SOL NEGRO - DEPRESSÃO E MELANCOLIA

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N DEPRESSÃO EMELANCOLIA 2fl EDIÇÃO

SOL NEGRO Depressão e melancolia O estado amoroso e a melancolia têm uma ligação profunda: um é o termo corolário do outro. A criação literária, por sua vez, tem urna inteira relação comambos: não há escrita que não seja amorosa; nem imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica. Partindo dessas idéias· a semióloga Julia Kristeva tenta revelar o que acredita ser a face oculta de Narciso: a depressão, que define como amarga embriaguez onde freqüentemente brotam nossos ideais e euforias. Místico, todo o depressivo encontra na dor e nas lágrimas a região inacessível da beleza integral. Em Sol Negro a intérprete maior do mal-estar da civilização utiliza Freud como seguro guia para mergulhar nos universos de Gérard de Nerval, Marguerite Duras, Holbein e Dostoievski. E deles emergir com uma visão predsa do que ocorre no pensamento europeu atual.

Julia Kristeva nasceu na Bulgária em 1941. Psicanalista, é professora da Universidade Paris VII, trabalhando na França desde 1960. Foi professora assistente de Letras Modernas e completou o doutorado na Universidade de Paris. É representante de pesquisas do CNRS (Comitê Nacional para Pesquisas Científicas) e Secretária Geral da Associação Ipternacional de Semiótica. E redatora-chefe adjunta da revista Semiótica.

SOL NEGRO Depressão e Melancolia

JULIA KRI STEVA

SOL NEGRO Depressão e Melancolia Tradução de

CARLOTA GOMES

2? ediç ã o

Rio d e Janeiro -

1989

SOLEIL NOIR -

Título original: DEPRESSION ET ME.LANCOLJE

© Editions Gallimard, 1987

Direitos para a língua portuguesa reservados, com exclusividade para o Brasil, à EDITORA ROCCO LTDA. Rua da Assembléia, 10 - Gr. 2313 CEP 20011 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: 224-5859 Telex: 38462 EDRC Bit Printed in Brazii/Impresso no Brasil

capa ANA MARIA DUARTE Foto: André Kertesz- Tulipe mélancolique (1939)

revisão GYPSI CANETTI LENY CORDEIRO OSCAR GUILHERME LOPES

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ .

K93s

Kristcva, Julia, 1941· Sol negro: depressão e meTancolia I Julia Kristcva; tra· dução de Carlota Gomes. - Rio de Janeiro: Roccc, 1989 . Tradução de: Soleil noir: dépression et mélancolie. I . Depressão mental - Ensaios. 2 . Melancolia - Ensaios. I. Gomes, Carlota . 11. Título. 111. Título: Depres· são e melancolia .

8~0706

CDD- 157 CDU - 159.942.5(042.3)

Por que, ó minh'alma estás tão triste? ' E por que me perturbas? Salmo de David XLII, 6-12

A grandeza do homem é grande no que ele se conhece como miserável. PASCAL

Pensamentos (165)

~alvez seJa isto o que se procure através da vtda! nada mais do que isto, o maior pesar posstvel, para nos tornarmos nós mesmos, antes de moner. CÉLINE

Voyage au bout de la nuit

Sumário

................

9

11 . Vida e morte da palavra .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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lll. Aspecios da · depressão feminina . . . . . . . . . . . .. . . . . . .

69

IV . A beleza: o outro mundo dQ depressivo . . . . . . . . . . . .

93

V . O Cristo morto de Holbein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

101

VI. Nerval. El Desdichado ... . .... : . . .. .. .. .. .. . .. . .

131

VII. Dostoievski, a escrita do . S'Ofrimento e do perdão . . . .

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I . Um contra-depressor: a psicanálise

.

.

.

