Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia
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ALYSSON LEANDRO MASCARO Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

UTOPIA E DIREITO ERNST BLOCH E A ONTOLOGIA JURí DICA DA UTOPIA

Editora Quartier Latin do Brasil São Paulo, verão de 2008 [email protected]. br www.editoraquartierlatin.com. br

EDITORAQUARXIER LATIN DO BRASIL RM San» Amaro, 316 - Gela Vista - São Paulo

Coordenação editorial: Vinícius Vieira

Capa: Miro Issamu Sawada Diagramação: Paula Passarelli Revisão gramatical: Silvana Moreli Vicente

MASCARO, Alysson Leandro

Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia

Jurídica da Utopia - São Paulo : Quartier Latin, 2008.

-

ISBN: 85 7674-298-5

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1 Teoria geral do Direito. 2. Utopia e Direito

I. Título

índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Utopia e Direito 2. Brasil: Direito

Contato: editora@quart í erlatin.art.br www.editoraquartierlatin.com.br

SUMáRIO Nota Introdu ção Utopia concreta, justi ça e dignidade Sobre a obra

Capítulo 1 — Modernidade, tempo e revolu ção A geometria do tempo e da história Das esperanças da modernidade A transformaçã o é moral Da secularização à revoluçã o

9 11

12 16

17 18 24 27 30

Capítulo 2 - Marx, transformação e utopia Uma divisa fundamental: a transformaçã o Que marxismo para qual utopia ? A teoria da revolu ção de Marx A dialé tica do progresso A utopia em Marx Engels e o projeto utópico do marxismo

51

Capítulo 3 - Psican álise e utopia Freud: desejo e repressão Para alé m do freudismo Wilhelm Reich Erich Fromm

55 56 61 62 67

Capítulo 4 - A utopia em Marcuse

71 72 78 79 83

Teoria crí tica: Adorno e Horkheimer Da Escola de Frankfurt a Marcuse Psican álise e libertação A Utopia em Marcuse

35 36 38 42 44 48

Pu

Capítulo 5 — Bloch e Lukács: o marxismo heterodoxo A intelectualidade que se torna marxista Messianismo, escatologia e romantismo Uma divergê ncia nas concord â ncias: o expressionismo

93 94 96 99 O caminho ao marxismo nas primeiras obras: sobre a totalidade 103

Capítulo 6 - 0 Ser-Ainda- N ão A utopia concreta As características da utopia concreta: o sonho diurno A ontologia do ser-ainda- não: a natureza A ontologia do ser- ainda- não: a possibilidade A ontologia do ser- ainda-não: S ainda não é P

111 113 115 119 125 128

Capítulo 7 - Utopia jurídica: história e dignidade humana Direito Natural e Dignidade Humana A utopia que é jurídica A utopia jurídica construída na história: antigos e medievais A utopia jurídica construída na história: os modernos A utopia jur ídica construída na história: os contemporâ neos

131 133 134



Capítulo 8 A ontologia jurídica da utopia A utopia das três cores revolucioná rias O direito em Marx Crítica da teoria geral do direito: direito subjetivo e objetivo Crítica da teoria geral do direito: direito e moral Crítica da teoria geral do direito: direito penal Crítica da teoria geral do direito: direito e Estado



Capítulo 9 Energias políticas da utopia A n ão-contemporaneidade A escatologia da liberta çã o

137 143

148 155 155 159 164 168 170 171

177 178 186

Conclusão Bloch entre os marxistas Bloch entre os juristas Bloch entre os de hoje

Bibliografia

193 193

195 196 199

INTRODUçãO Ao tempo em que trevas se anunciavam na Europa, as armas dos liberais e dos socialistas foram ambas soterradas em favor de mistifica¬ dos argumentos de raça e da força de exércitos imperialistas. Tempos de obscuridade e de guerra, como, de outro modo, parecem ser os atuais novamente. Naquela altura, boa parte da política, da filosofia e das religiões se lançou ou ao silêncio ou ao pacto de legitimação dos ítico, restou a retaguarda. poderes existentes. Ao pensamento cr

No direito, o resultado de tal política de trevas foi a destruição de qualquer respeito institucional aos direitos humanos, à dignidade existen cial, em troca dos argumentos da força do Estado ou de distinções como a de amigo-inimigo. Em oposição a esse quadro, as velhas forças humanistas - a maior parte delas vinculada às mesmas religiões que, em sua outra faceta, silenciavam quanto ao Reich - proclamaram, sem maior crítica, a volta do direito natural, eterno, metafísico e quase que revelado. ¬

Nesse cen á rio de pesadas desesperanças e de frágeis oposições apoiadas em direitos divinos, levanta-se em contraste uma filosofia dos sonhos diurnos, da clareza, da esperan ça racional e concreta num novo amanh ã de Ernst Bloch. O direito natural se transforma, na sua insó¬ lita reflexão jusfilosófica, ao mesmo tempo humanista e marxista, em uma espécie de bandeira crítica de uma aspiração à dignidade huma¬ na. Filósofo da totalidade, apoiado numa leitura hegeliana de Marx e ancorado nas longas experiências comuns de reflexão intelectual com Lukács, Bloch apostará que a dignidade humana só se concretizará quando for total e plena: o homem totalmente livre das amarras mer cantis, da exploração do trabalho, o homem socialista, pois, será o ho¬ mem digno. Os marcos de sua utopia jurídica, assim, ampliar-se-ão e chegarão a limites muito mais vastos que as tradicionais expectativas dos juristas sobre um mundo, de leis, mais justo. ¬

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A estrutura filosófica da utopia concreta de Bloch revela-se um sistema bastante insólito, porque se abre como urna espiral, crescente, que amarra diversas perspectivas, experiencias, lutas histó ricas e dese jos pequenos e muito grandes em torno de uma ontologia do ser-ainda-não. Buscando fundar uma pioneira versão marxista de humanismo calcada na natureza e na práxis como aberturas ao futuro, Bloch aponta a filosofia e a existência como a possibilidade. ¬

O resultado do pensamento blochiano é uma petição de luz em trevas. De maneira insólita a um marxista, encontra energias liberadoras e revolucioná rias até mesmo na religião, caso esta seja tomada a partir de um prisma bastante progressista. Paradoxalmente, nos tempos atu¬ ais, em que o sentido reacioná rio da religião volta a ser, hipocritamen ¬ te, um fundamento aparente de legitima ção de guerras e de reputa das alianças dos governantes com Deus, o pensamento de Bloch é um alento crítico, postulando urna nova moral racional, dotada de grande sensibilidade para concretizar na terra uma comunidade fraternal. ¬

Para o direito, que chegando ao auge da mecánica capitalista sacralizou a condição dos juristas como técnicos sem objetivos últimos, o reclame de Bloch a uma radicalidade da sociedade justa e da digni dade humana, que se alce para além do Estado e da dominação institucional, é um contraste que pode forçar a existência jurídica a dar-se um sentido político-histó rico transformador. Para Bloch, é chegado o tempo de concretizar o justo. ¬

UTOPIA CONCRETA, JUSTIçA E

DIGNIDADE

Os sonhos da utopia são uma velha tradição. Para n ão remontar ao passado grego, nas idéias de Platão , ou então nos sonhos medievais de Joaquim de Fiori do Terceiro Reino onde Cristo fosse Senhor, por exemplo , basta dizer que o in ício da modernidade viu florescer o so-

UTOPIA E DIREITO

nho de sociedades e cidades imaginadas exemplarmente, sendo delas mais famosa a Utopia de Thomas Morus, cujo termo, n ão-lugar, desde então veio a identificar uma sé rie de projeções de uma existê ncia di versa da presente. ¬

A histó ria dessas idealizações é bastante conhecida e, no geral, tomada como literatura ficcional do amanhã melhor. Uma segunda grande etapa de florescimento de utopias se deu com o movimento socialista do século XIX, buscando criar fá bricas, cidades e hábitos sociais diversos, carregados de uma inspiração de solidariedade e fraternidade. Saint-Simon , Fourier, Owen e outros dedicaram-se à transformação de grupos sociais, sendo denominados posteriormente, por Marx e Engels, como socialistas ut ó picos. Neste momento, a uto pia passava a adquirir a carga pejorativa de ilusão, de quimera. O nãolugar n ão seria apenas o lugar ao qual não se havia chegado: tratava-se de um lugar para todo sempre inexistente. ¬

O descrédito em relação à utopia, nos séculos XIX e XX, torna-se então bastante acentuado. As perversões totalitá rias, os grandes plane jamentos económicos, políticos e sociais, as máquinas de guerra que buscavam novas humanidades, tudo isso foi responsável por conside rar a utopia até mesmo a pior das projeções humanas, como o atesta, por exemplo, um Aldous Huxley. A filosofia, de modo geral, abando nava a utopia a uma espécie de metafísica das quimeras. '

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quadro que se levantou, em sentido contrário , o pensa¬ mento de Ernst Bloch. Judeu alemão, nascido pobre, exilado ao tem ¬ po de Hitler, perseguido na Alemanha Oriental pelos staiinistas, viveu 92 anos de atividade intelectual e política com olhos voltados ao futu¬ ro. Quando faleceu, no final da década de 1970, havia conseguido restituir para até então combalida idéia de utopia uma dignidade filo sófica ímpar: de braços dados com o humanismo, o messianismo, a escatologia, de um lado, Bloch abraçava-se ao marxismo, de outro, na É

neste

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AI.YSSON LEANDRO MASCARO

tarefa de empreender o lançamento de uma nova utopia, aquela que denominou de utopia concreta.

O desenvolvimento de sua nova postulação ut ópica vai distante dos idealismos filosóficos que acompanhavam até ent ão o tema. A uto pia concreta é uma pr á xis voltada ao amanh ã. Descobre as potencialidades transformadoras e revolucion árias e insiste no fato de que o novo amanhã só será diverso do presente por conta da carência e da fome do hoje. Como o presente é incompleto, urge um novo amanhã. Para isso, Bloch há de se valer de uma sé rie de ferramentas filosóficas distintas das tradicionais: os sonhos diurnos, em contraposição aos sonhos noturnos de Freud; a consciência antecipadora, que nada lembra as velhas metafísicas dedutivas da sociedade ideal; a nãocontemporaneidade, que dá conta de uma pluralidade temporal que permite a diversidade das ações e motivações revolucioná rias. ¬

Como marxista desde sua juventude, Bloch estava convencido de a que utopia dos filósofos e dos velhos socialistas estava fadada a ser apenas um discurso de legitimação do hoje pelo amanhã. Por isso le vantou n ão um sonho idealista, e sim a utopia concreta. Como, de outro lado, a ci ê ncia e a filosofia estavam reféns da realidade tal qual ela se apresentava no hoje, a utopia concreta é um passo al ém do j á dado. Para Bloch, o hoje é sempre o potencial do amanhã. ¬

Seu pensamento é, assim , na história da filosofia, aquele que mais longe chegou no sentido de afirmar que a filosofia é a possibilidade. Como os tempos presentes reiteram a impossibilidade, pode-se dizer que até hoje, em todo o mundo e inclusive no Brasil, o pensamento de Bloch é um novo e está ainda para ser desvendado. 1

1

No Brasil, as noticias filosóficas sobre Ernst Bloch vêm da década de 1960 ao mesmo tempo da introdu çã o dos pensamentos de Luk ács e da Escola de Frankfurt - por meio dos pioneiros estudos sistemáticos do francês Pierre Furter. Nas décadas seguintes, destacam-se os estudos de Lu ía Bicca, do Rio de Janeiro, tratando da ontologia e da pol ítica de Bloch, e, no sul, de

UTOPIA E DIREITO

A absorção de Bloch pelo pensamento jur ídico tem se revelado bastante esparsa. Enquanto na filosofia geral Bloch é respeitado tanto por um viés radical quanto por um viés reformista da esquerda - o humanismo o reclama, e os radicais até se fazem passar por seus discípu¬ los , a filosofia do direito somente sabe de Bloch por meio de alguns poucos e rápidos esquemas a respeito da esperan ça e da utopia concreta .



Tal leitura por alto é responsável pelo grande desconhecimento acerca do pensamento jurídico blochiano. Os motes principais da sua filosofia do direito, direito natural e dignidade humana, quando lidos rapidamente, permitem até identificá-los com algum passadismo jusfilosófico. Trata-se justamente do contrá rio . Bloch rechaça o m éto¬ do jusnaturalista, e sua construção jur ídica é, na verdade, uma dialé tica da dignidade. Daí que poucos tenham se atentado, até o presente, para sua incursão profunda nos limites do discurso jur ídico tradicio nal e para sua postulação radical de uma sociedade sem domínio. ¬

Bloch está na imbricação explosiva da filosofia do direito e da filo¬ sofia política. Sua filosofia interfere no centro nevrálgico da administra ção do já dado e existente. A concep ção política blochiana, por ser transformadora e revolucioná ria, enfrenta a reação do conservadorismo, que passar á a enxergar, també m na sua filosofia do direito, uma mera escatologia, cujo an ú ncio não se fará nunca cumprir. ¬

Suzana Albornoz, dedicando-se à ética e à pedagogia blochianas. C. E. Jord ã o Machado, na Unesp, voltou -se à estética em Bloch. Michael Lõwy, sempre presente no debate filosófico brasileiro, dedica reflexões a Bloch, dentre outras á reas, também no campo da filosofia da religi ão. Deve-se ressaltar, ainda, que talvez o mais Importante estudioso de Bloch em todo o mundo na atualidade, o franco-alem ã o Arno Munster, esteve presente em algumas ocasiões no Brasil, lecionando em universidades brasileiras e publicando, em portugu ês, duas relevan ¬ tes obras sobre o pensamento blochiano. De todo o conjunto dos livros de Ernst Bloch, somente no começo da d écada de 1970 se deu a publicaçã o da primeira tradu ção, em l íngua portuguesa, de sua obra Thomas Miinzer, Teólogo da Revolução, pela Editora Tempo Brasilei ¬ ro, e, após um interregno de muitos anos, em 2005 começou a publicação da importante obra O Princípio Esperança, em 3 volumes, pela Editora Contraponto. Direito Natural e Dignidade Humana, a principal obra de filosofia do direito de Ernst Bloch, ser á traduzida e publicada pela editora Quartier Latin do Brasil.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

SOBRE A OBRA O ambiente intelectual de Ernst Bloch é claramente o do marxis mo, mas sua filosofía - que é bastante aberta e com uma envergadura de an á lise ímpar - dialoga constantemente com uma tradi ção filosófi¬ ca, que vai desde o aristotelismo ao iluminismo, e com toda urna vasta corrente do pensamento contempor âneo, que vai da Escola de Frank furt até a psican álise. A presente obra, por conta disso, pode ser dividi da em duas grandes unidades. Uma primeira parte, compreendendo os capí tulos um a quatro, pode ser tomada como uma espécie de cami¬ nho ao pensamento blochiano, tratando da reflexão sobre o tema da utopia por autores que serão referenciais a Bloch. Posteriormente, dos capítulos cinco a nove, trata-se de analisar, na filosofia do próprio Bloch, seus pressupostos gerais de pensamento e sua filosofia jur ídica, des¬ vendando então sua específica ontologia jurídica da utopia. ¬

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Uma filosofia jurídica que trate da utopia se revela uma reflexão incómoda, mas necessária, para o direito atual. Embora os tempos pre¬ sentes se anunciem categoricamente como impossibilidade, há multi dões de injustiçados, explorados, angustiados, indignados e mesmo li¬ vres esperançosos cujas energias acumuladas reclamam a possibilidade. A dialética do amanhã novo saído das lutas de hoje ainda é um projeto de muitos. Por estes, pensamentos como os de Bloch fazem sentido. ¬

CAPíTULO 1 MODERNIDADE, TEMPO E REVOLUçãO

Quando, na Segunda Epístola de Pedro, anuncia o apóstolo “Mas há uma coisa, caríssimos, de que não vos deveis esquecer: um dia dian 2 te do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”, já tinha curso um trajeto de luta com o tempo e a história que seria causa dos mais candentes desesperos e de grandes, ilusorios e concretos sonhos e utopias. A luta pelo tempo entrava em causa para a humanidade. Que um dia possa concretizar o que demoraria mil anos, ou que haja um milenio de novos dias. ¬

De fato, a historia e o tempo revelam-se como urna especie de luta aparentemente escondida dos impulsos humanos, pois determi nam vontades, esperanças e sentidos que escapam, muitas vezes, dos acontecimentos imediatos e das contradições objetivas e plausíveis. Por exemplo, a escatologia judaico-cristã, ao anunciar a salvação, faz por dar um sentido à história que um observador externo é incapaz de dimensionar: o hoje é pelo amanhã. ¬

Mas, na multiplicidade de sentidos do tempo, não se pode dizer simplesmente que haja um tempo de salvação e um tempo dito “natu ral”, contraposto a este. Há uma pluralidade de perspectivas que re clama a história para sentidos muito distintos. O Iluminismo, que rechaça veementemente a escatologia cristã, põe em seu lugar a salva ção do homem por si mesmo. O marxismo, herdeiro e crítico contun¬

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2

II Pedro (3, 8).

ALYSSON LEANDRO MASCARO

dente da modernidade, ainda assim anuncia novos tempos, os da hu¬ manidade efetivamente socialista. A modernidade, de tal sorte, se apre¬ sentar á, entre tantas facetas, também como uma luta pelo tempo, pela sua interpretação e suas esperan ças.

A GEOMETRIA DO TEMPO E

DA HISTÓ RIA

O discurso da moral ifuminista pressupõe um sentido claro do tempo, das trevas para a luz. Ironicamente, també m o arcabou ço cris tã o pressupõe um sentido do tempo, que també m sai da treva para a luz , ainda que a luz crist ã possa ser a treva iluminista. ¬

Pode-se perceber um sentido relativamente próximo do tempo na tradição judaico-cristã e na tradi çã o iluminista. A salvação judaica, a reden çã o pelo Messias, é a linha que estabelece o eixo de compreen ¬ são da histó ria. Para os cristãos, simbolicamente, o “ antes de Cristo” e o “ depois de Cristo” , que dividem a contagem do tempo ocidental, são o exemplo de uma forma de visão filosó fico- teológica da temporalidade muito específica: o tempo como uma reta. Trata-se de uma linha que tem passado e terá futuro. E, mais que isso , o futuro orienta o presente e explica o passado. A linearidade do tempo cristão e do tempo iluminista opõe-se à circularidade do tempo antigo, o tempo do retorno ou o tempo pa gão, no contraste dos cristãos. A noção grega do tempo circular, esfé¬ rico, do “ começo e fim como um ponto comum na periferia do cí rcu lo” , conforme o verso de Heráclito, é a espinha dorsal a ser quebrada pelo pensamento cristão .3 Se o tempo antigo era baseado na constatação ¬

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V G. íVA

3

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" Neste aspecto, o cristianismo

incontestavelmente prova ser a religi ão do ' homem ca ído': e isso até o ponto em que o homem moderno se vê irremediavelmente identificado com a histó ria e o progresso, e para o qual a histó ria e o progresso representam uma queda, ambos implicando o abandono final do para íso dos arqu étipos e da repetição". ELIAOE, Mircea. Mito do Eterno Retorno. S ão Paulo, Mercuryo, 1992, p. 137.

UTOPIA E DIREITO

da geração e da corrupção da natureza, portanto numa perspectiva calcada à physis mesma das coisas, o tempo cristão é um tempo basea¬ do numa construção interna, subjetiva, da fé no futuro como salva ção. O tempo cristão , assim, é o tempo trabalhado , internalizado, em face do tempo antigo, objetivado, que se baseia no nascimento e no perecimento constantes. Santo Agostinho, na Cidade de Deus e em um capítulo todo das suas Confissões, outra coisa n ão faz do que cha¬ ¬

mar o crist ão ao tempo novo. O seu [de Agostinho] argumento final contra o conceito clássi co de tempo é, por conseguinte, de ordem moral: a doutrina pagã encontra-se perdida, pois a esperança e a fé estão basica¬ mente relacionadas com o futuro e n ão pode existir um futuro real se tempos passados e futuros forem fases iguais num retor no cíclico sem princípio nem fim . Com base numa revolução duradoura de ciclos definidos, só poderíamos esperar uma rota¬ ção cega de infelicidade e felicidade, isto é, de ilusó ria beatitude e verdadeira misé ria, mas nenhuma bem-aventurança eterna apenas uma repetição infinita do mesmo, sem nada de novo, redentor e derradeiro. A fé cristã promete efetivamente a salva ção e a bem-aventurança àqueles que amam Deus, enquanto a doutrina pagã de ciclos fúteis paralisa a esperança e o próprio amor. Se tudo viesse a acontecer sempre de novo com intervalos fixos, de nada serviria a esperança crist ã numa nova vida.4 ¬

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A redenção e a salvação, fenômenos que foram intrínsecos à tra di ção crist ã medieval, por exemplo , revelam assim uma estrutura escatológica de progresso do tempo. A vinda do Cristo representa o final de uma etapa da histó ria e a anunciação de novos tempos. Da mesma forma, o futuro também já anunciado dá razão de ser e estru ¬ tura o presente crist ã o. Para a escatologia crist ã, o futuro anunciado é o tempo do eterno, do regozijo perene em Deus. Assim Agostinho: ¬

LôWITH , Kart O sentido da história . Lisboa, Edi ções 70, 1991, p . 164.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

Precedeis, porém , todo o passado , alteando-Vos sobre ele com a Vossa eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro por¬ que est á ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo e os Vossos anos náo morrem. Os Vossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos vão e vê m, para que todos venham . Todos os Vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que che¬ gam expulsam os que vão, porque estes não passam . Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos n ão existi¬ rem. Os Vossos anos são como um só dia, e o Vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se quotidiano , mas é um per pétuo hoje, porque este Vosso hoje não se afasta do amanhã, nem sucede ao ontem. O vosso hoje é a eternidade. 5 ¬

O Iluminismo, de uma certa maneira, não se insurge contra essa linearidade do tempo orientada pelo amanhã, ainda que n ão voltada ao porvir eterno como nos crist ã os. Mas també m o movimento das luzes aposta no presente melhor que o passado e no futuro melhor que o presente. A linearidade do tempo faz pressupor ainda, no pensa¬ mento iluminista, a superaçã o do problema da religi ão, como forma de cumprir o progresso natural da humanidade. Mas não é a negação do sentido do tempo que está em causa no Iluminismo: ele mantém a estrutura judaico -cristã , apenas elimina seu conte údo e seus mé todos . A estrutura linear do tempo, assim, apresenta ao menos duas gran des variantes de uma mesma visão. Para a variante cristã, a esperan ça se dará pela promessa, pelo an úncio, pela revelação. O futuro desnudo pelo an ú ncio revela o sentido do presente. J á a variante iluminista olha o passado como constatação do progresso do hoje e induz a esperança no futuro como decorrência. A esperança iluminista, assim, é indutiva, ao passo que a judaico-cristã é dedutiva, decorrente das promessas. Desta¬

5

AGOSTINHO, Sto. Confissões. Petró polis, Vozes, 2001, p. 277.

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ca-se disso, ¡mediatamente, o caráter voluntarista da esperan ça moder¬ na, ao contrário do caráter contemplativo da esperança judaico-cristã. O voluntarismo da modernidade, que se revela crucial para as filosofias política e jurídica do Iluminismo, também é o elemento estruturante do arcabouço psicológico do tempo moderno. O amanhã virá pela vonta¬ de, porque por esse impulso o ontem se fez hoje. A cada dia a razão penetra na França, tanto nas lojas dos co¬ merciantes como nas mansões dos senhores. Cumpre, pois, cultivar os frutos dessa razão, tanto mais por ser impossível impedi-los de nascer.6

Não se põe ainda claramente, no quadro do tempo iluminista, a decadência dentro da civilização, como esta também n ão se punha no pensamento teológico a partir do momento da vida expulsa do para í so. Todos os passos do tempo cristão, depois do pecado original, são tempos felizes porque só fazem por se aproximar do tempo da reden ção. Não há possibilidade de regressão no tempo. O afastamento do tempo e a sua decadência não são lógicos para a perspectiva cristã. ¬

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De algum modo, o Iluminismo adota por vontade - e talvez n ão por decorrência lógica a linearidade impassível do tempo. O sentido do futuro decorre do fato de ter sido o passado tamb ém linear. Ora, sendo os mecanismos do universo mecânicos, a física moderna impede o futuro de ser diverso do passado, devendo ser, ent ão , sua repetição espl ê ndida. A imagem do relojoeiro perfeito , criador do perfeito relógio, o universo, faz ver, no movimento do passado, a anunciação do infinito futuro. Se o mundo foi barbá rie que se civilizou, a tendê ncia é a civilização total. O movimento do tempo moderno é, para os iluministas, a inexorável saída de toda a treva para a chegada a toda a luz.



6

VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância . São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 115.

AurssoN LEANDRO MASCARO

As esperanças medieval e moderna, sendo o resultado de um sentido já dado, são a esperança no máximo reformista, mas não necessariamente revolucionária. Não é necessária a revolução da história para a chegada do amanhã. Ele virá pela promessa divina - e então a esperança judaico-cristã não será nem sequer reformista, será só conservadora ou virá pela ação cadenciada da humanidade, repetindo uma marcha inexorável do passa do ao futuro - e então a ação iluminista, moderna, será reformista, para ser hoje melhor do que ontem, mas sem a necessidade de romper a mar cha. No direito, esta marcha linear - mas controlada - do reformismo buscará o controle do próprio tempo jurídico, processualizando-o:



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Vivia-se, assim, numa sociedade relativamente estável, com valores estáveis capazes de controlar, no seu grau de abstração, a pequena complexidade social . Ora, as crises que culmina ram na Revolução Francesa acabaram por inverter esta posi¬ ção. Numa sociedade tornada complexa, formas difusas de controle são substituídas por instrumentos de atuação mais r ápida e efetiva. [...] Com isto, também, há uma inversão na relação mudança/ permanência. O Direito positivo institu¬ cionaliza a mudan ça, que passa a ser superior à permanê ncia, e as penadas do legislador começam a produzir códigos e re¬ gulamentos que, posteriormente, serão revogados e de novo restabelecidos, num processo sem fim.7 ¬

Os primeiros abalos na linearidade do tempo virão somente após a filosofia do Iluminismo. Até então, as disputas entre conservadores cris tãos e progressistas iluministas eram de forma e conte údo, mas nunca de fundo. Somente a inauguração do conceito filosófico da História, a par tir de Hegel, trará impasse estrutural ao jogo filosófico alicerçado por séculos judaico-cristão-iluministas. O tempo hegeliano - e marxista impõe outras tarefas ao sentido do progresso e da história. ¬

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7

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FCRRAZ JR , Tercio Sampaio. Função Social da Dogmática lurídica. Sao Paulo, Max Limonad, 1998, p . 193 .

UTOPIA E DIREITO

Lateralmente, é preciso ressaltar, o pró prio auge da modernidade produziu , além daquela de Hegel e Marx, outra aguda tensão na linearidade do tempo, que, de modo distinto, seria um reclame filosó fico muito próximo do tempo grego, da circularidade pagã. Nietzsche, Spengler e Heidegger hão de acentuar - contra qualquer utopia do amanh ã melhor lastreada no progresso - o presente como sendo a esperan ça que irá se esgotar em si mesma, sem portas abertas ao hipo¬ t é tico futuro. Passado e presente se fundiriam, entã o , num futuro que é sempre o retorno.8 ¬

Confrontados com tal destino, uma só concepção da vida é dig¬ na de nós, aquela que já foi designada por “ Escolha de Aquiles” : mais vale uma vida breve, plena de ação e brilho, que uma vida longa mas vazia. O perigo é tão grande, para cada indivíduo, para cada classe, para cada povo, que tentar ocultá-lo é deplorá vel. O tempo não pode deter-se; não há retrocessos prudentes, nem ren ú ncias cautelosas. Só os sonhadores poder ão acreditar em tais saídas. O otimismo é cobardia . Nascidos nesta época, temos de percorrer at é o final, mesmo que violentamente, o caminho que nos está traçado. N ão existe alternativa. O nosso dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi en contrado diante de uma porta em Pompéia, morto por se terem esquecido, ao estalar a erupção vulcâ nica, de lhe ordenarem a retirada. Isso é nobreza, isso é ter raça. Esse honroso final é a ú nica coisa de que o homem nunca poderá ser privado.9 ¬

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8

9

"A partir do sé culo XVII em diante, o linearismo e a concepçã o progressista da histó ria afirmam se cada vez mais, colocando a fé numa linha de progresso infinito, uma fé que já havia sido proclamada por Leibniz, predominante no século do 'iluminismo', e popularizada no século XIX pelo triunfo das ideias dos evolucionistas. Temos de esperar até o nosso próprio século para vero começo de determinadas rea ções contra esse linearismo histórico, e um certo reavivamento do interesse na teoria dos ciclos; é assim que, na economia pol í tica , estamos sendo testemunhas da reabilitaçã o da id éia de ciclo, flutuaçã o, oscilação peri ódica; que, na filosofia , o mito do eterno retorno é reavivado por Nietzsche; ou que, na filosofia da histó ria, um Spengler ou um Toynbee manifestam preocupaçã o com o problema da periodicidade". EUADE, op. cit., p. 126. SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica . Lisboa , Guimar ães Editores, 1993, p. 119.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

As pesadas palavras de Spengler são contundentes acerca desse reverso do tempo da modernidade. H á uma sombra do ontem como amanhã em Spengler que animará, potencialmente, até mesmo Cari Schmitt — ambos muito próximos do nazismo , a quem posterior¬ mente Bloch, campeão da esperan ça e dos sonhos, dedicará a estes palavras de embate político-filosófico duras e virulentas.



DAS

ESPERANçAS DA MODERNIDADE

O Iluminismo é a esperan ça na luz do futuro com os olhos volta¬ dos à nega ção das trevas do passado. Seu efeito libertá rio é espetacu lar: o novo amanhã será, ao mesmo tempo, o escombro do ontem. Libertar - destruir - e construir são as duas faces da moeda. Um gênio da filosofia prá tica e popular, como Voltaire, talvez mais tenha se dedi¬ cado a dissecar as idiossincrasias da religião do que pregar a toler ância. O não, em muitos momentos, ocupa mais espaço que o sim na filosofia moderna. A luz resulta da ojeriza da sombra. ¬

De qualquer modo, n ão e sim apontam para além, e, neste senti do, a filosofia moderna, assim como o Iluminismo de modo geral, são progressistas. Misturam-se, nesta esperan ça no amanhã, ao mesmo tem¬ po, a novidade do nunca pensado - a afirmação da tolerância, dos direitos - e a revolta contra o já dado - o absolutismo, as trevas do saber. Neste ponto, o Iluminismo do século XVIII olha adiantè7 tãl qual a filosofia que despontou no século XIX com Marx. Tal qual o reformismo iluminista, o revolucionarismo também aponta ao novo, ainda que, para a revolução, o novo pareça ser o inexistente até ent ão e, para o reformismo, pareça ser a mudança do já existente. O que os unifica é o futuro reinterpretando a história. ¬

A modernidade, portanto, não est á separada da moderniza¬ ção, o que já era o caso na filosofia do Iluminismo, mas ela se

UTOPIA E DIREITO

reveste de muito mais importância num século em que o pro gresso não é mais unicamente o das idéias, mas torna-se o das formas de produção e de trabalho, onde a industrialização, a urbanização e a extensão da administração p ú blica transtor ¬ nam a vida da maioria. O historicismo afirma que o funciona¬ mento interno de uma sociedade se explica pelo movimento que a conduz à modernidade. Todo problema social, em últi ¬ ma an álise, é uma luta entre o passado e o futuro. O sentido da história é ao mesmo tempo sua direção e sua significação, porque a história tende para o triunfo da modernidade.10

¬

De certo modo, se tratássemos de uma geografia política da filo sofia, o oposto absoluto do Iluminismo quanto ao progresso n ão é a filosofia baseada na história, revolucionária, que perpassa o pensamento de Hegel e principalmente o de Marx, porque ambos apontam para o futuro també m. Os opostos absolutos do Iluminismo quanto a essa geografia política serão, sim , o reacionarismo e o conservadorismo, que até esse tempo se exprimiam religiosamente e, posteriormente, passaram a ser um corpo de pensamento filosófico estruturado, arro gando a si um lugar na história. ¬

¬

Em um certo momento da passagem da Idade Moderna para a Contemporâ nea, o Iluminismo e sua perspectiva liberal passaram a congregar o espaço do conservadorismo, deixando ao religiosismo o estigma de reacioná rio, ao lado daqueles que postulavam uma revolu¬ ção como volta ao passado. Mas, ainda neste momento em que o Iluminismo passa a ocupar o espaço do institucionalismo liberal con¬ servador, ele manterá sua outra faceta, libertadora, como arma na mão a favor da transformação. Daí poder-se dizer que há uma constante face libertadora do Iluminismo até a atualidade, em que pese sua apa rente maior face conservadora. ¬

10

.

TOURAINE, Ala í n. Crítica da Modernidade Petrópolis, Vozes, 2002, p. 71.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

A característica do Iluminismo na historia é a de um frescor ainda não esgotado. As suas promessas não-cumpridas não parecem ser a rejei ção total dos seus próprios ideais. O marxismo , na cr ítica às classes que empunharam esses ideais e na crítica aos seus métodos, parece ainda respeitar um corpo m í nimo comum de aspirações e objetivos - a liber¬ dade e a igualdade exprimem , ao mesmo tempo, os sonhos anti-absolu tistas iluministas e os desejos igualitários marxistas. Ao n ão negar todo o passado, o Iluminismo incorpora os eventuais tesouros do ontem em busca do melhor do futuro. O marxismo, por sua vez, anuncia o cum primento de todos os ideais que o Iluminismo é incapaz de oferecer. ¬

¬

¬

A trajet ó ria das esperan ças iluministas é radiante, mas, de certo modo, fracassada. O estigma desse frescor juvenil derrotado se arrasta junto às esperanças das Luzes: as brisas do novo foram perpassadas pelos furacões revolucioná rios. Por isso, desde a dialética de Hegel, a ruptura passou a ser a marca da esperança, tendo em vista que as brisas reformis¬ tas do Iluminismo não lograram refrescar e balan çar a humanidade como pretendiam. Daí constatar-se que, em termos de intensidade e talvez de paixão, o marxismo tenha encampado a tarefa de modelar os tempos novos, tal qual Sartre já advertia nas suas conhecidas palavras ao dizer que o marxismo é a fronteira ú ltima da filosofia.11 A for ça utó pica do marxismo confirmou-se como a mais ampla; seus sonhos socialistas, mai ores e mais hercúleos que os liberais iluministas. ¬

Comum ao marxismo e ao iluminismo, no entanto, é a esperança fundada na razão. No caso do Iluminismo , é o progresso da razão o pr óprio motor do progresso da história, como se fossem engrenagens mecanicamente ligadas.

11

" Uma pretensa 'superação' do marxismo limitar-se-á, na pior das hipóteses, a um retorno ao prémarxismo e, na melhor, à redescoberta de um pensamento já contido na filosofia que se acreditou superar". SARTRE, Jean-Paul. Cr ítica da razão dialética. Rio de Janeiro, DP&A, 2002, p. 21.

UTOPIA E DIREITO

Assim , a racionaliza ção , componente indispens á vel da modernidade , se torna alé m disso um mecanismo espont âneo e necess á rio de moderniza çã o . A id éia ocidental de modernidade confunde-se com uma concepção puramente endógena da modernização. Esta não é a obra de um d éspota esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um grupo dirigente; ela é a obra da pr ó pria razão e, portanto, principalmente da ciência, da tecnologia e da educação, e as pol íticas sociais de modernizaçã o n ã o devem ter outro objeti ¬ vo que o de desembara çar o caminho da razã o suprimindo as regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al¬ fandegá rias, criando a segurança e a previsibilidade de que o empresário necessita e formando administradores e operado¬ res competentes e conscienciosos. 12

Ao iluminismo , a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é suficiente em si mesma para a consecu ção da libertação. No marxis¬ mo, trata-se da razão crítica, que reconhece seus pró prios limites mas que, ainda assim , só conhece uma dial ética que seja um esclarecimen ¬ to racional para chegar à praxis da transforma çã o. Isso porque, para o marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma ção é esperançosa. ¬

A TRANSFORMAÇÃO É MORAL O processo de dessacralização do mundo moderno representa a utopia do céu na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen ¬ te moral e religioso embalando movimentos pol íticos, econ ó micos e so ciais. Enquanto a transformação contempor â nea apregoa um ideário praticamente laico e t écnico, afastado em grande parte do humanismo, ¬

12

TOURAINE, op.

.

C/í ,

p . 19 .

UTOPIA E DIREITO

Assim , a racionaliza çã o , componente indispens á vel da modernidade, se torna além disso um mecanismo espontâ neo e necess á rio de moderniza çã o , A id é ia ocidental de modernidade confunde-se com uma concepção puramente endógena da modernização. Esta não é a obra de um déspota esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um grupo dirigente; ela é a obra da pr ó pria razão e, portanto, principalmente da ciê ncia , da tecnologia e da educação, e as pol íticas sociais de modernização não devem ter outro objeti vo que o de desembaraçar o caminho da razã o suprimindo as regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al fandegá rias, criando a segurança e a previsibilidade de que o empresá rio necessita e formando administradores e operado¬ res competentes e conscienciosos.12 ¬

¬

Ao iluminismo, a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é suficiente em si mesma para a consecução da libertação. No marxis mo, trata-se da razão cr ítica, que reconhece seus pr ó prios limites mas que, ainda assim , só conhece uma dialé tica que seja um esclarecimen to racional para chegar à praxis da transformação. Isso porque, para o marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma¬ ção é esperan çosa. ¬

¬

A TRANSFORMAÇÃO

É MORAL

O processo de dessacralizaçao do mundo moderno representa a utopia do cé u na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen te moral e religioso embalando movimentos políticos, econó micos e so ciais. Enquanto a transformação contempor ânea apregoa um ideá rio praticamente laico e técnico, afastado em grande parte do humanismo, ¬ ¬

12

TOURAINE, op. cit . , p . 19 .

ALYSSON LEANDRO MASCARO

a modernidade guardará uma tensão entre o religioso e o moral, entre a eternidade da velha religião e a universalidade da nova moral.

A nova moral moderna é a esperança de um novo homem. O caminho da transformação moderna é pelo indivíduo, daí seu cará ter essencialmente moral. A pedagogia do homem novo, a ortopedia do andar ereto, a libertação da moral opressora, tudo isso representa uma alavanca ao novo a partir do indivíduo. É preciso localizar a transfor mação, então, no conhecimento, em sua forma e conte údo. É preciso situá-la no espa ço entre a iconoclastia e a contemplação. A venera ção da verdade é a arma da libertação e, no fundo, é a pr ó pria libertação. ¬

A constru ção da nova moral agrupa a mais vasta rede da intelectualidade iluminista, desde homens que estão no limite entre a teologia antiga e a ruptura total, como Espinosa, até espíritos já bas tante libertos do passado religioso, como Diderot. O Ilumin ismo in glês, que passa por Locke, teve na filosofia moral um de seus mais importantes momentos. Kant, na Alemanha, devia grande parte de sua visão moral aos ingleses. ¬

¬

Na Fran ça, a nova moral iluminista revelou-se grandemente contestadora, de tal modo que nem o século XIX logrou conseguir repetir a radicalidade que anteriormente foi apregoada. Os radicais que tratam da teologia no século XIX, a partir de Feuerbach, têm pela religiã o uma postura filosófica mais compreensiva que refutadora. O Iluminismo, no entanto, n ão se preocupa em enterrar o passado em sua sepultura, mas sim em matá-lo.

