Marc Ferrez
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Capa [Entrada da baía de Guanabara, vista da fortaleza de Santa Cruz J Álbum Rio de Janeiro e. 1885 [ver página 5 O J

Frontispício Tijuca - Pie do Papagaio [Auto-retraro de Marc Ferrez] Rio de Janeiro e. 1880 Albúmen 21x16cm Mapoteca do Palácio Itamaraty Rio de Janeiro Quarta capa Santos - Le port e. 1882 [ver página 86]

Espaços da arte brasileira/Marc Ferrez © Cosac & Naify Edições 2000 © Maria Inez Turazzi Projeto e coordenação editorial Rodrigo Naves Edição de arte e projeto gráfico Fábio Miguez Coordenação executiva Célia Euvaldo Desenvolvimento do projeto gráfico Fernanda Mendes Produção Fabiana Werneck Edição de texto Cristina Fino Revisão Flávia Moino e Luiz Eduardo Vicentin Tratamento de imagens e fotolitos Ponto & Meio Impressão Donnelley-Cochrane/Hamburg Todos os direitos reservados. Esta publicação não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da editora, exceto quando para fins de crítica, artigo ou resenha.

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Todas as reproduções são de Sergio Burgi

MARC FERREZ:

FOTOGRAFIAS DE UM "ARTISTA ILUSTRADO" Maria Inez Turazzi

1 Jornal

do Cornmercio,

1O dez. 1888. A série de

Folheando o jornal do Com1nercio, os leitores da Corte e das províncias do Império não precisavam percorrer os três pavimentos do Liceu de Artes e

artigos publicada pelo jornal ao longo do mês

Ofícios do Rio de Janeiro para ter, diante de si, uma exposição minuciosa dos

de dezembro não é

itens que iriam representar o nosso "adiantamento" e "civilização" na Expo-

assinada.

sição Universal de Paris de 1889. Descritos em detalhes, eles podiam ser examinados pelo próprio leitor: Deixando-se o mundo industrial do prin1eiro pavimento, sobe-se por uma elegante escada à indústria artística do segundo pavimento. [ ... ] No primeiro andar, à esquerda, está uma galeria completamente ocupada por excelentes trabalhos de fotografia. O salão central tem o nome do Sr. Pedro

II,

o grande

cidadão a quem a indústria deve quarenta anos de paz e animação.[ ... ] O acertado gosto da comissão colocou no salão imperial essas magníficas obras de Marc Ferrez

marcenaria, de talha, de charão, de tapeçaria que são, desde a origem nacio-

[liceu de Arte e OficiosJ Rio de Janeiro e. 1888

nal, a honra de nossas artes. É um deslumbramento! No princípio estão as confecções de modas, as flores artificiais, e na parede uma magnífica coleção de paisagens em fotografia do senhor Marcos Ferrez, onde se vê a medieval Ouro Preto, o Itacolomi e uma avenida de floresta, que é um primor. 1 Esquadrinhando a mostra preparatória da participação brasileira ern Paris, o articulista do jornal do Co1n111ercio, entre adjetivações e espantos, acaba conduzindo o leitor para dentro da "galeria fotográfica". Ali, descreve-lhe a "boa

7



coleção" de vistas de uma estrada de ferro e outros tantos panoramas e retratos, antes de frrmar o julgamento de que "os trabalhos fotográficos da exposição dão a melhor idéia dos processos usados e do cuidado com que é feita a tiragen1 das provas". Finalmente, diante das imagens exibidas por um dos fotógrafos mais premiados do país, concede-lhe os maiores elogios: Nos quadros fotográficos do senhor Marcos Ferrez e nos espécimens de reprodução dos trabalhos cartográficos por meio de processos especiais, nota-se, também, o esmero de um artista ilustrado, que tenta passar para nossos usos industriais as mais recentes descobertas. A escolha de paisagens foi acertada e o efeito de luz em algumas está bem aproveitado. 2

2

Ide.m. O "juízo

crítico" do Jornal do

Com a fama de ser o periódico mais importante e respeitado do Império, o "juízo crítico" do Jornal do Commercio sobre a mostra fotográfica

Commercio foi transcrito no ano

seguinte em

tinha o peso de um reconhecimento consagrador. Fundado em 18 2 7 pelo tipó-

O Auxiliador, periódico

grafo francês Pierre Plancher e dirigido, desde a década seguinte, pelo cmnpa-

da Sociedade Auxiliadora

triota Jules Villeneuve, o Jornal do Commercio não demorou a se tornar o

da Indústria Nacional.

periódico com o maior número de leitores e anunciantes do Rio de Janeiro. Atento aos fatos da vida política e cultural do país, não deixava de acolher as novidades que corriam o mundo, transcrevendo matérias publicadas por jornais estrangeiros. Assim ocorreu, por exemplo, em 1839, com o anúncio oficial da invenção do daguerreótipo na França e assim ocorreria, nas décadas seguintes, com as notícias sobre os inúmeros aperfeiçoamentos que a fotografia experimentou, daí por diante, em diversos países. Na década de 1860, já tinha um correspondente em Nova York e, em 1877, tornou-se o primeiro periódico brasileiro a contar com os serviços de uma agência telegráfica internacional. Longe, portanto, de ser uma folha dedicada apenas às notícias econômicas, o Jornal do Commercio sempre deu destaque às letras e às artes. Embora fosse a maior expressão do jornalismo conservador da época, tantas vezes adjetivado como "circunspecto" , "sisudo" e "servidor de todos os governos", era também o espaço dos "a pedidos" , que não raro traziam matéria paga e pouco generosa com as autoridades constituídas, e dos famosos folhetins, que reproduziam em fragmentos diários as obras de Victor Hugo ou Joaquim Manuel de Macedo. "Agindo e reagindo sobre a sociedade", como ressaltou Nelson

8

4

Werneck Sodré em seu amplo estudo sobre a imprensa brasileira, a história do Jornal do Commercio confunde-se, por isso mesmo, com a história do Brasil 3

Sodré, Nelson

Wemeck. A história da imprensa no Brasil. Rio

de Janeiro, Civilização

no século XIX.3 No presente ensaio, o leitor contemporâneo verá que o "juízo crítico" do Jornal do Commercio oferece-nos uma espécie de roteiro tropológico para o

Brasileira, 1966, p. 217

estudo das relações entre a formação, a técnica, as influências estéticas, as ambi-

e ss. Ver tb. Bilac, Olavo.