VIII . A doença. da dor: .Duras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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I

Um contra-depressor: a psicanálise

PARA aqueles a quem a melancolia devasta, escrever sobre ela só

teria sentido se o escrito viesse da melancolia . Tento lhes falar de um abismo de tristeza, dor incomunicável que às vezes nos absorve, em geral de forma duradoura, até nos fazer perder o gosto por qualquer palavra, qualquer ato, o próprio gosto pela vida. Esse desespero não é uma aversão, que pressuporia capacidades de desejar e de criar, de fonna negativa, claro, mas existentes em mim . Na depressão, o absurdo de minha existência, se ela está prestes a se desequilibrar, não é trágico: ele me aparece evidente, resplandecente e inelutável. Donde vem esse sol negro? De que galáxia insensata seus raios invisíveis e pesados . me imobilizam no chão, na cama, no mutismo, na renúncia? O golpe que acabo de sofrer, essa derrota sentimental ou pro· fissional, essa dificuldade ou esse luto que afetam minhas relações com meus próximos são em geral o gatilho, facilmente focalizável, do meu desespero. Uma traição, uma doença fatal, um acidente ou uma desvantagem que, de for:ma brusca, me arrancam dessa categoria que me parecia normal, das pessoas ·normais, ou que se abatem com o mesmo efeito radical sobre um ser querido, ou ainda ... quem sabe? A lista das desgraças que nos oprimem todo~ os dias é infinita . . . Tudo isto, bruscamente, me dá uma outra vida. Uma vida impossível de ser vivida, carregada de aflições cotidianas, de lágrimas contidas ou derramadas, de desespero sem partilha, às vens abrasador, às vezes incolor e .vazio. F.m suma, uma existência desvitalizada que, embora às vezes exaltada pelo esforço que faço para continuá-la, a cada instante está prestes a oscilar para a morte . Morte vingança ou morte liberação, doravante ela é o limite interno do meu abatimento, o sentido impossível dessa vida, cujo fardo, a cada instante, me parece insustentável, salvo nO$ momentos em que

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\]M ,CON'nA·DEPIUlSSOa: A PSICANÁLlSB

me mobilizo para enfrentar o desastre. Vivo uma morte viva, carne cortada, sangrante, tomada cadáver, ritmo diminuído ou suspenso, tempo apagado ou dilatado, incorporado na aflição... Ausente do sentido dos outros, estrangeira, acidental à felicidade ingênua, eu tenho de minha depressão uma lucidez suprema, metafísica . Nas fronteiras da vida e da morte, às vezes tenho o sentimento orgulhoso de ser a testemunha da insensatez do Ser, de revelar o absurdo dos laços e dos seres. Minha dor é a face escondida de minha filosofia, sua irmã muda . Paralelamente, o "filosofar é aprender a morrer" não poderia ser concebido sem a coletânea melancólica da aflição ou do ódio - que culmirá na preocupação de Heidegger e na revelação de nosso "ser-para-a-morte". Sem uma disposição para a melancólia, não há psiquismo, mas atuação ou jogo. Contudo, o poder dos acontecimentos que suscitam minha depressão, geralmente, é desproporcional em relação ao desastre que, de forma brusca, me submerge . Mais ainda, examinando o desencanto, mesmo cruel, que sofro aqui e agora, este parece entrar em ressonância com traumas antigos, a parHr dos quais me apercebo de que jamais soube realizar o luto. Posso assim encontrar antecedentes do meu desmorona~ento atual numa perda, numa morte ou num luto de alguém ou de alguma coisa que amei outrora . O desaparecimento desse ser indispensável continua a me privar da parte mais válida de mim mesmo: eu o vivo como U10 golpe ou uma privação, para contudo descobrir que minha aflição é apenas o adiamento do ódio ou do desejo de domínio que nutro por aquele ou aquela que me traíram ou abandonaram . Minha depressão assinala-me que não sei perder: talvez não tenha sabido encontrar uma contrapartida válida para a perda? Como resultado, qualquer perda acarreta a perda do meu ser - e do próprio Ser. O deprimido é um ateu radical e soturno.

A melancolia: revestimento sombrio da paixão amorosa Uma triste voluptuosidade, um arrebatamento pesaroso constituem o fundo banal donde, em geral, se destacam nossos ideais ou nossas euforias, quando não são essa lucidez fugaz que rompe a hipnose amorosa que liga duas pessoas uma à outra . Conscientes de estarmos destinados a perder nossos amores, ficamos talvez ainda mais enlutados ao perceber no amante a sombra de um objeto amado. outrora perdido. A depressão é o rosto escondido de Narciso,

