A face mais íntima de Deus
 9788534945226, 9788534936583

Table of contents :
1. Redescobrir um Deus capaz de encher o vazio dos corações humanos
2. Somos chamados para voltar, a partir de novas perspectivas, às fontes que nos falam de Deus
3. O Deus da Bíblia se distingue desde o início fundamentalmente de todas as outras divindades das religiões da Mesopotâmia
3.1. Um Deus que tem poder, embora não se situe do lado dos poderosos
3.2. Um Deus que não se fixa por dentro de um Templo
3.3. Um Deus que não exige primordialmente cerimônias cúlticas em seu louvor
4. Os textos da Revelação apresentam um Deus que, com vigor, se posiciona contra toda opressão de pessoas humanas. Com isso, porém, incomoda muito aqueles que querem dominar
5. Deus quer que o ser humano tenha uma vida ampla, plena e repleta de felicidade
6. Se Deus defende os fracos, então todos os seus seguidores deveriam fazer o mesmo
7. Deus, desde o início, se faz conhecer como “go’el”, isto é, como defensor daqueles que não têm mais nenhum defensor
8. O contexto religioso em que Jesus se move
8.1. Lei, pureza e sacrifícios que se tornaram opressivos para o povo
8.2. Jesus recupera o cerne libertador daquilo que é a intenção da Torá
8.3. A repreensão endereçada a uma instituição sacrossanta
9. A maneira pela qual os Evangelhos apresentam a atitude de Jesus em relação ao Templo deve ser interpretada como Revelação teológica que vale para todas as religiões
10. Críticas neotestamentárias do sistema religioso também têm significado universal e se dirigem a toda e qualquer religião e Igreja
11. Em Jesus, Deus revela que uma ordem oposta a Deus até pode ser justificada recorrendo a Deus
12. Vistos da perspectiva da Revelação, as atitudes e o agir de Jesus devem ser compreendidos como atitudes e agir do próprio Deus
13. As opções fundamentais de Jesus são as opções fundamentais de Deus
13.1. Deus opta preferencialmente pelos pobres
13.1.1. Na sua opção pelos pobres, Deus assume a causa dos perdedores, e não a dos vencedores
13.1.2. Na sua opção pelos pobres, Deus concretiza a sua opção pelos injustiçados
13.2. Deus opta pela justiça e é contra toda opressão
13.3. Deus opta pela misericórdia e é contra todo legalismo
13.4. Deus opta pelo serviço e é contra o poder
13.5. Deus opta pela vida
14. Em Jesus, Deus se revela como defensor também daqueles que foram rejeitados pelo sistema religioso
15. Jesus Cristo e a necessária mudança da nossa perspectiva antropológica
15.1. Redescobrir a Revelação como base para a reflexão antropológica
15.2. A Kenosis de Deus implica também a Kenosis do homem
15.3. Assumir a perspectiva de Deus
15.4. Recorrendo à imagem de um Deus todo-poderoso, é possível justificar toda aspiração humana pelo poder
15.5. A imagem do Deus todo-poderoso não desafia muito o ser humano
16. Por que Deus, em Jesus Cristo, não se manifestou como cientista, general, ou pelo menos como grande artista?
17. Natal, ou a Revelação de um Deus do qual ninguém precisa ter medo e que por causa disso pode ser amado
17.1. No evento de Natal, Deus se manifesta a nós como ele realmente quer ser conhecido
17.2. O Natal revela que Deus não se interessa pelos mecanismos de prestígio e de poder
17.3. Deus quer ser amado em vez de temido!
17.4. Um Deus que se manifesta como criança pode ser amado, mas essa criança também pode ser rejeitada e pisada
17.5. Deus, que se manifesta humildemente como criança, identifica-se de maneira plena com as pessoas
18. Em Jesus, Deus nos revela a sua humildade
18.1. Um Deus humilde não corresponde à imagem habitual de Deus
18.2. Um Deus humilde corre o risco de ser crucificado
18.3. Um Deus humilde que opta preferencialmente pelos vencidos desafia todos os nossos sistemas
18.4. Um Deus humilde que opta pelo servir questiona toda e qualquer estrutura que se baseie em atitudes de poder
Deus se põe a serviço dos homens
19. Em Jesus, Deus chama também o sistema religioso à conversão
20. Um Deus que não se manifesta como vingador e juiz liberta as pessoas do medo e dos complexos de culpa
21. A Revelação de Deus em Jesus Criston desmascara o agir de todos os sacrificadores de todos os tempos como falso
21.1. Impulsos inconscientes de agressividade e sua projeção em Deus
21.2. O resultado de uma mentalidade sacrifical é a formação da imagem de um Deus vingador
21.3. A imagem de um Deus que exige sacrifícios, outra consequência de projeções humanas
21.4. O mecanismo de projeção possibilita esconder a raiz da violência
21.5. Como desvelar diante dos sacrificadores a verdade sobre o seu agir violento?
22. O Deus que se revela nos textos bíblicos está do lado das vítimas e não dos sacrificadores
22.1. Os sacrificadores não querem admitir que a sua perspectiva é falsa
22.2. Com a sua atitude na cruz e diante da cruz, Deus quebra o círculo vicioso da violência e da vingança
23. Pela ressurreição de Jesus, Deus-Pai ratifica e confirma toda a vida e toda a mensagem de Jesus
23.1. A cruz, sinal de vergonha e de derrota
23.2. Pela morte na cruz, a mensagem de Jesus perdeu, para os seus contemporâneos ortodoxos, toda e qualquer credibilidade
23.3. Os textos bíblicos não falam de uma autorressurreição de Jesus, mas de um agir de Deus-Pai no Jesus morto
23.4. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma que ele é como Jesus, seu filho, o tinha descrito
24. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte
24.1. O imaginário cristão é marcado pela cruz
24.2. O fato de a cruz ter se tornado o signo central da religião cristã trouxe profundas consequências para a autocompreensão daqueles que se chamam cristãos e cristãs
24.3. A cruz, por si mesma, não é o fim último da mensagem cristã, ela deve ser vista sempre relacionada à ressurreição
24.4. Ressuscitando Jesus, Deus revela que ele é contra a morte dos crucificados
24.5. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus rejeita os valores dos crucificadores e confirma as opções do seu filho crucificado
24.6. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte
25. O significado escatológico da ressurreição de Jesus
25.1. A ressurreição de Jesus se torna sinal de esperança através de toda a história humana
25.2. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus-Pai confirma que a sua fidelidade continua para além da morte
25.3. Pela ressurreição de Jesus, Deus comprova diante de todos que ele de fato é capaz de ressuscitar os mortos
25.4. A ressurreição de Jesus se torna prova e base para a fé em nossa própria ressurreição
25.5. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma tudo aquilo que Jesus tinha dito e feito; isso implica também a promessa de que Jesus nos vai ressuscitar
25.6. Ressuscitando Jesus, este está sendo comprovado como “Cristo” e “Filho de Deus”. Com isso, porém, também é capaz de justificar os pecadores
25.7. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus comprova que chegou o fim do mundo antigo e o começo do novo mundo, chamado de “Reino de Deus”

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Índice 1. Redescobrir um Deus capaz de encher o vazio dos corações humanos 2. Somos chamados para voltar, a partir de novas perspectivas, às fontes que nos falam de Deus 3. O Deus da Bíblia se distingue desde o início fundamentalmente de todas as outras divindades das religiões da Mesopotâmia 3.1. Um Deus que tem poder, embora não se situe do lado dos poderosos 3.2. Um Deus que não se fixa por dentro de um Templo 3.3. Um Deus que não exige primordialmente cerimônias cúlticas em seu louvor 4. Os textos da Revelação apresentam um Deus que, com vigor, se posiciona contra toda opressão de pessoas humanas. Com isso, porém, incomoda muito aqueles que querem dominar 5. Deus quer que o ser humano tenha uma vida ampla, plena e repleta de felicidade 6. Se Deus defende os fracos, então todos os seus seguidores deveriam fazer o mesmo 7. Deus, desde o início, se faz conhecer como “go’el”, isto é, como defensor daqueles que não têm mais nenhum defensor 8. O contexto religioso em que Jesus se move 8.1. Lei, pureza e sacrifícios que se tornaram opressivos para o povo 8.2. Jesus recupera o cerne libertador daquilo que é a intenção da Torá 8.3. A repreensão endereçada a uma instituição sacrossanta 9. A maneira pela qual os Evangelhos apresentam a atitude de Jesus em relação ao Templo deve ser interpretada como Revelação teológica que vale para todas as religiões 10. Críticas neotestamentárias do sistema religioso também têm significado universal e se dirigem a toda e qualquer religião e Igreja 11. Em Jesus, Deus revela que uma ordem oposta a Deus até pode ser justificada recorrendo a Deus 12. Vistos da perspectiva da Revelação, as atitudes e o agir de Jesus devem ser compreendidos como atitudes e agir do próprio Deus 13. As opções fundamentais de Jesus são as opções fundamentais de Deus 13.1. Deus opta preferencialmente pelos pobres 13.1.1. Na sua opção pelos pobres, Deus assume a causa dos perdedores, e não a dos vencedores 13.1.2. Na sua opção pelos pobres, Deus concretiza a sua opção pelos injustiçados 13.2. Deus opta pela justiça e é contra toda opressão 13.3. Deus opta pela misericórdia e é contra todo legalismo 13.4. Deus opta pelo serviço e é contra o poder 13.5. Deus opta pela vida 14. Em Jesus, Deus se revela como defensor também daqueles que foram rejeitados pelo sistema religioso 15. Jesus Cristo e a necessária mudança da nossa perspectiva antropológica 15.1. Redescobrir a Revelação como base para a reflexão antropológica 3

15.2. A Kenosis de Deus implica também a Kenosis do homem 15.3. Assumir a perspectiva de Deus 15.4. Recorrendo à imagem de um Deus todo-poderoso, é possível justificar toda aspiração humana pelo poder 15.5. A imagem do Deus todo-poderoso não desafia muito o ser humano 16. Por que Deus, em Jesus Cristo, não se manifestou como cientista, general, ou pelo menos como grande artista? 17. Natal, ou a Revelação de um Deus do qual ninguém precisa ter medo e que por causa disso pode ser amado 17.1. No evento de Natal, Deus se manifesta a nós como ele realmente quer ser conhecido 17.2. O Natal revela que Deus não se interessa pelos mecanismos de prestígio e de poder 17.3. Deus quer ser amado em vez de temido! 17.4. Um Deus que se manifesta como criança pode ser amado, mas essa criança também pode ser rejeitada e pisada 17.5. Deus, que se manifesta humildemente como criança, identifica-se de maneira plena com as pessoas 18. Em Jesus, Deus nos revela a sua humildade 18.1. Um Deus humilde não corresponde à imagem habitual de Deus 18.2. Um Deus humilde corre o risco de ser crucificado 18.3. Um Deus humilde que opta preferencialmente pelos vencidos desafia todos os nossos sistemas 18.4. Um Deus humilde que opta pelo servir questiona toda e qualquer estrutura que se baseie em atitudes de poder Deus se põe a serviço dos homens 19. Em Jesus, Deus chama também o sistema religioso à conversão 20. Um Deus que não se manifesta como vingador e juiz liberta as pessoas do medo e dos complexos de culpa 21. A Revelação de Deus em Jesus Criston desmascara o agir de todos os sacrificadores de todos os tempos como falso 21.1. Impulsos inconscientes de agressividade e sua projeção em Deus 21.2. O resultado de uma mentalidade sacrifical é a formação da imagem de um Deus vingador 21.3. A imagem de um Deus que exige sacrifícios, outra consequência de projeções humanas 21.4. O mecanismo de projeção possibilita esconder a raiz da violência 21.5. Como desvelar diante dos sacrificadores a verdade sobre o seu agir violento? 22. O Deus que se revela nos textos bíblicos está do lado das vítimas e não dos sacrificadores 22.1. Os sacrificadores não querem admitir que a sua perspectiva é falsa 22.2. Com a sua atitude na cruz e diante da cruz, Deus quebra o círculo vicioso da violência e da vingança 23. Pela ressurreição de Jesus, Deus-Pai ratifica e confirma toda a vida e toda a 4

mensagem de Jesus 23.1. A cruz, sinal de vergonha e de derrota 23.2. Pela morte na cruz, a mensagem de Jesus perdeu, para os seus contemporâneos ortodoxos, toda e qualquer credibilidade 23.3. Os textos bíblicos não falam de uma autorressurreição de Jesus, mas de um agir de Deus-Pai no Jesus morto 23.4. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma que ele é como Jesus, seu filho, o tinha descrito 24. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte 24.1. O imaginário cristão é marcado pela cruz 24.2. O fato de a cruz ter se tornado o signo central da religião cristã trouxe profundas consequências para a autocompreensão daqueles que se chamam cristãos e cristãs 24.3. A cruz, por si mesma, não é o fim último da mensagem cristã, ela deve ser vista sempre relacionada à ressurreição 24.4. Ressuscitando Jesus, Deus revela que ele é contra a morte dos crucificados 24.5. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus rejeita os valores dos crucificadores e confirma as opções do seu filho crucificado 24.6. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte 25. O significado escatológico da ressurreição de Jesus 25.1. A ressurreição de Jesus se torna sinal de esperança através de toda a história humana 25.2. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus-Pai confirma que a sua fidelidade continua para além da morte 25.3. Pela ressurreição de Jesus, Deus comprova diante de todos que ele de fato é capaz de ressuscitar os mortos 25.4. A ressurreição de Jesus se torna prova e base para a fé em nossa própria ressurreição 25.5. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma tudo aquilo que Jesus tinha dito e feito; isso implica também a promessa de que Jesus nos vai ressuscitar 25.6. Ressuscitando Jesus, este está sendo comprovado como “Cristo” e “Filho de Deus”. Com isso, porém, também é capaz de justificar os pecadores 25.7. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus comprova que chegou o fim do mundo antigo e o começo do novo mundo, chamado de “Reino de Deus”

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1. REDESCOBRIR UM DEUS CAPAZ DE ENCHER O VAZIO DOS CORAÇÕES HUMANOS Perguntando às pessoas na rua sobre como imaginariam Deus, geralmente ouvemse respostas como “Deus é onipotente; Deus é Senhor; Deus é eterno, infinito e maior que tudo o que se pode imaginar”. Os mais bem informados ainda lembram que Deus é criador, característica que por sua vez tem muito a ver com o seu poder. E há outros que mencionam a onisciência e às vezes até o amor. Com isso, chegamos, em geral, ao fim do repertório, e os poucos que pensam saber ainda mais explicam que Deus é Pai e lembram que ele se revelou em Jesus Cristo. Depois disso, normalmente, as pessoas se calam. Mas, no seu silêncio, perdoura a indagação não expressa se atrás de tudo aquilo que foi dito talvez não houvesse mais... E, nas profundezas não vocalizadas de tantos olhos questionadores, sente-se o anseio de que de fato pudesse ser mais. Desejo inconsciente e instantaneamente reprimido pelos chavões interiorizados de longa data, decorados e repetidos desde criança e ouvidos em tantas e tantas lições de catequese. Há de fato relativamente poucos fiéis que, além dos estereótipos correntes, ainda conhecem outros conteúdos sobre como Deus é. Estes, em geral, mencionam como fonte do seu saber a própria Bíblia, os livros de piedade e também as celebrações litúrgicas. Do Deus todo-poderoso se fala muito nas liturgias e também na formação dos fiéis. Até o Credo da Igreja católica menciona tal característica em lugar predominante. Sendo assim, os cristãos e as cristãs que baseiam a sua imagem de Deus nesse fundamento com certeza não estão errados. Constatamos, porém, que a maioria das pessoas se contenta com esse saber sobre Deus. Assim vivem com a segurança de uma fé oficialmente sancionada; e o fato de os seus corações ficarem vazios, apesar da onipotência de Deus, apresenta-se para muitos como consequência inevitável da existência humana. Mesmo cientes da onipotência de Deus, não preenchem os seus corações, e, por causa disso, há muitos que deixam esse Deus todo-poderoso lá no céu dele. Eles se lembram de Deus quando precisam da sua onipotência para resolver problemas, mas, além disso, preferem buscar outras fontes para encher o vazio dos seus corações. Estão buscando canções melhores, em lugares muito distantes, enquanto têm tão perto de si aquela única melodia, capaz de satisfazer todos os anseios do seu coração entristecido. Mas eles não o sabem. Há outros, é verdade, que deveriam saber melhor, porque conhecem os textos respectivos. Mas também no meio deles se fala demais de um Deus do poder, da sua autoridade, da sua glória e de seu domínio. Parece que, no psiquismo de muitos, religião e fascínio pelo poder ficam interligados por algumas afinidades secretas. Os peritos em interpretação de textos canônicos, além disso, reagem perplexos 6

quando se chama a atenção deles para o fato de que a sua tradicional caracterização de Deus como todo-poderoso não é muito diferente da maneira pela qual praticamente todas as outras religiões também apresentam os seus deuses. Portanto, as denominações de Deus como onipotente, onisciente, santo ou eterno em nada são exclusivas da religião cristã. Pelo contrário, têm lugar na maioria das religiões. Os deuses supremos do Egito foram venerados a partir dessas características, da mesma maneira como Marduk, o deus astral supremo da Babilônia, ou Zeus, da antiga cultura grega. Todas essas divindades e muitas outras ainda foram consideradas pelos seus adeptos como todo-poderosas. Nos tratados do filósofo grego Aristóteles, encontramos, além disso, longas reflexões sobre a eternidade da divindade. E que Deus é o Alfa e o Ômega não é em nada uma fórmula do cristianismo primitivo, tal como muitos cristãos atualmente imaginam. Quem a usou foi o filósofo pagão mencionado, e este, como se sabe, viveu no século IV a.C. Ideias similares, aliás, encontramos também em Platão e no pensador romano Sêneca. Elas aparecem na teologia de Zaratustra, na Pérsia, mais de seis séculos antes de Cristo, e também na maioria das outras grandes religiões que se formaram fora do espaço cultural euro-mesopotâmico. Diante de tais fatos, aqueles que se chamam cristãos talvez estejam sendo confrontados com um problema totalmente novo. Numa época de crescente diálogo inter-religioso, eles são desafiados por indagações como: “Com que direito mantemos a pretensão de achar que o nosso Deus é o Deus verdadeiro, enquanto o Deus dos não cristãos deve ser considerado um deus falso?”. Os não cristãos, por sua vez, acham exatamente que o Deus deles é verdadeiro e que os deuses dos outros são falsos. Diante dessa situação, surge para os cristãos deste século, marcado por crescente globalização cultural, uma nova e muito urgente indagação: Em que o seu Deus Supremo, afinal, se distingue das divindades supremas de todas as outras religiões? A informação de que ele é onipotente, onisciente e eterno não é mais prova nenhuma da sua exclusividade. O mesmo dizem os representantes das outras religiões a respeito das suas próprias divindades. Numa época marcada pelo diálogo inter-religioso, tal fato se torna cada vez mais consciente. Junto com essa conscientização, porém, cresce a exigência de definir, de maneira clara e convincente, quais são os elementos específicos da própria imagem de Deus. A imagem de Deus presente na maioria dos cristãos e das cristãs: Deus é: - onipotente - infinito - santo - eterno - onisciente Problema: Deus realmente tem essas características!

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Mas, para saber isso, não é preciso necessariamente abrir a Bíblia. Todas elas já foram mencionadas pelos filósofos pagãos da antiga cultura grega, além disso, encontramo-nas também na maioria das religiões não cristãs. Daí surge a indagação crítica: Onde se encontra aquilo que é especificamente novo na concepção bíblica e cristã de Deus?

As breves reflexões introdutórias mencionadas no quadro anterior já mostraram que não basta – ou não basta mais – apresentar o Deus dos cristãos a partir dessas fórmulas gerais. Tais fórmulas hoje não convencem mais, independentemente de terem, durante séculos, sido transmitidas pelas Igrejas e seus representantes.1 Aliás, transmitidas com êxito, porque até hoje estão presentes, de maneira dominante, no imaginário religioso dos cristãos e das cristãs. Mas a onipotência e a existência eterna de um Deus se apresentam hoje para muitos mais como elementos assustadores do que atraentes, e isso, sobretudo, diante do pano de fundo do inimaginável abuso de poder, com o qual os homens estão sempre sendo confrontados, seja olhando pela história do passado, seja observando as suas manifestações na época presente. O fato de, no decorrer da história, terem sido acentuados insistentemente o poder, a grandiosidade e a glória de Deus tem razões que em muito ultrapassam a teologia. Elas, além do desejo de ter tal aliado ao seu lado, também abrangem a vontade de justificar o próprio poder. Além disso, elas têm a sua raiz também na vontade específica de intimidar e de provocar medo. A maioria dos adeptos da imagem cristã de Deus não tem mais a mínima consciência de que tais mecanismos existiam e em parte até hoje existem. Os efeitos deles atuam ainda de forma inconsciente nas pessoas, e as características assustadoras de Deus são abrandadas em cerimônias cada vez mais suntuosas. Contudo, nem desses mecanismos, em geral, as pessoas estão conscientes. Assim, encontramo-nos, já no início de nossas reflexões, diante de uma situação extremamente complexa. No seu centro, fica a indagação inquietante: “Como será possível encontrar-se hoje e no futuro com aquele Deus do qual fala a religião cristã e cujas primeiras manifestações foram descritas nos textos bíblicos do judaísmo?” Será que ainda é possível acreditar naquele Deus poderoso, numa época cada vez mais sensível diante dos mecanismos de poder, visíveis até nas próprias instituições religiosas? A pretensão autoritária delas e a sua exigência de obediência incondicional já foi rejeitada pela maioria dos integrantes das sociedades pósmodernas e pós-industriais desde o fim do século XX. Será que agora, no século XXI, devem até rejeitar o Deus tantas vezes apresentado por essas instituições como garante ameaçador e onipotente daquela obediência requerida por elas? Há pessoas demais que respondem afirmativamente a essa pergunta. 8

Aquele Deus das Leis e regras, assustador, que exige a observância rigorosa dos seus mandamentos e pune com dureza intransigente aqueles que não o seguem – um Deus que muitas pessoas da velha geração ainda interiorizaram –, hoje é rejeitado cada vez mais por mulheres e homens. Os jovens simplesmente vão embora, e os representantes ainda vivos da velha geração permanecem sem resposta alguma nas suas igrejas cada vez mais vazias e lamentam a maldade do mundo moderno. Ou, por outro lado, celebram com zelo dobrado a onipotência do seu Deus, atitude que, na realidade, revela-se como tentativa de disfarçar o seu próprio medo inconsciente ante esse Deus esmagador. Diante disso, permanece o dilema de que se o Deus dos cristãos realmente seja assim, tal como durante séculos predominantemente foi apresentado. O resultado óbvio é que cada vez menos representantes da jovem geração se deixam convencer por essa apresentação. De um lado, eles buscam desesperadamente a dimensão espiritual, de outro, distanciam-se cada vez mais de um Deus que assusta. Em consequência, eles se afastam também das instituições que dizem representar esse Deus, isto é, das Igrejas institucionais.2 Tal distanciamento, porém, no fundo nada mais é do que a rejeição de uma mensagem que perdeu o seu caráter de “Boa-nova”, em vez disso tornando-se frustrante. O gelo dos seus corações não foi derretido, e o seu anseio por sentido e amor permaneceu sem respostas, porque o poder, no máximo, consegue inspirar respeito, nunca, porém, amor, que dá amparo. É esse amor que estão buscando, mas as ofertas sempre mais frustrantes da indústria do consumo só aumentam o vazio dos seus corações, que anseiam pelo infinito saber. O poder, na melhor das hipóteses, consegue despertar respeito, porém, muito mais o medo. Nunca o poder desperta o amor! 1 Cf. Em termos de exemplificação atual da problemática: GRETCHA, Job. Comment témoigner du Christ dans un monde qui ne croit pas? Irénikon, Revue des Moines de Chevetogne, n. 1, p. 33-52, 2009. 2 Cf. ABURDENE, Patricia. Megatrends 2010. Charlottesville: Hampton Roads Publishing Company, 2007; FERNANDES, Silvia Regina Alves (org.). Mudança de religião no Brasil. Rio de Janeiro: Ceris, 2006; DUBACH, Alfred & FUCHS, Brigitte. Ein neues Modell von Religion. Zurique: Theologischer Verlag, 2005; Dinâmica populacional e Igreja Católica no Brasil, Cadernos Ceris, ano II, n. 3, 2002; SOUZA, Luiz Alberto Gomez de & FERNANDES, Silvia Regina Alves (org.). Desafios do catolicismo na cidade. São Paulo: Paulus, 2002; NAISBITT, John & ABURDENE, Patricia. Megatrends 2000. São Paulo: Amana-Key, 1990, p. 317ss.

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2. SOMOS CHAMADOS PARA VOLTAR, A PARTIR DE NOVAS PERSPECTIVAS, ÀS FONTES QUE NOS FALAM DE DEUS Diante do anteriormente exposto, somos desafiados a voltar, de maneira crítica e sincera, às fontes originais que nos informam sobre Deus. Elas, muitas vezes, apresentam-no como um consolador. Mas, para um número cada vez maior de pessoas, esse consolo prometido parece tornar-se inacessível. Tal fato, hoje, não pode ser negado. Ele, ao contrário, torna-se desafio para aprofundar a questão. Será que Deus realmente não responde mais às necessidades das pessoas? Qual a razão de tantas pessoas não mais se sentirem tocadas por ele? Examinar essa indagação se torna cada vez mais urgente. Ao pesquisar o assunto, descobre-se primeiro que as fontes de muitas religiões, ou talvez da maioria delas, informam fundamentalmente que o seu Deus é todopoderoso, eterno e onisciente. As mesmas características de Deus aparecem também nas fontes judaico-cristãs, as quais com certeza correspondem à verdade. Constatamos, porém, que, no decorrer da história da religião cristã, essas características foram acentuadas e ampliadas cada vez mais, de tal maneira que, hoje, elas são, para muitos cristãos e cristãs, dominantes e as mais conhecidas de Deus. Todavia, o que não se destacou e que consequentemente hoje quase foi esquecido por muitos é o fato de que o próprio Deus parece ser muito pouco interessado em ser venerado predominantemente a partir das suas características de autoridade e de poder. De qualquer modo, durante séculos, essas características é que foram primordialmente destacadas pelas instituições que pretendiam defender os interesses de Deus na Terra. Assim, perdeu-se muito o sentido dos textos bíblicos que insistem para que Deus seja conhecido como poderoso, cujo motivo, em geral, é bem específico: a Bíblia quer conscientizar-nos de que Deus não compreende a sua onipotência como incentivo para ser venerado. Em vez disso, tal característica lhe abre a possibilidade irrestrita para poder ajudar aqueles que ama. A veracidade dessa afirmação se torna evidente a partir do momento em que começamos a entrar mais na mensagem central dos textos bíblicos. Encontramos neles de antemão características que distinguem desde o início o Deus da Bíblia da grande maioria das divindades de todas as outras religiões: Deus põe o poder dele primordialmente ao serviço da pessoa humana. Esse fato, por sua vez, abre caminho para enxergar o Deus bíblico por um ângulo bem diferente daquele de costume. É possível vê-lo com outros olhos. Tal mudança de perspectiva é necessária numa época na qual a crítica à Igreja se espalha em todo lugar, enquanto, ao mesmo tempo, cresce o anseio por conhecer Deus.

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A análise da história da Revelação mostra que Deus, no fundo, fica muito pouco interessado em ser venerado como Deus onipotente. O que lhe interessa é muito mais isso: Conscientizar-nos de que não considera o seu poder o motivo primordial para ser venerado. Em vez disso, mostra que a sua onipotência, para ele, em primeiro lugar, torna possível ajudar aqueles que ama. Estes somos nós.

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3. O DEUS DA BÍBLIA SE DISTINGUE DESDE O INÍCIO FUNDAMENTALMENTE DE TODAS AS OUTRAS DIVINDADES DAS RELIGIÕES DA MESOPOTÂMIA 3.1. UM DEUS QUE TEM PODER, EMBORA NÃO SE SITUE DO LADO DOS PODEROSOS Em toda a Mesopotâmia e em praticamente todas as outras grandes religiões do mundo, constatamos que uma das características primordiais da divindade suprema é a sua pretensão ao poder. Em geral, o deus supremo, como Poder Espiritual Supremo, está aliado ao poder político supremo.1 Nessa aliança, o poder político legitima os seus interesses mundanos, enquanto a divindade, por sua vez, garante e protege com a sua onipotência o poder dos dirigentes políticos. Assim, o sistema funcionou desde há muito no Império de Assur, até as monarquias absolutistas da história europeia. O poder político sustenta o religioso, e este, por sua vez, legitima e garante o político. Um sistema fechado em si mesmo, com a ajuda do qual podiam ser fixadas e justificadas todas as estruturas de dominação e era possível exigir obediência. No momento, porém, que voltamos às primeiras fontes da fé daquele Deus cuja imagem se formou no contexto judaico-cristão, constatamos que aqui esse sistema descrito não funciona. Não funciona porque o Deus apresentado nesses textos, que, mais tarde, será chamado de “Javé”, resiste desde o início a tal instrumentalização. É verdade que nem sempre tinha sucesso com essa sua atitude, como bem mostra a história. Mas a cronologia da sua Revelação começa, sem dúvida alguma, com uma experiência absolutamente nova: Esse Deus, apesar de ter poder absoluto, não se situa do lado do poder reinante. A história dos assim chamados Patriarcas (cf. Ex 12ss) apresenta um Deus que faz aliança com um pequeno grupo de seminômades, despojados de todo poder, sem influência alguma e desprovidos de qualquer peso na política de dominação dos grandes. Apesar de ter poder, o Deus verdadeiro não se aliou com os poderosos da sua época, mas com aquele grupo sem poder algum. Tal fato é absolutamente novo! Para os adeptos que fizeram referência a esse Deus, essa novidade e as suas consequências se tornaram a prova mais convincente de que o Deus venerado era o Deus verdadeiro, enquanto os deuses das outras religiões se mostraram falsos. Até nos textos bíblicos que hoje temos em mãos, e nos quais devemos reconhecer o resultado de uma história redacional de séculos, o elemento surpreendente desse fato ainda vem sendo expresso sempre com novas variações (cf. Gn. 12-50). 3.2. UM DEUS QUE NÃO SE FIXA POR DENTRO DE UM TEMPLO Além da característica mencionada, aparece ainda outra característica nos textos sobre as primeiras experiências com o Deus denominado “de Abraão”. Também nela, 12

esse Deus se distingue diametralmente dos outros deuses da época. Para se ter uma noção mais clara dessa diferença, é necessário lembrar as atitudes dos deuses da Mesopotâmia. Estes normalmente eram venerados num lugar determinado. Poderia ser numa montanha, numa árvore, numa nascente ou em algum outro lugar com características especiais. Em estágios evolutivos mais avançados da religião, o lugar especial se tornou Templo, cuja grandiosidade e beleza refletiam explicitamente o poder do deus que habitava nele. Além disso, o Templo também demonstrava o poder e a glória do sistema político que reconhecia o deus como o deus dele, enquanto este, em recompensa, por sua vez sustentava o sistema. Caso algum dos seguidores desse deus quisesse apresentar uma súplica ou um pedido, era óbvio que ele tinha que se deslocar para o lugar em que a divindade se encontrava. Esta, em geral, reinava muito longe dos problemas e das preocupações das pessoas humanas ordinárias. É assim que a absoluta maioria das religiões da Antiguidade apresentava as suas divindades supremas. Tal concepção, porém, foi superada pela nova maneira pela qual os textos bíblicos apresentam o Deus dos Patriarcas: Um Deus eterno e todo-poderoso, mas ao mesmo tempo “um Deus-conosco”, um Deus itinerante que se desloca para o lugar no qual os seus adeptos se encontram e cujo poder nunca esmaga o ser humano.

Assim apresentou-se desde as suas primeiras manifestações o Deus bíblico. E essa sua caraterística de um “Deus no caminho” permaneceu “espinha na carne” do sistema religioso de Israel a partir daquele momento, em que também na sua história se estabelece um processo progressivo de distanciamento da imagem transformadora do Deus de Abraão, rumo à institucionalização de um “Deus cúltico do Templo”. Pequeno exemplo da resistência contra tal tendência já se encontra na primeira ocasião na qual tal movimento se torna dominante: é diante do projeto de construir um Templo, assim como todos os outros povos o tinham. Apesar de esse projeto finalmente se impor, os textos bíblicos mantêm até hoje o vestígio de uma oposição, formulada em nome do próprio Deus: Vai dizer ao meu servo Davi: Assim fala o Senhor: “Porventura és tu que me construirás uma casa para eu morar? Pois eu nunca morei numa casa, desde que tirei do Egito filhos de Israel até hoje, mas tenho andado em tenda e abrigo. Por todos os lugares onde andei com os filhos de Israel porventura disse a algum dos juízes de Israel que encarreguei de apascentar o meu povo: Por que não me edificastes uma casa de cedro?”[...] (2Sm 7,5-7; 1Cr 17,4-6)

Independentemente do fato de esse Deus não querer um Templo, foi-lhe construído um ao preço de suor e sofrimento do povo (cf. 1Rs 5,17; 9,20-22). A problemática por trás daquilo que os textos bíblicos relatam não desapareceu até hoje. Também durante toda a história da religião cristã, encontramos, no coração de muitos cristãos e de muitas cristãs, os elementos do imaginário arcaico de um Deus onipotente e esmagador, de um Deus que deve ser acalmado por cerimônias e louvores e cuja honra exige gestos suntuosos e até dolorosos. E para muitos, até hoje, Deus fica fixado nos lugares específicos das Igrejas, separadas e claramente distintas do mundo chamado de “profano”. A imagem, porém, que se mostra de Deus nas tradições bíblicas mais antigas é 13

bem diferente. Recuperá-la para os dias de hoje é um dos desafios urgentes. 3.3. UM DEUS QUE NÃO EXIGE PRIMORDIALMENTE CERIMÔNIAS CÚLTICAS EM SEU LOUVOR Finalmente, detecta-se na imagem bíblica de Deus ainda a oposição a um terceiro elemento que pode ser encontrado em praticamente todas as outras religiões da Mesopotâmia: as divindades delas exigiam veneração por meio de um culto sacralizado, complexo e em geral até muito custoso. As despesas desses cultos tinham que ser assumidas pelos seguidores, através de sacrifícios, tributos e doações, cujo peso em muitos casos esmagava o povo. Independentemente disso, valia como regra geral a relação estabelecida ao poder do deus venerado, o qual se expressava de acordo com a pompa das cerimônias em seu louvor. Quanto mais suntuosas tais cerimônias fossem, tanto maior aparecia o poder da divindade. A partir dessa relação, podia-se estabelecer até uma reviravolta da relação entre a divindade e os seus adeptos: em vez de as cerimônias e os sacrifícios refletirem o poder e a influência do deus venerado, o prestígio dele diminuía ou crescia em função dos sacrifícios realizados pelos seus seguidores. Caso os seguidores não realizassem um culto conforme o deus pensou merecer, este, por sua vez, tinha a possibilidade de, através de mandamentos e ameaças, dar mais peso às suas exigências. E uma vez que o deus em geral não falava, havia em torno dele toda uma bem estruturada casta sacerdotal, que vigiava o cumprimento das exigências por ela mesma formuladas. Eram esses os elementos-chave estruturais de praticamente todas as religiões da Mesopotâmia, muito embora não só ali. Em tal contexto agora se forma, num grupo determinado e dentro de uma constelação histórico-social bem específica, a convicção de que o Deus verdadeiro não pode ser assim. Através de um longo processo de amadurecimento da cosmovisão religiosa, fixa-se como terceiro elemento novo a ideia de um Deus que não exige em primeiro lugar a realização de rituais e cerimônias cúlticas em seu louvor, em vez disso, incentiva o agir dentro da história.

A partir dessa nova perspectiva, abre-se a possibilidade de compreender o culto religioso como aquilo que ele é: uma necessidade humana, mas em nada uma exigência pesada por parte de Deus.2 Da novidade absoluta, escondida nessa descoberta, a maioria dos adeptos atuais daquele Deus tem muito pouca consciência. Recuperá-la é mais uma das precondições para que se possa redescobrir o fascínio daquilo que Deus na realidade é. Para responder a esse desafio, os textos bíblicos mencionam a figura de um homem, Abraão, e descrevem, em narrações variadas e em parte até fantasiosas, o devir de uma nova concepção em relação ao Deus verdadeiro. Ela pode ser resumida pelos três enfoques-chave a seguir: 14

• O Deus verdadeiro é poderoso, mas ele não se situa ao lado daqueles que têm poder. • O Deus verdadeiro não está fixado num lugar ou num Templo, mas é um Deus que acompanha os seus seguidores como “Deus-conosco”. • O Deus verdadeiro não está interessado primordialmente e em primeiro lugar em cerimônias e rituais cúlticos em seu louvor. Em vez disso, ele incentiva o agir dentro da história.

Tais características são novas. Elas não correspondem às concepções tradicionalmente formuladas, nem naquela época e, muitas vezes, nem hoje. Em consequência, questionam todo um determinado sistema político-religioso, no tempo bíblico assim como no decorrer de toda a história até nos dias atuais. É óbvio que os sistemas respectivos, por sua vez, fizeram de tudo para calar tal Deus incômodo que assim se manifestou. Caso decretos e proibições não alcançassem o seu objetivo, aplicavam outra tática e começavam a domesticar Deus dentro do sistema, construindo Templos maravilhosos em seu nome e instaurando um culto que nunca antes se viu. Assim, o povo ficava de boca aberta diante de tanta ostentação; contudo, no fundo foi alienado, e a sua fé se fixou cada vez mais nas dimensões efêmeras de uma religiosidade sacralizante e alienante. Teremos que refletir mais sobre esse fenômeno, muito agradável a certos interesses e que, no fundo, se encontra também na raiz daquilo que hoje chamamos de crise institucional das Igrejas cristãs. Para começar a superar essa crise, parece-nos essencial realizar, de maneira sistemática, aquilo que começamos neste capítulo: recuperar, para a consciência religiosa, aquelas características do Deus da nossa fé, que, em determinados casos, até desapareceram do universo da fé de muitos cristãos e cristãs de hoje. À medida que elas forem reintegradas no coração da vivência religiosa, cada vez mais pessoas redescobrirão a atualidade viva e fascinante do Deus verdadeiro e também das Igrejas, nas quais esse Deus verdadeiro é anunciado. 1 Como exemplo, cf.: GRONEBERG, Brigitte. Die Götter des Zweistromlandes (Os deuses da Mesopotâmia). Dusseldorf: Patmos, 2004. “Os mitos (babilônicos) mostram, na sua totalidade, que a celebração de um Deus supremo era um ato político-religioso, realizado pelas elites para as elites […] Todas as fontes mostram que foi formado um Panteon, que tinha […] plenitude de poder e que sustentava o rei.” Ibid., p. 253. “Já nas inscrições sumérias dos reis das cidades da segunda metade do 3º milênio, se fala dos deuses como daqueles que sustentam o rei […]” (op. cit., p. 241). 2 Sobre a crítica profética de um culto vazio, como exemplo, cf.: Is 1,11-17; Jr 7,1-12; Am 5,21-24. Também: BLANK, Renold J. Deus na história. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 180-195; BLANK, Renold J. O Deus que desafia seu próprio culto. Revista de Cultura Teológica, 39 , X, p. 39-53, abr.-jun. 2002.

