A beleza como experiência de Deus
 9788534945059, 9788534945226, 9788534936583

Table of contents :
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
1.1 A arte sacra como comunicação
1.1.1 O que os símbolos nos comunicam?
1.1.2 A “igreja é símbolo da Igreja"
1.1.3 A simbologia e seus fundamentos
1.2 A experiência cristã da beleza
1.3 A diferença entre arte sacra e arte religiosa
CAPÍTULO II
2.1 Como o Concílio tratou da arte sacra
2.1.1 No espírito do Concílio
2.1.2 A CNBB e a arte sacra
2.2 A iconografia bizantina
2.2.1 “Voltar às fontes"
2.2.2 O ícone e a arte em geral
2.2.3 A arte do ícone
2.3 O ícone e o artista
2.4 A imagem de Cristo
2.4.1 Emanuel: o menino Deus
2.4.2 A Sagrada Face
2.4.3 O Pantokrator
2.4.4 A imagem de Jesus em diversos ícones
2.5 A imagem da Trindade
2.5.1 A Trindade de RUBLEV
2.5.2 A Trindade de MASACCIO
2.6 Beleza e unidade
CAPÍTULO III
3.1 A função da arte sacra
3.2 A arte sacra na contemporaneidade
3.3 A Teologia do Ícone, uma Teologia da Beleza
3.3.1 A Teologia da Presença
3.3.2 A beleza salvará o mundo?
3.3.3 A beleza fugaz
3.3.4 A redenção da beleza
3.3.5 Testemunhas da Beleza
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Índice INTRODUÇÃO CAPÍTULO I 1.1 A arte sacra como comunicação 1.1.1 O que os símbolos nos comunicam? 1.1.2 A “igreja é símbolo da Igreja" 1.1.3 A simbologia e seus fundamentos 1.2 A experiência cristã da beleza 1.3 A diferença entre arte sacra e arte religiosa CAPÍTULO II 2.1 Como o Concílio tratou da arte sacra 2.1.1 No espírito do Concílio 2.1.2 A CNBB e a arte sacra 2.2 A iconografia bizantina 2.2.1 “Voltar às fontes" 2.2.2 O ícone e a arte em geral 2.2.3 A arte do ícone 2.3 O ícone e o artista 2.4 A imagem de Cristo 2.4.1 Emanuel: o menino Deus 2.4.2 A Sagrada Face 2.4.3 O Pantokrator 2.4.4 A imagem de Jesus em diversos ícones 2.5 A imagem da Trindade 2.5.1 A Trindade de RUBLEV 2.5.2 A Trindade de MASACCIO 2.6 Beleza e unidade CAPÍTULO III 3.1 A função da arte sacra 3.2 A arte sacra na contemporaneidade 3.3 A Teologia do Ícone, uma Teologia da Beleza 3.3.1 A Teologia da Presença 3.3.2 A beleza salvará o mundo? 3.3.3 A beleza fugaz 3.3.4 A redenção da beleza 3.3.5 Testemunhas da Beleza CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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INTRODUÇÃO

O

grande Aristóteles já dizia que não podemos viver sem felicidade. Da mesma forma, podemos dizer que não podemos viver sem beleza: “Sim, porque a grandeza e beleza das criaturas fazem, por comparação, contemplarmos o Autor delas” (Sb 13,5). Contemplamos a beleza das criaturas sustentadas pela Luz de sua Face (cf. Sl 139,7). A contemplação do Sentido último de toda criatura nos coloca num lugar privilegiado da criação. Partimos do pressuposto de que, pela Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo, a pessoa humana é renovada, restaurada em sua Imago Dei. O cristão passa a ter uma nova visão do mundo criado, contempla-o com novos olhos. A partir disso, fundam-se novas formas de agir criativamente sobre a matéria que está cristificada, como diz Teilhard de Chardin. A arte sacra é um lugar epifânico, de revelação da beleza do Criador. A experiência cristã da beleza passa por essa percepção de um olhar transfigurado e transfigurador da realidade. Assim, o objetivo deste estudo é abordar a experiência cristã da beleza através da iconografia resgatando a experiência estética mais genuína do Cristianismo que aponta para prolegômenos de uma “Teologia da beleza”. Além de recolher várias bibliografias sobre o assunto, o trabalho surge a partir de uma experiência pessoal da pintura sacra que busca inspiração na arte cristã dos primeiros séculos. Para a organização do material, dividiu-se o assunto em três capítulos: num primeiro momento trataremos sobre o simbolismo na arte em geral, onde algumas linhas de pensamento serão abordadas no campo da filosofia, da psicologia junguiana e até da biologia, mas a base para o discurso sobre a arte é o conceito de L. TOLSTOI, ou seja, a arte como comunicação simbólica dos sentimentos e sua relação com a experiência cristã da beleza; num segundo momento, mais exaustivamente, o tema de reflexão será a arte sacra depois do Concílio Vaticano II e da redescoberta da arte bizantina. O Vaticano II, ao propor uma eclesiologia genuína, que voltasse às origens, influenciou também uma arte que voltasse às fontes do cristianismo tendo a iconografia como modelo, e se inculturasse nas diferentes realidades; no último capítulo, abordar-se-á a experiência cristã da beleza hoje, tratando mais especificamente da arte sacra e sua função na contemporaneidade. Da beleza criada, o cristão passa à experiência da Beleza divina, presente na criação. Com isso, pode-se falar de uma Teologia da Beleza, a partir do ícone. É uma Teologia da Presença, do Deus sumamente verdadeiro, bom e belo. Cristo, Face da Beleza em si, como Redentor de todo o cosmos, redimiu também a beleza criada. Nesse caso, a beleza salvou, salva e salvará o mundo! Os cristãos são testemunhas da Beleza.

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O tema da iconografia está começando a ser explorado no Ocidente, principalmente na área da espiritualidade. Há pouca bibliografia na área. Mesmo assim, procurou-se enfatizar o assunto de uma forma que o leitor, mesmo o não iniciado na linguagem estética acadêmica, possa tirar proveito e sirva-se de uma introdução para um posterior aprofundamento. Apesar de ser um tema que rende muito discurso, nada se compara à experiência de contemplar o ícone em si. Em suma, é a partir da fé na Encarnação, que este estudo apresenta a beleza como experiência de Deus. O ícone é a expressão mais genuína da expressividade cristã. É a partir do ícone que a arte sacra encontra sua identidade como arte litúrgica, evangelizadora, comunicadora da profunda experiência de Deus. O artista sacro, rompendo com o seu egocentrismo, é instrumento de ação criativa e comunicativa que Deus misteriosamente quis associar à sua ação criativa e comunicativa, tornando-o cocriador e transfigurador da matéria expressa na arte litúrgica. A arte tem um sentido na mão do iconógrafo, como a história da matéria o tem na mão do Divino artista, o de expressar a Beleza/Amor que se manifesta na comunicação perfeita da Trindade. Beleza é comunicação, pois só há beleza em relação de alguém para alguém. A iconografia é sacramento dessa comunicação misteriosa.

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CAPÍTULO I

A FORÇA DO SIMBOLISMO NA ARTE

E

m toda a história da arte ocidental, nunca houve uma pluralidade tão grande de estilos e de manifestos em sua defesa, como se verificou no século XX. Tivemos tantos conceitos do que seria o belo, a obra-prima, a arte, que encheríamos muitos livros apenas discorrendo sobre conceitos. Todavia, não poderíamos estabelecer uma estrutura de pensamento ou um discurso sobre a arte se ficássemos no extremo relativismo. Há possibilidades de unidade dentro dessa pluralidade? Quem fala a verdade? Onde estão os fundamentos? O que é o belo? O que é a arte? Na aurora do terceiro milênio, experimentamos a pós-modernidade com a pregação do fim das utopias, das metanarrativas, dos ideais, do sonho. Resta-nos o presente. Depois da arte pós-religiosa, da cultura de massas, fala-se da cultura e da arte do pós-humano, a cibercultura, o ciberespaço e a ciberarte. Nesse campo, há muitos discursos e muitas incertezas. Porém, negar essa realidade é retroceder à obscuridade. Isso não é inteligente, se concebemos a pessoa como um ser aberto à autotranscendência e que, num processo de assimilação e acomodação, evoluiu segundo sua natureza. Construindo, desconstruindo e reconstruindo, a pessoa faz a experiência de sua própria sacralidade, que consiste em ser alguém capaz de criar e reinventar, espelho de um Outro, que é o sentido dessa ação. Por isso vimos, no decorrer dos tempos, tantos conceitos de arte. Entretanto, os teóricos quiseram demonstrar mais o dinamismo do processo de se compreender o que é belo do que querer compreender o que é a arte. Isso se aguçou com a fundação da Estética (Aisthesis = faculdade de sentir, compreensão pelos sentidos de modo totalizante) por BAUMGARTEN (1750). Tivemos conceitos desde os mais “sublimes” até os mais fisiológicos do que seria a arte. Se HEGEL afirmava que a arte era o “abrandamento da barbárie” (1806), DARWIN, SPENCER e SCHILLER dirão que ela “emerge do mundo animal, acompanhada por uma excitação agradável da energia nervosa”. Os conceitos de arte, pelo que percebemos, obedeceram a dois ramos: o da concepção da arte tendo como objetivo o prazer pelo prazer (subjetivismo) e o da arte tendo como objetivo a contemplação do belo ideal (objetivismo). As duas correntes tiveram grandes representantes: a primeira, David HUME e NIETZSCHE, e a segunda, I. KANT, HEGEL e outros. Porém, levadas a cabo, as duas correntes desvinculam o real do ideal, a pessoa situada historicamente do universal, a pessoa do objeto contemplado. Não há interação. Segundo L. TOLSTOI (1828-1910), “[...] a razão disso é que o conceito de beleza foi colocado na base do conceito de arte” (2002, p. 69). 6

Lev Nikolaievitch TOLSTOI desenvolveu um raciocínio sobre a arte diferente daquele biologicista e do idealista, partindo de uma perspectiva mais existencial. Antes de discorrer sobre o Belo (ideal), ou ficar no discurso da arte como mero prazer, o autor russo exalta o cotidiano da relação com a natureza, a mística, a história dos simples, os milhões de anônimos, que não são objeto ou modelos dos “artistas oficiais”. Para ele, a arte é essencialmente comunicação dos sentimentos coletivos. Ao abordarmos a arte sacra, estamos falando de uma arte que deve ser comunicativa, que facilita a experiência do Sagrado. Ela funda o âmbito de presença do Sagrado. O Ocidente, ao querer libertar a arte dos ditames da religião e dos cânones da natureza, assumiu uma posição elitista, onde se tornou produto apenas de uma classe de “iniciados”. Poucas pessoas têm acesso à compreensão e experiência de beleza na arte dita contemporânea. Fala-se até da “morte da arte” no Ocidente pós-moderno. Depois da “morte de Deus”, assistimos à “morte do humano"? A arte sacra como expressão simbólica do que o homem e a mulher de hoje buscam pretende, não negando o presente, buscar nas raízes do cristianismo a essência da comunicação com Deus, que é o sentido perante uma era supostamente sem sentido.

1.1 A arte sacra como comunicação Apesar da cultura ocidental testemunhar o oposto, na maioria das vezes a arte não é apenas prazer, entretenimento. Ela é um órgão constitutivo da vida humana, transmitindo a percepção racional das pessoas para o campo dos sentimentos. Ela faz parte daquilo que define o ser humano e o integra ao seu mundo e à transcendentalidade. Por isso, a tarefa da arte é enorme. A arte, por ser ação humana (do latim ars = ação), não está desvinculada das outras dimensões da pessoa: “O artista, portanto, é alguém que age concretamente, não abstrata e universalmente” (ROHDEN, 1990, p. 29). Toda a ação humana que promove a própria humanidade é integradora, faz união, comunhão. A arte, então, quanto mais comunicativa, mais exercerá seu papel. Essa comunhão transcende o tempo e o espaço: “[...] há alguma coisa na arte que expressa uma verdade permanente. E é essa coisa que nos possibilita – nós que vivemos neste século – o comovermo-nos com as pinturas pré-históricas das cavernas e com antiquíssimas canções” (FISCHER apud GRAÇA,1983, p. 35). Muitos anos antes, L. TOLSTOI, contrariando muitos gigantes da estética, mesmo BAUMGARTEN, HEGEL e SCHILLER, redarguiu que a “[...] arte é a atividade humana que consiste em um homem conscientemente transmitir a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que ele vivenciou, e esses outros serem contagiados por esses sentimentos, experimentando-os também” (2002, p. 76). A arte, quanto mais 7

comunicativa, mais atinge sua função, nesse conceito. O presente estudo tem tal definição de arte como fundamento do seu discurso. A arte funciona como um intercâmbio humano, necessário para a vida e para o movimento em direção ao bem de cada pessoa, unindo-os em um mesmo “sentimento”. Assim, a capacidade humana de “contagiar-se” por meio da arte proporciona à pessoa acesso a tudo o que a humanidade experimentou antes dela, há milhares de anos, sendo assim possível para ela transmitir isso a outras pessoas. Daí a constatação de E. FISCHER de que há algo na arte que nos comove, que com palavras não podemos expressar – é algo inefável. Perante esse inefável, esse mistério, como não se consegue exaurir em explicações conceituais, o ser humano estabeleceu símbolos. Esses elementos são inspirados em realidades visíveis, que expressam o inefável, o mistério insondável, o transcendente. Por isso, o artista sacro, ou iconógrafo, tem de ser alguém que procura ter profunda experiência do transcendente. Assim, ele “escreve” o que vivenciou através dos símbolos, transmitindo a outros sua experiência de transcendência.

1.1.1 O que os símbolos nos comunicam? A história mostra que tudo pode assumir uma significação simbólica: objetos naturais (pedras, plantas, animais, homens, montanhas, astros etc.) ou mesmo formas abstratas (números e figuras geométricas). Todo o cosmos é símbolo em potencial. Urbano ZILLES (2001, p. 11) nos diz: “O símbolo é um fenômeno originário do ser humano que corresponde a sua estrutura corpóreo-espiritual e social fundamental. O perceptível pelos sentidos é capaz de expressar algo para além do sensível”. Esses sinais, entretanto, pressupõem compreensão de uma comunidade. Se não conhecemos o ser humano em sua intimidade a não ser por meio dos seus gestos e suas palavras, muito maior é a necessidade dos símbolos, para que possamos nos aproximar da intimidade de Deus. Deus se nos revela através dos símbolos. A religião pode ser considerada como “[...] um sistema de símbolos para a comunicação com Deus” (idem, p. 12). O símbolo pertence à categoria dos signos ou sinais. Quando tais sinais constituem unidade com o que significam, são chamados símbolos. Etimologicamente, o símbolo (symballo) é um objeto partido em dois, cujas partes confrontadas, unidas, permitem-nos reconhecer quem as possui. Ele é bipolar, conjuga visível e invisível, o presente e o distante. É sempre um objeto ou gesto que tem seu valor não em si, mas no que representa. Ele participa, porém, da realidade para a qual indica. Na arte sacra ocorrem símbolos espontâneos decorrentes da vinculação com a natureza, com a mística, com a caminhada eclesial, com a doutrina. 8

A relação da humanidade com Deus necessita de símbolos. Toda a criação apresenta-se à pessoa de fé como vestígio de Deus, é a primeira revelação da Palavra. Através da beleza da criação entramos em contato com o Criador e entendemos nossa pequenez e simultaneamente a nossa grandeza (cf. Sl 8). Ao contemplarmos os seres criados, um se destaca como imagem viva do Criador: a pessoa. No mistério humano, descobrimos o mistério divino. A fé cristã tem um símbolo decisivo para compreender o sentido da história: Jesus Cristo. Ele é a imagem plena do Pai (cf. Rm 8,28-30). A Igreja é portadora das palavras e sinais de Cristo, celebrando o mistério de sua encarnação, morte e ressurreição. Ela expressa esse mistério através de uma linguagem simbólica. Os fiéis alimentam a fé, a esperança e a caridade se unindo a Cristo através desses símbolos. Todavia, quando as coisas são despidas de seu sentido simbólico, tornam-se obsoletas, triviais. Uma liturgia ou vida rotineira faz com que muitos símbolos se desprendam do psicológico das pessoas e não comuniquem mais os valores absolutos e as experiências de transcendência. A religião, a cultura, a vida, enfim, dependem de seus símbolos. “Ao destruírem-se os símbolos de um homem ou de um povo, mata-se sua história, os seus projetos e sonhos, ou seja, sua capacidade de transcender” (NASSER, 2003, p. 10). Por isso, a Igreja sempre deu valor à arte para a glorificação de Deus e a transformação dos corações: “Entre as mais nobres atividades do espírito humano, contam-se, com todo direito, as Belas-Artes, especialmente a arte religiosa e sua melhor expressão, a arte sacra [...]” (SC 122). Enfim, a religião precisa de poetas, artistas e místicos que criam, recriam e interpretam os símbolos de sua vivência de fé no dia a dia. Há uma grande necessidade, hoje, de revitalização dos símbolos, reinventá-los e buscar novas expressões da vida cristã para comunicarmo-nos com Deus e comunicar Deus ao mundo.

1.1.2 A “igreja é símbolo da Igreja" Para o cristão, não existe um único lugar sagrado. Toda a criação é lugar da experiência de Deus. Apenas no século IV, com o Edito de Milão (313), de Constantino, começam a aparecer os “templos” com construções autônomas. Apesar disso, pode-se designar “igreja” como “casa de Deus”. A comunidade necessita de um lugar para se reunir em assembleia (ekklésia). A igreja não é só casa de Deus, mas “casa da Igreja”. O edifício-igreja é a imagem da Igreja Povo de Deus, Igreja viva. Por isso, a sua construção, na arte ali empregada nos seus diversos símbolos, deve estar em harmonia com o que ela representa. O edifício é extensão da liturgia. Assim, dizemos que a “igreja é símbolo da Igreja”. 9

O sentido simbólico da igreja nos ajuda a entender e experienciar o que somos (Povo de Deus) e o que celebramos (Eucaristia). Experienciamos a realidade de templos vivos do Espírito Santo (cf. 1Cor 3,16) na casa da Comunidade dos filhos de Deus. “As igrejas construídas pelos homens são sinais visíveis da Igreja, Povo de Deus convocado e reunido em torno do Cristo” (PASTRO, 1999, p. 51). No decorrer da história, houve uma evolução dos critérios da construção de igrejas: desde o século IV, o estilo do edifício “[...] salientava a hospitalidade longitudinal com a via-sacra que encaminhava para o presbitério” (ZILLES, 2001, p. 57); no florescimento do Império Romano do Oriente o que mais se caracterizou foi o estilo bizantino, que optou por uma arquitetura centralizada, com uma cúpula circular (Santa Sofia); no Ocidente, prevaleceu o estilo românico, voltado para o estilo basilical, que apostou nas linhas horizontais conjugadas às verticais, com muitas colunas e torres. Mas nenhum estilo privilegiou tanto o vertical como o gótico, na alta Idade Média (Catedral de Milão, de Colônia e a de Notre-Dame de Paris); o barroco, como arte da Contrarreforma, privilegiou o triunfo, a ostentação, o volume com uma abundância quase sensual. Entretanto, a arte sacra é expressão do sentimento religioso de uma época. E em nosso tempo, o gosto moderno privilegia o simples, o sóbrio e o prático, deixando que o mistério fale por si só ao coração. O Concílio Vaticano II (1962-1965) foi uma “virada copernicana” que surtiu um efeito fortíssimo também na arquitetura, na pintura sacra e na disposição do espaço sagrado. Hoje, destaca-se e se facilita a participação da assembleia celebrante, o que só acontece quando uma assembleia compreende os símbolos que lhe passam pelos sentidos e elevam-na ao mistério, ao sagrado. Enfim, a igreja como símbolo da Igreja de Cristo deve ser um sinal profético, não um sinal de domínio imperante e castigador. Há um despertar do clero e dos leigos para que o ambiente da reunião da assembleia seja amável e convidativo, a começar pela arquitetura, pela cor e a disposição dos objetos simbólicos, bem como da pintura sacra. Em nosso tempo, a Igreja é chamada a ser símbolo dos valores que Cristo nos trouxe. Por isso, parafraseando a Instrução Geral do Missal Romano n.° 253, os edifícios sagrados destinados às celebrações devem ser dignos e belos, porque são símbolos das coisas divinas.

1.1.3 A simbologia e seus fundamentos A simbologia tem sua origem na experiência profundamente existencial do ser humano ante o universo e o Deus infinito. “O sentimento do 'maravilhar-se', do 'tremendum', vem-nos de uma simples e grandiosa descoberta: diante da perfeição, da harmonia, da incrível ordenação em tudo, desperta em nós o maravilhoso” (PASTRO, 1999, p. 15). O Ilimitado emerge nos limites. Como o Infinito não cabe no finito, Deus não pode ser “colocado” num espaço limitado, então este espaço está n'Ele. Deus é “o Lugar” (idem). É n'Ele que nós somos, vivemos e nos movemos (cf. At 10

17,28) mesmo que o caos do ativismo de nossos dias tente ofuscar essa consciência. Quando o Verbo divino, em seu despojamento, encarnou-se e nos revelou a sua face gloriosa (cf. Jo 1,14), o Infinito veio ao encontro do finito. O ser humano acreditou, com isso, que o Deus infinito não abandona jamais o finito (nós). O ser humano passou a ser “o lugar” para o cristianismo. Esse movimento quenótico de Deus em direção da humanidade é expresso pela arte na sua simbologia mais básica. A arte como comunicação dos sentimentos se expressa, como vimos, através da riqueza da simbologia. Em uma figura sagrada, a composição global se cai naturalmente em formas geométricas. Dentre elas, as mais universais são o quadrado e o círculo. Essas figuras correspondem aos números 4 e 1, respectivamente. É uma abstração que parte da natureza bruta, atingindo o profundo do ser humano em seus arquétipos mais universais. O círculo e o quadrado (infinito e finito) serão as figuras geométricas que melhor expressam essa experiência, que é a mais profunda do ser humano. O círculo, em todas as culturas, desde as mais antigas até a contemporânea, sempre expressou a infinitude, a eternidade e a perfeição e, para as religiões monoteístas, a unidade divina. O quadrado representa a Terra com os quatro elementos criados (terra, ar, água e fogo), os quatro pontos cardeais e, na iconografia cristã, os quatro evangelistas que anunciam o divino encarnado em Cristo Jesus. “As ideias de Pitágoras e Platão sobre formas e números foram reinterpretadas na tradição cristã, onde as formas geométricas e os números tinham sentido simbólico [...]”, contudo, “[...] os pintores de ícones primitivos não faziam diagramas geométricos conscientemente. Já estavam treinados para perceber harmonia, ordem e proporção e para trabalhar intuitivamente” (KALA, 1995, p. 24). A intuição artística, entretanto, não dispensa a análise da geometria sagrada que nos ajuda a entender como se processa a comunhão do divino através dos símbolos humanos. Assim, nós vemos que as dimensões espaciais humanas são redondas ou quadradas, havendo uma perfeição maior na conjugação dessas duas formas. Isso é verificado desde as culturas do Extremo Oriente (budismo), nas imagens sagradas dos aborígenes (Austrália), nas culturas animistas (África) e indígenas (América), até as rosáceas das catedrais parisienses. Com a secularização do símbolo, o círculo e o quadrado estão presentes também nas logomarcas de automóveis, empresas, redes de televisão etc. A Psicologia do Profundo, junguiana, denomina a figura abstrata do círculo como “Mandala”. Ela representa a unidade e a totalidade da psique ou do self de que fazem parte tanto o consciente quanto o inconsciente (cf. JUNG, 1964, p. 241). Essa unidade e perfeição, o cristão atinge na medida em que reconhece em Cristo, Filho do Homem, o revelador do ser humano integrado. Assim, na arte sacra “[...] 11

podemos considerar mandalas as auréolas de Cristo [...] divididas em quatro, uma alusão significativa ao seu sofrimento como Filho do Homem e a sua morte na cruz e, ao mesmo tempo, um símbolo da sua unidade diversificada” (idem). O símbolo, como já tratamos, desde sua etimologia, trata da união dos opostos: o visível que expressa o invisível. Em sua dinâmica, o símbolo tem um ponto de origem: o “centro”. Sem uma centralidade, as coisas caem no acaso, no caos. Assim, o centro é a origem de tudo: “Exemplo: uma pedra jogada na água gera um movimento, sua primeira forma será um círculo perfeito e concêntrico que se dissipará à medida que se distanciar do centro” (PASTRO, 1999, p. 16). O círculo perfeito, como primeiro símbolo, será a figura geométrica (perfeita, harmônica e de unidade), onde no seu centro emerge a figura do Cristo TodoPoderoso (Pantocrator), Palavra Criadora do Pai que a tudo sustenta e dá vida no Espírito. Normalmente, essa poderosa figura sagrada surge no centro das abóbadas das antigas igrejas cristãs. Coroando essas abóbadas, aparecem os “justos”, os santos. São aqueles que reconheceram o Filho de Deus como Senhor da Vida e que agora contemplam-no face a face. São os bem-aventurados: geralmente são representados os santos Apóstolos. Talvez por uma influência neoplatônica (Plotino), da teoria das emanações, onde Deus se manifesta na realidade, numa hierarquia que se intensifica à medida que se dirige ao centro, na arte sacra há uma hierofania dos círculos concêntricos. Quanto mais próximos do centro, mais fortes e intensos são os círculos. Como exemplo, podemos citar a Divindade de Cristo, representada na iconografia em esferas azuis em torno do seu corpo que se intensificam à medida que se aproximam do centro. A figura do quadrado é a terra, o ser criado. São os limites espaciais, as “quatro paredes”, o “enquadramento”. Mas é também senso de realidade, de orientação, de razão. A cruz, ligação das diagonais, ou dos lados do quadrado, forma também o número quatro, os pontos cardeais da terra. Numa perspectiva mais moderna, ela também é um gráfico das quatro dimensões da pessoa: mundo, self, alteridade e transcendência. É o símbolo da integração das relações humanas que a pessoa estabelece consigo mesma (identidade), com a ecologia (criação), com a comunidade (fraternidade) e com a fé (o divino). A cruz, símbolo ambivalente, é a figura do amor que confunde a sabedoria humana. Num símbolo de morte, foi erguido aquele que destruiu a morte, “religando-nos” ao Infinito. No decorrer da história, o círculo e o quadrado deram forma e conteúdo à arte sacra e expressaram, consciente e principalmente inconscientemente, a forma de o cristão ver o mundo e Deus. Isso é presente tanto na pintura como na arquitetura, mas sempre de forma indireta, mesmo porque “[...] o símbolo central da arte cristã não é a mandala, mas a cruz ou o crucifixo. Até a época carolíngia, a forma usual era a Cruz grega ou equilateral e, portanto, a mandala estava indiretamente envolvida naquele 12

desenho” (JUNG, 1964, pp. 243-244). A essa mudança da arte sacra no Ocidente, Cláudio PASTRO (1999) chama de “formas arquitetônicas a partir do Centro”. E poderemos analisá-la através dos arcos das igrejas das determinadas épocas: • No primeiro milênio, a arte sacra, com inspiração na sólida teologia patrística e testemunho da igreja militante, desenvolveu o “arco românico” ou “perfeito” (180°). A cruz é equidistante (perfeita). O arco é a metade do círculo, indicando unidade e harmonia na igreja-edifício, reflexo de uma Igreja que bebia da espiritualidade apostólica e patrística. Era a Igreja primitiva, a fonte da qual, hoje, o cristão busca como verdadeira identidade. Nessa época deu-se o impulso que desenvolveu a iconografia e a defesa da arte do ícone pelos Santos Padres da Igreja, destacando-se São João Damasceno. A arquitetura do “arco perfeito” permaneceu até o século X; • No século XI, com o cisma da Igreja, surgem a Igreja Latina ou Romana no Ocidente e a Bizantina ou Ortodoxa no Oriente. O arco perfeito, símbolo da unidade, inconscientemente apresenta uma ruptura. É o arco “paragótico” ou em “ogiva”. A unidade da Igreja e sua centralização apresentam rupturas. Esse arco veio se desenvolver de forma vertical. A cruz plasmada pela arte de então alongou-se verticalmente, apontando para o Altíssimo. No século XIII, tendo como protótipos as igrejas de Saint Denis e Notre-Dame, na França, o estilo gótico atinge seu ápice. A inspiração é naturalista, apesar do forte misticismo. O arco tem a forma do pinheiro, da conífera. É a natureza que aponta para o Sagrado. As igrejas passam a ser demasiadamente altas, expressando um anseio do ser humano apenas pelas “coisas do alto” – teocentrismo; • No século XV, com as grandes descobertas na área das ciências, das artes e na filosofia, o europeu se volta para o “aqui”, a terra. Enquanto o gótico buscava na natureza setentrional sua inspiração, o renascentista se baseia na razão, na matemática, nos modelos gregos naturalistas – é o humanismo. O “arco renascentista” é mais achatado (horizontal) que o gótico, simbolizando as “coisas da terra”. A cruz é representada mais curta e vertical. Aqui, os grandes mecenas (Júlio II e os Médici) patrocinam uma arte que tem como objetivo o ideal do corpo humano – a beleza sensorial. A arte sacra fica ofuscada e começa a divisão da contemplação e do conhecimento. O centro é reservado ao ser humano: “[...] suas construções amplas refletirão o fausto europeu, as conquistas imperiais, o poder humano” (PASTRO, 1999, p. 18); • Com a Reforma de Lutero (1517), a Igreja tridentina inaugurou a arte da Contrarreforma: o Barroco. Essa arte vigorosa quis expressar o triunfo e a força, literalmente, da Igreja Católica. Os santos são representados com bastante volume em gestos contorcidos, quase sensuais. Era, também, a mistura do racional renascentista com o misticismo religioso, amálgama que 13

causava tensão no psiquismo do europeu. O “arco barroco”, além da divisão no centro, apresenta bastante desenvolvimento em folhas de acanto e bebês alados (anjinhos) que fervilham em um mundo de alegorias tais que escondem o essencial, em favor do acessório. É mais arte religiosa e devocional que arte sacra; • Nos séculos XVIII e XIX, o idealismo hegeliano e o poder das ciências e do naturalismo positivista influenciam a arquitetura. Há uma volta ao classicismo greco-renascentista. Declara-se a “morte de Deus” (NIETZSCHE). O “arco neoclássico” é bastante horizontal e quase não apresenta alusão ao meio-círculo. É uma forma quadrática, racionalista. O Romantismo (DELACROIX) foi uma reação ao racionalismo e o impressionismo (MONET, GERICAULT, DEGAZ e MANET) buscará na objetividade da luz a beleza; • Atualmente, com a revolução industrial, a robótica e a informática, bem como com uma economia de mercado, as formas existem para o marketing. Quer se resolver problemas de espaço, quantidade e praticidade. O que conta é quase só o imediato, “[...] não mais uma escuta hierofânica” (idem, p. 19). Porém, há um resgate das formas simples na arquitetura e na pictórica. Os símbolos do círculo e do quadrado se mantêm presentes também no mercado, nas grifes da moda, nos logotipos das redes de TV e nas publicidades em geral. Na arte sacra, tudo respira teologia e fé. Ao falarmos da iconografia como uma arte que obedece aos cânones da Igreja, parece que ela se torna apenas racional e “pré-determinada”. Entretanto, como vemos, a simbologia que envolve os sinais básicos do círculo e do quadrado apontam para uma profunda intuição que garante uma universalidade na iconografia. Há algo que nos integra com nós mesmos, com o mundo, com a comunidade e com a Beleza Divina mesma. Ao contemplarmos um ícone, antigo ou moderno, sem explicação conceitual, experienciamos sempre algo de diferente que, por símbolos tão universais, aprimoram a nossa mística e nos ensinam a rezar. Eles realmente são janelas para aquela Beleza eterna e intensa que, “já” conhecida em parte aqui, beatificamente contemplaremos na eternidade.

