Conhecimento e crença cristã
 978-85-69885-02-3

Table of contents :
Sumário......Page 7
Prefácio à edição brasileira......Page 8
Prefácio......Page 22
1. Podemos falar e pensar a respeito de Deus?......Page 30
2. Qual é a questão?......Page 40
3. Garantia da crença em Deus......Page 69
4. O modelo Aquino e Calvino estendido......Page 91
5. Fé......Page 109
6. Selado no coração......Page 126
7. Objeções......Page 138
8. Anuladores? A crítica bíblica histórica......Page 150
9. Anuladores? Pluralismo......Page 176
10. Anuladores? O mal......Page 186
Epílogo......Page 204

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A magistral Warranted Christian Belief [A crença cristã garantida] de Alvin Plantinga é uma das obras mais importantes sobre epistemologia da crença religiosa do século passado. É instigante observar as ideias centrais dessa grande obra apresentadas aqui em formato mais sucinto e acessível. Conhecimento e crença cristã é agradável de ler e servirá como excelente e envolvente introdução às ideias mais influentes de Plantinga sobre a racionalidade da crença religiosa. — Michael Rea Universidade de Notre Dame Uma apresentação muito clara, fácil de entender e desafiadora dos principais passos do argumento de Plantinga em sua magnum opus. Usando as ferramentas da epistemologia moderna, Plantinga defende a posição clássica — a crença cristã não precisa ser apoiada por nenhum argumento a partir de premissas geralmente aceitas a fim de ser plenamente racional, e a crença não pode ser demonstrada falsa por nenhum desses argumentos. — Richard Swinburne Universidade de Oxford

Copyright © 2015, de Alvin Plantinga Publicado originalmente em inglês sob o título Knowledge and Christian belief pela Wm. B. Eerdmans Publishing Co., Grand Rapids, Michigan 49505, EUA. Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: ACADEMIA MONERGISTA SIA Trecho 4, Lote 2000, Sala 208 — Ed. Salvador Aversa Brasília, DF, Brasil — CEP 71.200-040 www.editoramonergismo.com.br 1a edição eletrônica: maio de 2018 Tradução: Sérgio Ricardo Neves de Miranda Revisão : Felipe Sabino de Araújo Neto e Rogério Portella Capa: Wm. B. Eerdmans Projeto gráfico: Marcos R. N. Jundurian Diagramação para e-book: Yuri Freire PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Plantinga, Alvin Conhecimento e crença cristã / Alvin Platinga, tradução Sérgio Ricardo Neves de Miranda - Brasília, DF: Academia Monergista, 2016. Título original: Knowledge and Christian belief ISBN 978-85-69885-02-3 1. Fé e razão – cristianismo 2. Apologética 3. Cristianismo – filosofia I. Título. CDD: 201

Sumário

Prefácio à edição brasileira Prefácio 1. Podemos falar e pensar a respeito de Deus? 2. Qual é a questão? 3. Garantia da crença em Deus 4. O modelo Aquino e Calvino estendido 5. Fé 6. Selado no coração 7. Objeções 8. Anuladores? A crítica bíblica histórica 9. Anuladores? Pluralismo 10. Anuladores? O mal Epílogo

Prefácio à edição brasileira

A filosofia da religião é uma das áreas mais dinâmicas da filosofia contemporânea. Na primeira metade do século XX, sob a forte influência do positivismo lógico, a reflexão filosófica sobre a religião era em grande parte restrita à questão do significado da linguagem religiosa. A partir daí, no entanto, seu alcance foi consideravelmente ampliado. Hoje há um intenso debate sobre temas fundamentais, como, por exemplo, a existência de Deus, a racionalidade da crença teísta e cristã, o problema do mal, a diversidade das crenças religiosas e o pluralismo, as relações entre a religião e a ciência e entre a religião e a moralidade, o sentido e o propósito da vida, o agnosticismo e o ateísmo etc. O grande interesse nesses temas se reflete no aumento do número de revistas especializadas, pesquisas e publicações de artigos, monografias e livros acadêmicos da área. A filosofia da religião também se tornou um componente importante da formação filosófica. Dificilmente encontraremos um bom livro introdutório de filosofia que não contenha pelo menos um capítulo com a discussão de temas específicos da área. Mas essa situação não poderia ser diferente, uma vez que a filosofia da religião tem um forte apelo existencial e desperta de imediato o interesse do estudante iniciante, trata vários temas essenciais para a boa compreensão da história da filosofia de forma sistemática, e oferece um “laboratório” para o teste de teorias desenvolvidas em áreas centrais da filosofia como a epistemologia e metafísica — permitindo, portanto, o aprofundamento da reflexão sobre uma grande variedade de teorias e problemas fundamentais.

A prosperidade da área deve-se se em parte aos esforços de um grupo de filósofos identificados com a tradição analítica, a tradição filosófica predominante nos países de língua inglesa. Em geral, de modo contrário aos positivistas, os filósofos analíticos da religião têm uma atitude bem mais favorável ao tema. Contudo, como os positivistas, colocam grande ênfase na clareza e precisão, destacam a importância da análise conceitual e da argumentação rigorosa, e fazem amplo uso de técnicas e teorias de áreas do conhecimento como a lógica matemática. Esse aspecto da filosofia analítica da religião contribui para tornar a disciplina mais respeitável no meio acadêmico; no entanto, o jargão especializado e o tecnicismo de alguns autores impedem o acesso do grande público à produção acadêmica mais recente na área. Apesar da enorme relevância, a filosofia analítica da religião ainda é pouco presente na formação dos alunos dos cursos de filosofia e de teologia no Brasil e raramente chega ao grande público. Com o intuito de divulgar essa tradição, despertar o interesse para o estudo e a pesquisa nessa área, e contribuir para a formação e o debate filosófico no Brasil, a Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR), com o generoso apoio da Fundação John Templeton, publica agora uma série de livros apresentando a discussão analítica dos grandes temas da filosofia da religião. Este livro, Conhecimento e crença cristã, do eminente filósofo norte-americano Alvin Plantinga, é o terceiro da série. Sua publicação nesta tradução para o português é muito oportuna. Alvin Plantinga é considerado um dos mais importantes filósofos contemporâneos. Em relação a duas áreas centrais da filosofia, a metafísica e a epistemologia, poucos autores são tão influentes quanto ele; especificamente em filosofia da religião, o impacto de sua obra é ainda maior: talvez nenhum outro autor tenha contribuído tanto quanto Plantinga para dar a forma e o caráter da discussão contemporânea de vários tópicos centrais da área, como, por exemplo, a racionalidade da crença teísta e cristã, o problema do mal, o

pluralismo religioso, a relação entre a ciência, a religião e o naturalismo, entre outros. Conhecimento e crença cristã é a versão reduzida da obra-prima de Plantinga Warranted Christian Belief (A crença cristã garantida). Nela, perdese um pouco dos detalhes, das notas explicativas e das muitas discussões paralelas do original, porém não há perda em relação à precisão conceitual, ao rigor da argumentação e ao alcance da reflexão. Além disso, o leitor, de modo especial o leitor iniciante, ganha muito com o quadro sinóptico aí oferecido. Conhecimento e crença cristã é altamente recomendável não só como introdução à filosofia de Plantinga, mas também como apresentação de muitos tópicos proeminentes nas discussões filosóficas contemporâneas sobre a religião. O objetivo deste livro é em parte apologético. Busca-se aqui defender a crença teísta e cristã contra a objeção de ser deficiente em sentido cognitivo ou epistemológico, que, independentemente da resposta à questão sobre sua verdade ou falsidade (independente da resposta à questão de facto), ela não chega a ser conhecimento, pois o crente não tem justificação suficiente para sua crença, ou por não proceder com racionalidade quando começa a acreditar ou manter sua crença, ou porque a sua crença não tem garantia. Para Plantinga, a questão sobre a justificação, racionalidade ou garantia da crença teísta (uma questão de jure) de certo modo envolve a resposta à questão de facto: por um lado, ele sustenta que as principais objeções ao status epistêmico positivo da crença teísta e cristã, como a objeção de Freud de que essa crença é produzida pelo mecanismo psicológico de “realização de desejo”, o que pressupõe a falsidade da crença teísta e cristã; por outro, afirma que a crença teísta e cristã (muito provavelmente) tem garantia e chega a ser conhecimento, dada a existência de Deus e a verdade de certas doutrinas cristãs. O cerne do livro é a apresentação de um modelo como a crença teísta e cristã pode ter garantia e ser conhecimento, denominado “modelo Aquino e

Calvino”, em deferência a Tomás de Aquino e João Calvino. Nele, o leitor encontrará a culminação de uma longa reflexão sobre a racionalidade da crença teísta e cristã que atravessa de ponta a ponta a obra de Plantinga. Um estágio anterior muito importante dessa reflexão é retratado em Reason and Belief in God [Razão e crença em Deus], publicado em 1983. O questionamento da crença teísta é aí introduzido por um argumento semelhante a este: a pessoa está justificada em acreditar em uma proposição apenas se ela tiver uma boa razão ou evidência suficiente para ela; o crente não conta com uma boa razão ou evidência (ou não tem boa razão ou evidência suficiente) para a crença na existência divina; logo, ele não tem justificação para sua crença. Desse modo, por manter a crença em Deus sem o devido suporte, quando assume o teísmo, o crente viola o dever epistêmico de só crer nas proposições para as quais existe uma boa razão ou evidência suficiente. Em outros termos, ele é irracional. Ainda em Reason and Belief in God, Plantinga sustenta que esse questionamento da crença teísta tem raiz em uma teoria sobre a estruturação de nossas crenças conhecida como fundacionalismo clássico. Central nessa teoria é a distinção entre dois conjuntos de crenças: há o conjunto das crenças básicas, que inclui proposições autoevidentes (que exprimem relações simples lógicas e matemáticas como “se A > B e B > C, então A > C”), evidentes para os sentidos (como “Isto é uma árvore” dito no momento que se aponta para uma árvore) ou incorrigíveis (proposições sobre o nosso estado mental como “Tenho dores” ou “Estou a perceber a cor vermelha”); por outro, há o conjunto das crenças não básicas, aceitas com base em evidência que em última instância remonta às proposições do primeiro grupo. Plantinga alega que essa teoria é muito defeituosa por levar à incoerência: ao afirmar o fundacionalismo clássico, o fundacionalista introduz condições necessárias para alguém ser justificado ao acreditar em uma proposição, quando ele mesmo não cumpre essas condições, pois acredita nas proposições que constituem o fundacionalismo clássico, não autoevidentes, evidentes para

os sentidos ou incorrigíveis, e dificilmente pode mostrar como elas remontam a proposições desses tipos. Com certeza, pode-se optar pela versão mais moderada de fundacionalismo para evitar esse problema. Na versão moderada, o conjunto de crenças básicas é ampliado e passa a incluir crenças que de acordo com o fundacionalismo clássico não poderiam ser tratadas como básicas: por exemplo, crenças sobre o estado mental de outras pessoas, sobre a lembrança de eventos passados e crenças sobre eventos distantes com base em testemunhos. Com a ampliação do conjunto de crenças básicas, o fundacionalista moderado poderia incluir as proposições que constituem sua teoria nesse conjunto ou apoiá-las com mais facilidade nessa base ampliada. No entanto, substituindo-se o fundacionalismo clássico pela versão moderada, a motivação inicial para a exigência de argumentos especificadores da razão ou evidência para a aceitação do teísmo desaparece. De fato, se abrirmos mão do critério muito restritivo de basicalidade, como o proposto pelo fundacionalismo clássico, pode-se até mesmo passar a admitir que a crença na existência divina seja uma crença básica, proposta defendida por Plantinga em Reason and Belief in God e constitui um dos pilares de sua Epistemologia reformada.1 Mais adiante, a reflexão mais completa sobre alguns problemas centrais da epistemologia (como o esclarecimento das noções epistêmicas de “conhecimento” e “justificação”), como a consideração de objeções levantadas contra epistemologia reformada, levaram Plantinga a modificar de modo substancial seu tratamento da objeção de falta de evidência para a crença teísta e cristã. Esse desenvolvimento culmina na década de 1990 com publicação de dois livros que precedem Warranted Christian Belief, a saber, Warrant: the Current Debate e Warrant and Proper Function. Não é absurdo dizer que Conhecimento e crença cristã consiste na aplicação das doutrinas epistemológicas desenvolvidas em Warrant e Warrant and Proper Function ao caso particular da crença teísta e cristã.

Consideremos brevemente a epistemologia de Plantinga a partir do problema central da definição de “conhecimento”. Pode-se definir explicitamente a noção de “conhecimento” por meio de condições necessárias e suficientes. Tradicionalmente, as condições necessárias e suficientes para a atribuição à pessoa S do conhecimento da proposição p são as seguintes: i) p é uma proposição verdadeira; ii) S acredita que p; iii) S está justificado em acreditar que p.

Contudo, a partir do artigo seminal de Edmund Gettier de 1963, essa definição tripartite foi colocada em xeque, a busca pela resposta aos argumentos de Gettier passou a ser central na epistemologia, e os epistemólogos passaram a questionar se a condição (iii) de justificação deveria ou não ser encarada como uma das condições necessárias para o conhecimento. De acordo com Plantinga, a justificação, entendida em termos deontológicos como o dever de cumprir certos princípios ou regras epistêmicas (por exemplo, adequar as próprias crenças à evidência disponível), não é suficiente nem necessária para o conhecimento. Considere dois casos adaptados de Warrant and Proper Function: a) S assume que sua natureza o leva de forma sistemática ao erro quando julga a cor de objetos vermelhos. Por isso, quando um objeto à sua frente parece vermelho, S se esforça para crer que ele não é vermelho. Essa regra previne que S erre quando julga a cor de objetos. Contudo, ela conduz S a acreditar que nada é vermelho. Em certa ocasião, um objeto à sua frente parece vermelho, S segue a regra e acredita que esse objeto não é vermelho. De fato, sem que S saiba, o objeto, branco, é iluminado por uma luz vermelha. No entanto, esse não parece ser um caso de conhecimento, mesmo que S cumpra seu dever e tenha uma crença verdadeira.

b) Suponha que S passe um longo dia lutando contra sua natureza. Cansado e entediado de agir conforme a regra absurda, atravessa a rua, depara-se com uma Ferrari vermelha, e forma espontaneamente a crença de estar diante de um carro vermelho. Mesmo que não cumpra o dever epistêmico de desconfiar da inclinação natural de julgar coisas que parecem ser vermelhas como vermelhas, P parece saber que o carro é vermelho.

Uma condição é suficiente para o conhecimento se, cumprida, tivermos um caso de conhecimento; uma condição é necessária para o conhecimento se, havendo conhecimento, essa condição seja cumprida. O caso a) ilustra a situação em que S cumpre seu dever epistêmico, i.e., está justificado, mas não tem conhecimento; visto que a condição de justificação é cumprida, mas não há conhecimento, a justificação não é condição suficiente para o conhecimento. O caso b) ilustra a situação em que S tem conhecimento, mas não cumpre seu dever epistêmico, i.e., S não está justificado em sua crença; pois há conhecimento, mas a condição de justificação não é cumprida; podese concluir que a justificação não é a condição necessária para o conhecimento. Mesmo descartando a justificação como condição necessária e suficiente para o conhecimento, Plantinga não recusa o projeto de analisar o conhecimento em noções mais simples e básicas. Ele mantém i) e ii) e sugere a terceira condição necessária que, para não introduzir qualquer associação com deveres e obrigações epistêmicas, chama de garantia. Assim, quando perguntamos se a crença teísta e cristã pode ser conhecimento, perguntamos se a crença, sendo verdadeira, também tem garantia. Mas o que é garantia? Garantia é a propriedade que eleva a crença verdadeira ao grau de conhecimento. Deve-se observar que essa propriedade decorre do modo e da circunstância em que a crença é gerada. Plantinga mantém que a faculdade ou o processo gera a crença com a propriedade de garantia somente se: 1) a faculdade ou o processo funciona propriamente de acordo com a finalidade para a qual foi inicialmente projetada, i.e., a

faculdade ou processo funciona do modo como supostamente deve funcionar; 2) o ambiente em que a crença é gerada é um ambiente adequado e favorável; 3) a faculdade ou processo visa a produção de crenças verdadeiras; 4) essa faculdade ou processo gera crenças verdadeiras de maneira fiável, i.e., há a probabilidade estatística ou objetiva alta da crença formada pela faculdade ser verdadeira. Todas essas condições podem ser realizadas em nível subpessoal, ou seja, não é necessário que o crente tenha algum acesso cognitivo ao fato de os processos cognitivos geradores da crença estarem funcionando propriamente em um ambiente adequado e favorável etc. Há, porém, uma condição adicional relativa à perspectiva do agente cognitivo e dependente da sua capacidade de acessar razões ou evidências. Trata-se da condição de não anulação: 5) o agente cognitivo não tem um anulador para a crença ou para as razões para mantê-la. Assim, a crença tem garantia apenas se as condições subpessoais 1) a 4) mais a condição de não anulação 5) forem cumpridas. Boa parte de Warrant and Proper Function é dedicada à investigação da garantia nos casos típicos de conhecimento como o conhecimento de si, conhecimento com base na memória, conhecimento de outras mentes e por testemunho, conhecimento perceptual e conhecimento a priori. Para exemplificarmos essa investigação, consideremos agora o caso da memória, da crença e do conhecimento mnêmico. Na discussão sobre a memória, a tese fundamental de Plantinga é que as crenças mnêmicas devem ser encaradas como crenças propriamente básicas. A alternativa seria pensar que essas crenças surgem de algum tipo de inferência a partir de proposições acerca do presente. Por exemplo, elas podem ser consideradas o resultado da inferência para a melhor explicação. Nesse caso, a garantia do agente cognitivo A da crença de memória M (e.g., “Comi um omelete no almoço”) decorre do raciocínio de que M é a melhor explicação para o estado de coisas presente (e.g., ocorre na mente de A a imagem de alguém traçando um omelete acompanhada da sensação de que

ele mesmo é essa pessoa e que esse fato ocorreu no passado; o garçom recolhe os pratos e pergunta a A se ele gostou do omelete” etc.). Plantinga alega que esse tipo de inferência está longe de oferecer o tipo de garantia que tem as crenças da memória. Em primeiro lugar, não é necessário fazer inferências desse tipo para garantir as crenças da memória: as crianças, por exemplo, têm crenças mnêmicas garantidas mesmo antes de saberem o que é uma explicação. Além disso, a inferência de M como a melhor explicação seria circular, pois A sabe que o estado de coisas presente tem a explicação caso a relacione a outros no passado que foram explicados, e para isso ele precisa recorrer à sua memória. Por fim, para estabelecer o resultado da inferência para a melhor explicação, A deve ter em mente não só as premissas da inferência, mas tem de saber também, por exemplo, se essas premissas foram ou não estabelecidas por argumentos, se os argumentos eram válidos ou não, quais as alternativas para a explicação, as razões para sua exclusão e para pensar que a explicação em questão é boa. A óbvia dependência da memória enfraquece aqui a ideia de que a inferência para a melhor explicação seria determinante para assegurar a garantia da memória. Essas considerações levam à conclusão de que a garantia das crenças da memória não provém de argumento. Em vez disso, escreve Plantinga, o que conta para a garantia é se as crenças mnêmicas tipicamente resultam da função própria das nossas faculdades cognitivas em um ambiente apropriado, se a função da memória é nos dar crenças verdadeiras sobre o passado, e se o projeto de design nessa área é um bom projeto. Mas o fato é (como todos nós cremos) que essas condições são cumpridas. As crenças da memória, portanto, têm garantia.2

Relevante para a garantia da crença na proposição sobre um episódio passado relembrado pelo agente cognitivo A são as condições 1) a 5) mencionadas acima. A crença mnêmica de A é garantida se: 1) sua memória não está sujeita a disfunção, comprometida por lesão ou doença cerebral; 2) o

ambiente em que a crença mnêmica é gerada tem de ser adequado (o ambiente em que a função da memória fosse comprometida por algum tipo de radiação, por exemplo, não seria um ambiente desses); for admitido 3) que a faculdade da memória visa em geral à produção de crenças verdadeiras e não à produção de crenças com alguma outra propriedade (compare aqui a memória, por exemplo, com o mecanismo freudiano do “pensamento desejoso”, que muitas vezes gera crenças falsas, mas com enorme valor para a economia psíquica do crente); e 4) que a probabilidade da crença formada pela memória ser verdadeira é em geral alta. Evidentemente, embora esse aspecto não seja mencionado na citação acima, as crenças mnêmicas de A não podem estar sujeitas ao anulador: se ele sabe sofrer do Mal de Alzheimer, por exemplo, ele tem uma razão para desconfiar das próprias memórias recentes, e, nesse caso, suas crenças mnemônicas não teriam garantia. Aqui, assim como havia feito antes em Warranted Christian Belief, Plantinga estende a investigação da garantia das crenças baseadas na memória, percepção, testemunho etc., até a crença teísta e cristã. O modelo Aquino e Calvino apresenta o modo como as condições 1) a 4) podem ser cumpridas, e a crença teísta e cristã, dado o modelo, tem garantia e é conhecimento. A condição 5) de anulação é tratada separadamente nos três capítulos finais deste livro. Decerto, o modelo Aquino e Calvino envolve um bocado de reflexão filosófica e epistemológica neutras, mas ele também mantém o compromisso com certas posições teológicas e doutrinas cristãs. Porém, isso era o esperado, dadas as considerações de Plantinga sobre a natureza da filosofia e das tarefas do filósofo cristão. De modo geral, a filosofia, para Plantinga, é a tentativa de elaborar e avançar uma visão de mundo articuladora da resposta sobre como é o mundo e o ser humano, o que é importante em relação ao mundo, qual é o nosso lugar nele e como devemos viver para levar uma vida boa. Ele está

particularmente interessado em três cosmovisões concorrentes: naturalismo, cristianismo e o que ele chama “antirrealismo criativo”. De acordo com o naturalismo, não há nada além de processos e acontecimentos regidos por leis naturais e os seres humanos são parte insignificante da natureza basicamente indiferente a eles, a suas esperanças e aspirações, a seus desejos e necessidades. Por sua vez, o teísmo ou cristianismo supõe a existência de entidades, processos e acontecimentos não sujeitos às leis naturais, e os seres humanos podem ser entendidos em relação a eles, por exemplo, como criados à imagem divina e dotados de livrearbítrio. A ideia central do antirrealismo criativo é que não temos acesso à realidade objetiva e independente, o mundo depende (pelo menos em parte) de nós mesmos, da nossa linguagem e conceitos ou do aparato cognitivo humano (para Plantinga, essa perceptiva conduziria ao relativismo e à falta de compromisso moral e intelectual).3 Essas cosmovisões não só informam o trabalho acadêmico dos filósofos, mas também estão presentes em outras áreas do conhecimento, nas ciências naturais e sociais, e nas humanidades. Mas essa presença é desigual: nas ciências, predomina o naturalismo, nas humanidades, o antirrealismo, e a filosofia fica dividida entre o naturalismo e o antirrealismo, sendo a visão de mundo cristã minoritária. Nesse cenário, como deve atuar o filósofo cristão? Hoje em dia, sugere Plantinga, a teologia filosófica, i.e., a tentativa de desenvolver e esclarecer temas teológicos com o instrumental da filosofia, como, por exemplo, fez Agostinho na sua discussão sobre a Trindade, floresce em profusão. Há também trabalhos notáveis de apologética. No entanto, há duas áreas de atuação relacionadas de forma íntima às visões de mundo mencionadas acima, descuidadas, e os filósofos cristãos deveriam buscar desenvolver trabalhos nessas duas áreas. Em primeiro lugar, caberia ao filósofo realizar uma crítica cultural cristã, i.e., seria tarefa do filósofo cristão identificar para a comunidade cristã os

pressupostos e as consequências religiosas e antirreligiosas dos trabalhos realizados em diferentes campos do saber. Esse trabalho tem grande serventia para a comunidade cristã por poder prevenir o crente de adotar, sem o saber, posições teóricas incompatíveis com sua convicção religiosa, vindo depois a deparar-se com inconsistência em seu sistema de crenças. Além dessa crítica cultural, cabe ao filósofo cristão realizar o que Plantinga chama filosofia cristã positiva, ou seja, o filósofo cristão deve tentar responder do ponto de vista essencialmente cristão a certas perguntas colocadas por filósofos, cientistas e intelectuais em geral. Plantinga apresenta vários exemplos de como o filósofo cristão pode lidar do ponto de vista cristão questões abordadas geralmente do ponto de vista secular. Um exemplo vem da investigação da psicologia dos afetos, o amor, a sensibilidade ao belo e o ódio, tratados de modo geral sob o ponto de vista evolucionário. Plantinga diz o seguinte: Considere o amor […] Quando o psicólogo cristão trata desse fenômeno, ele pode propriamente levar em consideração tudo o que sabe como cristão? Que, por exemplo, somos criados à imagem de Deus, que Deus é amor, que o nosso amor é o reflexo do amor divino? […] Kathleen Battles ou um concerto de Mozart podem encher nossos olhos de lágrimas. Como devemos pensar sobre nossa sensibilidade ao belo? Como entenderemos esse fenômeno? Sem dúvida, algumas pessoas dirão que ele surge, de algum modo, por mutação genética; sua importância deve estar no fato de que ele, de algum modo, conta com uma função adaptativa, de contribuir para o ajustamento ao meio, ou de estar, de algum modo, conectado com algo adaptativo. Mas se assumimos o background explicativo cristão, pode-se chegar a uma perspectiva inteiramente diferente. O necessário aqui é a investigação acadêmica que leve em conta tudo o que sabemos, e assim considere o que sabemos como cristãos. O mesmo vale para o psicólogo cristão que busca entender a agressão e o ódio em todas as suas formas: ele deve levar em conta a realidade do pecado.4

Em Conhecimento e crença cristã (como em Warranted Christian Belief e outras publicações), Plantinga leva adiante essa proposta de crítica cultural

cristã, apontando, por exemplo, as consequências contrárias à religião de certos estudos históricos da Bíblia. Além disso, busca responder questões filosóficas importantes como a questão da garantia e do conhecimento do ponto de vista cristão, evidente quando, no final de Warrant and Proper Function argumenta que sua epistemologia demanda um quadro de referência sobrenaturalista, e, ao desenvolver seu modelo Aquino e Calvino, presume em Conhecimento e crença cristã (como em Warranted Christian Belief) temas e doutrinas teológicas característicos do cristianismo. Esta seria então uma maneira de descrever Conhecimento e crença cristã: trata-se de um texto apologético, que envolve uma resposta original a objeções difíceis contra a racionalidade da crença cristã (como as famosas objeções colocadas por Freud e Marx), e uma crítica cultural cristã e uma filosofia cristã positiva de um filósofo cristão. Aqui, o leitor encontrará uma argumentação vigorosa, e quem sabe algum alento e inspiração. — Dr. Sérgio Ricardo Neves Miranda Universidade Federal de Ouro Preto

1 Mais precisamente, de acordo com Plantinga, a crença na existência divina seria derivada de crenças básicas como “Deus se manifesta a mim”, “Deus criou tudo isso à minha volta”, “Deus me perdoa”, “Deus desaprova o que faço”, “Deus deve ser louvado e adorado” etc. [Cf. Plantinga (1983): 81] Contudo, para facilitar a exposição, mantenho que o epistemólogo reformado entende que a crença em Deus é propriamente básica. 2 Warrant and Proper Function. Oxford: Oxford UP, 1993, p. 64. 3 Cf. “Augustinian Christian Philosophy”, The Monist, 1992, p. 296. 4 “On Christian Scholarship”.

Prefácio

Meu livro Warranted Christian Belief [A crença cristã garantida]5 foi publicado há muito tempo. Ainda endosso quase tudo o que aí escrevi; no entanto, algumas pessoas me disseram que ele era muito extenso e em certos pontos muito técnico. Temo que eu tenha de concordar e gostaria de endireitar as coisas. O resultado da minha tentativa de endireitar as coisas é o presente livro, Conhecimento e crença cristã. Ele é uma versão menor e (assim espero) mais simples de WCB. Há algumas mudanças de ênfase e poucas mudanças de outros tipos; porém em grande parte sigo as linhas gerais de WCB, acrescentando um pouco aqui e ali, e, obviamente, subtraindo uma grande quantidade de detalhes. Suprimi as partes mais difíceis, porém usei ao máximo as palavras de WCB. Espero que o resultado apresente as mesmas ideias do original, porém de forma mais breve e acessível. O principal tópico deste livro é a questão da racionalidade, razoabilidade ou justificação da fé cristã. Obviamente, essa tem sido por muito tempo uma questão importante, remontando ao começo do cristianismo e tornando-se consideravelmente mais importante desde o iluminismo no século XVIII. Recentemente, essa questão tornou-se ainda mais importante com o chamado “novo ateísmo” irrompendo em cena. Os principais membros dessa turma são os temíveis “quatro cavaleiros” — não os “quatro cavaleiros” do Apocalipse, nem os lendários “quatro cavaleiros” de Notre Dame, mas os “quatro cavaleiros” do ateísmo: Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e o recém-falecido Christopher Hitchens. Ao que tudo indica, o objetivo deles é depreciar a crença religiosa.

