Sol e Aço PT-BR NOVA TRADUÇÃO

Citation preview

Sol e Aço - Yukio Mishima –

Tradução: Lyutsan

“Um regime de sol e aço é absolutamente necessário, necessário para seu humor, para sua estética, para ganhar atenção das mulheres e respeito dos homens, e, acima de tudo, como preparo para a luta e guerra” -BAP

If you decide to accept my offer To understand this sacrifice Think of me as inanimate matter To hide me from their lies

So let me yearn for you As you have yearned for me This storm has left us stranded But there´s a method to this madness Torture me with their ugliness And their ugly dreams Hidden from the eyes of men

What courage What foolishness What strength

Nota do Tradutor

Esta obra constitui uma inspiração para aqueles que querem trilhar o caminho do sol. Para aqueles que desejam pertencer à uma nova estirpe de homens, beijados pelos raios solares, batizados pela beleza e que desejam que a morte os ame.

OBS: A tradução foi feita do inglês para o português, procurei a edição mais antiga possível (1970) para tal, pois creio que seja mais próximo do material original. Um dia algum fren será capaz de melhorar meu trabalho e realizar uma tradução direto do japonês.

Tardiamente, fui tomado pela sensação de uma acumulação dentro de mim de coisas que não podem ser adequadamente expressas pela via artística objetiva, tal como uma novela. Um poema lírico juvenil poderia adequar-se, mas não tenho mais vinte anos, e nunca fui um bom poeta. Tenho de procurar uma forma mais plausível à mim e minhas inquietações pessoais, e assim chego a um misto de confissão e criticismo, uma subjetividade que equivocadamente poderia ser chamada de “criticismo confidencial”. Vejo que há uma linha tênue entre a noite da confissão e o dia do criticismo. O “eu” ao qual ocupo a mim mesmo não será o mesmo “eu” que reporta a mim mesmo, mas outra coisa, algo mais residual, algo que permanece após todas as outras palavras que florescem em mim desabrocharem, algo que nem se revela nem se esconde. Como ponderei, a natureza deste “eu”, me levou a conclusão de que o “eu” em questão corresponde precisamente ao espaço físico que ocupo. O que procuro nada mais é do que a linguagem do corpo. Se eu sou minha habitação, então meu corpo é o pomar que a rodeia. Posso tanto cultivar este pomar e formar nele um jardim, quanto posso abandona-lo aos emaranhados da natureza. Estou livre para escolher, mas a liberdade não é tão óbvia quanto parece. Muitas pessoas acabam por chamar seus pomares de “destino”. Um dia, me ocorreu de cultivar este pomar com tudo que tenho. Para este propósito, usei o sol e o aço. A luz incessante do sol e instrumentos brilhantes de aço se tornaram os elementos chefes de minha tarefa. Pouco a pouco, a plantação começou a dar frutos, e pensamentos acerca do corpo começaram a tomar minha mente. Tudo isso não ocorreu, é claro, da noite para o dia. Tampouco passou a existir sem um motivo oculto e íntimo. Quando examino com cuidado minha infância, percebo que minha memória das palavras vai muito além do que minha memória da carne. Geralmente, imagino eu, ocorre às pessoas comuns que o corpo preceda a linguagem. No meu caso, as palavras vieram primeiro; então – relutante, com extrema timidez, e já tomada por conceitos – veio a carne. Nisto já estava, infelizmente, inutilizado pelas palavras. Primeiro, vem o pilar liso, e então as formigas que se alimentam dele. Mas para mim, as formigas estavam lá desde o início, e o pilar surgiu tardiamente, já comido. Que o leitor não me censure por comparar a minha situação com formigas. Em sua essência, qualquer arte que reside nas palavras utiliza desta habilidade para devorar – em sua corrosiva função – tal qual para comer se precisa do corrosivo poder do ácido nítrico. Ademais, a similaridade não é tão precisa; pois o cobre e o ácido nítrico utilizados na alimentação são pares, ambos sendo extraídos da natureza, enquanto a relação das palavras com a realidade não é a mesma. Palavras são um meio pelo qual se reduz a realidade à abstração para transmissão à nossa razão, e em seu poder de corroer a realidade inevitavelmente mora o perigo de que as palavras em si sejam também corroídas. Seria mais apropriado, na verdade, comparar sua ação ao excesso de fluídos estomacais que fazem a digestão e gradualmente devoram o próprio estômago. Muitas pessoas irão expressar sua descrença de que tal processo tenha ocorrido em alguém tão jovem. Mas isso, acima de qualquer dúvida, é o que me aconteceu, a contradição de duas tendências em mim. Uma era a determinação de avançar lealmente no caminho corrosivo das

palavras e fazer disso o trabalho de minha vida. Outra, era o desejo de encontrar a realidade em algum campo onde as palavras não deveriam desempenhar papel algum. Em um processo mais “saudável” de desenvolvimento, estas duas tendências podem trabalhar juntas e sem conflito, mesmo no caso de um escritor por nascença, ao dar ascensão ao altamente desejado estado de ideias que permite que as palavras levem ao descobrimento da realidade. Mas o ênfase aqui é do redescobrimento da realidade; caso aconteça, será necessário, no alvorecer da vida, da posse da realidade da carne ainda livre das marcas das letras. E isto infelizmente não me ocorreu. Meu professor de música uma vez demonstrou seu desgosto com meu trabalho, dizendo que não era correspondente a qualquer traço de realidade. Me parece que, em meus trejeitos infantis, tenho um inconsciente pressentimento do subjetivo, das meticulosas leis das palavras, estando consciente da necessidade de evitar ao máximo possível o contato com a realidade pelas palavras caso seja necessário utilizar de sua função corrosiva positiva e escapar de seu aspecto negativo – se, para colocar de forma mais simples, for para manter a pureza das letras. Sei instintivamente que a única possibilidade é manter uma constante vigília em relação à ação corrosiva exceto se o objeto em questão deva ser corroído. O natural corolário de tal tendência é de que devo abertamente admitir a existência da realidade e do corpo somente em campos em que não há parte alguma disso; desta forma a realidade e o corpo se tornaram sinônimos para mim, quase que objetos de um certo fetichismo. Sem dúvidas inconscientemente expandi meus interesses para isso também; e esse tipo de fetichismo corresponde exatamente ao meu antigo fetichismo pelas palavras. No primeiro estágio, eu estava obviamente identificando-me com as palavras e colocando a realidade, a carne e a ação do outro lado. Não há dúvidas de que meu preconceito em relação às palavras foi encorajado por esta antinomia intencionalmente criada e por minha profunda incompreensão da natureza da realidade, da carne e da ação. Esta antinomia reside na presunção de que estive desde o início desprovido da carne, da realidade e da ação. É verdade, é claro, que a carne veio tardiamente a mim, mas eu já a esperava com palavras. Suspeito que pela tendência prematura ao qual me referi, eu não busquei a carne, não a busquei como “meu corpo”. Se tivesse feito isto, minhas palavras teriam perdido sua pureza. Eu teria sido violado pela realidade, e a realidade teria se tornado inescapável. É igualmente interessante que minha refusa súbita ao corpo corresponda ao belo desentendimento em minha ideia do que é o corpo. Nunca soube que o corpo do homem nunca revela sua própria “existência”. Mas, na medida em que vi coisas, tornou-se aparente, claro e inevitavelmente, como existente. Naturalmente seguiu-se que, quando revelado este paradoxo terrível da existência – como uma forma de existência que rejeita a própria existência – fui tomado pelo pânico, como se tivesse encontrado um monstro e, consequentemente, o odiasse. Isso nunca me ocorreu antes, jamais me ocorreu que todos os homens – sem exceções – pudessem ser iguais. É talvez natural que este tipo de pânico e medo, apesar de serem obviamente produtos do engano, tenham postulado um desejo mais físico pela existência, um desejo pela realidade. Jamais imaginando que o corpo exista em uma forma que rejeita a existência seja universal no homem, em especial no masculino, comecei a construir minha hipotética existência física ideal,

investindo com todas as características opostas. E sendo minha própria existência física algo anormal, um produto da corrosão intelectual das palavras, o corpo ideal – a existência ideal – deve, disse a mim mesmo, ser absolutamente livre da interferência das palavras. Suas características devem ser resumidas em ser taciturno e belo em forma. Ao mesmo tempo, decidi que se este poder corrosivo das palavras possui função criativa, então deve encontrar seu par na beleza formal do “corpo ideal” e que o ideal nas artes verbais deve residir na imitação da beleza física – em outras palavras, na busca pela beleza completamente livre de tal corrosão. Isto é obviamente uma contradição, visto que representa uma tentativa de separar as palavras de sua função essencial e a realidade de suas características essenciais. Apesar disso, em outro sentido, é um método artístico excitante e genial de assegurar que as palavras e a realidade jamais encontrem-se cara a cara. Assim, em minha mente, sem perceber o que estava por realizar, isolei estes dois elementos contraditórios e, como um deus, comecei a manipulá-los. Foi assim que comecei a escrever romances. E assim aumentou ainda mais minha sede pela realidade e pela carne.

Mais tarde, muito mais tarde, graças ao sol e ao aço, aprendi a linguagem da carne, tal como se aprende uma língua estrangeira. Era meu segundo idioma, um aspecto de meu desenvolvimento espiritual. Meu propósito agora é explicar este desenvolvimento. Como um relato pessoal, será, suspeito eu, diferente de tudo, e muito mais difícil de acompanhar. Quando eu era pequeno, gostava de assistir as paradas ritualísticas de jovens que portavam consigo um santuário e o levavam até o templo durante os festivais. Eles eram intoxicados com seu dever, e suas expressões continham um indescritível abandono e indiferença; alguns até mesmo apoiavam seus pescoços ao santuário para que seus olhos pudessem vislumbrar os céus. E minha mente era tomada pela angústia de saber o que enxergavam esses olhos. Minha mente sequer compreendia a intoxicação provocada em mim pela visão daquele estresse físico. Por mais de um mês aquele enigma atormentou-me; somente muito mais tarde, após eu começar a aprender a linguagem da carne, que pude participar deste festival e carregar o santuário, e assim pude compreender o enigma de minha infância. Eles estavam simplesmente observando o céu. Em seus olhos não havia nenhuma visão: apenas o reflexo do azul profundo do outono... estes céus azuis eram únicos, jamais vi algo igual em toda minha vida: em um momento atingia o mais claro azul, noutro era tomado pelas mais densas nuvens, um estranho composto de lucidez e loucura. Prontamente transcrevi minha descoberta em um artigo, de tão importante que foi tal experiência. Basicamente, me encontrava em um estado em que não havia dúvidas de que o céu que minha intuição poética me mostrava e o céu que se revelava aos olhos daqueles jovens eram idênticos. Este momento que esperei tanto fora uma bênção que o sol e o aço me conferiram. Por que, você deve perguntar, não havia uma dúvida sequer? Porque, desde que certas condições físicas sejam iguais, este estresse físico pode ser saboreado coletivamente e igualmente, sendo as diferenças individuais restringidas por inúmeros fatores a um número absoluto. Se, acrescento, o elemento introspectivo for removido quase completamente – então estará certo de que o que vi não fora uma ilusão individual, mas um fragmento de uma visão coletiva. Minha “intuição poética” não se tornou um privilégio pessoal até mais tarde, quando usei das palavras para reviver e reconstruir minha visão; meus olhos, em seu encontro com o céu azul, foram penetrados com o páthos essencial deste vislumbre. E nesta imensidão azul, como um pássaro planando com suas gloriosas asas, alternando entre o alto e o baixo rumo ao infinito, percebi a verdadeira natureza do que até então me referia como “trágico”. De acordo com minha definição de tragédia, o trágico páthos nasce quando a perfeita sensibilidade momentânea leva à uma nobreza privilegiada que mantém os outros a distância, não quando um tipo especial de sensibilidade decai sobre preferências especiais. Dessa forma, aquele que domina as palavras pode criar a tragédia, mas não participar dela. É necessário um tipo de “privilégio da nobreza” que se encontra em um tipo de coragem física. Os elementos da intoxicação e da clareza super-humana que se encontram na tragédia nascem quando a sensibilidade, reforçada pela força física, encontra aquele privilégio momentâneo especial designado para isto. A tragédia clama pela anti-trágica vitalidade e ignorância, e acima de tudo por uma certa “impropriedade”. Se alguém estiver perto do divino, então sob condições normais ele não deve ser nem divino nem coisa alguma próxima disso.

Foi somente quando vi aquele estranho e divino céu que confiei na universalidade de minha própria sensibilidade, que meu anseio foi satisfeito, e que minha fé mórbida e cega nas palavras cessou. Naquele momento, participei da tragédia do ser. Uma vez alcançado este grau, entendi todo tipo de coisa até então oculta a mim. O exercício dos músculos elucidou os mistérios que as palavras criaram. Similar ao processo de adquirir conhecimento erótico. Pouco a pouco, comecei a entender o sentimento por trás da existência e da ação. Se somente isto fosse, significaria meramente que atingi de alguma forma o mesmo caminho que outras pessoas. Porém, trilhei outro caminho. Na medida em que meu espírito era tomado por preocupação – disse a mim mesmo – não havia nada especialmente diferente na ideia dos pensamentos que invadiam meu espírito, ampliando-o e eventualmente ocupando-o por inteiro. Desde que comecei a me ocupar do dualismo da carne e espírito, tornou-se natural para mim me indagar por que tal incidente me ocorreu em espírito e se espalhou em outros graus. Há, é claro, muitos casos em que doenças psicossomáticas se espalham do espírito para o corpo. Mas o que ponderava ia além disso. Seguro de que minha carne na infância se desenvolveu aparte do curso intelectual, corroída pelas palavras, então seria impossível reverter tal processo – seria possível estender o escopo de uma ideia para o espírito e do espírito para a carne até que todo o ser físico se tornasse uma armadura forjada do metal especialmente para esse conceito? A ideia em questão, como já sugeri em minha definição de tragédia, resolveu a si mesma no conceito de corpo. Me pareceu que a carne pudesse ser “intelectualizada” em um grau elevado, pudesse atingir uma proximidade íntima com as palavras, mais íntima do que com o espírito. Pois as ideias são, essencialmente, estrangeiras à existência humana; e o corpo – receptáculo dos músculos involuntários, dos órgãos internos e do sistema circulatório dos quais não há controle – é estrangeiro ao espírito de modo que seja possível que o corpo seja usado como metáfora para ideias, sendo ambos algo bastante estranho à existência humana. E a via pela qual a ideia pode tomar posse da mente, com uma súbita mudança de destino, reforça a semelhança das ideias ao corpo que todos nós, querendo ou não, estamos presos, dando até mesmo a esta automática e incontrolável função uma lembrança da carne. Isto forma as bases da ideia da encarnação de Cristo e também os estigmas que algumas pessoas podem produzir nas palmas de suas mãos e pés. No entanto, a carne possui suas limitações. Mesmo se um homem for tomado por uma ideia excêntrica que requer chifres em sua cabeça, obviamente o corpo recusará a dar estes chifres. Os fatores limitantes são a harmonia e a balança ao qual o corpo insiste. O que estes fatores fazem é prover a beleza e a qualificação física necessária para ver aquele céu ondulante dos portadores do santuário. Eles também, ao que parece, completam a função de vingar ou corrigir qualquer ideia excêntrica excessiva. Estas limitações constantemente agem para que não haja qualquer dúvida de que “o um se identifica com o todo”. Desta forma, meu corpo, sendo ele mesmo produto de uma ideia, sem dúvida também serve como o melhor receptáculo para uma ideia. Se o corpo pode atingir a perfeita e não-individual harmonia, então é possível suprimir a individualidade quase que completamente. Sempre me pareceu que sinais de individualidade física como uma barriga protuberante(sinal de preguiça espiritual) ou um peito achatado com costelas salientes(sinal de sensibilidade nervosa excessiva) eram essencialmente feios e não consegui contar minha surpresa quando descobri