1.2 A experiência cristã da beleza Se a arte é a ação que comunica uma experiência ou sentimento vivenciado a outros, que passam a ser “contagiados” por essa mesma experiência, não podemos falar de arte sacra sem antes sabermos qual é o fundamento da experiência cristã da beleza. O tema não é tão simples, pois falar de uma Teologia da beleza é novidade no campo da teologia. Porém, a criação se manifesta com suas belezas, apontando para um Criador Belo, beleza em si. “A grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar seu autor, pois foi a própria fonte da beleza que as criou” (Sb 13,3.5). 14

Toda a manifestação do Mistério se dá por meio da matéria, objetos e pessoas, em um caminho ascendente de revelação que culmina na máxima teofania de Deus na carne: Jesus Cristo. A Palavra-Imagem é referencial da fé judaico-cristã. O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus. Essa imagem foi desfigurada, mascarada, distorcida pelo pecado. A pureza inicial, beleza primordial, foi desbotando. O homem velho, Adão, passa a errar pelo mundo. “O Antigo Testamento é uma busca da verdadeira face. 'Mostrai-me, Senhor, a vossa face...' é um contínuo refrão, dos patriarcas aos profetas” (PASTRO, 1999, p. 28). Em Ex 20,4 e Dt 5,8, há uma proibição de se fazer imagens de esculturas. O Povo de Deus sempre foi sitiado pelo perigo da idolatria. O objetivo da proibição era assegurar a imagem única que o Senhor revelara na sarça ardente até a plenitude dos tempos, em que Jesus Cristo se revelaria como “[...] a imagem do Deus invisível e primogênito de toda criatura” (Cl 1,15). Em Cristo, tudo é recriado e redimido (cf. Ap 21,5). O ser humano e toda a criação, pela encarnação do Filho de Deus, passam a ser nova criação, imagem restaurada. O espaço cristão é o lugar dos descendentes do novo ser humano. Esse lugar tem de ser belo, bom e verdadeiro (kalós). Toda criação desfigurada e distorcida foi transfigurada, pois “O Verbo se fez carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória” (Jo 1,14). Toda matéria foi cristificada pela encarnação. O Bom, o Verdadeiro e o Belo se identificam numa unidade. “Vinte séculos de herança cristã nos revelam, pela arte, como os cristãos encaram a vida” (PASTRO, 1999, p. 29). A experiência cristã da beleza, portanto, tem seu fundamento na experiência da encarnação do Verbo divino: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,19). No fim dos tempos, essa experiência de “ver” será em plenitude: “Então eles verão o Filho do Homem vindo sobre uma nuvem, com poder e grande glória” (Lc 21,7). A felicidade eterna é a visão beatífica da Beleza em si, Amor em si. A comunidade cristã reconhece em Jesus Cristo o poder da Beleza em si para inspirar e transformar a vida humana. O Criador seduz a criatura humana: “[...] e quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). A Beleza de Deus atrai, seduz. Os gregos reconheciam isso quando usavam para designar o belo o termo kalos, do verbo kaléo, que significa chamar, atrair (cf. NAVONE, 1989, p. 40). Fazer a experiência da Beleza é fazer a experiência de Deus, pois, como diz santo Agostinho, “Não podemos evitar de amar o que é belo”. Jesus garante a seus seguidores nas Bem-aventuranças a alegria da comunhão com a Beleza divina. Aqueles que têm puro coração vão se deleitar em ver Deus (cf. Mt 5.8). Além disso, “[...] seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como Ele é” 15

(Jo 3,2). Analisando as oito Bem-aventuranças, Santo Tomás vê nelas uma progressão na alegria desde o reconhecimento de nossa necessidade de Deus (pobreza) até a participação no amor reconciliador de Deus (cf. ST II-I, q. 69). A arte cristã, enfim, mergulha na teologia e nas Escrituras e, após a experiência da Beleza em si, contagia a humanidade. Contagia o ser humano que, apesar de tão carente, abre seu coração à ação do Cristo transfigurado. A experiência cristã da beleza é comunicativa. Sem ser meramente doutrinação, ela impele o cristão a ver Deus presente em toda a sua criação, sendo o sentido da mesma. O caos passa a ser visto como kosmos, o acaso dá lugar ao sentido de tudo.

1.3 A diferença entre arte sacra e arte religiosa A Igreja sempre definiu a arte como uma das empresas mais nobres do espírito humano (cf. SC 122), porém, reconhece uma diferença entre a arte religiosa e a arte sacra. Poderíamos dizer que a arte sacra é feita da essência mesma da Igreja, do cristão. “Chamam de arte 'sacra' somente a arte 'consagrada' a Deus, ou por ato interno, ou por intencionalidade inerente à obra, ou ainda apenas por indicar a sublimidade da atividade artística, definível como divina” (GATTI, 1992, p. 88). A função da arte sacra é testemunhar o Cristo, Deus Vivo, a plasticidade dos evangelhos e a Tradição da Igreja. A preocupação maior está na maior comunicação do Mistério. Daí que o artista sacro deve ser alguém que tenha intimidade com a teologia e a Sagrada Escritura. O talento desse artista está na comunicação de sua experiência íntima de Deus à comunidade de fé. Isso comunga com o conceito de TOLSTOI. O dom é vivido na comunidade, ele é partilhado. Os cristãos orientais levaram isso tão a sério que o pintor sacro praticamente nunca assina sua obra, porque o verdadeiro autor é Deus. É ele que tem de ser comunicado: “[...] que ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30). A arte sacra supõe, como vimos acima, que o mistério da encarnação cristificou toda a matéria terrestre ou extraterrestre. Ela é extensão da liturgia. Assim, a arte sacra contemporânea será o símbolo da verdade, sinal de comunhão: “Deixemo-nos seduzir pelo mistério” (PASTRO, 2001, p. 15). A arte religiosa, por sua vez, é a que “[...] requer, implícita ou talvez mesmo explicitamente, a fé” (GATTI, 1992, p. 88). A arte religiosa é mais geral. Apesar de apontar para o sagrado, ela não é necessariamente uma extensão da liturgia, entrando muitas vezes no devocionário, no decorativo, no acessório. Pode ser qualquer estátua de santo feita para decorar uma igreja, mas nunca como peça principal. No Renascimento (séc. XV) e no Barroco (séc. XVI), a Igreja deu mais espaço a essa arte. Os modelos que inspiravam os artistas (MICHELANGELO, Da VINCI e principalmente Sandro BOTICCELLI) não eram os textos bíblicos, mas sim os personagens da mitologia grega ou textos de autores profanos. O esquema do 16

“Juízo Final” (1536-1541), da Capela Sistina, por exemplo, é inspirado no poema latino Dies irae e no Inferno, de Dante, poema que MICHELANGELO (1475-1564) sabia de cor. Leonardo da VINCI (1452-1519), por sua vez, dizia que “[...] a figura mais louvável é a que, por sua ação, melhor transmite as paixões da alma” (...). Na verdade, os renascentistas estavam mais preocupados em mostrar seus talentos do que em testemunhar a fé ao executar uma obra religiosa. Os estudos dos grandes mestres daquela época tinham por meta reproduzir a realidade, a anatomia do corpo humano, o naturalismo antropocêntrico. Isso não significa dizer que eram desprovidos de fé. Na verdade foram produtos de seu tempo. O Barroco, todavia, foi o estilo que mais marcou a arquitetura e arte religiosas. Surge como a estética do triunfo da Contrarreforma, procurando expressar o poder e a força da Igreja tridentina, ocultando a sobriedade, a simplicidade que o Sagrado exige. O Brasil foi marcado por esse estilo, que refletia o pensamento religioso de uma época. Em suma, a arte sacra é feita do ser da Igreja, procurando expressar o Mistério, o sublime. É uma extensão da liturgia, da teologia, da tradição inspirada na Palavra. A arte religiosa, por sua vez, fala sobre o Sagrado, mas não parte necessariamente de dentro de uma mística do artista, que muitas vezes está mais preocupado com a expressão do seu talento do que com o testemunho pessoal de fé. É uma arte produto do mecenato. Ao abordarmos, no início desse capítulo, a problemática de muitos conceitos de artes, temos consciência de que a arte sacra contemporânea não se soma a mais um dos “neos” ou dos “ismos” de vanguarda, mas recupera sua identidade, agora mais decantada que outrora. A arte sacra testemunhará Cristo Jesus Transfigurado perante o ser humano pós-moderno, que tem as suas esperanças desfiguradas e levará a pessoa de fé a alimentar o deleite da Beleza em si e, por ela, viver a caridade.

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CAPÍTULO II

A ARTE SACRA DEPOIS DO CONCÍLIO VATICANO II E O LEGADO ORIENTAL

O

Concílio Vaticano II (1962-1965) foi um grande divisor de águas na liturgia e na arte sacra. A concepção de Igreja passou de uma “sociedade perfeita” para a de “Igreja Povo de Deus”, comunhão e participação de todos os fiéis: a sacralidade não está nas pedras materiais da Igreja, mas na comunidade cristã, especialmente quando se reúne para celebrar a Eucaristia (cf. LG 30; SC 7); além de um sacerdócio ministerial, na Igreja, existe o “sacerdócio dos fiéis” (LG 10, 34); a eclesiologia do Concílio de Trento (que dividia dois gêneros de cristãos: clérigos e leigos) foi superada pela eclesiologia do Vaticano II, que tem como ideia fundamental a comunhão de todo o povo de Deus. A melhor maneira de realizar simbolicamente essa ideia é situar a comunidade de maneira envolvente em torno do centro bipolar da Eucaristia: o altar e a mesa da Palavra. Além disso, para melhor vivermos essa Igreja de comunhão na liturgia, o espaço sagrado do culto cristão deve abandonar de certa forma a concepção de “templo” (ideia que tem ressonância pré-cristã), para substituir por uma mais originária e autêntica, a da “domus ecclesiae” (cf. PLAZAOLA, 2001, p. 328). O movimento litúrgico, já antes do Concílio, levava estudiosos a buscarem as fontes litúrgicas. Vão sendo acentuados valores eclesiais, teológicos e espirituais no culto. Esse movimento e o Concílio Vaticano II perceberam que a configuração das “casas da Igreja” dos primeiros séculos vinha ao encontro desse anseio: a celebração cristã ao redor de um único altar, Cristo e sua Palavra. Como a arte sacra é extensão da liturgia, o artista sacro procura na fonte dos primeiros séculos a sua inspiração. Aqui, entramos no cerne do presente estudo: a iconografia moderna que se inspira na igreja do primeiro milênio e na tradição bizantina. “Meus trabalhos não são exatamente modernos. Na verdade, eu me inspiro nas tradições da Igreja, em imagens produzidas nas catacumbas, nos primórdios da era cristã [...]. Se você pegar os trabalhos do primeiro milênio do cristianismo, verá que os meus nada têm de diferente deles. Eu procuro fazer o que aqueles primeiros artistas faziam: arte sacra por excelência e não mera arte religiosa” (PASTRO, 1998, p. 9).

2.1 Como o Concílio tratou da arte sacra Como a arte sacra é um prolongamento da ação litúrgica, é impossível falar dissociando uma da outra. A constituição Sacrosanctum Concilium (SC) sobre a sagrada liturgia foi o primeiro documento aprovado, em 4 de dezembro de 1963, na festa de São João Damasceno (o grande defensor da iconografia). Essa constituição segue a encíclica Mediator Dei, de Pio XII, onde a liturgia é vista como continuidade do mistério da encarnação. É um instrumento de união entre a 18

pessoa e Deus e Deus e a pessoa. A liturgia é a epifania (manifestação) do mistério de Deus, da redenção de Cristo. “Ela prolonga a encarnação em nossos símbolos e ritos [...]. A presença do invisível só é percebida numa cultura do símbolo [...]. Hoje, depois da arte abstrata e do despojamento exagerado de nossas igrejas, a Igreja do Ocidente recorre ao ícone sagrado da Igreja oriental como uma janela para o invisível” (PASTRO, 1998, pp. 45-46). O capítulo VII da SC trata da arte sacra e das sagradas alfaias. Logo de início, fala da importância da arte sacra e do desafio que isso propõe ao artista sacro: a arte sacra está relacionada com a infinita Beleza divina, Beleza que o artista tenta comunicar em sua obra a partir de uma experiência de Deus; essa arte contribui para a conversão do coração humano; a Igreja sempre recorre ao ministério das artes a ponto de, com razão, considerar-se no dever de estabelecer juízo sobre as obras de arte, avaliando quais as que mais convêm à fé, à liturgia; porém, a Igreja está aberta ao progresso da técnica e da arte (cf. SC 122). A Igreja não reconheceu como seu nenhum estilo, mas reconhece as culturas e seus símbolos, bem como as particularidades de cada tempo. A arte deve gozar de autonomia e liberdade na Igreja. Todavia, visa-se à nobre Beleza e não à mera suntuosidade (cf. SC 123). A Igreja prima também pela funcionalidade, principalmente na construção de igrejas, que deve levar em conta a ação litúrgica e a participação de todos os fiéis (cf. SC 124). Quanto às imagens, deve haver sobriedade nas representações, moderação quanto ao número e hierarquia, centralidade, de acordo com o que elas representam (cf. SC 125). Para garantir um bom andamento e assessoria em matéria de arte sacra, as igrejas particulares devem dispor de uma comissão diocesana de arte sacra e, se for o caso, consultar assessores especialistas na área. A constituição pede que também haja formação dos artistas sacros, sendo o bispo diocesano, ou representante idôneo, responsável pela tarefa. O artista sacro deve saber que suas obras se destinam à liturgia, à edificação dos fiéis, à devoção e à catequese do povo de Deus (cf. SC 126 e 127). A formação artística não é privilégio apenas do artista leigo, mas também dos futuros presbíteros. Na sua formação (filosófica e teológica), os candidatos ao presbitério devem ser instruídos na história da arte sacra, bem como dos princípios que regem as obras de arte (cf. SC 129). Como vemos, o Concílio Vaticano II, no campo da liturgia e arte sacra, não veio trazer nada de absolutamente novo para a contemporaneidade. Ele veio, sim, reafirmar a Igreja das origens. E essa pretensão não é um saudosismo perante o confronto com o moderno e/ou o pós-moderno, mas a busca da essência mesma da Igreja. É a reafirmação da identidade eclesial desde a liturgia, a interpretação da doutrina e a pastoral. Na arte sacra, teremos a recuperação da simplicidade da 19

arquitetura românica e a profunda intuição da iconografia bizantina.

2.1.1 No espírito do Concílio "Uma volta às fontes” era o leitmotiv que se ouvia antes, durante e depois do Concílio Vaticano II. As colonizações nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania fizeram emergir a riqueza de culturas desconhecidas pelo europeu. Por outro lado, a arte do séc. XIX e primeira metade do séc. XX tinha se tornado muito acadêmica, tornando-se compreensível apenas a uma elite (cf. PASTRO, 2001, pp. 12-13). O Concílio lançou as bases para uma renovada relação entre Igreja e cultura, com reflexos imediatos na arte (cf. João Paulo II, 1999, n.° 11). Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, os Padres conciliares sublinham a importância das artes na vida do homem: “Elas procuram dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no universo, dar a conhecer suas misérias e alegrias, necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor” (GS 18). Reforçando o caráter de uma arte inculturada no tempo e no espaço, o Concílio frisou que a Igreja não quer impor um estilo, mas adaptar o Evangelho ao “jeito de cada povo, de cada cultura” (SC 123). A arte dos povos autóctones (Ásia, África, América e Oceania), ainda bastante ligada à religião, começou a questionar os artistas europeus, sobretudo os Fovistas (movimento de vanguarda da arte europeia). Henri MATISSE (1869-1954) e Paul GAUGUIN (1848-1903) passaram a usar a cor em tons puros, sem nuanças. A arte em geral, contrapondo o academismo neoclássico e Barroco, buscou uma volta às fontes da própria pintura. Isso é bem visível na “pintura ingênua” de ROUSSEAU, onde percebemos certa nostalgia das origens. As cores chapadas com pouca mistura e pouco emprego do claro-escuro é uma característica marcante da arte da primeira metade do século XX. Os artistas procuravam, no Impressionismo, Expressionismo, Surrealismo, Art Nouveau e outros, a beleza da verdade no momento, na cor, na pincelada, influenciados pelas culturas autóctones principalmente da África e da Oceania (cf. PASTRO, 2001, p. 14). A estética cristã não ficou para trás e começou a desenvolver uma arte inculturada, encarnada. Além disso, refinada e elegante. Destacaram-se na arquitetura renovada: Emil STEFFAN e Rodolf SCHWARZ, que se inspiravam em grandes nomes do movimento litúrgico, tais como Romano GUARDINI e o beneditino Odo CASEL. Destacou-se também na arquitetura Le CORBUSIER, o dominicano COUTURIER e GAUDÍ. No Brasil, nessa arte, destacam-se Oscar NIEMEYER e Ivo Porto de MENEZES. Na pintura, sobressaem, no final do século XIX e início do século XX: GAUGUIN, Maurice DÉNIS, Marc CHAGALL, BRAQUE, LURÇAT e Alfred MANESSIER. Após a 2ª Guerra Mundial, a Alemanha teve grandes revelações na pintura, tais como Egino WEINERT, Max FALLER, Therese HOSSLE-SEIDL, Maria 20

Elizabeth STAPP, Ewald MATARÉ, Albert BURKART e outros. É preciso considerar aqui as escolas de arte que difundiram a iconografia por toda segunda parte do século XIX e primeira parte do século XX, destacando-se a do Mosteiro Beneditino de Beuron (Alemanha). No Brasil, dentre tantos que ficaram no anonimato, podemos citar o irmão benedito Paulo CHENMAYER (Bahia), o Pe. Geraldo LEITE (Pernambuco) e o monge Gerardo MARTINS (Pernambuco). Em nossos dias, tem executado muitas obras arquitetônicas e pinturas de inspiração iconográfica o paulista Cláudio PASTRO. Reconhecido mundialmente, PASTRO tem realizado projetos em mais de 200 igrejas, capelas e colégios no Brasil, Alemanha, Argentina, Bélgica, Itália e Portugal. Há pouco tempo, PASTRO projetou e supervisionou a capela da Rede Vida de Televisão, por exemplo, e tantas outras obras pelo Brasil afora. Atualmente, também está redecorando a Basílica do Santuário de Aparecida (SP). De grande expressividade e marcadamente teológicobíblicos são os ícones de Dom Ruberval Monteiro (OSB), do Mosteiro da Ressurreição (Ponta Grossa-PR), doutor em Teologia Oriental e Iconografia. Na arquitetura no Brasil, hoje, temos Regina Celi de Albuquerque MACHADO e irmã Laíde SONDA, por exemplo, que apresentam uma proposta de arquitetura sacra profundamente inculturada ao contexto das comunidades locais. Na arte e arquitetura dos novos lugares de culto, deve-se atender a dois objetivos básicos: “[...] ser funcional para a celebração litúrgica e facilitar a participação dos fiéis” (MACHADO, 2001, p. 25). O espírito do Concílio, enfim, animou e anima muitos artistas a serem testemunhos da beleza. Se logo após o Concílio não faltou quem visse a arte sacra como supérflua, como luxo, nos dias atuais há uma melhor compreensão de que simplicidade, autenticidade e funcionalidade do espaço sagrado são arte, são beleza e, por isso, necessidade. Existem contradições sociais, lutas, mas não podemos esquecer que além de uma teologia profética, proclamativa, o cristão é animado por uma teologia manifestativa, epifânica. A arte bizantina será a fonte da tradição que, com o Concílio, forjarão uma arte sacra profundamente inculturada sem corromper com os dogmas e a liturgia, para que “[...] os edifícios sagrados e os objetos destinados ao culto sejam realmente dignos e belos, sinais e símbolos das coisas divinas” (INSTRUÇÃO Geral sobre o Missal Romano, n.° 253).

2.1.2 A CNBB e a arte sacra A posição da CNBB em relação à arte sacra (arquitetura e iconografia) é tema de estudo recente. Para fazer memória de setor de arte sacra, a Ir. Laíde SONDA fez uma verdadeira “garimpagem” nos arquivos da CNBB, como ela mesma diz (cf. http://www.presbiteros.com.br/artigos/memoria e arte sacra.htm). A partir do que se pesquisou, podemos, sem ser demasiadamente minuciosos, ter um panorama mais ou menos completo da reação da Igreja no Brasil após o Concílio em relação à arte sacra. Percebemos que houve preocupação em adaptações à liturgia renovada, também houve esquecimento desse tema nos anos 70 e uma 21

retomada nos anos 90 na perspectiva de uma arquitetura e uma iconografia inculturadas. De 18 a 23 de junho de 1964, houve o primeiro encontro de Liturgia promovido pela Comissão Episcopal de Liturgia da CNBB. No encontro, o principal tema foi a criação do Instituto Superior de Pastoral Litúrgica (ISPAL). Em um dos objetivos específicos deste instituto, há um item sobre a arte sacra, que diz: “Promover sessões de estudo e outras iniciativas no campo da arte sacra e de tudo o que concerne ao mobiliário sagrado e as vestes litúrgicas, para difusão dos sãos princípios da arte sacra e a formação da sensibilidade artística em contato com a arte viva” (Idem). Percebemos, com isso, que, logo após a publicação da SC, houve uma preocupação com a arte sacra no Brasil com propostas concretas. Houve, no entanto, por ignorância ou interpretação grosseira do Concílio, muitos que consideraram a arte sacra um luxo e disseminaram a ideia de que, para o espaço de culto, bastava uma sala de reuniões (cf. PASTRO, 1998, p. 9). Em 1965, a Assembleia Geral da CNBB aconteceu em Roma. Lá foram aprovadas normas sobre a arte sacra. Pediu-se que toda a Igreja se engajasse, promovendo uma arte sacra que viesse ao encontro da renovação litúrgica; logo os frutos desse encontro começaram a aparecer. De 1. a 5 de dezembro de 1967, no Rio de Janeiro, aconteceu o primeiro Encontro Nacional de Arte Sacra. Basicamente, os temas que se trataram foram: a teologia do templo, a organização do espaço sagrado e os caminhos da Arte Contemporânea. Falou-se também sobre encontros regionais e sobre os monumentos históricos. Enfatizou-se que, com o desclericalismo, a Igreja precisava de espaços menores, domésticos (domus ecclesia), mais condizentes com a realidade de cada comunidade. Começou-se a abandonar a ideia de construções monumentais e passou-se a assumir uma arquitetura e iconografia mais inculturadas. Abordou-se, também, o despreparo do clero em relação à arte sacra. Quanto à organização do espaço, salientaram-se as características da sensibilidade atual: sensibilidade, autenticidade e funcionalidade. De 30 de outubro a 3 de novembro de 67, aconteceu em Brasília o segundo Encontro Nacional de Liturgia. Esse encontro seguiu o Plano de Pastoral de Conjunto (1966-1970), que se centrou sobre as CEBs. Os temas abordados foram bem diferentes que os do primeiro encontro. Dentre eles, destacamos: a caracterização da sociedade brasileira; a comunidade cristã na sociedade contemporânea; a igreja templo e os meios de comunicação social; edifícios religiosos e meio urbano. Os desafios que apareceram foram: urbanização acelerada; secularização; pluralismo religioso. Uma das consequências práticas foi a seguinte: “É desejável que se multipliquem as pequenas comunidades, CEBs, e se arranjem espaços sem reservá-los exclusivamente para o culto; que estes locais sejam multifuncionais"(http://www.presbiteros.com.br/artigos/memoria e arte 22

sacra.htm). Em relação aos encontros de arte sacra, optou-se que se fizessem em simpósios regionais e diocesanos, o que enfraqueceu o tema, relegando-o ao esquecimento. O Pe. Darci CORAZZA estava à frente do setor de arte sacra, o que a partir de então ficou extinto. Em 11 de abril de 1971, a Sagrada Congregação para o Clero enviou uma circular para os presidentes das Conferências Episcopais sobre o cuidado do patrimônio histórico e artístico da Igreja. A CNBB preparou um documento base, tendo à frente Pe. Bruno TROMBETA, no qual constavam normas para a defesa do patrimônio histórico-artístico da Igreja no Brasil. O documento chamou-se Documento base sobre a arte sacra. “Esse documento recebeu muitos elogios de Graça Aranha, secretário-geral do Conselho Federal de Cultura. O documento seria dirigido às dioceses. Porém, se o levantamento dos patrimônios histórico-artísticos tivesse sido feito nas dioceses, constaria nos arquivos da CNBB, mas não existe nada” (Idem). De 26 de novembro a 1. de dezembro de 1971, aconteceu a segunda Conferência de Arte Sacra Colonial, em Santa Fé, no Novo México, Estados Unidos, onde o Pe. Bruno TROMBETA participou como representante do Brasil. A partir desse encontro, só existe um longo tempo de silêncio sobre a arte sacra no Brasil. Não existem notícias que façam referência a eventos ligados ao setor. Somente em 1989, frei Alberto BECKHÄUSER profere uma palestra na USP sobre espaço litúrgico. Monsenhor Guilherme SCHUBERT, autor do livro “Arte para a fé”, também contribuiu neste estudo. Por ocasião do Congresso Eucarístico Nacional de Vitória (ES), em 1996, D. Geraldo Lyrio ROCHA e assessores da dimensão litúrgica da CNBB propõem um encontro de arte sacra. O encontro se realizou nos dias 11 a 13 de julho, em Vila Velha (ES). O objetivo do encontro era colher experiências, partilhá-las e discutir a inculturação da iconografia, bem como da adaptação do espaço sagrado à realidade das comunidades. Cláudio PASTRO proferiu palestras sobre a história da arte e o seu sentido na liturgia. A arquiteta Regina Celi de Albuquerque MACHADO enfatizou a organização do espaço litúrgico. Nesse encontro, se abordou com muita propriedade a necessidade de se criar espaços teofânicos, que manifestem o Mistério. A iconografia inculturada, inspirada na arte bizantina, aparece como uma grande aliada na criação de âmbitos de presença do Sagrado. O encontro de Vitória constitui realmente uma retomada do tema arte sacra pela CNBB, que por um tempo esteve esquecido. Temos de considerar que tal encontro reavivou debates muito pertinentes, e que começam a aparecer frutos em nossos dias. Percebeu-se como a comunidade de fé precisa da arte. “A partir do momento em que a obra divina é também 'poesia', manifestação da beleza numa forma existencial, não pode faltar no seio da comunidade cristã espaço para os artistas, que historizam a obra-mestra de Deus e a anunciam à sua época e cultura” (FIORES, 1989, p. 48). 23

O encontro de 1996 considerou temas tais como: a formação artística dos que atuam na arte sacra; a constituição das comissões diocesanas de arte sacra; a pastoral dos artistas; a profissionalização de arquitetos, músicos e pintores. Não basta amadorismo. Além disso, para uma melhor organização desses espaços, que devem ser teofânicos, faz-se necessário: conhecer a teologia e a liturgia; partir da cultura, da realidade da comunidade (em sua maioria, pobres); atender as exigências da simplicidade, da autenticidade e da funcionalidade; o espaço sagrado deve ser espaço de experiência de beleza criativa, espaço de vida nova. O encontro nos trouxe a consciência de que devemos nos libertar da fase do multiuso do espaço celebrativo, presente nos anos 70 e 80. Em 1999, aconteceu em São Paulo, na Lareira São José, o segundo encontro desta nova etapa da arte sacra, que foi de 25 a 27 de junho. Participaram 40 pessoas de diferentes regiões do país. As questões propostas foram sobre: os avanços e perspectivas com relação à arte sacra e quais os seus estrangulamentos. As conclusões foram as seguintes: é urgente a formação de profissionais; faltam materiais e os profissionais não conhecem teologia nem liturgia; o clero é despreparado; é urgente a criação de comissões diocesanas de arte sacra e uma articulação nacional; os encontros nacionais, além de trocas de experiências, devem visar à formação. O final dos anos 80 e anos 90 são marcados cada vez mais pela redescoberta da iconografia oriental como criadora de uma espiritualidade tal que, inculturada às comunidades, plasma o espaço como lugar-símbolo de relação com o transcendente e unidade da igreja universal (cf. DONADEO, 1997, pp. 5-6). O terceiro Encontro Nacional de Arte Sacra aconteceu em Belo Horizonte (MG), nos dias 2 a 5 de agosto de 2001, na casa de retiro Santíssima Trindade. Nesse encontro, privilegiou-se a formação dos participantes. O Pe. Domingos ORMONDE desenvolveu o tema da “teologia da celebração” a partir de Claude DUCHESNEAU. Mais uma vez se abordou a falta de conhecimento de arte das lideranças nas adaptações de uma liturgia inculturada. Além disso, não há uma unidade e sim um subjetivismo litúrgico e artístico que atrapalha a organização do espaço sagrado. Procurando atender aos pedidos que vêm das casas de formação e da necessidade que se faz sentir no dia a dia das celebrações, a equipe responsável pela liturgia e arte sacra tentou introduzir a disciplina de Arte Sacra no ementário da OSIB. Hoje, no Brasil, há vários encontros regionais e diocesanos sobre o assunto, além de especializações e atualizações. Todavia, antes de qualquer coisa, a criação da comissão diocesana de arte sacra é uma necessidade urgente. Os encontros nacionais têm, hoje, o objetivo de preparar profissionais para que possam ser referências regionais no que tange à arte sacra. Como grande conquista, a faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção criou o curso de pós-graduação 24

em Arte Sacra, por sugestão dos bispos responsáveis pela Liturgia nos Regionais da CNBB, encabeçado por D. Geraldo. Infelizmente, o curso acabou fechando em 2006. Este mesmo curso, hoje, acontece em Porto Alegre (RS). A arte sacra deve ser levada mais a sério. Muitos desafios ainda persistem para a renovação litúrgica e consequentemente para a iconografia: falta a formação artística nos seminários, para os agentes e profissionais; necessita-se de uma inculturação sadia do espaço sagrado e da iconografia, que leve em conta a realidade social, cultural e geográfica; os meios de comunicação de massa católicos devem divulgar o que é liturgicamente correto e belo. Por outro lado, temos muitos profissionais capazes. É preciso a orientação. Além do livro Arte para a fé, de Monsenhor Guilherme SCHUBERT, publicaram-se nos últimos anos várias bibliografias de Cláudio PASTRO, foram traduzidos os textos de Irmã DONADEO e Gaetano PASSARELLI sobre iconografia, e outros, e da arquiteta Regina C. A. MACHADO. São as artes plásticas e a arquitetura somando forças para realmente buscar nas fontes da arte cristã aquela arte genuína que configurou o espaço sagrado na Igreja primitiva nos seus primeiros séculos. O ícone na arte bizantina foi a expressão máxima desta arte, que comunicou a presença do Deus Uno e Trino na comunidade de fé. A igreja edifício, que funde escultura, iconografia e arquitetura (unidade plástico-construtiva), é o lugar no qual o Deus escondido se manifesta, transfigurando a matéria através da Liturgia.