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4. OS TEXTOS DA REVELAÇÃO APRESENTAM UM DEUS QUE, COM VIGOR, SE POSICIONA CONTRA TODA OPRESSÃO DE PESSOAS HUMANAS. COM ISSO, PORÉM, INCOMODA MUITO AQUELES QUE QUEREM DOMINAR

Nos textos bíblicos, encontramos narrações interessantíssimas sobre o assim chamado “êxodo” de um grupo de escravos no fim do século XIII a.C. Eles veneravam o “Deus de Abraão”, do qual falávamos no capítulo anterior. Nele, que mais tarde foi chamado de Javé, reconheciam o Deus verdadeiro, o Deus dos seus ancestrais, de Abraão, Isaac e Jacó. Nos textos que falam de Deus, vem à tona outra característica dele que predominantemente foi esquecida. E se não foi esquecida, pelo menos não mais é reconhecida nas suas consequências inimagináveis. A razão para tal esquecimento encontramos provavelmente também no fato de a maioria dos poderosos, no decorrer de todos os séculos da história, em nada ter incentivado os fiéis a acentuarem certas características do Deus bíblico – por razões óbvias, como já veremos. Aquele Deus, que em seu nome um grupo de escravos conseguiu escapar do Império de Ramsés II no Egito, se fez conhecer a eles como um Deus oposto a todo e qualquer tipo de escravidão. Em vez disso, convoca os escravizados a se libertarem, a quebrarem os mecanismos da opressão e, quando realizam isso, declara que está junto deles. Assim ele é apresentado nos textos. Obviamente, tal Deus não correspondia àquilo que o faraó daquela época desejava. Tampouco corresponde à imagem a partir da qual os defensores da escravidão em todos os séculos da Era Cristã o apresentaram. E até na atualidade, esse Deus não corresponde à concepção preferida por todos aqueles que, de uma ou outra maneira, oprimem outras pessoas ou as exploram. É claro que atualmente, para tal exploração, não se recorre mais a correntes e chicotes. No lugar deles, usam-se os mais sofisticados métodos de manipulação: as ideologias da maximização do lucro a todo preço e todo um sistema de mercado globalizado com a sua indústria de consumo. O resultado, porém, é sempre o mesmo: em nome de algum sistema profano ou religioso, as pessoas são instrumentalizadas, tuteladas e submetidas a servirem como instrumentos de algum poder ou algum esquema de enriquecimento. Diante de todos esses mecanismos, há uma única resposta religiosa: Deus é contra! Deus é contra todas as tentativas de desumanizar e instrumentalizar a pessoa humana.

Para que esse fato não fosse percebido pelos instrumentalizados, tentou-se em todos os séculos escondê-lo deles. Era muito mais fácil falar da onipotência de Deus e calar-se explicitamente diante de uma outra indagação: Contra que tipo de situação e 16

contra que atitudes ou estruturas esse Deus onipotente quer empregar a sua onipotência? A resposta a essa pergunta incomodava, no entanto, a onipotência de Deus em si não irritou nenhum daqueles que dominavam, muito pelo contrário. Recorrendo a ela, permitia-se justificar maravilhosamente o próprio poder. A ideologia dos assim denominados “governantes por delegação divina” dos séculos XVIII e XIX se apresenta como exemplo típico de tal instrumentalização de características de Deus por interesses próprios. Mas, observando a história, descobrimos que já muito antes se podia observar o fenômeno da acentuação unilateral de certas características de Deus em detrimento de outras. Quando, no século IV d.C., o cristianismo começa a ser integrado progressivamente na estrutura do Império Bizantino-Romano, desaparece dentro de poucas décadas o ícone do Bom Pastor. Era com essa imagem que a Igreja primitiva tinha primordialmente venerado o Deus encarnado em Jesus Cristo. É por meio desse ícone agraciante e profundamente bíblico que se tinha concentrado todo o imaginário consolador de um Deus humilde, que sustenta o fraco, que recupera o decaído e que carrega nos seus próprios ombros aquele que perdeu a força. Essa imagem de Deus, porém, não correspondia às expectativas de um império mundial, cuja política se baseava no poder, na ampliação de esferas de influência e na conquista de cada vez mais autoridade. Consequentemente, mudou-se a imagem! Assim, conhecemos desde aquela época o Deus encarnado, em escala cada vez maior a partir de outro imaginário: o Pantocrátor, o Imperador do Cosmo, o Senhor do Universo, o Rei Supremo e o Cristo-Rei.1 Richard A. Horsley, em sua análise magistral sobre o cristianismo no novo contexto imperial, descreve as consequências dessa mudança de perspectiva em palavras muito claras: Cristo se tornou não o Senhor e Salvador anti-imperialista, mas o Rei Imperial que autorizava o imperador e a ordem imperial [...] Cristo serviu principalmente para autorizar o império e a ordem imperial.2

A teologia do Cristo-Rei contribui até hoje para que essa imagem se fixe. E mesmo quando nessa teologia se repete a informação de o reinado de Cristo não ser o mesmo que aquele dos reis do mundo, o imaginário arquetípico do rei não muda. Inconscientemente permanece ligado às noções de poder e de dominação, e tal fato já foi demonstrado pela psicologia analítica de Carl Gustav Jung. É verdade que, a partir da perspectiva teológica, não há objeção nenhuma contra o imaginário de Jesus Cristo como Imperador do cosmo. Sendo ele o Deus encarnado, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, não há a mínima dúvida de que ele possui também todos os atributos contidos no título de Pantocrátor. O problema não é a questão sobre se Jesus Cristo pode ser apresentado assim, como a imagem do Senhor do Universo o sugere – ele pode! Todavia, há outra indagação muito séria que se põe diante de todo o imaginário 17

aqui em discussão: Caso Deus tivesse interesse em ser conhecido e venerado em primeiro lugar como Imperador onipotente do cosmo, podemos supor que, em Jesus Cristo, ele teria se revelado primordialmente com esses atributos. Será que Deus se interessa realmente em ser conhecido e venerado primordialmente como Pantocrátor?

A resposta a essa indagação é claramente “Não”! Caso ele tivesse interesse em ser conhecido em primeiro lugar assim, nesse caso, ele, na sua mais clara Revelação em Jesus Cristo, não teria se manifestado dessa maneira? Exatamente isso, porém, ele não fez! Caso Deus tivesse interesse em ser conhecido e venerado em primeiro lugar como Imperador onipotente do cosmo, podemos supor que, em Jesus Cristo, ele teria se revelado primordialmente com esses atributos.

Fato é que a mais clara e mais plena Revelação que Deus dá de si mesmo acentua características totalmente diferentes daquelas do domínio e do poder. Se Deus, porém, se mostra assim, então por que seus seguidores não veem com seriedade tal fato? Constatamos que grande parte dos cristãos e das cristãs nunca se confrontou com esse questionamento. Diante dos fatos históricos da Revelação, é exatamente esta conscientização que precisa ser feita: A partir de quais dos seus infinitos atributos Deus quer ser conhecido?

Há muitas pessoas atualmente que se afastam de Deus ou o rejeitam. O que na verdade rejeitam “não é o Deus verdadeiro”. Elas conhecem aspectos parciais dele, e em muitos casos até são características, pelos quais nem o próprio Deus parece estar muito interessado. As pessoas rejeitam esses aspectos parciais, e, por não conhecerem outras características, dizem que rejeitam Deus. Na realidade, rejeitam um Deus falso, uma imagem deturpada de Deus, que em muito não corresponde àquilo que ele é. Eles nem o sabem, porque de outra imagem nunca ouviram falar. O grande desafio diante dessa situação é este: redescobrir o Deus verdadeiro, reencontrar aquele Deus que se revelou em Jesus Cristo. Quanto mais se descobrem as características dele, tanto mais fascinante Deus se torna. As características visíveis em Jesus obviamente são importantes para o próprio Deus. Por causa disso, ele as assume quando em Jesus Cristo se revela em carne humana. Por causa disso, revela-as a nós, independentemente de corresponderem ou não aos interesses dos poderosos de qualquer época. 18

Algumas dessas muitas características reveladas em Jesus Cristo se mostram desde o início como dominantes. E elas permanecem essenciais do início até o fim da história humana. Mas a maioria das pessoas nem mais as conhece. Nem nas aulas de catequese elas foram informadas sobre tais características. Independentemente disso, é impossível de serem desmentidas, pois a verdade sobre Deus se encontra sempre em novas versões nos textos que chamamos de Revelação Divina. Caso sua mensagem tivesse sido entendida com seriedade, a história do mundo seria outra! As reflexões a seguir convidam-no a conscientizar-se de novo dessas características tão pouco presentes na consciência de muitas pessoas. 1 Cf. BARBAGOLLO, Salvatore. Iconografia liturgica del Pantokrator. Roma, 1996, p. 99ss. 2 HORSLEY, Richard A. Jesus e o império. São Paulo: Paulus, 2004, p. 139.

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5. DEUS QUER QUE O SER HUMANO TENHA UMA VIDA AMPLA, PLENA E REPLETA DE FELICIDADE

Todos aqueles que conhecem os textos lembrarão as sentenças programáticas de Jesus em Jo 10,10: Eu vim para que vocês tenham a vida e a tenham em abundância!

A frase é conhecida. Ela deve ser compreendida como uma das ideias programáticas de Jesus, transmitidas pelo Evangelista João. Uma história milenar de espiritualização permitiu que esse programa radical perdesse a sua virulência e fosse cada vez mais compreendido numa dimensão desligada da vida concreta. A vida mencionada no texto foi interpretada como “vida espiritual” e, como tal, até transferida para um estado após a morte. Assim, perdeu todo o relacionamento com a vida concreta, cotidiana e banal do ser humano. Em vez disso, tornou-se pura projeção de um além abstrato e muito distante das situações concretas. O mundo aquém podia permanecer aquele “vale de lágrimas”, campo de ação para todos aqueles que, em nome de seu próprio bem-estar pessoal, ensinaram que esta vida terrena não teria valor. Em consequência disso, elogiaram o mérito do sofrimento, transformando a vida de muitos em experiência de progressiva humilhação. Para encontrar exemplos de tais situações, basta lançar um olhar na situação dos trabalhadores no início da Era Industrial – de escravidão e trabalhos forçados, presentes nos séculos anteriores, sem falar da vida das massas miseráveis de hoje, jogadas nas favelas das grandes metrópoles do terceiro mundo. Todas essas vidas não têm nada a ver com uma vida em plenitude. Deus, porém, declarou em Jesus Cristo que é exatamente isso que ele quer para todas as pessoas. Até hoje, os homens não o deixaram realizar o seu projeto. Independentemente disso, ele o apresenta desde o início da história da Revelação. No seu chamado, porém, não convoca as pessoas para fazerem exercícios espirituais. Em vez disso, incentiva-as a transformar todas as situações concretas, nas quais o espaço de vida foi coagido e restrito. De escravidão e opressão nem quer saber e, por causa disso, declara em alta voz que é um Deus que liberta os escravos e derruba os poderosos (cf. a história do Êxodo e também o Magnificat em Lc 1,47-53). O que, no século XIII a.C., começou com a fuga de um grupo de escravos em nome de seu Deus permanece a linha norteadora do agir de Deus em todas as épocas, e até hoje. Contudo, em todas essas épocas, também vieram à tona as mil maneiras pelas quais os poderosos sempre conseguiram deturpar tal vontade declarada por Deus. A sua voz incômoda foi suavizada e o seu chamado alterado, às vezes até de modo 20

contrário. Assim, perdeu-se o seu apelo transformador, quando podia ser entendido conforme a vontade daqueles que muitas vezes até se tinham declarado defensores da glória e da honra de Deus. Como exemplo típico desse processo, pode ser mencionado o texto que hoje conhecemos com o nome de Os Dez Mandamentos. Todo fiel indagado sobre o tema nos vai explicar esses mandamentos a partir de um enfoque moral e individual. Leis que devem ser observadas e que regulamentam a atitude moral do indivíduo. Assim os mandamentos são compreendidos até hoje pela maioria das pessoas. No entanto, na sua época, essa não era a intenção primordial do texto. Caso coloquemos o código em questão no contexto sociocultural da sua origem, descobrimos, nos dez mandamentos, um significado que ultrapassa em muito a esfera puramente individual. Descobrimos nos textos de Ex 20 um código para a construção e a manutenção de uma sociedade. Uma vez que fossem seguidos os postulados em questão, todo membro dessa sociedade de fato poderia viver uma vida plena e feliz, sem medo e sem ser ameaçado na sua integridade pessoal. Observando os fatos, porém, constatamos novamente que, no decorrer da história, o sentido original daqueles mandamentos de Deus se perdeu e se perde cada vez mais. O seu enfoque primordialmente social foi enfraquecido. A sua forte conotação em direção a uma organização social que garantisse justiça para todos foi esquecida e substituída por um legalismo individualista cada vez maior. Com isso, produziu-se em certos casos uma verdadeira inversão do sentido original do texto. Assim, deturpou-se também a imagem daquele Deus, que foi considerado o autor daqueles mandamentos. A sua intenção original de garantir aos seres humanos as amplas e plenas dimensões da vida se perdeu. Ela foi sufocada por interpretações legalistas e casuístas. E o próprio Deus, na visão de seus intérpretes, se tornou cada vez mais um policial implacável da observância das Leis, um Deus punidor que ameaçou com duras sanções todos aqueles que não seguiram suas Leis. Encontramos um exemplo muito eloquente para essa deturpação da intenção original de Deus na interpretação do assim chamado mandamento do sábado. Na sua forma sintética e mais conhecida, diz: “Lembra-te de santificar o dia do sábado” (Ex 20,8). Para os cristãos, essa fórmula se tornou a exigência de “santificar o domingo”. E todos eles, judeus e cristãos, compreenderam o texto como exigência, cujo elemento central era o dever de assistir às cerimônias prescritas e ordenadas no dia do Senhor. Um dever que, em muitos casos, se tornou fardo até pesado. Para os católicos, o “dever” de santificar o domingo tinha que ser cumprido sob ameaça de severas punições por parte de Deus. Falou-se de pecado mortal e até de Inferno. E o mesmo valia na época de Jesus, diante da observância de dezenas de regras e Leis, cuja observância exigia a santificação do sábado. Assim falavam os representantes do Templo. Um dever, um fardo, uma obrigação formulada pelo próprio Deus, e para muitos uma coerção que causava medo. Assim se apresentava esse mandamento para milhões de pessoas. 21

Caso voltemos ao sentido original daquele mandamento, não descobrimos nada disso, e muito menos um Deus que restringe as pessoas humanas com exigências de cerimônias cúlticas em seu louvor. O contrário é verdade! No mandamento para a santificação do sétimo dia da semana, encontramos de novo aquele Deus que se preocupa com as pessoas e o seu bem-estar. O mandamento, em nome de Deus, foi formulado numa época em que ninguém se preocupava se o trabalhador – fosse ele livre ou escravo – tinha algum dia de folga para se recuperar. Quem trabalhava, e, sobretudo, quem trabalhava no serviço de um outro, tinha que o fazer dia após dia, semana após semana, sem folga nenhuma, até finalmente morrer esgotado, exausto, desgastado. Como resposta a essa situação, e em oposição a ela, o Deus de quem aqui falamos formula uma Lei, na qual podemos ver uma das primeiras leis trabalhistas da história. Numa época em que ninguém se preocupava com o direito a descanso e folga da população trabalhadora, esse Deus formulou uma Lei que deu a ela tal direito. Contra os interesses econômicos de todos aqueles que usaram a força de trabalho para criar a sua própria riqueza, Deus em pessoa cuida do direito à folga daquela força de trabalho. Numa época em que ninguém se preocupava com o direito a descanso e folga da população trabalhadora, Deus formulou uma lei que deu a ela tal direito.

Com isso, o sábado se tornou um dia de alegria, uma festa no sentido verdadeiro da palavra. Deus pessoalmente cuidou do direito de cada um, de ter, depois de seis dias de trabalho, um dia livre. E esse direito valia para todos, para o filho, para o escravo e até para o jumento. A decretação dessa Lei foi um direito e uma ampliação feliz do espaço de vida para todos os trabalhadores. Que, no decorrer da história, esse direito libertador se tornou dever e fardo é mais um exemplo para a deturpação da imagem de Deus. Descobrir essas falsificações e revertê-las possibilita redescobrir o Deus verdadeiro na sua forma autêntica. É o modo pelo qual ele se mostra a nós, como um Deus que cuida do bem-estar dos seres humanos, da sua felicidade e da ampliação de tudo aquilo que chamamos de vida humana. Assim é Deus! E por esse Deus, de fato, é possível entusiasmar-se.

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6. SE DEUS DEFENDE OS FRACOS, ENTÃO TODOS OS SEUS SEGUIDORES DEVERIAM FAZER O MESMO

Se Deus se apresenta na história como aquele que assume a defesa dos oprimidos, dos fracos e de todos os prejudicados, como alguém que se refere a ele poderia agir de outra maneira? E como seria possível falar de uma sociedade cristã ou de uma Igreja cristã se nessas instituições a defesa e a recuperação dos pobres, dos humildes e dos excluídos não fossem a primeira prioridade? Caso não se falsifique Deus, mas o aceite realmente como ele é, isso traz consequências que em muito ultrapassam a piedade individual. Também esse fato foi muitas vezes esquecido no decorrer da história do cristianismo. Ele foi esquecido porque uma sofisticada ideologia dos poderosos fez de tudo para tanto. Não obstante todas essas manobras, Deus continua acentuando exatamente aquilo que tentaram fazer esquecer. Isso se torna cada vez mais óbvio no decorrer do que chamamos a história da “Autorrevelação de Deus”. Uma sociedade que se refere ao Deus JAVÉ não pode ter estruturas ou mecanismos que fazem com que as pessoas sejam rebaixadas, oprimidas, marginalizadas ou excluídas. Uma sociedade que se refere ao Deus JAVÉ não pode ter estruturas ou mecanismos que fazem com que as pessoas sejam rebaixadas, oprimidas, marginalizadas ou excluídas.

Todos os mecanismos e todas as estruturas que produzem tais efeitos não correspondem à vontade de Deus. Isso vale não só para os escravos egípcios do século XIII a.C., como também para aqueles milhões de pessoas que pereceram nos navios, nas plantações e nas minas dos impérios coloniais cristãos. E a vontade de Deus permanece a mesma, até nos dias de hoje, em relação aos oprimidos de qualquer sistema político, assim como em relação às massas esquecidas e excluídas em nome de um mercado cujo lema principal é a maximização do lucro. Deus se situa do lado deles, e não do lado daqueles que oprimem, não obstante o número de igrejas douradas que construíram em sua honra. Embora numa religião se mantenha tal consciência, os seus integrantes não se podem calar diante de todas as formas de injustiça e humilhação, às quais os seres humanos estão submetidos. E quando a questão é a reta ordem social, deveria ficar evidente para qualquer seguidor de Deus que tal ordem só pode ser criada com base no respeito e na igualdade de todos. Tal fato se torna evidente quando analisamos a evolução da história do grupo de escravos que fugiu do Egito em nome de Javé. Depois de ter escapado, construíram um sistema social sem par, baseado na solidariedade e na igualdade de todos. Tiraram a motivação para esse 23

empreendimento das experiências da sua fuga e da imagem de Deus ali formada. Nela ficou evidente que a última força motriz por trás de todos os acontecimentos tinha sido aquele Deus que detesta toda forma de opressão. Na fé dos seus adeptos, ele já tinha dado provas de ser um Deus que não dava muita importância àquilo que era central nas outras religiões: cerimônias cúlticas, Templos, louvores e todo o aparato suntuoso com o qual geralmente foram venerados os deuses da época (cf. 2Sm 7,5-7; Is 1,10-17). Nas experiências bem-sucedidas da fuga da escravidão, os adeptos desse Deus tão diferente descobriram uma outra característica fundamental dele: ele é um Deus que ama a liberdade, a sua própria e também a dos humanos. Por essa razão, ele mesmo se engaja num processo histórico que deveria realizar tal liberdade: liberdade de todo tipo de opressão, liberdade da escravidão e liberdade de exploração. O Deus que se manifesta nos textos bíblicos protesta contra todos os sistemas que degradam a pessoa humana e que fazem dela um instrumento para o aumento da riqueza ou do poder de outros. Deus é contra a coisificação dos seres humanos como mercadoria e força de trabalho. E quando tal dependência é justificada em nome de algum parágrafo ou Lei religiosa, Deus não os sustenta, mesmo se fossem formulados em seu nome. Era esse o elemento-chave a partir do qual aquele grupo de escravos, do qual a Bíblia fala, conhecia o seu Deus. Eles confiavam na força libertadora de seu Deus e assim se tornaram capazes de quebrar as suas cangas. Uma vez tendo passado por tais experiências, era impensável que eles mesmos pudessem estabelecer um sistema social hierárquico, porque toda hierarquia contém o perigo de tornar-se opressora. Assim, construiu-se, em Israel, aquela forma de convivência igualitária, em que descobrimos, bem antes da pólis grega, os primeiros elementos de uma estrutura social democrática. Ela não durou muito, é verdade. Pressionados por interesses político-sociais, logo se estabelece, em Israel, um sistema hierárquico em torno de um rei, embora sob o protesto de um Deus que não queria hierarquias, isso é verdade; mas os interesses das elites sociais eram mais fortes.1 Nem o protesto de Deus conseguiu fazê-las mudar de opinião. Um pequeno reflexo daquele protesto, aliás, encontramos ainda hoje nos textos bíblicos (cf. 1Sm 8,6-8; 11-19). As intenções de Deus estavam sendo deturpadas pela classe dominante. O que começou no episódio mencionado culmina, na história de Israel, com Salomão e a construção do primeiro Templo (cf. 1Rs 5,15-7,51). Sobre a veracidade histórica daquilo que os textos bíblicos relatam do episódio, deixemos brigar os historiadores. Como advertência, porém, e como evocação à reavaliação do próprio agir, os textos têm caráter paradigmático até hoje. Na época de Salomão, toda uma ideologia do poder faz de tudo para desviar a atenção das fulminantes violações da vontade original daquele Deus, que, no Êxodo, tinha-se revelado como um Deus oposto a toda e qualquer forma de escravidão e de opressão. Agora, porém, se constrói para ele um Templo usando os mesmos mecanismos de escravidão que tinham motivado o agir de Deus contra o faraó (Ex 14; 2Cr 8,5-6; 1Rs 7,1-12; 9,15).2

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O que os textos mencionados relatam têm caráter atemporal. O mesmo pode acontecer e acontece através de todos os séculos da história. E o fato de tais experiências serem feitas até hoje é que leva muitas pessoas a perder a confiança naqueles que falam de Deus. As palavras deles não convencem diante da realidade vivida!3 Apresentar a todas essas pessoas o Deus verdadeiro significa mostrar, também, que a imagem dele pode ser deturpada, manipulada e falsificada, e que tais deturpações também podem ser disfarçadas por argumentos religiosos. Isso vale da época de Salomão até os dias de hoje. Quem se conscientizou, de maneira mais clara, desses mecanismos, desmascarando-os de maneira explícita, é aquele em quem fundamentamos toda a convicção cristã: Jesus Cristo. Redescobri-lo de forma não deturpada já se torna uma grande exigência para todos aqueles que também no século XXI querem ser cristãos e cristãs. Ser cristão não como sonhador espiritual, mas, sim, como pessoa que, por causa de sua fé, quer agir neste mundo. A partir disso, a pessoa se torna capaz de transformar a sociedade. Movida por um coração ardente pelo amor em Jesus Cristo, ela vai engajar-se na formação de um mundo conforme Deus o imagina. Em tal mundo, a convivência humana se baseia na justiça, na fraternidade e na solidariedade. O que, porém, convencerá as pessoas a viver conforme tais critérios não são teorias abstratas ou prescrições doutrinais. É muito mais o contato vivo com um Deus que, desde o início da sua Revelação, se manifesta como defensor de todos aqueles que não mais encontram quem os defenda. Com essa afirmação, tocamos numa outra daquelas características de Deus que se tornaram ausentes da consciência religiosa da maioria dos cristãos e das cristãs de hoje. Redescobri-la pode se tornar uma viagem fascinante num mundo religioso totalmente novo. 1 Cf. 2Sm 7,5-7. 2 Cf. BLANK, Renold J., op. cit., p. 185-187. 3 Cf. VELASCO, Juan Martin. Hacia una fenomenología de la experiencia de Dios. Sinite, Revista de Pedagigia Religiosa, Madri, vol. L, n. 151, p. 213249, maio-ago. 2009.

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7. DEUS, DESDE O INÍCIO, SE FAZ CONHECER COMO “GO’EL”, ISTO É, COMO DEFENSOR DAQUELES QUE NÃO TÊM MAIS NENHUM DEFENSOR

A história daquele Deus no qual reconhecemos o único e verdadeiro apresenta, desde o seu primeiro aparecimento, um outro elemento que o distingue fundamentalmente de todos os outros deuses supremos daquela época. Ele se manifesta como “go’el”, como defensor daqueles que não têm mais ninguém que os defenda. Para compreender essa noção tão esquecida na história da religião cristã, devemos voltar ao elemento-chave com o qual a história do agir de Deus no mundo se faz conhecer: Ele estabeleceu com os homens uma aliança.

Essa aliança, no decorrer da história bíblica, foi sempre renovada e reconfirmada. Um exemplo muito interessante dela encontramos no texto de Gn 15,6-11.17-18. Nele se descreve a aliança entre Deus e Abraão através de um arcaico ritual conhecido no Oriente Médio. Animais são cortados ao meio e ambas as metades são dispostas uma diante da outra. Os parceiros da aliança, em seguida, passam entre as metades dos animais, e assim, através de um ritual muito expressivo, os dois comprometem-se mutuamente. Uma aliança assim celebrada não mais pode ser dissolvida ou cancelada. Ela compromete os parceiros para sempre, no sentido de um parentesco de sangue. Cada um assume deveres e direitos. O texto mencionado acentua, de maneira muito expressiva, o aspecto do mútuo comprometimento, descrevendo no versículo 17 que também Deus passa entre as partes. Com isso, também ele assume os seus direitos e deveres. Ele se torna, por assim dizer, parente de sangue dos homens. Um dos compromissos desse parente de sangue, porém, é o dever de agir como “go’el”, isto é, de assumir a defesa do parente indefeso, caso este não tenha a possibilidade de se defender. Deus assim assume o dever de defender o seu povo, ele se compromete para ser o “go’el” dele. E o povo, por sua vez, tem o direito de dirigirse a Deus como a um “go’el”, um parente de sangue, para que este o defenda. São 32 vezes em que Deus, no Antigo Testamento, é chamado assim1 (cf. sobretudo Is 4055). A aliança que faz de Deus um parente de sangue do povo é celebrada outra vez no grande evento do Sinai. Dessa vez, os textos do Deuteronômio, nos quais a aliança é relatada, recorrem à “forma dos contratos formulados entre o império neoassírico e os seus vassalos”2 para expressar como elemento central dessa aliança que Israel é 26

vassalo de Deus e que também Deus é o aliado de Israel, e os dois assumiram os seus deveres e os seus direitos. Em Jesus Cristo, finalmente, essa aliança chega ao seu cume. Nele, o “como se fosse” do parentesco de sangue se torna realidade concreta e verdadeira, porque, em Jesus, o Deus que se comprometeu na aliança agora também se tornou homem. O pacto, selado tantas vezes no decorrer da história do Antigo Testamento, é reconfirmado, revalidado e ampliado para toda a humanidade. Deus, agora, de fato é parente de sangue dos homens e permanece para toda a eternidade. Com isso, permanece também para toda a história o defensor deles, o seu “go’el”. É ele que assume a defesa das pessoas humanas, assim como Paulo o formula em Rm 8,31: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”. É essa a grande maravilhosa verdade, contida no fato de que Deus, em Jesus, assumiu e reconfirmou o compromisso de ser o “go’el” dos seres humanos. A partir desse fato, torna-se evidente que o interesse de Deus se dirige de maneira preferencial a todos os excluídos, sejam eles pobres, sejam injustiçados, sejam pecadores. É o próprio Deus que assume a defesa deles, contra todos aqueles que os rejeitam, marginalizam ou, em nome de alguma ideologia, declaram excluídos e fora do grupo dos socialmente aceitos. Deus em pessoa defende aqueles que não mais gozam de prestígio algum aos olhos do mundo, ou talvez até da religião sancionada. Como “go’el”, ele assume a defesa de todos aqueles que se encontram subjugados, que são considerados “a ralé” e que por causa disso não têm mais esperança nenhuma. Em Jesus, o próprio Deus demonstra que assumiu a perspectiva deles e, em Jesus, até vive ele mesmo aquela perspectiva. Deus é experimentado pelos marginalizados, pelos excluídos, pelos fracassados como seu último recurso, o seu defensor, o seu apoio. As experiências históricas do povo de Deus confirmam sempre, em novas situações, essa grande verdade, tão enraizada em toda a história da Revelação e que os cristãos conseguiram esquecer na sua quase totalidade, pois nem no Credo da religião cristã entrou.3 Deus se posiciona do lado dos excluídos provavelmente pela grande irritação de todos aqueles que prefeririam um Deus sentado num trono dourado, modelo para todos os poderosos e seu melhor aliado. Mas exatamente isso ele não é nem quer ser. Que não deseja ser assim, aliás, ele mesmo demonstrou de maneira absolutamente clara naquele evento que as Igrejas cristãs dizem que é a mais clara Revelação que Deus deu de si mesmo: Jesus Cristo. Num contexto religioso, marcado por uma acentuada dicotomia entre aqueles que foram considerados justos, e outros, pecadores, Jesus age de maneira bem determinada, escandalosa para os representantes do sistema religioso da época. Ele se situa do lado daqueles que esse sistema rejeitou porque os considerou pecadores. Como pecadores, porém, foram declarados mortos aos olhos de Deus e, além disso, obstáculos à vinda do tão esperado Reino de Deus. Por causa disso, o sistema religioso os designou excluídos e malditos pelo próprio Deus.4 Uma vez excluídos pela religião e sendo essa exclusão justificada em nome do próprio Deus, não havia de fato quem defendesse os assim chamados pecadores, nem o sistema religioso nem 27

o sistema político-social, pois ambos eram totalmente interligados. Além disso, os assim estigmatizados foram considerados impuros, massa supérflua, párias que só atrapalhavam. Conforme as pesquisas sociológicas, na época de Jesus, fizeram parte desse estrato em torno de 60% da população:5 os pobres, os mendigos, os leprosos, os doentes, as muitas prostitutas, que, em geral, se prostituíam por causa da sua necessidade financeira, e por último a grande massa dos camponeses. Além desses, também os endividados e aqueles que não conseguiam pagar os impostos exigidos pelo Templo em nome de Deus e que podiam somar até 70% da renda anual. E finalmente eram considerados excluídos genericamente todos aqueles que, de uma ou de outra maneira, não mais seguiam as exigências do sistema religioso-social da época. De todos eles, esse sistema declara que teriam desagradado a Deus. Com isso, eram considerados sem valor, ralé impura e morta aos olhos de Deus.6 Sendo assim, não havia mais ninguém que os defendesse. É diante desse cenário que devemos compreender o agir de Jesus Cristo, que de antemão não se situava do lado daqueles que a religião considerava justos e puros, mas do lado dos outros, dos excluídos, pecadores e impuros.7 Numa situação em que ninguém assume a defesa daqueles excluídos, o próprio Deus se manifesta como o defensor deles. Convivendo com os pobres e com todos aqueles que o sistema tinha rejeitado, o próprio Deus mostra, em Jesus Cristo, que esse sistema não tem razão, que os pobres e pecadores não são excluídos da graça dele e não estão mortos aos seus olhos, mas são dignos de atenção e de amor muito especial.8 Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que são doentes. (Lc 5,31) Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus! (Lc 6,20)

Assim, Deus age em Jesus Cristo de novo como “go’el”, como defensor daqueles que não têm mais quem os defenda. Com isso, retoma uma das grandes revelações que já marcaram o seu agir durante toda a história do Antigo Testamento. Agindo assim, “põe-se em contradição total com todo o sistema religioso da sua época. Oposição que, em última análise, produz a situação paradoxal e absurda de que o Deus encarnado está sendo combatido, rejeitado e finalmente assassinado pela própria instituição religiosa”.9 Para compreender melhor esse paradoxo e o escândalo que o agir de Jesus produziu aos olhos dos representantes do sistema, tentaremos, a seguir, descrever de maneira mais detalhada o contexto religioso no qual o Deus encarnado em Jesus Cristo se manifestou.

1 Cf. também: ARDUINI, Juvenal. Horizonte da esperança. São Paulo: Paulus, 1986, p. 57-95. 2 BLANK, Renold J., op. cit., p. 99-100. 3 Ibid., p. 140. 4 Cf. Jo 7,49: “Este povo que não conhece a lei são uns malditos!”. 5 Cf. CLÉVENOT, Michel. Enfoques materialistas da Bíblia. São Paulo: Paz e Terra, 1979; MORIN, Emile. Jesus e as estruturas de seu tempo. São Paulo: Paulus, 1981; HOORNAERT, Eduardo. O movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1994; KIPPENBERG, Hans G. Religião e formação de classes

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na antiga Judeia. São Paulo: Paulus, 1988. 6 Cf. PALLARES, José C. Um pobre chamado Jesus. São Paulo: Paulus, 1988, p. 42. 7 Agir e palavra de Jesus retomam aquilo que em termos de exemplo já encontramos em: Jr 5,27; Ez 22,6.12.27.29; Am 2,6-7; 5,11-12; 6,12; Mq 2,2; 3,3; 7,2. 8 Como exemplo, cf.: Mt 9,10-11; 11,19; Mc 2,16; Lc 5,30; 15,1. 9 BLANK, Renold J., op. cit., 2005, p. 161.

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8. O CONTEXTO RELIGIOSO EM QUE JESUS SE MOVE 8.1. LEI, PUREZA E SACRIFÍCIOS QUE SE TORNARAM OPRESSIVOS PARA O POVO Jesus vive numa época marcada por uma compreensão totalmente retributiva do relacionamento entre Deus e os seres humanos. Na sua forma concreta, isso significa que riqueza, longa vida e sucesso são compreendidos como a recompensa de Deus para uma vida conduzida em consonância com as Leis da instituição religiosa. Pobreza, doença e desgraças, de outro lado, são interpretadas como punição divina para aqueles que transgrediam essas Leis (cf. Dt 30,15-16). Como representante e guardião de todo esse sistema se apresenta o Templo. Ele, “juntamente com seu sumo sacerdócio, constituía o coração político-econômico e também religioso da sociedade judaica em geral e era uma instituição essencial na ordem imperial [...]”.1 Para compreender o significado das atitudes de Jesus, é indispensável ter pelo menos uma noção geral do sistema religioso em que ele vivia. Esse sistema era marcado por uma concepção explicitamente legalista. No seu centro, encontramos os três pilares-chave: a Lei, a ideologia da pureza e o culto. Dos dois grupos mais influentes da época, saduceus e fariseus, sabemos que “os saduceus não podiam imaginar uma religião de Israel fora do Templo de Jerusalém, fora do culto sacrifical e sem sacerdócio”.2 Além disso, “os fariseus, por sua vez, se tornaram os grandes defensores da observância escrupulosa da Lei e da autoridade religiosa”.3 Todavia, nunca se pode esquecer de que, entre eles “e entre seus sucessores rabínicos, havia significativas diferenças de interpretação”.4 Tais diferenças, aliás, encontramos também hoje na descrição e na caracterização que se dá dos grupos mencionados. Halvor Moxnes escreve que “os fariseus [...] afirmavam ter a interpretação abalisada da Torá, e portanto o controle sobre a salvação”.5 Além disso, declara que a descrição dos saduceus e dos fariseus, assim como a encontramos no evangelista Lucas, difere muito da maneira pela qual eles são vistos pelos pesquisadores de hoje. Isenberg, por sua vez, declara que “os fariseus eram uma força democrática, tentando acabar com o sistema de acesso ao poder com base no nascimento e na riqueza”.6 O evangelista Lucas, por outro lado, “não mostra os fariseus usando sua influência baseada na interpretação da Torá contra o poder baseado na riqueza e no nascimento. Pelo contrário, ele os acusa de se aliarem ao poder da riqueza e do privilégio”.7 Sem entrar no mérito dessas interpretações variadas, pode-se encontrar uma base comum para as duas facções em questão e a sua instituição religiosa comum: é o assim chamado “códex de uma vida conforme a vontade de Deus” (cf. Lv 17-26, 30

assim como: Dt 14,3-21; Ex 23,19; 34,22). Nele, acentua-se que somente o seguimento escrupuloso do código garante uma vida que agrada a Deus. Quem observa as Leis é justo; quem não as observa é pecador. Conforme a interpretação de muitos representantes do sistema religioso da época, porém, Deus não se interessa mais pelos pecadores. A partir desses pressupostos, o códex se torna instrumento de exclusão e de marginalização. Lance Flitter formula tal fato com a prudência do judeu crente, com as seguintes palavras: “o judaísmo está repleto desse gênero de Leis [...] Essas Leis tendem a ter um impacto divisor [...] no meio dos próprios judeus [...]. Além das Leis da pureza ritual, há Leis que estabelecem o que é essencialmente um sistema de classes [...]”.8 O efeito excludente aqui mencionado é reforçado ainda pela ideologia das Leis cúlticas da pureza (Lv 11-16). Ela faz clara distinção entre pessoas puras e pessoas impuras. Os “impuros” são considerados “pecadores” e, como tais, estão duplamente excluídos da graça de Deus. Este, conforme dizem representantes da teologia oficial, não se interessa mais por eles.9 Além de pecadores e impuros, estão excluídos da vida social, porque quem toca num impuro, por sua vez, se torna impuro. Impuros são os doentes, os pobres, os analfabetos, os representantes de muitas profissões,10 os estrangeiros, as mulheres que menstruam e, além disso, simplesmente todos aqueles que por, uma razão qualquer, não podem observar uma ou algumas das inúmeras Leis da pureza. Todos eles são excluídos, declarados “fora da graça de Deus” e até “malditos” (cf. Jo 7,49). O único caminho para reverter a situação da impureza cúltica adquirida passou pela apresentação do sacrifício prescrito para tal caso. Esse sacrifício, contudo, em nada estava gratuitamente à disposição. Tinha que ser comprado pelo impuro no lugar e pelo preço indicado pelo Templo; e uma vez pago, devia ser devolvido de graça ao Templo. Quem tirou proveito desse sistema foi em primeiro lugar a instituição do Templo e todos os seus representantes, funcionários, sacerdotes e levitas, isso porque a maioria dos sacrifícios servia para o sustento deles e de toda a sua família.11 Os perdedores desse sistema eram todos aqueles que não mais conseguiam pagar os sacrifícios prescritos, porque nem possuíam ou não possuíam mais o dinheiro necessário. Fizeram parte dessa categoria os empobrecidos por causa dos impostos excessivos, os doentes, os mendigos, as viúvas, os órfãos e também aqueles que não tinham emprego, porque as Leis da pureza os tinham excluído da vida social – em uma palavra, porque eram pobres (cf. Lv 14,4.10.21). Assim, a pobreza era mais uma categoria social do que uma categoria econômica propriamente dita. Implicava falta não apenas de recursos mas de status social, e a incapacidade de cumprir com as exigências sociais. Os camponeses postos abaixo do nível de subsistência podiam também ser incapazes de cumprir as Leis da pureza, e por isso eram postos numa posição de vergonha e desonra. Nesse caso, as Leis da pureza constituíam parte da pressão exercida sobre os pobres, trabalhando em conjunto com a forte pressão econômica para baixo.12