que há pessoas que adoram tais coisas. Para mim, não passam de indecência e vergonha, como se o dono estivesse mostrando toda sua podridão espiritual através do corpo. Estas formas revelam um tipo de narcisismo que jamais poderei perdoar. O tema da estranheza entre corpo e espírito, que nasceu após minha descoberta, me perturbou durante bastante tempo e foi o principal tema de meu trabalho. Deixei de pensar nisso apenas gradualmente quando comecei a considerar se não é possível que o corpo também tenha sua própria lógica, quiçá seu próprio pensamento; quando comecei a sentir que as qualidades especiais do corpo não repousavam somente na taciturnidade e na beleza da forma, mas que o corpo poderia ter sua própria eloquência. Quando descrevo desta maneira as mudanças nessas duas linhas de pensamento, o leitor certamente dirá que simplesmente tomei conta do que eram simplesmente premissas aceitas e que me envolvi num labirinto de ilogicidade. A estranheza do corpo e do espírito na sociedade moderna é um fenômeno universal, e não há ninguém – o leitor deve saber – que tardará em tratar disso; então faço aqui minha parte ao expor a confusão em mim sobre o “pensamento” do corpo ou a “eloquência” da carne. Na verdade, ao colocar meu fetiche pela realidade e existência física lado a lado ao meu fetiche pelas palavras, ao coloca-los na mesma equação, tive um vislumbre da descoberta que posteriormente. Do momento em que coloquei o corpo imaculado de palavras, cheio de beleza física, em oposição às belas letras que imitam a beleza física, as equalizei como duas coisas que brotam de uma mesma e única fonte conceitual, e assim, sem perceber, me libertei do domínio das palavras. Isto significa que estava reconhecendo a origem idêntica da beleza formal do corpo imaculado de palavras com a beleza formal das letras, e estava começando a buscar um tipo de ideia platônica em que seria possível colocar a carne e as palavras no mesmo patamar. Tal tentativa, é claro, foi estritamente não platônica, mas deixou em mim mais uma experiência a ser vivenciada antes de meus discursos sobre as ideias da carne e a eloquência do corpo. Para explicar isto, devo começar por descrever o encontro entre mim e o sol. Esta experiência ocorreu em duas ocasiões. Por vezes acontece que, muito antes do encontro decisivo com uma pessoa a quem somente a morte pode separar, há um breve encontro com a mesma pessoa noutro lugar, ocorrendo quase que em total desconhecimento por ambas as partes. Assim foi meu encontro com o sol. Meu primeiro – inconsciente – encontro com o sol fora no verão da derrota, no ano de 1945. Um sol implacável brilhava em meio as janelas em um verão que se encontrava na borda entre a guerra e o pós-guerra – uma fronteira tênue um tanto apagada, um tanto esquecida. Caminhei pelos raios solares, mas desconhecia o seu significado para mim. Imparcial e indiferente, a luz solar derramava-se sobre toda a criação. A guerra terminara, mas as ervas daninhas foram iluminadas como antes pela impiedosa luz do meio-dia, uma alucinação agitando-se em uma leve brisa; passei as pontas dos dedos nas pontas das folhas e fiquei surpreso que não desapareceram com meu toque. Este mesmo sol, na medida em que os dias se tornaram meses e meses se tornaram anos, se tornou associado à destruição e perversão. Em parte, devido à maneira como reluzia nas asas dos aviões que partiam em missão, nas florestas de baionetas, nas medalhas e insígnias militares, nos brasões de infantaria; mas acima de tudo, no sangue que florescia da carne e nas

asas prateadas das moscas que repousavam nas feridas. Espalhando a corrupção, levando jovens em massa para a morte em mares e terras tropicais, o sol dominava a vasta ruína vermelho-ferrugem que se estendia ao horizonte. Eu mal sonhava – pois o sol nunca se dissociou da imagem da morte – que jamais poderia conferir-me bençãos, embora tenha, é claro, por muito tempo abrigado imagens de glória radiante... Eu tinha quinze anos quando escrevi um poema: E assim a luz permanece Caindo; os homens elogiam o dia. Evito o sol e contenho minha alma No poço sombrio.

O quanto eu amava minha escrivaria, meu quarto obscuro, minha mesa repleta de livros! Quão amável era-me a introspecção, envolvendo a mim mesmo em pensamentos; com que êxtase escutei o emaranhado de insetos que chamava de nervos! Uma hostilidade ao sol era apenas minha rebelião contra o espírito de minha idade. Ansiava pelas missas noturnas e crepúsculos de Novalis e Yeatsian. Porém, ao final da guerra, gradualmente senti que uma nova era se aproximava, uma ao qual não poderia mais tratar o sol como inimigo. As obras literárias escritas ou apresentadas ao público durante este período eram dominadas pelo pensamento noturno – embora este pensamento fosse muito menos estético que o meu. Para ser mais respeitoso a este período, a escuridão deveria ser mais rica e arrumada, menos tímida. Mesmo a mais rica noite de minha infância parecia-lhes pouco. Pouco a pouco, passei a sentir incerteza quanto a noite ao qual depositei tanta confiança durante a guerra, e a suspeitar que sempre pertenci aos adoradores do sol. E se fosse realmente isto – comecei a indagar-me – não poderia então minha persistente hostilidade ao sol, e a contínua importância que atribui à minha própria noite, somente um desejo por pertencer ao rebanho? Os homens que se entregam ao pensamento crepuscular parece-me que possuem, sem exceção, peles secas e sem brilho, estômagos flácidos. Procuram encerrar toda uma época em uma ampla noite de ideias, e rejeitam de todas as formas o sol ao qual me iluminei. Rejeitam a vida e a morte como vislumbrei, pois em ambos repousa o sol. Foi durante minha primeira viagem internacional, em 1952, que me reconciliei formalmente com o sol. Daquele dia em diante, me tornei inseparável dele. O sol se tornou sinônimo do caminho de minha vida. Pouco a pouco, tornou minha pele bronzeada, marcando-me como membro de outra raça. Alguém poderia objetar que tal pensamento pertence, essencialmente, à noite, que a criação com palavras pertence precisamente ao crepúsculo. De fato, não perdi meu hábito de trabalhar através das horas e de me rodear de seres noturnos. Mas ora, por que os homens sempre procuram as profundezas do abismo? Por que preocuparse exclusivamente com a queda? Por que não é viável para o pensamento que mude de

direção, que ascenda? Por que deveria a carne, que garante a existência do ser humano, ser a mais desprezada e deixada apenas à ternura misericordiosa dos sentidos? Não conseguia entender as leis que regem o movimento do pensamento – a maneira como era capaz de ficar preso em abismos invisíveis sempre que se propunha a ir mais fundo; ou, sempre que tivesse o céu ilimitado ao alcance, deixando a forma corpórea negligenciada. Se a lei do pensamento ordena que se deve buscar na profundidade, não importando se seja em decadência ou em ascensão, então me parece excessivamente ilógico para mim que o homem não descubra um tipo de “superfície” oculta, uma fronteira vital que endossa a separação e forma, dividindo nosso exterior do interior. Por que não deveria ser atraído à profundidade da superfície de si mesmo? O sol estava expurgando e levando meus pensamentos para longe da noite das sensações viscerais, rumo aos músculos queimados pelo sol. Estava me comandando a construir um novo e glorioso jardim ao qual minha mente, como uma rosa que floresce pouco a pouco do solo, pudesse viver em segurança. Tal jardim era composto por uma pele perfeita, luxuosa e poderosa e por fortes músculos. Senti precisamente que isto era necessário, e que pelo mesmo motivo o intelectual médio não se sente à vontade com o pensamento que o preocupa com formas e superfícies. A aparência noturna, produto de órgãos internos doentes, possui forma antes mesmo de seu dono ter consciência de qual veio primeiro, esta aparência ou os primeiros sintomas mórbidos de sua doença. Ainda assim, em acessos remotos invisíveis ao olho humano, o corpo lentamente cria e regula seu próprio pensamento. Com a superfície, por outro lado, que é visível a todos, treinar o corpo deve ter preferência em relação ao treino do pensamento caso o objetivo seja criar e supervisionar suas próprias ideias. A necessidade para mim de treinar o corpo pode ser prevista do momento em que senti a primeira atração pela profundidade da superfície. Estava ciente que a única coisa que poderia justificar tal ideia era o músculo. Quem presta alguma atenção a um teorista do corpo que não possui um belo físico? Pode-se aceitar os pensamentos noturnos da privacidade de seu estudo, mas é ainda mais sedutor e poderoso quando seus lábios falam em correspondência à eloquência do corpo. Quão bem eu estava com esse estado deplorável, quando me assaltou a ideia de adquirir músculos. Ressalto uma coisa: que tudo, como se mostra, procede de minha “mente”. Acredito que o treinamento físico irá transformar supostos músculos involuntários em voluntários, e que uma transformação similar pode ocorrer através do treino da mente. Ambos, corpo e mente, através de uma inevitável tendência que pode ser chamada de lei natural, estão inclinados ao automatismo, mas por experiência sei que uma grande engrenagem pode ser usada se controlar o rio. Este é outro exemplo da qualidade que nosso espírito e nosso corpo têm em comum: a tendência de ambos instantaneamente criarem seu próprio pequeno universo, sua própria “falsa ordem”, mesmo que, por um tempo, sejam tomados por uma ideia. Embora o que aconteça represente uma espécie de paralisação, é vivenciado como uma explosão de atividade e vitalidade. Esta função do corpo e da mente em criar seu próprio cosmos é, na verdade, mera ilusão; ainda assim este tipo de sensação de felicidade na vida humana possui precisamente esta “falsa ordem”. Um tipo de função protetora da vida em face ao caos que a rodeia, algo como um porco-espinho que fecha a si mesmo para se proteger.

A possibilidade presenciada é a de quebrar um tipo de “falsa ordem” e criar outra em seu lugar, de redirecionar em si mesma esta obstinada função formativa e conduzi-la na direção que melhor se adeque aos objetivos. Esta ideia, decidi, seria imediatamente posta em ação. Mais do que uma ideia, este seria o propósito dado a mim pelo sol diariamente. Foi assim que me encontrei confrontado pelo aço: pesado, proibitivo, frio como a essência da noite ao qual ainda estava preso.

Daí em diante comecei minha relação com o sol durante os dez anos seguintes. A natureza do aço é estranha. Descobri que se pouco a pouco aumentasse seu peso teria um efeito semelhante a escalas: os músculos cresciam proporcionalmente, como se o aço tivesse o dever de manter a balança entre os dois. Lentamente, meus músculos conseguiram equipararse ao aço. Este processo me lembrou o processo de educação, que remodela o cérebro de acordo com os assuntos progressivamente mais difíceis à medida que o intelecto avança. Dado que há a visão clássica de que o corpo corresponde à mente, então esta analogia me pareceu sensata. Porém, qual dos dois realmente está ligado ao outro? Não estaria usando as palavras para imitar o ideal clássico? Para mim, a beleza está sempre em fuga: a única coisa que me importa é o que já existiu, ou o que está para existir. Por meio dessa operação infinita e subjetiva, o aço restaura o clássico equilíbrio ao qual o corpo perdeu, restaurando-o à sua forma natural, a forma ao qual sempre pertenceu. Os músculos que se tornaram desnecessários na vida moderna, apesar de serem vitais ao corpo humano, são obviamente inúteis do ponto de vista prático, músculos avantajados são tão inúteis quanto a educação clássica é desnecessária para a maioria dos homens práticos. Músculos começaram a se tornar algo artístico e ligado à Grécia Antiga. Para reviver esta língua morta, a disciplina do aço mostrou-se necessária; para transformar o silêncio da morte na eloquência da vida, o auxílio do aço mostrou-se essencial. O aço felizmente mostrou-me a correspondência entre corpo e espírito. Desta forma a fraqueza em espírito me pareceu correspondente aos músculos flácidos, sentimentalismo à uma barriga avantajada, e uma pele ressecada correspondente à uma luta interna no âmago da pessoa, ao julgamento intelectual desmedido. Ressalto que não acredito que as pessoas comuns sejam necessariamente assim. Minha escassa experiência própria é suficiente para me fornecer inúmeros exemplos de mentes tímidas presas à músculos salientes. Apesar disso, como já apontei, as palavras vieram à mim antes da carne, então esta intrepidez, imparcialidade e dureza e todos os demais emblemas morais de caráter resumidos por palavras, necessitam serem correspondentes ao corpo. Por esta razão, disse a mim mesmo, correspondi o corpo e seus sinais ao processo de educação. Além deste processo há outro, mais romântico. O impulso romântico que se formou internamente em mim durante a juventude, e que somente faz sentido quando interpretado como uma destruição da perfeição clássica, repousa ainda em mim. Como um tema em uma aventura que está destinado a tomar todo o trabalho, este impulso se manteve em mim durante todo meu percurso. Especialmente, no impulso relacionado à morte, utilizando estritamente do corpo clássico como seu veículo; um peculiar senso de destino me fez acreditar que a razão pela qual meu impulso romântico à morte se manteve inquieto na realidade era devido à falta de condições físicas necessárias para tal. Poderosos, belos e trágicos músculos são necessários para uma morte nobre e romântica. Qualquer confronto entre a carne fraca e flácida com a morte me parece absurdamente inapropriado. Desejando aos dezoito anos uma morte precoce, percebi que era indigno dela. Não tinha os músculos necessários para uma morte trágica. Isto feriu profundamente meu orgulho romântico, fato que talvez tenha me mantido vivo durante a guerra.

Apesar de tudo, estas convulsões internas puramente intelectuais não eram nada a não ser temas de uma vida humana que até então não havia chegado a lugar algum. Me lembravam que algum dia deveria alcançar algo, deveria destruir algo. Que um dia o aço viria – o aço guiou-me ao que fazer. Da mesma forma que algumas pessoas se mostram orgulhosas do nível intelectual ao qual chegaram, descobri que o intelecto, além de ser um acessório cultural, poderia ser por mim utilizado como uma arma, no âmbito individual. Desta forma as disciplinas físicas que mais tarde se tornariam necessárias para minha sobrevivência poderiam ser comparadas ao meio pelo qual uma pessoa cujo corpo é seu sustento busca desesperadamente uma educação intelectual ao confrontar a morte iminente. O aço me ensinou bastante. Deu-me um novo tipo de conhecimento, um conhecimento ao qual nem livros nem a experiência mundana poderiam ensinar-me. Descobri que músculos são fortes como a forma, e cada complexo de músculos é diretamente responsável pela força ao qual exerce, da mesma forma que os raios solares dão forma à carne. Nada poderia se adequar mais perfeitamente à definição de arte ao qual tanto busquei quanto o conceito da forma ligada à força, em correlação com a ideia de que o trabalho deveria ser orgânico, espalhando-se como os raios solares em todas as direções. Os músculos que criei eram únicos e ao mesmo tempo trabalhos de minha arte; eles até mesmo, paradoxalmente, possuíam uma certa natureza abstrata. Seu único erro fatal era de serem muito próximos do processo da vida, o que acabou por fada-los a decaírem junto desta. Esta estranha natureza abstrata será tratada mais tarde; mais importante agora é tratar da qualidade mais desejável dos músculos: sua função é precisamente oposta à das palavras. Isto se torna claro quando considerada a origem das próprias palavras. Primeiramente, da mesma forma que a cunhagem em pedras, as palavras se tornaram correntes aos quais membros de uma raça ligavam-se universalmente para a comunicação de emoções e necessidades. Desta forma, elas se tornaram propriedade comum, pois, essencialmente, não expressam mais do que emoções comuns. Entretanto, na medida que as palavras se tornaram particulares, e que o homem – não importando a forma – começou a usa-las de forma pessoal e arbitrária, então começou sua transformação. Foram estas palavras que, descendo até mim como um enxame de insetos, repousaram em minha individualidade e me calaram por meio dela. Entretanto, apesar das depredações do inimigo em minha pessoa, virei sua universalidade – arma e fraqueza – contra ele, e estendi com certo sucesso este uso para universalizar minha própria individualidade. Este sucesso consistia em ser diferente dos demais, e era essencialmente uma variância das origens e desenvolvimento das palavras. Nada, na verdade, é tão estranho quanto a glorificação das artes verbais. Parecendo à primeira vista buscar a universalidade, na verdade estas artes buscam de maneiras sutis trair a função fundamental das palavras, que é ser universalmente aplicável. A glorificação do estilo individual de literatura significa precisamente isto. Os poemas épicos da Antiguidade são, talvez, uma exceção, mas todo trabalho literário com o nome do autor no topo não passa de uma bela “perversão das palavras”. Poderia o céu azul que buscamos, este misterioso céu azul que é visto de forma idêntica por todos os portadores do santuário, alguma vez ter expressão verbal?