ções arósticas e as formas de experimentação do mundo do fotógrafo Marc

"Jornal do Commercio" . ln: Vossa insolência;

Ferrez. O itinerário que segui está demarcado por expressões retiradas daquele

crônicas. São Paulo:

texto, embora o caminho percorrido tenha-se orientado, naturalmente, por

Companhia das Letras,

indagações e interesses estabelecidos por um outro quadro de referências. Nesse

1996, pp. 180-183 .

jogo de articulações e agrupamentos simbólicos, a crítica fotográfica da época, além de configurar-se como parte integrante dos processos de veiculação, circulação e recepção do trabalho de Marc Ferrez, acabou pontuando o espaço, aqui delimitado, para a análise de sua trajetória e de sua produção fotográfica em mais de meio século de atividade, espaço em que transitaram parceiros e interlocutores, clientela e público, críticos e admiradores. O pesquisador norte-americano Weston Naef, ao lançar em Nova

York, em 1976, um livro realizado em parceria com o historiador Gilberto Ferrez sobre os pioneiros da fotografia no Brasil, não deixou de assinalar que a vida e a obra de Marc Ferrez já eram então mais conhecidas do que a de qualquer outro fotógrafo em atividade no país no século XIX. Esse conhecimento havia sido construído pelo trabalho de preservação do acervo e divulgação do nome de Marc Ferrez realizado Capa do álbum Rio de Janeiro, l 890~ que pertenceu ao diplomata argentino Estanislao Zeballos Encadernação de G. Leuzinger & Filhos

desde os anos 1930 por seu neto, quando começava a colecionar e estudar a iconografia brasileira. Posteriormente, os livros O Rio antigo do fotógrafo Marc Ferrez: paisagens e tipos humanos do Rio de Janeiro/ 1865-1918 (RJ, 1984) e A fotografia no Brasil/ 1840-1900 (RJ, 19 85), em meio a tantas outras obras do historiador, ampliaram ainda mais o conhecimento e a apreciação do legado de Marc Ferrez, divulgando novos aspectos de sua vida familiar e boa parte das imagens que produziu, além de inaugurarem uma qualidade gráfica e editorial que ainda não havíamos experimentado na publicação de livros sobre a fotografia brasileira do século XIX. Recorrendo a essa literatura (ver bibliografia) e à documentação ainda inédita encontrada nas instituições de pesquisa, acrescidas

9

por novas explorações no acervo da família Ferrez, foi possível ordenar de forma bastante detalhada (ver cronologia) a vida e as atividades de Marc Ferrez, o que nem sempre se consegue com a biografia de outros fotógrafos da época. Para este livro, foram reproduzidas imagens pertencentes a diferentes colecionadores e instituições. Na coleção reunida p or Gilberto Ferrez, hoje n o Instituto Moreira Salles, encontram-se os negativos de vidro posteriores ao incêndio de 18 73 na oficina de Marc Ferrez, tiragens produzidas pelo próprio fotógrafo e cópias que Gilberto Ferrez posteriormente mandou executar a partir dos negativos originais. 4 No acervo existente em museus, arquivos, bibliote-

cas e coleções particulares, do Brasil e do exterior, encontram-se, além das tiragens originais (muitas já danificadas pelo tempo), legendas, marcas e co-

4

As tiragens originais

do fotógrafo têm uma textura, um contraste e uma gradação tonal

mentários de época ausentes em cópias posteriores, passe-partouts e álbuns que

mais expressivos do

emolduravam e editavam essas imagens, bem como preciosas informações sobre

que as cópias de suas

a clientela e as transações ligadas à encomenda e ao consumo dessas fotografias . Todos esses elementos, combinados, me parecem fundamentais para a contextualização histórica e o estabelecimento de recortes e leituras no conjunto da produção fotográfica de Marc Ferrez.

O ''juízo crítico " Os jornais, desde o anúncio oficial da invenção do daguerreótipo, em 183 9, tiveram papel fundamental na fonnulação de juízos de valor em torno da fotografia, seja porque traziam um inventário das possibilidades oferecidas pelo novo meio, seja porque amplificavam a discussão e o reconhecimento do estatuto artístico da imagem fotográfica. Na França, associações como a Société Héliographique ( 18 51 ) e a Société Française de Photographie ( 1854) estimulara1n a criação de ~:mblicações especializadas que vieram impulsionar as inovações e os debates no cm 1po da fotografia, promovendo o nascimento de u111a crítica fotográfica pro:?=-:2..-:iente dita, direcionada não tanto para a compreensão da natureza ontológi-

cz cia :rnagem fotomecânica, mas para a apreciação dos recursos intrínsecos e das

~:.:_;: ·=cades estéticas dessa nova modalidade de expressão humana.

chapas realizadas posteriormente.

Lançado a 9 de fevereiro de 1851, o jornal La Lumiere autoproclamavase um semanário "não-político", de "belas-artes, heliografia e ciências" , uma "revista de fotografia ", no qual escreviam autores como Francis Wey, em busca de uma definição estética do novo meio, e Ernest Lacan, voltado para a conciliação dos valores artísticos da imagem fotográfica com suas potencialidades comerciais. A inexistência de salões dedicados à fotografia e a ausência desse gênero de imagem nas páginas do jornal impunham a esses autores uma abordagem descritiva que, se por um lado, condicionava o tipo de crítica que produziam, por outro, reforçava ainda mais a autoridade que exerciam. Os primeiros tempos do jornal La Lumiere exprimem, por isso mesmo, uma "contradição inédita na história da crítica: dar conta das imagens, exaltando o prazer do detalhe e da precisão, o que supõe uma observação minuciosa e atenta, s Hermange, Emmanuel.

sem que as obras sejam expostas ou publicadas" .5 Essa contradição marcaria o

"La Lumiere et

tom acentuadamente descritivo da crítica fotográfica veiculada nos jornais, rela-

l'invention de la critique photographique".

Écudes Photographiques,

ao estabelecer critérios de hierarquia e introduzir un1a perspectiva formal na

n . 1, novembro, 1996,

avaliação das imagens (ou "provas"), a crítica especializada acabou por condu-

p. 9 8. (Revue



tórios de exposições e manuais técnicos ao longo do século XIX. Por outro lado,

sémestrielle de la Société

zir um público mais an1plo e diversificado à formulação de juízos de valor esté-

Française de

tico sobre a fotografia, ainda que o estatuto artístico dessas imagens fosse objeto

Photographie).

de muitas discussões. No Brasil, comentários sobre essa veiculação pública das imagens fotomecânicas foram publicados na imprensa diária e nos relatórios oficiais desde meados do século XIX, como resultado da aparição de daguerreótipos, ambrótipos e foto grafias albuminadas nos primeiros salões da Acadenúa Imperial de BelasArtes, bem como da participação de estabelecimentos fotográficos da Corte e das províncias nas exposições provinciais e nacionais do Império, organizadas segundo o modelo europeu de distribuição e julgamento das riquezas naturais, agrícolas, industriais e artísticas. Um dos exemplos mais interessantes desse tipo de crítica deixou-nos o pintor Victor Meirelles no longo texto em que analisou, como membro do juri oficial, a participação da fotografia na Exposição Nacional de 1866. A descrição das obras expostas é bastante minuciosa e o autor não poupa elogios a este ou àquele exemplar em que sobressaem a "fineza e perfeição dos objetos representados", as "posições escolhidas com gosto e natura-