SOL NEGltiJ

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o que vai levá-lo para a morte, mas que ele ignora enquanto se admira numa miragem. Falar da depressão nos reconduzirá para a região pantanosa do mito narcísico.1 Desta vez, entrelanlo, não veremos ali a esplendorosa e frágil idealização amorosa mas, pelo contrário, a sombra lançada sobre o ego frágil. mal dissociado do outro, precisamente pela perda desse outro necessário . Sombra do desespero. Melhor do que procurar o sentido do desespero Cele é evidente ou metafísico), confessemos que só há sentido . no desespero. A criança-rainha toma-se irremediavelmente triste antes de proferir suas primeiras palavras: é a tristeza de ser separada de sua mãe, sem retorno, desesperadamente, que a faz decidir-se a tentar reencontrá-la, da mesma forma que os outros objeto~ de amor, primeiro na sua imaginação, depois nas palavras. A semiologia, que se interessa pelo grau zero do simbolismo, é inevitavelmente levada a se interrogar não somente sobre o estado amoroso, ma~ também sobre o seu obscuro corolário, a melancolia, para constatar ao mesmo tempo que, se não ex:iste escrita que não seja amorosa, não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.

Pensamento -

crise -

melancolia

Entretanto, a melancolia não é francesa. O rigor do protestantismo ou o peso matriarcal da ortodoxia cristã confessam-se mais facilmente cúmplices do indivíduo enlutado, quando não o convidam para um deleite sombrio . Se. é verdade que a Idade Média francesa nos apresenta a tristeza sob imagens delicadas, o tom gaulês, renascentista e iluminado está mais para a brincadeira, para o erótico e para o retórico do que para o niilismo . Pascal , Rousseau e Nerval fazem triste figura ... e constituem exceç ão . Para o ser falante, a vida é uma vida que tem sentido: ela constitui mesmo o apogeu do sentido. Por isto, perdendo o sentido da vida, . esta se perde sem dificuldade : sentido desfeito, vida em perigo. Em seu momento de dúvida, o depressivo é filósofo e devemos a Heráclito, a Sócrates e, mais próximo de nós, a Kierkegaard as páginas mais inquietantes sobre o sentido ou o absurdo do Ser. Todavia, é preciso remontar a Aristóteles para encontrar uma reflexão completa sobre as

1

Cf. nosso obra Histórias de Amor, Paz e Terra, 1988 .

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UM CO NTJlA.DEPilESSOil:

A PSICANÁLISE

relações que os filósofos mantinham com a melancolia. Nas Problemata {30, 1), atribuídas a Aristóteles, a bílis negra (melaina kole) determina os grandes homens. A reflexão (pseudo-)aristotélica ap!íca-se ao éthos-périton, a personalidade de exceção, à qual a melancolia seria específica. Ao mesmo tempo em que se serviu das noções hipocráticas (os quatro humores e os quatro temperamentos), Aristóteles inova, extraindo u melancolia da patologia e situando-a na natureza, mas também, e sobretudo, fazendo-a decorrer do calor, considerado como o princ.ípio regulador do organismo, c da mesotes, interação controlada de energias opostas. Essa noção grega de melancolia hoje nos é estranha: ela supõe uma "diversidade bem dosada" ( c:u k ralos anomalia), que ~e traduz de forma metafórica pela espuma (aphros), contraponto eufórico da bílis negra. Essa mistura branca de at· (pneuma) e de líquido faz espu mar tanto o mar, o vinho, quanto o esperma do homem. De fa to, Aristóteles associa exposição ci;:ntífi ~a c referências míticas , ligando a melancolia à espuma espermática e ao erotismo, e referindo-se explicitamente a Dionísio e a Afrodite (953b 3 1-32). A melancolia que ele evoca não é uma doença do filósofo, mas sim sua própria natureza, o sc:1 éthos. Não é a que ataca o primeiro melancólico grego, Belcrefonte, que a llíada (V I, 200-203) nos apresenta: . ''Objeto de ódio para os deuses, ele errava sozinho na planície de Aléion, w m o coração devorado pe!a mágoa, evitando os vestígios dos homens." Autofágíco, porque abandonado pelos deuses. exi1ado pelo decreto divino, este desesperado estava condenado não à mania, mas ao afastamento, à ausência, ao vazio . . . Com Adstótelcs. a melancolia, equilibrada pelo gênio, é cc-extensiva à inq uietação do homem no Ser. Ali via-se a antecipação da angcistia heideggcriana como Stimrnung do pensamento. Schcl ling. de modo similar, descobriu aí a "essência da liberdad:! humana", o indício da ''simpatia do homem com a natureza". Assi m, o filósofo seria '·melancúlico por superabundância de humanidade" .2 Esta visão da melancolia, como estado-limite e como excepcionalidade reveladora da verdadeira natureza do Ser, sofreu uma profunda mutação na Idade Médi a. Por um lado, o pensamento medieval volta às cosmologius da Antiguidade tardia e liga a melancolia