2.2 A iconografia bizantina Para o artista e os amantes da arte, que estão no contexto ocidental, torna-se difícil compreender a arte bizantina, porque, muitas vezes, vêmo-la presa a códigos e regras que não podem ser transgredidos. Corremos o risco de dizer que essa arte não se interessa pela novidade, pela criatividade ou pela atualidade pictórica. Porém, ao estudarmos as antigas e modernas escolas de iconografia, percebemos que cada uma delas tem suas nuanças, formas e cores trabalhadas com liberdade pelos artistas, sem, contudo, cair no subjetivismo. A arte bizantina conheceu seu ponto máximo no ícone (do grego eicon), que significa imagem. A arte de Bizâncio, apesar de sua suntuosidade e resplendor, começou a ser prefigurada nas catacumbas: “As pinturas das catacumbas já são indicadoras do comprometimento entre arte e a doutrina cristã que será cada vez mais firme [...]” (PROENÇA, 2003, p. 46). O imperador Teodósio, em 395, dividiu o Império Romano em Ocidente, sediado em Roma, e Oriente, sediado em Constantinopla (antiga Bizâncio). Fundada por Constantino, em 330, Constantinopla, por sua posição estratégica entre Europa e Ásia, passa a reinar absoluta, já que no Ocidente o império Romano caía em 476. O império Bizantino, como passou a ser denominado o império Romano do Oriente, alcançou seu apogeu político e cultural sob o governo de 25

Justiniano (527-565). A arte cristã primitiva, que era simples e popular, assume caráter majestoso e não menos teológico e espiritual. Não entramos na discussão se a “[...] arte bizantina tinha por objetivo expressar a autoridade absoluta do imperador, considerado sagrado (exemplo: Justiniano), representante de Deus e com poderes temporais e espirituais” (idem, p. 47). Falando em matéria de arte sacra, podemos dizer que nessa evolução, do período das origens até Justiniano, houve a formação da “imagem de Cristo” até sua plena definição dogmática e iconográfica. A iconografia contém, em si mesma, história, tradição, simbolismo, teologia e arte. Para estudar todos estes aspectos, é necessário nos introduzirmos na vida da Igreja. O ícone está profundamente relacionado com a história da Igreja e da arte (cf. BOSCHKOWITSCH, 1989, p. 8). É uma arte que não nasceu para si, mas para a Igreja e desde a Igreja. Assim, ela foi se moldando diretamente pelas necessidades e finalidades mais profundas da Igreja: fundamentação da fé, da realidade espiritual, na imortalidade da alma e na bem-aventurança que está em Deus. A Igreja estabelece seu Credo e seus dogmas para evitar os erros. “Esta teologia era exposta e interpretada no púlpito [...]. Mas faziam-se necessários – especialmente para os mais simples – outros comentários mais empíricos. Para estes fins, buscou a Igreja Oriental o auxílio da pintura” (KALOKYRIS, 1980, p. 15). Assim, estava entrelaçado o ícone com a evolução e tradição da Igreja. A arte do ícone é simbólica, pois o símbolo é, em si mesmo, a presença do que simboliza. Ele nos faz entrar em intimidade com o Antigo e o Novo Testamentos e a vida dos santos. Podemos dizer que é uma “Teologia do Nome”, pois se utiliza o nome, o título, como símbolo perfeito. Este sinal, nome, identifica a presença e explica a passagem bíblica a que se refere o ícone. É uma “Teologia em cores”: as cores empregadas não têm critérios apenas estéticos, mas significado teológico. A Igreja Oriental define teologicamente o ícone em função do dogma trinitário e sobretudo permite entender o ícone em função da Encarnação do Filho de Deus. Para compreender a teologia que brota da contemplação do ícone, temos de conhecer a teologia patrística. É com os Santos Padres que se dá a exposição e a estruturação do dogma trinitário e a defesa da fé (cf. KALOKYRIS, 1980, p. 15). O ponto nevrálgico para a profissão de fé na Santíssima Trindade é a “pessoa” – hipóstasis. É na pessoa do Deus Uno encarnado que se baseia a veneração dos ícones. Venerar é considerar que uma coisa é digna de respeito pelo que ela representa ou recorda – símbolo do sagrado. Para o oriental, se veneram a Santa Cruz, os Evangelhos e os Ícones. A sagrada iconografia é um dos legados mais preciosos que a Igreja Oriental soube manter e traduzir. É a expressão da arte sacra por excelência: “[...] é um prolongamento do mistério da encarnação, da descida do divino no humano. [...] tem 26

valor sacramental e é simbólico, sinal de união” (PASTRO, 1999, p. 82). Essa arte que a cultura bizantina forjou ao longo do tempo, com muita dedicação e até as lutas sangrentas dos séculos VIII e IX (questão iconoclasta), não foi outra coisa senão a aventura espiritual de aperfeiçoar a própria imagem de Cristo, razão da vida do crente. No Ocidente, isso foi amputado em razão do naturalismo e a secularização que a arte sacra absorveu no Renascimento (séc. XV) e em seus sucessivos períodos.

2.2.1 “Voltar às fontes" Em 1054, a Igreja sofreu o grande cisma. No Ocidente, ficou a Igreja Católica Romana (latina), no Oriente, a Igreja Ortodoxa (bizantina). No Oriente, conservou-se a ortodoxia da arte sacra. No Ocidente, apesar da arte românica e pré-gótica seguirem um padrão sacro, houve no século XVI uma crescente busca do artista por uma representação naturalística e antropocêntrica de “temas religiosos”. A arte sacra ocidental foi caindo no subjetivismo da livre expressão artística e, simultaneamente, secularizando-se: “A arte como expressão de temas religiosos apresenta o refinamento de uma sociedade financiada por nobres e burgueses com uma estética retratando mais a época que o Evangelho em si [...]. Cristo, a Mãe de Deus e os apóstolos tinham os costumes de então, quando não eram os mecenas e suas famílias que eram retratados como personagens” (PASTRO, 2001, p. 11). Esteticamente, com a Reforma protestante (séc. XVI), travou-se uma batalha. Os protestantes dedicaram-se à música, os católicos contra-atacavam com o triunfo e a sensualidade plástica do barroco. O barroco e o rococó são os estilos que marcaram a Contrarreforma tridentina. Porém, por inércia ou falta de formação estética, esses estilos ainda são padrão para grande parte dos formadores de opinião no Ocidente. É o símbolo de uma Igreja aonde o Concílio Vaticano II ainda não chegou. Quando falamos de arte sacra, falamo-la a partir de sua natureza, ou seja, como extensão da liturgia. Vimos que o Concílio Vaticano II propôs insistentemente uma “volta às fontes”. Antes do Concílio já se bradava por uma “liturgia renovada”, que atendesse aos novos “sinais dos tempos”. O contato com civilizações estranhas à europeia exigia um repensar a teologia, a evangelização e a liturgia. Além disso, a arte se tornava cada vez mais acadêmica, secular e elitista, não sendo mais veículo de comunicação entre as pessoas e as classes. O Espírito Santo suscitou na Igreja “novos ares” através do Concílio, na década de 60: “E a arte como expressão do belo, da presença, da glória de Deus em nosso meio, não poderia mais ser a mesma dos últimos séculos” (idem, p. 13). A estética cristã, por muito tempo, amparou-se no Crucificado, expresso com naturalismo tal que suscitava mais pena do fiel do que confiança no poder e na misericórdia de Deus. Com a proposta conciliar de volta às fontes, o Cristo é 27

representado como nos primeiros séculos, o “Pantocrator”, poderoso e misericordioso. É a estética bizantina redescoberta em nosso tempo como profunda experiência cristã da Beleza em si. “Esse foi o grande trunfo da arte pré e pós-conciliar, fruto da unidade que se vislumbra, contribuição da Igreja oriental” (idem, p. 15). A Igreja latina, bebendo da estética oriental, realiza aquele sonho ecumênico do papa João Paulo II, expresso na Ut unum sint, de que “[...] a Igreja deve respirar com os dois pulmões”: a Igreja latina e a ortodoxa, expressão usada por Soloviev. A iconografia “escreve” objetivamente o mistério como extensão da Palavra que se celebra na comunidade de fé. A Palavra se encarnou e cristificou o mundo. Pela liturgia, “devolvemos” os louvores ao Deus Criador, sendo o ícone a janela dessa grande ação de graças que o ser humano presta ao Mistério invisível.

2.2.2 O ícone e a arte em geral Até o século X, a arte da iconografia se manteve dentro dos parâmetros da arte bizantina, tanto no Oriente como no Ocidente. A partir daí, autores italianos (CIMABUE, GIOTTO e DUCCIO) introduziram na arte sacra a ilusão óptica: profundidade, perspectiva e o claro-escuro. Foi a procura do realismo na representação dos santos personagens. A arte sagrada do ícone, que antes se preocupava mais com o símbolo e a presença do sagrado, a partir do século X, caminha para o naturalismo. Os artistas começam a trabalhar “temas religiosos” e os símbolos perdem a riqueza do mistério. No século XIII, o pintor mais importante é Giovanni GUALTERI: “Conhecido como Cimabue [...], é ainda influenciado pelos mosaicos e ícones bizantinos, mas já existe uma nítida preocupação com o realismo das figuras humanas [...]. Procura dar algum movimento às figuras [...], através da postura do corpo e do drapeado das roupas” (PROENÇA, 2003, p. 74). CIMABUE descobriu o talento de um jovem pastor, Ambrogiotto BOMDONE, conhecido como GIOTTO (1266-1337). Foi mestre do jovem por dez anos em Florença. A maior parte das obras de GIOTTO foram afrescos para decoração de igrejas. A característica principal da pintura de GIOTTO era a identificação das figuras dos santos com as pessoas de aparência bem comum. “A pintura de Giotto vem ao encontro de uma visão humanista [...], que vai cada vez mais se afirmando até ganhar plenitude no Renascimento” (idem, p. 75). A arte no Ocidente começa a se separar do âmbito de presença do transcendente, rompe com os cânones da Tradição e passa a caminhar paralelamente ao mistério litúrgico. Os personagens, a partir de CIMABUE e GIOTTO, reproduzem a “carne” (o natural) e não a Encarnação: os santos são vestidos em ambientes contemporâneos; os relatos bíblicos, tomados ao pé da letra, são apenas ocasião para se executar um retrato com o maior esmero de anatomia, 28

botânica e detalhes; o que se quer reproduzir é o natural e não o símbolo que nos une ao mistério do divino que se encarnou em Jesus Cristo. No Renascimento, com o financiamento das artes por parte da burguesia, não se hesitava em representar nas obras “religiosas” a face do mecenas que encomendava a obra. Os artistas se exercitavam em temas religiosos com total ausência do sentido religioso. Começa aí uma “arte subjetiva”. Apela-se aos sentimentos e à piedade e não ao místico e ao mistério celebrado na liturgia. Como algumas lideranças da cristandade do século XV vivessem de muita aparência e imoralidades, a arte, que é também produto de uma época, transmitiu os sentimentos dessa classe. Não importava a comunicação do sentimento religioso experienciado na mística e na Palavra de Deus, mas apenas a superficialidade, a riqueza material e a habilidade do artista. Com isso, “[...] as pessoas ficaram sem uma visão religiosa de mundo. E, não tendo essa visão, não podiam ter nenhum outro padrão para avaliar a boa e a má arte, a não ser o prazer pessoal. Tendo reconhecido o prazer – isto é, a beleza – como padrão do que é bom, a aristocracia europeia voltou-se, em sua compreensão de arte, para o rude entendimento dos gregos primitivos, já condenado por Platão. E, em correspondência a essa compreensão, tomou forma entre eles uma teoria da arte” (TOLSTOI, 2002, p. 89). A teoria da arte no Ocidente renascentista, então, passa a ter como padrão a “beleza”, ou o prazer proporcionado pela arte. O objetivo da arte passa a ser essa beleza prazerosa. Muitos autores (idealistas e românticos) afirmaram que isso tinha fundamento já com os antigos gregos. Para os gregos, porém, a ideia de belo (το καλον = to kalon) não era distinta de bem (το αγαθον = to agaton), o que se faz compreender Aristóteles, quando diz que a arte deveria afetar as pessoas moralmente (καθαρσιζ = catarsis) e não meramente de forma hedonista. Assim, não podemos falar de uma arte cristã no Renascimento como falamos dela antes dessa época. É um tempo em que o conhecimento (experiência) se separa da contemplação. “Desde aquela época, estes dois aspectos do homem moderno nunca mais se encontraram. Com o correr dos séculos, e à medida que se ampliava o conhecimento da natureza e suas leis, essa divisa mais se alargou; e ainda hoje em dia separa a psique do cristão ocidental” (JUNG, 1964, p. 245). A partir do século XVIII, a arte começa a quebrar o vínculo entre conteúdo e forma. Mergulha-se “[...] progressivamente na noite das rupturas, até chegar à abstração pura” (BUSCHKOWITSCH, 1989, p. 20). O ser se esvazia de seu conteúdo essencial, desmaterializa-se. Destrói-se o real. A realidade simples não é mais objeto expressivo. Na sua busca por originalidade, o artista contemporâneo perde o mistério e chega a uma “abstração docética”. Isso já começou na Arte Moderna, como diz o 29

próprio Pablo Ruiz PICASSO (1957, p. 231): ” A ideia de 'buscar' conduz a alguns de nossos pintores à abstração. Esse foi provavelmente um dos erros mais graves em que incorreu a arte moderna. O espírito da 'investigação' envenenou a todo aquele que, não podendo compreender o lado positivo da arte moderna, empenha-se em pintar o invisível que não pode representar dentro da arte”. A arte sacra tem uma grande missão no Ocidente. A arte contemporânea, além de perder sua comunicabilidade com a maioria dos “mortais”, perdeu seu referencial de Beleza Transcendental. É um drama que demonstra profunda problemática. A busca incansável pelo original fez o artista negar o naturalismo, tão caro aos renascentistas. Em outras palavras, após ter-se desvinculado do religioso-místico (período renascentista), o artista se desvincula do científicorealista (contemporaneidade). O resultado foi o mergulho no “vazio terrível”, despido de alma e matéria, “arte pela arte”. Segundo JUNG, o artista como termômetro de um tempo penetrou no dilema existencial do ser humano moderno e/ou pós-moderno: a falta de sentido, do belo, da vida; o “desencantamento” da realidade. Os artistas dadaístas e surrealistas, movimentos de vanguarda da arte europeia, entre 1917 e 1924, declaram a “morte da arte”. A arte sacra, no Oriente, também teve sua “evolução” na história. Ela também abstraiu do mero real. Porém, em seu conteúdo e forma, não desprezou a matéria, a representação objetiva. Isso porque o mundo foi transfigurado pela encarnação do Senhor. Lá não houve o dualismo entre o abstrato e o figurativo, como houve no Ocidente – fruto de um outro dualismo filosófico-antropológico e teológico: corpo e alma. Essa dicotomia da realidade que herdamos do platonismo, via filosofia agostiniana e cartesiana, teve forte influência na arte. Sendo assim, recuperar a arte sacra no Ocidente, ou ir às fontes, é também oferecer uma proposta de transcendentalidade ao ser humano pós-moderno, que perdeu o sentido do Belo, da natureza criada, da vida. A liturgia renovada, em seus símbolos, evangeliza propondo uma libertação integral da pessoa. O sentido da vida brilhará no símbolo do Pantocrator, o Poderoso e Misericordioso que não abandonou sua criatura. É nele que nos movemos e somos (cf. At 17,28). "Desde que as classes superiores das nações cristãs perderam a fé no Cristianismo da Igreja, sua arte se tornou separada do povo e passaram a existir duas artes: a do povo e a dos senhores” (TOLSTOI, 2000, p. 100). Essa grande divisão só poderia levar a uma expressão elitista da arte, que pretendeu, por muito tempo, estar desvinculada do folclore, da religião e da ética. No entanto, vemos, hoje, que a “arte pela arte” é vazia, não comunica, não une as pessoas por um sentido comum. Já a arte Oriental, por sua vez, guardou na tradição cristã o referencial de sentido. Ela nos comunica Aquele que é o sentido do ser criado. Ela nos une, pois tem um trânsito maior do que qualquer outra disciplina entre as tradições Oriental e Ocidental. O Ocidente experimenta, hoje, essa volta às origens das primeiras comunidades 30

cristãs e, com a dinâmica desse resgate, a iconografia é a prova plástica de que o cristianismo, em sua raiz, é eterno e tem uma mensagem para todos os tempos e lugares.

2.2.3 A arte do ícone O ícone é a materialização de uma longa história de reflexão e meditação sobre os dogmas da fé. Poderíamos dizer que é a teologia em traços e cores, formas e conteúdos da tradição cristã. A iconografia não foi inventada pelos artistas, como os diferentes estilos artísticos que se multiplicaram no Ocidente. Ela é uma tradição da Igreja em uma regra firmada. É uma arte a serviço da fé, sem, contudo, escravizar o talento e a criatividade do artífice. Etimologicamente, a palavra ícone, do grego eikon, significa imagem. Embora hoje o termo seja usado no mundo da arte em geral e até da informática, ícone ainda significa pintura sacra, executadas em retábulos de madeira no estilo bizantino, de origem grega ou russa. Nas igrejas orientais, ele tem lugar proeminente, diferente das imagens no Ocidente. Na liturgia ortodoxa, eles fazem parte do rito, não são uma mera decoração ou capricho estético. “Acredita-se que, por seu intermédio, os santos exercem seus poderes benéficos, os ícones governam todos os acontecimentos importantes da vida humana e são considerados instrumentos da graça” (KALA, 1995, p. 9). As origens dessa arte sagrada remontam ao período histórico dos evangelhos. Os primeiros protótipos foram os retratos de Fayum, no delta do Nilo (Egito), pertencentes a uma religião que ali se desenvolveu entre os séculos I a.C. e III d.C. Eram figuras feitas em relevo de sarcófagos. Era uma arte com função funerária. Os ícones eram figuras naturalistas, mas tinham as expressões do rosto vigorosas e idealizadas espiritualmente. “Eram feitas em retábulos de madeira fina, que eram colocados por cima do rosto do morto, na superfície do sarcófago e, às vezes, completadas com inscrições que serviam de identificação. Os cristãos de Alexandria adotaram com toda naturalidade o costume local, e colocaram retábulos encáusticos semelhantes nos túmulos de seus eremitas e mártires” (idem). Os ícones de Cristo mais antigos, no entanto, são os do Convento de Santa Catarina, no monte Sinai (séculos V e VI). Antes, as representações de Cristo eram mais simbólicas (pastor, peixe, cordeiro). Apesar de se ter mudado a essência do mistério presente no ícone cristão, a técnica continuou sendo a mesma dos egípcios do delta do Nilo: encáustica de cera. Já as cores são pigmentos de fonte mineral que se juntam à cera. A cera era quente e moldava-se enquanto era manipulada. Essa técnica dominou o mundo cristão até o século oitavo, quando surgiu o iconoclasmo. A partir daí, apareceu a técnica de usar o ovo como aglutinante, em vez da cera. Até a época moderna, essa têmpera foi a técnica oficial na confecção 31

do ícone. O óleo não foi assumido. Durante séculos, os ícones foram pintados por contemplativos. Eles formavam uma equipe de trabalho, mantendo-se a tradição de determinada escola supervisionada por um mestre. A inspiração vinha da tradição da igreja bizantina. Os ícones eram então bentos segundo um ritual. Tornavam-se objeto de veneração especial para os fiéis. Na liturgia, eles são incensados, levados em procissão, ocupando um lugar de destaque naquele rito. O desenvolvimento da arte do ícone é simultâneo e impulsionado pela ascensão de Constantinopla como o grande centro de cultura, já que era a capital do Império Romano do Oriente. A sucessão de concílios da Igreja, que definiram diversos dogmas, somou um grande fator de força espiritual para a iconografia. Quando o Concílio de Éfeso (431) proclamou Maria como Mãe de Deus, Theotókos, o impulso à veneração de imagens foi bastante grande. Maria foi declarada padroeira da cidade imperial de Constantinopla no início do século VII. O entusiasmo da veneração levou, por outro lado, a acender uma controvérsia: a questão iconoclasta (725-843). Alegava-se que os ícones estavam sendo adorados, o que só podia ser feito a Deus. Com o apoio do imperador Leão III Isáurico (717-741), foi suprimido oficialmente o ícone. Sucessor de Leão, Constantino I Coprônimo no concílio de Hieria (754) condena as imagens. Todavia, a querela mereceu outro concílio, o II concílio de Niceia (787). Nesse, definiu-se que a reverência prestada à imagem era dirigida à pessoa representa e não à imagem em si. Niceia II tornou-se possível com a ascensão de Irene, regente de Constantino VI, seu filho, que tinha apenas 10 anos. “No decurso dos debates, foram rebatidas as acusações dos iconoclastas, foi colocado o caráter tradicional dos ícones na Igreja, foi reafirmada a legitimidade da arte do ícone e a liceidade de culto. Foram também reabilitados os defensores das imagens precedentemente condenados e anatematizados, ao contrário, os inimigos dos ícones” (GHARIB, 1997, p. 21). Como grandes defensores da arte iconográfica, nessa época, merecem destaque Germano de Constantinopla e João Damasceno. São célebres as palavras de São João na defesa das imagens sagradas: “Nos tempos antigos, Deus, incorpóreo e sem forma, não podia ser representado sob nenhum aspecto; mas agora, que Deus foi visto mediante a carne e viveu em comunhão de vida com os homens, represento o que de Deus foi visto” (apud GHARIB, 1997, p. 13). Os defensores do ícone elaboraram uma sólida teologia sobre o tema, baseada sobretudo no mistério da Encarnação do Verbo. A “vitória de Irene”, como ficou chamada a primeira vitória da iconografia contra o iconoclasmo, porém, não 32

durou muito. Em 813, subia ao trono Leão V, o armeno (813-820), que reconhecia as atas de Heiria (754), que proibiam as imagens. Seu curto reinado, todavia, termina com a ascensão do imperador amante da teologia, Teófilo (829842). Com a morte de Teófilo, Teodora é feita regente do filho, Miguel III, que tinha pouca idade. Teodora reuniu um sínodo em 843, onde se definiu o restabelecimento do culto e da arte dos ícones. A iconografia estava salva. Nesse dia, a igreja bizantina passou a comemorar o “Triunfo da Ortodoxia”, que é celebrado no primeiro domingo da quaresma. A controvérsia iconoclasta refletiu o conflito das tradições do povo semítico e islâmico com as dos gregos, que consideravam as artes plásticas essenciais para sua cultura. São João Damasceno (675-749) ensina-nos que “[...] os ícones nos relatam em figuras o que os evangelhos nos contam em palavras. Esse ensinamento tem relação direta com a consolidação dos ícones como teologia visual e parte integrante da liturgia” (apud KALA, 1995, pp. 12-13). Nenhuma arte foi defendida com tanta bravura como aconteceu com o ícone. Isso ocorreu devido à sua identificação com a tradição cristã. Assim, a arte de pintar um ícone requer estilo especial, que não é expressão subjetiva (pura forma), nem, contudo, imitação naturalista (puro conteúdo). O ícone é teologia visual, Sagrada Escritura em quadros e painéis. Por isso, o vocábulo “iconógrafo” significa alguém que escreve ícones. A pintura de ícones é uma espiritualização da matéria, que reflete a Encarnação, o aparecimento de Deus na terra. O talento para o iconógrafo não basta. Para o artista que se propõe a executá-lo, é um caminho de espiritualidade, forma de vida. Para se “escrever” um ícone, é necessário a ascese, a humilde paciência, o silêncio e a oração. Um ícone não pode ser objeto de juízo apenas da estética (entendida aqui como filosofia da arte). Ele não nega a beleza sensorial, mas transcende-a. Para o ocidental, além de uma profunda psicologia dos símbolos, ele também requer principalmente uma teologia. “O ícone não é a beleza tal como concebe a arte profana, senão a verdade que descende e se veste com suas formas. O ícone relaciona dois infinitos: a luz divina e o espírito humano” (BUSCHKOWITSCH, 1989, p. 15). O ícone, não se atendo aos detalhes, é como a Palavra de Deus, só mostra o essencial. Por isso, renuncia-se à expressão naturalista do espaço. E, ao relacionar a luz divina com o espírito humano, a arte do ícone representa uma cena em que o espectador não olha sem participar. Ela representa o que é de mais profundo no ser humano, unindo o artista com o espectador. É a experiência que tanto defendia TOLSTOI: a arte como comunicação de um sentimento comum (o Espírito de Deus mora no mais profundo do ser humano). É a comunicação entre a experiência do artista (sua espiritualidade) com a contemplação do espectador. Ora, se a experiência do artista é a Beleza divina, o espectador experimentará esse mesmo deleite perante a obra, o ícone. Há um “contágio” do kalós (belo, bom e verdadeiro) 33

que nos une na experiência de Deus. A regra iconográfica preserva o artista do subjetivismo impressionista e romântico. Porém, mesmo sem abandonar a tradição cristã, o iconógrafo pode modificar o ritmo da composição da obra. Suas linhas, contornos e certas cores e seus matizes apontam para o que é próprio de cada artista. Como exemplo: “Iconógrafos como André Rublev e Teófanes o Grego pintaram ícones com a mesma composição e sobre o mesmo tema; e é assombroso constatar que, apesar de suas semelhanças, não há um igual ao outro. Não é possível encontrar dois ícones idênticos, nem mesmo se são feitos por um mesmo iconógrafo. Cada ícone, cada iconógrafo, cada escola têm seu próprio selo” (idem, p. 16). Atualmente, presenciamos uma crise da arte sacra. Todavia, como diz EVDOKIMOV, “[...] a crise atual da arte sacra não é estética, mas religiosa” (idem). A arte sacra no Ocidente, como vimos, especializou-se sobre “temas religiosos” que seguem as leis ópticas do impressionismo. Constituem uma visão do que “está aqui” – naturalismo. Os princípios dessa arte estão em função de uma exteriorização, de separação, de distância do espectador. Já a iconografia, pelo contrário, busca um estado de interiorização, de união e comunhão com o espectador. O ícone não é cópia do real, da natureza. Ele sugere uma estrutura esquemática do mundo (harmonia). Por meio de figuras geométricas, desenham-se as escarpas de uma arquitetura surrealista. As plantas e animais estilizados não têm valor por si mesmos, só reforçam o significado dos personagens. A natureza, todavia, é valorizada em sua finalidade última. A matéria está viva, “[...] a arte do ícone mostra que a encarnação alcançou realmente a matéria, chegando de verdade até ela, que a iluminou secretamente e lhe devolveu sua sacramentalidade fundamental. Em Cristo, a matéria se tornou espiritual, ficou impregnada das energias do Espírito. Assim, o rosto do homem devém o sacramento da Beleza” (MALDONADO, 1980, p. 13). Por isso, os corpos são representados sem exaltações anatômicas. Deforma-se voluntariamente para emergir a potência interior. Por outro lado, aparece a desnudez através do drapeado da roupa nos ícones. Essa desnudez se mostra como um “vestido de glória”. Não aparece sensualidade, mas corporeidade espiritual através das linhas bem definidas. A carne se veste de espaço luminoso com a desnudez anterior à queda do pecado. Outra característica básica do ícone, seja antiga ou moderna, é a liberdade em relação ao espaço-tempo. O objetivo não é a descrição de um fato ou a narrativa histórico-científica, como o fez, por exemplo, Victor MEIRELLES ao pintar a “Primeira Missa no Brasil”. A iconografia inverte a perspectiva, faz com que todos os tempos e lugares convirjam em um ponto. A experiência de Deus não é privilégio de uma época e de um povo apenas, mas de toda a humanidade. A 34

composição não se encerra entre os muros do tempo-espaço. Tudo é presente, sempre e para sempre. No Ocidente, a arte figurativa modela-se em três dimensões: base, altura e profundidade. O iconógrafo organiza sua composição apenas em base e altura e não usa a profundidade. No largo da superfície pintada, o ícone parece sair e avançar para fora, ir ao encontro de quem o contempla, efeito este que a profundidade comprometeria. Assim, em quase todo ícone, principalmente os modernos, as cores em chapas dispensam o uso do claro-escuro, ou profundidade fictícia. O que define a profundidade, além do claro-escuro das cores, é a perspectiva. A perspectiva, tal como estudamos academicamente, é um produto do Renascimento. Ela consiste no estabelecimento de um cone óptico entre o objeto e o olho do espectador, determinando um ponto de fuga, onde as linhas se encontram. Esse ponto se situa na linha do horizonte. Os objetos, quando mais afastados, ficam menores. Todos são proporcionais à distância e à ilusão de profundidade. Um exemplo clássico é a “Santa Ceia” (1495-1498), de Leonardo da VINCI: se colocarmos uma régua nas linhas que compõem o teto, as linhas da parede e da mesa, veremos que elas atingirão um mesmo ponto convergente na testa de Jesus, que é o centro da composição. Esse é o modo de apresentar os objetos científica e matematicamente no espaço. Na arte do ícone, podemos falar de uma “perspectiva invertida” (cf. BOSCHKOWITSCH, 1989, p. 18): esta perspectiva consiste em que o ponto de fuga entre o cone óptico e o objeto não se situe atrás do quadro, mas à frente, no espectador. Os objetos aqui não se localizam em forma proporcional à sua distância, não há ilusão de profundidade. As linhas se dirigem em sentido inverso. O ícone se volta no sentido do espectador, os personagens “saem” ao seu encontro. Esta perspectiva inversa não é o modo matemático-científico, mas o espiritual, que vem ao encontro. Esta perspectiva é concebida através do uso das cores chapadas, que se alternam desde as chapas e traços mais escuros (terra de siena e terra-queimada) até os ocres mais claros, desde os azuis ultramarinos até o branco. Essas cores mudam conforme o tema, a escola e o sentido da composição. Há cores, porém, que se identificam com a contemplação da divindade (azuis), com a natureza terra (ocres), com o Espírito Santo (vermelhos) e outras, que não podem ser mudadas a bel-prazer. A arte do ícone, enfim, tem uma história de muito fervor, dedicação e criatividade orantes. Isso não seria fato se ele não fosse obra de um único autor – o próprio Espírito Santo, que a tudo anima. O artista de hoje, amante da liberdade de expressão, encontrará na iconografia mais que uma procura insaciável pelo original, pelo novo. Ele encontrará, sim, o sentido de sua busca pela Beleza. Quem mais quer a harmonia do universo que o próprio Espírito, que expulsou o caos 35

como um vento impetuoso (Gn 1,2)? A iconografia não é anacrônica. Vemos no Ocidente uma redescoberta dessa arte como experiência cristã da beleza. Voltar às raízes da Igreja primitiva implica também a inspiração naquela arte mais identificada com esta Igreja, que realmente tem uma preocupação única: comunicar a beleza que Deus realizou em nós através do “rei dos sentidos”, como dizia Da VINCI, o olho.