É ali, como já disse, que todas minhas dúvidas repousaram; por outro lado, o que encontrei nos músculos, através do intermédio do aço, era um chamativo triunfo não-específico, o triunfo do conhecimento de que um é o mesmo que outros. Na medida que a pressão do aço progressivamente moldou meus músculos além de sua inutilidade e individualidade (ao qual eram produtos da degeneração), e na medida em que estes foram se desenvolvendo, eles começaram, penso eu, a tomar um aspecto universal, até atingirem o ponto padrão ao qual as diferenças individuais cessam. A universalidade assim alcançada não é traída nem corroída. Esta é a característica mais desejável à mim. Acrescento que, estes músculos, tão aparentes ao olho, tão palpáveis ao toque, começaram a adquirir uma qualidade abstrata para si. Músculos, ao qual a não-comunicação é sua essência, nunca deveriam, em teoria, adquirir a qualidade abstrata comum à comunicação. E mesmo assim... Em um dia de verão, aquecido pelo treino, repousei meus músculos na brisa do vento vindo de uma janela. O suor desapareceu como um toque de mágica, e o frio passava por meus músculos como um leve toque. Noutro instante, fui tomado pela certeza da existência destes mesmos músculos, e – da mesma forma que as palavras, por função abstrata, poderia alcançar o mundo concreto em que as palavras parecem nunca ter existido – meus músculos naquele momento despertaram algo em meu ser, como se meus músculos nunca tivessem existido antes. O que fora tocado em meu âmago? Creio que seja o senso de existência ao qual normalmente acreditamos de maneira desleixada, que fora transformado em algum senso de poder. A isto me refiro como sua “natureza abstrata”. Como minha experiência com o aço havia sugerido, a relação dos músculos com este mesmo aço era de interdependência: muito similar, na verdade, à relação entre nós e o mundo. O senso de existência pelo qual força não pode ser simplesmente força sem um objeto representando a relação básica entre nós e o mundo; é precisamente a esta extensão que dependemos no mundo, e ao qual dependo do aço. Da mesma forma que os músculos gradualmente equivalem-se ao aço, somos gradualmente equivalentes ao mundo; tal como nem o mundo nem o aço podem possuir o sentido de sua própria existência, esta analogia leva involuntariamente á ilusão de que ambos, de fato, possuem sentido. Do contrário, nos sentimos impotentes para, por conta própria, verificar o sentido da existência, desta forma, Atlas, por exemplo, viria a considerar o globo acima de seus ombros como algo semelhante a si. Desta forma, nosso sentido de existência busca um objeto, e só pode viver no falso mundo da relatividade. É verdade que ao levantar certa quantidade de aço, fui capaz de acreditar em minha própria força. Suava e ofegava, em busca da fé em minha força e de uma prova desta. Naqueles tempos, a força era minha, e equipara-se o aço. Meu senso de existência estava moldando a si mesmo. Quando, longe do aço, meus músculos pareciam cair em isolamento, suas formas protuberantes não passavam de engrenagens criadas para engrenar aço. A brisa fresca passou, e com ela o suor evaporou – e com eles a existência dos músculos. Porém, desta forma, os músculos desempenharam sua função mais essencial, triturando com sua resistência aquele sentido ambíguo e relativo da existência e o substituindo por uma sensação de poder transparente e inigualável que não existia em objeto algum. Até os músculos, estes próprios, já

não existiam. Fui envolvido por uma sensação de poder crescente tão transparente quanto a luz. Não me surpreende que, nesse puro estado de poder, nenhum livro ou análise intelectual pôde capturar, ou poderia descobrir, uma verdadeira antítese em palavras para aquela sensação. Isto gradualmente tornou-se o foco de todo meu pensamento.

A formulação de qualquer pensamento novo começa com a reflexão e reformulação múltipla de um mesmo pensamento ambíguo. Como o pescador que tenta todos os tipos de iscas, ou o espadachim que tenta todos os tipos de espadas de bambus até achar uma compatível em peso e força com o que deseja, desta mesma forma, acontece com a forma de pensar, uma ideia imprecisa toma expressão de variadas formas; e então somente ao adequar-se à necessidade que se torna parte do ser. Quando experimentei este senso de força, tive o pressentimento de que ali residiria o futuro foco de meu pensamento. Tal ideia me deu um prazer indescritível, e procurei enxergar como uma sedutora moda antes de tomar como forma de pensar. Aproveitei o tempo, estudei o processo, me preveni de que a ideia se tornasse mero jogo de palavras, e experimentei diferentes formulações. Por diversos meios revivi aquela sensação e confirmei sua natureza – como um cachorro, atraído pelo agradável aroma de um osso, que brinca com o osso para aproveitar de seu cheiro. Para mim, as tentativas de reviver tal sensação me levaram ao boxe e à esgrima, ao qual tratarei depois. É natural que o replay desta sensação seguisse o caminho do punho e da espada; pois o golpe do punho ou da espada de bambu são meios pelos quais a força dos músculos se manifesta. Era uma tentativa de alcançar a “sensação suprema” que reside além do vale dos sentidos. Algo, tenho certeza, espreitava o vazio. Mesmo com o auxílio daquele senso de puro poder, somente era possível se aproximar um pouco daquela coisa; com o intelecto, ou com a intuição artística, não era possível sequer se aproximar dez ou vinte passos. A arte, poderia dar “expressão” a isto de uma forma ou outra. Entretanto, tal “expressão” requer um meio; em meu caso, pareceu-me que a função abstrata das palavras que serviria de meio tinha a habilidade de barrar qualquer outra coisa. E parecia improvável que o ato de expressão seria capaz de satisfazer aquele motivado pela dúvida por trás de cada ato. Não é surpresa que um anátema às palavras irá dirigir sua atenção à essencialmente dúbia natureza do ato de expressão. Por que nos concentramos e damos expressão à coisas que não podem ser ditas – e por vezes sucedidas? Tal sucesso é um fenômeno que ocorre quando um súbito arranjado de palavras excita a imaginação do leitor à um grau extremo; neste momento, autor e leitor se tornam companheiros no crime da imaginação. E quando sua cumplicidade dá luz há um trabalho literário – aquela “coisa que não é uma coisa” – outras pessoas chamam de “criação” e cessam suas perguntas. Na verdade, as palavras, quando armadas com sua função abstrata, originalmente se colocam em aparência como um trabalho do logos que define a ordem em meio ao caos do mundo concreto dos objetos, uma expressão é essencialmente uma tentativa de retornar o funcionamento abstrato a si mesmo e, como uma corrente elétrica que flui reversamente, convocar um fenômeno mundano com o auxílio tão somente das palavras. Em acordo com tal ideia que sugeri prematuramente que todos os trabalhos literários são uma bela transformação da linguagem. “Expressão”, por definição, significa a recriação do mundo concreto usando somente a linguagem. Quantas verdades preguiçosas do homem foram admitidas em nome da imaginação! Quantas vezes fora usada a imaginação para justificar a vil tendência da alma em buscar futilmente a verdade, deixando o corpo aonde já repousava! Quantas vezes o homem escapara do sofrimento de seu próprio corpo com auxílio do aspecto sentimental da imaginação que sente as dores da carne de outros em si próprio! Quantas vezes a imaginação inquestionavelmente

exaltou os sofrimentos espirituais cujos valores são difíceis de mensurar! Quando este tipo de arrogância da imaginação liga o ato artístico da expressão aos seus complementos, daí surge a existência de uma “coisa” ficcional – o trabalho da arte – e sua interferência com um grande número de “coisas” que são pervertidas e alteradas da realidade. Como resultado, o homem acaba tendo contato apenas com as sombras e perde a coragem de fazer de si próprio sua casa junto das tribulações da carne. Aquilo que espreitava além do punho e do golpe de esgrima estava no polo oposto da expressão verbal – pelo menos, era o aparente sentimento transmitido pela sensação de ser a essência de algo extremamente concreto, quiçá a essência da própria realidade. Em nenhum sentido poderia ser chamado de “sombra”. Além do punho, além da ponta da espada de bambu, uma nova realidade surgiu, uma realidade que rejeitou todas as tentativas de torna-la abstrata – de fato, rejeitou toda expressão de fenômenos e abstrações. Ali, acima de tudo, reside a essência da ação e do poder. A realidade, no linguajar popular, era referida simplesmente como “o oponente”. O oponente e eu habitávamos o mesmo mundo. Quando olhei, vi o oponente; quando o oponente olhou, fui visto; nos encontramos face a face sem qualquer intermédio da imaginação, ambos pertencentes ao mesmo mundo de ação e força – o mundo dos que “são vistos”. O oponente não era em sentido algum uma ideia, pois mesmo trilhando de grau em grau o caminho da expressão verbal em busca de uma ideia e, olhando atentamente para tal ideia, podemos nos cegar para a luz, mas a ideia jamais nos olhar de volta. Em um reino onde a cada momento o olhar é devolvido, nunca há tempo para expressar as coisas em palavras. Para se expressar, é preciso estar fora deste mundo em questão. Dado que o mundo jamais retorna ao escrutínio de alguém, têm-se somente tempo para olhar e expressar o que se encontrou. Mas nunca se conseguirá chegar à essência de uma realidade que retribui o olhar. Foi o oponente – o oponente que ocupou o espaço vazio entre a carne do punho e o golpe da espada, olhando de volta para cada um – que constituiu a verdadeira essência das coisas. Ideias não retornam o olhar; mas um reflexo sim. Além das expressões verbais, ideias podem flutuar por de trás da semitransparência das coisas ficcionais ao qual conquistaram. Além da ação, pode-se vislumbrar, por trás do espaço semitransparente alcançado (o oponente), a “coisa”. Para o homem de ação tal “coisa” aparece como morte, que se abate sobre ele – como o grande touro negro do toureiro – sem qualquer ação da imaginação. Apesar disso, não posso levar a mim mesmo a acreditar nisso exceto quando posto na extremidade da consciência; tenho percebido lentamente que a única prova física da existência da consciência é o sofrimento. Além da dúvida, há um certo esplendor na dor, que é estranhamente relacionado com o esplendor que reside na força. É uma experiência comum que nenhuma técnica de ação possa se tornar efetiva até ser repetida ao ponto da prática, em que tal técnica se funda nas áreas inconscientes da mente. O que me interessa nisso, entretanto, é algo um pouco diferente. Se por um lado, meu desejo por uma pura experiência de consciência reside nas séries de corpo-força-ação, por outro minha paixão pela pura experiência estava fixa no momento em que, graças à ação reflexiva do subconsciente pré-treinado, o corpo desenvolveu sua mais alta habilidade. E a única coisa que realmente me atraiu fora o ponto em que estas duas tentativas mutuamente opostas coincidiram – o ponto de contato, em outras palavras, em que o valor absoluto da consciência e o absoluto valor do corpo se tornaram compatíveis um com o outro.

A confusão causada pelo álcool e pelas drogas não são, é claro, de minha serventia. Meu único interesse reside em seguir a consciência através de seus limites extremos, e assim descobrir em que ponto tal consciência se converte em poder inconsciente. Dessa forma, que testemunho mais seguro da persistência da consciência até seus limites externos poderia ser encontrado do que o sofrimento físico? Há uma inegável interdependência entre a consciência e o sofrimento físico, e a consciência, em reciprocidade, provém as mais certas provas da persistência do corpo. A dor, como bem senti, pode muito bem ser a única prova da persistência da consciência dentro da carne, a única expressão física da consciência. Na medida em que meu corpo adquiriu músculos, e por consequência força, houve uma gradual tendência em mim em aceitar positivamente a dor, consequentemente, meu interesse pelo sofrimento físico aumentou consideravelmente. Apesar disso, não acredito que tal desenvolvimento foi resultado do trabalho de minha imaginação. Minha descoberta fora feita diretamente com meu corpo, graças ao sol e ao aço. Como muitas pessoas experimentaram por si mesmas, quanto maior a precisão de um golpe de uma luva de boxe ou de uma espada de esgrima, maior é o sentimento de ser um contragolpe ao invés de um golpe direto ao oponente. O próprio golpe, a própria força, cria uma espécie de horror. Um golpe bem-sucedido, quando, naquele instante, o corpo do oponente e o ataque se encaixam perfeitamente, assume uma forma precisamente idêntica ao espaço entre os dois. Como um golpe pode ser experimentado desta maneira; o que o torna bem-sucedido? O sucesso surge quando o momento e a colocação do golpe são perfeitos. Mas além disso, acontece quando a escolha do tempo e do alvo – segundo o julgamento do atacante – é feita para agir no momento de guarda baixa, quando se tem uma apreensão intuitiva do momento de quebra da guarda que acontece numa fração de segundo antes de se tornar perceptivo aos sentidos. Esta apreensão é uma quantidade incompreensível ao consciente mesmo após um longo treinamento. No momento do golpe, quando o tempo se revela perceptivo à consciência já é tarde. É tarde demais, em outras palavras, quando aquilo que espreita o espaço além do punho flamejante e da ponta da espada toma forma. No momento em que toma forma, já está confortavelmente instalado no espaço vazio que o demarca e cria. É neste instante que a vitória nasce. Descobri que, no momento da luta, o processo tardio de criar músculos, não importando se a força cria a forma ou se a forma cria a força, é repetido tão sutilmente que se torna imperceptível ao olho. Força, que como a luz emite seus próprios raios, é constantemente renovada, destruindo e criando a forma ao seu bel-prazer. Vi como a forma bela e esbelta é superior à forma feia e imprecisa. Sua distorção invariavelmente implica numa abertura para o inimigo e o embaçamento dos raios da força. A derrota do inimigo ocorre quando sua forma se acomoda no vazio que se demarcou; naquele momento, a própria forma deve preservar uma precisão constante e beleza. E a forma em si deve possuir uma extrema adaptabilidade, uma flexibilidade extraordinária, de forma que lembre uma série de esculturas criadas de tempos em tempos pelo fluído corporal. A contínua radiação da força cria seu próprio contorno, da mesma forma que o contínuo jato d´água cria o contorno da fonte. Certamente o sol e o aço ao qual me submeti durante um período tão longo era um processo de criação dessa escultura fluída. E na medida que o corpo assim moldado pertencia à vida,

todo o seu valor, como passei a sentir, deve pertencer àquele momento de esplendor. Essa, de fato, é a razão pela qual a escultura humana se esforça tanto para comemorar e imortalizar a glória momentânea da carne em mármore imperecível. A morte, então, encontra-se apenas um pouco além deste momento. Aqui, pensei, comecei a ter uma ideia do sentido oculto do culto ao herói. O cinismo que rodeia todo culto ao herói como cômico é sempre assombrado por um senso de inferioridade física. Invariavelmente, é o homem que possui menos atributos físicos heroicos que mais age com jocosidade em torno do herói; e quando faz isso, quão desonesto acaba por ser com sua fraseologia, participando ostensivamente de uma lógica tão universal e geral, não deveria (ou pelo menos deve ser assumido pelo público como não) dar qualquer sinal de suas características físicas. Ainda não conheci um homem sequer que, atribuído dos atributos físicos do herói, tenha ridicularizado este nobre culto. O cinismo, invariavelmente, é relacionado à flacidez dos músculos ou à obesidade, enquanto o culto ao herói e um poderoso niilismo é relacionado ao corpo esbelto e músculos. O culto ao herói é, em última análise, o princípio básico do corpo, e a longo prazo intimamente ligado ao contraste entre a robustez do corpo e a destruição da morte. O corpo possui persuasão suficiente para destruir a aura cômica que rodeia uma excessiva autoconsciência; pois um corpo belo pode ser trágico, não havendo espaço para o cômico. O que salva a carne de ser ridícula é o elemento da morte que reside na vitalidade e no corpo vigoroso; é isto, percebi, que sustenta a dignidade da carne. Quão cômico seria o toureiro se seu ofício não fosse intimamente ligado à morte! No entanto, sempre que buscada a sensação final, o momento da vitória, esta sensação era sempre insípida. O oponente – “a realidade que olha para trás” – é a morte. Visto que a morte, ao que parece, não cede a ninguém, a glória da vitória não pode ser nada mais do que uma glória puramente mundana em sua forma mais elevada. E se consiste em apenas glória mundana, disse a mim mesmo, então deve-se ser capaz de obter algo muito semelhante ao recorrer às artes verbais. Porém, o que sentimos na mais bela das esculturas – como a carruagem de bronze de Delfos, onde a glória, o orgulho e a sincronia refletidas no momento da vitória foram imortalizadas – é a aproximação sútil do espectro da morte ao lado do vencedor. Ao mesmo tempo, ao nos mostrar simbolicamente os limites da espacialidade na arte da escultura, acaba por intimamente mostrar que nada além do declínio reside após a glória humana. O escultor, em sua arrogância, captura a vida somente em seu momento mais grandioso. Se a solenidade e dignidade do corpo surgem do elemento da mortalidade que o rodeia, então a estrada que leva à morte deve possuir algum particular caminho conectando a dor, o sofrimento e a consciência contínua que são provas da vida. E não pude deixar de sentir que se houvesse algum incidente em que violentas dores e músculos bem definidos fossem combinados, só poderia haver ali respostas às demandas estéticas do destino. Não que, é claro, o destino dê muitos ouvidos às considerações estéticas. Mesmo em minha juventude, me eram desconhecidos diversos tipos de sofrimentos físicos, mas a mente confusa e a hipersensibilidade da adolescência os confundiam com sofrimento espiritual. Como colegial, forçado à marchar de Gora até Sengoku-bara, e então por Otome e aos pés do Monte Fuji, foi uma experiência obviamente desgastante, mas tudo que extraí