11

lidade", as "cores agradáveis e o vigor dos tons bem cal-

'

culados", a "nitidez e suavidade das meias tintas", a "firmeza e transparência das sombras" , o "relevo perfeito e a beleza das formas". 6 Sustentados nas c_onvenções e no vocabulário estético da pintura, embora fossem endereçados à fotografia, os comentários de Victor Meirelles sugerem

um repertório estético norteador das ambições artísticas de boa parte dos fotógrafos da segunda metade do século XIX, ao mesmo tempo que revelam uma transposição de

valores indicativa da distância que a crítica de arte tradicional ainda teria de percorrer para uma apreciação das qualidades intrínsecas da fotografia. 7 Em seu relatório, retratos e paisagens reunidos na classe destinada à fotografia foram analisados separadamente - na Exposição Nacional de 187 5 os dois gêneros já seriam distribuídos

George Leuzinger

em classes distintas - e todos os expositores rivalizavam "pouco mais ou menos

]ardin Botanique. Le Jac et le cocotier

em perfeição" , com exceção do suíço George Leuzinger, fotógrafo que se desta-

Rio de Janeiro e. 1867

cava por apresentar vistas e panoramas do Rio de Janeiro e arredores, representando "fielmente, com todas as minudências, os diversos lugares pitorescos do nosso característico país", podendo "servir perfeitamente de estudo aos artistas que se dedicam à arte bela da pintura de paisagem". 8 A crítica de Victor Meirelles ao trabalho de Leuzinger, além de fomentar o diálogo entre a fotografia de paisagem e a tradição pictórica, vislumbrando estratégias e potencialidades para esse gênero fotográfico no contexto brasileiro, também antecipava a apreciação elogiosa que aquelas imagens teriam em Paris no ano seguinte. As exposições universais, desde o sucesso da fotografia na grande exposição de Londres de 1 8 5 1, amplificavam o caráter ilustrativo da fotografia de paisagem e seu efeito demonstrativo. Os juris oficiais desses eventos, menos

6

Meirelles, Victor.

"Photographia" . ln: Brasil, Exposição Nacional. Relatório da

segunda Exposição Nacional de 1866, publicado [. ..]pelo Dr.

preocupados com a busca da beleza ou a conformidade com os cânones artísti-

Antonio José de Souza

cos, concentravam-se nas inovações dos processos fotográficos e em suas apli-

Rego, 1. 0 Secretário da

cações industriais e comerciais. Os parâmetros desse julgamento eram o

Commissão Directora. Rio de Janeiro, Typ.

progresso técnico, a rentabilidade econômica e as novas aplicações da imagem. Para premiar a categoria, eram convocadas autoridades do meio fotográfico,

12

Nacional, 1869, 2.ª parte, pp. 158- 170.

7

como Ernest Lacan, redator-chefe do La Lumiere, de 1853 a 1860 e, pouco

O enquadramento, por

exemplo, não é

depois, um dos fundadores do le Moniteur de la Pllotograpliie, "revista inter-

considerado de maneira

nacional" voltada para "o progresso da nova arte" e uma das publicações mais

explícita, sendo mencionado apenas

importantes do gênero na segunda metade do século XIX. Lacan exerceu por

indiretamente na crítica

diversas vezes o papel de jurado, tendo o primeiro contato com a fotografia

de Victor Meirelles aos

brasileira na Exposição Universal de Paris de 1867 . Em meio ao "bom gosto,

retratos em fotopintura.

sensibilidade artística e excelência dos trabalhos" de diversos fotógrafos ali re.,. s Meirelles, Victor. Op.

presentados, não deixou de mencionar "as obras bastante notáveis " do senhor

cit., pp. 163 e 166. 9

"G. Leuzniger" [sic], profissional desconhecido no meio europeu a quem o juri concedeu uma menção honrosa. 9 As paisagens de George Leuzinger não eram

France. L 'Exposition

Universelle de 1867

as primeiras imagens fotográficas do Brasil a participar de um evento interna-

Wustrée. Publication

cional (o fotógrafo Joaquim Insley Pacheco já recebera "medalha de primeira

internationale autorisée par la Comission

classe" na Exposição Internacional do Porto de 1865), mas aquela era a primei-

Impériale. Paris, E.

ra vez que a fotografia de paisagem produzida no Brasil recebia uma premiação

Dentu, 1867, p. 31 O.

nas exposições universais, fato que não passou desapercebido no meio fotográ-

A premiação foi obtida

fico da Corte.

com vistas e panoramas do Rio de Janeiro, além

':\ A fotografia de paisagem, identificada no século XIX como um recurso

de fotografias da

descritivo (mais do que inforn1ativo ou quantitativo, como o desenho) e uma

própria oficina de

atividade promissora (graças às novas exigências colocadas pela visualidade

George Leuzinger.

moderna), não podia desconsiderar os códigos de representação da pintura e da 1o Os

valores estéticos

"arte bela da paisagem", mesmo quando motivada por encomendas de nature-

da fotografia documental são

za científica, comercial ou de qualquer outra ordem. 10 Apoiada na exatidão da

discutidos por Snyder,

forma e na fidelidade do registro, ela ambiciona valorações artísticas e se orien-

Joel, "Aesthetics and

ta por essas convenções, ainda que para transpor os cânones estabelecidos. Mas

docwnentation", in: Walch, P. & Barrow,

também institui um novo olhar sobre a natureza, olhar que reposiciona o papel

T. F. (ed.), Perspectives

do observador, da contemplação passiva à intervenção estudada. Por isso

on photography,

mesmo, ao atribuir sentidos e valores a uma natureza que se transforma pela

Albuquerque, University

of New Mexico Press, 1986, pp. 125-150 e Soulages, François, Esthétique de la photograpl1ie, Paris,

ação do homem - como por exemplo, na documentação das espécies botânicas, \

'i ou das obras públicas e melhoramentos urbanos - ela envolve uma mudança de perspectiva em relação à história. No Brasil, o esquadrinhamento do território pela fotografia, assim como pela geografia, geologia ou botânica, além de ser

Nathan, 1998, esp.

matéria de interesse científico, é também uma necessidade política de consoli-

pp. 13 7 -16 2.

dação do Estado imperial: vistas e panoramas fotográficos são reconhecidos

13

como enquadramentos do país que tipificam cenários, costumes e gentes da terra, elegendo-os como atributos singulares de uma identidade nacional em construção, consubstanciada na variedade e exuberância dessas imagens.