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A todos que de uma ou outra maneira eram pobres – e, na época de Jesus, essa categoria se estendeu a mais ou menos 60% da população –13 o sistema religioso explicava que eram pecadores porque não seguiam a Lei. Tal categorização em nada levou em consideração que a população pobre simplesmente não tinha condição financeira para observar todos os 613 mandamentos e proibições em vigor. Em vez disso, declarava-se também os pobres transgressores da Lei, e desse modo também fizeram parte dos excluídos da graça de Deus, não por serem pobres, mas por não responderem às exigências legalistas do sistema. A sua pobreza, em seguida, foi explicada como a consequência inevitável da perda da graça de Deus. Assim, produziu-se passo a passo um sistema religioso que depositava fardos pesados nos ombros das pessoas (cf. Lc 11,46 e, como alternativa e contraste, Mt 11,30). Em última análise, esse sistema se tornou opressor, justificado em nome de Deus. Dessa situação, até Lewis D. Salomon declara que “muitas regras e práticas judaicas legalistas tradicionais [...] sufocavam não só o Sabbath como também a vida em geral”.14 Assim, a excessiva interpretação casuística e legalista da vida na época de Jesus transformava, em muitos casos, a intenção original da Torá no seu contrário. Desse direito casuístico diz o Papa Bento XVI, seguindo O. Artus, “que está na Torá, mas que praticamente se tornou injusto e que em situações econômicas concretas não serve à defesa dos pobres, das viúvas e dos órfãos [...]”.15 Fez-se, desse modo, do Deus que cuidava da ampliação do espaço de vida das pessoas um Deus legalista, para o qual a observância escrupulosa de centenas de Leis e regras parecia interessar muito mais do que o bem-estar das pessoas. Em vez de encontrar um pai misericordioso, essas pessoas encontravam um tirano que inspirou medo e ameaçou com condenação eterna. A consequência psicorreligiosa dessa deturpação é caracterizada por R. de Vaux da seguinte maneira: O que inicialmente tinha servido para expressar a santidade de Deus e de seu povo tornou-se um formalismo estreito e um jugo insuportável, o que era uma proteção tornou-se um tipo de coleira.16

Toda a superestrutura teológico-ideológica aqui descrita genericamente nada mais é do que a cimentação religiosa de um sistema de dominação, descrito por Richard A. Horsley com as seguintes palavras: Os romanos instalaram os seus próprios governantes dependentes, os reis herodianos e os sumos sacerdotes de Jerusalém que controlavam a área [...] A ordem imperial [...] significava camadas múltiplas de governantes e exigências de tributos e impostos [...] Economicamente, isso deve ter exaurido o povo galileu ainda mais [...] É também bastante plausível que os sumos sacerdotes e os seus servidores escribas em Jerusalém ainda tentassem manter um fluxo de dízimos e ofertas da Galileia para o Templo e para o sumo sacerdócio [...].17

A comparação com a teologia original da aliança, assim como nós a encontramos no Deuteronômio (vgl. Dt 5, 12-15), mostra, de maneira clara, a imensa discrepância 32

entre esse sistema político-econômico-religioso e os princípios daquela teologia deuteronômica. Na sua época, já o profeta Jeremias, assim como Isaías, Oseias, Amos e Miqueias, havia criticado tal sistema (cf. Jr 7; 26; 22,13-19). Jesus agiu dentro do mesmo esquema e radicalizou mais ainda a crítica daqueles profetas.18 A sua atitude profética culmina naquilo que, seguindo Richard A. Horsley, poderia ser chamado de demonstração profética contra o Templo e os sumos sacerdotes.19 Pelo menos é assim que é apresentado no texto de Marcos (cf. Mc 11,15-17; 11,1224; 11,27-13,2). Interpretando essa demonstração, R. A. Horsley deixa bem claro que o seu enfoque principal não é o conflito entre judaísmo e cristianismo nem entre diferentes concepções religiosas. Conforme Horsley, o problema que se manifesta ali é muito mais a oposição fundamental entre aqueles que estão no poder e os que são governados por esse poder.20 Conforme Horsley, trata-se de uma “nova condenação profética não apenas da construção, mas do sistema do Templo, por causa da sua opressão do povo”.21 Essa condenação torna evidente a atitude de Jesus perante o sistema em vigor. Jesus “destrói a influência do Templo”22 e com isso aniquila toda a base do sistema socioeconômico-religioso que se tornou um peso opressivo para o povo. Se hoje se tenta recuperar essa dimensão da atitude de Jesus, é essencial ter bem claro que nisso em nada podemos ver uma volta a uma mentalidade antijudaica. Em vez disso, tratase da clara conscientização de que Jesus, na sua época, realmente provocava um conflito, o qual, segundo Horsley, “está entre governantes e governados, não entre ‘judaísmo’ e ‘cristianismo’”.23 Hans Kung descreve esse mesmo fato com as seguintes palavras: [...] contra a doutrina e a práxis em vigor, que eram a doutrina e a práxis dos dominantes, esse Jesus assumiu conforme os Evangelhos uma autoridade que faz os doutores da Lei perguntarem: “Como este homem pode falar assim? Ele é blasfêmico” (Mc 2,7).24

8.2. JESUS RECUPERA O CERNE LIBERTADOR DAQUILO QUE É A INTENÇÃO DA TORÁ Queremos de antemão invalidar qualquer eventual suspeita de que a comparação com a religião judaica da época de Jesus signifique uma recaída daquelas atitudes antijudaicas que infelizmente marcaram muitas épocas do passado. Por isso, citamos, a seguir, aquilo que alguns bem conhecidos representantes judaicos responderam à indagação sobre a atitude de Jesus perante os sistemas sociorreligiosos da sua época. Os textos se encontram na seleção de comentários de autores judaicos, citados por Beatrice Bruteau no seu livro muito interessante Jesus segundo o Judaísmo.25 Nele, podemos encontrar, entre muitas outras, as seguintes opiniões: Herbert Bronstein: “Jesus atribuiu a si a autoridade para ensinar fora do âmbito da estrutura da autoridade

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farisaica”.26 Andrew Vogel Ettin: Jesus “[...] não está propondo uma teologia sistemática, mas interpretando casuisticamente a Lei [...] muitas vezes crítico dos fariseus, mas cuja perspectiva muito se assemelha à deles. [...] Um arrogante ofensor autoconfiante das pessoas em posição de autoridade”.27 Daniel Matt: “Jesus foi um hasid galileu, alguém intensamente apaixonado por Deus [...] anticonvencional e extremo em sua devoção a Deus e ao seu semelhante [...] É inevitável que surjam tensões entre o hasid e a ordem religiosa estabelecida [...] Jesus é um dos que buscam a essência da Torá [...] Ele se associava aos pecadores [...] Jesus condenou a hipocrisia e a injustiça entre seu próprio povo”.28 Howard Avruhm Addison: “Seu exemplo e sua mensagem levam o amor de Deus aos oprimidos [...] Ele condena escribas, que oferecem longas orações e depois exploram os pobres [...] Ele está certo em desvelar o comportamento daqueles cujo casuísmo legal subverte o espírito da Torá”.29 Lance Flitter: “Jesus, como muitos judeus antes e depois dele, tinha um conjunto de prioridades religiosas [...] Esse Jesus rompeu barreiras sociais tradicionais e deu destaque a Leis e ideais judaicos vinculados com o amor, a gentileza e o respeito acima ou mesmo com a exclusão das Leis ligadas ao ritual [...] A parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37) demonstra tanto uma abertura social como uma condenação de ideias de pureza ritual”.30 Lewis D. Solomon: “Jesus foi um astuto comentarista de assuntos socioeconômicos. Ele desejava que derrubássemos paredes divisórias [...] Jesus ofereceu uma exacerbada crítica às normas de pureza religiosa judaicas tradicionais que delineavam [...] as fronteiras entre o sagrado e o profano [...] Jesus, do mesmo modo, situou as necessidades humanas acima da observância de cerimônias religiosas, por exemplo, a observância do Sabbath [...] Para Jesus, as necessidades humanas e a preocupação com o indivíduo assumiram a primazia sobre a necessidade de as pessoas se conformarem a requisitos e restrições legalistas [...] Jesus desafiou as Leis judaicas tradicionais que regulavam a pureza ritual [...] Jesus buscou uma religião universalista, não legalista e não ritualista de perfeição espiritual interior e exterior [...]”.31

Os textos citados, pronunciamentos de proeminentes autores judaicos, com certeza não podem ser compreendidos como expressão de atitudes antijudaicas. Eles muito mais são a confirmação daquilo que, conforme Richard A. Horsley, poderia ser sintetizado da seguinte maneira: a atitude de Jesus abre uma nova perspectiva de esperança para todos aqueles que o sistema oficial já tinha excluído. Em proclamações e demonstrações proféticas [...] Jesus anunciou que tanto os governantes imperiais romanos como os seus dependentes herodianos e sumo sacerdotais, exploradores em Jerusalém, estavam sob o julgamento de Deus [...] Em sua oferta do Reino de Deus para os pobres, famintos e desesperados, Jesus insuflou esperança numa situação aparentemente desesperada.32

Émile Morin, em seu livro Jesus e as estruturas de seu tempo, caracteriza a mesma atitude de Jesus da seguinte maneira: Jesus subverte [...] os rituais dessa sociedade preocupada com pureza legal e se volta para os marginalizados, para a gente da periferia.33 Jesus é considerado blasfemo, [...] porque declara perdoados os pecados, para cuja destruição havia, em Jerusalém, todo um aparato sacrifical [...] Declarando assim, de plano, remidos os pecados, Jesus de Nazaré desmontava todo o aparato sacrifical em vigência, sem ter nenhum título aparente para mudar os hábitos religiosos.34

E Hans Kung, em Introdução à fé cristã, resume toda a atuação de Jesus, assim como ela é apresentada nos textos bíblicos, nos cinco eixos a seguir: 34

Radical era a crítica do judeu Jesus endereçada à religiosidade tradicional de muitos judeus piedosos. Arrogantes se apresentaram o protesto e a profecia contra a maneira do funcionamento do Templo e com isso contra os guardiões sacerdotais desse Templo e os seus beneficiários financeiros. Provocatória era a maneira não casuísta e centrada na pessoa humana, como Jesus compreendeu a Torá [...] Escandaloso era o fato de Jesus se solidarizar com o povo simples, que não conhecia a Lei, assim como a sua convivência com aqueles que notoriamente quebraram essa Lei. Massivas eram as críticas de Jesus endereçadas aos círculos dominantes, aos quais [...] era mais do que importuno.35

Terminamos a coletânea de citações com um texto publicado pelo muito prestigiado semanário para política, economia, ciência e cultura Die Zeit, que, num artigo publicado em fevereiro de 2007, escreveu o seguinte sobre Jesus: Se, de um lado, Jesus radicaliza os mandamentos da atitude humana até um grau quase impossível de serem realizados (cf., por exemplo, o amor aos inimigos), ele, de outro lado, relativiza as Leis cúlticas tão importantes para os seus contemporâneos, e isso, por sua vez, até a um grau insuportável.36

8.3. A REPREENSÃO ENDEREÇADA A UMA INSTITUIÇÃO SACROSSANTA As ações de Jesus, escandalosas aos olhos dos representantes da ordem estabelecida, culminam naquele acontecimento que os textos dos Evangelhos dizem ter sido a causa direta da sua morte: ele anunciava a ruína do Templo. Com esse gesto profético (cf. Jr 7,1-15; Mq 3,9-12), Jesus mexe com todo o sistema que se tinha construído em torno desse Templo, com consequências não só teológicas, mas também econômicas e sociais. É essa atitude que significa o “cume do escândalo”, que contribuiu essencialmente para a condenação dele. Escândalo, aliás, que os primeiros autores cristãos tentaram amenizar e reinterpretar de todos os meios, e tentativas similares, às vezes, encontramos até hoje. Trata-se da profecia bem conhecida de Jesus sobre a destruição do Templo. “Estas grandiosas construções. Não ficará delas pedra sobre pedra; tudo será destruído” (Mc 13,1-2; Mt 24,1-2; Lc 21,5-6; Jo 2,19). Nos textos sobre o processo contra Jesus, essa afirmação é retomada de maneira até mais provocativa ainda: “Ouvimo-lo dizer: ‘Demolirei este Templo construído pelas mãos dos homens [...]’” (Mc 14,58; 15,29; Mt 26,61; 27,4). Jogos de palavras, poder-se-ia objetar, inventados para demonstrar que tal processo era mentiroso. Talvez. Mas tudo indica que é mais do que isso. Já o autor do quarto Evangelho se esforça em acalmar o escândalo potencial contido nas palavras de Jesus sobre o desaparecimento do Templo. Muitos anos após a concretização da profecia sobre a destruição do Templo, ele ainda tenta dar às proclamações escandolosas de Jesus um significado diferente: “[...] ele falava do santuário do seu corpo” (Jo 2,21). Mas o que seria então se essa não tivesse sido a intenção de Jesus? Como seria se ele de fato tivesse falado do Templo mesmo, ou pelo menos de toda a estrutura 35

legalista-formal que a construção representava? Há muitas razões para pensarmos que de fato era esse o caso. Sendo assim, porém, encontramos nesse texto o ponto final de toda uma linha de atuações específicas de Jesus. No decorrer delas se manifesta, de maneira cada vez mais clara, o choque definitivo e frontal com tudo aquilo que o Templo, em termos de Instituição de poder político-financeiro e legalista na sua época, significava. Esse confronto, porém, em nada significa a rejeição daquilo que era o fundamento de toda a religião desse Templo: a Torá. O Papa Bento XVI formula tal fato de maneira magistral em seu livro sobre Jesus Cristo: “Não se trata, portanto, de abolir, mas sim de cumprir”37 aquilo que é o sentido verdadeiro da Torá. Jesus em nada questiona a Torá, pelo contrário, recuperaa na sua intenção mais central! Por outro lado, quando profetiza sobre o desaparecimento do Templo, não fala somente do prédio como tal. Ele, mais do que isso, rompe com toda uma estrutura sociorreligiosa, da qual esse Templo era o centro visível.38 No texto de Marcos, essa ruptura já se anuncia desde a assim chamada Crise da Galileia (cf. Mc 8ss). Ela continua nas ações simbólicas de Jesus, descritas em Mc 11. Também nelas, Jesus permanece aquilo que era: judeu, mas, dentro da melhor tradição profética, se opõe ao Templo como símbolo do poder. Essa oposição ultrapassa em muito o nível verbal, como encontramos em Mc 3. O texto de Mc 11 apresenta um confronto direto, exatamente naquele lugar, onde os chefes religiosos se encontram. E estes compreendem muito bem que Jesus refere-se a eles também quando condena aquela vinheira por causa da sua esterilidade (cf. Mc 11,12ss). Em vez de se converterem, eles tentam matá-lo (cf. Mc 11,18). A expulsão dos vendedores e cambistas (Mc 11,15ss) do átrio do Templo finalmente confirma, definitivamente, a ruptura com certo tipo de sistema sociopolítico-religioso. Isso porque aqueles comerciantes não eram vendedores de artigos da arte sacra e de lembranças religiosas, como muitos cristãos de hoje talvez imaginem. Pelo contrário, eles vendiam, em nome do Templo, os animais a serem sacrificados e por causa disso tinham que corresponder aos critérios de pureza estabelecidos pelo sistema religioso. Os cambistas, por sua vez, eram funcionários que trocavam as moedas “impuras” do comércio profano por moedas “puras” do dinheiro do Templo, com ganho considerável para a caixa dele, como bem se entende. Atrás desse comércio, havia todo um sistema econômico-financeiro, mantido pela instituição religiosa. Em nome de suas exigências cúlticas e da ideologia da pureza, forçava o povo a realizar sacrifícios no Templo. Esses sacrifícios representavam uma fonte de renda muito rica para a instituição. Além disso, essa fonte formava também uma das mais importantes bases para o sustento dos aproximadamente sessenta mil integrantes da casta sacerdotal e levítica, que, dessa maneira, vivia o ano inteiro praticamente de graça.39 O povo, porém, foi esmagado sob o peso dos 613 mandamentos e proibições, formulados na “Halaká”, e pelos sacrifícios exigidos em caso de algum desses 36

mandamentos serem transgredidos. A ação simbólica de Jesus significa, assim, mais um passo naquilo que chega ao seu ápice na profecia sobre a destruição do Templo. Certos autores a consideram a rejeição definitiva de todo um sistema religioso, que, em vez de libertar as pessoas, as carregava de “fardos pesados” (cf. Lc 11,46; Mt 23,4).40 Diante do pano de fundo de tal rejeição, devemos compreender também as censuras, em parte até chocantes, dirigidas pelo Jesus dos Evangelhos a esse sistema. Nelas se revela outra vez a perspectiva de um Deus cujo interesse não se fixa na observância de prescrições rituais, mas na preocupação pela vida e pelo bem-estar das pessoas: Lc 11,46: “Ai de vós também, doutores da Lei, que lançais pesadas cargas sobre os outros enquanto vós mesmos nem com um dedo as tocais!”. Mt 23,13: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais o Reino dos Céus aos outros! Não entrais vós nem permitis que entrem os que o desejam”. Mt 23,23: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, mas não vos preocupais com o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade!”.

Perante essas censuras, outra vez é importante lembrar que Jesus em nada quis abolir a base de todo o sistema religioso do Templo. Também Albert Nolan sustenta esse fato de maneira muito clara: “Jesus não se opunha à Lei como tal; ele se opunha à maneira como as pessoas usavam a Lei, à atitude delas perante a Lei. Os escribas e fariseus tinham transformado a Lei em fardo, ao passo que deveria ser serviço”41 (Mt 23,4; Mc 2,27). A mesma interpretação encontramos no livro do Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré: [Jesus] “assume a dinâmica interior da Torá desenvolvida pelos profetas e, como o eleito, como o profeta que está com Deus mesmo face a face (Dt 18,15), dálhe a sua forma radical”.42 1 HORSLEY, Richard A., op. cit., p. 98 (nota de rodapé). 2 BRUTEAU, Beatrice (org.). Jesus segundo o judaísmo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 72. 3 Cf. Ibid., p. 84. 4 Ibid., p. 186. 5 MOXNES, Halvor. A economia do Reino. São Paulo: Paulus, 1995, p. 105. 6 Ibid., p. 106. 7 Ibidem, p. 106. 8 Cit. cf. BRUTEAU, Beatrice, op. cit., p. 174. 9 O “Talmude da Babilônia” encaixa os pobres, leprosos, cegos e estéreis na categoria de pessoas que se assemelham aos mortos (Ned 64-B.Bar.), cf. PALLARES, José C. Um pobre chamado Jesus. São Paulo: Paulus, 1988, p. 42. 10 Émile Morin menciona como “‘profissões desonestas’: publicanos, coletores de impostos, pastores, tropeiros, vendedores ambulantes, curtidores” (cf. MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. São Paulo: Paulus, 1981, p. 87). 11 Cf. VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2003, p. 440-443. 12 MOXNES, Halvor, op. cit., p. 102-103. 13 Cf. MORIN, Émile, op. cit.; HOORNAERT, Eduardo, op. cit. 14 Cf. BRUTEAU, Beatrice, op. cit., p. 198. 15 RATZINGER, Joseph – Bento XVI. Jesus de Nazaré. São Paulo: Planeta, 2007, p. 118. 16 VAUX, Roland de, op. cit., p. 501. 17 HORSLEY, Richard A., op. cit., p. 40, cf. também: p. 65, 69. 18 Cf. RATZINGER, Joseph – Bento XVI, op. cit., p. 119-120. 19 Cf. HORSLEY, Richard A., op. cit., p. 97. 20 Cf. Ibid., p. 97-104 (de modo especial, nota 13, p. 97-98). 21 Ibid., p. 99. 22 FERRARO, Benedito. Cristologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 115. 23 HORSLEY, Richard A., op. cit., p. 100. 24 KUNG, Hans. Einfuhrung in den christlichen Glauben. Munique/Zurique: Piper, 1992, p. 109.

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25 BRUTEAU, Beatrice, op. cit. 26 Ibid., p. 83-84 (Herbert Bronstein é chefe de estudos da North Shore Congregation Israel em Chicago). 27 Ibid., p. 95/96/99 (Andrew Vogel Ettin é líder espiritual do Templo de Israel, em Salisbury, na Carolina do Norte). 28 Ibid., p. 103-104, 106, 108, 110 (Daniel Matt foi professor de espiritualidade judaica na Graduate Theological Union de Berkeley, na Califórnia). 29 Ibid., p. 143 (Howard A. Addison é rabino e doutor em Ministério pelo Chicago Theological Seminary). 30 Ibid., p. 172, 175-176 (Lance Flitter é cientista de computação e membro do Conselho Diretor do InterFaith Families Project of Greater Washington). 31 Ibid., p. 210, 212-213, 219 (Lewis D. Salomon é rabino e professor da George Washington University Law School). 32 HORSLEY, Richard A., op. cit., p. 131. 33 MORIN, Émile, op. cit., p. 88. 34 Ibid., p. 90. 35 KUNG, Hans, op. cit., p. 111-112. 36 LEICHT, Robert. Der friedfertige Aufruhrer. DIE ZEIT, Wochenzeitung fur Politik, Wirtschaft, Wissen und Kultur, n. 7, p. 20, 8 fev. 2007. 37 RATZINGER, Joseph – Bento XVI, op. cit., p. 101. 38 GALLARDO, Carlos Bravo. Jesus, homem em conflito. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 220-224. 39 Cf. JEREMIAS, Joaquim. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1983, p. 273-283. 40 Como exemplo, mencionamos uma publicação relativamente recente de Karl Jaros. Numa perspectiva muito radical, ele até interpreta essa ruptura como o fim de uma época da história do mundo e o início de algo totalmente novo. “O autotestemunho de Jesus diante do sumo sacerdote, no qual faz referência a Daniel 7,13 e ao salmo 110,1 (Mc 14,42), apresenta a sua autorização messiânica, pela qual o atual sistema hierárquico do Templo de Jerusalém será definitivamente substituído”. Cf. JAROS, Karl. Wann kommt Christus wieder. Augsburg: Sankt Ulrich Verlag, 2008, p. 86. 41 NOLAN, Albert. Jesus antes do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1988, p. 106. 42 RATZINGER, Joseph – Bento XVI, op. cit., p. 119.

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9. A MANEIRA PELA QUAL OS EVANGELHOS APRESENTAM A ATITUDE DE JESUS EM RELAÇÃO AO TEMPLO DEVE SER INTERPRETADA COMO REVELAÇÃO TEOLÓGICA QUE VALE PARA TODAS AS RELIGIÕES

As considerações apresentadas no capítulo anterior mostram que a atitude de Jesus em relação à instituição religiosa da sua época realmente é um dos elementos-chave para a nossa reflexão sobre o que Deus é e o que ele quer. Diante dos pronunciamentos citados e levando em consideração a importância do assunto, temos que tratar finalmente ainda de um outro enfoque da questão. Nos últimos anos, a interpretação histórico-crítica dos textos bíblicos insiste em questionar se os textos sobre o conflito entre Jesus e o Templo não refletiriam muito mais o conflito entre a jovem Igreja e o Templo, do que a verdadeira atitude de Jesus na sua época histórica. Diante dessa indagação, se põe para o leitor atual dos Evangelhos outra questão urgente: como compreender e interpretar agora os pronunciamentos de Jesus em relação ao Templo e o seu sistema casuístico-legalista. Gostaríamos, a seguir, de acrescentar às muitas respostas a essa questão um enfoque, que geralmente é muito pouco tratado, porém, se torna essencial para a futura evolução do cristianismo. Da perspectiva da Revelação, a discussão sobre a veracidade histórica do conflito entre Jesus e a teologia do Templo, assim como os Evangelhos apresentam, se torna questão relativamente secundária. Em vez de perder-se em discussões sobre a eventual tendenciosidade das respectivas apresentações neotestamentárias, parece muito mais importante perceber que, também naqueles textos, encontramos uma informação-chave e universalmente válida da Revelação: as críticas de Jesus referentes ao sistema religioso da sua época devem ser compreendidas como advertência, exemplo e paradigma da atitude de Deus, diante de toda e qualquer instituição religiosa que se formou ou se formará no decorrer da história. As críticas de Jesus referentes ao sistema religioso da sua época devem ser compreendidas como advertência, exemplo e paradigma da atitude de Deus, diante de toda e qualquer instituição religiosa que se formou ou se formará no decorrer da história.

• Todo sistema religioso está constantemente no perigo de absolutizar suas regras e Leis, transformando passo a passo conteúdos inicialmente libertadores em mandamentos pesados e restritivos. • Todo sistema religioso está sujeito às tentações do poder. • Todo sistema religioso está no perigo de excluir aqueles que não obedecem às suas Leis. Nesse sentido, a apresentação bíblica do relacionamento entre Jesus e o Templo se 39

torna mais uma das grandes e importantes revelações bíblicas, independentemente de toda indagação sobre a veracidade histórica do modo pelo qual esse relacionamento foi apresentado pelos autores do Novo Testamento. Assim, a maneira pela qual os Evangelhos apresentam esse relacionamento em nada pode tornar-se argumento para julgar a religião irmã judaica. Em vez disso, ela é muito mais evocação e advertência para nós e para todas as outras religiões e confissões. Todas elas, sem exceção, devem constantemente vigiar as suas próprias estruturas e o seu próprio agir. Numa época de crescente diálogo inter-religioso, a apresentação do comportamento de Jesus perante o sistema religioso da sua época se torna, para todas as religiões e seus representantes, desafio para realizar um sério exame de consciência. O elemento-chave desse exame é saber em que medida e em que sentido as críticas religiosas de Jesus devem ser consideradas críticas e desafios às estruturas religiosas ou eclesiásticas da própria instituição religiosa. E caso, em alguma das Igrejas cristãs, achem-se estruturas ou elementos similares ou iguais às estruturas daquele sistema religioso que Jesus criticou, o desafio formulado por ele se dirige também aos representantes do sistema religioso atual: Convertam-se! Concordem em mudar também no próprio sistema os elementos que Jesus criticou! Esse desafio se formula com insistência para nós, especificamente cristãos e cristãs. Se realmente acreditamos que no agir de Jesus de Nazaré se manifesta o Deus verdadeiro em pessoa, então a resposta à indagação formulada de fato se torna o grande desafio para todos os representantes das Igrejas cristãs. Eles estão sendo sempre desafiados a repensar as estruturas das suas próprias Igrejas. Eles estão sendo desafiados a mudar essas estruturas em todos aqueles aspectos, nos quais elas se tornaram sistemas que, em vez de servirem aos homens, servem muito mais para a conservação do próprio poder. Tornaram-se, assim, mecanismos que fecham os caminhos rumo a Deus, em vez de abri-los. E assim fecham também a Deus os caminhos pelos quais este costuma encontrar os homens. Diante da crítica de Jesus às estruturas religiosas do seu tempo, cada Igreja cristã e cada comunidade cristã estão sendo desafiadas, com insistência, a cuidar que as suas próprias estruturas não se tornem estruturas templistas. Assim, torna-se verdade aquilo que Robert Leicht formulou: “Perante Jesus, essa figura unificadora do cristianismo, [...] nenhuma autoridade, nenhuma instância, tampouco nenhuma Igreja estabelecida pode realmente ficar segura”.1 AS CRÍTICAS BÍBLICAS DO SISTEMA RELIGIOSO TÊM SIGNIFICADO UNIVERSAL PARA TODAS AS RELIGIÕES E TODAS AS IGREJAS Em Jesus Cristo, reconhecemos o Deus encarnado. Sendo assim, a sua crítica dos sistemas legalistas e opressores se refere obrigatoriamente a todos. Isso, porém, significa que também as Igrejas cristãs estão constantemente sendo desafiadas a controlar as suas próprias estruturas. As indagações-chave nesse controle são as seguintes:

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Em que medida encontramos, nas Igrejas cristãs, elementos que correspondem àqueles que Jesus criticou e rejeitou no sistema religioso da sua época? Em que medida hoje concordamos em mudar tais elementos em nossas próprias estruturas religiosas? 1 LEICHT, Robert, op. cit.

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10. CRÍTICAS NEOTESTAMENTÁRIAS DO SISTEMA RELIGIOSO TAMBÉM TÊM SIGNIFICADO UNIVERSAL E SE DIRIGEM A TODA E QUALQUER RELIGIÃO E IGREJA Hoje, a análise histórico-crítica interpreta os textos sobre o conflito entre Jesus e a instituição do Templo muito mais como reflexo da opinião das jovens comunidades cristãs do que como pronunciamentos textuais de Jesus. Neles se refletiria o relacionamento conflituoso entre a primeira geração dos seguidores de Jesus e o sistema sociorreligioso tradicional. Mesmo tomando a sério essa objeção, é importante lembrar que também os textos dos Evangelhos, aqui em questão, fazem parte do contéudo do que, a partir da nossa doutrina, chamamos de “textos inspirados pelo Espírito Santo”. Se eles se encontram nos Evangelhos, independentemente do escândalo que causaram na sua época e que talvez possam causar hoje, então devem ter uma razão específica. Essa razão obviamente ultrapassa o enfoque puramente histórico-crítico. Por causa disso, o sentido dos textos deve ser compreendido com o enfoque dado, de maneira muito clara, pela Constituição Dogmática Dei Verbum (cf. DV 3,11-13): [...] já que tudo o que os autores inspirados ou os hagiógrafos afirmam deve ter sido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da Escritura ensinam, com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus, em vista da nossa Salvação, quis que fosse consignada nas Sagradas Escrituras.

Vistos nessa perspectiva, os textos sobre os conflitos entre Jesus e o sistema sociorreligioso da sua época alcançam um significado que ultrapassa em muito a dimensão puramente histórica ou judaica. Eles, na verdade, têm valor universal e atemporal. Assim, tornam-se hoje e para todo o futuro advertência a qualquer sistema religioso e, de maneira específica, também às Igrejas cristãs. Todas elas estão sendo advertidas de não caírem na tentação de estabelecer estruturas similares àquelas que Jesus nos textos do Novo Testamento criticou. Encontramos outra vez o fato de tais textos denunciadores em nada darem aos cristãos algum motivo para criticar os seus irmãos judeus. Em vez disso, são advertências severas endereçadas aos cristãos e às cristãs de sempre para vigiarem o seu próprio sistema, para que este nunca se torne legalista, ou centrado em poder e privilégios, e para que nunca aja de maneira excludente. Durante séculos, a maioria dos cristãos e das cristãs não tinha a mínima consciência da profunda atualidade dos textos em questão. Em razão disso, leram as narrações sobre os conflitos entre Jesus e o Templo de antemão a partir de um enfoque unilateral. Compreenderam-nas como crítica de instituições judaicas que em nada diziam respeito a eles mesmos, mas, por outro lado, lhes deram o pretexto para todo tipo de interpretações antijudaicas. Hoje, podemos constatar, sobretudo na teologia europeia, uma outra tendência, que por sua vez também relativiza as palavras conflitivas de Jesus endereçadas à 42

instituição religiosa.1 Para evitar a qualquer custo a suspeita de antijudaísmo, reduzem-se os conflitos entre Jesus e osistema religioso o máximo possível ao nível de “uma simples briga de interpretações dentro de diferentes escolas farisaicas”.2 Mas tal relativização, por sua vez, também não leva a uma verdadeira superação das infelizes tendências antijudaicas do passado. Além disso, fornece aos cristãos e às cristãs um bom motivo para evitarem a reflexão crítica sobre o seu próprio sistema religioso. Em consequência, é possível continuar fechando os olhos diante daquele problema que foi mencionado no título do presente capítulo: que a Igreja pode assumir características da instituição religiosa daquela época de Jesus, com todos os problemas que tal fato traz ou já trouxe no decorrer da história: LEGALISMO RELIGIOSO, INTERESSES DE PODER, SACRAMENTALISMO, EXCLUSÃO e tantos outros. Para que nunca mais algum sistema religioso se torne assim, é necessário conhecer e tomar a sério os elementos-chave e as tendências religiosas que os textos do Novo Testamento dizem que Jesus na sua época teria rejeitado. Esse conhecimento ajuda a evitar tentações, a despertar a consciência sobre eventuais paralelos na situação de hoje e, finalmente, pode motivar a corrigir elementos similares que se estabeleceram no decorrer da história. Em tudo isso, porém, é importante lembrar sempre que essa conscientização em nada significa uma crítica ao judaísmo a partir de um ponto de vista cristão,3 pois, para tal atitude, não temos a mínima autoridade! Em vez disso, somos chamados, baseando-nos no comportamento de Jesus, a nos conscientizarmos dos parâmetros que devem ser aplicados ao nosso próprio sistema religioso. O desafio hoje é o seguinte: Conscientizarmo-nos, baseando-nos no comportamento de Jesus, dos parâmetros que devem ser aplicados a todo e qualquer sistema religioso. 1 Como exemplo, mencionamos: SELVATICO, Pietro & STRAHM, Doris. Jesus Christus. Zurique: Theologischer Verlag, 2010, p. 53-58; 78-84; 145150. 2 KUNG, Hans, op. cit., p. 107. 3 Cf. KELLENBACH, Katharina von. Revisitando o antijudaísmo na teologia feminista. Concilium, n. 330, p. 120-126, 2009/2. (Os argumentos empregados aqui para advertir contra o perigo de um eventual antijudaísmo na teologia feminista são válidos para toda e qualquer teologia.)

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11. EM JESUS, DEUS REVELA QUE UMA ORDEM OPOSTA A DEUS ATÉ PODE SER JUSTIFICADA RECORRENDO A DEUS O chamado à conversão das estruturas em nenhuma época era bem-visto pelos representantes do sistema dominante. Sendo assim, não é por acaso que também o conflito que acompanha toda a vida pública de Jesus é, em primeiro lugar, o conflito com os representantes do sistema sociorreligioso-político da sua época. A grande indagação-chave no centro desse conflito gira em torno de uma única questão: Será que Deus é assim como a instituição religiosa diz, ou será que, ao contrário, Deus é assim como Jesus o apresenta? Seguindo a doutrina oficial da época de Jesus, a religião rejeitava os pecadores por razões cúltico-religiosas. Pecador era cada um que transgredia uma das 613 prescrições ou proibições que estavam em vigor, sustentadas pelo Templo e justificadas em nome da sua autoridade com referência a Deus. As primeiras vítimas desse sistema eram os pobres, que, devido à sua pobreza, nem tinham condição de observar todas essas Leis. Em consequência, eram excluídos como pecadores, e porque grande parte das prescrições dizia respeito à ideologia da pureza, ficavam, além disso, marcados como “impuros”. Ser impuro, porém, significava ser excluído não só de toda a vida social e religiosa, mas também da graça de Deus. A única instância capaz de reverter tal quadro eram o Templo e os seus representantes oficiais, os sacerdotes. Por intermédio deles e realizando os sacrifícios prescritos pela instituição, o impuro e pecador conseguia recuperar o estado da graça e com isso garantir a sua salvação. A Lei religiosa se tornava assim um peso opressivo, e a instituição religiosa ganhava um poder que ultrapassava em muito a esfera profana, pois era ela que podia abrir o caminho para a salvação ou fechá-lo. E para os pobres, ela praticamente o fechou, porque estes, por causa da sua condição, não podiam comprar os sacrifícios prescritos. Assim, ficavam com os seus pecados e, consequentemente, com o veredicto de serem abandonados por Deus. Em vida, foram repudiados e largados também por todos aqueles que se consideravam puros: pelos justos, pelos piedosos, pelos representantes do sistema religioso e por cada um que não se considerava pecador. É dentro desse sistema que Jesus irrompeu com a autoridade de um Deus, desmascarando e mostrando ser falso todo sistema que, de uma ou outra maneira, agia assim.1 Na sua proclamação programática (cf. Lc 4,18), ele se dirige de maneira explícita a todos aqueles que o poder religioso tinha rejeitado. A interpretação que esse poder dava à Lei e a justificativa dessa interpretação em nome de Deus são nulas. E, consequentemente, é nula e falsa também a atitude legalista de qualquer representante de qualquer instituição religiosa de todas as épocas da história. 44

“Misericórdia quero”, diz o Deus encarnado, “e não sacrifícios!” (Mt 9,13). Em seus anátemas endereçados aos representantes de qualquer sistema religioso, Jesus desmascara a atitude de todos aqueles que falam dele em termos legalistas: eles são opostos a tudo aquilo que Deus é e o que ele quer. Mt 23,13.23-18 (também: Mt 12,4; Lc 11,37-52; Mc 12,38): 13Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais o Reino dos Céus aos outros! 23Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, mas não vos preocupais com o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade! [...] 24Guias cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo! 25Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que, por fora, limpais o copo e o prato, mas, por dentro, estais cheios de roubo e cobiça. 26Fariseu cego, limpa primeiro o copo por dentro, para que fique limpo também por fora. 27Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que sois semelhantes a sepulcros caiados, vistosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos dos mortos e de toda sorte de podridão. 28Assim também vós, por fora, pareceis justos aos outros, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e maldade.

Nas palavras e no agir de Jesus, o próprio Deus em pessoa demonstra e prova que: – Aqueles que o sistema religioso considera “mortos” não estão mortos aos olhos de Deus. – Os rejeitados pelo sistema religioso não foram rejeitados por Deus! E ele comprova, na linha dos antigos profetas e com a autoridade de um Deus, que o sistema religioso da sua época tinha se tornado: – Um sistema excludente para a maioria do povo. – Um sistema que gerava morte, em vez de vida. – Um sistema que oprimia o povo simples em nome da Lei religiosa. Dessa Lei e do seu casuísmo-legalista, o grande Compêndio para teologia e Igreja, da Editora Herder, diz que “[...] não era mais palavra viva de Deus, mas cimentado em letra morta, que se intercalou como valor autônomo entre Deus e o homem”.2 Esse sistema, porém, Deus rejeita, e essa rejeição vale para todos os tempos e para todos os sistemas até os dias de hoje. Ela vem à tona de maneira paradigmática nas profecias sobre a destruição do Templo. Mas revela-se já bem antes na maneira pela qual esse Deus encarnado se comporta. Ele convive com os pobres e com todos aqueles que a Lei religiosa tinha declarado impuros, excluídos e fora da graça de Deus. Nesse convívio, Jesus demonstra, de maneira tocável e visível para todos, que uma teologia excludente não corresponde à vontade de Deus e não reflete a sua maneira de agir. Se Deus, na pessoa de Jesus Cristo, convive com aqueles que a instituição religiosa tinha declarado mortos aos olhos de Deus,3 ele demonstra diante de todos que esses assim chamados “pecadores”, para ele, não estão mortos. Sendo essa, porém, a verdadeira atitude de Deus, então a instituição religiosa deve mudar a sua 45

concepção: ela deve-se “converter”. Tal conversão das suas concepções, contudo, nenhuma instituição gosta de realizar. Encontramos aqui uma das razões-chave da tentativa finalmente bem-sucedida de eliminar Jesus. Ele incomodava o sistema. No seu agir, ele mostrou que os critérios e as perspectivas, a partir dos quais o sistema religioso falava de Deus, eram falsos. Mas Jesus não só mostra tal fato de maneira teórica e fria, ele também age. E, no seu agir, deslegitima diretamente todo o legalismo religioso, ao qual os representantes dominantes do sistema estabeleceram uma estrutura religiosa casuística e rígida. Nela, o homem realmente foi colocado a serviço do sábado, em vez de o sábado ser a serviço dos homens (cf. Mc 2,27). Contra tal perspectiva, o agir de Jesus procura conscientizar as pessoas fundamentalmente de que Deus não se interessa em primeiro lugar pela Lei em si. Ele se interessa pela vida das pessoas.4 A Lei serve para garantir e ampliar essa vida. À medida que essa Lei se torna opressiva, impedindo a ampliação da vida, Deus a rejeita. Toda a atuação de Jesus, do Deus encarnado, busca conscientizar as pessoas dessa grande verdade.5 Uma lei religiosa que oprime a pessoa humana está contra a vontade de Deus! – A lei deve refletir a opção de Deus pela vida. – Deus não pode ser usado para legitimar opressões e exclusões contra pessoas humanas! 1 Cf. também: LUCIANI, Didier. Aimer la Torah plus que Dieu. Revue théologique de Louvain, n. 40, fasc. 2, p. 153-189, abr.-jun. 2009. 2 Lexikon fur Theologie und Kirche. Vol. 4. Freiburg: Herder, p. 819, 1960. (Como exemplo, cf. também a crítica do Templo e do seu formalismo, formulada antes de Jesus pelos profetas: Am 2,8; 4,4s; 5,21-27; 9,1-4; Is 1,10-17; 29,13s; Mq 3,11s; 6,6ss; Jr 4,4-7; 6; 19s; 26,2-6; Os 6,6; Ez 9s.) 3 Cf. NOLAN, Albert. Jesus antes do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 1986, p. 42-43, 64-66; MORIN, Émile, op. cit., p. 87-91, 137-138. 4 Cf. Jo 10,10: “Eu vim para que eles tenham a vida, e a tenham em abundância”. 5 Como exemplo, cf. Lc 12,10-14: A cura da mulher com a mão atrofiada, num sábado, dentro da sinagoga: 10Num sábado, Jesus ensinava numa sinagoga. 11Havia ali uma mulher que há dezoito anos tinha um espírito que a enfraquecia. Andava encurvada e não podia se endireitar. 12Vendo-a, Jesus chamou-a e disse: “Mulher, estás curada de tua doença”. 13Impôs-lhe as mãos, e ela imediatamente se endireitou e começou a louvar a Deus. 14O chefe da sinagoga ficou indignado porque Jesus havia curado no sábado e disse à multidão: “Há seis dias em que se pode trabalhar. Nesses dias vinde curar-vos e não em dia de sábado”. 15O Senhor lhe respondeu: “Hipócritas!”; Mc 1,40-45: A cura de um leproso no sábado (curar no sábado em nome de Deus era proibido pela Lei religiosa): 40Aproximou-se dele um leproso e, de joelhos, suplicou: “Se quiseres, podes purificar-me”. 41Jesus se compadeceu dele, estendeu a mão, tocou-o e disse-lhe: “Eu quero, fica limpo”.