destas tribulações fora um tipo de sofrimento passivo e mental. Faltou-me coragem física para buscar fora do sofrimento por mim mesmo, para levar a dor à mim. A aceitação do sofrimento como prova de coragem é o tema de rituais de iniciação primitivos no passado, e todos estes ritos possuíam cerimônias de morte e ressurreição. Os homens esqueceram do profundo embate entre a consciência e o corpo que existe na coragem, em particular na coragem física. A consciência é geralmente considerada passiva, e o corpo ativo constitui a essência de tudo que é audaz e corajoso; no entanto, no drama da coragem física, os papéis são, de fato, invertidos. A carne parte em retiro constante em sua função de autodefesa, enquanto claramente a consciência toma controle e envia o corpo ao autoabandono. A autoconsciência máxima leva o corpo ao abandono. Abraçar o sofrimento é a função constante da coragem física; e a coragem física é a fonte de todo gosto pelo entendimento e pela apreciação da morte que, acima de tudo, é a condição primária da verdadeira consciência da possibilidade de vir a morrer. Entretanto, muitos filósofos urgem sobre a ideia da morte, desde que se mantenham divorciados da coragem física que é um pré-requisito para a consciência disto, para o memento mori, sendo portanto incapaz de vislumbrar por completo esta ideia. Devo enfatizar que aqui trato da coragem “física”; a “consciência do intelectual” ou a “coragem intelectual” não me interessam. No entanto, permanece o fato de que vivia em uma época em que a espada de esgrima não era mais um símbolo direto da espada real, e a espada real na esgrima não corta nada além de ar. A arte da esgrima era um resumo de toda beleza viril; ainda que a masculinidade já não tivesse utilidade prática alguma na sociedade, de forma que mal se podia distinguir a arte da imaginação. Imaginação. Eu a detesto. Para mim, a esgrima deveria ser algo que não admitisse nenhuma intervenção da imaginação. Os cínicos – sábios de que ninguém despreza tanto a imaginação quanto o sonhador, cujos sonhos são processos da imaginação – iriam, estou certo, zombar de mina confissão em suas mentes. Ainda assim meus sonhos se tornaram, em certo sentido, meus músculos. Os músculos que fiz, que existem, talvez levem luz à imaginação de outros, mas não mais admitem serem afastados de minha própria imaginação. Havia chegado no estágio em que estava rapidamente conhecendo o mundo daqueles que são “vistos”. Se há uma propriedade especial de músculos que alimentam a imaginação de outros enquanto permanecem desprovidos de imaginação, então na esgrima eu estava tentando ir um passo além e alcançar a ação pura que não permite imaginação, seja por si ou por outros. Por vezes parecia que meu desejo havia sido realizado, outras vezes nem tanto. Apesar disso, era a força física que lutava, que corria velozmente, que gritava alto... Como sabem os músculos, geralmente tão pesados, tão obscuros, tão estáticos, saberem o momento exato para a ação rápida? Como amo o frescor da consciência que ondula incessantemente sob tensão espiritual, não importando o tipo. Não podia acreditar que isso era meramente uma qualidade intelectual, que o cobre de minha excitação fosse forrado com prata de minha consciência. Era isso que tornava o frenesi único. Pois comecei a acreditar que eram os músculos – poderosos, estaticamente organizados e silenciosos – que eram a verdadeira fonte da clareza de minha consciência. A dor ocasional nos músculos durante os

golpes que erravam o escudo levava à uma forte consciência que suprimia a dor, e o sopro iminente levava à explosão de um novo golpe. Assim, volta e meia vislumbrei outro sol bem diferente daquele ao qual fui abençoado por tanto tempo, um sol repleto de ferozes chamas sentimentais, um sol da morte que nunca queimaria a pele, mas que a deu um brilho ainda mais estranho. Este segundo sol era essencialmente mais perigoso para o intelecto do que o primeiro sol. Foi o perigo, mais do que qualquer outra coisa, que me encantou.

Qual era meu trato com as palavras durante este mesmo período? Adaptei meu estilo aos meus músculos; se tornou flexível e livre; todo o excesso foi removido, enquanto o ornamento “muscular” – ornamento ao qual é absolutamente necessário para prestígio e presença no mundo moderno – fora assiduamente mantido. Desaprovo o estilo meramente funcional da mesma forma que desaprovo o meramente sensual. Mais do que nunca, me encontrava em uma ilha isolada, uma ilha de mim mesmo. Meu corpo estava isolado, e meu estilo nas bordas da não-comunicação; era um estilo que não só não aceitava, mas também rejeitava. Mais ainda, estava preocupado com a distinção (não que meu estilo necessariamente possuísse isso). Meu estilo ideal teria a beleza da madeira polida no hall de entrada de uma mansão samurai durante o inverno. Meu estilo, como tenho de apontar, progressivamente tomou preferência à idade. Abundante em antítese, vestido no démodé, repleto de solenidade, não faltou nobreza alguma à ele; mas manteve a mesma prosa cerimonial, marchando silenciosamente à cama de outras pessoas com o mesmo trato. Como um elegante militar, marchava com o peito estufado e os ombros orgulhosos, não se importando com o estilo dos homens pelo qual passava. Eu sabia, é claro, que existem algumas verdades neste mundo que ninguém pode descobrir a menos que desdobre sua postura. Porém, tais coisas poderiam muito bem ser deixadas aos demais. Em alguma parte de mim, comecei a planejar a união da arte com a vida, do estilo com o ethos da ação. Se o estilo é similar aos músculos e aos padrões de comportamento, então sua função obviamente é de restringir a rebeldia da imaginação. Quaisquer verdades que possam ser esquecidas não me importam. Tampouco que o horror, medo, confusão ou ambiguidade frustrem meu estilo. Decidi em minha mente que escolheria uma verdade particular, e que evitaria quaisquer outras. Verdades feias eram por mim ignoradas; por meio de um processo de seleção em meu espírito, lutei para escapar da sórdida influência exercida pela imaginação. Entretanto, fora um caminho perigoso, obviamente, ignorar ou subestimar tal influência. Não há qualquer aviso de quando as forças da invisível imaginação lançam seus covardes ataques às cuidadosamente guardadas bases do estilo. Dia e noite, mantive-me em guarda. Ocasionalmente, algo – um fogo vermelho – aparecia como um sinal em meio a escuridão da noite que me rodeava. Tentava dizer a mim mesmo que era uma fogueira. Então, subitamente, tal como se formou, o fogo desaparecia. Como guarda e arma contra a imaginação e sua sensibilidade fúnebre, eu tinha o estilo. A tensão da vigília pernoite, seja por terra ou mar, foi o que busquei além de meu estilo. Mais do que qualquer coisa, detestava a derrota. Pode haver derrota pior do que quando se é corroído e cauterizado pela acidez da sensibilidade até que finalmente perde-se o contorno, dissolve-se e desaparece-se; ou quando a mesma coisa acontece com a sociedade sobre o indivíduo, fazendo alterar o seu próprio estilo para adequar-se? Todos sabem que as obras-primas, ironicamente, por vezes surgem na amargura da derrota, na fúnebre morte do espírito. Embora eu deva recuar um pouco e admitir que tais obrasprimas são a mais nobre vitórias, sei que são vitórias sem luta, vitórias sem batalhas de um tipo peculiar de arte. O que busquei foi tal luta, seja como ela for. Não tinha qualquer gosto pela derrota – tampouco pela vitória – sem luta. Ao mesmo tempo, conhecia muito bem a enganosa natureza de qualquer tipo de conflito na arte. Se eu tivesse uma luta, senti que deveria toma-la ofensivamente em campos além da arte; na arte, devo defender minha

cidadela. Era necessário que fosse um bom defensor dentro da arte, e um bom agressor fora dela. O objetivo de minha vida era de adquirir os vários atributos de um guerreiro. Durante o período pós-guerra, quando todos os valores aceitos estavam subvertidos, pensei que agora era hora de reviver o velho ideal japonês da combinação das letras com as artes marciais, da arte com a ação. Por um tempo após isso, meu interesse se manteve neste ideal particular; então, como gradualmente passei a trilhar o caminho do sol e do aço e a aprender o segredo de como buscar as palavras com o corpo (e não meramente buscar o corpo com palavras), os dois polos em mim começaram a manter-se em equilíbrio, e o gerador de minha mente, por assim dizer, passou de uma corrente direta para uma alternativa. Minha mente inventou um sistema ao instalar em si dois elementos mutuamente antipáticos – dois elementos que floresceram em direções opostas – deu aparência de induzir uma divisão cada vez maior na personalidade, mas na prática acabou por criar a cada momento um equilíbrio vivo que era constantemente destruído e revivido. A adoção de uma polaridade dupla dentro de si e a aceitação da contradição e colisão – tal era minha mistura de “arte e ação”. Desta forma, pareceu-me, meu longínquo interesse no oposto do princípio literário passou pela primeira vez a gerar frutos. O princípio da espada, repousava, ao que parecia, em ver a morte não com pessimismo e impotência mas com energia abundante, como fonte da perfeição física e da vontade de lutar. Nada além poderia ser removido do princípio da literatura. Na literatura, a morte é posta em cheque ao mesmo tempo em que é usada como força motriz; a força é devota à construção de vazias ficções; a vida é tomada ao inverso, sublimada com a morte, tratada com preservativos, e exaltada com a produção de trabalhos artísticos que possuem uma estranha vida eterna. A ação – alguns podem dizer – perece com o florescer; enquanto a literatura é uma flor imperecível. E uma flor imperecível, é claro, é uma flor artificial. Se a combinação da ação e arte é mesclar a flor que padece e a flor eterna, de juntar em um dois desejos contraditórios da humanidade, e os respectivos sonhos dos desejos de realização destas. Então, qual é o resultado? Para ser intimamente familiar à essência destas duas coisas – ao qual uma deve ser falsa para que a outra possa ser verdadeira – e para conhecer completamente suas fontes e para compreender seus mistérios, deve-se destruir secretamente os sonhos que abrangem cada uma. Quando a ação vê a si mesma como realidade e a arte como ilusão, acaba por afirmar esta ilusão com autoridade ao dar o endossamento final à sua própria verdade e, esperando tomar vantagem de tal ilusão, dá-lhes poder sobre os sonhos. Desta forma grandes poemas épicos foram escritos. Por outro lado, quando a arte considera a si mesma como realidade e a ação como falsidade, acaba por transformar tal ação num resquício de seu próprio mundo ficcional; força-se a percepção de que sua própria morte não é mais fruto de tal falsidade, e de que as consequências de seu trabalho dificilmente equiparam-se com a realidade da morte. Tal morte é uma morte temida, a morte que desce até os seres humanos que jamais viveram; mas ao menos estes podem sonhar com a existência do mundo da ação – a falsidade – da morte que não lhes pertence. Ao destruir estes sonhos me refiro à percepção de duas verdades secretas: que a flor da falsidade sonhada pelo homem de ação não passa de uma flor artificial; e, por outro lado, que a morte sonhada é uma falsidade ao qual os sonhos artísticos não conferem favores. Em resumo, a análise dual impede qualquer salvação pelos sonhos: os dois segredos que jamais

deveriam encontrar-se acabam por ver através de si. Em um corpo, e sem hesitar, o colapso dos princípios da vida e da morte devem ser aceitos. Pode-se perguntar se é possível viver tal dualidade na prática. É extremamente raro que tal dualidade assuma sua forma absoluta; é o tipo de ideal que, se realizado, não passaria de um momento. O segredo deste conflito íntimo, desta dualidade, é que, apesar de fazer de si mesmo um sentimento constantemente externo, não passa de uma vaga apreensão, ao qual não se pode testar até o momento final, até a morte. Então – no momento ao qual o duplo ideal que não oferece salvação está para ser realizado – aquele preocupado com tal ideal acabará por trai-lo por uma via ou outra. Dado que a vida o guiou até este caminho rigoroso, ele acabará por trai-lo ao defrontar-se com a morte. Do contrário, a morte lhe será insuportável. Desde que estejamos vivos podemos flertar com qualquer tipo de perspectiva, fato confirmado pelas constantes mortes no esporte e pelos revigorantes renascimentos que se seguem. Vitória, no que diz respeito à mente, vem do equilíbrio alcançado em face da destruição iminente. Dado que minha própria mente estava sempre atormentada com o tédio, tudo exceto o mais difícil, isto é, as tarefas virtualmente impossíveis, falharam em despertar meu interesse. Mais especificamente, não era mais interessado em coisa alguma, exceto o jogo perigoso em que a mente se coloca em perigo – no jogo e no “banho” refrescante que se seguiu. Ao mesmo tempo, um dos objetivos de minha mente era saber como o homem com um físico maciço se sente diante do mundo. Este era obviamente um problema grande demais para meu mero conhecimento resolver. Embora o conhecimento possa penetrar a escuridão usando muitas de suas vinhas rastejantes de sensação e intuição como guias, neste campo, porém, as próprias raízes foram arrancadas; a fonte do saber me pertencia, mas o direito à existência era concedido por outra via. Um pouco de reflexão tornará tudo mais claro. A sensação de existência de um homem robusto deve, em si, ser do tipo que abrange o mundo inteiro; para tal homem, considerado como objeto de estudo, tudo fora dele (inclusive eu) deve necessariamente ser transferido para o mundo externo objetivo experimentado por seus sentidos. Nenhuma imagem pode ser compreendida em tais circunstâncias, a menos que corresponda com uma consciência ainda mais abrangente. É como tentar saber como o nativo de outro país experimenta a existência; neste caso, tudo que pode ser feito é aplicar conceitos abstratos e inclusivos, como o Homem, a humanidade universal e assim por diante, e daí tirar deduções usando parâmetros hipotéticos. Este, no entanto, não é um conhecimento exato, mas sim um método que torna o incognoscível em elementos intocados e isolados, deduzindo por analogia com outros elementos semelhantes. A real questão é evitada; as coisas que “realmente se quer saber” são arquivadas. A única alternativa acaba por ser a imaginação tomar controle e enfeitar o desconhecido com uma variedade de poemas e fantasias. À mim, no entanto, toda a fantasia desapareceu. Minha mente entediada estava perseguindo o ininteligível quando, abruptamente, o mistério se desfez... subitamente, eu era o corpo esbelto. Assim, aqueles que estiveram do outro lado estavam aqui, do mesmo lado que eu. O enigma havia desaparecido; a morte permanecia o único mistério. E uma vez que a liberdade não fora de forma alguma fruto da mente, o orgulho deste foi terrivelmente ferido. Desafiadoramente,