2.3 O ícone e o artista Para o Concílio Vaticano II, a arte sacra está relacionada à infinita Beleza Divina, e o artista, através de sua espiritualidade e de sua experiência religiosa, quer expressar isso na sua obra. Ele passa a ser instrumento de Deus na conversão dos corações (cf. SC 122). O artífice não atende aos seus interesses particulares mas se doa a algo muito maior que se lhe impõe. “Frequentemente, a pintura representa muito mais do que o pintor pretende expor. O pintor contempla, então, com assombro os resultados inesperados” (PICASSO, 1957, p. 231). Daí se explica o espanto que muitos artistas têm ao completar uma obra, sentem como se aquela beleza não tivesse saído de suas mãos. À medida que o autor executa uma obra, ele é convertido por ela num processo eterno de aperfeiçoamento. Nesse caso, podemos dizer que não é o artista que faz a obra, mas a obra que faz o artista. Podemos comungar com JUNG, quando diz “Não é GOETHE quem faz o Fausto, mas sim [...] Fausto quem faz GOETHE” (1964, p. 91). Seu interesse pessoal fica em segundo plano. O autor mesmo é o Espíri-to criativo, uma das mãos do Pai que eclode em formas e cores, por meio da técnica e talento do artista. O inefável se mostra e chama para si a pessoa através de um instrumento, o artista sacro. O iconógrafo nos une num sentimento comum de maravilhar-se com Deus. O artista sacro tem uma missão grandiosa. “Quando um artista se converte em iconógrafo, encontra sua verdadeira vocação em uma arte sacerdotal, cumprindo com o sacramento teofânico e mostrando o lugar onde 'Deus desce e faz sua morada'” (BOSCHKOWITSH, 1989, p. 21). Por isso, o artista sacro tem consciência de que sua missão é transfigurar a realidade, enquanto a missão de outro artífice é transformá-la (cf. PASTRO, 1998, p. 8). Em um antigo manual do Monte Athos, indica-se que, para a execução de uma obra iconográfica, é necessário a vigília, a oração com lágrimas, para que Deus penetre na alma do artista, porque é uma arte divina que Deus mesmo nos transmite (cf. DONADEO, 1997, p. 90). Também se diz nesse manual que, segundo a tradição, são Lucas, o evangelista, foi o primeiro iconógrafo e nos indica que a ele rezemos. Diz ainda: “Dessa maneira, a inspiração do Evangelista e do iconógrafo, sem identificar-se, assemelham-se em nível de revelações do Mistério” (apud BOSCHKOWITSH, 1989, p. 24). O ícone canta a glória e a Beleza de Deus. Ao executar a obra, o artífice se 36

inebria dessa luz. Segundo a tradição oriental, todo iconógrafo deve pintar o ícone da Transfiguração, para que Cristo mesmo brilhe com a luz incriada dentro do seu coração. A Transfiguração ensina o artista a pintar mais com a luz do que com as cores. O fundo da composição é iluminado pela “luz” e o método pictórico usado nos personagens e na natureza plasmada é a “clarificação progressiva”. Ao pintar o ícone, o artista recobre com tons escuros, logo recobre com tons mais claros em uma superposição de tons cada vez mais iluminados. É o movimento “das trevas para a luz” empregado na técnica pictórica pelo artista sacro. A obra lhe exige um progressivo caminho de iluminação que, aos poucos, transcende a pura técnica para ser parte integrante da espiritualidade do artista. Dessa forma, vai aparecendo a figura que surge de uma progressão que reproduz o crescimento da luz no ser humano. O artista plasma e ao mesmo tempo é plasmado pela Beleza divina, formando uma comunicação indescritível que, se for autêntica, comunicará esse deleite espiritual ao espectador. Todo o espaço sagrado é convite à experiência de Deus através dos símbolos. “Se a arquitetura sagrada do templo ordena o espaço, o memorial litúrgico ordena o tempo, o ícone marca a luz da forma interior. O ícone é: uma Escritura; uma Presença; uma Contemplação; uma Oração” (idem, p. 25). O artista e o ícone são os instrumentos responsáveis pela comunicação que a mão do Pai (Espírito Santo) faz na liturgia com a comunidade de fé. É um ensinamento teológico, uma participação litúrgica, uma comunhão, imagem transfigurada do céu na terra. A Igreja pós-conciliar tem consciência da “evangelização visual”, que tem na arte sacra uma aliada fundamental. Ela recorre ao nobre ministério artístico e, com autoridade e ternura, apresenta-se como amiga e juíza das Belas Artes a serviço da liturgia (cf. SC 122). O artista presta seu serviço não baseado numa “arte pela arte”, mas numa “arte pela Beleza divina”. Assim, não se prendendo a modismos, o iconógrafo tem consciência de seu papel na Igreja e na arte ocidental contemporânea: “Eu deixo o Mistério cristão em primeiro lugar [...]. Para tanto, busco formas limpas, ser econômico nas pinceladas e utilizar cores pastéis, chapadas, sem nuances ou preocupações de criar volume [...]. O que eu passo para um afresco nunca é a imagem de um Jesus que vai resolver as questões de um povo, lugar ou época, mas sim de toda a humanidade, de todos os lugares e de todas as épocas” (PASTRO, 1998, p. 10). O artista sacro ocidental, por fazer parte de uma longa história de desenvolvimento artístico diferente da oriental, será um iconógrafo que usará diferentes elementos e formas em sua pintura, sem perder o padrão da composição original do dogma. Um exemplo claro disso é a arte de Cláudio PASTRO. Esse artista sacro brasileiro não perdeu a serenidade original do ícone, mas suas cores vivas e formas dos traços dos rostos plasmam uma iconografia inculturada com a realidade brasileira. O traço oval do rosto de Cristo mostra um salvador mestiço, à 37

nossa imagem e semelhança. Como vemos, a iconografia apresenta ao artista ocidental um enorme trânsito de recursos que lhe permitem criatividade e liberdade, sem agredir o dogma em sua perenidade. A Trindade de RUBLEV, por exemplo, protótipo da composição da Trindade para todo artista oriental, sob o pincel de PASTRO (Indaiatuba, 1990), apresenta-se com três faces de Cristo idênticas em torno do Cordeiro. Foi Cristo quem revelou a face do Divino. As três pessoas idênticas revelam perfeitamente unidade e distinção num cenário de cores quentes e tropicais, que nos elevam à contemplação. O ícone, apesar de sua universalidade na forma, pode ser particularizado em um conteúdo que faz parte da cultura de um povo, sendo experiência de Deus no dia a dia, no tempo-espaço. A Igreja é aberta ao progresso da arte, para que os artistas, apesar de plasmarem o dogma em cores, “[...] se beneficiem daquelas mudanças que o progresso da técnica e da arte têm proporcionado no decorrer dos tempos, com relação à matéria, à forma e à ornamentação” (SC 122). O ícone e o iconógrafo, na Igreja ocidental, gozam de uma maior liberdade, o que não significa modismo e extravagância (cf. SC 123). A Igreja no Ocidente perdeu muito da serenidade na arte sacra ao ter financiado uma arte que atendia mais aos padrões estéticos da beleza sensível (renascentista), inspirada na mitologia e não na Sagrada Escritura. Hoje a tradição da arte oriental Bizantina apresenta-se com seu legado artístico maravilhoso, de uma arte sacra que não sofreu a secularização, como a ocidental. Assim, o Vaticano II, ao voltar às fontes de uma eclesiologia mais autêntica, abre espaço para uma volta da experiência cristã da beleza através da redescoberta do ícone da Igreja no Ocidente. O artista sacro ocidental saberá manter esse equilíbrio na medida em que se aprofunda na espiritualidade e na caminhada da Igreja – daí a necessidade da formação dos artistas (cf. SC 127). O artista ocidental, para se converter em iconógrafo, não pode criar para receber elogios das pessoas, mas porque, através de sua obra, a pessoa poderá chegar até Deus. Ele deve seguir a máxima do BATISTA: “Que Ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30). Outrossim, se a arte contemporânea não for comunicativa, se não provocar comunhão, estará encerrada num beco sem saída – não transcenderá mais. Na pós-modernidade, não são poucos os que falam de uma “morte da arte”. Como diz Arnaldo JABOR (Diário Catarinense, terça-feira, 27/05/1997), “A arte se fechou numa paranoia conceitual e minimalista [...]. Movidos pela ideia socrática [...], os artistas caíram numa denúncia melancólica das impossibilidades. Não há futuro para a arte subordinada à razão [...]. Prevalece a vertente 'triste' do modernismo [...], conceitual, que joga sobre o 'mau do mundo' apenas um vago mau humor, um criticismo sem nome [...]. Acho que está na hora de se criar um construtivismo positivo, em vez da destrutividade automática”. 38

O autor escreve esse texto intitulado “A arte morreu ou os artistas marcam bobeira?” ilustrando o ponto em que chegou a arte contemporânea. Não se lhe permite a transcendência. Dessa forma, ela tem de escolher entre viver para morrer ou morrer para viver. A morte que se anuncia, na verdade, é a morte de um paradigma de arte. De certa forma, isso é reflexo do pensamento pós-moderno, que decreta o fim das utopias modernas do progresso e da razão instrumental, aplicando-se isso também às concepções estéticas. Na morte, a arte encontrará sua ressurreição e, para o artista sacro, sua expressão se encontrará no ícone. Quando o artista se torna iconógrafo, encontra sua verdadeira vocação em uma arte sacerdotal (cf. BOSCHKOWITSH, 1989, p. 21). A iconografia, por sua própria natureza litúrgica, não tem pretensão de ser mais um estilo no Ocidente na gama que compreende o suposto progresso estilístico das sagas das artes de vanguarda. Entretanto, ela se apresenta como luz, referencial de sentido ante o tempo que exalta o sem sentido e o efêmero. A iconografia vem, de certa forma, na contramão dos estilos de vanguarda, não é mais um “ismo”, pois o seu sentido último não repousa na arte pela arte dos cânones estéticos ocidentais, mas no infinito, mediado pela Tradição da Igreja. Ela supõe a fé na Revelação e obediência à Tradição como estatuto, não invocando para si manifestos de defesa apenas à luz da razão, como fizeram os estilos contemporâneos. Por isso, para o artista ocidental, muitas vezes, essa arte é inadmissível. Ele está sobre uma coluna construída na razão. Precisará de uma grande kênosis (esvaziamento) para reconhecer a beleza do ícone sem preconceito. Em suma, o artista e a obra não se apresentam na realidade litúrgica como o solipsismo epistemológico sujeito-objeto. A relação entre ambos é mais profunda. O artista, ao criar, é criado, ao plasmar, é plasmado. A arte sacra permite isso, pois não é produto só da mão humana, mas do Espírito Santo. Se assim não fosse, ela não comunicaria nada além do subjetivismo do pintor. Desse discernimento espiritual do artista, fala muito bem o pintor, mosaicista e professor de espiritualidade oriental, Marko Ivan RUPNIK: “entre a pessoa humana e seu Senhor, há uma comunicação verdadeira que, para ter liberdade, vale-se dos pensamentos e dos sentimentos do homem. Os Santos Padres geralmente optavam pela linguagem simbólica, considerando-a a linguagem na qual a comunicação divino-humana se realiza mais autenticamente [...]. O homem experimenta sua identidade como criador da própria pessoa[...]. É a arte na qual o homem manifesta a si mesmo na criatividade” (2004, p. 13-14). A Igreja no Ocidente sempre buscou a ajuda dos artistas na missão evangelizadora. Nos dias de hoje, ela, a partir de uma liturgia renovada, exorta os artistas para que bebam das fontes da arte cristã, para transformar, ou melhor, transfigurar o mundo em Beleza. O Espírito Santo é o protagonista desse movimento, suscitando nos corações humanos a beleza do Cristo ressuscitado que oferece a criação restaurada ao Pai. Tornamo-nos partícipes desse caminho da Beleza através da Santa Liturgia. 39

2.4 A imagem de Cristo A primeira vez que se fala de imagem no livro do Gênesis se refere à pessoa humana e, simultaneamente, a Deus: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (1,25). O ser humano é símbolo, sacramento de Deus por excelência. Enquanto esteve em harmonia com Deus e com a natureza, esteve em harmonia com seu semelhante e consigo mesmo. Com o pecado da desobediência, o ser humano rompeu com Deus, passando a ser escravo da natureza, do outro e teve vergonha de si mesmo. Perdeu sua identidade primeira. A imagem e semelhança de Deus estava desbotada. Assim, a imagem de Deus passou a ser algo distante e, ao mesmo tempo, o ser humano passou a fabricar imagens, produtos de idolatria que preenchessem o seu vazio terrível. Não são poucas as vezes que, no Antigo Testamento, aparecem as proibições em relação às imagens. O povo de Deus vivia diariamente assaltado pela tentação da idolatria. Os povos vizinhos cultuavam muitos ídolos de escultura. Por isso, as proibições (cf. Ex 20,4; Lv 26,1; Nm 33,52; Dt 4,6). Ao mesmo tempo, porém, pelo fato de Adão, o velho homem, distanciar-se da Beleza da face de Deus, todo o Antigo Testamento é uma busca da verdadeira face. “Mostrai-me, Senhor, a vossa face” é a súplica contínua dos patriarcas aos profetas (cf. Gn 33,30; Ex 33,11; Nm 14,14; Dt 5,4; Sl 17,15; 44,24; Is 50,6; Os 5,15). Assim, a proibição de imagens pelo perigo de idolatria era, na Primeira Aliança, para preservar a imagem única que o próprio Senhor do Sinai guardava de si até preparar seu povo e revelar-se no Cristo Jesus, onde Ele se fez carne e nós pudemos contemplar a sua glória (Jo 1,14). A glória de Deus é o homem-Deus Cristo Jesus. Novamente toda a criação recebe a imagem de Deus, ela é novamente sacramento da Beleza em si. Com a natureza e o ser humano em harmonia, Deus mesmo vê que tudo é belo, bom e verdadeiro (cf. Gn 1). Cristo é o novo Adão, a sua imagem permite que “contemplemos” Deus face a face, pois “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação” (Cl 1,15). A Encarnação será o fundamento da iconografia. As duas palavras “arte cristã”, entretanto, constituem um problema se considerarmos que Jesus de Nazaré nada disse sobre a criação artística. Nem tampouco, em seu anúncio do Reino de Deus, exigira a contribuição das artes plásticas. Por ser judeu, Jesus participava daquele espírito expresso na lei mosaica: “Não farás imagens” (Ex 20,4; Lv 19,4). Por outro lado, o cristianismo herdou a fé na encarnação do Verbo, que deu ao testemunho dos sentidos um valor fundamental: “Filipe, quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,8). Todavia, nos primeiros séculos, os cristãos tiveram de alimentar uma sensibilidade refratária em relação às imagens, ainda havia o perigo da idolatria. A 40

arte se desenvolveu nas primeiras comunidades adotando uma linguagem simbólica (cf. PLAZAOLA, 2001, p. 4). Os cristãos não aguardaram a paz da Igreja, ou a paz de Constantino (313), para criar imagens e ilustrar os mistérios da nova religião. As imagens mais antigas produzidas pela iconografia são encontradas nas catacumbas, desde os séculos III e IV (cf. GHARIB, 1997, p. 11). Cristo era representado nas primeiras imagens, simbolicamente no Bom Pastor, Jesus Pescador, Mestre Taumaturgo, Imperador e Filósofo, Benfeitor e Doador da Lei às pessoas. A iconografia dos séculos III e IV é inteiramente cristológica e cristocêntrica. Não existe uma iconografia dos santos propriamente dita antes de Éfeso (431). Falar da “evolução” do ícone nos primeiros séculos equivale a falar da “evolução” da imagem de Jesus. A superação da proibição do Antigo Testamento em relação às imagens encontra seus elementos já no Novo Testamento. E isso foi percebido bem cedo pela Igreja primitiva. João, no seu evangelho, afirma que ninguém jamais viu a Deus, mas o seu Filho no-lo deu a conhecer (cf. Jo 1,18). Na sua primeira carta, João explica o alcance desse “mostrar a Deus”: “Aquele que era desde o princípio” e que “nós contemplamos, que nossas mãos apalparam” (1Jo 1,1-2). A proibição milenar de se representar o Deus único e invisível é cessada com uma imagem: “depois da Encarnação, Cristo liberta os homens da idolatria, suprimindo cada imagem não negativamente, mas de modo positivo, revelando a verdadeira figura humana de Deus” (EVDOKIMOV apud DONADEO, 1997, p. 11). Nos primeiros séculos, no entanto, a Igreja teve de lutar contra a idolatria greco-romana, o que retardou uma arte cristã de imagens. Isso é claro nos textos neotestamentários, onde Paulo censura os pagãos por terem trocado a glória de Deus por imagens antropomórficas e zoomórficas (cf. Rm 1,23). Os Padres Apostólicos advertiram os cristãos contra a idolatria. No século II, os apologetas censuraram e abominaram os ídolos, que viam como receptáculos do demônio. Tertuliano invoca a proibição de se fazer imagens, inspirando-se na lei mosaica. “Para ele, se o escultor se torna cristão, deverá ganhar a vida de outra forma, cristianizando sua profissão e fazendo imagens cristãs” (GHARIB, 1997, p. 14). Essa aversão dos primeiros cristãos à estatuária pagã explica a não existência, até hoje, de imagens tridimensionais na igreja ortodoxa. Com a liberdade da Igreja no Edito de Milão (313) e com o concílio de Niceia (325), que definia a consubstancialidade de Cristo ao Pai, a arte da representação de Cristo recebeu um forte impulso. O próprio Constantino encomendou que se fizesse a imagem de Cristo, primeiro no arco da Basílica Lateranense, dedicado ao Salvador, e a segunda na fachada da Porta de Bronze (chalké) do Palácio Imperial, em Constantinopla. Logo de início, século IV, a Igreja já determinou que as roupas de Cristo deviam ser representadas da forma que estavam em uso no tempo que Ele viveu. A barba e os cabelos longos, que foram generalizados na imagem de Cristo, 41

refletem também o costume do seu tempo. Essa imposição, é claro, não aconteceu sem incidentes, pois os modelos de muitos artistas ainda eram os da perfeição grega, o que tinha como protótipo Apolo. Na época de Justiniano (527-565), denominada a “idade de ouro”, consolidouse a doutrina cristológica acerca das duas naturezas de Cristo, unidas na única pessoa do Verbo, o que foi definido já em Calcedônia (451). Nessa época, há um grande esforço para se encontrar os traços somáticos do Jesus histórico. Uma primeira fonte trata-se de testemunhas oculares (registrados em vários textos); a segunda fonte é constituída pelas imagens chamadas “Achiropitas”. A palavra significa, literalmente, “não feita por mãos humanas”; a obra era plasmada por intervenção divina, no caso, o próprio Cristo (cf. GHARIB, 1997, p. 17). O mundo bizantino conheceu duas imagens achiropitas famosas: a “Camuliana” e a “Sagrada Face do mandilion de Edessa”. A achiropita de Camuliana traz o nome de uma pequena cidade da Capadócia, que, no século VI, passa a ser chamada Justinianópolis. Sua existência é documentada no mundo bizantino a partir dos séculos VI e VII. Desaparece no início da segunda luta iconoclasta (séc. VIII). Segundo a Tradição oriental, expressa no Sinaxário, o livro litúrgico que contém os textos por ocasião das festas comemorativas no calendário, o escrito é atribuído a Gregório de Nissa: “[...] Cristo teria aparecido sob Diocleciano, no ano 289, em Camuliana, a uma mulher pagã de nome Aquilina, que pedia a imagem dele para poder crer. Cristo lhe aparece e imprime a sua imagem numa toalha, que a mulher se apressa em guardar, acompanhando-o com o relato dos fatos. Após a morte da mulher, Gregório conta que lhe foi revelado o lugar do esconderijo. Chegando lá e achando a imagem, ele levou a Cesareia, onde foram realizados, por meio dela, muitos milagres” (GHARIB, 1997, p. 37). No século VI, são indicados muitos fatos concernentes a tal prodígio. Muitas foram as cópias da Achiropita de Camuliana. Em 574, ela foi transportada de Cesareia para Constatinopla. Foi usada para impor coragem aos militares e inspirar-lhes a certeza da vitória. O fim dessa Achiropita é contado por Germano de Constantinopla, a primeira vítima ilustre da guerra iconoclasta, iniciada em 726 pelo imperador Leão III. Segundo o relato, para salvar da profanação, o patriarca lançou a imagem ao mar. Uma tradição posterior forçadamente quer dizer que ela foi repescada no mar e levada em procissão a Roma. Tratar-se-ia da famosa Achiropita do Latrão (cf. GHARIB, 1997, p. 40). Uma outra tradição, também vinda do Oriente, nos narra a existência do Santo Mandilion de Edessa. Essa achiropita produziu maior influência na iconografia de Cristo, influenciando artistas orientais e ocidentais até hoje. A história começa em Edessa, sob o rei Abgar V, Ukama (o negro), que reinou contemporâneo à vida de Cristo (anos 30). Abgar sofria de lepra e gota crônica, doença que o desfigurou. Em vão procurou a medicina. Sabendo do que acontecia em Jerusalém, dos prodígios 42

que certo nazareno fazia, em meio à ingratidão dos judeus, o rei encheu-se de esperança. Narra o Sinaxário que o rei encarregou um hábil retratista chamado Ananias de ir a Jerusalém com uma dupla tarefa: entregar uma carta a Jesus e fazer um retrato dele, o mais fiel possível. A carta dizia o seguinte: Abgar toparca da cidade de Edessa, a Jesus, o excelente médico que surgiu em Jerusalém, salve! Ouvi falar de ti e das curas que realizas sem remédios. Contam efetivamente que fazes os cegos ver, os coxos andar, que purificas os leprosos, expulsas os demônios e os espíritos impuros, curas os oprimidos por longas doenças e ressuscitas os mortos. Tendo ouvido tudo isso de ti, veio-me a convicção de duas coisas: ou que és o filho daquele Deus que realiza estas coisas, ou que és o próprio Deus. Por isso, escrevi-te pedindo que venhas a mim e me cures da doença que me aflige e venhas morar junto a mim. Com efeito, ouvi dizer que os judeus murmuram contra ti e te querem fazer mal. Minha cidade é muito pequena, é verdade, mas honrada e bastará aos dois para nela vivermos em paz (apud GHARIB, 1997, p. 43).

O Sinaxário conta que Ananias entregou a carta a Jesus. Os autores sírios encontram indícios do episódio no evangelho de João 10,20-21: “Entre os que tinham ido à festa para adorar a Deus, havia alguns gregos. Eles se aproximaram de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: 'Senhor, queremos ver Jesus'”. Prosseguindo, o Sinaxário acrescenta que Ananias se sentiu muito embaraçado ao retratar o Grande Mestre. Jesus, tomando uma toalha, imprimiu a imagem de seu rosto. A toalha (mandilion) foi entregue a Ananias com uma carta, onde Jesus atesta a fé do rei Abgar, que crê sem ter visto (pedagogia de Cristo). Todavia, Jesus diz que deve permanecer em Jerusalém, para que se cumpra a sua missão. Mas quando isso acontecer, ele mandará um discípulo para curar a moléstia física e oferecer a vida eterna ao rei bem-aventurado. A carta foi guardada e conservada nos arquivos da cidade de Edessa. E nesse lugar, no século IV, o historiador Eusébio diz que encontrou e a traduziu do siríaco para o grego. O texto chegou ao Ocidente pela versão latina da História Eclesiástica desse historiador, feita por Rufino de Aquileia, no início do século V. Até o século XVII, o texto era pendurado nas casas inglesas. São João Damasceno (749) testemunhava o Mandilion de Edessa no primeiro dos seus Três discursos em defesa das imagens e no De fidei orthodoxa, que diz: “Abgar, rei de Edessa, tinha mandato um pintor fazer um retrato do Senhor, mas este não conseguiu porque sua face brilhava de modo insondável; o Senhor, então, cobriu o rosto com o seu manto e seu rosto se achou reproduzido sobre o manto, que ele mandou a Abgar, que lho havia pedido” (DAMASCENO apud GHARIB, 1997, p. 48). O texto da correspondência entre Abgar e Jesus foi muitas vezes reproduzido e usado com muito peso contra o iconoclasmo. No II Concílio de Niceia (787), o tema foi argumento dos defensores das imagens. Na carta sinodal dos três patriarcas orientais (836) ao imperador iconoclasta Teófilo (829-842), o tema do Mandilion de Edessa é tomado por prova de que o próprio Salvador se deixou ser retratado. A conquista de Constantinopla pelos cruzados latinos, em 12 de abril de 1204, representa o fim da história da Achiropita Edessana. Muitos creem que ela 43

foi trazida com os despojos para Turim. Estudiosos modernos dedicaram-se ao estudo desses relatos. Dentre eles, destacam-se o escritor Conrado Pallemberg e o jornalista inglês Jan Wilson, no seu livro The Shroud of Turin: the Burial Cloth of Jesus Christ? (1978), e o dominicano A. M. Dubarle, no seu livro Historie anciénne du linceul de Turin jusqu'au XIII siècle (1985). Esses autores consideram a hipótese e até mesmo a teoria de que o sudário de Turim seja o Mandilion. A hipótese é sedutora, porque completa lacunas da história do Sudário. Entretanto, a tradição antiga, literária e iconográfica, não apresenta um Cristo de corpo inteiro. Além disso, o Mandilion, ao que parece nas narrativas, não continha um retrato funerário, como é o caso do Sudário de Turim, argumenta GHARIB. Se há historicidade no aspecto positivo, como é típico do ocidental, em relação ao Mandilion, não interessa ao oriental, que se guia pela historicidade no aspecto da Tradição. O que interessa para o nosso trabalho é que a Sagrada Face do Mandilion é o arquétipo de toda a imagem de Cristo do primeiro milênio. A Sagrada Face é tida como o primeiro ícone para o ortodoxo, tendo a função de proteção e vitória de Cristo sobre o mal. Isso, mais tarde, foi transferido a todos os ícones de Maria e dos Santos (cf. DONADEO, 1996, p. 69). Para recuperarmos a imagem de Cristo, no sentido literal da palavra “imagem” plasmada na Igreja primitiva, temos de perpassar por essa Tradição. Isso já é experiência de artistas sacros contemporâneos (cf. PASTRO, 1998, p. 10). O rosto de Cristo Todo-Poderoso e Misericordioso, que vai surgindo em pinceladas na história, a partir dessa Tradição, é um Deus humano não idealizado naturalisticamente, nem afetado por sentimentalismo. Ele é o Senhor do universo, da história e da libertação. Seu rosto é um convite sereno e luminoso a adorarmos não pela beleza sensual positiva, mas na Beleza de sua Santidade (Sl 96,9).

2.4.1 Emanuel: o menino Deus A tradição hebraica do Emanuel, Deus conosco, remonta a Isaías, o qual fala de um sinal dado ao rei Acaz, que consistia no nascimento de um filho prodigioso: é o sinal vindo do Senhor, um filho que nasceria de uma virgem (cf. Is 7,14). Isaías falava provavelmente do filho do rei Acaz, Ezequias, mas a mensagem vislumbra uma intervenção especial de Deus em vista do reino messiânico. A promessa extrapolou um fato situado na época de Isaías para fazer parte da grande Promessa do Messias que reinaria em Israel. Os evangelistas reconheceram nela o anúncio do nascimento de Jesus Cristo, o Deus homem. Mateus aborda explicitamente: “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta: 'Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamarão com o nome de Emanuel, o que traduzido significa Deus conosco'” (1,22-23). Por estar ligado ao nascimento e à infância de Jesus Cristo, o tipo iconográfico do Emanuel, na arte sacra, apresentará um Jesus menino ou adolescente. Os ícones 44

de Jesus menino, na Tradição, são relativamente poucos. Na maioria das composições, ele está acompanhado de sua mãe. E normalmente é apresentado na idade dos seis aos doze anos (cf. DONADEO, 1997, p. 36). A imagem de Jesus menino já era presente nas catacumbas. Era representado seguindo o estilo naturalista da época, como uma criança comum. Nos séculos IV e V, porém, com as negações de Ario e as de Nestório, que tiveram grande influência no dogma cristológico, a iconografia do Jesus menino passou por uma transformação. Contra Ario, o Concílio de Niceia (325) definiu a consubstancialidade do Cristo com o Pai. Cristo é Deus desde sempre. Nestório (séc. V) recusava-se a reconhecer Maria como “mãe de Deus”, Theotókos. Para ele, Jesus tinha se tornado Deus somente mais tarde, com o batismo. Ele não podia acreditar num Deus de dois ou três meses, ou adorar um menino nutrido com leite materno e que teve de fugir para o Egito para salvar a sua vida. Contra essa heresia, o concílio de Éfeso (431) definiu a maternidade de Maria como Theotókos – mãe de Deus. Os iconógrafos e mosaicistas da Basílica de Santa Maria Maior, imediatamente após Éfeso, foram encarregados de plasmar em cores e em traços as decisões do concílio, destacar a natureza divina do menino Jesus. Começou a ser executado com mais esmero o tipo iconográfico do Emanuel. Um dos estratagemas foi plasmar um menino pequeno, mas com traços somáticos de um adolescente, quase adulto. A imagem do Deus menino passou a ser revestida com roupas de adulto, basicamente: o chiton (túnica) e o imation (manto). Mas não fica apenas nisso: A túnica é ornada com o stichos, ou chavus, sobre o ombro direito. O manto, muito amplo, deixa descoberto o pescoço, cobre os ombros e envolve o corpo inteiro em amplas dobras, deixando nus os pés calçados de sandálias [...]. O rosto imberbe mostra um Jesus jovem e inteligente: nariz curto, fronte alta [...]. A cabeça pequena está posta dentro de uma grande auréola crucífera [...]. A mão direita abençoando, enquanto na esquerda foi posto um rolo ou livro [...] como o Pantocrator [...]. Na auréola [...] foram inscritas as letras OΩN, trigrama do nome de Deus revelado a Moisés no Sinai; aos dois lados da cabeça foram acrescentados os dois digramas do nome de Cristo: IC XC O EMMANOYHΛ, ou seja: Jesus Cristo o Emanuel. Estes símbolos e inscrições se encontrarão depois em todas as representações do Emanuel (GHARIB, 1997, pp. 76-77).

A idealização do Jesus infante não corresponde a uma tendência que ignora sua dimensão humana. Pelo contrário, o tipo iconográfico dá um maior acento à Encarnação do Deus Filho que assumiu toda a trajetória da vida terrena desde o útero materno até a ressurreição. Diferentemente do destaque dado em muitas Madonas ocidentais, nos ícones marianos orientais, a personagem principal não é Maria, mas o menino Deus que ela leva nos braços (cf. DONADEO, 1997, p. 69). A incomparável grandeza da mãe provém da do seu Filho, homem e Deus ao mesmo tempo, segunda pessoa da Santíssima Trindade. Assim, um dos ícones marianos mais significativos e 45

próximos das fontes bíblicas é o da “Nossa Senhora do Sinal”, onde, além de Maria e o menino, aparece Isaías, o profeta do Emanuel. Essa composição já era comum nas catacumbas. Mais tarde, porém, o profeta desaparece desse ícone. Jesus passa a ser representado dentro de uma esfera no peito, ou ventre de Maria. É Jesus o menino que é Deus desde a concepção. O tipo iconográfico do Emanuel se encontra também em todos os ícones festivos onde Jesus aparece como criança: as representações do Natal, da Adoração dos magos, da Fuga para o Egito, da Circuncisão, da Apresentação no Templo, da festa de Meio-Pentecostes e mesmo na festa da Anunciação. Além das representações litúrgico-festivas do Emanuel, existem outras independentes, antigas e modernas, mas que trazem em si o vigor e a ternura da arte sacra bizantina. O Emanuel aparece em algumas representações da Santíssima Trindade, nos ícones da “Divina Sabedoria” encarnada, inspirado em Provérbios 9, onde nos convida à mesa da verdade. O tipo iconográfico do Emanuel, enfim, na Tradição iconográfica, mantém uma hieraticidade. As vestes bastante claras destacam o menino. Quando acompanhado de Maria, as vestes escuras da mãe se retraem contrapondo com as do filho, que lançam o menino para a frente através da perspectiva inversa. A mãe lhe serve de trono e sempre lhe está apontando, apresentando, intermediando-nos com o pequeno e Soberano Redentor. É a Beleza em si que se revela no Menino. Se os Evangelhos não deixaram muitas informações sobre o Redentor Menino, o iconógrafo, no profundo anseio de “ver” Jesus, não quer reproduzir um Jesus histórico-científico, naturalista, mas o Deus encarnado.