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12. VISTOS DA PERSPECTIVA DA REVELAÇÃO, AS ATITUDES E O AGIR DE JESUS DEVEM SER COMPREENDIDOS COMO ATITUDES E AGIR DO PRÓPRIO DEUS1 Conhecer a atitude de Jesus diante do sistema sociorreligioso da sua época tornase essencial também para a formação da imagem que se transmite dele. Uma vez que tomamos a sério a afirmação de que, na figura daquele nazareno, nós nos encontramos também com o Deus encarnado em pessoa,2 achamos também uma nova base para responder a uma outra indagação fundamental: - Como Deus quer ser conhecido por nós? - Quais as características dele que quer nos fazer conhecer em primeiro lugar? - Em que o próprio Deus se interessa? A partir de um enfoque cristão, “História e destino de Jesus [...] estão sendo compreendidos como a história da Autorrevelação de Deus”.3 “Quem me vê, vê o Pai”, podemos ler em Jo 14,9. O Cardeal Walter Kasper comenta essa verdade básica da nossa fé em seu livro, já citado, da seguinte maneira: Não encontramos Deus na abstração de tudo aquilo que é concreto e definido. Nós o encontramos de maneira bem concreta na história e no destino de Jesus de Nazaré. A Escritura ela mesma tirou desse fato a consequência. Ela denomina Jesus Cristo não só como Filho de Deus, mas como Deus [...]4 (Rm 9,5; 2Cor 1,2; 1Cor 16,2; Ap 22,20; Cl 2,9; 2Pe 1,1.11; 2,20; 3,2.18; Jo 1,1-5; 5,26; 8,58; 10,30; 17,5; 17,10; 17,24; Fl 2,6-11; 1Cor 8,6; Hb 1,1-14; Cl 1,15-20).

Não queremos em nada diminuir os imensos méritos do método histórico-crítico e o valor dos resultados das suas pesquisas. Contudo, é necessário conscientizar da tendência de absolutizar o enfoque desse método. Em consequência, apresenta-se a sua perspectiva como única e exclusiva, relativizando em nome dela a crença em Jesus como “homem que é Deus”.5 Pesquisas sobre “o Deus de Jesus”, ou publicações que apresentam Jesus como “Símbolo de Deus”, apesar de seu indubitável valor científico, contêm o perigo de serem interpretadas de maneira equívoca. Assim, é até possível esquecer a profunda verdade da fé, formulada e mantida pela Igreja através de uma história às vezes muito conflituosa: A pessoa histórica de Jesus é o verdadeiro homem e ao mesmo tempo o verdadeiro Deus, ou, como o Papa Bento XVI o formula: “Só ele (Jesus) é realmente o filho unigênito de Deus, da mesma essência que o Pai”.6 Realmente, tomar a sério aquilo que nessas palavras está sendo formulado se torna o grande desafio para todos os adeptos da religião cristã. É nisso que encontram a sua base. E a última consequência dessa base é aquilo que a Igreja, no Concílio Vaticano II, declarou na Constituição Dei Verbum: “Jesus, o Verbo feito carne [...] aperfeiçoa e completa a Revelação” (DV 4), “pela qual Deus quis manifestar-se e comunicar-se a 47

si mesmo[...]” (DV 6). Caso os cristãos e as cristãs realmente aceitem essas declarações formuladas, as perspectivas que se abrem são inimagináveis e fascinantes.7 Elas implicam a aceitação radical daquilo que chamamos de “encarnação de Deus em Jesus de Nazaré”. Se Deus, porém, se encarnou nesse Jesus, ninguém mais pode negar que: • DEUS REALMENTE É ASSIM COMO ELE SE MANIFESTA EM JESUS. • AS CARACTERÍSTICAS DE JESUS SÃO CARACTERÍSTICAS DE DEUS. • DEUS SE REVELA EM JESUS DE UMA MANEIRA ESPECÍFICA, PORQUE OBVIAMENTE QUER SER CONHECIDO POR NÓS ASSIM. Tomar a sério esse fato nos desafia a ver Deus com outros olhos. Com base no homem Jesus que também é Deus, a concentração unilateral na característica do “Onipotente”, tradicionalmente transmitida e preferida por todos os detentores do poder, perde a sua predominância. Ela deixa lugar a outras características que Deus obviamente nos quer revelar; características, aliás, que desafiam muito mais a nossa vida do que o saber de que Deus é todo-poderoso. Eliminando os condicionamentos histórico-religiosos de uma perspectiva do poder, podemos descobrir, enfim, a profunda verdade daquilo que Deus revela de si mesmo em Jesus Cristo. De longe, essa verdade foi encoberta por imagens de Deus, cuja raiz se encontra muito mais na antiga filosofia grega do que em nossos livros sagrados. Exemplo típico disso é a imagem do Deus Pantocrátor, que, desde a Patrística, predomina em grande parte na reflexão sobre o Filho de Deus. Fato, aliás, que até hoje agrada muito a todos aqueles que de uma ou outra maneira buscam justificações para a manutenção das suas próprias posições de poder. Contra eles e contra todas as tentações de dominar, as atitudes de Jesus, perante as estruturas da sua época, mostram que Deus quer ser conhecido a partir de outros enfoques: • Para Deus, servir é mais importante que dominar. • Para Deus, a vida das pessoas e a ampliação libertadora dos seus horizontes de vida são mais importantes que a submissão cega a um legalismo estéril, mesmo quando os decretos respectivos foram formulados por autoridades religiosas. • Para Deus, o que importa é a vida das pessoas humanas e a sua identificação com aqueles que foram esmagados, rejeitados, eliminados e excluídos. Tudo isso vem à tona de maneira muito clara quando da análise das opções fundamentais de Jesus. Nelas, descobrimos de muitas maneiras e em situações variadas sempre a mesma verdade fundamental: O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado! (Mc 2,27) 1 O Papa Bento XVI fala da “[...] figura de Cristo, do homem que é Deus” (RATZINGER, Joseph – Bento XVI. Jesus de Nazaré. São Paulo: Planeta, 2007, p. 97). 2 Cf. também: WEINANDY, Thomas G. The Council of Chalcedon: Some Contemporary Christological Issues. Theology Digest, vol. 53, n. 4, p. 345356, inverno, 2006.

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3 KASPER, Walter. Jesus der Christus. Mainz: Mathias-Grunewald, 1981, p. 193. 4 Ibid., p. 199. 5 RATZINGER, Joseph – Bento XVI, op. cit., p. 98. 6 Ibid., p. 131 (vide também p. 137). 7 Para a declaração dogmática fundamental sobre Jesus Cristo, permanecem válidas também hoje, sem restrição nenhuma, as formulações dos Concílios de Niceia e de Calcedônia. Sobre a história dos dogmas respectivos, cf. SESBOUÉ, Bernard & WOLINSKY, Joseph. O Deus da salvação. Tomo 1. São Paulo: Loyola, 2002, p. 292-384; SELVATICO, Pietro & STRAHM, Doris, op. cit., p. 213-261; FERRARO, Benedito. Encarnação. São Paulo: Paulus, 2004; Concilium 173, Petrópolis: Vozes, 1982/3.

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13. AS OPÇÕES FUNDAMENTAIS DE JESUS SÃO AS OPÇÕES FUNDAMENTAIS DE DEUS As opções fundamentais são parâmetros-chave, por meio dos quais a pessoa orienta e conduz a sua vida. A partir das suas opções fundamentais, a pessoa age na vida, posiciona-se diante dela mesma, de outras pessoas e do mundo e, em última análise, também de Deus. Uma vez que conhecemos as opções fundamentais de um ser humano, podemos dizer que o conhecemos num sentido profundo e existencial. Uma vez que todo ser humano vive segundo tais opções, podemos encontrá-las também na pessoa de Jesus de Nazaré. Na pessoa dele, o humano e o divino formam aquilo que a teologia chama de “união hipostática”, isto é, a união indivisível da natureza humana com a natureza divina.1 As opções fundamentais de Jesus de Nazaré, vistas da perspectiva da pessoa humana, devem consequente e necessariamente ser também as opções de Cristo, e com isso da segunda pessoa da Trindade – ou seja, do próprio Deus. À medida que a análise da vida de Jesus nos faz descobrir as opções fundamentais dele, descobrimos as opções fundamentais do próprio Deus, ou pelo menos aquelas que esse Deus em Jesus Cristo nos quer revelar. Encontramos, assim, mais uma vez o paradigma-chave de toda cristologia, conforme o qual podemos conhecer Deus conhecendo Jesus, porque nele estamos confrontados com o próprio Deus em pessoa humana. Analisando agora a vida e o agir de Jesus, constatamos, de maneira explícita, pelo menos cinco opções fundamentais. Estas, a partir das reflexões anteriores, devem ser compreendidas de antemão como opções do próprio Deus. Com isso, porém, tornamse desafios primordiais para todos aqueles que se declaram adeptos de Deus. Numa perspectiva da fé, aliás, não só para eles, mas para a humanidade toda. Essas opções fundamentais, a partir das quais Jesus vive a sua vida e nas quais encontramos as opções fundamentais do próprio Deus, são as seguintes: • A opção preferencial pelos pobres, como concretização da opção pelos injustiçados. • A opção pela misericórdia e contra todo legalismo. • A opção pelo serviço e contra o poder. • A opção pela justiça e contra toda opressão. • A opção pela vida. Nessas opções, realmente encontramos informações sobre os parâmetros mais íntimos de uma pessoa, e uma vez que a pessoa da qual falamos é Deus verdadeiro, encarnado em pessoa humana verdadeira, estamos aqui de fato diante da face mais íntima de Deus. 13.1. DEUS OPTA PREFERENCIALMENTE PELOS POBRES 13.1.1. Na sua opção pelos pobres, Deus assume a causa dos perdedores, e não a dos vencedores

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Também nas sociedades chamadas de “cristãs”, é normal que desde criança se ensine a interiorizar uma escala de valores, orientada nas exigências do vencer, de ser o primeiro na competição e do ganhar. Nessa perspectiva, o perdedor não conta e quem não conta não tem valor. Ninguém mais se lembra dos vencidos numa competição esportiva. Dos perdedores na concorrência profissional se fala em termos de “incapazes”, e aqueles que foram marginalizados por um sistema socioeconômico competitivo são excluídos e denominados de “dispensáveis ou até de ‘supérfluos’”.2 O maior crime, em tal sociedade, é, conforme as palavras de Berthold Brecht, o de não possuir dinheiro,3 o que, na prática, quer dizer ser pobre. No âmago desse sistema, porém, irrompe a figura de um Deus que, desde as primeiras informações que temos sobre a sua atuação, se manifesta de maneira diferente. O seu interesse se dirige àqueles que se situam à margem das classes vencedoras, e a sua perspectiva é aquela dos perdedores e dos marginalizados. Estes, porém, são aqueles que, em geral, conhecemos como os pobres. A opção preferencial de Deus em favor deles já se manifesta nas narrações sobre as aventuras e desventuras de um clã de seminômades em torno de uma figura chamada Abraão. E ela continua depois em escala cada vez maior. Numa situação de opressão e escravidão de um grupo de escravos, relatada pelo livro do Êxodo, Deus toma claramente posição em favor deles e contra o poder econômico-político em vigor. E na sua mais clara Revelação em Jesus Cristo, esse mesmo Deus, desde o início e bem pelo desgosto do sistema dominante,4 se situa do lado daqueles que esse sistema já tinha desqualificado, excluído e declarado mortos até aos olhos de Deus. Não impressionado, porém, pelos protestos de todos os piedosos, e independentemente das suas objeções, esse Deus incômodo continua a transmitir, através de toda a história, a sua verdade desestabilizadora de todo sistema de poder: Deus se interessa em primeiro lugar por aqueles que não conseguiram vencer os obstáculos, impostos por sistemas econômicos, sociais e até religiosos. O seu interesse se concentra naqueles que foram esmagados e declarados incapazes por esses sistemas: os perdedores, os pobres, os marginalizados e os pecadores. Para que a grande verdade da sua partidariedade em favor dos pobres, enfim, fique clara para todos, Deus se tornou pobre, e com isso perdedor aos olhos do sistema. Ele assumiu a posição do vencido, assim como Paulo o formula de maneira magistral: “Ele [...] despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano. E encontrado em aspecto humano, humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte – e morte de cruz!” (Fl 2,6-8). O Deus que se tornou homem foi condenado a ser crucificado. Assim, porém, foi declarado perdedor e vencido em todos os aspectos. A cruz era o lugar exemplar do perdedor, e, em Jesus Cristo, é o próprio Deus que se submete a tal status. Com essa opção, porém, demonstra a sua opção. Ele revela que optou por considerar a história humana. E essa opção não é a do palácio, do trono ou de qualquer outro lugar de vencedor. Em vez disso, é a opção pelos subjugados, por 51

aqueles que não contam aos olhos dos poderosos e dos seus sistemas. É a opção pelos pobres e humildes. Aceitar esse fato foi difícil em todas as épocas e hoje é mais difícil ainda. A consequência é que, em todos os séculos, os sistemas de poder se apressaram em lembrar que, apesar de tudo isso, Jesus é Deus, e por causa disso, também Senhor do cosmo, venerável e digno de ser adorado com a maior sofisticação, honrado pelo incenso mais caro e iluminado por velas de primeira qualidade. Enquanto, porém, ainda se apressam em louvar a Deus nos seus Templos de ouro, Deus se move e se manifesta muito mais nas favelas dos cinturões da miséria, debaixo das pontes e nos lugares onde os pobres se encontram. É por eles que Deus se interessa em primeiro lugar, e por todos aqueles que não se enquadram nos parâmetros daqueles sistemas que só se interessam pelos vencedores. Deus é diferente! E, em Jesus Cristo, ele mostra tal fato de maneira clara e inegável. – “Deus me mandou [...] para trazer uma Boa-nova aos pobres, para proclamar a remissão dos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18). – “Os sãos não precisam de médico e sim os doentes; não vim chamar os justos, mas sim os pecadores” (Lc 5,31-32). – “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20). Nessa mensagem de Deus consiste a nossa esperança. Se ele é assim, então todos aqueles que não tinham mais esperança podem recuperá-la. E, para aqueles que não veem mais perspectiva nenhuma, abrem-se novos horizontes, porque Deus está com eles. Ele conhece a sua maneira de viver no mundo, porque ele mesmo, em Jesus Cristo, viveu assim. Ele viveu à maneira dos pobres e dos perdedores, assumindo a posição de servo, e não a de senhor. Essa é mais uma das grandes verdades que se deve recuperar na religião cristã. Essa recuperação, porém, pressupõe ruptura radical com a maneira pela qual, em todos os séculos, predominantemente se pensou e se praticou a religião. Ela exige aceitar que Deus é assim, como ele se mostra a nós em Jesus Cristo: um Deus inclinado pelos pequenos, pelos fracos, pelos excluídos, pelos pobres, em uma palavra, pelos humildes e pelos perdedores. Um Deus que se interessa muito mais pelo bem-estar deles do que por celebrações suntuosas. Um Deus dos humildes, que, por sua vez, é humilde. 13.1.2. Na sua opção pelos pobres, Deus concretiza a sua opção pelos injustiçados

É mérito da teologia latino-americana ter efetuado a conscientização, de maneira explícita, do desafio da “opção preferencial pelos pobres”. A opção pelos pobres, diz José Maria Vigil, é “uma dimensão transcendental do cristianismo, dimensão que essa teologia (latino-americana) teve o mérito de redescobrir – para o cristianismo universal – como vinculada à própria essência de Deus”.5 Conscientizar-se dessa verdade é essencial em toda discussão em torno da opção 52

fundamental aqui tratada. Não é a teologia latino-americana que a inventou. Muito antes dela, foi o próprio Deus que a realizou no decorrer de toda a sua história com o povo de Israel. E ela encontra a sua plena confirmação em Jesus Cristo, o Deus encarnado. Apesar de todas as resistências até na própria comunidade eclesial, essa consciência se espalhou pelas últimas décadas na maior parte da Igreja. Ninguém mais pode negar a sua importância. O próprio Papa Bento XVI a confirmou explicitamente no seu discurso de 13 de maio de 2007, diante da V Conferência do Episcopado Latino-Americano em Aparecida: “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós […]”. Essa experiência, aliás, de um Deus que se fez pobre e que optou pelos pobres, já na época de Jesus, causou o maior escândalo para o sistema religioso. A partir da lógica deste, os pobres, que, por causa da sua condição de pobreza, nem tinham condição de seguir as prescrições do sistema, de antemão foram condenados e declarados rejeitados por Deus. Jesus, porém, mostrou que Deus não era assim, como a instituição religiosa o dizia. Optando pelos pobres e convivendo com eles, o próprio Deus, em Jesus Cristo, demonstrou que o sistema religioso não tinha razão. Deus não havia abandonado os pobres, tampouco os pecadores. Aqueles que aos olhos do sistema não mais tinham valor, aqueles que o sistema declarara que também aos olhos de Deus não tinham mais valor, exatamente estes foram revelados ter imenso valor para Deus. Vivendo de maneira demonstrativa a sua opção pelos pobres, Deus transmite aquilo que em Lc 4,18 é denominado “uma Boa-nova”: Ele não rejeita o ser humano por causa da sua fraqueza, mas, pelo contrário, o acolhe. Em vez de condená-lo e excluí-lo do seu amor, Deus age como Bom Pastor, correndo atrás daquele que se perdeu para recuperá-lo. O seu interesse primordial não são os justos, mas os pecadores, as ovelhas perdidas e aqueles que precisam de médico.6 O interesse de Deus, assim como se revela em Jesus Cristo, se dirige em primeiro lugar àqueles cuja autoestima foi destruída em nome de algum decreto ou algum código legalista que, em consequência, fez com que ficassem carregados de complexo de culpa e sentimentos de inferioridade. Mas Deus continua a se interessar por essas pessoas, mesmo que abandonadas e excluídas da instituição religiosa. Elas mantêm o seu valor e a sua dignidade aos olhos dele, que em Jesus se manifesta como um Deus que não condena ninguém (Jo 8,15). As palavras e o agir de Jesus de fato realizam uma inversão total da maneira pela qual tradicionalmente foi apresentado Deus. Em consequência, exigem a conversão de todas as antigas imagens de Deus, punidor daqueles que não seguem os seus mandamentos. A figura tremenda de um Deus onipotente e Imperador do Cosmo cede lugar à imagem de um Deus que lava os pés dos seus seguidores e que corre atrás daqueles que se desgarraram. Ele quer recuperá-los. Boa-nova para todos aqueles que se perderam, mas inaceitável para os outros que sustentam o seu poder por meio da figura de um Deus ameaçador. 53

A concepção de um Deus julgador que exige punição e expiação, que até sacrifica o seu próprio filho, para assim ser reconciliado, aparece neste pano de fundo como um agarrar-se obstinadamente à ideologia de que são necessários punições e bodes expiatórios para nos proteger da sua ira e da sua fúria. A nossa educação e os nossos princípios de direito ainda estão emprenhados dessa concepção. Mas também a teologia tem dificuldades em despedir a sua imagem sacrificial e aceitar a mudança radical que aparece em Jesus.7 13.2. Deus opta pela justiça e é contra toda opressão

A opção preferencial pelos pobres se encontra como parâmetro fundamental nas ações e nas declarações de Jesus. Mencionamos, além da clara práxis dele, como exemplo, também palavras como as do Sermão da Montanha (cf. Lc 6,20ss; Mt 5,1ss) ou da grande declaração programática (cf. Lc 4,18-19), respectivamente, a seguir: 20Levantando os olhos para os discípulos, Jesus dizia: “Felizes sois vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. 21Felizes os famintos de agora, porque sereis saciados. Felizes os tristes de agora, porque haveis de rir” (Lc 6,20-21). 18O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar aos aprisionados a libertação, aos cegos a recuperação da vista, para pôr em liberdade os oprimidos, 19e para anunciar um ano da graça do Senhor (Lc 4,18-19).

As várias categorias de pobres, mencionados anteriomente, revelam um fato sociológico fundamental: a pobreza deles é no fundo sempre o resultado de estruturas sociais que devemos qualificar de injustas. Jesus, para assim dizer, não opta pelos pobres porque são melhores, tampouco se situa do lado deles porque rezam mais. Na realidade, Deus, durante toda a história de Israel e de maneira explícita em Jesus, opta pelos pobres porque a pobreza deles, de uma maneira ou de outra, é o resultado de atitudes e estruturas injustas. É contra essas estruturas que Deus se revolta. São as injustiças que Deus rejeita. E por causa disso, toma partido dos injustiçados. Estes, porém, no decorrer de toda a história, são primordialmente os pobres. A partir desse fato chega-se a exigências muito concretas para o agir de todos os seguidores de Jesus e também das suas Igrejas. A verdadeira prova da sua fidelidade a Jesus não são as cerimônias litúrgicas bonitas, mas o seu agir concreto contra toda e qualquer atitude e estrutura injusta. A verdadeira prova da fidelidade a Jesus Cristo não são as cerimônias litúrgicas bonitas, mas o agir concreto contra toda e qualquer atitude e estrutura injusta.

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Estruturas, aliás, que de uma maneira ou de outra sempre causam mecanismos e situações de opressão, seja nos campos econômico, social, político ou religioso. Deus, porém, é contra a injustiça e rejeita toda e qualquer opressão. Ele rejeita estruturas injustas e incentiva transformá-las em situações justas, o que incomoda todos aqueles que tiram proveito exatamente dessas estruturas. Nos textos bíblicos, são os profetas que sempre alertam sobre a importância da criação de estruturas justas. Esse alerta se torna urgente sobretudo diante da progressiva formação de mecanismos econômicos, em razão dos quais o antigo sistema social igualitário de Israel foi destruído. Na cultura greco-romana, esse processo começou no século VIII a.C. Seu efeito em Israel se manifestou pela progressiva eliminação do sistema econômico da dádiva. A propriedade privada e a comercialização da terra destruíram o sistema igualitário. Mecanismos de créditos e juros, comercialização da terra, tributos e a estratificação cada vez mais dicotômica foram a consequência. Aquilo que começou no contato com o mundo helênico continuou em seguida no Império Romano. Israel sucumbia cada vez mais à tentação de também seguir o sistema econômico-financeiro desse império. A adoção da política de propriedade privada, com créditos e juros, acabou por gerar uma sociedade dicotômica, com poucos ricos de um lado e uma massa imensa de pobres do outro lado. Diante dessa situação, os profetas reagiram em nome de Javé. Amós denunciou a exploração dos pequenos agricultores.8 Miqueias exigiu mudanças nas práticas econômicas (cf. Mq 2,1-3). Em nome de Javé, exigiu-se a mudança do sistema econômico.9 Jesus continua na mesma linha de ação, mas ele amplia ainda mais as exigências por estruturas justas. E sendo ele o Deus encarnado, só podemos ver nessa sua práxis a continuação daquela opção pela justiça que já foi manifesta na história do Antigo Testamento. Tal fato fica evidente como linha condutora no decorrer de todos os relatos dos evangelistas. Como exemplo, podem ser mencionados sobretudo: • Mt 6,12: Pai-nosso: As correções periódicas, previstas no AT, podem ser feitas constantemente. (Perdoai as nossas dívidas, assim como nós [agora] perdoamos.) • Lc 4,1-5: O ano sabático é agora. • Mc 11,15-19: A expulsão dos vendedores do Templo demonstra o fato de que o verdadeiro Deus não legitima estruturas de exploração e empobrecimento do povo, mesmo quando estas estão sendo mantidas em seu próprio nome. • Mc 12,13-17: A disputa sobre a questão dos impostos lembra as exigências de Lv 25: O povo é de Deus; a terra é de Deus; os frutos da terra são de Deus. Consequentemente, ninguém tem o direito de exigir impostos que oprimam e explorem o povo. • Os grandes valores do Reino de Deus, enfatizado por Jesus em todo o seu agir, acentuam “justiça”, amor e fraternidade como base do relacionamento social. 13.3. Deus opta pela misericórdia e é contra todo legalismo

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Os Evangelhos apresentam Jesus em constante conflito com a “ideologia religiosa que encobre e justifica a opressão dos pobres de Israel”.10 A partir da sua concepção de Deus e do Reino de Deus, ele desmascara o legalismo religioso da sua época, uma vez que esse legalismo é oposto à vontade de Deus, apesar de ser apresentado como vontade dele. Muitas das suas parábolas, assim como toda a sua práxis, lembram sempre que o grau da proximidade ou da distância de Deus não pode ser medido com o parâmetro casuístico da fidelidade ao decreto da Lei religiosa. Com a liberdade de um Deus, deslegitima o zelo legalista do Templo e de todos os seus representantes. Na sua própria práxis, sempre põe a pessoa humana e as suas necessidades acima de uma interpretação legalista e casuística dos mandamentos da Lei. Em diversas ocasiões, quando está em jogo a ampliação das dimensões da vida de uma pessoa, ele mesmo transgride a Lei. Com isso, porém, deslegitima todo o sistema religioso-legalista da sua época. Mc 2,27: “O sábado foi feito para as pessoas e não as pessoas para o sábado.” Mt 12,8: “O Filho do homem é senhor também do sábado.” Com a soberania que só Deus tem, Jesus relativiza o legalismo, sinalizando a todos aqueles que sofreram sob o peso de Leis e regras e decretos religiosos que Deus não se interessa em primeiro lugar por esses decretos, mas pela vida humana e seu bem-estar. Essa mudança de perspectiva se confirma na atitude de Jesus frente às exigências cúlticas. Não que ele rejeitasse o culto em si. Mas ele o relativiza em relação àquilo que é o verdadeiro interesse de Deus: a pessoa humana, a sua dignidade e a sua vida.11

Jesus privilegia “o amar sobre o prestar culto, o ser puro e o saber sobre Deus”.12 Em vez de vigiar com olhos severos a observância das Leis e dos códigos de direito religioso, o interesse dele se dirige para aqueles que foram esmagados e condenados por esses códigos, pelas suas Leis e seus guardiões sacrais.

Misericórdia quero, não sacrifícios! (Mt 9,13; 12,7; Os 6,6) Tal palavra, pronunciada dentro de uma estrutura fixada sobre um legalismo religioso acentuado, deslegitima de vez todo e qualquer legalismo, mesmo estando este sustentado pelos argumentos mais sacralizados que se pode imaginar. O Deus encarnado, Jesus, não se interessa pelas Leis religiosas e as suas celebrações cúlticas, quando essas Leis esmagam o ser humano.13 Se estiveres diante do altar para apresentar tua oferta e ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa tua oferta lá, diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão e então volta para apresentar tua oferta (Mt 5,23-24).

A mensagem comum de Jesus, de uma maneira ou de outra, culmina sempre no mesmo: toda imagem de um Deus legalista e punidor é falsa. Se, porém, tal imagem é falsa, todos aqueles e aquelas cuja vida está sendo pisada, restringida e destruída podem recuperar nova esperança. Deus está do lado deles e delas, e não do lado daqueles que os oprimem, marginalizam e excluem, seja por razões econômicas, 56

socias, políticas ou até religiosas. A ternura de Deus para com eles lhes dá nova coragem, porque Deus “não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que ainda fumega” (Mt 12,20). É por palavras como essas que se revela o verdadeiro ser de Deus. Diante de tal fato, e diante das ações pelas quais o Deus encarnado em Jesus de Nazaré confirmou essa sua autodefinição, todas as imagens de um Deus ameaçador e punidor se revelam falsas. São projeções humanas e tentativas de justificar desejos humanos de dominação e de poder. O grande pensador francês René Girard mostrou esse fato de maneira muito clara, e o teólogo Raimund Schwager o confirmou nas suas reflexões brilhantes sobre a superação de toda concepção sacrifical em Jesus Cristo.14 Concepções de um Deus que exige sacrifícios para acalmar a sua ira são imagens falsas de Deus. A sua origem deve ser buscada naquilo que Girard chama os mecanismos da mimesis e do “bode expiatório”. Estes funcionam da seguinte maneira: as agressões de uma comunidade são projetadas inconscientemente sobre um único indivíduo escolhido. Este é eliminado, e a inconsciente agressividade humana, que causa tal ação, por sua vez é projetada em Deus. Assim, pode-se dizer que essa eliminação é vontade dele. E os autores do agir agressivo, por sua vez, até agem com a consciência muito tranquila, porque são convictos de serem eles os instrumentos de Deus. No decorrer da história, descobrimos, também em ambiente cristão, um número infinito de agressividades que assim foram justificadas, começando com a extirpação dos assim chamados hereges ou bruxas até a expulsão de irmãos e irmãs que de uma maneira ou de outra não correspondiam aos códigos estabelecidos de comportamento. Por detrás de todo esse agir, de fato encontramos muitas vezes imagens falsas de um Deus legalista, vingador e punidor daqueles que não obedecem aos seus mandamentos. Jesus, de uma vez por todas, revelou a falsidade de todas essas imagens e de todo agir que nelas se quer apoiar. Contra aqueles que em qualquer época pensam servir a Deus pelos mecanismos do poder e da opressão, Deus responde em Jesus Cristo pelo amor. E, perante a violência dos seus inimigos, reage com o convite à amizade. Assim, quebra-se o círculo vicioso da agressividade e da vingança, com a sua interminável sucessão de vítimas. Deus age conforme outros parâmetros, e estes vêm à tona no agir histórico de Jesus. Diante desse agir, os detentores do poder religioso reagiram com rejeição e, ao constante convite à conversão, responderam com agressividade crescente. Mas, apesar das acusações deles e em oposição flagrante a todas as tentativas históricas de fazer dele um Deus ameaçador, ele continua manifestando-se em Jesus como um Deus que se inclina aos fracos, aos perdedores, aos esmagados e aos rejeitados. É nisso que consiste a Boa-nova para a época e para todas as gerações seguintes, até hoje. Deus não exige a morte e a punição. Em oposição total a todas as imagens respectivas que durante tantos séculos assustaram as pessoas, Jesus revela que, diante de Deus, não é preciso ter medo. Em vez disso, encontramos nele uma ternura 57

infinita, um amor sem fronteiras e um coração que se abre para todos aqueles que foram declarados perdidos e sem valor. Assim é Deus e assim ele se manifesta no convite de Jesus: Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas. Porque a minha carga é suave e o meu fardo é leve (Mt 11,28-30)

Diante de tal solidariedade com todos aqueles que foram esmagados, a única atitude dos adeptos de Deus pode ser a sua imitação. À medida que essa imitação é concretizada, realiza-se aquilo que Jesus proclamou como o seu grande e último objetivo: O REINO DE DEUS. Ali, onde Deus reina, ninguém deve ter medo, ninguém será esmagado ou oprimido e ninguém será excomungado da comunidade universal de todos os seres humanos. 13.4. Deus opta pelo serviço e é contra o poder

Por uma história de séculos e no fundo desde o momento em que a religião cristã se tornou religião oficial do Império Bizantino-Romano, na pessoa de Deus sempre foram enfatizadas as suas características de poder. Até no Credo da Igreja se acentua essa perspectiva, declarando acreditar em “Deus Pai todo-poderoso”. Em termos teológicos, não há nenhuma objeção contra tal denominação, porque Deus, sem dúvida nenhuma, tem essa característica. O problema é muito mais psicorreligioso. A ênfase nas características do poder, de cujas razões ideológicas já falamos anteriormente, fez desaparecer, ou pelo menos diminuir, da consciência religiosa uma outra característica de Deus. Esta, quando lembrada, até causa espanto em certos cristãos e cristãs. Olhando, porém, para o Deus encarnado em Jesus Cristo, é impossível negá-la: DEUS É HUMILDE E PÕE-SE A SERVIÇO DAS PESSOAS HUMANAS. E esse pôr-se a serviço não é característica acidental, não. Ela, pelo contrário, aparece como opção específica do Deus encarnado. Podemos supor que, na mais clara Revelação de si mesmo em Jesus Cristo, Deus não agiu puramente por acaso, e fica óbvio que também a explícita acentuação do “servir” faz parte daquilo que Deus quer informar de maneira específica sobre si mesmo. Deus é um Deus humilde que serve! Um Deus que serve, porém, é escândalo para todo poder. O poder quer ordenar e dominar. O Deus encarnado, no entanto, se declara servidor e, para demonstrar isso de maneira clara e definitiva, assume exemplarmente aquele serviço, que só os escravos mais “baixos” tinham que fazer para os seus senhores: ele lava os pés dos seus discípulos. Mesmo admitindo-se, a partir das explicações dos exegetas, que a cena descrita por João (cf. Jo 13,4-5) talvez nunca tivesse acontecido dessa maneira, a sua mensagem permanece válida sem a mínima restrição. Já lembrávamos que “os livros 58

da Escritura”, conforme a Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II, “ensinam, com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus em vista da nossa Salvação quis que fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (DV 3,11-13). A partir desse pressuposto, a questão da verdade histórica fica secundária, diante da mensagem teológica, transmitida pelo texto: Deus é humilde e se põe a serviço das pessoas humanas!

Tal fato até hoje continua a indignar todos aqueles que preferem dominar. Quem domina não quer servir. Assim, não é de admirar que, até dentro da religião cristã, a cena do lava-pés foi muito marginalizada. Ela incomoda demais! Um Deus que serve incomoda muito mais que um Deus todo-poderoso. Se, porém, o próprio Deus, em Jesus Cristo, optou por mostrar a nós essa sua preferência, só podemos aceitar. Encontramos nela mais uma manifestação daquela Kenosis, da qual Paulo fala em Fl 2,5-8. Na época de Jesus, o sistema religioso justificava o seu poder em nome de Deus. E no decorrer da história do cristianismo, constatamos muitas vezes o mesmo. Com base no lava-pés, porém, ninguém mais pode recorrer a Deus para justificar as suas atitudes de dominação. Também com base no lava-pés, vale para todos os seguidores de Deus encarnado somente aquilo que os textos dos Evangelhos colocam na própria boca de Jesus: 12Depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto, sentou-se de novo e perguntou: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer?13Vocês dizem que eu sou o Mestre e o Senhor. E vocês têm razão; eu sou mesmo.14 Pois bem: eu, que sou o Mestre e o Senhor, lavei os seus pés; por isso vocês devem lavar os pés uns dos outros. 15Eu lhes dei um exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz (Jo 13, 12-15). Sabeis como os governantes das nações fazem sentir o seu domínio sobre elas, e os magnatas, a sua autoridade. Entre vós não deve ser assim. Quem quiser ser grande entre vós faça-se vosso servo, e quem quiser ser o primeiro entre vós faça-se escravo de todos (Mc 10,42-44). 13.5. Deus opta pela vida

Tomando a sério o que foi apresentado nos capítulos anteriores, é possível conhecer passo a passo aquilo por que Deus se interessa em primeiro lugar. É em Jesus Cristo que essas preferências se manifestam, e elas podem ser resumidas nesta síntese fundamental: DEUS QUER QUE OS HOMENS TENHAM VIDA, E A TENHAM EM ABUNDÂNCIA (Jo 10,10). Se da pessoa humana é possível conhecer o caráter analisando as suas preferências, podemos supor que o mesmo seja válido também naquele verdadeiro homem que, ao mesmo tempo, é o verdadeiro Deus: Jesus, o Cristo. Nas suas opções, encontramos as opções de Deus e a partir delas podemos conhecer melhor Deus. Ou como Edward Schillebeeckx o formula: “Nós deciframos aquela imagem de Deus que 59

[...] nos é dada pela vida de Jesus de Nazaré”.15 Tal decifrar, porém, em muitos casos, questiona a imagem tradicionalmente ensinada. Naquela tradição, Deus tinha se tornado um ser abstrato, descrito por categorias muitas vezes distantes da vida. Em Jesus, porém, encontramos a imagem de um Deus concreto, envolvido até o pescoço com a vida dos seres humanos. Não é por acaso que Edward Schillebeeckx intitula um de seus livros já citados sobre o assunto de Homens, a história de Deus.16 Esse Deus, diz o autor, “se interessa pela existência feliz de seres humanos que vivem ameaçados pela natureza, pela opressão social e pela autoalienação”.17 E esse interesse se manifesta, de maneira primordial e explícita, no agir dele, assim como ele se mostra a nós em Jesus Cristo. É nele que a sua ternura se torna tocável e visível, e é nele que se torna manifesto também que Deus em nada se interessa por dominar e condenar. Ele veio para servir, porque uma de suas características-chave é a sua humildade. A mais clara e chocante Revelação desse fato encontramos na cena já comentada do lava-pés (cf. Jo 13,1-5), mas ela no fundo percorre toda a história de Jesus Cristo. Deus é humilde, e essa característica desafia demais todos aqueles que optaram pelo poder e pela dominação. Contra todas as tentações respectivas, podemos lembrar cada vez mais o novo enfoque, a partir do qual a teologia feminista tenta compreender Deus: ele é também mãe. E em sua maternidade se preocupa demais com o bem-estar e com a felicidade de suas filhas e de seus filhos. Num contexto religioso, marcado pela imagem de um Deus legalista e ameaçador, o Deus verdadeiro manifesta a sua ternura e o seu amor para com os homens. Ele se revela como um Deus que, de maneira preferencial e partidária, optou por todos aqueles cuja vida está limitada, oprimida e ameaçada. “Eu vim para que eles tenham a vida e que a tenham em abundância” (Jo 10,10). As opções fundamentais de Jesus de Nazaré são as opções do próprio Deus, porque Jesus é o Deus encarnado. • A OPÇÃO PELOS POBRES, COMO CONCRETIZAÇÃO DA OPÇÃO PELOS INJUSTIÇADOS. • A OPÇÃO PELA MISERICÓRDIA E CONTRA TODO LEGALISMO. • A OPÇÃO PELO SERVIÇO E CONTRA O PODER. • A OPÇÃO PELA JUSTIÇA E CONTRA TODA OPRESSÃO. • A OPÇÃO PELA VIDA. 1 Cf. as declarações respectivas do Concílio de Calcedônia, 451 d.C. 2 Como exemplo, cf.: BOLZ, Norbert. Das konsumistische Manifest (O Manifesto Consumista). Munique: Wilhelm Fink Verlag, 2002, p. 34. 3 Cf . BRECHT, Berthold. Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny. Gesammelte Werke, Stucke 1. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1967, p. 555. 4 Cf. Lc 15,2: Os fariseus e escribas resmungavam, dizendo: “Este homem acolhe os pecadores e come com eles”. Lc 7,34: Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: “Olhem! Um comilão e beberrão, amigo de cobradores de impostos e pecadores”. Mt 11,19: Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizem: “Olhem! Um comilão e um beberrão de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores”. 5 Cf. o muito interessante artigo de José Maria Vigil, A opção pelos pobres é opção pela justiça, 2010. Disponível em: . 6 Cf. Mc 2,17; Lc 5,32; Mt 15,25; Lc 5,31-32. 7 JASCHKE, Helmut. Dunkle Gottesbilder (Imagens sombrias de Deus). Freiburg-Basel-Wien: Herder, 1992, p. 147. 8 Cf. Amós 2,6-8: Escravização por causa de endividamento; 8,4-7: Fraudes contra agricultores que precisam de créditos; 5,10; 6,12: Fraudes no direito que protege os pobres; 5,11s: Tributos aos custos dos pequenos; 5,11; 6,4-6: Critica os ricos que exploram os pobres. 9 a) Exemplos da 1ª Reforma, fim do século VIII a.C.: Ex 21-23; 23,6: Não te desviarás da justiça para condenar o pobre; 23,12: Descanso no 7º dia

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(homem, boi, jumento, escravo); 21,2-77: no 7º ano: Libertação dos escravos (endividados); 23,10s: no 7º ano: Terra em repouso – Frutos para os pobres; 22,20-23: Não explorar estrangeiros, viúvas, órfãos; 22,25-26: Proibição de tomar juros; b) 2ª Reforma sob Josias (622 a.C.) > Deuteronômio (cf. Dt 23,20; 24,6.10ss; Dt 15: Remissão das dívidas – ano sabático); c) nova tentativa depois do Exílio: Levítico (século V), Lv 25,23: “Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra pertence a mim (Javé), e vós sois apenas estrangeiros e hóspedes na minha casa”. 10 SEGUNDO, Juan Luis. A história perdida e recuperada de Jesus de Nazaré. São Paulo: Paulus, 1997, p. 198. 11 BLANK, Renold J., op. cit., p. 256. 12 GALLARDO, Carlos Bravo, op. cit., p. 303. 13 BLANK, Renold J., op. cit., p. 204. 14 Cf. GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990; SCHWAGER, Raymund. Brauchen wir einen Sundenbock? (Precisamos de um bode expiatório?). Munique: Kösel, 1978. 15 SCHILLEBEECKX, Edward. Menschen, die Geschichte von Gott. Freiburg-Basel-Wien: Herder, 1990, p. 229. 16 Ibidem. (Na mesma perspectiva, cf. também: QUEIRUGA, Andrés Torres. Recuperar a criação. São Paulo: Paulus, 1999, p. 124ss.) 17 Ibid., p. 170.