Em sentido filosófico, os novos ateístas são sem dúvida inferiores aos antigos ateístas (e.g., Bertrand Russell, Charlie Dunbar Broad e John Leslie Mackie), porém eles parecem fazer mais barulho. Alguém poderia dizer que eles têm mais estilo que conteúdo, exceto que também não há muito estilo; suas obras parecem pender menos para o academicismo sério que para a denúncia panfletária e raivosa. Afora o mau tempo e a deterioração dentária, os novos ateístas responsabilizam a religião por tudo. E com conveniência ignoram o fato de que as ideologias ateístas contemporâneas — o nazismo e o marxismo, por exemplo — foram responsáveis, só no século XX, por muito mais sofrimento e morte que a religião em toda a sua história. O estilo deles enfatiza o veneno, a mordacidade, a vituperação, o ridículo, o insulto, e o “escárnio escancarado”;6 o que falta, contudo, é argumento cogente. Apesar disso, algumas das questões por eles colocadas precisam de respostas. Uma das coisas afirmadas é a irracionalidade da crença religiosa em geral, e da fé cristã em particular: não podendo ser mantidas com razoabilidade, precisam ser rejeitadas por qualquer pessoa bem-educada e reflexiva. Dawkins diz o seguinte: “A irracionalidade da religião é subproduto do mecanismo inato de irracionalidade no cérebro”.7 E de acordo com Dennett, a “faculdade de Deus” é uma “geringonça geradora de ficção”.8 Em relação ao conceito de que a fé é ou pode ser uma fonte de conhecimento independente da razão, Dennett não é encorajador: Se você pensa que esse acordo comum e tácito em relação à fé é algo mais que uma ofuscação socialmente útil para evitar o embaraço mútuo e a humilhação, ou você considerou a questão com muito mais profundidade que qualquer filósofo (pois nenhum filósofo chegou a uma boa defesa dela) ou está se enganando.9

Mas como, exatamente, devemos entender essa objeção? E como a fé cristã é irracional ou intelectualmente desprovida de valor? Não é fácil dizer o significado exato da afirmação de que a fé cristã é irracional, e parte do meu objetivo é esclarecer esse ponto. Após observarmos o significado dessa

afirmação, prosseguirei ao argumentar que: 1) as objeções e afirmações sobre a irracionalidade da crença religiosa são inconclusivas; 2) a crença em Deus, e mesmo a crença em toda a panóplia da fé cristã, pode ser não só perfeitamente racional, razoável e justificada, mas consistir de fato em um caso de conhecimento; e 3) essas objeções à racionalidade e à razoabilidade da fé cristã, para serem cogentes, devem se basear na suposição de que a fé cristã é falsa. Se estou certo, quem diz algo como: “Ora, não sei se a fé cristã é verdadeira ou falsa — afinal, quem poderia saber isso? —, mas sei que é irracional (ou injustificada, ou insensata, ou indigna de um ser reflexivo)” está enganado. Uma questão preliminar: algumas pessoas parecem presumir de maneira estranha que não existe realmente uma fé cristã, como não existe de fato a crença em Deus. Os positivistas lógicos, por exemplo, afirmaram que sentenças como “Deus ama você” ou “Deus criou o mundo” são vazias e sem conteúdo porque não podem ser “empiricamente verificadas”. Outros afirmam que nossos conceitos não se aplicam a Deus, pois ele está muito acima de nós, ou porque Deus é a realidade última e os nossos conceitos não se aplicam a essa realidade. No entanto, se nossos conceitos não se aplicam a Deus, então não temos quaisquer crenças a respeito de Deus. Portanto, a nossa questão inicial, tratada no Capítulo 1, é a seguinte: existe a crença em Deus? Existe a fé cristã? Obviamente, se essas crenças não existem, não precisamos entrar na questão da racionalidade ou razoabilidade da fé cristã. Começarei considerando o pensamento inspirado por Kant, e concluirei, como você já pode ter adivinhado (seja só pelo título do livro), que a fé cristã de fato existe. Pelo fato de os cristãos de fato crerem nas coisas que parecem acreditar, tentarei esclarecer no Capítulo 2 a afirmação de que a fé cristã é de algum modo lamentavelmente defeituosa — que ela é irracional, injustificada, infantil, indigna das pessoas de hoje (com nossas realizações intelectuais magníficas), ou é de alguma outra forma intelectualmente defeituosa. Qual

seria exatamente o problema? Existem várias possibilidades: uma delas diz respeito à não justificação da fé cristã, e sua justificação se relaciona ao dever e à obrigação intelectual. Esse pensamento remonta ao fundacionalismo clássico de René Descartes (1596-1650) e John Locke (1632-1704). Argumentarei que os cristãos não transgridem (ou não transgridem de forma necessária) quaisquer deveres intelectuais quando mantêm suas crenças. Outro pensamento é que a fé cristã, mesmo que não transgrida deveres ou obrigações intelectuais, consiste, não obstante, em algo irracional em outro sentido identificável. Argumentarei que isso também não é verdade. A terceira sugestão, devida a Sigmund Freud (1856-1939) e a Karl Marx (1818-1883), é que a fé cristã não é orientada pela realidade: os processos ou faculdades de produção da crença causadores da fé cristã não visam à produção de crença verdadeira, mas à produção de crença com alguma outra propriedade — talvez a capacidade de lidar com este mundo frio, cruel e insensível (conforme Freud) em que nós, seres humanos, nos encontramos. Argumentarei que essa é a versão mais razoável da objeção que enfrentamos. Argumentarei também que essa versão equivale realmente à afirmação de que a fé cristã não tem garantia, a propriedade ou quantidade que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira. No Capítulo 3, considerarei a natureza da garantia: o que ela é de forma exata? E por que pensar que a fé cristã ou teísta não tem ou não pode ter garantia? Oferecerei uma explicação da garantia; mostrarei então como a crença teísta e cristã pode realmente ter garantia. Não alegarei ter mostrado que essa crença tem garantia (embora eu acredite que tenha), mas tão somente que ela pode ter garantia, e, se for verdadeira, ela provavelmente a tem. Se a crença em Deus é verdadeira (como penso que seja), muito provavelmente há algo como o sensus divinitatis de João Calvino (ou “o conhecimento natural, mas confuso, de Deus” de Tomás de Aquino) em virtude do qual a crença em Deus é normalmente garantida. Não argumentarei que a crença teísta é verdadeira, embora, obviamente, eu

acredite nisso. O fato é que há alguns argumentos muitos bons a favor da crença teísta, argumentos quase tão bons quanto podem ser os argumentos filosóficos; no entanto, esses argumentos não são fortes o bastante para apoiar a convicção com a qual os crentes sinceros aceitam a crença teísta; além disso, não acredito que esses argumentos sejam suficientes para conferir o conhecimento a alguém que aceita a crença em Deus com base neles. As coisas ficam assim em relação à crença em Deus; mas argumentarei nos Capítulos 4, 5, e 6 que algo similar ocorre em relação à fé cristã plenamente desenvolvida. Se a fé cristã é verdadeira, muito provavelmente há algo como o testemunho interior do Espírito Santo de Calvino ou a instigação interna do convite divino de Aquino, e em virtude desses processos a fé cristã recebe garantia. Logo, se a fé cristã é verdadeira, ela é muito provavelmente garantida. Mais uma vez, não argumentarei que a crença em Deus ou nas “grandes coisas do Evangelho”, assim designadas por Jonathan Edwards, têm garantia. O motivo disso é a garantia apenas no caso de serem verdadeiras; e mesmo que eu as considere verdadeiras, não acho possível demonstrar isso por meio de argumentos que pareçam aceitáveis a todas as pessoas. (Acredito na existência de fortes argumentos a favor delas; porém esses argumentos não são fortes o bastante para conferir conhecimento a quem as aceite com base neles.) Obviamente, mesmo que a fé cristã possa ser garantida, ela pode ainda estar sujeita a objeções e anuladores, razões para rejeitar, abandonar ou assumir essa crença de modo menos firme. No Capítulo 7, considerarei possíveis objeções às crenças teísta e cristã levantadas por John Leslie Mackie, envolvendo a relação entre a garantia e a experiência religiosa. Na sequência, nos Capítulos 8, 9, e 10, considerarei anuladores possíveis ou potenciais para a fé cristã. Entre esses anuladores, encontramos, em primeiro lugar, certo tipo de estudo acadêmico da Bíblia, caracterizado, por exemplo, pelo conhecido Jesus Seminar [Seminário de Jesus]. Os estudiosos bíblicos desse tipo não raro chegam a teorias e conclusões incompatíveis com a fé cristã; o problema é

saber se eles oferecem assim um anulador dessa crença. Argumento no Capítulo 8 que este estudo acadêmico, buscando ser científico, é limitado pelo naturalismo metodológico; prossigo argumentando que, como resultado da limitação, as teorias desses estudiosos não estabelecem (apenas enquanto tais) um anulador da fé cristã. Outro anulador proposto é o pluralismo — o fato de haver muitas religiões além do cristianismo, e que a maioria delas entra em conflito com a fé cristã em algum ponto. Suponha que eu reconheça isso: o reconhecimento provê um anulador da fé cristã? Argumento no Capítulo 9 que esse não é o caso (como o reconhecimento da existência de pessoas com crenças políticas ou filosóficas diferentes das minhas não me concede, de forma automática, um anulador das minhas crenças políticas e filosóficas).10 Por último, e talvez de caráter mais plausível, há a sugestão de que o mal no mundo, o pecado, o sofrimento, a dor e a ansiedade dão ao crente em Deus uma boa razão, e talvez a razão conclusiva, para abandonar essa crença. Talvez esse seja o anulador mais forte, e o pecado, o sofrimento e o mal sem dúvida são um problema para muitos crentes em Deus. Decerto, isso não é novidade; por exemplo, o livro de Jó, no Antigo Testamento, é uma colocação muito antiga, eloquente e forte desse problema. Argumento no Capítulo 10 que, embora o mal seja um problema para os crentes, ele não é um anulador bem-sucedido. A maior parte do que digo neste livro segue o que disse em WCB. Há poucas diferenças. Algumas pessoas criticaram o fato de o WCB parecer irrelevante para os cristãos com uma fé em grau menor que o máximo, que sofrem dúvidas, incertezas etc. — como efetivamente acontece com muitos deles, talvez com a maior parte. Tentei lidar com essa crítica perfeitamente apropriada na página 133 e 134. Isso envolve uma modificação substancial; à parte de poucas modificações menores, o que digo aqui concorda com o que digo no WCB. Convido o leitor que julgar incompleto ou superficial o

tratamento de algum tópico neste livro a consultar o tratamento pleno no WCB. Agradeço a Jim Bradley, Lee Hardy, Ann Plantinga Kapteyn, Del Ratzsch e a todos os que leram o manuscrito e fizeram sugestões valiosas. Estou especialmente em débito com Lee e Del, que deram um novo significado à expressão “passar o pente-fino”.

5 New York: Oxford University Press, 2000. Daqui em diante, WCB. 6 Richard Dawkins diz o seguinte: “Estou mais interessado em quem está em cima do muro e não considerou a questão por muito tempo ou com bastante cuidado. E penso que é mais provável que eles sejam influenciados pela demonstração de escárnio escancarado. Ninguém gosta de ser ridicularizado. Ninguém quer ser a vítima de escárnio”. No blog de Dawkins RichardDawkins.net depois de um trecho de Jerry Coyne. 7 The God Delusion. London: Bantam, 2006, p. 184. [Publicado em português com o título: Deus: um Delírio, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.] 8 Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomena. New York: Viking, 2006, p. 110. [Publicado em português com o título: Quebrando o encanto: a religião como um fenômeno natural, Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006.] 9 Darwin’s Dangerous Idea. New York: Simon & Schuster, 1995, p. 155. [Publicado em português com o título: A perigosa ideia de Darwin, São Paulo: Rocco, 1998.] 10 Outro anulador que não considero neste livro: as várias sugestões feitas sobre o conflito entre a crença cristã e a ciência corrente. Há aqui muitas sugestões: a incompatibilidade entre a ciência e a ocorrência de milagres como, por exemplo, a ressurreição de Jesus Cristo; entre a evolução e a crença cristã; entre a atitude científica e a crença cristã. Outra sugestão é que as explicações científicas correntes da crença religiosa nos dão boas razões para considerar essa crença falsa ou não garantida. Argumentei que nenhum dos anuladores propostos tem muito a seu favor, e nenhum deles é de fato um anulador da crença teísta. Do meu ponto de vista, a ciência e a religião são inteiramente compatíveis; o conflito real é entre a ciência e o naturalismo, a crença na inexistência de uma pessoa ou coisa como Deus. Ao leitor interessado, recomendo minha obra Where the Conflict Really Lies: Science, Religion and Naturalism (New York: Oxford University Press, 2011).

capítulo 1 Podemos falar e pensar a respeito de Deus?

Nossa questão neste livro tem relação com a justificação, razoabilidade ou racionalidade da manutenção da fé cristã. Contudo, de acordo com algumas pessoas, essa não é uma questão, pois, de acordo com elas, a fé cristã de fato não existe. Não é o caso que a fé cristã seja falsa, tola ou equivocada; o caso é que ninguém tem de fato uma fé cristã. Argumenta-se a impossibilidade de alguém, ou pelo menos para qualquer um de nós, seres humanos, ter essa crença. Isso soa bastante fantasioso, para dizer o mínimo: o que dizer de todas as pessoas que vão às igrejas cristãs todos os domingos? Ao menos algumas delas não têm crenças cristãs? Apesar disso, essa opinião — de que a fé cristã de fato inexiste — é e tem sido surpreendentemente difundida. Mas por que alguém pensaria uma coisa dessas? Por que pensar que não se pode manter crenças a respeito de Deus? Talvez a linha de pensamento mais popular seja a seguinte. Obviamente, Deus, o Criador de tudo, todo-poderoso, onisciente e perfeitamente bom, é a figura central na narrativa cristã. No entanto, de acordo com essa linha de pensamento, nós, seres humanos, não podemos ter qualquer crença a respeito de Deus; Deus está além de todos os nossos conceitos; nossa mente é muito limitada para ter qualquer apreensão de Deus e do seu ser.

Kant Qual razão existe para essa consideração? A resposta sugerida é que Deus é último; Deus é a realidade última. Entretanto, de acordo com essa linha de pensamento, nós, seres humanos, somos incapazes de conceber a realidade última ou manter crenças a respeito dela. Neste ponto, quem pensa desse modo segue o grande filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) na monumental Crítica da razão pura. Como essas pessoas o entendem, Kant afirma existirem de fato dois mundos. Há o mundo das coisas em si, as coisas como elas são — independentes de qualquer atividade intelectual da nossa parte; também há o mundo das coisas para nós. Este último é o mundo conhecido da experiência, o mundo de casas, pessoas, oceanos e montanhas. No entanto, o primeiro é o mundo das coisas como elas são de modo independente de nós, “das coisas em si” — esse mundo é inteiramente inacessível para nós. Definitivamente, Kant não é fácil de entender, o que sem dúvida faz parte do charme dele. Se você quer ser um filósofo grande de verdade, preocupe-se em não dizer com muita clareza o que tem em mente (talvez isso não seja o bastante, mas é um começo); se as pessoas puderem ler e entender de pronto o que você diz, não haverá necessidade de comentadores da sua obra, ninguém escreverá teses de doutorado sobre ela a fim de explicar seu pensamento, e não haverá controvérsias sobre o que você quis dizer de fato. Kant deve ter dado atenção a esse conselho, e o fato é que existem dezenas, talvez centenas, de livros escritos sobre sua filosofia, e uma controvérsia infindável sobre seu pensamento. De acordo com uma interpretação historicamente popular, relevante para o propósito atual, Kant afirma que nós mesmos, seres humanos, conferimos ao mundo sua estrutura básica — o mundo da aparência, o mundo em que vivemos na realidade. Por exemplo, uma característica estrutural muito

importante do mundo é que ele consiste em coisas com propriedades. Há cavalos, casas e morteiros: cavalos têm propriedades: são mamíferos, capazes de correr uma milha em dois minutos, maiores que cães comuns etc.; casas são feitas de tijolos, custam muito, são bons lugares em que viver etc.; morteiros têm propriedades militares que envolvem alcance, adaptabilidade etc. De acordo com Kant, pelo menos sob essa interpretação popular, o fato de que nosso mundo consiste em coisas com propriedades — esse fato é devido, de algum modo, a nós, à nossa própria atividade intelectual de categorização. É um pouco como olhar o mundo através de lentes cor-derosa: o mundo aparece desse modo, não porque ele seja de fato cor-de-rosa, mas por causa das lentes que usamos. Algo similar ocorre aqui: o mundo por si mesmo não tem essa estrutura de coisa-propriedade, e de fato não podemos saber que tipo de estrutura tem o mundo em si mesmo, se é que ele tem alguma estrutura. Só conhecemos o mundo à medida que ele se conforma às categorias da nossa mente, porém não como é em si mesmo. De acordo com Kant, portanto, há o mundo das coisas em si, o mundo tal como é em si mesmo, e há também o mundo da aparência, o mundo tal como é para nós. Estamos em casa no mundo da aparência, pelo menos em parte porque nós mesmos o constituímos, de algum modo conferimos a ele a estrutura básica que apresenta. Mas não temos qualquer compreensão do mundo das coisas em si. Não podemos pensar a respeito disso; nossos conceitos não se aplicam a elas; nesse aspecto, estão totalmente fora do nosso alcance. É claro que Deus deve estar entre as coisas em si. Essa orientação do pensamento de Kant implicaria, pois, que nós, seres humanos, não podemos pensar a respeito de Deus. Não temos qualquer conceito que se aplique a ele. Nossos conceitos se aplicam só às aparências, não ao mundo da realidade. Portanto, Deus, a realidade in excelsis, está tão acima de nós, ou tão além de nós, que nossa mente insignificante não pode alcançá-lo. Nossa mente, nosso pensamento e nossa linguagem apenas não chegam até Deus.11 Portanto,

algumas pessoas que entendem Kant nesses termos e pensam que ele está fundamentalmente correto acerca disso, concluem que não podemos pensar a respeito de Deus. E, obviamente, se não podemos pensar a respeito de Deus, não podemos também falar a respeito dele.

Kaufman Muitos teólogos são atraídos de forma tão estranha por Kant que pensam estar ele correto em sentido fundamental. Eles pensam que a teologia deve aceitar os principais elementos da doutrina de Kant e ser conduzida sob a suposição de que ele está fundamentalmente correto. Um bom exemplo seria Gordon Kaufman, por muitos anos professor de teologia na faculdade de estudos religiosos da universidade de Harvard, a Harvard Divinity School. Em God the Problem [Deus, o problema], Kaufman coloca o problema do seguinte modo: O problema central do discurso teológico, não compartilhado com qualquer outro “jogo de linguagem”, é o significado do termo “Deus”. “Deus” suscita problemas especiais de significado porque é um nome que por definição se refere a uma realidade transcendente à experiência, e assim não localizável em seu interior. [...] Como o Criador ou fonte de tudo que existe, Deus não deve ser identificado com qualquer realidade finita particular; como o objeto próprio da lealdade última ou fé, Deus deve ser distinguido de todo valor ou ente próximo ou penúltimo. Contudo, se nada em nossa experiência pode ser identificado de forma direta com o que o termo “Deus” propriamente se refere, que significado essa palavra tem ou pode ter?12

A resposta, apresentada no livro The Theological Imagination [A imaginação teológica], parece ser “não muito [significado]”, ou, pelo menos, “não tanto [significado] quanto você teria pensado que ela tivesse”: Deus simboliza o que no processo evolucionário histórico contínuo funda nosso ser como distintamente humano e nos conduziu (conduz) para a realização humana autêntica (salvação).13 “Deus” é o símbolo da personificação da atividade cósmica que criou nossa humanidade e continua a impulsionar sua plena realização.14

Assim, o termo “Deus” não é o nome de uma Pessoa onisciente, onipotente e perfeitamente boa; em vez disso, é só um símbolo da atividade cósmica e do processo histórico. Eis o problema de Kaufman com Deus (ou “Deus”): se ele é de fato o Criador do universo e a realidade última, encontrase além da nossa experiência; por isso, seguindo Kant, nossos conceitos não se aplicam a ele; e o termo “Deus” não pode se referir a ele; temos então de pensar alguma outra função para esse termo.15 Obviamente, esse modo kantiano de pensar pode causar considerável dano à crença religiosa e à teologia. Pode-se pensar que a teologia nos diz algo a respeito de Deus: como ele se parece e o que ele fez. Pode-se pensar que o assunto da teologia é o próprio Deus. Mas se não podemos pensar ou falar a respeito dele, então, obviamente, ninguém pode nos dizer com o que ele se parece e o que ele fez. Se não pudermos pensar ou falar a respeito dele, então, é claro que não podemos afirmar que ele criou o mundo, ou é Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, ou odeia o pecado etc. Se Kant (assim interpretado) está certo, a teologia não pode versar sobre Deus; e ninguém, nem mesmo o teólogo, pode pensar a respeito de Deus; contudo, se não se pode pensar a respeito de Deus, não se pode escrever a respeito dele. Como disse o filósofo Frank Plumpton Ramsey: “O que não pode ser dito, não pode ser dito; tampouco pode ser assobiado”. Além disso, quando os cristãos recitam os grandes Credos da igreja — o apostólico, por exemplo — o que eles falam não pode ser verdadeiro. Eles dizem: “Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra...”. Mas se nossos conceitos não se aplicam a Deus, não podemos de fato acreditar que Deus é o Criador do céu e da terra: pois, obviamente, podemos acreditar nisso se nosso conceito criador do céu e da terra realmente se aplica a Deus. De modo similar, os sermões em que o pregador prega o Evangelho, a narrativa magnífica do pecado e da redenção por meio da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado — esses sermões também seriam totalmente equivocados. Presume-se que o pregador estaria sob a impressão

de se encontrar de fato a falar de Deus; mas ele estaria totalmente equivocado. Ele literalmente não saberia do que falava. É óbvio que os ouvintes estariam em uma posição igualmente absurda: eles pensariam que o pregador falava sobre a grande narrativa cristã, quando, de fato, nada disso ocorria. Mas por que deveríamos pensar que isso é verdade? Há uma razão substancial para acreditar que não podemos pensar ou falar a respeito de Deus? A sugestão é que Deus é tão sublime, tão acima de nós, que nós, com a mente insignificante e limitada, não podemos esperar compreendê-lo. Decerto, há aqui uma cautela apropriada. E também é verdade que não podemos compreendê-lo, se compreender Deus é saber uma grande proporção do que há para saber a seu respeito. Mas isso não quer dizer que não podemos de forma nenhuma pensar a respeito dele, e não quer dizer que não podemos saber algumas coisas muito importantes a respeito de Deus. Por que deveríamos pensar que não podemos saber ou mesmo acreditar nas grandes coisas do Evangelho?

Kant de novo Como afirmei, os seguidores de Kant pensam geralmente desse modo. Mas por que Kant pensou que não podemos falar ou pensar a respeito de Deus? A sugestão é que Deus estaria entre as “coisas em si”; e não somos capazes de pensar sobre o mundo das coisas em si, como oposto ao mundo da aparência. Mas por que pensar isso? A razão básica parece a seguinte: existem proposições que conhecemos sem a ajuda da experiência sensível; podemos chamar esse conhecimento de “conhecimento a priori”. Sei que nada existe antes de começar a existir; não preciso andar por aí investigando as coisas para ver se alguma delas existe antes que comece a existir, e concluir, ao fim de uma investigação substancial, que nenhuma delas existe antes de começar a existir. Sei que todos os cavalos são animais; de novo, seria absurdo fazer algum tipo de exame, observando um punhado de cavalos para ver quantos deles são animais. (“Ah, eis um belo cavalo galopando arredor: vamos dar uma olhada e ver se ele é um animal”.) Você sabe antecipadamente que 7 + 5 = 12 (esse é o exemplo do próprio Kant); de novo, não aprendo isso como resultado de uma investigação empírica; posso apenas ver que isso é verdadeiro. De algum modo, Kant pensa que não poderíamos ter esse tipo de conhecimento, conhecimento independente da experiência sensível do mundo das coisas em si. Ele julgou extremamente enigmático entender como poderíamos ter conhecimento genuíno independente da experiência sensível ou da investigação empírica. Sua proposta de solução consistiu na sugestão de que contamos com esse tipo de conhecimento, mas só de um mundo que, de alguma forma, nós mesmos estruturamos. Podemos saber a priori à experiência, que 7 + 5 = 12 porque estruturamos o mundo de tal modo que 7 + 5 = 12. É como se nós mesmos tivéssemos colocado tal coisa no mundo, e,

por isso, podemos saber que 7 + 5 = 12. Conhecemos, por assim dizer, o produto do próprio trabalho. Mas Kant está certo? Por que cogitar a incapacidade de ter o conhecimento a priori da realidade? Deus não poderia criar pessoas capazes disso? É difícil ver por que razão ele não poderia criar pessoas assim. Além disso, Deus não poderia criar seres capazes de conhecer verdades importantes sobre si mesmo? E não poderíamos ser essas criaturas? Mais uma vez, é difícil enxergar o motivo da não existência dessas criaturas e por que não poderíamos sê-las. Aqui, é difícil ver a razão para essa sugestão grandiosa de que não podemos nem mesmo pensar a respeito de Deus. Além disso, há algo contraditório nessa sugestão. Se não podemos pensar a respeito de Deus, então (como disse Ramsey) não podemos pensar a respeito dele; portanto, não podemos fazer asserções a seu respeito, incluindo-se as asserções que versam sobre a impossibilidade de pensar a respeito dele. A asserção de que não podemos pensar a respeito de Deus — Deus é tal que não se pode cogitar sobre seu ser — é obviamente uma asserção a respeito de Deus; e se não podemos pensar a respeito de Deus, então não podemos dizer a respeito dele o que pensar a respeito dele. Talvez existam coisas a respeito das quais não possamos pensar, talvez coisas em alguma outra parte do universo. Sendo esse o caso, não podemos escolher uma dessas coisas e dizer acerca dela que não podemos pensar a respeito dela. Dada a fraqueza do argumento para a conclusão de que Deus se encontra além da nossa compreensão conceitual, sendo tal que não podemos pensar ou falar a respeito dele, e dado o fato de que essa perspectiva é contraditória e destrói a si mesma, parece que o melhor a fazer até este momento é rejeitá-la. Portanto, colocarei essa perspectiva de lado e procederei presumindo a existência real da fé cristã.

11 Digo que essa é uma linha do pensamento de Kant, ou talvez uma linha do pensamento de Kant interpretado de modo popular; em outros lugares, Kant parece dizer coisas muito diferentes, coisas que não se ajustam bem a essa linha de pensamento; mais uma vez, isso faz parte do seu charme. 12 God the Problem. Cambridge: Harvard University Press, 1972, p. 7. 13 The Theological Imagination: Constructing the Concept of God. Philadelphia: Westminster Press, 1981, p. 41. 14 Ibid., p. 50. 15 Para uma explicação plena do pensamento de Kaufman, vide WCB, parte I, cap. 2.

capítulo 2 Qual é a questão?

Muitas pessoas concedem a existência da fé cristã, mas criticam a existência de algo muito errado a respeito dela; ela é irracional, injustificada, infantil, não mais razoável que a crença no Superman,16 ou ainda, de outro modo, cognitivamente abaixo do padrão e, portanto, digna de desdém e desprezo. Mas qual é, exatamente, o problema? Podemos ser um pouco mais precisos?

Objeções de facto versus objeções de jure As crenças podem ter pelo menos dois tipos de defeito. Ela pode ser falsa. A objeção de facto em relação à crença consiste em sua falsidade, acreditar na existência do Papai Noel. O objetor de facto, portanto, argumenta que a fé cristã é falsa, ou pelo menos muito improvável. Por exemplo, há o considerável “problema do mal”: trata-se da afirmação de que há uma contradição entre os fatos do sofrimento e do mal, por um lado, e, por outro, a ideia da existência de uma pessoa como Deus — onipotente, onisciente e perfeitamente boa. Deus e o mal são incompatíveis; e sem dúvida o mal existe; portanto, Deus não existe. Há outras versões da objeção de facto. Por exemplo, costuma-se dizer que Deus é um ser pessoal — i.e., uma pessoa sem um corpo; contudo, pensam alguns seguidores de Wittgenstein, não é possível ser uma pessoa sem um corpo.17 E ainda, supõe-se que Deus seja onipotente e onisciente; porém, algumas pessoas afirmam, não é possível haver um ser que tenha essas duas propriedades. Há também o que chamarei objeção de jure, também com várias versões. Aqui, a afirmação não versa sobre a falsidade da crença (embora, ela possa ser falsa); antes, afirma-se que ela apresenta outro defeito: pode ser imoral, irracional, tola, injustificada, ou deficiente de algum outro modo. Considere a crença na existência de um número par de estrelas; talvez ela seja verdadeira, talvez seja falsa, mas não é a crença de uma pessoa racional (porque se trata de um tipo de crença para a qual se requer evidência, e inexistem evidências para confirmar qualquer um dos lados). O mesmo se pode dizer sobre a crença que a quantidade total de neve que caiu no monte Rainier no inverno de 1895 foi de 30 metros. Essa crença é ainda menos razoável que a crença na paridade do número das estrelas. Em relação ao que se sabe, é tão provável quanto não é que o número das estrelas seja par, mas é improvável que a quantidade total de neve que caiu no monte Rainier em 1895 seja próxima de

30 metros: a máxima quantidade já registrada foi de cerca de 33 metros. Mais um exemplo: suponha que eu seja fã de futebol e acredite com firmeza (talvez eu esteja me iludindo) que meu time ganhará o campeonato no próximo ano, mesmo que neste ano ele tenha terminado na última posição e dispensado os melhores jogadores. Isso também é irracional. A objeção de jure, portanto, é a afirmação que a fé cristã é irracional ou injustificada ou talvez imoral; mais exatamente, alega-se que a pessoa que abraça a fé cristã é irracional, não dispõe de justificativa para isso ou é, de outro modo, merecedora de desaprovação. A afirmação de jure é o principal foco deste livro. Ela é também, acredito, o tipo mais comum das duas objeções. Em primeiro lugar, a objeção é oferecida por quem afirma a possível razoabilidade da fé cristã no passado, antes do surgimento da ciência moderna e do aprendizado sobre a evolução, a teoria da relatividade, a mecânica quântica etc. Contudo, dado o estado atual da ciência, não é mais possível para uma pessoa razoável e informada aceitar essa crença. Como mencionei no Prefácio (nota 6), em benefício da concisão, apenas remeterei o leitor a meu livro Where the Conflict Really Lies: Science, Religion, and Naturalism [Onde jaz de fato o conflito: ciência, religião e naturalismo].18 Nele argumento que embora haja de fato um conflito entre a ciência e o naturalismo (a perspectiva da inexistência de Deus ou de algo parecido com ele, não há conflito entre a ciência e a religião. Em segundo lugar, a objeção de jure é apresentada por quem enfatiza o pluralismo da crença religiosa. Sempre houve muitos tipos diferentes de crença religiosa e mutuamente excludentes. Há o cristianismo, óbvio, mas também existem o judaísmo, o hinduísmo, o budismo, as várias religiões africanas, as religiões americanas nativas, e muitas outras. Além disso, algumas dessas crenças religiosas — o cristianismo, por exemplo — dividemse em um grande número de facções conflitantes. Como, pois, pode ser

razoável escolher dentre essas clamorosas pretendentes uma em particular? Responderei a essa objeção no Capítulo 9. Em terceiro lugar, há quem afirma ser intelectualmente arrogante endossar uma versão específica da fé cristã, porque então se afirma, de maneira implícita, que quem não endossa essa versão é inferior, ou corrompido, ou em certa medida não está em posição tão boa quanto o endossador da crença. Em quarto lugar, algumas pessoas afirmam que a fé cristã e teísta, para ser justificada, requer evidência ou argumento; e por não haver evidências suficientes para ela, dirá o objetor, a crença é injustificada. A quinta objeção é que a fé cristã ou teísta é irracional. De acordo com uma versão importante dessa objeção, essa crença resulta da realização de um desejo inconsciente ou de um pensamento positivo. Assim, de acordo com Sigmund Freud (18561939), nós, seres humanos insignificantes, habitamos este mundo frio e cruel, e só podemos tornar a vida suportável projetando nos céus um pai que realmente se preocupa conosco (e muito mais poderoso que os pais humanos). No entanto, essa crença é irracional. Parece que todas essas objeções poderiam ser apresentadas por alguém que não tenha uma posição a respeito da verdade da fé cristã. O objetor poderia colocá-la do seguinte modo: “Não sei se a fé cristã é verdadeira ou falsa; mas sei que uma pessoa não pode racionalmente aceitá-la (por não haver evidências suficientes, ou existirem muitas alternativas, ou essa crença é produto da realização de um desejo inconsciente, ou...)”. O que quero fazer neste capítulo é tentar identificar a objeção de jure de modo mais preciso. Buscamos a objeção que: 1) se aplique de verdade à fé cristã e não seja fácil de responder; (2) seja independente da objeção de facto — i.e., tal que se possa razoavelmente oferecer a objeção sem pressupor ou presumir a falsidade da fé cristã.

