade se restringe ao direito ao recebimento dos frutos civis do trabalho, mas não aos valores em si, de modo que, uma vez percebidos, eles passam a integrar o patrimônio comum. (…) A interpretação literal do dispositivo em questão não se coaduna com o regime da comunhão, conduzindo inevitavelmente a uma situação de injustiça, ainda mais evidente na hipótese em que um dos cônjuges não exerce atividade laboral.

Francisco Narcélio Ribeiro

Veja-se claramente a questão: o inciso citado dispõe que se excluem da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, ao passo que o Superior Tribunal de Justiça, afirmando utilizar interpretação restritiva sobre tal inciso, sustenta que a incomunicabilidade é do direito e não dos proventos. Ora, no caso, não é possível separar as duas coisas. O disposto na ementa redunda no abandono da lei. Na verdade, o tribunal tenta criar uma situação jurídica que permita a continuidade da norma civilista com a comunicabilidade dos proventos, sem tecer considerações sobre sua constitucionalidade ou não. Porém, tal situação, como se viu, é contraditória. Dessa forma, entende-se que não há como fugir do debate da constitucionalidade do mencionado inciso. A interpretação adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) não foi capaz de resolver o problema. Por sua vez, a interpretação literal é inconstitucional, pelos motivos já comentados. Assim, pelas razões até aqui expendidas, imperioso que se declare a inconstitucionalidade do inciso VI, do artigo 1.659 da norma civilista, por manifesta ofensa aos princípios da igualdade e da solidariedade econômica nas relações familiares.

8. Um caminho possível: a incomunicabilidade na lei autoral brasileira Retornando ao problema da constitucionalidade ou não da norma civilista, merece destaque o caminho adotado pela lei autoral brasileira acerca da incomunicabilidade do direito de autor. O artigo 39, da lei 9.610 de 1998, afirma que “os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua exploração, não se comunicam, salvo pacto antenupcial em contrário”. Conforme se percebe, o direito patrimonial de autor é também incomunicável, mas os seus rendimentos não o são. Nessa linha, a norma autoral é mais clara e não suscita dúvidas ou questionamentos de uma possível 300

propriedade intelectual ofensa ao fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, posto que preserva a importância da família no atual panorama constitucional. Ora, a lei autoral, ao contrário do artigo 1.659 do Código Civil, explicita claramente o que é comunicável. Assim, embora o direito patrimonial de autor não o seja, por suas peculiares características, os seus rendimentos se comunicam. Tal visão preserva os cônjuges numa possível dissolução da união, em virtude de impedir que haja distorções e injustiças decorrentes de ofensas aos princípios da igualdade, da solidariedade familiar e da unidade da família. Discorrendo sobre as peculiaridades do direito patrimonial de autor e de seus proventos, Fernanda Ferrarini Cecconello (2001, p. 5) ensina: Os rendimentos resultantes da exploração da criação, ou seja, a fruição patrimonial que a obra lhe traz, sim, é comunicável. É devido aos rendimentos, ao proveito econômico, resultado do comércio, visto ser profissão lucrativa, não se relacionando com o ato criativo em si, que o cônjuge não-autor pode defender a obra de engenho, cuja aquisição dos direitos é pessoal. Mas utilizar patrimonialmente a obra intelectual não compreende o poder de decidir a oportunidade, o modo, a forma e qualquer outra modalidade da primeira publicação. Caso ocorra uma ruptura do matrimônio, estes rendimentos devem ser arrolados na partilha dos bens. Embora com repercussões patrimoniais, este poder de autoria intelectual constitui um direito moral do autor, que segundo a Lei nº 9.610-98, é inalienável e irrenunciável.

Corroborando com os argumentos acima exarados, José de Oliveira Ascensão (1980, p. 86) afirma que “diverso é o regime dos proventos obtidos pelos cônjuges na exploração do direito. Como frutos separados, entram sem ressalva na comunhão”. Por sua vez, Plínio Cabral (2003, p. 63), discorre: Mas, além disso, o patrimônio autoral é um bem cuja aquisição originária se dá, basicamente, pela ação pessoal do autor. Sem esta ação criadora o bem inexiste. Ele não pode, pois, ser adquirido na constância do casamento pela ação comum dos cônjuges, mas sim da atividade criadora de dois autores que, eventualmente, são casados. O ato criador é uma particularidade pessoal e um atributo individual. (…)

Já os rendimentos que resultam da exploração das obras de criação e engenho fogem ao caráter pessoal desse tipo de propriedade. Resultam do comércio e nada tem a ver com o ato criador em si.