A " ilu stra ção " do artista O articulista do Jornal do Commer cio, ao definir Marc Ferrez como um "artista ilustrado", convida-nos a indagar que valores, em pleno final do século XIX, e que atributos, específicos do fotógrafo, estariam sendo destacados com essas expressões tão características. O termo "ilustrado", como sabemos, era um repositório de referên,cias ao ideário iluminista do século XVIII, amplamente cultivado pela sociedade letrada do século XIX. O sentido primitivo da palavra, denotando a aparição ou irradiação da luz, já fora substituído por outras acepções: no século XV, ilustração passou a significar a capacidade de adquirir conhecimentos ou a própria sabedoria com a qual se distinguem os espíritos instruídos; no século XVI, a ação de esclarecer, por meio de explicações e exemplos, os conteúdos obscuros; no século XIX, a estampa (desenho, gravura, fotografia) que ornamenta e elucida um texto pela figuração de significados que lhe-são extraídos ou acrescidos por meio da imagem. 1 1 No transcurso dos sentidos, duas idéias que sobressaem: o saber e a imagem. Um saber impregnado pelo culto à razão, pela convicção no caráter civilizador da ciência e da arte. A

11

Robert, Paul.

Dicriom1aire alphabérique et analogique de la lmgue

ilustração é atributo daqueles que compartilham e interagem com as fontes

française. Paris. Société

desse conhecimento e dessa sensibilidade, mas é também o instrumento indis-

du Nouveau Littré,

pensável para o triunfo da razão. A "filosofia das Luzes" é inspiradora das enci-

197 6, pp. 867-868.

clopédias, biografias e álbun? ilustrados que respondem pela vulgarização da ciência e da civilização, pela educação dos sentidos e, particularmente, por uma nova pedagogia do olhar: "educado pela ciência, o olho acede ao mundo inteligível, e liberta-se da visibilidade empírica" . 12 A imagem, dilatando as

12

fronteiras da visão e da memória, faz-se portadora dessa visibilidade privile-

Paulo. "O olhar

giada e libertadora.

iluminista". In: Novaes,

Rouanet, Sergio t

Adauto (org.). O olhar.

Inserida naquele contexto, a caracterização do fotógrafo como um "artista ilustrado" tinha colorações específicas: atestava o reconhecimento de atributos

14

São Paulo, Companhia das Letras, 199 5, p. 133,

mais elevados no exercício da atividade fotográfica; sugeria a filiação do artista à cultura francesa já tão influente sobre os espíritos letrados da Corte; indicava a marca de distinção concedida pelas viagens e intercâmbios realizados na Europa, para fins artísticos ou científicos; assinalava a variedade de conhecimentos, a versatilidade de interesses e a orientação pragmática que pareciam caracterizar boa Cf Dias, Maria Odila

1.3

da Silva. "Aspectos da ilustração no Brasil".

Revista do Instituto

parte da intelectualidade brasileira desde o século XVIII. 13 Marc Ferrez era filho de franceses e descendia de uma familia de escultores ilustres que, tão logo chegam ao Brasil, em 1817, integram-se à Missão Artística Francesa e, por conse-

Histórico e Geográfico

guinte, ao círculo social que se formou em torno da Academia Imperial de

Brasileiro, v. 278,

Belas-Artes, principal instituição promotora do ensino e das exposições de arte

jan.-mar. 1968, pp. 105-170.

I

durante todo o

Império. 14

Ainda na mocidade, viveu na cidade de Paris na déca-

da de 185 O, aos cuidados do escultor Alphée Dubois, e para lá retornou em 14

Ferrez, Gilberto. "Os

irmãos Ferrez da Missão Artística Francesa".

diversas ocasiões, mantendo assíduo contato com o meio intelectual francês. A formação versátil e o conhecimento atualizado, Ferrez adquiriu tanto

Revista do Instituto

no ambiente familiar, nas viagens e leituras que fez, como no convívio e apren-

Histórico e Geográfico

dizagem profissional com fotógrafos e artistas, editores e livreiros, negociantes

Brasileiro. Separata do v. 275, abr.-jun. 1968,

55 pp. il.

e fornecedores de equipamentos fotográficos do Rio de Janeiro. Ao ingressar na vida adulta, como ajudante e aprendiz da Casa Leuzinger, ingressa também nos espaços destinados à produção e difusão das imagens que ilustravam o mundo e os homens. Convive com o an1biente letrado das livrarias e casas editoriais da Corte, a agitação da Rua do Ouvidor, o burburinho dos salões de arte e das exposições industriais, ambientes por onde circulam pintores, litógrafos, jornalistas, engenheiros e cientistas, uma gente com a qual ele iria mais tarde formar parcerias, compor sociedades, conquistar clientes e amigos. As oficinas de fotografia, litografia e encadernação da Corte eram os espaços de produção, edição e comercialização de "vistas", um ramo de atividade em franca expansão na segunda metade do século XIX. Muitas dessas ofi- . cinas eram também, paralelamente, os locais de aprendizagem dos novos ofícios ligados à imagem e, mais do que isso, de educação do olhar. Marc 1, Ferrez, ao ingressar na Casa Leuzinger, conhece pintores, fotógrafos e cientis-

1s

Cf. Correio da Manhã.

14 jan. 1923, p. 5 ~

-; ::nbém os estudos de

G~berto Ferrez.

tas, co1no o engenheiro alemão Franz Keller, com quem teria passado a trabalhar como assistente de fotografia. 15 Adquire familiaridade com um repertório de vistas de sítios "pitorescos" do Rio de Janeiro, produzidas pelo próprio

15

Keller e por artistas como o pintor HenriNicolas Vinet, o litógrafo Alfred Martinet e ,

o fotógrafo Victor Frond, entre tantos outros. Comprova a importância dos processos mecânicos e fotomecânicos que garantiam a maior permanência e reprodutibilidade da imagem fotográfica - como a litogravura, a fotogravura e a fototipia -, processos que ele viria a empregar, a exemplo de outros editores do Brasil e do exterior, para reproduzir seu próprio trabalho em livros e postais. Percebe as potencialidades de um mercado que se mostrava promissor para a fotografia de paisagem, como pareciam comprovar os anúncios publicados por Leuzinger, dando a conhecer a sua especialidade em vistas e paisagens do Brasil

Franz Keller [Lagoa Rodrigo de Freitas] Rio de Janeiro e. 18 7 O

e, logo depois, a premiação obtida em Paris. Constata os interesses e as exigências da clientela de serviços fotográficos, ben1 como as convenções estéticas que comandavam a apresentação de fotografias nas exposições e nas vitrines das lojas: passe-partouts decorados, logomarcas trabalhadas, encadernações em couro, dourações na capa, álbuns personalizados