C f. {a melauwfia ele/f' uomo di genio (A melancolia do homem genial) . Ed. Jt Mclangolo, aos cuidados de Carlos Angclino, ed. Enrica Salvaneschi Gênova, 1981.

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90L N'Eessa divisão das funções simbólicas entre os dois hemisférios cerebrais. 1 Cf. J. D . Vincent, Biologie des passions (Biologia das paixões), Ed. O . Jacob. Paris, 1986 .

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VIDA E MOaTE DA PALAv.A

"endócrino". Definitivamente, e levando-se em conta essa dualidade cerebral em que as paixões encontram seu ancoradouro no humoral, podemos falar de "estado central flutuante". Se admitirmos que a linguagem, no seu próprio nível, também deve traduzir este "estado flut:.tante", é forçoso localizar, no funcionamento da linguagem, registros que parecem mais próximos do "cérebro-glândula" (os componentes supra-segmentais do discurso). Assim, poderíamos pensar a "modalidade simbólica" da significãncia em relação ao hemisfério esquerdo e ao cérebro neuronal, e a "modalidade sem:ótica" em relação ao hemisfério direito e ao cérebro·glândula. Entretanto, hoje nada permite estabelecer qualquer correspondência- a não ser um salto- entre o substrato biológico e o nível das representações, sejam elas tonais ou sintáxicas, emotivas ou cognitivas, semiót!cas ou simbólicas . Contudo, não poderíamos negligenciar os relacionamentos possíveis entre esses dois níveis e tentar ressonâncias, certamente aleatórias e imprevisíveis, de um sobre o outro e, ainda com mais razão, modificações de um em relação ao outro. Como conclusão: se uma disfunção de noradrenalina e de serotonina, ou então de sua recepção, entrava a condutibilidade das sinapses, e pode condicionar o estado depressivo, o papel dessas poucas sinapses, na estrutura em forma de estrela do cérebro, não poderia ser absoluto.1 Tal insuficiência pode sofrer a oposição de outros fenômenos químicos e também de outras ações ex.ternas (incluindo as simbólicas) sobre o cérebro, que a eles se acomoda por modificações biológicas. De fato, a experiência da relação com o outro, suas violências ou suas delícias, imprimem, de forma definitiva, a s:.ta marca nesse terreno biológico e concluem o quadro bem conhecido do comportamento depressivo. Não renunciando à ação química no combate à melancolia, o analista dispõe (ou poderá dispor) de uma extensa gama de verbalizações deste estado e das suas. ultrapassagens. Permanecendo atento a estas interferências, ele se aterá à5 mutações específicas do discurso depressivo, assim como à construção de s:1a própria palavra interpretativa, delas resultantes. O psicanalista, defrontando com a depressão, é conduzido a se interrogar sobre a posição do sujeito em relação ao sentido, assim

Cf. D . Widõcher, Les logiques de la dépression Fayard, Paris, 1986.

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{A~

lógicas da depressão),

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como sobre as dimensões heterogêneas da linguagem, suscetíveis de ter inscrições psíquicas diferentes, que, em razão dessa diversidade, teriam um número crescente de vias de acesso possíveis para os múltiplos aspectos do funcionamento cerebral e, portanto, para as atividades do organismo. Enfim, vista sob este ângulo, a experiência imaginária nos aparecerá, ao mesmo tempo, como um testemunho do combate que o homem trava contra a depressão e como uma gama de meios aptos a enriquecer o discurso interpretativo.