Fazendo-se um cotejo entre a norma civilista e a norma autoral, constata-se que a segunda pode ser utilizada, por analogia, em benefício da 301

primeira. Ora, o direito patrimonial de autor pode se configurar como um provento pessoal de um dos cônjuges da relação; e, nesse contexto, não ser comunicável, conforme determinam as duas normas. Entretanto, isso, por si só, não basta! É necessário especificar que os rendimentos de tais proventos pessoais entram na comunhão. Tal especificação é realizada pela norma autoral e negligenciada pela norma cível.

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Por outro lado, comparando-se os argumentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no recurso especial acima colacionado, com a lei autoral, chega-se à conclusão que o Superior Tribunal utilizou-se de interpretação restritiva que resultou numa decisão contra legem. Enquanto que na norma autoral é a própria lei quem determina a comunicabilidade dos rendimentos. Na primeira, a interpretação restritiva foi utilizada indevidamente; na segunda, a mera interpretação literal é suficiente. Com isso, confirma-se que a lógica autoral é a que melhor realiza o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana nas relações familiares e, em particular, na relação conjugal.

9. Conclusão O inciso VI do artigo 1.659 do Código Civil brasileiro estabelece incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge nos regimes de comunhão parcial e total de bens. No entanto, tal dispositivo legal gera questionamento, haja vista a possibilidade de enriquecimento indevido de um dos consortes em detrimento do outro. Dessa forma, imperioso analisá-lo estabelecendo uma interpretação que permita a preservação da integridade existencial e patrimonial dos integrantes da relação conjugal. Nesse diapasão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar recurso especial em abril de 2013, utilizou intepretação restritiva para afirmar que a incomunicabilidade reside no direito, e não nos proventos do trabalho em si mesmos. Entretanto, tal forma de interpretar resta equivocada, posto que se trata de uma solução contra legem. Ou seja, o tribunal, buscando solucionar o problema, acabou por agravá-lo. Por sua vez, o artigo 39 da lei autoral (9.610/1988) estabelece que o direito patrimonial de autor é incomunicável, mas os seus rendimentos não. Dessa forma, a lei autoral possibilita um caminho para a constitucionalidade do inciso VI, do artigo 1.659, do Código Civil. Para tanto, necessário utilizar a analogia legal. O direito patrimonial de autor pode se configurar como um provento pessoal de um dos cônjuges da relação, e, nesse contexto, não ser comunicável; entretanto, isso, por si só, não é suficiente, haja vista ser necessário especificar a comunicabilidade dos rendimentos de tais proventos pes-

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propriedade intelectual soais. Assim, preservam-se a igualdade e a solidariedade dos cônjuges numa possível dissolução da relação. Sabendo-se da inconstitucionalidade da interpretação literal do inciso VI, do artigo 1.659 da norma civilista, por ofensa aos princípios da igualdade e da solidariedade familiar, impõe-se ou a busca de caminhos que preservem as normas constitucionais ou a declaração de inconstitucionalidade de tal dispositivo. Dois caminhos se apresentam, quais sejam, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o artigo 39 da lei autoral brasileira, ambos devidamente apresentados anteriormente.

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Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR

O GEDAI/UFPR possui como linhas de pesquisa as seguintes temáticas: Propriedade Intelectual – Inovação e Conhecimento: analisar a tutela jurídica dos novos bens intelectuais advindos da nova Tecnologia da Informação com vistas ao desenvolvimento socioeconômico que promova inovação, inclusão tecnológica e difusão do conhecimento.

Economia Criativa: Propriedade Intelectual e Desenvolvimento: estudar o Direito Autoral enquanto instrumento jurídico capaz de servir como marco regulatório para a formulação de políticas públicas a fim de fortalecer as indústrias criativas e dinâmicas, com vista a uma Economia Criativa sustentável para o país. Regime Internacional de Propriedade Intelectual: Estudo dos Tratados e Organizações Internacionais (OMC, OMPI e UNESCO) com o escopo de avaliar o Sistema Internacional de Tutela da Propriedade Intelectual face a revolução tecnológica da informação, bem como, das novas formas de comunicação, de expressão, de produção de bens intelectuais que com as novas redes sociais na Internet possibilitam a socialização do conhecimento. Sociedade da Informação: Democracia e Inclusão Tecnológica – analisar as novas formas de criação de bens intelectuais (obras colaborativas), de transformação criativa (samplers), de distribuição/compartilhamento advindas das redes sociais (P2P), e a socialização do conhecimento enquanto paradigma da cultura digital sobre a regulamentação dos diretos autorais. Direitos das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s): identificar o conteúdo da proteção jurídica e o alcance da circulação da produção cultural desenvolvida nas instituições públicas e do regime de concorrência aplicado às novas mídias na Internet. Propriedade Intelectual e Direito Concorrencial – compreender a interface do direito concorrencial e da propriedade intelectual nos novos modelos de negócios na Sociedade da Informação com foco no desenvolvimento dos setores produtivos da Economia Criativa. As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão disponíveis no site: www.gedai.com.br