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14. EM JESUS, DEUS SE REVELA COMO DEFENSOR TAMBÉM DAQUELES QUE FORAM REJEITADOS PELO SISTEMA RELIGIOSO

O fato de o próprio Deus assumir a defesa daqueles que em seu nome foram rejeitados pelo sistema religioso se torna evidente quando lembramos do status daqueles que pelos representantes da ortodoxia foram denominados “pecadores”. Conforme o sistema sociorreligioso em vigor, tal pecador tinha que ser excluído também do sistema. O sistema justificava tal exclusão através de uma sofisticada argumentação teológica. Foram declarados pecadores todos aqueles que não correspondiam ou não mais podiam responder às exigências do sistema. O sistema teológico oficial declarava que Deus não se interessaria mais por eles enquanto não pagassem as dívidas que teriam acumulado diante dele. Tal pagamento, porém, consistia, sobretudo, na compra dos animais destinados aos sacrifícios, prescritos para o perdão dos pecados, além do pagamento das taxas para as purificações rituais e para as instruções catequéticas prescritas. Gastos que, como já explicado, serviam em primeiro lugar para o aumento da renda da instituição religiosa e dos seus representantes. E a tudo isso se acresentava ainda o pagamento dos impostos muito pesados. Todos eles foram arrecadados pelo Templo e declarados exigência do próprio Deus. Mas, para receber os seus próprios impostos, o sistema religioso tinha que arrecadar também aqueles dos romanos e de Herodes. Essa excessiva tributação na época de Jesus foi um dos fatores que mais contribuíram para o empobrecimento progressivo de camadas cada vez maiores da população.1 É óbvio que todos aqueles cuja situação financeira já era apertada não podiam satisfazer as exigências de tal tributação. Com isso, porém, outra vez foram declarados pecadores e, como tais, excluídos da sociedade dos “puros”. Exclusão que, conforme a teologia em vigor, de novo significava ser rejeitado também por Deus. Em Jesus, porém, Deus rompe com todo esse sistema. Ele mesmo, na pessoa de Jesus, convive com aqueles excluídos, come com eles e se situa do lado deles. Com essa atitude quebra todos os tabus de uma sociedade cimentada e exclusivista. Ele demonstra, de maneira palpável e visível, para todos, que a teologia dos representantes da ortodoxia é falsa. O comportamento de Jesus, do Deus encarnado, mostra que esse Deus não aceita a argumentação teológica que tenta justificar a exclusão do assim chamado pecador. Deus não rejeita aqueles que foram estigmatizados pelos piedosos e pelo sistema religioso como “pecadores”. Pelo contrário! Deus se interessa primordialmente por eles. “Os doentes precisam do médico, não os com saúde.” (Lc 5,31) “Deus não veio para chamar os justos, mas os pecadores!” (Mt 9,13) Deus não concorda com a exclusão de pessoas humanas,

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mesmo quando o sistema religioso em vigor legitima tal exclusão com argumentos teológicos ou morais.

É pelo destino deles que Deus se interessa. Sendo a situação essa, então a perspectiva dos representantes de todo sistema legalista é falsa. E sendo revelada como falsa pelo agir do próprio Deus encarnado, então ela deve ser mudada! É essa a consequência inquietante e ao mesmo tempo feliz daquela atitude de Jesus que chamamos de “opção preferencial pelos pobres”. Mas não é só isso! A práxis de vida de Jesus revela também que Deus não concorda com a exclusão de pessoas humanas, mesmo naqueles casos em que o sistema em vigor legitima essa exclusão com argumentos teológicos ou morais. Em razão disso, Deus se situa do lado dos excluídos e contra o sistema, até quando este se declara como representante dele. E caso ninguém mais defenda aqueles excluídos, o próprio Deus assume a defesa deles. Foi isso que demonstrou de maneira muito clara em Jesus. Se, porém, a situação se apresenta assim, todas as Igrejas cristãs e todos aqueles que se chamam de cristãos ou cristãs encontram-se outra vez diante do desafio urgente e ao mesmo tempo muito feliz: eles devem verificar se nas estruturas das suas próprias Igrejas ou organizações não há mecanismos similares ou iguais àqueles que Jesus rejeitou no sistema religioso da sua época. Desafio para todas as Igrejas cristãs e seus membros: Verificar se nas estruturas das próprias Igrejas ou organizações religiosas não há mecanismos similares ou iguais àqueles que Jesus rejeitou no sistema religioso da sua época.

Caso haja tais mecanismos, inevitavelmente devem ser mudados. Com isso, porém, estamos confrontados hoje com exatamente a mesma exigência que Jesus, já na sua época, dirigiu ao sistema religioso e aos seus representantes: Convertam-se! O significado desse apelo, conforme a situação, nem é primordialmente a exigência de melhorar as atitudes morais do indivíduo, mesmo que, nos séculos passados, esse enfoque tenha sido acentuado. Na realidade, o chamado à conversão ultrapassa em muito o nível individual. É primordialmente a invocação de Deus para transformar todas aquelas estruturas, que não correspondem à vontade dele. Dessas estruturas fazem parte as estruturas individuais, mas elas implicam, sobretudo, toda organização social, assim como os sistemas econômicos, políticos, financeiros e também religiosos. Entretanto, as exigências da conversão não param nisso. Nem a transformação das estruturas, por si só, já basta. Além disso, torna-se necessário mudar também as condições, a partir das quais as estruturas surgiram. A transformação das estruturas, por si só, não basta. É necessário mudar também as condições,

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a partir das quais as estruturas surgiram.

Essas condições devem ser mudadas de tal maneira que correspondam aos parâmetros de Deus. Um desses parâmetros é o enfoque a partir do qual se enxerga o mundo. Dependendo desse enfoque, estruturas são criadas ou mantidas, e a conscientização da eventual necessidade de mudanças é realizada, embora ela, numa atitude de “cegueira sistêmica”, também possa ser rejeitada. A presença dessa cegueira é denunciada por Jesus, e pode ser constatada no decorrer de toda a história em pessoas que não conseguem ou não querem ultrapassar as fronteiras do sistema ao qual pertencem. A todas elas, em todas as épocas, se dirige a acusação de Mt 13,13 (também 13,15): “[...] veem sem ver e ouvem sem ouvir [...]”

Contra todas essas atitudes, porém, se levanta, em nome de Jesus Cristo, sempre a mesma exigência: caso um enfoque em vigor não corresponda àquele revelado do Deus encarnado, só há uma única solução: o enfoque deve ser mudado, mesmo quando, no passado ou talvez até hoje, ele tenha sido legitimado por argumentações filosóficas ou teológicas. Apresentaremos nos próximos capítulos exemplos de algumas temáticas, nas quais o perigo de “cegueira sistêmica” pode ser constatado até hoje. 1 Cf. MORIN, Émile, op. cit., p. 33-36; THEISSEN, Gerd. Sociologia do movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 40-43; HOORNAERT, Eduardo, op. cit., p. 53-59; JEREMIAS, Joaquim, op. cit., p. 40, 43s, 81s, 175-178.

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15. JESUS CRISTO E A NECESSÁRIA MUDANÇA DA NOSSA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA1 15.1. REDESCOBRIR A REVELAÇÃO COMO BASE PARA A REFLEXÃO ANTROPOLÓGICA Durante séculos refletiu-se na teologia cristã sobre a questão antropológica a partir de uma base meramente pagã: a filosofia de Aristóteles. O ser humano foi visto e compreendido com base na definição daquele pensador, como animal rationale, isto é, como ser que pensa, que tem autoconsciência, que possui a capacidade de raciocínio lógico e assim por diante. Além disso, durante séculos a antropologia cristã compreendeu o ser humano na linha do pensamento de Agostinho como ser decaído, pervertido pelo pecado e incapacitado por causa da sua própria culpa de ser aquilo que deveria ser, imagem e semelhança de Deus. O referencial era, assim, ou aquele do ser racional, conforme os enfoques da filosofia grega pagã, ou aquele do ser fracassado, incapaz de se levantar pela sua própria força. Ambos referenciais careciam muito da perspectiva esperançosa que tanto marca a Revelação divina sobre Jesus Cristo. E mesmo quando a ligação com a encarnação se estabeleceu, o enfoque era primordialmente negativo e, por sua vez, influenciado, em geral, pelos modelos pessimistas da filosofia gnóstica. O resultado foi que a indagação filosófica sobre o homem girava primordialmente em torno da questão de pertencer ou não à categoria de um ser racional. A sua capacidade de conhecer foi tomada como ponto de referência e objeto de reflexões, centradas na dimensão racional. A teologia, por sua vez, lembrando que a sua tarefa era “refletir sobre Deus”, também falava do homem a partir da mesma base racional. Além disso, ela acentuava, sobretudo, as perspectivas negativas do ser humano, pecador, enfraquecido pelo pecado e necessitado de ser salvo e recuperado pela graça de Deus. Com essa visão, porém, a reflexão antropológica negligenciou cada vez mais aquele ponto de referência, que, na realidade, também deveria ser início e chave de toda reflexão cristã sobre o ser humano: JESUS CRISTO E A MANEIRA PELA QUAL ELE SE MANIFESTOU. Esse esquecimento da verdadeira referência-chave de toda reflexão antropológica chegou a tal grau, que, hoje, até representantes do sistema religioso reagem com indignação, caso certos teólogos tenham a ousadia de relacionar a pessoa de Jesus Cristo com certas questões antropológicas. Mas é exatamente isso que se deve fazer. Se queremos falar do homem, é indispensável falarmos do Deus que se fez homem. Isso significa que a teologia cristã tem a obrigação de recuperar, de maneira explícita, o seu próprio ponto de partida, assim como foi formulado de maneira magistral e absolutamente clara pela Igreja. Esta, nos dois Concílios, de Niceia e de Calcedônia, formulou aquela verdade que até hoje permanece pedra angular e chave de toda a fé cristã: 65

JESUS CRISTO É VERDADEIRO HOMEM E VERDADEIRO DEUS! Diante da crise institucional das Igrejas cristãs, e diante das mil e uma indagações que se formulam endereçadas a ela, seja por parte de um mundo de crescente pluralismo religioso, seja por parte de um sacramentalismo neoconservador, é este fato fundamental que a religião cristã deve tomar a sério novamente: Na pessoa de Jesus, encontramos o Deus verdadeiro que se tornou ser humano verdadeiro.

Toda a história da teologia da Revelação nos familiarizou com o fato de que, na pessoa de Jesus, Deus nos informou de maneira clara e plena “como ele é” (Hb 1,23). Essa verdade, apesar de em nada ser concretizada em suas consequências, não pode ser questionada por nenhuma teologia cristã séria. A religião cristã toma, ou pelo menos deveria tomar, Jesus Cristo como referênciachave para saber como Deus é, porque, na pessoa de Jesus Cristo, encontramos o Deus encarnado em pessoa humana. Em nosso livro Deus na História, refletimos de maneira ampla sobre as consequências desse fato.2 Em Jesus Cristo, porém, não só encontramos a última e definitiva resposta à nossa indagação sobre como Deus é (cf. Hb 1,2-3), mas ele também nos informa, de maneira plena, sobre a questão como o ser humano é. Isso porque podemos supor que, em Jesus, encontramos também esse ser humano na sua mais clara realização. O resultado desse fato é que da mesma maneira que se deve tomar a sério, com todas as suas consequências, o enfoque do dogma sobre Jesus, verdadeiro Deus, é necessário também tomar a sério o outro lado dele: Jesus, além de ser verdadeiro Deus, também é verdadeiro homem.

Se queremos saber como o homem aos olhos de Deus deveria ser, temos que olhar de novo para a pessoa de Jesus. Sendo ele realmente aquele verdadeiro homem, em cujo ser Deus se encarnou, é óbvio que essa encarnação humana de Deus corresponda em plenitude àquilo que o próprio Deus imagina de uma pessoa humana ser. Essa verdade foi negligenciada durante séculos, por causa daqueles outros referenciais antropológicos que, no início deste capítulo, foram mencionados. Em vez de continuar limitando-se a eles, o discurso sobre o homem, assim como o discurso sobre Deus, deve voltar à sua verdadeira base. A partir dela, temos também um novo ponto de partida para a reflexão antropológica. Ela não mais se baseia unicamente numa concepção do ser humano elaborada pelos raciocínios filosóficos. Ela, em vez disso, se sustenta no fato da Revelação. Em Jesus Cristo, o próprio Deus revela como ele imagina o ser humano. E ele o revela tornando-se pessoa humana. Podemos supor que Deus, quando se tornou ser humano, agiu de maneira consciente e premeditada. Isso, porém, significa que, também do lado antropológico, essa encarnação não aconteceu de forma rudimentar e fragmentária, mas em plenitude. Consequentemente, é indispensável admitir que, em Jesus, não só encontramos a Revelação plena sobre a questão de como Deus é, mas encontramos também a Revelação plena sobre como o homem é. Essa Revelação, no entanto, da mesma maneira como a Revelação sobre como Deus é, não se realiza através da transmissão de conceitos teóricos. Nós a 66

encontramos num acontecimento histórico, cujos elementos podemos analisar. Nessa análise, encontramos uma pessoa humana, Jesus de Nazaré, que igualmente acreditamos ser também o Filho de Deus e a segunda pessoa da Trindade. Cristo, porém, “renuncia exigir as qualidades divinas, das quais tem pleno direito, para viver nossa história [...]”.3 Ele se revela a nós em plena forma de pessoa humana. Assim, descobrimos na encarnação de Deus não só a Revelação sobre como Deus é, mas também, e ao mesmo tempo, a Revelação de como o homem, conforme os planos de Deus, deveria ser, porque esse Filho de Deus também é homem. No seu agir, aparece o homem assim como Deus o imaginou: Imagem e semelhança de Deus. Caso queiramos, então, encontrar uma definição sobre quem o ser humano é, devemos começar aqui. Em vez de definir, em primeiro lugar, que o homem é um ser, capaz de raciocínio lógico, é necessário cavar muito mais profundo. É preciso mergulhar em dimensões além do raciocínio lógico, para realmente compreender a verdadeira essência do ser humano. Essas dimensões, por sua vez, não se encontram em pesquisas racionais, mas ao ouvir e olhar para aquilo que o Logos, na sua manifestação humana, expressou. Uma vez que esse Logos se tornou carne, conforme a expressão do autor do quarto Evangelho (cf. Jo 1), é ouvindo e olhando para essa encarnação que se descobre também a resposta à nossa indagação pela essência daquilo que o homem é. Em Jesus de Nazaré, encontramos o homem modelo, o protótipo do homem assim como Deus o imaginou, o novo Adão, para falar na linguagem de Paulo. Tudo isso, na teologia cristã, sempre se soube, contudo, pouco se fez para colher os frutos desse saber. Outros temas aparentemente mais importantes e mais “teológicos” ocuparam a atenção dos teólogos. Talvez hoje seja a ocasião para descer daquelas grandes e impressionantes construções teológicas, nível ao qual o próprio Deus desceu: o humano. Talvez agora, numa época em que se veem as grandes construções teológicas com suspeita, seja a ocasião para redescobrir o humano, com um novo olhar para Deus na sua forma humana. 15.2. A KENOSIS DE DEUS IMPLICA TAMBÉM A KENOSIS DO HOMEM Com esse novo olhar, encontramos em primeiro lugar aquele fato geralmente conhecido como a Kenosis de Deus. Mas essa Kenosis, essa renúncia de Deus a todos os seus atributos de poder, também nos conduz a uma descoberta importante sobre o homem. Isso porque ela, além de ser a Kenosis do Deus uno e trino e a inimaginável autoaniquilação de um ser supremo, é a Kenosis do homem, e esse aspecto antropológico pouco foi pensado na teologia. Em Jesus, verdadeiro homem, também esse homem se revela como ser kenótico. Revela-se como ser capaz de realizar algo que nenhum animal é capaz: • Renunciar de livre e espontânea vontade a todos os atributos de poder e de dominação. • Servir, não por causa de um adestramento aplicado, mas por vontade própria. • Perdoar de maneira ilimitada. 67

• Amar até os seus inimigos. • Aceitar qualquer um, sem restrição nenhuma. • Assim é o ser humano conforme Deus o imagina: • Um ser capaz de renunciar aos impulsos de dominação. • Um ser capaz de substituir os mecanismos de vingança e de agressividade pela fraternidade, pela solidariedade e pelo amor. Assim Deus, na sua encarnação em verdadeiro homem, nos apresentou o homem. Obviamente, ele o imagina assim. Isso significa que em Jesus de Nazaré realmente encontramos, outrossim, a última resposta sobre como o verdadeiro homem é, conforme os planos de Deus. Em Jesus, encontramos também a última resposta sobre como o verdadeiro homem é, conforme os planos de Deus.

Em consequência, podemos também dizer que, à medida que cada pessoa vive a sua vida à maneira pela qual Jesus viveu, ela também se aproxima da concepção antropológica que Deus tem do ser humano. Tal semelhança, entre outras características, implica assumir a perspectiva a partir da qual o próprio Deus parece contemplar a história, o homem e o mundo. 15.3. ASSUMIR A PERSPECTIVA DE DEUS Uma história de milênios nos acostumou a ver tudo, o ser humano, o mundo e a história, a partir da perspectiva do vencedor. Todas as nossas aulas de história tratam daquilo que os grandes imperadores, reis e generais conseguiram. Ninguém, porém, fala da opinião e dos problemas daqueles cujo sacrifício levou esses generais a realizar as suas conquistas. Quem está sendo celebrado nos Jogos Olímpicos são os ganhadores, dos perdedores ninguém quer se lembrar. E até nos torneios de futebol e nas competições dos alunos do nosso sistema escolar, constatamos o mesmo: os integrantes desse sistema, desde as primeiras classes da sua escolaridade, aprendem que o que conta é ganhar. Dos perdedores nem se fala, e no máximo com desprezo e raiva. E tal mentalidade, promovida por todos os meios de propaganda, pelo sistema econômico, pelas organizações militares e pelos partidos políticos, se tornou tão evidente, que nem mais o percebemos. Precisou-se do poema de um poeta decididamente ateu para que os cristãos se lembrassem do fato de que existe outra perspectiva. E mesmo lendo o texto do poeta, praticamente ninguém se conscientizou de que a perspectiva aqui apresentada era também a perspectiva daquele Deus que os cristãos veneravam. Uma vez que tal conscientização era muito desagradável, a maioria deles optou por esquecer o mais rápido possível tal pensamento subversivo e voltar a venerar o seu Deus a partir dos parâmetros da glória, do poder e da onipotência dele. 68

Que aquele Deus, quando em Jesus Cristo se manifestava da maneira mais clara, mais plena e mais ampla à humanidade, em nada tinha optado em acentuar tais distintivos, esse fato a maioria dos cristãos preferiu esquecer. E os seus chefes políticos, econômicos e até religiosos se apressaram em lembrar que de fato são em primeiro lugar as características do poder e da onipotência as mais adequadas para venerar o Criador do cosmo e o Senhor de todos nós. A história da Revelação nos informa realmente que Deus é todo-poderoso, onipotente, criador do cosmo e muito mais. E que ele realmente é tudo isso não há a mínima dúvida. Tudo, porém, na história de Jesus Cristo indica que Deus não está muito interessado em ser venerado a partir de tais características do poder. Caso estivesse, com certeza teria se mostrado assim. Fato histórico, porém, é que optou por se revelar como ser humilde, servidor e amigo dos pequenos. Se apesar disso predomina, na história da religião cristã, a preocupação com a devida honra do Senhor onipotente, tal fato deve ter outra razão. Essa razão fica evidente quando se pergunta de que maneira algum dos senhores deste mundo poderia ainda justificar o seu poder e a sua própria glória, caso o criador eterno e absoluto de tudo isso, Deus, o Onipotente e Todo-poderoso, de repente ficasse conhecido como aquele que em nada se interessa por tal poder. Como os poderosos de todos os sistemas políticos, econômicos e religiosos conseguem justificar o exercício de seu poder e a grandiosidade das suas cerimônias, quando o seu Deus, entretanto, pode ser encontrado entre os moradores da rua das grandes cidades, nas favelas dos pobres e na sujeira daqueles que os sistemas tinham excluído? Conscientizar-se desse fato pode tornar-se muito desagradável, uma vez que as cerimônias suntuosas em louvor ao Cristo-Rei, Imperador do Universo, já na época do Império Bizantino-Romano, possibilitavam esquecer a miséria dos escravos, que, com suor e dores musculares, tinham elevado os palanques para tais louvores. Com isso, estamos de volta ao poeta já mencionado e à sua mudança de perspectiva, na qual podemos reconhecer a perspectiva que o próprio Deus em Jesus Cristo assumiu. Penso que ele, na sua época, teria gostado muito de um dos textos que esse poeta escreveu, do qual vale a pena citar pelo menos um pequeno trecho: “Quem construiu a cidade de Teben e os seus 7 portais? Nos livros se citam os nomes de reis, Será que eram os reis que carregavam as pedras? E as tantas vezes destruída cidade de Babilon, Quem a reconstruiu cada vez? Em que casas da cidade dourada de Lima Residiam os pedreiros? [...] A grande Roma é cheia de arcos de triunfo. Quem os construiu? Filipe da Espanha chorava, quando a sua frota afundava. Além dele não chorava ninguém?4 [...]

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A volta às nossas raízes em Jesus Cristo nos lembra a dura verdade de que a nossa perspectiva antropológica deve ser mudada. O ser humano, assim como Deus o imagina, é aquele capaz de assumir a perspectiva daqueles que carregam as pedras. O ser humano, assim como Deus o imagina, é um ser capaz de se solidarizar com eles, numa opção de solidariedade incondicional. É a solidariedade com os humildes, o tomar a posição dos vencidos, a opção pelos perdedores, que aproximam o homem daquele modelo, que Deus em Jesus Cristo apresentou à humanidade. Conscientizando-se dessa verdade, encontra-se a resposta à nossa indagação pelo homem. Em vez de limitar a questão antropológica a um raciocínio filosófico, somos chamados a abrir os olhos e analisar aquilo que Deus nos demonstra em Jesus. O homem modelo, que é como Jesus, porque Jesus, além de ser o Cristo, também é o modelo do homem. Essa simples conclusão lógica nos conduz de volta àquela questão, com a qual as nossas reflexões começaram: a acentuação exagerada da imagem de um Deus todo-poderoso. Observando a maneira pela qual Deus se revelou a nós em Jesus Cristo, constatamos que Deus não está muito interessado em ser conhecido a partir das características do poder, apesar de ele, sem dúvida nenhuma, tê-las. Se ele, porém, não insistir muito em ser conhecido dentro de tal perspectiva, devemos perguntar por que tal fato foi tão pouco mencionado no decorrer da história da religião cristã. Tentaremos em seguida tratar alguns dos elementos dessa questão, que, em geral, foram reprimidos da consciência. 15.4. RECORRENDO À IMAGEM DE UM DEUS TODO-PODEROSO, É POSSÍVEL JUSTIFICAR TODA ASPIRAÇÃO HUMANA PELO PODER

Caso a característica dominante, a partir da qual Deus quisesse ser conhecido, fosse o poder, encontraríamos nesse fato uma justificativa irrefutável para toda e qualquer aspiração humana pelo poder. Não é por acaso que, em todas as épocas históricas, as características da onipotência divina sempre foram enfatizadas por todos os poderosos. Sobre o poder de Deus, estes sempre podiam legitimar o seu próprio poder. Acentuando o poder irrestrito e esmagador de Deus, era fácil manter nos súditos uma atitude de respeito e até de medo diante da autoridade de Deus. E à medida que os súditos interiorizavam a ideia de que o Deus todo-poderoso, com toda a razão, exigia submissão e veneração, era mais fácil exigir deles tal submissão e obediência também diante de seus representantes, fossem eles do lado político, fossem do lado religioso. Assim estabeleceu-se aquela consciência religiosa na qual foram acentuadas cada vez mais as características de poder de Deus, apesar de esse Deus, quando se revelou a nós da maneira mais plena em Jesus Cristo, ter acentuado características bem diferentes. Ele se mostrou como um Deus humilde, do qual o evangelista João relata que lavou os pés dos seus seguidores. Já dissemos em outro momento que, a partir do enfoque da Revelação, fica secundário se a narração respectiva em Jo 13,4-5 realmente é histórica no sentido do 70

método histórico-crítico. O que conta é a mensagem que o autor do quarto Evangelho quer transmitir. Parece que ele, já na sua época, sentia a necessidade de lembrar que Deus quis ser conhecido como ser humilde, como ente que se põe a serviço das pessoas, e não como Senhor que domina por meio de um poder esmagador. Aceitar esse fato permanece difícil para os poderosos de todos os tempos. Por causa disso, mudaram a sua imagem e o colocaram em pedestais de ouro, lembrando que ele, afinal, é o Senhor do cosmo. Vestiam-no com o manto do imperador e lhe deram na mão o cetro do poder e a coroa de ouro. Dessa maneira, era possível esquecer que esse Deus, quando se revelou a nós da maneira mais clara e mais direta, em nada enfatizou ser conhecido assim. Mas os poderosos ficaram mais seguros, enquanto os seus súditos veneraram o Deus todo-poderoso. Mostrando essa imagem, podiam sem problemas justificar o próprio poder deles, recebido, como se dizia, por delegação daquele Deus do poder. Assim, passo a passo desvaneceu-se do imaginário cristão aquela característica que o próprio Deus, em Jesus, quis revelar: a sua humildade, a sua jovialidade e a sua benevolência perante seus irmãos humanos. Perdeu-se de certo modo até aquilo que tinha dado à religião cristã o seu apelido de “Boa-nova”. E para muitos dos seus adeptos, mesmo essa religião, em certas épocas, começou a assemelhar-se a um sistema de mandamentos e proibições, com ameaças de punições e sanções que às vezes não eram muito diferentes daquilo que o fundador dessa religião, conforme os textos bíblicos, tinha rejeitado no sistema religioso do Templo. Foi preciso um Concílio Vaticano II para que aquele processo de crescente legalismo casuístico fosse quebrado. E até hoje permanecem as tendências de voltar a ele. Independentemente, porém, de todos os argumentos dos senhores do poder, o Deus indomável e humilde continua a incomodar com uma mensagem inegável e incomodante: ele não se interessa muito em ser conhecido pelos seus atributos de poder. Ele quer ser conhecido assim, como ele se mostrou a nós em Jesus Cristo: um Deus humano, humilde e cheio de compaixão para com as pessoas humanas. Deus quer ser conhecido assim, como ele se mostrou a nós em Jesus Cristo: um Deus humano, humilde e cheio de compaixão para com as pessoas humanas.

Assim Deus se manifestou. À medida que as pessoas e as Igrejas recuperarem essa imagem, vão recuperar aquilo que é a Revelação da sua face mais íntima. Em Jesus Cristo, ele nos mostrou que quer ser conhecido desse modo. 15.5. A IMAGEM DO DEUS TODO-PODEROSO NÃO DESAFIA MUITO O SER HUMANO Apesar de a imagem de um Deus todo-poderoso, de um lado, agir como forte incentivo ou, pelo menos, como justificação de toda atitude de poder, ela, de outro lado, apesar disso, no fundo não representa desafio muito incômodo para o 71

comportamento humano. Ninguém jamais será capaz de se tornar todo-poderoso. Sendo assim, essa característica de Deus, de antemão, fica impossível de ser atingida por um ser humano, o que, de certa maneira, é bem tranquilizador. Ninguém cobrará de nós o fato de não sermos onipotentes. Ninguém formulará em relação a essa característica a exigência: “Vem e segue-me!”. Sendo assim, a reação de muitos diante da onipotência de Deus se restringe a admiração e louvor, talvez ainda a expressão de respeito e atitudes de medo. São possíveis até celebrações suntuosas e impressionantes, que celebram a grandiosidade daquele Deus todo-poderoso, e é isso que de fato constatamos em praticamente todas as religiões. Tudo isso, porém, não influencia muito o comportamento concreto em termos de um seguimento daquele Deus. Segui-lo nunca será possível. Imitar as suas atitudes fica fora do alcance humano. Com isso, porém, de antemão, não representa desafio nenhum. Esse fato, em geral muito pouco refletido, representa possivelmente uma das razões inconscientes do apego que muitas pessoas apresentam pela imagem do Todopoderoso. Elas sentem o fascínio do poder que, de um lado, assusta, mas, de outro lado, garante amparo e proteção. Contudo, nem o fascínio nem a garantia de proteção implicam a necessidade de esforçar-se para agir da mesma maneira como esse protetor, e isso pelo simples fato de nenhum ser humano jamais poder ser todopoderoso. Tudo isso, porém, muda, fundamentalmente, quando esse Deus onipotente se revela a nós com outras características, ou seja, com características humanas, que cada um de nós também pode ou poderia ter. É exatamente isso, porém, que constatamos em Jesus Cristo. O fato de nele aparecer “um Deus humano”, em vez de um Deus transcendente e sobre-humano, no fundo significa um terrível desafio. É o confronto com esse desafio que poderia estar na raiz do fato chocante de os cristãos até hoje preferirem muito mais venerar um Jesus “Cristo-Rei” a um Jesus Cristo que lava os pés dos seus seguidores.5 O primeiro nunca poderemos ser, mas lavar os pés dos nossos irmãos, disso cada um de nós é capaz. Agir assim não só é possível, mas também até necessário, se alguém quer ser chamado de seguidor do Deus que se tornou homem. 1 O presente capítulo retoma com várias modificações o artigo publicado pelo autor como “publicação prévia” deste capítulo em: NEY, Souza (org.). Teologia em diálogo. Aparecida: Santuário, 2010. 2 Cf. BLANK, Renold J., op. cit. 3 SEGUNDO, Juan Luis. Que mundo? Que homem? Que Deus? São Paulo: Paulinas, 1995, p. 507. 4 Tradução, cf. BRECHT, Berthold. Ausgewählte Gedichte (Indagações de um trabalhador que lê). Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1964, p. 49. 5 Cf. Christologie et histoire de Jésus. Revista Recherches de science religieuse, vol. 97/3, p. 331ss, jul.-set. 2009.

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16. POR QUE DEUS, EM JESUS CRISTO, NÃO SE MANIFESTOU COMO CIENTISTA, GENERAL, OU PELO MENOS COMO GRANDE ARTISTA? Como cristãos e cristãs, nós nos acostumamos com o fato de que Deus se tornou homem como filho de um carpinteiro da Galileia, originário de uma província insignificante, longe de todo prestígio religioso. Nós nos acostumamos tanto com esse fato que a maioria dos cristãos e das cristãs jamais se preocupou com a indagação do porquê a encarnação de Deus aconteceu assim. Qual é a razão de Deus ter escolhido, para a mais clara Revelação de si mesmo, a forma de um homem simples e totalmente insignificante aos olhos de todos os poderosos? Será que tudo isso se deu puramente por acaso? Ou será que Deus agiu assim de propósito? Por que, afinal, Deus não se tornou homem na figura de um grande político? Ou na forma de um cientista? Por que não escolheu a personalidade de um artista eminente ou pelo menos de um esportista conhecido pelo mundo inteiro? Por que, finalmente, não se mostrou a nós na figura de um general, acostumado a vencer todos os seus inimigos? Tudo isso, e muito mais que tivesse sido possível, porque Deus, afinal, pode manifestar-se na forma que quiser! Por que então essa escolha? Normalmente ninguém formula tal pergunta, e, quando ela é articulada, a resposta em geral é muito teológica e muito abstrata. No entanto, celebramos ano após ano uma festa que nos informa de maneira concreta e com intensidade insuperável sobre aquilo que é fundamental para Deus. Falo da festa de Natal. Uma festa que nos faz feliz, e isso com toda a razão. Todavia, muitos cristãos e muitas cristãs se esqueceram, por causa do contexto romantizado da manjedoura e da árvore de Natal, da mensagem essencial dessa festa. Eles perderam de vista a Revelação central daquilo que celebramos naquela noite, Revelação essa que em nada mais pode ser sobrepujada. Revelação, além disso, que responde de maneira clara à nossa indagação inicial: Por que Deus não se fez homem na pessoa de algum poderoso? A resposta a essa indagação nos conscientiza, de maneira explícita, do cerne daquilo que Deus revela no evento de Natal. Somos chamados a transmitir de novo esse cerne como paradigma central da religião cristã. Tal desafio se mostra mais urgente quando mais pessoas se afastam da mensagem original da Igreja. O Deus, com o qual se confrontam no Credo da Igreja, o Deus criador do céu e da terra, não mais os impressiona e, sobre os processos da formação do cosmo, preferem informar-se nas publicações respectivas da cosmologia. A ideia de um imperador onipotente do mundo, além disso, mais os escarmenta do que anima; isso, sobretudo, quando leem as estatísticas sobre a distribuição desigual do Produto Interno Bruto, ou quando estabelecem a relação entre o número de crianças famintas e a renda dos managers das empresas hipermodernas de hoje. Muito menos ainda querem ouvir falar das pretensões de poder, sustentadas no decorrer da história pelas próprias Igrejas em nome do Deus 73

onipotente. As pessoas tampouco buscam legitimações do poder por delegação divina, e menos ainda um Deus que sustenta a tutela delas por mandamentos e Leis. De tudo isso afastam-se depressa. Tais elementos contribuem hoje mais para desacreditar a imagem do Deus onipotente do que para reconfirmá-la. O que os integrantes das sociedades pós-modernas tentam encontrar desesperadamente é um centro que lhes dê amparo e que lhes responda às indagações constantes, nunca satisfatoriamente respondidas pelo sentido e pelo último destino da sua existência. O que as pessoas hoje precisam é conhecer um Deus capaz de encher o vazio das suas vidas; um Deus que responda aos seus anseios nunca satisfeitos pela felicidade, um Deus que abra novos horizontes para os seus sonhos e novos caminhos na busca de “águas mais profundas”. Esse Deus procuram e tantas vezes o procuram em vão nos Templos despovoados das suas próprias Igrejas. A todos cujos corações estão vazios e cujas casas transbordam de coisas, propagadas como necessárias pela indústria onipresente de consumo, a todos Deus se oferece em Jesus Cristo de uma maneira que, de antemão, aniquila toda e qualquer pretensão de poder: ele se oferece como criança. Ele aparece como um bebê. Com isso, abre a todas as pessoas ameaçadas por mil e uma exigências de mil e um poderes uma nova experiência de liberdade. Nessa vivência se sentem aceitas sem exigências prévias e sem o perigo de serem punidas. É exatamente isso que o homem do século XXI busca desesperadamente. E é para tudo isso que o Natal lhe dá a resposta.

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17. NATAL, OU A REVELAÇÃO DE UM DEUS DO QUAL NINGUÉM PRECISA TER MEDO E QUE POR CAUSA DISSO PODE SER AMADO1 Ao falar de Deus, costumamos identificá-lo como o Onipotente, o Criador do cosmo e o Senhor do céu e da terra. É óbvio que Deus de fato é tudo isso e infinitamente mais. E é exatamente nesse Deus infinito que pode ser encontrada uma verdade tão chocante que – apesar de todas as celebrações festivas do ano litúrgico – foi muito pouco assimilada pela fé dos seguidores dele. É uma verdade que ultrapassa em muito todas as nossas noções sobre a onipotência de Deus e a sua inimaginável glória. Características, aliás, que encontramos em quase todas as divindades de todas as religiões. A característica, porém, a que me refiro aqui é única e muito especial. Na Revelação do Novo Testamento, vem à tona um fato maravilhoso e ao mesmo tempo chocante: em Jesus Cristo, Deus vai até o limite daquilo que é possível, para que as pessoas humanas enfim entendam que ele, no seu ser mais íntimo, é humilde e modesto. E ele extrapola todas as possibilidades para fazer compreender que está muito mais interessado em ser conhecido exatamente assim – humilde e modesto – do que como Senhor onisciente, Criador e Imperador onipotente do cosmo. É essa verdade fundamental, aliás, que distingue essencialmente a nossa fé da professada pelas inúmeras outras religiões existentes. Na maioria delas também se cultua um Deus que, de uma forma ou de outra, se apresenta como poderoso e cheio de glória. Mas é na religião cristã que esse Deus se revela essencialmente na pequenez e na fragilidade de uma criança; no seu desamparo e na sua necessidade de ser amado. É essa verdade fundamental sobre Deus que celebramos na festa de Natal. 17.1. NO EVENTO DE NATAL, DEUS SE MANIFESTA A NÓS COMO ELE REALMENTE QUER SER CONHECIDO

O Concílio Vaticano II, na sua Constituição Dogmática Dei Verbum, formula de maneira magistral a verdade fundamental de que, em Jesus Cristo, Deus nos revelou, de maneira mais clara e direta, aquilo que realmente é. Se acreditamos nessas palavras da Igreja e se tomamos a sério aquilo que o autor da carta aos Hebreus declara (Hb 1,3) – e que razão se poderia ter para não acreditar? –, descobrimos na festa de Natal o conteúdo mais comovente e, ao mesmo tempo, mais feliz da nossa fé. Descobrimos que diante de Deus não precisamos ter medo, porque ele se aproxima de nós no sorriso de uma criança. Descobrimos, além disso, que Deus não se interessa em primeiro lugar pelo poder e não faz questão alguma de ser venerado como poderoso. Deus não se interessa em primeiro lugar pelo poder

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e não faz questão alguma de ser venerado como poderoso.