O salto psicanalítico: encadear e transpor Do ponto de vista do analista, a possibilidade de encadear sig· nificantes (palavras ou atos) parece depender de um luto realizado em relação a um objeto arcaico e indispensável. assim como às emoções a ele ligadas. Luto da Coisa, essa po~ibili~de _Pt;>~ém da transposição, para além da perda e num regtstro m~agmarto e simbólico, das marcas de uma interação com o outro, articulando-se segundo uma certa ordem . Sem o lastro do objeto originário, as marcas semióticas inicialmente se ordenam em séries, segundo os processos primários (deslocamento e condensação), e, em seguida, em sintagmas e frases, segundo os processos secundários da gramática e da lógica. Tod~s as ciências da linguagem hoje concordam em reconhecer que o dtscurso é diúlogo: que o seu ordenamento, tanto rítmico e de entona· ção quanto sintáxico, necessita de dois interlocutores p~~ se rea· lizar. Entretanto, seria preciso acresçentar a essa condt~a? fundamental, que já sugere a necessária separação entre um sujet'? : um outro 0 fato de que as seqüências verbais só advêm à cond1çao de substituir um objeto originário mais ou menos simbiótico por uma trans-posição, verdadeira re-constituição que, retroativamen~e, dá fonna e sentido à miragem da Coisa originária . Este movn~ento decisivo da transposição compreende duas vertentes: o bto realizado do objeto (e na sua sombra, o luto da Coisa arcaica), bem com? a adesão do indivíduo a um registro de signos (significante, prectsamente, pela ausência do objeto), somente desta forma suscetív~l de se ordenar em séries . O testemunho disso é dado pelo aprendtzado da linguagem feita pela· criança, ser errante intrépido, que deixa o seu leito para reencontrar sua mãe no reino das representações. O deprimido é :.tma outra testemunha disto, às avessas, quando renuncia a significar e imerge no silêncio da dor ou _no espasmo das lágrimas que comemoram os reencontros com a Co1sa.

VIDA I! MORTB DA PAJ:.AVL\

. Trans-~or, em grego m2taphorein: transportar - de início, a hnguagem e uma tradução, mas num registro heterogêneo àquele em ~ue se opera a perda afetiva, a renúncia, a fratura. Se não consr~to em .per~er mamãe, não poderia imaginá-la nem nomeá-la . ~ cnança ps~cóttca conhece esse. drama: é um tradutor incapaz, ela :~nora ~. metafora. ~uanto. ao. d1scurso deprimido, ele é a s:~perfície normal de um nsco ps~cótlco: a tristeza que nos submerge, o retardamento que nos paralisa também são uma muralha _ às vezes a última - contra a loucura . Consistiria _o destino do ser falante em não cessar de transpor, semp~e. para ma1s longe ou mais para o lado, essa transposição serial

ou fras1ca que testemunham a nossa capacidade de elaborar um luto fundamental e lutos sucessivos? Nosso dom de falar, de nos situarm?s no tempo . para um outro, poderia existir em outro lugar senão alem de um ab1smo. O ser falante, desde a sua capacidade de durar no temp? at~ as s~as construções entusiastas, eruditas ou simplesmente divertidas, exige, na sua base, uma ruptura, um abandono, um mal-estar. A denegação desta perda fundamental nos abre o país dos signos, mas, em geral, o luto está inacabado. Ele desordena a denegação e traz signos para a memória . tirando-os de sua neutralidade significante. Ele os carrega com af;tos, o que tem como efeito torná-los ambíguos, repetitivos, simplesmente aliterativos musicais ou às vezes, insensatos. Então, a trad:~ção - nosso destlno de ser fa~ Jante -:.. pára o seu caminhar vertiginoso em direção às metaling.uagens ou às línguas estrangeiras, que são igualmente sistemas de s1g~os afastados do lugar da dor. Ela procura tornar-se estrangeira a st mesma, para encontrar, na língua materna, uma ''palavra total, nova, estranha à língua" (Mallarmé), a fim de captar o não-nomeável. O excesso de afeto não tem, portanto, outro meio de se manifestar senão produzindo novas linguagens -· encadeamentos estranhos, ideoletos, poéticas . Até que o peso da Coisa originária o vença, e que qualquer tradutibilídade se tome impossível. A melancolia. termina então na assimbolia, a perda de sentido; se não sou ma1s capaz de traduzir ou de fazer metáforas, calo-me e morro .