A nova moral iluminista é de esperança, no entanto ela se sobre¬ põe a uma velha moral que também argüía a esperan ça. A razão cristã medieval também era uma moral que apontava para a felicidade, ain ¬ da que submetida à divisão em dois reinos, dos quais o último e afasta¬ do da vida terrena era o limiar do regozijo. Para subverter a escatologia

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da felicidade futura, o Iluminismo anuncia ajglicidadc presente. No fundo, há na passagem da filosofia medieval para a iluminista uma atualização temporal: o tempo da esperan ça vai-se aproximando. O cará ter messi â nico do passado judaico-cristão continuar á subjacente, de certo modo , no arcabouço das esperan ças modernas. Existe, pois, para o homem mortal , al é m da realiza çã o messi â nica de seus ideais básicos, num tempo extremamente afastado, uma outra forma de realização, à qual o “ Pregador ” faz igualmente alusão com as palavras ( Ecl 3,13) : “ Tamb é m, que todo homem coma e beba e reconheça o bem em todo o seu trabalho, é um dom de Deus” . [...] Chegamos, dessa for ma , a uma realiza ção bem diferente que consiste na integra ção da vida cotidiana nos ensinamentos do passado, numa “ Lei ” válida em todos os tempos. [...] No entanto deve ser lembra do sempre que o tempo sagrado n ão é, propriamente, um tempo fenom é nico, mas um tempo revivido, contendo um conjunto de modelos do que aconteceu no passado, capazes de orientar e dar sentido à nossa vida presente.13 ¬

¬

O Iluminismo n ão rompe, em relação à velha teologia, com o que diz respeito à questão de fundo da transformação individual como premissa da transformação geral social. O Iluminismo substitui uma moral velha por outra nova, mas, ainda assim, está trabalhando no campo da moral: é preciso o homem novo para que então seja dado um mundo novo. Neste sentido, o Iluminismo é herdeiro das estrutu ras gerais do humanismo teológico anterior. Sua ruptura se d á no tem po, ao trazer a esperan ça para mais próximo, e se dá no campo lógico , ao afastar a incompatibilidade racional dos dogmas e arcabouços teo¬ ló gicos da moral antiga. Essa linha reta de aproximação do futuro com o presente se verifica, pois, desde os cristãos medievais, passando pelo ¬

¬

13

REHFELD, Walter. Tempo e Religião, S ão Paulo, Perspectiva , 1988, p. 123.

gj

ALYSSON LEANDRO MASCARO

Iluminismo , at é o marxismo . Tal escatologia será a marca de toda a trajetória do progresso que constrói a modernidade e o ocidente. 1'* A ruptura iluminista, assim, é um pedaço de uma total ruptura com o passado , mas n ão toda a rupturac Em termos de esperança , rompe com o passado no local e no tempo: a felicidade será na terra e poderá ser para o hoje. Mas, em termos de estrutura e de ação, o Iluminismo está preso ao passado: a felicidade é individual e reformis¬ ta. A moral revolucionária, que se pode vislumbrar no século XIX no marxismo, ser á neste sentido uma total ruptura: no tempo e no espaço ( na terra hoje), assim como na ação (a pr áxis social) .

^

DA SECULARIZAçãO à REVOLUçãO Pode-se perceber, na evolução política da Idade Moderna, um processo crescente de secularização que redunda, no campo do direi¬ to, na constru ção de um novo modelo de saber jurídico, afastado da metafísica teológica e dos princípios da prudência antiga, que anima vam o direito romano e mesmo o pensamento jusfilosófico grego. ¬

A separação iluminista entre metafísica moral e direito é a mais acabada vitória da razão livre contra o dogma, mas não é, entretanto, todo o processo. O Iluminismo fere de morte um monstro que estava enjaulado , mas n ão foi o Iluminismo o responsável pela caça e pelo confmamento. O movimento dos direitos subjetivos, que estão na base

14

Voegeiin, opondo-se em bloco ao que reputa gnose da modernidade, identifica os vastos tra ços comuns dessa escatologia: "É essencial a n í tida compreensã o de que essas experiê ncias constituem o n ú cleo ativo da escatologia imanentista , pois de outro modo se tolda a lógica interna do desenvolvimento pol ítico ocidental a partir do imanentismo medieval até chegar ao marxismo, passando pelo humanismo , iluminismo, progressivismo, liberalismo e positivismo. Os s ímbolos intelectuais elaborados pelos vá rios tipos de imanentistas freqiientemente são conflitantes, assim como os v á rios tipos de gn ósticos se opõem uns aos outros. É f á cil imaginar a indigna çã o de um liberai humanista se lhe dissermos que seu particular de imanentismo é um passo na estrada que leva ao marxismo". VOECELIN, Eric. A nova ciência da política . Bras ília , UnB, 1982, p. 95 .

UTOPIA E DIREITO

da dinâmica capitalista e na base da Reforma Religiosa, é um compo¬ nente da segregação do teol ógico e do laico tão forte quanto o Iluminismo. As luzes iluministas matam o teológico, porque lhe ne¬ gam espaço, mas a pura dinâmica capitalista e a Reforma, no entanto, foram o passo inicial que culminou na morte da teologia.

A idéia da individualidade que se assume portadora de direitos,



que é a necessária mónada da ação burguesa o portador de direitos e deveres, livre para contratar -, é també m a idéia da individualidade que cr ê independente do espa ço pol í tico externo. A recusa da heteronomia é a descoberta da autonomia jurídica. O movimento, aqui, é o inverso do que tradicionalmente se calcula. Não são a Refor¬ ma e o capitalismo que criam o espaço estatal, a soberania, a ação laica. Pelo contrário, a Reforma e o capitalismo criam o espaço individual, reafirmam o teológico, demarcando-lhe ent ão um espaço legítimo: a fronteira entre o pol ítico e o teológico não nega este último, antes o v vi* consolida e o torna inatingível pelo primeiro. ' ' o v

-

A secularização, assim, é a legitimação do espaço espiritual è, nes¬ te sentido , faz surgir a legitimação do espaço político por oposição. Os Iluminismos francês e inglês, quando se insurgem contra a religião e a teologia, têm uma raiz diversa dos primeiros movimentos que levaram ao direito subjetivo. Enquanto a Reforma levou à independê ncia dos EUA e à legitima ção do espaço do privado em face do político, a Re¬ volução Francesa e o Iluminismo radical levaram à morte da teologia em face da Razão. Neste sentido é que se pode dizer que a Reforma tem uma razão ainda conservadora, porque é a última tentativa de salvaguardar a teologia, enquanto o Iluminismo radical tem uma ra zão reformista quase revolucioná ria, porque quer destruir a legitimi dade do teológico para fazer surgir em seu lugar a secularização total. ¬

¬

Todo este encadeamento parece demonstrar que a idéia dos direitos fundamentais do indivíduo não é uma idéia de ori-

,

ALYSSON LEANDRO MASCARO

gem política mas uma idéia de origem religiosa: “ o que se acreditava ser urna obra da Revolução é, na realidade, um pro duto da Reforma” . Seu primeiro apóstolo n ão foi Lafayette , mas Roger Williams, cujo nome é ainda proferido pelos ame ¬ ricanos com a maior veneração; este apóstolo, levado pelo en ¬ tusiasmo religioso, emigrou na solidão para ali fundar “ um impé rio baseado na liberdade religiosa” .15 ¬

No balanço entre a saída do mundo medieval e a chegada ao mundo contemporâ neo, a modernidade se apresenta, à primeira vis¬ ta, como um só movimento de consolidaçã o do indivíduo e da sobera ¬ nia. Mas este movimento é d ú plice: trata-se de fazer surgir o Estado por contraste com a religião, ou ent ão de fazer surgir a pol ítica por negação total da teologia. A tolerância de Calvino e Lutero era pela primeira dessas vias. A tolerâ ncia do Iluminismo de Voltaire era da última cepa. A partir do fim do século XVIII , a secularização transpôs os confins juscan ô nicos e juspublicistas para transformar se em categoria geral indissoluvelmente coligada com o novo con ceito unit á rio de tempo histórico. Deste enlace (em meio ao qual a secularização se encontra cercada por outras coordena ¬ das simbólicas da condição moderna: emancipação e progres¬ so , liberação e revolução ) produzem -se radicais redefini ções e deslocamentos de significado do par espiritual / mundano.16

-

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Baseada na inspiração das ciências naturais, a filosofia do direito há de se encaminhar na construção de um modelo estável , repet ível abrindo-se, assim , o caminho da técnica jur ídica - a fim de que o direito n ão seja obra do acaso das cren ças pessoais ou das revelações



15

16

SOION, Ari Marcelo. "A Pol ê mica acerca da origem dos Direitos Fundamentais: do Contrato Social à Declaração americana ". In Revista da Pós-Graduaçâo da Faculdade de Direito da USP, vol . 4. Porto Alegre, S íntese, 2002 , p . 135. MARKAMAO, Giacomo. Céu e Terra. Genealogia da Secularização. Sã o Paulo, Ed . Unesp, 1997, p . 23.

UTOPíA E DIREITO

sagradas, mas sim da razão. O jusnaturalismo moderno arroga para si a razão como secularização de toda a metafísica jur ídica até então exis tente. Assim exprime Tercio Sampaio Ferraz Jr.: ¬

O rompimento com a prudência antiga é claro . Enquanto esta se voltava para a forma ção do car á ter, tendo, na teoria jur ídica, um sentido mais pedagógico, a sistem á tica moderna terá um sentido mais técnico, preocupando-se com a feitura de obras e o domínio virtuoso (Maquiavel) de tarefas objetivadas (por exem plo, como fundar e garantir, juridicamente, a paz entre os po¬ vos). A teoria jur ídica jusnaturalista, assim, constró i uma rela¬ entre a teoria e a pr áxis, segundo o modelo da mecâ nica ção cl ássica. A reconstrução racional do direito é uma espécie de física geral da socialização. Assim, a teoria fornece, pelo conhe¬ í cimento das essencial idades da natureza humana (no “ estado ' f f . de natureza” ) , as implicações institucionais a partir das quais é 'T possível uma expectativa controlável das reações humanas e a instauração de uma convivência ordenada.17

V:

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Pode-se dizer que tal processo de secularização jurídica revela a atualização de uma utopia jur ídica: ao tomar nas mãos do indivíduo em sociedade o poder de dizer suas pr ó prias leis e de se julgar, a huma nidade traz para o hoje a escatologia do amanhã justo. O caminho para a revolução estava aberto pelo próprio Iluminismo: é preciso rom¬ per com as amarras antigas para instaurar o novo: “ E o direito, que libera e institui, contribuir á para a realização deste programa, conju gando a emancipação dos homens com o estabelecimento da lei” .18 ¬

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18

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduçã o ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. S ão Paulo, Atlas, 2003, p. 71 . OST, Fran çois. O tempo do direito . Bauru , Edusc, 2005, p. 193: " Ê bem em direção a um para íso terrestre que colocamos o pé na estrada , e a promessa da felicidade - uma id é ia nova ela também está no fim do caminho. Um caminho aclarado pelas luzes da razão e aberto pela energia formidável de id é ias-forças como liberdade, igualdade e, talvez mesmo, fraternidade. Sem d ú vida , ainda estamos longe do cômputo final, mas a humanidade é perfectível logo, a pedagogia estará inscrita no centro do projeto prometêico. Desde o in ício, uma certeza: a sorte das gerações futuras será mais invejável do que a das gerações presentes".

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AI.YSSON LEANDRO MASCARO

O marxismo, ao constatar as limita ções e os vícios da burguesia no processo revolucion á rio iluminista, nada mais faz do que diminuir ainda mais essa hipotética distância entre o cé u e a terra das esperan ¬ ças jurídicas. O justo estava na ordem do dia porque já era possível transformar o hoje em amanh ã. Prossegue o imperativo da histó ria, para frente e para o alto.

CAPíTULO 2 MARX,

TRANSFORMAçãO E UTOPIA

Na historia do pensamento político e filosófico contemporáneo, a obra de Marx representa uma referência ao mesmo tempo crucial mas potencialmente plurívoca quando trata da utopia. Marx pode ser to¬ mado como o mais alto expoente da utopia da transformação humana no mundo contemporâ neo e também como o maior negad or da uto¬ pia, podendo ser ambas essas visões frutos de elogios à sua obra. Não só os pensadores do marxismo divergem a respeito dos seus encam ¬ i nhamentos da questão utópica, mas também divergem da leitura a respeito do tema no próprio Marx. É conhecida a tentativa de distanciamento de Marx em rela o çã ao socialismo utópico, o que o tornaria, por oposição, fundador do socialismo dito científico. No entanto, n ão é pela rotulação que se re¬ solve a questão da utopia em Marx. Pelo contrário, a obra de Marx é permeada de referê ncias utó picas, e o devir da transformação históri¬ ca e social habilita que se o entenda ainda como um socialista utó pico, mas aviado numa ciência da transformação.

A evolu ção hist ó rica do pensamento de Marx permite essa duplicidade de leituras em relação à utopia, ora a negando, ora sendo seu artífice. A filosofia de Marx transparece ser um projeto contradi¬ tório e de possibilidades m ú ltiplas. Nela, pode se ver, ao mesmo tem po , a esperan ça nas leis econ ó micas que conduziriam o mundo inexoravelmente ao socialismo ao lado de páginas convocando o pro letariado à luta revolucion á ria, sem a qual n ão se daria a superação do

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AJLYSSON LEANDRO MASCARO

capitalismo. Esta duplicidade de Marx é constante, perpassando sua obra de uma tensão muito fina. Por toda sua obra passa uma dificul¬ dade profunda , que é a de se divisar um cerne ú nico para o entendi mento da grande quest ão da transforma çã o do capitalismo. ¬

Surgindo do imo de todas as ambig üidades de Marx, no entanto, est á um horizonte profundo e singular, que talvez seja o unificador maior de seu pensamento e tá bua comum de todos os marxismos, por mais variados que sejam: o marxismo é uma filosofia da transformação, do an ú ncio do amanh ã da libertação. Seja por causas econó micas ne¬ cessá rias - Engels, dentre tantos mais , seja por razão da luta - Rosa Luxemburgo e outros tantos ainda -, o marxismo é uma filosofia que se vale do passado e do presente para vislumbrar o futuro. Embora as correntes de interpretação de Marx queiram inscrevê-lo ou afastá-lo da questão da utopia, é inegável e comum a todas as vertentes do mar ¬ xismo o fato de que este aponta para o futuro , para a transformação do presente em um amanhã de superação do capital.19 E, assim sen ¬ do, se ainda se quiser em algum momento imputar a Marx alguma espécie de messianismo, ela é necessariamente de pés no chão e calca da na práxis ou, dizendo de outra forma, uma espécie de utopia sem ser jamais idealista nem, ironicamente, utó pica. Nisto convergem to¬ das as interpretações sobre Marx.



¬

UMA DIVISA FUNDAMENTAL: A TRANSFORMAçãO Gramsci tratava, nos Cadernos do Cárcere , o marxismo como filo¬ sofia da pr áxis. O fundamento de sua interpretação de Marx residia, justamente, na tentativa de escapar das cis ões hermen ê uticas dos

19

que anima a teoria de Marx constitui, para o melhor e para o pior, uma dimensão necessá ria de seu desenvolvimento". MALER, Henri. Congédier L' Utopie ? L' utopie selon Karl Marx. Paris, L' Harmattan , 1994 , p. 12 .

"O ímpeto utó pico

UTOPíA E DíREITO

continuadores do marxismo, que já desde o final do século opunham reformistas e revolucion ários, revolucionarios intemacionalistas e sovi éticos, democratas e centralistas, dentre outros mais. O conceito de praxis valorizado por Gramsci é justamente a ruptura de Marx com toda a filosofia alemã, idealista, que se bastava em interpretar o mun do. Tal novidade se exprime de modo explícito ñ as Teses Sobre Feuerbach, em especial ñ as Teses I, II e VIII . Nesta última, diz Marx: “ Toda vida social é essencialmente prática. Todos os misté rios que orientam a teo¬ ria para o misticismo encontram sua solução racional na prá tica hu mana e na compreensão desta prática” .20 ¬

¬

¬

No entanto, o ápice da diferenciação entre o velho idealismo como imobilismo da interpreta ção e a pr áxis como atividade de interpreta ção revolucion ária ser á o encaminhamento da filosofia para a trans¬ formação. Por isso o conhecido fecho das Teses sobre Feuerbach é ex plícito: “ Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma dife rente; o que importa é mudá-b ” .21 De certo modo , Marx sela um destino inarredável à atividade filosófica e a seu pensamento geral: a filosofia deve servir à transformação. ¬

¬

¬

A partir da divisa fundamental é que se dá in ício ao projeto mar xista de compreensão do capitalismo e das formas de sua superação. É desta maneira que se poder á aceitar, posteriormente, que um pensa¬ mento extremamente calcado na leitura de O Capital, como o de Pachukanis, seja tão marxista quanto a crítica da m úsica de Theodor Adorno ou o onírico O Princípio Esperança de Ernst Bloch. Todos se ocupam da sociedade dominada, capitalista, e das possibilidades de sua transformação, e nisto reside o cerne do pensamento de Marx. ¬

20

21

MARX. "Teses Sobre Feuerbach". In LABICA, Georges. As 'Teses sobre Feuerbach' de Karl Marx. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 34. Ibid., p. 35.

AIYSSON LEANDRO MASCARO

QUE MARXISMO

PARA QUAL UTOPIA?

A histó ria da interpretação da transformação por parte dos mar xistas revela compreensõ es distintas do processo revolucion á rio, dos passos, tá ticas e alternativas do marxismo. Os intérpretes de Marx po dem ser divididos em vá rios r ó tulos, dicotomias, correntes. É possível, por exemplo, opor a uma visão mecanicista de Marx uma visão mais acurada, filosófica, essencialmente dialética. No que tange ao proble¬ ma da interpretação da utopia em Marx, bem como a outras questões mais, podem ser vistas duas grandes correntes filosóficas cujas respos¬ tas encaminham posi ções específicas dentro do quadro do marxismo. A primeira delas é a que enxerga em Marx um pensador que acumula o pensamento aberto da juventude com o pensamento aprofundado da maturidade, com uma continuidade de propósitos desde o começo at é o final de sua obra. A segunda delas é a que compreende o pensa mento de Marx a partir de uma cisã o entre suas reflexões do in ício de suas obras - o dito jovem Marx - e sua obra de maturidade, na qual, ent ão, estaria o cerne do pr ó prio marxismo . Para esta última vis ão, o jovem Marx ainda não é marxista. ¬

¬

¬

Tais metodologias de compreensão do pensamento de Marx resultam em dois modos distintos de interpretar a utopia marxista. No caso dos que consideram o pensamento marxista um processo continuado desde o in ício at é o final de sua obra , há uma abertura para um grande humanismo que resultar á numa aceitação da uto pia como horizonte do futuro socialista apregoado por Marx j á nas suas obras de juventude. ¬

1

A obra de Marx n ão est á fundada sobre uma “ dualidade” de que o autor, por falta de rigor ou por confusão inconsciente, n ão teria percebido; pelo contr ário, ela tende para um monismo rigoroso no qual fatos e valores não est ão “ misturados” , mas organicamente ligados ao interior de um ú nico movimento

UTOPIA E DIREITO

de pensamento, de uma “ ci ê ncia crítica” , em que a explicação e a crítica do real estão dialeticamente integradas. 22 j

Na segunda vertente, que cinde o jovem Marx do pensador da maturidade, o tema da utopia será mais estrito. Abandonando qualquer possibilidade de compreensão alargada do tema da transformação da história, esta visão enxergará na utopia um produto derivado e tangencial de um dado estrutural, que é a pró pria transformação das relações pro dutivas. Dado que a revolução que encaminha ao socialismo é resultante da luta de classes, a utopia somente poderá ser entendida como um espectro ideológico estruturalmente vinculado à própria luta. ¬

No per íodo de A ideologia alemã Marx estabelece o princ í pio de determinação imediata entre a base económica e a superes trutura, resultando disso que esta última aparece como uma “ emanação direta” das relações econ ó micas. Ele estabelece tam bém o princí pio do primado das forças produtivas sobre as relações de produ ção, segundo o qual são as for ças produtivas que “ comandam” o desenvolvimento histó rico. ¬

¬

Pois bem , essas teses n ão encontram sustentação quando Marx realiza a an álise científica do modo de produção capitalista. Embora a antiga concepção subsista e continue a atravessar a trama cient ífica que Marx tece, é justo considerar que uma retificação em sua concepção do materialismo histó rico está se operando particularmente em O Capital.10



Não se pode dizer, contudo , que haja uma mera oposi çã o entre aqueles que, por serem humanistas, divisam uma utopia alargada ao marxismo e aqueles que, por serem estruturalistas, rejeitam a aborda gem do tema da utopia. Isto porque Ernst Bloch , que é quem, dentre os marxistas, mais se dedica ao aprofundamento do tema, n ão pode ¬

22 23

LOWY, Michael . A teoria da revolução no ¡ovem Marx. Petró polis, Vozes, 2002, p. 38. NAV éS, M á rcio Bilharinho. Marx . Ciência e Revoluçã o. S ã o Paulo, Moderna / Unicamp , 2000 , p . 79 .

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ser encaixado facilmente em nenhuma dessas divisõ es estanques do marxismo e, ao mesmo tempo em que alarga a compreensão da trans¬ formação social, buscando sujeitos revolucioná rios e inspirações até mesmo na religião e nas heran ças dos ideais jurídicos, também é bas¬ tante estrito e cô nscio de que a concretude da utopia somente se d á com o socialismo que rompa os vínculos estruturais da sociedade capi¬ talista. Há um possível humanismo dentro de uma visão estrutural, bem como o humanismo marxista não é somente um vago comboio de idéias m últiplas e incongruentes.

A divisã o de interpreta çõ es entre um marxismo “ aberto” , humanista, e um estrito , vinculado às estruturas econô mico- produtivas, embora de car á ter didático, revela os horizontes da utopia jurídi ca do marxismo. No humanismo que junta, na mesma trilha, o jovem Marx e o pensador maduro,24 é possível que se compreenda o proces¬ so de transformação social como uma evolução que possa se valer até mesmo das instituiçõ es político- jur ídicas burguesas para sua própria destrui ção. A social-democracia estaria nesta vertente. Surpreenden ¬ temente, o stalinismo perfilha esta mesma perspectiva, na medida em que há de considerar o uso do Estado e da ditadura do proletariado um tema bastante marginal no pr ó prio Marx - como elementos de consecução da luta socialista. ¬



estrutural , a revolu ção em Marx é vista como ruptura, isto é , como superação das condi çõ es econ ó micas, políticas e sociais capitalistas. Representa dizer, a partir desta persNa segunda

24

vertente,

"Gramsci definiu , numa f ó rmula muito feliz, o marxismo como um historicismo absoluto e um humanismo absoluto. A feitura de O Capital - com a condiçã o, bem entendido, de se ler o que está escrito nele, e n ão um suposto 'discurso silencioso', ' reconstitu ído', 'apesar da letra de Marx' - confirma inteiramente essa defini çã o. [...) Parece- nos que os principais momentos do humanismo em O Capital são: a ) o desvendamento das relações entre os homens atrá s das categorias reificadas da economia capitalista; b) a cr ítica da 'desumanidade' do capitalismo; c ) o socialismo como possibilidade objetiva de uma sociedade onde a produ çã o é racional ¬ mente controlada pelos homens". L õwv, Michael . M étodo dialético e teoria política . Rio de Janeiro, Paz e Terra , 1978, pp. 62 e 63.

UTOPIA E DIREITO

pectiva, que o socialismo não arrasta consigo as instituições que são pr ó prias ao capitalismo e que, portanto, n ão se d á um processo con ¬ tinuado e indefinido de transformação do sistema capitalismo a par tir de si mesmo. Pelo contr á rio , tal visã o estrutural acentua a luta de classes como elemento emancipador e revolucion á rio, que suprima o Estado e suas instituições . 25 ¬

O marxismo jur ídico desde cedo se dividiu entre aqueles que perfilhavam a alternativa institucional - os que concebiam um socia lismo de Estado, baseado no direito - e aqueles que lan çavam mão de uma visão socialista como a negação do capitalismo e de todas suas institui ções, inclusive as jur ídicas. Na União Soviética, este debate ocu ¬ pou o centro das reflexões jur ídicas nas d écadas de 1920 e 1930, opon do Stutchka e, principalmente, Vichinscki, de um lado , a Pachukanis, de outro, tendo os dois primeiros o apoio do stalinismo, porque apre goavam uma fun ção jur ídica revolucion á ria, ao mesmo tempo em que defendiam a existência de um Estado socialista e, portanto, davam margem à ditadura de Stalin . ¬

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Logo se percebe, desta divisão, que o tema da utopia no marxis mo n ão comporta uma dicotomia clara. Pachukanis, que liderava uma interpretação jurídica do marxismo muito próxima daquela exposta por Marx em O Capital, apresentava um horizonte ut ó pico (e “ humanista” ) bem mais largo que os stalinistas que defendiam o uso do Estado e do direito. Bloch, o campeão do humanismo marxista, que em Direito Natural e Dignidade Humana faz suas as visões jurídi¬

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! "Isso significa que a ideologia prolet á ria n ão é o diretamente oposto, a inversão, o reverso da ’ ideologia burguesa, mas é uma ideologia totalmente diferente , que leva em si outros valores , que é crítica e revolucioná ria . Porque é , j á agora , apesar de todas as vicissitudes de sua hist ó ria , portadora desses valores, j á agora realizados nas organizações e nas pr á ticas de luta operá ria, pelo que a ideologia proletá ria antecipa o que ser ão os aparelhos ideol ógicos do Estado da transi ção socialista , adianta , pela mesma raz ão, a supressão do Estado e a supressão dos aparelhos ideol ógicos de Estado no comunismo". AITHUSSER , Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 128.

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cas de Pachukanis, é um defensor da utopia extrema do fim do Estado e de qualquer forma de dominação institucional sem ser, no entanto, urn estrito analista do Marx da maturidade contra o jovem Marx.

A TEORIA DA REVOLUÇÃO DE MARX Há uma teoria da revolução em Marx que se gesta desde suas primeiras obras e que se constitui no primeiro ponto para dentro e depois da divisa fundamental da transformação - em que começam as divisões e multiplicidades do marxismo.



obras finais da sua juventude, marcadamente na Ideologia Ale¬ mã, Marx já aponta para urna teoría revolucionaria de acento politico econ ó mico , fugindo de qualquer armadilha humanista de tipo institucionalista-liberal. Marx, desde o inicio, afasta-se da compreensão da revolução como mera alteração política e jurídica. No entanto, A Ideofogia Alemã e as primeiras obras são fundadas numa expectativa de que as con tradições do capital levariam a oposição de classes a urna extrema tensão e daí necessariamente à ruptura da dominação económica. Ñas

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Nas obras de sua maturidade e, em especial, em O Capital, Marx estabelece um outro nível de abordagem a respeito da relação entre forças produtivas e relações de produção ( procedendo a uma retifica¬ ção, segundo as palavras de Naves). Ao invés de propor um procedi mento mecânico no qual a mudança dos meios de produ ção gera ne cessariamente a mudan ça do sistema econó mico, Marx propõe uma dialética entre forças produtivas e relações de produção. As relações de produção capitalistas geram forças produtivas específicas, e a tran sição ao socialismo é ao mesmo tempo a ruptura com as forças produ tivas capitalistas e sua relação de produção.26 ¬

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Sobre as divergê ncias em rela ção à teoria da revolu ção no itinerá rio do pensamento de Marx,

UTOPIA E DIREITO

O papel das superestruturas, dentre as quais o direito, nesta pro¬ posta da an á lise marxista , é bastante importante. O direito não se presta apenas como elemento que se reiteraria tanto no capitalismo quanto em qualquer sociedade pós- revolucion á ria, de sorte que at é mesmo se pudesse esbo çar algum socialismo jur ídico dentro do capitalismo. Pelo contrá rio, o papel exercido pelo direito no capitalismo é vital, na me dida em que, por meio das categorias jur ídicas, do sujeito de direito e do contrato, por exemplo, d á-se a própria estrutura ção do sistema. Assim, as forças produtivas e a superestrutura, como o direito, hão de se revelar necessá rias e dialéticas em face das relações de produ ção, implicando-se mutuamente. A proposta de Pachukanis, de considerar o fim do capitalismo o fim do direito, explica-se por essa vertente de interpretação do marxismo , mais fiel a O Capital. ¬

O resultado dessa visão dialé tica entre forças produtivas e rela¬ ções de produ ção é o extremo refinamento teórico da posi ção de Marx na maturidade, em O Capital, tendo em vista que tal implica ção m ú ¬ tua abre campo à ação revolucion á ria, e n ã o ao mero mecanicismo da evolução histórica. Numa visão mecanicista do pensamento de Marx, poder-se-ia interpretar que o mero agravamento das contradi ções le vasse ao fim do capitalismo, por força de uma instabilidade inerente às relações de exploração do capital. A perspectiva econ ó mica de Marx, no entanto, se baseia em outros pressupostos e, nessa dialé tica, conduz sua interpretação da revolução para os quadrantes da luta de classes. Nesse ponto, revela -se um importante humanismo, de n ível profun do, na perspectiva pol ítica, econ ó mica e filosófica de Marx: n ão se ¬

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Carlos Nelson Coutinho enxerga duas poss íveis visões paradigm á ticas, uma mais apropriada ao jovem Marx, outra ao Marx maduro, respectivamente: a revolu ção como ruptura imediata ou como um processo cont ínuo, ligando-se ao problema da tomada do poder do Estado e de seu perecimento. "A depender do modo ' restrito' ou 'amplo' de conceber o Estado, resulta na histó ria da teoria pol ítica marxista a elaboração de dois diferentes paradigmas de revolu ¬ ção socialista , que definiria esquematicamente como 'explosivo ' e ' processual'". COUTINHO, Carlos Nelson . Marxismo c política . A dualidade de poderes e outros ensaios . São Paulo, Cortez, 1996, p. 13. -

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de considerar a revolução como escatologia mecânica e necessᬠria a partir de dados pré-estabelecidos, mas sim como luta e praxis transformadora. A revolução, pois, se faz e n ão se espera.

trata

A

DIALÉTICA DO PROGRESSO

É possível identificar, permeando a obra de Marx, in úmeras re¬ flexões a respeito do sentido da histó ria. Revelam as possíveis diferen ças e ambigiiidades de interpretação em relação ao progresso. Tradici ¬ onalmente, é contra Engels que se volta a crítica do século XX, acu¬ sando-o de, na parte final do século XIX, ter convertido o marxismo numa espécie de positivismo ou num tipo de determinismo similar ao dos estudiosos da natureza. Engels seria a base do mecanicismo que ¬

depois foi denominado por materialismo vulgar. Há também, no entanto, uma dialé tica conflituosa do conceito de progresso n ão só em Engels ou nos intérpretes do marxismo, mas também dentro da própria reflexão de Marx. Porém, tal dialética não se resolve facilmente pela oposição do jovem Marx ao pensador da maturidade, porque, atravessando sua obra, está sempre presente o problema da determinação do sentido histórico e da forma de apreci¬ ação da posição do capitalismo em face de outros modos de produção. Em grande parte de sua obra, Marx se pronuncia por uma posi¬ ção aberta em relação ao sentido da histó ria e do progresso, o que encaminha sua análise para a refutação da necessariedade da evolução e do progresso. No Manifesto Comunista, exprime claramente a possi¬ bilidade de o conflito de classes e a evolução das forças produtivas degenerarem. A alternativa da superação dos conflitos, portanto da revolução, n ão é o ú nico passo da história, nem está garantida por leis econ ó micas necessá rias, havendo a possibilidade do perecimento:

UTOPIA E DIREITO

Homem livre e escravo, patr ício e plebeu , barão e servo, mes¬ palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição , tê m vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que ter tre de corporação e companheiro , numa

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minou sempre, ou por uma transformação revolucioná ria da sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta.27

Expressa assim Marx a revolução como possibilidade, e n ão como necessidade histórica. Ao mesmo tempo, não se trata apenas de dizer que aquilo que revoluciona é, necessariamente, um progresso no sen tido de conquista à qual n ão se oponha crítica. Na análise da forma ção econ ó mica capitalista, Marx há de verificar, ao mesmo tempo, o pro gresso e a decadência, a evolu çã o e o retrocesso. O fluir da histó ria e da revolução, pois, n ão é necessariamente o galgar do melhor. O capi talismo , desse modo , como revolução das estruturas produtivas feu dais, é ao mesmo tempo a destruição da velha dominação e a ocorr ên cia de uma nova, expressando, historicamente, o melhor e o pior que a histó ria já possa ter conhecido, ao mesmo tempo. ¬

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A burguesia desempenhou na história um papel eminente¬ mente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais , patriar ¬ cais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendi¬ am o homem feudal a seus “ superiores naturais” ela os despe¬ daçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem , o laço do frio interesse, as duras exigê ncias do “ paga ¬ mento à vista” . [...] A burguesia só pode existir com a condi ¬ ção de revolucionar incessantemente os instrumentos de pro¬ du çã o, por conseguinte, as relações de produ çã o e, com isso , todas as relações sociais. [...] Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de id éias secularmente veneradas; as relaçõ es que as substitu

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27

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MARX , Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. I . São Paulo, Alfa Ô mega, s/d, p. 22.

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em tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenida¬ de suas condições de existê ncia e suas relaçõ es recíprocas.28

A possibilidade de entender o modo de produção capitalista como sendo, ao mesmo tempo, o á pice do melhor e do pior na história, dá margem a uma compreensão do progresso em Marx como evento aber to , n ão vinculado aos determinismos evolucionistas que foram t ípicos no século XIX. Antecipando , de certa forma, a cr ítica ecológica ao capitalismo, Marx aponta em O Capital. ¬

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Al é m disso, todo progresso realizado na agricultura capitalis ta n ão é somente um progresso na arte de exaurir o trabalha dor, mas també m na arte de exaurira terra, e cada passo que se dá na intensificação de sua fertilidade dentro de um período de tempo determinado é, por sua vez, um passo dado no es gotamento das fontes perenes que alimentam tal fertilidade. Este processo de aniquila ção é tão mais r á pido quanto mais se apoia um país, como ocorre por exemplo com os Estados Uni dos da América, sobre a grande ind ústria , como base de seu desenvolvimento. Portanto, a produção capitalista só sabe de senvolver a técnica e a combinação do processo social de pro¬ dução esgotando ao mesmo tempo as duas fontes originais de toda riqueza: a terra e o homemP ¬

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Ao mesmo tempo em que se revela a abertura para o progresso e a evolu ção histó rica como possibilidade, em vá rias passagens, desde as obras da juventude até as da maturidade, Marx deixa entrever uma espécie de valoração positiva do progresso , podendo-se perceber, ain da , um papel generoso ao capitalismo nesta evolução. Sempre há de se ressaltar, neste sentido , a admiração de Marx por Darwin , o que daria ¬

28 29

Ibid . , pp. 23 e 24. MAKX, Carlos. £/ Capital . Vol. 1 . México, Fondo de Cultura Econ ó mica , 1982, p. 423.

UTOPIA E DIREITO

margem a uma inspiração do progresso histó rico, em Marx, bastante similar a uma evolução da natureza. Isto n ão representa dizer, no en¬ tanto , que Marx seja um positivista no sentido próprio do termo, nem tampouco um ensaísta apologético do futuro. A aposta no futuro soci¬ alista parece se revelar, muito mais acertadamente, num cântico de louvor à luta pelo futuro, o que representa, ainda ao final, dizer que a história é aberta e o progresso é possibilidade. A luta socialista é que seria a responsável por sua concretiza ção. Marx desautoriza, assim, a ideia de que as forças produtivas da sociedade comunista constituam-se no interior do capitalismo, que elas possam ser as mesmas forças produtivas do capitalis¬ mo, que, por força das contradições inerentes a esse modo de produção, vão se tornando cada vez mais socializadas, cabendo à sociedade comunista t ão-somente receber essas forças produ¬ tivas completamente adequadas a ela, e as quais, libertadas das relações de propriedade (capitalistas) que as entravavam, po¬ dem agora expandir-se livremente. Ao contrário dessa concep¬ ção mecanicista e evolucionista do processo histórico, as análi¬ ses de Marx permitem apreender que as forças produtivas de¬ pendem sempre da luta de classes, que elas nunca se desenvol¬ vem independentemente das relações de produção.30

Um passo bastante favorável à inexorabilidade do progresso, situ¬ ando-o num âmbito similar ao da natureza, ocorrerá, um pouco mais tarde, com o pensamento de Engels. A admiração de Marx por Darwin é o pano de fundo para posi çõ es que sustentar ão um certo evolucionismo da história - e, portanto, o determinismo da revolução socialista - que não foram típicas apenas de Engels, mas também de personagens dos primeiros tempos do marxismo como Kautsky e Lafargue, genro de Marx.

30

NAVES, Má rcio Bilharinho. Marx. Ciência e Revolução, op. cit , p. 80.

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Essa aproximação entre a concepção da hist ória elaborada por Marx e as ideias de Darwin (abusivamente deslocadas da bio¬ logia para as ciências sociais) tinha como conseqiiê ncia um excessivo fortalecimento da continuidade na história (o novo n ão irrompia subversivamente, era apenas um desdobramen¬ to “ natural ” do que j á existia, quer dizer, era uma decorr ência do crescimento do “ embriã o” ) .31

É de se ressaltar, no entanto, que, se a posição dos marxistas sobre o pensamento de Marx, logo nos tempos posteriores de seus escritos, era a de uma inexorabilidade da revolu ção , posteriormente tal confi ¬ an ça ou se refina ou se transforma, mesmo, em uma espécie de cr í tica ao progresso. Rosa Luxemburgo , ao se pronunciar a respeito das alter¬ nativas da revolução ou da barbárie,32 é o exemplo cristalino de que o marxismo não- mecanicista não prosseguiu acompanhando a interpre¬ tação da inexorabilidade hist ó rica da revolu çã o, que, de resto, não se revelou a ú nica nem a melhor leitura do pr ó prio Marx.

A UTOPIA EM MARX A utopia em Marx é, mais que um tema, um resultado impl ícito - e raras vezes por ele próprio explicitado - de seu pensamento e do apontamento de sua praxis política.33 Por isso, não é um sistema fe31 32

33

KONOER, Leandro. O futuro da filosofí a da praxis. Rio de laneiro, Paz e Terra, 1992, p. 65. "Mesmo em obras de forte car á ter economicista como Reforma social ou revoluçã o? , A acumu lação do capital e a Anticrítica, em que insiste na teoria do colapso, Luxemburg repete que o socialismo n ão resulta automaticamente das contradi ções objetivas do capitalismo, que é necessá rio o 'conhecimento subjetivo, por parte da classe operá ria , da inelutabilidade da supressão da economia capitalista por meio de uma revolu ção (Umwá lzung) social'. Ou seja , ela compreendeu , desde o in ício de sua carreira pol ítica, que a economia por si só n ã o levar á ao socialismo". LOUREIRO, Isabel Maria. Rosa Luxemburg. Os dilemas da ação revolucioná ria. Sã o Paulo, Ed . Unesp, 1995, p . 33 . " Retomando a expressã o de Marx no Dezoito Brumário, é ciara que os homens est ão limitados pelas condi ções herdadas do passado, no entanto, eles fazem a histó ria , n ão fazem apenas repetir o que se sabe, cada geração faz algo diverso. (. ..| Trata-se da ação em que os homens são capazes de criar o novo, os projetos iluminadores da criação de uma nova sociedade. São os sonhos de sonhar acordado que propiciam isto, são as utopias". LORES, losé Reinaldo de Lima . Direito e transformação social. Belo Horizonte, Nova Alvorada , 1997, p. 62. ¬

UTOPIA E DIREITO

chado, e sim uma abertura decorrente da tomada de posição em face da sociedade e da história.