Além disso, a obra reúne o esforço de doutrinadores de renomadas universidade europeias: Universidade Clássica de Lisboa (Portugal), Universidade Complutense de Madri (Espanha) e Universidade de Valência (Espanha). Ressalte-se o apoio fundamental das agências de fomento à pesquisa, CAPES e CNPq, imprescindível para a realização dos projetos de pesquisas que culminaram com o lançamento da presente obra.

Apoio e financiamento de:

Estudos de Direito da

PROPRIEDADE INTELECTUAL

A parceria internacional está capitaneada pelo Grupo i+d Propiedad Intelectual e Industrial da Universidade de Valência – Espanha.

ESTUDOS DE DIREITO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

Direito Autoral: Direitos Fundamentais e Diversidade Cultural: compreender os efeitos do direito fundamental à cultura sobre os limites do direitos autorais; a proteção e circulação da produção cultural desenvolvida nas instituições públicas; os papéis da cidadania cultural no processo de inclusão social; a função do Estado em matéria cultural, as políticas públicas de cultura e a regulamentação jurídica dos direitos culturais.

A obra é fruto de um intercâmbio acadêmico sólido realizado por pesquisadores do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI da Universidade Federal do Paraná – UFPR em parceria com grupos de pesquisa no Brasil, a saber: o Instituto de Propriedade Intelectual do Brasil – IBPI, o Instituto de Tecnologia e Sociedade - ITS do Rio de Janeiro e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

MARCOS WACHOWICZ Organizador

O GEDAI/UFPR busca a formação de uma rede nacional e internacional de cooperação acadêmica na área de propriedade intelectual, contando em suas publicações com um Conselho Editorial composto por especialistas nacionais e estrangeiros.

O livro propicia uma reflexão sobre os temas relacionados à propriedade intelectual, realizada por pesquisadores e especialistas em Direito reconhecidos pela comunidade científica nacional e internacional.

MARCOS WACHOWICZ ORGANIZADOR

Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR – O GEDAI/UFPR vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná – UFPR tem como seu principal objetivo estudar o desenvolvimento dos Direitos de Propriedade Intelectual na Sociedade da Informação, através da comparação do sistema internacional de direitos autorais e industriais, da análise dos processos de concretização dos direitos e diversidades culturais e da reflexão sobre a regulamentação dos direitos intelectuais frente aos desafios da Sociedade da Informação. Para atingir essa finalidade por observa-se três objetivos específicos: (i) compreensão dos efeitos do direito fundamental à cultura e diversidade cultural na sociedade contemporânea, analisando os limites dos direitos autorais na tutela dos bens imateriais; (ii) avaliação das consequências da revolução tecnológica em andamento e do advento da cultura digital sobre a regulamentação dos direitos intelectuais; e (iii) identificação do conteúdo da proteção jurídica e o alcance da circulação da produção intelectual/cultural desenvolvida nas instituições públicas. Visando intensificar o intercambio da pesquisa no Brasil, o GEDAI/UFPR envolve-se em projetos com outras equipes acadêmicas de diversas instituições de ensino superior e de pesquisas brasileiras. Desta forma com a finalidade de ampliar os estudos sobre temas relacionados a Propriedade Intelectual e seus desafios na Sociedade da Informação o GEDAI/UFPR faz um convite para que os pesquisadores venham integrar esta grande rede de presquisa e publicação acadêmica. As publicações do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial – GEDAI/UFPR – são espaços de criação e compartilhamento coletivo, visando facilitar o acesso às pesquisas pela INTERNET, disponibiliza-as gratuitamente para download. É mais uma alternativa para a publicação de pesquisas acadêmicas, formando uma rede de compartilhamento aberta para toda a comunidade científica. As publicações GEDAI/UFPR em meio digital estão disponíveis no site: www.gedai.com.br