[ver pp. 9 e 25]. Todo

esse reper-

tório foi fundamental para a sua formação artística e profissional até meados dos anos 1860, tanto quanto para a viabilização de seus projetos profissionais nos anos seguintes. Essa época corresponde também a um período de expansão da fotografia no Brasil e, em particular, na cidade do Rio de Janeiro, graças à difusão do processo que empregava negativos de vidro com colódio úmido e à introdução do formato carte de visite, inovações que promoveram o barateamento da produção fotográfica e a ampliação do consumo desses serviços. O governo imperial, diante da visível expansão dos negócios ligados ao setor, apressa-se em regulamentar

16

Brasil. Coleção das

leis e decisões do

Império. Rio de Janeiro,

a atividade, extraindo os impostos que podiam ser obtidos com esse novo ramo

Typ. Nacional, 1863.

industrial e comercial: em 1863, a Secretaria dos Negócios da Fazenda do

Avisos de ns. 160

Império determinava que as oficinas de fotografia que também fornecessem as

(de 20/041 1863) e

429 (15/09/1863) da

molduras dos retratos de seus clientes passavam a estar sujeitas ao "imposto de

Secretaria dos Negócios

lojas" 16 e, no Manual dos impostos e contribuições em vigor, editado em 1875,

da Fazenda do Império.

16

.

17

Cf Agas~iz, Louis.

Voyage au Brésil. Paris,

o "empresário de fotografia " já aparecia na 30.ª classe das profissões taxadas pelo Imposto de Indústria e Profissões, criado no ano anterior.

Librairie de L. Hachette

Precedidas por exposições provinciais, as primeiras exposições nacionais

et Cie, 1869.

também representaram um estí1nulo à expansão da atividade fotográfica no país, ao mesmo tempo que passaram a levar para o exterior, sob a chancela do governo imperial, retratos e paisagens do Brasil que, pouco a pouco, divulgariam no meio fotográfico internacional nomes como o de Leuzinger, Pacheco, Ferrez e outros. Premiando a fotografia com medalhas e menções honrosas, a Exposição Nacional de 1861 , preparatória da participação brasileira na Exposição Universal de Londres do ano seg1únte, estimulou projetos, contratos e encomendas, além de trazer para a Corre profissionais estabelecidos em outras latitudes, com quem um jovem aprendiz podia travar contatos, assimilar experiências, trocar informações. São dessa época, por exemplo, os retratos de Ferrez assinados por Augusto Sthal, fotógrafo alemão que antes de participar da Exposição Provincial de Pernambuco e vir para a Exposição Nacional já havia documentado, entre 1858 e 18 6 O, a construção da Recife and São Francisco Railway (PE) , uma das primeiras ferrovias do Império. Pouco tempo depois de chegar à Corte, ele também se destaca c01no um dos primeiros fotógrafos do país a participar de um empreen-



dimento de caráter científico, colaborando com a expedição do naturalista suíço

Marc Ferrez Tipografia Nacional e

Santa Casa da.

Louis Agassiz, juntamente com outros nomes da Casa Leuzinger, estabelecimento que o cientista fez questão de agradecer em seu extenso relatório. 17 A

Ylisericórdia _\lbum Lembrança do

Rio de Janeiro

Rio de Janeiro e. 1885

·1 \'POGRAPH: A

presença desse novo profissional da imagen1 e o papel reservado à atividade de documentação fotográfica no esforço para esquadrinhar, identificar e classifi-

NAC IONAl

SANTA

CASA

DA

M ISERICO RDTA

17

car as riquezas e a população do Império ofereci~ indicações seguras para a conformação de projetos e ambições profissionais no meio fotográfico. É nesse contexto, portanto, que Marc Ferrez abre, em março de 18 6 7, o

seu próprio estabelecimento, no mesrno endereço onde já haviam funcionado a litografia de Paulo Robin e a oficina do fotógrafo Revert Henrique Klumb. 18

1s

Quando a guerra com o Paraguai termina, em 1870, ele registra os festejos ofi-

licença para pagamenco

ciais na Corte - em imagens que seriam presenteadas ao imperador Pedro

Cf. Registro de

do imposto de industria II -

e commerdo.

apresentando-se como "fotógrafo da Marinha Imperial", marca distintiva que

Requerimento dirigido

empregaria por anos a fio para indicar a ligação de seu nome e estabelecimento

à Câmara Municipal,

com uma das principais instituições públicas do país. Pouco tempo depois, Ferrez já sem encontra engajado nos trabalhos da Comissão Geológica do Im-

em 12 mar. 1867 . (Documentação levantada por Paulo Berger.)

pério, empreendimento oficial que viabiliza, entre 18 7S e 18 7 7, o maior projeto de documentação fotográfica para fins científicos produzido no Brasil no século

XIX.

Contratado para a missão, ele realiza sua primeira expedição para

longe da capital do Império, registrando em centenas de chapas de colódio únüdo a costa brasileira e as formações geológicas da região nordeste, a arquitetura colonial de cidades como Recife e Salvador, os "temíveis" índios da tribo botocudo, nunca antes fotografados. No final da década de 1870, fixado novamente no Rio de Janeiro, Ferrez não deixaria de comentar que o constante e acurado estudo, e a prática dos diversos processos geralmente empregados e seguidos, as descobertas e informações que tem obtido, bem como a experiência adquirida nas viagens que, como membro da Comissão Geológica, dirigida pelo distinto e lastimado professor Hartt, fez o artista diretor deste estabelecimento, habilitam-no a produzir trabalhos que competem vantajosamente com os melhores do gênero. 19

Mais do que um reconhecimento público da pluralidade de influências

19

Ferrez, Marc.

Exposição de paisagens photograplucas produccos do arrisca brasileiro Marc Ferrez

com a qual havia "ilustrado" a sua condiçãp de artista - condição que ostenta e

phocographo da

declara, como outros fotógrafos de sua época - . a profissão de fé no valor da

Marinha Imperial e da

pesquisa e da experimentação também salientava, nas palavras do próprio

Commissão Geologica. Rio de Janeiro, 1881 ,

Ferrez, um dos traços mais marcantes, senão o maior deles, de toda a sua ativi-

p. 9 (fac-símile por

dade como fotógrafo.

Gilson Koatz).