2.4.2 A Sagrada Face O tipo iconográfico da Sagrada Face constitui uma composição à parte na arte sacra bizantina por estar estritamente ligado à origem prodigiosa da imagem Achiropita, tradição que tratamos anteriormente. Como vimos, segundo essa tradição, “[...] o original [...], do ano 30 mais ou menos, até seu desaparecimento de Constantinopla em 1204, não existe mais. Porém, no decurso dos séculos, ele foi reproduzido em miniaturas, afrescos, mosaicos e ícones [...]” (GHARIB, 1997, p. 82). Assim, essa tradição é fundamental, pois é a partir do tipo iconográfico da Sagrada Face que vão se elaborando os cânones de como devem ser reproduzidos os traços somáticos da imagem de Cristo, os quais tanto a tradição oriental como a ocidental buscam plasmar. O Ocidente plasmou uma imagem mais naturalista, racional, Jesus histórico. O Oriente, uma imagem mais espiritual, teológica, o Cristo da fé. São muito raras as reproduções anteriores ao século X. Uma das mais antigas se encontra na igreja de Cromi, na Geórgia, remontando ao século VII. Em Constantinopla e arredores, havia provavelmente muitas composições da Sagrada Face reproduzidas, porém, com as guerras iconoclastas, elas foram destruídas. Do século X existe um ícone conservado no Mosteiro de Santa Catarina, no Sinai; do 46

século XI há duas miniaturas da Sagrada Face, também na Geórgia, em Tiflis: uma de 1054, aproximadamente, onde a face do Salvador é representada no meio de uma toalha quadrada com uma auréola crucífera ladeado com quatro cruzes gregas; na outra miniatura, do mesmo ano, aparecem dois rostos de Cristo, um sobre o mandilion (toalha quadrada) e o outro ao lado, ligeiramente voltados um para o outro, sugerindo a prodigiosa impressão da Sagrada Face. Do século XII há uma reprodução do mandilion num afresco na igreja de Nereditsa, Novgorod, na Rússia. A pintura é de 1199, e representa a face no côncavo da cúpula junto aos quatro evangelistas. Foi nos ícones em madeira, porém, que o tipo iconográfico da Sagrada Face elaborou as representações mais perfeitas. Entre eles, é mister citar como os maiores protótipos do gênero: a Sagrada Face de Laon, na França (44 x 40 cm, de 1200), muito venerada pelos franceses por seu belo olhar cheio de ternura; o Santo Keramion de Novgorod, na Rússia (77 x 71 cm, do século XII); a Sagrada Face de Iaroslav, em Moscou (104 x 74 cm, do século XIII); a Sagrada Face de Gênova (do século XIV), o único dos quadros que não tem origem eslava. Os quatro ícones reproduzem o original constantinopolitano, enquanto ainda se achava na capital do Império Romano do Oriente. Nos protótipos citados da Sagrada Face, encontramos a expressão vívida no rosto humano de Deus. Todavia, o seu rosto, diferentemente do Jesus do Barroco e do Romantismo, não é tomado por traços emotivos de alegria ou dor. A Face do Senhor do Universo, apesar de tomada de humanidade plenamente, transcende e, ao contemplá-lo, instintivamente nos vem a vontade de, como Paulo, dizer ou entoar: Ele é a imagem do Deus invisível, O Primogênito de toda criatura, Porque n’Ele foram criadas todas as coisas, No céu e na terra, As visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é antes de tudo E tudo n’Ele subsiste. Ele é a cabeça da Igreja, Que é o seu corpo. Ele é o Princípio, O Primogênito dos mortos, Tendo em tudo primazia, Pois n’Ele aprouve a Deus Fazer habitar toda a Plenitude E reconciliar por Ele e para Ele Todos os seres, os da terra e os do céu, Realizando a paz pelo sangue da cruz (Cl 1,15-20).

Inspirada no poema do grande apóstolo, a Sagrada Face foi se moldando na Tradição e foi definindo seu tipo canônico. Como todo símbolo sagrado, para ser 47

comunicativo das verdades absolutas, o ícone tem de ter aceitação comunitária, eclesial (cf. TILLICH apud ZILLES, 1983, p. 13). Assim, “[...] esse tipo canônico representa apenas o rosto de Cristo, sem pescoço. Nele se nota uma simetria rigorosa nas duas metades do rosto, incluídos os cachos de cabelos e a barba. O rosto é representado sempre no fundo do Mandilion (toalha) com clara referência à origem prodigiosa da imagem” (GHARIB, 1997, p. 85). A toalha que traz a Sagrada Face é sempre branca com ornamentação discreta. Muitas imagens trazem anjos que sustentam o Mandilion, dando-lhe um aspecto de maior sacralidade e adoração. O rosto de Cristo se apresenta no meio de uma auréola dourada e tripartida por uma cruz, onde aparece o trigrama do Nome de Deus. Os traços do rosto de Cristo apresentam uma pessoa de trinta anos, sem sinal de sofrimento ou romantismo. Seus olhos são grandes e bem abertos e parecem fixar atentamente o espectador, perscrutando o profundo das consciências, mas sem intenção de condenar. Ele quer é salvar (cf. Jo 3,17). O conjunto do nariz longo e as sobrancelhas arqueadas fazem lembrar uma palmeira em repouso. A boca é pequena e parece querer se abrir. A expressão da Face de Cristo é grave e impassível. A impassibilidade de Cristo nessa composição é aquela que exclui o pecado, embora ele permaneça preocupado com a pessoa pecadora. As inscrições canônicas que aparecem nesse ícone são três: a primeira é o nome de Cristo – IC XC – inscrito nos lados do rosto e sublinha a hipóstase do Filho de Deus encarnado; a segunda se encontra na auréola, precisamente nos três braços da cruz, e é constituída do santo trigrama OΩN, ou seja, “Aquele que É”, ou “o Existente” (cf. Ex 3,14). O trigrama ressalta sua natureza divina; a terceira inscrição é o título da tipologia iconográfica: TO AΓION MANΔIΛION, o Santo Mandilion (cf. GHARIB, 1997, p. 86). Poderíamos dizer que o ícone da Sagrada Face é o ícone dos ícones. Segundo a Tradição oriental, é representação de Cristo pelo próprio Cristo. Essa composição iconográfica é o protótipo de todas as representações de Cristo e dos santos. Como diz Ir. Maria DONADEO (1997, pp. 45-46), a pluralidade das representações de Cristo na iconografia oriental é bem menor que na arte ocidental, onde, geralmente, cai-se na retratística terrena simplesmente, sem a preocupação de comunicar o Inefável na sua realidade divino-humana. O artista, quando se converte à iconografia, manifesta uma perene e profunda busca de comunicar Jesus Cristo em seu caminho terreno e em sua missão eterna. Esse ícone é protótipo para todos os que desejam não só se assemelhar a Ele, mas n’Ele participar da vida transfigurada, divina. É inegável que nem toda arte religiosa plasma âmbito de presença, ou comunica a essência, o Absoluto. Mas o artista que busca no profundo de sua humanidade e na sua experiência de Deus, a obra de arte transcende o mero retrato. A obra vai se 48

tornando porta para a presença do invisível, campo que a espiritualidade vem descobrindo. Como diz Henri NOUWEN (2001, p. 34), “Ver Cristo é ver Deus e toda a humanidade. Esse mistério evocou em mim um desejo ardente de ver o rosto de Jesus. Inúmeras imagens foram criadas ao longo dos séculos para retratar o rosto de Jesus. Algumas me ajudaram a ver o seu rosto, outras não. Mas quando vi o ícone de Cristo de André Rublev, vi o que nunca tinha visto antes e senti o que nunca sentira antes. Soube imediatamente que meus olhos haviam sido abençoados de maneira muito especial”. O ícone contém em sua forma e conteúdo uma comunicação recíproca. Não é só o espectador que o contempla e é lançado para a obra, mas também a obra lhe vem ao encontro. Não é relação sujeito e objeto, portanto. Ante a Sagrada Face, o cristão tem a experiência do salmista, que diz: “Senhor, tu me perscrutas e me conheces [...], de longe já discernes os meus projetos” (Sl 139,1.7). Seu olhar não recrimina, não é condenador, mas acolhedor e salvador. Olhar em seus olhos é o cumprimento de nossa mais profunda aspiração. É difícil compreendermos esse mistério, mas devemos sentir como os olhos do Verbo nos abraçam. Os mesmos olhos que fitam o coração de Deus são os mesmos olhos que fitam o coração do Povo em suas alegrias e tristezas. Em meio às ruínas do mundo, o rosto luminoso de Jesus nos dá sentido e nele somos conduzidos na fé, esperança e amor.

2.4.3 O Pantokrator O Pantokrator é o tipo iconográfico mais difundido e um dos mais significativos da arte sacra oriental. No Ocidente, como a “Mãe de Deus”, o Pantokrator fascina muitos artistas. Ele merece profundo estudo e sua elaboração tem raízes profundas na Sagrada Escritura, na Patrística e na Filosofia cristã. Escreve o padre Carmelo CAPIZZI, autor que escreveu a monografia mais completa sobre o Pantokrator, segundo GHARIB: “A patrística, baseando-se em dados revelados pelo Antigo e pelo Novo Testamento e utilizando algumas noções e expressões da filosofia helenística, determinou o conceito de Pantokrator, discernindo nesse epíteto divino quatro elementos conceituais: o onidomínio, a oniconservação, a onicontinência, a onipresença” (1997, p. 86). Em outras palavras, Cristo é o Pantokrator, porque Ele é Senhor de tudo, domina tudo, n’Ele e por Ele tudo foi criado. Ele conserva tudo em seu ser, sustenta os quatro elementos da matéria. Ele penetra em tudo, levando tudo à plenitude. Além disso, “[...] a patrística tem o mérito de ter desenvolvido o sujeito de atribuição do Pantokrator, passando de Deus indistintamente e de Deus Pai a uma atribuição consciente e justificada ao Filho como Logos, portanto, ao Cristo como Logos encarnado” (CAPIZZI apud DONADEO, 1997, p. 43). O termo grego ΠANTOKPATOP é traduzido genericamente por “Onipotente”. Segundo GHARIB, é melhor traduzir por “Onirregente”, ou “Aquele que tudo rege”, termo que já aparece na literatura pagã. Na tradução dos LXX, o termo é usado para traduzir o “Sabaoth” (Dominador de todas as forças terrestres e celestes). 49

A pintura do Pantokrator é uma experiência profunda do Logos encarnado, fundamentada no Novo Testamento. No Novo Testamento, geralmente aparece referindo-se ao Pai, mas no Apocalipse há uma referência muito forte ao Verbo, como o Redentor e Juiz Universal (cf. Ap 11,17; 21,22). O Apocalipse constitui assim o livro mais inspirador para a composição do Pantokrator. Essas referências ao Verbo, como Onirregente, aparecem também nas cartas de Pedro e de Paulo: “Jesus Cristo, tendo subido ao céu, está à direita de Deus, estando-lhe sujeitos os anjos, as Dominações e as Potestades” (1Pd 3,22); “A Cristo a submissão de todas as coisas” (1Cor 15,28), porque “[...] para isto Cristo morreu e ressuscitou: para ser Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9). Além das tradições neotestamentárias, os Santos Padres identificaram já no Antigo Testamento referências ao Pantokrator, principalmente em Isaías (cf. 40,12). As primeiras imagens de Cristo datam do século III, nas catacumbas de Roma. No século V, Cristo é retratado como uma figura de Apolo imberbe, embora já no século IV apareçam imagens de Cristo barbado (cf. KALA, 1995, p. 63). A arte da imagem de Cristo, como já abordamos, foi se moldando na criatividade e inspiração dos artistas em estreita relação com a Tradição. A comunicação da experiência cristã da Beleza sempre se deu por meio de um fiel na comunidade de fé e jamais independente um do outro. Assim, os Padres da Igreja, ao elaborar o símbolo Niceno-Constantinopolitano, aprofundam o significado e justificam as atribuições ao Deus Filho: “Quando ouvimos o termo Pantokrator [...], compreendemos com a mente que Deus mantém no ser todas as coisas: tanto inteligíveis como as de natureza material. Por isso, Ele contém o universo [...]. Ele tem nas mãos todas as coisas do Pai, como Ele mesmo diz [...]. Quem é Ele senão o Pantokrator, aquele que tudo rege?” (Gregório de NISSA apud GHARIB, 1997, p. 92). A fé vai tomando traços e cores nas mãos do artista sacro. Dito rapidamente a fundamentação, podemos falar da tipologia geral do Pantokrator, ou da forma artística (ícone) que essa Tradição tomou. Assim como para a Sagrada Face e o Emanuel, existe um cânone para a composição desse ícone. Segundo os cânones pictóricos, o Pantokrator é representado quase sempre em busto, meio busto ou de corpo inteiro. Quando Ele está representado de corpo inteiro, fascinante por sua majestade e completude, está sentado no trono rodeado às vezes pelas hierarquias celestes. Ele é caracterizado por sua auréola crucífera, pela mão direita que abençoa e a esquerda que segura um livro aberto ou fechado, ou um rolo. O livro, quando aberto, normalmente traz a inscrição: “Eu sou a luz do mundo”, podendo aparecer outras inscrições bíblicas do Novo Testamento. A estatura do corpo do Pantokrator é tradicional, já fixada no século VI, na época de Justiniano. O rosto é o do Mandilion. Seus traços são alongados, sobrancelhas arqueadas e bem definidas. Os olhos são grandes e abertos, voltados para o espectador, como os do tipo da Sagrada Face. O nariz é longo e delicado, 50

formando uma harmonia com as sobrancelhas, lembrando uma palmeira. O bigode caído e bem definido, formando um conjunto com a barba longa que termina arredondado, deixa o queixo saliente. Os cabelos, na parte superior, formam uma cúpula (semelhante a um capacete) e descem, formando uma semiesfera até as orelhas, onde são mais recolhidos e normalmente no ombro esquerdo formam três ou dois cachos. As roupas que cobrem seu sagrado corpo são três peças: a túnica diretamente no corpo, o manto e as sandálias. A reprodução procura ser fidedigna ao vestuário da época de Jesus (ano 30), na Palestina (cf. GHARIB, 1997, p. 94). O fundo do ícone, sempre em dourado ou cor afim, é chamado pela iconografia grega de “céu”, para indicar que a pessoa representada está na Glória. A auréola também tem tal significado. Ela é crucífera, com menção clara à dimensão da redenção salvífica. Quanto às inscrições, além dos habituais digramas e trigrama, acrescenta-se o ΠANTOKPATOP, e sobretudo inscrições sobre frisos que circundam a parte inferior da cúpula. Essas últimas inscrições são variadas e foram catalogadas no manual dos iconógrafos, feito pelo maior iconógrafo do século XX, Foti KONTOGLOU. Nas páginas 102-103 do Manual, ele propõe as seguintes frases: “Do céu o Senhor contemplou, viu os filhos dos homens. Do lugar de sua morada ele observa os habitantes todos da terra: Ele forma o coração de cada um e discerne todos os seus atos” (Sl 33,1315); “Do Céu, Deus se inclina sobre os filhos de Adão, para ver se há um sensato, alguém que procure a Deus” (Sl 53,3); “Para sempre seja bendito o seu Nome, e desde antes do nascer do sol o seu Nome permanece” (Sl 72,19); “Deus seja glorificado na assembleia dos Santos, é grande e terrível entre todos os que o rodeiam” (Sl 89,8); “Eu sou Deus e fora de mim não há outro Salvador” (Is 43,10-11); “Fui Eu que fiz a terra e criei o homem sobre ela; foram as minhas mãos que estenderam os céus, Eu é que dou ordem a todos os astros” (Is 45,12); “O céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés. Que casa me poderíeis construir, que lugar, para o meu repouso?” (Is 66,1); “Do levantar ao pôr do sol, meu Nome é glorificado entre as nações, e em todo lugar é oferecido incenso em meu Nome” (Ml 1,11). KONTOGLOU acrescenta que essas inscrições podem ser substituídas por uma esfera colorida, em forma de arco-íris, segundo a descrição profética (cf. GHARIB, 1997, p. 98). Na Igreja Ortodoxa, o Pantokrator aparece em vários lugares: • no nártex das igrejas, parte que precede a igreja propriamente dita. O Cristo é representado sobretudo como a “Porta” que introduz à igreja – o redil espiritual. No livro aberto que Ele carrega, está escrito: “Eu sou a porta: se alguém entrar por mim, será salvo” (Jo 10,9); • na cúpula (desde o século VI) ou no côncavo da ábside, onde o fiel, ao entrar no templo, olha para o alto e é acolhido em todo o seu ser. A cúpula é o 51

símbolo do céu. Com isso, “[...] o Pantokrator, na cúpula, retrata ao mesmo tempo o Pai e o Filho – expressão do dogma da consubstancialidade” (KALOKYRIS, 1982, p. 15). Além desses lugares, em menor tamanho, o Pantokrator aparece em ícones portáteis e em diversas partes da Iconostase. É precisamente no centro da Iconostase ou Deésis o ponto convergente da gama de santos e da economia da salvação, está o Pantokrator entre sua Mãe e João Batista, anjos e santos. No Ocidente, apesar de em bem menor expressão, nas igrejas românicas e góticas, a presença do Pantokrator na porta do templo e em algumas ábsides testemunha também a vigorosa e belíssima presença do Divino Regente, que acolhe como único caminho salvador. Quanto ao significado do tipo iconográfico do Pantokrator, no Ocidente, precisamos de uma maior compreensão, frisa o teólogo francês Louis BOUYER, em sua pequena obra “A verdade dos ícones” (1990). Muitas vezes, pela incompreensão teológica, foi visto como juiz irado, feroz, por causa de sua expressão facial, principalmente. Isso acontece, talvez, porque estamos acostumados à figura de um Cristo do Romantismo e muitas vezes “adocicado” que a arte naturalística nos comunicou no decorrer dos séculos após o Renascimento, principalmente no século XIX. A gravidade do mal, do pecado que Ele teve de vencer se reflete e se supera na sua majestade. Sua majestade não é a de um soberano terreno, é de Deus que se revela, numa humanidade espiritualizada, fascinante, que o artista comunica a partir de uma espiritualidade profunda. É o Deus-Amor, ternura, que não tem nada a ver com sentimentalismo fácil, mas sim com o Ágape, o amor divino de entrega total. A grandeza do tipo iconográfico do Pantokrator é inesgotável, sacramento do que Ele representa. Os nomes acrescentados são de grande riqueza. F. KONTOGLOU enumera: o Pantokrator (Aquele que tudo rege), o Eleimon (o Misericordioso), o Zoodotes (Doador da vida), o Fotodotes (Doador da luz), o Soter tou Kosmou (o Salvador do mundo), o Philanthropos (o Amigo dos homens), o Emmanouil (o Emanuel), o Dikaios Krites (o Justo juiz), o Megas Archiereus (o Sumo sacerdote), o Basileus ton Basileuonton (o Rei dos reis), o Psychosostes (o Salvador das almas). O Pantokrator é uma bênção ao mundo, à matéria que é cristificada. O ícone do Pantokrator traz na simbologia das mãos um rico sinal de bendição (euloghia). É chamada bênção “à maneira grega”, onde os dedos não estão agrupados ao acaso, mas com um significado simbólico, que os pintores devem respeitar para traduzir seu sentido. O clero bizantino abençoa segundo esse modo. O manual de Dionísio de FURNÁ, do século XVIII, descreve a posição dos dedos e seu significado na arte sacra: 52

[...] quando fazes uma mão que abençoa, não une os três dedos juntos, mas une o polegar com o anular apenas; o dedo chamado indicador e o médio formam o Nome IC: com efeito, o indicador forma o I; o dedo médio curvado forma o C; o polegar e o anular que se unem obliquamente e o mínimo que está ao lado formam o Nome XC; de fato, a obliquidade do mínimo, estando ao lado do anular, forma a letra X; o mesmo mínimo, que tem forma curva, indica justamente por isso o C; por meio dos dedos, portanto, se forma o Nome XC e, por esse motivo, pela divina providência do Criador de todas as coisas, os dedos da mão foram modelados assim e não foram de mais ou de menos, mas em continuidade suficiente para formar este nome.

O ícone do Pantokrator expressa em todos os aspectos a manifestação de Deus transcendente que assume as características humanas. Imagem do Deus invisível por quem tudo foi criado (cf. Cl 1,15s). É o arquétipo da humanidade transfigurada que o artista é chamado a figurar. É Cristo cheio de amor contrito e arrebatado pela humanidade. Este amor leva-o a dar a vida. É a mensagem central desse ícone. Ele é juiz, mas um juiz misericordioso. Ao contemplar esse ícone, instintivamente “ouvimos” as palavras: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mt 25,34-36). Assim, podemos dizer que a misericórdia é o “metro” com o qual nós seremos medidos (cf. KALA, 1995, p. 65). Somos chamados a ser misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso e levar à perfeição o ícone de Cristo impresso em nós desde o princípio.

2.4.4 A imagem de Jesus em diversos ícones Além dos três tipos iconográficos já mencionados, a figura de Jesus aparece em várias outras circunstâncias. Aqui, rapidamente, vamos nos ater em alguns dos ícones das doze grandes Festas da Liturgia Bizantina, e nos “Feitos e milagres segundo o Evangelho”. O Jesus menino, nas Festas, é encontrado nos ícones de 25 de dezembro (Natal) e 2 de janeiro (Festa do Encontro ou da Apresentação no templo). Jesus aparece adulto nos ícones da Festa do Batismo (6 de janeiro), da Transfiguração (6 de agosto), da Ressurreição (Descida aos infernos) e da Dormição da Mãe de Deus (15 de agosto). Todavia, nós O vemos no ícone do Domingo de Ramos em sua entrada triunfante na Jerusalém terrena e no ícone da Ascensão, onde Cristo, na parte superior do ícone, triunfante, entra na Jerusalém celeste, circundado por um arcoíris, símbolo da eternidade (cf. DONADEO, 1997, p. 38). Estas Festas são antiquíssimas, remontando aos primeiros séculos do Cristianismo. A arte sacra, em sua colorida e vibrante plasticidade, dá forma e nos comunica a experiência das primeiras comunidades cristãs. Estas celebrações testemunham a comunidade de fé, que, no decorrer dos tempos, sempre reviveu na Sagrada Liturgia os dogmas da fé. Na iconografia, para além de um simples documentário, o artista participa de uma grande Tradição, traduzindo a fé e bebendo dela. Quanto mais embebido no espírito da liturgia, muito mais o artista tem autoridade em fazer arte sacra. 53

O ícone da Festa da Natividade nos coloca um testemunho visível de um dogma fundamental. Seus detalhes realçam a divindade e a humanidade de Jesus: o Menino recém-nascido, bem no centro da composição, banhado por uma clara luz, está dentro de uma gruta escura. É uma alusão à profecia que diz: “O mundo que vivia nas trevas viu uma grande luz” (Is 9,2). São as paredes do sepulcro de onde sairá o Ressuscitado; a manjedoura é como uma oferenda que o deserto árido e arqueado faz ao Divino Menino; a luz que vem do alto e se triparte é alusão clara à Trindade; os Santos Padres viram na simbologia do boi e do jumento, respectivamente, a presença dos judeus e dos gentios; os pastores, homens simples, são os primeiros a ter uma comunicação direta do Salvador, ao passo que os magos, homens das ciências, percorrem um caminho mais longo; São José enfrenta a tentação da dúvida sobre a virgindade de Maria. O tentador está disfarçado de um homem velho vestindo pele cinza, contrapondo a presença do Menino-Deus. O pensativo José traduz o drama de toda a humanidade que não consegue compreender a Encarnação apenas pela razão; a Mãe de Deus, por outro lado, flor da humanidade, também representa todos nós ao dar seu “Sim” à Encarnação. Na Festa do “Encontro de Nosso Senhor Jesus Cristo”, o Emanuel, o Jesus Menino de 40 dias, aparece nos braços de Maria, que O apresenta ao velho Simeão. São José e a profetisa Ana completam a cena processional do encontro (cf. DONADEO, 1997 p. 37). Jesus aparece adulto na Festa do Batismo (6 de janeiro). Essa festa também é conhecida como a “Teofania de Cristo”, pois foi a manifestação do Salvador no início da vida pública. Aqui também aparece a primeira revelação pública do dogma da Trindade. O Pai aclamou: “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17). O ícone, além da beleza estética, é um comentário sobre a Teologia da Redenção: “A obediência do Filho à vontade do Pai é o fundamento de nossa salvação. Quando Jesus pediu a João para batizá-lo, humilhou-se a si mesmo, mas o Pai o exaltou. Isso é ilustrado no ícone, onde a figura central de Cristo domina a cena” (KALA, 1995, p. 49); afirmando isso ainda mais, a composição apresenta João inclinado ante o Mestre, que desce voluntariamente no Jordão; o rio se apresenta como uma gruta ou sepulcro, lembrando o ícone da Natividade; o céu e a terra se abrem num raio que se triparte, presença da Trindade Santíssima; os três anjos que aparecem em adoração contemplam a incompreensível kênosis do Verbo Encarnado. Essa belíssima composição, como vemos, preludia a descida de Cristo aos infernos, derrotando definitivamente a morte em sua raiz. As Festas da Natividade, do Batismo e da Descida aos infernos têm uma peculiaridade muito manifesta: sugerem a descida de Deus para a subida da humanidade. A Festa da Transfiguração (6 de agosto) inspira os artistas sacros, em comunhão com a Igreja, a elaborar um dos mais belos ícones em sua harmonia (forma) e em sua mensagem (conteúdo). No Oriente, a Festa remonta aos 54

primeiros séculos; no Ocidente, foi introduzida mais tarde. O centro do ícone é dominado pela luminosa figura de Cristo, vestido de branco, com raios de luz que se espalham em um círculo azul: é Cristo na Glória da eternidade. Em toda a composição, há uma predominância de cores quentes, que vão do amarelo pálido ao vermelho. O ambiente é esquematizado em função do personagem principal. Moisés e Elias estão voltados para Cristo: a Lei e os Profetas apontam para o Verbo Encarnado. Se as três montanhas se desdobram para mostrar em seus cumes as três figuras santas, em seus sopés, porém, três outras figuras se espantam. É o conjunto dos apóstolos Pedro, João e Tiago, que não suportam contemplar a glória de Deus. Apenas Pedro timidamente consegue olhar de relance para o prodigioso acontecimento. Esse ícone canta a glória, a beleza de Deus: “Segundo a tradição, todo iconógrafo deve pintar o ícone da transfiguração para que o Cristo mesmo brilhe com a Luz Incriada – a graça – dentro de seu coração” (BOSCHKOWITSCH, 1989, p. 24). Assim, o ícone da Transfiguração tem uma beleza peculiar: Deus é glorificado na pessoa e a pessoa é glorificada em Deus. João, ao dizer que “nós vimos a sua glória”, transmite o sentimento que anima o artista sacro ao plasmar esse ícone. O ícone oriental não contempla em sua composição a Ressurreição como faz a arte ocidental. Não há registros da Ressurreição nos evangelhos. As representações de Cristo saindo do sepulcro são mais recentes e são da Tradição Ocidental (cf. KALA, 1995, p. 57). Por isso, o ícone traz a inscrição “Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo” escrita em vermelho. O ícone oriental mostra a “Descida aos Infernos”: no centro aparece Cristo no habitual círculo azul (divindade). Os círculos concêntricos ao seu redor escurecem à medida que se aproximam do centro e, produzindo um belíssimo contraste, as vestes do Salvador são brancas, banhadas de uma radiosa luz. Além da “perspectiva inversa”, aqui projeta Cristo para fora da composição em direção ao espectador; na mão esquerda, o Salvador segura a cruz, troféu de sua vitória, a própria simbologia da morte passa a ser simbologia da vida; com a mão direita, resgata Adão e Eva, simbolizando todo homem e toda mulher; juntamente com os primeiros Pais, aparecem outros justos do Antigo Testamento sendo libertados da prisão da morte, que é simbolizada por ferrolhos, cadeados e portas; a gruta escura que solapa a composição lembra a gruta da Natividade e o rio Jordão no Batismo de Cristo. Cristo é a luz que brilha nas trevas, derrotando todas as suas forças; as montanhas se abrem como no Batismo e na Natividade, e, como que prestando reverência ao Salvador, arqueiam-se incandescentes pela Luz divina. Além do esquema da composição, as cores desse ícone, que vão do branco das vestes do Salvador, passando pelo azul dégradé, até o colorido dos personagens adjacentes, formam um todo harmonioso que dão a esse ícone a possibilidade de experiência da beleza profunda. No Ocidente, a Festa que corresponde à “Dormição da Mãe de Deus” (15 de 55

agosto) se denomina “Assunção de Maria Santíssima”. Ao falar da Festa, os orientais dizem: “Nós nos referimos aos últimos instantes terrenos da Virgem, quando, segundo a Tradição, os apóstolos se reuniram ao seu redor e Cristo veio buscar a sua alma” (DONADEO, 1996, p. 114). No ícone, Maria é representada deitada em seu leito pobre com uma veste azul (humanidade); no grupo dos apóstolos, vê-se Pedro, que a incensa, e Paulo, com as mãos erguidas, indica-a; do cenário participam também algumas mulheres, representando a Igreja; no centro está Cristo, que se destaca delineado por alguns serafins. Ele segura em suas mãos a alma de sua Mãe – uma pequena menina enfaixada; mais acima pode-se vê-la na glória da Vida nova, em corpo e alma. Diferentemente das representações de “Maria Assunta ao Céu”, elevada triunfante por anjos, que o Ocidente depois do Renascimento plasmou, a arte Bizantina colocou Cristo no centro do evento. É por Ele que Maria é o que é. No ícone da Festa da Ascensão (40 dias após a festa da Páscoa), clímax da Economia da Salvação, Cristo aparece como Senhor retratado sobre a parte superior do ícone e no centro da composição está sua Mãe. Novamente o TodoPoderoso é representado nos círculos azuis concêntricos, de forma que transcende de um caráter histórico limitado: Ele penetra na esfera divina totalmente, deixando sua missão à sua Igreja, simbolizada em Maria e nos Apóstolos; a Mãe de Deus não é mencionada na Ascensão, mas isso é testificado na liturgia e na Tradição (cf. KALA, 1995, p. 60); as mãos da Mãe em oração, acompanhadas de uma paz contemplativa, simboliza a natureza imutável da Verdade Revelada (aletheia), ao passo que a posição inquieta dos apóstolos expressa a variedade de línguas e meios para comunicar essa Verdade; os anjos atrás de Maria, além de destacar, pelo contraste das cores, os contornos da Mãe de Deus, apontam para o alto num gesto de anunciar não só a Ascensão, mas a Segunda Vinda de Cristo. Esse belíssimo ícone, além de comunicar a subida de Cristo, em seu esquema, aponta claramente para a Theotókos como o protótipo da Igreja militante, que espera tudo em seu Divino Esposo. Esse ícone, portanto, muito próximo do de Pentecostes, expressa o ideal de toda comunidade de fé, a comunidade dos bem-aventurados que esperam no Senhor. Os ícones que representam os Feitos e os Milagres de Cristo abrem uma temática vastíssima, seria impossível tratarmos todos aqui. São dedicadas mais quarenta páginas do antigo e famoso manual dos iconógrafos de Dionísio de FURNÁ sobre o tema dos Feitos e Milagres segundo o Evangelho (cf. DONADEO, 1997, p. 39). Os ícones descrevem desde Jesus nas Bodas de Caná aos encontros individuais, curas, revitalizações, chamados dos seguidores e episódios que chamaram a atenção das multidões. Esses ícones apresentam uma liberdade incrível para a criatividade artística e experiência de fé de muitos artistas. As composições são bastante variadas, tendo como preocupação central não o documentário histórico, mas a Teologia dos Feitos e Milagres de Jesus. Como o Evangelho, a iconografia é teologia 56

e não ciência da história. Assim, são mais numerosos os ícones que tratam a vida de Cristo em seus últimos dias terrenos: o julgamento; a flagelação; a crucifixão; episódios de aparições (à Madalena e aos apóstolos). No Ocidente, vemos um encantamento pelo conteúdo e forma da estética oriental na arte sacra. As Festas e os Feitos e Milagres que exaltam a vida de Nosso Senhor são âmbitos de experiência da Beleza em si. Compreendemos, assim, a sabedoria oriental que diz que “a beleza salvará o mundo” (DOSTOIEVSKI). A beleza que salvará o mundo é a beleza que está presente na criação, é o Redentor que desce para resgatar a beleza da humanidade desfigurada. A arte sagrada oriental intuiu isso até mesmo antes da Teologia e da Filosofia. A Face de Cristo é síntese dessa Beleza encarnada, que autoriza a comunicação dessa mesma beleza ao mundo. O desejo do Criador é que o homem e a mulher resplandeçam na figura do seu Filho.