Há alguma objeção de jure grave? Vamos começar considerando três candidatos (não tratados em outro livro ou em um capítulo posterior), começando com A fé cristã é arrogante Afirma-se que endossar ou acreditar em uma proposição que se sabe desacreditada por outras pessoas consiste em algo arrogante ou egoístico. Portanto, William Cantwell Smith se expressa assim: “Exceto ao custo de insensibilidade e delinquência, é moralmente impossível sair pelo mundo afora dizendo a nossos pares, seres humanos devotos e inteligentes: ‘... cremos conhecer a Deus e estamos certos; vocês acreditam conhecer a Deus, mas estão completamente errados’”.19 Estritamente falando, Smith parece discorrer sobre alguém que não só acredita no que outras pessoas não acreditam, mas segue dizendo alto que seus conceitos estão certos e os das outras pessoas errados. Gary Gutting vai um pouco mais longe; ele afirma ser egoístico e arrogante acreditar em uma proposição para a qual não se tem um bom argumento, e do qual outros discordam (seja a crença exprimida ou não): Em primeiro lugar, crer em p [mesmo sem ter um argumento e saber que outras pessoas discordam dele] é arbitrário no sentido de não haver razão para cogitar que minha intuição (i.e., o que me parece ser obviamente verdadeiro) tem mais probabilidade de ser correta que a dos discordantes de mim. Acreditar em p porque sua verdade é apoiada por minha intuição é um egoísmo epistemológico tão arbitrário e injustificado quanto se considera normalmente o egoísmo ético.20

Mas isso é de fato convincente? Acredito no erro total de mentir sobre meus colegas a fim de progredir na carreira. Acredito nisso com muita firmeza. Sei da existência de discordantes: há muitas pessoas por mim respeitadas, que duvidam haver algo que seja de fato errado (embora algumas

coisas possam ser desaconselháveis). Aqui, realmente não tenho um argumento para a minha crença, ou pelo menos não um argumento convincente dos discordantes de mim. No entanto, sou arrogante ou egoísta por manter essa crença? Penso que não. Em primeiro lugar, acredito realmente em p pelo fato de p ser apoiado por minha intuição — ou seja, não raciocino da seguinte forma: p é apoiado por minha intuição; portanto p. Em vez disso, p apenas me parece correto. Suponha então que penso muito sobre a proposição de que mentir sobre os meus colegas a fim de progredir na carreira seja errado; e quanto mais penso nela, com clareza ela me parece errada. Considero todas as objeções que conheço: por exemplo, razões para considerar nada certo ou errado de forma definitiva (embora algumas coisas possam ser mais vantajosas ou úteis que outras), ou razões para pensar que o importante sobre o certo e do errado consiste no que for melhor para mim e satisfizer meus interesses. Depois de uma consideração séria e prolongada, ainda me parece, e talvez até com mais intensidade, que mentir sobre meus colegas para progredir na carreira é errado. De fato, não está nem mesmo em meu poder, depois de considerar toda a questão, abrir mão da crença de que esse tipo de comportamento é errado. Assim, eu poderia ser acusado com acerto de egoísmo, arbitrariedade ou algum outro tipo de imoralidade por pensar desse modo? Realmente, não vejo como. A fé cristã é injustificada Penso que a objeção de egoísmo não tem a menor chance de ser bemsucedida. Um tipo mais importante de objeção afirma que a fé cristã é injustificada. Mas em que consiste a justificação? O que significa afirmar que uma crença é injustificada ou uma pessoa estar injustificada em sua crença? a natureza dupla da justificação

Essa noção de justificação parece contar com dois componentes. Ela teria algo que ver com a evidência: a crença (ou o crente) é injustificada quando não há evidência, ou não há evidência suficiente, a seu favor. Ou a justificação diria respeito ao dever, obrigação ou retidão moral: “Sam estava totalmente justificado ao rejeitar a crítica severa do chefe”; isso quer dizer, talvez entre outras coisas, que Sam contava com o direito de agir como agiu e não transgrediu nenhum dever ao rejeitar a crítica severa do chefe. Se olhamos para a história de maneira retrospectiva e virmos onde a discussão sobre a justificação tem origem, essa aparência de duplicidade é confirmada; encontramos o interesse pelo dever, pela obrigação, e também pela evidência. De acordo com o importante filósofo britânico John Locke (1632-1704), temos deveres e obrigações em relação às crenças que formamos e mantemos. Ele propõe a seguinte pergunta: Quais os meios pelos quais “a criatura racional, colocada no estado em que o homem se encontra neste mundo, poderia e deveria governar suas opiniões e as ações delas dependentes?”. Em um texto clássico, ele apresenta esta resposta: a criatura racional em nossas circunstâncias deveria governar suas opiniões pela razão. Ele diz: A fé não é mais do que um assentimento mental firme: se for regulado, como é o nosso dever, ele não pode ser produzido por outra coisa senão pela razão; e assim não pode se opor a ela. Quem acredita sem ter qualquer razão para acreditar, pode estar apaixonado pelas próprias fantasias; mas não busca a verdade como deveria e nem presta a devida obediência ao Criador, que incentiva o uso das faculdades de discernimento que lhe concedeu, para mantê-lo afastado do engano e do erro. Quem não faz isso tanto quanto pode, embora algumas vezes atinja a verdade, está certo, mas por acaso; não sei se a sorte da fortuna desculpará a irregularidade do seu procedimento. Ao menos isso é certo: ele seja responsável por qualquer erro que encontre. Quem faz uso da luz e das faculdades que Deus lhe deu — e busca com sinceridade descobrir a verdade com os recursos e capacidades que tem — pode ter essa satisfação ao cumprir seu dever como criatura racional, que, embora a verdade lhe escape, não perderá a recompensa por ela. Pois governa o próprio assentimento com correção, e o coloca como deveria, quem, em qualquer caso ou

questão, acredita ou não acredita de acordo com o que a razão lhe diz. Quem faz outra coisa transgride a própria luz e faz mau uso das faculdades concedidas para buscar e seguir a mais clara evidência e a maior probabilidade.21

Aqui, Locke não fala de modo específico sobre a fé religiosa (a fé contrastada com a razão), mas sim sobre o assentimento ou a opinião em geral; a sua tese central é que há deveres e obrigações em relação a seu controle e regulação. Em particular, sua obrigação consiste em dar assentimento só ao que tem boas razões, boa evidência. Deus nos ordena, diz Locke, buscar a verdade desse modo; ele nos ordena regular a opinião dessa forma. Caso não se siga essa ordem, então não se busca a verdade como deveria e nem se presta a obediência devida ao Criador. A pessoa que busca a verdade desse modo, mesmo que não chegue à verdade, pode ainda “ter a satisfação de cumprir o dever como criatura racional”. Ele afirma que você governa sua concordância “com correção”, e a dá como “deveria”, acreditando ou não nas determinações da razão. E se não o faz, então você age contra as próprias luzes. Portanto, quem governa a própria opinião, age de acordo com seu dever, tem o direito de agir como age, não transgride qualquer obrigação, não é censurável; está, em suma, justificado.22 Assim, há dois componentes nessa noção de justificação: ela diz respeito ao dever e à obrigação; a ideia da existência de deveres e obrigações em relação à crença e à sua forma. Esse é o conceito básico de justificação: você está justificado em acreditar em alguma coisa ou outra, no sentido básico, se cumpre suas obrigações, sem contrariar seu dever quando acredita. Esse é o primeiro componente. De acordo com o segundo componente, a justificação tem relação com a evidência: você está justificado ao acreditar em uma proposição caso tenha evidência suficiente para essa proposição. Qual a conexão entre os dois componentes do pensamento de Locke? Simples: Locke pensa que o dever relevante é acreditar só nas proposições para as quais existe boa evidência. Todos nós temos este dever: acreditar em uma proposição apenas no caso da posse de evidência suficiente para ela. Assim, a pessoa

crente na existência de Deus, mas desconhecedora da evidência dessa crença (os argumentos a respeito da existência de Deus, por exemplo), contraria seu dever e, portanto, não está justificada. A afirmação de que a fé cristã é injustificada (que o crente está injustificado) vem a ser a afirmação de que o crente não tem evidência adequada para sua crença. o fundacionalismo clássico Há aqui um problema. O objetor está evidentemente pensando em evidência proposicional: evidência derivada de outras proposições tomadas por verdadeiras. Os argumentos teístas — cosmológico e ontológico, do desígnio e de sintonia fina — são evidências desse tipo a favor da existência de Deus, se, de fato, são bons. E o objetor afirma que os cristãos não contam com evidência proposicional suficiente para apoiar suas crenças. No entanto, obviamente, não pode existir evidência proposicional para tudo o que você acredita. Toda cadeia de argumentos terá de começar em algum ponto, e as premissas fundamentais a partir das quais se inicia a cadeia de argumentos não serão acreditadas a partir da base evidencial formada por outras proposições; essas premissas deverão ser aceitas de forma básica, quer dizer, não aceitas a partir da base evidencial formada por outras proposições. Assim, presumivelmente, o objetor não assume que toda crença, se justificada, deve ser acreditada a partir da base evidencial formada por outras crenças; e se esse fosse realmente o caso, então nenhuma crença poderia ser justificada. (E se nenhuma crença puder ser justificada, não há nada em particular contra as crenças religiosas que não puderem ser justificadas). O objetor deve supor que algumas crenças são propriamente básicas: elas são aceitas de um modo básico, e não a partir da base evidencial formada por outras crenças, e que também são tais que uma pessoa é justificada ao aceitálas desse modo. John Locke estava ciente disso. Foi ideia dele que algumas crenças são certas; e as crenças certas podem ser aceitas de modo básico de forma

apropriada. Essas crenças certas pertencem a dois tipos. Em primeiro lugar, algumas crenças sobre minha vida mental são certas. Acredito estar com dor: essa crença é certa para mim. Acredito, enquanto olho da janela, que parece haver árvores, grama e flores lá fora. Não estou certo de que realmente haja árvores, grama e flores lá fora, mas sim que me parece haver árvores, grama e flores lá fora. Poderíamos chamar essas crenças de “incorrigíveis”: se você afirma estar com dor, ou que lhe parece haver uma árvore lá fora, não posso com sensatez corrigi-lo e afirmar que você está errado. Crenças incorrigíveis, de acordo com Locke, são básicas, e, além disso, elas são propriamente básicas. Há o segundo tipo de crença que, de acordo com Locke, é certa e, portanto, propriamente básica: crenças autoevidentes. Exemplos seriam 2 + 2 = 4 ou Nada pode ser completamente vermelho e completamente azul ao mesmo tempo, ou Se todos os homens são mortais e Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal. Posso apenas observar que essas crenças são verdadeiras. Elas, poderíamos dizer, são tais que não se pode compreendê-las sem ver que são verdadeiras. Portanto, as crenças desses dois tipos são propriamente básicas; pode-se estar justificado em aceitá-las mesmo que não se acredite nelas a partir da base evidencial de outras crenças suas. Considere todo o seu conjunto de crenças. De acordo com Locke, esse conjunto de crenças conta com uma estrutura característica: há crenças básicas que consistem no fundamento da estrutura, e há crenças não básicas, aceitas a partir da base evidencial das crenças básicas. Ainda segundo Locke, em um conjunto de crenças bem organizado e regulado de forma apropriada, as únicas crenças encontradas no fundamento serão crenças autoevidentes ou incorrigíveis. As opiniões de Locke são aqui exemplos do chamado fundacionalismo clássico. O fundacionalismo clássico afirma que as únicas crenças propriamente básicas são de dois tipos: crenças autoevidentes e crenças incorrigíveis. Todas as outras crenças devem ser aceitas com base em evidências proposicionais, ou seja, por meio de argumentos a partir de outras

crenças, argumentos que remontam às fundações autoevidentes e incorrigíveis. As crenças cristãs não são autoevidentes, como 2 + 1 = 3, e nem, obviamente, dizem respeito apenas aos próprios estados mentais. Portanto, de acordo com o fundacionalismo clássico, as crenças cristãs devem ser aceitas com base em argumentos, e a partir da base evidencial de outras proposições. Assim, uma versão da afirmação de que a fé cristã é injustificada (que o crente está injustificado) tem origem no fundacionalismo clássico: trata-se de fato da afirmação de que não há evidência proposicional boa (ou suficientemente boa) para a fé cristã formada por proposições autoevidentes ou incorrigíveis. Por isso, o crente cristão está injustificado; ele transgride seu dever epistêmico. Mas o fundacionalismo clássico por si só apresenta sérios problemas. Antes de tudo, ele parece contraproducente; prende-se na própria armadilha; ele se coloca em dificuldade autorreferencial. De acordo com o fundacionalismo clássico, existe o direito epistêmico de acreditar em uma proposição apenas quando se crê nela a partir da base evidencial de proposições autoevidentes ou incorrigíveis. Caso você acredite em uma proposição para a qual não há evidência de proposições autoevidentes ou incorrigíveis, então essa ação está injustificada e não cumpre seu dever epistêmico. Entretanto, eis o problema: não parece haver proposições incorrigíveis ou autoevidentes em apoio ao próprio fundacionalismo clássico. Sem dúvida, ele não é autoevidente: nenhuma pessoa que o entenda pode perceber sua veracidade. Por exemplo, eu compreendo o fundacionalismo clássico, e não o considero verdadeiro. De fato, acredito em sua falsidade. Assim, ele não é autoevidente; mas também parece não haver bons argumentos favoráveis a partir de proposições autoevidentes. Além disso, o fundacionalismo clássico não é incorrigível; ele definitivamente não versa sobre como as coisas aparecem ou parecem a alguém. Nem parece haver um argumento decente a seu favor com base em

proposições incorrigíveis. E mais, não parece haver um bom argumento a favor dele partindo-se de proposições autoevidentes ou incorrigíveis. Portanto, a não ser que a aparência seja aqui enganadora, mesmo que o fundacionalismo clássico seja verdadeiro, ninguém pode crer propriamente nele de forma precisa; quem crê se encontra injustificado. Portanto, ele aparenta ser incoerente em sentido autorreferencial. minhas crenças estão sob meu controle voluntário? Esse é um problema grave para a objeção justificacionista à fé cristã, pelo menos caso essa objeção se baseie no fundacionalismo clássico. No entanto, o objetor justificacionista não precisa basear sua objeção no fundacionalismo clássico. Ele pode concordar com o fundacionalismo clássico no sentido de que a fé cristã deve ser aceita com base em alguma evidência para ser justificada, mas não acreditar no fundacionalismo clássico. Ele pode pensar que para estar justificado o crente cristão deve contar com evidências de outras coisas cridas, mas não de forma necessária com proposições autoevidentes ou incorrigíveis. Desse modo, o problema anterior não afeta o objetor. Mas existe outro problema. De acordo com o fundacionalismo clássico, para estar justificado ao acreditar na existência de uma árvore no quintal, ou que vejo uma árvore no meu quintal, devo crer nessa proposição com base na evidência de proposições autoevidentes ou incorrigíveis. Talvez eu não possa encontrar um argumento decente desse tipo para a proposição de que há uma árvore no meu quintal. De fato, talvez não exista um argumento decente desse tipo para essa proposição. Eu poderia tentar: “Na maioria das vezes no passado em que parecia haver uma árvore no meu quintal, a árvore se encontrava de fato ali; agora parece haver uma árvore no meu quintal; portanto, agora é provável haver uma árvore ali”. Mas como sei que nas vezes passadas em que parecia haver uma árvore no meu quintal ela de fato estava ali? Apelando para outras vezes? Obviamente, isso não funcionará.

E o que dizer da própria ideia de vezes passadas, ou, de forma mais geral, da própria ideia de passado? Sem dúvida, creio que realmente houve o passado; mas onde posso encontrar um bom argumento para a conclusão de que o passado ocorreu de verdade? Todo o desenvolvimento da filosofia moderna de Descartes a Hume mostra que não há um bom argumento a partir do que é autoevidente ou incorrigível para proposições do tipo. Além disso, quando olho da minha janela, formo a crença na existência de uma árvore lá fora; e não está em meu poder suspender a crença. O fato é que as crenças desse tipo não estão sob nosso controle voluntário. Não decidimos formá-las. Não se trata de eu olhar para o quintal, algo aparecer para mim de forma familiar e, na sequência, escolho acreditar na existência de uma árvore lá fora. Não escolho crer nisso ou não: apenas me vejo acreditando. No caso típico, o que acredito não está sob meu controle; isso de fato independe de mim. Em alguns casos especiais, talvez eu decida no que acreditar — talvez considere a evidência de alguma proposição e então decida acreditar nela —, mas mesmo nesses casos não está claro que isso acontece. O que de fato acontece, penso assim, é que decido considerar toda a evidência; e quando o faço, ou considero a evidência convincente em algum grau, segue-se que creio na proposição em questão, ou considero a probabilidade da proposição, ou não acho a evidência convincente, e não acredito na proposição. Porém eu realmente não acumulo a evidência e então decido se vou ou não acreditar. No entanto, se for esse o caso, as categorias morais — dever e obrigação etc. — não se aplicam de fato às crenças (aos atos de crer). Voltemos à minha crença na existência de uma árvore no meu quintal: sob as circunstâncias em questão, independe de mim formar essa crença ou não; apenas me vejo com ela. No entanto, como eu poderia contrariar o dever de ter essa crença? Se pulo de um avião a 3 mil pés de altura, caio em direção ao chão, não subo; e não dependeria de mim a direção a seguir. Eu não poderia contrariar meu dever quando caio em direção ao chão; cair não é algo que se possa avaliar

moralmente; não posso, com razoabilidade, ser elogiado ou censurado por cair em direção ao chão. E o mesmo não vale para a crença? Se não está em meu poder suspendê-la nessas circunstâncias, então, nessas circunstâncias, eu não poderia contrariar meu dever; portanto, nessas circunstâncias, eu não poderia estar injustificado. E o mesmo não vale para a crença religiosa? Sou teísta; acredito na existência de Deus; entretanto, jamais decidi ter essa crença. Ela sempre me pareceu verdadeira. Não é o caso que eu possa me livrar dessa crença só com um ato da vontade. justificação sem evidência Em todo o caso, evidencia-se com perfeição que uma pessoa pode estar justificada em aceitar toda a narrativa cristã; ou seja, é claro que uma pessoa poderia aceitar essa narrativa sem contrariar o dever. Não é difícil para o cristão — mesmo o crente sofisticado e instruído ciente de todas as objeções e correntes contrárias de opinião — estar justificado, nesse sentido, em sua crença; e isso independente de ele acreditar ou não em Deus (ou de forma mais específica, nas doutrinas cristãs) com base em evidências proposicionais. Considere uma crente. Ela está ciente das objeções feitas à fé cristã; leu e refletiu sobre Freud, Marx e Nietzsche (sem mencionar Flew, Mackie e Nielsen) e outros críticos da fé cristã ou teísta; sabe que o mundo contém muitas pessoas desprovidas da mesma crença. Ela não acredita com base em evidências proposicionais; portanto, sua crença se dá de modo básico. Ela poderia estar justificada em acreditar em Deus desse modo? A resposta parece muito fácil. Ela leu Nietzsche, mas sua posição não foi alterada pela acusação nietzschiana de que o cristianismo cultiva um tipo de pessoa fraca, queixosa, descontente, pusilânime, enganadora, e geralmente muito desagradável: a maioria dos cristãos que conhece ou sobre os quais ouviu falar — madre Teresa, por exemplo — não se adequa ao molde. Ela considera a atitude desdenhosa de Freud para com o cristianismo e a crença teísta apoiada em nada mais que fantasias implausíveis sobre a origem da

crença em Deus (Parricídio na horda primitiva?23 Isso é sério?); e ela vê só um pouco mais de substância em Marx. Embora esteja ciente dos argumentos teístas e pense que alguns deles não são sem valor, ela não acredita com base neles. Em vez disso, tem uma vida espiritual interior muito rica, do tipo descrito nas primeiras página de Religious Affections24 de Jonathan Edwards; parece-lhe que algumas vezes se torna ciente, capta um vislumbre, de um pouco da extrema beleza e amor do Senhor; ela está muitas vezes cônscia, como fortemente lhe parece, da obra do Espírito Santo em seu coração, confortando, encorajando, ensinando, guiando-a para aceitar as “grandes coisas do evangelho” (como Edwards as chama), ajudando-a a ver que o esquema magnífico da salvação planejado pelo Senhor não é só para outras pessoas, mas também para si. Depois de uma longa, difícil e cuidadosa reflexão, isso tudo lhe parece muito mais convincente que as acusações dos críticos. Ela então contraria o dever por acreditar no que acredita? Está sendo irresponsável? É certo que não. Poderia haver algo defeituoso nela, alguma disfunção não aparente à primeira vista. Apesar dos seus melhores esforços, ela poderia estar enganada, ser a vítima de ilusão ou de produto da imaginação. Poderia estar errada, desesperadamente errada, lamentavelmente errada, quando pensa nessas coisas; porém não deixa de cumprir qualquer dever discernível. Ela cumpre suas responsabilidades epistêmicas e faz o melhor que pode; está justificada. E isso não só é verdadeiro, mas é obviamente verdadeiro. Podemos sentir de algum modo oculto que ela não está justificada sem evidência; se for esse o caso, isso acontece porque apresentamos aqui outro conceito de justificação. Mas se for a justificação no sentido deontológico, no sentido de responsabilidade, de proceder em conformidade com o direito intelectual, ela sem dúvida está justificada. Pois como poderia merecer alguma censura ou ser irresponsável, se pensa sobre a questão com tanta seriedade quanto pode, do modo mais responsável possível, e ainda chega a essas conclusões? De fato, não importa a quais conclusões ela chegue, não estaria justificada

se chegasse a elas desse modo? Um paciente no hospital psiquiátrico Pine Rest Christian em Cutlerville, no estado de Michigan, uma vez se queixou de que não recebia o crédito merecido por inventar uma nova forma de reprodução humana: a “reprodução rotacional”, como ele a chamava. Esse tipo de reprodução não envolve sexo. Em vez disso, a mulher é suspensa do teto com uma corda e rodopiada em alta velocidade; o resultado é um grande número de crianças, suficiente para povoar uma cidade do tamanho de Chicago. De fato, ele afirmava ser exatamente como Chicago foi povoada. Ele afirmava entender que há um pouco de avareza na insistência em receber todo o crédito ao qual se tem direito, mas pensava que de fato não recebera o crédito suficiente por essa descoberta importante. Afinal, o que seria de Chicago sem ela? Ora, não há razão para pensar que esse homem desafortunado esteja transgredindo o dever epistêmico, sendo negligente em relação à exigência cognitiva, descuidado das obrigações epistêmicas ou cognitivamente irresponsável. Talvez ele esteja fazendo o melhor que pode para cumprir essas obrigações. De fato, podemos imaginar que seu principal objetivo na vida seja cumprir suas obrigações intelectuais e seus deveres cognitivos. Talvez ele seja cumpridor dos deveres in excelsis. Se for assim, ele estava justificado nessas crenças insanas, mesmo que sejam insanas, e mesmo que resultem de uma disfunção cognitiva. A fé cristã é irracional Admite-se que esse homem não precisa estar transgredindo o dever; ele está, ou pode estar, justificado. Ainda assim, há obviamente algo muito errado com toda a sua estrutura de crenças. O caso não é só com sua falsidade; em um sentido claro, elas são também irracionais. Em que sentido? De acordo com Aristóteles, o homem é um animal racional. Ou seja, os seres humanos, diferentemente das bactérias, por exemplo, dispõem da razão; eles podem pensar, formar crenças, aprender sobre o ambiente, usar argumentos de

vários tipos, e coisas similares. Agora suponha que consideremos a razão a faculdade ou o poder por meio da qual nós, seres humanos, somos capazes de fazer essas coisas. Como outras faculdades, a razão pode algumas vezes não funcionar com adequação; ela pode ter um mau funcionamento. E um modo de ela não funcionar com propriedade é produzindo crenças bizarras, como ocorre com o defensor da reprodução rotacional. Obviamente, a faculdade da razão produz crenças diferentes em diferentes circunstâncias. Ao olhar pela janela, formo a crença de que vejo um bando de pardais no quintal; ao assistir a um concerto, formo a crença de que os metais estão muito altos. Essas crenças seriam próprias nessas circunstâncias. Todavia, se no concerto formo a crença de que vejo um bando de pardais no quintal, ou se ao olhar pela janela formo a crença de que os metais estão muito altos, então algo errado se passou — meus poderes cognitivos estão falhando ou funcionam mal; minhas crenças, nessas circunstâncias, são irracionais. De modo geral, poderíamos afirmar a irracionalidade dessa crença em dadas circunstâncias, se nessas circunstâncias a pessoa, cujos poderes cognitivos estejam funcionando com propriedade, não sujeitos ao mau funcionamento, não formaria tal crença. E a crença é racional, em dadas circunstâncias, se a pessoa, cujos poderes cognitivos estejam funcionando com propriedade, poderia formar essa crença em tais circunstâncias. De acordo com essa definição, a crença na reprodução rotacional é irracional. Mas o que dizer da fé cristã? A pessoa com as faculdades cognitivas funcionando com propriedade poderia manter a fé cristã? Essa questão, penso, aproxima-nos de uma viável objeção de jure à fé cristã. Até aqui, vimos vários candidatos malsucedidos à objeção de jure: a fé cristã é arbitrária ou egoísta, não pode ser justificada, ou deficiente por não haver bons argumentos para apoiá-la etc. Vimos até aqui que essas objeções não se sustentam. Mas com a questão sobre a racionalidade chegamos mais perto de uma objeção de jure defensável à fé cristã. Aqui, penso que podemos começar pela consideração do tipo de objeção apresentada por Karl Marx (1818-1883)

e Sigmund Freud (1856-1939), os grandes “mestres da suspeita”, como são chamados algumas vezes. Essas objeções estão relacionadas de modo crucial à questão da garantia, a propriedade ou qualidade que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira. Discutiremos a garantia mais adiante: agora, daremos atenção às objeções apresentadas por Marx e Freud. Marx não tem muito a dizer sobre a religião, mas o que ele diz não pode ser considerado elogio: A base da crítica irreligiosa é que o homem faz a religião, e não que a religião faz o homem. Em outras palavras, a religião é a autoconsciência e o sentimento próprio do homem que ainda não se encontrou ou (tendo se encontrado) se perdeu mais uma vez. Contudo, o homem não é um ser abstrato instalado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o estado, a sociedade. Esse estado, essa sociedade, produzem a religião, o mundo da consciência pervertida, porque eles são o mundo pervertido. […] A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração do mundo sem coração, como é o espírito da situação não espiritualizada. Ela é o ópio do povo. A supressão da religião como felicidade ilusória do povo é necessária para a felicidade real. A demanda de abrir mão de ilusões sobre sua condição é a demanda de abrir mão da condição que requer ilusões. A crítica da religião é, portanto, embrionariamente a crítica do vale de lágrimas, seu halo é a religião.25

A ideia de Marx é que a religião surge da consciência pervertida do mundo. A crença religiosa consiste igualmente no resultado e na manifestação de um mau funcionamento cognitivo ou disfunção, a falta de saúde mental e/ou emocional. Essa disfunção cognitiva se deve à disfunção social; por viver em um ambiente social disfuncional e perverso, os poderes cognitivos do crente não funcionam com propriedade; eles não funcionam em uma situação saudável. Se o seu equipamento cognitivo funcionasse propriamente — por exemplo, se ele funcionasse de modo mais parecido com o equipamento cognitivo de Marx —, o crente não se encontraria sob o encanto dessa ilusão.

Em vez disso, ele veria o mundo e o nosso lugar nele com a compreensão clara de que estamos sós, e que qualquer conforto e ajuda terá de vir de nós mesmos. A objeção de Freud é diferente e interessante. Há vários aspectos da objeção de Freud à religião; em primeiro lugar, ele era fascinado pelo que via como a imagem darwiniana dos seres humanos primitivos vivendo em bando ou em rebanho, todas as fêmeas pertencendo a um macho poderoso, dominante e invejoso; um dia, seus filhos, sofrendo sob a condição de que todas as mulheres pertenciam ao pai, “juntaram-se e uniram-se para subjugar, matar e devorar o pai, que havia sido não só o inimigo deles, mas também o ideal que então tinham”.26 O remorso e a culpa sentidos, pensa Freud, são a fonte da religião. Talvez essa historieta terrível não chegue a ser uma contribuição séria para a história da religião. A objeção de Freud mais característica segue em outra direção. Notamos antes as crenças insanas do defensor da reprodução rotacional (veja acima, na p. 63); essas crenças, obviamente, são devidas ao mau funcionamento cognitivo. Contudo, há outras maneiras sutis pelas quais crenças não racionais ou irracionais podem ser formadas em nós. Em primeiro lugar, note que há processos ou mecanismos de formação que não visam à formação de crença verdadeira, mas sim à formação de crença com alguma outra propriedade — talvez contribuição para sobrevivência, para a tranquilidade da mente, ou para o bem-estar psicológico.27 Alguém com uma doença letal pode acreditar que suas chances de melhorar são muito maiores que as garantidas pelas estatísticas; os processos que produzem essa crença não visam a formar crenças verdadeiras, mas crenças que tornam mais provável a melhora de quem nelas crê. Um montanhista cuja sobrevivência depende da capacidade de saltar sobre uma fenda (quando escurece e esfria, e ele não porta nenhum equipamento de sobrevivência) pode formar uma estimativa extremamente otimista sobre a capacidade de saltar grandes distâncias; é mais provável que ele seja capaz de saltar a fenda (ou pelo menos

que tentará) se cogitar em sua capacidade para fazê-lo que o contrário. A maioria de nós forma estimativas sobre a própria inteligência, sabedoria, e força moral consideravelmente maiores que a garantida pela estimativa objetiva; sem dúvida, nesses aspectos nove entre dez pessoas se consideram bem acima da média. Além disso, uma pessoa pode estar cega (como se diz) pela ambição, deixando de enxergar que certo curso de ação é errado ou estúpido, mesmo que isso seja óbvio para todos. Aqui, a nossa ideia é que a pessoa ambiciosa em demasia não reconhece algo que de outro modo faria; o funcionamento normal de algum aspecto de seus poderes cognitivos é inibido, interrompido ou impedido pela ambição excessiva. Também é possível estar cego por conta da lealdade, continuando a acreditar na honestidade do amigo muito depois que a consideração objetiva da evidência tenha ditado a mudança relutante de atitude. Pode-se estar cego, além disso, por conta de ganância, amor, medo, luxúria, ódio, orgulho, aflição, pressão social, e milhares de outros motivos. Nas polêmicas, é comum atacar a posição de uma pessoa afirmando que a negação do que ela pensa é completamente óbvio (i.e., tal que qualquer pessoa que pense direito e funcione com propriedade pode perceber de imediato ser esse o caso); diz-se então que a oposição dessa verdade óbvia é desonestidade (pois, de fato, não acredita no que diz [afinal, como poderia?]) ou cegueira em função de alguma outra coisa — talvez relutância à mudança, aversão a novas ideias, ambição pessoal, sexismo, racismo, homofobia, e assim por diante. Com uma tendência similar, Richard Dawkins insiste: “É seguro dizer que se você encontrar alguém que afirma não acreditar na evolução, essa pessoa é ignorante, estúpida ou insana (ou má, porém prefiro não considerar isso)”.28 Ao que parece, Dawkins considera a verdade da evolução totalmente clara e óbvia para qualquer pessoa não excessivamente ignorante, não tão estúpida para seguir os argumentos e sã, i.e., tal que suas faculdades racionais funcionem de forma apropriada; portanto, é tão óbvio que qualquer pessoa que não esteja (maldosamente) mentindo teria de admitir a crença na

evolução. Apela-se em todos esses casos para mecanismos capazes de anular ou cancelar o que as nossas faculdades comumente produziriam. Assim, percebemos haver pelo menos dois modos possíveis de uma crença ser irracional: ela pode ser produzida por faculdades com mau funcionamento ou por processos cognitivos que visam outra coisa além da verdade. Isso nos leva até a conhecida explicação freudiana das origens psicológicas da crença em Deus: Essas [as crenças religiosas] são apresentadas como doutrinas, não são produtos da experiência ou resultados do pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e persistentes desejos da humanidade. O segredo da força das crenças religiosas consiste na força desses desejos. Como já sabemos, as impressões terríveis de desamparo na infância dão origem à necessidade de proteção — de proteção por meio do amor — fornecida pelo pai; e o reconhecimento desse desamparo dura a vida toda, tornando necessário apegar-se à existência de um pai, mas dessa vez um pai mais poderoso. Assim, a regra benevolente da Providência divina diminui o medo dos perigos da vida; o estabelecimento da ordem moral para o mundo assegura a realização das demandas de justiça, não realizadas com muita frequência na civilização humana; e o prolongamento da existência humana na vida futura oferece uma estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo terão lugar.29

A ideia de Freud é que a crença em Deus surge do mecanismo psicológico chamado por ele “realização de desejo” ou pensamento ilusório; a natureza se levanta contra nós, fria, impiedosa, implacável, cega quanto à nossa necessidade e vontade. Ela gera dano, medo e dor; no fim, demanda nossa morte. Paralisados e atemorizados, inventamos (de modo inconsciente, óbvio) um Pai celestial que excede os pais terrenos em poder e conhecimento, em bondade e benevolência; a alternativa seria cair em depressão, estupor, paralisia e, por fim, morrer. Portanto, de acordo com Freud, a crença em Deus é uma ilusão: algo que surge do mecanismo de realização do desejo.30 A ilusão não é necessariamente falsa; mas Freud a considera uma ilusão à qual podemos resistir, e não lhe resistir implica irresponsabilidade intelectual:

Caso haja um caso de desculpa não convincente, encontramo-nos diante dele. Ignorância é ignorância: nenhum direito de acreditar em algo pode ser daí derivado. Em outras questões, nenhuma pessoa razoável se comportará com tanta irresponsabilidade ou ficará satisfeita com razões fracas a respeito do ponto de vista e do lado que escolhe. […] Quando estão em jogo questões sobre religião, as pessoas são culpadas de todo tipo possível de desonestidade e maus hábitos intelectuais.31

Depois de perceber que a crença religiosa se origina do pensamento ilusório, presumivelmente não a acharemos mais atrativa; talvez, como ocorre com Freud, isso induza em nós uma certa piedade pelas almas ignorantes que jamais serão elevadas à nossa altura iluminada: Tudo se torna tão claramente infantil e alheio à realidade que é doloroso para uma pessoa de atitude humanitária em relação à humanidade pensar que a grande maioria dos mortais jamais será capaz de superar essa perspectiva da vida.32

Freud e Marx igualmente criticam a religião, mas é interessante que o façam de modos diferentes. A afirmação de Marx preconiza o surgimento da crença religiosa a partir de uma disfunção cognitiva; como resultado de viver na sociedade disfuncional, as faculdades cognitivas do crente não funcionam de maneira adequada. Freud, por sua vez, não afirma que o crente sofre de uma disfunção cognitiva. Ele afirma que a crença em Deus é uma ilusão, mas ela conta com alguma utilidade, em particular ao permitir a vida neste mundo frio, triste e miserável em que nos encontramos. Alguém com as faculdades cognitivas funcionando propriamente pode muito bem formar a crença religiosa. No entanto, há um problema com ela: não é produzida por faculdades cognitivas com o propósito de fornecer crenças verdadeiras sobre o mundo. A percepção é a faculdade com esse propósito. Porém o mesmo não é verdade a respeito da realização de desejo; o propósito da realização de desejo é permitir lidar com o mundo hostil e indiferente. E esse mecanismo age ao projetar o Pai celestial invisível, alguém que cuida de nós de verdade e leva nossos interesses em consideração.