O fato é que Deus, em Jesus Cristo, se fez pequeno e se aniquilou (cf. Fl 2,5-8), entregando-se a nós como criança que suplica pelo nosso amor. Deus é assim e se revela assim! Torna-se criança para compreendermos que, para ele, há apenas uma coisa que realmente conta: ser amado. 17.2. O NATAL REVELA QUE DEUS NÃO SE INTERESSA PELOS MECANISMOS DE PRESTÍGIO E DE PODER

O fato de Deus ter se revelado assim, deixando de lado todas as instâncias de prestígio e de poder, traz profundas consequências para o comportamento de todos aqueles que se declaram seguidores dele. Como é que algum deles poderia recorrer a mecanismos e atitudes de poder, seja na vida pública, seja na convivência social, seja na práxis religiosa, se o próprio Deus não o faz? Se Deus deixa de lado todas as atitudes de poder e de prestígio, como algum daqueles que dizem seguir a Deus poderia recorrer a tais mecanismos?

Na sua mais clara Revelação a nós, Deus manifestou-se como criança, para que todos os seres humanos, enfim, compreendessem que os seus caminhos não são aqueles do poder, mas os da ternura e do amor. Ao tornar-se homem não na figura de um imperador poderoso, mas na forma de uma criança indefesa, Deus nos informa, de maneira indiscutível, que ele não se interessa pelos mecanismos do poder. Abdicando de todo poder, porém, esse Deus assume um risco incalculável. Ele se entrega a nós e se põe em nossas mãos! Em Jesus Cristo, Deus se entrega aos seres humanos, abdicando de todas as proteções de seu status de Todo-poderoso. Com isso, porém, está totalmente sujeito ao agir e às decisões das pessoas humanas. Ele fica à nossa mercê, assim como qualquer criança pobre e sem defesa, e a sua única proteção é a confiança de que as pessoas não abusarão dessa situação, porque o amam. Tal confiança, porém, pode ser traída, e é também esse risco que Deus assume. A decepção que a resposta a tal entrega finalmente termine com uma traição, e não com amor, pode ser verificada no decorrer da história e já transparece em várias passagens bíblicas. Ela chega ao seu cume naquele acontecimento chocante, em que pessoas torturam e matam o Deus encarnado no pelourinho vergonhoso da cruz. Ninguém teria tido a ousadia de crucificar um Deus onipotente que tivesse se manifestado com poder e glória. Um Deus assim seria venerado por todos, mas, ao mesmo tempo, seria temido por todos. É exatamente esse medo que Deus não quer! Ele não o quer, porque o medo impede o amor. Deus quer ser amado. Para que isso seja possível sem restrição nenhuma, ele não pode se revelar na glória da sua onipotência, porque assim ele teria inspirado medo. Se ele realmente quer ser amado, 76

deve abaixar-se até um nível que possibilite esquecer o medo que todo poder inspira, e é exatamente isso o que faz no evento de Natal. 17.3. DEUS QUER SER AMADO EM VEZ DE TEMIDO! Para que possa ser amado em vez de temido, Deus escolhe para a sua encarnação os caminhos humildes da natureza humana. Assim, o evento de Natal revela a todos que Deus não está interessado em nos intimidar. Um bebê não intimida ninguém, muito menos ainda quando essa criança não é filha de um pai poderoso, mas de um casal sem importância nenhuma aos olhos do mundo. Deus não quer que o temamos, mas o amemos! E é por causa desse seu desejo que ele se revela a nós como criança indefesa que depende de nós e que implora o nosso amor. Ninguém tem medo de um Deus que se apresenta na forma de uma criança. Um Deus assim só pode ser amado de coração aberto. Só pode encontrar amparo em nossos braços e em nossos corações. É exatamente isso que Deus deseja. 17.4. UM DEUS QUE SE MANIFESTA COMO CRIANÇA PODE SER AMADO, MAS ESSA CRIANÇA TAMBÉM PODE SER REJEITADA E PISADA

Deus se mostra a nós como criança indefesa, para que percamos o medo dele e assim possamos amá-lo. E desse modo ele se despoja de todo poder. Consequentemente, em vez de amá-lo, também é possível outra atitude. Se esse Deus revela-se indefeso à maneira de uma criança, então também pode ser rejeitado. É possível jogá-lo no chão, pisá-lo e até matá-lo. A festa de Natal também nos confronta com essa alternativa. Além de todo romantismo e sentimentalismo, e longe de todo o barulho da indústria da propaganda comercial, descobre-se nessa criança na manjedoura um desafio sem igual. É a alternativa do amor. Na sua base, há a decisão muito íntima e pessoal de amar essa criança e de lhe abrir o coração, ou de se fechar diante de suas súplicas por amor. Esse fechar-se pode chegar a ponto de jogá-la no chão, pisá-la e finalmente matá-la. Fica óbvio que jamais alguém que se declare cristão ou cristã pensaria em bater naquela criança que veneramos na manjedoura, e muito menos matá-la. Sobre isso há consenso total entre aqueles que vivenciam o Natal, felizes porque Deus se tornou homem. Mas exatamente pelo fato de Deus ter se manifestado à humanidade na humildade de um ser indefeso, por não ter permanecido distante, oculto no interior de seus céus e afastado de toda miséria humana, ele se torna desafio constante para todos os seus seguidores, e o desafio é este: o Deus humilde não se tornou simplesmente homem, mas ele se identifica com cada ser humano de tal maneira que os chama de seus irmãos e de suas irmãs. Tal identificação vai a ponto de declarar que tudo aquilo que se faz a qualquer pessoa se faz a ele mesmo. Se isso é verdade, então tudo isso diz respeito também à criança que se venera no Natal (cf. Mt 25,40.45). Eis aí a grande e chocante verdade que tantas vezes, no decorrer da história, foi esquecida. 77

17.5. DEUS, QUE SE MANIFESTA HUMILDEMENTE COMO CRIANÇA, IDENTIFICA-SE DE MANEIRA PLENA COM AS PESSOAS

Pensar que cada ato para com qualquer ser humano se dirige a Jesus Cristo pode desencadear consequências que dificultam cantar as velhas músicas de Natal. Essas só dizem a verdade, quando os seus cantores externam o amor que praticam em favor dos seus irmãos e irmãs, quando começam a abrir os seus corações, respondendo aos apelos dessa criança com amor. À luz da identificação direta entre Jesus Cristo e as pessoas encontradas no dia a dia, o Natal se torna um desafio para todos aqueles que o celebram; indagação inquietante para a consciência e vocação renovada cada vez mais urgente. Isso porque tudo aquilo que se faz às pessoas, seja o bem, seja o mal, se faz à criança venerada no Natal. À medida que os adeptos da religião cristã, assim como a sua Igreja, tomam a sério esse fato, a sua religião realmente se tornará fermento, fogo e sal da terra, assim como aquela criança o tinha desejado. À medida que o Natal readquirir seu sentido original, os adeptos da religião cristã realmente começarão a transformar as inúmeras situações e estruturas, nas quais seres humanos se encontram pisados, excluídos e desprezados. Eles agirão assim por estarem conscientes de que, em toda pessoa humana maltratada, a criança divina na manjedoura está sendo maltratada. Tomando a sério o que os cristãos dizem ser revelado no Natal, esses cristãos passarão a trabalhar para construir situações e estruturas que estejam em sintonia com tal Revelação. Eles serão colaboradores de situações em que reina o amor, a justiça e a solidariedade entre os seres humanos; e tudo isso porque Deus solidarizou-se com as pessoas, identificando-se de maneira direta e concreta com elas; com a sua dor, a sua miséria e as suas aflições. 1 O texto do presente capítulo foi publicado pela primeira vez em Vida Pastoral, n. 251, p. 3-4, nov.-dez. 2006. Uma versão em parte similar também se encontra em: Schweizerische Kirchenzeitung, 174, n. 51-52, 21 dez. 2006.

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18. EM JESUS, DEUS NOS REVELA A SUA HUMILDADE A identificação de Deus com os pequenos da sociedade, desde o início, não fica no nível teórico. Ele mesmo a vive de maneira concreta e direta. Até hoje, ainda há muitos cristãos e muitas cristãs para os quais tal atitude de Deus é compreendida primordialmente como um ato exterior dele. Para eles, seria um pouco como se Deus tivesse vestido a atitude do humilde e que a qualquer momento pudesse abandoná-la, porque no fundo permanece a visão daquele ser imponente e todo-poderoso, como sempre foi venerado. É óbvio que Deus sempre permanece com todas as características dele; mas é óbvio também que a sua aparição como Deus humilde é muito mais do que uma atitude superficial dele, que a qualquer momento pudesse abandonar. Se nós tomarmos realmente a sério o que diz o autor da carta aos Hebreus, que, em Jesus, Deus se mostra a nós assim como ele realmente é, quer dizer, na sua verdadeira essência (cf. Hb 1,3), então devemos concluir que a humildade, com a qual Deus se mostra em Jesus Cristo, realmente faz parte da essência de Deus. Deus é humilde no seu ser mais íntimo.

Deus é humilde no seu ser mais íntimo, e esse fato ele nos transmite na sua mais clara Revelação de si mesmo em Jesus Cristo. Nele, o próprio Deus abandonou todos os seus atributos de poder que o envolviam como um círculo de proteção. Ele deixou de lado tudo aquilo que o afastava dos humanos, para mostrar a todos que, no fundo de seu coração, ele era humilde. E sendo humilde, ele começou a servir às pessoas humanas. Algo que, conforme a concepção de qualquer religião, nunca, jamais um Deus faria ou tinha feito. Ele, porém, o fez. E o autor do quarto Evangelho vai a ponto de dizer que ele lavou os pés dos seus seguidores. Esse Deus humilde em nada corresponde à imagem habitual de Deus. Esse Deus se torna escândalo para qualquer poder. 18.1. UM DEUS HUMILDE NÃO CORRESPONDE À IMAGEM HABITUAL DE DEUS Um Deus que lava os pés dos seus seguidores desafia toda imagem tradicional de Deus. Ele questiona a todos nós, muito mais do que qualquer Deus do poder. Isso, sobretudo, porque é impossível manter mecanismos de dominação, enquanto o Deus todo-poderoso lava os pés das pessoas à maneira de escravo qualquer. É impossível justificar as próprias aspirações por prestígio e poder com referência a um Deus que, no entanto, se preocupa em realizar serviços de escravo, servindo aos homens de maneira simples e humilde. É impossível manter uma Igreja que domina, enquanto o fundador e único referencial dessa Igreja se põe a serviço. 79

É isso que Deus faz. Ele se revela como ser onipotente e todo-poderoso, que no fundo não se interessa muito em ser venerado assim. Em vez disso, quer ser conhecido à maneira como ele se manifesta em Jesus Cristo: ser humilde, diante do qual ninguém precisa ter medo. Assim, torna-se escândalo para qualquer poder. O poder quer ser temido. O poder ameaça com punições quando não obedecido. Recorrendo a um Deus do poder, justifica qualquer atitude de poder. O Deus humilde, em contraposição, impede tudo isso. Ele deixa o ser humano abrir-se para ele de coração ardente e cheio de ternura. E ele desqualifica toda e qualquer tentativa que, em seu nome, pretende punir, excluir ou dominar. 18.2. UM DEUS HUMILDE CORRE O RISCO DE SER CRUCIFICADO Se Deus tivesse se revelado a nós a partir da sua potência infinita de dominar, jamais alguém teria tido a ousadia de se opor a ele. Impensável que alguém o teria contradito e impensável imaginar alguma atitude agressiva. Diante de um Deus todopoderoso, todos se teriam jogado na terra, tremendo e gemendo para que tal poder não os esmagasse. Sendo assim, esse Deus todo-poderoso, por sua vez, também na sua encarnação não teria corrido nenhum risco. Nunca alguém teria tido a ousadia de crucificá-lo. Mas jamais alguém o teria realmente amado, porque um ser temido não se pode amar. Deus, no entanto, quer ser amado, e isso ele já nos revelou no evento de Natal. Desse modo, ele se tornou vulnerável à maneira de todos aqueles que vivem nos porões da sociedade, negligenciados pelos poderosos, usados e pisados e rebaixados ao papel de figurinhas descartáveis da história. Em Jesus Cristo, Deus assume a perspectiva dessas figurinhas aos olhos dos grandes. E com esse fato, encontramos de novo aquele princípio-chave da Revelação, sobre o qual já refletimos num dos capítulos acima: a perspectiva a partir da qual Deus observa a história não é aquela dos poderosos, mas aquela dos perdedores, dos rebaixados e dos vencidos. 18.3. UM DEUS HUMILDE QUE OPTA PREFERENCIALMENTE PELOS VENCIDOS DESAFIA TODOS OS NOSSOS SISTEMAS

Se Deus é assim, tal como ele se mostra a nós em Jesus Cristo, não há outra solução senão reconsiderar os nossos valores religiosos e rever os nossos projetos e as nossas organizações a partir da ótica daquele Deus. E se as nossas celebrações acentuam demasiadamente o poder e glória de um Deus onipotente que mora acima de todo barulho humano, devemos rever essas celebrações e perguntar de que maneira podemos através delas expressar a perspectiva a partir da qual Deus considera o mundo: aquela debaixo, orientada nos pobres e nos humildes e interessada naqueles que os sistemas de poder desconsideram e descartaram. Se Deus se mostra a nós como humilde que age a partir do lugar dos humildes, como é que alguém que se declara seguidor desse Deus pode ainda sentar-se em um 80

trono e ostentar poder e glória e domínio sobre seus irmãos e suas irmãs? Essas atitudes se tornam impossíveis, e caso elas persistam, é o próprio Deus que, a partir da sua opção de assumir a perspectiva daqueles debaixo, chama à conversão. Ele chama os seus seguidores a assumir a perspectiva que ele assumiu. Ele chama a rever todas as estruturas de dominação, construídas talvez num esforço de séculos e mantidas com autoridade e poder. E ele convoca todos os seus seguidores a realizar eles mesmos uma reversão dos seus valores e da sua lógica. Porque essa lógica, pelo menos desde o século IV d.C., assumiu em muitos aspectos predominantemente a perspectiva daqueles que têm poder: uma perspectiva que parte de cima e dentro da ótica dos vencedores. A lógica de Deus, porém, revelada no agir de Jesus Cristo, é diferente. Na sua vida, e muito mais na sua cruz e ressurreição, ele demonstra de maneira incontestável aquela grande verdade, colocada pelo evangelista Lucas na boca daquela mulher humilde que deu à luz o Deus humilde (cf. Lc 1,51-54 – o Magnificat): – O verdadeiro vencedor é aquele que foi declarado vencido. – O oprimido está sendo elevado. – A fraqueza ganha sobre o poder. – O rejeitado está sendo aceito, porque Deus está do seu lado. Sendo assim, todos os desesperados podem recuperar a sua esperança e todos os perdedores encontram uma nova razão de ser. Os vencidos podem restabelecer a sua força e aos pobres está anunciada a única Boa-nova que ainda pode levantá-los: DEUS ESTÁ DO LADO DELES! Conforme o grande teólogo Andrés Torres Queiruga, “nenhuma pessoa [...] está abandonada e condenada à frustração [...] [e] isso vale em primeiro lugar no âmbito coletivo, para os milhões de vítimas massacradas pela história, pois precisamente porque os outros – inclusive nós – as condenam, Deus está e estará com elas ‘enxugando definitivamente as lágrimas de seus olhos’ (cf. Ap 7,17; 21,4)”.1 18.4. UM DEUS HUMILDE QUE OPTA PELO SERVIR QUESTIONA TODA E QUALQUER ESTRUTURA QUE SE BASEIE EM ATITUDES DE PODER

Um Deus que de certa maneira transmuta todos os valores estabelecidos incomoda. E ele incomoda, tanto mais, quanto mais as suas exigências questionam os códigos daqueles que falam em seu nome. Um Deus humilde, já na época de Jesus, não correspondia em nada à imagem habitual que o sistema religioso tinha construído num esforço de séculos. Em vez de ser visto no centro religioso, adorado e louvado por causa da sua glória, o Deus que se manifesta em Jesus Cristo se movimenta junto com a plebe e vive nos lugares onde os pobres se encontram. O evangelista João, além disso, relata um cena que, na sua expressividade, se torna um dos maiores escândalos de toda a história do Deus encarnado. Ele fala do lava-pés, isto é, de um gesto por meio do qual esse Deus verdadeiro, encarnado em homem verdadeiro, teria lavado os pés dos seus seguidores (cf. Jo 13,1-15). Não importa se, historicamente, a cena de fato tenha se realizado ou tenha se 81

realizado à maneira pela qual o evangelista a apresenta. Importante é a mensagem que quer transmitir e na qual, outra vez, encontramos a Revelação de como Deus é. Deus se põe a serviço dos homens

Ele assume a tarefa que naquela época só os escravos mais “baixos” tinham que realizar: lavar os pés dos seus senhores. O autor do quarto Evangelho apresenta Jesus Cristo agindo dessa maneira. Ele apresenta o Deus encarnado nessa cena exatamente a partir do enfoque apresentado na carta aos Filipenses pelo apóstolo Paulo (Fl 2,6-7): “Esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo”.

O Filho de Deus renuncia ao seu status de glória divina (cf. Jo 8,56; 12,41)2 e assume a maneira de ser de um escravo. Nesse fato, encontramos a mais acentuada distância em relação àquele título, que todos os poderosos de todos os tempos sempre reclamavam para si: SENHOR. Deus não se revela a nós como Senhor, mas como servo.

Obviamente, age dessa maneira porque quer que nós o conheçamos a partir desta perspectiva: – Um Deus que quer servir. – Um Deus que se põe a nosso serviço. – Um Bom Pastor que carrega a ovelha cansada nos seus ombros. Assim Deus se revela a nós! E se ele realmente é assim, é impossível alguém declarar-se seguidor dele sem fazer o mesmo: servir. Tal fato, porém, se torna escândalo por todos aqueles que primordialmente estão interessados no poder. Talvez seja por causa disso que, tantas vezes no decorrer da história, a lição do lava-pés tenha sido esquecida. Em vez de integrar, no centro da consciência cristã, a imagem de um Deus que enfatiza o servir, colocou-se Deus acima da esfera humana, Imperador do cosmo, intocável e muito distante das preocupações profanas do homem comum. Desse modo, todos os poderosos podiam sentir-se aliviados, porque agora era possível justificar qualquer domínio, soberania e poder com referência àquele poder supremo. Mas, em Jesus Cristo, Deus continua mostrando que ele não está muito interessado em ser conhecido assim. Na mais clara e mais plena Revelação que dá de si mesmo, ele insiste em se revelar como humilde e servidor dos homens. Diante desse fato inegável, descobrimos mais um dos grandes desafios para a religião cristã, assim como para todos os sistemas que se declaram compromissados com ela. Tomando a sério a postura de Jesus, realmente fica evidente que ele questiona toda e qualquer atitude de poder, seja ela no sistema religioso da sua época, seja em qualquer sistema religioso da história, assim como em todos os outros sistemas que 82

de uma maneira ou outra se referem a ele. A sua maneira de agir permanece desafio e chamado à conversão também de todas as pretensões atuais de dominar, independentemente se estas se encontram em pessoas ou em instituições. 1 QUEIRUGA, Andrés Torres, op. cit., p. 180. 2 Cf. a reflexão teológica muito rica em torno da noção da “Doxa”.

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19. EM JESUS, DEUS CHAMA TAMBÉM O SISTEMA RELIGIOSO À CONVERSÃO Em todas as atitudes de Jesus Cristo, torna-se evidente que Deus em nada quer ser conhecido como guardião legalista de códigos e punidor daqueles que os transgridem. No entanto, foi apresentado desse modo muitas vezes também no decorrer da história da religião cristã. Como já foi dito, na época de Jesus, o número de mandamentos e proibições apresentadas pela instituição religiosa tinha chegado a 613. Quem não respeitasse uma única dessas prescrições se tornava pecador. E os representantes rígidos do sistema declaravam que esse pecador seria “morto aos olhos de Deus”. Esse morto, consequentemente, seria excomungado da comunhão com os integrantes do sistema religioso e excluído da participação na vida social. O pecador era expulso em todos os níveis. No seu confronto com o sistema, assim como os Evangelhos o relatam, Jesus deslegitima todo esse legalismo e as suas justificações teológicas como falsas. Com isso, abre às pessoas um novo acesso a Deus que não mais está marcado pelo medo e pelas exigências de um Deus punidor. Em vez disso, evidencia o fato de Deus ser cheio de amor e de jovialidade para com as suas criaturas. Ele as liberta de todas as angústias. O seu “jugo é suave”, e o seu “fardo é leve” (cf. Mt 11,30). Seu convite se dirige a todos aqueles que estão curvados sob o peso de algum código legalista (cf. Mt 11,28). As palavras de Jesus os levantam, porque é Deus que lhes dá descanso e os liberta do medo e de todo complexo de culpa. Esse Deus, porém, não foi bem-visto pelo sistema religioso, pois diante dele esse sistema perdeu todos os seus argumentos, com os quais inspirava medo em nome de Deus, ganhando assim um poder cada vez maior sobre as pessoas. As palavras de Jesus apresentam um Deus diferente, e, diante desse Deus, até o sistema religioso é desafiado e chamado à conversão. “Convertam-se”, é uma das palavras-chave de Jesus, e esse chamado não se dirige só aos indivíduos, mas também às estruturas, especificamente às estruturas da instituição religiosa.

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20. UM DEUS QUE NÃO SE MANIFESTA COMO VINGADOR E JUIZ LIBERTA AS PESSOAS DO MEDO E DOS COMPLEXOS DE CULPA

A liberdade, com a qual Jesus Cristo declara as interpretações legalistas da instituição religiosa de seu tempo como falsas, já em si faz feliz e liberta do medo. Mas o significado desse agir ultrapassa em muito tal efeito libertador. Encontramos nele mais uma Revelação significativa que Deus dá de si mesmo. Revelação atemporal, aliás, e válida para todas as épocas, até hoje e para o futuro. Muitos cristãos e muitas cristãs têm de Jesus Cristo uma concepção que se cristaliza no título de “Redentor”. Mas o significado da redenção frequentemente é reduzido a fórmulas como “remissão dos pecados” e “pagamento das nossas culpas”. Com isso, porém, se obscurece, para muitos, uma outra verdade essencial: esse Redentor é também a nossa mais clara informação sobre como Deus é. Essa verdade é reconfirmada, de maneira explícita, pelo Concílio Vaticano II, conforme o qual Jesus Cristo “aperfeiçoa e completa a Revelação” (DV 164) e “por fatos e por palavras deu a conhecer seu Pai e a si próprio” (DV 187). O que o Concílio formula aqui é válido para todo o agir de Jesus. Se este, no seu contexto de vida, rejeita toda mentalidade legalista, se ele não se submete a um sistema casuísta e excludente, também nisso dá “a conhecer seu Pai e a si próprio”. O que, aliás, de maneira específica, dá a conhecer na vida de Jesus é o seguinte: o próprio Deus rejeita toda e qualquer opressão ou exclusão daqueles que não conseguem seguir as exigências normativas, formuladas em seu próprio nome ou em nome de qualquer outro sistema. Em vez disso, confirma, na sua própria práxis em Jesus Cristo, o que realmente importa para ele e o que já encontramos nos textos dos profetas: – Socorrer o oprimido, – fazer justiça ao órfão, – defender a viúva. (cf. Is 1,17) – Soltar as algemas injustas, – desatar as brochas da canga, – dar liberdade aos oprimidos, – despedaçar todo jugo! – Repartir o pão com o faminto, – acolher em casa os pobres sem-teto! – Vestir um homem sem roupa, – não desprezar o seu irmão. (cf. Is 58,6-7) Deus se interessa pelo bem-estar das pessoas. Ele as quer amparar e acolher 85

também nas suas fraquezas e no caos das suas vidas fracassadas. E, quando a dignidade do ser humano é atacada, é o próprio Deus que assume sua defesa contra qualquer sistema, não importando se este pretende agir em nome do mercado, de alguma ideologia ou até de Deus. Eis a grande verdade que se revela no agir daquele que reconhecemos como o próprio Deus encarnado. Ele se pronuncia da seguinte maneira: – “Vinde a mim vós todos, que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração [...]” (Mt 11,28). – “Não são os que têm saúde que precisam de médico, e sim os enfermos. Não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2,17). – “Quero misericórdia e não sacrifícios” (Mt 12,7). Numa comunidade, marcada pelo medo de ser condenada ou excluída em nome de Deus, este se revela como um Deus que aceita o homem sem precondições; um Deus que perdoa, sem primeiro exigir a devida satisfação; como Deus que “Não quebrará o caniço rachado, nem apagará o pavio que ainda fumega” (Mt 12,20; Is 42,3). Assim é Deus! Muitas pessoas até hoje se esquecem desse fato. Elas se curvam sob o peso de tradições centenárias ou sob o jugo de uma mentalidade cujas raízes não se baseiam no servir, mas revelam muito mais a aspiração pelo poder daqueles que talvez até em nome de Deus formulam os decretos.1 Em Jesus Cristo, porém, o próprio Deus deu o sinal de que todo gênero humano está livre do peso esmagador de um Deus que intima através de regras, códigos e Leis. Em vez disso, ele revelou a sua face mais íntima, que é aquela de um Deus humilde; de um Deus que corteja os seres humanos e que “entrega países inteiros” para resgatar aqueles que ama.2 Esse Deus até hoje não corresponde à concepção daqueles que são interessados em domínio e poder. Estes precisam de um Deus poderoso, regente e soberano, para legitimar o poder deles. Eles precisam de um Deus aterrador que exige respeito e que amedronta com punições todos aqueles que não obedecem aos decretos. Um Deus que obviamente não estima muito o aparato legislador, construído em seu nome, se torna escândalo. Esse Deus, todos os poderosos desaprovam, porque perturba a sua ordem e questiona o poder deles. Para que isso não aconteça, já na sua época rejeitaram o Deus encarnado e finalmente o eliminaram no patíbulo mais vergonhoso daquele tempo: a cruz. E para que até depois da sua crucificação não pudesse levantar a sua voz incômoda, continuaram a crucificá-lo no decorrer de toda a história. Todavia, por causa da ressurreição desse Deus rejeitado, não é mais possível negálo; então, projetaram nele os seus próprios desejos. Assim, fizeram do Deus que se curva para os oprimidos e humildes um Deus-Rei, um Deus sentado num trono de ouro, um Deus imperador do cosmo, em uma palavra, um Deus do poder que quer ser adorado e venerado. De todas essas imagens, porém, Jesus Cristo nos redimiu. Ele mostrou que Deus, 86

em primeiro lugar, não quer ser conhecido nem como juiz vingador, nem como legislador e punidor, nem como imperador. Tampouco ele insiste em ser venerado como soberano de poder absoluto que dos seus súditos exige satisfação e sacrifícios humilhantes. Em Jesus, esse Deus, em vez disso, se revela como aquele que assume a causa dos oprimidos e de todos os excluídos. Ele está sendo revelado como “Abba”, como pai que ama e como mãe que dá amparo aos seus filhos perdidos. A morte redentora na cruz se revela nessa perspectiva como o ponto de cristalização de toda a história do mundo. Nela se condensa, num único e monstruoso momento atemporal, todo e qualquer crime contra a humanidade, cometido por sistemas ou por pessoas em qualquer lugar e sob qualquer pretexto. Todos esses crimes vêm à tona na sua última brutalidade, potencializados até o extremo como injúria contra o próprio Deus. E tudo isso se torna visível na pessoa do Deus encarnado, torturado e sufocado na cruz. Assim, essa cruz realmente é a Revelação mais extrema de tudo aquilo que o agir humano jamais cometeu como crime contra o homem e crime contra Deus, começando com os infernos da escravatura na Antiguidade, passando pelas câmaras de tortura da Inquisição e dos campos de extermínio em Auschwitz, incluindo até os métodos de tortura neuroinvasiva, programados por computadores. Essa cruz inclui a dor dos trabalhos forçados na construção de Templos antigos, da mesma maneira como aquela das “unidades humanas de produção”, adestradas até o último grau de eficiência por sistemas econômicos atuais e futuros. Nas convulsões espasmódicas do “Filho do homem” que também é “Filho de Deus”, e que foi asfixiado na cruz, todos os sofredores de todos os tempos estão incluídos, condensados e concentrados e visíveis para todos. É de fato assim como a antiga teologia da Igreja já o formulou: em Jesus Cristo, o próprio Deus assumiu todo sofrimento e todo tormento jamais vivido na história do mundo; e, desse modo, ele se revela a nós como o que é: um Deus que sofre! Ao mesmo tempo, revela-se, nesse foco cósmico da cruz, também uma verdade absolutamente espantosa para muitos e maravilhosa para outros: esse Deus, confrontado com a avalanche monstruosa da culpa humana, não reage assim como os homens em geral estão agindo. Em vez disso, ele quebra aqueles círculos viciosos que, em razão do sofrimento, geram mais sofrimento. Ele quebra os automatismos da vingança, da expiação, da punição e da exigência por retribuição. Em Jesus Cristo, Deus quebra os círculos viciosos da vingança, da expiação, da punição e da exigência por retribuição.

A reação de Deus à injustiça não é a condenação e a retribuição, mas o perdão incondicional sem limite nenhum. Com isso, porém, num único e infinito ato atemporal de perdão, redime de todo medo e de toda ameaça diante de uma eventual ação vingadora no futuro. A culpa é anulada, apesar de não ser amortizável conforme os nossos parâmetros. 87

A nota promissória é rasgada num ato humanamente inimaginável de perdão (cf. Cl 2,14). Esse perdão é tão total e tão absoluto como só Deus pode perdoar. A reação humana a esse perdão só pode ser o amor ilimitado, e é exatamente isso que Deus deseja: ele quer ser amado pelas pessoas. Deus desesperadamente deseja que as pessoas o amem!

À medida que as pessoas humanas amam a Deus, elas começam também a agir assim como Deus age. Elas começam a perdoar em vez de exigir vingança, começam a endireitar em vez de aniquilar. Assim, a redenção por parte de Deus passo a passo se torna também a redenção de todos aqueles mecanismos que, no decorrer da história humana, sempre ativaram o círculo nefasto de culpa, retribuição e vingança, criando uma fonte sem fim de novos sofrimentos e de nova dor. A crucificação de Jesus, na qual os cristãos reconhecem o ato visível da redenção, se torna assim também a rejeição da concepção de todos aqueles que tantas vezes, no decorrer da história, em nome de Deus e para defender os mandamentos dele, crucificaram pessoas humanas. A crucificação de Jesus se torna também a rejeição definitiva de todos aqueles que, em nome de Deus e para defender os mandamentos dele, crucificaram pessoas humanas. 1 Sobre a mesma problemática, cf.: COMBLIN, José. A vida – Em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007, p. 36-49. 2 “Entrego como teu resgate o Egito, dou em teu lugar a Etiópia e Saba. Já que contas muito aos meus olhos, me és caro e eu te amo, entrego homens em teu lugar e povos por tua vida. Não tenhas medo, pois estou contigo!” (Is 43,3-5)

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21. A REVELAÇÃO DE DEUS EM JESUS CRISTON DESMASCARA O AGIR DE TODOS OS SACRIFICADORES DE TODOS OS TEMPOS COMO FALSO1 21.1. IMPULSOS INCONSCIENTES DE AGRESSIVIDADE E SUA PROJEÇÃO EM DEUS A grande ameaça para todos aqueles que pretendem combater o mal em nome de Deus é recorrer em nome desse Deus ao mal para combater o mal. Eis a chocante verdade, sobre a qual vale a pena refletir e se conscientizar. O antropólogo René Girard, em sua análise profunda das raízes da violência, desmascara mecanismos que tantas vezes podemos observar no decorrer da história; mecanismos que fazem parte do comportamento social e interpessoal e que, além disso, descobrimos também no comportamento religioso. Refletir sobre esses mecanismos e trazer à tona os impulsos inconscientes que às vezes também se escondem atrás de coberturas religiosas podem nos ajudar a perceber as sombras da nossa própria história. Também nela encontramos perseguições para defender alguma doutrina e sacrifícios exigidos em nome de Deus. A reflexão sobre os motivos inconscientes de tais fenômenos possibilita compreender melhor a problemática de eventuais deturpações da imagem de Deus, presentes em todas as religiões. Por outro lado, também facilita a conscientização do que Deus realmente é e o que de verdade quer. “Matar um homem para defender uma doutrina”, diz S. Castillion, “não é defender uma doutrina, é matar um homem.”

Por que, então, aqueles que matam um homem para defender uma doutrina não percebem tal verdade tão profunda? Porque, talvez, até pensam agradar a Deus com tal atitude, sobre a qual o próprio Jesus já advertiu: “[...] virá a hora em que qualquer um que vos tirar a vida julgará estar prestando um serviço a Deus” (Jo 16,2). Descobrimos atrás desse comportamento os mecanismos de projeção e de descarregamento inconsciente de agressividade, que Girard detecta como um dos fenômenos antropológicos centrais da cultura humana. Na sua raiz, diz ele, encontramos a violência como um dos impulsos básicos do agir. Ela tem a sua origem naquele processo da mimesis, da qual já falávamos no capítulo 13.3. Esse mecanismo mimético pode ser observado em todos os níveis e em inúmeras facetas, mas, na sua base, encontramos sempre a agressividade e a violência. Estas, por sua vez, estão sendo descarregadas inconscientemente pela via da projeção, e um dos caminhos desse descarregamento são os rituais sacrificais.2 Esses sacrifícios cúlticos, tanto com base em rituais profanos quanto religiosos, possibilitam descarregar a agressividade de um coletivo, e isso de maneira controlada e inconsciente. Eles assumem uma função de ritual, através do qual a violência 89

inconsciente dos sacrificadores é projetada nos sacrificados. Dessa maneira, ela pode ser desarmada em uma vítima que assim se torna “bode expiatório”. “Pelo sacrifício desse ‘bode expiatório’, a agressividade de todos contra todos, que ameaça a paz interna da sociedade, se transforma em violência de todos contra um.”3 O coletivo se junta e projeta toda a sua agressividade em uma vítima que é eliminada. Uma vez que essa projeção é inconsciente, os integrantes da coletividade não a reconhecem e muito menos percebem a sua própria culpa. Na visão deles, a vítima é a culpada e por causa disso deve ser punida. Por essa punição pode ser esquecida a própria agressividade e seu caráter culposo. Em poucas palavras, esse é o mecanismo inconsciente, chamado por Girard de “mecanismo do bode expiatório”. À medida que, para a sua fundamentação, se formulam argumentos teológicos, pode surgir toda uma teologia de sacrifícios. Ela justifica a violência com motivos religiosos, de tal maneira que realmente é possível que se chegue àquela atitude citada anteriormente, em que todo aquele que mata “julgará estar prestando um serviço a Deus” (Jo 16,2). Encontramos exemplos de tais atitudes em praticamente todas as religiões. Elas podem ser constatadas na história de Israel,4 nos textos do Novo Testamento, por exemplo, na cena da mulher adúltera e de seus apedrejadores (cf. Jo 8,1ss), assim como no decorrer da história cristã. É só lembrar os argumentos com os quais Inquisidores justificavam as torturas por eles aplicadas, e depois também as subsequentes execuções. 21.2. O RESULTADO DE UMA MENTALIDADE SACRIFICAL É A FORMAÇÃO DA IMAGEM DE UM DEUS VINGADOR A mentalidade sacrifical marcou e marca em parte até hoje também o pensamento dos cristãos, de modo que sempre reencontramos aqueles mecanismos inconscientes de projeção, denunciados por Girard. Este mostrou como a própria agressividade e os próprios desejos de vingança podem ser projetados em Deus. O resultado de tais projeções são concepções como nós as encontramos, por exemplo, na Soteriologia de Santo Anselmo. Nela se apresenta a imagem de um Deus que quer a morte de seu filho na cruz, para assim receber a devida satisfação pelo desgosto causado pelos pecados humanos.5 Quem mostra de maneira crítica a problemática de tal concepção de Deus é Franz Hinkelammert, em seu estudo profundo sobre Sacrifícios humanos e sociedade ocidental.6 Para ele, a sociedade cristã do Ocidente reinterpretou e transformou no seu oposto a crítica da Lei, formulada por Paulo. Buscando uma legitimação para essa reinterpretação, ela a achou na teologia de Anselmo. Teologia essa que pode ser sintetizada pela seguinte fórmula: “Os homens pecaram e por causa disso têm uma dívida para com Deus. Esse Deus, que é justo, exige o pagamento das dívidas [...] Sendo que só o sangue de seu filho tem um valor correspondente, Deus, no seu amor infinito, exige a morte desse filho”.7 90

Tal interpretação da morte de Jesus, que ainda hoje pode ser encontrada de maneira mais ou menos nítida em muitos cristãos, reflete ponto a ponto os mecanismos de projeção descritos por Girard. Ele mostra que, como consequência dela, surge a imagem de um Deus vingador, de um Deus que por sua vez age conforme os mecanismos sacrificais, de um Deus cruel que exige a morte de seu próprio filho. A partir das análises de Girard, podemos compreender essa imagem falsa de Deus como resultado de processos, no decorrer dos quais “agressões coletivas ou individuais acabam sendo projetadas no ambiente sagrado, e assim são superadas no ambiente humano, para serem reproduzidas no ambiente divino”.8 Tais projeções também podem ser detectadas em textos do Antigo Testamento, em que aparece a imagem de Javé violento, vingativo e às vezes cruel. Raymund Schwager, depois de uma análise detalhada de muitos desses textos, chega à conclusão de que neles sempre se trata “de violência humana, interpretada como sendo o agir violento de Deus”.9 21.3. A IMAGEM DE UM DEUS QUE EXIGE SACRIFÍCIOS, OUTRA CONSEQUÊNCIA DE PROJEÇÕES HUMANAS

Nessa projeção também é possível justificar a imagem de um Deus que exige sacrifícios para assim ficar satisfeito, acalmado na sua ira, ou benevolente com os seus seguidores. Nesses seguidores, em contraposição, forma-se um constante sentimento de culpabilidade. Quem mostra esse fato de maneira muito clara é G. Rosolato, citado por Chauvet, na sua interpretação psicanalítica do sacrifício.10 Encontramos tal teologia sacrifical em muitas religiões. Vestígios dela também podem ser observados na história de Israel, e nós a observamos até no imaginário religioso de muitos cristãos e muitas cristãs. Em todos esses casos, o tema do sacrifício, conforme os princípios da mimesis, torna-se um dos temas centrais do pensamento religioso. A análise profunda desse pensamento, porém, mostra nele passo a passo aquele mecanismo que Girard descreve: a agressividade e a violência são tiradas do ambiente humano e reproduzidas no ambiente divino. Os homens violentos e agressivos projetam a sua própria violência e agressividade em Deus. Assim se forma a imagem de um Deus violento e agressivo que exige sacrifícios para ser acalmado. Na realidade, segundo Girard, não é Deus que exige sacrifícios, mas a agressividade daqueles que se referem a Deus. Mas, por causa da projeção realizada, na concepção deles, é Deus que exige ações violentas. Consequentemente, eles, os sacrificadores, se sentem justificados diante de sua própria agressividade. A violência se apresenta como vontade de Deus.