Pode-se perceber, no itinerá rio do pensamento de Marx, fases bastante claras quanto à proposta da utopia. Em suas obras iniciais, o socialismo utópico é-lhe uma referência fundamental, ainda que seja, no mais das vezes, como nas suas obras da d écada de 1840 - o Mani festo Comunista., por exemplo , para negá-lo em face de uma suposta cientificidade revolucionária. O pensamento de Marx, nesta fase, opon do um socialismo científico ao até então existente socialismo utópico, é o que anima Engels até o final de sua vida a manter e a aprofundar a cisão entre essas duas correntes do socialismo. ¬



¬

No entanto, na fase madura do pensamento marxista, há um salto qualitativo que, se representa de um lado abandonar a temática explíci¬ ta da utopia, parece, pelo contrá rio, melhor delineá-la na medida em que ela passa a ser a resultante necessária e óbvia do processo de crítica do capital e de revolução social. Deixando de lado o binómio socialismo utópico versus socialismo científico, Marx mergulha estruturalmente nas entranhas do capital para analisar as formas de sua superação numa economia que seja resultante da mudança das relações de produ ção e do desenvolvimento das forças produtivas. É neste ponto que a utopia em Marx, estando encoberta, mais se ressalta: as contradições do capita¬ lismo restam, em seu pensamento, insol úveis. Assim sendo, há um im¬ pulso dialético de superação que arrasta a ação político- revolucionária a um patamar de expectativa e de delineamento de um futuro de solução dos impasses e da insolubilidade do capitalismo.34

Demonstra-se, assim, que Marx rechaça o socialismo utópico n ão pela fronteira final a ser estabelecida, mas sim pelo déficit de análise 34

Chavance nomeia o pensamento de Marx como "dial ética teleol ógica". CHAVANCE, Bernard. " La dialectique utopique du capitalisme et du communisme chez Marx". In Marxenperspective. Paris, Écoie des hautes études en sciences sociales, 1985, p. 130.

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do presente e dos meios e alternativas para a saída do capital em dire ção à sociedade socialista. Comungando de um mesmo fim, n ão co ¬ munga, no entanto , dos meios, nem tampouco da ingé nua esperan ça no amanh ã. Por isso, no pensamento de Marx, o socialismo utó pico é muito mais um esboço incompleto, que deve ser rechaçado apenas pelas suas carências e suas fragilidades, do que propriamente um pro jeto singular que devesse ser tomado na conta de um opositor do soci alismo cientí fico. Marx entende que falta ao socialismo utópico n ão bons ideais e horizontes, mas sim a cr ítica para que se chegue a estes. ¬

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Numa análise bastante peculiar a respeito da questão da utopia em Marx, Miguel Abensour aponta para o fato de que o tema da utopia n ão deve ser analisado , no pensamento marxista, a partir da oposição entre socialismo utó pico e socialismo cient ífico, pois que, na verdade, Marx perfilha-se junto dos utópicos contra a ciê ncia burgue¬ sa, que é do presente e contra a transformação futura, apenas diver¬ gindo dos utopistas na medida em que estes, faltando-lhes o entendi mento das contradições profundas do capitalismo, apontam respostas parciais ou fantasiosas para a consecução do socialismo. Assim sendo, melhor que a oposição entre socialismo utó pico e científico, é , para Abensour, a diferença entre utopia parcial e utopia total, representan ¬ do o marxismo esta última vertente: ¬

Marx coloca um ponto final à utopia da burguesia enquanto classe revolucioná ria; em resumo, ao projeto do Estado mo¬ derno. Ao mesmo tempo enuncia a distin ção cardinal revolu ¬ ção pareial/revolução total. A utopia está do lado da utopia parcial, a emancipação humana , do lado da revolução radical. “ Não é a revolução radical, a emancipaçã o geral humana que é um sonho utópico para a Alemanha, mas antes a revolução parcial, a revolução somente política, que deixa em pé os ali¬ cerces da casa” . Por aí passa um eixo fundamental da cr ítica das utopias. Essa distin ção se aplicar á a diferentes objetos, se

UTOPIA E DIREITO

enriquecerá de m últiplos conteúdos. Ela constitui uma das invariantes da teoria radical. Está a í o lugar do corte original e nã o no par utopia/ ciência.35

A oposição utopia parcial versus utopia total ao invés de socialis¬ mo utópico versus socialismo cient ífico dá conta de entender que o marxismo n ão é tão distante de toda a herança utópica que os séculos XVIII e XIX produziram. A busca por considerar o marxismo um determinismo mecanicista que se oponha a qualquer utopia é uma tentativa de aproximá-lo da esterilidade de propósitos futuros da bur¬ guesia, aponta Abensour. Restam débeis, assim, as tentativas de furtar do pensamento de Marx uma expressão utópica. Henri Maler ressalta o fato de que a trajetó ria dos textos de Marx, desde a juventude até O Capital, aponta para uma problematização crescente - e não simplesmente para uma oposição bin á ria entre as questões da utopia, da cr ítica, da ciência e da ideologia.36 A tarefa de desbastar a posição específica do marxismo quanto à utopia do socialismo e do comunismo ser á, pois, muito maior do que a de situá-lo no rótulo dado por Marx e Engels no Manifesto Comunista e mantido por este no seu livreto clássico Do socialismo utópico ao socialismo científico.



ENGELS E

O

PROJETO UTóPICO DO MARXISMO

De Engels partirá, então, a consolidação das divisas políticas que vieram a orientar a escrita da história da utopia por parte do marxis¬ mo. Na sua obra Do socialismo utópico ao socialismo científico , uma das mais populares e divulgadas de toda a literatura marxista, pontificou Engels as diferenças entre sua visão do marxismo para aquela dos en35 3 ft

ABENSOUR, Miguel. O Novo Espírito Utópico. Campinas, Editora da Unicamp, 1990, p. 20. MALEK, Henri. Congéclier L'Ulopie? L' utopie selon Kari Marx op c/f., pp. 15 e seg

, .

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chamados socialistas utó picos. Tal qual apontar á mais tarde Ernst Bloch , Engels enxerga um primeiro movimento popular de utopia diverso e mesmo anterior àquela utopia constituída meramente pelos sonhos dos pensadores burgueses como Morus - em personagens do povo como Thomas M ü nzer, desembocando todo esse processo nas lutas socialistas do século XIX. tão

E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, alé m dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da é poca, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado mo¬ derno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha a tendência dos anabatistas e de Thomas M ü nzer; na grande Revolu ção Inglesa , os “ levellers” , e na Revolu ção Francesa, Babeuf. Essas sublevações revolucionárias de uma classe incipiente são acompanhadas, por sua vez, pelas corres pondentes manifestações teó ricas: nos séculos XVI e XVII aparecem as descrições utó picas de um regime ideal da socie ¬ dade; no século XVIII , teorias já abertamente comunistas, como as de Morelly e Mably. A reivindicaçã o da igualdade não se limitava aos direitos políticos, mas se estendia às con ¬ dições sociais de vida de cada indivíduo; já n ão se tratava de abolir os privil égios de classe, mas de destruir as pr óprias dife ren ças de classe. Um comunismo ascético , ao modo espartano, que renunciava a todos os gozos da vida: tal foi a primeira forma de manifestação da nova teoria. Mais tarde vieram os três grandes utopistas: Saint-Simon , em que a tendência con ¬ tinua ainda a se afirmar, até certo ponto, junto à tendência proletá ria; Fourier e Owen , este último , num país onde a pro¬ du çã o capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressã o engendrada por ela, expondo em forma sistem á tica uma sé rie ¬

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UTOPIA E DIREITO

de medidas orientadas no sentido de abolir as diferenças de classe, em relaçã o direta com o materialismo francés.37 Ao fazer a reminiscê ncia da utopia voltar a M ü nzer, a Rousseau e a Saint-Simon , por exemplo, Engels reitera uma historia que nao se restringe apenas à linha dos que propugnam o n ão-lugar, a utopia apenas ideal , como no caso de Thomas Morus ou Campanella. As utopias socialistas apresentam outras facetas, ainda que seu juízo sobre elas seja o de lhes considerar as insuficiencias para a verdadeira trans¬ formação histó rico-social . Neste sentido, a avaliação de Engels será pr óxima, posteriormente, da de Bloch, valorizando a prática da uto ¬ pia - ainda que messiâ nica, no caso de M ü nzer - mais do que a mera ; .• . -A ... teorização dos filósofos da utopia . ' w v ev,.- ,

.

A cr ítica engelsiana, no entanto, é implacável com todas essas uto pias que, mesmo sendo reclamadamente socialistas, como as de SaintSimon, Fourier e Owen, careciam de realidade e de cr ítica profunda ao dom ínio capitalista. ¬

Traço comum aos três é que n ão atuavam como representan ¬ tes dos interesses do proletariado, que entretanto surgira como um produto hist ó rico. Da mesma maneira que os enciclopedistas, n ão se propõ em emancipar primeiramente uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade. E assim como eles, pretendem instaurar o império da razão e da justiça eterna.38

Por isso, para se furtar de uma espécie de utopia carente de reali dade e de constatação da exploração de classe - carente, pois, de dialé tica e crente num tipo de universalidade salvadora de lembrança iluminista -, Erigelsassiime para o marxismo n ão uma dissonância dos ¬

37

38

ENGELS, Friedrich. "Do socialismo utópico ao socialismo cient ífico". In MARX, Karl e ENCELS, Friedrich . Obras Escolhidas. Vol. 2. São Paulo, Alfa Ómega , s/d, p. 304. Ibid., p. 305.

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propósitos, mas sim uma radical separação da constatação das causas da exploração e dos meios de sua transformação. Desde que existe historicamente o modo capitalista de pro du çã o, houve indivíduos e seitas inteiras diante dos quais se projetou mais ou menos vagamente, como ideal futuro, a apro priação de todos os meios de produção pela sociedade. Mas, para que isso fosse realizável , para que se convertesse numa necessidade hist órica, fazia-se preciso que se dessem antes as condiçõ es efetivas para a sua realização. A fim de que esse pro gresso, como todos os progressos sociais , seja viável, não basta ser compreendido pela razão que a exist ência de classes é in ¬ compat ível com os ditames da justi ça, da igualdade etc; n ão basta a simples vontade de abolir essas classes — mas sã o ne¬ cessá rias determinadas condições econ ómicas novas. 39 ¬

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¬

A. Pode-se dizer, assim , que Engels reclama , para si e para Marx, n ão uma negação da utopia, mas o seu afastamento, enquanto ciência en ¬ cerrada em si mesma, de especulação do futura melhor. Para cum ¬ prir os propósitos da utopia, seria preciso destruir o m é todo utópico. ,

39

Ibid . , p . 332.

CAP íTULO 3 PSICANáLISE

E UTOPIA

Freud representa a grande desconfian ça na razão, mas ao mesmo tempo é uma esperan ça, das derradeiras, na pró pria razão . Esta dicotomia freudiana é, diretamente, a responsável pela sutil peculiari dade do freudismo: negando ao homem pleno domínio racional so¬ bre si mesmo - negando racionalidade plena à civilização - aposta, no entanto, na razão e na civilização como emancipadoras daquilo que o homem ainda n ão logrou. O estatuto da utopia no freudismo, assim, revela-se numa peculiar dialética que muito lembra a do marxismo: a crítica da razão é ainda a aposta na razão; a crítica da utopia é ainda a aposta na utopia. ¬

O freudismo, sendo um movimento de volta às paragens do in consciente, representa um afastamento substancial da tradi ção do pensamento moderno, iluminista, que enxerga nos limites da razão os quadrantes da humanidade. O freudismo é a tentativa veemente de explicar a humanidade mais fora que dentro da racionalidade, sejam as ações humanas, sejam suas dores, seus ju ízos e seus valores. Mas Freud n ão deixa de ser, ao mesmo tempo, um discípulo tardio do Iluminismo, numa época em que a desconfian ça nas Luzes já ia chegando aos extremos: apontar o inconsciente é caminhar, com os passos da razão, pelo grande mundo do irracional, na tentativa de racionalizá-lo. O supere aude dos iluministas ainda pode ser o lema do freudismo. ¬

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FREUD: DESEJO

E REPRESSãO

Poderã o os estudiosos filiar Freud ao Iluminismo não só por con ta da sua tentativa de racionalização do inconsciente, mas, ainda mais profundamente, em razão da sua pró pria postulação da estrutura des¬ te mesmo inconsciente: Id e superego , como as inst â ncias contrapos tas do prazer e da repressã o, são conceitos correlatos, no esquema freudiano, a certas dicotomias do pensamento iluminista - que de al gum modo até o presente dão sustenta ção às perspectivas do liberalis¬ mo -, como as divisões entre ordem e natureza ou então entre liberda de total do indiv íduo versus liberdade social , contratual. ¬

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A partir deste esquema potencialmente iluminista, poder-se-ia identificar um fundamento teó rico ao freudismo na sua insist ência no indivíduo como medida do gênero humano, olvidando, como tam ¬ bé m o faz o Iluminismo, partes do problema social subjacente à hu ¬ manidade. No entanto, não se trata o pensamento freudiano de um acento ao indiv íduo como centro exclusivo da personalidade, porque a estrutura que se desvenda ao pr óprio indivíduo é eminentemente social. Prazer ligado à natureza e repressão ligada à sociedade dão a dimensão de um recorte do pensamento freudiano que é só provisori ¬ amente individual, porque se trata, em verdade, de uma dialé tica en tre o indivíduo e os outros. Depois do momento da an á lise individual , o freudismo passa à análise da própria sociedade: a dicotomia entre repressão e desejo, superego e Id, é uma dicotomia mais profunda e problem á tica que aquela entre indivíduo e sociedade, que de resto é resol ú vel por analogias n ão muito implausíveis.40 ¬

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" Esse é o empreendimento que Freud retoma na virada da d é cada de 1920 para a de 1930 por meio de três escritos que colocam a questã o do destino do homem por intermédio do das comunidades humanas: O futuro de uma ilusão ( 1927 ), O mal-estar na cultura (1929 ), e Por que a guerras’ (1933). (...) O futuro de uma ilusão, que inaugura a trilogia freudiana, coloca o princ ípio fundador que é o vetor das elabora ções 'sociol ógicas' da psican á lise: o desenvol ¬ vimento da civiliza ção est á submetido ao mesmo processo que rege o da gé nese do eu . Como

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No campo de estruturas profundas da psique, que se revelam cindidas entre prazer e repressão, é que reside o cerne de um grande debate, cujas implicações políticas e filosóficas são vastas. Freud postu la o prazer - a grande regi ão da personalidade denominada Id — como o arqu é tipo mais profundo da psique, cujas raízes talvez se encontrem no n ível natural ou biológico do homem. Em contraposição à parte da personalidade que busca o prazer, revelam-se, na evolução individual, o surgimento e a formação de uma instâ ncia de repressã o que limita a vontade do prazer e sua busca, o superego. Tal instâ ncia repressora, externa ao indivíduo , introjeta-se nele de tal modo que a personalida de passa a ser um centro próprio de obstacularização, negando a bus¬ ca pelo prazer n ão mais pela heteronomia de origem, mas por uma 41 espécie de autonomia castradora. ¬

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Este esquema das contradições da personalidade, cujos funda mentos talvez estejam muito mais na conta da natureza e da sociedade prazer e realidade — , resolve-se em Freud pela fr ágil inst â ncia do consciente, na tentativa de lograr compatibilizar certa dose de prazer com certa dose de repressão, num jogo que é tormentoso ao ego. O consciente, pois, é uma esfera de acordos, de concessões e de capitula¬ ções, de tal sorte que a racionalidade - que tem aí seu campo imediato ¬



( o eu , a civiliza çã o tem de fato dois objetivos: controlar as excita ções externas isso quer dizer ) à dominar as forças da natureza) e regular as tensões internas (entre seus membros inerentes sua pró pria organizaçã o. Este princ ípio preliminar estando reconhecido, Freud faz uma viver sem constata ção surpreendente: os homens n ã o podem nem suportar a civiliza ção nem fundamentos . Os " Henry , " FLAUD REY . te separadamen ela , eles devem estar juntos/ Freud. metapsicol ó gicos de O mal-estar na cultura" . In Fm torno de O mal estar na cultura, de S ão Paulo, Escuta , 2002, p. 8. ; o id , ou seja, "Freud adota uma triparti çã o da mente: o ego que é o nosso n ú cleo consciente dos princ ípi¬ o 'depósito' inconsciente dos impulsos reprimidos; e o superego , representante , qualquer ju ízo os éticos ( essa triparti ção lembra de longe a plat ó nica , evitando, no entanto ao contr á rio de , de valor). Através de todas as suas obras, Freud sempre destaca bem da morte, cuja ( , impulso libido sicos á b instintos dos McDougall , a extrema plasticidade , psican á lise de Freud projeção é a 'agress ã o'; no que se refere à doutrina dos impulsos a , uma exposi çã o da passou por vá rias modificações ) e toda teoria psicanal ítica é, em essê ncia çõ es vari á veis de condi ê de ncia consequ , em impulsos dos es çõ manifesta variedade das ROSQNFELD, Anatol . O . " diversa forma de se a adaptar ambiente, aos quais os instintos tendem pensamento psicológico. São Paulo, Perspectiva , 2003, p. 118.

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- n ão seja

necessariamente a felicidade, o prazer e a satisfa ção, mas sim o acordo de sua quantidade possível , sempre menor que aquilo que o desejo mais instintivo e inconsciente desejaria.

Daí , para a postulação teó rica de Freud, a evolu ção do ego se dá sempre a partir da tensão entre o prim á rio princípio de prazer e um posterior princípio de realidade. Em torno desse embate se d á, para Freud, a consolidação da personalidade: Sabemos que o princípio do prazer é pró prio de um m é todo primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é , desde o in ício , inefi¬ caz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos ins¬ tintos de autopreservação do ego, o princípio do prazer é subs¬ titu ído pelo princípio de realidade. Este último princípio n ã o abandona a inten ção de fundamentalmente obter prazer; n ã o obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abando no de uma sé rie de possibilidades de obtê-la, e a tolerâ ncia temporá ria do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. Contudo, o princípio de prazer persis¬ te por longo tempo como o m étodo de funcionamento em ¬ pregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de “ educar” , e, partindo desses instintos, ou do pr ó prio ego, com freqiiê ncia consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo . 42 ¬

Prazer e repressão , Id e superego , revelam-se assim num jogo dialético do qual emerge a civilização. Freud encaminha sua visão da civilização e da sociedade para uma perspectiva relativamente diversa daquela do Iluminismo tradicional: a civilização, em Freud, não é a esfe ra da racionalidade feliz e universal, e sim o tenso momento em que ¬

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FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. Rio de Janeiro, Imago, 2003, p . 12 .

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desejos são reprimidos em troca de outros. A civilização, tal qual um acordo para todos ao mesmo tempo desvantajoso e vantajoso em partes, é a expressão tênue da conveniência, não da plena satisfação. Daí apon ¬ ta Freud a insistente recorrência dos indivíduos a enxergarem na civili zação, nos outros, na sociedade, a causa de suas infelicidades. ¬

Se a civilização impõe sacrifícios tio grandes, n ão apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, po¬ demos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restriçõ es de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer per íodo de tempo, eram muito t ê nues. O ho¬ mem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.43

A civilização, para o Uuminismo, era o grande projeto da felicida de. Limitando as vontades sem fim de todos, a civilização garantiria al¬ guma felicidade para todos. Tratava de dizer o Iluminismo que a felici dade social, contratual, seria toda a felicidade possível e necessá ria, e por isso o contrato social era um momento positivo da civilização. Freud trabalha pela via contrá ria. O indivíduo não reconhece a castração de sua â nsia de prazer ilimitado como construtora de sua felicidade possí vel. A repressão é dolorosa, e a civilização seria, talvez concordando com a proposição do Iluminismo, a melhor racionalidade possível, mas não a felicidade. A civilização é um acordo triste, embora racional.44 ¬

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FKEUU, Sigmund . O Mal Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 72 . "Quando j á ciente da impossibilidade de sustentar a crença em uma humanidade feliz e sem sofrimento, o mal-estar n ã o é mais designado como algo contingente à civiliza ção, mas da al çada do pró prio ato de civilizar. [...) Freud observou que os problemas cruciais da culpa inconsciente insensata, da ren ú ncia à realiza çã o da libido, da resistê ncia à cura do sujeito e do gozo que concerne à coletividade, de fato se mantê m sob o signo da pulsão de morte. Mais do que nunca , perto do final de sua vida e obra Freud exercerá a tarefa de cr ítico implacável da cultura de seu tempo". FUKS, Betty. Freud & a cultura. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 15.

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Daí que se aponta necessariamente, no freudismo, o problema da utopia da razão. Até que medida contribui a racionalidade para a feli cidade, para a satisfaçã o dos desejos? Ou seria a razão justamente o limite do desejo, a concretização do possível e, portanto, daquilo que é menos do que o desejado ? ¬

A resposta do freudismo à quest ão ainda é uma resposta que se pode dizer iluminista. Quando Freud relembra a questão da religião como instâ ncia do superego responsável por castra ções a benefício da civilização, trata de uma repressão civilizadora e de uma sobre-repressão , responsável por sofrimentos que se poderiam julgar desnecessá ri os às necessidades da civilização.45 Tal perspectiva freudiana revela a sua solu çã o liberal- iluminista: haverá alguma ren ú ncia necessária, e haverá ren ú ncias explorató rias, maléficas, ao final das contas, à civili zação. Tal qual o contrato social, n ão se põ e em causa que deva haver ren ú ncias da liberdade, e sim saber quais. A utopia do freudismo é , assim , um contrato social com o m áximo de liberdades poss íveis e o m ínimo de repressões necessá rias. A utopia do freudismo é, na verda de, a quantia certa de liberalismo. ¬

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Quando, com toda justi ça , consideramos falho o presente es¬ tado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequa da às nossas exigê ncias de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado ; quando, com cr í tica impiedosa, tentamos pô r à mostra as raízes de sua imperfei¬ ção , estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e n ão nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar gradativamente em nossa civilização alterações tais que ¬

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"A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto, é poss ível diminuir o ó nus dos sacrif ícios instintuais impostos aos homens, reconcili á los com aqueles que necessariamente devem permanecer e fornecer- lhes uma compensa ção". FREUD, Sigmund . O Futuro de uma Ilusão. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 13.

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satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas cr í¬ ticas. Mas talvez possamos també m nos familiarizar com a ideia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civiliza¬ ção, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma.46

O freudismo, assim, antes de um salto qualitativo do problema re¬ pressão versus desejo, é um acerto quantitativo da repressão. A razão aí é a balan ça que medirá as contradições e que as julgará. Este pano de fundo, que em Freud se revela um Iluminismo que se deu conta de que a luz libertadora conviverá inexoravelmente com as trevas - a razão é a irmã menor do inconsciente, mas irá libertá-lo -, encaminhar-se-á rapi¬ damente para sua cr ítica, que desejará enxergar, pelo ângulo duro do conflito entre Id e superego, o germe de dialética e síntese que o freudismo deixou esvair pelas mãos da sua resposta conciliadora.

PARA ALéM DO FREUDISMO Das contestações e debates da filosofia em torno de Freud, é a Es cola de Frankfurt que se destaca e assume, desde cedo, o freudismo como seu problema e, mais profundamente, como um de seus instru mentais de reflexão. Desde seu. início, a psicanálise pareceu-lhe um mundo apto a desvendar problemas que o marxismo - tomado que era no geral pela sua acepção vulgar - não conseguia desvendar. O que levava o operariado europeu avançado a recusar a vanguarda socialista e a se aliar ao nazismo? De outro lado, o que poderia levar o campesinato atrasado da Rússia a se tornar a mola propulsora do socialismo mundial? A indagação da Escola de Frankfurt revelava a inquietação com o mecanicismo, que talvez tenha sido o repouso confortável da explicação teó rica da luta socialista no começo do século XX. ¬

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FREUD, O Mal- Estar na Civilização, op. cit., pp. 72 e 73.

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O brilho das análises da Escola de Frankfurt sobre a correlação marxismo e psicanálise, bem como sobre as questões da racionalidade e da utopia, atingirá seu ponto alto com Adorno, Horkheimer e Marcuse. Antes, no entanto, já havia todo um pano de fundo, de pensadores não necessariamente da Escola, mas também não muito distantes dela, que anteciparam algumas das recorrentes análises realizadas em meados do século XX. Reich e Fromm, de modo geral, podem ser tomados na con ¬ ta de precursores da jun ção frankfurtiana de marxismo e psican álise, levando-se em conta que seus pressupostos e conclusões n ão são, neces¬ sariamente, iguais aos de Horkheimer, Adorno e Marcuse. Mas Reich e Fromm, ao mesmo tempo, são precursores de tal movimento, sem que tenham recebido reconhecimento - ou quiçá sem que tenham sido mesmo lidos por parte dos marxistas que demonstraram preocupação por temas como a ideologia, a política e as questões superestruturais (desde Gramsci a Althusser, passando por grande parte do pensamento do século XX) . Grande parte do debate de Reich e Fromm sobre marxismo e psican álise frutificou pelo â ngu lo dos psicanalistas, n ão necessariamente dos marxistas.



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Além disso, ao contrá rio do que ocorreria com o n úcleo duro da Escola de Frankfurt, mais voltado à constatação do fracasso da utopia, Reich e Fromm entoam acordes que são evidentemente esperançosos. Representam por isso, na opinião de alguns, a parte frágil da jun ção entre psicanálise e marxismo, porque marxismo e freudismo seriam, ambos, descrentes de qualquer ilusão ou de alguma fácil utopia. Reich e Fromm apostam no contrá rio.

WILHELM REICH Reich é dos primeiros, na psican álise, a preocupar-se com o ex¬ tremado individualismo do freudismo e com sua falta de aptid ão a

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uma explicação polí tico-social mais acurada. Neste sentido, trilha ca ¬ minhos altamente originais, que, ainda que venham a ser expurgados mais tarde pela Escola de Frankfurt, por exemplo, lograrã o, no entan ¬ to , a consolidação de uma temática e de uma linha geral de aborda gem. Tanto quanto Fromm, logo em seguida, buscará Reich a com¬ preens ã o das intera çõ es , na forma çã o da personalidade , das condicionantes sociais, históricas, políticas, económicas e culturais. Além de tudo, tomará o problema da sexualidade també m a partir de um ¬

47 ponto de vista social e cultural.

O pensamento de Reich caminha a partir de Freud, mas não ne cessariamente no sentido freudiano. Enquanto na técnica psicanal ítica freudiana dá-se mais destaque aos conteúdos do que é revelado nos so nhos, nas manifestações, nas livres-associações, em Reich d á-se uma ên ¬ fase especial ao modo pelo qual tais conteúdos são expressos. A forma de expressão revela o caráter. São manifestações reiteradas, que se repetem em grande n ú mero de casos clínicos - estudados por Reich em um grande conjunto de obras - e que possibilitaram a ele a sua classificação. ¬

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A teoria do caráter é o ponto alto da teoria de Reich. A partir do modo pelo qual os conte údos ps íquicos são revelados , desnuda-se uma hist ó ria da formação da personalidade, da libido do indivíduo e de sua repressão , de tal sorte que aí começam a se misturar as razões pro¬ priamente da hist ó ria individual com aquelas estruturais, sociais, do seu tempo e suas condi çõ es.

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sua vai focalizando quest ões bá sicas da vida e da exist ê ncia , das sociedades e de ¬ pessi , francamente Freud Sigmund mestre ao antigo seu o çã . Em oposi esperança no Homem ), faz uma mista em rela ção ao Homem (formulação da puls ã o de morte, por exemplo Reich os declaraçã o de f é na humanidade. Assim, afirma Reich: 'só tu podes libertar-te'. Combate primordial regimes totalit á rios e adiante revela o significado de Deus: ' é a energia cósmica filosófico, do Universo'. Desse modo, vai formando um painel com os enfoques religioso , psicol ógico e sociológico". CâMARA, Marcus Vin ícius. Reich - o descaminho necessá rio. Intro 77. dução à clinica e à política reichianas . Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998, p. " Reich

...

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Postula Reich a existencia de dois grandes modelos do cará ter, que denomina caráter neur ótico e caráter genital. O primeiro revela se como uma postura sistematicamente repressiva, que se haure dos dísticos da autoridade, da normatização , portanto associada ao histó ri co da má-forinaçã o da figura paterna, o que o remete imediatamente às formas do conflito edipiano. O superego é a esfera em torno da qual se constr ó i o car á ter neuró tico. Por essa razão, o prazer e a vida genital estã o reprimidas e afastadas do car á ter neuró tico. O cará ter genital é aquele que se afirma positivamente, nã o como castração ao sexo, mas sim como sua madura expressão. O caráter genita abre l -se ao Id de maneira natural. Enquanto no caráter neurótico o conflito entre Id e superego é exponenciado , no cará ter genital, postula Reich , essa tensão é reduzida, quiçá anulada. ¬

¬

Em termos de suas diferen ças qualitativas, os caracteres neu ró ticos e genitais devem ser entendidos como tipos b ásicos. Os caracteres reais representam uma mistura, e se a economia da libido é ou n ã o permitida depende apenas de em que me ¬ dida o car á ter se aproxima de um ou de outro tipo b ásico. Em termos da quantidade da satisfação direta da libido poss ível, os caracteres genitais e neur ó ticos são considerados como ti pos m édios: ou a satisfação da libido chega a um ponto em que é capaz de dispor da libido contida ou isso n ão acontece. No último caso, desenvolvem-se sintomas ou traços de car á ter neuró tico que prejudicam a capacidade social e sexual .48 ¬

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A teoria do car á ter neur ó tico fundamenta, assim , a essência do car áter autoritá rio. O paradoxo vivido à época de Reich - o per íodo entre as duas Grandes Guerras e a ascensã o do nazismo deman dava — uma resposta que o marxismo vulgar n ão fornecia. O proletariado e a pequena burguesia voltavam-se ao nazismo e n ã o à liberta ção socialis48

REICH, Wilhelm. Aná lise do Caráter. S ã o Paulo, Martins Fontes, 2001 , p. 172.

ilk

por causa da personalidade autoritá ria de tais classes. Daí ser neces¬ s á rio desvendar, além das razõ es político-econ ó micas imediatas, uma formação autoritá ria do cará ter. ta

Revela-se o car á ter autoritário como uma debilidade ligada à pró¬ pria formação sexual repressiva. A carência econ ó mica das classes oper á rias e a dubiedade da pequena burguesia — que é dominada pelo grande capital e ao mesmo tempo receia a decadência à condição proletá ria encontra solo fé rtil para a sua conserva ção num quadro familiar, institucional, religioso e cultural no qual a figura da autoridade paterna represente a ren ú ncia aos desejos, tudo isso em nome do Pai. A extensão posterior do Pai ao Estado - à Nação, à Pá tria - revela a facilidade com a qual a ideologia nazista propagou nas classes baixas alemãs. ¬

Família, Igreja, Estado, Patrão , Autoridade, todos são instâ ncias de aparelhamento ideol ógico que conformam o car á ter autoritá rio das massas. Embora oprimidas, não enxergam e nem querem outro hori zonte que nao seja o da opressão. Por isso preferem e enxergam com melhores olhos o nazismo à libertação. ¬

Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indiví¬ duo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do sofrimento e da humilha ção. Assim , a fam ília é o Estado auto ritá rio em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que ser á exigido dela mais tarde. A estrutura autorit á ria do ho mem é basicamente produzida - é necessá rio ter isto presente - através da fixação das inibi çõ es e dos medos sexuais na subs t â ncia viva dos impulsos sexuais. [.. .] ¬

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Tanto a moralidade sexual, que inibe o desejo de liberdade, como aquelas forças que apoiam interesses autorit ários tiram a sua energia da sexualidade reprimida. Agora, compreendemos melhor um ponto fundamental do processo do ‘efeito da ide-

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ologia sobre a base econó mica’: a inibi ção sexual altera de tal modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que ele passa a agir, sentir e pensar contra os seus próprios interes¬ ses materiais. 49

Daí se explica, em Reich, o fracasso da luta socialista nos traba¬ lhadores, em razão do cará ter autorit á rio das massas. Para Reich , era imprescind ível que, à luta pol í tico-econ ó mica, somasse-se a luta pela libertação sexual, pela formação do cará ter genital, liberto das repres sões sexuais. N ã o haveria busca de libertaçã o prolet á ria sem tal trans formação do cará ter. ¬

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O postulado resultante da perspectiva de Reich é aquilo que de nomina Sexpol pol ítica sexual que vem a ser a jun ção das duas esferas, pol ítica e sexual, numa luta de libertação. A libertação pol ítica deverá ser associada da liberta ção sexual , da construção de caracteres genitais e n ão autoritários, mais próximos do Id que do superego . Apon ta Reich , assim , um paradigma de supera çã o do impasse freudiano, a libertação genital, pelo prazer. No final das contas, esboça-se, em Reich, a primeira utopia que soma os horizontes marxistas aos freudianos . Tal utopia ainda representará em alguma medida os horizontes iluministas, porque intenta dar à humanidade a possibilidade de sua felicidade por si pró pria, removendo a heteronomia - o superego — que lhe condiciona a uma personalidade autoritá ria. Utopia positiva, que acre¬ dita que a luta pela transformação social n ão é a ren ú ncia do hoje em nome do amanhã, e sim o agir do prazer que constr ó i , hoje e no futu ro, a civilização do prazer.50 ¬





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49 50

REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. São Paulo, Martins Fontes, 2001 , pp. 28 e 30. "O socialismo clássico enfatiza a luta e o sacrif ício, o trabalho e o hero ísmo, e adia para um futuro nebuloso a realiza ção da felicidade individual , quando raiar, graças ao desenvolvi ¬ mento das forças produtivas, o reino da liberdade. A Sexpol, ao advogar o desenvolvimento da genitalidade como pré condição da ação pol ítica, e mesmo como seu conteú do efetivo, inverte a sequ ê ncia temporal , e contesta o determinismo da etapa. A felicidade n ã o é uma recompensa futura, mas o pr ó prio conte ú do da pol ítica da vida ". ROUANET, Sé rgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de ¡aneiro, Tempo Brasileiro, 1998, p. 48 .

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ERICH FROMM Ao lado de Reich, Fromm constitui a primeira grande linha de frente da preocupação da psican álise em proceder ao diálogo com o marxismo. Em grande parte aproxima-se de Fromm na tentativa de estabelecer as bases de uma psican álise n ão apenas individualista na cr ítica recorrente que fazem a Freud mas sim que busque a compre ensão dos liames sociais do car á ter e da personalidade .



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Fromm se dedica a compreender o problema do cará ter a partir das estruturas sociais das variadas épocas, buscando vislumbrar, nas soci edades capitalistas, os tipos comuns de personalidade e caráter que aí se formam. O resultado de sua investigação, tal qual numa certa medida apontava já Reich, é a constatação de um car á ter sadomasoquista, que se espraia por vá rias classes sociais.51 Fromm identifica a sociedade capita lista como um obstáculo à plenitude do indivíduo: ¬

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FÕ princípio subjacente à sociedade capitalista e o princípio do amor são incompatíveis. [...] As pessoas capazes de amar, no presente sistema, sã o necessariamente exceções; o amor é, por necessidade, um fen ômeno marginal na sociedade ocidental de nossos dias. N ão tanto porque muitas ocupações não per¬ mitiriam uma atitude amante, mas porque o espírito de uma sociedade centrada na produção, ávida por mercadorias, é tal

51

"H á diferen ças na forma de sadismo de acordo com a diferen ça , na realidade, entre ter poder ou ser poderoso. O homem m édio é relativamente impotente : o escravo mais que o servo, mais que o cidad ã o, o trabalhador do século XIX mats do que o trabalhador do século XX, o membro de um estado polfcia -ditatorial mais do que o de uma democracia. [. .) De outro lado da escala, é o indivíduo que, na realidade, tem tal grau de poder que é tentado a tornar se Deus, transcendendo o status humano. Um l íder pol ítico dotado de poder absoluto como Stalin ou Hitler é quase fadado a cair na tentação de poder absoluto. [...] O sadismo existe n ão somente na classe média mais alta e entre ditadores, mas também entre muitos outros grupos sociais. [. .. ] As mesmas condi ções de impotê ncia efetiva podem ser produzidas pela atmosfera da fam ília, onde a criança, ao crescer, é exposta ao tratamento sá dico dos pais, especialmente nas formas menos óbvias, em que sua vontade e espontaneidade são sufocadas, quer direta ¬ mente pela falta de alguma resposta, quer por amea ças". FROMM, Erich . A Descoberta do Inconsciente Social São Paulo, Man ó le, 1992, pp. 137 e seg.

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que somente os nao-conformistas podem se defender com su ¬ cesso contra ela. Os que se preocupam seriamente com o amor como ú nica resposta racional ao problema da existencia hu ¬ mana devem , pois , chegar à conclusã o de que são necessá rias mudanças radicais em nossa estrutura social, para o amor se tornar um fen ô meno social , e n ão um fen ômeno altamente individualista e marginal. 52

Ao mesmo tempo, Fromm aponta para a superação do car á ter autoritá rio , que no capitalismo revelou-se sadomasoquista: trata-se de compreender o caráter revolucionário . Neste sentido, começa-se a cons¬ truir a utopia que resulta das constata çõ es marxistas e freudianas da irracionalidade humana ou, pelo menos, da inverdade do pleno do¬ m ínio da razã o em todas as esferas da açã o e do car á ter humanos.

A teoria do cará ter revolucioná rio de Fromm vai-se construindo a partir das pesquisas por ele empreendidas, na década de 1930, em torno da Escola de Frankfurt , a convite de Horkheimer, para a com preensão do fen ô meno nazista e sua ampla aceitação popular então. Fromm destaca, de seus estudos, a princípio, o que não é o car á ter revolucion á rio. N ão é apenas a participação em revoluções, daí dife renciando, tal qual Freud, entre car á ter e comportamento. O car áter revolucioná rio tamb ém não se resume, na visão de Fromm , à postura rebelde. A rebeldia, segundo Fromm, é o ressentimento contra a auto¬ ridade pela personalidade n ão ser amada por ela . O ato de rebeldia n ã o é transformador; antes, é uma assunção ao poder para obtenção do reconhecimento que até ent ão n ão era conseguido. Distingue Fromm, ainda, o cará ter revolucion á rio do fan á tico. Este é o que esco¬ lheu uma causa e a endeusou, tornando-se submisso a ela. Fromm o compara a um “ adorador de ídolo” . A ¬

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52

FROMM, Erich . A Arte de Amar. S ão Paulo, Martins Fontes, 2000, pp. 163 e 164.