A recusa da

denegação

~~cutem d_e novo, por alguns instantes, a palavra depressiva, repetitiva, monotona, ou então esvaziada de sentido, inaudível, mesmo para aquele que a diz, antes que se afunde no mutismo . Vocês

SOL NEORIJ

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constatarão que o sentido no melancólico parece . . . arbitrário, ou então que ele é construído com a ajuda de uma grande quantidade de saber e de vontade de dominar, mas parece secundário, fixado um pouco ao lado da cabeça e do corp{> de quem lhes fala . Ou então que, de repente, é evasivo, incerto, lacunar, quase de pessoa muda: "se" lhes fala já persuadido de que a palavra é falsa e, portanto, ''se" lhes fala negligentemente, fala-"se" sem acreditar nisto . Entretanto, que o sentido é arbitrário, a lingüística o afirma para todos os signos verbais e para todos os discursos . Não é o significante RJR tot.almente imotivado em relação ao sentido de " rir", mas também, e sobretudo, em relação ao ato de rir, à sua efetivação física, ao seu va1or int.rapsíquico e de interação? Eis a prova: eu nomeio o mesmo sentido e o mesmo ato " to laugh" em inglês, " smeiatsia" em russo etc. Ora, qualquer locutor " normal" aprende a levar a sério este artifício, a investi-lo ou a esquecê-lo. Os signos são arbitrários porque a linguagem se inicia por uma denegação (V erneinung) da perda, ao mesmo tempo que da depressão ocasionada pelo luto . " Perdi um objeto indispensável que, no caso, em última instância, é minha mãe", parece dizer o ser falante . "Mas não, eu a reencontrei nos signos, ou melhor, porque não aceito perdê-la, não a perdi (eis a denegação), posso recuperá-la na linguagem." O deprimido, pelo c;ontrário, recusa a denegação: ele a an:Jla. suspende c se curva, nostálgico, sobre o objeto real (a Coisa) da sua perda, que precisamente, ele não chega a perder, ao qual permanece dolorosamente fixado. A recusa { Verleugnung) da denegação seria assim o mecanismo de um luto impossível, a instalação de uma tristeza fundamental e de uma ling:Iagem artificial, inacreditável, cortada desse fundo doloroso ao qual nenhum significante tem acesso e que somente a entonação, por intennitêncía, consegue modular. O que c01-zpreender por recusa e denegação?

Entenderemos por recusa a negação do s~gnificante, tanto quanto dos representantes semióticos das pulsões e dos afetos. O termo denegação será entendido como uma operação intelectual que conduz o recalcado à representação sob a condição de o negar e, por esta razão, partícipe do advento do significante . Segundo Freud, a recusa ou desmentido (Verleugnung) aplicase à realidade psíquica que ele considerava como sendo da ordem

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VIDA E Me.~ta margem elevada se divisava uma vasta extensão do país. Da beira oposta e longínqua, chegava .um canto cuia eco retinia nas orelhas do prisioneiro. Lá, na estepe imensa inundada de sol, apareciam aqui e acolá, em pontos negros, mal perceptíveis, as tendas dos nômades . Lá estava a liberdade, lá viviam os homens que não se pareciam em nada com aqueles do desterro. Dir-se-ia que o tempo parara na época de Abraão e dos seus rebanhos. Raskolnikov olhava essa visão longínqua, os olhos fixos, sem se mexer. Ele não refletia mais: sonhava e contemplava, mas ao mesmo tempo uma vaga inquietação o oprimia. De repente, Sônia encontra-se de novo ao seu lado. Ela se aproximara sem barulho e sentara junto dele. [ . . . ) Sorriu para o prisioneiro com um ar amável e feliz mas, segundo o seu hábito, s6 estendeu-lhe a mão timidamente. [ ... 1 De repente, e sem qui! o prisioneiro soubesse como isto aconteceu, uma força invisível lan-

Ovídio, Acis et Galatée, in Métamorphoses. H . Arendt lembra o sentido, em São Lucas, das palavras grega.s de "perdão": "aphienai, métanoein: remeter de volta, liberar, mudar de opinião, refazer o seu caminho", op. cit., p. 170.