2.5 A imagem da Trindade Ensina a doutrina da Trindade que o Deus Único, Substância Una, existe em três Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo). A razão não entende esse Mistério sem a ajuda da Revelação. Porém, tal conceito não é incompatível com os princípios do pensamento racional, como atestou a Teologia no decorrer da história. Os concílios de Niceia (325) e de Constantinopla (381) definiram a distinção, igualdade e eternidade das três Pessoas. No Antigo Testamento, os Santos Padres perceberam a Trindade prenunciada como um Mistério prestes a ser revelado (cf. KALA, 1996, p. 66). No Gênesis, Deus trata com o ser humano se apresentando ora em primeira pessoa do singular, ora em primeira pessoa do plural. Mas é no episódio narrado em Gênesis 18,1-5, onde Abraão recebe a visita de três anjos sob o carvalho de Mambré, que a Tradição identifica a maior prefiguração do Deus Uno em três Pessoas. O Novo Testamento manifesta claramente a Trindade no batismo de Cristo (cf. Lc 3,21-23) e sobretudo na entrega na cruz (cf. Lc 23,46). Todo o Novo Testamento testemunha a autocomunicação de Deus em Cristo no Espírito Santo à história. A revelação da Trindade tornou-se racionalmente aceitável. Nessa comunicação, o Grande Artista, em sua obra-prima, revelou ao mundo sua Beleza suprema. Essa Beleza divina foi comunicada para que participássemos dela. A Trindade é, portanto, o protótipo de toda comunicação iconográfica. Se no Oriente o episódio de Gênesis 18,1-5 é o texto-base para a composição do ícone da Trindade, não menos belamente, apesar que menos litúrgico, no Ocidente a entrega do Filho amado na cruz constitui o texto fundamental para a elaboração do ícone da Trindade. As duas Tradições elaboraram não “duas Trindades”, mas dois enfoques diferentes da manifestação do Amor autocomunicante de Deus. Contudo, gregos (orientais) e latinos (ocidentais) partem de pontos de referência 57

opostos: os gregos partem da pluralidade para a unidade, ou seja, das pessoas distintas para a natureza divina; os latinos partem da unidade para a pluralidade, ou seja, da natureza divina para chegar às pessoas distintas (cf. CANTALAMESSA, 2004, p. 13). Podemos dizer que há dois “movimentos” nas duas teologias, os quais recebem clara visibilidade na elaboração iconográfica. Cada uma das Tradições, apesar da plenitude que comunica, complementa a outra como os dois pulmões de um mesmo corpo ávido pelo frescor do oxigênio vital para a sua vida. A experiência cristã da Beleza inspirou dois gênios da arte na composição que representa essas duas formas de ver o Amor autodoador de Deus: a Trindade de RUBLEV no Oriente e a Trindade de MASACCIO no Ocidente, ambas do século XV. Trataremos aqui dos dois ícones como dois protótipos para o artista cristão moderno, que, na sua incansável busca da Beleza, pode contemplar nessas propostas iconográficas o sentido de toda a sua composição artística. As duas composições têm fundamento bíblico, como vimos. RUBLEV e MASACCIO, a partir de uma profunda experiência interior, souberam perscrutar no seu íntimo a coabitação da Trindade e com muita beleza, na forma e no conteúdo, comunicaram-nos tais sentimentos. É na dinâmica da Trindade que a arte como comunicação encontra seu sentido último e sua fonte primeira.

2.5.1 A Trindade de RUBLEV A narrativa de Gn 18,1-5 sempre foi vista pelos orientais como prenúncio do mistério de Deus Uno em três Pessoas: “Nas pinturas e nos mosaicos antigos (no século VI, em São Vital de Ravena), temos representada a cena completa, além dos três anjos, vemos Abraão, Sara e o novilho” (DONADEO, 1996, p. 117). Há exemplo semelhante na escola de Novgorod (do séc. XVI), Rússia. Mas foi em 1425 que Andrej RUBLEV, monge russo, pintou um ícone cheio de simbolismo e teologia, que hoje se encontra na galeria do museu Tret'jakov, em Moscou. O ícone foi declarado modelo de todas as outras representações da Santíssima Trindade pelo Concílio dos Cem Capítulos (1551). O ícone mede 114 x 142 cm e foi encomendado por São Nikon, do Mosteiro de São Sérgio, conhecido pelo seu amor à Trindade. Diferentemente do ícone de San Vitale, o ícone de RUBLEV apresenta apenas a casa de Abraão, o carvalho e uma montanha. Também substituiu o vitelo pelo cálice eucarístico e agrupou os anjos em um concílio trino e uno (cf. KALA, 1995, p. 66). No seu conteúdo, a composição ficou mais sóbria que a de San Vitale, dando um destaque maior à simbologia litúrgica e à teologia que transparece na obra. Na forma, a composição apresenta maior harmonia dos personagens, simetria e proporção nos elementos constitutivos, dando uma unidade incrível entre os anjos. As cores têm uma luminosidade e transparência extraordinárias, dando ao espectador uma sensação de paz dentro de um círculo imaginário na 58

cena (unidade e infinitude). Se formos bem atentos, é possível traçar um triângulo das três faces dos distintos anjos (distinção) e, com o cálice eucarístico, é possível traçar uma cruz (encarnação). É difícil imaginar um ícone tão rico em teologia, simbologia e beleza (cf. EVDOKIMOV apud DONADEO, 1996, p. 118). Um Deus em três Pessoas, que se completam em um círculo infinito de comunhão pericorética. Essa Trindade não está fechada, pois no centro do círculo que se forma está o cálice, que representa o Sacramento da Eucaristia e o Mistério da Encarnação. Isso parece querer dizer que o eterno diálogo das três Pessoas Divinas tem como tema a Redenção da humanidade. Em outras palavras, sua recriação. O artista não teve, aqui, preocupação em especificar as Pessoas. “O anjo da direita representa o Espírito Santo, enquanto não há certeza se o anjo do centro representa o Pai ou o Filho” (DONADEO, 1996, p. 118). O objetivo não é clareza e distinção de uma ou outra Pessoa, mas levar o fiel, por meio da obra, a contemplar a essência do Mistério de Deus. Na teoria do conhecimento ocidental, por estarmos acostumados à filosofia cartesiana, somos levados a distinguir para compreender, o que não ajuda muito no caminho da contemplação. Esse ícone traduz a eclesiologia oriental e sua Teologia. Como a Teologia oriental da Trindade parte da pluralidade das Pessoas para chegar à unidade da natureza divina, isso reflete o fundamento da eclesiologia de Paulo: somos vários e diferentes membros, com diferentes dons, mas somos chamados a formar um só corpo (cf. Rm 12,5). Assim, reflete-se uma fisionomia eclesial diferente da latina. “A pluralidade das Igrejas é um elemento assimilado e pacífico, para os orientais [...], o desafio está em como garantir também essa unidade efetiva e eficaz, preservando a autonomia de cada uma das Igrejas” (CANTALAMESSA, 2004, p. 14). O maior milagre de Pentecostes foi garantir, a partir da diferença, a unidade. Imitar a Trindade é fazer unidade na diversidade. Para além do deleite estético, o ícone de RUBLEV nos convida a “penetrar” na Trindade. O oriental, menos que entender mentalmente, quer contemplar o Mistério (teologia apofática). Não podemos abraçar o oceano (Mistério), mas podemos penetrar nele. A Eucaristia é esse meio concreto, o que aparece bem no centro da composição iconográfica de RUBLEV: os anjos circundam a mesa do cordeiro, formando com o contorno exterior de seus corpos um círculo. Pela semelhança dos anjos, o ícone é claro na doutrina pericorética da Trindade. Ele assegura que, onde está o Pai, lá também está o Filho e o Espírito Santo, e vice-versa. Os três anjos, pelo olhar respeitoso e terno, voltados um para o outro, são as três Pessoas divinas empenhadas em glorificar-se reciprocamente. O Pai glorifica o Filho; o Filho glorifica o Pai (cf. Jo 17,4); o Paráclito glorificará o Filho (Jo 16,14). Toda Pessoa se dá a conhecer fazendo conhecer a outra (cf. idem, p. 18). 59

O cristão contemporâneo, enfim, tem na contemplação da Trindade de RUBLEV a possibilidade de “[...] vencer a odiosa discórdia do mundo”, como diz são Sérgio de Rodonejski (1392). O mistério que ali contemplamos pelas mãos do artista sacro é a única resposta ao ateísmo moderno: “Se tivesse sido mantida viva na teologia a ideia do Deus Uno e Trino (antes que falar de um vago Ser Supremo), não teria sido tão fácil para Feuerbach fazer triunfar sua tese de que Deus é uma projeção que o homem faz de si” (Idem, p. 20). O que o filósofo alemão negou foi o vago deísmo, mas não o brilho da Beleza em si, expresso no Deus ternura, no Deus Trindade. A maioria dos grandes teólogos (Karl BARTH, K. RAHNER, U. von BALTHAZAR e outros) está convencida de que devemos nos reconduzir à doutrina da Trindade como centro de toda a vida cristã. Sabemos, todavia, que temos mais de “conviver” com esse dogma do que compreendê-lo. O ícone de RUBLEV é um delicioso convite a essa luz da Beleza Suprema, através da Santa Liturgia.

2.5.2 A Trindade de MASACCIO Se no Oriente a inspiração buscou no Antigo Testamento (Gn 18,1-5) a representação da Trindade, a arte sacra ocidental a buscou na narrativa neotestamentária do episódio da cruz. As representações das três Pessoas divinas sobre o Calvário aparecem em incontáveis lugares, desde representações mais simples até obras-primas. Essa composição iconográfica não tem um claro convite à liturgia como a de RUBLEV, mas resplandece uma Teologia da Redenção, que marcou a espiritualidade coletiva do Ocidente. Como protótipo, aqui, refletiremos sobre a Trindade de MASACCIO (1427), pintada num afresco de 667 cm de altura x 317 cm de largura, na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença. A Trindade é expressa como a “Cátedra da graça”, onde Deus Pai porta o Cristo na cruz em seus braços, enquanto a simbólica pomba do Espírito Santo paira entre ambos. Essa composição não é, em seu esquema, “quatrocentista” (do séc. XV), ela nasceu bem antes do Renascimento: a Igreja de São Tiago de Compostela ostenta este belíssimo símbolo em seu portal do século XII; na Catedral de Rouen (França), no portal dos livreiros (mais ou menos 1280), também há uma representação desse símbolo; na Itália, há uma infinidade dessa composição, tanto em escultura como em afrescos. Porém, foi com MASACCIO que a arte sacra conheceu a obraprima que mais bem representa esse tema, tanto no espírito de uma época como no mistério profundo do Deus amor que amou os seus até o fim (Jo 13,1). MASACCIO nasceu num período de transição da arte, bem como de todo o pensamento ocidental. É o “Quatrocento italiano”. BRUNELLESCHI, DONATELLO e MASACCIO (arquitetura, escultura e pintura), cada um em sua arte, eram revolucionários. Os seus fundamentos teriam consistido numa volta ao espírito e às formas da Antiguidade e numa nova visão da natureza e do posto do ser humano no mundo. O “Renascimento” das artes (greco-romanas), como se 60

concebeu, “[...] era fruto da conjunção de duas direções complementares: a volta à Antiguidade e a imitação da natureza [...]. Ambas sobre um tronco comum: uma visão racionalista e antropocêntrica do mundo” (LOPERA, 1995, p. 105). Com o “descobrimento” da perspectiva central e com a aplicação da proporção, acontece uma mudança radical, tanto na arquitetura como na pintura. A Trindade de MASACCIO é considerada uma obra que marca essa etapa fundamental na história da pintura ocidental. Da tríade que tradicionalmente se concebe como inaugurada do Renascimento (BRUNELLESCHI, DONATELLO e MASACCIO), é MASACCIO o mais jovem e o que antes desapareceu. Ele nasceu em São Giovanni Valdarno, em 1401. Sua carreira dura apenas 7 anos, morrendo em 1428. Sua obra é cheia de implicações que abriram uma nova era na arte ocidental. Na elaboração da Trindade, porém, “[...] a construção matemática do espaço está longe de ser um fim em si própria; nem sequer constitui meta principal, embora [...] o fresco da Trindade com a Virgem, são João e o doador, em Santa Maria Novella (1427), a aplicação dos princípios da perspectiva central [...], seja flagrante” (idem, p. 107). O afresco sacro de MASACCIO apresenta-nos Deus Pai que sustenta com os braços abertos a cruz do Filho. Entre os lábios do Pai e a face de Cristo está o Espírito Santo em forma de pomba. Abaixo está Maria, que aponta para Jesus e olha para o espectador firmemente, como que convidando para que todos se voltem para seu divino Filho. Do outro lado, João contempla com dor, mas com confiança na sua expressão. Abaixo, como que na moldura, aparecem os doadores que encomendaram a obra. Na Trindade de MASACCIO, na sua perspectiva, o ponto de fuga se encontra na base da cruz, formando um triângulo inverso, de ponta cabeça. Já os personagens todos, ignorando os doadores, formam um outro triângulo em pé. Os dois arcos perfeitos, que se sobrepõem em perspectiva, formam uma harmonia arquitetônica, que destaca o Cristo sobre a cruz. Porém, a figura geométrica que mais se destaca é o quadrado (a matéria) em detrimento dos círculos (eternidade). Apesar do esmero na perspectiva, revelando um MASACCIO arquiteto, é evidente que a preocupação do pintor está mais com a corporalidade do que com a construção matemática. Se no ícone oriental da Trindade aparece um acento maior à Transcendência, à liturgia e à teologia, sem deixar de lado a Encarnação, a Trindade ocidental dá um maior acento à Encarnação e à devoção à matéria, sem deixar de lado o mistério, a Transcendência. O artista sacro, tanto no Oriente como no Ocidente, não quer fazer especulação teológica, mas expressar a partir de uma experiência pessoal como a Trindade se revela na história da Salvação. Os artistas sacros levaram vantagem em relação aos teólogos, “[...] não tiveram de esperar Karl Rahner para saber que 'a Trindade imanente é a Trindade econômica e vice-versa', razão pela qual tudo quanto podemos dizer sobre a Trindade deve tomar como base o que a respeito dela nos foi 61

revelado na história da Salvação” (CANTALAMESSA, 2004, p. 26). Para surpresa de um mundo amante da força e do poder, é na cruz de Jesus que Deus revela a Salvação para toda a humanidade. Na aparente derrota, o Deusternura, ou Trindade, comunica a sua Salvação ao mundo. Passados 2000 anos, esse Mistério ainda nos confunde, ele se revela na contramão da lógica com a qual estamos habituados. Mas é por essa via que a Teologia da Cruz suporta em si a Teologia da Ternura de Deus. A cruz só é compreensível à luz do abandono nas mãos do Pai. A Ele o Filho entrega o seu Espírito. O Amor que emana dessa composição da Trindade é a ternura da Glória, pois tudo fora cumprido (cf. Jo 19,30). MASACCIO expressa em seu ícone o dom de Deus. Deus Pai comunicou o seu Ícone perfeito a um mundo no rosto de Jesus de Nazaré. Ao se entregar ao Pai, Jesus se entrega livremente ao/pelo mundo (cf. Jo 3,16-17; 17,3-4.18). Assim, para Santo Tomás, a beleza é sobretudo “[...] sair de si para abandonar-se ao outro e para os outros” (apud FORTE, 2002, p. 65). O nome desse gesto é Ágape. Esse Ágape é o amor descendente de Deus aos seus até a loucura da cruz. É Deus que se esvazia, descendo ao encontro da humanidade, por isso, talvez, artisticamente a Trindade ocidental é representada em sua composição de forma vertical. Da Trindade descende a vocação da Igreja, fiel a seu Mestre. Ela é Sacramento dessa doação. Olhando Cristo na cruz, compreenderá a sua missão, uma vez que a cruz é o acontecimento na história da Beleza do Pai-Amante, do Filho-Amado e do Espírito-Amor. O ícone da Trindade de MASACCIO lança luz inspiradora a uma Eclesiologia trinitária que chama ao serviço da humanização. O pintor viveu numa época de resgate dos valores humanos, o que jamais se contrapõe à vontade de Deus. A composição ocidental do ícone da Trindade fez dos artistas sacros comunicadores de uma teologia que seria elaborada muitos anos depois: a temática do sofrimento de Deus. A experiência cristã da beleza transcende o tempo e o espaço. Tanto teólogos católicos como protestantes, só no século XX vieram refletir sobre essa temática. Para o teólogo protestante MOLTMANN (1972, p. 282), “[...] a teologia da cruz deve ser doutrina da Trindade, e a doutrina trinitária, teologia da cruz”. Para o teólogo católico H. von BALTHASAR, que vai mais além, o que acontece sobre a cruz constitui um reflexo do que ocorre na própria Trindade, anteriormente ao tempo: “[...] no ato de gerá-lo, o Pai expropria-se totalmente de sua divindade para doá-la ao Filho, em uma renúncia absoluta a ser Deus sozinho. Há um 'teo-drama' [...]. O movimento infinito das divinas Pessoas de doar-se uma à outra implica também um movimento de separação, ambos mantidos e superados graças ao Espírito” (BALTHASAR apud CANTALAMESSA, 2004, p. 27). Assim, entendemos também a distinção das Pessoas divinas que aparecem mais na representação iconográfica ocidental. O Espírito Santo é o amor de Deus em 62

Pessoa, que supera a distinção, mas nesse teo-drama Ele é também a “dor de Deus em pessoa” (cf. H. MUHLEN, 1988). O sofrimento existencial pelo qual passa o ser humano fez o homem ocidental se indagar: “Onde Deus está?”. A Palavra de Deus e a Tradição, bem como a martyria, responderam: Deus está com a humanidade que sofre. Ele não é um “ser supremo” alienado da realidade do mundo. O Deus bíblico é o que garante o hálito vivificador das criaturas (Sl 104). MASACCIO, animado por essa inspiração, plasmou esse Deus Pai que acolhe para vivificar o homem caído. O vermelho e o azul são as cores que predominam nos personagens. Respectivamente, a humanidade e Deus estão envolvidos num ato de entrega um ao outro. O afresco não quer apresentar um “Deus crucificado” e parceiro do ser humano apenas no sofrimento. Pois, como diz o próprio Santo Agostinho (Confissões, X, 20): “Quando eu te busco, a ti que és o meu Deus, busco a felicidade”. A tradição latina, ao dar acento à teologia da cruz, resvalou muitas vezes para uma visão negativa da vida terrena. Mas em seu próprio interior ela possui o seu remédio. Escreveu Hilário de POITIERS que, no Pai, realiza-se a imensidade, no Filho, a manifestação, no Espírito, o gozo, a alegria (cf. CANTALAMESSA, 2004, pp. 29-30). O amor revela-se mais forte que o pecado. A aparente derrota já é júbilo, a cruz é o troféu do Cristo. “Tu és júbilo e alegria”, exclama Francisco de Assis em seu louvor ao Deus Altíssimo. Novamente, como afirma São Sérgio de Rodanez (+1392), Contemplando a Trindade, venceremos a grande discórdia do mundo. Deus desce, assume-nos e eleva-nos, revela-se revelando-nos. Ele ultrapassa os umbrais do maior mistério, que é a morte, e nos dá a conhecer seu Amor. MASACCIO quis expressar esse movimento kenótico de Deus. O Pai, ao sustentar e elevar a cruz, está sustentando e elevando toda a matéria em seus quatro elementos. O centro da pintura, que mostra Cristo de braços abertos, lembra o “homem vitruviano” (1492) de Leonardo da VINCI, símbolo do humanismo renascentista. Por outro lado, os meios-círculos dos arcos somados à figura quadrática da cruz sugerem não um homem como medida de todas as coisas, mas o homem sendo acolhido pelo amor de Deus sem medida. É a Encarnação e a Redenção. Matemática e teologia mesclam humanidade e divindade no afresco de MASACCIO. Apesar da Trindade de MASACCIO ser representada na cruz, ele sabe que Deus é felicidade, porque Ele é amor. Porém, “Deus é amor” e não “o amor é Deus"; em outras palavras, “Deus é a felicidade” e não “a felicidade é Deus”. Ao inverter essa frase, a começar no Renascimento, o ser humano moderno conheceu fragmentos de felicidade e de amor, e absolutizou-os. Fez da alegria momentânea um ídolo. O ícone do pintor italiano faz convite à outra felicidade, à eterna. Quem busca a Deus encontra a felicidade, mas quem busca felicidade nem sempre encontra a Deus. Isso poder ser aplicado à beleza, o que veremos no próximo capítulo. 63

O afresco de MASACCIO, assim como o ícone de RUBLEV, ambos do século XV, mostram duas interpretações que traduzem, respectivamente, uma Igreja da ética e da ação e outra da estética e da contemplação (beleza e liturgia). Duas dimensões ou horizontes teológicos que são complementares. As duas pinturas nos comunicam experiências profundas do Mistério da Beleza em si. E as duas nos remetem à consciência do mergulho na Beleza divina. A tradição latina desenvolveu a doutrina bíblica da coabitação da Trindade na alma humana. “Meu Pai o amará; nós viremos a ele e estabeleceremos a nossa morada” (Jo 14,23). O místico São João da Cruz foi grande perito da Beleza divina. Para ele, o amor divino que é derramado em nós pelo Espírito (Rm 5,5) é o amor com que o Pai ama seu Filho, o que está expresso no afresco de MASACCIO: “O mesmo amor que comunica ao Filho, ainda que isso não ocorra por natureza, mas por união. [...] a alma participa de Deus, realizando, justamente com Ele, a obra da Santíssima Trindade” (São João da CRUZ apud CANTALAMESSA, 2004, p. 34). A pintura de MASACCIO é um convite a fazermos essa experiência da beleza oceânica da Trindade. Para isso, aprendendo com os ortodoxos, temos mais de contemplar do que compreender a Trindade. A experiência cristã da beleza subentende humildade e pobreza de Espírito.

2.6 Beleza e unidade Sendo a Trindade a comunhão de amor, criando o homem à sua imagem e semelhança, criou-o ser comunicante. O desejo de Cristo é que os seus permaneçam unidos nessa comunicação (comunhão + ação) “[...] a fim de que todos sejam um” (Jo 17,21). A Igreja primitiva vivia genuinamente a unidade (cf. At 4,32). É em Cristo, ícone do Pai, que a Igreja é vocacionada a viver essa unidade (cf. Gl 3,28). Os ícones são um apelo incansável à unidade. A exortação de São Sérgio nos impele, por meio da arte sacra, continuamente, a contemplar a Beleza para vencer a divisão do mundo. O apelo de unidade é mais gritante à comunhão das igrejas cristãs. A unidade é testemunho, não teoria. Sendo imagem da Beleza trinitária, é inadmissível que haja divisão na Igreja. O papa João Paulo II, em suas cartas, inspiradas na Palavra de Deus e na Tradição do Concílio Vaticano II (Unitatis Redintegratio), diz: “[...] antes de programar iniciativas concretas, é preciso promover uma espiritualidade de comunhão, fazendo-a emergir como princípio educativo em todos os lugares onde se plasma o homem e o cristão” (n. 43). Sem dúvida que João Paulo II pensava também na arte quando disse, na Ut unum sint, n. 19: “[...] a expressão da verdade pode ser multiforme e a renovação das formas de expressão se faz necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica em seu imutável significado” (cf. PLAZAOLA, 2001, p. 329). Opostamente ao Barroco, arte da Contrarreforma, a arte forjada na espiritualidade do Vaticano II é ecumênica. Atualmente, estão se realizando 64

centros litúrgicos de caráter ecumênico nos Estados Unidos, Alemanha, Suíça, França e em outros países. Celebram-se reuniões, congratulam-se, fazem orações e congressos que procuram encurtar distâncias e manifestam a vontade comum de chegar à unidade. Na maioria das manifestações de apelo à comunhão na pluralidade, está presente a iconografia como plasticidade da Beleza que se comunica para a união. Existem muitos mosteiros dedicados à arte sacra em harmonia com o ecumenismo. Um belíssimo exemplo é a Fraternidade de Taizé, que nasceu na França e hoje está espalhada por todo o mundo. O crescente e contínuo interesse pela imagem sagrada oriental que há no Ocidente faz do ícone um “lugar ecumênico” (cf. DONADEO, 1997, p. 5). A arte é um campo fértil de diálogo e de unidade. Esse âmbito da capacidade cognoscitiva do ser humano é um lugar privilegiado de transmutação das relações interpessoais. A arte transmuta a moral, a ética, a religião em alegria. “Se a arte pôde transmitir o sentimento de reverência por ícones, pela eucaristia ou [...] o sentimento de vergonha pela traição da amizade [...], a mesma arte pode evocar reverência pela dignidade da vida de cada homem”. A arte, ainda, tem a capacidade de mostrar a alegria da união para além da vida. Ao comunicar o Deus Uno, vai “[...] unindo as mais diversas pessoas em um só sentimento, abolindo a separação [...], educará a humanidade para a união, para além das barreiras instaladas pela vida. O propósito da arte [...] consiste em transferir do campo da razão para o do sentimento a verdade de que o bem-estar das pessoas reside na união e em estabelecerem, em lugar da violência, o Reino de Deus – o amor – que todos consideram o mais alto objetivo da vida humana” (TOLSTOI, 2002, pp. 272-273). Os “dois pulmões” do Cristianismo, a Igreja ocidental e a oriental, para além de uma política de “boa vizinhança”, cada uma em sua rica peculiaridade, são convidados a reafirmar cada vez mais a unidade. A redescoberta da iconografia no Ocidente, somada à proposta eclesial do Vaticano II em voltar às fontes, são indicadores dessa união. Na experiência cristã da Beleza, são mais vívidos os pontos de unidade do que os de diferença. Após o Concílio, a arte sacra bebe fortemente da rica Tradição oriental, por sua sensibilidade e atualidade. “Não é segredo que algumas experiências da nova liturgia, realizadas tanto em terreno católico (verbi gratia em Paris) como protestante (relatos de Harvey COX), buscam inspiração bizantina” (MALDONADO, 1980, p. 160). Com a reforma litúrgica, muitas edificações se tornaram mais sóbrias, depurando-se da estética contrarreformista e antiecumênica do Barroco (que também teve sua beleza). Não se entendendo essa evolução, há poucos anos se dizia: “Nossas igrejas parecem protestantes!”. Não se entendia que o que estava acontecendo era uma abertura da estética religiosa ao novo e a um melhor uso do espaço litúrgico. Os presbitérios, lugar do Mistério, tornaram-se mais comunicativos e acolhedores ao se aproximarem da assembleia. O trato das cores é menos carregado, expressando a suavidade da experiência do que se celebra. 65

Aprendemos também com os protestantes, pois o Espírito Santo que age nesses irmãos pode contribuir para a nossa edificação (cf. UR 4). A beleza da unidade, enfim, leva-nos a comungar com a ideia de que “[...] a arte cristã do século XXI será ecumênica ou não será nada” (PLAZAOLA, 2001, p. 329). O artista sacro, ao ser instrumento de comunicação (comum + ação), é plasmador de um âmbito de presença do Divino Uno e Trino. A arte não é serva da moral, ou de outra disciplina, pois em seus próprios elementos constitutivos é unitiva, faz comunhão e aponta para o bem, ao verdadeiro, ao belo (kalós). É a Beleza da unidade na pluralidade. A arte é ecumênica desde sua raiz comunicativa.