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Definindo revolução, no sentido psicológico, como “ um movimento político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pes¬ soas de caráter revolucionário” ,53 Fromm passa a se dedicar à definição positiva do caráter revolucioná rio. Trata-se, em primeiro lugar, de ser independente, ser livre, o que se revela quando o indivíduo pensa, sente e decide por si, numa relação produtiva com o mundo exterior. Além disso, o caráter revolucioná rio identifica-se com a humani¬ dade. Isto quer dizer que n ão se detém nas particularidades de sua situa ção econ ô mico-social- hist ó rica, e sim que pode transcender ao acidental em busca de uma visada maior. Revela-se ainda mais no amor à vida que no apego à vida. Além disso, alimenta um esp í rito cr ítico, que não se deixa conduzir pela opinião da maioria. Mais ainda, segundo Fromm, para o car á ter revolucion á rio “ o poder jamais se torna santificado, jamais toma o papel da verdade, da moral e do bem” . 54 Quer com isso dizer que o car áter revolucioná rio não se deixa impressionar moralmente pelo poder. Além disso, é capaz de dizer “ não” e, por isso, é capaz de desobediência. Entendo como cará ter revolucion á rio n ã o um conceito ético, mas um conceito din â mico. blão se é “ revolucioná rio” nesse sentido caracterol ógico porque se pronunciem frases revoluci ¬ on á rias ou se participe de uma revolu çã o. O revolucion á rio , nesse sentido, é o homem que se emancipou dos laços de san ¬ gue e solo, da m ãe e do pai , das lealdades para com o Estado, classe , raça, partido, religi ão. O car á ter revolucion á rio é humanista no sentido de que se sente parte de toda a huma¬ nidade , e nada que seja humano lhe é estranho. Ama e respei ¬ ta a vida. É um cético e um homem de fé.

53

FROMM, Erich. O Dogma de Cristo e Outros Ensaios sobre Religião, Psicologia e Cultura. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986, p. 119. Ibid., p. 124 . ;

54

ALYSSON LEANDRO MASCARO

[ . . .] Esse sum á rio pode sugerir que descrevi a sa ú de mental e o bem-estar, e n ão o conceito do caráter revolucion á rio. Na realidade, a descri ção dada reproduz a pessoa sadia, viva, men ¬ talmente sã . Minha afirmação é a de que a pessoa sadia num mundo insano, o ser humano plenamente desenvolvido num mundo aleijado, a pessoa plenamente desperta num mundo semi- adormecido — é precisamente o cará ter revolucion á rio.55

De tal sorte, Fromm delineia os primeiros grandes contornos da utopia do amanhã a partir da jun ção do marxismo e do freudismo: “ quando todos estiverem acordados, n ão haver á mais profetas ou caracteres revolucion á rios - haver á apenas seres humanos plenamen te desenvolvidos” , 56 ¬

55

Ibid., pp. 127 e 128.

56

Ibid., p. 128.

CAPíTULO 4

A UTOPIA EM MARCUSE Se os freudo-marxistas Reich e Fromm apontam definitivamen te para um momento de supera çã o da repressão e do autoritarismo, almejando já um futuro utó pico de felicidade e de prazer, o mesmo n ão se pode dizer do movimento que se segue, posteriormente a Reich e Fromm, na Escola de Frankfurt. Horkheimer e Adorno h ão de se distinguir do freudo-marxismo pela desconfiança na aliança da ra zão e da emancipa ção. A Escola Cr í tica é o desapontamento com a razão e a utopia. ¬

¬

De in ício, a Escola de Frankfurt vale-se de grande parte das considerações de Reich e Fromm no que tange à união de freudismo e marxismo. De fato, o pró prio Fromm é quem lidera, para a Escola de Frankfurt, a parte psicológica das pesquisas sobre a personalida de autoritá ria na d écada de 1930. Ocorre, no entanto, que as posi ções de Adorno e Horkheimer começam por estabelecer diferenças substanciais de abordagem dos mesmos problemas que Fromm e Reich constatavam em outras claves. Estes já procediam, na década de 1930 , a um movimento filosófico de s í ntese, de identidade. O homem reconciliado consigo pr ó prio, a humanidade enfim liberta da opressão e apta ao prazer genital e pleno, estas eram divisas já apontadas por Fromm e Reich. Adorno e Horkheimer desconfiarão da síntese e da identidade. ¬

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ALYSSON LEANDRO MASCARO

TEORIA CRíTICA: ADORNO

E

HORKHEIMER

Os postulados da recusa da síntese e da identidade em Adorno e Horkheimer são a quebra da filosofia racionalista moderna, positivista, associada em seu início a Descartes. Desde a emancipação da filosofia de seus condicionantes medievais, ela resvala por caminhos positivistas, que enxergam no princípio da identidade e portanto da n ão-contradição - o seu fundamento. Buscará a Escola de Frankfurt, no entanto, a con tradição inerente ao próprio capitalismo, à sociedade contemporânea.



¬

Assim , começa-se a se estabelecer uma fundamental diferen ça dos frankfurtianos em relação a Reich e Fromm . Para estes, a aposta na reconciliação da humanidade consigo mesma era uma aposta na ra zão. Talvez fosse um último suspiro de Iluminismo, melhor qualificado que seus congé neres do século XVIII, porque reconhecedor das pulsões, do inconsciente, dos limites da razão, mas ainda assim iluminista, por¬ que aponta o momento superior da reconciliação pela própria razão. Adorno e Horkheimer encaminham-se em sentido contrário. Não é só a falta da razão que é dominação: a própria razão é dominação. Assim se pronuncia Horkheimer: ¬

A própria teoria filosófica n ão pode determinar se deve predo minar no futuro a tend ê ncia barbarizante ou a visão human ística. Contudo, ao fazer justiça à quelas imagens e ideias que em determinadas épocas dominaram a realidade exercen do o papel de absolutos por exemplo a idéia de indivíduo tal como predominou na época burguesa e que foram aban donadas no curso da História, a filosofia pode funcionar como um corretivo da História, por assim dizer. Assim , os estágios ideol ógicos do passado não seriam identificados simplesmen¬ te à estupidez e à fraude - tal como o veredicto estabelecido contra o pensamento medieval pelo Iluminismo francês. As explicações sociológica e psicológica das crenças antigas seri¬

¬





¬

UTOPIA E DIREITO

am distintas da condenação e supressão filosófica das mesmas. Despojadas do poder que tinham em sua situação na época, serviriam para lançar alguma luz sobre o rumo atual da hu ¬ manidade. Assumindo esta função, a filosofia seria a memó ria e a consci ê ncia da espécie humana , e deste modo ajudaria a evitar que a marcha da humanidade se assemelhasse à circula¬ ção sem sentido da hora de recreio de um manicomio.57

Para Reich e Fromm, talvez pudesse se dizer que as mazelas do homem fossem creditadas a um falso uso da razão. Daí, a den ú ncia da ideologia é a arma a partir da qual se procede à liberação. Adorno e Horkheimer verificam horizontes mais sombrios: nao é a falta de razão que conduz ao totalitarismo, ao fascismo. Antes, é a própria razão, o pr ó prio mundo construído a partir da razão técnica, que leva à domi¬ nação totalit á ria. Reich e Fromm , para a Escola de Frankfurt , teriam a ilusão de que a dominação fosse a falta de razão. Adorno e Horkheimer acreditam que a pr ópria razã o é totalitá ria. O racionalismo moderno e sua exacerbação nazista, irracionalista, são apontados, por Horkheimer, como uma utopia end ógena de do mina ção , que n ão permite a contradi ção, a dial ética, a superação: ¬

Racionalismo e irracionalismo adquiriram , ambos, a função de reconciliar-se com o existente: o racionalismo deu ao perí odo liberal a convicçã o de que o futuro est á antecipado na razão do indiv íduo. A hist ó ria universal era , por assim dizer, o desabrochar do ser racional que cada um possuía em seu â ma go; o indivíduo podia sentir-se imperecível na sua substâ ncia. [...] No capitalismo tardio , que define a maioria dos indiví duos como simples elementos da massa, o irracionalismo for nece, então, a teoria de que a essê ncia desses indivíduos conti ¬ nua a existir na unidade hist órica abrangente à qual eles per¬

¬

¬

¬

57

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razã o. Sã o Paulo, Centauro, 2002 , p. 185 .

>

i ALYSSON LEANDRO MASCARO

tencem a cada vez e

- se fossem apenas obedientes - n ão teri

¬

am com que se preocupar: seu Eu melhor seria acolhido na comunidade após a morte. Desta forma, tanto o racionalismo quanto o irracionalismo estão a serviço da transfiguração.58

Neste sentido, começa a se esboçar, na Escola de Frankfurt, uma visão paradoxal da utopia: não se trata de indagar quais suas condi ções, o mecanicismo do progresso, quando se darão seus eventos ou ent ão quais as táticàs revolucionárias, mas, antes, constatar e compreender como a humanidade pôde ter chegado à condição de dominação sem mais esperanças, sem mais possibilidade de transformação. Para Adorno e Horkheimer, a razão técnica contamina de tal modo a história e a socie dade contemporânea que é virtualmente impossível a quebra de tal pa drão de dominação. Por tal razão, invertem a premissa de Marx das Teses sobre Feuerbach. Se nelas Marx dizia que a filosofia já havia interpretado o mundo, e portanto era imperioso que se o transformasse, aqui Adorno e Horkheimer partem do contrário. Dado que a busca de transforma¬ ção mostrou-se infrutífera, é preciso compreender o mundo. A filosofia tem, pois, seu papel, como teoria crítica. A utopia é o entendimento do domínio da razão, e talvez não sua transformação. ¬

¬

Hoje, o progresso em relação à utopia é bloqueado antes de tudo pela completa desproporção entre o peso do mecanismo esmagador do poder social e o das massas atomizadas. [...] Se a filosofia conseguir auxiliar as pessoas a reconhecer esses fato¬ res, prestar á um grande serviço à humanidade.59

Tal utopia negativa domina o horizonte intelectual da primeira formação da Escola de Frankfurt. Marcuse é quem destoará em partes de Adorno e Horkheimer a respeito do papel da utopia, mas ainda assim começará sua filosofia do solo cru da constatação de que, no 58 59

HORKHEIMER, Max. Teor í a Cr ítica I. São Paulo, Edusp/Perspectiva, 1990, p. 133. HORKHEIMER, Eclipse da Razão, op. cit., p. 186

.

UTOPIA E DIREITO

mundo contemporâ neo, a razão é a dominação. H á uma certa afini dade entre toda a abordagem da Escola de Frankfurt e as cr íticas, de certo modo conservadoras ou reacion á rias, de Heidegger. O pró prio Marcuse, aluno de Heidegger, encarrega-se de apont á-la e ao mesmo tempo de separ á-la. Em comum a Adorno, Horkheimer, Marcuse e Heidegger está a recusa da técnica como elemento de emancipação. A técnica e a razã o revelam-se opressivas na sociedade capitalista. O sen ¬ tido da utopia, porém , é inverso. Para Heidegger, a crítica da técnica e do racionalismo é devida à sua condição de destrui ção dos vínculos origin á rios, da sociedade comunal do passado. Para a Escola de Frank furt, a técnica e a razão são o obstáculo da transformação , Em relação a isso , o sentido da cr ítica da Escola de Frankfurt é ainda o sentido do marxismo: a utopia, ainda que n ão realizada, aponta para o futuro, o novo, e não para o passado. ¬

¬

Adorno e Horkheimer insistem em enxergar no pensamento de Freud um momento explosivo, pr óximo ao de Marx,60 que o freudomarxismo de Reich e Fromm descartou . A dialé tica entre o indivíduo e a civilização não é superá vel , ao menos não no sentido proposto por Reich e Fromm. Trata-se de uma dialética que recusa a síntese fácil, e portanto se detém na contradição, nas dificuldades da concilia ção da humanidade com seus impulsos, desejos e repressões. A Escola de Frank furt enxerga em Freud essa recusa à s íntese, tendo em vista que a an ᬠlise freudiana n ão é apenas da contradição do capitalismo, mas da pró pria humanidade. Assim, aquilo que Reich e Fromm denuncia vam como limiar último da opressão - o capitalismo - deve ser, na ¬

¬

60

"Numa é poca em que a psican á lise era ainda bastante estigmatizada, Horkheimer foi um dos primeiros a reconhecer sua importâ ncia, tendo se submetido, entre 1928 e 1929, a sessões com Karl Landauer, um antigo aluno de Freud . [...] J á o interesse de Adorno pela obra de Freud era mais teó rico do que prá tico. (...1 Em todos os seus trabalhos importantes da década de 1930 aparecem referê ncias à psican á lise, ou, antes, tentativas de se apropriar dela com objetivos de empreender uma cr ítica da cultura contemporâ nea ". DUARTE, Rodrigo. Adorno/ Horkheimer & A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002, p. 20.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

verdade, entendido como uma dialética irresoluta da pró pria condi ção humana. A dial ética negativa de Adorno e Horkheimer aponta para a dificuldade da síntese e da utopia . ¬

A não -identidade , em Freud , assume sua forma mais inflexí vel: a tese da reconciliação impossível entre os interesses do indivíduo e da civilização. Toda a construção metapsicológica de Freud gira em torno do conflito, jamais superável à luz da realidade pulsional do homem e das exigências da cultura, entre desejo e realização. [...] Dial é tica que, como a de Ador ¬ no e em contraste com a de Hegel , recusa a facilidade de uma sí ntese utó pica. É essa dialé tica sem síntese que impede, no plano terap ê utico, a cura integral pois Freud sabe, secretamente, que a normalidade que a psican álise promete a seus pacientes será sempre fict ícia enquanto o crité rio de sa ú ¬ de psíquica for uma realidade em si mesma enferma - e con ¬ dena, no plano sociol ógico, o indivíduo socializado à ren ú n ¬ cia e à repressão. Em estado de natureza, o indivíduo não pode sobreviver; e no estado social , não pode ser feliz. O pathos desse dilema, que a teoria pol ítica burguesa tentou camuflar com a doutrina do contrato social ( Hobbes, Locke, Rousseau) e que os freudo- marxistas banalizaram com sua pseudohistoricização (o antagonismo indivíduo-sociedade, que Freud supõe eterno, só é inevit ável no sistema capitalista) aparece aqui sem nenhum disfarce. O processo çivilizató rio coincide com o sacrifício pulsional.6' ¬



De tal forma, a recusa da síntese leva a Escola de Frankfurt a expandir a análise da dominação, no capitalismo , a estruturas até en t ã o desconhecidas do marxismo vulgar, mas sem cair na tentação de Reich e Fromm de dar à superestrutura o condã o de iniciar o procedimento da reconciliação. A superestrutura é também responsá¬

61

ROUANET, Sé rgio Paulo. Teoria Critica e Psicanálise. Op. cit . , pp. 110 e 111 .

UTOPIA E DIREITO

vel pela divisão e pela opressão, mesmo se apresentando sob a forma da razão, da técnica e do progresso. A Escola de Frankfurt h á de rom per com o paradigma do progresso infinito e linear, denunciando a regressão e a barbá rie. ¬

A quest ão é que o esclarecimento tem que tomar consci ê ncia de si mesmo, se os homens n ão devem ser completamente traídos. N ão é da conservação do passado, mas de resgatar a esperança passada que se trata. Hoje, porém , o passado se pro¬ longa como destrui ção do passado . Se a cultura respeitável constituiu at é o século dezenove um privilégio, cujo preço era o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espa¬ ço higié nico da fá brica teve por preço a fusão de todos os ele ¬ mentos da cultura num cadinho gigantesco . [...] Nas condi ¬ ções atuais, os próprios bens da fortuna convertem-se em ele¬ mentos do infort ú nio. Enquanto no per íodo passado a massa desses bens, na falta de um sujeito social, resultava na chama ¬ da superprodução, em meio às crises da economia interna, hoje ela produz, com a entronização dos grupos que det ê m o poder no lugar desse sujeito social , a ameaça internacional do fascismo: o progresso converte-se em regressão.62

Assim, para Adorno e Horkheimer, buscando aliar a den ú ncia marxista à relativa inflexibilidade do freudismo sem s í nteses, o pro¬ gresso é a regressão. A utopia só cabe, na verdade, como den ú ncia da esperan ça do ontem que não se cumpriu.63

62 63

ADORNO e HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985 , p. 15. " Diante das transforma ções por que passou o capitalismo no sé culo XX, Adorno n ã o vê outra possibilidade para a filosofia sen ã o a de examinar o existente sob a luz da promessa de reden çã o que, por um lado, foi perdida quando da passagem à 'sociedade administrada', e que, por outro, ilumina tragicamente a pró pria história da filosofia". NOBRE, Marcos. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno . São Paulo, Fapesp/lluminuras, 1998, p . 40.

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DA ESCOLA DE FRANKFURT A MARCUSE O pensamento de Marcuse é tributário e ao mesmo tempo dissi dente do corpo principal de pensamento da Escola de Frankfurt. Ador¬ no e Horkheimer sao seus principais inspiradores, mas, ao mesmo tem¬ po, Marcuse rejeitará em grande parte a utopia negativa dos funda¬ dores da Escola de Frankfurt. Nos movimentos de revolta estudantil da década de I 960, a diferença é bem clara. Enquanto Adorno che¬ gou a ser hostilizado pelos estudantes, por sua relativa apatia quanto às insurgências, Marcuse foi tido como o principal inspirador teó rico dos movimentos daquela década. A postura marcuseana foi , decidida mente, pela atuação polí tica, levada cada vez mais ao radicalismo.

¬

¬

Tal postura política ativa em face dos movimentos estudantis e soci ais de seu tempo encaminha Marcuse a uma abordagem distinta do problema da utopia. Enquanto para Adorno e Horkheimer somente a filosofia poderia iluminar a perda da utopia, porque a sociedade capita lista já internalizara a dominação a ponto de não haver volta, para Marcuse trata-se do contrário. O papel da filosofia é o de desbastar a dominação e as suas contradições, porque nessas contradições do capita¬ lismo contemporâneo estariam as possibilidades da utopia. ¬

¬

Mas, ao mesmo tempo, Marcuse não aceita a utopia fá cil do freudo-marxismo de Reich e Fromm. Não se trata apenas de proceder a uma exponencia ção do prazer liberto das amarras do superego e da sociedade autoritá ria, sem que se encontre a dialética existente entre tais. Marcuse aposta, tal qual Adorno e Horkheimer, que a sociedade capitalista já internalizou de maneira profunda a dominação. Õ que ocorre, então, para Marcuse, é a necessidade de transformar o capita¬ lismo, a fim de que se liberte a humanidade, e n ão o contrário, como o freudo-marxismo previa.

PSICANáLISE E LIBERTAçãO Em Eros e Civilização., sua principal obra, Marcuse dedica-se à jun¬ ção da psicanálise ao marxismo, embora seu escopo fundamental seja, mesmo, debruçar-se sobre Freud e seus horizontes. Fromm é uma das bases de contraste com o pensamento marcuseano. É preciso rejeitar a facilidade da transformação no mundo contemporâneo, e, nessa petição de princípio pela dificuldade, Marcuse é muito próximo de Adorno.

Reich e Fromm apostam que as condições para a libertação se tanto no plano sexual , da personalidade, quanto no plano social, das estruturas polí ticas e económicas. Encaminham, assim , uma análi¬ se da utopia da libertação que comece por emancipar os indivíduos dos constrangimentos da sociedade autoritária, por meio da liberta ção sexual. Segundo Reich e Fromm , o prazer é o caminho da trans¬ formação e da utopia. d ão

¬

Marcuse aponta a falta de dialética de tal visão, superficial na sua perspectiva: a aposta na libertação como possibilidade do prazer pes soal é a falta de mobilização e de ação na transformação das estruturas que condicionam o autoritarismo e a opressão. Assim, Reich e Fromm poderiam ser vistos como pensadores ainda iluministas, numa certa medida liberais, na medida em que erigem no indivíduo um papel preponderante na transformação. Marcuse há de acreditar que tal postura é insuficiente, não dando conta de toda a contradi ção da soci edade capitalista. Tratando de Fromm e Reich como revisionistas que enfraqueceram o potencial revolucion á rio da teoria freudiana, assim aponta Marcuse: ¬

¬

Acima e contra esse “ programa m ínimo” , Fromm e os outros revisionistas proclamam uma finalidade superior da terapia: o “ desenvolvimento ó timo das potencialidades de uma pessoa e a realização de sua individualidade” . Ora , é precisamente essa

rr \

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finalidade que é essencialmente inatingível — n ão por causa das limitações nas t écnicas psicanalí ticas, mas porque a pró ¬ pria civilização estabelecida a nega, em sua estrutura. Ou se define “ personalidade” e “ individualidade” em termos de suas possibilidades dentro da forma estabelecida de civilização, em cujo caso a sua realizaçã o é sinó nimo, para a grande maioria, de um ajustamento bem sucedido; ou se define nos termos de seu conte ú do transcendente, incluindo suas potencialidades socialmente negadas, para além (e subentendidas) de sua exis¬ tência concreta; neste caso , sua realização implicaria trans¬ gressão, alé m da forma estabelecida de civilização, para mo¬ dos radicalmente novos de “ personalidade” e “ individualida¬ de” incompat íveis com os prevalecentes . Hoje, isso significa ¬ ria “ curar” o paciente para converter-se num rebelde ou (o que quer dizer a mesma coisa ) num m á rtir. O conceito revisionista vacila entre as duas definições. Fromm revive to¬ dos os valores consagrados da ética idealista, como se nin¬ gué m tivesse jamais demonstrado suas caracter ísticas confor ¬ mistas e repressivas.64

Marcuse buscará, numa outra interpretação de Freud, sua dife rença em relação ao chamado revisionismo de Fromm e Reich. De certa maneira, Marcuse iguala-se aos freudo-marxistas na cr í tica em relação ao pessimismo de Freud quanto à possibilidade de felicidade na civiliza çã o.65 A cr ítica de Reich a Freud encaminhava-se no sentido de que a civilização n ão requereria, para seu estabelecimento, da re¬

64

65

MARCUSE, Herbert. Eros e Civiliza ção. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan , s/d, p. 220. Eros e Civilização, sua tese é a de que Freud equivocou se quando viu na culpa e na infelicidade o inevitá vel tributo pago pelos indiv íduos para se protegerem da destrui ção m ú tua. [. ] Marcuse n ã o aceita essa dial ética . Em seu entender, ela mostra dois grandes defeitos. Em primeiro lugar, Freud teria tomado 'a civiliza çã o' como sin ó nimo de interioriza ção das necessidades alienadas do capitalismo industrial . Em segundo, Freud , malgrado ele pró prio, confundiu eros com sexualidade. Se, de fato, uma sociedade afogada em sexualida ¬ de n ão pode ser feliz, há como pensar numa sociedade feliz e pacificada, sob o regime do erotismo" COSTA, Jurandir Freire. " Utopia sexual, utopia amorosa". In Utopia e mal-estar na cultura : perspectivas psicanalíticas. São Paulo, Hucitec, 1997, p. 117.

-

" Em

.. .

UTOPIA E DIREITO

n ú ncia aos prazeres genitais , no m áximo aos prazeres pré-genitais ou ent ão das pulsões agressivas. Assim , seria possível distinguir quais seri am as repressões da civilização necessá rias e quais as excedentes. ¬

Marcuse també m se encaminha pr óximo a essa perspectiva, mas noutra abordagem . Constr ó i a noçã o de “ mais- repress ão” , aquela res pons á vel pela opress ã o na civiliza ção. Mas aposta Marcuse no florescimento dos pr ó prios prazeres pr é-genitais como condi ção de uma sublimação positiva . O Ego , como responsável pela sublima çã o , teria condi ções de proceder a uma orienta çã o dos prazeres n ã o só genitais, mas fundamentalmente pr é-genitais - que não seja para a manuten ção da ordem opressiva e castradora da felicidade, mas que seja, sim , conscientemente liberadora de prazer. Afastando a sexualidade meramente reprodutora genital, segundo Reich , Marcuse aponta uma sexualidade que invista em todo o corpo e , da í, a novas modalidades ut ó picas de prazer, n ã o centradas nos mecanis¬ mos tradicionais da sociedade capitalista , que são orientados para a reprodução e o controle. ¬

¬





A força plena da moralidade civilizada foi mobilizada contra o uso do corpo como mero objeto, meio, instrumento de prazer; tal coisificação era tabu e manteve-se como infeliz privilégio de prostitutas, degenerados e pervertidos. Precisamente em sua gratificação e, em especial , em sua gratificação sexual , o homem tinha de comportar-se como um ser superior, vinculado a valo¬ res superiores; a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor. Com o aparecimento de um princípio de realidade n ão- repressivo, com a abolição da mais-repressão requerida pelo princípio de desempenho , esse processo seria invertido. Nas relações soci¬ ais, a coisificação reduzir-se-ia à medida que a divisão do traba¬ lho se reorientasse para a gratificação de necessidades individu¬ ais, desenvolvendo-se livremente; ao passo que, na esfera das relações libidinais, o tabu sobre a coisifica ção do corpo seria



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atenuado. Tendo deixado de ser usado como instrumento de trabalho em tempo integral, o corpo seria ressexualizado. [...] Essa mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria a uma desintegração das instituições em que foram organizadas as relações privadas interpessoais, particularmente a fam ília monogâ mica e patriarcal . [ ...] Falamos da auto-sublimação da sexualidade. O termo impli ¬ ca que a sexualidade pode, sob condições específicas, criar rela¬ ções humanas altamente civilizadas sem estar sujeita à organi ¬ zação repressiva que a civilização estabelecida impôs ao instin ¬ to. Tal auto-sublimação pressupõe o progresso histó rico para alé m das instituições do princípio de desempenho, as quais, por sua vez, permitiriam a regressão instintiva. Para o desenvol ¬ vimento do instinto, isso significa regressão da sexualidade a serviço da reprodução para a sexualidade na função de “ obter prazer através das zonas do corpo” . Com essa restauração da estrutura prim ária da sexualidade, a primazia da função genital foi quebrada assim como a dessexualização do corpo que acom ¬ panhou essa primazia. O organismo , em sua totalidade, torna se o substratum da sexualidade, enquanto , ao mesmo tempo , o objetivo do instinto deixa de ser absorvido por uma fun ção es¬ pecializada, ou seja, a de “ pôr os órgãos genitais do indivíduo em contato com os de alguém do sexo oposto” . 66



¬

Aponta Marcuse para um freudismo que supere sua origina! in capacidade de conciliação entre Eros e Civilização. Para além de Reich e Fromm , que acreditavam no potencial genital libertá rio, Marcuse inscrever á a mudan ça da civilizaçã o como libertadora dos prazeres corporais, que chegariam aos n íveis pré-genitais. ¬

66

MARCUSE, op. di , pp. 177

e 179.

UTOPIA E DIREITO

A UTOPIA EM MARCUSE Ao contrário do pensamento freudo- marxismo, Marcuse inicia sua visão da utopia de um ponto de partida negativo, tal qual Adorno e Horkheimer: a sociedade capitalista não possibilita a satisfação das necessidades nem a libertação dos prazeres. Só na an álise dos mecanis¬ mos pelos quais o capitalismo introjetou a dominação é que se revela o passo possível da utopia para Marcuse.

Havia impl ícita, na teoria do freudo-marxismo, a possibilidade da den ú ncia ideológica da opressão, na medida em que a razão - como o contr á rio da ideologia - seria arma da libertação. A dominação se xual, a exploração extra- necessá ria imposta pela sociedade capitalista, o bloqueio do prazer, tudo isso seria denunciável pela razão, de tal sorte que o projeto utó pico da emancipação seria racional. Marcuse desconfia de tal postura. Nas.sociedades capitalistas contemporâ neas, desenvolvidas, h á de enxergar uma incorpora çã o da pr ó pria racionalidade ao sistema opressivo: a razão, que antes era potencial arma de.contestação e cr ítica, passa a ser, agora, um dos instrumentos da própria lógica da dominação. A racionalidade administrativa, dos negócios, a utilização da psicologia como forma de dom ínio — o pensa¬ mento positivo como arma de negócios e lucros - são instrumentais que se valem da razão não para a emancipação, e sim para o domínio. A sociedade que resulta de tal introjeção do domínio na pr ó pria racionalidade das massas, das classes exploradoras e exploradas, Marcuse a denomina sociedade unidimensional . Sua característica fundamental é a de n ão lograr constituir um duplo crítico que esteja do lado oposto do domínio. A racionalidade não funciona como con traste da opressão; antes, é arma da pró pria opressão. ¬

¬

Resulta de tal unidimensionalização social e individual que o pro ¬ jeto da utopia vai se esgotando nas sociedades capitalistas contempo-

ALYSSON LEANDRO MASCARO

raneas. O espaço do diverso, do crítico, do contrastante - do mais além - se esvai, e, em seu lugar, toma corpo a racionalidade administradgra dos ganhos e preju ízos imediatos. A incorporação das classes proletá rias a ganhos de consumo, nas sociedades capitalistas contem porâneas, esgota a capacidade utópica em troca da manutenção do mesmo. Neste sentido, a unidimensionalização do homem é a impossi ¬ bilidade de sonhar e projetar, de maneira crítica, a emancipação. ¬

A estrutura das sociedades capitalistas contemporâneas, ao incorpo rar a racionalidade como cálculo da produtividade, do desempenho no trabalho, transforma o potencial revolucionário e libertador das classes trabalhadoras em utopia tomada no sentido banal de impossibilidade. ¬

A relegação de possibilidades reais para a “ terra de ningu ém” da utopia constitui, só por si, um elemento essencial da ideo¬ logia do princípio de desempenho. Se a construção de um desenvolvimento instintivo n ão-repressivo se orientar, n ão pelo passado sub-histórico, mas pelo presente histórico e a civiliza ção madura, a própria noção de utopia perde o seu significa¬ do. A negação do princípio de desempenho emerge não con¬ tra, mas com o progresso da racionalidade consciente; pressu põe a mais alta maturação da civilização. As próprias realiza¬ ções do princípio de desempenho intensificaram a discrepâ n cia entre os processos do inconsciente arcaico e da consciência do homem, por uma parte, e as suas potencialidades concre¬ tas, por outra.67 ¬

¬

¬

Marcuse encaminha, a partir daí, uma crí tica da cultura bastante específica. Revela-se, quanto à cultura, um paradoxo no que diz res¬ peito à utopia: enquanto alienação da esfera produtiva, ou enquanto máscara que embaralha a visada da realidade, a cultura representa um elemento de alteridade, e, portanto, o desgarramento. da realidade 67

Ibid . , p. 139.

UTOPIA E DIREITO

opressiva representará, por si pró prio, um potencial emancipató rio. No entanto, na medida em que a cultura se converta em representação efetiva do pró prio domíiiíõ, sem contraste, ou sem divergê ncia, a cultura é a pr ópria realidade da unidimensionalização.

Tal se d á, segundo Marcuse, na pró pria filosofia, quando incor ¬ pora a racionalidade do domínio social em si própria, e não abre hori zontes de cr ítica . O positivismo é a face acabada de tal esgotamento ut ó pico na filosofia, na medida em que se presta meramente aos ins trumentais analíticos que n ão logram encaminhar a crítica ao existen ¬ te. A unidimensionaliza ção, na filosofia, se revela no positivismo e na filosofia analítica.68 ¬

¬

O positivismo é o exato contr á rio, pois, de uma teoria cr ítica que possa colocar sob suspei ção a pr ó pria razão e, por isso, possa apontar necessariamente um sentido de utopia. Num texto intitulado “ Filoso fia e Teoria Cr ítica” , Marcuse aponta os laços necessá rios da Teoria Cr ítica com a utopia: ¬

Nesse estádio dado de desenvolvimento, mostra-se novamen¬ te o car á ter construtivo da teoria cr ítica. Desde o in ício, ela foi mais do que um mero registro ou sistematizaçã o de fatos, seu impulso vem exatamente de sua for ça, com a qual fala contra os fatos, confrontando a m á facticidade com suas melhores possibilidades . Como a filosofia, ela opõe-se à justiça da reaii68

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"Assim como a sociedade unidimensional é a caricatura da dial ética fusão repressiva de contr á rios - e realiza sua pró pria desalienação - cr ítica repressiva da aliena ção da cultura , ou cr ítica da cr ítica o positivismo, reflexo teórico dessa sociedade, assume , também, a forma de uma filosofia pol ê mica , voltada contra o pensamento metaf ísico e contra as formula ções ling üísticas inexatas. Vá lidas são apenas as proposi ções da l ógica e da matem á tica verdadei ¬ ras mas tautol ógicas, pois assumem a forma de julgamentos anal íticos, em que o predicado já est á contido no sujeito - e as proposi ções valid á veis pela verifica çã o emp írica , que dizem algo sobre a realidade ( julgamentos sintéticos, em que o predicado n ão está contido no sujeito ) mas que n ão sã o certas, e sim meramente prová veis. Sã o esses os limites absolutos do horizonte cognitivo positivista . Ora , as proposi ções cr íticas, que transcendem o existente, situam se, por defini ção, fora desses dois crité rios. [...] São, em sua essê ncia, irracionais, de acordo com as regras do jogo estabelecidas, autoritariamente, pela epistemolog í a positivista".



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ROUANET, op. dl ., p. 205.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

dade, opõ e-se ao positivismo satisfeito. Entretanto , diferente¬ mente da filosofia, sempre extrai seus objetivos a partir das tendê ncias existentes do processo social . Portanto , ela não tem medo da utopia, pela qual a nova ordem é denunciada . Na medida em que a verdade n ã o for realizá vel dentro da ordem social existente, mesmo assim ela tem para esta o cará ter de uma mera utopia. Tal transcend ê ncia n ão fala contra, mas sim pela verdade. O elemento ut ó pico foi , na filosofia, durante muito tempo, o ú nico elemento progressivo: como as cons¬ truções dos melhores Estados, do prazer superior, da felicida ¬ de (Glückseligkeit) perfeita e da paz perp étua. A teimosia, que vem de se apegar à verdade contra todas as aparê ncias , tem dado lugar, na filosofia, hoje , à extravagâ ncia e ao oportunis¬ mo sem pudor. Na teoria cr ítica, a teimosia foi mantida como a autêntica qualidade do pensamento filosó fico.69

O processo de unidimensionalização, para Marcuse, revelar-se-á complementar ao domí nio da técnica na sociedade capitalista. A téc¬ nica passa a se revelar como forma da unidimensionalização, na medi da em que é forma ú nica da reprodução capitalista . A técnica repre¬ senta a banaliza çã o do sentido, numa crítica de Marcuse muito próxi ma, em certa medida, à de Heidegger, que lhe valeu , no que versa a respeito da técnica, uma pecha indevida de reacion á rio, na medi da em que apostaria numa sociedade pré- tecnológica. No entanto, o encaminhamento da questão da técnica em Marcuse é justamente o oposto de qualquer regressão origin á ria no sentido heideggeriano. Na verdade, a cr ítica marcuseana à técnica revela-se muito mais próxima de Marx que de Heidegger, na medida em que é a exacerbação da t écnica que possibilita vislumbrar a utopia. Antes de se insurgir contra a técnica, Marcuse a pressupõe.70 ¬

¬



69 70



¬

e Sociedade. Vol . 1. S ão Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 145. procurou demonstrar que o que diferenciava nossa é poca histó rica de qualquer outra j á vivida pela humanidade era o fato de que nela viver íamos num outro estado MARCUSE, Herbert . Cultura

"Marcuse

UTOPIA E DIREITO

O projeto ut ó pico de Marcuse passa , necessariamente, pela eman ¬ cipação do trabafiio ; tal qual Marx, há de situar no n ível produtivo, na exploração da for ça de trabalho , o cerne da injustiça capitalista . Ao contrario das críticas vulgares, mas, paradoxalmente, ainda nos passos do pró prio Marx, Marcuse aponta o alto componente ut ó pico da exa¬ cerbação da t écnica capitalista para a questão do trabalho: chegando a ¬ um n ível no qual a satisfação das necessidades esteja praticamente ga rantida por conta da tecnologia, haveria então a emancipaçã o da ne cessidade do trabalho — ao menos do trabalho explorado — e o traba ¬ lho converter-se-ia, então, em tempo livre, transformando a opressão em gozo. Nas palavras de Marcuse, tratar -se- ia, no vislumbre da uto¬ pia, de transformar o trabalho em jogo. A utopia de Marcuse, no cerne duro das relações produtivas, concerne em transformar a exploração em atividade l ú dica.71 ¬

Marcuse se dá conta, no entanto , que a sociedade capitalista absor¬ ve e manipula o progresso técnico de tal modo que a exploração n ão se faça só por conta da necessidade do trabalho para a produção, mas, essencialmente, para a manuten ção do dom ínio social. A sociedade ca¬ pitalista se mobiliza contra o inimigo externo - a possibilidade de ruptu ra revolucion á ria — e se mantém mobilizada contra a emancipação in ¬ da terna das classes proletá rias dominadas . Assim, aponta o paradoxo potencial liberação do trabalho que n ão se realiza no capitalismo: ¬

71

tecnológico, num outro estágio de civiliza çã o. O desenvolvimento acelerado das novas que as tecnologias - já perfeitamente delineadas em meados da d écada de 60, fazia antever o homem". mesmas poderiam abrir caminho para novas possibilidades de libera ção para , . 170. SOARES, Jorge Coelho. Marcuse: uma trajetória. Londrina , Ed . UEL, 1999 p ítica, mas també m e , pol social mica ó " Logo, a revolu ção no século XX n ão será apenas econ e a a cultural . É necessá rio reformular a teoria marxista , n ã o só porque mudaram estrutura estabilizar conseguiu capitalismo o porque m é tamb , a mas trabalhador consciência da classe . Da í o se. Numa palavra, é preciso pensar a revolu ção no â mbito da sociedade de consumo anos 60, quando se fasc ínio exercido pelas id é ias de Marcuse sobre as revoltas estudantis dos ê ncias materiais, percebeu que o capitalismo podia ser posto em xeque n ão em virtude de car e pr ática". In teoria o entre rela çã A " Marcuse . Herbert Maria , Isabel . mas espirituais" LOUREIRO , 117. , p , 1998 Fapesp . Unesp / Ed , Paulo ítulos do Marxismo Ocidental. Sã o ¬

Cap

ALYSSON LEANDRO MASCARO

A expressão mais óbvia da oposi ção enrre possibilidade e rea¬ lidade reside na automação. Com a progressiva automação, o sistema tende de fato à supressão quase total do trabalho soci ¬ almente necessá rio, do trabalho alienado, ou seja, ele tende, n ão só de maneira ut ó pica , mas de maneira bastante realista, a ser uma sociedade em que o tempo de trabalho é um tempo marginal e o tempo livre é tempo integral , a ser uma socieda¬ de em que o desemprego seria normal e progressivo. Esta pos¬ sibilidade é irrealizável nos quadros do sistema , ela é incom patível com as institui ções econ ó micas, pol íticas e culturais por ele criadas, seria de fato a catástrofe do sistema capitalista, donde a mobilização total n ão só contra o inimigo externo, como també m contra essa possibilidade.72 ¬

Não apostando apenas no progresso ou no devir mecâ nico das possibilidades, mas ressaltando o cará ter pol ítico da luta pela eman cipação, a utopia em Marcuse, ao contrá rio do freudo-marxismo , irá problematizar a questão da felicidade, lembrando de seu car á ter po l ítico-estrutural, e n ão apenas do seu componente psíquico-indivi ¬ dual. No trabalho e na opressão estrutural do capitalismo, residem grandes alicerces da sociedade neur ó tica. Marcuse vislumbrar á a uto pia só na ação de emancipação, no projeto de libertação total e es¬ trutural. Insiste na dial é tica, enquanto contradição e negação, como fundamento da libertação e como horizonte atual para que se pense a utopia futura. Somente após a grande travessia da libertação da contradição é que a humanidade estaria então de frente consigo pró pria , emancipada. O projeto do Iluminismo, da reconciliação da hu¬ manidade consigo pró pria, n ão é o mé todo da libertação, é sim sua meta. O m étodo é dialé tico, fincando Marcuse o p é de sua filosofia ¬

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¬

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72

MARCUSE, Herbert. "Perspectivas do socialismo na sociedade industrial avan çada" in A Gran¬ de Recusa Hoje. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 48. ,

UTOPIA E DIREITO

em Hegel e Marx: é preciso a radicalidade do negativo para que se chegue ao positivo.73

Valendo-se de uma hermen ê utica simbólica para seu projeto de utopia, Marcuse considera a sociedade emancipada como o Reino de Orfeu e Narciso , em oposi ção ao Reino de Prometeu, sendo este tomado por Marcuse, em Eros e Civilização , como “ her ó i- arqué tipo do princípio de desempenho” . Orfeu pacifica e reconcilia o homem com a natureza. Vale-se, portanto, de uma reerotização que não seja apenas vinculada ao princípio do desempenho, da procriação, da genitalidade: todo o corpo, a natureza , as á rvores e os animais tornam-se potenciais er ó ticos. Com Narciso, revelam-se a pacificação do homem consigo pr ó prio, com a beleza, e a insurgê ncia contra a dominação e a ren ú ncia aos prazeres. As imagens ó rfico-narcisistas são as da Grande Recusa: recusa em aceitar a separação do objeto (ou sujeito) libidinal . A re ¬ cusa visa à libertação — a reunião do que ficou separado . Orfeu é o arqu é tipo do poeta como liberator e creator, estabelece uma ordem superior no mundo, uma ordem sem repress ão. [...] Tal como Narciso, (Eros) protesta contra a ordem repressiva da sexualidade procriadora. O Eros órfico e narcisista é, fun ¬



damentalmente, a negação dessa ordem a Grande Recusa. No mundo simbolizado pelo herói-cultural Prometeu trata se da negação de toda a ordem; mas nessa negação Orfeu e Narciso revelam' uma nova realidade, com uma ordem pró¬

73

"Dissemos que para Marx, como para Hegel, a verdade está na totalidade negativa . [. ..] O cará ter histó rico da dial ética marxista abarca a negatividade vigente e a sua nega ção. Um dado estado de coisas é negativo e só pode ser tornado positivo pela libertação das possibilidades a ele inerentes. Isto, a negação da nega çã o, se realiza pelo estabelecimento de uma nova ordem de coisas. A negatividade e sua negação sã o duas fases diferentes do mesmo processo histó rico, associadas pela a ção histó rica do homem. O " novo" estado é a verdade do velho, mas esta verdade n ã o cresce firme e automaticamente a partir do estado mais antigo; ela só pode ser libertada por uma a çã o autó noma dos homens, a ção que anulará a totalidade do estado negativo existente". MARCUSE, Herbert . Razão e Revolução . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, pp. 286 e 287.