ST 58

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DOSTOIEVSIO, A ESCIUTA DO SOFIUMENTO E DO PERDÃO

aos pés da jovem . Ele se pôs a chorar, enlaçando seus joelhos. No primeiro momento, ela ficou terrivelmente assustada e seu rosto se tornou mortalmente pálido. Ela deu um salto e o olhou, tremendo, mas no m~mo instante compreendeu tudo. Uma felicidade infinita irradiou-se de seus olhos. Ela compreendeu que ele a amava, não podia duvidar disto. Ele a amava com um amor sem limites: o minuto por tanto tempo esperado então chegara."S9 Esse perdão dostoievskiano parece dizer: Por meu amor, eu o excluo por um tempo da história, eu o tomo por uma criança, o que significa que reconheço os móveis inconscientes do seu crime e permito que você se transforme. Para que o inconsciente se inscreva numa nova história, que não seja o eterno retorno da. pulsão da morte no ciclo crime/castigo, ele precisa transitar pelo amor do perdão, transferir-se para o amor do perdão. Os recursos do narcisismo e da idealização imprimem suas marcas no inconsciente e o remodelam. Porque o inconsciente não é estruturado como uma linguagem, mas sim como todas as marcas do Outro, incluindo, sobretudo, as mais arcaicas, ''semióticas", feitas de auto-sensualidades pré-verbais que a exper:ência narcísica ou amorosa restitui. O perdão renova o inconsciente, porque inscreve o direito à regressão narcísica na História e na Palavra . Estas encontram-se modificadas por ele. Elas não são nem fuga linear para a frente, nem eterno retorno da repetição morte-vingança, mas espiral que segue o trajeto da pulsão mortal e o do amor-renascimento . Suspendendo a perseguição histórica graças ao amor, o perdão descobre as potencialidades regenerantes próprias à gratificação narcísica e à idealização internas ao laço amoroso. Portanto, ele leva em conta, s:multan eamente, dois registros da subjetividade: o registro inconsciente, que pára o tempo pelo desejo e pela morte, e o registro do amor, que suspende o anti_go inconsciente e a antiga história e esboça uma reconstrução da personalidade numa nova relação para um outro. Meu inconsciente é re-inscritível para além desse .dom que uma outra pessoa me faz de não julgar meus atos. O perdão não lava os atos. Sob estes, ele levanta o inconsciente e o faz reencontrar um outro amoroso: um outro que não ÇOU·O

S-J

Crime e Castigo . Sobre o diálogo e o amor em Dostoievski, cf . Jacqucs

Ro11and, Dostoievski. La Ouestion de l'Autre (D. A questão do outro), cd

Verdier, 1981.

SOL NI::ORU

1R7

julga, mas que entende minha verdade na disponibiiidade do amor e, por isto mesmo, permite renascer. O perdão é a fase luminosa da sombria atemporalidade inconsciente: a fase em que esta última muda de lei e adota a ligação com o amor, como um princípio de renovação e de si. O perdão estético Apreendemos a gravidade de tal perdão com e através do hor· ror inaceitável. Esta gravidade é perceptível na escuta analítica, que não julga nem calcula, mas que tenta desatar e reconstituir. Sua temporalidade espiralada realiza-se no tempo da escrita . t por estar separado do meu inconsciente por uma nova transferência para um noyo outro ou para um novo ideal qu~ sou capaz de escrever a dramaturgia da minha violência e do meu desespero, contudo inesquecíveis. O tempo dessa separação e desse recomeço subjacente ao próprio ato da escrita não aparece necessariamente nos temas narrativos, que podem revelar somente o inferno do inconsciente. Mas ele também pode se manifestar sob o artifício de um epílogo, co· mo o de Crime e Castigo, que suspende uma aventura romanesca an· tcs de fazê-la renascer por um novo romance. O crime não esquecido. mas significado através do perdão, o horror escrito, é a condição da beleza. Não há beleza fora do perdão que se lembre da abjeção c a filtre pelos signos desestabilizados; musicalizados, re-sensualizados, do discurso amoroso. O perdão é estético e os discursos (as religiões, as filosofias, as ideologias) que aderem à dinâmica do perdão precondicionam a eclosão da estética na sua esfera. No início, este perdão comporta uma vontade, postulado ou esquema: o sentido existe. Não se trata necessar:amentc de uma recusa do não-sentido ou de uma exaltação maníaca em oposição ao desespero {mesmo se, em numerosos casos, este movimento possa dominar). Esse gesto de afirmação e de inscrição do sentido, que é o perdão, traz em si, como um revestimento, a erosão do sentido, a melancolia e a abjeção. Compreendendo-as, ele as desloca, absor· vendo-as, ele as transforma e as liga a alguma outra pessoa. "Existe um senti