A garantia e a objeção de Freud e Marx Freud e Marx nos levam à versão mais promissora da objeção de jure: a crença religiosa — a crença em Deus, por exemplo — carece de garantia. Usarei o termo “garantia” como o nome de uma propriedade que distingue o conhecimento da mera crença verdadeira. E visto que essa propriedade tem graus, precisamos apresentá-la do seguinte modo: a garantia é a propriedade que em um grau suficiente consiste na distinção entre o conhecimento e a mera crença verdadeira. É bastante óbvio que se possa manter uma crença verdadeira que não consiste em conhecimento. Um exemplo: você viajou 3 mil quilômetros até North Cascades para escalar; e está ansioso para fazê-lo. Sendo um incurável otimista, acredita que amanhã será um dia limpo, ensolarado e quente, apesar da previsão do tempo, que anuncia ventos fortes e uma mistura desagradável de chuva, granizo e neve. Os meteorologistas estavam errados e o céu amanhece limpo e ensolarado: sua crença era verdadeira, mas não consistia em conhecimento. O que é preciso, além da verdade, para uma crença consistir em conhecimento? Usarei o termo “garantia” para nomear essa propriedade, seja ela qual for. 1. Função própria Minha sugestão começa com a ideia de que a crença só conta com garantia se for produzida por faculdades cognitivas em pleno funcionamento, não sujeitas a qualquer desordem ou disfunção. A noção de função própria é essencial aos principais modos de pensar a respeito do conhecimento. Mas essa noção se liga de modo inextricável a outra: a noção de projeto de design. Os seres humanos e seus órgãos são feitos de tal forma que existe um modo de funcionamento, que se supõe que exerçam sua função, que o façam quando atuam direito; é assim que trabalham quando não há disfunção. O coração deve trabalhar de certo modo: por exemplo, seu pulso deve bater

entre 50 e 80 vezes por minuto quando se está em repouso, e (se você tiver menos de 40 anos) atingir o número máximo de 180-200 batidas por minuto quando fizer exercícios pesados. Se seu pulso em repouso for de 160, ou se não elevar o seu pulso acima de 60 batidas por minuto, não importa quanto você se exercite, o coração não funciona com correção. (Mas o pato selvagem com a pulsação em repouso de 160 batidas por minuto pode ser perfeitamente saudável). Para iniciar, não precisamos entender que as noções de projeto de design e o modo como algo deve funcionar acarretam um desígnio ou propósito consciente. Não afirmo que os organismos foram criados por um agente consciente (Deus) de acordo com um projeto de design de modo análogo à projeção e confecção dos artefatos humanos. Não suponho, a princípio, pelo menos, que ter um projeto de design implica ter sido criado por Deus ou outro agente consciente.33 Em vez disso, desejo ressaltar algo que quase todos nós, teístas ou não, acreditamos: um órgão humano ou sistema funciona de determinada forma quando tudo está bem, quando age como supostamente deve funcionar; e esse modo de funcionar é dado por seu design ou projeto de design. A função própria e o design estão associados à noção de propósito. Os vários órgãos e sistemas do corpo (e o modo como funcionam) contam com propósitos próprios: a função ou propósito do coração é bombear o sangue; do sistema imunológico, combater doenças; dos pulmões, fornecer oxigênio; e assim por diante. Se o design for bom, quando o órgão ou sistema funciona com correção, i.e., de acordo com o projeto de design, o propósito será realizado. Decerto, o projeto de design dos seres humanos incluirá especificações a respeito do nosso sistema cognitivo ou faculdades cognitivas, como inclui especificações a respeito dos sistemas e órgãos não cognitivos. Como o restante dos nossos órgãos e sistemas, nossas faculdades cognitivas podem funcionar bem ou mal; elas podem apresentar defeitos ou não. Elas também trabalham de certo modo quando funcionam com correção — e de

determinado modo a fim de realizar seu propósito. Por isso, o primeiro elemento em nossa concepção de garantia (assim afirmo) é que a crença oferece garantia para a pessoa apenas no caso de suas faculdades funcionarem da maneira adequada; do contrário, não estão sujeitas a disfunções relevantes, quando produzem a crença. 2. Ambiente adequado Obviamente, muitos sistemas do seu corpo são planejados para funcionar em certo tipo de ambiente. Você não pode respirar debaixo d’água; seus músculos se atrofiam na gravidade zero; é impossível receber oxigênio suficiente no alto do monte Evereste. Sem dúvida, o mesmo se pode dizer sobre suas faculdades cognitivas; elas também realizarão o propósito apenas se funcionarem no ambiente para o qual foram planejadas (por Deus ou pela evolução). Assim, não funcionarão bem no ambiente (em algum outro planeta, por exemplo) em que a radiação sutil impeça a função da memória. 3. Visar à crença verdadeira Mas isso não é suficiente. É possível que a crença seja produzida por faculdades cognitivas em plena função no ambiente para o qual foram planejadas, mas, não obstante, carecer de garantia; as duas condições mencionadas antes não são suficientes. Pensamos que o propósito ou a função das faculdades produtoras de crença é nos fornecer a crença verdadeira (ou verossímil). No entanto, como vimos antes em conexão com as objeções de Freud e Marx, é possível que o propósito ou a função de algumas faculdades produtoras de crença consista na produção de crenças com alguma outra virtude — talvez a virtude de permitir lidar com este mundo frio, cruel e ameaçador, ou de nos capacitar a superar uma situação perigosa ou doença mortal. Portanto, precisamos acrescentar que a crença em questão seja produzida por faculdades cognitivas com o propósito de produzir a crença verdadeira.

4. Visar com sucesso à crença verdadeira Mesmo isso não é suficiente. Pode-se observar o motivo ao refletir sobre uma fantasia de David Hume: Este mundo, por tudo o que sabe, é muito defeituoso e imperfeito se comparado a um padrão superior; e se trata apenas da primeira tentativa rudimentar de uma divindade pueril, que depois o abandonou, envergonhada pelo fraco desempenho; é apenas a obra de uma divindade dependente e inferior; objeto de riso dos seus superiores: a produção da velhice e senilidade de alguma divindade decrépita e está, desde sua morte, entregue ao acaso, movendo-se pelo primeiro impulso e força ativa que recebeu.34

Desse modo, imagine que uma jovem divindade aprendiz e sem orientação planeja construir seres cognitivos, capazes de crer e conhecer. A imaturidade e incompetência triunfam; o projeto sofreu problemas graves. Na verdade, em alguns pontos do projeto, quando as faculdades funcionam exatamente como planejadas, o resultado é a crença absurdamente falsa: assim, quando as faculdades cognitivas dos seres funcionam de acordo com o design, elas não raro confundem alazão e rabecão, formando crenças estranhas: cowboys no velho oeste montavam rabecões e corpos são transportados em alazões. Essas crenças são produzidas por faculdades cognitivas que funcionam com precisão no tipo adequado de ambiente de acordo com o design que visa à verdade, mas ainda carecem de garantia. O que falta? Claramente, o acréscimo é que o design seja um bom projeto, que vise a verdade, tal que haja alta probabilidade de que a crença produzida seja verdadeira (ou próxima da verdade). Assim, em suma: uma crença tem garantia para a pessoa S apenas se essa crença for produzida em S mediante faculdades cognitivas em pleno funcionamento (não sujeitas a disfunções) no ambiente cognitivo adequado para as faculdades cognitivas de S, de acordo com o projeto de design que visa com sucesso à verdade.

De volta à objeção Freud e Marx Estamos agora prontos para voltar à objeção Freud e Marx: ela afirma de fato que a crença teísta carece de garantia. Para Freud, a crença teísta é produzida por faculdades cognitivas que funcionam com adequação, mas o processo de produção — o pensamento ilusório — não tem a produção da crença verdadeira como propósito; em vez disso, ele se volta para a permissão para lidar com o mundo cruel e ameaçador em que nos encontramos. Portanto, a crença teísta não satisfaz a terceira condição da garantia. Ela não é mais respeitável, em sentido epistêmico, que proposições selecionadas ao acaso. Trata-se de uma superstição sem fundamento. A perspectiva de Marx é similar. Em primeiro lugar, ele considera a crença teísta e religiosa produzida por faculdades cognitivas que não funcionam de modo adequado. Elas são disfuncionais; e a disfunção se deve a um tipo de perversão na estrutura social, um tipo de mau funcionamento social. Portanto, a crença religiosa não satisfaz a primeira condição da garantia; portanto, a pessoa intelectualmente sadia irá rejeitá-la. Além disso, Marx considera que a pessoa com as faculdades cognitivas em pleno funcionamento e com conhecimento do que se sabia em meados do século XIX considerará o materialismo muito provavelmente verdadeiro; nesse caso, a fé cristã e teísta é muito provavelmente falsa. Assim, Marx se juntaria a Freud na alegação de que a fé cristã e teísta não tem garantia, que se trata de uma superstição sem fundamento, e muito provavelmente falsa. Portanto, Freud e Marx criticam a irracionalidade da crença religiosa; seus argumentos afirmam que a crença religiosa carece de garantia. Examinaremos essa afirmação no próximo capítulo.

16 Cf. Dennett & Plantinga, Science and Religion: Are They Compatible? (New York: Oxford University Press, 2011), p. 41ss. 17 Cf. Anthony Kenny, The God of the Philosophers (Oxford: Clarendon Press), 1979. 18 New York: Oxford University Press, 2011. 19 Religious Diversity. New York: Harper & Row, 1976, p. 14. 20 Religious Belief and Religious Skepticism. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1982, p. 86. 21 An Essay Concerning Human Understanding, A. D. Woozley (org.). New York: World Publishing, 1963), IV.xvii.11. [Publicado em português com o título: Ensaio sobre o entendimento humano, São Paulo: Martins Fontes, 2012.] 22 As expressões do inglês “justified”, “justification”, e similares, remontam pelo menos à King James Version (KJV) [Versão do rei Tiago]. Nesse sentido, estamos justificados se a redenção dos pecados mediante o sofrimento de Cristo se aplica a nós, de tal modo que não somos agora censuráveis e os nossos pecados foram compensados, removidos, obliterados, afastados; não somos mais culpados; é como se (no que diz respeito à culpa) os nossos pecados jamais tivessem existido. Esse é um sentido próximo do que Locke parece ter em mente quando usa o termo justification. 23 Veja na sequência, p. XXX, e também “Um Estudo Autobiográfico”, no volume 20 da Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1998. 24 A Treatise Concerning Religious Affections, John E. Smith (org.). New Haven: Yale University Press, 1959 [1746], p. 271. 25 “Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Right”, In: Karl Marx & Friedrich Engels, On Religion, Reinhold Niebuhr (org.). Chico, CA: Scholar’s Press, 1964, p. 41-2. Grifos do autor. Engels substancialmente ecoa as observações de Marx. [Publicado em português com o título: Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, São Paulo: Boitempo, 2010.] 26 Veja a n. 8. 27 John Locke escreveu o seguinte em Essay Concerning Human Understanding: “Não seria insuportável a um professor sábio ter a autoridade de quarenta anos — estabelecida pelo trabalho duro com grego e latim, com não pouco dispêndio de tempo e velas, confirmada pela tradição geral, e por uma barba reverenciável — superada em um instante por um novelista pretensioso? (E tal que seu rosto enrubesceria?) Alguém pode esperar que ele deva

ser levado a confessar que sua docência ao longo trinta anos consistiu em erro e engano; e que lhes vendeu palavras duras e ignorância ao preço alto demais?” (IV.xx.11). 28 New York Times (April 9, 1989), seção 7, p. 34. Daniel Dennett supera Dawkins: afirmando que quem nutre dúvidas sobre a evolução é “indesculpavelmente ignorante” (A perigosa ideia de Darwin [São Paulo: Rocco, 1998]), ou seja, essa pessoa é ignorante e faz algo errado. Você acorda no meio da noite, pensa sobre toda a vasta e extensa teoria da evolução e se pergunta: “Ela pode ser verdadeira?”. Bum! Você é um ignorante rematado! 29 The Future of an Illusion, James Strachey (transl.). New York & London: Norton, 1961, p. 30. Essa obra foi originariamente publicada em alemão com o título Die Zukunft einer Illusion (Leipzig & Zurich: Internationaler Pscyhoanalytischer Verlag, 1927). [Publicado em português com o título: O futuro de uma ilusão, São Paulo, LPM, 2010.] 30 E de tal modo que ele (ou os seus produtos) se assemelham ao sensus divinitatis de Calvino (Capítulo 3, na sequência); v. tb. Moses and Monotheism de Freud (New York: Vintage, 1939), p. 167 e seguintes. [Publicado em português com o título: O homem Moisés e a religião monoteísta. São Paulo: LPM, 2014.] 31 The Future of an Illusion, p. 32. 32 Civilization and Its Discontents, Joan Riviere (transl.). London: Hogarth Press, 1949, p. 23. [Publicado em português com o título: O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.] 33 Embora eu argumente no livro Warrant and Proper Function, cap. 11, que não há explicação naturalista viável para a função própria. 34 Dialogues Concerning Natural Religion, Nelson Pike (org.). Indianapolis & New York: Bobs-Merrill, 1970, p. 53. [Publicado em português com o título: Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.]

capítulo 3 Garantia da crença em Deus

Pois o que se pode conhecer sobre Deus é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, seu eterno poder e divindade, são vistos claramente desde a criação do mundo e percebidos mediante as coisas criadas... — Paulo Sem evidência suficiente, Deus! Sem evidência suficiente! — Bertrand Russell

Vimos que a objeção de jure à fé cristã (ou teísta) consiste na afirmação da irracionalidade dessa crença, o caráter não razoável, injustificado, ou de algum outro modo sujeito à crítica epistêmica hostil. Ela contrasta com a objeção de facto, de acordo com a qual a crença em questão é falsa. Também vimos que a objeção de jure é mais bem entendida como a afirmação de que a fé cristã ou teísta é irracional no sentido de se originar de uma disfunção cognitiva (Marx) ou de uma função cognitiva própria que visa a outra coisa além da verdade (Freud) — talvez o conforto ou a capacidade de lidar com o mundo doloroso em que nos encontramos. Ou seja, afirma-se que essa crença não se origina nas faculdades que funcionam com correção no ambiente adequado, e de acordo com o design que visa com sucesso à produção de crenças verdadeiras. Ou ainda: acusa-se que a crença teísta e cristã não dispõe de garantia. Como resposta a essa objeção apresentarei neste capítulo, em primeiro lugar, um modelo baseado em afirmações de Tomás de Aquino e João Calvino — sobre como a crença teísta pode dispor de garantia. Tão logo vejamos que a crença teísta pode ser garantida, poderemos também ver a

futilidade da objeção Freud e Marx e de seus sucessores contemporâneos. No capítulo seguinte, estenderei o modelo para incluir com especificidade o caso da fé cristã.

O modelo Aquino e Calvino Entendo que apresentar um modelo de proposição significa oferecer um estado de coisas possível em que essa proposição é verdadeira, mostrando então sua plausibilidade. Portanto, tentarei mostrar como a crença teísta, de forma contrária ao que disseram Freud e Marx, poderia dispor de garantia. E aqui seguirei Tomás de Aquino e João Calvino; por isso, o “modelo Aquino e Calvino”. Aquino e Calvino concordam a respeito da afirmação da existência de um tipo de conhecimento de Deus (e quem pode rejeitar alguma coisa a respeito da qual Aquino e Calvino estão de acordo?). Meu modelo se baseia na versão da proposta de Calvino, não por pensar que Calvino seja preferível em relação a Aquino, mas porque se pode considerar sua proposta um tipo de meditação e desenvolvimento proveitoso do tema sugerido por Aquino. De acordo com Aquino: “Foi implantado em nós, pela natureza, o conhecimento geral e confuso da existência de Deus”.35 Nos capítulos iniciais de A instituição da religião cristã,36 Calvino concorda: há um tipo de conhecimento natural de Deus. Ele estende esse tema com sugestão a respeito de como as crenças a respeito de Deus podem ter garantia e consistir em conhecimento. Suas palavras podem ser vistas como um desenvolvimento da observação de Aquino; porém, podem ser consideradas também a ampliação do que o apóstolo Paulo diz em Romanos 1.18-20: Pois a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens, que impedem a verdade pela sua injustiça. Pois o que se pode conhecer sobre Deus é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, seu eterno poder e divindade, são vistos claramente desde a criação do mundo e percebidos mediante as coisas criadas, de modo que esses homens são indesculpáveis.37

Para nossos propósitos, a afirmação básica de Calvino afirma existir um tipo de tendência humana natural instintiva, a disposição de formar crenças

sobre Deus sob uma variedade de condições e em uma variedade de situações. Ao comentar a passagem citada, ele declara: Dizendo que Deus tornou manifesto, ele quer dizer que o homem foi criado para ser espectador deste mundo formado, e que lhe foram dados olhos para que pudesse observar este quadro tão belo, e ser conduzido ao próprio autor.38

Em A instituição, ele desenvolve o pensamento: Está fora de discussão que é inerente à mente humana, certamente por instinto natural, algum sentimento da divindade. A fim de que ninguém recorra ao pretexto da ignorância, Deus incutiu em todos uma certa compreensão de sua deidade […] para que, quando todos, sem exceção, entenderem que há um Deus e são sua obra, sejam condenados, por seu próprio testemunho, por não o cultuarem e não consagrarem a própria vida à vontade d’Ele. […] Não obstante, nenhuma nação, afirma o gentio, é tão bárbara, nenhum povo é tão selvagem que não se convença da existência de um Deus [Cícero, Sobre a natureza dos deuses]. […] Então, de tal perspectiva, desde o começo do mundo, nenhuma cidade, nenhuma casa existiria que pudesse carecer de religião. Nisso há uma tácita confissão: está inscrito no coração de todos um sentimento de divindade. (I.III.1)39

Calvino prossegue e afirma que muitas rejeições de Deus, ou tentativas de seguir sem ele, são de fato testemunhos adicionais da inclinação natural: … Sempre estará estabelecido que foi gravado na mente humana um sentimento de divindade que jamais será apagado, tanto seja naturalmente inata em todos a convicção de que há um Deus como esteja profundamente arraigada tal convicção na própria medula dos homens. É rico testemunho disso a teimosia dos ímpios que, lutando furiosamente, não se podem desembaraçar do medo de Deus. [...] Donde se tem que essa não seja uma doutrina a ser ensinada nas escolas em primeiro lugar, mas que qualquer um é para si um mestre dessa doutrina desde o útero, e a própria natureza não permite que ninguém a esqueça, ainda que muitos apliquem todas as forças nisso. (I.III.3)40

Presumirei que Calvino sugere a existência de um tipo de faculdade (como a visão ou a audição) ou um mecanismo cognitivo — chamado por ele sensus

divinitatis (ou senso da divindade) — que produz em nós crenças a respeito de Deus em ampla variedade de circunstâncias. Essas circunstâncias disparam a disposição de formar as crenças em questão; dão ocasião ao surgimento dessas crenças. Sob essas circunstâncias, desenvolvemos ou formamos crenças teístas. Mais exatamente, as crenças são formadas em nós nessas circunstâncias; no caso típico, não escolhemos tê-las de modo consciente. Em vez disso, nós as percebemos, como notamos ter crenças perceptivas e mnêmicas. (Você não decide e não pode decidir ter essa crença, adquirindo-a então por esse meio.)41 Essas passagens sugerem que a consciência de Deus é natural, disseminada, e não é fácil de esquecer, ignorar ou destruir. Setenta anos de esforços marxistas determinados, mas fracassados, de erradicar o cristianismo da antiga União Soviética tendem a confirmar isso.42 Pode parecer que Calvino considere o conhecimento de Deus inato e, por isso, que dispomos dele desde o nascimento “desde o útero”. Mas talvez Calvino não queira de fato endossar o conceito que, por exemplo, a criança de um ano tenha esse conhecimento. A capacidade para o conhecimento é de fato inata, mas se requer um pouco de maturidade antes de ele se manifestar de maneira efetiva. A capacidade para o conhecimento aritmético é inata; porém não se segue daí que se sabe aritmética elementar desde o útero; o conhecimento exige um pouco de maturidade. Minha conjectura é que Calvino considera o mesmo em relação ao conhecimento divino; uma pessoa não dispõe do conhecimento de Deus desde o útero, mas da capacidade para esse conhecimento. Independentemente do pensamento efetivo de Calvino, esse é o meu modelo; e nele o desenvolvimento do sensus divinitatis exige certa maturidade (embora algumas vezes ele se manifeste de verdade em crianças muito novas). Em uma montanha, a quase 4 mil metros de altitude, você observa a glória reluzente dos céus, pensa sobre as vastas distâncias, e se vê tomado de admiração e espanto — e também da crença de que Deus deve ser realmente

grande para ter criado a magnífica multidão celeste. Mas aqui não é só a variedade da multidão celeste que prende o olhar de Calvino: Uma vez que o fim último da vida bem-aventurada consiste no conhecimento de Deus, para que a ninguém tenha sido obstruído o caminho da felicidade, Deus não só incutiu na mente dos homens aquilo que chamamos semente da religião, mas tornou a si de tal modo evidente no conjunto da obra do mundo e com tal clareza se mostra cotidianamente, que eles não podem abrir os olhos sem que sejam obrigados a contemplá-lo. […] Mas Ele imprimiu, em cada uma de suas obras, certas marcas de sua glória […] para onde quer que lancemos os olhos, não há uma pequenina parte do mundo na qual não irrompam ao menos algumas centelhas de sua glória. (A instituição I.V.1)43

A ideia de Calvino é que o funcionamento do sensus divinitatis é disparado ou ocasionado por uma ampla variedade de circunstâncias, incluindo-se, em particular, algumas glórias da natureza: a beleza magnífica e impressionante do céu noturno; o eterno choque e estrondo da arrebentação que ressoa profundamente em nós; a grandeza majestosa das montanhas (as North Cascades vistas do Whatcom Pass, por exemplo); a presença antiga, ameaçadora, do deserto australiano; o estrondo de um grande cachoeira. Contudo, não é só a grandiosidade e majestade que contam; ele diria o mesmo do jogo sutil da luz do sol sobre um campo na primavera, ou a beleza delicada e articulada de uma pequena flor, ou folhas de álamos reluzindo e dançando com a brisa: “não há uma pequenina parte do mundo”, ele afirma, “na qual não irrompam ao menos algumas centelhas de sua glória”. Calvino acrescentou outros tipos de circunstâncias: a consciência da desaprovação divina por fazer o que é errado ou vulgar, e a percepção do perdão divino após a confissão e o arrependimento. As pessoas em grande perigo se voltam de forma instintiva para o Senhor, pedindo socorro e apoio. (Elas dizem que não há ateus nas trincheiras). Em uma bela manhã de primavera (os pássaros cantando, o céu e a terra acesos e vivos em toda a glória, o ar fresco e frio, o topo das árvores cintilando no sol), um hino

espontâneo de gratidão ao Senhor — agradecimento pela situação em que você se encontra e pela própria existência — pode surgir em sua alma. De acordo com o modelo, portanto, há muitas circunstâncias, e circunstâncias de tipos muito diferentes, que podem invocar ou ocasionar a crença teísta.

Basicalidade De acordo com o modelo Aquino e Calvino, não se chega a esse conhecimento natural de Deus por inferência ou argumento (por exemplo, as famosas provas teístas da teologia natural), mas de forma muito mais direta. As manifestações do sensus divinitatis não são inferências simples de circunstâncias que disparam sua operação. A pessoa não contempla primeiro o céu noturno, repara em sua grandiosidade, e conclui que Deus deve existir: esse seria um argumento muito fraco. Não é o caso que a pessoa note alguma característica do deserto australiano — por exemplo, sua antiguidade e periculosidade — e chegue à conclusão da existência divina. Essas crenças surgem em nós a partir da percepção do céu noturno, na vista da montanha ou da pequena flor. Elas surgem nessas circunstâncias, e não são conclusões delas retiradas. Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento proclama a obra das suas mãos (Sl 19), mas não servem como premissas de um argumento. Nesse aspecto, o sensus divinitatis se assemelha às faculdades de percepção, memória e conhecimento a priori. Considere a primeira dessas faculdades. Olho pela janela para meu jardim; observo o florescimento dos lírios brancos. Não noto que algo me parece complicado (que minha experiência tenha certo caráter complicado) e então proponho um argumento partindo de que algo me pareça desse modo até chegar à conclusão da existência real de lírios brancos florescendo no jardim. (Toda a história da filosofia moderna até Hume e Reid mostra quão inconclusivo seria esse argumento). Em vez disso, do fato de algo parecer desse modo (e dado meu treinamento prévio), surge de modo espontâneo em mim a crença no florescimento dos lírios brancos. Comumente, essa crença será básica, no sentido de que ela não é aceita a partir da base evidencial de outras proposições. O mesmo se pode dizer acerca da memória. Você me pergunta o que comi no café da manhã; penso

por um momento e então me lembro: panquecas com mirtilos. Não argumento sobre o fato de parecer que me lembro de ter comido panquecas com mirtilos no café da manhã para concluir que realmente comi panquecas no café da manhã. Em vez disso, você pergunta o que comi no café da manhã e a resposta apenas vem à minha mente.

Basicalidade própria com respeito à garantia Pode-se dizer que a crença de Sam em p é propriamente básica com respeito à garantia se, e somente se, Sam aceitar p de modo básico, e, além disso, p, aceito desse modo, tem garantia para Sam. As crenças perceptivas são propriamente básicas nesse sentido: são aceitas de modo básico, e muitas vezes têm garantia quando assim aceitas. (Elas, não raro, são produzidas por faculdades cognitivas que funcionam com propriedade no ambiente cognitivo adequado de acordo com o design que visa com sucesso à verdade). O mesmo se pode dizer sobre as crenças da memória. Obviamente, algumas vezes as crenças são aceitas de modo básico, mas sem garantia. Como vimos antes, isso pode ocorrer por conta de disfunção cognitiva, ou ao fato de a faculdade cognitiva ser impedida por condições como ódio, luxúria, ambição, inveja e similares; pode ser também o caso que parte considerável do plano de design da produção da crença não vise à verdade, mas, em vez disso, alguma outra coisa (a sobrevivência, por exemplo, ou a autoestima). Vimos também que a crença básica em Deus pode ser justificada; pode-se crer em Deus desse modo básico sem a transgressão de deveres ou obrigações epistêmicas. Poderíamos afirmar que a crença teísta pode ser propriamente básica com respeito à justificação. De acordo com o modelo Aquino e Calvino que apresento, a crença teísta produzida pelo sensus divinitatis pode também ser propriamente básica com respeito à garantia. Não se trata só de que o crente em Deus proceda em conformidade com o direito epistêmico de aceitar a crença teísta de modo básico; mais que isso, essa crença em Deus pode contar para ele como garantia — garantia muitas vezes suficiente para o conhecimento. O sensus divinitatis é uma faculdade (poder ou mecanismo) de produção de crença que sob as condições certas produz a crença não baseada em outras proposições. Nesse modelo, nossas faculdades cognitivas foram projetadas e

criadas por Deus; portanto, o design é um plano no sentido literal e paradigmático. Trata-se de um plano sobre nossos modos de funcionamento cognitivo, e foi desenvolvido e instituído por um agente consciente e inteligente. O propósito do sensus divinitatis é permitir crenças verdadeiras a respeito de Deus; e quando funciona propriamente, ele as produz. Portanto, essas crenças podem satisfazer as condições de garantia; quando as satisfazem, sendo fortes o suficiente, consistem em conhecimento. Por último, de acordo com o modelo Aquino e Calvino, esse conhecimento natural sobre Deus foi em muitos casos (ou na maioria deles) comprometido, enfraquecido, reduzido, suavizado, coberto e impedido pelo pecado e suas consequências. Devido ao pecado, o conhecimento divino pelo sensus divinitatis, anterior à fé e à regeneração, é limitado no alcance e em parte inibido. A faculdade em si mesma pode estar doente e, assim, incapacitada em parte ou totalmente. Existem doenças cognitivas: há cegueira, surdez, incapacidade de diferenciar o certo do errado, insanidade; e há condições análogas a essas em relação à operação do sensus divinitatis. Como vimos, de acordo com Marx e os marxistas, a crença em Deus resulta de uma doença cognitiva, de uma disfunção. Da perspectiva deles, a crença em Deus é irracional; as faculdades racionais não funcionam como deveriam. Mas o modelo Aquino e Calvino vira Freud e Marx de ponta-cabeça;44 nesse modelo, o descrente tem uma disfunção epistêmica; a falta da crença em Deus resulta de algum tipo de disfunção do sensus divinitatis.

A crença em Deus é basicamente garantida? Se falsa, provavelmente não Como vimos, Freud não argumenta de fato que a crença teísta seja desprovida de garantia se for presumida de modo básico: ele parece entender que essa crença é falsa, e então infere com muita rapidez, e de maneira casual, tratar-se de um produto da realização do desejo, e, por isso, não conta com garantia. Nesse ponto (a despeito da aparência de descuido) talvez os instintos de Freud estejam certos: argumentarei que se a crença teísta for falsa, e se for presumida de modo básico, então ela provavelmente não tem garantia. Por que pensar desse modo? Em primeiro lugar, note que a crença falsa pode algumas vezes contar com certo grau de garantia — comumente isso ocorre quando a faculdade em questão funciona nos limites da capacidade. Você vê uma cabra-montês em um rochedo distante e erroneamente pensa enxergar chifres nela; ocorre que a distância é muito grande para observar com nitidez, e a verdade é que ela não tem chifres. Sua crença é falsa, mas tem um certo grau de garantia. Você é um físico de partículas e erroneamente acredita que um certo modelo subatômico está próximo da verdade: trabalhando nos limites do domínio cognitivo para o qual as nossas faculdades são projetadas, mais uma vez, sua crença é falsa, mas não desprovida de garantia. Há outra consideração mais importante; pode-se aproximar dela do seguinte modo. A crença só dispõe de garantia se o processo cognitivo que a produz visa com sucesso à verdade — ou seja, apenas caso haja a alta probabilidade de a crença produzida por esse processo ser verdadeira (contanto que o processo esteja funcionando da forma certa no tipo de ambiente epistêmico para o qual foi projetado). Mas a crença pode ser falsa, mesmo quando produzida por um processo ou faculdade que visa com sucesso à verdade. Poderia ser o caso que, em uma determinada ocasião, um instrumento produza uma leitura falsa — ainda que haja a probabilidade

substancial de a leitura produzida ser verdadeira. Considere, por exemplo, que um barômetro confiável pode apresentar uma falsa leitura devido à confluência de circunstâncias não usuais e improváveis. (Há uma grande e repentina queda de pressão; entretanto, o barômetro ainda registra 29,72 porque não houve tempo suficiente para ele reagir à mudança). O mesmo se pode dizer do processo cognitivo: há realmente a alta probabilidade de que a crença produzida por esse processo seja verdadeira (ele visa com sucesso à verdade), apesar do fato de que em determinada ocasião esse processo forneça uma crença falsa (ele é confiável, porém não infalível). Algo similar não poderia ser dito dos processos produtores da crença em Deus? Não poderia ser o caso que a crença em Deus seja produzida por processos cognitivos que visam com sucesso à verdade, mesmo que essa crença seja efetivamente falsa? Ou seja, a crença em Deus não poderia ser uma crença falsa garantida? Penso que ela não possa ser uma crença falsa garantida. Digamos que o mundo possível consista no modo como as coisas poderiam ter sido. Por exemplo, há um mundo possível em que Cleveland é maior que Nova York, e outro mundo possível em que o planeta terra não existe. O mundo real, obviamente, é um dos mundos possíveis: ele é o mundo que efetivamente existe. Alguns dos mundos possíveis são mais similares ao mundo real que outros: por exemplo, o mundo em que o planeta terra não existe é até agora menos similar ao mundo real que o mundo em que você é alguns centímetros mais alto ou mais baixo que agora, e tudo mais sendo o mesmo. Poderíamos pensar em mundos mais similares ao mundo real que outros tão próximos do mundo real quanto esses outros.45 Ora, uma proposição é provável, com relação a alguma condição, apenas se ela for verdadeira na maioria dos mundos próximos possíveis (os mundos similares ao mundo real) em que a condição é satisfeita. Assim, considere o processo de produção da crença teísta. Se ele visa com sucesso à verdade, na maioria dos mundos possíveis próximos ele produz a crença verdadeira.