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pria, governada por diferentes princípios. O Eros ó rfico trans¬ forma o ser; domina a crueldade e a morte através da liberta ¬ ção. A sua linguagem é a canção e a sua existência é a contem¬ plação. Essas imagens referem se à dimensão estética como sen ¬ do aquela em que o princípio de realidade das mesmas deve ser procurado e validado.74

-

rA utopia em Marcuse, pois, começa negativa como em Adorno e

Horkheimer, negando o hoje, trabalhando politicamente por sua re¬ futação - sendo tal postura a chamada Grande Recusa marcuseana — para que então se revele o amanh ã da reconciliação, a utopia que se encerrar á positiva

^

A Grande Recusa é ao mesmo tempo o extremo da negatividade, da esperan ça e da utopia, e o ponto sensível da filosofia marcuseana.75 A Grande Recusa é o descompromisso com o sistema da dominação, sua den ú ncia, portanto uma ação política que comporta uma variante filosófica fundamental, tomando a filosofia como den úncia da opres s ã o do seu rempo . O resultado da Grande Recusa é a utopia do surgimento da sociedade sem repress ã o. No entanto, a Recusa e a ação libertadora revelam , em Marcuse, o mesmo impasse de toda a Teoria Crítica: a sociedade capitalista contempor ânea internalizou nas classes exploradas a racionalidade opressora, não restando a alternativa dos freudo- marxistas de uma libertação pela razão. A utopia, então, em ¬

74 75

.

MARCUSE, Eros e Civilização, op cit . , pp. 1S4 e 155 A Grande Recusa de Marcuse chega a permitir a acusa çã o de falta de sentido da transforma çã o ou de descompromisso com uma perspectiva democrática: "Permanecendo preso a um ideal utó pico, o pensamento negativo se transforma em revolucionarismo nost á lgico, repassado da amargura da impotê ncia. [...] A supressão dos movimentos regressivos é para Marcuse um requisito do refor ço das tend ê ncias progressistas . Na pr á tica , isso significa a adoçã o de processos exlrademocráticos de ação pol ítica. [...] Entronizando a viol ê ncia revolucion á ria, Marcuse n ã o consegue identificar o seu agente social [...] Desde que o proletariado se adaptou à sociedade repressiva , as forças de emancipa çã o n ã o se confundem mais com nenhuma classe social. ' Hoje, elas estão irremediavelmente dispersas através da sociedade', e as minorias em luta entram freq ü entemente em conflito com as suas pró prias lideran ç as. O agente da revolu ção n ão tem rosto definido". MERQUIOR, José Guilherme. Arte e Sociedade em Marcuse , Adorno e Benjamin. Rio de laneiro, Tempo Brasileiro, 1969, pp. 290 e segs.

UTOPIA E DIREITO

Marcuse, há de se revelar, paradoxalmente, uma aposta última na filo¬ sofia: a democracia representativa burguesa não representa a. vontade da maioria, porque a maioria dominada pensa já como a minoria que a subjuga. Àpontar os sujeitos históricos da transformação é o grande dilema marcuseano, porque, desgarrado da possibilidade da alavanca da denuncia (o que faziam Reich e Fromm contra a Escola de Frank¬ furt ) , mas, ao mesmo tempo , distante da postura apolítica de Horkheimer e Adorno, só resta a Marcuse apostar que a filosofia, tal qual a Escola de Frankfurt, ilumine a negatividade da opressão, mas, além déla, que os que ainda não tenham sido totalmente contamina dos pela racionalidade da dominação alguns proletários, os intelec¬ tuais, os jovens, hippies, ecologistas etc. - se levantem. A Grande Re cusa de Marcuse é difusa. ¬



¬

Num texto de 1969, na euforia dos acontecimentos das rebeliões estudantis, nas quais Marcuse assume o papel de teó rico central, ele aponta tal margem lata e difusa da possibilidade de transforma ção: Na medida em que o processo pseudodemocrá tico, com a aju da de parte do monopólio da m ídia tradicional, produz e re produz a mesma sociedade e, assim, uma ampla maioria indi¬ ferente, na mesma medida a formação e a preparação políticas precisam ultrapassar as formas liberais tradicionais. A ativida de e o esclarecimento políticos precisam ir além de ensinar e escutar, discutir e escrever. ¬

¬

¬

A esquerda precisa encontrar meios adequados para quebrar o universo conformista da linguagem e do comportamento pol í¬ ticos. A esquerda tem que procurar despertar a consciência (.Bewusstsein ) e a consciência moral ( Gewissein ) dos outros. Que¬ brar o modelo corrupto de linguagem e comportamento im¬ posto a toda atividade política é uma tarefa quase sobre-huma¬ na. Exige encontrar uma linguagem e novas formas de organi ¬ zação que n ão tenham mais nada em comum com o uso políti

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ALYSSON LEANDRO MASCARO

co conhecido. Perante o establishments a razão estabelecida esse

tipo de comportamento aparece e precisa aparecer como louco, infantil, irracional. Contudo, poderia muito bem ser o prelu dio de uma tentativa, pelo menos temporariamente bem -suce ¬ dida, de explodir o universo repressivo das relações estabelecidas. ¬

[...] É por faltar um partido revolucionário que, na minha opini ão, esses supostos radicais infantis, embora fracos e des¬ norteados, são os verdadeiros herdeiros históricos da grande tradição socialista. Todos sabemos que suas fileiras est ão infiltradas por agentes provocadores, por loucos e irresponsá ¬ veis. Contudo, nas suas fileiras tamb é m se encontram seres humanos suficientemente livres dos pecados desumanos da sociedade exploradora, suficientemente livres portanto para cooperar numa sociedade na qual n ã o deve mais existir explo¬ ração. É com eles que vou cooperar enquanto puder.76

A Grande Recusa se revela como a tentativa desesperada de fun ¬ dar a utopia na negaçã o, para cumprir o projeto de uma esperan ça saída n ão da filosofia dos esperan çados, mas dos desesperados.

76

MARCUSE, Herbert. " N ã o basta destruir. Sobre a estratégia da esquerda". In A Grande Recusa Hoje , op. cít., pp. 84 e 86.

CAPíTULO 5 BLOCH E LUKáCS: O

MARXISMO HETERODOXO

Ao tempo em que a Alemanha se preparava para sua revolução socialista, em final da década de 1910, logo depois da vitoriosa Revo¬ lução dos russos, Bloch e Lukács já eram jovens filósofos insólitos. Em 1919, quando Rosa Luxemburgo marcaria pessoalmente a histó ria da luta socialista mundial com a derrota de sua revolução, ambos os filó¬ sofos eram já marxistas. Também eram recém-hauridos de um conví¬ vio intenso com o cí rculo intelectual de Max Weber. Lukács fora, no in ício da década de 1910, o escritor de sólidos estudos estéticos de fundo idealista, A alma e as formas e Teoria do Romance, o mesmo que insólitamente arremataria a década na preparação de um dos maiores clássicos de toda a histó ria do marxismo, História e Consciência cie Classe. Ao contrário deste grande movimento de virada lukacsiano, Bloch já acentuava os traços de uma visão filosófica estabilizada. Marxista mais velho que Lukács, também jovem e ainda na década de 1910, escreveria O Espírito da Utopia, um dos marcos de uma visão insólita do marxismo e uma das obras marcantes da filosofia do século XX. Ao mesmo tempo, já prenunciava em sua obra de juventude a temática que o perseguiu por toda a vida: a utopia, que se revelava numa escatologia marxista aberta à religião e às tradições filosóficas mais amplas, apontando para a esperança de um mundo justo. A distâ ncia que se deu entre os Luk ács e Bloch maduros é tam¬ bém, de certa maneira, o volteio de um Lukács impregnado da faina política concreta do mundo soviético, responsável por auto-revisões

ALYSSON LEANDRO MASCARO

de seu pensamento, enquanto para Bloch os problemas pol íticos n ão loram capazes de fazê-lo alterar a rota de um pensamento cujos temas eram especificamente mais buscados que os de Lukács. Terminaram ambos sua trajet ó ria intelectual, na década de 1970, sem a aceitação plena do marxismo ocidental , que era menos engajado que ambos, e sem a aceitação do marxismo oficial sovié tico, que os enxergava como her éticos. Al ém disso , foram proscritos pela maioria da filosofia bur ¬ guesa não-marxista . Embora coerente com suas paixões, Bloch fora tragado pela ausê ncia de paixões dos novos tempos, o mesmo se dando com Lukács. Foram heterodoxos tanto para a ortodoxia soviética quanto para os câ nones do marxismo ocidental.

A

INTELECTUALIDADE QUE SE TORNA MARXISTA

Bloch e Lukács introduziram-se no cí rculo de Weber, e ambos eram tidos por esse grupo como m ísticos religiosos preocupados com questões apocal ípticas, no dizer ir ó nico a seu respeito daqueles que conviviam com Weber.77 Trata-se de uma clivagem peculiar: o weberianismo, ao acentuar o desencanto com o mundo promovido pelo capitalismo, leva ¬ va Lukács e Bloch a um curioso movimento escatol ógico, que já anteci pava muito de suas futuras posições. A rejeição ao capitalismo de ambos é uma certa forma de nega çã o da modernidade impessoal e desumanizada. O romantismo é a possível localização do posicionamento dos jovens pensadores na década de 1910. Desse diapasão , sairia a ambivalência dos dois filósofos: o flerte com o romantismo é dado pelas mesmas causas que os levaram , depois, ao marxismo. ¬

77

" Luk á cs e Bloch Integravam o c í rculo de intelectuais que frequentavam os semin á rios privados de Max Weber em Heidelberg, antes da 1 a Guerra Mundial e procuravam incutir nos demais participantes seus ideais neo- rom â nticos. laspers, que també m fazia parte daquele grupo, recorda se de ambos como 'gn ósticos que compartilhavam suas fantasias teosóficas em c írcu ¬ los sociais'". SotON, Ari Marcelo . Teoria da soberania como problema da norma jur ídica e da decisão. Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1997, p. 177.

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UTOPIA E DIREITO

Havia, no ambiente alemão de in ício do século XX, uma explosi¬ va reação ao liberalismo e ao dom ínio impessoal capitalista, que pode¬ ria ser representado, no plano filosófico, pela insurgê ncia contra o neokantismo e suas variantes. Uma primeira grande corrente filosófi ca, cujo arco vai desde Spengler até Heidegger, passando antes disso por Nietzsche , encaminhava a cr ítica da modernidade para os quadrantes do conservadorismo e do reacionarismo. Uma segunda corrente, progressista, valeu-se novamente de Hegel para trilhar os caminhos que redundariam ao final em Marx. ¬

O romantismo é um movimento amplo que comporta tanto as vari áveis reacionárias quanto as de esquerda. O mote de Bloch, aliás, em seus escritos de juventude, era justamente o de valer-se do passado como fonte das utopias do futuro. Na d écada de 1910, quando Lukács se abeirou do ambiente weberiano de Bloch, as sementes dos mais opostos caminhos de negaçã o à modernidade ainda estavam sendo germinadas, muito próximas umas das outras, no mesmo solo. O trajeto inicial de Bloch revela-se uma espécie de anunciação de toda sua obra posterior. Sua metodologia, desde o in ício, é um amálgama de metafísica com marxismo, do qual nunca quis se desven ¬ cilhar no futuro. Suas imagens, suas recorr ências, seus temas e aborda¬ gens são insólitos. Pesquisando na história religiosa os discursos de Thomas M ü nzer, por exemplo, Bloch dará mostras da amplitude do seu panorama filosófico, que tinha no marxismo uma espécie de avalista final, mas n ão necessariamente de condutor imediato.

Lukács, neste sentido, só se deixou levar por algum am álgama filosófico não-marxista no seu início de reflexão. História e Consciên¬ cia de Classe, seu principal livro, é o último n ão totalmente marxista, na opinião do pró prio autor, que fez uma série de revisões e negações de sua obra. Lukács era autor de temas peculiarmente clássicos do marxismo: suas abordagens da consciência de classe, da ideologia, es

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r ALYSSON LEANDRO MASCARO

na tangente entre o n úcleo essencial do marxismo e a sua here¬ sia . Bloch muito pouco preocupou-se por centrar sua obra nas ques t ões fundamentais do trabalho e da economia pol ítica: estava fora da tangente, atingindo o n ú cleo dos temas marxistas como quem , de uma margem do rio, atravessa à outra não a nado, mas por um cipó nas á rvores. No sentido filosófico, no entanto, Bloch fazia o mesmo trajeto de todos os outros marxistas, visando a crítica da sociedade capitalista; apenas o fazia ao seu modo. tavam

¬

MESSIANISMO,

ESCATOLOGIA E ROMANTISMO

Bloch e Lukács eram reputados, no círculo de Max Weber, como jovens apocalí pticos e messiâ nicos. De fato, a formação de ambos esta¬ va ancorada numa espécie de escatologia religiosa e moral que aponta va para o amanhã como redenção. O marxismo seria, para ambos, a ferramenta de concretização desse novo tempo aguardado. Num mes mo processo de entrelaçamento de messianismo e marxismo , aliás, está também Walter Benjamin , que compartilhou de uma certa escatologia judaica e cultivou uma profunda ligação com Gershom Scholem. Este aponta para o fato de que todos beberam diretamente das fontes da m ística judaica e, posteriormente, tendo um mesmo horizonte comum, conviveram e compartilharam do marxismo escatológico como resul tado de suas inquietações anteriores. Tratando de Benjamin: ¬

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¬

Entre as categorias judaicas que ele havia introduzido como tais e defendido até o fim , est á a ideia messi â nica; nada é mais falso que a noção de que ela tenha provindo, em Benjamin, da obra de Ernst Bloch , embora os dois se encontrassem no ter¬ reno judaico principalmente, a idéia da recorda ção.78



78

SCHOLEM, Gershom . O Colem, Benjamin, Buber e outros justos : judaica I . São Paulo, Perspec ¬ tiva , 1994, p. 210.

UTOP íA E DIREITO

Em Bloch, a nitidez desse messianismo é explícita, muito maior que em Lukács e Benjamin. Ainda mais que nunca rejeitou , ao contrário de Lukács, durante toda sua vida , suas perspectivas escatológicas. A grande influê ncia inicial de Bloch é, certamente, a m ística judaica. Junto dela, o movimento gn óstico, além de uma espécie pró pria de consideração a respeito do protestantismo e do catolicismo, formarão a base do explosi ¬ vo pensamento blochiano. A gnose, com suas perguntas a respeito das origens e do futuro e de quem são os homens, oferece uma espécie de linguagem básica dos textos de Bloch . Toda introdução de seus livros, aliás, apresenta algumas páginas de abertura que convidam a essa refle xão profunda e tocada por sentimentos que parecem estar ligados por uma oculta cumplicidade entre o escritor e o leitor. ¬

A cabala, por sua vez, é outra das recorrê ncias freqiientes de Bloch . No Espírito da Utopia, em sua parte final, Bloch acena para uma jun ¬ ção muito significativa. Bloch denomina o último cap í tulo de sua obra “ Karl Marx, a morte e o apocalipse” . Nesta triangulação , expõe o fun damento de uma compreensão dialé tica da histó ria, vinculada à liber tação e apontando para uma espécie de Messias que será a revolu ção. ¬

¬

Lukács, por sua vez, tem duas fases distintas em seu pensamento messiâ nico. O marxismo lhe representar á n ão uma superação que ain ¬ da carreia consigo a escatologia, como ocorreu com Bloch , e sim um afastamento da tem á tica da utopia m ística. Mas nas primeiras obras, como na Teoria do Romance, a inspira ção de Luká cs - no que era ple namente acompanhado por Bloch - é claramente a mística russa. Os russos, segundo o entendimento de Lukács, por meio de Dostoievski, Tolstoi e outros, haviam logrado um afastamento da vil mercantilização alem ã e ocidental . 79 Nestes, a alma se esvaziava em troca da ¬

79

Gabriel Cohn, tratando de Weber: "Al ém de suas repetidas referências a Tolstoi, h á ind ícios de que Dostoievski exerceu considerável fasc ínio sobre ele, tanto assim que forneceu temas para boa es parcela de seus contatos com o jovem Lukács, que na é poca estava às voltas com preocupa çõ semelhantes". COHN, Gabriel. Crítica e Resignação. São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 158.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

homogeneização do capital . Os russos ainda apontavam um caminho de comunh ão que, no pensamento lukacsiano, era a trilha da supera¬ ção da crise capitalista do ocidente. Apontando em Dostoievski um possível caminho para, através do romance, superar o tempo presente em busca de um pleno futuro, Lukács anuncia a sua m ística da utopia, denunciando o pecado do presente: Ele [Dostoievski] pertence ao novo mundo. Se ele já é o Homero ou o Dante desse mundo ou se apenas fornece as canções que artistas posteriores, juntamente com outros precursores, ur ¬ dir ão numa grande unidade, se ele é apenas um começo ou j á um cumprimento - isso apenas a análise formal de sua obra pode mostrar. E só ent ão poderá ser tarefa de uma exegese histó rico-filosófica proferir se estamos, de fato, prestes a dei ¬ xar o estado da absoluta pecaminosidade ou se meras esperan ¬ ças proclamam a chegada do novo indícios de um porvir ainda t ão fraco que pode ser esmagado , com o m ínimo de esfor ço, pelo poder est é ril do meramente existente.b0



O messianismo lukacsiano, que no início era o impulso do ama nh ã contra seu tempo , vai dar lugar a uma disputa pelo presente. O marxismo apregoado por Lukács abandona Dostoievski para, em seu lugar, fincar bandeiras de uma estética realista. Bloch prosseguirá, no entanto , num marxismo m ístico, e sua est é tica há de se converter em expressionismo.81 Começa a í a separação. ¬

80 81

LUKáCS, Georg. A teoria do romance. S ão Paulo, Duas Cidades/34, 2000, p. 160. " Nesse momento, entretanto, os caminhos dos dois amigos apocal ípticos dostoievskianos de Heidelberg começ am a se separar: enquanto Bloch continua ainda a se referir à s fontes religiosas m ísticas, messi â nicas e her é ticas - em seu Thomas M ünzer se diz seguidor da ' imensa tradi ção' da qual participam os cá taros, os valdenses e os albigenses, Eckhart, os hussitas, M ü nzer, os anabatistas, Sé bastien Frank etc. Luk á cs, exilado em Viena, torna -se um dos principá is dirigentes do Partido Comunista H ú ngaro, e a problem á tica religiosa desapa rece pouco a pouco de sua obra . E quando, dez anos mais tarde, publica em Moscou urna violenta diatribe contra o ' reacion á rio' Dostoievski { que Bloch n ã o perdoar á jamais ), o rompimento ideol ógico entre os dois homens se consuma". L õWY, Michael. Romantismo e messianismo. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1990, p . 66. ¬

UTOPIA E DIREITO

UMA

DIVERG êNCIA NAS CONCORDâ NCIAS: O EXPRESSIONISMO

Nas palavras de Bloch , entre ele e Lukács, no início de seus traje¬ tos filosóficos, havia uma espécie de “ vaso comunicante” : seus pensa mentos coincidiam em todos os aspectos e, por conta disso, cultiva¬ vam, com especial aten ção, as sutis e potenciais diferen ças entre suas filosofias. Assim se pronuncia Bloch em entrevista concedida na déca da de 1970 a Michael Lõwy: ¬

¬

Portanto , em Budapeste, conheci Luk á cs mais profunda ¬ mente que na casa de Simmel em Berlim , e rapidamente descobrimos que t í nhamos a mesma opinião sobre todas as coisas; uma identidade t ão grande sobre pontos de vista que fundamos uma “ reserva nacional ” ( Naturschuptzpark) de nossas diferen ças; para que n ão dissé ssemos sempre as mesmas coisas.82

Lukács se debruçara, logo de in ício, nas questões estéticas, no que resultaram suas obras A alma e as formas e Teoria do Romance. Bloch também era um apaixonado da esté tica, mas, conhecedor de m úsica, dedicava-se a uma an álise cultural de uma envergadura mais ampla, detendo-se com mais atenção, então, no problema musical. Mais que isso , ele se valia da estética de forma mais marcante que Lukács: Bloch n ão só era um estudioso da estética, mas sim era ele pr ó prio um artista expressionista no seu estilo de escrita filosófica.

Thomas Miinzer, Teólogo da Revolução é o exemplo da utilização do expressionismo como forma de alcançar objetivos filosóficos mais profundos. Sua imediata implicação é a utilização, por parte de Bloch, do ensaio como forma de comunicação. Composto de pedaços sufici¬ entes e aut ó nomos, Bloch visa a forma ção de um painel , que alcance

82

LõWY, Michael. A Evolução Política de Luk ács . S ão Paulo, Cortez, 1998, p. 296.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

n ã o apenas o n ível do intelecto, mas també m o nível da sensibilidade e

da vontade do leitor.83 As imagens tipicamente expressionistas, de forte colora ção e visualização, sempre foram os recursos utilizados pelo texto blochiano. Tal qual as par á bolas evangélicas, essas imagens t êm um sentido de arrebatamento, que impossibilitam qualquer indiferença em relação às quest ões tratadas. A aparente fragmenta ção do ensaio é, na verdade, a possibilidade estilística de arrebatar, procedendo ao modo de socos intelectuais, e não do modo de fluê ncia que, ao fazer de todos os t ó picos uma seq íiê ncia anal ítica formalmente ligada , n ã o abra espaço para o respiro que leva à transformação do pensamento.

De alguma forma , é de se dizer, Bloch associa o expressionismo ao marxismo, no sentido de que este é uma filosofia que busca a transfor¬ ma çã o , conforme a Tese XI contra Feuerbach e que, portanto, n ão pode se bastar apenas na fria confrontação de ideias. O expressionismo, para Bloch, era uma possibilidade de fazer da filosofia uma educação revolucionária e, portanto, um evangelho do futuro.

J á O Espírito da Utopia é amplamente tomado por tais referênci

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as expressionistas, cuja estrutura estilística foi depois ainda mais exponenciada em Thomas Miinzer. Uma das mais recorrentes imagens

83

Theodor Adorno, nas Notas de Literatura, é um dos primeiros a apontar uma indissociável caracter ística utó pica no ensaio, que pode ser observada no pensamento de Bloch: "O ensaio n ão apenas negligencia a certeza indubit á vei, como també m renuncia ao ideal dessa certeza . Torna-se verdadeiro pela marcha de seu pensamento, que o leva para al ém de si mesmo, e n ã o pela obsessão em buscar seus fundamentos como se fossem tesouros enterrados. O que ilumina seus conceitos é um terminus ad quem, que permanece oculto ao pró prio ensaio, e n ã o um evidente terminus a quo. Assim , o pr ó prio m étodo do ensaio expressa sua intenção utó pica . Todos os seus conceitos devem ser expostos de modo a carregar os outros, cada conceito deve ser articulado por suas configurações com os demais. No ensaio, elementos discretamente separados entre si são reunidos em um todo leg ível; ele não constró i nenhum andaime ou estrutura . Mas, enquanto configuraçã o, os elementos se cristalizam por seu movimento. Essa configuraçã o é um campo de forças, assim como cada forma ção do esp írito, sob o olhar do ensaio, deve se transformar em um campo de forç as". ADORNO, Theodor. Notas sobre literatura I. São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34, 2003, p . 30.

UTOPIA E DIREITO

de Bloch é a do futuro como um tempo novo. Estabanunciação do futuro como a superação ressalta, também, o presente como ambiente dos pequeno- burgueses, preguiçosos, que conduzem ao t ú mulo do espírito. De outro lado, Bloch identifica na imagem da juventude a marca da marcha pelo futuro melhor.84

Luk ács poderia estar tentado a se comunicar com o mundo expressionista de Bloch, porque também é um pensador cujos textos, em linguagem fácil e direta, primam a princí pio pela simbologia que é peculiar també m a Bloch. No entanto, cultivavam uma diferença esté¬ tica que poderia ser o germe da divergê ncia de suas futuras carreiras filosó ficas. Lukács distanciou -se do expressionismo para bater nas por¬ tas de algum classicismo e, principalmente, do realismo. No entanto, embora se aproprie cada vez mais do pensamen to de Marx , a filosofia de Bloch guardará sempre uma dimen são rom ântica (revolucion ária). É esta a razão de sua profunda identidade com Lukács até 1918 e de sua progressiva separa ção depois dessa data. Da entrevista que nos deu, depreendese claramente que Bloch considerava as novas posições de Lukács, depois da guerra, como uma espécie de traição das suas ideias comuns, na juventude. A célebre pol ê mica entre os dois amigos-rivais, sobre o expressionismo nos anos 30 , n ão é mais que o resultado desta divergência fundamental entre um marxismo de cores neo-rom â nticas e um marxismo rigo rosamente “ neoclássico” . Ainda mais significativa é a diferença de suas an álises e atitudes políticas em face do fascismo na Alemanha: Lukács denuncia com veem ê ncia o pensamento rom â ntico da passagem do século como raiz ideol ó gica do fas cismo e procura a salvação numa alian ça político-cultural com a burguesia esclarecida e democr á tica (encarnada, a seus olhos,

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84

Cf. M ü NSTER, Amo. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch . Sã o Paulo, Ed . Unesp, 1997, pp. 165 e seg.

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por Thomas Mann ) . Bloch, ao contr á rio, vai analisar em Erbschaft dieserZeit ( A herança de nossa época, 1933) o mundo cultural contradit ório e despedaçado da pequena burguesia alemã, tentando separar a esperança e a revolta autê nticas de seu contexto reacioná rio.85

De outro lado, Lukács começou a se distanciar de Bloch ao acu sar o expressionismo de uma ambigü idade que pode se prestar à rea¬ ção. Embora Lukács reconhecesse em Bloch uma abordagem diversa do expressionismo, eminentemente cr ítica, viu no seu amigo de juven ¬ tude a utilização de uma corrente esté tica que, na sua opinião, servia mais ao reacionarismo nazista que propriamente à ruptura da trans¬ forma çã o . Bloch , no entanto , n ã o abandona sua perspectiva expressionista e a reitera, para além das suas obras de juventude, em outras posteriores como Herança desse tempo, da década de 1930. ¬

Segundo Bloch , o expressionismo era um humanismo; ori ¬ entava para o humano , buscando quase exclusivamente o humano e a forma adequada para expressar o seu incógni to , aquilo que no homem é misterioso, escondido, desco nhecido. N ão se trata de tom á -lo como exemplo , fazendo dele um precursor do humanismo revolucion á rio , materia ¬ lista , que para Bloch era o verdadeiro humanismo. Contu ¬ do , deve ser considerado como alternativa ao “ realismo so ¬ cialista” , para expressar um mundo em declí nio reduzido a t um monte de fragmentos.ó ¬ ¬

Durante as décadas de 1920 e 1930 , no ajuste de Lukács com o marxismo oficial sovi é tico, as possibilidades da filosofia esté tica foram por ele reduzidas ao classicismo, cuja escolha se justificava pela maior aderência com a realidade, o que redundaria, numa vertente pr óxi-

85 86

LOWY, A evolução política de Luk á cs , op. cit., p. 70. ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança . Petró polis, Vozes, 1998, p. 44 .

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ma , no realismo soviético. Thomas Mann , na literatura , passa a ser o modelo daquilo que se possa considerar objetivação da realidade.87

No conturbado ambiente h ú ngaro de 1919, após a derrota polí tica dos socialistas, Luk ács, que havia sido ministro da Educa ção , ter¬ minar á preso e no aguardo de severas penas . Thomas Mann , um dos principais nomes da burguesia alemã e do ambiente cultural clássico, é um dos intelectuais que se lançam em seu apoio, declarando que, embora divergisse em idéias com Lukács, respeitava sua integridade pessoal . Lukács, desde o in ício de suas reflexões estéticas, sempre man tivera uma relação de aproximação e de consideração com o estilo clássico de Mann. ¬

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Alguns anos mais tarde, na Montanha Mágica , o personagem Naphta levantaria uma curiosa indagação dos cr íticos, alguns dos quais o identificavam com Lukács ou com Bloch . Mann nunca revelou, por certo, a origem do personagem, que poderia ser, ainda, um compósito de vá rias inspiraçõ es.88

O CAMINHO AO MARXISMO

NAS PRIMEIRAS OBRAS: SOBRE A

TOTALIDADE

Lukács tem fases marcadas em suas obras, o que leva seus intérpre a separarem um jovem pensador do escritor da maturidade. Bloch, ¬

tes

87

88

"A novidade consiste em que, a partir da d é cada de 1930 (... ) Luk á cs n ã o é mais um intelectual que, da cr ítica da cultura movida por um anticapitalismo radical ('anticapitafismo rom â ntico'), extraia consecuencias ético- pol íticas exteriores à praxis pol ítica; ao contr á rio, na década de 1930, é a pol ítica que d á novas formas e conte ú dos à problematizaçã o da cultura moderna, em um contexto em que, ao mesmo tempo, se afasta da atividade pol ítica direta". MACHADO, Carlos Eduardo Jord ã o. Um capítulo da hist ória da modernidade estética : debate sobre o expressionismo. Sã o Paulo, Ed. Unesp, 1998 , p. 22. "' Leo Naphta é Cari Schmitt . Ou , pelo menos, antes dele, todas essas idé ias já haviam sido proclamadas por Schmitt. [.,.] Apesar desta conclusão, como apontamos elementos de conso n â ncia entre Bfoch, Luk á cs e Schmitt n ã o é de se estranhar que todos se identificassem com esta personagem ". SOION, Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão , op. c/f ., p. 184. ¬

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pelo contr á rio, é um autor persistente, que antecipa na obra de juventu¬ de os mesmos temas e abordagens da maturidade, talvez variando ape¬ nas no grau de profundidade e de estruturação de suas ideias. O Espírito da Utopia, a principal obra juvenil de Bloch, é em grandes aspectos familiar e complementar aos temas e perspectivas da História e Consciência de Classe , de Lukács. Enquanto a primeira fase da juventude de Lukács foi marcada por obras não-marxistas (como A alma e as formas) , em Bloch se dá um processo menos pendular. O Espírito da Utopia tem duas versões no espaço de alguns poucos anos (1918-1923) , mas a diferen ça entre tais versões não é de passagem de um não-marxismo para um marxismo, e sim de uma escatologia acen¬ tuada para uma mais contida, mas marxista em ambas as versões. Bloch, logo na primeira versão do Espírito da Utopia, deixava explíci¬ ta a opção por um marxismo escatológico, cujas últimas razões buscará nos movimentos heréticos do catolicismo medieval, na visão judaica e na mística. O pêndulo lukacsiano foi maior. Lukács, vindo de um idealismo mais presente que o de Bloch, converte-se ao marxismo com mais ênfase e plenitude. Lukács era mais cristão-novo de marxismo que o próprio Bloch, reforçado ainda pela origem familiar de ambos, este último em classes proletárias, o primeiro no seio de uma família banqueira. Dois conceitos revelam-se fundamentais na filosofia de juventu¬ de de Lukács: reificação e totalidade. Pelo primeiro, compreende-se a situação humana no capitalismo, que coisifica o homem e converte o mundo em mercadoria. A crítica da reificação é a ponte de ligação de Lukács com o humanismo , ao mesmo tempo em que abre a possibili¬ dade de uma genealogia comum da filosofia româ ntica anticapitalista mais ampla. Heidegger, deve-se lembrar, encaminharia uma crítica da técnica de alguma forma paralela ao conceito de reificação lukacsiano. À Escola de Frankfurt também haveria de abrir uma frente de refle¬ xões similar, em parte influenciada por Luká cs.

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Pelo conceito de totalidade, no entanto, a filosofia de Lukács al ¬ can ça um ponto de maturação que a distingue, no quadro de todo o marxismo, pela renovação e florescimento de um pensamento filosó fico vigoroso. A dialética hegeliano-marxista, ao abrir olhos ao enten ¬ dimento dos conflitos da realidade, estendendo a compreensão da re alidade também à razão , deu margem a uma possibilidade de reflexão filos ófica total . Tal interpretação lukacsiana de Hegel é responsável pela genialidade de História e Consciência de Classe: ao romper com o tradicional kantismo que separava sujeito e objeto, consci ência e reali dade, Luk ács agrupa , no conceito de totalidade, a possibilidade de compreensão geral do movimento da contradição capitalista.89 ¬

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Bloch é pioneiro em ressaltar, no Espírito da Utopia , a similitude entre seu pensamento e o de Lukács. O grande fundamento de con ¬ vergência está, em Lukács, na possibilidade de tomada de consci ência da classe proletária , o que equivale, em Bloch, à superação da domina¬ ção, por meio da completude do homem, que no momento presente ainda nã o é a totalidade de si mesmo.

Desde o in ício, no entanto, Bloch explicita, no Espírito da Utopia e depois na Herança desse tempo, sua discordâ ncia com pontos de História e Consciência de Classe. Investe diretamente contra as possibilidades interpretativas do conceito de totalidade, apontando o seu caráter de homogeneização da realidade. Isto se daria, segundo Bloch, por conta de um agarramento aos processos sociais objetivos - tomados em senti do sociológico - correndo o risco de se excluir aquilo que fosse particu¬ lar à formação mais íntima do homem, como a religião. O pano de ¬

89

"Em Luk á cs, a essê ncia do m étodo dial é tico, a possibilidade de encontrar a totalidade em cada momento particular, guardando de cada momento o seu car á ter de momento, encontra expressã o rea ) , concreta, na atividade cotidiana do proletá rio, aquela porta estreita por onde, em momentos privilegiados, pode se mostrar a realidade das rela ções capitalistas, j á que o caráter ú nico da situaçã o social do proletariado est á em que 'o sair da imediatidade é dotado de uma intençã o para a totalidade da sociedade"'. NOBRE, Marcos. Luk ács e os limites da reificação. S ã o Paulo, Ed. 34, 2001 , p. 66.

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fundo para tal cr ítica de Bloch é um entendimento da historia que apre senta, além de suas grandes linhas dial é ticas sociais, uma formaçã o polirrítmica ( polyrbythmisches) )ü , que não se enquadra nas grandes to talidades objetivas. Assim sendo, Bloch levanta d úvidas, ainda que par¬ ciais, a respeito do eixo central do hegelianismo marxista de Lukács. ¬

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Tal suspei ção conduz, da parte de Bloch , a uma proposi ção di ¬ versa da de totalidade. Logo nas suas obras de juventude propor á, ent ão, a utiliza çã o do conceito de histó ria polirr ítmica, tomando a to¬ talidade histó rico-social por esfera . No entendimento de Bloch, a esfe ra exprimiria os m ú ltiplos n íveis da relação sujeito-objeto , ou seja , não daria conta apenas do momento objetivo da consciência de classe ou da consci ência reificada, mas haveria de se valer também de dimen sões mais complexas e específicas dentro desse todo social. ¬

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Duas configuraçõ es contrapostas do conceito de “ heran ça cultural ” saem , assim , à luz. Em Luk ács, a heran ça é conce¬ bida como uma linha cont ínua e homogé nea de progresso. Em Bloch, ao contrá rio, a herança se concebe como uma s í ntese de m ú ltiplas linhas , que avan ç am de forma descont í nua e heterogé nea , e cujo espaço é com freqiiê ncia o da fragmentaçã o. Ajpersgectiva de Bloch n ão consiste tanto em voltar-se para a “ n ã o-simultaneidade” do passado , mas sim em propugnar que, no terreno da cria çã o cultural , só a apropriação (que exige sempre destrui çã o e reelaboração) dos espaços assimultâ neos produtivos permite um avanço para o futuro. Essa será a clave mais profunda, porque se nos liga¬ mos ao que aparece na superfície do presente , a crité rios como a primazia da necessidade pol ítica imediata , impedimos do ¬ tar a açã o revolucion á ria de um autê ntico suporte cultural e antropológico. Para Bloch , n ão h á nenhuma mat é ria de re-

90

BLOCH, Ernst . Erbschaft dieser Zeií . Frankfurt , Suhrkamp, 198S , p . 124 .