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CAPÍTULO III

A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DA BELEZA HOJE

A

experiência cristã da Beleza é sempre uma experiência de fé. Assim, tem suas pressuposições: a primeira é a de que Deus se autodoa em toda a nossa experiência. Ele não só cria, como sustenta, levando à plenitude toda essa criação; a segunda é que esse Deus autodoador é Bondade, Verdade e Beleza em si. A Revelação plenifica a razão acerca desses pressupostos: “Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo seus desígnios” (Rm 8,28). A Beleza, esplendor da Verdade e da Bondade de Deus, é para quem o ama, visível em toda experiência. Deus deixou vestígios de amor em toda criação. Nunca foi tão urgente a necessidade de tomarmos consciência disso. “Que os artistas nos ajudem a descobrir a presença e a misericórdia de Deus no mundo de hoje” (STEFFEN, 2002, p. 14). Deus fez duas composições para nos instruir, diz santo Agostinho: o livro da criação e o da Escritura. Cada criatura é um “texto” admirável a nos ensinar a beleza da vida e de Deus. Infelizmente, o ser humano não sabe mais ler. Não é necessário só o intelecto, mas é preciso desenvolver os talentos (cf. Mt 25,15-30), formar nossa sensibilidade nessa escola onde os artistas são os mestres (cf. idem). O fazer artístico não é produto apenas de um homo faber. A composição, a música, o quadro, o poema, começam no encantamento primeiro, ou inspiração, como gotas de epifanias da Beleza em si que conduzem ao Criador. Esse caminho é sempre um movimento de extravasamento, de comunicação das experiências mais profundas. No decorrer dos tempos, a arte cristã vai aprimorando sua experiência de Beleza. Atualmente, existem muitas influências na arte dita religiosa e sacra. Porém, como estamos vendo, a tendência que mais está respondendo à busca do artista sacro e da liturgia é a volta às origens da Tradição cristã. A tendência das pequenas comunidades vividas nas origens da Igreja e que se fazem sentir hoje nos pequenos grupos de vida contemplativa, pequenas comunidades de leigos consagrados, grupos de reflexão, comunidades eclesiais de base, plasmam também arquitetonicamente novas igrejas, renovada iconografia. O objetivo é plasmar âmbitos epifânicos do Sagrado encarnado. Aqui, a funcionalidade e a dinamicidade ocidentais, somadas à essencialidade e à estabilidade orientais, não são contradição, mas complementação. Assim, podemos traçar algumas características da sensibilidade atual no que tange à experiência cristã da Beleza. A arte sacra contemporânea não quer somente ser expressão de lugares belos ou de espaços grandiosos, mas quer dar a possibilidade de ofertar à comunidade crente expressões criativas que sejam a manifestação luminosa da vida em unidade com a cultura da comunidade. Apesar 67

de estar ancorada na experiência do primeiro milênio, a arte sacra contemporânea apresenta peculiaridades diferentes da arte sacra medieval. Isso naturalmente se dá porque a época atual apresenta características diferentes de expressão da sensibilidade. Dentre elas, quatro são marcantes: 1) O essencialismo: há um apelo ao simples, um esforço em se abstrair do acessório (o superficial), para destacar o essencial, o Transcendente; 2) A sinceridade: essa característica se expressa no respeito à matéria, o natural, e não ao descartável. Há uma sensibilidade crescente em relação à ecologia. Terra, água, ar e fogo são símbolos carregados de sentido, que hoje se recuperam. Não há matéria nobre ou ignóbil, mas verdadeira (madeira, pedra, ferro etc.) ou falsa (acrílico, plástico, isopor etc.); 3) A funcionalidade: esse é um valor dos tempos modernos na expressão da sensibilidade. Para o homem moderno, há certa proximidade entre o belo e o funcionalmente perfeito, como tão bem protagonizou Le Corbusier em sua arquitetura. Estabeleceu-se um vínculo entre a obra bem-feita e a obra bela. O reto funcionamento, aqui, não significa executar uma obra artística sob o impulso do frio cálculo racional, mas descobrir a alma profunda das coisas e encará-las num meio expressivo concreto; 4) A economia dos meios expressivos: a arte sacra se expressa por meios “pobres”. Isso acontece quando um artista consegue um máximo de expressividade usando um mínimo de recursos expressivos. Muitas composições, em poucos traços, comunicam mais o Mistério do que outras que, com riqueza de detalhes, não transcendem o cotidiano. Essa dialogicidade de pobreza e riqueza revela o verdadeiro ato criativo do artista. Estamos mergulhados no tempo da imagem. O bombardeio visual da publicidade ameaça tolher a contemplação do que é perene, que está no elemento simples. Recuperar os símbolos que comunicam a essência humana e divina é algo urgente. A experiência cristã da Beleza hoje, ao que parece, tem de passar por essas características da sensibilidade atual. A primeira, o essencialismo, é a característica definidora das outras três, ou seja, é através da busca pelo essencial que a arte sacra contemporânea plasma âmbitos, deixando o mistério falar através da Liturgia. Uma bela decoração, então, não é mais definida, como no Barroco, pelo número de coisas presentes, mas pela qualidade e expressividade que cada objeto tem a dizer. Um belo ícone contemporâneo revela melhor o mistério nos poucos traços e cores chapadas do que na riqueza dispersiva dos detalhes acessórios, que leva a uma poluição visual, dispersando a concentração. A iconografia bizantina inspira-nos nessa belíssima busca de essencialidade, sinceridade, funcionalidade e economia. A arte sacra contemporânea, enfim, além de uma volta à origem da piedade 68

cristã, é também uma volta ao natural, à matéria, que está grávida da forma. Se a arte sacra na modernidade foi um apelo às grandes construções que desafiavam as leis da gravidade, da física, do natural, enfim, a tendência “pós-moderna” dessa arte é assumir a simplicidade do natural (cores, materiais e traços da natureza), experimentando ali o Mistério que emerge. É, com isso, também um resgate do valor das culturas autóctones, as experiências inculturadas nas pequenas comunidades (cf. MACHADO, 2004, p. 26). Deus nos comunicou seu Amor pela natureza, a experiência estética do cristão é o deleite desse Amor, mistério essencial. Assim, na iconografia, a moderação, a autenticidade e a revalorização da matéria são aspectos concernentes nesta busca do profundo, que vão moldando um novo caminho à arte litúrgica e à Teologia da Beleza.

3.1 A função da arte sacra Ao falar da arte em geral, diríamos que, no decorrer da história, ela conheceu várias funções. Ora serviu para contar uma história, ora para rememorar acontecimentos importantes, ora para despertar sentimento religioso ou cívico. Só no século XX, a obra de arte passou a ser um objeto desvinculado desses interesses não artísticos (cf. ARANHA, 1993, p. 350). Entretanto, tais funções não podem ser entendidas como separadas, estanques, da saga da expressão artística. Em outras palavras, uma função é um paradigma, instância de juízo do fazer artístico e que, apesar de ser mais praticado em uma época ou cultura, não desaparece com o advento de outro. Além disso, a arte, tendo a comunicação como categoria intrínseca, não realiza sua função específica quando se aliena totalmente da ética, da religião, da política, da interdisciplinaridade, enfim (cf. QUINTAZ, 1996). A tentativa de uma “arte pela arte” mergulhou a arte contemporânea ocidental num caminho de “nadificação”, desumanização, como diz ORTEGA Y GASSET (1991, p. 41). Para falarmos da função da arte sacra, temos de nos reportar à função da arte em geral. Existe uma função pragmática na arte, extrínseca a ela. Podemos dizer que nessa função existem várias finalidades a serviço das quais a arte pode estar. As finalidades podem ser pedagógicas, religiosas, políticas ou sociais: • finalidade pedagógica da arte: foi paradigma durante a Idade Média; pelo fato de a grande maioria da população ser analfabeta, a arte serviu para ensinar a doutrina católica, que configurou à sociedade europeia uma cristandade; • finalidade religiosa da arte: na época da Contrarreforma (Barroco), a arte foi utilizada mais para emocionar os fiéis, mostrando tanto o triunfo do Catolicismo sobre o mundo Protestante, como também a riqueza do Reino dos Céus; • finalidade política da arte: além dos pintores palacianos (Velásquez, L. David, Ingres e outros), a arte dita “engajada” serviu para divulgar a ideologia política do socialismo no final do século XIX e início do século XX. O objetivo 69

era conscientizar a população sobre sua realidade socioeconômica. Essa mesma finalidade é usada, hoje, como aquela que dita as regras de comportamento no mundo globalizado. Na perspectiva da função pragmática (utilitária), o critério para se avaliar uma obra de arte, consequentemente, será exterior à obra: “O critério moral do valor da finalidade a que serve (se a finalidade for boa, a obra é boa); e o critério de eficácia da obra em relação à finalidade (se o fim for atingido, a obra é boa)” (ARANHA, 1993, p. 350). A arte, como vemos, não é encarada do ponto de vista estético apenas. A arte também tem uma “função naturalista”. Essa função refere-se aos interesses pelo conteúdo da obra, pelo “o quê” a obra retrata, em detrimento da sua forma ou modo de representação. Essa função racionalista já aparece no século V a.C., nas esculturas e pinturas que tentam reproduzir o real, “imitação da natureza”, como dizia Platão. Essa característica esteve muito presente na arte ocidental até o século XIX, quando surgiu a fotografia (cf. idem, p. 351). A partir daí, houve uma “morte da arte”, uma crise do paradigma naturalista. Crise esta que culminou com o advento da arte Moderna, que não pretendia copiar a natureza (objetivismo), mas expressar os sentimentos a partir de uma experiência do sujeito no mundo (subjetividade). Assim como na função pragmática, a função naturalista, a obra tem a função referencial de nos enviar para fora do mundo artístico, para o mundo do objeto retratado naturalisticamente. Os critérios para avaliar uma obra na perspectiva naturalista são: a “correção” (o assunto retratado deve ser reproduzido corretamente, como se apresenta na natureza); a “inteireza” (o assunto deve ser representado por inteiro); e o “vigor” (o assunto retratado tem de persuadir, emocionar o espectador). Uma terceira função é a “formalista”. Como a própria palavra diz, preocupa-se com a forma da representação da obra. Essa, portanto, é a função que se ocupa única e exclusivamente pela obra enquanto tal e por motivos que não são extrínsecos à arte. Nesta função, buscamos na obra de arte os princípios que regem sua organização interna: que elementos entram na sua composição e que relação há entre eles. Assim, a experiência estética, diálogo autor-obra-espectador, é um momento em que, pela intuição, temos uma consciência intensificada do mundo, de nós e do Mistério. A arte passa a ser uma forma de conhecimento. É um conhecimento que não pode ser formulado teoricamente, pois ele é imediato, sensível, concreto (cf. idem, p. 346). O critério através do qual uma obra artística será avaliada nessa função é a sua capacidade de “sustentar a contemplação estética” do espectador, em outras palavras, de “[...] comunicar sentimento de uma experiência profunda vivenciada, contagiando o mundo”, como diz TOLSTOI (2002, p. 15). Tanto a função pragmática como a naturalista e a formalista não podem ser tomadas de modo absoluto. Contudo, é a forma que dá perpetuidade e universalidade à obra, o conteúdo tem o mérito de ser a roupagem, o particular. Não 70

há uma obra, por exemplo, que, tentando passar uma doutrina, não atinja primeiro por sua forma, ou seja, a obra atinge mais por seus recursos expressivos do que por sua finalidade ou por seu conteúdo. O conteúdo (tema) da Santíssima Trindade, por exemplo, numerosos autores sacros o representaram no tempo. No entanto, dentre todos esses “conteúdos” da Trindade, aquele mais conhecido, contemplado e imitado é o de RUBLEV. Isso acontece pela forma, isto é, como o artista russo soube utilizar os elementos específicos de sua arte, suas linhas e cores, na organização da composição que concorre para comunicar ao espectador o sentimento de que algo transcendente está acontecendo entre aqueles três anjos sentados à mesa. Se o conteúdo apenas, por si, tivesse valor maior, todas as composições sobre a Trindade seriam grandes obras como a de RUBLEV para a arte sacra. A tarefa da arte, portanto, para além de um repasse de uma doutrina em si, ou para além da cópia do real, ou uma arte pela arte (restrita a uma elite), tem de comunicar em sua forma e conteúdo uma experiência imediata que faz da arte um conhecimento autônomo. Nesse aporte, a arte sacra não deixa de comunicar a Teologia cristã, mas os recursos expressivos que usa em sua organização interna não são aulas de teologia, são, sim, uma peculiar experiência com o profundo de cada pessoa e em cada pessoa a presença do divino. A arte sacra está a serviço da liturgia, mas tem um “estatuto”, uma regra que lhe é intrínseca. Esta especificidade não a aliena da Liturgia, mas, por sua ação comunicativa, resplandece a luminosa Beleza divina na Ação de Graças prestada ao Criador. Isso é o que lhe permite, mesmo estando intimamente ligada à Tradição, produzir obras inovadoras e até revolucionárias (cf. LICHTENSTEIN, 2004, p. 12), pois o Espírito do Senhor renova todas as coisas. É o poder da forma, que contém em si a maravilhosa chama que sempre renova o conteúdo de cada tempo e de cada cultura. Assim, a iconografia, mesmo a mais ortodoxa nos cânones, sem negar a Tradição, comunica a chama viva da fé na Igreja sem ser imobilismo estético.

3.2 A arte sacra na contemporaneidade Toda arte é fruto de uma época e colabora também para o espírito dessa época. Não podemos deixar de lado a correlação que existe entre o cotidiano social e a arte. Encontramo-nos em uma época de crise de paradigmas, importa a orientação que dermos à arte sacra na busca de soluções que oferecemos aos grandes temas que conferem à nossa vida espiritual um impulso e seu sentido mais profundo. O discurso da pós-modernidade aponta criticamente para os grandes projetos, ideologias e sistemas pautados no discurso técnico científico da modernidade. Em outras palavras, na atualidade, é vertiginoso o questionamento da fé cega na razão instrumental, que há muito se concebia como a única possibilidade de salvar o mundo. Como busca inversa a essa razão, testemunhamos em plena era da informática a volta do encantamento pelo mistério, pela espiritualidade e pelos 71

referenciais de sentido nas religiões, o que há muito estava enterrado. Percebemos também uma volta ao mito. Nunca Hollywood fez tantos filmes que explorassem temas mitológicos do homem ocidental: a segunda versão de “Guerra nas estrelas"; “Harry Potter"; “O Senhor dos Anéis” e mais recentemente “Troia” e “Matrix”. Quando se fala de volta à religiosidade, porém, não se pode dizer que se está voltando apenas às instituições religiosas tradicionais. Os referenciais de sentido são buscados tanto no Cristianismo católico, protestante, pentecostal, como nas mais diferentes e curiosas expressões de religiosidade em forte relação com a natureza. O ser humano pós-moderno tem sede de experiência do Profundo. No campo da arte, observa-se uma expressão diferente que a dita “arte moderna”, muitos não hesitam em falar de uma arte pós-moderna (cf. PLAZAOLA, 2001, p. 331). Na arte visual, se antes (arte moderna) se valorizavam os grandes espaços (arquitetura) que pela engenharia e racionalidade desafiavam as leis da natureza e até mesmo pretendiam negar o natural, nas mais recentes obras seguese um movimento inverso. Estão se valorizando os pequenos espaços em harmonia com a natureza criada. A arquitetura e a pintura modernas expressavam uma cultura racional, atingida pela cultura anglo-saxônica, ao passo que as mais novas obras nessas artes valorizam sobremaneira as culturas autóctones (cf. MACHADO, 2004, p. 26). Pois a cultura é o modo peculiar que cada povo tem de cultivar as próprias relações interpessoais, com a natureza e com Deus. Se a arte inspirada no Vaticano II quer ser realmente sacra, ou seja, evangelizadora, tem de se despir dos prejuízos da cultura dominante (em seu conteúdo) e converter-se numa expressão da cultura local, comunicando (na forma) a beleza de Deus a partir daquele ambiente. No Brasil, Cláudio Pastro na pintura, Regina Celi de Alburquerque Machado na arquitetura são exemplos ilustrativos. Apesar de contemplarmos aqui a arte sacra figurativa e simbólica, não queremos invalidar a arte não figurativa ou religiosa-abstrata, na experiência cristã da Beleza. A arte abstrata não é conquista apenas da arte moderna ocidental. As culturas autóctones, em suas simbologias, também contemplam essa forma de expressão. Ambas as linguagens (abstrata e figurativa) têm servido à arte cristã desde as origens. A experiência que a linguagem abstrata comunica no cristão é profunda: “Basta entrar na capela de Les Bréseux ou na igreja do Santo Sepulcro de Abbeville para se persuadir de que os vitrais abstratos de Alfred Manessier são uma suficiente invocação ao recolhimento e à oração. Basta dirigir-se ao batistério do Sagrado Coração de Audincourt para sentir a alegria da fé, como devia sentir Jean Bazaine ao conceber aqueles cromatismos de cristal resplandecente [...]”. Porém, a arte abstrata difere da figurativa bizantina pela falta de objetividade que se requer à iconografia: “Se sente uma surpresa pela infinita diversidade de seus resultados formais, como corresponde à variedade de temperamentos e sensibilidades de seus autores” (PLAZAOLA, 2001, p. 325).

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Nos estilos de vanguarda da Arte Moderna, especialmente no Surrealismo, percebemos um primeiro manifesto contra o tecnicismo e a matematização do espaço e consequentemente, da pessoa. Apesar de ser um movimento artístico, fundado por André BRETON (1924), em Paris, que se baseou mais na psicanálise para justificar sua arte do que em teorias estéticas, o Surrealismo firmou-se como uma busca do homem moderno pelo sentido da vida, tendo como contexto a Europa do pós-guerra (1914-1917). O gênero humano sente a necessidade de conhecer-se mais, a razão instrumental não foi suficiente, a arte é a expressão de um ser que está buscando o seu verdadeiro sentido de “estar aqui”. O Surrealismo, parafraseando JUNG, é a expressão artística que mais bem captou essa “crise de identidade” da humanidade ocidental (cf. 1964, p. 157). Como a busca de comunicação com o mais profundo do humano é também uma busca de Deus, há muitas obras desse movimento que traduzem experiências místicas, um belo exemplo é a obra “A cruz de São João da Cruz”, de Salvador Dalí. A arte sacra, em suma, ao apresentar novas características quanto à expressão da sensibilidade (essencialismo, sinceridade e funcionalismo), perante a pósmodernidade não está apostando no saudosismo medieval. A valorização da simplicidade na expressão artística e na liturgia é um valor conquistado e inspirado na tradição conciliar. A arte sacra busca a sua identidade na sua forma de expressão mais genuína, o ícone, mas sem ser um copismo dos grandes mestres. A iconografia, ao fazer parte do reencantamento pela espiritualidade, não nega a cultura, mas, sim, procura, através de seus meios expressivos, comunicar as sementes do Verbo que já estão nessa cultura. Na contemporaneidade ou pósmodernidade, a arte sacra tem de ser atinente à proposta do Reino. Ele, que se revela como simples e pequena semente no chão das diferentes culturas, e que, nascendo vicejante, dá seus belos frutos de acordo com a fertilidade do terreno, sem perder a sua identidade de Reino de Beleza, é o sentido de toda arte inculturada. Assim, o rosto do Transfigurado brilha nas diferentes etnias como prenúncio da imagem de todo homem transfigurado em Cristo Jesus.

3.3 A Teologia do Ícone, uma Teologia da Beleza A teologia ocidental, por muito tempo, acentuou o caráter moral do cristianismo, não sem certo prejuízo do caráter estético da criação. Hodiernamente, não raro, deparamo-nos com prolegômenos de uma Teologia da beleza (cf. NAVONE, 1999). A contribuição da Igreja Oriental a esse respeito se faz sentir (cf. DANADEO, 1997). A Teologia cristã, baseada na revelação de que o Deus Uno é Criador de todas as coisas, entende que podemos conhecer a Verdade, amar a Bondade e nos deleitar com a Beleza de todas as coisas, pois antes o Deus Criador conheceu, amou e se deleitou com toda a criação: “E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito bom” (Gn 1,31). Esse “bom” (tov), insistimos, tem tripla conotação: bondade, beleza e verdade, correspondendo ao termo grego kalós. Nessa 73

perspectiva, percebemos no relato da criação (Gn 1,1-31) uma progressiva sucessão onde Deus plasma desde os astros e os elementos mais primitivos (terra, água, ar e fogo), passando pelas plantas, peixes, répteis, aves, mamíferos, até o ser humano. O deleite ou a contemplação de Deus também é progressivo. Se criar os astros, minerais, plantas e animais era belo, criar o ser humano à sua imagem e semelhança é muito belo (vv. 26-31). O ser humano constituiu-se na mais bela obra, ícone de Deus. Ele foi belamente moldado, em obediência amorosa ao desejo/amor e à Sabedoria do Pai Artista. Quando a humanidade se afastou da Divina Face do Criador, ela perdeu a sua bela forma e passou a errar pelo mundo. Sendo belo Amor, o Criador vem ao encontro por seu Filho que, obediente ao Pai, transforma e transfigura mediante sua Imagem perfeita. Contemplamos a Beleza em si no Cristo Crucificado e Glorificado. “Alegremo-nos e nele exultemos” (Sl 32,11; Ap 19,7). O cristão, hoje, mais do que ninguém, é testemunha da beleza. O discurso de despedida de Jesus oferece outro dado para a Teologia da Beleza. Jesus explica que é com satisfação que se dirige à glorificação ao dar a própria vida por toda a humanidade, a fim de que a alegria de sua vida em Deus, na Beleza em si, possa tornar-se nossa. A felicidade eterna é a visão beatífica da Beleza em si. À luz desse amor, tudo é amável; à luz da Beleza, tudo é belo. A plenitude da vida é a plenitude do amor e do deleite na Beleza em si. O amor autodoador da Beleza em si, revelado no amor invencível do Cristo Crucificado e Ascendido, atrai-nos a si na beleza verdadeira de todas as coisas, a dádiva e o chamado do Criador [...] (NAVONE, 1999, p. 6).

Entendemos, dessa forma, as palavras de Santo Tomás ao dizer que a Beleza cristã é um “sair de si” para “abandonar-se ao outro” e “para os outros”. O Verbo do Pai, sendo beleza resplandecente, não se apegou a tal condição e não hesitou em assumir fealdade, desprezo, para revelar a verdadeira Beleza/Amor. Essa consciência faz do cristão alguém que vê em tudo o amor radiante de Deus. A fé, a esperança e a caridade nos capacitam à visão legítima do mundo como dádiva do Criador amoroso, irradiando alegria eterna. A fé na Boa-Nova transforma o olho do crente, consequentemente o faz lâmpada que ilumina (cf. Lc 11,33-36). Ele distingue a verdadeira Beleza da beleza fugaz. Nessa tarefa, tanto o artista quanto o teólogo são pessoas que nos ajudam a entrar em relação de presença com o Mistério. São João Damasceno, em sua “Homilia sobre a transfiguração do Senhor”, diz que trazemos em nossos corações a beleza da realidade divina. Para ele, a transfiguração não foi mudança ontológica na pessoa de Cristo, mas uma revelação, aos olhos dos discípulos, do que esteve lá o tempo todo (cf. idem, p. 33). Aqui, voltamos ao conceito de arte como ação comunicativa, de TOLSTOI. Uma obra artística existe no artista antes de ele a executar. O autor humano desfruta a obra em sua mente, no seu coração e na imaginação antes que qualquer outra pessoa possa vê-la e contemplá-la. Quando, finalmente, vemos e contemplamos a obra executada, estamos de fato contemplando o artista e sua experiência profunda. Analogamente, sempre quando nos deleitamos com a beleza da criação, 74

estamos deleitando-nos com o seu Criador. Para os olhos do cristão, o mundo é sacramento de Deus. Dessa forma, a arte sacra contemporânea vê na matéria e no espírito não um dualismo cartesiano, mas uma complementação que constitui um lugar teofânico. Todos nós, como diz Paulo, “[...] que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente” (2Cor 3,18). O evangelho de Lucas, no capítulo 15, afirma que Deus não sossega enquanto todos nós não compartilharmos de sua Paz, de sua Glória. A Trindade chama à sua Glória pela estratégia do universo criado. O desejo de Deus de nossa glorificação e plenitude faz parte da estrutura de nossa natureza humana. O prólogo do evangelho de João 1,1-18, que lembra a introdução do Gênesis 1,1-31, e 2,1-4a, expõe as razões do triunfo final de Deus. O Verbo está no princípio da criação e constitui o sentido de todo o cosmos que, por Ele, é levado à plenitude nas mãos do Pai. Tudo foi feito com sentido, e esse sentido brilha através da ameaça do caos, do absurdo. O ser humano é ápice da criação (Sl 8), fruto mais nobre do Projeto de Deus, a quem o mundo visível é submetido como âmbito imenso onde ele pode exprimir sua capacidade inventiva, cocriadora. Fazendo nossas as palavras de João Paulo II, “[...] Deus chamou o homem à existência, dando-lhe a tarefa de ser artífice. Na ‘criação artística’, mais do que em qualquer outra atividade, o homem revela-se como imagem de Deus [...], plasmando a matéria [...] e exercendo seu domínio criativo sobre o universo que o circunda. Com amorosa condescendência, o Artista divino transmite uma centelha da sua Sabedoria transcendente ao artista humano, chamando-o à partilha do seu poder criador” (Carta do Papa aos Artistas, 1999). Todavia, enquanto Deus chama a matéria do nada, ex nihilo, o artista lhe dá forma e significado. O artista é criador por comunicação e participação daquela essência mesma de Deus. Essa consciência impele o artista sacro, por excelência, a não desperdiçar, mas a devolver, colocando seu dom a serviço do próximo e de toda a humanidade.

3.3.1 A Teologia da Presença A vocação do iconógrafo é filha do Mistério e é constantemente revigorada no Amor trinitário. Para compreender o ícone, como vimos, é imprescindível a compreensão da comunidade de fé, que tem seu fundamento na Santíssima Trindade (cf. BOSCHKOWITSCH, 1989, p. 10). Assim, a partir de uma Teologia da Beleza, podemos falar da Teologia do Ícone, ou Teologia da Presença. “O Filho e o Espírito Santo, enviados do Pai, revelaram a Santíssima Trindade; não de maneira abstrata, como um conhecimento intelectual, mas como uma regra de vida” (OUSPENSKY, 1989). Antes de filosofia ou doutrina, o Cristianismo é regra de vida segundo o Deus Amor. “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14,15), pois “Deus é Amor” (1Jo 4,8.16). Nós contemplamos a face desse amor na pessoa de Jesus de Nazaré, o Verbo feito carne. O Verbo se fez imagem, a imagem mais bela. 75

Antes , conhecíamos só de ouvir falar; agora, nossos olhos o veem (cf. Jó 42,5). “Eu vi a imagem de Deus, e minha alma foi salva”, diz são João Damasceno. Para a teologia oriental, o ponto de partida para confessar a Santíssima Trindade, como vimos no segundo capítulo, é a “pessoa” (hipóstasis), o Mistério essencial da Revelação cristã, que é possuidora da natureza divina em sua plenitude. A hipóstasis tem importância básica para a Teologia do ícone. É na pessoa concreta do Uno encarnado que se baseia a veneração do ícone. A pessoa do Verbo feito homem é o único caminho que conduz ao Protótipo do Ícone: aquele que diz “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6) (cf. BOSCHKOWITSCH, 1989, p. 10). O VII Concílio Ecumênico de Niceia (Niceia II, 787) declara: “Seja pela contemplação da Palavra de Deus, seja pela representação do ícone, temos a memória de todos os protótipos (os Santos) e somos introduzidos na sua presença”. O ícone nos mostra silenciosamente o que a Palavra nos diz. Tal é o valor do ícone que, para o oriental, é o sacramental da presença pessoal. A Teologia do Ícone é uma “Teologia da Presença”. “Nas vésperas da Festa de Nossa Senhora de Vladimir se reza: ‘Contemplando o ícone, digas com força: Minha graça e minha força estão com esta imagem’” (EVDOKIMOV, 1970). Segundo os Santos Padres, o Espírito Santo é uma das mãos da Beleza em si que comunica o esplendor da santidade e se revela como “Espírito de beleza”. “A Beleza é um dos nomes de Deus”, dizia Dionísio, o Areopagita (séc. V). A renovada liturgia pós-vaticana é um âmbito epifânico dessa luz, já que presa pela simplicidade e pela autenticidade do espaço, que deixa o Espírito falar ao coração (cf. PASTRO, 2001, p. 17). A Beleza em si age no espaço que é dela, o iconógrafo é instrumento nessa ação comunicativa. Sem medo de errar, podemos dizer: “A arte litúrgica é uma Teologia inspirada, expressa pelas formas, pelas linhas e pelas cores. Contém três elementos que constituem a religião cristã: o dogma, que confessa pela imagem; o ensinamento espiritual e moral, que traduz pelo tema e seu conteúdo; e o culto do qual faz parte” (OUNPENSKY, 1948). Essa presença do Espírito, como presença de beleza, é poesia sem palavras, é música sem sonoridade. É apenas Luz, pois o atributo mais conhecido do Espírito Santo é vida e luz. O objeto é visível, é colorido, é percebível aos nossos olhos por causa da luz que tais objetos recebem. “A Palavra de Deus no dia da criação foi ‘Façase a luz’. Esta luz não é a que aparece no quarto dia, quando Deus cria os astros, esta luz é a ‘Luz incriada’ da qual falam os Santos Padres: ‘O Pai pronuncia a Palavra, o Filho a cumpre e o Espírito Santo a manifesta; é a luz da Palavra’” (BOSCHKOWITSCH, 1989, p. 11). “Eu sou a luz do mundo, diz o Senhor” (Jo 12,46). A Trindade é luz. A luz é a potência reveladora. A ação do Espírito Santo condiciona todo ato em que o espiritual toma corpo, encarna-se, converte-se em “cristofania”. Tal concepção assenta-se sobre o arquétipo da Encarnação. Das línguas de fogo nasce a Igreja, de um batismo nasce um membro da Igreja, do pão e do vinho o corpo e o sangue de Cristo, da Santa Face um ícone (cf. idem). Tudo isso, “[...] por ação do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo” (São Basílio). A arte que pretende ser litúrgica tem de estar em 76

harmonia com a Teologia da Presença, pois o espaço que ela cria deve ser um lugar do agradável encontro: oferenda da humanidade a Deus e descida de Deus à humanidade. A graça supõe a matéria, já dizia Santo Tomás. A experiência cristã da beleza é experiência de acolhimento no seio da Trindade. É experiência de quem ouve de sua mãe a doce canção: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei” (Hb 5,5). O espaço litúrgico é sacramento dessa acolhida. Através dos nossos sentidos, da matéria criada, fazemos experiência de Deus. A obra sacra não tem realidade própria. Em si, é somente madeira, parede, mármore, tinta. Ela tira todo o seu valor teofânico de sua participação na Trindade, no “todo o Outro” por meio da semelhança, que não pode se encerrar nela mesma, mas irradia esta presença (cf. EVDOKIMOV, 1972). Contemplamos essa presença de Amor sem nos esquecer que também por Ele somos chamados a ser artífices de um mundo transfigurado ante a violência e o caos que ameaçam a luz da criação constantemente. De uma forma misteriosa quis Deus associar os artistas à missão criativa e embelezadora do mundo (cf. João Paulo II, 1999, n.° 1). Em suma, através da semelhança que a arte sacra transmite, ilustra os relâmpagos inefáveis da Beleza Divina. No ícone, a beleza aparece como um estalido dessa profundidade misteriosa, que atesta a íntima relação entre corpo e espírito. Ao comungarmos com essa beleza sensível, sentimos uma estranha saudade do Infinito, uma consonância com a presença do Uno. Sentimos a presença de nossa imagem perdida e reencontrada na luz bruxuleante de uma lamparina ante um ícone. Essa experiência estética do Sagrado, sem dúvida, é o Todo-Luz refletido numa gota de orvalho. É o Universal no particular (KANT), epifania do transcendente que faz da beleza cósmica seu resplendor. Tal experiência não é êxtase, no sentido de abandono do mundo, mas é uma antecipação da Luz trinitária em nós, um “já” mas um “ainda não” (MOLTMANN). A maravilha da Teologia do Ícone é que experienciamos Deus com a participação dos sentidos: “a graça se experimenta, se vive, se sente como doçura, paz, gozo e luz” (BOSCHKOWITISCH, 1989, p. 14). O espiritual e o corporal se integram. A Liturgia renovada que redescobre a iconografia em seu próprio espaço já é oração. O lugar litúrgico vem ao nosso encontro através dos sentidos (audição, visão, olfato e tato) para que nós, no ritual sacramental, devolvamos e elevemos a matéria em sua dignidade primeira e seu destino final. Nosso corpo é o primeiro templo da presença, constituído em Cristo no Espírito Santo por vontade do Pai. O corpo, então, que contemplamos no ícone é o do Tabor, o Glorificado. Assim, constitui-se um intercâmbio, uma comunicação, onde vemos nos ícones a “hipóstasis de Cristo”, e, através dos ícones, a Face luminosa de Deus nos olha. Essa experiência não é a de sujeito-objeto, mas uma experiência de encontro entre duas pessoas.