É bem dentro da lógica de tal concepção que os apedrejadores (cf. Jo 8) podem, com a melhor consciência do mundo, levantar suas pedras. Na opinião deles, estão 91

realizando a vontade de Deus, eles se tornaram instrumentos dele, e desse modo até pensam que estão realizando uma boa obra. Na realidade, porém, são agressivos, vingativos e cheios de violência, mas, de maneira totalmente inconsciente, projetam tudo isso na figura de Deus. É baseado no mesmo mecanismo que os inquisidores podem ordenar as torturas mais cruéis e, na opinião deles, estão ajudando o acusado a voltar à reta doutrina. E é a partir da mesma lógica que os piedosos de hoje podem condenar e expulsar alguém que declaram herético, pois, na opinião deles, estão defendendo a causa de Deus e a reta doutrina... 21.4. O MECANISMO DE PROJEÇÃO POSSIBILITA ESCONDER A RAIZ DA VIOLÊNCIA O mecanismo de projeção permite também o descarregamento de eventuais complexos de culpa dos sacrificadores. Ele, além disso, possibilita a repressão da conscientização das verdadeiras causas da violência. Os violentos ficam de consciência tranquila, porque são convencidos de agir como instrumentos de Deus. Desse modo, ficam dispensados de buscar a raiz da violência em si mesmos. A projeção da própria violência na vítima isenta os sacrificadores da culpabilidade. Ela pode ser projetada num bode expiatório, e este se torna culpado e, por causa disso, com todo o direito será sacrificado. À medida que tal projeção se realiza por vias religiosas, também podem ser estabelecidos sistemas teológicos que justifiquem tais sacrifícios. Estes são legitimados como correspondentes à vontade de Deus, como agradáveis a Deus, como necessários para honrar a Deus. Assim, formase passo a passo a imagem de um Deus que gosta de sacrifícios, que até exige sacrifícios e que manda realizar sacrifícios. Os ritos sacrais, através dos quais esses sacrifícios se realizam, escondem aos sacrificadores o fato escandaloso de que, em nome de Deus, eles matam. Eles escondem também que toda a sua argumentação, no fundo, segue muito mais certos mecanismos psicológicos e psicossociológicos inconscientes do que os caminhos da racionalidade consciente. 21.5. COMO DESVELAR DIANTE DOS SACRIFICADORES A VERDADE SOBRE O SEU AGIR VIOLENTO? É diante de toda essa situação que se forma o grande problema, com o qual muitos textos bíblicos nos confrontam, e que, no fundo, também era o problema central de Jesus no seu conflito com os representantes da instituição religiosa da sua época, o Templo: Como desvelar diante dos sacrificadores a verdade sobre o seu agir? Eles parecem ser cegos! O mecanismo do bode expiatório os faz pensar que são eles que realizam a vontade de Deus. Para Girard, o grande mérito dos textos bíblicos é ter começado a desmascarar essa falsa mentalidade sacrifical. À medida que reconhecemos nos textos bíblicos a Revelação divina, encontramos, aliás, nesse desmascaramento mais um dos grandes eixos dessa Revelação. Os textos sagrados, sejam do Antigo Testamento, sejam do Novo Testamento, 92

desmascaram os sacrifícios como resultado de projeções humanas que não correspondem à vontade de Deus. “A Bíblia hebraica”, diz Girard, “rejeita deuses, cuja base é a violência sacral”.11 Ela não só rejeita tal concepção de Deus, como também revela progressivamente os mecanismos de transferência e de repressão das próprias agressividades que se escondem atrás das justificações teológicas dos sacrificadores. [Os] profetas do Antigo Testamento anteriores ao exílio, Amós, Isaías, Miqueias, denunciam em termos fortes a ineficácia dos sacrifícios e de qualquer ritual sacrifical.12

Essa denúncia começa com a crítica e a rejeição de sacrifícios humanos13 e termina com a clara rejeição dos sacrifícios miméticos. Na formulação de Raymund Schwager, “com sacrifícios [...] não se pode servir a Deus. Ele não precisa deles, e eles não resultam em nada”.14 [...] é impossível que o sangue de touros e bodes elimine os pecados. (Hb 10,4; cf. também Hb 10,11) Não quiseste sacrifício nem oferta, abriste o meu ouvido; não pediste holocausto nem expiação, e então eu disse: Eis que venho. (Sl 40,7s) Que me importa a abundância de vossos sacrifícios? – diz o Senhor. Estou farto de holocaustos de carneiros e de gordura de animais cevados; do sangue de touros, de cordeiros e de bodes, não me agrado. (Is 1,11) Ide e aprendei o que significam as palavras: Quero misericórdia e não sacrifícios. (Mt 9,13)(cf. Os 6,6) 1 O texto do presente capítulo foi publicado pela primeira vez na Revista da Pontifícia Faculdade de Teologia de São Paulo, Revista de Cultura Teológica, XII, n. 47, p. 49-62, abr.-jun. 2004. Aqui foram feitas muitas modificações. 2 Cf. Les sacrifices de l’Ancien Testament, La Maison de Dieu, Revue de pastorale liturgique, n. 123, p. 7ss, set. 1975. 3 DIECKMANN, Bernhard. Judas als Sundenbock. Munique: Kösel, 1991, p. 246. 4 Cf. La Maison de Dieu, Revue de pastorale liturgique, n. 123, p. 7-24, set. 1975. 5 Cf. HINKELAMMERT, Franz. Der Glaube Abrahams und der Oedipus des Westens. Munique: Liberacion, 1989, p. 62; cf. também: HINKELAMMERT, Franz. Sacrifícios humanos e sociedade ocidental. São Paulo: Paulus, 1995, p. 77-103. 6 Ibid. 7 HINKELAMMERT, Franz, op. cit., p. 51. 8 BLANK, Renold J. Esperança que vence o temor. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 199. 9 SCHWAGER, Raimund, op. cit., p. 73. 10 Cf. CHAUVET, Luis Marie. La dimension sacrificielle de l’Eucaristie. La Maison de Dieu, Revue de pastorale liturgique, n. 123, p. 57, set. 1975. 11 GIRARD, René. Ich sah den Satan vom Himmel fallen, wie einen Blitz. Munique-Wien: Carl Hauser, 2002, p. 154. 12 GIRARD, René, op. cit., p. 62. 13 Cf. 2Rs 23,10; 2Cr 28,3; 33,6; Ez 16,20s; Dt 12,31; 18,9s; Jr 7,30ss; 19,3-6. 14 SCHWAGER, Raymund, op. cit., p. 124.

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22. O DEUS QUE SE REVELA NOS TEXTOS BÍBLICOS ESTÁ DO LADO DAS VÍTIMAS E NÃO DOS SACRIFICADORES

O Deus que se revela nos textos bíblicos não é o Deus dos sacrificadores, mas o Deus das vítimas.1 Deus se nega a ser resultado de uma projeção de desejos humanos. Ele desmascara aquelas projeções como aquilo que são: mecanismos inconscientes para justificar a própria agressividade. Em tantos textos proféticos, da mesma maneira como em Salmos, no livro de Jó ou na narração sobre José (cf. Gn 37ss), a Bíblia, em vez de assumir a perspectiva dos sacrificadores, desmascara-a como falsa. Ela assume a perspectiva das vítimas.2 Assim mostra que essas vítimas na realidade não são os culpados, apesar de serem incriminadas e consequentemente sacrificadas pela coletividade daqueles que pensam estar certos. Os verdadeiros culpados são os sacrificadores, e não as suas vítimas, mostra René Girard, e este detecta nos Salmos bíblicos “os primeiros textos dentro da história da humanidade que dão voz àquelas vítimas, contornadas de uma multidão histérica; situação tão típica dentro das narrações mitológicas”.3 A perspectiva bíblica, na qual devemos ver a perspectiva da Revelação, apresenta uma progressiva conscientização daquele fato que os sacrificadores não percebem e não querem perceber: sacrifícios e produção de bodes expiatórios pertencem ao mundo da violência. O mundo de Deus, porém, é um mundo diferente. Nele vale o amor e o perdão, em vez da retribuição através de vítimas sacrificadas. Nesse sentido, encontramos nos textos do Antigo Testamento um constante apelo à conversão, um apelo para mudar de perspectiva religiosa. O que interessa a Deus não são os sacrifícios, mas a preocupação com as vítimas.4 A perspectiva divina é aquela que vem debaixo, a partir dos perdedores e de todos aqueles que, diante do sistema em vigor, não podem mais ter esperança nenhuma. É dessa maneira que Deus se revelou em Jesus Cristo, e, diante de tal Deus, todos os desesperados novamente puderam recuperar a esperança. Se Deus é assim como ele se manifesta em Jesus Cristo, então também para os que já foram declarados perdidos pela instituição religiosa ainda pode haver nova esperança. Ela aparece de maneira explícita no texto de Lc 4,18-19, cujo conteúdo, numa transcrição moderna, pode ser sintetizado assim: Deus me chamou para transmitir a todos os rejeitados, excluídos e condenados, a Boa-nova, que ele mesmo está do lado deles; que ele os defende e os ama.

22.1. OS SACRIFICADORES NÃO QUEREM ADMITIR QUE A SUA PERSPECTIVA É FALSA

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Para todos aqueles que se acostumaram a denunciar, sacrificar e julgar, é muito difícil assumir aquela mudança de perspectiva que vem à tona na atitude de Jesus. Exigiria uma verdadeira conversão, e à medida que as pessoas pensam conhecer já de antemão toda a verdade, tal conversão torna-se quase impossível. Independentemente dessa dificuldade, porém, permanece válido aquilo que já começou com os Salmos e os Profetas e que continua nas narrações do Novo Testamento: Deus não concorda com as exigências daqueles que exigem a crucificação de vítimas. Mas o Novo Testamento não para com essa constatação. Os seus textos relatam sempre novos enfoques, a práxis de Jesus e sua rejeição a uma mentalidade sacrifical. Sob condição nenhuma, Jesus tolera a projeção inconsciente de agressividade conforme o mecanismo da mimesis. Em vez disso, conscientiza com insistência dos mecanismos que produzem vítimas e bodes expiatórios. Com essa conscientização, desfaz o pressuposto básico de todo mecanismo do bode expiatório, o seu estado de ser inconsciente. O agir de Jesus desvela o zelo dos sacrificadores como aquilo que é: a projeção inconsciente da própria agressividade sobre os outros. Como exemplo típico desse desmascaramento, pode ser mencionado mais uma vez a cena da mulher adúltera (cf. Jo 8,1-11), embora haja muitos outros textos que relatam que Jesus age da mesma maneira, querendo conscientizar (cf. Mt 21,33-42; Mt 23,1-39; Lc 11,39-52; Mc 12,37-40). É por isso que vos envio profetas, sábios e escribas. Deles matareis e crucificareis alguns, a outros açoitareis nas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade. 35Por isso cairá sobre vós o castigo pelo assassinato de todos os inocentes, desde Abel, o justo, até Zacarias filho de Baraquias, a quem matastes entre o Santuário e o altar. 36Eu vos garanto: tudo isto virá sobre esta geração. 37Jerusalém, Jerusalém! Tu que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! (Mt 23,34-37)

Conscientizar dos mecanismos inconscientes e desmascarar os motivos subjacentes do agir dos sacrificadores, é uma experiência que Jesus faz e que é bem conhecida de todos os psicanalistas, no entanto, ele encontra resistência. Os sacrificadores não querem ser conscientizados. Eles se fecham numa atitude de cegueira sistêmica e coletiva. Eles não querem ouvir, porque, se aceitassem a verdade sobre si mesmos, deveriam admitir que são eles próprios os violentos, os agressores. Essa verdade, porém, não querem aceitar, tampouco querem se converter e mudar de atitude. Mas, diante do agir conscientizador de Jesus, não é mais possível manter a projeção num estado inconsciente. A agressividade se torna consciente, e com isso os sacrificadores não mais podem recorrer, de maneira inconsciente, ao mecanismo do bode expiatório. O seu agir religioso se desmascara como mentiroso e hipócrita. Jesus desmascara essa hipocrisia nos seus anátemas contra os fariseus da sua época: “acautelai-vos [...] da hipocrisia dos fariseus” (Lc 12,1).

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Ele não só a desmascara, mas também a denuncia, mostrando os seus motivos escondidos. Um exemplo é a parábola dos vinhateiros homicidas (cf. Mt 21,33-39). É exatamente isso, porém, que os sacrificadores de maneira nenhuma querem aceitar. Quando não é mais possível fechar os olhos diante dos verdadeiros motivos da sua atitude, eles dirigem a sua agressividade contra aquele que os desmascara e os quer conscientizar. E sendo violentos, a sua ação outra vez é violenta. Eles o matam. Com isso se fecha de novo o círculo vicioso da violência. Ele não só se fecha, mas também inicia mais uma rodada, porque os seguidores desse bode expiatório sacrificado, agora, por sua vez, podem começar a sacrificar os sacrificadores. E da mesma maneira como os sacrificadores matavam, convencidos de fazer boa obra, também os sacrificadores dos sacrificadores, por sua vez, podem recorrer ao mecanismo inconsciente, já descrito, e justificar as suas ações como vontade de Deus. No entanto, quando fazem isso, se confrontam com o mesmo problema, com o qual os representantes do Templo de Jerusalém se viam confrontados. Eles não mais podem recorrer aos mecanismos de projeção, projetando a sua agressividade naquele Deus em cujo nome pretendem agir. 22.2. COM A SUA ATITUDE NA CRUZ E DIANTE DA CRUZ, DEUS QUEBRA O CÍRCULO VICIOSO DA VIOLÊNCIA E DA VINGANÇA

O Deus, no qual os sacrificadores buscam a sua justificação, mostrou de maneira indiscutível que não é violento. Ele mostrou essa sua característica durante toda a sua atuação em Jesus Cristo, e este a mostra também exatamente naquele acontecimento em que ele próprio tinha sucumbido à violência dos sacrificadores em nome de Deus: na cruz e na sua transmutação total da antiga concepção de sacrifícios.5 Essa transmutação é caracterizada por Louis-Marie Chauvet da seguinte maneira: “Sacrifício por excelência, a cruz também é o antissacrifício. Cristo, através dele, sacrificou os sacrifícios”.6 A partir da cruz de Cristo, “o único sacrifício possível é a reconciliação”.7 No patíbulo da cruz e na sua reação diante dessa cruz, Deus de fato revela para todos que o seu lema é o perdão e não a vingança, que a sua atitude é o amor e não o ódio. Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. 40E se alguém quiser te processar para tirar-te a túnica, deixa-lhe também o manto. 41Se alguém te obrigar a carregar-lhe a mochila por um quilômetro, leva-a por dois. 42Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja um empréstimo. 43Ouvistes que foi dito: Amarás teu próximo e odiarás teu inimigo. 44Pois eu vos digo: Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem [...] (Mt 5,9-44; Lc 6,29ss). Perdoa-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34). Ultrajado, não replicava com injúrias; atormentado, não ameaçava [...] (1Pd 2,23). Pois é Deus que em Cristo reconciliou o mundo, já não levando em conta os pecados dos homens. É ele que pôs em nossos lábios a mensagem da reconciliação (2Cor 5,19). Mas agora, sem a Lei, manifestou-se a justiça de Deus, atestada pela Lei e pelos Profetas. 22É a justiça

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de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos os que creem, sem distinção. 23Pois todos pecaram e todos estavam privados da glória de Deus. 24Mas agora são gratuitamente justificados pela graça, pela redenção em Jesus Cristo (Rm 3,21-24).

Pela sua reação perante a violência daqueles que mataram Jesus em nome de uma falsa concepção de Deus, o Deus verdadeiro mostra que nunca, jamais, alguém pode recorrer à violência e justificá-la como vontade dele. Porque a reação de Deus à violência contra ele mesmo, na cruz, é a não violência. Em vez de condenar, ele perdoa, e em vez de se vingar, ele salva. O Deus que se manifesta em Jesus Cristo é o oposto de toda violência. Sua vontade ilimitada de perdoar quebra o círculo da violência e desmascara toda tentativa de justificar a violência, com referência a Deus, como mentira e hipocrisia. É essa a grande lição que os seguidores do Deus não violento, no decorrer da história, só com muitas dificuldades quiseram aceitar. Mas, para todos eles que recorrem à violência qualquer, seja ela fisiológica, seja econômica, seja psicológica, seja social, seja religiosa, vale o mesmo que valeu na época para os seguidores do Templo: quem depois de Jesus ainda recorre à violência, mesmo quando quer justificar tal agir em nome de Deus, é desmascarado pelo próprio Jesus Cristo como mentiroso e hipócrita. Deus não para de desmascarar a atitude mimético-sacrifical como falsa. A partir da cruz e da reação de Deus a ela, ninguém mais tem justificativa alguma para recorrer a atitudes violentas. Ninguém mais tem justificativa alguma para crucificar, porque Deus não quer a crucificação, mas sim o perdão. Ele, em suas próprias palavras, não gosta de sacrifícios,8 porque no sacrifício há violência, e Deus não é violento. Se, porém, ele não o é, como alguém dos seus seguidores, com consciência limpa, poderia ser? Essa rejeição de toda violência por parte de Jesus Cristo vem à tona de maneira mais clara e escandolosa na cruz. E ela é confirmada na sua totalidade por Deus-Pai,9 que pela ressurreição de Jesus confirma e corrobora de maneira plena e total tudo aquilo que esse seu filho tinha dito e feito. 1 Cf. Sl 22,13-18.21; 31,14; 40,7; 118,21s; 144,5-8; Is 40-55; Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12. 2 Cf. como exemplo: Sl 22,21s; 144,5-8. 3 GIRARD, René, op. cit., p. 150. 4 Cf. Os 6,6; Mt 9,13 – Misericórdia em vez de sacrifícios. 5 Cf. Hb 4-10, de maneira específica: Hb 7,11-28; 10,11-18; 12,22-24. Importantes nesse contexto são também as declarações do Concílio de Trento sobre a compreensão do sacrifício Eucarístico, cf.: Dz 1751; 1743; 1753. 6 CHAUVET, Luis Marie, op. cit., p. 66. 7 Ibid., p. 54. 8 Nos textos do AT, cf.: Am 5,21-24; Is 1,11-17; Js 22,26; Js 22,28; 1Sm 3,14; 1Sm 15,22; Sl 40,6; Sl 51,16; Sl 51,17; Pv 21,3; Ec 5,1; Is 1,11; Is 43,23; Is 43,24; Jr 6,20; Jr 7,22; Os 6,6; Os 8,13; Am 5,21-25; Ml 2,3. Nos textos no Novo Testamento, cf. Mt 9,13: “Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifícios. Porque eu não vim chamar justos, mas pecadores”; Mt 12,7: “Mas se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifícios, não condenaríeis os inocentes”; Mc 12,33: “E que amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios”; At 7,42; “Mas Deus se afastou, e os abandonou ao culto das hostes do céu, como está escrito no livro dos profetas: ‘Porventura me oferecestes vítimas e sacrifícios por quarenta anos no deserto, ó casa de Israel?’”; Hb 10,5: “Pelo que, entrando no mundo, diz: ‘Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo me preparaste’”; Hb 10,8: “Tendo dito acima: ‘Sacrifício e ofertas e holocaustos e oblações pelo pecado não quiseste, nem neles te deleitaste’”; Hb 10,11: “Ora, todo sacerdote se apresenta dia após dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar pecados”. 9 Toda reflexão sobre “Deus-Pai que ressuscita Jesus” deve implicitamente manter presente que, na perspectiva de Deus, cruz e ressurreição sempre devem ser pensadas em termos de uma dinâmica introtrinitária, isto é, de um acontecimento que diz respeito ao Deus uno e trino, Pai, Filho e Espírito Santo.

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23. PELA RESSURREIÇÃO DE JESUS, DEUS-PAI RATIFICA E CONFIRMA TODA A VIDA E TODA A MENSAGEM DE JESUS 23.1. A CRUZ, SINAL DE VERGONHA E DE DERROTA Uma tradição de dois mil anos nos acostumou a ver na cruz o grande sinal da nossa fé. Um sinal que veneramos e ao qual fazemos referência, e isso com todo o direito. Mas a situação não era essa na época de Jesus! No tempo dele, a cruz era conhecida como o maior sinal de vergonha e de derrota, patíbulo para criminosos, e quem morresse na cruz era marcado diante de todo mundo como fracassado, excluído, além disso, maldito pelo próprio Deus (cf. Dt 21,23). Quem morresse na cruz perderia toda e qualquer credibilidade e toda estima aos olhos da sociedade teocrata e da sua religião, dele não se falaria mais, era considerado proscrito e pessoa publicamente repudiada por Deus. “Maldito por Deus, quem pende na cruz” (Dt 21,23), e Jesus pendeu na cruz, portanto, era amaldiçoado por Deus. Um assim anatemizado por Deus, porém, jamais poderia ser o Messias. Era essa a opinão dos integrantes do sistema sociorreligioso da época,1 e foi por essa razão que os representantes desse sistema fizeram de tudo para crucificar Jesus. O Jesus crucificado nunca mais poderia questioná-los. O Jesus crucificado foi obrigado a calar-se. A sua mensagem incômoda poderia ser esquecida, e ele mesmo seria estigmatizado como mentiroso, falso profeta, desprezado e, conforme as palavras da própria Bíblia, repugnado pelo próprio Deus. Não é por acaso que Paulo fala da cruz como “escândalo para os judeus” (1Cor 1,23; Gl 5,11). 23.2. PELA MORTE NA CRUZ, A MENSAGEM DE JESUS PERDEU, PARA OS SEUS CONTEMPORÂNEOS ORTODOXOS, TODA E QUALQUER CREDIBILIDADE Com a sua morte na cruz, Jesus tinha perdido, aos olhos dos seus contemporâneos ligados ao sistema religioso, todo e qualquer prestígio. Consequentemente, também tinha acabado o significado de tudo aquilo que havia dito e feito e que, em tantas ocasiões, tinha questionado e reprovado da concepção dos representantes oficiais da religião. Para o sistema, o Jesus crucificado era a prova de que esse Jesus tinha se enganado e que a sua maneira de falar de Deus era falsa. Mas, se aquilo que ele ensinara havia se desqualificado, se Deus obviamente não era assim como Jesus o tinha proclamado, ou seja, um Deus do amor, do perdão e da misericórdia, se tudo isso era engano, então a teologia oficial do sistema religioso podia continuar, e com isso todas as concepções de um Deus retributivo e punidor, de um Deus da Lei e não um Deus da misericórdia. Tudo isso parecia ser provado de maneira pública naquele dia da cruz de Jesus. O 98

projeto dele aparentemente tinha acabado, e todo mundo sabia. O veredicto do crucificado supostamente se apresentou como o veredicto do próprio Deus, porque ninguém, naquela época, tinha a menor dúvida sobre a validade de Dt 21,23. Caso alguém ainda pudesse mudar essa situação, seria somente o próprio Deus. E eis que foi exatamente isso que aconteceu! A reflexão sobre tal fato nos conduz de maneira direta a um elemento-chave daquilo que é o significado da ressurreição e da sua relevância em termos de Revelação, o qual veremos a seguir. 23.3. OS TEXTOS BÍBLICOS NÃO FALAM DE UMA AUTORRESSURREIÇÃO DE JESUS, MAS DE UM AGIR DE DEUS-PAI NO JESUS MORTO O Novo Testamento não menciona uma autorressurreição de Jesus. E o Credo da Igreja primitiva insiste que foi Deus quem ressuscitou Jesus. Um exemplo típico dessa declaração original encontramos em At 3,15: “Vós matastes o autor da vida, mas DEUS O RESSUSCITOU DOS MORTOS e disso nós somos testemunhas”. O que aqui se declara de maneira exemplar está sendo repetido em muitos outros textos do Novo Testamento.2 Para a Igreja primitiva, era absolutamente claro que a Ressurreição tinha que ser compreendida como o agir de Deus no Jesus morto. Sendo Jesus o verdadeiro Deus, mas também o verdadeiro homem, ele, como qualquer verdadeiro homem, estava verdadeiramente morto depois da crucificação. Era convicção da Igreja primitiva que o Deus encarnado tinha assumido, como diz Paulo, a condição humana até a última consequência (cf. Fl 2,6-8, Hb 2,17). A última consequência de “ser homem”, porém, significa morrer e não ressuscitar pelas suas próprias forças. A Igreja primitiva era bem consciente disso, e foi essa a razão pela qual no seu Credo manteve viva a fé de que a ressurreição de Jesus era um ato de Deus-Pai no Jesus morto. Deus agiu, ressuscitando aquele que tinha sido crucificado. E por causa desse agir específico de Deus, foi possível recuperar a confiança naquele que pela crucificação parecia ter sido desqualificado. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus reverteu o veredicto contra “aquele que pende na cruz”. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus, contra toda intenção do sistema religioso, comprovou, pelo seu agir, que Jesus de fato era o Messias. Ressuscitando Jesus, Deus confirmou diante de todos que Jesus tinha razão em tudo aquilo que tinha dito e feito. À medida que recuperarmos o significado ratificador da ressuscitação de Jesus por parte de Deus, compreenderemos em toda a sua radicalidade também as consequências de tal agir divino. Consequências, aliás, nas quais se baseia toda a nossa fé. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma, diante de todos e para todos, que Jesus tinha razão em tudo aquilo que tinha dito e feito.

23.4. RESSUSCITANDO JESUS, DEUS-PAI CONFIRMA QUE ELE É COMO JESUS, SEU FILHO, O 99

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TINHA DESCRITO

Aos olhos dos seus contemporâneos, a morte na cruz não eliminou apenas todo prestígio e toda autoridade da pessoa de Jesus. Essa morte, além disso, tinha desautorizado toda a obra e toda a mensagem dele. Tudo aquilo por que Jesus tinha vivido, todas as suas promessas e todas as suas declarações agora foram considerados suspeitos e eventualmente falsos. Além disso, estavam em jogo também as grandes opções fundamentais, que em função delas Jesus sempre questionou o sistema sociorreligioso da sua época. Foi por causa delas que os representantes do sistema rejeitaram Jesus. Mas eram essas mesmas opções que caracterizavam a mensagem de Jesus como “Boa-nova” para todos aqueles que não mais eram capazes de seguir as normas do sistema. Esse sistema os excluía como pecadores, e isso também significava tirar-lhes a esperança de serem salvos por Deus. Mas, a todos eles, a mensagem de Jesus tinha dado nova coragem e um novo sentido para a vida, porque, nas palavras dele, apareceu uma outra imagem de Deus: – Um Deus partidário de todos aqueles excluídos e estigmatizados como pecadores pelo sistema religioso oficial. – Um Deus que se interessa em primeiro lugar pela pessoa humana e seu bemestar, em vez de insistir com ameaças na observância de decretos e mandamentos. – Um Deus que opta pela misericórdia e não pela punição. – Um Deus que se põe a serviço, em vez de se manifestar como Imperador, com exigências cada vez mais pesadas. – Um Deus que assume a causa dos perdedores e não aquela dos vencedores. Foi essa concepção de Deus que provocou a oposição cada vez mais acentuada entre Jesus e o sistema religioso da época. Ela foi proclamada com a autoridade daquele que se considera “Filho de Deus”. Ela possibilitou uma cosmovisão inteiramente nova, marcada por esperança e confiança. Contudo, estava em oposição frontal com muito daquilo que os representantes dominantes do sistema religioso ensinavam e exigiam. Diante dessa situação, a grande questão é esta: QUEM TEM RAZÃO? Caso Deus realmente fosse assim como Jesus o proclamava, então o sistema deveria mudar a sua concepção religioso-teológica. Isso, porém, não queriam, por razões que iam muito além de questões religiosas e que implicavam todo um jogo de interesses por poder, prestígio e riqueza. Para não ter que mudar, para não ter que realizar a conversão estrutural exigida por Jesus, o sistema optou pelo outro caminho: decidiu matar aquele que incomodava. E para que realmente e para sempre fosse calado, escolheu, pelas razões já explicadas, o caminho de crucificá-lo. Assim, a sua morte não só se tornou sinal de fracasso, mas também foi aos olhos da época a confirmação de que aquele Jesus não tinha razão. Um maldito por Deus não pode ser o Messias! (Cf. Dt 21,23.) Caso a morte na cruz tivesse permanecido o último evento na biografia de Jesus, a imagem de Deus proclamada pelos representantes dominantes do Templo teria 100

continuado em vigor. As pessoas continuariam a ter medo de um Deus ciumento que vigiava com severidade implacável a observância dos decretos, promulgados em seu nome. Se a concepção de Deus defendida pela aristocracia do Templo tivesse permanecido válida, talvez continuassem a justificar todo recurso ao poder e à violência com referência a esse Deus. Para mostrar que não era assim, Deus-Pai tinha que agir. Para mostrar que Deus de fato era assim como Jesus o tinha proclamado, a cruz não podia ser o último evento na vida de Jesus. Deus tinha que agir; e ele agiu. Ele agiu assim como sempre age na história: como Deus da vida; como Deus que faz viver os mortos; como Deus que realmente era tal como Jesus o tinha descrito. Deus-Pai ressuscitou o seu filho crucificado e morto; e com esse ato confirmou diante de todos que ele estava do lado de Jesus e não do lado daqueles que o tinham crucificado. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus-Pai confirmava as opções fundamentais de Jesus, mostrando que elas de fato eram as opções de Deus. Assim, a ressurreição de Jesus realmente é a ratificação e plena confirmação por parte de Deus de toda a vida e de toda a mensagem de Jesus. E ela, além disso, se torna ato de rebeldia contra todos os crucificadores em todo e qualquer momento da história humana. 1 É imaginável que, para os integrantes dos vários movimentos de libertação política, que na época de Jesus lutaram contra a ocupação da Judeia, ser crucificado pelos romanos tinha uma conotação mais positiva, porque incluía o status de ter sido membro das forças da resistência. Mas Jesus não fez parte de tal movimento de libertação política. 2 Cf. Atos 2,24; 2,32; 3,15; 4,10; 5,30; 10,40; 13,30; 13,34; 13,37; 17,31; 26,8; Rm 4,24; 4,25; 6,4; 6,9; 7,4; 8,11; 8,34; 10,9; 1Cor 6,14; 15,15; 2Cor 1,9; 4,14; Gl 1,1; Ef 1,20; 2,6; Cl 2,12; 1Ts 1,10; 2Tm 2,8; 1Pd 1,21. 3 Uma excelente análise teológico-exegética sobre essa temática e as suas consequências se encontra em: KESSLER, Hans. Sucht den Lebenden nicht bei den Toten. Dusseldorf: Patmos, 1985, p. 283-416.

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24. A RESSURREIÇÃO DE JESUS SE TORNA ATO DE REBELDIA DE DEUS CONTRA TODOS OS SISTEMAS QUE GERAM MORTE1 24.1. O IMAGINÁRIO CRISTÃO É MARCADO PELA CRUZ Exigir que se redescubra a importância da ressurreição parece ironia para todo bom cristão, e os piedosos de todas as frações se apressam em confirmar que a festa da Páscoa, para eles, sempre foi e ainda é a maior festa do cristianismo. Os teólogos, por sua vez, apresentam provas históricas e citações bíblicas e dogmáticas. Nelas confirmam que a doutrina cristã, desde suas origens mais remotas, sempre teve consciência da importância da ressurreição. Ela permanece centro e núcleo primordial de toda fé cristã, disso, com toda razão, não há a menor dúvida. Independentemente das provas e não obstante a confirmação daqueles que o devem saber, permanece até hoje um fato indiscutível: o signo da religião cristã, pelo menos desde os tempos do imperador Constantino, não é a representação do ressuscitado, mas sim a cruz. No centro da iconografia, por meio da qual os cristãos expressam o seu símbolo de autoidentificação, não encontramos a imagem da ressurreição, mas o sinal da cruz. E toda expansão da religião cristã, desde o século IV, se fez sob esse signo. O cristianismo se identifica pela cruz, e a sua figura central, Jesus, o Cristo, é conhecida como “o crucificado”. As grandes conquistas da história, começando com Constantino e passando pelas Cruzadas e pela conquista das Américas, se fizeram sob o signo da cruz. E quando analisamos a religiosidade do povo, encontramos também ali a cruz, como centro do universo religioso. O cristianismo, na sua prática, se tornou a religião da cruz, não obstante toda a doutrina dele não cansar de repetir que o seu centro é a ressurreição e que não se pode falar do crucificado sem falar do ressuscitado. Uma prática religiosa de séculos transformou a cruz, antigo sinal da vergonha e do fracasso, num símbolo de glória e veneração. Com base nesse símbolo, desenvolveuse toda uma teologia da cruz, do sofrimento e do sacrifício, e essa teologia foi interiorizada por gerações de cristãos e cristãs. Nunca se negou nem se negligenciou a importância da ressurreição, mas, na prática de vida do cristão, o que estava presente como imaginário central da sua fé era e é a cruz, começando com as cruzes nas torres das igrejas e terminando com o sinal que dá início às suas orações. Todavia, a partir do seu significado histórico e original, a cruz significa sacrifício, dor, tortura, morte e humilhação. Na religião cristã, o fato chocante de o próprio Deus, em Jesus Cristo, assumir todas essas realidades se tornou o centro da consciência religiosa. Uma consciência que, na piedade da religiosidade popular, encontra até hoje a sua mais profunda expressão na imagem do Jesus sofredor. Imagem venerada pelo povo, porque nela encontra, como num espelho, a sua própria situação de sofredor. As cerimônias da Semana Santa também giram, para muitos, primordialmente em 102

torno da veneração do Jesus crucificado. A celebração da Páscoa, para parte considerável do povo, ainda hoje é mais um apêndice religioso do grande evento que se celebra na Sexta-Feira Santa: a crucificação de Nosso Senhor. Tal situação, confirmada pela sociologia da religião, reflete, melhor do que muitos estudos teóricos, o verdadeiro ângulo a partir do qual, durante séculos, a grande maioria dos adeptos do cristianismo compreendeu a sua religião. Embora, desde o Concílio Vaticano II, a situação tenha começado a mudar, a religião cristã permanece, na autocompreensão de muitos dos seus adeptos, primordialmente, a religião da cruz. A importância da ressurreição e a sua indispensável ligação com a cruz somente é deduzida por esses adeptos através de uma argumentação secundária. Tal imaginário religioso trouxe consequências históricas cujos efeitos permanecem até os dias de hoje. 24.2. O FATO DE A CRUZ TER SE TORNADO O SIGNO CENTRAL DA RELIGIÃO CRISTÃ TROUXE PROFUNDAS CONSEQUÊNCIAS PARA A AUTOCOMPREENSÃO DAQUELES QUE SE CHAMAM CRISTÃOS E CRISTÃS

De um lado, a dor, o sofrimento, o fracasso e a morte se tornaram experiências que perderam a sua dimensão assustadora. Elas até poderiam transformar-se em experiências positivas, porque nelas se realizavam o seguimento e a imitação de Jesus Cristo. Com base nessa nova perspectiva, segundo a qual a negatividade de toda cruz é superada pela ressurreição, cristãos e cristãs tornaram-se capazes de superar o malogro da morte e da dor, porque se compreenderam como seguidores daquele que morreu na cruz e que depois foi ressuscitado. Em contrapartida, constatamos historicamente a formação de um outro tipo de corrente religiosa. Ligado a um enfoque predominantemente dualista, o evento da cruz, isolado do contexto da ressurreição, assumiu cada vez mais o primeiro plano da consciência religiosa. A expressão “Carregar a sua cruz” virou para muitos o desafio primordial de ser cristão. Isso fez crescer uma mentalidade a partir da qual a renúncia a si mesmo progressivamente era compreendida como renúncia a tudo aquilo que pudesse trazer alegria, felicidade e prazer. Em consequência, foram interpretados unilateralmente textos como aqueles de Mc 8,34-35; Lc 14,26-27; 9,23-24,2 com essa perspectiva. Além disso, pode ser constatado, até hoje, em muitos cristãos e cristãs, uma sombria e muito pessimista espiritualidade da cruz. Ela fez crescer ainda outra mentalidade religiosa. Nela, pessoas pensavam agradar a Deus, quando se autoflagelavam e se submetiam a todo tipo de tortura. Suportar sem reclamar as desgraças de uma vida, marcada por injustiças e problemas, tornou-se para muitos a característica do bom cristão, e benefício de todos aqueles que assim lucraram com a paciência do povo sofrido, explorando-o e oprimindo-o, com a certeza de que esse povo, por causa da sua fé religiosa, não iria se revoltar. Assim, a religião cristã tornou-se para muitos uma religião sombria, em cujo centro encontraram a figura de uma pessoa aniquilada até a morte por um dos 103

instrumentos mais cruéis de tortura jamais inventados pelos humanos: a cruz. É diante desse quadro que a teologia se esforça em conscientizar que o verdadeiro centro do cristianismo é a ressurreição. Ela lembra que a cruz, em si, não é o fim último da mensagem cristã e só pode ser compreendida junto e relacionada à ressurreição. Tal conscientização deve ser feita também hoje, sem negar e sem esquecer nenhuma das grandes e profundas verdades que a reflexão teológica, no decorrer dos séculos, formulou sobre o verdadeiro significado da cruz. Nenhuma dessas verdades pode ser esquecida. Nenhuma delas pode ser negada. Mas, além delas, as outras verdades, que às vezes estão no perigo de serem esquecidas, devem ser recuperadas. 24.3. A CRUZ, POR SI MESMA, NÃO É O FIM ÚLTIMO DA MENSAGEM CRISTÃ, ELA DEVE SER VISTA SEMPRE RELACIONADA À RESSURREIÇÃO

A cruz, por si mesma, não é o fim último da mensagem cristã. A cruz só alcança o seu significado definitivo porque foi superada pela ressurreição. A cruz em si, historicamente, é um sinal de vergonha e fracasso. “Escândalo para os judeus e loucura para os gentios”, diz o apóstolo Paulo (1Cor 1,23; cf. Gl 3,13; Dt 21,23). O fato de Jesus ter morrido amarrado e pregado nesse patíbulo vergonhoso, além de revelar a inconcebível Kenosis de Deus, nos informa, em primeiro lugar, o terrível abismo de corrupção que pode ser alcançado por pessoas humanas. Por outro lado, ele nos informa a inimaginável bondade de um Deus que suportou e superou tal maldade humana (cf. At 5,30-32; Ef 2,14-16; Cl 1,19-20; 2,13-15). Mas a cruz em si não nos dá razão nenhuma para celebrar, bem ao contrário, é o sinal de nossa vergonha e lembrança dolorosa da iniquidade humana. Se a história de Jesus, desse homem que também é Deus, tivesse terminado com a cruz e nada mais, todas as gerações subsequentes ficariam presas sob o peso incalculável da culpa insuportável de ter crucificado o próprio filho de Deus. Se a história de Jesus tivesse terminado com a sua morte na cruz, ninguém jamais poderia dormir tranquilo, porque nunca saberia se esse Deus crucificado, em certo dia, vingaria a vergonha pela qual teve que passar. Se o centro da religião cristã tivesse se restringido à cruz, então essa religião de fato seria uma religião sombria, cruel no seu núcleo e, por causa disso, com todo direito, temida e perigosa. A cruz sem a ressurreição permanece aquilo que Paulo diz: escândalo e loucura abominável (cf. 1Cor 1,23). A cruz sem a ressurreição produz temor. Um Deus que tivesse deixado morrer o seu filho na cruz sem ressurreição se revelaria um Deus cruel. Mas Deus não é cruel! Ele não é um Deus da morte, mas sim da vida! É por causa disso que devemos recuperar com toda a força a consciência da ressurreição. É por causa disso que devemos redescobrir o profundo e tremendo significado daquele evento, que unicamente era capaz de superar a negatividade da cruz: a ressurreição. Deus não se deixou levar pelo agir humano numa situação de negatividade. A sua grande Revelação, preparada e modulada por uma história de séculos, 104

incluiu o fato de esse Deus se encarnar em Jesus Cristo; ela passa pelo evento chocante de uma morte redentora na cruz, mas culmina na demonstração do fato de Deus ser mais forte que toda e qualquer situação de morte. Essa demonstração se realiza pela ressurreição daquele que tinha assumido a morte, e até a morte na cruz: Jesus, verdadeiro Deus e também verdadeiro homem. Ressuscitando-o, o próprio Deus revela diante de todos e para todos que essa cruz e toda a sua negatividade não têm a última palavra. Ressuscitando esse crucificado, o próprio Deus revela para todos e diante de todos que ele mesmo não concorda com a cruz em si e com tudo aquilo que significava para os representantes daquela época: sofrimento e dor, desprezo da dignidade humana, esquecimento e morte vergonhosa. Deus não concorda com tal realidade e, por causa disso, ressuscita o crucificado. A encarnação na realidade terrível do sofrimento, da pobreza e da aniquilação humana não é o último objetivo de Deus. O seu último objetivo é a vida, e esta é mais forte que a morte, porque o próprio Deus é essa vida. Isso significa que ele é capaz de transformar situações de morte em novas situações de vida. Na ressurreição de Jesus, Deus comprova esse fato. E ele comprova e justifica que o seu interesse não é nem a cruz em si, nem o sofrimento, mas a dignidade de uma vida sem dor e sem humilhação. Nesse sentido, a auto-humilhação de Deus, assumida por ele na cruz, em nada se torna justificativa para qualquer tipo de alienação e de humilhação de seres humanos. Porque depois da cruz vem a ressurreição. E é através dessa ressurreição que Deus revela que é mais forte que qualquer força da morte. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus comprova, diante de todos, que a morte e a cruz não têm a última palavra. O objetivo final de Deus não é o sofrimento e a dor, mas a vida e a superação de toda cruz. 24.4. RESSUSCITANDO JESUS, DEUS REVELA QUE ELE É CONTRA A MORTE DOS CRUCIFICADOS Ressuscitando Jesus, Deus revela que não está do lado daquelas forças que geram morte, nem individual, nem socialmente. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus rejeita todas aquelas forças, sejam elas ideológicas, sejam políticas, sejam sociais, sejam econômicas, sejam até religiosas. Quem gera a morte do ser humano não pode contar com a solidariedade de Deus, bem ao contrário. Quem cria situações de morte, desafia o próprio Deus e, por sua vez, é desafiado por ele. E o grande desafio de toda morte, por parte de Deus, é a ressurreição. Deus ressuscita o crucificado. Deus rejeita a lógica dos crucificadores, pois, aos olhos de Deus, a maneira de estes quererem resolver os problemas é falsa. Isso vale não obstante todo o valor religioso que o símbolo da cruz alcançou no decorrer da história da religião cristã. Esse valor é indiscutível, mas só foi alcançado na sua relação com a ressurreição. Já foi dito que todos os profundos significados teológicos da cruz, descobertos e proclamados numa história de séculos, são verdadeiros e devem ser mantidos sem dúvida nenhuma. Mas também não há dúvida de que todos esses valores só são possíveis porque depois da cruz havia uma ressurreição que superou toda cruz. É essa 105

ressurreição que devemos novamente colocar como o primeiro e mais significativo elemento de toda a redenção.3 Porque é através dela que o próprio Deus estabelece a escala daqueles valores pelos quais ele mesmo realmente se interessa. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus os define, porque, ressuscitando Jesus, ele confirma e ratifica os valores, defendidos pelo ressuscitado, como os valores dele mesmo. 24.5. RESSUSCITANDO JESUS, O PRÓPRIO DEUS REJEITA OS VALORES DOS CRUCIFICADORES E CONFIRMA AS OPÇÕES DO SEU FILHO CRUCIFICADO

Contra uma constelação de forças religiosas que, em nome de Deus, tinham exigido a crucificação do enviado de Deus, porque esse enviado não confirmava os valores defendidos por elas,4 o próprio Deus se rebela. E essa rebeldia de Deus se manifesta com o seu ato de ressuscitar aquele que foi crucificado. Mas, ressuscitando este, o próprio Deus também confirma que ele está do lado de Jesus, e não do lado da instituição religiosa ou política que o crucificou. E, assim, finalmente confirma e ratifica como verdadeiro tudo aquilo que Jesus tinha dito e feito. Contra a convicção daqueles representantes da ortodoxia que acentuavam cada vez mais as exigências da observância escrupulosa da Lei, o próprio Deus sustenta aquilo que Jesus tinha sustentado: MISERICÓRDIA, EM VEZ DE LEGALISMO (Mt 9,13). Contra a atitude de um sistema religioso que se havia aliado ao poder vigente, para manter o seu próprio poder, Deus confirma a opção daquele que foi ressuscitado: SERVIÇO, EM VEZ DE PODER (Mt 20,28; Mc 10,42-45; Lc 22,24-30; Jo 13,1-5). Contra uma atitude de arrogância que, em nome das Leis do mercado, ou em nome da influência social, ou em nome de qualquer outro sistema, despreza o pobre e se torna insensível ao grito dos excluídos, o próprio Deus, ressuscitando Jesus, rejeita tal atitude como falsa (cf. Mt 5,1-7,29; 18,23-35; 19,19; 22,34-40). Contra todos aqueles que, em nome de qualquer sistema, de qualquer ideologia ou de qualquer instituição, desprezam o ser humano e se tornam insensíveis ao grito dos excluídos, o próprio Deus declara tal atitude como falsa.