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n ú ncia nos produtos culturais do homem ; tudo é dialeticamente utilizável num sentido positivo.91

A abertura para conceber a totalidade como polirritmia é muito próxima de outro tema blochiano - também tratado com grandes detalhes na Herança desse tempo , que é o da não-contemporaneidade. Para Bloch, a histó ria não é._um evento de um tempo puramente line¬ ar, no qual os acontecimentos e as condicionantes sejam dados por razões objetivadas uniformemente. O tempo histó rico soma deman das do presente com outras do passado, dominações novas com velhas, aspirações as mais distintas, e por isso a história é polirrítmica. Daí dizer que não há uma totalidade que, por meio de uma vanguarda presente, ou ent ã o por meio da constatação das ú ltimas formas de dominação, ilumine o todo social. O conceito de esferas representa, em Bloch , justamente o fato de que há parcialidades no todo, e tais especificidades são responsáveis por uma totalidade contraditó ria nas suas próprias contradições. Tal histó ria n ão é total izável pelas suas últi mas fronteiras; ela arrasta consigo espaços variados ( vielrãumiges ) de tempos e demandas distintos, que não podem ser olvidados ou ultra¬ passados sem mais pelo presente. Assim, na Herança desse tempo , a histó ria se apresenta:



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Polirrítmica e pluriespacial, com locais ainda n áo muito con trolados e ainda de forma alguma ultrapassáveis.92

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É pelo conceito de hist ó ria polirr ítmica que Bloch abre margem para a antecipação, que é o fundamento de sua utopia revolucionária. Sendo o tempo hist ó rico m ú ltiplo , o passado ainda vive no presente, e, assim sendo, é possível também , pelos sonhos atuais, antecipar para hqjej? futuro. Sua utopia concreta girará em torno dessa possibilidade de antecipação. Lukács, no máximo, valia-se de um conceito menor

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91 92

JIMéNEZ, (osé. La estética como utopia antropológica. Bloch y Marcuse. Madrid , Tecnos, 1983, p. 75. BLOCH. Erbschaft dieser Zeit, op. cit., p. 69.

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quando tratava de apontar ao futuro: a categoria da “ possibilidade objetiva” , ligada às condições sociais objetivamente dadas, que seria para Lukács o m áximo de utopia suportável ao marxismo . Bloch, para abrir margem à utopia, há de descartar a totalidade da relação sujeitoobjeto em Lukács.

De sua parte, Luká cs demonstrava profunda reticê ncia para com O Espírito da UtopiaP Talvez desconsiderando a possibilidade efetiva de diferenciação entre a utopia idealista e a utopia concreta, que é o cerne da proposi çã o filosófica de Bloch , Lukács há de refor çar o car ᬠter objetivo das possibilidades da totalidade contra as “ esferas” de di¬ versos níveis de Bloch: Quando, portanto, Ernst Bloch acredita encontrar nesse vín culo dos religiosos com os revolucionários no sentido social e econ ó mico um caminho para o aprofundamento do materia lismo histó rico e “ meramente económico” , ignora que seu aprofundamento passa justamente ao largo da profundidade efetiva do materialismo histó rico. Ao conceber o elemento econ ó mico igualmente como coisa objetiva , à qual devem se contrapor o an í mico , a interioridade etc. , esquece que justa mente a verdadeira revolução social só pode ser a remodelação da vida concreta e real do homem e que aquilo que se costuma chamar de economia não é outra coisa senão o sistema das formas de objetiva ção dessa vida real.94 . ' Anvy , t. ¿ V: ’ LiQ \ . ) ¡. t , Av.vvsQ . C' > / . < v.“ . ' y vi ? ¬

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Bicca , tratando da recusa de Luk á cs à utopia de Bloch: "O tema utopia d á ensejo para o surgimento das primeiras discussões decisivas entre Bloch e Luk ács. [.. ] Sua recusa da utopia apó ia -se essencialmente em quatro censuras, que resumem a sua cr ítica: 1 ) a utopia provoca uma separa ção entre consci ê ncia e ser, isto é, uma mudança na consci ê ncia sem transforma ¬ ção do ser histó rico-social; 2 ) do ponto de vista epistemológico, ela é um empirismo camufla¬ do; 3) em suas formas modernas, ela era , no fundo, ideologia do futuro capitalismo liberal; 4 ) h á nela, realmente, uma cisã o entre conte ú do ideol ógico-utó pico e ação concreta . Da í se conclui: a utopia é apenas a ' reprodu ção fantástica da insolubilidade do próprio problema '". BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo, Loyola , 1987, p. 130. LUKáCS, Ceorg. História e Consciência de Classe. São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp 382 e 383.

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Tais oposiçõ es serão responsáveis por encaminhamentos diferen tes de problemas polí ticos concretos e específicos. O fen ômeno do stalinismo atinge Lukács e Bloch de modos distintos. O pensamento cie Luk ács, ao considerar a totalidade como um dado objetivo, poderá dar margem a compreender a ditadura do proletariado como o movi¬ mento que unifica o todo social, ainda que n ã o necessariamente de modo democrático.95 A vanguarda de classe seria a expressão do todo. Bloch, de outra sorte, ao compreender uma histó ria polirr ítmica, é aberto a uma luta de classes que não se arrogue a lideran ça do todo. Para Bloch, politicamente, é preciso deixar margem a uma democra¬ cia que carreie sonhos e necessidades variados. ¬

É por isso que a possibilidade de compreensão da histó ria como esfera , polirr ítmica, da parte de Bloch, leva-o a um partidarismo sem partido. Por tal conceito, refere-se à independência da totalidade a que se arroga a vanguarda partidá ria, ainda que mantendo os vínculos es¬ treitos com as lutas políticas objetivas. Lukács, por sua vez, há de se enca¬ minhar politicamente em sentidos contrários. Sua adesão ao leninismo e sua ambival ência em face do stalinismo custaram-lhe caro no seu posicionamento político, mas revelam muito das “ possibilidades objeti¬ vas” que desde a História e Consciência de Classe vinham se esboçando.

No entanto, dessa diferença de filosofia política concreta, pode-se vislumbrar o cerne da discordâ ncia profunda entre tantas convergências de ambos os jovens pensadores: embora ambos não fossem nem filósofos do marxismo oficial nem do típico marxismo ocidental, sendo assim dois pá rias em sua época, Lukács é o filósofo do marxismo das condições pre¬ sentes, Bloch é o filósofo do marxismo das possibilidades futuras. 95

"O proletariado como um todo, assim como as partes, est á livre das contradições que perpas sam cada proletá rio singular; Luk á cs d á um salto do prolet á rio isolado ao proletariado, que ele nã o hesita em ¡mediatamente valorizar como subst â ncia . A dialética do geral e do particu lar, cuja falta foi um motivo essencial da impossibilidade de solu çã o das antinomias do pensamento burgu ês, é resolvida em favor da generalidade". NEGT, Oskar e KLUGE, Alexander. O que há de político na política ? Sã o Paulo, Ed. Unesp, 1999, p. 124. ¬

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CAPíTULO 6 O SER-AINDA-NãO

A situação filosó fica de Bloch no quadro do marxismo revela urna grande distancia do dogmatismo oficial do seu tempo, mas, no fundo, não deixa de trilhar caminhos que também foram paralelos a grande parte do pensamento marxista tradicional. Junto com Lukács, dedicouse a desvendar as trilhas que ligavam Marx a Hegel e, nesse procedimen to, perseguiu trajetos filosó ficos que eram similares a v ários outros pen sadores, desde Lênin, que considerava Hegel a condição necessária para o entendimento de Marx, at é chegar a Althusser e outros, que quiseram estudar a ambos para separá-los definitivamente. ¬

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Bloch destaca-se, no entanto, nesse grande painel da filosofia mar xista, por uma persistente e recorrente temática que movimentava suas reflexõ es. O problema da utopia revela-se, desde o início, o grande tema de Bloch. Todo o arco dos ramos da filosofia — filosofia da estética, polí tica, do direito, da religião - está orientado, para Bioch, de acordo com o problema da utopia, e tem por ambiente de diálogo o marxismo. ¬

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Dentre tantas obras — todas muito peculiares e insólitas96 — de uma longa carreira - Bloch faleceu em 1977, aos 92 anos a primei-

96

"Parece-me que a grande forç a de 8 loch n ão reside somente na sua sensibilidade e na sua generosidade, mas na capacidade de falar com profundidade das coisas as mais simples. (...) Bloch nos faia por meio de um tom distante e familiar. Ele evoca a paisagem espiritual, filosófica, est ética de sua geração e nos impulsiona a interrogar sobre a nossa. Sua obra não comporta nenhuma resposta, e sim indagações. Ele parece atravessar as épocas, as gerações, como uma estranha música que ressoa em cada um de maneira diferente, com a mesma emoção". PALMIER, Jean-Michel. "Em relisant ' L'esprit de 1'utopie' ou Prière pour un bom usage d'Ernst Bloch". In Réificalion el Utopie: Ernst Bloch & Cyõrgy Luk á cs un siècle nprès Acles du Colloque Goethe Institui . Paris, Actes Sud, 1986, p. 263.

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tradicionalismo utó pico são a Utopia de Morus, a Cidade do Sol de Campanella, os franceses socialistas Fourier, Saint-Simon e outros ou, então, se o arco se estendesse mais, chegar-se-ia, no in ício, até a Repú blica de Platão. Todas essas utopias t ê m em comum o car á ter imagina do , exemplar, que servisse como idealização, a contrastar com a reali ¬ dade. A Utopia de Morus é uma fantasia que se passa em condi ções irreais numa ilha imagin á ria da América do Sul. Tomam a utopia no sentido no não-lugar, do inexistente. São a utopia idealista, abstrata.98 ¬

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A proposta de Bloch quanto à utopia é bastante diversa . Suajã remissa é uma reflexão partida da realidade e de suas contradi ções, bus cando perceber as latê ncias e as possibilidades efetivas. Assim sendo, h á de separar aquela utopia abstrata , idealizada, da utopia concreta, que está ligada à situa çã o real da hist ó ria e de suas contradi ções e que , por n ã o apostar na projeção ou na idealização, vincular-se-á à ativida de humana, à práxis orientada para o futuro. ¬

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Neste sentido, o projeto de Bloch está muito pr óximo do pensa ¬ mento de Marx, ao ligar-se às condições da realidade objetiva e ao acentuar o problema da atividade humana e da práxis, ainda que com vistas ao futuro. Entretanto, Bloch consegue dar um salto filosó fico em rela çã o ao pró prio Marx: considerar á o problema filosó fico da uto pia n ão apenas no sentido negativo, da fantasia que projeta o inexistente, como fora entendida por Marx e Engels, mas sim há de chegar a uma ¬

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"A impressionante pol ê mica de Marx e Engels fez com que, tanto dentro quanto fora do marxismo, o termo ' utó pico' passasse a ser aplicado correntemente a um socialismo que apela à razão, à justiça e à vontade do homem de ordenar uma sociedade desarticulada , ao inv és de limitar -se a apresentar à consci ê ncia ativa o que as condi ções de produ ção já haviam prepa ¬ rado dialeticamente. Considera -se como utó pico todo socialismo voluntarista, o que, de modo algum, significa que esteja Isento de utopia o socialismo que a ele se opõe, e que poderia ser classificado de necessitarista , por declarar que sua ú nica exigê ncia é que se fa ça o necessá rio para que sobrevenha a evolu çã o . Os elementos ut ó picos que este conté m s ã o, evidentemente, de outro gê nero e afetam a outra ordem de id éias". BUBER, Martin. O socialismo ut ó pico. Sã o Paulo, Perspectiva , 1986, p. 20.

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compreensão em positivo da utopia." O sonho, a imaginação , o dese¬ jo, s ão alavancas da atividade humana social e, portanto, inscrevem-se no grande projeto geral de transformação proposto pela filosofia mar ¬ xista. Neste sentido, revolver a esperan ça no futuro melhor é valer-se de armas revolucion á rias poderosas.

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CARACTERÍSTICAS DA UTOPIA CONCRETA: O SONHO DIURNO

O caminho de Bloch para a construção de uma filosofia marxista da utopia começa da constatação da incompletude humana: o ho ¬ mem deseja porque ainda não tem , tem esperanças porque ainda não é. A causa de tais desejos, dirá Bloch no Princípio Esperança, reside na necessidade ( Bedürfhis) , na carência { Mangel) . Bloch vale-se recorren temente, na maior parte de suas obras , dessa imagem da car ê ncia, exemplificada pela fome. Ela é a fome do alimento físico, constituinte da necessidade humana da busca, mas também é tomada, em muitas ocasi õ es, como fome no sentido simbólico e amplo do termo , como as car ê ncias ainda não satisfeitas da humanidade. ¬

O conceito blochiano de fome leva ao impulso ( Triel?) .100 Quer¬ ré dizer, com isso, que a carência se direcionará ao buscar. A necessida¬ de conduz à mudãriçáTque impõe a Busca de uma nova situação, ten do em vista a superação da fome. Por conta desse impulso que parte da fome, Bloch escalona os n íveis da busca humana, a começar por um desejo vago, até chegar ao n ível profundo da vontade. ¬

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100

" Porque d ã o seu dinamismo à filosofia pol ítica , as utopias, como observou Ernst Bloch , propõem aos homens os meios para proverem seu destino à luz de uma visão global do desenvolvimento histórico. Por isso, segundo observou Bloch, o Princ ípio da Esperan ça anima o mundo. ( ...] Para que a utopia seja força progressista, é preciso transformar as aspirações em militâ ncia , a esperan ça em decisão política". HERKENHOFF , Joã o Baptista . Direito e Utopia . Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 14. BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, ! . Frankfurt, Suhrkamp, 1985, p . 50 e seg.

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Tais desejos, que levantam o homem de sua condição de fome e o impulsionam para mais além, são cotejados, por Bloch, com a teoria psicanalítica de Freud, buscando traçar possíveis paralelos. A teoria freudiana constrói uma conhecida e divulgada visão a respeito dos desejos, situando-os no n ível das frustrações e das necessidades passa das, que se localizam no inconsciente. O impulso, para Freud, se dá pelo passado: as feridas do ontem inquietam o presente. ¬

Bloch, neste ponto, dá margem a uma teoria dos desejos ampla mente diversa da freudiana: no Princípio Esperança, postula os desejo s futuros. Dirá BÍoch que Freud se engana na medida em que liga os desejos simplesmente à histó ria passada do indivíduo, centrando-o nas inquietações sexuais. O homem possui desejos futuros, motivações novas que devem saciar suas necessidades e carências, e tais impulsos não se devem a causas passadas, mas são amplamente orientadas pelo que vir á. Neste sentido, Bloch avan ça sobre o freudismo identificando nes te uma teoria reducionista: as necessidades humanas são amplas, e Freud n ão se dá conta de que um dos fundamentos do impulso é a fome, a car ê ncia, que são dados sociais, das necessidades oriundas da sociabili dade humana e n ão de sua individualidade apenas. ¬

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Prosseguindo em seu paralelo com Freud, Bloch chega a um dos fundamentos do freudismo, a teoria dos sonhos. Tal qual lida com a questão do desejo, também no sonho Bloch aponta o caráter reativo da teoria freudiana, ligada ao passado e negadora do futuro. De fato, toda a psicanálise freudiana se funda na tentativa de hermenêutica dos sonhos como identificação dos traumas, recalques e vivências do passado do paciente. Bloch chamará estes sonhos de “ sonhos notur¬ nos” , os sonhos que liberam o passado. Por isso, em oposição aos sonhos noturnos, Bloch encaminha a reflexão acerca dos “ sonhos diurnos” ( Tagtraume), os sonhos acorda dos. Propõe essa categoria de sonhos identificando-a com tudo aquilo ¬

UTOPW E DIREITO

que se faz n ão mediante a utilização do inconsciente reprimido, mas sim do consciente, que se vale de instrumentos imediatamente racio nais para sua consecução. O sonho diurno é uma deliberada tentativa de transcend ência; o sonho noturno nasce da repress ão oculta dos desejos, de sua castração que precisa inconscientemente ser rompida. ¬

Enquanto no sonho noturno sua irrupção se dá como forma de engano da autocensura, o sonho diurno se vale de toda a potencialidade da vontade, da fantasia criadora, da deliberada intenção de se furtar ao presente remetendo-se para o futuro. Assim sendo, o sonho noturno revelar-se-á preso a circunstancias imóveis, girando em torno de situa¬ ções consolidadas, amargurado e reativo portanto, mas o sonho diurno há de se revelar novidadeiro, liberto, propositivo e esperançoso.101 A utopia há de se valer de tais sonhos diurnos como forma de antecipação de consciencia e realidade . O sonho diurno tem por ca¬ racter ística ainda n ã o se concretizar efetivamente, mas libera energias volitivas e exercícios de consciência e de racionalidade que se encami nham para o sentido da concretização posterior. ¬

Há muitas diferenças entre os dois tipos de sonhos no que tange aos seus objetivos; o modo , bem como o conte údo da realização do desejo, são inegavelmente distintos. Isso signifi¬ ca sempre o seguinte; enquanto o sonho noturno vive na re¬ gressão, é aleatoriamente tragado de suas próprias imagens, o sonho diurno projeta suas imagens ao futuro (“ Kiinftiges” ) , de forma n ão aleató ria, mas, ao contrário, controlável por meio

101

Luiz Bicca aponta diferen ças entre o sonho diurno e o sonho noturno na perspectiva de Bloch : "Tais traços diferenciadores são: a ) o fato de que as fantasias diurnas se processam sob absoluto controle do sujeito, podendo, a qualquer momento, ser iniciadas ou interrompidas, sempre que o Eu assim quiser. Sã o, por conseguinte, manifesta ções de consci ê ncia ou , quando muito, pré-conscientes; b) semelhante atividade do Eu pressupõe de forma necessá ria a ausê ncia do fator interno de censura [...) Ademais, os sonhos diurnos sã o marcados ainda : c) pela inten ção de ser de outro modo, de uma vida ou mundo melhor; d ) pela possibilidade, na consci ê ncia, de se ir até o fim, de se alcan ç ar os objetivos almejados". BICCA, Luiz. Racionalidade moderna e subjetividade. S ã o Paulo, Loyola, 1997, p. 234 .

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da for ça da imaginação, intermediada pelo objetivamente pos s ível. O conteúdo do sonho noturno é escondido e ocidto, o conteú¬ do da fantasia diurna é aberto, criativo, antecipador, e sua latência aponta para fi ente.102 ¬

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s

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Revela-se, assim , em Bloch, ao contrá rio de Freud , a construção de uma categoria fundamental da interioridade humana, a anteci pa çao.103 Bloch h á de cuidar do que revela sinais do futuro, antecipan ¬ do-o e fornecendo elementos para o seu desejo e sua concretização, contrastando-se com Freud, que em sua teoria lan ça olhos ao passado: “ o inconsciente, na psican álise, de tal modo, é por si mesmo tomado nunca como um ainda-não-consciente, um elemento de progre ssão; ele consiste, muito mais, em regressão.” 104 Os desejos pré-conscientes de futuro e a consciência antecipadora são fun ções que se destinam a projetar, de um estado de n ão - ter ou n ão-ser, um futuro de ter e ser. A cessação da necessidade aponta o desejo para o futuro. Tal acontece pelo concurso da esperança. Ela h á de se revelar, ao mesmo tempo, como um afeto - ou sentimento que impulsiona para frente , mas tamb é m como uma racionalidade antecipadora. No primeiro n ível, do afeto, ela é o sentimento positivo que atua no mecanismo psíquico. No segundo nível, é a docta spes, que circunda a realidade de maneira amadurecida, conhecendo suas potencialidades e sabendo manejar as possibilidades.



102 1 03

BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hofínung, I, op. cit., p. 111. "A utopia, portanto, é uma dialética antecipadora, isto é, uma superaçã o do ser pelo devir isto a distingue de quaisquer formas anal ógicas com as quais ela é geralmen te confundida . Seguindo-se Ernst Bloch pode-se perceber claramente que ela não é apenas uma projeçã o de nossos pró prios interesses, pois ela visa o interesse coletivo. Ela se distingue da ideologia porque ela constr ói um mundo e vive da esperan ça de um futuro, e n ã o de ilusões . Ela não pode ser incorporada ou explicada pelos arquétipos, pois é fundamentalmente progressiva e se volta para o futuro. Ainda que possa ser confundida à primeira vista com os ideais, ela distingue-se deles por suas dimensões concretas e por seu dinamismo dialético. Enfim , eia n ã o tem nada a ver nem com as alegorias nem com os símbolos, pois estes induzem a uma repeti çã o dos exemplos do passado, enquanto a utopia inova . FURTé H, Pierre. " Utopia e " marxismo segundo Ernst 8loch". In Tempo Brasileiro n’J 7. Rio de Janeiro, 1965, p. 21. BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hofínung, I, op. cit ., p. 61 . ,

1 04

UTOPIA E DIREITO

Tal docta spes é base de uma esperan ça fundada, que se situa na 105 plenitude do dimensionamento das potencialidades. O seu contrá rio, o desejo acrítico, revela-se uma esperan ça infundada. Bloch volta a fechar, neste sentido, sua dicotomia entre a utopia abstrata e a uto pia concreta, traçando a esta última os mecanismos psíquicos reais de sua consecu çã o.106 ¬

¬

N ão se quer dizer, no entanto , que Bloch avalie de maneira total mente negativa as esperan ças infundadas, aquelas sem a maturidade da sua concretiza ção. O n ível do desejo, ao menos, h á de abrir portas para o vir-a-ser, razão pela qual as motivações geram energias liberadoras que podem se revelar aproveitadas para os grandes desejos utópicos concretos. Neste sentido, Bloch remete ao tema, que lhe é caro , da n ão-contemporaneidade. Os excedentes culturais não-cumpridos, ar¬ rastados para outras épocas posteriores, continuam a gerar esperan ças que, mesmo n ão satisfeitas, gerar ão outros desejos e um estado de luta pela transformação, não deixando esmorecer o sentido futuro dos im ¬ pulsos humano. ¬

A

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ONTOLOGIA DO SER AINDA N ÃO: A NATUREZA

Os sonhos diurnos e a consci ê ncia antecipadora ligam-se necessa riamente, em Bloch, à quest ão da ontologia do ser-ainda-não (nichtnoch-sein ) . Tal qual Lukács, Bloch esteve num contexto filosó fico que admitiu se valer de toda a filosofia que n ão fosse marxista mas que, ainda assim, fosse imanentista, calcada na realidade, afastando a ¬

1 05 106

"A Docta Spes é a esperança esclarecida e cognoscente ". MISKAHI, Robert. Qu'esí-ce que 1' éthique ? Paris, Armand Colin, 1997, p . 101. "A esperan ç a n ão é uma qualidade íntima dependente da personalidade, n ão é um estado o an ímico da psicologia individual , é uma dimensão humanamente ontol ógica do Ser, mas n ã exclusivamente do ser do homem, e sim também do ser da realidade". LAVALLE, Adri á n Gurza. "Incitació n para recuperar el futuro. Una lectura de la Raz ó n Esperanzada de Ernst Bloch ". In Cadernos de Filosofía Alemã, vol. 3. Sã o Paulo, FFLCH-USP, 1997, p. 32.

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metafísica e o idealismo. Nesse bojo de uma ampla filosofia cr ítica, a constru ção de uma ontologia filosó fica e a tomada do problema social a partir do ser e n ão do dever-ser configuravam-se como horizontes muito naturais do marxismo filosófico. Assim sendo, ao voltar-se à ontologia, o marxismo tangenciava o pensamento de Heidegger.107 O existencialismo deste paira, na filoso fia marxista do século XX, como uma das fronteiras mais hostis, mas, ao mesmo tempo, como uma das mais pr óximas de uma mesma radio grafia do mundo presente. Deve-se lembrar que o projeto final de Lukács foi o de propugnar uma ontologia do ser social . Marcuse, ori¬ entando de Heidegger, sempre viu no existencialismo heideggeriano um possível pr ó ximo do marxismo. 108 Bloch, por sua vez, levar á o pro¬ jeto marxista de uma utopia concreta aos quadrantes de uma ontologia existencial, aquela por ele chamada de ser-ainda- não. ¬

¬

O ambiente cultural do existencialismo era també m, como o do marxismo, de recusa à tecnicidade do homem burguês. A divisão entre sujeito e objeto, a cisão da razão e da realidade, a postulação neokantiana do dever-ser, todo esse grande corpo, que foi da metafísica medieval e, com adaptação , servia ainda à filosofia burguesa, é rejeitado pelo

1 07

i.

1 08 »

" O parentesco é rigoroso entre Heidegger e Luk á cs na an á lise daquilo que Heidegger denomina por 'ontologia tradicional ', daquilo que Luk á cs chama filosofia tradicional ou o pensamento e a ciê ncia positivistas, que consiste precisamente na separaçã o dos ju ízos de fato e dos ju ízos de valor, na afirmação que o conhecimento conhece os objetos indepen dentemente do sujeito, da í precisamente afirmando que h á um sujeito e um objeto. Sobre esse ponto de vista , Luká cs e Heidegger est ã o rigorosamente de acordo: o mundo n ão est á a í, dado ¡mediatamente em face de uma consciê ncia cognoscente que o conhece tal qual ele o é e que o julga logo em seguida". GOLOMANN, Lucien. Luk ács et Heidegger. Paris, Den õel, 1973, p. 95. " Mais do que declarar em crise a cultura moderna, mais que realizar a cr ítica da civiliza ção contemporâ nea , Heidegger fez o processo de toda a histó ria do ocidente desde os seus começos gregos. (...) N ão propõe uma reforma nem revisã o, mas uma nova partida. [...) A filosofia heideggeriana teve, contudo, influxo profundo em mais de uma teoria revolucion ᬠria, entre as quais, por mais atual , pode-se citar a de Herbert Marcuse". PEREIRA, Aloysio Ferraz . Estado e direito na perspectiva da libertação. Uma crítica segundo Martin Heidegger. São Paulo, RT, 1980, pp. 215 e 217.

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existencialismo, buscando o retorno ao problema do ser, e, neste ponto, comunga de um espaço filosófico comum com o marxismo: O homem ontológico apó ia-se no homem económico , mas per ¬ manecem unidos e insepar á veis , embora distintos ou distinguíveis porque são somente modos do mesmo homem existente. Entre ambos , por é m , medeia o fen ô meno da transcendê ncia, que estende um espaço de car á ter psicológi ¬ co, imagin ário, ideal, mas de limites m óveis, ocupado por deuses, poemas e ideias da razão. Mas precisamente essa me dia ção vivencial ora sensível , ora racional a que chama mos transcend ê ncia, é que promove o hom ínida , o homemutensílio e homem-objeto de conhecimento à sua condição de homem existente.10í)



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De algum modo - Marcuse já apontava essa ligação o Dasein de Heidegger é também uma insistência na sociabilidade, numa liga ção mais estreita com a natureza, rompendo com o individualismo e com uma filosofia meramente racionalista. Bloch também se situava no campo de uma utopia não meramente idealista, abominando a sua centraliza ção no indivíduo ou na metafísica: sua intenção é investigar, na pr ó pria existência, as possibilidades utópicas, e para isso se debru çará numa grande dialética existencial da esperan ça . ¬

¬

Tal qual Marcuse, Bloch partilhará uma grande rejeição da ori¬ enta çã o do sentido existencial heideggeriano: a filosofia como radicalidade da compreensão da origem existencial é posta de lado e, em seu lugar, constr ói-se uma filosofia da existência revolucion á ria fu tura. Tal rejeição do sentido não é, no entanto , uma total rejeiçã o de qualquer busca ontológica, porque Bloch afirmará o ser utó pico. ¬

109

MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenología Existencial do Direito. S ão Paulo, Quartier Latin , 2003, p. 134 .

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Dado que o problema do ser n ão é o problema do individuo, mas de toda a totalidade das circunstancias, da situação existencial e da própria sociabilidade, Bloch propugna um in ício ontológico bastante profundo: se o ser se revela para o futuro, isso quer dizer que toda a natureza está aberta para o vir-a-ser; portanto, ela é incompleta.

incompleta é um dos fundamentos da profunda li ¬ gação entre o homem e a situação existencial. A humanidade faz parte dessa incompletude existencial, da í que está lan çada para o seu próprio aperfeiçoamento, para se completar, buscando extinguir a fome e, portanto, tornar-se plena. A imanê ncia aí se revela: a esfera da atividade ou da cultura humanas n ão é um projeto alheio à natu ¬ reza, pois o todo da natureza está lançado na mesma circunstâ ncia de incompletude. A

natureza

Nessa visão se percebe totalmente a peculiar ligação de temas de Bloch com Engels. Dentre os pensadores do marxismo, Engels foi adi ante na polê mica tentativa de compreender uma dialética da nature za, transplantando a contradição social para o plano natural. Todo o marxismo ocidental, em geral, rejeita a posição engelsiana, porque foi ela o fundamento do Diamat, a teoria do materialismo dialético oficial e dogm á tico da União Soviética. ¬

¬

Bloch n ão se furta a essa polêmica e, mesmo sendo um persegui¬ do do mundo soviético, estando muito mais próximo nesse ponto do marxismo ocidental, n ão tem preconceitos em se filiar a Engels num projeto de dialé tica da natureza. Para Bloch, está intimamente ligado à utopia concreta o fato de que a natureza é incompleta e, portanto, o homem deve lançar-se à busca do melhor. Na década de 1930, Bloch dedica todo um volume de sua escrita filosófica à questão da matéria e da natureza, O problema do materialismo, sua história e substância. Assim Luiz Bicca se pronuncia quanto à natureza em Bloch:

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A filosofia da utopia concreta não se restringe ao discurso da dial ética da história, mas estende-se ainda em direção a uma filosofia dialética da natureza . Bloch toma, decerto, empres¬ tado de Engels esta id éia; sua vinculação, todavia, com a li ¬ nhagem marxista diretamente apoiada nas obras deste ú ltimo autor n ão vai alé m desse primeiro n ível de generalidade. Fora um pequeno n ú mero de hipó teses em comum , o que se en ¬ tende por dialética da matéria em uma e noutra perspectiva é algo radicalmente distinto. [...] Como, aliás, os pr ó prios ideólogos stalinistas não se cansaram de denunciar. É impor¬ tante deixar claro que, para Bloch, o marxismo da tradição russa, de Plekhanov à ideologia Diamat, é o maior responsável pela esterilização do pensamento dialético. 110

A transformação da humanidade ser á também a transformação das relaçõ es humanas com a natureza - no que Bloch também se torna um dos antecipadores da quest ã o ecológica para o marxismo. Tal transformação compreender á, então, uma mudan ça nao apenas de manejo da natureza, no que poderia se revelar um projeto de tecnicismo socialista, mas sim há de se constituir numa transforma¬ çã o qualitativa da natureza. A filosofia metafísica e a contempor â nea filosofia racionalista bur guesa n ã o enxergam na natureza um patamar qualitativo nas relações com o homem a natureza é tratada, antes, como quantidade, como instrumentalidade. Bloch há de se valer da tradição filosófica herética quanto à natureza, e nisso chegar á a Aristó teles e aos aristotélicos me dievais de esquerda , na sua expressão. Aponta o pensamento blochiano que Aristó teles não considera a matéria mera forma para a atuação do homem . O maior fil ósofo dos gregos considera a maté ria como a pos sibilidade da transformação, do vir-a-ser: “A matéria ( “ Stoff ” ) aristotélica ¬



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110

BICCA, Racionalidade moderna e subjetividade , op. cit., p. 242.

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não é somente paciente, mas, pelo contrário, o que propicia a ascensão das formas nos fen ô menos” .111

;

Bloch vislumbra, a partir de Arist óteles, uma esteira de pensado¬ res que nã o renegam a mat é ria a mero deposit á rio da atividade humana e que enxergam inscrita també m na natureza a possibilidade do novo, daquilo que ainda não há. Essa compreensão da matéria como natura naturans, como natureza que se desdobra e cria o novo, h á de ser vista nos judeus e á rabes medievais - Averr ó is, Avicena - e, às por ¬ tas do mundo moderno, em Espinosa. H á de se considerar ainda, nessa compreens ã o de uma natureza que se abre como possibilidade, uma idéia incidental de panteísmo - a natureza aponta seus fins, seus objetivos, sua teleología. Este todo, no qual a humanidade interage, n ão está à espera de uma transcendê ncia, mas sim busca a completude imanente, cujas possibilidades est ão da¬ das existencialmente.

No quadro blochiano de um certo “ panteísmo” filosófico que vê na mat é ria a sede da possibilidade, est ã o tamb é m , ao lado do aristotelismo de esquerda e de Espinosa, correntes insólitas da filosofia contempor â nea, como a de Schelling, que, no in ício do século XIX, encaminhou uma filosofia da totalidade bastante diversa da de Hegel. Tal esfumaçado e exótico panteísmo filosófico da natureza é que dá ensejo para Habermas nomear Bloch como sendo o “ Schelling mar¬ xista” , 112 identificando també m no jovem Marx uma inspiraçã o simi ¬ lar à de Bloch no que tange a uma interpreta ção muito peculiar sobre tal pensamento de Schelling acerca da natureza. 111 112

BLOCH, Ernst. Das Materialismusprobiem, seine Ceschichte und Substanz . Frankfurt, Suhrkamp, 1985, p. 143. "Bloch n ão recua diante da utiliza çã o da faculdade do julgamento, segundo Kant, ampliada por meio da Filosofia da Natureza , de Schelling. Ao mesmo tempo que o homem socializado se alienou, também a natureza 'se perdeu', e exige, na perspectiva do projeto malogrado do seu 'sujeito' oculto, ser interpretada como natura naturans e ser levada a seu termo por

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A

ONTOLOGIA DO SER-AINDA- N ÃO: A POSSIBILIDADE

A orientação ontológica em Bloch está voltada para o futuro e, neste sentido, ao invés de categorias como necessidade ou realidade, o fundamento do pensamento blochiano está baseado no conceito de possibilidade (.Môglicbkeit). O ainda- nao-ser é a possibilidade de ser. A possibilidade da plenitude está no horizonte de todo o pensamento de Bloch.

_

Em todo seu percurso filosófico, mas principalmente nas suas obras de maior envergadura filosófica a começar do Princípio Esperança , Bloch retoma a filosofia aristotélica e sua tá bua de categorias, valendose, principalmente, do conceito de dynamis. Aristó teles diferencia entre a mera potencialidade - uma abertura passiva para o vir-a-ser - e a possibilidade de maneira estrita, tomada numa perspectiva ativa.113





A partir de tal inspiração aristotélica, Bloch se propõ e a construir uma t á bua de categorias da possibilidade, empreendendo a distin ção entre quatro n íveis: o possível puramente formal; o possível subjetivo; o possível objetivo; o possível dialé tico. Tais diferenças são elencadas

113

interm édio da intervençã o humana. A atitude ' mec â nica ', que desemboca no controle técnico sobre as for ças naturais, é incapaz de perceber que a natureza precisa voltar à pátria . É somente quando a atitude 'teleológica' apreende as coisas sob a forma de abstra ções de si mesmas, que as sequ ê ncias dos fins subjetivos das a ções humanas deixam de flutuar no vazio, vinculando-se, ao contr á rio, a uma finalidade objetivamente inscrita na natureza. Bloch retoma a pol ê mica de Goethe contra Newton e, recorrendo à heran ça mais profunda do simbolismo pitagó rico dos n ú meros, da doutrina cabal ística dos signos, da fision ómica hermé tica , da alquimia e da astrologia, opõe à s ciê ncias da natureza uma teoria expressiva da natureza , enquanto configura ção simp ática . Mas o fato de que Bloch alude, novamente a partir de Schelling, ao conhecimento da beleza natural , tal como ela nos é transmitida pela experiê ncia, a uma espécie de conhecimento da natureza , radicado nas pró prias obras de arte, dissimula com dificuldade o embaraço decorrente da circunst â ncia de que n ã o dispomos, justamente, de uma introdu çã o metódica à 'doutrina da natureza como expres¬ s ã o’; todas as tentativas anteriores se apoiam numa extrapolaçã o inutiliz á vel, na analogia entre microcosmo e macrocosmo, entre homem e universo. HABERMAS, Jíirgen . "Ernst Bloch um Schelling marxista ". In Habermas (org. B á rbara Freitag e S é rgio Paulo Rouanet ). S ão Paulo, Ática, 2001 , p. 161 . Cf. PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. Ciência e Dia /ética em Aristóteles. Sã o Paulo, Ed. Unesp, 2001, pp. 182 e seg.

r AIVSSON LEANDRO MASCARO

por Bloch no Princípio Esperança e estão na base do conceito do ontológico do ser-ainda-nao.114

O possível puramente formal { Das formal Moglicbe) é aquele que se encontra num nível de possibilidade apenas no pensamento, tendo em vista que em realidade deverá ocorrer um não-possível. Quando se diz que o planeta Marte pode encontrar a Terra amanhã, esta é uma possibilidade formal, ao contrário da afirmação de que “ o quadrado era redondo” 115 , impossível formalmente. O possível que é puramen ¬ te formal é a categoria mais rasa e fr ágil da possibilidade.116 Na reali dade, ela acaba sendo uma não-possibilidade. Bloch associar á tal pos¬ sibilidade, no plano pol ítico, a um otimismo irreal que ignora as con di ções concretas da ação social. ¬

¬

O possível subjetivo é também tomado na acepção de possível objetivo-factual ou objetivo ao nível dos fatos { Das sachlich-objektiv Moglicbe) . Pierre Furter, na Dialética da Esperança, o traduz como provável.117 Tal possível subjetivo é aquele que se baseia em fatos que se apresentam ao sujeito, embora este n ão tenha grande rigor no co nhecimento das estruturas que ensejam esse mesmo fato. Olhar as nuvens é ind ício, a quem olha, de que é possível que chova. No entan to, esse algué m que olha ao cé u desconhece as principais estruturas da meteorologia, e o objeto nuvem não informa a totalidade da possibi¬

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114

115 116

117

" Die 5chichten der Kategorie M õglichkeit". BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, I, op. cit ., pp. 258 e seg. ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia . Ensaio sobre Ernst Bloch. Porto Alegre, Movimento, 1985, p. 31 . Do trecho deste livro se valem alguns exemplos. "Poré m, é preciso frisar, o fato de um pensamento apresentar se com sentido, com significa¬ ção , n ão quer dizer que necessariamente seja verdadeiro ou que deva sê-lo, isto é, que corresponda ou deva corresponder a alguma coisa na realidade. Ele deve 'poder' corresponder, mas n ão que efetivamente corresponda ou deva corresponder à realidade. O pensamento pode ter sentido, e por isso n ã o carecer de objeto, mas pode n ã o ter uma correspond ê ncia no mundo real . Entretanto, porque n ã o tenha essa correspond ência efetivamente comprovada , n ã o quer dizer que perca seu sentido ou a sua significa çã o". ALVES, Ala ô r Caff é. Lógica . Pensamento Formal e Argumentação. São Paulo, Edipro, 2000, p . 193. EURTER, Pierre. A dialética da esperança . Uma interpretação do pensamento ut ópico de Ernst Bloch. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, pp . 112 e seg.