comecei a bocejar novamente, e a mente ferida começou a vender-se descaradamente à imaginação, sendo a única coisa permanente à esta, a morte. Porém, há diferença? Se as mais profundas fontes da imaginação mórbida caem como uma a noite – a imaginação volúpia, induzida pelo abandono sensual – sendo uma na morte, então como distinguir a morte banal da morte gloriosa? A dualidade cruel da salvação prova que ambas são em último sentido a mesma, e que a ética literária e a ética da ação não passam de esforços patéticos de resistência contra a morte e esquecimento. Qualquer diferença que possa existir se resolve na presença ou ausência da ideia de honra, que considera a morte como “algo para ser visto”, e a presença ou ausência da estética formal da morte que a acompanha – em outras palavras, a natureza trágica da abordagem à morte e beleza do corpo indo para a perdição. Assim, uma bela morte é interessante, pois os homens estão fadados à inequalidades e diferentes graus de desgraças concedidos pelo destino em seu nascimento – embora essa inequalidade seja obscura, dado que o homem moderno é quase que desprovido do desejo que os antigos gregos tinham por “viver lindamente e morrer lindamente”. Por que o homem deve ser associado à beleza apenas através de uma heroica e violenta morte? Na vida ordinária, a sociedade mantém uma cuidadosa vigilância para garantir que os homens não tomem interesse pelo belo; a beleza física masculina, quando considerada um “objeto” em si mesmo, sem qualquer agente intermediário, é desprezada, e a profissão do ator – que envolve constantemente ser “visto” – não possui o respeito que merece. Uma regra rígida é posta no interesse do homem. É esta: um homem deve sob circunstâncias normais jamais permitir sua objetificação; somente através de uma ação suprema pode vir a ser objetificado – ao qual é, suponho, sua morte, o momento fatal em que, mesmo sem perceber, a ficção de ser visto e a beleza do objeto são permitidos. Nisto reside a beleza dos kamikaze, ao qual são reconhecidos não apenas como belos no sentido espiritual, mas também, pelos homens em geral, no sentido ultra erótico. Servir de agente neste caso é de uma intensidade heroica além da capacidade comum, sendo, portanto, tal “objetificação” quase impossível. Por mais que palavras possam chegar perto deste clímax que atua como intermediário da beleza, elas raramente podem alcança-la, tal como um corpo voador pode alcançar a velocidade da luz. Mas, o que tentei descrever aqui não era beleza. Para discutir o belo deve-se discutir a questão “em seu âmago”. Esta não é minha intenção: o que tento é expor um emaranhado de ideias variadas e estabelecer limites para elas. Desta forma descobri que a profundidade da imaginação recai na morte. É natural, talvez, que além da necessidade de defender-me das invasões da imaginação, eu tenha concebido a ideia de transformar a imaginação que há tanto tempo me atormenta de volta a si mesma, transformando-a em algo que poderia utilizar como arma para contra-ataque. Entretanto, no que diz respeito à arte como tal, meu estilo já havia construído certas defesas, e estava segurando com sucesso as investidas da imaginação. Se alguma contraofensiva fosse feita, deveria ocorrer em um campo fora da arte. Por isso, antes de qualquer outra coisa, fui atraído pelas artes marciais. Houve um tempo em que eu era um garoto, me inclinava na janela, sempre observando e ansiando por eventos inesperados. Embora eu fosse capaz de mudar o mundo, não podia parar de esperar que o mundo mudasse por conta própria. Sendo assim, todo tipo de ansiedades me abatiam, a transformação do mundo era urgente para mim; alimentava-me dia após dia; era

algo sem o qual não podia viver. A ideia de mudança do mundo era tão necessária quanto dormir ou ter três refeições ao dia. Foi isto que alimentou e gerou minha imaginação. O que se seguiu foi em certo sentido uma transformação do mundo, embora não completamente. Mesmo que o mundo pudesse mudar para como esperava, ele perdeu seu rico encanto no instante da mudança. O que estava no final de meus sonhos era o perigo extremo e destruição; nunca imaginei a felicidade. O tipo de vida diária mais apropriado para mim era a destruição mundial dia após dia; a paz era o estado mais difícil e anormal de se viver. Infelizmente, não tinha os traços físicos para realizar tal desejo. Tomado pela suscetibilidade que não conhecia resistência, atentei para o inesperado, dizendo a mim mesmo que, quando chegasse a hora, eu a aceitaria ao invés de lutar contra ela. Muito tempo depois, percebi que se a vida psicológica dessa juventude excessivamente decadente passasse a ser apoiada pela força e vontade de lutar, então teria constituído uma analogia perfeita à vida do guerreiro. Esta descoberta foi estranhamente estimulante. Ao fazê-la, coloquei ao meu alcance a oportunidade de transformar a imaginação e faze-la voltar a si mesma. Se o único mundo natural para mim fosse aquele em que a morte fosse uma questão cotidiana e evidente, e se o natural para mim fosse facilmente alcançável, não por meios artificiais, mas por conceitos de dever perfeitamente não originais, então nada poderia ser mais natural do que sucumbir gradualmente à tentação e procurar substituir a imaginação pelo dever. Nenhum momento é tão deslumbrante quanto quando as imaginações cotidianas sobre a morte, perigo e destruição do mundo são transformadas em dever. Para fazer isso, entretanto, exige-se o cuidado do corpo, da força e da vontade de lutar, e as técnicas para isso. Tal desenvolvimento pode ser confiado aos mesmos métodos que outrora serviram para desenvolver a imaginação; pois a imaginação e a esgrima não são alimentadas pelo mesmo tipo de familiaridade com a morte? Ambas são técnicas, aliás, que levam cada vez mais à destruição e sensibilidade. Agora percebo que o tipo de tarefa em que polir a imaginação para morte e o perigo possui o mesmo significado que polir uma espada, já me atraia há muito tempo; apenas a fraqueza e covardia me impediam. Ter a morte em mente dia após dia, focar cada momento na morte inevitável, ter certeza de que os piores pressentimentos coincidem com os sonhos de glória... se isso era tudo, então era o suficiente para transferir o mundo da carne ao qual eu fazia parte para o mundo do espírito. Já escrevi sobre o quão assiduamente estava fazendo preparativos para aceitar tal mudança violenta, preparando-me para aceita-la a qualquer momento. A teoria de que qualquer coisa pode ser recuperada surgiu em mim. Como ficou claro que até mesmo o corpo – ostensivamente prisioneiro do tempo em seu crescimento e declínio gradual – poderia ser recuperado, então não me era estranho que eu concebesse a ideia do próprio tempo como recuperável. À mim, a ideia de que o tempo era recuperável significava que a morte bela que antes me iludiu poderia ser possível. Ademais, durante os dez últimos anos havia aprendido a força, o sofrimento, a batalha e a auto conquista; havia aprendido a aceitar tudo isto com alegria. Estava começando a sonhar com minhas capacidades de guerreiro. ... é um tanto arriscado falar de um tipo de felicidade que dispensa palavras.

A única coisa que tenho certeza que pode ser facilmente deduzida do que escrevi é que, para provocar o que chamo de felicidade, um conjunto problemático de condições deve ser cumprido, e um conjunto extremamente complexo de procedimentos devem ser passados. O curto período – um mês e meio – que passei no Exército mais tarde me rendeu fragmentos brilhantes de felicidade, mas há um deles – um inesquecível, um momento aparentemente insignificante mas que me rendeu bastante felicidade – sobre o qual sou compelido a descrever. Embora eu estivesse no meio de um grupo militar, essa suprema sensação de bemestar tomou-me, como em ocasiões anteriores, quando estava completamente sozinho. Aconteceu no entardecer do dia 25 de Maio, um lindo dia de verão. Estava no esquadrão paraquedista; o treinamento do dia havia terminado; havia tomado banho e retornava ao dormitório. O céu do final da tarde estava tingindo os tons de azul e rosa, a grama espalhada abaixo era um jade uniforme e brilhante, distribuída aqui e ali, em ambos os lados do caminho ao qual caminhei pelos envelhecidos edifícios de madeira robustos, lembranças nostálgicas de uma época em que havia sido uma escola de cavalaria: o picadeiro coberto, agora um ginásio, os estábulos, agora um vestiário... Ainda estava com as roupas de cadete; calças cumpridas de algodão branco, sapatos de borracha, uma camisa de corrida. Até a barra da calça coberta pela lama me enchia de alegria. O treinamento matinal de manuseio do paraquedas, a sensação extraordinariamente rarefeita quando pela primeira vez comprometi-me com o ar vazio, ainda persistia dentro de mim, um resíduo transparente e frágil como um biscoito medicinal. A respiração rápida e profunda causada pelo treino em circuito invadiu todo meu corpo com uma agradável letargia. Espingardas, armas de todos os tipos, estavam à mão. Meu ombro estava pronto para lançar uma arma a qualquer momento, tinha corrido contentemente sobre a grama verde, senti o sol queimando minha pele em um marrom dourado; abaixo da luz do sol de verão eu tinha visto, há dez metros de mim, as sombras das pessoas nitidamente gravadas. Havia saltado do espaço do cume da torre de prata, consciente como a sombra que eu mesmo lançara entre eles e o próximo instante, isolada como uma poça negra na terra, desapegada de mim. Naquele momento eu estava, sem dúvidas, liberto de minha sombra, de minha autoconsciência. Meu dia tinha sido cheio e dominado pelo corpo e pela ação. Houve excitação física, suor, força e músculos; a grama verde do verão estava por toda parte, uma brisa agitou a poeira do caminho ao qual percorri, os raios solares lentamente inclinavam-se cada vez mais oblíquos e caminhava por eles com bastante naturalidade. Ali estava a vida. Eu a queria. Naquele momento, experimentei a mesma alegria solitária e áspera do instrutor de treinamento físico enquanto caminhava entre o antigo prédio da escola e os arbustos depois de perder a mim mesmo na beleza do treinamento físico de uma noite de verão. Senti um descanso absoluto ao meu espírito, uma beatificação da carne. Verão, nuvens brancas, azul vazio do céu seguindo a última aula do dia, e o toque da nostalgia junto da tristeza tingindo o brilho do sol, filtrada pelas árvores, induzindo-me à uma sensação de embriaguez. Eu existi... Quão complexos eram os procedimentos para alcançar tal existência! Nisto, uma série de conceitos que para mim eram próximos de fetiches conseguiram associação direta com meu corpo e sentidos, independentemente da ação das palavras. O Exército, o treinamento físico, o

verão, as nuvens, o pôr do sol, o verde da grama de verão, o agasalho branco, o suor, os músculos e o aroma suave da morte... Nada faltou; cada peça do mosaico estava em seu lugar. Não precisava de absolutamente mais nada, e portanto, não precisava das palavras. O mundo em que eu estava era composto de elementos conceituais tão puros quanto anjos; todos os elementos estranhos haviam sido temporariamente afastados, e transbordei com alegria infinita de ser um com o mundo, uma alegria semelhante à produzida pela água fria na pele aquecida pelo sol de verão.

Provavelmente o que chamo de felicidade coincide com que outros chamam de perigo iminente. Pois este mundo em que me fundi sem as palavras, preenchendo-me com uma sensação de felicidade, não era senão o mundo trágico. A tragédia, é claro, naquele momento ainda não fora cumprida; no entanto, todas as sementes da tragédia estavam dentro deste mundo; a ruína era implícita nele; carecia inteiramente de qualquer “futuro”. Obviamente, a base de minha felicidade era a alegria de ter adquirido completamente qualificações necessárias para nela residir. A base de meu orgulho foi a sensação de ter adquirido esse precioso passaporte, não por meio das palavras, mas sim por meio do corpo e somente dele. Este mundo era o único lugar onde pude respirar livremente, um lugar tão distante do lugarcomum e carente de futuro – este mundo que persegui incessantemente, desde o fim da guerra, com um sentimento ardente de frustação. Mas as palavras não desempenharam papel algum nisso; pelo contrário, elas sempre me estimularam para longe deste mundo: pois mesmo a expressão mais destrutiva era apenas parte integrante da tarefa diária do artista. Quão irônico! No período em que a taça sem futuro da catástrofe estava cessando, não tive as qualificações necessárias para beber dela. Fui embora, e, quando, depois de um longo treinamento, voltei armado com tais credenciais, encontrei a taça vazia, seu fundo friamente visível, e eu mesmo com mais de quarenta anos. Infelizmente, além disso, o único líquido que poderia saciar-me era aquele que outros haviam drenado de mim. Desta forma, nem tudo era, como me iludi, recuperável. Afinal, o tempo estava além da lembrança. Entretanto, percebi, a tentativa de voar em face da implacável marcha do tempo foi talvez o traço mais característico da forma como, desde a guerra, procurava viver cometendo todas as heresias possíveis. Se, como se acreditava, o tempo era de fato irreversível, seria possível que eu estivesse vivendo aqui dessa maneira? Eu, de fato, tinha um bom motivo em mim para fazer tal pergunta. Ao recusar totalmente a reconhecer as condições de minha própria existência, comecei a adquirir uma existência diferente. Na medida em que as palavras, ao endossarem minha existência, estabeleceram as condições para tal existência, os passos necessários para adquirir outra existência lançaram-me corporalmente ao lado do fantasma evocado e irradiado pelas palavras; isto significava mudar de um ser que criava palavras para um que era criado por palavras; significando, simplesmente, que usava de procedimentos sutis e elaborados para garantir a sombra momentânea de existência. Era lógico, de fato, que eu tivesse conseguido existir apenas em um momento solitário e selecionado de minha curta vida no exército. A base de minha felicidade, obviamente, estava em ter me transformado, ainda que por um momento, em um fantasma formado pelas sombras projetadas por palavras gordas e apodrecidas do passado. Até agora, porém, não eram as palavras que endossavam minha existência. Este tipo de existência que deriva da rejeição do endosso de existência por palavras, tinha que ser endossada por algo diferente. Este diferencial era o músculo. O sentido da existência produziu uma felicidade tão intensa e desintegrada, porém, momentos depois, os músculos sobreviveram milagrosamente a tal desintegração. Infelizmente, um mero sentido de existência não é suficiente para fazer perceber que os músculos escaparam da dissolução; é preciso provar os próprios músculos com os próprios olhos, e ao ver, percebe-se a antítese do existente. A sútil contradição entre autoconsciência e existência começou a me incomodar. Raciocinei que, se alguém quiser identificar, ver e existir, a natureza da autoconsciência deveria ser então a mais centrípeta possível. Se alguém puder apenas direcionar o olho da

autoconsciência de forma intensa para o interior e para o eu que a autoconsciência esquece as formas de existência externas, então pode-se “existir” tão seguramente quanto o “eu” no Diário de Amiel. Mas esta existência é estranha, como uma maçã transparente cujo núcleo é totalmente visível do lado de fora; e o único endosso de tal existência reside nas palavras. O tipo clássico de existência experimentada pelo solitário homem de letras humanista... Depara-se, também, com um tipo de autoconsciência que se preocupa exclusivamente com a forma das coisas. Para tal autoconsciência, a antinomia entre ver e existir é decisiva, pois envolve a questão de como o caroço da maçã pode ser visto através da pele vermelha, ordinária e opaca, e também como o olho vê aquela maçã brilhante de fora e como pode penetrar em seu núcleo. A maçã, neste caso, deve ter uma existência perfeitamente comum, com sua cor perfeitamente saudável. Para continuar a metáfora, imaginemos uma maçã saudável. Esta maçã não foi chamada pela existência das palavras, tampouco é possível que seu núcleo seja completamente visível como a fruta peculiar de Amiel. O interior da maçã naturalmente é invisível. Assim, no coração daquela maçã, fechado dentro da carne da fruta, o miolo espreita em sua pálida escuridão, tremendo pela ansiedade de encontrar uma maneira de assegurar que a maçã é perfeita. A fruta certamente existe, mas no fundo esta existência parece inadequada; se as palavras não podem endossa-la, então a única maneira é com os olhos. De fato, para o núcleo, a única certeza é ver e existir ao mesmo tempo. Só existe um método para resolver tal contradição. Mergulhar uma faca profundamente na maçã para que ela seja aberta e o núcleo exposto à luz – ou seja, à mesma luz que cobre a pele da superfície. Mesmo assim, a existência da maçã se fragmenta; o miolo da maçã sacrifica a existência quanto ao ver. Quando percebi que o sentido da existência que se desintegrou somente poderia ser endossado por músculos, e não por palavras, já estava suportando pessoalmente o destino que se abateu sobre a maçã. É certo que podia ver meus próprios músculos no espelho. Ainda que ver por si só não bastasse para me colocar em contato com as raízes de minha existência, criando uma distância imensurável entre mim e a sensação eufórica do puro ser. A menos que essa distância fosse rapidamente fechada, havia pouca esperança de trazer sentido à existência da vida. Em outras palavras, a autoconsciência que apostei nos músculos não poderia ser satisfeita com a escuridão da carne pálida como endosso de sua existência, mas, como o caroço cego da maçã, fui levado a desejar uma certa prova de sua existência ao qual estava fadada, cedo ou mais tarde, a se destruir. Ah, o desejo feroz de simplesmente poder ver, sem as palavras! O olho da autoconsciência, acostumado a vigiar o eu invisível de uma maneira especialmente centrípeta e pelos bom uso das palavras, não deposita confiança suficiente em coisas visíveis, como músculos. Inevitavelmente, acaba por abordar os músculos da seguinte forma: “Admito que você não parece ser uma ilusão. Mas se sim, gostaria que você mostrasse como funciona para viver e se mover; mostre-me suas funções apropriadas e como cumpre seus objetivos.” Desta forma, os músculos passaram a trabalhar de acordo com as exigências da autoconsciência; mas para que a ação exista de forma inequívoca, um hipotético inimigo fora dos músculos é necessário, e para que tal inimigo tenha certeza de sua existência, ele deve desferir um golpe no reino dos sentidos, um golpe feroz o suficiente para silenciar as queixas da autoconsciência. Assim, precisamente, é como quando a faca do inimigo deve vir cortando a carne da maçã – ou, antes, do corpo. O sangue flui, a existência é destruída e os sentidos