3.3.2 A beleza salvará o mundo? 77

A marcante frase de DOSTOIEVSKI tem um sentido muito profundo no mundo eslavo-oriental, que soube melhor elaborar uma Teologia da beleza, a dimensão estética da Economia da Salvação. A beleza é assunto sério para o oriental. No Ocidente, talvez porque a partir do Renascimento o objetivo da arte esteve oscilante entre o ideal grego do belo e a arte entendida com prazer para as classes abastadas (Rococó), o assunto não foi tratado como deveria no campo da teologia. Porém, hoje, antes tarde do que nunca, é sensível a preocupação com a beleza. Todavia, no itinerário da espiritualidade, a beleza sempre foi um tema presente. Testemunham os místicos: “Tarde te amei, ó Beleza sempre antiga, sempre nova, tarde te amei”, diz Santo Agostinho (Confissões, IX, 10); Angela de FOLIGNO (12481309) narra o que experimentou em um momento de contemplação: “Lá vi uma beleza tão grande, que dela nada posso dizer [...] a não ser que vi a Beleza Suprema, contendo dentro de si toda a bondade"; São João da Cruz (1542-1591) diz que “[...] toda beleza das criaturas, comparada à infinita beleza de Deus, é auge da deformidade”. No Antigo Testamento, abundam as referências da Beleza escatológica como “Glória do Senhor, o esplendor do nosso Deus” (Is 35,2), como beleza do Messias (cf. Is 33,17), como esplendor de Jerusalém (cf. Is 52,1; 63,3; Zc 9,17) e do povo (cf. Is 28,5). Em Paulo, a glória e a beleza são fundamentais em sua teologia. Depois da morte e ressurreição de Cristo, libertamo-nos da dominação do pecado, vemos a glória e regozijamo-nos com a beleza de Deus na face de Cristo (cf. 2Cor 3,18; 4,6). “No retorno final de Cristo, [...] não só vamos ver a glória e desfrutar o esplendor de Deus, como nós mesmos nos tornaremos gloriosos e belos (cf. 1Cor 15,3; 2Cor 3,18; Fl 3,21), plenamente receptivos ao esplendor radiante do Senhor” (NAVONE, 1999, p. 53). DOSTOIEVSKI tinha razão. A beleza salvou o mundo: quem tem olhos para ver, que veja (cf. Mt 13,15). E não nos esqueçamos de que a glória de Deus está na vida do homem. O ícone é testemunha silenciosa do esplendor dessa verdade. Como um dos pressupostos para a Teologia da Beleza, podemos recorrer a Dionísio, o Areopagita, quando ele fala dos nomes divinos: “Deus é chamado Belo porque é totalmente Belo e está acima do belo. [...]. Por este Belo, todos os seres obtiveram o dom de ser belos [...]. O Belo é o princípio de todas as coisas, enquanto causa eficiente, que move todas as coisas e as mantém juntas, com amor pela própria beleza; é também o fim de todas as coisas [...] e a causa exemplar, porque todas as coisas são definidas tendo Ele como referência” (De Divinis Nominibus, IV, 7). Dionísio, entretanto, fala de beleza de Deus no sentido essencial e não pessoal: Deus causa e modelo transcendente de toda beleza criada. Ora, se Deus Pai Criador é Belo, assim o deve ser para alguém que é eterno como Ele. Como amor, a beleza é sempre em relação, alteridade. Logo, Deus é Belo para alguém na eternidade. Dessa forma, não podemos falar da Beleza divina prescindindo da Trindade, comunhão perfeita, pericorese. A beleza antes de atributo da natureza é da pessoa (hipóstasis): o Pai é belo pelo Filho, como o Filho o é pelo Pai, que encontra nele sua 78

“complacência” (deleite), ambos são envolvidos pela beleza do Espírito-Amor. O Filho nos é apresentado na Escritura em eterna contemplação da beleza do Pai e como “[...] esplendor da glória” (Hb 1,3). A experiência cristã da beleza, então, como sacramento daquela eterna, nunca é egoísta. Essa Beleza degustada são as três Pessoas divinas, voltadas uma para a outra desde o princípio, em um olhar satisfeito e silencioso. Mais uma vez o ícone de RUBLEV é a representação que melhor expressa esse arquétipo da Beleza/Amor. Amor revelado na face do Nazareno. Como expressão dessa verdade, numa linguagem de cores e de traços, “[...] pintamos nos ícones os fatos salvíficos da vida de Cristo, vendo aí refletido o amor de Deus por nós, procurando satisfazer o nosso desejo de vê-lo. [...]. Os santos amaram tanto a Cristo, imitando-o até a morte por nós. Por isso, a Igreja, glorificando com o Rei os soldados, honra as imagens de Cristo e dos seus amigos. [...]. Ela, como um paraíso universal, florescente e muito mais honrado do que o Éden, adornado com veneráveis imagens de santos como por diferentes plantas, tendo no centro a árvore da vida, o ícone do Salvador e da Puríssima Mãe de Deus” (Macário CRISOCÉFALO apud DONADEO, 1997, p. 24). A igreja, símbolo da Igreja, é, por excelência, espaço epifânico dessa presença amorosa. O fiel, ao entrar em contado com esse ambiente, reza com todos os sentidos, pois a iconografia, como uma teologia manifestativa, “[...] santifica o corpo pelos sentidos e aplaina misticamente o caminho da alma ao Protótipo, introduzindo a mente, através das coisas visíveis, às inteligíveis” (idem). Não adoramos a matéria, mas nos elevamos a uma adoração espiritual através da imagem, Aquele que ela representa.

3.3.3 A beleza fugaz Se dizemos que Deus é o autor da beleza, causa sapiente e bela de todas as coisas, dizemos também que Ele criou o próprio senso da beleza no coração do ser humano, o qual quis constituir artífice cocriador. É o senso estético como capacidade de reconhecer os rastros de Deus na criação. O “belo” (kalós) é derivado de “chamar” (kaléo), “o que atrai”. Somos atraídos, “seduzidos” pelo resplendor da Beleza eterna. Todavia, não poucas vezes nos deparamos com uma beleza sedutora que leva à cegueira e à ruína. A Escritura orienta: “Fugaz é a formosura” (Pr 31,30), “A beleza te seduziu” (Dn 13,56), “Tu te orgulhaste de tua beleza” (Ez 28,17). É aqui que se diferencia a experiência comum da beleza da experiência cristã da Beleza, dado que a experiência estética que temos ao contemplar um pôr do sol é diferente da de contemplar um MONET, um DELACROIX, um DALÍ ou um RUBLEV. Hodiernamente, o conceito de beleza é experienciado de forma muito redutiva, superficial. A beleza erótica, do corpo humano, da mulher e do homem, passou a ser objeto de culto. Parece-nos que por ter a Teologia relegado a um segundo plano o tema da beleza, a beleza sensual em nossos dias explode com tamanha 79

proporção. O homem pós-moderno “[...] duvida da verdade, resiste ao bem, mas é fascinado pelo belo” (DANNEELS apud CANTALAMESSA, 2004, p. 66). Essa “beleza”, se reduzida ao erótico, apesar de ser uma dimensão da beleza, empobrece sobremaneira o conceito. O mercado, através da publicidade, do consumismo, dessacraliza os conceitos para vender. O corpo humano, de templo do Espírito Santo, passou a ser força de trabalho e, agora, objeto de prazer. Essa beleza fugaz, superficial, não ajuda a espiritualidade. Dentro da conjuntura atual, a estetização pós-moderna da experiência concebe tudo como um jogo superficial de emoção. Isso é ambíguo e até problemático para uma experiência cristã da beleza (cf. SEQUERI, 2002, p. 96). Os meios de comunicação social levam o conceito de beleza, como mera experiência prazerosa dos sentidos, para as relações interpessoais, transformando numa relação sujeito-objeto. Há um problema espiritual: como viver as bemaventuranças num mundo saturado pela sensualidade? (cf. DANNEELS apud CANTALAMESSA, 2004, p. 66). Em meio a essa avalanche, o cristão é chamado a ser testemunha da verdadeira Beleza, que transfigura as relações de sujeito-objeto para uma relação de presença com o Deus amor, a Beleza que salva o mundo da falsa beleza. Somos levados a afirmar que há uma gritante ambiguidade da beleza. Não queremos entrar na questão da metafísica do belo: o que é o belo em si e suas relações com o verdadeiro e o bom, mas queremos falar a partir do ponto de vista existencial. Falar da experiência cristã da beleza é o nosso propósito. Está claro que nem toda beleza salvará o mundo: “Deus não é o único que se reveste de beleza, o mal imita e torna a beleza profundamente ambígua” (EVDOKIMOV, 1971, p. 32). Se Dante descreve o demônio como figura grotesca e feia, pintores modernos, como Lorenzo LOTTO, o pintam como um jovem belo, “lucífero”. Na Arte Moderna ocidental, chegou-se a falar da “morte da arte” como se fala da “morte de Deus” (cf. KANDINSKY, 1996, p. 43). Em sua obra Teologia da Beleza, Paul EVDOKIMOV (1971) cita um quadro moderno surrealista, onde pássaros monstruosos lançamse sobre uma mulher como sobre uma carniça. Na pintura abstrata, encontramos o corpo feminino como “cadáver da beleza”. “É a Beleza em si mesma (e não só a da mulher) que é 'desmistificada' e ultrajada” (CANTALAMESSA, 2004, p. 68). Podemos nos perguntar: Qual é a raiz dessa ambiguidade? Talvez o melhor campo para buscarmos respostas seja o da espiritualidade. A resposta tradicional é: o pecado. A narrativa bíblica, porém, mostra-nos que a ambiguidade da beleza não foi só efeito do pecado, mas também causa. Para Eva, o fruto proibido pareceu-lhe belo, sedutor de olhar (cf. Gn 3,6). O ser humano afastou-se de Deus na medida em que absolutizou a criatura: idolatria. Se a ambiguidade da beleza é uma causa anterior ao pecado, então essa ambiguidade tem suas raízes na “[...] natureza composta do homem, feita de elemento material e elemento imaterial, de algo que o conduz à multiplicidade e de algo que, ao contrário, tende à unidade” (idem). À imagem 80

do Criador o ser humano foi criado para a unidade, harmonia e felicidade, a fim de que, com o exercício de sua liberdade, ele decidisse em qual direção desenvolver-se: “para o alto” ou “para baixo”, para a unidade (harmonia) ou para a multiplicidade (divisão). Isso explica o conflito entre o espiritual e o material do ser humano, especialmente o cristão, no mundo e em sua relação com a beleza. A beleza que eleva o homem é aquela que o impele à unidade, tão bem representada por RUBLEV em sua Trindade. A beleza, objeto de nossa experiência nessa vida, é fragmentária, é vestígio da Beleza Una e tem de nos levar para ela. Quando nos fixamos na beleza fragmentária, ela passa a ser fugaz e nós não transcendemos. Em outras palavras, a Beleza em si repousa sobre a harmonia das partes que apontam para o todo, o Uno. Daí a arte sacra nos impelir à unidade. É a beleza do mosaico, do qual fazem parte milhares de pequenas e belas pedras que, sozinhas, não têm sentido nenhum. A beleza fugaz, que seduz apenas para a matéria, vai embrutecendo o homem, privando-o da liberdade, lança-o no puro instinto, no prazer luxuriante, no vício. Essa beleza é acusada como causa de idolatria na Sagrada Escritura: “São fúteis todos aqueles, homens por natureza, nos quais se instalou o desconhecimento de Deus: a partir dos bens visíveis não foram capazes de conhecer Aquele que é, como também não reconheceram o Artista, mesmo considerando suas obras. [...]. Se, encantados por sua beleza, consideraram-nos como deuses, que saibam quanto o Senhor dessas coisas lhes é superior, pois criou-as Aquele que está na origem da beleza” (Sb 13,1-3; cf. Rm 1,2023). O pecado, enfim, mais uma vez se apresenta como afastamento da Beleza da face de Deus e fixação na fugacidade da matéria. Em analogia a isso, há um tempo atrás, a beleza feminina também foi procurada na face e no busto. Hoje vemos que a representação da beleza feminina não é mais procurada na face (centro do pensamento e da contemplação), mas em outras partes do corpo. Quando a beleza se afasta da face de Deus, também se afasta da face do homem e da mulher e apela cada vez mais para o instinto. O corpo humano, especialmente da mulher, passa a ser objeto.

3.3.4 A redenção da beleza Quando falamos que há uma beleza fugaz, e que ela puxa, seduz o ser humano sempre “para baixo”, para a ausência de liberdade, para a morte, e que ela é dominante, parece que dizer que a beleza salvará o mundo é um sonho impossível. De fato, “[...] para salvar o mundo, a beleza tem necessidade, primeiro, de ser salva ela própria. [...] a redenção de Cristo se estende também à beleza” (CANTALAMESSA, 2004, p. 71). São Paulo nos exorta: “A criação (beleza) foi entregue ao poder do nada – não por vontade própria, mas pela autoridade daquele que lha entregou –, ela guarda a esperança, pois também ela será libertada da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus” (Rm 8,19-21). 81

A beleza que se afastou da face de Deus em Cristo é convidada novamente a resplandecer de glória. O ícone demonstra essa Beleza, a do corpo redimido. Sendo de condição divina, Beleza total, não se apegou a si e assumiu a fealdade para nos dar Beleza. Jesus redimiu a beleza, privando-se dela por amor. “Ele assumiu um corpo, ele tomou sobre si a fealdade, tua mortalidade, para adaptar a si mesmo a ti, para tornar-se semelhante a ti e estimular-te a amar a beleza. [...] Ele não possuía nem beleza nem decoro, para dar a ti beleza e decoro” (Santo Agostinho apud CANTALAMESSA, 2004, p. 72). Nem mediante a beleza das criaturas, primeira Escritura, nem mediante a Palavra divina escrita, a humanidade foi capaz de elevar-se à beleza do criador. Por isso, Deus decidiu revelar sua Beleza mediante a deformidade da cruz. A beleza passa, agora, também ela, pela morte e ressurreição. A beleza para Cristo não é mais o belo em si como algo abstrato, como diziam os filósofos (Platão), mas alguém experienciado, alguém que “[...] nossos olhos viram e nossas mãos apalparam” (1Jo 1,1). A beleza não é apenas um transcendental, “esplendor da verdade”, mas o esplendor da face de Cristo. A beleza redimida, ainda que também corporal, vem do interior, tem o corpo humano como meio de expressão, comunicação com o mundo. O corpo, em si, não é origem da beleza, mas sacramento da Beleza, a manifestação primeira dessa beleza redimida. O homem não é a medida de todas as coisas, como falava a clássica filosofia, mas sacramento do Belo/amor que o ama sem medida. Esta Beleza nós contemplamos no silêncio do ícone, no semblante de pessoas que têm experiência profunda com Deus, tais como Madre Teresa de Calcutá, irmã Dulce, d. Hélder Câmara e tantos outros, que são verdadeiras testemunhas da Beleza cristã. A iconografia capta esse semblante que traduz a Luz daquela Face que brilha como o sol – o Cristo Ressuscitado.

3.3.5 Testemunhas da Beleza O cristão que tem a sensibilidade estética para contemplar uma bela obra de arte inspirada traduz esta beleza no olhar. Nem sempre os nossos olhos só recebem luz, eles não raras vezes doam luz (cf. CLAUDEL, 2004, p. 73). O artista cristão, por sua vez, tem a grandiosa missão de ser instrumento do Mistério, artífice da teofania do espaço. Diz Romano GUARDINI: “Ser artista é lutar pela expressão da vida escondida” (apud BUYST, 2001, p. 17). O iconógrafo é facilitador de presença com o Sagrado, sinal de sentido da matéria perante um mundo aparentemente sem sentido. A pós-modernidade é desmanteladora das metanarrativas, das verdades absolutas ou sólidas ideologias, mas tem sede do Mistério e é faminta de beleza. Importa discernirmos para falar de um Evangelho na linguagem atual através de uma arte que possibilite a experiência de Deus e, consequentemente, seja referencial de sentido para a pessoa (subjetividade), para a comunidade (fraternidade), para o mundo (ecologia). 82

Como vimos, Cristo redimiu a beleza, deixando-se despojar de toda beleza. Ele proclamou em obras e palavras que há uma Beleza superior à beleza que passa. Isso não significa que o cristão deva desprezar a beleza criada, pelo contrário, ela existe para tornar essa vida formosa. E é por ela que, sem absolutizá-la, atingiremos aquela Beleza eterna (cf. GS 37). Francisco de Assis foi quem melhor intuiu esse amor pelas criaturas. Ele amou tanto a Beleza eterna, que passou a chamar de irmã a beleza criada (terra, água, ar e fogo). É o verdadeiro amor que transcende. A “cruz de são Damião”, tão cara à espiritualidade franciscana, é o ícone que melhor traduz o Amor sem limites de Cristo, o Sacerdote condutor de toda a criação. O fausto e o luxo na liturgia (beleza fugaz) constituem, assim, uma beleza que distancia o povo do Deus que se revela simples e pobre. Mais importante do que fechar os olhos perante a beleza fugaz é abri-los à Beleza verdadeira. Se, porém, formos atingidos pela beleza sedutora (tão comum), que corrompe a espiritualidade e lança aos instintos (do ter, do poder e do prazer), como Francisco, corramos para diante do Cristo. “Que a cura entra por onde entrou a ferida, isto é, por nossos olhos!” (CANTALAMESSA, 2004, p. 76). Além disso, outra forma de participar do Mistério da Redenção da Beleza é inclinar-se sobre aqueles que, como Cristo, “[...] não têm esplendor nem beleza para atrair os nossos olhares” (Is 53,3), os desprezados. Madre Teresa de Calcutá fez parte dessa beleza que redime. Nisso, há simplicidade, essencialidade e autenticidade, ou seja, as três exigências estéticas que a sensibilidade atual reclama na experiência da Beleza. De uma forma misteriosa, o mundo artístico vai intuindo a teofania que acontece em nosso meio. As mais diferentes espiritualidades que hoje se fazem sentir apontam de diferentes formas para essa sensibilidade. Dentre tantas manifestações, citamos: a comunidade ecumênica de “Taizé” (nascida na França do pós-guerra), que tem na música, na arquitetura e na iconografia fortes instrumentos de oração, testemunhando a Beleza divina mediante seus reflexos no criado; a família monástica “Fraternidade de Jesus”, que nasceu na Itália, em 1972, tem na iconografia um lugar privilegiado de experiência mística; no Brasil, já existem experiências de retiros com ícones, como acontece no Mosteiro da Transfiguração (Casa Betânia), em Santa Rosa (RS). O apelo das comunidades testemunha, hoje, um grande anseio de beleza no seu espaço sagrado. Os artistas são as testemunhas privilegiadas dessa Beleza. Isso não constitui tanto um privilégio confortador como uma missão. Essa questão fica bem clara com a abertura da Igreja aos artistas modernos, que começou com o papa Paulo VI, numa audiência em 7 de maio de 1964, na capela Sistina. O espírito do Concílio reabriu as portas para acolher os artistas que há algum tempo tinham sido marginalizados (cf. CREMONA, 1997, pp. 375-376). O Papa conciliar, que tinha uma cultura vasta e uma aguda sensibilidade estética, saúda e exorta os 83

artistas a serem arautos da evangelização. “Nós precisamos de vocês! O seu ofício, a sua arte, é precisamente a de colher do céu do espírito os seus tesouros e revesti-los de cores, de formas, de acessibilidade [...]. Se nos faltasse o auxílio de vocês, o mistério se tornaria balbuciante e incerto. Para chegarmos à força da expressão lírica da beleza intuitiva, seria necessário fazer coincidir o sacerdócio com a arte” (Paulo VI apud CREMONA, 1997, p. 312). A Sacrosanctum Concilium (SC) não hesitou em considerar como “nobre ministério” a atividade dos artistas quando suas obras refletem a beleza infinita, contribuindo para o conhecimento de Deus. Essas obras constituem verdadeiros “lugares teológicos”. Além do último capítulo da SC, não existe um documento do Concílio que fale sobre a arte, porém, é o espírito de uma nova eclesiologia que faz do Concílio um divisor de águas na arte sacra: a exigência de um espaço sagrado que seja manifestação dessa nova eclesiologia. Afrescos, ícones e as peças litúrgicas não estão meramente reunidas como objetos de um museu, mas como membros de um corpo, e integram-se no mistério litúrgico. Muitas vezes, nossos presbitérios estão tão carregados de coisas (caos), que o apelo à beleza seria “tirar coisas” e não tanto colocá-las. O Mistério emerge da simplicidade (essência) da autenticidade (verdade) e da funcionalidade na liturgia. Na arte sacra, a matéria ganha sentido na liturgia e rompe com o dualismo, com o espírito, formando uma mesma linguagem de ação de graças ao Criador. Quem contempla a iconografia e sua espiritualidade contempla a criação com todo o seu valor de dádiva de Deus e sabe respeitá-la: “A beleza e a cor das imagens estimulam minha oração. É uma festa para os meus olhos, tanto quanto o espetáculo do campo estimula meu coração a dar glória a Deus” (São João Damasceno in www.transfiguração.com.br). O testemunho do grande Padre é de quem ama a beleza criada sem absolutizá-la e assim a vê como vestígio da Beleza divina. Existe aqui uma importante dimensão ecológica da iconografia. O que São João Damasceno testemunhou em palavras, São Francisco testemunhou com a vida. O respeito à matéria é condição sine qua non para o artista autêntico e para uma experiência cristã da Beleza. Todo cristão, enfim, é testemunha da beleza redimida ao ser convidado a “[...] fazer de sua vida uma obra de arte, uma obra-prima”, como diz João Paulo II em sua Carta aos artistas (1999, n.° 2). O mundo precisa de beleza para não cair no desespero, disseram os Padres no final do Concílio (cf. Idem, n.° 11). Na beleza da vida dos cristãos (primeiro ícone) o homem pós-moderno encontra o sentido da vida e do mundo, pois o cristão testemunha a Beleza/amor. Jesus Cristo não se limitou a comunicar (revelar) Deus, mas revela também a humanidade a si mesma. Em Cristo, Deus reconciliou consigo o mundo. Todos os crentes são chamados a testemunhar isso. Compete particularmente ao artista, com a riqueza de sua genialidade, testemunhar que o mundo está redimido, a natureza toda é epifânica. A atualidade, também através da arte, “[...] aguarda ansiosa a revelação 84

dos filhos de Deus” (Rm 8,19). E concluímos novamente com a palavra do papa, de saudosa memória, que soa como bênção: Queridos artistas, são muitos os estímulos que podem inspirar o vosso talento. Toda a autêntica inspiração, porém, encerra em si qualquer frêmito daquele “sopro” com que o Espírito Criador permeava, já desde o início, a obra da criação. [...]. Já no limiar do terceiro milênio, desejo a todos vós, artistas caríssimos, que sejais abençoados, com particular intensidade, por estas inspirações criativas. A beleza que transmitireis às gerações futuras seja tal que aviva nelas o assombro (encantamento). Diante da sacralidade da vida e do ser humano [...], do universo, o assombro é a única atitude condigna. [...]. Com tal entusiasmo, a humanidade poderá, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho. Precisamente neste sentido, [...], “a beleza salvará o mundo”. A beleza é convite a saborear a vida e a salvar o futuro. “Eleva-se do caos o mundo do espírito” (Adam MICKEWICZ). Formulo um voto para vós: que a vossa arte contribua para a consolidação dessa beleza autêntica que, como revérbero do Espírito de Deus, transfigure a matéria, abrindo os ânimos ao sentido do eterno! Com os meus votos mais cordiais!

Vaticano, 4 de abril de 1999, Solenidade da Páscoa da Ressurreição (n.°s 1516).

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CONCLUSÃO

O

caminho feito no decorrer desse estudo abordou em rápidas pinceladas a experiência cristã da Beleza, ou a experiência estética cristã, a partir da iconografia que em nosso tempo está sendo recuperada. O rico patrimônio do Oriente, sem dúvida, guarda o tesouro da arte cristã mais genuína. Na perspectiva dessa “volta às fontes”, o artista, mesmo não sendo um monge grego ou russo, mas que tenha uma vida de oração e experiência profunda de Deus é impelido, hoje, pelo Espírito Santo, a dar testemunho da beleza da Face do Transfigurado, dando forma e sentido ao homem pós-moderno desfigurado e deformado, mas sedento de beleza. Importa o discernimento da beleza para beber daquela Beleza que salvará o mundo e não daquela que o perderá. O tema desenvolvido nestas páginas não exaure a riqueza, nem tampouco o significado, do ícone. Além disso, tudo o que já se escreveu sobre essa arte não se compara com a experiência ocular, sensível, do ícone. Ele é o lugar onde a oração verbal e cerebral vai emudecendo, as imagens corriqueiras vão sumindo e, nesse momento, palavra e imagem formam um amálgama irradiante tal que nossa atitude só pode ser de puro deleite, contemplação do Mistério. Essa luz nos deixa tão embebidos e maravilhados que a teoria não pode expressar em palavras. É a experiência fascinante do mistério da Beleza em si, Beleza que é causa eficiente e final de todas as coisas, nas palavras de Dionísio, o Areopagita. Toda criação, para o cristão, é símbolo da ação e do amor de Deus, o ícone é o espaço por excelência dessa teofania. O Espírito que animou o Concílio Vaticano II, ao propor uma eclesiologia que buscasse inspiração nas fontes do cristianismo, propôs uma volta à espiritualidade que animou a arte sacra nos primeiros séculos. Essa arte, como expressão da essência mesma do cristianismo, tem uma capacidade de inculturação formidável. Pode-se ver que já existem no Brasil e no mundo experiências de inculturação da iconografia e da arquitetura nas pinturas e realidades locais sem perder a essência cristã ou agredir as manifestações artísticas autóctones. É um engano quando se pensa que a arte bizantina, fechada em cânones rígidos, é imóvel e inerte à novidade das culturas. A iconografia inculturou-se mais facilmente nas culturas locais do Ocidente, por sua simplicidade e essencialidade, do que a arte Barroca ou a neoclássica. O artista iconógrafo não é só um sujeito que age sobre um objeto plástico, moldando do jeito que bem entende. O pintor também é transformado em seu interior pela obra que sai de suas mãos. É uma construção recíproca. Assim como o monge, todo artista cristão é chamado, a partir de sua experiência profunda da Beleza divina, a comunicar em traços e cores, forma e conteúdo, a beleza de Deus, e 86

o espectador experiencia também na obra a experiência do artista ao contemplá-la (TOLSTOI, 2002, p. 15). Essa experiência de expressar a Beleza em si já não é mais o objetivo de grande parte da arte contemporânea no Ocidente. Se a arte perde sua dimensão comunicativa, perde seu próprio sentido de ser arte. Assim, a arte sacra do ícone tem uma grande missão de comunicar o sentido da beleza, do homem e do mundo perante uma época aparentemente sem sentido. A pós-modernidade se, por um lado, apresenta a exaltação do efêmero em contraposição às verdades prontas, por outro, apresenta uma busca insaciável de beleza e de mistério. Cumpre ao cristão discernir a beleza que salva e ser testemunha desse mistério. Em suma, a experiência cristã da beleza passa por uma conversão dos corações, para que os olhos possam ver a criação cristificada. O iconógrafo que passou por essa metanoia pode nos ajudar nesse reencantamento pela criação que, pela Encarnação, também se tornou eucarística. Essa arte “nova”, que redescobre a iconografia, a partir da nossa realidade latino-americana, é um novo jeito de ser Igreja, já que a igreja é símbolo da Igreja em suas expressões artísticas e arquitetônicas. A educação para a experiência cristã da beleza não constitui tarefa fácil: há muito que se caminhar, apesar das conquistas já alcançadas. Além disso, essa experiência, além de experiência estética, aponta para uma teologia da beleza, tema que por muito tempo se deixou de lado nas reflexões teológicas no Ocidente. Concluímos esse trabalho monográfico com as belas palavras de Henri J. M. NOUWEN (2001), ao terminar a sua obra Contempla a face do Senhor: orar com ícones: “Os ícones [...], cada um deles, individualmente, e todos eles juntos, oferecem-nos um vislumbre da casa do amor preparada para nós por Jesus e convidam-nos a experimentar, mesmo agora, a alegria de estar lá. Trabalhar nestas meditações foi um grande prazer. Orar tornou-se escrever, e escrever tornou-se orar. Mais energia me foi concedida que consumida no processo. Espero fervorosamente que vocês, que leem essas meditações, experimentem algo desse mesmo prazer e, assim, aprofundem o seu desejo de contemplar a beleza do Senhor”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Direção editorial: Zolferino Tonon Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Coordenação de desenvolvimento digital: Erivaldo Dantas Revisão: André Tadashi Odashima Preparação: Iranildo Bezerra Lopes Capa: Marcelo Campanhã

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Antunes, Otávio Ferreira A beleza como experiência de Deus / Otávio Ferreira Antunes. – São Paulo: Paulus, 2010. – (Avulso) eISBN 978-85-349-3791-7 1. Arte sacra e simbolismo 2. O Belo 3. Deus - Beleza 4. Estética - Aspectos religiosos 5. Teologia I. Título. II. Série. 10-03086

CDD-230.01

Índices para catálogo sistemático: 1. Beleza: Estética teológica: Doutrina 230.01

© PAULUS – 2013 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 – São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700 www.paulus.com.br • [email protected]

eISBN 978-85-349-3791-7

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Scivias de Bingen, Hildegarda 9788534946025 776 páginas

Compre agora e leia Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara. Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta, provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de moral conhecida. Hildegarda é notável por ser capaz de unir "visão com doutrina, religião com ciência, júbilo carismático com indignação profética, e anseio por ordem social com a busca por justiça social". Este livro é especialmente significativo para historiadores e teólogas feministas. Elucida a vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa forma especial de espiritualidade cristã. Compre agora e leia

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Santa Gemma Galgani - Diário Galgani, Gemma 9788534945714 248 páginas

Compre agora e leia Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar de que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me orientar. Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me senti muito pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra, senão dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente? Compre agora e leia

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DOCAT Youcat, Fundação 9788534945059 320 páginas

Compre agora e leia Dando continuidade ao projeto do YOUCAT, o presente livro apresenta a Doutrina Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta obra conta ainda com prefácio do Papa Francisco, que manifesta o sonho de ter um milhão de jovens leitores da Doutrina Social da Igreja, convidando-os a ser Doutrina Social em movimento. Compre agora e leia

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Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral Vv.Aa. 9788534945226 576 páginas

Compre agora e leia A Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral oferece um texto acessível, principalmente às comunidades de base, círculos bíblicos, catequese e celebrações. Esta edição contém o Novo Testamento, com introdução para cada livro e notas explicativas, a proposta desta edição é renovar a vida cristã à luz da Palavra de Deus. Compre agora e leia

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A origem da Bíblia McDonald, Lee Martin 9788534936583 264 páginas

Compre agora e leia Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os caminhos percorridos pela Bíblia até os dias atuais. Em estilo acessível, o autor descreve como a Bíblia cristã teve seu início, desenvolveu-se e por fim, se fixou. Lee Martin McDonald analisa textos desde a Bíblia hebraica até a literatura patrística. Compre agora e leia

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Índice INTRODUÇÃO CAPÍTULO I

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1.1 A arte sacra como comunicação 1.1.1 O que os símbolos nos comunicam? 1.1.2 A “igreja é símbolo da Igreja" 1.1.3 A simbologia e seus fundamentos 1.2 A experiência cristã da beleza 1.3 A diferença entre arte sacra e arte religiosa

CAPÍTULO II

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2.1 Como o Concílio tratou da arte sacra 2.1.1 No espírito do Concílio 2.1.2 A CNBB e a arte sacra 2.2 A iconografia bizantina 2.2.1 “Voltar às fontes" 2.2.2 O ícone e a arte em geral 2.2.3 A arte do ícone 2.3 O ícone e o artista 2.4 A imagem de Cristo 2.4.1 Emanuel: o menino Deus 2.4.2 A Sagrada Face 2.4.3 O Pantokrator 2.4.4 A imagem de Jesus em diversos ícones 2.5 A imagem da Trindade 2.5.1 A Trindade de RUBLEV 2.5.2 A Trindade de MASACCIO 2.6 Beleza e unidade

CAPÍTULO III

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3.1 A função da arte sacra 3.2 A arte sacra na contemporaneidade 3.3 A Teologia do Ícone, uma Teologia da Beleza 3.3.1 A Teologia da Presença 3.3.2 A beleza salvará o mundo? 3.3.3 A beleza fugaz 3.3.4 A redenção da beleza 3.3.5 Testemunhas da Beleza 101

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CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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