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UTOPIA E DIREITO

lidade. Transportando tal categoria para o plano político, tem-se um esforço pessoal e social que não corresponde à real situação dos fatos. O terceiro n ível do possível em Bloch é o do possível objetivo. Tal n ível é també m chamado por possível objetivo-coisal ou possível confor me à estrutura do objeto real { Das sachhafi-objetkgemàf Môglicbe). Ao í contrário do possível subjetivo, que não se funda na pró pria virtual idade do objeto, neste caso se abre claramente a mirada ontológica da possib ¬ i lidade. A incompletude, nesse caso, estará não no pólo objetivo, e sim no pólo subjetivo, daquele que engendra o conhecimento da possibili dade. Num paralelo político blochiano, a realidade se abre como possí¬ vel, sem encontrar eco na dimensão subjetiva. ¬

¬

O quarto n ível do possível é o possível dialético, ou , tomado em outra terminologia, o possível objetivamente real ou possível real - ob jetivo { Das objektiv realMõgliche ) . Neste n ível de possibilidades, abre se a clareira para uma plena compreensão do objeto por parte do su jeito, revelando-se, assim, uma antecipação do futuro que está engen ¬ drada no conhecimento da pr ópria realidade e da maturaçã o de con dições e de práxis do agente. Este n ível de possível, dial é tico, d á conta das contradições da pr ópria ação que dever á engendrar o futuro e concretizar as possibilidades. Neste sentido , exige uma. mirada amadurecida tanto no n ível das possibilidades objetivas, das circuns tâncias, quanto no n ível das possibilidades subjetivas, dos agentes cria dores, transformadores ou revolucionários.

¬

-

¬

¬

¬

¬

Blochconsiderará a utopia concreta çomo aquela que chega

ao

n íveF do possível dialético, dando conta de uma compreensão dos movimentos da contradição da realidade e da ação revolucioná ria, es capando da utopia fácil e abstrata do idealismo e negando també m o possível apenas como possível formal . ¬

Assim sendo, nesta original tábua de categorias do possível, Bloch toma a dianteira de uma perspectiva filosófica do marxismo que, ao

ALYSSON LEANDRO MASCARO

mesmo tempo, avan ça para além do materialismo dialético dogmático e economicista, de um lado, e do voluntarismo revolucioná rio, de ou ¬ tro lado, negando a ambos como suficientes para um projeto de uto¬ pia concreta. O possível dialético de Bloch vai se tornar a mais avança¬ da postulação filosófica da possibilidade revolucionária no marxismo.

O marxismo economicista, aos moldes soviéticos, seria a esperan ¬ ça em que as circunstâncias objetivas, sem a práxis transformadora, levariam o capitalismo ao socialismo. É este, apontado por Bloch, o possível objetivo. O voluntarismo marxista ou utópico-idealista, que se exprime num desejo revolucion ário apenas pela força da vontade, des¬ conhecendo as circunstâ ncias e as estruturas do real, é aquele identifi¬ cado por Bloch como o possível subjetivo. Bloch escapa tanto do economicismo quanto do voluntarismo ao propor, como instâ ncia superior do possível, o possível dialé tico. Só nele poder-se-á verificar a utopia concreta. Foge, assim, tanto da força inexorável das leis econó micas, de uma certa força do destino aos mol ¬ des marxistas, quanto de um idealismo voluntarista ingénuo e desape gado do movimento contraditó rio do real e do concreto. ¬

A ONTOLOGIA DO SER-AINDA-NÃO: S AINDA NÁO

É

P

Toda a tentativa de Bloch de fundar uma ontologia marxista do ser é voltada ao futuro, mostrando o presente como incompletude. Daí se revela o ser-ainda-nao: não está ainda constru ída a completude humana. O socialismo é a visão da completude econ ómica, política e social do homem. Bloch aponta a busca como elemento necessário da existência humana. É célebre a definição dada por Bloch de sua ontologia do aindanão-ser. Fundamentalmente no Princípio Esperança, insiste que há uma

UTOPIA E DIREITO

fórmula ontol ógica que aponta para o fato de que o homem ainda não é todo . Suzana Albornoz assim revela tal formula ção, num poético relato: Adolph Lowe publica uma carta ao amigo Ernst Bloch , que é vá rias vezes referida em ensaios posteriores sobre a obra de Ernst Bloch . Naquela carta , Lowe lembra uma situa çã o em que os amigos fil ósofos trocavam ideias ( ao entardecer...) , quando o dono da casa faz um desafio a Bloch : “ Sempre foi sinal dos grandes filósofos poderem resumir o n ú cleo de seu ensinamento em uma ú nica frase. Qual é , pois, a sua frase fundamental ? ” carta esta

Bloch cachimbou por alguns momentos e então revidou ;



“ Desta armadilha não saio ileso . Se respondo, compor-

to-me como

grande filósofo. Se silencio, parecer á como se eu tivesse talvez muitas coisas a dizer, mas não muito. Prefiro fazer o papel de pretensioso do que de bobo, e dizer : S ainda não é P.” U 8

Esta referência à fórmula S ainda não é P é a tentativa blochiana de encerrar uma conceituação profunda a respeito do ser-ainda-não. Nome ando a S e P de sujeito e predicado, dir-se-ia que sujeito ainda não é predicado ou , como Bloch afirma em todo início de seus livros, o homem ainda não o é plenamente, não se tem a si mesmo. O dado da incompletude aqui se revela de maneira cabal: o hoje ainda não é o todo. ¬

Tal fó rmula blochiana é aberta e n ão comporta um ju ízo deduti¬ vo , de tipo idealista ou metafísico, que venha a estabelecer o que é P para então descobrir-se o que de S lhe é de menos. Pelo contrá rio , Bloch nunca incorre no risco de estabelecer uma filosofia a partir de P , que olhe para a realidade humana como algo degenerado , incomple¬ to no sentido de ter um caminho ló gico e j á estabelecido a ser seguido

118

ALBORNOZ, Ética e Utopia , op. c/ í., p. 70.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

para a completude. Assim procedem a metafísica , a religião dogmá tica e os cientificismos mecanicistas. Bloch parte de S , da situação existen cial, e aponta para P, que é uma meta aberta, construída a partir das possibilidades concretas do hoje. ¬

S AINDA NÃO É P deve poder resumir de forma concisa o pensamento de Bloch , poré m, para isso como já se disse mais vezes na literatura referente ao assunto esta fórmula primeiro pressupõe uma representa ção normativa de E Se eu afirmo que o que aparece o fen ômeno ainda nao é a essê ncia ou a subs¬ tâ ncia, devo saber e poder dizer o que é o essencial ou substan ¬ cial ante o qual meço o fenômeno, o que aparece. Mas Bloch se nega a fazê-lo. O que é essencial , o que é verdade, só se pode determinar negativamente: Não é em absoluto necess á rio saber o que poder á ser o Humanum em todo o seu conte údo positivo para reconhecer Ñero como desumano.119









Com isso, h á de se evitar a concepção utópica de um mundo criado artificialmente no pensamento e que venha a estabelecer, ape nas no n ível cognitivo, os caminhos que ligariam uma atual situação S a uma idealizada etapa P. Bloch se furta à utopia abstrata, tratando da utopia concreta apenas no solo das possibilidades dial éticas. ¬

119

Ibid ., p . 78.

T

CAPíTULO 7 UTOPIA JURíDICA: HISTóRIA

E DIGNIDADE HUMANA

Ernst Bloch é um pensador que se aproxima do direito na princi¬ pal fase de sua maturidade intelectual e, por isso, seguiu um caminho diverso da maior parte dos grandes filósofos. Os juristas percorrem o itinerario contrario do de Bloch quando se tornam filósofos: saem do particular jur ídico para os temas filosóficos universais. Os próprios filósofos n ão-juristas em geral tratam do direito incidentalmente den ¬ tro do problema pol ítico. Raro é quem, como Bloch , escreve ao tempo de sua principal obra de maturidade intelectual outra grande obra de filosofia do direito.

Mas Bloch persegue a filosofia do direito desde sua juventude, pois já se vislumbra, no Espírito da Utopia e em Thomas Münzer, Teólogo da Revolução , uma abordagem do problema do direito e da justiça , ainda que incidental . Direito Natural e Dignidade Humana ser á o resultado de uma inquietação jurídica recorrente no pensa mento blochiano, mas, ao mesmo tempo, é també m uma obra pro ¬ fundamente política, com grandes mostras de sensibilidade para com sua época e a interferência em seus problemas. A Segunda Guerra Mundial e o nazismo avivam em Bloch a sua particular tendê ncia ao pacifismo, o que lhe confere uma posição muito peculiar no quadro da filosofia política e do pensamento ocidental. Os horrores nazistas, sentidos també m por Bloch, a começar pelo seu exílio e pelo sofri mento do povo judeu , são o pano de fundo para uma nova peti ção por dignidade humana, justamente no momento mais indigno de sua histó ria contemporâ nea. ¬

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Ao emergir da 2a Guerra Mundial, após tr ês lustros de massa¬ cres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimen ¬ to do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade com ¬ preendeu, mais do que em qualquer outra época da Histó ria, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirma¬ ção histó rica dos direitos humanos.120

Entretanto, ao contrário da reação dos juristas que prosseguiram cinicamente positivistas mesmo após o nazismo ou de outros que opuse ram ao positivismo do direito nazista uma apressada retomada do direi to natural , sem crítica ou melhores qualifica ções dos termos do debate, Bloch pretende refazer toda a trajetó ria do direito natural, para, ao fi nal, rechaçar com veem ência tanto a filosofia juspositivista quanto a jusnaturalista, esta tomada no seu sentido metafísico individualista, quan¬ do não no seu sentido religioso conservador. De toda a florada ética surgida no direito do pós-nazismo, Bloch pretende o caminho mais difí cil, que é o de colocar em xeque os pressupostos de tais direitos éticos e tamb é m dos meramente técnicos, 121 para ao final resultar numa ¬

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COMRARATO, F á bio Konder. A afirmação hist órica dos direitos humanos. S ão Paulo, Saraiva, 1999, p. 44. José Eduardo Faria exprime a dificuldade do pensamento jur ídico em superar a dicotomia entre o jusnaturalismo tradicional e o positivismo: "Tal ceticismo, todavia , n ã o deve ser entendido como uma desistê ncia da luta pelo reconhecimento e pela efetiva çã o dos direitos humanos, por se considerá - la invi á vel a priori . Ao contrá rio do otimismo idealista e das antinomias muitas vezes presentes nas tradicionais declara ções de direitos, o pessimismo da raz ã o permite superar visões a meu ver algo simpl ó rias, limitadas e banalizadas dos direitos humanos, abrindo desta maneira caminho para novas formas de luta em sua defesa . Deixan ¬ do se de lado as concepções jusnaturalistas tradicionais (que, ao operar por categorias trans¬ histó ricas e essencialistas, visam converter diferentes formas de poder, e hierarquia na 'ordem natural das coisas') e as conhecidas concepções jurisdicistas (que sofrem de contradi ções cró nicas a serem examinadas mais à frente), os direitos humanos encarados numa perspectiva mais pol ítica ou substantiva do que jusnaturalista cl á ssica ou l ógico formal possibilitam ações sempre incertas quanto à obten ção de resultados concretos no curto prazo, tendo em vista sua formaliza çã o legislativa , mas potencialmente desafiadoras e efetivamente transformadoras a m édio e longo prazo". FARIA, José Eduardo. "Democracia e Governabilidade: os direitos humanos à luz da globaliza çã o económica". In Direito e globalização económica : implicações e perspectivas . S ã o Paulo, Malhelros, 1998, p. 150.

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postulação de filosofia do direito bastante original. De fato, Direito Na tural e Dignidade Humana exprimirá a marca de uma profunda origi¬ nalidade jusfilosófica, o que implica, mais uma vez, numa coerência com a própria postura política de difícil enquadramento de Bloch.

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DIREITO NATURAL E DIGNIDADE HUMANA O pensamento jusfilosófico de Bloch está consolidado em Direi¬ Dignidade Humana ( Naturrecht und menschliche Wiirde) , escrito em um dos per íodos mais profícuos do pensamento blochiano, o exílio norte-americano, mesma época na qual també m escreveu sua mais importante obra, o Princípio Esperança. to Natural e

Direito Natural e Dignidade Humana é obra de filosofia do direi¬ to escrita por um nao- jurista, o que resulta numa visão peculiar do fen ô meno jur ídico e de suas tradicionais abordagens. Bloch interpre¬ ta a filosofia do direito por um â ngulo pró prio, o que implica em en ¬ tendimentos filosóficos específicos, em cruzamentos de idéias muito invulgares, em comparações e paralelismos bastante originais.

Dividida em dois grandes blocos, a obra de Bloch é peculiar em ambas partes. Para tratar do tema do direito e das utopias jur ídicas, Bloch há de fazer um grande inventá rio jusfilosófico das esperan ças jurídicas e, neste sentido, recontar á a história da filosofia do direito. No entanto, não refaz o percurso canónico e os paralelismos tradicio¬ nais das obras comuns sobre o tema. Bloch dá grande importância a autores que, pela tradi ção jur ídica, têm menor peso na hist ó ria do pensamento jurídico, ao mesmo tempo em que julga determinadas idéias por um modo bastante insólito. Em relação a alguns pensado res, tem uma dose de cr í tica virulenta, como no caso de Carl Schmitt, o que se explica pelo fato de Bloch estar se valendo de Direito Natural e Dignidade Humana também como uma obra política, como um ¬

ALYSSON LEANDRO MASCARO

modo de

histó ria ao tempo das lembran ças imediatas do nazismo. Bloch não só reescreve a história da filosofia do direito como marca posição em torno da implica ção dos pensamentos jurídicos. recontar a

Na segunda parte de Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch procede à construção de uma nova ontologia jurídica, voltada à espe¬ ran ça. A parte final de seu livro, a mais ambiciosa e original, é a possi¬ bilidade de compreensão ontológica libertadora do direito. A emprei¬ tada blochiana, neste ponto, se revela ainda mais peculiar e mais incó¬ moda que a mera reinterpretação da história da filosofia do direito. Neste último ponto, Bloch estará adentrando ao imo de uma postulação nova do direito e da sociedade.

A UTOPIA QUE É JURÍDICA Na tradição do pensamento marxista, ao direito é reservado um papel de dominação muito claro. Nas engrenagens do Estado, ao direito cumpre a função de chancela da propriedade privada, de segurança da vida e do patrimó nio da burguesia, e há muito a cr ítica marxista identi fica nos ideais jur ídicos máscaras de uma estrutura social reificada. ¬

Pachukanis, que dentre os juristas marxistas talvez tenha ido mais longe na identificação do direito ao capital, percebe até mesmo na fundamentação ideológica do direito um fundo estrutural de ligação à forma mercantil. A Escola de Frankfurt, em outra vertente, também enxergou no papel do direito uma das formas do exercício da domina ção contemporânea do capitalismo. Ernst Bloch, no entanto , na tarefa de reinterpretar a historia do pensamento jurídico , salvar á alguns sen ¬ tidos utópicos do direito, que só se cumpririam numa nova dialética das relações sociais. ¬

Bem percebe Bloch que at é os mais mecanicistas pensadores do marxismo carregam um sentido utó pico em suas apostas revolucio-

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n á rias. O capitalismo é valorado negativamente, como um reino do ter, da aliena ção , da explora çã o , e , em oposi çã o , o sentido da trans formação é a plenifica çã o humana, a felicidade e a boa vida, sem ¬

cisões estruturais de classe. Desvendando o que revelam tais vagos ideais, Bloch ir á encontrar, ao lado de utopias revolucion á rias t ípicas do campo pol í tico, outras eminentemente jurídicas, que se comple¬ tam umas às outras.

A sua principal obra jusfilos ófica se estrutura a partir de uma diferenciação de utopias. As utopias jurídicas n ão s ão as mesmas uto pias da sociedade e da pol í tica. Pelo contr á rio , h á especificidades que tornam o direito um campo estrito no conjunto das utopias revolucio n á rias. A base da distinçã o blochiana entre utopias sociais e jur ídicas está em situar as primeiras como sendo buscas pela felicidade huma na , enquanto o que distingue as utopias jurídicas é, especí ficamente, o seu car á ter de busca da dignidade humana. ¬

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As utopias sociais est ão dirigidas principalmente à sorte ( Gliick) , ou , peio menos, à eliminação da necessidade e das circunstân ¬ cias que mant ê m ou produzem aquela . As teorias jusnaturalistas, pelo contrá rio, como se viu claramente , est ão dirigidas predominantemente à dignidade, aos direitos do homem , a garantias jur ídicas de seguran ça ou liberdade hu ¬ manas, como categorias de orgulho humano. E de acordo com isso, a utopia social est á dirigida , sobretudo, à eliminação da miséria ( Elends) humana, enquanto que o direito natural está dirigido , acima de tudo , à elimina ção da humilhação ( .Erniedrigung) humana . A utopia social quer afastar tudo o que se opõe à endemonia (felicidade) de todos, enquanto que o direito natural quer acabar com tudo o que se opõe à autono mia e a sua eunomia ( boa lei) . É que a resson â ncia nas utopias sociais e nas teorias do direito natural é muito diferente. Se se quiser resumir de maneira pl ástica o essencial desta diferença,

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poder-se-ia dizer que uma o modelo é o dos feácios; no outro, por sua vez, Brutus.' 22

Daí se entende o insólito de um marxista, no auge de sua campa nha pela transformação social, valer-se dos temas do direito natural e da dignidade humana como bandeiras políticas. Bloch entende que o campo da felicidade do homem, no qual se situa sua emancipação econó mica, o fim da exploração do trabalho, o fim das classes e da mais-valia, não esgota necessariamente o campo da dignidade do ho mem, cujo estatuto, embora resultante de um mesmo movimento his¬ tórico-social de emancipaçã o, é distinto e específico. ¬

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Bloch escreve sua obra jurídica no pós-guerra, e a própria histó ria do título de seu livro dá mostras do quanto busca refinar a especificidade do problema jurídico dentro do marxismo. No trajeto de regresso do exílio, dos EUA para a Alemanha Oriental, o primeiro título proposto à obra seria Direito natural e filosofia do direito. Posteriormente, Bloch o altera para Direito natural e socialismo. Finalmente, dá à publicação sua obra com o título Direito natural e dignidade humana. Neste processo de mudança do nome está também o sucessivo refinamento do aspecto específicamente jurídico da ontologia da utopia. No quadro geral do ser utó pico, o ser-ainda- não jur ídico é o ser digno. O ser feliz é o ser-aindanão geral da sociedade e da histó ria. A ontologia blochiana, mais uma vez, revela-se um conjunto dialético e plural, rico na diversidade de fato¬ res, manifestações e objetivos. O percurso dos vá rios t ítulos da obra é também valioso para se perceber que a âncora da utopia jur ídica blochiana sempre foi o pro blema do direito natural. Neste sentido, poder-se-ia argumentar al gum anacronismo da parte de Bloch, ao resgatar para o século XX uma tem ática que foi importante apenas at é o século XVIII. Entretan¬

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BLOCH, Ernst. Naturrecht und menschliche W ürde. Frankfurt, Suhrkamp Vcrlag, 1985, p. 234.

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m, o direito natural, para Bloch, é um problema antes que uma assertiva c é tim mote gené rico de temas vastos constru ídos historicamente an tis que uma metafísica dedutiva. ¬

Assim sendo, os dois temas da ontologia jurídica da utopia em Bloch uso Bem um uso comum e vulgarizado que é profundamente distinto do específicamente histórico, revolucionário e marxista por ele postulado. Daí que a leitura superficial ou a mera evocação do título de sua obra de filosofia do direito não dão conta minimamente de entender o jogo dialético profundo de seu pensamento utó pico- jurídico.

A UTOPIA JURÍDICA CONSTRU ÍDA NA HISTÓ RIA: ANTIGOS E MEDIEVAIS

Abominando o caráter conservador da filosofia do direito, que de modo geral oscila pendularmente entre o normativismo tecnicista to moralismo metafísico, Bloch h á de buscar na histó ria as razões das lucas e das construções utó picas do direito. Seu pano de fundo é sem¬ pre a práxis, o agir social, as classes despossuídas que erigem referenciais utópicos, a histó ria indigna que aspira à utopia da dignidade. Por isso , em certos momentos de seu recontar histórico, Bloch dá margem de destaque mais ampla aos movimentos sociais e religiosos, que carreiam os sonhos populares muito mais que o puro delinear dos filósofos e seus pensamentos jurídicos, cujos debates são geralmente herméticos ao povo. O religioso Thomaz Miinzer merece mais empatia, na ontologia jurídica de Bloch, que vários dos eminentes tratadistas mo¬ dernos que inauguram a teoria do jusracionalismo.

Bloch abre Direito Natural e Dignidade Humana com uma peti¬ ção pelo sentimento jurídico. Seus livros, em geral, têm intróitos que são verdadeiras exclama ções poéticas que preparam o discurso filosófi¬ co subseqiiente. Na sua obra jusfilosófica, Bloch també m se vale de tal

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expediente. Conclama a uma reflexão do sentimento jurídico, aquele que se manifesta no homem que está abaixo, em oposição aos podero¬ sos e ao Estado. Isto porque, para Bloch, é o homem de baixo que sofre e sente o poder do direito, tendo em vista que a senten ça, quan do pronunciada, em geral é suportada pelos de baixo. ¬

A narrativa da histó ria da utopia jurídica é, em Bloch, bastante calcada nesta distin ção entre os de baixo e os de cima. Construindo um m étodo de reflexão sobre as esperan ças jur ídicas que distingue aquelas erigidas a partir do povo e aquelas determinadas a partir do poder, Bloch separa os pensadores que muito mais estiveram ligados à imposição que propriamente à libertação. Assim sendo, ao invés de investigar, na histó ria do pensamento grego, o estofo clássico do pen¬ samento sobre o justo, Bloch busca, nos movimentos teó rico- pol íticos gregos, expressões melhores das utopias jurídicas.

Separando, de um lado , a busca do direito natural como um fun ¬ damento da igualdade e da liberdade entre os homens e, de outro lado, a legitimação do poder econ ó mico e político, nos capítulos inici¬ ais de Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch inscreve, em um mesmo eixo de legitimação do poder e da dominação, os pensamentos jur ídicos de Platão, Aristó teles e S. Tomás de Aquino. E n ão sem fundamento vemos que a justiça só se encontra no centro do pensamento daqueles filósofos que, ainda que os maiores da Antiguidade, não tenham tratado do direito natu¬ ral, e sim só do direito patriarcal-senhorial. Platão e Aristó teles fizeram da justiça o que o estoicismo nunca faria da natureza: o gê nio bom do poder. Platão contrapõe expressamente seu Estado justo da virtude ao Estado da natureza cínico, e a Politeia de Aristóteles não conhece outros Estados que os existentes segundo a lei positiva.123 123

Ibid , p. S3.

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Ao contr ário dos pensadores can ó nicos do poder, Bloch dar á mais ênfase na investigação daqueles que logo cedo se insurgiram contra o poder e a ordem estabelecida. Remontando ao passado histórico, Bloch utiliza-se do mito de Adão para mostrar o quanto se busca mais o peca do e suas implica çõ es que propriamente a idade de ouro na qual havia liberdade e não autoridade. É nesta idade de ouro que Bloch situa o direito natural grego que carreia consigo sonhos de utopia jurídica. ¬

A idade de ouro, contudo, na que se encastelou o direito natural grego, é louvada expressamente pelo estoicismo como urna época sem autoridade estatal . Naquela idade n ão dominavam nem Themis nem Dike nem Némesis; todavia em Homero e em Hesíodo é Themis uma simples deusa do costume, també m da deliberação, do direito consuetudinario que se afirma a si mesmo. A representação da justiça como balan ça e espada, tal como nos aparece no quadro de Raffael, é, desde logo , uma ideia astrológica posterior, que n ão existe na Aitigüidade. 124

No decorrer dessa histó ria pelas utopias do direito natural , Bloch percebe que, antes de existir um movimento social e de classes , houve, pioneiramente, um movimento individual contra o poder. Os pri¬ meiros adversá rios das normas estabelecidas são os indivíduos. “ Só in divíduos sozinhos se lan çam , de in ício, contra os usos; mais vindos da classe dos senhores, em defesa dos seus privilégios ou de seus direitos especiais, que da classe dos submetidos. Assim que se fale mais facil¬ mente de um Caim que todo o grupo de Corá; os servos enfurecidos só mais tarde se agruparam para a revolta” 125 . ¬

Tal movimento, que se verificou nos gregos como sendo a reação da Ilustração ateniense contra os costumes e o estabelecido no seu tem¬ po , destampado, segundo Bloch, dentre outros, nos hedonistas . O indi-

124 1 25

Ibid., p. 53. Ibid., p. 20.

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vidualismo ali se expõe como adversário das normas jurídicas. Os cíni¬ cos, por sua vez, também se insurgem contra a ordem, ainda que seja pelo objetivo oposto, da ren úncia ao prazer, da busca da vida simples. Em Epicuro se esboça com mais clareza, para Bloch, a dignidade humana, na medida em que tal pensador reconhece o Estado como um contrato, originado de uma razão muito singela que é a vontade de não dominar-se reciprocamente. Assim sendo, mesmo que para uma finali¬ dade altamente individualista, o que resulta dessa concepção inicial do direito natural não é uma “ natureza eterna” , e sim um produto histó ri co, que tem de ser reafirmado socialmente de maneira constante. ¬

Em oposição ao epicurismo, o estoicismo carreava outra concep¬ o çã de direito natural, que se vê tanto no escravo Epicteto quanto no imperador Marco Aurélio e em Cícero. Baseada no orgulho da exis¬ t ê ncia humana, a aposta estoica estava centrada na dignidade. Dela

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adviria, posteriormente, a felicidade. Para Bloch, tal direito natural digno dos estóicos se apresentava como igualdade inata de todos os homens e como unidade de todos os homens, numa comunidade in ternacional, numa irmandade. ¬

A A avaliação blochiana a respeito dos primeiros movimentos histó ricos do direito natural na Grécia é bastante crítica. Embora tenha sido o ambiente de surgimento da petição por dignidade humana, este ainda é um processo comandado por indivíduos, em geral das elites gregas, apartados dos movimentos sociais. A absor ção de tais postulações gregas por dignidade humana entre os romanos terá, se¬ gundo Bloch, uma inesperada reação. Numa estrutura político-social altamente refratária a qualquer humanismo , calcada numa estrita de¬ fesa da propriedade privada, o direito natural estoico grego represen tará, ao tempo de Cícero, um aspecto progressista, ainda que haurido de razões elitistas: “ O ponto pelo qual o estoicismo penetra no Direito Romano n ão foi indubitavelmente nem o interesse filantrópico nem ¬

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tampouco o interesse especulativo. As causas disso devem ser busca¬ das, fundamentalmente, no esnobismo das classes altas romanas e tam ¬ bém, de modo principal, na necessidade de dotar o direito pretoriano de uma formulação l ógica e reduzi-lo a um sistema de conjunto que garanta sua unidade” .126 Para Bloch , o efeito da introdu çã o do estoicismo em Roma, ao tempo de Cicero, era o de unificar um impé¬ rio que, ao ter se estendido por povos os mais variados, necessitava de um eixo universal de domina çã o. O direito natural estoico, assim, ser¬ vindo para a dignidade humana universal, serve também para o do ¬

minio imperial universal.

Ao final da Idade Antiga, a consolida ção do cristianismo como religião oficial fez também da Igreja refém da mesma lógica de utiliza ção da universalização da dignidade a benefício do domínio, e, pois, da indignidade. Bloch aponta em Lactando, nos anos 300 d.C., a tarefa de conversão do direito natural em domínio terreno e divino. Com a equação lex naturae = lex divinae, Lactancio abre as portas para o estoicismo penetrar na Igreja, a fim de prosseguir na dominação. São Tomás de Aquino procede do mesmo modo, aponta Bloch , na equação estoicismo = Decálogo. O resultado de tal procedimento é o abandono das utopias jur ídicas da idade de ouro, aquelas desprovidas de autoridade a época de ouro do paraíso, aquilo que Bloch chama por “ direito natural absoluto” , totalmente livre e pleno -, erigindo-se, em seu lugar, um “ direito natural relativo” , do tempo do pecado origi nal e dos dez mandamentos. Por este caminho, diz Bloch, andarão Tom ás de Aquino, Lutero e Calvino. ¬



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Ao contrário de urna historia can ónica dos filósofos, que enxerga¬ ria os monumentos fundamentais do pensamento cristão justamente em tal trinca Tomás de Aquino, Lutero e Calvino, Bloch abre cami

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Ibid., p. 32.

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nho para situar as melhores utopias crist ãs em Thomas M ü nzer. Des¬ de seu livro de juventude, quando apontava, tal qual o fizera antes Engels , que M ü nzer era um dos precursores da revolu ção socialista , na sua obra jur ídica també m Bloch identifica em M ü nzer um dos avatares de uma utopia libertadora e igualit á ria.

Tomás de Aquino, pela perspectiva blochiana, ainda insiste no caminho que foi também dos estoicos, n ão incorporando uma idéia plena de direito natural, igualitá ria e justa socialmente, e sim uma id é ia retalhada, porque dependente da autoridade, dominadora e in justa em suas últimas implicações. Aplica Bloch, para Tomás de Aquino, a sua distin ção entre o direito natural absoluto e o relativo, com ima gens bí blicas bastante claras: ¬

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No Decálogo se revela de modo novo o direito natural, mas se revela, sem dúvida, a uma humanidade caída, e, portanto, trata-se de um direito natural modificado . É um direito natu ral que pressupõe um Adão, n ão justo, e sim pecador, e, por conseguinte, um direito natural do estado do pecado, o que é o mesmo que dizer, relativizado. Na idade de ouro, que aqui se denomina estado originá rio ou estado paradisíaco , reinava a liberdade e a falta de violê ncia (ainda que n ão uma igualda ¬ de indiscriminada ) , e existia, sobretudo, a communispossessio. No direito natural debilitado ou relativo, que é o que o peca do original deixou daquele direito natural absoluto, perderam-se todos estes direitos origin á rios. Quer dizer, o pecado de Ad ão devia servir para justificar o pecado original da Igreja, seu afastamento do comunismo crist ão primitivo e sua orien ta ção às ordens do mundo. O direito natural relativo retroce deu, inclusive em grande medida, em comparação com o di reito natural estoico, sancionando a escravid ão e, sobretudo , a autoridade e sua espada. Porque a ca ída de Ad ão teve como conseqtiê ncia que o direito natural adotara a nova forma de ¬

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pena e dos meios espirituais contra o pecado: tudo isso se

justificava pelo pecado original. ' 27

A perspectiva de Bloch sobre utopias jur ídicas em Lutero e em Calvino n ão difere no essencial do posicionamento que vê em Tomás de Aquino. Com as diferen ças de visão teológica que lhe são peculia¬ res (e enxergando até mesmo mais democracia em Calvino que em Lutero, apesar de uma fundamentação altamente capitalista naquele), Bloch encontra um nexo de ligação entre o pensamento oficial cristão, seja católico ou protestante - que raramente, como Miinzer, se rom¬ peu -, e as origens do próprio pensamento clássico grego: tratam-se todos de justiças a partir do alto ( Gerechtigkeit von oberi)12* , e n ão , para uma plena utopia justa, da justiça a partir de baixo, do povo.

A UTOPIA JURÍDICA CONSTRUÍDA NA HISTÓ RIA: OS MODERNOS Na tentativa de buscar, na histó ria do pensamento jurídico, um direito natural que se aproxime da utopia da dignidade humana, Bloch separa os jusfilósofos modernos - tal qual o fizera com os antigos e medievais - entre os adoradores da ordem estatal e os potenciais libert ários. Neste sentido, sua apreciação por Hobbes, logo no in ício da modernidade, é das piores.

Reconhecendo que o jusnaturalismo moderno é um passo fun ¬ damental à dominação de classe burguesa e que o discurso dos direitos humanos em muito se prestou à consolidação da burguesia na Euro¬ pa, Bloch identifica alguns pensadores que conseguem , mesmo saídos da classe burguesa, transcender os interesses da dominação econ ó mi¬ ca. Dentre estes, Thomasius e Rousseau sã o campeões.

127 1 28

Ibid., p. 38. Ibid., pp. 50 e seg.

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Bloch se vale de urna peculiar nomenclatura em relação ao tipo de direito natural constru ído na modernidade. Dirá se tratar de um direito natural clássico, mas não porque remonte necessariamente aos clássicos gregos e romanos, e sim porque representa o jusnaturalismo moderno o modelo acabado do interesse burguês e sua utilização mais pr á tica e recorrente. Tal direito natural moderno, clássico nas palavras de Bloch, ainda é uma manifestação tortuosa de um â nimo que impe ra desde os estoicos, mas bastante distinto em sua finalidade. . .. . . r i' "' : . 1 Que “ natureza humana” tenha outro sentido no direito natu¬

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ral cl ássico que no estoicismo é evidente; trata-se, ali, no fun ¬ do, da natureza do empresá rio incipiente, n ão da do sábio. É uma natureza burguesa-revolucioná ria em luta contra a arbi ¬ trariedade feudal, contra a opressão e a desordem. O direito natural clássico é a ideologia da economia individual e da cir culação mercantil capitalista, o qual, assim sendo, necessita de calculabilidade, e, portanto, igualdade formal e generali ¬ dade das leis, em lugar do matizado direito dos privilégios próprio da Idade Média.129 J

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Hobbes, nesta análise de Bloch, representa a face mais pesada do caráter capitalista do direito natural moderno, tendo em vista que o pensamento hobbesiano aposta num “ tortuoso” jusnaturalismo, n ãodemocrático por essência. Falta a Hobbes, segundo Bloch, a pureza das origens, do estado de natureza, e daí a carência de uma utopia que seja plena na dignidade do homem. Tendo associado Bloch a utopia jur ídica à dignidade, o direito natural hobbesiano não se assemelha a tal projeto utó pico. Bloch, no entanto, n ão está neste ponto apenas desenvolvendo uma história do pensamento jurídico em busca da utopia, mas está também se valendo de suas páginas para o explícito combate político. 129

Ibid , p- 69.

UTOPIA E DIREITO

Polemizando, a ausência de um fundamento primeiro da dignidade em Hobbes n ão é suficiente, segundo Bloch, para afast á-lo totalmente de toda ideia de direito natural e torná-lo caudatário de qualquer teo ria do decisionismo, como pretendeu Carl Schmitt, seu estudioso do século XX. Bloch não economiza palavras para tanto, tratando Schmitt por “ prostituta do absolutismo completamente letal, do absolutismo nacional-socialista” .130 A razão da virulência é ainda uma aposta políti ¬ ca, que estava candente ao tempo nazista: Bloch consegue ver uma réstia de dialética no jusnaturalismo moderno, que há de se aproveitar a benefício da dignidade pelo menos no momento em que rompeu com a fundamentação teológica e abraçou a razão. Carl Schmitt e o nazismo, para Bloch, nem à razão lograram adentrar. ¬

É tal rompimento com a teologia, com a divinização do direito natural, com seu uso até então a benefício da dominação, que Bloch vê com melhores olhos em Grócio. Thomasius, por sua vez, que é cha¬ mado por Bloch como “ intelectual alemão sem miséria” 131 (e que me¬ receu um apêndice de Direito Natural e Dignidade Humana para seu estudo e louvor), também é um dos que, na modernidade, represen¬ tou um passo decisivo pela utopia da dignidade humana, na medida em que empunha a bandeira de um jusnaturalismo de tolerâ ncia.

Em uma boa projeção utópica da dignidade humana também est á , segundo Bloch, Rousseau, que na historia do seu direito natural clássico ocupa um lugar central. Ainda que reconhecendo a incon ¬ gru ência rousseauniana e o fato de que definitivamente era ambiguo quanto à propriedade, a ponto de ser erróneo tom á-lo por comunista, como já o eram ao seu tempo Morelly ou Mably, Bloch n ão deixa de admirar o peso que Rousseau investe, mais que à figura do capitalista, à do cidadão. Tomando partido da conhecida polêmica de Jellinek a 130 131

Ibid., p. 62. Ibid., pp. 315 e seg.

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respeito da proximidade da Revolução Francesa e da Declaração de Direitos com o Bill of Rights americano ou com o Contrato Social de Rousseau,132 Bloch dirá que a questão é mais profunda, uma vez que as afinidades da Revolução Francesa se deram por ambas as partes e que Rousseau, mais profundamente, estava, em outro diapasão , bem distinto, o de resgatar a perspectiva do cidadão da Antiguidade.

No hist ó rico da formação da utopia da dignidade jur ídica mo derna , Bloch vislumbra um papel contradit ó rio a Kant. É menos libertá rio que Rousseau, na medida em que “ Kant sustenta o car á ter retributivo da pena (olho por olho, dente por dente) , nega o direito de resistência, e o nega até mesmo no caso de uma autoridade satâ ni ¬ ca” .133 Tudo isso n ão afasta o lado progressista de Kant, pois este ex pressa sua admiração incondicional pela Revolução Francesa. Kant afasta o estoicismo da “ natureza como critério” , investindo sua cons tru ção teó rica na razã o , mas ainda assim logrando tamb é m tocar na questão da dignidade. E tal caminho tortuoso de uma constru ção racionalista do direito natural, apartada de qualquer referência à na ¬ tureza , Bloch o enxerga també m em Fichte, o que neste caso conduz a uma aventura de afastamento da moralidade e da realidade em troca, muitas vezes, do pró prio direito positivo. Tal paradoxo, para Bloch , também está atravessado na Luta pelo Direito de Jhering e no J’accuse de Zola, como um fanatismo pelo direito positivo que substituiu o fanatismo do direito natural. ¬

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Toda a evolução do pensamento jusnaturalista moderno, que Bloch compreende sob uma abordagem bastante cr ítica, se transformar á

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"Neste sentido, o filósofo Ernst Bloch chama a aten çã o, no brilhante estudo Direito Natural e Dignidade Humana , a poss íveis conexões e influ ê ncias rec íprocas entre o direito de liberdade de consci ê ncia religiosa e o direito natural tal qual desenvolvido por Rousseau ". SOLON, "A Pol êmica acerca da origem dos Direitos Fundamentais: do Contrato Social à Declaraçã o americana' , op. cit ., p. 135. BLOCH, Ernst. Naturrecht und menschliche Wiirde , op. cit ., p. 82 . 1

133

UTOPIA E DIREITO

quando, na passagem de Rousseau para os contemporá neos, se depara com um projeto muito peculiar, que aponta claramente ás utopias jurídicas da dignidade humana: trata-se do romantismo e, em especí fico, da questão do direito matriarcal, levantada por Bachofen . ¬

De um certo modo, na an álise da Escola Hist órica, que é urna reação ao Iluminismo e ao liberalismo burgués racionalista, Bloch per¬ cebe os ecos de uma inspiração profunda, que é a do romantismo. Tal qual Lukács, Bloch também pode ser filiado a urna ampia corrente rom á ntica, que é artística e filosófica, e que encontra, na historia do pensamento jurídico, peculiarmente, um paralelo claro com o movi¬ mento de Savigny. E, dentro do movimento jur ídico romá ntico, Bloch considera Bachofen um de seus mais importantes expoentes: “ sua prin ¬ cipal obra, 0 Direito Matriarcal (1861), é o produto legítimo do ro mantismo alem ão” .134 Bloch vê em Bachofen uma continuidade do lado romântico rousseauniano, trazendo à tona a natureza noturna e feminina do direito natural. Segundo Bloch, tal car áter feminino, matriarcal , fica ressaltado em Bachofen na dicotomia por ele aponta ¬ da, em Antígona, entre a dignidade utó pica haurida femininamente da terra e o domínio patriarcal estatal. ¬

A rebeli ão do direito da terra em que se apóia Antígona contra a lei patriarcal de Creonte é aqui, precisamente, o exemplo mais característico. É o exemplo oferecido por uma das mais grandiosas obras literá rias, por um conflito no qual Sófocles faz chocar tragicamente o antiqiiíssimo direito matriarcal com o novo direito estatal e do soberano.135

Há um caráter claro neste apoio de Bloch em Bachofen, um dos autores que não fazem parte do cânone mais restrito da história da filo¬ sofia do direito: trata-se de vasculhar, como direito natural a benefício 134 135

Ibid., p. 116. Ibid., p. 132.