18

O "esmero" do fotógrafo Os manuais de fotografia do século XIX eram, com raras exceções, de origem francesa e não se restringiam aos segredos da técnica ou às fórmulas dos diferentes processos fotográficos. Obras como a dos fotógrafos Mayer e Pierson, intitulada La photographie comn1e a.rt et comme industrie; histoire de sa découverte, ses progres, ses applications, son avenir (Paris, Librairie Hachetce, 1862), difundiam valores e consagravam padrões estéticos da mesma forma como introduziam novidades. Desde o final da década de 18 5 O, esse gênero de publicação já podia ser encontrado em algumas livrarias da Ouvidor e São José ou em bibliotecas públicas da Corte (como o Real Gabinete Português de Leitura), segundo nos informam os catálogos da época. Na França, manuais e anuários de fotografia costumavam ser adquiridos na famosa casa Gauthier-Villars (editora da Bibliotheque Photographíque) ou em qualquer outra livraria de Paris, cidade que ostentava a condição de ser o principal centro irradiador das inovações e debates que se davam de forma tão intensa no meio fotográfico. Viajar para Paris era, por isso n1esmo, uma garantia de atualização e apuro formal para aqueles que se

..

dedicavam à fotografia no século XIX. Viajar para a capital francesa por ocasião das exposições universais - e Paris sediou várias - era uma oportunidade ainda mais interessante para o contato com as últimas novidades e polêmicas, a aquisição de materiais e equipamentos, a troca de informações e experiências com fotógrafos e críticos especializados. Ferrez esteve presente em várias exposições nacionais e internacionais depois de participar da Exposição de Obras Públicas, paralela à IV Exposição Nacional, realizada no Rio de Janeiro, em fins de 18 7 S, quando apresentou o resultado de sua viagem como fotógrafo-assistente da Comissão Geológica. A expedição tinha sido criada com o objetivo de "formular as bases para o estudo geológico do Império", sendo formada por cientistas conceituados e experientes, sob o comando de Charles Frederick Hartt, professor da Universidade de Cornell (EUA) e secretário-geral da American Association for the Advancement of Science, com várias viagens pelo Brasil em seu currículo. A primeira delas deu-se em 1865, como assistente de Louis Agassiz, quando se supõe que tenha conhecido Marc Ferrez e outros fotógrafos da Casa Leuzinger. Os trabalhos da

19

Comissão Geológica, a exemplo de experiências similares no rneio científico internacional, sobretudo norte-americano, onde esse gênero de estudos caminhava a passos largos, foram precedidos por um planejamento detalhado e uma

20

Brasil. Ministério da

Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

A exposição d e obras

preocupação consciente com a documentação e a veiculação dos seus resulta-

publicas em 1875.

dos. As instruções do governo imperial determinavam que, ao término da ex-

Rio de Janeiro,

ploração de cada uma das regiões previstas e até que fossem apresentados os

Typ. Acadêmica, 187 6,

pp. 459

e ss.

relatórios finais, o professor Hartt remetesse ao ministério competente "um resumo dos resultados obtidos, fazendo-o acompanhar de cópias das fotografias, cartas etc. que interessem aos estudos feitos" .20 O relatório preparado pelo pro-

21

Brasil. Relatorio do

Ministerio da Agriculrura, Commercio

fessor Hartt para o governo imperial esclarecia que a Comissão tinha estudado

e Obras Publicas. Rio de

minuciosamente as farmações que compunham os recifes de Pernambuco,

Janeiro, Typ. Nacional,

"fotografando-as de modo que pudessem fornecer indicações exatas sobre sua

1876, p. 346.

aparência e estrutura" .2 1 Uma parte da equipe voltou ao Rio de Janeiro e1n fins de 18 7 5 para classificar o material e divulgar os resultados parciais da expedição. Na Exposição de Obras Públicas, Ferrez apresentou dois grandes álbuns com "fotografias de madréporas e outros corais" , além de "vistas dos recifes de Pernambuco", "baixo São Francisco" e "cachoeira de Paulo Afonso". O tema, já explorado pelo pintor austríaco E. F. Schute (1850) e pelo fotógrafo alemão Augusto Riedel ( 18 6 8) , despertava enorme interesse, sendo então

pouquíssimas as pessoas que haviam contemplado de perto a força daquelas águas, uma delas o imperador Pedro II. Por isso mesmo, segundo a imprensa da época, um dos pontos altos do evento foi, justamente, a conferência do professor Hartt para a "seleta e curiosa platéia", que incluía o imperador, ilustrada por "uma linda série de vistas" produzidas pelo auxiliar da Comissão. As chapas de vidro de Ferrez, projetadas sobre um pano branco, entusiasmaram os espectadores, tanto pela novidade e efeito mágico da projeção, como pelo cenário deslumbrante da cachoeira de Paulo Afonso. comparada na ocasião às cataratas do Niágara, então um dos maiores símbolos da grandiosidade da natureza. Ente material e simbólico, essa mesma natureza também se encarregara de propor-

20

E. F. Schute

Cachoeira de Paulo Afonso 1850

22

Cf. Ferrez, Gilberto.

Velhas focograflas pernambucanas, 185 1-1890. 2.• ed.

Rio de Janeiro, Campo Visual, 1988. Na Bibliotheque Nationale,

de Paris, há também um

cionar àqueles que chegavam a Paulo Afonso um ponto de observação prhi :egiado diante das corredeiras, convertidas assim em configuração sublime de ,-~ teatro natural que convidava à contemplação e ao encantamento. Sabe-se que Marc Ferrez organizou três ou quatro coleções com as ima.gens produzidas para a Comissão Geológica, uma delas (hoje no Museu Pa~ Getty, nos Estados Unidos) parcialmente reproduzida pelo historiador Gilber-o

conjunto de imagens

Ferrez.22 Aliando a condição de instrumento da pesquisa científica às exigên-

intitulado Souvenirs de

cias crescentes de visualização dos seus resultados, as imagens fotográficas de

royages dans la

Ferrez, amplamente utilizadas pela expedição, não bastaram para convencer 2.s

Province de Bahia, en juíllet 1876, par M arc

autoridades do Império a garantir os recursos necessários à continuidade e.o

Ferrez. Types indigenes,

projeto. A Comissão ainda prosseguiu suas atividades no ano seguinte, mas â u

uertencente à Collection

dezembro de 187 7 ela seria extinta "por medida de economia" e, em 1878.

Sirot.

desgostoso com a interrupção da pesquisa, o professor Hartt falecia no Rio de Janeiro vítima da febre amarela. A fotografia teve nessa expedição a função cie complemento das anotações de campo e coleções de rochas ou fósseis reun:das pelos cientistas, cabendo ao fotógrafo o registro da" estrutura superficial da paisagem", a exemplo do que fazia no meio científico norte-americai""10 Timothy O'Sullivan, fotógrafo que havia participado da expedição de Clarence

: 3.mothy O'Sullivan ~-.: :·e Rfrer Canyon,

-~ º ~·-: - :5ione Falls (EUA)

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King (entre 1867-18 69), responsável pela introdução maciça da fotografia n2.s explorações geológicas, e da expedição do engenheiro militar George M. Wheeler, desbravando o Oeste do país (Califórnia, Arizona, 1 8 7 1-18 74) . São dessa époc2. as imagens em que O'Sullivan registrou as quedas d'águ,a de Shoshone (Snake River Can yon, Idaho), posteriormente litograf2.-

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das e reproduzidas em publicações científicas. Comparadas freqüentemente às cataratas do ~ i2.gara, as corredeiras de Shoshone de O'SulliYan, como as vistas da cachoeira de Paulo Afonso exibidas por Ferrez, eram reiterações de que 2. natureza, com sua grandiosidade impenetrá,-ei convertida em objeto da exploração científic2. e da documentação fotográfica, além da fruição de prazeres estéticos também podia ser um convite à utilização econômica.