Segue-se então que na maioria dos mundos possíveis próximos existe uma pessoa como Deus. No entanto, esse não pode ser o caso, se de fato não há uma pessoa como Deus. Pois se efetivamente não há ninguém como Deus (no mundo real), então, o mundo em que há tal pessoa — onisciente, onipotente e totalmente boa que criou o mundo — seria muitíssimo diferente do mundo real, e incomparavelmente dissimilar ao mundo real. Assim, se não há ninguém como Deus, é provável não ser o caso que os processos produtores da crença teísta gerem a crença verdadeira na maioria dos mundos possíveis próximos. Portanto, se não há ninguém como Deus, é improvável que a crença em Deus seja produzida por um processo que funciona em um ambiente epistêmico de acordo com o design que visa com sucesso à produção da crença verdadeira. Portanto, se a crença teísta é falsa, ela provavelmente não tem garantia. Se verdadeira, provavelmente sim Todavia, se a crença teísta é verdadeira, é provável que ela tenha garantia. Pois se for verdadeira, há de fato alguém como Deus, a pessoa que nos criou à sua imagem (de tal modo que nos assemelhamos a ele, entre outras coisas, por termos a capacidade de conhecer), nos ama, deseja que o conheçamos e amemos, e que é tal que nosso fim e nosso bem é conhecê-lo e amá-lo. Mas sendo esse o caso, Deus obviamente intencionaria que fôssemos capazes de ter consciência da sua presença e que soubéssemos algo a seu respeito. E então o mais natural é pensar que ele nos criou de tal modo que chegássemos a ter crenças verdadeiras como: ele é nosso Criador, nós lhe devemos obediência e louvor, ele é digno da nossa adoração e nos ama etc. Então é também natural pensar que os processos cognitivos, produtores da crença em Deus, são projetados por seu designer (Deus) para produzir essa crença. Contudo, nesse caso, a crença em questão será produzida por faculdades cognitivas em pleno funcionamento de acordo com design que visa com sucesso à verdade: logo, ela terá garantia.

Isso não é uma certeza; o argumento não é válido como dedução. Em sentido abstrato, suponho a possibilidade de que Deus tenha nos criado com a faculdade de conhecê-lo; por uma razão ou outra, essa faculdade sempre funciona mal, e alguma outra faculdade criada para produzir outras crenças muitas vezes funciona mal e produz a crença em Deus. Assim, a crença em Deus não teria garantia, a despeito do fato de ela ser verdadeira. Essa é uma possibilidade abstrata, mas não mais que uma possibilidade; seja como for, ela parece improvável. Até onde posso ver, o mais provável é que, se o teísmo é realmente verdadeiro, então a crença teísta tem garantia. Penso ser essa a conclusão que devemos retirar: dada a verdade do teísmo, a probabilidade de a crença teísta ser garantida é alta.

A questão de jure não é independente da questão de facto Aqui vemos as raízes metafísicas ou últimas da questão da racionalidade ou garantia ou da sua falta para a crença em Deus. O que se toma como racional ou garantido depende do tipo de posicionamento metafísico ou religioso. Depende do tipo de seres considerados seres humanos, dos tipos de crenças produzidos por suas faculdades quando funcionam propriamente e quais faculdades ou mecanismos cognitivos visam à verdade. Sua perspectiva sobre que tipo de criatura é o ser humano determinará, ou pelo menos influenciará fortemente, suas opiniões sobre a garantia da crença teísta e a racionalidade dos seres humanos. Assim a disputa sobre a racionalidade (garantia) da crença teísta não pode ser decidida apenas com considerações epistemológicas; no fundo, ela não consiste apenas em uma disputa epistemológica, e sim metafísica ou teológica. Talvez você pense que a humanidade foi criada por Deus à imagem dele — e criada com a tendência natural de enxergar a mão de Deus sobre nós no mundo, de reconhecer que fomos de fato criados e temos obrigações para com nosso Criador, devendo a ele louvor e obediência. Nesse caso, você obviamente não considerará a crença em Deus uma manifestação de qualquer tipo de defeito intelectual. Nem pensará que ela é a manifestação de um poder ou mecanismo de produção de crença que não visa à verdade. Em vez disso, entenderá ser ela a manifestação do mecanismo pelo qual somos colocados em contato com parte da realidade — e de longe a parte mais importante. Nesse aspecto, ela se parece com um produto da percepção sensível, memória ou razão. Entretanto, você pode pensar que os seres humanos são produtos de forças evolucionárias cegas, que Deus não existe e somos parte do universo sem Deus. Assim estará inclinado a aceitar o tipo de perspectiva com a qual a crença em Deus é uma ilusão de algum tipo, que remonta ao pensamento

ilusório, a algum outro mecanismo cognitivo que não visa à verdade (Freud), ou a um tipo de doença ou disfunção do indivíduo ou da sociedade (Marx). A relação de dependência entre a questão da garantia ou racionalidade e a verdade ou falsidade do teísmo leva a uma conclusão bastante interessante. Se a garantia, que tem a crença em Deus, se relaciona desse modo com a verdade dessa crença, então a questão da garantia da crença teísta não independe da questão da verdade da crença teísta. Assim, a questão de jure que por fim se estabelece não é independente da questão de facto; para responder à primeira deve-se responder à segunda. Isto é importante: essa conclusão mostra que a objeção ateológica bemsucedida (i.e., a objeção à crença teísta bem-sucedida) terá de incidir sobre a verdade do teísmo, e não só sobre sua racionalidade, justificação, respeitabilidade intelectual, ou justificação racional. O ateólogo que deseja atacar a crença teísta deverá se restringir às objeções — como o argumento do mal, a afirmação da incoerência do teísmo, ou a ideia que existe, de algum outro modo, uma forte evidência contra a crença teísta. Ele não pode mais adotar a seguinte posição: “Ora, eu não sei se a crença teísta é verdadeira — quem poderia saber uma coisa dessas? Mas sei o seguinte: ela é irracional, injustificada, não racionalmente justificada, contrária à razão, intelectualmente irresponsável, ou...”. Inexiste questão ou objeção de jure razoável independente da questão de facto. Por si mesmo, o fato invalida uma enorme quantidade de ateologia contemporânea; pois grande parte dessa ateologia é devotada a objeções de jure, com a alegação de independência da questão de facto. No entanto, estando correto meu argumento até aqui, não há objeções razoáveis desse tipo. (De maneira mais modesta, nenhuma foi proposta até agora; suponho que seja sempre possível que alguém apresente uma nova objeção razoável).

A objeção Freud e Marx revisitada Como vimos, a objeção de Marx alega que a religião é produzida por faculdades cognitivas que funcionam mal; esse distúrbio cognitivo se deve à disfunção e desarticulação social. Contudo, além dessa famosa passagem com a afirmação de que a “religião é o ópio do povo”, Marx não tem muito mais a dizer sobre a crença religiosa — exceto por alguns gracejos e zombarias semijornalísticas e outras expressões de hostilidade.46 Portanto, dedicarei mais atenção a Freud, que, como vimos, não afirma que a crença teísta se origina de uma disfunção cognitiva, e sim que ela consiste em uma ilusão, no sentido técnico. Ele vê a origem da religião na realização de desejo que — embora seja um processo cognitivo com um papel importante na economia total da vida intelectual — não é, apesar disso, voltado para a produção de crenças verdadeiras. Portanto, sob a perspectiva de Freud, a crença teísta, produzida pela realização de um desejo, não conta com uma garantia; ela não satisfaz a condição de ser produzida por faculdades cognitivas com o propósito de produzir a crença verdadeira. Freud prossegue ao caracterizar a crença religiosa como “neurose”, “ilusão”, “venenosa”, “intoxicante”, e “infantilidade a ser superada”, tudo isso em uma página do livro The Future of an Illusion [O futuro de uma ilusão].47 No entanto, é importante considerar o seguinte. A objeção de Freud é que a crença religiosa carece de garantia ao ser produzida pelo pensamento ilusório — um processo cognitivo que não visa à produção da crença verdadeira; nas palavras de Freud, ela não é orientada pela realidade. Contudo, mesmo que se estabelecesse que a realização do desejo é a fonte da crença teísta, isso não seria suficiente para estabelecer a ausência de garantia dessa crença. Também se deve estabelecer que a realização do desejo nessa manifestação específica não visa à crença verdadeira. O projeto de design cognitivo dos seres humanos é sutil e complexo; uma fonte de crença pode ser

tal que, em geral, ela não se dirige à formação da crença verdadeira, mas em alguns casos especiais é orientada nesse sentido. Isso talvez seja verdadeiro em relação à realização de desejo; em geral, seu propósito não é produzir a crença verdadeira, mas nesse caso em especial se trata com precisão do propósito desse mecanismo. Talvez os seres humanos tenham sido criados por Deus com a necessidade profunda de acreditar em sua presença, bondade e amor. Talvez Deus tenha nos projetado desse modo a fim de que cheguemos a acreditar nele e a ter a consciência da sua presença; talvez esse seja o modo providenciado por Deus para que o conhecêssemos. Se for mesmo assim, então a pequena parte do projeto de design cognitivo que governa a formação da crença teísta visa realmente à crença verdadeira, mesmo que a crença em questão surja da realização do desejo. Talvez Deus tenha nos projetado para saber de sua presença e amor por meio do forte desejo por Deus que ele mesmo criou em nós, e que conduz à crença de que ele de fato se faz presente. E isso não é uma mera possibilidade especulativa; Santo Agostinho e Jonathan Edwards afirmam algo similar (“Nosso coração fica inquieto até encontrar sossego em ti, ó Senhor”). E como Freud, ou um seguidor, estabeleceria que, de fato, o mecanismo mediante o qual os seres humanos chegam a acreditar em Deus (em sua existência) não visa de fato à verdade? Esse é realmente o cerne da questão. Nesse ponto, Freud não apresenta nenhum argumento ou razão. Até onde posso ver, ele apenas presume a inexistência divina e a falsidade da crença teísta; então, lança algum tipo de explicação desse fenômeno difundido de crença equivocada. Topa com a realização do desejo e aparentemente presume a obviedade de que esse mecanismo não é “orientado pela realidade”, i.e., que não visa à produção da crença verdadeira, e, por isso, carece de garantia. Como vimos, essa é uma suposição segura caso o teísmo seja falso. No entanto, a versão de Freud sobre a objeção de jure realmente depende do ateísmo: ela não é uma objeção independente, e não terá (não deveria ter) qualquer força para alguém que não compartilha desse ateísmo.

Naturalmente, quem acredita em Deus, seja cristão, judeu ou mulçumano, provavelmente não aceita a afirmação Freud e Marx de que a crença em Deus não tem garantia. (Só certa variedade de teólogo “liberal”, enlouquecido pela sede de novidade e pelo desejo de acomodar a secularidade corrente poderia concordar aqui com Freud e Marx). De fato, ele verá a situação de outro modo. De acordo com Paulo, a descrença resulta de uma disfunção, um defeito, uma falha no funcionamento adequado, ou o impedimento das faculdades racionais. A descrença, Paulo afirma, é o resultado do pecado; como se diz em Romanos 1, ela tem origem no esforço de “suprimir a verdade pela injustiça”.48 De fato, a descrença também pode ser considerada resultado da realização do desejo — o resultado do desejo de viver no mundo sem Deus, o mundo em que não há ninguém a quem se deva louvor e obediência. Portanto, vimos até agora que, a despeito das objeções de Freud e Marx e dos seus aliados, a crença em Deus pode perfeitamente ser justificada e garantida. No próximo capítulo, ampliarei o modelo Aquino e Calvino para abarcar a crença em toda a panóplia da fé cristã.

35 Summa theologiae I, q. 2 a. 1, ad 1. Na Summa contra gentiles, Aquino acrescenta: “Há certo conhecimento geral e confuso a respeito de Deus, encontrado em quase todos os homens” (Livro III, cap. 38). [Publicado em português com o título: Suma teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2001 e Suma contra os gentios. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora.] 36 Tomo I, Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008. Tomo II, Livros III e IV. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 37 Como afirma Etienne Gilson, muitos medievais e pensadores posteriores viram nessa passagem uma licença para a teologia natural, entendida como o esforço de apresentar provas ou argumentos para a existência de Deus. Mas Paulo realmente está falando sobre provas ou argumentos? A teologia natural, como Aquino afirma, é muito difícil para a maioria de nós; a maioria não tem tempo livre, capacidade, inclinação ou educação para acompanhar as provas teístas. Mas aqui Paulo parece estar falando de todos os seres humanos; o que pode ser conhecido acerca de Deus é claro, ele diz. É verdade que esse conhecimento vem por meio do que Deus criou, mas não se segue que vem por meio de argumento, os argumentos da teologia natural, por exemplo. 38 Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Romans, vol. 19. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids: Baker Book House Co., 1979, p. 70. 39 P. 43. 40 P. 45. 41 Veja “Reason and Belief in God”, In: Faith and Rationality. A. Plantinga & Nicholas Wolterstorff (orgs.) (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1983), p. 34ss. 42 No entanto, não é parte do modelo presumir que o sensus divinitatis jamais seja afetado pelo mau funcionamento; talvez ele esteja algumas vezes adoentado ou mesmo inoperante. Talvez possa também ser impedido da maneira usual, e seus produtos sejam algumas vezes apagados pela educação equivocada. 43 P. 51. Compare com o que diz Charles Sanders Peirce: “Um homem olha para a natureza, vê a sua sublimidade e beleza; e o seu espírito gradualmente eleva-se à ideia de Deus. Ele não vê a divindade, e nem a natureza prova para ele a existência desse ser, mas ela excita a sua mente e a sua imaginação até que a ideia crie raízes no seu coração”. Citado por Edward T. Oakes in: “Discovering the American Aristotle”, First Things (December 1993): 27.

44 De forma mais acurada, o que se vê aqui é parte da extensa apropriação de Freud e Marx dos modos de pensar cristão e judaico. 45 Para uma explicação mais completa sobre os mundos possíveis, confira, de minha autoria, The Nature of Necessity (Oxford: Clarendon, 1984), cap. 4. 46 Veja Karl Marx e Friedrich Engels, On Religion, Reinhold Niebuhr (oeg.) (Chico: CA: Scholars Press, 1964). Trata-se de uma coleção de trechos de vários escritos de Marx e Engels sobre a religião. 47 James Strachey (transl. & ed.). New York & London: Norton, 1961, p. 88. Insuperável, vários psicólogos, sociólogos, e antropólogos posteriores seguiram seu exemplo. Algumas vezes essas sugestões tomaram formas bizarras, dignas, quase, de serem comparadas com as narrativas muito imaginativas de Freud sobre a origem da religião (veja acima na p. 21-24). De acordo com Michael P. Carroll, por exemplo, rezar o rosário é “uma gratificação disfarçada de desejo anal-erótico reprimido” — um substituto para a “brincadeira com as próprias fezes” (“Praying the Rosary: The Anal-erotic Origins of Popular Catholic Devotion”, Journal for the Scientific Study of Religion 26, n. 4 [December 1987]: 491). 48 Obviamente, a ideia de Paulo não é que os incrédulos devem ser considerados por isso mais pecadores que os crentes. Ao contrário: alguns capítulos depois ele afirma que todos nós estamos envolvidos no pecado, incluindo-se, é claro, o próprio Paulo (“Desgraçado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”). Além disso, o mau funcionamento na raiz da descrença não pertence necessariamente ao próprio incrédulo. Alguns tipos de descrença (veja na p. 108) são como a cegueira; vendo um cego, os discípulos perguntam a Jesus, “Rabi, quem pecou para que ele nascesse cego: ele ou seus pais?” (Jo 9.2), e Jesus responde que a cegueira não se devia aos próprios pecados do homem nem aos pecados de seus pais.

capítulo 4 O modelo Aquino e Calvino estendido

De acordo com o modelo Aquino e Calvino, a crença teísta (a crença em Deus) tem realmente garantia suficiente para o conhecimento. A característica central desse modelo é a estipulação de que Deus criou os seres humanos com um processo de produção de crenças ou uma fonte de crenças, o sensus divinitatis; essa fonte funciona sob várias condições para produzir crenças a respeito de Deus, incluindo-se, obviamente, as crenças que de imediato implicam sua existência. A crença produzida desse modo, como eu disse, pode satisfazer as condições da garantia com facilidade. Portanto, até aqui estivemos a pensar só sobre a crença na existência de Deus. No entanto, é óbvio que a crença especificamente cristã ultrapassa a crença em Deus; ela inclui, em primeiro lugar, as ideias de que nós, seres humanos, caímos no pecado e nos rebelamos contra Deus, e, em segundo lugar, a incomparável resposta divina: Deus enviou seu Filho ao mundo e por meio de sua vida, morte sacrificial e ressurreição, nós, seres humanos, podemos mais uma vez entrar em uma relação correta com Deus. Meu objetivo é estender o modelo Aquino e Calvino de tal modo que ele se aplique à plena fé cristã no pecado, redenção e salvação. Espero mostrar como os cristãos podem estar justificados, ser racionais e estar garantidos ao assumir a plena fé cristã — e não só os “fundamentalistas ignorantes”, mas pessoas sofisticadas, conscientes e educadas do século XX, leitoras de Freud e Nietzsche, Hume e Mackie (Dennett e Dawkins). A justificação é bastante fácil: como em relação à crença teísta, argumentarei que muitos cristãos, ou a

maioria deles, não só podem mas também estão justificados em manter suas crenças características. De acordo com o modelo Aquino e Calvino estendido, a fé cristã, de maneira específica, pode obter a garantia e, assim, constituir conhecimento. O modelo incluirá as principais diretrizes da fé cristã ecumênica clássica. Ele também requer certa quantidade de detalhes adicionais; esses detalhes adicionais são de inspiração reformada ou calvinista, e os desenvolverei do meu próprio modo. Usarei o modelo para argumentar três coisas. Primeira, argumentarei que a fé cristã pode ser garantida; há uma explicação perfeitamente viável de como ela deveria ter essa virtude e nenhuma objeção cogente contra. Segunda, afirmarei (como fiz em relação à crença teísta) que se a fé cristã é verdadeira, então ela é provavelmente racional e garantida para a maioria dos cristãos. Assim, atacarei mais uma vez a posição mencionada antes — não sabemos se a fé cristã é de fato verdadeira (afinal, essa questão seria de uma ordem de complexidade superior), mas sabemos que mesmo sendo verdadeira, ela não é racional ou garantida. Terceira, recomendarei a explicação ou o modelo que apresento como um bom modo, embora não necessariamente o único, de os cristãos considerarem o status epistemológico da fé cristã. Nossa questão agora é se essas crenças são justificadas, racionais e garantidas. Mas se pode lidar facilmente com a justificação. Em primeiro lugar, entendida em termos de direitos e obrigações intelectuais, a justificação não é mais problemática aqui que no caso do teísmo. Uma pessoa (incluindose alguém do século XXI, educada, bem-informada e conhecedora das mais recentes objeções à fé cristã) poderia estar justificada ao aceitar essa e outras crenças, e estaria assim justificada se (por exemplo) depois de uma reflexão e investigação cuidadosa e não censurável sobre as alegadas objeções e os anuladores ainda considerasse essas crenças totalmente convincentes. Ela não poderia ser censurada por acreditar em algo que, depois de ampla

investigação, lhe parece fortemente consistir na verdade sobre a questão. (Ela deveria acreditar no que lhe parece falso?) No entanto, estas observações não aquietarão os críticos (nem poderão fazê-lo). Mesmo que os crentes cristãos estejam justificados em suas crenças, elas, não obstante, poderiam ainda ser irracionais e totalmente desprovidas de garantia. Afinal, mesmo as crenças de um louco ou de uma vítima do demônio cartesiano podem ser justificadas. Assim, o que dizer da racionalidade e da garantia? A crença só é racional se for produzida por faculdades cognitivas em pleno funcionamento e visando com sucesso à verdade (i.e., visam à produção da crença verdadeira), de modo contrário às crenças que são, por exemplo, produtos do pensamento ilusório ou de disfunção cognitiva. A garantia — a propriedade que em grau suficiente distingue o conhecimento da mera crença verdadeira — é a propriedade ou quantidade da crença se, e somente se, essa crença for produzida por faculdades cognitivas funcionando de forma correta no ambiente epistêmico adequado, de acordo com um projeto de design que visa com sucesso à verdade. Visto que a racionalidade (no sentido de uma função própria de poderes racionais) está incluída na garantia, a questão real é aqui se a fé cristã tem ou pode ter essa garantia.

Apresentação inicial do modelo De acordo com o modelo Aquino e Calvino estendido, a fé cristã de fato tem garantia. Em essência, o modelo é o seguinte. Primeiramente, Deus criou os seres humanos à sua imagem. Isso envolve nossa semelhança com Deus enquanto pessoas — ou seja, seres com intelecto e vontade. Como Deus, somos seres com crenças e entendimento: temos intelecto. Porém, também existe a vontade: do mesmo modo, somos semelhantes à Deus porque temos afetos (amores e ódios), formamos objetivos e intenções, e somos capazes de agir para realizar os objetivos e as intenções. Pode-se chamar isso imagem ampla de Deus. Mas os seres humanos, de acordo com a criação originária, também apresentava uma imagem restrita: eles mantinham um conhecimento extenso e íntimo de Deus e afetos corretos, incluindo a gratidão pela bondade divina. Amavam e odiavam o que era respectivamente amável e odiável; acima de tudo, conheciam e amavam a Deus. Parte da imagem ampla era o sensus divinitatis. Agora, o modelo Aquino e Calvino estendido retém essa característica e acrescenta outros itens. Em primeiro lugar, nós, seres humanos, caímos no pecado, a condição calamitosa da qual se requer salvação — salvação que somos incapazes de alcançar por esforços próprios. O pecado nos aliena de Deus e nos desqualifica para a comunhão com ele. A queda no pecado ocasionou consequências cataclísmicas, afetivas e cognitivas. Em relação às consequências afetivas, nossos afetos — amores e ódios — são tortos, e habita agora o mal profundo e radical no nosso coração: não amamos a Deus acima de todas as coisas; em vez disso, nós nos amamos acima de todas as coisas. A imagem restrita foi assim quase destruída. Há também consequências cognitivas desastrosas. Nosso conhecimento originário de Deus e de sua magnífica beleza, glória e encanto foi severamente

comprometido; a imagem ampla foi assim danificada, distorcida. Em particular, o sensus divinitatis foi danificado e deformado; por conta de todos os nossos pecados, não mais conhecemos a Deus do modo natural e não problemático que conhecemos uns aos outros e o mundo ao nosso redor. Além disso, o pecado introduz em nós uma resistência à manifestação do sensus divinitatis, emudecido pelo primeiro fator; nós não queremos prestar atenção às suas manifestações. Somos incapazes, por esforços próprios, de nos libertarmos dessa situação difícil; no entanto, o próprio Deus ofereceu um remédio para o pecado e seus efeitos desastrosos, um meio da salvação do pecado e da reinstalação de seu favor e amizade. O remédio se tornou disponível mediante a vida, a penitência, o sofrimento, a morte e a ressurreição do seu Filho divino, Jesus Cristo. A salvação envolve, entre outras coisas, o novo nascimento e a regeneração, processo (iniciado na vida presente e culminante no ponto mais alto na próxima vida) que envolve a restauração e reparação da imagem divina em nós. Até aqui, o que temos é o “mero cristianismo” do qual falou Clive S. Lewis;49 chegamos agora no lado mais especificamente cognitivo do modelo. Deus precisava de um modo para informar aos seres humanos de muitas eras e lugares o esquema da salvação por ele disponibilizado de forma graciosa. Sem dúvida, ele poderia ter feito isso de muitos modos diferentes; de maneira efetiva, conforme o modelo, ele o escolheu fazer da seguinte forma. Em primeiro lugar, enviou profetas e apóstolos, e concedeu a Bíblia, uma coleção de escritos de autores humanos, mas inspirados por Deus de tal modo que se pode dizer que ele é o autor principal. Em segundo, enviou o Espírito Santo, prometido por Cristo antes da sua morte e ressurreição.50 Terceiro, uma das obras principais do Espírito Santo em relação a nós, seres humanos, é a produção da dádiva da fé, o “conhecimento firme e certo da benevolência divina para conosco, fundado sobre a verdade da promessa gratuita feita em Cristo pelo Espírito Santo, revelada a nossa mente e selada em nosso coração”

de que fala João Calvino.51 Em virtude do testemunho ou da evidência interior do Espírito Santo, percebe-se a verdade das principais doutrinas cristãs.

O pecado e sua natureza Agora que o modelo estendido está esboçado à nossa frente, precisamos considerar com mais cuidado alguns aspectos dele, começando pela natureza do pecado e suas consequências. O que é o pecado? Seja o que for, trata-se de algo incrivelmente profundo e elusivo. De acordo com o modelo, ocorre em primeiro lugar o fenômeno pecar: fazer o que é errado, contrário à vontade divina. Essa é ação pela qual o pecador se torna responsável; ele é culpado e merece censura — mas apenas se reconhecer que sua ação é pecado, ou se ele é culpável por não reconhecê-la. Há também a condição de estar em pecado, estado em que nós, seres humanos, nos encontramos desde o nascimento. O termo cristão tradicional para essa condição é “pecado original”. Diferentemente do ato de pecado que realizo, o pecado original não precisa ser encarado como algo em relação a que tenho culpa (pecado original não é necessariamente culpa original); visto que nasço nessa situação, o fato de me encontrar nela não está sob meu controle e não depende de mim. (De qualquer modo, há muitas oportunidades de culpabilidade em relação a versões de pecado diferentes do pecado original). Como nós, seres humanos, nos envolvemos nessa condição desesperadora e deplorável? A resposta tradicional cristã: ela resulta das ações pecadoras de Adão e Eva, nossos primeiros pais e os primeiros seres humanos. Sendo esse, de fato, o caso, trata-se de uma questão em relação à qual o modelo não precisa se posicionar; a parte do modelo é que realmente nos encontramos nessa condição. Gilbert K. Chesterton uma vez observou que, de todas as doutrinas do cristianismo, a doutrina do pecado original faz a alegação mais forte quanto à “verificabilidade empírica” (a qualidade amplamente anunciada no apogeu do positivismo como critério de “significação cognitiva”). Ela foi sobejamente verificada nas guerras, na crueldade e nas

coisas odiosas, em geral, que caracterizaram a história humana desde os primórdios até a atualidade. De fato, nenhum século anterior se deparou com ódio, desprezo e crueldade em escala mais organizada que o recém-terminado e não lastimado século XX; e nenhum outro século viu essas coisas em tão grande escala. Há um lado profundo e obviamente social no pecado. Nós, seres humanos, somos profundamente comunitários; aprendemos com nossos pais, professores, companheiros e outras pessoas, por imitação e por meio de regras. Aprendemos crenças desse modo, mas é igualmente importante a aquisição (e talvez menos de forma autoconsciente) de atitudes e afetos, amores e ódios. Por causa da nossa natureza social, o pecado e seus efeitos podem ser contagiosos, passando de uma pessoa para outra e corrompendo toda a sociedade ou um segmento dela. O pecado original envolve igualmente o intelecto e a vontade; ele é cognitivo e afetivo. Envolve conhecimento e também amor e ódio. Por um lado, ele consiste em um tipo de cegueira, imperceptibilidade, obtusidade, estupidez. Essa é a limitação cognitiva que, acima de tudo, impede a vítima de obter o conhecimento próprio de Deus e da sua beleza, glória e amor; ela também impede a observação do que é digno de amor e o que merece o ódio, do que deveríamos buscar e do que deveríamos rejeitar. Compromete assim o conhecimento de fato e o conhecimento de valor. Mas o pecado é também, e talvez em sentido primário, uma desordem ou disfunção afetiva. Nossos afetos são enviesados, direcionados para os objetos errados; amamos e odiamos as coisas erradas. Em vez de buscar em primeiro lugar o reino de Deus, estou inclinado a procurar a promoção pessoal, concentrando todos os meus esforços para fazer com que eu pareça bemsucedido. Em vez de amar a Deus sobre todas as coisas e a meu semelhante como a mim mesmo, estou inclinado a amar a mim mesmo acima de todas as coisas e com frequência inclinado de verdade a me indignar com Deus e com meu semelhante ou mesmo a odiá-los.

Grande parte dessa hostilidade procede do orgulho, o pecado antigo, e das consequentes tentativas de engrandecimento próprio. Pensamos sobre os bens do mundo como um jogo de soma zero: qualquer porção dele que você possua é uma porção que eu não posso ter — e que quero tê-la. Se sou acadêmico, desejo mais fama que você, e quando você faz algo notável, sinto uma pontada de inveja. Posso querer ser rico. O que conta não é quanto dinheiro tenho, falando em sentido absoluto; o que conta é se tenho mais dinheiro que você, ou que a maioria das pessoas, ou que todos. Assim, você e as outras pessoas são obstáculos para a realização dos meus próprios desejos; posso então me indignar e passar a odiar as pessoas. Mesmo Deus, a fonte do meu ser, pode também constituir uma ameaça. Em meu desejo orgulhoso de autonomia e autossuficiência posso me indignar com a presença de uma pessoa acima de mim, da qual dependo para a minha vida e em comparação a quem sou ninguém. Portanto, posso também vir a odiá-lo. Quero ser autônomo, não dever obrigação a ninguém. Talvez essa seja a raiz mais profunda do pecado, e a motivação para o ateísmo, entendido como realização de desejo.52 O defeito aqui é afetivo, não intelectual. Nossos afetos estão desajustados; eles não mais funcionam de acordo com o projeto de design original de Deus para os seres humanos. Há uma falha de funcionamento próprio, um desarranjo afetivo, um tipo de loucura da vontade. Nessa condição, conhecemos (de algum modo e em algum grau) o que se deve amar (o objetivamente amável), mas, apesar disso, afastamo-nos com perversidade do que deveria ser amado e, de forma oposta, amamos outra coisa. (Como diz a canção popular: “O meu coração tem a sua própria opinião”.) Sabemos (em algum grau) o que é certo, mas nos vemos empurrados para o erro; sabemos que deveríamos amar a Deus e a nosso semelhante; apesar disso, preferimos fazer de outro modo. Certamente, aqui se coloca uma antiga questão, que remonta a Sócrates: a pessoa pode fazer de fato o que ela sabe ou acredita ser errado? Se ela vê o

certo, como pode fazer o errado? A resposta é bastante simples: ela vê o certo, mas prefere o erro. Sócrates não enxerga a possibilidade do desarranjo afetivo, oposto à deficiência intelectual ou ignorância. Talvez, na ausência do desarranjo afetivo, eu não possa ver o bem e preferir o mal, sabendo que se trata do mal. Infelizmente, no entanto, não se pode contar com a ausência desse desarranjo; o pecado é, em grande parte, precisamente o desarranjo desse tipo. Por causa da disfunção afetiva, desejo e busco o que sei ou acredito ser mau. Como Agostinho e Pascal notaram, toda a complexa e confusa coleção de atitudes, afetos e crenças que constitui o estado do pecado é um campo fértil para a ambiguidade e o autoengano.53 De acordo com o modelo Aquino e Calvino estendido, mesmo no estado de pecado, e mesmo com a exclusão da regeneração, nós, seres humanos, temos pelo menos algum conhecimento de Deus, e alguma apreensão do que se exige de nós. A condição do pecado envolve o dano do sensus divinitatis, mas não sua completa eliminação; ele permanece funcionando em parte na maioria de nós. Portanto, temos alguma apreensão da presença, das propriedades e demandas de Deus, mas esse conhecimento é ocultado, impedido e suprimido. Estamos propensos a odiar a Deus, mas também, de forma confusa, estamos de algum modo inclinados a amá-lo e buscá-lo; estamos propensos a odiar o semelhante, a vê-lo como competidor por bens escassos, mas também, paradoxalmente, estamos inclinados a estimá-lo e amá-lo. Talvez eu reconheça, de um modo quase subliminar, a existência de um desarranjo profundo e pior na minha vida. Reconheço em parte o egoísmo e autocentramento característicos da maioria dos momentos quando estou acordado. Talvez note que mesmo (ou talvez especialmente) em solilóquio, onde não há questão de influenciar outras pessoas, crio, repito e contemplo na imaginação várias situações em que saio vitorioso, ou heroico, ou paciente, ou de alguma outra forma muito admirável. Talvez eu também perceba aqui a tolice e a corrupção, mas em grande parte do tempo não presto atenção.

Ignoro; escondo de mim mesmo, concentrando-me no trabalho, nos projetos, na família e em todo o universo do cotidiano. (Como diria Pascal: “Agora não posso ser incomodado; tenho de devolver a bola do meu oponente”.54) Essa ambiguidade vai mais fundo. Sou obrigado a concordar com o apóstolo Paulo: “Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rm 7.19). Não raro, faço o que considero errado, mesmo que deseje fazer o certo. Parece que não faço o que quero, mas sim o que não quero. Ou será que quando faço algo errado, quero fazer isso mesmo, mas então não penso que seja errado (mesmo que em outros momentos — algum tempo depois, talvez — eu veja com clareza que se trata de algo errado e deseje não tê-lo realizado)? Ou que nesse momento vejo (pelo menos até certo ponto) que se trata de algo errado, ou então veria com clareza que se trata de algo errado se prestasse atenção (e também sei disso na prática), mas não presto atenção porque quero fazê-lo? Ou será ainda que quando faço algo errado, desejo fazer essa coisa errada, sabendo (de modo obscuro) do erro, mesmo que eu não queira desejar fazer a coisa errada? Ou até mesmo que, quando quero cometer o erro, eu nem mesmo me questiono se o que quero fazer é errado? Quem poderá dizer?