despedaçados dão existência como um todo ao seu primeiro endosso, fechando a lacuna lógica entre ver e existir... e então morre. Desta forma, aprendi que o sentimento momentâneo e feliz da existência que experimentei naquele pôr do sol de verão durante meu tempo no Exército só poderia ser endossado pela morte. Todas essas coisas, é claro, foram previstas, e eu também sabia que as condições básicas para tal tipo de existência sob medida não era outra senão “trágica” ou “absoluta”. A morte começou a partir do momento em que comecei a adquirir uma existência diferente da das palavras. Por mais destrutivo que fosse a forma que pudessem assumir, as palavras estavam profundamente ligadas ao meu instinto de sobrevivência, faziam parte da minha vida. Não foi, essencialmente, quando senti pela primeira vez o desejo de viver que comecei pela primeira vez a usar as palavras de forma eficaz? Foram palavras que me fizeram viver até que eu morra de morte natural; eram germes de uma lenta “doença até a morte”. Escrevi acima sobre a afinidade entre minhas próprias ilusões e aquelas acalentadas pelo guerreiro, e de minha simpatia pelo tipo de tarefa em que polir a espada e polir a imaginação da morte e do perigo tinham o mesmo significado. Isso foi algo que tornou possível, através da carne, toda metáfora espiritual. Tudo, na verdade, saiu exatamente como esperado. Ainda assim, a impressão de enorme esforço desperdiçado que de tempos em tempos paira sobre exércitos em tempos de paz me oprimiu. Reconhecidamente, isso se deveu à natureza infeliz do Japão. Um exército aleijado que deliberadamente mantém-se longe de qualquer ideia de tradição ou glória. Ainda assim, lembrou-me do processo repetitivo de carregar uma grande bateria que acaba se esgotando através do vazamento normal e tem de ser recarregada; a energia que gera nunca é usada para qualquer propósito efetivo. Tudo é dedicado à hipótese de “uma guerra vindoura”. Os planos de treinamento são elaborados em detalhes, as tropas trabalham em suas tarefas e o vácuo em que nada acontece progride dia após dia; corpos que estavam em condições de pico ontem se deterioram hoje; a velhice é progressivamente afastada, e a juventude restabelecida sem intervalo. Mais do que nunca, compreendi a verdadeira eficácia das palavras. É no vazio do tempo presente que elas lidam. Esse vazio progressivo, pode durar enquanto se espera por absoluto que pode nunca vir, esta é a verdadeira tela em que as palavras são pintadas. Isso pode acontecer, aliás, porque as palavras, ao marcar o vazio, o tingem irrevogavelmente, pois as cores e os desenhos alegres dos tecidos yuzen são fixados depois de enxaguados nas águas límpidas do rio de Quioto e, ao fazê-lo, consomem completamente o vazio, a cada momento, fixando-se a cada instante, onde permanecem. As palavras acabam assim que são faladas, mas também permanecem através de escritos. Através da acumulação desses “finais”, através da ruptura momentânea do sentido de continuidade da vida, as palavras adquirem certo poder. Pelo menos, diminuem até certo ponto o terror esmagador das vastas paredes brancas na sala de espera onde esperamos a chegada do absoluto. Em troca, do modo como, marcando cada momento, cortam incessantemente o sentido de continuidade da vida, elas agem de maneira que parece pelo menos traduzir o vazio em uma espécie de substância. O poder de “acabar” – mesmo que isso também possa ser ficção – é obviamente presente nas palavras. Os longos relatos escritos pelos presos na cela dos condenados são uma forma de magia destinada a terminar de momento a momento um longo período que excede os limites da existência humana.

Tudo que nos resta é a liberdade de escolher qual método tentaremos quando confrontados com este vazio no tempo progressivo, no intervalo enquanto esperamos o “absoluto”. De qualquer forma, devemos fazer nossos preparativos. Que tais preparativos devem ser referidos como “desenvolvimento espiritual” se deve ao desejo que espreita em maior ou menor grau em todos os seres humanos a moldarem-se, ainda que sem sucesso, à imagem do “absoluto”. Talvez o mais natural e decente de todos os desejos, esse desejo que o corpo e o espírito possuem por se assimilar ao absoluto. Tal projeto, porém, termina por falhar. Por mais prolongado e intenso que seja o treino, o corpo, inevitavelmente, caminha pouco a pouco à decadência; por mais que um acúmulo de ação verbal seja feito, o espírito não saberá seu fim. O espírito, tendo perdido o sentido de continuidade da vida como resultado dos fins momentâneos que lhe são impostos pelas palavras, não saberá distinguir um verdadeiro fim. O “tempo” é o responsável por essa frustração e fracasso, mas ocasionalmente esse mesmo tempo confere um favor e resgata o projeto. Aqui reside o significado misterioso de uma morte precoce, que os gregos invejavam como um sinal de amor pelos deuses. Eu, porém, já havia perdido o semblante alegre que só os jovens têm – o rosto que, na maior parte das vezes, por mais que tenha se afogado nas profundezas estagnadas da fadiga na noite anterior, ressurge fresco e vivo para respirar na superfície pela manhã. Na maioria das pessoas, infelizmente, o hábito pouco sofisticado de exposição do rosto, de forma bastante inconsciente, à luz ofuscante da manhã persiste até o fim. O hábito permanece mas o semblante muda. Antes que alguém perceba, a verdadeira face é devastada pela ansiedade e emoção; não se percebe que se arrasta o cansaço da noite passada como uma corrente pesada, nem se percebe a grosseria de expor tal rosto ao sol. Assim os homens perdem a masculinidade. A razão para tal é que, uma vez perdido o brilho natural da juventude, o rosto viril do guerreiro precisa ser uma face falsa; deve ser fabricado como uma questão política. O Exército deixa isso bem claro. O rosto matinal apresentado por um comandante era um rosto para ser lido, um rosto ao qual outros poderiam encontrar imediatamente um critério para a ação do dia. Um rosto otimista, projetado para encobrir o cansaço particular do indivíduo. Não importa em que desespero ele tenha que mergulhar para encorajar os outros; era um rosto falso mas cheio de energia, rejeitando os pesadelos da noite anterior. Esta é a única face que os homens que vivem muito podem ter para fazer reverência ao sol da manhã. Quanto a isso, o rosto intelectual cuja juventude já passou me aterroriza: é feio e impolítico... Tendo-me preocupado mais em minha vida literária com métodos para me esconder do que para me revelar, fiquei maravilhado com o uniforme no Exército. Assim como o manto de invisibilidade para palavras é o músculo, o manto de invisibilidade para o corpo é o uniforme. O uniforme militar, no entanto, é feito de tal forma que recusa a se adequar a um corpo esquelético ou de barriga saliente. A individualidade reduzida pelo uniforme tinha, descobri, uma simplicidade extraordinária e qualidade nítida. Aos olhos estranhos, o homem que veste um uniforme torna-se, assim, um combatente. Qualquer que seja sua personalidade e pensamentos particulares, se é um sonhador ou niilista, um magnânimo ou taciturno, por mais vasto que seja o abismo de sordidez que se abre

debaixo de seu uniforme, ou por mais cheio de ambição que seja, ao vestir o manto, se torna um combatente e simplesmente isso. Mais cedo ou mais tarde, o uniforme seria perfurado por uma bala e manchado de sangue; nisto, reforça-se a ideia de que belos músculos levam à autodestruição.

Apesar de tudo, eu não era de forma alguma um militar. O Exército requer muita técnica. Como observei bem por mim mesmo, exige, mais do que qualquer outra profissão, um longo treinamento meticuloso. Para não perder as técnicas adquiridas é necessária uma prática constante e ininterrupta, tal como um pianista que deve praticar todos os dias para não perder a delicadeza do toque. Não há nada mais atraente nas Forças Armadas quanto o fato de que mesmo o dever mais trivial é, em última análise, parte de algo elevado e grandioso, e está ligado com a ideia da morte. O homem de letras, por outro lado, deve rabiscar sua pífia glória interna, familiar a todos os demais, e a reformular para agradar ao público. Duas vozes nos chamam constantemente. Uma vem de dentro, outra de fora. A externa é seu dever diário. Se a parte da mente que responde ao dever correspondesse exatamente com a voz interior, então seria possível ser extremamente feliz. Estava sozinho em meu dormitório numa atípica tarde fria de Maio, o treinamento de tiro havia sido cancelado devido à chuva. Estava frio na planície que contorna o Monte Fuji. Nesse dia, os prédios altos da cidade, onde homens trabalhavam todo dia sob a mesma luz que as donas de casas. A vida burguesa e comum pouco seria capaz de arrastar homens ao frio daquela noite, enquanto o dever militar justificava tudo. Inesperadamente, um suboficial chegou de jipe para me buscar. O treinamento, ele explicou, iria seguir apesar da chuva. O jipe seguiu a estrada esburacada da planície, balançando violentamente no caminho. Alma alguma podia ser vista na planície, O jipe seguia seu caminho em meio a chuva, impassível. A visibilidade era restrita, o vento aumentava e com ele sua força, e os tufos de grama passavam. De uma brecha no capô, a chuva fria batia impiedosamente. Fiquei feliz por terem vindo me buscar apesar do clima. Foi uma emergência do dever, uma voz que ecoava sem cessar. A sensação de sair às pressas de um lugar aquecido em resposta a uma voz chamando para ir rumo à chuva e ao frio era algo indescritível. Em ocasiões como essa, algo desconhecido me compele. Não há relutância nem preocupação: de bom agrado obedeço ao chamado e vou aos confins da Terra (na maioria dos casos por alguma ligação com a morte ou prazer instintivos) e, no instante de minha partida, abandono tudo que é confortável e familiar, saboreando apenas o momento de um passado distante. No passado, porém, a voz que me chamava externamente não correspondia à voz interna. Isso porque não consegui atender ao chamado de fora com meu corpo, sequer conseguindo fazê-lo com as palavras. Conhecia, é verdade, a doce dor que residia no emaranhado das palavras, mas estava ignorante da profunda alegria produzida pela síntese dessas duas convocações no corpo. Em pouco tempo, ouvi o zumbido agudo das armas e o brilho dos projéteis laranja sendo disparados com correções e erros em alvos obscurecidos pela chuva. Passei a hora seguinte sentado na lama, com a chuva caindo sobre mim. Recordo de outra memória. Estava correndo sozinho no dia 14 de Dezembro, na pista do Estádio Nacional sob os primeiros vislumbres da aurora. Na realidade, este comportamento não passava de uma “tarefa” fictícia

– mas nunca senti tão intensamente que estava aproveitando-me ao máximo, nem nunca tive tanta certeza de que o amanhecer fora feito especialmente para mim. Era uma madrugada gelada. O Estádio era o grande lírio do qual a vasta arena, totalmente deserta, formava pétalas exageradas. Estava com uma camisa de corrida e calça; a brisa da manhã gelava até os ossos; minhas mãos logo ficaram dormentes. Ao passar pela frente das arquibancadas ao leste, o frio era assustador; ao lado oeste, onde já batiam os primeiros raios da manhã, era mais suportável. Havia circulado a pista de 400 metros quatro vezes e começava a quinta volta. O sol espiando pelas arquibancadas ainda era interceptado pela borda do lírio. Pétalas e o amanhecer relutante ainda pairavam no céu. O lado leste do estádio fora tocado pela última brisa noturna. Enquanto corria, respirei não apenas o ar cortante, mas também o aroma persistente do amanhecer. O tumulto, os gritos de alegria nas arquibancadas, o cheiro de loção de atleta intensificado pelo frio da manhã, o bater dos corações, a determinação feroz – tudo isso compôs a fragrância daquele grande lírio, uma fragrância que o estádio reteve durante toda a noite. O vermelho tijolo da pista era inconfundivelmente da cor do pólen do lírio. Enquanto corria, minha mente se encheu com uma ideia: a relação entre o voluptuoso lírio do amanhecer e a pureza do corpo. Este difícil problema metafísico me absorveu tanto que continuei correndo, alheio ao cansaço. Era um problema que, em algum lugar, dizia respeito a mim mesmo; estava ligado com a hipocrisia de minha infância em relação à pureza e santidade do corpo; e, suspeitava, com o martírio de São Sebastião. Peço ao leitor que observe que não digo nada sobre minha vida cotidiana. Minha intenção é apenas falar dos vários mistérios dos quais participei. Correr também era um mistério. Imediatamente coloquei um fardo não rotineiro no coração, lavando as emoções diárias. Em pouco tempo, meu sangue não permitia parar mesmo que por um dia. Algo me punha incessantemente a trabalhar; meu corpo não aguentou mais a indolência, e começou a sentir sede pela ação e violência. Assim por muitos dias em uma obsessão frenética. Do ginásio para a escola de esgrima, da escola ao ginásio. Os pequenos renascimentos ocorriam após cada exercício. Movimento incessante, mortes incessantes, violência incessante, fuga incessante da fria objetividade – a essa altura, não conseguia viver sem tais mistérios. E – desnecessário dizer – dentro de cada mistério havia uma pequena imitação da morte. Sem perceber, havia embarcado numa jornada impiedosa. Minha idade me perseguiu, murmurando em minhas costas “por mais quanto tempo isso durará?”. No entanto, estava tão absorto nestes mistérios que retornar ao mundo das palavras sem estes renascimentos me era impossível. Isso não significa, é claro, que depois de meus pequenos renascimentos de alma e carne não fui capaz de voltar com relutância, com senso de dever, ao mundo das palavras. Pelo contrário, isto garantiu que voltasse a ele com imensa alegria e com o coração contente. As exigências que fiz às palavras tornaram-se ainda mais exigentes. Evitei o mais recente dos estilos como se evita uma peste. Talvez estivesse gradualmente procurando redescobrir a fortaleza imaculada das palavras que havia conhecido durante a guerra.

Pode ser que estivesse tentando reconstruir tudo de acordo com o padrão que havia aprendido antes, para encontrar mais uma vez tal fortaleza de palavras – aquela base paradoxal da liberdade fora da qual estava sempre ameaçado, mas dentro da qual desfrutava de liberdade incomparável. Foi também uma tentativa de recapturar a embriaguez que experimentei, livre da culpa das palavras, naquela idade em que pedi às palavras que cumprissem apenas as funções mais puras. Significava que estava tentando recuperar a mim mesmo como quando tinha sido devorado pelas formigas brancas das palavras, reforçando-me com um corpo robusto. Fora uma tentativa de restaurar um estado de coisas em que as palavras (por mais longe que estejam da verdade) eram para mim a única fonte da verdadeira felicidade e liberdade, como uma criança que coloca um forro de papel grande e forte num tabuleiro de gamão cujo uso prolongado havia o cortado. Significava, de certo modo, ao retorno sem dor à poesia, um retorno à minha própria Idade de Ouro.