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O prestígio desfrutado pela ciência (em especial a geologia) e pelos que concretizavam os seus progressos, assim como as experiências e conhecimentos que Ferrez adquiriu com essa expedição, ajudaram-no a alavancar a reputação de fotógrafo "especializado e1n vistas do Brasil". Não é por outro motivo que ele logo incorpora à propaganda de seu estabelecimento o título de "fotógrafo da Marinha Imperial e da Comissão Geológica". Na Exposição Universal de Filadélfia, em 1876, onde as fotografias de O'Sullivan tambéin são apresentadas, as imagens

da Comissão Geológica do Império ganham a admiração dos presentes, e os panoran1as do Rio de Janeiro exibidos por Ferrez conferem ao fotógrafo a sua primeira medalha de ouro internacional. Logo viriam outras exposições e premiações. Na Academia Imperial, ele participa pela primeira vez, em 1879, da Exposição Nacional de Belas-Artes, na recém-criada "seção de fotografia", recebendo medalha de ouro por "provas em carvão" (papéis com gelatina impregnada pelo pó de carvão), um processo considerado inalterável e de dificil execução. Em 1884, ainda nos salões da Academia, apresenta paisagens, marinhas e retratos obtidos por um outro processo recém-introduzido no país (os negativos de gelatina e brometo de prata), sendo distinguido pelo imperador com o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa (sobre outras exposições e premiações, ver cronologia). Os prêmios obtidos nas exposições eram anunciados como um sinal de distinção, alicerçando a reputação dó fotógrafo canto quanto as evidências de sua atúalização técnica e artística, o prestígio conferido pela preferência de determinada clientela e as representações comerciais associadas ao seu estabele-

22

Marc Ferrez

Càchoeira de Paulo Afonso

Bahia 187 S

[ver p. 84]

Pernambuco Vista do Recife tirada do Farol da Barra 18 7 5 [ver p. 85]

cimento. Com Marc Ferrez não seria diferente. Retornando ao Rio de Janei:-o em 1878, depois de mais uma viagem à Paris, ele manda publicar um a,-iso no jornal do Commercio em que diz ter "a honra de prevenir o respeitável públi-

co e, particularmente, seus fregueses que, tendo voltado da Europa, onde estudou os melhores e 1nais novos sistemas, acha-se de novo pronto a satisfaze!" 23

Jornal do

Commercio, 16 dez.

que1n desejar encarregá-lo de qualquer encomenda" .23 No almanaque Laemmert, são anunciadas nessa mesma época as "vistas de chácaras, casas, faze11-

1878.

das, edifícios, inaugurações, grupos e reproduções de plantas"24 que podiam 24

Almanak administra-

tivo, commercial e

interessar a tais fregueses, aos quais ele também esclareceria, pouco tempo depois, que

industrial da côrte e provincia do Rio de

em consequência de estar este estabelecimento fotográfico perfeitamente im:t2.-

Janeiro para o anno de 1878. Rio de Janeiro,

lado, o seu proprietário encarrega-se de tirar vistas tanto na Corte, como em

Typographia Universal

qualquer lugar para onde for chamado. O preço da encomenda varia segundo

Laemmert, 18 77, 2 v.

o tamanho das vistas, a distância d' esta Corte e as dificuldades naturais a Yen -

1s Ferrez, Marc.

cerem-se.2s

Op. cic., p. 1O.

A assin1ilação das novidades introduzidas no ca1npo da fotografia e a diversificação dos produtos oferecidos pelo estabelecimento fotográfico (for1natos, processos e seus complementos) eram fundamentais não só para o reconhecimento da capacidade técnica e profissional de Ferrez, mas para

2.

ampliação de sua clientela em um mercado que se tornava cada vez mais competitivo. Legendas, passe-partouts e álbuns ·complementavam as imagens fotográficas com uma ornamentação bem característica: letras esculpidas, vinhetas douradas, guirlandas con1 motivos tropicais, encadernações em couro, guardas em tecido ou em papel marmoreado, fechos metálicos cuidadosamente elaborados. A fotografia da época tem a marca desses complementos, pois além de atender ao gosto da clientela e interferir na apreciação estética das imagens (nas residências, nas exposições, nas sociedades científicas), eles também conferi2.i-n valorações artísticas e determinavam hierarquias sociais definidoras da identidade de um estabelecimento fotográfico. Ferrez tinha um cuidado excepcional com a apresentação de seu trabalho, esmero que englobava da estampa de sua assinatura em praticamente todas as ilnagens às encadernações nos melhores fabricantes do país (como a Casa

\

Leuzinger) ou do exterior (como a parisiense D. F. Comptoir Général de Photographie), passando pela escolha de passe-partouts ornamentados e a edição de legendas em português, francês, inglês ou italiano (sobretudo para aquele tipo de fotografia destinada à clientela estrangeira ou às exposições internacionais). Como suportes materiais da imagem, os passe-partouts e os álbuns aqui reproduzidos exprimem a sensibilidade estética de uma época, ao mesmo tempo que traduzem as estratégias de apresentação, edição e comercialização do trabalho de Ferrez. Como sistemas simbólicos de representação, revelam escolhas não raro intermediadas pelo editor ou pelo negociante de vistas, mas antes de tudo compartilhadas pelo fotógrafo e sua clientela. As encomendas - um expediente fundamental na realização da fotogra-

fia profissional26

-

partiam de un1a clientela formada, basicamente, por 111e1n-

bros da aristocracia, negociantes, cientistas, engenheiros, funcionários públicos e estrangeiros de passagem pelo Rio de Janeiro, clientes que muitas vezes tam-

J.6

A subscrição ou a

assinatura de álbuns eram recursos usuais na época para a viabilização

bém representavam instituições públicas ou privadas em atividade no país.

dos empreendimentos

Essas encomendas orientavam a execução dos serviços, definiam a edição das

de vários fotógrafos.

imagens, determinavam o destino dos trabalhos. Observando o acervo deixado

Pela documentação pesquisada, vê-se que

por Ferrez, constata-se que as fotografias de obras públicas (construção de fer-

Marc Ferrez

rovias, abastecimentos d'água, expedições científicas, demarcações de terrenos,

concentrou-se na

inaugurações de edifícios, entre outras) constituíram um dos principais, senão

execução de serviços previamente contratados

o principal motivo dessas encomendas e, portanto, das viagens que ele reali-

e na comercialização de

zou, de norte a sul do Brasil, vencendo as "dificuldades naturais" do país. Boa

vistas e panoramas do

parte das fotografias deste livro foi reproduzida de álbuns que nos aproximam

acervo de clichês de sua

dos encargos e transações que cercavam essas encomendas, como aquelas des-

casa fotográfica.