Revelado à nossa mente O objetivo do modelo Aquino e Calvino estendido é mostrar como a crença especificamente cristã — a crença, não só em Deus, mas na Trindade, encarnação, ressurreição de Cristo, expiação, no perdão dos pecados, na salvação, regeneração, vida eterna — pode ser razoável e garantida. Como podemos pensar acerca dessas crenças — algumas das quais, como o filósofo David Hume adorava ressaltar, vão inteiramente de encontro com a experiência humana comum — como razoáveis e racionais, quanto menos garantidas? Os elementos da resposta estão à mão. Na verdade, eles estão prontos há séculos — sem dúvida, desde a publicação de Religious Affections [Afeições religiosas],55 de Jonathan Edwards, e de A instituição da religião cristã, de João Calvino. Na realidade, eles estavam disponíveis muito tempo antes: grande parte do que Calvino disse pode ser visto como desenvolvimento das observações de Tomás de Aquino e Boaventura. Esses elementos podem ser encontrados no Novo Testamento, em particular no Evangelho de João e nas epístolas de Paulo. Meu desenvolvimento desses elementos — o modelo Aquino e Calvino estendido — mostrará como a fé cristã pode ser racional e garantida — e não só para “fundamentalistas ignorantes” ou medievais obscurantistas, mas para cristãos informados e educados do século XXI, inteirados de toda a artilharia disparada contra a fé cristã desde o iluminismo. Visando à exatidão, seguirei o modo particular e tradicional de pensar o conhecimento da verdade cristã. Acredito que esta explicação, ou algo similar, esteja de fato bem próxima da verdade sóbria, porém outros modelos ajustados a tradições diversas podem ser elaborados com facilidade. Meu modelo estendido terá uma característica adicional: completará e aprofundará a explicação prévia do conhecimento de Deus. Os temas centrais do modelo estendido são a Bíblia, o testemunho interior do Espírito Santo e a fé.

De acordo com o modelo (como já vimos), nós, seres humanos, fomos criados à imagem de Deus. Infelizmente, caímos no pecado — condição perniciosa da qual precisamos ser regatados e redimidos. Deus propôs e instituiu um plano de salvação: a vida, o sofrimento sacrificial, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo — a segunda pessoa da Trindade que se tornou carne. Para nós, resulta a possibilidade de salvação do pecado, da relação com Deus renovada e da vida eterna. No entanto, Deus precisava de um meio para nos informar — a nós, seres humanos, de diferentes eras e lugares — do esquema da salvação disponibilizado por ele de forma graciosa (e chegamos aqui à ampliação especificamente epistemológica do modelo).56 Ele escolheu fazer isso por meio de um processo cognitivo em três níveis. Primeiro, Deus falou por meio de profetas e apóstolos e providenciou a produção da Escritura, a Bíblia, um conjunto de livros ou escritos compostos por autores humanos diferentes, dos quais o próprio Deus é o autor principal. Nesse conjunto de livros e textos, ele propõe muitas coisas para a crença e a ação, mas há um tema e um foco centrais (por essa razão, esse conjunto de livros e textos consiste mesmo em um livro): o evangelho, as boas-novas do caminho da salvação disponibilizado por Deus de maneira graciosa.57 Correlato à Escritura, e necessário para que ela cumpra propriamente o seu propósito, encontra-se o segundo elemento desse processo cognitivo: a presença e a ação do Espírito Santo prometidas por Cristo antes de sua morte e ressurreição,58 invocadas e celebradas nas epístolas do apóstolo Paulo.59 Em virtude da obra do Espírito Santo no coração de quem a fé é concedida, os danos do pecado (incluindo-se o aspecto cognitivo) são reparados, de modo gradual ou repentino, em pequena ou grande extensão. Além disso, por causa da atividade do Espírito Santo, os cristãos chegam a apreender, endossar e se regozijar com a verdade das grandes coisas do evangelho. Por essa atividade o cristão crê que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não levando em conta as transgressões dos homens” (2Co 5.19).

Para Calvino, a principal obra do Espírito Santo é a produção (no coração dos cristãos) do terceiro elemento do processo, a fé. À semelhança da regeneração, da qual faz parte, a fé é uma dádiva concedida a qualquer pessoa disposta a aceitá-la. A fé, afirma Calvino, é “o conhecimento firme e certo da benevolência divina para conosco, fundado sobre a verdade da promessa gratuita feita em Cristo pelo Espírito Santo, revelada a nossa mente e selada em nosso coração”.60 Portanto, a fé envolve explicitamente um elemento cognitivo; segundo Calvino, ela é conhecimento — conhecimento da disponibilidade da redenção e salvação por meio da pessoa e da obra de Jesus Cristo — e foi revelada à nossa mente. Portanto, ter fé significa conhecer e, por isso, acreditar em uma coisa ou outra. Porém, como veremos com detalhes no Capítulo 6, a fé também envolve afetos: ela é “selada em nosso coração”. Assim, o crente não só sabe do esquema divino de salvação (conforme Tg 2.19, os demônios também sabem, e tremem), mas também agradece de coração ao Senhor pela salvação e o ama por isso; ele aceita a dádiva ofertada e compromete-se a viver uma vida de gratidão.61 Mas isso não significa exatamente o endosso do fundamentalismo totalmente antiquado e desacreditado, a pior das condições, como afirmam muitos secularistas? Percebo claramente que a temível palavra com a letra “f” será repetida a fim de estigmatizar todos esses modelos. Antes de responder, no entanto, faz-se necessário considerar em primeiro lugar o uso do termo “fundamentalismo”. De acordo com a utilização acadêmica contemporânea mais comum, trata-se de insulto ou desaprovação, similar a “desgraçado”. Quando o termo é usado desse modo, não se apresenta, em geral, nenhuma definição. (Se você chamasse alguém de “desgraçado”, você se sentiria obrigado, em primeiro lugar, a definir o termo?) Mas há um pouco mais de significado em “fundamentalista” (no amplo uso corrente): ele não é apenas um termo de insulto. Além dessa força emotiva, ele afirma algum conteúdo cognitivo, e geralmente denota perspectivas teológicas relativamente conservadoras. Isso o torna mais parecido com “desgraçado estúpido” que

com o simples “desgraçado”. Todavia, também não significa esse termo com exatidão, porque seu conteúdo cognitivo pode ser ampliado e diminuído à vontade; ele parece depender de quem usa o termo. Na boca de um teólogo liberal, por exemplo, ele tende a denotar quem aceita o cristianismo tradicional, incluindo-se Agostinho, Aquino, Lutero, Calvino e Barth; já na boca de um secularista devotado, como Richard Dawkins ou Daniel Dennett, ele pode representar qualquer pessoa que acredite na existência de Deus. A explicação é que o termo tem certo caráter díctico: seu conteúdo cognitivo advém da frase “consideravelmente à direita, em sentido teológico, de mim e dos meus amigos esclarecidos”. Portanto, o pleno significado do termo (nesse uso) pode aqui ser dado por algo como “desgraçado estúpido com opiniões teológicas mais à direita que as minhas”. Portanto, é difícil levar a sério a acusação de que as perspectivas por mim sugeridas são fundamentalistas; mais precisamente, é difícil levá-la a sério como acusação, pois a alegada acusação significa apenas que essas perspectivas são muito mais conservadoras que as do objetor, com a expressão de certa aversão relativa a essas perspectivas ou por quem as assume. Todavia, como isso constitui a objeção a algo, por que autorizar o desdém e a ofensa que acompanham o termo? Qualquer argumento contra as perspectivas conservadoras seria interessante, mas indicar apenas que elas diferem das perspectivas do objetor (mesmo com o acréscimo da força emotiva do insulto) não suscita nenhum interesse. Mas como esse modelo, com excursão na teologia, serve para a fé cristã obter ou poder obter justificação, racionalidade e garantia? A resposta é a própria simplicidade. Essas crenças não surgem no cristão por meio da memória, percepção, razão, do testemunho, sensus divinitatis, ou de quaisquer outras faculdades ou processos cognitivos com os quais nós, seres humanos, fomos originariamente criados; elas surgem, em vez disso, por obra do Espírito Santo, que nos leva a aceitar e enxergar a veracidade dessas grandes verdades do evangelho. As crenças não surgem só por meio da

atuação normal das nossas faculdades; elas são uma dádiva sobrenatural. Mesmo assim, o cristão recipiente da dádiva da fé estará obviamente justificado (no sentido básico do termo) ao crer como o faz; não há nada contrário ao dever epistêmico ou a algum outro dever quando acredita desse modo (e, de fato, uma vez ele tenha aceitado essa dádiva, pode não estar em seu poder suspender a crença). No entanto, dado o modelo, as crenças em questão terão tipicamente (ou frequentes vezes, pelo menos) outros tipos de valores epistêmicos que consideramos. Em primeiro lugar, essas crenças serão racionais: não precisa ocorrer nenhuma disfunção cognitiva no crente; todas as suas faculdades cognitivas podem funcionar bem. Em segundo lugar, no modelo, essas crenças contarão também com a garantia para o crente: elas serão produzidas nele por um processo que funciona de forma correta no ambiente cognitivo adequado (para o qual foi projetado) em conformidade com o projeto de design que visa com sucesso à produção da crença verdadeira. Neste capítulo, esbocei um modelo — o modelo Aquino e Calvino estendido — em conformidade com o qual a fé cristã tem garantia. Considerarei nos próximos capítulos o elemento central desse modelo, o fenômeno da fé.

49 Mere Christianity (New York: Macmillan, 1958). [Publicado em português com o título: Cristianismo puro e simples, São Paulo: Martins Fontes, 2009.] 50 Cf. Jo 14.25,26: “Essas coisas vos tenho falado enquanto ainda estou convosco. Mas o Consolador, o Espírito Santo a quem o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que eu vos tenho dito”. 51 A instituição da religião cristã, III.II.7, p. 29. 52 Esse desejo de autonomia, definição e criação próprias, pode assumir proporções notáveis: de acordo com Richard Rorty, o famoso filósofo Martin Heidegger sentia-se culpado por viver no mundo que ele mesmo não criou (que consciência delicada!), recusando-se a se sentir em casa nele, e não suportando o pensamento de que ele era sua criação. (Contingência, Ironia e Solidariedade [São Paulo: Martins Fontes, 2007]) 53 Para um comentário contemporâneo, veja o texto de Bas van Fraassen “The Peculiar Effects of Love and Desire”, In: Perpectives on Self-Deception, A. Roty & B. McLaughlin (orgs.) (Berkeley: University of California Press, 1988). Van Fraassen oferece uma explicação sutil de alguns dos mistérios profundos do autoengano. 54 Citado por van Fraassen, “Peculiar Effects”. 55 Editado por John Smith (New Haven: Yale University Press, 1959 [1746]). As referências são dessa edição. 56 Não é parte do modelo sugerir que crenças explícitas sobre Jesus Cristo são condições necessárias para a salvação: os patriarcas do Antigo Testamento, por exemplo, são vistos como heróis da fé no Novo Testamento (Hb 11) a despeito do fato de que presumivelmente não mantinham crenças explícitas a respeito de Jesus Cristo. Eles esperavam que Deus fizesse o necessário para a salvação e paz; mas não sabiam o que seria feito. Além disso, não é parte do modelo asseverar que todos os crentes nessas coisas criam nelas por conta de um processo proposto no modelo: talvez os apóstolos, por exemplo, tenham crido nessas verdades por uma via bem diferente. 57 O estudo histórico e crítico da Escritura dos últimos dois séculos não lançou graves dúvidas sobre a confiabilidade da Bíblia e a afirmação de que ela foi especialmente inspirada por Deus? Essa sugestão é um anulador da crença cristã; veja o Capítulo 8. 58 E.g., Jo 14.26: “Mas o Consolador, o Espírito Santo a quem o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que eu vos tenho dito”. V. tb. Jo 14.11a: “Crede em mim; eu estou no Pai e ele está em mim”, e 15.26: “Quando vier o

Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que procede do Pai, esse dará testemunho acerca de mim”. 59 E.g., Ef 1.17: “... o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê o espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele”. E 1Co 2.12, 13: “Não temos recebido o espírito do mundo, mas, sim, o Espírito que vem de Deus, a fim de compreendermos as coisas que nos foram dadas gratuitamente por Deus. Também falamos dessas coisas, não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito Santo, comparando coisas espirituais com espirituais”. 60 A instituição, III.II.7. 61 Apresentado de forma breve e não desenvolvida, esse modo pode parecer inapropriadamente individualista. Contudo, é claro que ele não exclui a importância da comunidade cristã e da igreja para a fé cristã individual. É a igreja ou a comunidade cristã que proclama o evangelho, guia o neófito através dele, e apoia, instrui, encoraja e edifica os crentes de todos os tipos e condições.

capítulo 5 Fé

A fé é a garantia do que se espera e a prova do que não se vê. Hebreus 11.1 A fé é o grande pretexto, a grande desculpa para fugir da necessidade de pensar e avaliar a evidência. A fé é a crença a despeito da falta de evidência, ou até mesmo por causa da falta de evidência. Richard Dawkins62

Como vimos no capítulo anterior, o elemento essencial do modelo Aquino e Calvino é o conceito da fé. Começarei dizendo algo mais sobre essa parte central do modelo estendido. A primeira coisa notável é que se usa o termo “fé”, como quase todos os termos filosoficamente úteis, de vários modos, com muitos sentidos diferentes e analogicamente conectados. De acordo com Huckleberry Finn, personagem de Mark Twain, fé significa “acreditar no que você sabe não existir”; isso apenas exagera um pouco o uso comum do termo para denotar a crença que carece de garantia, e, de fato, se mostra improvável por conta do que tem garantia para o crente.63 Diz-se da mãe que, contrariando a evidência, acredita que o filho ainda vive e que, ela crê, um dia retornará a salvo para casa. Em conexão com esse exemplo usam-se expressões como “salto da fé” — mais parecida com um salto no escuro. O segundo uso do termo serve para denotar a confiança vaga e generalizada sem um objeto específico, a confiança de que as coisas correrão bem, um tipo de sessão de relaxamento otimista em relação ao futuro, confiante na possibilidade de lidar com o que vier a acontecer. Ter fé nesse sentido

significa “aceitar o universo”, como se atribui a expressão a Margaret Fuller, transcendentalista do século XIX.64 Ao apresentar o modelo, no entanto, uso o termo com um sentido diferente de todos esses. O sentido será mais próximo do que o Catecismo de Heidelberg designa “pura fé”: Uma verdadeira fé não é apenas o conhecimento e a certeza pelos quais tenho como verdadeiro tudo aquilo que Deus nos tem revelado em sua Palavra, mas também plena confiança que o Espírito Santo opera em meu coração através do Evangelho, de que Deus perdoou os pecados, e deu eterna justiça e salvação, não somente aos outros mas também a mim, somente pela graça e por causa dos méritos de Cristo.65

Podemos pensar que essa explicação torna mais explícito o conteúdo da definição de fé oferecida por Calvino em A instituição (veja acima, na p. 48). A primeira coisa a considerar é que a fé, assim compreendida, é um estado ou atividade epistêmica ou cognitiva. Ela não consiste apenas em uma atividade cognitiva, porque também envolve os afetos e a vontade. (Trata-se do conhecimento selado em nosso coração e também revelado à mente). No entanto, mesmo sendo a fé mais que algo cognitivo, ela é também, pelo menos, uma atividade cognitiva. É uma questão de “conhecimento”, afirma Calvino, e, por isso, envolve crer em algo. O cristão, nesse sentido, não apenas encontra sua identidade na narrativa cristã, ou vive em contato com ela ou longe dela; ele acredita na narrativa, presume que ela seja a sóbria verdade. As crenças das pessoas são proposições. Portanto, ter fé é (pelo menos) acreditar em algumas proposições. Quais seriam elas? Entre elas não se incluem, por exemplo, que o mundo é um tipo de lugar em que os seres humanos podem se desenvolver, ou mesmo, em sentido primário, que existem alguém como Deus. De fato, nesse modelo, não é realmente pela fé que se conhece haver uma pessoa como Deus. Em vez disso, a fé é o “conhecimento firme e certo da benevolência divina para conosco” (Calvino), o conhecimento firme e certo de que “Deus perdoou os pecados, e deu eterna

justiça e salvação, não somente aos outros mas também a mim” (Catecismo de Heidelberg) — i.e., o conhecimento firme e certo do plano de Deus em que nós, seres humanos caídos, podemos alcançar shalom, a paz, o florescimento, o bem-estar, a felicidade, a salvação, todas as coisa relativas ao relacionamento correto com Deus.66 Desse modo, o objeto proposicional da fé é todo o esquema magnífico da salvação preparada por Deus. Ter fé significa saber que Deus nos possibilitou — e como — o escape da ruína do pecado e a recondução à relação correta com ele; trata-se, portanto, do conhecimento das principais diretrizes do evangelho cristão. O conteúdo da fé consiste nos ensinos centrais do evangelho; ele está contido na interseção dos grandes credos cristãos. Além do mais, o que se questiona em relação à fé não é só saber da existência desse esquema (como vimos, os demônios acreditam nele, e tremem), mas também, e mais importante ainda, saber que esse esquema se aplica a mim mesmo e está à minha disposição. Assim, o que se conhece, na fé, são as principais diretrizes da doutrina especificamente cristã — com sua aplicação a meu caso. Cristo morreu por meus pecados, tornando, então, a reconciliação com Deus possível para mim. A fé é, em sentido inicial e fundamental, prática — o conhecimento das boas-novas e de sua aplicação a mim, e do que preciso fazer para receber os benefícios por ela anunciados. No entanto, a fé mesma é uma questão de crença e não de ação, trata-se de crer em algo e não de realizar alguma coisa.

Como age a fé? A resposta principal é que a fé é uma obra — a obra principal, de acordo com Calvino — do Espírito Santo; ela é produzida em nós pelo Espírito Santo. A sugestão de que a crença nos elementos centrais do evangelho cristão resulta de uma obra especial do Espírito Santo é vista com frequência como uma doutrina especial de autores calvinistas como Jonathan Edwards e o próprio João Calvino. Ela é o ponto central da doutrina desses autores e aqui o modelo segue o pensamento deles de perto. Mas neste ponto, como em muitos outros, Calvino, a despeito do barulho belicoso sobre os papistas pestilentos e suas ofensas colossais, pode ser visto seguindo e desenvolvendo uma linha de pensamento já encontrada em Tomás de Aquino. “O crente”, diz Aquino, “tem motivo suficiente para acreditar, pois ele é movido pela autoridade do ensinamento divino confirmado pelos milagres e, além disso, pela instigação interior do convite divino”.67 Há aqui (em sentido embrionário, pelo menos) o mesmo trio de processos: a crença, o ensinamento divino (dado na Escritura) — objeto da crença —, e também a atividade divina especial na produção da crença (“a instigação interior do convite divino”).68 Que tipo de fenomenologia está envolvido nesse processo epistêmico: como ele se parece visto do interior? No modelo, as crenças que constituem a fé são tipicamente assumidas como básicas; ou seja, elas não são aceitas por meio de argumentos a partir de outras proposições ou sobre a base evidencial de outras proposições,69 ainda que alguns crentes de fato raciocinem assim. Todavia, no modelo, as coisas são diferentes. Lemos a Escritura, ou então lemos algo que apresenta um ensinamento da Escritura, ou ouvimos a pregação do Evangelho, ou os nossos pais nos contam, ou encontramos um ensinamento da Escritura como a conclusão de um argumento (ou mesmo como objeto de ridicularização), ou de algum

outro modo encontramos uma proclamação da Palavra. O que se diz parece correto; parece atraente; uma pessoa pode se ver dizendo “Sim, isso é correto, essa é a verdade da questão; essa é de fato a palavra do Senhor”. Leio que “Deus estava em Cristo reconciliando o mundo consigo mesmo”; venho então a pensar: “Certo, isso é verdade; Deus realmente estava em Cristo, reconciliando o mundo consigo mesmo!”. E posso também pensar algo um pouco diferente, algo sobre essa proposição: que ela consiste em um ensinamento ou revelação divina, que, nas palavras de Calvino, procede “de Deus”. O que se ouve ou lê parece de forma clara e óbvia verdadeiro, e (pelo menos nos casos paradigmáticos) parece também algo que o Senhor tem a intenção de ensinar. Assim, a fé pode ter a fenomenologia concordante com a observação súbita de algo verdadeiro: “Agora vejo que isso é verdadeiro e o que o Senhor ensina!”. Ou talvez a convicção surja com lentidão, e só depois de um longo e pesado estudo, pensamento, discussão e prece. Ou talvez seja a questão de a crença ter estado latente todo o tempo (desde a infância, talvez), mas agora seja transformada, renovada, intensificada, tornada vívida e desperta. Esse processo pode se desenvolver de vários modos; porém, em cada caso, há a apresentação ou a proposta da doutrina cristã central, e como resposta há o fenômeno de ser convencido, vir a enxergar, formar a convicção. Há o ler e o ouvir, e então há a crença ou convicção de que o que se lê ou ouve é verdade e ensinamento do Senhor. De acordo com o modelo, essa convicção surge da atividade do Espírito Santo. (Calvino fala aqui do “testemunho” interno do Espírito Santo; Aquino fala da “instigação” e “convite”). No modelo, há a Escritura e a atividade divina conducentes à crença humana. Deus mesmo (no modelo) é o principal autor da Escritura; e, mais importante, a Escritura é a mensagem, a comunicação de Deus à humanidade; a Escritura é a palavra do Senhor.70 Assim, ela consiste em um caso especial do processo disseminado de testemunho, por meio do qual de fato aprendemos a maioria das coisas que sabemos. Desse ponto de vista, a Escritura é uma questão de testemunho

quanto o é uma carta que você recebe de um amigo. Portanto, o que se propõe para a crença na Escritura é exatamente o testemunho — o testemunho divino. No caso, o termo “testemunho” é adequado. Entretanto, também existe a obra especial do Espírito Santo induzindo-nos a crer, permitindo-nos enxergar a verdade proposta. Portanto, os termos de Aquino “convite” e “instigação” são mais apropriados. Desse modo, a Escritura é de fato um testemunho; mas ela é um testemunho muito especial. Em primeiro lugar, a principal testemunha é Deus. Ela também difere do testemunho comum, pois há no caso, de modo diferente do que ocorre em outros, uma testemunha principal e outras subordinadas: os autores humanos.71 Há ainda outra diferença: trata-se da instigação do Espírito Santo que nesse modelo nos leva a observar as proposições propostas para a nossa crença na Escritura como palavras reais da parte do Senhor. Esse caso também difere do curso comum do testemunho porque o Espírito Santo não só escreve a letra (inspira da forma correta os autores humanos), mas também faz algo especial para que nos tornemos capazes de crer e de nos apropriar de seu conteúdo. Assim, esse testemunho não segue o curso usual; não obstante, trata-se de um testemunho. Portanto, de acordo com o modelo, a fé é a crença nas grandes coisas do Evangelho, resultante da instigação interna do Espírito Santo.

Fé e garantia Proponho esse modelo como uma maneira pela qual a fé cristã demonstre os tipos de virtudes epistêmicas ou do status epistêmico positivo com que lidamos: a justificação, a racionalidade e a garantia. Já vimos como a fé cristã pode ser justificada (veja acima, na p. 102). Deve haver pouca dúvida de que a fé cristã pode ser, e provavelmente é, justificada, e justificada mesmo para a pessoa acostumada com o iluminismo e as objeções pós-modernas. Se sua crença resulta da instigação interna do Espírito Santo, ela pode parecer obviamente verdadeira, mesmo depois da reflexão sobre os vários tipos de objeções apresentadas. Ninguém transgride obrigações intelectuais ao aceitar sua crença. Sem dúvida, existem obrigações e deveres intelectuais nas proximidades; quando nota que outras pessoas discordam de você, por exemplo, talvez haja o dever de prestar atenção ao que elas dizem e nas objeções que porventura proponham, o dever de repensar, refletir com mais profundidade, consultar outras pessoas, procurar e considerar outros anuladores possíveis. Entretanto, caso você tenha feito tudo isso e ainda considera a crença atraente, não estará transgredindo um dever ou uma obrigação — em especial se, depois da reflexão, as doutrinas em questão ainda parecerem provir de Deus. Mas o que dizer da racionalidade e da garantia? Pelo fato de a racionalidade estar incluída na garantia, podemos simplificar: O que dizer da garantia? A parte da definição de Calvino da fé que soa especialmente forte para os ouvidos contemporâneos é que do seu ponto de vista fé representa de fato um caso especial de conhecimento (“o conhecimento firme e certo”; cf. também a explicação da verdadeira fé no Catecismo de Heidelberg, na p. 58). A fé não deve ser contrastada com o conhecimento: a fé (pelo menos nos casos paradigmáticos) é conhecimento, e conhecimento de um tipo especial. Trata-se de conhecimento especial em pelo menos dois sentidos. Primeiro,

seu objeto: o que se alega conhecer é (se verdadeiro) de importância ímpar, sem dúvida a coisa mais importante que alguém poderia conhecer. Contudo, também se trata de algo incomum pelo modo que esse conteúdo se torna conhecido; mediante um extraordinário processo cognitivo ou mecanismo de produção de crença. O processo de produção de crença envolvido é dual, ele envolve a Escritura divinamente inspirada (talvez de modo direto, ou talvez na ponta de uma cadeia de testemunhos), e também a instigação interna do Espírito Santo. Os dois elementos envolvem a atividade divina especial. Todavia, se a fé é um meio tão extraordinário para a manutenção da crença, por que chamá-la “conhecimento”? Afinal, o que a torna um caso de conhecimento? Aqui é preciso considerar o modelo com um pouco mais de profundidade. O crente topa com as grandes verdades do evangelho; em função da atividade do Espírito Santo, ele enxerga sua veracidade. E a primeira coisa que se nota nesse modelo é a fé consistir de fato no produto de um processo ou uma atividade de produção de crença, como a percepção ou a memória. A atividade do Espírito Santo envolve um meio pelo qual a crença em um certo conjunto específico de tópicos é corretamente produzida de modo regular. Nesse aspecto, ela se parece com a memória, percepção, razão, empatia, indução e outros processos padrões de produção de crença. (Ela difere desses processos por não integrar nosso equipamento epistêmico natural). O que se requer para o conhecimento (como disse antes) é a produção da crença por faculdades ou processos cognitivos que funcionem com propriedade, no ambiente epistêmico adequado, de acordo com o projeto de design que visa à verdade, e, além disso, que vise com sucesso à verdade. No entanto, conforme o modelo, o que alguém acredita por fé (crenças constituintes da fé) satisfaz essas quatro condições. Em primeiro lugar, quando as crenças são aceitas por fé e resultam da instigação interna do Espírito Santo, elas são produzidas por processos cognitivos em pleno funcionamento; não são o fruto de alguma disfunção cognitiva. Todo o

processo dessas crenças foi projetado por Deus de forma específica para produzir esse resultado exato — como a visão, por exemplo, foi projetada por Deus para produzir certo tipo de crença perceptiva. Quando produz o efeito, portanto, está funcionando de maneira adequada; logo, as crenças em questão satisfazem a primeira condição da garantia. Em segundo lugar, conforme o modelo, o ambiente em que nos encontramos, incluindo a contaminação cognitiva causada pelo pecado, é precisamente o ambiente cognitivo para o qual esse processo foi projetado. Em terceiro, o processo é projetado para produzir crenças verdadeiras.72 E, por último, em quarto lugar, conforme o modelo, as crenças produzidas — a fé nas grandes coisas do evangelho — são verdadeiras; esse é, então, um processo de produção de crença fiável, de tal forma que o processo em questão visa com sucesso à produção da crença verdadeira.

Basicalidade própria e o papel da Escritura Uma observação adicional: conforme o modelo, a fé cristã não consiste na conclusão de um argumento, aceita a partir da base evidencial de outras crenças, ou aceita só por ser uma boa explicação de fenômenos de um tipo ou de outro. As crenças cristãs específicas podem de fato ser explicações excelentes de um fenômeno ou outro (do pecado, por exemplo), porém elas não são aceitas por oferecerem essa explicação. E essas crenças não são aceitas como resultado de uma pesquisa histórica. Também não são aceitas por serem conclusões do argumento a partir da experiência religiosa. De acordo com o modelo, a experiência de um certo tipo está intimamente associada à formação da fé cristã garantida, mas a crença não obtém a garantia por meio do argumento a partir da experiência. Não se trata de o crente notar que ele, ou alguém mais, viveu certo tipo de experiência, e de algum modo concluir que a fé cristã deve ser verdadeira. Ocorre que a experiência (como na percepção) consiste na ocasião para a formação das crenças em questão. Ou seja, a fé cristã é imediata; ela é formada de um modo básico. Não provém de um argumento. Como Jonathan Edwards define: “Essa evidência, que eles — espiritualmente iluminados — têm da verdade das coisas da religião, constitui um tipo de evidência intuitiva e imediata. Eles acreditam que as doutrinas da palavra de Deus são divinas porque observam a divindade nelas”.73 A fé cristã é básica; além disso, a fé cristã é propriamente básica, de tal modo que a propriedade em questão envolve as três virtudes epistêmicas sob consideração. No modelo, o crente está justificado ao aceitar essas crenças de modo básico e é racional ao proceder desse modo; além disso, as crenças têm garantia, e garantia suficiente para o conhecimento, mesmo quando aceitas de modo básico.74 Minha fé cristã pode ter garantia, e garantia suficiente para o conhecimento, mesmo que eu não conheça ou não possa construir uma boa argumentação histórica a respeito da confiabilidade dos

autores bíblicos ou de seus ensinos. Não preciso de boa argumentação histórica acerca da verdade das doutrinas centrais do evangelho a fim de estar garantido ao aceitá-las. Não é necessário que eu seja capaz de encontrar um bom argumento, histórico ou não, para a ressurreição de Jesus Cristo, ou para a afirmação de que ele é de fato o divino Filho de Deus, ou que seu sofrimento e morte sejam, de fato, o sacrifício redentor por meio do qual se torna possível a recondução à relação correta com Deus. A garantia para a fé cristã não exige que eu, ou qualquer outra pessoa, tenha esse tipo de informação histórica; a garantia se dá sem essas questões. Ela não demanda ser validada ou provada por alguma fonte de crença diferente da fé, como a pesquisa histórica. De acordo com o modelo, não exigimos argumentos a partir de premissas historicamente estabelecidas sobre a autoria e a confiabilidade de parte da Escritura, por exemplo, para a conclusão de que essa parte da Escritura seja de fato verdadeira. A Escritura autentica a si mesma, pois não é necessária nenhuma evidência histórica e nenhum argumento para as suas doutrinas e para a justificação da crença nas grandes coisas do evangelho, sua racionalidade e garantia, ou para a veracidade, confiabilidade e caráter divino da Escritura (ou da parte da Escritura que se ensina). O processo pelo qual essas crenças são garantidas aos crentes está livre dessas considerações históricas e de outros tipos; elas são garantidas de um modo básico. Todavia, suponha que uma pessoa acredite com firmeza nessas coisas: essa atitude — ainda que causada — é irracional ou contrária à razão? Suponha que eu leia os evangelhos e passe a acreditar, por exemplo, que Jesus Cristo é, de fato, o Filho de Deus, também divino, e que por sua paixão, morte e ressurreição, nós, seres humanos, caídos e imperfeitos, podemos ser reconciliados com Deus e receber a vida eterna. Suponha que eu acredite nessas coisas sem qualquer evidência externa. Não estaria sendo precipitado nas minhas conclusões, formando crenças com muita rapidez? Na verdade, o que faço em casos assim? Onde está minha base, meu fundamento, minha

evidência? Se não dispuser de evidência proposicional nem do tipo de base oferecida pela experiência perceptiva, não estarei saltando no escuro? Não serei como a pessoa cuja casa está em chamas e pula da janela do terceiro andar, esperando se segurar em um galho de árvore que sabe estar em algum lugar lá fora? Isso não seria irresponsável e irracional? Absolutamente, não. A fé, conforme o modelo, está longe de ser um salto às escuras; nem se assemelha mesmo de forma remota ao salto no escuro. Suponha que você desça uma geleira a 3.600 metros no monte Rainier; há uma nevasca e a sua visão não vai além de quatro passos à frente. Está ficando muito tarde, o vento aumenta e a temperatura cai; você não sobreviverá (usa apenas jeans e uma camisa de malha) a não ser que desça antes de a noite cair. Assim, decide tentar saltar uma fenda à sua frente, mesmo que não possa ver o outro lado e não tenha a menor ideia da distância que terá de saltar. Isso é um salto no escuro. No caso da fé, no entanto, as coisas são totalmente diferentes. O que torna algo um salto no escuro é que o saltador não sabe e não tem crenças firmes sobre o que há lá fora no escuro — você poderia ser bem-sucedido ao saltar uma fenda e continuar a sua descida em triunfo; porém, até onde sabe, poderia, em vez disso, cair 60 metros nas profundezes da geleira. Você não acredita de fato ser capaz de pular a fenda (embora não desacredite também); espera poder, e age a partir do que acredita: se não saltar, não haverá nenhuma chance. Contudo, no caso da fé, o conhecimento firme e certo é muito diferente. Para a pessoa de fé (pelo menos nos casos paradigmáticos), as grandes coisas do evangelho parecem claramente verdadeiras, atraentes. Ela se vê convencida — como no caso das crenças de memória claras ou a sua crença nas verdades elementares da aritmética. Portanto, no sentido do fenômeno, de um ponto de vista interior, não há qualquer similaridade com o salto no escuro. E também não há, obviamente, similaridade (no modelo) do ponto de vista externo. Não se trata de um salto no escuro, não só porque a pessoa que

tem fé está convencida, mas também porque a crença em questão satisfaz as condições de racionalidade e garantia. Uma qualificação importante. Deve-se notar que a explicação da crença, no modelo, integra a explicação da fé paradigmática, da fé ideal — pode-se dizer. Contudo, não faz parte do modelo afirmar que a maioria dos casos de fé é paradigmática ou ideal. A convicção e a crença envolvidas na fé se apresentam com graus de firmeza. Como Calvino coloca: “na mente do fiel, a certeza está mesclada com a dúvida” e “somos atormentados de cima a baixo pela agitação da desconfiança” (A instituição III.ii.18).75 Nos casos mais comuns, opostos aos casos paradigmáticos, o grau de crença será sem dúvida menor que o grau máximo. Além disso, o grau de crença, da parte da pessoa com fé, varia ao longo do tempo e em diferentes circunstâncias. Assim, podese dizer que, sob certas circunstâncias, a crença decorrente da fé conta com garantia suficiente para o conhecimento; essas circunstâncias, devo dizer, provavelmente não são típicas, embora sejam algumas vezes alcançadas por alguns cristãos em certos momentos. Para resumir as características essenciais do modelo: a instigação interna do Espírito Santo de acordo com o ensino de Deus na Escritura é um processo cognitivo ou um mecanismo de produção de crença que gera em nós as crenças que constituem a fé, bem como também um punhado de outras crenças. Para o crente, obviamente, parecerá que essas crenças são verdadeiras: isso é parte do que que queremos dizer quando as chamamos crenças. Elas terão a característica interna da crença, de parecer verdadeira; e elas podem exibir essa característica em graus diferentes. Em segundo lugar, conforme o modelo, essas crenças serão justificadas; elas terão também pelo menos duas outras virtudes. São racionais, no sentido de que a resposta do crente à experiência (dada a crença prévia) se encontra no campo permitido pela racionalidade, ou seja, pela função própria; aí não há qualquer coisa de patológico. E as crenças em questão terão garantia: elas serão produzidas por processos cognitivos funcionando de maneira própria, no ambiente

adequado, de acordo com o projeto de design que visa com sucesso à produção de crença verdadeira. Assim, o processo em questão não é similar aos mecanismos comuns de produção de crença, cuja função é criar; ele depende da ação do Espírito Santo. Repare na observação sarcástica de Hume: Pode-se concluir, levando tudo em conta, que a religião cristã não só esteve acompanhada de milagres nas origens; mesmo hoje nenhuma pessoa razoável pode lhe dar crédito sem um milagre. [...] E quem a aceita movido pela fé está consciente do permanente milagre em si mesmo, milagre subversor de todos os princípios de seu entendimento e que o leva a crer no que existe de mais oposto ao costume e à experiência.76