Eu era um ignorante aos dezessete anos? Não acho. Eu conhecia tudo. Um quarto de vida desde então pouco adicionou ao que já sabia. A única diferença era que com dezessete anos pouco conhecia o “realismo”. Quão grandioso seria se pudesse retornar àquela onisciência em que me banhava, tão agradável quanto água fria no verão! Examinando em detalhes como eu era naquela idade, descobri partes de mim que minhas palavras sem dúvida “acabaram” e outras que eram tão poluídas pela radiação da onisciência que se tornaram restritas. A razão era, penso eu, que embora eu pudesse usar as palavras como memorial, como meu legado para a posteridade, utilizei do método errado: estava reduzindo – até mesmo rejeitando – a onisciência e confiando nas palavras como uma rebelião contra minha idade. Estava preocupado com a tarefa de fazer palavras refletirem meu corpo, mesmo que não o tivesse, e envia-las para o futuro ou para a morte, levando meus anseios como um pombo-correio que carrega uma mensagem consigo. Mesmo que se possa descrever este processo como pensado para não deixar as palavras acabarem, havia, no entanto, uma espécie de embriaguez nisto. Anteriormente, defini a função essencial das palavras como uma espécie de magia em que o longo vazio gasto à espera do absoluto é progressivamente consumido pela escrita, assim como o bordado lentamente cobre o branco puro em uma longa faixa. Ao mesmo tempo, apontei que o espírito – quando cortado pelas palavras, tem seu sentido natural da continuidade da vida instantaneamente interrompido – é incapaz de distinguir um fim verdadeiro e, portanto, jamais conhece o fim. Sendo assim, que função têm as palavras para o espírito quando este finalmente se dá conta do fim? Um admirável exemplo do que ocorre em tal caso pode ser encontrado em uma coleção de cartas, escritas por jovens do esquadrão kamikaze antes de partirem para sua última missão, que hoje se encontra na base naval de Etajima. Ao visitar o museu no verão, fiquei impressionado com o notável contraste entre as cartas, que foram escritas em um estilo impressionante e ordenado, por vezes escritas ocasionalmente e rabiscadas rapidamente por um lápis. Enquanto estava diante das caixas de vidro lendo os últimos testamentos destes jovens heróis, senti de repente que havia resolvido em mim uma questão que há muito me preocupava: nestas ocasiões, os homens usavam palavras para dizer a verdade ou para imortalizarem-se? Uma carta que permanece bastante viva em minha memória foi escrita a lápis em um pedaço de papel de arroz em um rabisco juvenil, quase descuidado. Se não me falha a memória, fora feita assim e interrompida abruptamente desta forma: “No momento, estou cheio de vida, todo meu corpo transbordando de juventude e força. Parece impossível que eu esteja morto dentro de três horas. E ainda sim...” Quando alguém procura dizer a verdade, as palavras sempre vacilam. Quase posso ver o autor desta carta agora, atrapalhado com as palavras: não por timidez, nem por medo, mas sim pela verdade que inevitavelmente produz esse esquecimento verbal; mas, antes, como sinal de uma certa qualidade grosseira sobre a própria verdade. O jovem em questão não tinha mais um vazio prolongado em si, a espera do absoluto, nem teve tempo para encerrar as coisas com palavras brilhantes. Enquanto se lançava em direção à morte, suas últimas frases cotidianas apreenderam um momento em que o sentimento pela vida, como o clorofórmio em sua

estranha embriaguez, produziu e entorpeceu temporariamente a consciência do fim de seu espírito e, como um cão amado saltando sobre seu dono, correu para cima dele, apenas para ser rudemente jogado para o lado. As cartas mais organizadas, por outro lado, com suas frases concisas sobre dever com a pátria, ódio ao inimigo, direito eterno, identidade da vida e da morte, obviamente selecionaram de maneira impressionante os mais nobres ideais e revelaram uma determinação clara, eliminando toda psicologia pessoal, preferindo palavras esplêndidas. Frases semelhantes a slogans eram, é claro, em todos os sentidos “palavras”. Mas, dado o momento em que foram escritas, se tornavam palavras especiais elevadas acima de qualquer ação comum que se pode realizar. Antes, existiam palavras como estas, embora estejam perdidas para nós. Não eram simplesmente frases bonitas, mas uma convocação a comportamentos sobre-humanos, palavras que exigiam que o indivíduo aposte sua própria vida na tentativa de superar a si mesmo. Palavras como estas, em que algo é primeiro proferido como uma resolução consciente gradualmente vem a exigir uma identificação incontornável, carecem desde o início de qualquer ponte que possa liga-la com as preocupações comuns e cotidianas. Mais do que qualquer outra palavra, apesar de sua ambiguidade, estavam cheias de glória que não pertence a este mundo; sua própria impessoalidade e a monumentalidade exigiam a estrita eliminação da individualidade e rejeitavam a construção de monumentos com base na ação pessoal. Se o conceito do herói é físico, então, tal como Alexandre o Grande adquiriu caráter heroico seguindo o exemplo de Aquiles, as condições para se tornar herói deve ser tanto de proibição de originalidade quanto uma verdadeira fidelidade ao modelo clássico; ao contrário das palavras de um gênio, as palavras de um herói devem ser selecionadas como o mais impressionante e nobre entre os conceitos prontos. E, ao mesmo tempo, mais do que qualquer outras palavras, estas constituem uma exímia linguagem da carne. Assim, descobri naquele museu dois tipos de palavras corajosas usadas quando o espírito percebe seu fim. Comparadas com estas duas, as obras de minha infância não conseguiram enfrentar a certeza da morte; envenenadas pela timidez, estavam sujeitas em igual medida aos assaltos da arte. Usei das palavras de uma forma totalmente diferente daqueles belos últimos testamentos kamikaze. Entretanto, parece certo ao meu espírito, que apesar de toda liberdade e de toda intoxicação das palavras, especular seu “fim”. Se alguém reler minhas primeiras obras agora, os sinais são claros. Hoje, por vezes, especulo: o tipo de vida em que as palavras aparecem primeiro, seguidas por um corpo já corroído por estas, certamente não estava confiada a mim? Eu estava ali, culpado por uma contradição ao rejeitar minha própria singularidade através da afirmação da singularidade de minha vida como tal; a educação inconsciente de meu corpo tornou tal contradição bastante óbvia para mim. Neste período, o “fim” que o corpo previa e o espírito percebido deve ter estado presente no corpo dos kamikazes e em mim igualmente. Eu deveria ter sido capaz(mesmo sem o corpo!) de tomar uma posição que não deixasse dúvida quanto a essa identidade, e entre os jovens que morreram – mesmo, de fato, entre os suicidas – houve, sem dúvida, alguns que foram comidos pelas formigas das palavras da mesma forma que eu. Aqueles que morreram, porém, felizmente estavam seguros em uma identidade fixa, uma identidade estabelecida além de qualquer dúvida – a identidade trágica.

Minha onisciência aos dezessete anos dificilmente poderia ignorar isso. Entretanto, comecei uma tentativa de me afastar o máximo possível da onisciência. Determinado a não usar dos mesmos instrumentos de minha época, confundi a obstinada persistência com minhas próprias opiniões sobre pureza; o que foi pior, pois errei o método e procurei sair através de uma artimanha pessoal. Como, porém, algo pessoal poderia ser um problema? A razão básica para esta ilusão hoje é bastante óbvia; naquela época procurei desprezar uma vida que terminaria com palavras. Assim, desprezo e medo eram sinônimos aos olhos do menino que eu era. Em toda probabilidade, tive medo de acabar em palavras e, no entanto, imaginando que a imperecibilidade das palavras consistia em fugir ao máximo da realidade, sentia uma embriaguez nesta ação infrutífera. Pode-se dizer que houve felicidade – até esperança – na ação. Quando a guerra terminou e o espírito prontamente deixou de estar ciente do “fim” que se aproximava, a intoxicação também cessou. Qual seria, então, o verdadeiro significado de minha tentativa, neste estágio tardio, de retornar? Era a liberdade que procurava? O impossível? Ou ambos derivaram do mesmo desejo? O que eu buscava, obviamente, era um renascimento da excitação, e desta vez, além da intoxicação, fui convencido o suficiente para acreditar que minha técnica ao lidar com as palavras era suficientemente praticada para escolher palavras impessoais, aumentando sua função como um memorial e a própria vida como sujeita à minha vontade. Isso – não seria exagero dizer – era a única vingança que poderia tomar contra o espírito por se recusar teimosamente a perceber o “fim”. Estava relutante em seguir o caminho de outros que, quando o corpo estava virando em direção à sua futura decadência, recusaram-se a segui-lo, mas que seguiam silenciosamente o espírito cego e obstinado até serem completamente enganados por ele. De uma forma ou de outra, devo tornar meu espírito consciente do “fim”. Tudo começou a partir dali; só ali, estava claro, eu poderia encontrar uma base para a verdadeira liberdade. Devo mergulhar mais uma vez na água fria da onisciência de minha infância, fresca como banho frio em verão, a onisciência do mau uso das palavras me fez evitar deliberadamente; desta vez, então, devo dar expressão a tudo, inclusive à própria água. Tal retorno era impossível e óbvio sem que eu sequer soubesse. A impossibilidade estimulou minha mente no tédio, e a mente, que não podia ser mais desesperada por ação, começou a ter sonhos de liberdade. Já havia visto, no paradoxo encenado pelo corpo, a forma última da liberdade que surge pela literatura, a liberdade das palavras. Seja como for, aquilo que tinha me escapado não era a morte. Fora uma tragédia que uma vez deixei escapar.

Mais precisamente, o que me escapou foi a tragédia do grupo, ou tragédia como membro de um grupo. Se eu tivesse alcançado a identidade em comum, a tragédia teria sido muito mais fácil, mas desde o início as palavras trabalharam para me levar cada vez mais longe do grupo. Ademais, sentindo que me faltava capacidade física para me assimilar, e que eu era, portanto, constantemente rejeitado, desejava de alguma forma me justificar. Isto me levou a polir as palavras. Rejeitei constantemente a importância do grupo. Ou devo dizer, as palavras caíram como chuva dentro de mim durante o período em que minha existência mal prenunciada, como uma tempestade que cai antes da aurora, era em si uma previsão de minha incapacidade de me adaptar ao grupo. A primeira coisa que fiz foi construir um eu em meio a esta tormenta. A intuição de minha infância – o senso intuitivo de que o grupo representava o princípio da carne – estava correta. Até hoje, nunca senti necessidade de altera-la. Mas foi só anos mais tarde, quando pela primeira vez vim a conhecer o que chamo de aurora da carne – aquela vertigem rosada que se abate sobre o ser após o uso do corpo e intensa fadiga – que comecei a perceber a importância do grupo. O grupo preocupava-se com todas as coisas que nunca poderiam emergir das palavras – suor e lágrimas, gritos, alegria e dor. Se alguém sondasse ainda mais fundo, encontraria a preocupação com o sangue que as palavras nunca poderiam entender. A razão, talvez, do porquê dos testamentos dos condenados estarem estranhamente distantes da expressão verbal, é de que são palavras da carne. No momento em que percebi pela primeira vez que o uso da força e o consequente cansaço, o suor e o sangue, poderiam revelar aos meus olhos aquele céu azul sagrado e sempre ondulante que os portadores do santuário contemplavam juntos e assim aproveitarem a sensação gloriosa de serem um, eu pude antever, talvez, aquele dia distante em que eu pisaria além do reino da individualidade para o qual fui conduzido pelas palavras e despertaria para o significado de grupo. Existe algo como a linguagem do grupo, mas não é tão complexa. Um discurso, um slogan e as palavras de uma peça dependem do estado físico e da presença do orador, do público, do ativista, do ator. Se está escrita no papel ou dita em voz alta, a linguagem do grupo acaba se transformando em expressão física. Não se trata de uma linguagem usada para transmitir mensagens solitárias para outro solitário. O grupo é um conceito de compartilhamento incomunicável de sofrimento, um conceito que, em última instância, rejeita a primazia das palavras. O sofrimento compartilhado, mais do que qualquer outra coisa, é o oponente final da expressão verbal. Nem mesmo o mais poderoso Weltschmerz no coração do escritor solitário, subindo para os céus estrelados como uma grande tenda de circo, podem criar uma comunidade de sofrimento compartilhado como esta. Embora a expressão verbal possa transmitir prazer ou tristeza, ela não pode transmitir dor; o prazer tampouco pode ser gerado por ideias, somente corpos, quando colocados nas mesmas circunstâncias, podem experimentar um destino-comum. Somente por meio do grupo, percebi – compartilhando o sofrimento – que o corpo poderia alcançar a altura da existência que o indivíduo jamais poderia alcançar. Para que o corpo atinja o nível em que o divino pode ser vislumbrado, uma dissolução da individualidade se faz necessária. A qualidade trágica do grupo também é necessária – a qualidade que constantemente retira o grupo do abandono e da decadência em que tende a sucumbir, conduzindo-o ao sofrimento compartilhado crescente até a morte, que é o sofrimento final. O

grupo deve estar aberto à morte – o que significa, é claro, que deve ser uma irmandade de guerreiros... No início da manhã eu estava correndo, em grupo. Uma toalha de algodão com o símbolo do sol vermelho estava amarrada em minha testa, e eu estava nu até a cintura no frio. Através do sofrimento compartilhado, dos gritos de encorajamento, do ritmo coletivo e do coro de vozes, senti o surgimento lento, como o suor que gradualmente escorre pela pele, dessa qualidade “trágica” que é a afirmação da identidade. Era uma chama da carne, queimando levemente sob a brisa cortante – uma chama, pode-se dizer, de nobreza. O sentido de entregar o corpo a uma causa deu nova vida aos músculos. Estávamos unidos na busca pela morte e glória; não mais pelo desejo pessoal. As batidas do coração sincronizaram-se; compartilhávamos o mesmo pulso. A autoconsciência agora era tão remota quanto a cidade. Eu pertencia a eles, eles me pertenciam; os dois formavam um “nós” inconfundível. Pertencer – que forma de existir é mais intensa que essa? Nosso pequeno círculo brilhante de unidade era apenas um vislumbre do vasto e brilhante círculo de união espiritual. E –prevendo que essa imitação da tragédia foi, da mesma forma que minha própria felicidade estreita, condenada a desaparecer com o vento, para acabar na existência dos músculos – tive uma visão onde algo que, se eu estivesse sozinho, teria se resolvido em músculos e palavras, fora mantido pelo poder do grupo e me levou para uma terra distante, de onde não poderia retornar. Foi, talvez, o começo de minha confiança nos outros, uma confiança mútua; e cada um de nós, ao se comprometer com esse poder imensurável, pertencia ao todo. Desta forma, o grupo passou a representar para mim uma ponte, uma ponte que, uma vez atravessada, não teria retorno.

EPILOGO – F104

Diante dos meus olhos, surgiu lentamente uma serpente gigante enrolada na terra; uma serpente que engolia constantemente seu próprio corpo e anulava todas as polaridades; a serpente última que zomba de todos os opostos. Os opostos levados ao extremo acabam por se assemelhar; os mais distantes acabam por se aproximar. Esse é o segredo que aquela serpente expôs. A carne e o espírito, o sensual e o intelectual, o exterior e o interior, afastam-se na terra, mas nas nuvens estão mais próximos do que nunca. Sempre me interessei apenas pelos nuances do corpo e do espírito, pelas regiões periféricas destes. As profundezas pouco me interessam; deixo para outros, pois para mim são superficiais e banais. O que há no extremo? Nada, talvez, salvo alguns pergaminhos que se agitam no vazio. Na terra, o homem é oprimido pela gravidade, seu corpo envolto em pesados músculos; ele sua; corre; ataca; e, mesmo com dificuldade, pula. Por vezes, entretanto, tenho visto, em meio à escuridão do cansaço, os primeiros vislumbres que anunciam o que chamei de aurora da carne. Na terra, o homem se desgasta em aventuras intelectuais, como se procurasse alçar voo e voar até o infinito. Imóvel diante de sua mesa, se aproxima cada vez mais das fronteiras do espírito, em constante perigo mortal de mergulhar no vazio. Nestas ocasiões – embora raramente – o espírito também tem vislumbres da luz do amanhecer. Meu corpo e meu espírito jamais se misturaram. Nunca se pareceram. Nunca descobri na ação física algo semelhante a satisfação da aventura intelectual. Também nunca experimentei na aventura intelectual o calor e a paixão da ação física. Em algum lugar, os dois devem estar conectados. Onde? Em algum lugar deve haver um reino intermediário, um reino semelhante ao reino supremo onde o movimento torna-se repouso e o repouso torna-se movimento. Suponha que eu corte meus braços, ao fazer isso perco certa dose intelectual. Suponha que eu me permita, mesmo que brevemente, pensar antes de atacar. Nesse caso, meu ataque certamente falhará. Em algum lugar disse a mim mesmo, deve haver um princípio superior que consegue unir dois e os reconciliar. Este princípio, percebi, é a morte. No entanto, minha ideia de morte era mística demais; estava esquecendo do aspecto simples e físico da morte. A terra está cercada pela morte. As regiões elevadas, onde não há ar, estão repletas de morte pura e imaculada; ela olha para a humanidade cuidando de seus negócios limitados pelas condições físicas na terra, mas muito raramente traz a morte corporal ao homem, já que estas mesmas condições o impedem de subir. Para o homem encontrar o universo como ele é , com

semblante descoberto, existe a morte. Para encontrar o universo, e ainda continuar vivo, ele deve usar uma máscara – uma máscara de oxigênio. Se alguém levasse o corpo àquelas mesmas alturas rarefeitas com as quais o espírito e o intelecto são tão familiares, a única coisa que o esperaria seria a morte. Quando o espírito e o intelecto ascendem a tal altura sozinhos, a morte não se revela claramente. O espírito, portanto, é sempre obrigado a voltar à sua morada carnal. Quando ascende sozinho, o princípio unificador se recusa a aparecer. A menos que o corpo e o espírito se reúnam, o princípio não se revelará. Ainda, porém, não havia descoberto aquela serpente gigante. Entretanto, como minhas aventuras intelectuais me tornaram familiar as mais altas regiões do céu! Meu espírito voou mais alto do que qualquer pássaro, sem medo da falta de oxigênio. Possivelmente, sequer precisava de um lugar rico em oxigênio. Como eu ria daqueles gafanhotos que não poderiam pular mais alto do que seus corpos os levariam! A mera visão deles, muito abaixo de mim, me fazia tremer de alegria. No entanto, eu tinha algo a aprender mesmo com os gafanhotos. Comecei a me arrepender de nunca ter levado meu corpo comigo para as regiões superiores, por ter sempre o deixado para trás na terra, em seu invólucro pesado de músculos. Um dia, arrastei meu corpo comigo para uma câmera de pressão. Quinze minutos de desnitrificação – a inspiração, isto é, oxigênio puro. Meu corpo fora esmagadoramente espantado por se encontrar colocado na mesma câmara de pressão em que meu espírito entrava todas as noites, ver-se amarrado imóvel a uma cadeira, forçado a submeter-se a operações desconhecidas. Nunca havia sonhado que seu papel seria reduzido simplesmente a se sentar, sem mover um músculo sequer. Para o espírito, este era um treinamento rotineiro para suportar grandes altitudes, e não apresentava nenhuma dificuldade, mas para o corpo era algo novo. A cada respiração, a máscara de oxigênio grudava nas narinas, depois se desprendia novamente. “Olhe aqui, corpo”, disse o espírito. “Hoje, você irá comigo, sem se mover um centímetro sequer, até os limites mais altos do espírito”. “Você está errado”, respondeu o corpo com desdém. “Enquanto eu for com você, serão também mais altos os limites do corpo”. Deixando de lado esta conversa, partiram juntos, sem sair do lugar. O ar já estava sugado pelo pequeno orifício no teto. Uma descida invisível de pressão começava lentamente. A cabine imóvel subia em direção aos céus. Dez mil pés, vinte mil pés. Embora aos olhos nada estivesse acontecendo dentro da cabine, naquela mesma cabine, em um ritmo assustador, estava se livrando das correntes terrenas. À medida que o oxigênio diminuía dentro da cabine, tudo que era familiar e comum começou a recuar. Por volta dos trinta mil pés, alguma sombra parecia se aproximar, e minha respiração se tornou o ofego de peixes moribundos abrindo e fechado freneticamente a boca na superfície da água.