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da utopia jurídica, não o estabelecido e velho conhecido direito de do minação, mas a imagem contundente do feminino, da mãe , como aco lhedora da dignidade humana.136 Neste sentido, vão se afastando os direitos naturais antigo e burguês moderno, que, vindos do alto, eram ordens de dominação e de mera contabilidade individual. O acolhi ¬ mento maternal , que está em Rousseau e em Bachofen , é a melhor ima gem hist ó rica, produzida pelo pensamento dos juristas modernos, a ser guardada e utilizada por Bloch para apontar a uma utopia jur ídica. ¬

¬

¬

A UTOPIA JURÍDICA CONSTRUÍDA NA HISTÓ RIA: OS CONTEMPORÂ NEOS

Hegel ocupa no pensamento jur ídico de Bloch uma posição de muito relevo , que no conjunto da obra só será menor que o de Marx, a quem dedica os problemas da parte final de Direito Natural e Digni dade Humana. Tanto quanto a Lukács, para Bloch também Hegel é o caminho de passagem a Marx. Não só na sua grande obra jur ídica Bloch tratou da filosofia hegeliana, mas dedicou a Hegel um monu mento liter ário que fez publicar, pela primeira vez em lí ngua espanho la e só depois em alem ã o, Sujeito-Objeto. ¬

¬

¬

Em Direito Natural e Dignidade Humana , Bloch começa por in sistir na ambigiiidade hegeliana. É assim que o mesmo Hegeí que res¬ peita e admira o Iluminismo também se encaminha, na maturidade, para o elogio do Estado prussiano. Bloch liga de uma certa maneira o pensamento jur ídico hegeliano ao tema do direito matriarcal, apon tando que a interpreta çã o de Antígona por Hegeí busca uma sí ntese ¬

¬

136

"Com

imagina çã o e fantasia , o direito natural é reinterpretado à luz da obra bachofeniana, das seitas cristãs gnósticas e do romantismo de Schilling e não se surpreenda o leitor se a mistura de todos esses ingredientes resultar numa nova teologia pol ítica - revolucion á ria ". SOLON, Teoria da soberania como problema da norma jur í dica e da decisão, op . c/t., p. 172 .

UTOPIA E DIREITO

matriarcado e o patriarcado, a familia e o Estado. “ A posterior Estética exige, ao tratar de Ant ígona, a unidade do direito do amor ( “ Liebesrechts” ) com o direito do Estado em uma totalidade da qual ambos sao partes” .137

entre o

Bloch retoma , na frase central de Elegel , “ o que é racional é real, o que é real é racional ” 138 , aquilo que já se aponta desde os primeiros cr í ticos hegelianos, que é o fato de conter uma primeira parte revolu cion á ria e uma segunda parte reacion á ria . Assim se demonstra o fra casso do período de entrada do positivismo contempor á neo em levan tar a utopia jur ídica da dignidade humana. Isto, no entanto, nã o afas ta da contradi ção do pensamento hegeliano o seu valor maior. Em suas po éticas palavras, em Sujeito- Objeto, no capí tulo concernente à filosofía do direito, Bloch a Hegel se refere: ¬

¬

¬

¬

É, precisamente, em Hegel, o solo em que pode florescer uma rosa muito mais bela, muito mais misteriosa, muito mais lu ¬ minosa que aquela que floresce na cruz do Estado; seja com ou sem ramos de carvalho e espadas. 139

Este algo que pode resultar de Hegel muito melhor que a cruz do Estado é o marxismo, cujo m é todo é haurido das fontes hegelianas . Bloch faz em Hegel a inflexão para a superação do próprio estatalismo hegeliano por meio do m é todo hegeliano- marxista. A rosa contra a cruz e a espada é a utopia jurídica contra o Estado e a dominação. No pensamento de Bloch, é Hegel a chave com a qual Marx supera, en fim , ao pr ó prio Hegel. ¬

137 138

139

BLOCH , Naturrecht unci menschliche Wiirde, op. cit ., p . 142 . partir da equa çã o ' real = racional' é que se pode compreender por que n ão ti á para Hegel uma ¡d é ia de justi ça separada da realidade em que ela se revela . A idé ia, por ser a expressão maior da racionalidade, é também a m á xima expressã o da realidade". SALCAOO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo, Loyola , 1996, p. 498. BLOCH, Ernst. Sujeto-Objeto ( el pensamiento de Hegel ) . México, Fondo de Cultura Económica, 1982 , p. 254. "A

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Para Bloch, no entanto, o caminho da filosofia do direito con ¬ temporânea segue, de Hegel, a cruz do Estado, e não a rosa. Assim, volta suas armas contra o positivismo, que é a ideologia jurídica dos séculos XIX e XX. Mais uma vez, sua obra jur ídica nlo é só uma aná lise histó rica e filosófica fria e intelectiva, e sim um libelo transforma¬ dor, que interfere em seu próprio tempo. ¬

Na crítica que empreende contra o positivismo nos séculos XIX e XX, Bloch mira alguns alvos certeiros. Começa sua trajetó ria por mo vimentos jur ídicos já ultrapassados a seu tempo para se concentrar, ao final , nos dois grandes monumentos do domínio jur ídico: os pensa mentos de Hans Kelsen e, principalmente, de Carl Schmitt. ¬

¬

A escalada pelo positivismo de antanho passa por Jhering, cujos A Finalidade no Direito e A Luta pelo Direito representam, para Bloch, um movimento de alguma aproximação à dignidade humana, por conta da finalidade e da luta, mas que, ao final, se situam no mesmo quadro geral de busca do lucro e do interesse do capital privado e do Estado liberal .

Nesta mesma contradição Bloch também situa a Escola do Di ¬ reito Livre, que, podendo alçar vôos em busca de uma utopia além do positivismo , resiste numa liberdade que é o atendimento de uma burguesia que mudava a sua estrutura econó mica, antes apenas for¬ mal e agora necessitada de uma sociologia que abrisse respiros ao casual e ao específico.

Com mais dureza, Bloch se referir á ao movimento que, tentando esmaecer o positivismo, relan ça o direito natural, sob matizes profun damente mais reacion á rios. Neste ponto , Bloch distingue o seu direito natural, da utopia da dignidade humana, daqueles que, até mesmo no pós-guerra, retornaram a um jusnaturalismo de caráter ético e religio so como forma de se contrapor ao rescaldo do totalitarismo. ¬

¬

UTOPIA E DIREITO

Aponta Bloch que um dos que postulam um fundamento ético jusnaturalista e passadista no capitalismo tardio é Stammler. A carac ter ística comum a todos os movimentos que postulam, a partir do di¬ reito, . uma libertação do positivismo é o fato de nao se desgrudarem, ao cabo*_d.Q próprio jpositivismo, do Estado e da dominação. No final das contas, para Bloch, trata-se de uma defesa do direito positivo em meros cen á rios (Kulissen) de preocupação social. ¬

_

Assim também a retomada do tomismo, que Bloch classifica como uma falsificação, tendo em vista o seu cará ter fugidio às questões estru turais da injustiça no capitalismo. Bloch considera o neo-tomismo uma constru ção decorativa no conjunto do direito positivo capitalista con temporâneo. Suas investidas de direito natural são daquele tipo que Bloch denominou de relativo, isto é, preservando a autoridade divina, de um lado, e a do Estado , do outro . O resultado é apenas um vago tangenciamento dos problemas sociais contemporâneos, em troca de um caráter pastoral que teme o potencial da liberdade. O direito natu¬ ral do neo-tomismo, no século XX, se apresentará então, para Bloch, como “ duplamente decorativo por razão da quimera de um direito na tural pré-capitalista, anterior a todas as contradições capitalistas” . 140 Tra¬ ta-se, para Bioch, de uma volta ao passado que tem por resultado passar ao largo das questões centrais da exploração económica. Se a encíclica papal Qtiadragessimo Anno, segundo Bloch, conclama, em nome do di¬ reito natural, que os salários dos trabalhadores não sejam muito rebaixa dos, também nada faz nem aponta para que sejam aumentados. ¬

¬

¬

¬

A investida de Bloch contra aquilo que denomina de “ direito na tural tardio-burgu ês” se estende até mesmo à análise do pensamento ísticos do Direito Civil, de Adolfo Reinach, cujo Fundamentos aprior de 1913, marcou um passo importante para o estabelecimento de ¬

140

BLOCH, Naturrecht und menschliche W ürde, op. oí., p. 161 .

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uma reflexão fenomenológica a respeito do direito, nos passos de Husserl. A fenomenología , pretendendo uma ess ência para alé m das contingê ncias, do acaso, das peculiaridades incidentais do direito , acaba por construir uma teoria jurídica vazia, desprovida de relações sociais, e, daí, quaisquer que sejam seus conte ú dos, advir ão de um procedi mento de formas esvaziadas. Bloch aponta para a fenomenologí a implicada ao direito natural como se fosse um pan óptico, um conjun to total de imagens falsificadas. ¬

¬

No entanto, toda a excursão de Bloch pela histó ria cio pensamen to jur ídico terá seu ponto culminante na cr ítica a Hans Kelsen e a Cari Schmitt. Nestes dois, enxerga Bloch o cume contemporâ neo das duas formas de dominação do capitalismo, nas suas faces liberal ou nazista. ¬

Para Kelsen , Bloch reserva uma crítica bastante peculiar, que co ¬ meça primeiro por apontar, classicamente , para os limites do formalismo kelseniano, mas que, de forma surpreendente, posterior ¬ mente identifica em seu pensamento uma mistura de geometria n ã oeuclidiana, que Bloch qualifica como axiomá tica e dedutiva, com um scotismo medieval , partindo do primado da vontade sobre o entendi mento. 141 Estes dois mé todos (a dedu çã o formalista e a vontade) , se¬ parados e muito diferentes entre si historicamente, h ão de se encon trar no pensamento jur ídico de Kelsen . ¬

¬

~

Com a teoria de Kelsen do puro cará ter prescritivo da norma como conseq íiê ncia, da variabilidade da

fundamental ( e,

5 41

Ari Solon , tratando da confronta ção de Bloch a Kelsen, afirma : "Inicia o ataque a Kelsen com os chavões usuais que julgamos ter refutado ao longo de nossa an á lise: a 'l ógica do dever' n ão admite nenhuma determinaçã o emp írica; a oposi çã o abstrata entre ser e dever-ser suscita um desinteresse pelo ser e a doutrina pura despreza a sociologia e a an á lise econó mica . H á um ú nico ponto de sua cr ítica que, com alguma retifica çã o se concilia perfeitamente em nossa an á lise . Após mostrar como a doutrina kelsenlana poderia ter seu ponto de surgimento no scotismo medieval ( a afirma ção do primado da vontade sobre o entendimento fazendo derivar todas as determinações intelectuais da vontade divina , que n ã o se prende a nenhuma l ógica do entendimento), Bloch afirma ter o irracionalismo campo livre". SOLON, Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão, p. 1 f >8.

UTOPIA E DIREITO

normalização) , abrem -se as portas para o irracionalismo; ultrapassando-se a si mesmo em nome da “ pureza” , o formalismo estava maduro para isso desde o principio.142|

Aponta Bloch que Kelsen é um destino necessário a que chegaria a teoria jurídica positivista e formalista, que, por conta do seu desinte resse cient ífico pela origem de sua validade, torna-se um antípoda do direito natural como utopia da dignidade humana. ¬

No entanto, dirá Bloch, a mais aberrante evolução a que chega a filosofia jurídica desprovida das utopias da dignidade humana vai se dar no pensamento de Carl Schmitt. Pior que Kelsen, porque neste ainda h á uma máscara de estado de direito em Schmitt só se vislumbra o estado de exceção como norma.

Confirma-se mais uma vez, quando da análise específica de Cari Schmitt (e, em tom menor, da de Kelsen ), que Bloch abandona um possível neutralismo de curiosidade histórica para tomar partido em face de feridas que, no tempo de escrita de sua obra jusfilosófica, esta¬ vam abertas e poderiam, até mesmo, reaparecer. Na condição de ju¬ deu marxista, perseguido duplamente, Bloch não poderia se furtar a vaticinar criticamente contra o pensamento schmittiano.

Embora nas décadas de 1980 e 1990 tenha havido no seio do pen samento marxista uma revalorização de Carl Schmitt, por conta de sua suposta fidelidade a uma perspectiva realista do poder, que trata da ex¬ ceção e n ão da norma, Bloch rechaça qualquer hipotética interpretação benéfica em torno daquilo que denomina “ antijusnaturalismo” . Bloch percebe, desde logo , que Schmitt faz um movimento de afastamento do formalismo, que até poderia lograr êxito, mas que procede a uma hecatombe ainda maior: o formalismo jurídico positivista (Kelsen) é ex¬ pressão do capitalismo burguês legalista, concorrencial e mercantilista, ¬

142

BLOCH, Ernst . NalurrectU und menschliche Wiirde , op. cit., p. 171.

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I ALYSSON LEANDRO MASCARO

s li

mas o decisionismo de Schmitt é a negação do direito dos burgueses mercantis em nome do capitalismo monopolista. Para isso, até mesmo o uso schmittiano de Hobbes é amplamente distorcido,143 porque, se este

aponta para o contrato social como resolu ção da natureza, Schmitt apon¬ ta para a exceção. “A falsificaçã o desemboca em assassinato. Como dita¬ dura do crime consumado” .144

Neste sentido também aponta Celso Lafer, tratando a respeito das razões da conexão hobbesiana de Schmitt: Schmitt inspirou-se em Hobbes e na preocupação hobbesiana da guerra de todos contra todos, mas as suas idéias serviram a Hitler, que deu um sentido preciso ao que Schmitt denomi nou de hostilidade absoluta.145 ¬

Bloch n ã o se furta a construir um m é todo de distin çã o jusfilosófica que é , no fundo , uma arma de luta pelo presente e pelo futuro. Toda a trajetó ria da utopia da dignidade humana é social, histó rica, condicionada às circunstâncias do domínio político-eco¬ n ó mico. E, enfim, de classe. Mas, ainda assim , Bloch considera boa parte de tal pensamento jur ídico uma heran ça necessá ria à utopia jur ídica de uma sociedade justa e digna.

1 43

1 44 1 45

"A aprecia ção da obra de Schmitt é ainda mais desfavorável , inclusive com insultos desneces ¬ sá rios. No capitulo de seu livro 'O decisionismo de Carl Schmitt ou o anti-direito natural ', Bloch acusa Schmitt de ter falsificado Hobbes, um autor liberal preocupado com a segurança pessoal e a manutenção da paz para fins fascistas. N ã o seria Bloch que falsifica 5chmitt, pois ao reivindicar para o decisionismo a construçã o liberal de Hobbes, como poderia ela culmi ¬ nar no fascismo em que pese a m á scara usada pelo seu autor durante certo tempo para protegé- lo ? Bloch , poré m , estava convencido, ao contrá rio de n ós, que, h á muito, j á se ocultava sob aquela m á scara um rosto fascista . (...) Pelo menos, Bloch entendeu , melhor do que Kelsen , que Schmitt n ão era nenhum jusnaturalista ". SOLON, Teoria da soberania como problema da norma jurídica e da decisão, p. 169. BLOCH, Naturrechl und menschliche Wijrde, op . cit ., p . 175. LAfER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendl. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 287.

CAPíTULO 8 A ONTOLOGIA JURÍDICA DA UTOPIA O caminho da filosofia do direito de Bloch, após o grande excurso histó rico da parte inicial de Direito Natural e Dignidade Humana, passa a ser o de se aproximar, na segunda e derradeira parte da obra, da construção de urna específica ontologia utó pica, aquela que versará sobre o direito. O ser-ainda-nao das utopias jur ídicas revelar-se-á urna das mais importantes peças da arquitetô nica do pensamento blochiano, pois que aponta para a sociedade digna e justa. Em torno do marxismo e da reconstrução das categorias jurídi¬ cas, sob a ótica da filosofia da praxis, será construído o eixo da teoria especificamente jurídica de Bloch. Para tal procedimento, Bloch car¬ rega consigo, logo de in ício, a bandeira e as cores da Revolução Fran cesa. Aponta Bloch seu conte údo como o passo referencial da utopia que ainda n ão se cumpriu e que, pois, n ão se venceu. ¬

A

UTOPIA DAS TRÊS CORES REVOLUCIONÁRIAS

Ao contrário do marxismo mais estrito, que não enxerga na revo¬ lução burguesa da Fran ça um passo da revolução socialista, Bloch apon¬ ta em sentido contrá rio: o grande legado da revolução francesa é seu horizonte utó pico socialista. Assim sendo, suas três cores, seus lemas igualdade, liberdade e fraternidade - perseveram no imagin á rio utó¬ pico como as fronteiras a serem concretizadas quando do estabeleci mento de uma sociedade socialista, definitivamente não- burguesa. ¬

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Bloch instaura uma dialética entre o impulso tricolor da Revolu ção Francesa e a sua possibilidade de concretização apenas com o soci¬ alismo. Ao invés de separar cada um dos três lemas, problematizandoos individualmente, Bloch ressalta a sua íntima interliga ção recíproca. -A O que ocorre, apontará Bloch, é que os três horizontes da utopia da Revolução Francesa só se concretizam na transcendência da sociedade burguesa. Assim, ser á a classe trabalhadora aquela que dar á cumpri¬ mento aos ideais que, em tempos passados, foram postulados pela bur¬ guesia. A burguesia, por se plantar na exploração, na divisão de clas¬ ses, na cisão, não tem condições de levar adiante tal processo de eman ¬ cipação proposto pelos lemas da Revolução. Por isso tais lemas são até o presente contraditó rios e não se cumpriram. “ N ão chegaram ainda os homens de que trata o apelo tricolor ” .146 ¬

De tal forma, Bloch deposita nas mãos da classe proletá ria a utopia da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A bandeira da Revolução Francesa persiste, empunhada agora por outra classe. A utopia mais uma vez se levanta, trazendo do passado os seus sonhos mais profundos, mas sendo concretizada pela concretude da ação social revolucion á ria. % No caminho para a liberdade, Bloch não diferencia tipos ou mo¬ dalidades excludentes e insiste, sim, que a liberdade, ao mesmo tempo em que é individual, nas escolhas e eleições, é liberação, libertação da coação e da opressão. Por isso, somente o socialismo, emancipando o homem do aguilh ão da exploração econó mica e do trabalho, lograr á empreender uma sociedade livre. Bloch aponta que a liberdade n ão é o afastamento do indivíduo do mundo, a fim de que pense e delibere sozinho, de modo próprio. É a liberdade no próprio mundo, ocasião em que os homens se tornarão, todos, senhores.

146

BLOCH, Naturrecht und menschliche Würde, op. cit ., p. 176.

UTOPIA E DIREITO

A liberdade aponta para um caminho ético, o que faz com que o homem não se assemelhe a um cão ( Hund), e, ainda por conseqiiência, a liberdade religiosa daí advinda n ão será aquela proposta pelas igrejas e por Lutero, a mera liberdade da consciê ncia, interior, ou en¬ tão aquela que só aponta aos céus. A liberdade, refere se Bloch , guar da o conceito hegeliano de não ser determinada. É aberta, é a possibi¬ lidade, inconclusa. ¬

í A igualdade, em igual diapasão, n ão é um conceito estrito, ao mesmo tempo em que só pode ser pensada no contexto de sua conju gação com a liberdade. Uma só há com a outra. Ainda que a liberdade tenha sido mascarada, tornada parcial - a chamada liberdade indivi¬ dual, de negócio a igualdade, no entanto, só existe caso seja plena. Por isso, só há igualdade superando-se o capitalismo. ¬



Não só a partir de um ângulo formal, mas também parcial mente, a partir do ângulo de seu conte údo, a liberdade se prestou a ser transformada e definida como liberdade do su jeito económico individual, ou, pelo menos, pôde ser contida nestes limites; no entanto, a igualdade e a fraternidade, se n ão permanecem no âmbito do formal e pretendem receber um conteúdo, ou bem são socialistas ou nada são em absoluto. 147 O mesmo vínculo de reciprocidade com os outros lemas aponta Bloch no que tange à fraternidade. Esta se dirige à paz, e a paz só logra ser obtida por meio da superação da exploração de classes. O sentido da fraternidade é um afeto profundo que diferencia um mero abraço de feras do abraço humano. Esta fraternidade constru ída dos oprimi ¬ dos é uma ação libertadora e igualitária, que lembra a frase revolucio¬ n ária, tida por Bloch como um cristianismo verdadeiramente prático: “ guerra aos palácios, paz aos casebres” /* Assim, em busca da paz, a fraternidade é a concretização da liberdade e da igualdade. ¬

¬

147

Ibid. , p. 187.

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Bloch aponta ao fato de que os lemas tricolores são, de in ício, lemas burgueses, feitos, portanto, para a parcialidade, para o seu nao-cumprimento. Kp entanto, geram excedentes utópicos extraordinários. Por isso devem ser apropriados como herança para a luta socialista, tendo em vista a limitação e o caráter contido e parcial da utopia burguesa. '

Liberdade, igualdade, fraternidade, a intentada ortopedia do andar ereto, do orgulho viril, da dignidade humana, apontam muito mais adiante do horizonte burguês. 148 Tais esperanças que eram tipicamente burguesas apresentaramse, ao tempo de Marx, como uma utopia do homem e do cidadão, que não poderia ser cumprida, pela limitação estrutural da burguesia, mas que ao mesmo tempo era muito difícil de ser rechaçada. As interpreta¬ ções dos marxistas quanto ao próprio Marx são muito plurais no que diz respeito à incorporação, pelo pensamento marxiano, da bandeira dos direitos humanos e da cidadania. Certamente, aponta Bloch, Marx vislumbra os claros limites das utopias burguesas, porque estas n ão podem se cumprir pela própria burguesia ou numa sociedade bur guesa. Isto não quer dizer, no entanto, que n ão haja utopias quanto aos direitos do homem e do cidadão em Marx: ¬

A partir daqui, Marx faz cair sobre os direitos do homem uma luz muito mais quente. Com rigor insuperável ele mostrou o seu conte údo de classe, mas também o seu conteúdo futuro, um conteúdo que, naquele tempo, não encontrava solo propício.149

- f Tal utopia dos direitos humanos, em Marx, é a libertação da ex

¬

ploração da propriedade, expressa por Bloch pelo seguinte trocadi¬ lho: n ão liberdade de propriedade, mas liberdade da propriedade ( nich Freiheit des Eigentums, sondem vom Eigenturn) , como a dizer que não é

148 149

Ibid., p. 199. Ibid. , p. 203.

UTOPIA E DIREITO

a liberdade de chancelar a posse de alguns, mas a liberdade de ultra¬ passar os condicionamentos da propriedade. &

Diz entáo Bloch que a utopia jur ídica de Marx carregará, como parte da luta proletaria, a herança tricolor da dignidade humana.

O

DIREITO EM

MARX

A posição de Bloch dentro do marxismo jur ídico é surpreenden ¬ te. Bloch empunha a bandeira de um largo projeto de humanismo, que vê no marxismo a heran ça dos mais profundos sonhos de justiça já vislumbrados na histó ria. Isto, no entanto, não faz de Bloch um vago humanista jurídico marxista, do tipo reformista que ainda considere e dê relevo ao direito e às instituições burguesas.

Dentro do entendimento dos marxistas quanto ao direito, ao menos duas grandes vertentes, historicamente, mostraram-se n ítidas: aquela que considera o direito um instrumento a princípio neutro, necessário também à sociedade socialista e forma responsável pela trans¬ formação do capitalismo, e outra, mais radical, que considera o direito estruturalmente vinculado ao capitalismo, devendo sucumbir junto com este quando da transformaçã o socialista. * >

A primeira corrente, ainda institucionalista, que dá margem tan to ao reformismo quanto à social-democracia e até ao Estado stalinista, planificador e desenvolvimentista, é a corrente majoritá ria da histó ria do marxismo jur ídico, tendo agrupado em suas correntes aqueles que apostaram numa transforma ção gradual das condições pol í ticas e eco¬ n ómicas, por meio de eleições e reformas parlamentares, por exemplo. A Escola de Frankfurt e os juristas oficiais soviéticos, tirante as opiniões opostas sobre o conte údo do direito, estão ambos nesta mesma verten¬

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de aposta jurídica. 550 A outra vertente, que se poderia argumentar mais radical, é a que condena de modo virulento o direito, por t ó ma¬ lo o modo de estruturação institucional do próprio capitalismo. Tal vertente, minoritaria dentro do marxismo, teve como seu principal expoente Pachukanis, mas justamente ele, o jurista de maior repercus são dentro do marxismo, cuja Teoria Geral do Direito e Marxismo taivez tenha sido a obra mais original e pr óxima de O Capital que o pensamento jurídico de esquerda tenha produzido. te,

¬

É surpreendente à primeira vista que Bloch , o campeão do humanismo marxista, se inscreva na construção de uma ontologia ju¬ r ídica da utopia que , em linhas gerais, compartilhará da mesma visão do direito de Pachukanis. Tal surpresa, no entanto, é aparente, na medida em que Bloch comunga com Pachukanis o que passa desper cebido à primeira vista neste, que é o caráter utó pico da sociedade sem Estado e sem direito e, portanto, sem dominação institucional. O pro jeto de utopia jurídica de Bloch, assim, se confirma radical e pleno e, nesta plenitude, revela-se similar ao mais radical projeto de entendi¬ mento do direito dentro do marxismo. ¬

¬

N ão pode surpreender que nesse “ diálogo” desempenhe um papel essencial a figura de Pachukanis, pois ao fim e ao cabo este foi o autor da obra ( Teoria Geral do Direito e Marxismo) da qual se levanta toda a investigação marxista sobre o Estado no sentido mais próprio do termo. Também o próprio caráter da obra de Pachukanis, abertamente libert á rio e utó pico, facili¬ tava-lhe que fosse utilizado em certa medida como “ guia” , ainda

1 50

De outro modo, Luk á cs situa-se de maneira crítica - qui çá , neste ponto, contraditória - no painel das duas vertentes marxistas acerca do direito e da pol ítica estatal : "N ão h á, portanto, justificativa plaus ível para que Luk ács, tendo definido como 'temporal' o Direito, afirme a ' universalidade' da pol ítica nos termos em que o fez . [...] Conceber a pol ítica como pr ática ideol ógica universal e n ã o enquanto dimensã o alienada da exist ê ncia humana - e o sil êncio acerca do Estado na reprodução social parecem indicar á reas em que a tragédia soviética se fez mais diretamente presente nas investiga ções ontol ógicas de Lukács". LESSA, Sérgio. "Luk ács: Direito e Pol ítica". In Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo, Boitempo, 2002, pp. 120 e 121 .

-

UTOPIA E DIREITO

que os problemas que postulava sejam muito similares aos que se decorrem da investigação de Bloch.151

No Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch inicia seu capítu¬ lo de análise do direito a partir de Marx compartilhando com Pachukanis a den úncia ao caráter de classe do direito: além de relembrar ironica¬ mente um velho ditado de que juristas são iguais a maus cristãos, apon ¬ ta, nas pegadas da leitura do primeiro livro do Capital, a indissol úvel ligação entre a forma económica e a forma jurídica. Marx, e mais ainda Engels, apontam a atividade coisificada { verdinglichende ) dos juristas de profissão, a relativa indepen ¬ dência que adquire a esfera jurídica, especialmente nos Estados que experimentaram a recepção do direito romano. No aparato calculador do Estado moderno, o direito não só tem que ex¬ pressar o interesse da classe dominante, e sim tem que expressálo em um sistema todo conexo e não-contraditório possível.152

Tal ligação entre direito e capital leva Bloch a anunciar que, com o fim da propriedade privada, a jurisprud ê ncia perderá sua fun ção, perecendo também: Isto porque Bloch denuncia o direito, com gran ¬ de força imagética , como sendo um “ museu das antiguidades jurídi cas” . No entanto, Bloch traça uma distinção entre, de um lado, o di ¬ reito e, de outro, os seus princípios, pelo que denomina a estes de “ museu bem distinto dos postulados jurídicos” . Nesta distin ção entre direito e postulados reside a dialética das heran ças aproveitáveis e n ãoaproveitáveis da histó ria jurídica para a utopia socialista. ' ¬

Por postulados aproveitáveis, Bloch apontará o conte údo, que es¬ tava presente no direito natural burgu ês, da utopia da dignidade hu¬ mana, do andar ereto. Dirá Bloch que pertence ao marxismo a luta

151

152

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SERRA, Francisco. Historia, política y derecho em Ernst Bloch. Madrid , Trotta, 1998, p 219 BLOCH, Naturrecht und menschliche Wiirde, op. cit ., p. 209

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pelos direitos do homem, entendidos não a partir da metafísica que lhe deu formação, e sim por meio da luta pela dignidade humana. Pelo contrário, a burguesia, que encampa o discurso dos direitos hu¬ manos, é que está estruturalmente vinculada à sua negação. Este desmonte das instituições jur ídicas e o acolhimento dos pos¬ tulados jur ídicos não quer dizer que se adota, pela parte de Bloch, uma teoria jusnaturalista tradicional . De forma adversa, o sentido da herança dos postulados jur ídicos é o da dignidade, afastando, portan to, outros princí pios jurídicos que, durante a história, com este con trastaram e, mais que isso, procedendo a um método de reflexão sobre o direito natural que n ão é jusnaturalista, vale dizer, não é idealista, metafísico ou burguês, e sim marxista. ¬

¬

ão é sustentável que o homem seja, por nascimento , livre e ^ Nigual . N ão há direitos inatos, e sim que todos são adquiridos

ou t êm todavia que ser adquiridos em luta. O passo erguido aponta apenas para algo que tem que ser adquirido; também a avestruz caminha erguidamente para colocar, enfim , a cabeça

no buraco. N ão é sustentável, desde logo, que a propriedade esteja entre os direitos inalienáveis.153

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O direito natural de Bloch toma a inspiração utópica que se de¬ correu na histó ria da luta pela dignidade humana, mas rejeita vee¬ mentemente o seu conte údo capitalista - a defesa da propriedade privada como se fosse “ natural” ao homem - e rejeita o mé todo jusnaturalista. Apoiado em algumas distinções teó ricas,154 Bloch en ¬ xerga conceitos gnoseológicos e ontológicos que fundamentam o di¬ reito natural e se separa de todos estes. O direito natural se legitima, tomado pelo prisma do conheci¬ mento de seus princípios, por meio ou de um conhecimento reputado 153 1 54

Ibid., p. 215. Ibid., pp. 220 e seg.

Oram * DUETO

Ü pn» «WL de uma razão umversalmente constru ída ou da revelação. l» nejeita estas três metodologias. Pelo prisma da ontologia, haveria á veisões. A primeira delas é a de que o direito natural é o Mgs punir rifccmi cscávd , em face das instabilidades do direito criado. A segunda «Se que o direito natural remonta a um estado de natureza, real ou fictirio» de origem. A terceira se apresenta como o direito da natureza «EOBtia: o dos homens ou o de Deus (a natureza como legisladora). A tjaam nata de uma lei que se encontra válida na pró pria natureza (a natureza como legislada) . A quinta versão trata de um direito natural que, não sendo de origem natural nem se voltando a ela, no entanto se inspira nela como um modelo objetivo e busca refleti-lo. Numa sexta wssão, a natureza se apresentaria apenas como o adequado, como uma meta de mensuração que é humana, sem ser dedutível e metaf ísica, e Sam baseada na eqiiidade. Bloch aproxima desta última versão o mo ¬ delo jusnaturalista estóicoj

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Demonstrando algum apreço apenas por este último modelo, Bloch rechaçar á o m é todo jusnaturalista justamente porque, ao de¬ monstrar a sua pluralidade de origens e implicações, quase sempre presumidas eternas e metafísicas, resta claro o desacordo em torno do conceito de “ natureza” . Bloch foge de tais discordâncias, e lança mão do m é todo marxista , que, baseando-se na hist ó ria e na pr á xis, considerar á o direito natural uma construção social. *

Assim sendo, a grande discordâ ncia do marxismo para com o jusnaturalismo - com a qual Bloch comunga, levando-a adiante -, dever-se-á ao car áter n ão-histórico das correntes do direito natural. Trata-se, em Bloch, de historicizar o jusnaturalismo , porque o marxis mo insiste que até mesmo os ideais utó picos são expressões de classe, das condições histó ricas e econ ó micas, não devendo ser tomados como utopia abstrata, revelada, apriorística ou metafísica* ¬

ALYSSON LEANDRO MASCARO

O que resta, assim , ao marxismo , da doutrina do direito natural, é justamente aquilo a que os jusnaturalistas pouco se aferram nas suas lutas por metafísicas e absolutos: a inspiração pela dignidade humana e o andar ereto. Na â nsia pela da propriedade privada, inscre¬ veram -ma num rol fundamental . Este rol fundamental, no entanto, h á de ser aproveitado para a dignidade, e sua marca maior é ser uma justiça a partir de baixo, n ão patriarcal nem metafísica. Constrói-se na hist ó ria, por meio dos explorados.

defesa

É assim que a heran ça pró pria do direito natural, um dia revolucion á rio, se expresse de tal forma: elimina ção de todas as relações nas quais o homem seja alienado com as coisas em mercadorias, e n ã o só em mercadoria, senão na nulidade de seu próprio valor. Nenhuma democracia sem socialismo , ne¬ nhum socialismo sem democracia, esta é a fó rmula de uma influência recíproca que decide sobre o futuro . 155

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Com tais frases, o ideal blochiano do marxismo jur ídico carrega consigo explicitamente, pois, o sonho de Rosa Luxemburgo de socia ¬ lismo com democracia, ao mesmo tempo que absorve, de Marx e Pachukanis, a certeza crí tica estrutural de que o direito se equivale à forma mercantil, sendo que a utopia é a transformação do capitalismo e da dominação institucional e, tal qual Lukács, sabendo que é preciso romper com a reificação. ¿

CRíTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO:

DIREITO

SUBJETIVO E

OBJETIVO Bloch persevera, na sua obra jusfilosófica, na construção de uma ontologia jur ídica da utopia e, para isso, faz um inventá rio dos concei-

155

Ibid. , p. 232.

UTOPIA E DIREITO

tradicionais da teoria geral do direito em busca da clarificação de seus termos e de seus rompimenros e apontamentos utó picos. tos

A primeira categoria, central na teoria geral do direito , a que se dedica Bloch, é a dicotomia entre direito objetivo e direito subjetivo. Para esta análise, Bloch aponta a insufici ência do pensamento jur ídico tradicional, que enxerga o direito como reflexo do dever e vice-versa. A identificaçã o do direito subjetivo, dir á Bloch, est á imbricada com a pró pria mecâ nica da economia capitalista, do indivíduo burguês. J á o direito objetivo , por sua vez , respalda-se no pró prio domí nio institucional do Estado, e tanto é tal a origem dos institutos que o civilista tem dificuldade com o campo dos direitos subjetivos p úblicos e o publicista com os direitos humanos.

Bloch não trabalha com ambos os conceitos igualando-os. Apon ¬ ta o fato de que o direito subjetivo revela-se, logo de início, como institucionaliza ção da burguesia e que o Estado totalit á rio, o pleno dom ínio do direito objetivo, é també m o ocultamento do sujeito de direito. Assim sendo, a evolução do direito capitalista, até chegar à sua fase de monopó lios e grandes dom í nios econ ó micos, é també m a banalização do sujeito de direito.156 A diferença utó pica existente entre o direito subjetivo e o objeti ¬ Bloch, reside no fato de que o primeiro, sendo a expres são do direito de propriedade privada, não exclui seu aproveitamento como direito da dignidade humana ( os direitos humanos, por exem ¬ plo). J á o direito objetivo revela-se o direito do dom ínio, cuja face se vo, segundo

1 56

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"Os direitos humanos constituem, assim , um prius , em referê ncia a qualquer deriva çã o normativa ( Bloch ) na medida em que estabelecem os marcos do processo de liberta ção. Entretanto o ,

positivismo acaba por desvirtu á- los, vendo o direito subjetivo como faculdade atribu ída pela norma a um sujeito por ela mesma estabelecido. Esta aberra ção, após reduzir o Direito à norma (como o biscoito à lata ), reduz o Direito Subjetivo e o Sujeito de Direito à mesma norma ( de tal sorte que, n ã o só confunde a lata e o biscoito, mas ainda atribui à lata o poder de criar a boca e o apetite de quem possa com ê- lo)". LYRA FILHO, Roberto. Desordem e Processo. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1986, p. 309.

ALYSSON LEANDRO MASCARO

penal, por exemplo, mas este pode minimamente restar sendo o direito do interesse pú blico e social. No final das contas, a evolução teórica dos conceitos jurídicos revela a pr ópria evolução da propriedade privada e, por isso, numa sociedade que se liberte da do minação do capital, direito e dever se transformam radicalmente.

apresenta no direito

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Em uma sociedade sem classes, sem circulação mercantil, n ão há nenhum proprietário de mercadorias, ainda que o produ ¬ tor de bens seja sujeito jur ídico (personalidade jur ídica), e seu direito consiste em não estar nem sequer forçado à produ ¬ ção de bens. O último direito subjetivo seria, assim, a faculdade de produzir segundo suas capacidades e consumir segundo suas necessidades, uma faculdade garantida pela última norma do direito objetivo-, a solidariedade.157

Assim, Bloch revela o fundamento utópico de sua estrutura jurí¬ dica socialista para direitos e deveres. Resgatando o espírito da frase de Marx na Crítica do Programa de Gotha, trata-se de estar obrigado à capacidade e de ter direitos à necessidade. O vínculo jur ídico objetivo de tal apontamento utópico, dirá Bloch, é a solidariedade. Assim o é porque Bloch rejeita a revolução por cima, estatal e dominadora, e insiste em dizer que a utopia jurídica e feita por baixo . Daí o gosto pela coordenação e n ão pela subordinação.

Por tal razão Bloch se volta ao problema jurídico da União Sovié tica e da Revolução Russa para lá analisar as utopias jurídicas e as aber¬ rações da dominação stalinista.^Apontando para o cará ter de liberta ção da utopia jurídica, feita pelos dominados, pelos trabalhadores e pelos explorados, Bloch rejeita o domínio estatal e institucional do stalinismo e, juntando-se a Pachukanis, denuncia, por sua vez, os juris¬ tas oficiais soviéticos, como Wyschinskij.158 ¬

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157 158

BLOCH, Naturrecht und menschliche Würde, op. cit ., p. 252. "Todo o esforço de critica de Vychinski se encaminha, então, no sentido de negar as teses

UTOPIA E DIREITO

O eixo da argumentação de Bloch é afirmar que a utopia jurídica aponta para a extinção do Estado e do direito, tal qual o previra Pachukanis, e que toda tentativa de manutenção do dominio estatal, ainda que em nome da classe trabalhadora, é injustificada e não se referenda em nenhu¬ ma perspectiva humanista. Não é possível, pela caminhada da libertação e da emancipação, aceitar que o modelo de Wyschinskij possa se comparar àquilo que Engels e Lênin apontavam como perecimento do Estado. Estes diziam tratar-se não da eliminação do Estado, e sim de seu processo de tornar-se supérfluo. “A formulação de Wyschinskij não se encontra, desde logo, nesta linha, pois que mais se aproxima, novamente, a uma espécie de Estado fetichizado e só muito a contrapelo suavizado” .15'’