De acordo com o modelo, Hume (sarcasmo à parte) está correto em parte: a crença nas principais diretrizes do evangelho é produzida nos cristãos pela obra especial do Espírito Santo, não por faculdades e processos de crença com os quais fomos originariamente criados. Além disso, algumas coisas cridas pelos cristãos (e.g., que um ser humano morreu e ressuscitou) são, como diz Hume, contrárias ao costume e à experiência: elas raras vezes acontecem. É óbvio que, de forma contrária à sugestão implícita de Hume, inexiste algo irracional ou oposto à razão em acreditar nisso, dada a instigação interna do Espírito Santo. O que alego em relação a esse modelo é a inexistência de qualquer objeção filosófica bem-sucedida contra ele (no Capítulo 7 considerarei algumas objeções); até onde vão as considerações filosóficas, dada a verdade da fé cristã, esse modelo, ou algo similar a ele, não é outra coisa que a sóbria verdade. Sem dúvida, existem objeções filosóficas à veracidade da fé cristã; considerarei algumas delas nos Capítulos 8 a 10 quando discutir os anuladores da fé cristã. Todavia, eis meu ponto aqui: se a fé cristã é verdadeira, então ela poderia muito bem obter a garantia do modo aqui proposto. Se não há boas objeções filosóficas ao modelo, dada a verdade da fé

cristã, qualquer objeção bem-sucedida ao modelo também será uma objeção bem-sucedida à verdade da fé cristã. Pode-se levar a questão um passo adiante. Se a fé cristã é verdadeira, então muito provavelmente ela tem garantia — se não do modo proposto no modelo Aquino e Calvino estendido, então de algum outro modo. Pois sendo verdadeira, então, de acordo com a fé cristã, há a pessoa de Deus, que nos criou à sua imagem; caímos no pecado e carecemos da salvação; e os meios para a restauração e renovação são apresentados na encarnação, no sofrimento, na morte e ressurreição de Jesus Cristo, a segunda pessoa da Trindade. Além disso, o modo de se apropriar da restauração é pela fé, que, obviamente, envolve a crença nessas coisas — ou seja, a crença nas grandes coisas do evangelho. Todavia, sendo esse o caso, Deus teria o propósito de nos tornar capazes de entrar em contato com essas verdades. Assim, é natural pensar que os processos cognitivos que de fato produzem a crença nos elementos centrais da fé cristã são destinados pelo projetista a produzir essas crenças. Portanto, elas terão garantia.

62 “A Scientist’s Case against God”, versão editada do discurso de Dawkins no Edinburgh International Science Festival, em abril de 1992, publicada em The Independent (April 20, 1992). 63 Como na citação de Richard Dawkins acima. 64 Ao que Carlyle retorquiu: “Meu Deus! Ela seria mais sensata!”. Mark Twain, no entanto, afirmou que jamais ouviu que se tenha oferecido o universo a ela. 65 Resposta à Pergunta 21. Hinário da Igreja Evangélica Reformada. Jongbloed (Holanda): Sínodos das Igrejas Evangélicas Reformadas no Brasil, 1998-2000, p. 713. 66 Afirmo ser essa uma definição ou descrição da fé mediante a apresentação de um paradigma da fé: a fé totalmente formada e desenvolvida seria assim. Portanto, pode-se dizer que quem (por exemplo) crê nessas coisas, mas sem a firmeza suficiente para o conhecimento, tem fé. 67 Summa theologica, II-II, Q. 2 a. 9, réplica à objeção 3 (ênfases minhas). De acordo com Aquino, portanto, a fé é produzida nos seres humanos pela ação divina: “pois assentindo às coisas da fé, a pessoa é elevada acima da própria natureza, ela deve esse assentimento à força sobrenatural que a influencia; essa fonte é Deus. Portanto, o assentimento da fé, seu principal ato, tem causa em Deus, movendo-nos internamente por meio da graça”. (ST IIII, Q. 6 a. 1, resposta). 68 De acordo com Aquino, alguns dos itens propostos por Deus para nossa crença podem ser também objetos de scientia; quando isso ocorre, eles não são aceitos pela fé, pois não é possível, assim ele pensa, ter scientia e fé em relação à mesma proposição. Visto que scientia é geralmente traduzida por “conhecimento”, parece que Calvino contradiz Aquino quando diz que a fé é o conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco. No entanto, as aparências enganam, e não há contradição aqui. Scientia para Aquino não é um tipo qualquer de conhecimento, e sim uma relação muito especial entre a pessoa e a proposição; é uma relação que ocorre quando a pessoa observa que a proposição procede de princípios primeiros que encara como verdadeiros. Assim, a scientia é o termo muito mais restrito que o nosso “conhecimento”. Quando Calvino diz que a fé é o conhecimento seguro e certo da benevolência divina para conosco, ela não atribui à fé o status que Aquino lhe nega. 69 Obviamente, elas poderiam ser aceitas com base em outras proposições e talvez sejam desse modo aceitas em alguns casos. O crente poderia raciocinar assim: tenho forte evidência histórica e arqueológica a favor da confiabilidade da Bíblia (ou da igreja, ou dos meus pais, ou de alguma outra autoridade); a Bíblia ensina as grandes coisas do evangelho;

portanto, provavelmente essas coisas são verdadeiras. Mas pensar nelas como provavelmente verdadeiras não chega à “convicção” e “segurança profundamente enraizada”. 70 Nesse modelo (a despeito de muitos teólogos cristãos do século XX) não é o caso que a revelação decorra de acontecimentos, que precisam ser interpretados. Sem dúvida, isso acontece; mas grande parte da Escritura diz respeito à questão de Deus falar conosco, contar-nos coisas que precisamos saber, de nos comunicar proposições. Veja Nicholas Wolterstorff, Divine Discourse (Cambridge: Cambridge University Press, 1995), para a explicação específica de como a Bíblia pode ser um discurso divino e uma comunicação de Deus a nós. Para ser exato, no que se segue incorporarei ao modelo a proposição de que a explicação de Wolterstorff é correta. (Obviamente, outras explicações também poderiam servir para o modelo). 71 A maioria dos outros: algumas vezes ocorre com o testemunho humano que uma pessoa recebe a delegação de falar por outras, e nesses casos há a mesma estrutura principal/subordinado. Veja Wolterstorff, Divine Discourse, p. 38ss. 72 Embora esse não precise ser o único propósito envolvido. Talvez as crenças produzidas contem com outras virtudes além da verdade; pode ser que permitam entrar em uma relação pessoal com Deus, enfrentar as vicissitudes da vida com tranquilidade, usufruir o conforto resultante de forma natural da crença constituinte da fé, e assim por diante. 73 The Sermons of Jonathan Edwards: A Reader, Wilson A. Kimnach et al. (orgs.). New Haven: Yale University Press, 1999, p. 129. 74 Sem dúvida, isso não significa que o crente possa rejeitar os anuladores propostos sem examiná-los (veja os Capítulos 8, 9 e 10); e ele não se compromete com a recusa de considerar a possibilidade de estar errado. Ele pode estar errado: isso é parte da condição humana. Se houvesse uma demonstração ou um argumento poderoso de outras fontes contra a crença cristã — para o qual nem ele e nem a comunidade cristã pudesse encontrar a réplica satisfatória —, então ele poderia ter um problema; esse seria o exemplo genuíno de oposição entre a fé e a razão. No entanto, nenhuma demonstração ou argumento desse tipo ainda surgiu. 75 P. 42. 76 An Enquiry Concerning Human Understanding (LaSalle, IL: Open Court Publishing, 1956) p. 145. [Publicado em português com o título: Investigações sobre o entendimento humano, São Paulo: Editora da Unesp, 2004.]

capítulo 6 Selado no coração

Como vimos, o modelo Aquino e Calvino estendido mostra como a fé cristã pode ter garantia: no modelo, a fé cristã é produzida no crente pela instigação interna do Espírito Santo, endossando o ensinamento da Escritura — divinamente inspirada pelo Espírito Santo. A fé é resultado da obra do Espírito — que, conforme João Calvino e o modelo, consiste no “conhecimento firme e certo da benevolência divina para conosco, fundado sobre a verdade da promessa gratuita feita em Cristo pelo Espírito Santo, revelada a nossa mente e selada em nosso coração”. De acordo com o modelo, essas crenças possuem justificação, racionalidade e garantia. Portanto, podemos dizer com Calvino que elas são “reveladas à nossa mente”. No entanto, há mais que isso; elas são também “seladas em nosso coração”. O que quer dizer essa afirmação, e como ela entra no modelo? Pelo fato de essas verdades serem reveladas à nossa mente, o que mais poderíamos precisar? Por que elas também precisam ser seladas em nosso coração? Para responder, suponha que perguntemos se uma pessoa poderia ter as crenças em questão e, apesar delas, não chegar a ter fé. A resposta tradicional cristã é: “Até mesmo os demônios creem, e tremem” (Tg 2.19); mas os demônios não têm fé. Qual é, pois, a diferença? O que há a mais na fé além da crença? O que distingue o cristão dos demônios? De acordo com o modelo, os contornos da resposta são dados no texto há pouco mencionado: os demônios tremem. Eles creem, mas odeiam essas coisas; e também odeiam a Deus. Talvez também se apeguem à mera expectativa de que essas coisas não sejam de fato assim, ou talvez acreditem

nelas de maneira autoenganadora. Eles sabem do poder de Deus e que não têm esperança de vencer a luta contra ele; apesar disso, entram na luta, talvez na condição autoenganadora conhecida de saber, em certo sentido, que jamais poderão vencer e, ao mesmo tempo, em outro nível, não aceitam a verdade ou a escondem de si mesmos. Talvez o problema aqui não seja só cognitivo, mas afetivo: sabendo que não poderão vencer, insistem em brigar, considerando-se corajosos como Prometeu, lutadores heroicos contra adversidades na prática insuperáveis — uma condição, eles ressaltam, em que Deus jamais se encontra, e, por isso, o meio para se considerarem moralmente superiores. Os demônios também conhecem o esquema magnífico para a salvação dos homens, mas o julgam — com sua misericórdia e seu amor em sofrimento — ofensivo e sem valor. Sem dúvida, eles endossam a perspectiva de Nietzsche: promover o amor cristão (incluindo-se o amor exibido na encarnação e redenção) é uma estratégia da parte dos fracos, lamurientos, ressentidos, medrosos, covardes, servis, enganadores e pusilânimes. No entanto, a pessoa de fé não acredita apenas nas afirmações centrais da fé cristã; ela também (paradigmaticamente) julga todo o esquema da salvação muitíssimo atrativo, encantador, tocante, uma fonte de enorme admiração. Profundamente grata ao Senhor por sua bondade, responde ao amor sacrificial com o amor pessoal. Portanto, a diferença entre crentes e demônios reside pelo menos em parte na área dos afetos: amor e ódio, atração e repulsão, desejo e aversão. Em termos tradicionais, a diferença reside na orientação da vontade. Ela não se encontra em sentido primário na função executiva da vontade (a função da vontade de tomar decisões, buscar e evitar diferentes estados de coisas), embora, obviamente, isso também esteja envolvido, mas sim na função afetiva — amar e odiar, achar atrativo ou repugnante, aprovar ou desaprovar. Os crentes, as pessoas de fé, não têm apenas crenças corretas, mas também afetos corretos. A conversão e a regeneração alteram os afetos como muda a crença.

De acordo com Calvino, o Espírito Santo é o responsável por selar em nosso coração o conhecimento firme e certo da benevolência divina para conosco; ele é responsável por essa renovação e redirecionamento dos afetos. Calvino é algumas vezes retratado como espiritualmente frio, indiferente, sem coração, racionalista — uma pessoa em quem o intelecto predomina em excesso. Essas acusações podem (ou não) ter alguma validade em relação ao academicismo reformado do século passado; contudo, mesmo o exame superficial da obra de Calvino revela que essas acusações são totalmente indevidas. O emblema de Calvino era um coração flamejante sobre uma mão estendida; ele levava o seguinte mote: Cor meum quase immolatum tibi offero, Domine.77 Sobre o Espírito Santo, ele diz: “persistentemente causando a evaporação e destruindo os nossos vícios e desejos desregrados, ele inflama nosso coração com o amor a Deus e com zelosa devoção”. A instituição visa do começo ao fim à prática da vida cristã (que em essência envolve os afetos), não uma teoria teológica; teorias teológicas são introduzidas apenas a serviço da prática da vida cristã. Portanto, a diferença inicial entre o crente e o demônio é em parte uma questão de afeto: o primeiro é inclinado à gratidão e ao amor, o último ao medo, ódio e desprezo. O Espírito Santo produz conhecimento no crente; selando esse conhecimento em nosso coração, no entanto, ele também produz os afetos corretos. O mais importante entre esses afetos corretos é o amor a Deus — o desejo por ele, o desejo de querer conhecê-lo, de manter um relacionamento pessoal com ele, de alcançar certo tipo de unidade com ele, além de se deleitar com ele, regozijando-se com sua beleza, grandeza, santidade e coisas semelhantes. Há também a confiança, aprovação, gratidão, intenção de agradar, expectativa de coisas boas, e muito mais. Portanto, a fé não é só uma questão de acreditar em certas proposições — nem mesmo nas proposições monumentais do evangelho. A fé é mais que a crença; quando produz a fé, o Espírito Santo faz mais que produzir em nós a crença sobre a veracidade desta ou aquela proposição. Como Aquino repete quatro vezes em

cinco páginas, “pelo Espírito Santo nos tornamos amantes de Deus”.78 E conforme Martinho Lutero, São duas as formas de crer. Em primeiro lugar, posso ter fé a respeito de Deus. Esse é o caso quando sustento a veracidade do que se diz a respeito de Deus. Essa fé está no mesmo nível que o assentimento às afirmações a respeito dos turcos, dos demônios e do inferno. Uma fé desse tipo poderia ser chamada conhecimento ou informação em vez de fé. Em segundo lugar, também há a fé em. Tenho essa fé quando não apenas sustento a veracidade do que se diz a respeito de Deus, mas quando coloco a minha confiança nele de tal modo a entrar em uma relação pessoal com ele, acreditando firmemente que o verei ser e fazer tudo o que me foi ensinado... A palavra em é bem escolhida e merece a devida atenção. Não dizemos: “Eu creio Deus Pai” ou “Eu creio a respeito de Deus Pai, mas sim eu creio em Deus Pai, eu creio em Jesus Cristo e Eu creio no Espírito Santo”.79

Jonathan Edwards, um dos grandes mestres da vida interior e um estudioso inigualável dos afetos religiosos, concorda com Calvino que a verdadeira religião é mais que apenas a crença correta. De fato, de acordo com Edwards, a verdadeira religião é em primeiro lugar uma questão de ter os afetos corretos: “A verdadeira religião, em grande parte, consiste nos afetos sagrados”.80 “De ponta a ponta, a Sagrada Escritura coloca a religião muito nos afetos; como o medo, a esperança, o amor, o ódio, o desejo, a alegria, a gratidão, a compaixão e o zelo” (p. 272). O conhecimento apenas não é suficiente para a verdadeira religião: Deve-se distinguir o mero entendimento conceitual — em que a mente apenas faz observações no exercício da faculdade especulativa — do sentimento do coração — em que a mente não só especula e observa, mas aprecia e sente. Esse tipo de conhecimento, por meio do qual o homem tem uma percepção sensível de agradabilidade e repugnância, ou doçura e aversão, não é do mesmo tipo de conhecimento que se sabe o que é um triângulo e um quadrado. Um deles não passa de conhecimento especulativo; o outro é conhecimento sensível — em que há mais que o intelecto em jogo; o coração é o sujeito desse conhecimento, ou a alma — como ser que não apenas observa, mas tem inclinações e é agradado ou desagradado. (p. 272)

Edwards não pensa que a verdadeira religião consista só em uma questão de afeto, de amor e ódio, como se a crença e o entendimento não tivessem qualquer papel a desempenhar: “Os afetos sagrados não são calor sem luz; surgem de alguma informação do entendimento, alguma instrução espiritual recebida pela mente, alguma luz ou conhecimento efetivo” (p. 266). Não obstante, a verdadeira religião envolve em sentido primário (assim ele parece dizer) os afetos. Em particular, a verdadeira religião envolve o amor: “toda religião verdadeira consiste basicamente no amor às coisas divinas” (p. 271). O amor traz outros afetos a reboque: “o amor a Deus”, ele diz, “causa no homem o deleite com os pensamentos a respeito de Deus, com a presença de Deus, o desejo de conformidade com Deus e de ter prazer nele” (p. 208); em outro trecho, ele acrescenta que quem ama a Deus terá também deleite com a contemplação das grandes coisas do evangelho, encontrando prazer nelas, considerando-as atrativas, magníficas, interessantes (p. 250). Além disso, quem assim se deleita com as grandes verdades do evangelho pode ter aversão às várias tentativas de trocar o evangelho esplendidamente rico e poderoso por substitutos baratos e triviais. Mais ainda, a aquisição dos afetos corretos permite à pessoa perceber a verdadeira odiosidade do pecado: “Quem enxerga a beleza da santidade necessariamente percebe a odiosidade do pecado, o contrário da santidade” (p. 274); e quem vê a odiosidade do pecado (em si mesmo ou nos outros) também odiará (dada a função própria) o pecado. Desse modo, a conversão consiste de modo fundamental no redirecionamento da vontade, na cura da desordem afetiva que nos aflige. Ela é o distanciamento do amor próprio, de pensar em si mesmo como o ser mais importante do universo, e segue em direção ao amor a Deus. Mas o que é esse amor a Deus e como entendê-lo? William James, o cavalheiro educado e sofisticado da Nova Inglaterra vitoriana, destaca os elementos pulsantes de desejo, anseio e aspiração nos escritos de Teresa de Ávila, olha com certo ar de superioridade e acha tudo de mau gosto, um tanto degradado. James

graceja: “Na maior parte, seu conceito sobre religião parece ter sido a de um infindável flerte amoroso […] entre a devota e a divindade”.81 Mas quem se dá mal é James. Há uma conexão íntima e duradoura entre eros e a espiritualidade desenvolvida. Aqui não deveríamos considerar eros apenas uma questão de amor romântico ou sexual. De modo mais amplo, eros é um gênero do qual o amor romântico faz parte, um tipo de amor do qual o amor romântico e sexual é um caso especial. Para mim, a essência de eros é anseio, desejo, Sehnsucht, aspiração; os Salmos, em particular, são ricos em tais expressões de eros: Minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; meu coração e meu corpo clamam pelo Deus vivo. (Sl 84.2) Ó Deus, tu és o meu Deus; eu te busco ansiosamente. Minha alma tem sede de ti; meu ser anseia por ti... (Sl 63.1) Pedi uma coisa ao Senhor, e a buscarei: […] contemplar o esplendor do Senhor. (Sl 27.4) Assim como a corça anseia pelas águas correntes, também minha alma anseia por ti, ó Deus! Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei e verei a face de Deus? (Sl 42.1,2) Abro minha boca e suspiro, pois anseio pelos teus mandamentos. (Sl 119.131)

Esse amor a Deus não é, por exemplo, como a inclinação para passar a tarde organizando sua coleção e selos. Ele é anseio, pleno de desejo e de aspiração; e esse amor é físico e espiritual: “meu corpo anseia por ti, minha alma suspira por ti”. Mesmo que eros seja mais amplo que o desejo sexual, ele é análogo a esse desejo. Há um forte e poderoso desejo de união com Deus, a unificação com Cristo, à qual se refere João 17. Obviamente, o amor sexual não é o único similar. Outro similar próximo seria o amor entre pais e filhos pequenos; esse tipo de amor também é empregado repetidas vezes na Escritura como figura do amor divino — o amor de Deus a nós e nosso amor a ele. Aqui também há um tipo de anseio, desejo, aspiração à aproximação;

pense no anseio, na saudade de casa, de uma criança de oito anos obrigada a viajar para longe nas férias, ou no amor da mãe ao filho doente que sofre. Há outras manifestações do mesmo tipo de desejo por união. Considere a beleza impressionante e celestial das pradarias nas manhãs de junho, ou no glorioso aspecto, mas levemente ameaçador, das montanhas do grupo Cathedral em Grand Teton, ou no esplendor deslumbrante dos montes Shuksan e Baker vistos do Skyline Ridge, ou na batida e no estrondo atemporal na arrebentação, ou na doçura enternecedora de Dona nobis pacem de Mozart, ou na incrível graça, beleza e poder de uma sequência de patinação no gelo ou de um retorno de kickoff de 98 jardas. Em cada caso, há um tipo de aspiração, algo talvez um pouco parecido com a nostalgia, ou talvez saudade de casa, o anseio por algo que não se sabe muito bem o que é. Esse anseio difere do eros sexual, embora talvez esteja conectado com ele em um nível profundo. Nesses casos, não é fácil dizer com precisão o que se deseja, mas pode se assemelhar a um tipo de união: é como se você desejasse ser absorvido pela música, tornar-se parte do oceano, unir-se à paisagem. Sem dúvida, você adoraria escalar a montanha, mas isso não é o suficiente; também gostaria de se unir a ela, de algum modo, de se tornar parte dela, ou que a montanha, a sua beleza ou esse aspecto particular dela, de algum modo se tornasse parte de sua alma.82 Obviamente, isso não acontece; você permanece insatisfeito. Jean-Paul Sartre disse que o homem (e duvido que ele quis se referir só aos humanos do sexo masculino) era “de trop”, em demasia; talvez a verdade seja mais próxima de “não suficiente”. Ele também disse que o homem era uma “paixão inútil”. Realmente, o que ele deveria ter dito é que o homem é uma paixão insatisfeita. Quando confrontados pela beleza, nunca é o bastante; jamais estamos satisfeitos; há algo mais, algo mais que desejamos, mas que só podemos conceber de forma indistinta. Somos limitados a meras espiadelas fugazes da satisfação real — insatisfeitos até sermos preenchidos com o amor divino. Esses anseios também são tipos de anseios por Deus; e as satisfações

breves, mas felizes, são um tipo de amostra da satisfação obtida por quem “glorifica a Deus e o goza para sempre”.83 Esses tipos de anseio, desejo, eros, apontam para algo mais profundo. São um sinal ou indício da realidade mais profunda, um tipo de amor a Deus do qual agora não temos mais que pistas e indícios. Porém eles são também um sinal, símbolo, ou indício do amor de Deus — não só do amor que os filhos de Deus terão algum dia por ele, mas do amor que Deus também tem por eles. Como se notou antes, a Escritura compara com regularidade o amor divino a seu povo e o amor de Cristo à igreja com o amor do noivo à noiva. A perspectiva tradicional amplamente compartilhada sobre Deus é a de sua impassibilidade, ou seja: sem desejo, afeto ou paixão, incapaz de sentir pena da triste condição do mundo e do sofrimento de seus filhos, e igualmente incapaz de sentir alegria, deleite, anseio ou aspiração. Grosso modo, a razão para pensar assim é que, na tradição originada na filosofia grega, as paixões eram tidas como (o que mais?) passivas, algo que acontece a alguém, algo que se sofre, ao invés de ser algo ativo. Você está sujeito a ódio, amor, alegria, e todo o resto, e sofre. Deus, contudo, não “sofre” por conta de qualquer coisa; ele age, e jamais é passivo; não está sujeito a nada. Em relação ao eros, além disso, há uma razão adicional para considerar que ele não integra a vida de Deus: ansiar e aspirar significam carência e incompletude. Quem aspira a alguma coisa ainda não a tem, e carece dela, ou pelo menos pensa precisar; sem dúvida, Deus é paradigmaticamente completo e não precisa de nada além de si mesmo. Como, pois, ele poderia estar sujeito ao eros? O amor de Deus, de acordo com essa tradição, é exclusivamente agapē, benevolência,84 o amor completamente altruísta e magnânimo em que há misericórdia, sem nenhum elemento de desejo. Deus nos ama, porém não há qualquer coisa que possamos fazer por ele; Deus não deseja nada de nós. Neste ponto em particular, penso que devemos abandonar a tradição; este é um dos pontos em que se dá muita atenção à filosofia grega e muito pouca

atenção à Bíblia. Acredito que Deus pode, e de fato, sofra; sua capacidade de sofrer excede a nossa na medida exata em que seu conhecimento excede o nosso. O sofrimento de Cristo não foi uma farsa; ele estava preparado para suportar as agonias da cruz e o próprio inferno (“Deus meu! Deus meu! Por que me desamparaste?”).85 Deus, o Pai, estava preparado para suportar a angústia de ver seu Filho, a segunda pessoa da Trindade, entregue à amarga, cruel e vergonhosa morte na cruz. E o mesmo não é verdade acerca de outras paixões? “No céu haverá mais alegria por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam de arrependimento” (Lc 15.7); Deus mesmo está excluído dessa alegria? De modo similar em relação ao eros: “Como o noivo se alegra da noiva, assim o teu Deus se alegrará de ti.” (Is 62.5). O noivo se alegra da noiva e não a ama com o mero amor agapē. Ele não é como seu benevolente irmão mais velho (embora também se diga que Cristo é o nosso irmão mais velho). Ele deseja e anseia por algo fora de si mesmo, em particular a união com a amada. A igreja é a noiva de Cristo, e não sua irmã mais nova. Essas imagens da Escritura implicam a passibilidade divina, que seu amor a nós não é apenas agapē. Elas sugerem que o amor de Deus ao povo envolve o elemento de desejo: ele deseja de nós o tipo correto de resposta, e deseja a união conosco, como desejamos a união com ele. Podemos dar mais um passo. De acordo com Jonathan Edwards: “A infinita felicidade do Pai consiste na alegria do Filho”.86 Presumivelmente, não se fala aqui em agapē. Não existe aqui qualquer elemento de misericórdia, como em seu amor por nós. Em vez disso, trata-se de Deus ter enorme prazer, gozo, deleite, felicidade com seu Filho. Dada a existência necessária do Pai e do Filho, e pelo fato de eles terem, em essência, as mais importantes propriedades, não há como Deus ser privado do Filho;87 no entanto, se (per impossible) Deus fosse privado do seu Filho, isso ocasionaria uma tristeza inimaginável. O amor em questão é eros e não agapē.88 Trata-se do desejo de união, satisfeito de forma contínua, eterna e alegre. E o fato de sermos criados

à imagem divina envolve nossa capacidade para o eros e para o amor ao que é genuinamente amável, como também envolve nossas capacidades de conhecer e agir. Portanto, o eros em nossa vida é também sinal ou símbolo do amor erótico de Deus. O amor erótico humano é um sinal de algo mais profundo, algo tão profundo que não é criado, é uma característica original do universo, permanente e necessariamente presente. Eros indubitavelmente caracteriza muitas criaturas diferentes dos seres humanos; sem dúvida, parte significativa do universo vivo compartilha essa característica. Mais importante, todos nós, criaturas com eros, refletimos e compartilhamos dessa profunda propriedade divina. Portanto, a realidade mais fundamental é aqui o amor que se apresenta por Deus e em Deus: o amor na Trindade.89 Esse amor é uma questão de perceber, desejar e se alegrar na união com algo valioso — no caso, alguém com valor supremo. E o amor de Deus por nós é manifestado no convite generoso para participarmos desse círculo atrativo (embora, obviamente, não para a igualdade ontológica), satisfazendo assim os anseios mais profundos de nossa alma. Em suma: de acordo com o modelo, a fé é questão de conhecimento firme e certo, revelado à mente e selado no coração. A pessoa tem o coração selado, conforme o modelo, caso existam os tipos corretos de afetos; em essência, ela ama a Deus acima de tudo e o próximo assim como a si mesma. Há uma relação íntima entre revelar e selar, conhecimento e afeto, intelecto e vontade; na pessoa de fé, eles cooperam de modo profundo, complexo e íntimo. E o amor envolvido é, em parte, erótico; ele envolve o anseio e a aspiração que nos são conhecidos. Por último, o amor entre os seres humanos — homens e mulheres, pais e filhos, e amigos — é sinal ou indício de algo mais profundo: o amor humano maduro a Deus, por um lado, e, por outro, o amor de Deus manifestado entre os membros da Trindade e no amor de Deus aos filhos.