Poderia a máscara de oxigênio estar funcionando corretamente? Olhando para o fluxo do regulador, podia ver o indicador branco movendo-se lentamente em uma ampla varredura a cada grande e profunda respiração. O suprimento de oxigênio estava funcionando. Mas o sufocamento estava ocorrendo à medida que os gases eram dissolvidos em meu corpo e se transformavam em bolhas. Tão precisa havia sido a semelhança entre a presente aventura física e o desenvolvimento da aventura intelectual, que até então sequer havia percebido. Nunca supus que algo extraordinário pudesse ocorrer com meu corpo imóvel. Quarenta mil pés. A sensação de sufocamento aumentou ainda mais. De mãos dadas com meu corpo, meu espírito buscava freneticamente qualquer ar que sobrasse. Qualquer ar que encontrasse – mesmo pequeno – teria sido devorado. Meu espírito já conhecia o pânico. Tinha conhecido a apreensão. Mas nunca havia conhecido essa falta de elemento essencial que o corpo normalmente lhe fornecia. Se eu prendi minha respiração e tentei pensar, meu cérebro seria imediatamente ocupado – freneticamente ocupado com a criação de condições físicas para o pensamento. E no final, voltava a respirar, como alguém que comete um erro necessário. Quarenta e um mil pés, quarenta e dois mil pés, quarenta e três mil pés... eu podia sentir a morte em meus lábios. Suave, quente, semelhante a um polvo, uma visão de morte sombria, como algum animal mole, como meu espírito jamais havia sonhado. Meu cérebro havia esquecido o treinamento, e esse esporte inorgânico me deu um vislumbre do tipo de morte que rodeava a terra. E então, uma queda livre repentina. Fora a experiência de hipóxia produzida pela remoção do oxigênio da máscara durante o voo horizontal a vinte cinco mil pés. A experiência de uma queda livre sob pressão, quando, com um breve som estrondoso, o interior da cabine fora repentinamente envolvido em uma névoa branca... por fim, passei no teste e recebi um pequeno cartão rosa certificando de que havia passado no treinamento fisiológico. Em breve, teria a chance de descobrir de que maneira o limite do meu espírito e o limite do meu corpo se encontrariam e se fundiriam. O dia 5 de Dezembro foi glorioso. Na base, pude observar as formas prateadas e brilhantes dos caças supersônicos F104. Alinhados no aeródromo, os homens faziam manutenção nos 016, no qual eu seria levado para voar. Foi a primeira vez que vi o F104 tão pacificamente. Muitas vezes, com olhos ansiosos, havia assistido seus voos e rasantes. De ângulo agudo, rápido como um deus, o F104 mal era visto quando rasgava o céu azul e desaparecia. Há muito tempo sonhava em envolver minha existência com tal velocidade. Que modo de existência era aquele! Que gloriosa autoindulgência! Poderia haver algum insulto mais brilhante ao teimosamente sedentário espírito? Quão esplêndido era o golpe a cortina azul do céu, habilidoso como uma adaga! Quem não queria ser uma faca afiada nos céus? Vesti o traje de voador e meu paraquedas. Fui ensinado a liberar o kit de sobrevivência e testar minha máscara de oxigênio. O pesado capacete branco seria meu por um tempo. Esporas de prata foram presas aos saltos de minhas botas para evitar que minhas pernas quebrassem.

Já passava das duas horas no aeródromo, a luz do sol caia e se espalhava entre as nuvens como água de um caminhão de irrigação. Nuvens e luz juntas em uma harmonia como em batalhas em pinturas antigas. De algum lugar celeste surgiram raios solenes de luz que perfuravam as nuvens e se espalhavam em direção à terra. Por que os céus devem ter formado uma vasta e impressionante composição inspiradora e antiquada, por que a luz deveria ter sido preenchida com tal interior, trazendo um toque de divindade aos bosques e aldeias distantes, não sei. Pareciam estar em missa para que o céu fosse perfurado e tocado. Sentei-me no banco traseiro de um caça de dois lugares, prendi as esporas, verifiquei minha máscara de oxigênio e fechei a cabine. Meu diálogo com o piloto era constantemente interrompido por instruções em inglês. Abaixo de meus joelhos descansou o anel amarelo do equipamento de ejeção. Altímetros, velocímetros, instrumentos inumeráveis. A alavanca de controle do piloto era duplicada, e o segundo bastão vibrou entre meus joelhos enquanto o piloto testava o controle. Dois vinte e oito. Motor ligado. Em intervalos através do trovão metálico, podia ouvir uma escala cósmica, a respiração do piloto dentro de sua máscara subindo como um tufão. Dois e meio. Suavemente, o 016 entrou na pista e parou para um teste. Fui tomado pela felicidade. A alegria de partir para um mundo totalmente controlado por tais coisas era diferente do voo de um avião comercial, que somente servia para transportar a burguesia de um lugar para outro. Para mim, foi uma despedida do cotidiano terrestre. Como ansiava por isso, como ansiava por esse momento! Atrás de mim estava nada além do familiar; diante de mim, o desconhecido – o momento presente era o mais tênue de todos. Com que impaciência esperei o cumprimento deste momento, como ansiava para que ocorresse em condições tão rígidas e puras quanto possível! Para isso, certamente, que eu estava vivo. Como poderia deixar de sentir afeição por aqueles cuja bondade tornou isso possível! Por muitos anos, havia esquecido a palavra “partida” como um mágico que esquecia deliberadamente sua mais fatal magia. A decolagem do F104 seria decisiva. As regiões superiores a dez mil metros que os antigos caça Zero alcançavam em quinze minutos eram alcançadas por ele em apenas dois. Logo a Força-G repousaria sobre meu corpo; meus órgãos vitais logo seriam pressionados por uma invisível mão de ferro, meu fluxo sanguíneo seria tão pesado quanto ouro. A alquimia em meu corpo iria começar. As sensações mais distantes, mais externas, mais periféricas estão ligadas a pressão G exercida nos voos. Quase todas as sensações extremas da sensação cotidiana estão ali. Vivemos em uma época em que o máximo daquilo que já foi chamado de psique se resolve nesta poderosa força. Todo amor e ódio. A força G é a força compulsiva do divino; um limite intelectual que se encontra no extremo oposto do limite externo do intelecto. O F104 decolou. Seu nariz levantou mais e mais. Quase antes que percebêssemos, estávamos perfurando as nuvens mais próximas. Quinze mil pés, vinte mil pés. As agulhas do altímetro e do velocímetro giravam alucinadas. March. 0,9, quase a velocidade do som. Finalmente, a força G veio. Tão suavemente que foi mais agradável que doloroso. Por um momento, meu peito estava vazio, como se uma cascata tivesse descido com grande ímpeto e deixado para trás nada além do vazio. Meu campo de visão foi monopolizado pelo céu, azul

com um tom acinzentado. Senti como se estivéssemos dando uma grande mordida no céu, mastigando-o e engolindo-o. Em minha mente, essa memória ainda é fresca. Tudo estava quieto, majestoso, e a superfície azul do céu estava salpicada com o branco das nuvens. Como não estava dormindo, dizer que acordei seria errado. Em vez disso, experimentei um “despertar” como se outra camada tivesse sido arrancada rudemente de minha vigília, deixando meu espírito puro, ainda imaculado. Na luz impiedosa do vidro cerrei os dentes contra a alegria. Meus lábios, tenho certeza, foram desenhados para trás como se estivesse agonizando em dor. Eu era um com o F104 que tinha visto no céu; havia transformado meu ser nesta coisa que havia visto com meus olhos. Aos homens da terra, aos quais eu até então era um deles, me tornei uma existência inóspita; morava em um ponto que agora não passava de uma memória fugaz para eles. Nada poderia ser mais natural do que imaginar a noção de glória derivada dos raios solares que derramavam tão impiedosamente sua luz através da cabine. Glória é certamente o nome adequado a tal luz inorgânica, sobre-humana, nua, cheia de perigosos raios cósmicos. Trinta mil pés; trinta e cinco mil pés. Um mar de nuvens se espalhava abaixo, sem irregularidades aparentes, como um jardim de puro musgo branco. O F104 dirigiu-se para longe do mar para evitar o envio de ondas de choque para a terra, correndo para o sul enquanto se aproximava da velocidade do som. Duas e quarenta e três da tarde. De trinta e cinco mil pés e uma velocidade subsônica match 0,9, nós subimos com uma leve vibração através da velocidade do som. Mach 1.15, match 1.2, match 1.3 a uma altura de quarenta e cinco mil pés. Nada aconteceu. A fuselagem prateada flutuava na luz, o avião mantinha seu esplêndido equilíbrio. Mais uma vez, tornou-se uma sala fechada e imóvel. O avião não estava se movendo, tinha se tornado simplesmente uma cabine de metal flutuando imóvel na atmosfera superior. Não é de se admirar que a câmara pressurizada na terra pudesse servir de modelo exato para uma nave espacial. A coisa imóvel tornar-se um arquétipo da coisa que se move mais rapidamente. Não havia sensação de sufocamento. Minha mente estava a vontade. Tanto a sala fechada quanto a aberta – dois interiores tão diametricamente opostos – poderiam servir igualmente, descobri, como moradas do espírito e do humano. Se este silêncio era o fim último da ação – do movimento – então o céu ao redor, as nuvens abaixo, o mar brilhante, até mesmo o sol poente, podem muito bem ser eventos, coisas dentro de mim mesmo. A esta distância da terra, a aventura intelectual e a aventura física poderiam juntar-se sem dificuldades. Este foi o ponto pelo qual sempre lutei. Essa máquina prateada flutuando no céu era, por alegoria, minha mente e sua imobilidade meu espírito. Minha mente não estava mais protegida por ossos inflexíveis, tornou-se permeável, como uma esponja flutuando na água. O mundo interior e o mundo exterior haviam invadido um ao outro, tornaram-se completamente intercambiáveis. Este reino simples de nuvens, mar e sol poente era um panorama majestoso, como jamais havia visto antes, do meu próprio mundo interior. Ao mesmo tempo, cada evento que ocorreu em mim

escapou dos grilhões da mente e da emoção, tornando-se grandes letras inscritas livremente nos céus. Foi então que vi a serpente. Aquela enorme serpente branca circundando o globo, mordendo a própria cauda para todo o sempre... Qualquer coisa que vem à mente, mesmo que por um breve momento, existe. Mesmo que não possa existir no passado, existirá em algum momento no futuro. Aqui reside a semelhança entre a câmara de pressão e a nave; a semelhança entre meu escritório e a cabine do F104, a quarenta e cinco mil pés no céu. A carne deve brilhar com presciência penetrante do espírito; e o espírito deve brilhar com a presciência transbordante do corpo. Minha consciência, que brilhava serena como duralumínio, os vigiava o tempo todo. A silhueta negra do Monte Fuji aparecia ligeiramente à direita do nariz do avião, reunindo as nuvens de maneira desleixada. À esquerda, a ilha de Oshima, a fumaça branca de sua cratera coalhada acima dela como iogurte, jazia em um mar que brilhava ao pôr do sol. Estávamos abaixo dos vinte e oito mil pés. Se aquele anel gigante formado pela serpente envolve todas as polaridades havia adentrado minha mente, então é natural que se possa supor que ele já existisse. A serpente procurava eternamente engolir a si mesma. Era mais vasta que a morte, mais fragrante do que o leve cheiro de mortalidade que podia se sentir na câmara de compressão; ademais, foi o princípio da unidade que olhou para nós dos céus tremulantes. A voz do piloto ecoou em meus ouvidos. “Vamos diminuir a altitude e seguir para o Monte Fuji. Vamos circular a cratera e fazer alguns círculos e oitos lentos. Então iremos para casa, passando pelo lago Chuzenji”. Lírios vermelhos, reflexos da superfície do mar tingidos de carmesim pelo pôr do sol, brilhavam no mar de nuvens logo abaixo. O carmesim lançou um brilho dentro da espessa camada de vapor, manchando-o, salpicando-o de flores vermelhas.

Ícaro Pertenço aos céus? Por que, então, se não, os céus Me olham assim com seu incessante olhar azul Inflando a mim e minha mente a elevar-me A subir em direção ao céu Me chamando para o horizonte Para alturas muito além do homem?

Por que, mesmo tendo estudado o equilíbrio Tendo planejado o voo cuidadosamente Até não haver margem para erro algum – Por que, então, o desejo pela ascensão Se encontra tão perto da loucura?

Nada neste mundo pode me satisfazer Todas as novidades tornam-se monótonas Estou cada vez mais alto, cada vez mais instável Cada vez mais perto dos raios solares.

Por que estes raios da razão me destroem? Abaixo vilarejos e margens de rios Crescem e se tornam toleráveis a medida que nossa distância aumenta Por que eles me imploram, me aprovam, me chamam Com promessas de que eu talvez venha a amar o humano?

Se ao menos pudessem ver o que vejo daqui, tão distante – Embora o fim nunca possa ser o amor E se fosse, poderia eu Pertencer aos céus?

Jamais invejei a liberdade do pássaro Tampouco o equilíbrio da natureza Guiado por nada, salvo esta ânsia De elevar-me, de subir, de mergulhar

Neste profundo céu azul, tão distante Às alegrias orgânicas, tão distante Dos prazeres da superioridade Mas além, cada vez mais além

Fascinado, talvez, pelo brilho incandescente Destas asas de cera. Ou, pertenço eu Apesar de tudo, à terra?

Por que, então, mostrou a terra Tamanha rapidez para abranger minha queda? Concedendo espaço algum para pensar ou sentir, Por que esta terra tão gentil e indolente Saudou-me com o choque da placa de aço?

Transformou-se, esta terra, em aço Apenas para mostrar minha fraqueza? Poderia tal natureza me mostrar Por que cair, não voar, é a ordem das coisas Mais natural à elas do que esta estranha e improvável paixão?

Será então este céu azul um sonho? Seria isto concebido pela terra, a qual pertenço Ou uma fugaz ilusão, uma intoxicação Conquistada por um momento pelo voo da asa de cera?

Teriam os céus planejado isto para me punir? Para me punir por não acreditar em mim mesmo Ou por acreditar demais em mim mesmo Para saber onde recai minha lealdade Ou por em vão imaginar que sei a quem sou leal.

Por desejar a altivez e a busca Pelo desconhecido E pelo conhecido: Sendo ambos uma mera mancha azul de uma ideia?