tinadas a documentar os chamados "melhoramentos da nação" em belíssimos álbuns ( encadernados pela Casa Leuzinger) com as obras de construção da Es-

27

trada de Ferro do Paraná ( 1884), da Estrada de Ferro Minas and Rio - Brazil

citadas ao final deste

(1884) e as Obras do novo abastecimento de água [pela] empreza de A. Gabrielli (1889), todos eles oferecidos ao imperador Pedro

u. 27

No anúncio do almanaque Laemmert de 1878, Ferrez já fazia propaganda de especialidades ("reprodução de plantas" . "inaugurações") diretamente

Além das instituições

livro, sabe-se que a coleção brasiliana do Grupo Bosch, na Alemanha, também possui sete álbuns de Marc Ferrez, dos quais

ligadas aos engenheiros e arquitetos que personificavam as ações capazes de

cinco referem-se a essas

materializar esses melhoramentos. Mas é por meio da documentação fotográfica

obras.

24

/

realizada em incursões diretas e, não raro, bastante arriscadas pelas principais obras de engenharia do país que ele revelaria, nas décadas seguintes, uma percepção aguda para as aparências cromáticas e as disposições lineares ou pontua.is sugeridas por essas novas construções. Alternando visões de conjunto e visões parciais de cidades adensadas pela crescente urbanização, assim como dos terrenos rasgados Brasil afora pelas inúmeras ferrovias, as fotografias de obras públicas de Ferrez retratam configurações topográficas e intervenções em curso no Rio de Janeiro ou no interior do país, focalizam o traçado urbano e as linhas arquitetônicas das cidades, exaltam a perspectiva e as formas geométricas das novas edificações públicas e privadas. São, por isso mesmo, composições que contribuem para o ordenamento do território e o reconhecimento social do ofício de engenheiros e arquitetos, ao mesmo tempo que valorizam o efeito cenográfico de paisagens transformadas pela ação do homem

[ver pp. 88 a 101].

As encomendas e doações dos álbuns fotográficos criados por Ferrez indicam-nos também que essas Capa do álbum Obras do novo abastecimento de agua. Empreza de A. Gabrielli. Rio de Janeiro 1879- 1882

Álbum fotográfico Encadernação de G. Leuzinger & Filhos

práticas não se limitavam aos relacionan1entos privados, estendendo-se à administração dos negócios públicos, às relações diplomáticas e ao intercân1bio científico ou profissional (particularmente entre engenheiros). Ao imperador Pedro II, o engenheiro Francisco Pereira Passos oferece, entre 1884 e 1885, fotografias e um álbum da ferrovia Paranaguá-Curitiba (imagens que também seriam doadas, em 18 8 6, à Société de Géographie de Paris por um outro engenheiro envolvido com a construção da estrada)

Marc Ferrez Reservatório D. Pedro II. Morro do Pedregulho Álbum Obras do novo abastecimento de agua. Empreza de A. Gabrielli. Rio de Janeiro 18 8 2 [ver p. I 01]

[ver pp. 95 e 96].

Ao diplomaG.

argentino Estanislao S. Zeballos, o colega Benito Carrasco oferece, em 1890, três belos álbuns de diversas localidades do Brasil como "recordação pelo acordo na questão das Missões"

[ver p. 9].

Ao amigo francês, o engenheiro Augusto Carlos

da Silva Telles dedica, em 1891, um conjunto de vistas do Rio de Janeiro, legendadas em português e em francês

[ver pp. 61, 74 e 79].

Como em outros trabaLh.os,

a composição e ordenação das imagens que integram esse último álbum sugerem uma leitura do país partilhada pelo fotógrafo e sua clientela: o Rio de Janeiro como porta de entrada do Brasil (Entrada da Barra; Docas; Arsen2-0 ,

a referência ao regime político (Antigo Palácio Imperial), o tecido urbano (Rio de Janeiro a Vol d'Oiseau), a ciência cultivada (Aléia do Jardin1 Botânico), o pro-

gresso das ferrovias ( Caminho de Ferro do Corcovado), a natureza exuberante ( Tijuca), os sítios pitorescos (Paquetá; Petrópolis), a riqueza semeada (Plantação de Cana-de-Açúcar). São esses os principais temas da cidade e do país figurados

por Ferrez em imagens que se multiplicam nos álbuns do tipo Souvenirs de Rio, compostos pelo próprio fotógrafo, pelos clientes ou pelos negociantes de

vistas. Imagens que representam, em um processo de abstração metonímica, uma visão da sociedade brasileira em sua totalidade, da natureza ao estágio de "civilização" por ela alcançado. E não é por outra razão, justamente, que vários álbuns de Ferrez encadernados com essas mesmas vistas e panoramas receberam o sugestivo título de Brazil.

Os "processos especiais" e as

1 '

Capa do álbum Estrada de Ferro do Paraná [ferrovia Paranaguá-Curitiba] Paraná 1884 Encadernação de G. Leuzinger & Filhos

descobertas recentes"

Folheando, dezenas de anos depois, algumas publicações que pertenceram à biblioteca de Marc Ferrez, ocorreu-me um comentário do escritor Alberto Manguei, muito apropriado para a ocasião: "implícita na posse de um livro está a história das leituras anteriores do livro - ou seja, cada novo leitor é afetado pelo que imagina que o livro foi em mãos anteriores".28 Entre elas, figuram

2.s Manguel, Alberto.

anuários e manuais de fotografia, boletins da Société Française de Photographie

Uma história da. leirura..

e da Association Belge de Photographie, dedicatórias e trechos assinalados, explicações e fórmulas de processos fotográficos, regulamentos de exposições, conferências públicas, resenhas e ensaios diversos. Não é difícil imaginar a utilidade dessas leituras para Ferrez em seu trabalho de pesquisa e experimentação. Entre os manuais, uma das publicações mais abrangentes e conhecidas da segunda metade do século XIX: a sexta edição de Traité général de pliotograpllie (Paris, Georges Masson, 1873), de Désiré Van Monckhoven, obra destinada a orientar os praticantes da fotografia no emprego de materiais e manuseio dos equipamentos, na composição de fórmulas e escolha dos efeitos especiais. Observando, no entanto, as anotações do arquivo pessoal do fotógrafo, constatei que, a esses conhecimentos já sistematizados pelas publicações técnicas,

16

São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 29.

Ferrez incorporou o resultado de suas próprias experiências, em pesqui9_s empreendidas no laboratório do estabelecimento ou no contato direto con_