Pela ressurreição de seu filho crucificado, Deus-Pai confirma todas as opções de vida desse filho, incluindo também a sua opção preferencial por todos aqueles que o sistema excluiu: BEM-AVENTURADOS VOCÊS, OS POBRES, PORQUE VOSSO É O REINO DE DEUS (Lc 4,18; 6,20). A ressurreição se torna, assim, nas palavras de Andrés Torres Queiruga, também “a última garantia para as vítimas: só a ressurreição [...] pode dar satisfação a nosso ‘anseio de que o opressor não triunfe sobre sua vítima’”.5 Isso vale tanto no nível individual quanto no estrutural. Contra todos os sistemas que recorrem a mecanismos de crucificação, sejam eles 106

justificados em nome de Deus, sejam em nome de qualquer outra instância, o próprio Deus confirma, pela ressurreição de Jesus, a opção dele de NÃO LEGITIMAR NENHUM ARGUMENTO, EM NOME DO QUAL SE JUSTIFICA CRUCIFICAR ALGUÉM, nem de maneira real nem em sentido figurado. 24.6. A RESSURREIÇÃO DE JESUS SE TORNA ATO DE REBELDIA DE DEUS CONTRA TODOS OS SISTEMAS QUE GERAM MORTE

A ressurreição de Jesus por parte de Deus se torna assim a ação transformadora por excelência. Contra todos aqueles que se autodeclaravam senhores ou autoridade, contra todos aqueles que, em nome dessa autoridade, esmagavam o ser humano, tirando-lhe a sua dignidade como filho e filha de Deus, criando, às vezes, em nome do próprio Deus, sistemas que geravam morte, contra todos eles e contra todos os que abusavam do nome dele para colocar o sistema acima do caso concreto do indivíduo, o próprio Deus se rebelou. E a sua rebeldia se manifesta por um agir que rejeita toda e qualquer argumentação quando essa argumentação não está em sintonia com a prática daquele que ele mesmo ressuscitou: Jesus Cristo, o homem no qual Deus se encarnou. Jesus Cristo, através do qual Deus quis revelar a sua profunda humildade e a sua opção pelo homem em toda a sua fraqueza. Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Quando o poder o matou, Deus-Pai o ressuscitou, de tal maneira que jamais alguém poderá dizer que Deus não estava do lado dele, que Deus não estava nele. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus confirmou que ele era assim, como esse Jesus se tinha apresentado. A partir da ressurreição de Jesus, foi revelada como falsa toda imagem de um Deus em cujo nome se exige a crucificação de alguém, seja por razões políticas, sociais, ideológicas ou religiosas. Deus não crucifica ninguém. Deus é assim como Jesus é, porque Jesus é o Cristo, a segunda pessoa da Trindade. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma tudo aquilo que Jesus tinha dito e feito. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus-Pai revela que rejeita todos os argumentos que geram morte, mesmo quando com tais argumentos se pretende defender a vontade de Deus. A ressurreição de Jesus se torna assim o grande sinal de rebeldia contra todas as pretensões que querem fixar o olhar na cruz sem conscientizar do fato profundo de que a ressurreição significa a superação da lógica de qualquer crucificador. Na ressurreição de Jesus, Deus manifesta a sua solidariedade com todos aqueles que, por qualquer razão, deveriam ser crucificados ou já foram crucificados. Deus rejeita os crucificadores e todos os seus argumentos. Deus é mais forte que todos eles, e é essa declaração da solidariedade de Deus que dá aos crucificados da história a força para rejeitar a crucificação que lhes foi imposta, para superar essa crucificação em nome do Deus que ressuscita, para declarar errados todos aqueles que, em nome de uma falsa espiritualidade da cruz, querem eternizar o sofrimento, a dor e a morte. Deus é contra tudo isso. 107

Ele é um Deus que ressuscita da morte, da dor e da cruz. E, sendo assim, ele se torna um Deus que incentiva reformas transformadoras. Um Deus em cujo nome os crucificados podem acabar com a sua cruz e conquistar aquilo que é o verdadeiro destino deles conforme os planos de Deus: A VIDA EM PLENITUDE (Jo 10,10). Uma vida sem dor, sem sofrimento, sem perseguição e sem crucificação. Eis a Boa-nova, contida no grande e decisivo evento da ressurreição. Essa Boa-nova os cristãos devem redescobrir. Essa Boa-nova eles devem começar a viver, porque é essa a vontade última de um Deus que se declara Deus da vida, e não da morte. Um Deus do amor, e não do egoísmo. Um Deus da ternura, e não do legalismo. Um Deus que quer misericórdia, e não sacrifícios (Mt 9,13), nem mesmo aqueles através dos quais os sacrificadores pensam agradá-lo (cf. Is 1,11-17; Am 5,21-25). O que Deus quer é vida em todas as dimensões e em todos os aspectos. Ressuscitando Jesus, Deus provou que é essa a sua intenção e que ele é capaz de fazer dessa intenção a nova realidade de vida dos seus filhos e das suas filhas. Tal Boa-nova é capaz de quebrar todos os sistemas e todos os argumentos daqueles que querem manter sistemas de morte. Ela declara falsa todas as forças que até hoje permanecem interessadas na cruz em si e que em nada querem conscientizar da ressurreição. Superar tais tendências e recuperar as profundas e tremendas energias transformadoras da ressurreição é uma das tarefas mais urgentes num mundo marcado pelas injustiças e pelo sofrimento sem esperança de milhões de seres humanos. 1 Com certas modificações, o texto do presente capítulo foi publicado pelo autor também na Revista de Cultura Teológica da Pontifícia Faculdade de Teologia de São Paulo, XI, n. 42, p. 9-18, jan.-mar. 2003. 2 Cf. como exemplo: Mc 8,34-35: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. 35Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por amor a mim e pela causa do Evangelho, há de salvá-la”. 3 Sobre as muitas dimensões daquilo que chamamos de “Redenção”, cf. MILLER, Jerome A. Wound made Fountain: Toward a theology of redemption. Theological Studies, vol. 70, n. 3, p. 525-554, set. 2009. 4 Cf. Lc 22,71; Mc 14,61-64; Mt 26,63-66. 5 QUEIRUGA, Andrés Torres, op. cit., 2003, p. 179.

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25. O SIGNIFICADO ESCATOLÓGICO DA RESSURREIÇÃO DE JESUS1 25.1. A RESSURREIÇÃO DE JESUS SE TORNA SINAL DE ESPERANÇA ATRAVÉS DE TODA A HISTÓRIA HUMANA

Desse Deus que, pela ressurreição de Jesus, confirmou as opções fundamentais deste, sabemos, com certeza absoluta, que ele toma partido dos excluídos e dos rejeitados. Sabemos que Deus, mais do que o cumprimento de exigências legalistas, valoriza o homem e o seu bem-estar. Sabemos que Deus é misericordioso, e não punidor. E sabemos, com certeza absoluta, que Deus se situa do lado daqueles que servem, e não dos poderosos. Tudo isso sabemos, e, apesar disso, não praticamos no decorrer da história. A conscientização de um dos elementos-chave do significado da ressurreição de Jesus se torna, para todos os adeptos da religião cristã, questão grave de consciência. Mas, ao mesmo tempo, ela vira também a grande convicção esperançosa, a convicção de que todos aqueles sistemas e todo aquele comportamento que se fundamentam em poder, punição e intimidação não terão a última palavra. Nenhum sistema e nenhuma atitude que se baseiem em poder, punição e intimidação terão a última palavra.

A ressurreição de Jesus garante a certeza de que nenhum daqueles que oprimem as pessoas por atitudes legalistas, ou em nome de prestígio, poder e riqueza, terá futuro. A finalidade última da história humana não pertence a eles, mas àqueles que seguem as opções de Jesus. O grande projeto divino de uma convivência humana com base na fraternidade triunfará finalmente sobre todo e qualquer sistema opressor. A ressurreição de Jesus se torna assim a grande esperança através de toda a história humana. Ela, além disso, também é prova da promessa divina referente à nossa própria ressurreição. E ela confirma a certeza de que todos os projetos de crucificadores, em qualquer época, de antemão já estão condenados ao fracasso, sejam os seus autores os dirigentes do Templo, os autores de algum regime político ou os representantes de qualquer sistema econômico ou social. A ressurreição de Jesus é o grande sinal escatológico que confirma todas as nossas esperanças em relação à possibilidade de um mundo melhor. Para a construção de tal mundo, porém, Deus pediu a colaboração de todos nós. Somos chamados a transformar este mundo conforme os parâmetros dele. E caso estejamos no perigo de perder a nossa coragem diante dos obstáculos aparentemente invencíveis, a ressurreição se torna o motor que dá novos impulsos à nossa esperança, porque todos os projetos dos crucificadores vão fracassar! Deus é mais forte que todos aqueles que, em nome de poder e do prestígio, criam sistemas que geram situações de morte para pessoas humanas. Isso ele confirmou 109

pela ressurreição do seu filho. E aquilo que nisso confirmou, ele continua mantendo até o fim da história. Esse fim consistirá numa plenitude, na qual se realizarão todas aquelas opções que Jesus já viveu no decorrer da sua vida, isto é: JUSTIÇA, FRATERNIDADE, AMOR, VERDADE E PAZ entre todos os seres humanos, numa comunhão íntima e plena com Deus. 25.2. RESSUSCITANDO JESUS, O PRÓPRIO DEUS-PAI CONFIRMA QUE A SUA FIDELIDADE CONTINUA PARA ALÉM DA MORTE

No momento da morte de Jesus, todas as aparências pareciam confirmar que Deus teria abandonado Jesus. Dois dos sinóticos (Mc 15,34; Mt 27,46) até colocaram na boca dele o grito do Salmo 22: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Esse grito sintetiza de maneira escandolosa a problemática com a qual não só os seus seguidores mas também o próprio Jesus eram confrontados: Será que Deus deixou cair aquele que sempre e em tudo nele confiou? Será que Deus realmente é fiel? Diante do Jesus crucificado que no final teve a morte vergonhosa do opróbrio, tudo parecia indicar que a fidelidade de Deus não era absoluta nem incondicional. O veredicto de Dt 21,23 parecia válido, e para todos ficava óbvio que Deus de fato era assim, tal como a teologia em vigor o tinha apresentado. Deus se calou, e o silêncio dele aniquilou toda confiança, que, a partir da mensagem daquele crucificado, tinha se formado. Caso tal silêncio tivesse perdurado, a confiança na fidelidade incondicional de Deus de fato não teria mais tido fundamento nenhum. Mas o silêncio de Deus não perdurou. Deus agiu, e o seu agir não só o revelou como um Deus capaz de ressuscitar os mortos. Mais do que isso, revelou-o como um Deus que mantém a sua fidelidade. Um Deus fiel, cuja lealdade ultrapassa a morte. Tudo isso, ele demonstrou pela ressurreição de seu filho crucificado. E é essa demonstração que, em última análise, fundamenta, para toda e qualquer pessoa humana, a confiança de que ela nunca será abandonada, nem na vida, nem na morte, nem após a morte. Pela ressurreição de Jesus, Deus comprova, contra todas as aparências, que realmente é um Deus fiel.

25.3. PELA RESSURREIÇÃO DE JESUS, DEUS COMPROVA DIANTE DE TODOS QUE ELE DE FATO É CAPAZ DE RESSUSCITAR OS MORTOS

Toda a fé em Israel gira em torno da convicção de que o Deus verdadeiro é um Deus da vida que gera vida e que quer a vida. Com base nessa fé, forma-se a confiança de que esse Deus da vida também seja capaz de transformar situações de morte em nova situação de vida. Aliás, é nessa capacidade que o Deus verdadeiro se distingue fundamentalmente de todos os outros deuses, dos falsos deuses, cujo agir, de uma maneira ou de outra, gera situações de morte, e não de vida. A confiança de que o seu Deus é um Deus da vida culminou, em Israel, na 110

formação progressiva de uma fé para a qual Deus também é mais forte que a morte. Com base nesse paradigma, forma-se, a partir do século IV a.C., passo a passo, a crença de que o Deus Javé ressuscitaria os mortos para uma nova vida. Para essa fé, porém, não havia prova nenhuma. Ela permaneceu fé, e, até na época de Jesus, havia fortes correntes teológicas que a rejeitavam. Ressuscitando Jesus, porém, o próprio Deus comprova diante de todos que ele de fato é capaz de ressuscitar mortos. Esse agir, além disso, comprova também que o Deus, do qual Jesus tinha falado, realmente é o Deus verdadeiro, e não um dos muitos ídolos que jamais seriam capazes de gerar nova vida. É esse Deus que Jesus tinha proclamado e é nele, seu Pai, que tinha baseado a sua confiança. No momento da morte na cruz, parecia que tal confiança tinha sido em vão. Parecia que Deus, em quem Jesus tinha confiado e do qual tinha falado, também era um deus falso, um ídolo como tantos outros. Ressuscitando Jesus, porém, o Deus-Pai, no qual Jesus tinha confiado, comprova diante de todos que tal confiança não tinha sido em vão. Ele demonstra que Jesus tinha razão e que ele, Deus, é realmente assim como Jesus havia dito: um Deus verdadeiro que é Deus da vida e cuja fidelidade nunca desaparece. Deus é um Deus da vida e como tal é capaz de ressuscitar os mortos para uma nova vida.

25.4. A RESSURREIÇÃO DE JESUS SE TORNA PROVA E BASE PARA A FÉ EM NOSSA PRÓPRIA RESSURREIÇÃO

Pela ressurreição de Jesus, Deus-Pai não só provou que é capaz de ressuscitar mortos, ele também demonstrou que na realidade age assim. Ele de fato ressuscitou um morto, e, para essa ressurreição, temos até aquela prova indireta que já foi mencionada: sem a ressurreição, nunca se teria voltado a falar de Jesus, porque de um crucificado, naquela época e naquele contexto sociorreligioso, simplesmente não mais se poderia falar. Mas de Jesus se fala até hoje, e o motivo inicial dessa retomada da mensagem sobre ele é a experiência de que ele, depois da morte, de novo voltou à vida. Com base nesse fato histórico, torna-se possível formular mais uma das bases fundamentais da nossa fé: se Deus ressuscitou esse morto, então ele vai ressuscitar outros também. Esses outros, porém, somos nós. Com base na experiência da ressurreição de Jesus, é possível que se forme a fé na nossa própria ressurreição, conforme o que Paulo escreve (Rm 8,11 e 1Cor 6,14): “[...] Assim como Deus ressuscitou o Senhor Cristo da morte, assim ressuscitará também a nós pelo seu poder”. Eis que se formula a base para tudo aquilo que chamamos de expectativa escatológica individual. Sem a ressurreição de Jesus, ela ficaria esperança sem fundamento, expectativa sem prova nenhuma e talvez puro mecanismo de fuga e de 111

projeção. Paulo não tem nenhuma ilusão sobre esse fato, e é por causa disso que insiste em proclamar: Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a nossa fé! (1Cor 15,14)

Mas Cristo ressuscitou! Deus o tirou da morte, e essa ressuscitação eram as premissas de um agir de Deus que se repetirá em cada um de nós (cf. 1Cor 15,20). A ressuscitação de Jesus se revela não só a base, mas também a condição indispensável de toda esperança escatológica individual. 25.5. RESSUSCITANDO JESUS, DEUS-PAI CONFIRMA TUDO AQUILO QUE JESUS TINHA DITO E FEITO; ISSO IMPLICA TAMBÉM A PROMESSA DE QUE JESUS NOS VAI RESSUSCITAR Pela crucificação de Jesus, o sistema religioso da época parecia ter conseguido provar diante de todos que esse Jesus incômodo não tinha razão naquilo que tinha dito e feito e que em muitos aspectos questionava o sistema. Porque, se Deus realmente era assim como Jesus tinha dito, a instituição religiosa tinha que se converter. Se Deus realmente era assim, como Jesus tinha declarado, eram necessárias profundas mudanças estruturais, que poriam em xeque o poder e os privilégios da casta sacerdotal. Se Deus realmente se colocou a serviço dos homens, assim como Jesus o tinha demonstrado, então ninguém mais podia justificar as suas atitudes de poder e dominação com referência a ele. Se Deus era assim, ele incomodava, e, por causa disso, o sistema fez de tudo para fazer calar a voz daquele que falou e agiu em nome de Deus. No momento da cruz, pareceu que tal objetivo foi alcançado. Mas a cruz não era o último evento. Deus-Pai ressuscitou o seu filho e, com isso, corroborou e comprovou tudo aquilo que esse filho havia dito e feito. Faz parte dessa confirmação também a ratificação daquela promessa que outra vez fundamenta a base para a nossa própria esperança escatológica: “Esta é a vontade do meu pai: Quem vê o filho e nele crê tem a vida eterna e EU O RESSUSCITAREI NO ÚLTIMO DIA.” (Jo 5,21; 6,39; 6,40)

Ressuscitando Jesus, o próprio Deus dá a essa promessa o seu peso de veracidade absoluta. Fica provado e confirmado que, da mesma maneira que Deus ressuscitou Jesus, nós também seremos ressuscitados pelo ressuscitado, por aquele ressuscitado que foi confirmado pelo Pai sendo o filho amado, aquele ao qual “foi dado todo o poder no céu e na terra” (Mt 28,18), aquele que foi “constituído Filho de Deus em todo o seu poder [...] pela sua ressurreição dentre os mortos” (Rm 1,4). 25.6. RESSUSCITANDO JESUS, ESTE ESTÁ SENDO COMPROVADO COMO “CRISTO” E “FILHO DE 112

DEUS”. COM ISSO, PORÉM, TAMBÉM É CAPAZ DE JUSTIFICAR OS PECADORES Uma das ações pelas quais Jesus sempre escandalizava o sistema religioso era o fato de ele perdoar pecados. “Só Deus é capaz de perdoar pecados” (Mc 2,7), argumentaram os representantes do sistema. Jesus, porém, o fez, e com isso, aos olhos deles, agiu de maneira blasfêmica como se ele mesmo fosse Deus. Por causa disso, o sistema o crucificou e com isso pensou tê-lo desautorizado de maneira definitiva. Mas Deus-Pai o ressuscitou e, com essa ressurreição, rejeitou e anulou o veredicto do Templo. Além disso, confirmou, de maneira definitiva, que Jesus realmente agiu de modo certo, porque tinha verdadeiramente a condição de ser de essência divina. Nas palavras de Paulo, a ressurreição, além de todos os outros significados já mencionados, se torna também a prova de que Deus de fato exaltou Jesus “e lhe deu um nome que está acima de todo nome” (Fl 2,9). Jesus, que sempre é Filho de Deus (cf. 1Cor 8,6; Fl 2,6), está sendo comprovado e autenticado nessa sua glória. Sendo assim, porém, esse ato de Deus-Pai confirma também mais uma das grandes esperanças da nossa fé: a esperança de que os nossos pecados realmente são perdoados. Dar essa certeza, realmente, só Deus pode. Sendo Jesus “constituído Filho de Deus [...] pela ressurreição” (Rm 1,4), todos aqueles que duvidaram dele foram desmentidos. Jesus é o Filho de Deus, o Cristo, e, como tal, tem o poder e também a autoridade de transformar situações de morte em situações de nova vida. A verdadeira e mais explícita situação de morte, porém, é o pecado. Perdoando os pecados, Jesus, o Cristo, por sua vez, age como Deus da vida, e a legitimação por tal agir também foi corroborada e confirmada pela ressurreição. 25.7. RESSUSCITANDO JESUS, O PRÓPRIO DEUS COMPROVA QUE CHEGOU O FIM DO MUNDO ANTIGO E O COMEÇO DO NOVO MUNDO, CHAMADO DE “REINO DE DEUS” Com a ressurreição de Jesus, o mundo antigo da morte chegou ao seu fim. A ressurreição de Jesus “não é só um caso exemplar da ressurreição de todos, mas objetivamente o início da transfiguração do mundo”.2 Nesse sentido, ela marca também o início daquele novo mundo, do qual toda a expectativa apocalíptica tinha falado. O mundo da morte chegou ao seu fim. O novo mundo de Deus começou. É com toda razão que o Evangelho de João recorre à fórmula apocalíptica do grande Juízo para descrever aquilo que se realiza em morte e ressurreição de Jesus: “Agora é que é o julgamento deste mundo!” (cf. Jo 12,31; 16,8.11). Em toda a expectativa apocalíptica, esse Juízo é a precondição para o início do novo mundo de Deus. A literatura apocalíptica o interpreta na perspectiva de um holocausto, pelo qual Deus destrói o mundo material e exterior. Em João, o seu significado é interiorizado e ampliado. O “fim do mundo”, que na morte e ressurreição de Jesus se realiza, não é o fim material do mundo ao nosso redor, é, muito mais, o fim de um mundo interior, o sinal definitivo de que todo poder do mal 113

e da corrupção será vencido, a superação do pecado e de todo o seu domínio, enfim, a comprovação da vitória definitiva sobre todo e qualquer mundo oposto a Deus. Com isso, realiza-se a perspectiva apocalíptica na sua forma mais plena, ampla e completa. O pensamento apocalíptico sempre compreendeu o começo de um novo mundo esperado em termos de uma intervenção exclusiva de Deus. Tal intervenção exclusiva de Deus se realizou de verdade, porque só ele podia ressuscitar um morto. Só ele era capaz de agir depois da catástrofe da cruz, e ele de fato agiu. Mas, com esse agir, não se realizou um cataclismo material e cosmológico. Em vez disso, tal agir exclusivo marca o início de um processo, através do qual o antigo mundo do pecado será definitivamente superado e eliminado, de tal maneira que o mundo antigo da corrupção e do antirreino realmente chegará ao seu fim. Não é por acaso que os sinóticos deixaram acontecer, no momento da morte de Jesus, todos os sinais apocalípticos do fim do mundo, começando com trevas e terremotos e terminando com a Revelação de Deus aos olhos de todos, simbolicamente expressa pelo véu do Templo que se rasgou (Mt 27,51). Visto sob esse enfoque, cruz e ressurreição de Jesus realmente significam, de maneira irrevogável, a vitória sobre o pecado, e o começo do fim do antigo mundo da morte e da corrupção. Em termos escatológicos, a cruz marca assim o grande juízo sobre o mundo (cf. Jo 12,31; Jo 3,19). A ressurreição, por sua vez, é o grande sinal para o início de um mundo novo, um mundo da vida, no qual Deus se torna visível para todos. Assim, com a cruz e a ressurreição já se realizou o início daquele mundo de Deus, do qual a literatura apocalíptica fala há séculos. Esse novo mundo já começou, e o próprio Deus confirmou o seu início com um agir exemplar. A PARTIR DA RESSURREIÇÃO DE JESUS, O NOVO MUNDO DA VIDA JÁ COMEÇOU! Esse começo do NOVO MUNDO é obra exclusiva de Deus, assim como o pensamento apocalíptico sempre falou.

O novo mundo que com cruz e ressurreição começou é o mundo de Deus, e com isso necessariamente um mundo da vida. O seu começo foi demonstrado com um agir soberano e poderoso de Deus. O seu sinal é a superação da morte, assim como se realizou de maneira exemplar pela ressurreição de Jesus. No novo mundo de Deus, não há mais lugar para a morte. Jesus já o demonstrou, superando na sua vida situações de morte, transformando-as em novas situações de vida. A ressurreição dele se tornou o sinal definitivo dessa vitória sobre a morte pela superação definitiva de todas as forças e de todas as estruturas que geram a morte. Ressuscitando Jesus, Deus comprova esses fatos diante de todos. O crucificado vive, demonstrado por Deus-Pai como aquele que é a segunda pessoa da Trindade, filho de Deus e também filho do homem. Assim, ele fica presente no mundo de uma maneira bem especial. Um Deus da vida que, ao mesmo tempo, é verdadeira pessoa humana. Um Deus-conosco no significado mais amplo e completo da palavra. Onde Deus está neste mundo, onde ele reina, ali é o Reino de Deus. A ressurreição 114

de Jesus se apresenta também como o grande sinal escatológico, a partir do qual é confirmada a nossa esperança para a vinda do Reino de Deus. Pela ressurreição, ela foi comprovada, porque foi comprovada, de maneira definitiva, uma das grandes mensagens de Jesus Cristo: O REINO DE DEUS COMEÇOU, E ESSE REINO É UM REINO DA VIDA, MAIS FORTE QUE TODA MORTE. Esse Reino já começou, mas, tal como tudo aquilo que é vida, não irrompeu de maneira pronta, num ato súbito e explosivo. Em vez disso, cresce a partir de seu ponto inicial, evolui num processo irresistível, invencível e dinâmico até chegar à sua plenitude no momento da PARÚSIA. Para tudo isso, a ressurreição de Jesus é a confirmação e a prova. Assim, corrobora-se na Páscoa não só a nossa esperança individual, mas também a grande esperança escatológica para o mundo: O FIM ÚLTIMO DESTE MUNDO NÃO É O REINO DA MORTE E DO PECADO, MAS O REINO DE DEUS. 1 Sobre a temática deste capítulo, cf. também: BLANK, Renold J. O significado escatológico da ressurreição de Jesus. Revista de Cultura Teológica, IV, n. 20, p. 81-88, jul.-set., 1997; BLANK, Renold J. Recuperar o imaginário da ressurreição. Revista de Cultura Teológica, XI , n. 42, p. 9-18, jan.-março, 2003; cf. também: HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 149-184. 2 CEROKE, C. P. Parusia in the Bible NCE 10, p. 1034, cit. conf. Edmund J. Fortman. Everlasting life. Nova York: Pueblo Publishing, 1986, p. 280.

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Coleção TEOLOGIA SISTEMÁTICA • Curso fundamental da fé, K. Rahner • Teologia do sacramento da penitência, J. R. Regidor • Unidade na pluralidade, A. G. Rubio • Teologia da história – ensaio sobre a revelação…, B. Forte • História humana: revelação de Deus, E. Schillebececkx • A história perdida e recuperada de Jesus de Nazaré, J. Luis Segundo • História da penitência – das origens aos nossos dias, P. Rouillard • Maria na tradição cristã – a partir de uma perspectiva contemporânea, K. Coyle • Introdução à Cristologia, W. P. Loewe • Escatologia da pessoa – vida, morte e ressurreição (Escatologia I), R. J. Blank • Escatologia do mundo – o projeto cósmico de Deus (Escatologia II), R. J. Blank • Quando Cristo vem... a parusia na escatologia cristã, Leomar Brustolin • Teologia da ternura – Um “evangelho” a descobrir, Carlo Rocchetta • Mariologia social – O significado da Virgem para a sociedade, Clodovis Boff, OSM • Missão para todos – Introdução à Missiologia, João Panazzolo • Jesus – A história de um vivente, Edward Schillebeeckx • Maria corredentora?, Hendro Munsterman • De esperança em esperança – Escatologia, Antonio Manzatto, J. Décio Passos, Sylvia Villac • A Igreja e seus ministros – Uma teologia do ministério ordenado, Francisco Taborda, SJ • A face mais íntima de Deus – Elementos-chave da Revelação, Renold Blank

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Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Coordenação de desenvolvimento digital: José Erivaldo Dantas Thiago Augusto Dias de Oliveira Capa: Marcelo Campanhã

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Blank, Renold A face mais íntima de Deus: elementos-chave da Revelação / Renold Blank. – São Paulo: Paulus, 2011. – (Coleção Teologia sistemática) Bibliografia. eISBN 978-85-349-3817-4 1. Deus 2. Deus - Amor 3. Deus - Onipotência 4. Revelação I. Título. II. Série. 11-08967 CDD-231.74 Índices para catálogo sistemático: 1. Deus: Revelação: Teologia cristã 231.74

PAULUS – 2013 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 – São Paulo (Brasil) Tel.: (11) 5087-3700 Fax: (11) 5579-3627 www.paulus.com.br [email protected] eISBN 978-85-349-3817-4

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Scivias de Bingen, Hildegarda 9788534946025 776 páginas

Compre agora e leia Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara. Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta, provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de moral conhecida. Hildegarda é notável por ser capaz de unir "visão com doutrina, religião com ciência, júbilo carismático com indignação profética, e anseio por ordem social com a busca por justiça social". Este livro é especialmente significativo para historiadores e teólogas feministas. Elucida a vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa forma especial de espiritualidade cristã.

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Santa Gemma Galgani - Diário Galgani, Gemma 9788534945714 248 páginas

Compre agora e leia Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar de que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me orientar. Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me senti muito pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra, senão dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente?

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DOCAT Youcat, Fundação 9788534945059 320 páginas

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Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral Vv.Aa. 9788534945226 576 páginas

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Índice 1. Redescobrir um Deus capaz de encher o vazio dos corações 6 humanos 2. Somos chamados para voltar, a partir de novas perspectivas, às 10 fontes que nos falam de Deus 3. O Deus da Bíblia se distingue desde o início fundamentalmente de todas as outras divindades das religiões da 12 Mesopotâmia 3.1. Um Deus que tem poder, embora não se situe do lado dos poderosos 3.2. Um Deus que não se fixa por dentro de um Templo 3.3. Um Deus que não exige primordialmente cerimônias cúlticas em seu louvor

4. Os textos da Revelação apresentam um Deus que, com vigor, se posiciona contra toda opressão de pessoas humanas. Com isso, porém, incomoda muito aqueles que querem dominar 5. Deus quer que o ser humano tenha uma vida ampla, plena e repleta de felicidade 6. Se Deus defende os fracos, então todos os seus seguidores deveriam fazer o mesmo 7. Deus, desde o início, se faz conhecer como “go’el”, isto é, como defensor daqueles que não têm mais nenhum defensor 8. O contexto religioso em que Jesus se move 8.1. Lei, pureza e sacrifícios que se tornaram opressivos para o povo 8.2. Jesus recupera o cerne libertador daquilo que é a intenção da Torá 8.3. A repreensão endereçada a uma instituição sacrossanta

9. A maneira pela qual os Evangelhos apresentam a atitude de Jesus em relação ao Templo deve ser interpretada como Revelação teológica que vale para todas as religiões 10. Críticas neotestamentárias do sistema religioso também têm significado universal e se dirigem a toda e qualquer religião e Igreja 11. Em Jesus, Deus revela que uma ordem oposta a Deus até pode ser justificada recorrendo a Deus 12. Vistos da perspectiva da Revelação, as atitudes e o agir de Jesus devem ser compreendidos como atitudes e agir do próprio 128

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Deus 13. As opções fundamentais de Jesus são as opções fundamentais 50 de Deus 13.1. Deus opta preferencialmente pelos pobres 13.1.1. Na sua opção pelos pobres, Deus assume a causa dos perdedores, e não a dos vencedores 13.1.2. Na sua opção pelos pobres, Deus concretiza a sua opção pelos injustiçados 13.2. Deus opta pela justiça e é contra toda opressão 13.3. Deus opta pela misericórdia e é contra todo legalismo 13.4. Deus opta pelo serviço e é contra o poder 13.5. Deus opta pela vida

14. Em Jesus, Deus se revela como defensor também daqueles que foram rejeitados pelo sistema religioso 15. Jesus Cristo e a necessária mudança da nossa perspectiva antropológica 15.1. Redescobrir a Revelação como base para a reflexão antropológica 15.2. A Kenosis de Deus implica também a Kenosis do homem 15.3. Assumir a perspectiva de Deus 15.4. Recorrendo à imagem de um Deus todo-poderoso, é possível justificar toda aspiração humana pelo poder 15.5. A imagem do Deus todo-poderoso não desafia muito o ser humano

16. Por que Deus, em Jesus Cristo, não se manifestou como cientista, general, ou pelo menos como grande artista? 17. Natal, ou a Revelação de um Deus do qual ninguém precisa ter medo e que por causa disso pode ser amado 17.1. No evento de Natal, Deus se manifesta a nós como ele realmente quer ser conhecido 17.2. O Natal revela que Deus não se interessa pelos mecanismos de prestígio e de poder 17.3. Deus quer ser amado em vez de temido! 17.4. Um Deus que se manifesta como criança pode ser amado, mas essa criança também pode ser rejeitada e pisada 17.5. Deus, que se manifesta humildemente como criança, identifica-se de maneira plena com as pessoas

18. Em Jesus, Deus nos revela a sua humildade 18.1. Um Deus humilde não corresponde à imagem habitual de Deus 18.2. Um Deus humilde corre o risco de ser crucificado 129

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18.3. Um Deus humilde que opta preferencialmente pelos vencidos desafia todos os nossos sistemas 18.4. Um Deus humilde que opta pelo servir questiona toda e qualquer estrutura que se baseie em atitudes de poder Deus se põe a serviço dos homens

19. Em Jesus, Deus chama também o sistema religioso à conversão 20. Um Deus que não se manifesta como vingador e juiz liberta as pessoas do medo e dos complexos de culpa 21. A Revelação de Deus em Jesus Criston desmascara o agir de todos os sacrificadores de todos os tempos como falso 21.1. Impulsos inconscientes de agressividade e sua projeção em Deus 21.2. O resultado de uma mentalidade sacrifical é a formação da imagem de um Deus vingador 21.3. A imagem de um Deus que exige sacrifícios, outra consequência de projeções humanas 21.4. O mecanismo de projeção possibilita esconder a raiz da violência 21.5. Como desvelar diante dos sacrificadores a verdade sobre o seu agir violento?

22. O Deus que se revela nos textos bíblicos está do lado das vítimas e não dos sacrificadores 22.1. Os sacrificadores não querem admitir que a sua perspectiva é falsa 22.2. Com a sua atitude na cruz e diante da cruz, Deus quebra o círculo vicioso da violência e da vingança

23. Pela ressurreição de Jesus, Deus-Pai ratifica e confirma toda a vida e toda a mensagem de Jesus 23.1. A cruz, sinal de vergonha e de derrota 23.2. Pela morte na cruz, a mensagem de Jesus perdeu, para os seus contemporâneos ortodoxos, toda e qualquer credibilidade 23.3. Os textos bíblicos não falam de uma autorressurreição de Jesus, mas de um agir de Deus-Pai no Jesus morto 23.4. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma que ele é como Jesus, seu filho, o tinha descrito

24. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte 24.1. O imaginário cristão é marcado pela cruz 24.2. O fato de a cruz ter se tornado o signo central da religião cristã trouxe profundas consequências para a autocompreensão daqueles que se chamam cristãos e cristãs 130

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24.3. A cruz, por si mesma, não é o fim último da mensagem cristã, ela deve ser vista sempre relacionada à ressurreição 24.4. Ressuscitando Jesus, Deus revela que ele é contra a morte dos crucificados 24.5. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus rejeita os valores dos crucificadores e confirma as opções do seu filho crucificado 24.6. A ressurreição de Jesus se torna ato de rebeldia de Deus contra todos os sistemas que geram morte

25. O significado escatológico da ressurreição de Jesus 25.1. A ressurreição de Jesus se torna sinal de esperança através de toda a história humana 25.2. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus-Pai confirma que a sua fidelidade continua para além da morte 25.3. Pela ressurreição de Jesus, Deus comprova diante de todos que ele de fato é capaz de ressuscitar os mortos 25.4. A ressurreição de Jesus se torna prova e base para a fé em nossa própria ressurreição 25.5. Ressuscitando Jesus, Deus-Pai confirma tudo aquilo que Jesus tinha dito e feito; isso implica também a promessa de que Jesus nos vai ressuscitar 25.6. Ressuscitando Jesus, este está sendo comprovado como “Cristo” e “Filho de Deus”. Com isso, porém, também é capaz de justificar os pecadores 25.7. Ressuscitando Jesus, o próprio Deus comprova que chegou o fim do mundo antigo e o começo do novo mundo, chamado de “Reino de Deus”

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