77 “Oh, Senhor, ofereço a ti meu coração em chamas.” Essa fenomenologia particular — expressa com naturalidade em termos do próprio coração sendo aquecido ou mesmo em chamas — remonta à tradição cristã, a quando os discípulos que encontram Jesus ressuscitado na estrada para Emaús: “Então os olhos deles foram abertos, e o reconheceram; e ele desapareceu de diante deles. E disseram uns aos outros: Acaso o nosso coração não ardia pelo caminho, quando ele nos falava e nos abria as Escrituras?” (Lc 24.31,32). 78 Summa contra gentiles, Charles O’neil (transl.). Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1975, Book IV, chaps. 21, 22 (p. 122, 125-6). [Publicado em português com o título: Suma contra os gentios, Porto Alegre: Livraria Sulina Editora.] 79 Luther’s Catechical Writings, J. N. Lenker (transl.), 2 vol. Minneapolis: Lutheran Press, 1907) vol. 1, p. 203, apud H. R. Niebuhr in: Faith on Earth (New Haven: Yale University Press, 1989) p. 9. Veja também Pascal: “Assim, aqueles a quem Deus conferiu a religião por meio do sentimento do coração são muito afortunados e justamente convencidos” (Pensées, M. Turnell (transl.) [London: Harvill Press, 1962], p. 282). [Publicado em português com o título: Pascal, Pensamentos, São Paulo: Martins Fontes, 2005.] 80 Treatise Concerning Religious Affections, John E. Smith (org.). New Haven: Yale University Press, 1959 [1746], p. 95. As referências são dessa edição. 81 The Varieties of Religious Experience. New York: Longmans, Green, 1902, p. 340. [Publicado em português com o título: James, W. As variedades da experiência religiosa, São Paulo: Cultrix, 1991] 82 Compare com C. S. Lewis: nosso “segredo inconsolável” é que “não queremos apenas contemplar a beleza, embora, Deus sabe, mesmo isso seria suficientemente recompensador. Queremos algo que não se pode colocar em palavras — a união à beleza observada, sua recepção, banharmo-nos nela, sermos parte dela” (The Weight of Glory [London: Society for Promoting Chrisitan Knowledge, 1942, p. 8]). 83 Veja a primeira pergunta e resposta do Catecismo maior de Westminster: “Pergunta 1. Qual é o fim supremo e principal do homem? Resposta: O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre” (São Paulo: Cultura Cristã, 2002, 12 ed., p. 7). 84 Veja Anders Nygren, Agape and Eros, Philip S. Watson (transl.) (New York: Macmillan, 1969). A edição originária em sueco foi publicada em 1935. 85 Podemos dizer que Cristo como ser humano (de acordo com a sua natureza humana) sofreu, enquanto Cristo como divino (de acordo com a sua natureza divina) não sofreu?

Aqui não é o lugar para tentar responder a uma questão tão antiga e profunda quanto essa, mas estou inclinado a considerar essa sugestão incoerente. Há essa pessoa, a segunda pessoa da Trindade divina, que se encarnou. Essa pessoa sofre; se houvesse aqui dois núcleos de consciência, um que sofre e outro que não sofre, de fato existiriam duas pessoas (uma humana e a outra divina) em lugar de uma pessoa humana e divina. Veja, de minha autoria, “On Heresy, Mind and Truth”, In: Faith and Philosophy, 16, n. 2 (1999): 182. 86 “An Essay on the Trinity”, In: Treatise on Grace and Other Posthumously Published Writings, Paul Helm (org.). Cambridge: James Clarke, 1971, p. 105. 87 Essa é a resposta a um dos argumentos tradicionais da conclusão que Deus não tem paixões: o Pai e o Filho de fato precisam um do outro, mas se trata de uma carência satisfeita de forma necessária e eterna. 88 “Assim, quando dizemos que Deus ama o Filho, não nos referimos ao amor que nega a si mesmo, é sacrificial ou misericordioso. Falamos do amor de deleite e prazer... Ele tem prazer no Filho. Sua alma se deleita nele! Quando olha para o Filho, ele sente prazer, admira, protege, elogia e se regozija com o que vê” (John Piper, The Pleasures of God [Portland: Multnomah, 1991], p. 31). 89 A ideia da Trindade divina distingue o cristianismo de outras religiões teístas; aqui se vê uma forma em que essa doutrina faz diferença de verdade, pelo fato de ela reconhecer o eros e o amor altruísta como o nível fundamental da realidade. Isso sugere que deveríamos nos inclinar ao conceito social da Trindade, a concepção de Gregório e dos patriarcas de Capadócia, em lugar da concepção agostiniania, que flerta com o modalismo? Veja Cornelius Plantinga Jr., “Social Trinity and Theism”, In: Trinity, Incarnation, and Atonement, Ronald Feenstra & Cornelius Plantinga Jr. (orgs.) (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1989).

capítulo 7 Objeções

O modelo Aquino e Calvino estendido serve para mostrar que a crença especificamente cristã pode ter justificação, racionalidade e garantia — e como. De acordo com o modelo, nós, seres humanos, caímos no pecado, condição horrível da qual não podemos nos livrar. Jesus Cristo, ser humano e Filho de Deus, expiou nossos pecados por meio do seu sofrimento e morte, possibilitando-nos assim a entrada em uma relação correta com Deus. A Bíblia é (entre outras coisas) a comunicação escrita de Deus para nós seres humanos, proclamando suas boas-novas. Contudo, por conta de nossa condição decaída, precisamos mais do que a informação: também carecemos de uma mudança de coração. Essa mudança é oferecida pela instigação interna do Espírito Santo; ao mesmo tempo, ele nos permite enxergar a verdade das grandes coisas do evangelho e guiar nossos afetos na direção certa. Desse modo, o processo por meio do qual passamos a crer nisso satisfaz as condições de racionalidade e garantia. Neste capítulo, considerarei algumas objeções ao modelo, compreendendo o procedimento como um argumento para conclusão de que a fé cristã pode ter racionalidade e garantia.

A garantia e o argumento da experiência religiosa Em primeiro lugar, vários pensadores consideram a questão da justificação ou garantia da fé cristã pela experiência religiosa; eles argumentam que a fé cristã não pode ser assim justificada ou garantida. No modelo não é claro se a fé cristã recebe a garantia da experiência religiosa ou por meio dela. Suponha que minha crença nas grandes coisas do evangelho resulte da instigação interna do Espírito Santo. Assim, é verdade que essa crença recebe sua garantia da experiência religiosa? Talvez sim, talvez não; isso não é claro, e, considerando o modelo, a resposta poderia ser positiva ou negativa. Portanto, em sentido técnico, essas objeções não se aplicariam às minhas afirmações do como essa crença pode ser garantida. Todavia, com o propósito de considerar essas objeções, admitamos o que pode ser falso: (no modelo) as crenças recebem de fato sua garantia da experiência. Então podemos encarar as objeções como ao menos inicialmente relevantes. Parece-me que essa primeira objeção é realmente menos uma objeção do que uma confusão, uma omissão de uma distinção importante. De acordo com John Leslie Mackie, Uma experiência pode ter um objeto real: ordinariamente supomos que nossa experiência perceptiva normal seja a consciência de coisas materiais espaçotemporais existentes de modo independente de nós, ou a inclua. A questão, então, é saber se as experiências religiosas, em especial, devem ser consideradas detentoras de objetos reais, a fim de nos dar informações genuínas sobre entidades sobrenaturais ou seres espirituais existentes de modo independente de nós.90

Até aqui tudo bem: essa é a questão de saber se a experiência religiosa pode ou de fato oferece garantia para a crença em “entidades sobrenaturais ou seres espirituais existentes de modo independente de nós ”. Mackie prossegue:

A questão adicional crucial é se o conteúdo delas [i.e., o conteúdo das experiências religiosas] contém alguma verdade objetiva. […] O problema é se a hipótese de haver objetivamente alguma coisa a mais explica melhor para a totalidade do domínio dos fenômenos que a explicação apresentável sem essa hipótese. (p. 183)

E conclui o exame da possível garantia conferida pela experiência religiosa com as seguintes palavras: Se a experiência religiosa não gera nenhum argumento a respeito da realidade sobrenatural extra e se, como vimos no capítulo anterior, não há outro bom argumento a favor dessa conclusão, então essas experiências incluem em seus conteúdos crenças provavelmente falsas e de qualquer modo injustificadas. [Aqui “injustificado” significa “sem garantia”]. (p. 186)

Mackie presume que a crença teísta (ou outras crenças religiosas) pode ser garantida por meio da experiência religiosa, ou por meio dela apenas se houver um bom argumento sobre a existência e o caráter dessa experiência em relação à existência de Deus (ou “algo a mais”). Ele não argumenta a favor da afirmação, apenas presume como absolutamente certo que o único modo pelo qual uma crença (ou pelo menos uma crença religiosa ou teísta) poderia receber garantia da experiência decorreria de um argumento implícito partindo da existência e das propriedades da experiência para a verdade da crença em questão. Mas por que admitir isso? Com certeza, não se trata de algo autoevidente. De fato, uma vez coloquemos a questão de modo explícito, isso parece muito problemático. Presume-se que ninguém gostaria de dizer que as crenças perceptivas recebem garantia da experiência apenas se houver um bom argumento a partir da existência da experiência perceptiva em relação à verdade das crenças perceptivas; no entanto, qual é a razão para dizer algo assim no caso da crença teísta ou cristã? Creio que Mackie faça essa suposição aqui por conta de outra: a crença teísta, ou cristã, é, ou se assemelha muito, a uma hipótese científica — por

exemplo, como a relatividade especial, a mecânica quântica ou a teoria da evolução. Ainda sobre a discussão de a crença teísta poder receber garantia por meio da experiência religiosa, ele observa (de modo característico): “Aqui, como em outros lugares, a hipótese sobrenaturalista fracassa por haver uma alternativa naturalista adequada e muito mais econômica” (p. 198). A observação é relevante apenas se pensamos na crença em Deus como, ou talvez como, um tipo de hipótese científica, uma teoria introduzida para explicar um conjunto de evidências, e aceitável ou garantida à medida que explica essas evidências. Nessa maneira de considerar a questão, existe um conjunto de evidências relevantes compartilhadas por crentes e descrentes; o teísmo é uma hipótese apresentada para explicar esse conjunto de evidências, e o naturalismo é outra hipótese; e o teísmo tem garantia só na medida em que constitui uma boa explicação, ou pelo menos uma explicação melhor que o naturalismo para esse conjunto de evidências. No entanto, por que deveríamos entender o teísmo nesses termos? Por que deveríamos entender que o teísmo é um tipo de hipótese, um tipo de ciência incipiente? Considere o modelo Aquino e Calvino estendido. Nele ninguém, em primeiro lugar, repara nas experiências (seja lá como forem exatamente) conectadas com a operação do sensus divinitatis, e então faz uma rápida inferência sobre a existência divina. Não se argumenta assim: “Estou ciente da beleza e majestade dos céus (ou da minha própria culpa, ou que estou em perigo, ou da beleza gloriosa da manhã, ou das circunstâncias favoráveis em que me encontro); logo, Deus existe”. O cristão não argumenta: “Encontrome apreciando e me deleitando nas grandes coisas do evangelho e inclinado a acreditar nelas; logo, elas são verdadeiras”. Esses seriam argumentos tolos; felizmente, eles não são invocados e nem fazem falta. As experiências e crenças envolvidas na operação do sensus divinitatis e instigação interna do Espírito Santo servem como ocasiões para a crença teísta, e não como premissas do argumento a seu favor.

Pode-se dizer o mesmo, por exemplo, acerca das crenças da memória. Obviamente, uma pessoa poderia adotar aqui também a posição de Mackie. Afirmaria que nossas crenças sobre o passado são de fato como hipóteses científicas, introduzidas para explicar esses fenômenos no momento presente como (entre outras coisas) memórias aparentes, e se houvesse uma explicação mais “econômica” para esses fenômenos sem postular fatos passados, então nossas crenças comuns sobre o passado não teriam garantia. Mas é claro que se trata apenas de fantasia; de fato, não aceitamos as crenças da memória como hipóteses para explicar a experiência presente. Qualquer pessoa, mesmo as crianças e as pessoas sem qualquer interesse em explicar seja lá o que for, aceitam crenças mnêmicas. Todos nós nos lembramos de coisas como o que comemos e bebemos no café da manhã, e jamais, ou quase nunca, propomos essas crenças como boas explicações para experiências e fenômenos presentes. Pode-se dizer o mesmo sobre o teísmo e a fé cristã no modelo sugerido. Mackie aparentemente acredita que: 1) a crença teísta é, ou é como, de forma relevante, uma hipótese quase científica introduzida para explicar a experiência religiosa (talvez entre outras coisas). Isso explica por que ele acredita em: 2) a crença teísta não pode receber garantia da experiência religiosa a não ser que haja um bom argumento a partir de premissas que relatem as experiências a favor da existência divina. Contudo, como vimos: 1) é falso. Talvez Mackie insista em 2), mesmo que se torne claro que o cristão não toma a crença em Deus ou na fé cristã em geral como hipótese; apesar disso, talvez ele possa insistir que a única forma para essa crença poder receber garantia seria como hipótese quase científica bem-sucedida. Todavia, precisamente isso é refutado pelos modelos Aquino e Calvino e Aquino e Calvino estendido. Esses modelos mostram como é possível que as crenças teísta e cristã tenham garantia, mas não por serem hipóteses esclarecedora de certo conjunto de dados. Se a fé cristã for verdadeira, então, obviamente, poderiam existir processos cognitivos como o sensus divinitatis,

a instigação interna do Espírito Santo e a fé. Como vimos, as crenças produzidas por esses processos satisfariam as condições necessárias e suficientes para se ter a garantia: elas seriam produtos de faculdades cognitivas funcionando propriamente em um ambiente epistêmico adequado de acordo com um projeto de design que visa com sucesso à verdade. Por isso, é de todo falso que a fé cristã disponha de garantia (e possa ser conhecimento) apenas se nós também tivermos um bom argumento a partir de experiências envolvidas na operação de instigação interna do Espírito Santo para a verdade da fé cristã; e o mesmo se aplica à crença teísta e ao sensus divinitatis. Por que supor que, se Deus quer nos dar a capacidade de ter o conhecimento de certo tipo, então ele deve providenciar que as coisas sejam de tal modo que possamos ver uma conexão argumentativa entre as experiências envolvidas nos processos cognitivos que ele seleciona e a verdade das crenças que esses processos produzem? Essa exigência é de todo gratuita e também falsa, visto que ela não se aplica a exemplos claros de fontes de conhecimento como a percepção, a memória e a intuição a priori.

O que a experiência pode mostrar? A segunda objeção: a fé cristã e teísta jamais poderia receber garantia da experiência religiosa, pois a experiência religiosa nunca indica ou mostra algo tão específico como a existência do Deus pessoal — sem mencionar a crença de que Deus estava em Cristo reconciliando o mundo consigo mesmo. Como a experiência poderia revelar a existência de um ser onisciente, onipotente, totalmente bom e um objeto apropriado de adoração? Como seria capaz de revelar a existência de um ser como esse? Como conter esse tipo de informação? John Mackie é também o porta-voz dessa objeção: A experiência religiosa também é, em essência, incapaz de apoiar qualquer argumento favorável às doutrinas centrais do teísmo tradicional. Nada na experiência enquanto tal poderia revelar um criador do mundo, onipotência, onisciência, perfeita bondade, eternidade, ou mesmo a existência de apenas um deus. (p. 182)

Por que Mackie diria isso? E o que precisamente ele quer dizer? Para o propósito presente, vamos nos restringir à experiência envolvida na operação do sensus divinitatis. Penso que Mackie quer dizer o seguinte: levando-se em conta qualquer experiência, religiosa ou não — ou seja, levando-se em conta as imagens sensíveis, a experiência afetiva e as inclinações para crer que eu possa ter —, essa experiência poderia ser exatamente como é e não existir um ser onipotente, onisciente, perfeitamente bom ou eterno. Minha experiência poderia ser do jeito como ela é, e não haver uma pessoa como Deus ou qualquer coisa como Deus. Eu poderia sentir do mesmo modo, e Deus não existir. Penso que seja isso o que ele quer dizer; não tenho certeza. Isso porque a relevância do que ele diz parece então duvidosa. Talvez seja verdadeiro que minha experiência poderia ser tal como é e não existir uma pessoa como Deus; talvez a existência e o caráter da minha experiência não acarretem a

existência de Deus. O que se segue disso? Por que deve se seguir que a minha experiência não pode revelar o criador do mundo ou um ser onipotente ou onisciente? Considere uma analogia: normalmente, todos nós pensamos ter existido por muitos anos (ou, no caso dos leitores mais novos, muitos meses). É logicamente possível, no entanto, que eu tenha existido só por um microssegundo ou dois, aparentando ter todas as propriedades temporais específicas que de fato apresento. Nesse caso, eu não teria propriedades como ter mais do que sessenta anos ou ser responsável por algo que ocorreu há dez minutos, embora tivesse propriedades como pensar que tenho mais do que sessenta anos e que sou responsável por algo que ocorreu há dez minutos. Esse cenário não só é logicamente possível como também é compatível com a existência e o caráter de toda a minha experiência corrente. Ele não é compatível com as minhas crenças, obviamente (porque acredito existir há muito tempo); mas é compatível com a existência dessas crenças. É possível que eu conte precisamente com as crenças e experiências do momento atual, a despeito do fato de que eu tenha começado a existir um segundo atrás ou menos. (De fato, isso é exatamente o que acontece, de acordo com aqueles que pensam que a palavra “eu”, como a uso, denota algo como um estágio momentâneo de uma pessoa.)91 Para qualquer curso de experiência e qualquer conjunto de crenças momentâneas, é possível que eu tenha essa experiência e crenças, mas, apesar disso, eu exista só por um segundo ou menos. Segue-se que nada em minha experiência pode revelar que tenho existido há mais do que o último segundo? É certo que não. Não há a mínima razão para acreditar que, se a experiência pode revelar p, então a existência dessa experiência (ou a proposição sobre sua ocorrência) deva acarretar a existência da verdade de p. Não há razão para pensar que se a experiência pode revelar a proposição p, então essa experiência deve ser tal que ela (logicamente) não pode existir se p for falsa. Pois considere a percepção e a minha experiência

na ocasião em que vejo um cavalo. É compatível com essas experiências que não haja então um cavalo nos arredores, que em geral não haja cavalos, que não haja objetos materiais quando não tenho essas experiências, e, de fato, que objetos materiais inexistam. Segue-se que não posso saber a partir, ou por meio, da minha experiência que há um cavalo no meu quintal? É claro que não; essa inferência seria um salto de proporções magníficas (para não dizer grotescas). Então, como a experiência perceptiva revela o mundo exterior — um cavalo, por exemplo? Quando percebo um cavalo, sou o sujeito de experiências de vários tipos: imagens sensoriais (algo aparece a mim de certo modo complicado e difícil de descrever) e também, muitas vezes, uma experiência afetiva (talvez eu tenha medo do cavalo ou algum outro sentimento). Há também o que poderíamos chamar experiência doxástica.92 Quando percebo um cavalo, ocorrem experiências sensórias e afetivas, mas há também o sentimento, a experiência, a indicação em relação a certa proposição (a proposição Eu vejo um cavalo) da veracidade dessa proposição, sua correção, o merecimento de crédito e a apresentação do modo como as coisas são de fato. Essa experiência doxástica desempenha um papel crucial na percepção. Como a experiência perceptual me instrui sobre a existência de um cavalo em meu quintal? Do seguinte modo: essa crença é ocasionada (em parte) pela experiência, e essa crença tem garantia — ela é produzida por faculdades cognitivas que funcionam de maneira adequada no ambiente epistêmico apropriado, de acordo com um projeto de design que visa com sucesso à verdade. Desse modo posso saber, a partir da minha experiência, que há um cavalo em meu quintal? É claro que posso. Sabê-lo a partir da experiência significa formar a crença de que há aí um cavalo em resposta à experiência sensória e doxástica — a crença sendo formada sob as condições que conferem garantia. O fato é que isso acontece sempre. O ponto aqui não é que as pessoas sabem a partir da experiência coisas como a existência de cavalos nos quintais de suas casas; em vez disso, que tal

coisa é possível. Mais exatamente, o ponto aqui é que sua observação do cavalo no seu quintal (determinada pela experiência da existência de um cavalo ali) não é impedida pelo fato de sua experiência ser logicamente compatível com não haver ali nenhum cavalo (ou em qualquer outro lugar). Sua experiência é logicamente compatível com não haver nenhum cavalo no quintal: podemos aceitar essa afirmação; porém não se segue que você não possa saber pela experiência que há ali um cavalo. (De que outro jeito você poderia saber? Deduzindo de princípios primeiros e verdades autoevidentes?) Isso é assim com cavalos; posso também saber, a partir da minha experiência, que existo há mais tempo que um microssegundo? Claro que posso. Faço isso quando relembro, por exemplo, que tomei o café da manhã há mais tempo que um microssegundo e entrei na universidade muito tempo atrás. Na verdade, minha experiência aqui (em particular, minha experiência doxástica) é compatível com o caso de que eu tenha existido por apenas um microssegundo; simplesmente não se segue que não posso saber pela experiência que tenho existido por, pelo menos, uma hora (por exemplo). Determino pela experiência que tenho existido por mais que um microssegundo se a crença sobre o que fiz há mais de um microssegundo for ocasionada por minha experiência (doxástica ou não) e se essa crença é formada sob condições que lhe conferem garantia. Isso ocorre com frequência: assim, não raro sabemos (pela experiência) que existimos há mais que um microssegundo. Obviamente, o mesmo se pode dizer sobre a experiência religiosa e a crença teísta. É verdade que a existência das experiências relacionadas com a operação do sensus divinitatis é compatível com não haver um Criador do universo onipotente, onisciente e totalmente bom. Não se segue daí, contudo, que não se possa conhecer — e conhecer, falando-se de modo geral, pela experiência — que há tal pessoa. Pois aqui, como em outros lugares, existe a experiência doxástica: a crença em uma pessoa todo-poderosa a quem devo lealdade e obediência parece correta, adequada, verdadeira — o modo como

são as coisas. E alguém afirma por experiência própria a existência de tal pessoa se: 1) as crenças em questão são formadas em resposta a experiências (doxásticas e outras) relacionadas com a operação do sensus divinitatis, e: 2) essas crenças são formadas sob as condições da garantia. Elas podem ter garantia, e garantia suficiente para consistir em conhecimento, mesmo que a existência dessas experiências seja compatível com a negação dessas crenças. Pode-se dizer o mesmo a respeito das crenças nas grandes coisas do evangelho: elas também podem ter garantia (e garantia suficiente para o conhecimento), ainda que a existência de experiências relacionadas com instigação interna do Espírito Santo seja de fato compatível com a falsidade dessas crenças. O modelo Aquino e Calvino estendido foi elaborado para mostrar como é possível que as crenças teísta e cristã tenham garantias. Consideramos algumas objeções características chegando à conclusão de que esses modelos não podem realizar o que se propuseram a fazer. Também vimos que essas objeções fracassam. Existem outras objeções razoáveis? Pode ser que sim, porém o tempo certo de considerá-las será quando (e se) surgirem. No entanto, mesmo que as crenças cristã e teísta possam ter garantia, talvez elas não tenham, de fato, essa propriedade valiosa: talvez elas contem com anuladores. Consideraremos esse tópico no próximo capítulo.

90 The Miracle of Theism. Oxford: Clarendon, 1982, p. 178. As referências a Mackie dizem respeito a essa obra. 91 Veja, de minha autoria, Warrant and Proper Funcion (Oxford: Oxford University Press, 1993), p. 50ss. 92 Do termo grego doxa, que significa crença ou opinião.

capítulo 8 Anuladores? A crítica bíblica histórica

Até aqui, argumentei que a fé cristã — toda a panóplia da fé cristã, incluindose a Trindade, encarnação, redenção e ressurreição — pode, se for verdadeira, ter garantia. Se a fé cristã for verdadeira, os cristãos podem saber de sua veracidade. O modelo Aquino e Calvino estendido mostra como é possível que as crenças desses tipos obtenham garantias. Nesse modelo, a fé cristã não surge por meio de argumentos a partir de outras crenças. Em vez disso, o conceito fundamental é que Deus provê os seres humanos com faculdades ou processos de formação de crença geradores dessas crenças que objetivam a verdade com sucesso; quando funcionam como foram projetados, no tipo de ambiente para o qual foram projetados, o resultado é o conhecimento ou a crença garantida. É evidente que isso não fecha a questão de a fé cristã (mesmo verdadeira) ter ou poder obter garantia nas circunstâncias em que a maioria de nós efetivamente se encontra. Alguém poderia colocar o problema nos seguintes termos: “Talvez essas crenças tenham garantia e consistam em conhecimento: há circunstâncias em que isso pode acontecer. Mas a maioria de nós — por exemplo, a maioria dos leitores deste livro — não se encontra nessas circunstâncias. Até aqui, argumentou-se a favor do seguinte ponto: as crenças teísta e cristã (assumidas de modo básico) podem ter garantia caso não haja anuladores. Mas eles existem”. A afirmação é que existem anuladores sérios da fé cristã: proposições que conhecemos ou acreditamos que tornam a fé cristã — pelo menos, a fé cristã presumida de forma básica e com firmeza suficiente para consistir em

conhecimento — irracional e, por isso, sem garantia. Philip Quinn, por exemplo, acredita que para “adultos intelectualmente sofisticados em nossa cultura” há importantes anuladores da crença em Deus — pelo menos se, como no modelo Aquino e Calvino, ela for assumida de modo básico. Como resultado, a assumida crença em Deus, como no modelo, de modo básico, é para a maioria de nós irracional: “Concluo que muitos adultos intelectualmente sofisticados em nossa cultura, talvez a maioria, raras vezes, ou nunca, encontram-se em condições corretas para [as crenças teístas] lhes serem básicas”.93

Anuladores Quinn está certo? Para responder, precisamos considerar em primeiro lugar uma questão preliminar: o que é um anulador? Aqui, alguns exemplos podem ser úteis. Vejo (a cem metros de distância) o que tomo por uma ovelha no pasto e, naturalmente, formo a crença de que há uma ovelha no pasto; sei que você é o proprietário do pasto; no próximo dia, você me diz que não há uma ovelha no pasto, embora você tenha um cachorro que a cem metros de distância se parece com uma ovelha e que costuma percorrer o pasto. Então (na ausência de circunstâncias especiais) tenho um anulador da crença de que havia uma ovelha no pasto e, se eu for racional, não mais terei essa crença. Outro tipo de anulador: você entra em uma fábrica e vê uma linha de produção sobre a qual há vários artefatos, e todos parecem vermelhos. Você forma a crença de que eles são vermelhos. Então se aproxima o superintendente da fábrica e informa que os artefatos estão sendo irradiados com luz vermelha e infravermelha, processo que possibilita a detecção de defeitos minúsculos que, de outro modo, seriam indetectáveis. Você então tem um anulador da crença que os artefatos para os quais você olha são vermelhos. No caso, você não aprende que a crença anulada é falsa (inexiste a informação de que aqueles os não são vermelhos); em vez disso, aprende algo que enfraquece suas bases ou as razões para pensar que eles são vermelhos. (Você constata que os artefatos apenas pareceriam vermelhos). Portanto, anuladores são razões para abrir mão da crença C que se mantém. Caso sejam também razões para acreditar que C é falsa, são anuladores falseadores; se não há motivos para acreditar na falsidade de C, são anuladores enfraquecedores. Se você se deparar com o anulador de uma de suas crenças, então estará em uma posição em que não pode manter essa crença com racionalidade.

Os anuladores dependem do que você sabe e acredita. Independe só da minha experiência corrente que a crença A seja anuladora da minha crença C; também depende de quais crenças mantenho e com quanta firmeza. Retornemos ao caso em que você diz não haver ovelhas no pasto é um anulador da minha crença de que vejo uma ovelha no pasto. Isso depende de eu presumir que você seja uma pessoa confiável, pelo menos nessa ocasião e sobre esse tópico. De outro modo, sabendo que você gosta de pregar peças nas pessoas, em especial, de enganá-las a respeito de ovelhas na região, então o que você diz não será um anulador; o mesmo se pode dizer se inspeciono as ovelhas por meio de binóculos potentes e observo com clareza que se trata de uma ovelha, ou se converso pelo celular com uma pessoa de todo confiável, postada bem em frente da ovelha e me diz que se trata de fato de uma ovelha. Mais um exemplo de anulador, esse historicamente famoso. O matemático e filósofo Gottlob Frege (1848-1925) acreditou uma vez: F) Para toda condição ou propriedade P, há um conjunto das coisas que têm apenas P.

O filósofo Bertrand Russell (1872-1970) lhe escreveu uma carta apontando que F) tem sérios problemas. Em primeiro lugar, há a propriedade ou condição de não ser membro de si mesmo; essa propriedade pertence a todo conjunto que não é membro de si mesmo. (Por exemplo, o conjunto de cavalos não é em si mesmo um cavalo; por isso, esse conjunto não é membro de si mesmo.) Porém, de acordo com F), há o conjunto de conjuntos que não são membros de si mesmos. Esse conjunto, no entanto, está fadado a não existir. A razão é que se ele existir, ele seria membro de si mesmo se, e apenas se, não fosse membro de si mesmo. Disso se segue que ele exemplificaria a si mesmo e não exemplificaria a si mesmo (pense sobre isso), o que é um comportamento totalmente inaceitável para um conjunto. Antes de ver esse problema com F), Frege não tinha um anulador dessa asserção. Todavia, quando entendeu a carta de Russell, passou a ter o anulador; e ele consistia

exatamente em sua recém-adquirida crença que F), com a verdade da condição de não ser membro de si mesmo, acarreta uma contradição. Agora que estamos esclarecidos sobre os anuladores e suas variações, voltarei minha atenção nos próximos três capítulos para três supostos anuladores da fé cristã, e argumentarei que eles não servem de fato como anuladores. Neste capítulo, argumentarei que a crítica bíblica histórica contemporânea (“a alta crítica”) não serve como anulador da fé cristã, mesmo quando seus alegados resultados não apoiam a fé cristã e, de fato, mesmo quando vão de encontro a ela. No Capítulo 9, examinarei (e mostrarei ser equivocada) a afirmação de que os fatos do pluralismo religioso estabelecem um anulador da fé cristã. Por fim, no Capítulo 10, considerarei o que se considera a mais formidável objeção à fé cristã: os fatos do sofrimento e do mal. Argumentarei que essa objeção também não é um anulador da fé cristã.

Dois tipos de estudos da Escritura No modelo Aquino e Calvino estendido, a Escritura, a Bíblia sagrada, é uma mensagem do Senhor. Conforme o modelo, a Escritura é clara: as principais diretrizes de seu ensino — a criação, o pecado, a encarnação, a redenção, a ressureição, a vida eterna — podem ser entendidas, apreendidas e aceitas por qualquer pessoa com inteligência normal e capacidade comum. Como disse Jonathan Edwards, os índios housatonic podem compreender com facilidade e se apropriar dessa mensagem; não é necessário ser doutor em Teologia ou História bíblica. Subjacente a esse ponto está o segundo: há uma fonte de crença garantida disponível, um modo de observar a verdade desses ensinamentos totalmente independente do estudo histórico: Escritura/instigação interna do Espírito Santo/fé. Em virtude desse processo, o cristão comum, totalmente inocente em matéria de estudos históricos, de linguagens antigas, das minúcias da crítica textual, das profundezas da teologia, e de todo o resto, pode, não obstante, saber que essas coisas são de fato verdadeiras. Além disso, esse conhecimento não precisa remontar (por meio do testemunho, por exemplo) ao conhecimento da parte de alguém com especialização. Nem a comunidade cristã e nem o cristão comum está à mercê do especialista; essas verdades põem ser conhecidas de forma direta. Não obstante, o estudo sério e acadêmico da Bíblia é de suma importância para os cristãos. A lista de chamada dos engajados nesse projeto é especialmente impressionante: Crisóstomo, Agostinho, Aquino, Calvino e Jonathan Edwards, só para começar. Essas pessoas e seus sucessores partem da ideia de que a Escritura é divinamente inspirada a tal ponto que se trata da revelação divina, da mensagem especial de Deus para a humanidade; eles, então, buscam determinar o ensino do Senhor em toda a Escritura ou (mais provavelmente) em uma parte dela.

Desde o iluminismo, no entanto, surgiu outro tipo de estudo da Escritura. Chamado “alta crítica”, “crítica histórica”, “crítica bíblica” ou “estudo crítico histórico”, essa variedade de estudo da Escritura coloca entre colchetes ou põe de lado o que se conhece por meio da fé e objetiva a proceder de forma “científica”, estritamente com base na razão. Chamarei esse estudo “crítica bíblica histórica”. Esse tipo de estudo da Escritura coloca entre colchetes (i.e., põe de lado) a crença de que a Bíblia é a palavra especial do Senhor, como qualquer outra crença aceita com base na fé. Muitas vezes, as declarações de quem faz esse tipo de estudo da Escritura estão em aparente conflito com as principais diretrizes do pensamento cristão; é improvável que seu promotor conclua, por exemplo, que Jesus era de fato a segunda pessoa da Trindade divina que foi crucificado, morreu e então ressuscitou literalmente dos mortos no terceiro dia. Como Van Harvey afirma: “No que diz respeito aos historiadores bíblicos […] não há uma crença tradicional sobre Jesus Cristo popularmente aceita que não seja considerada com considerável ceticismo”.94 Tentarei descrever esses tipos de estudo da Escritura. Então colocarei a seguinte questão: como o cristão tradicional, que aceita “as grandes coisas do evangelho”, deveria responder ao aspecto deflacionário da crítica bíblica histórica? Como ele deveria pensar sobre os seus resultados aparentemente corrosivos à fé cristã tradicional? Dado o modelo Aquino e Calvino estendido, argumentarei que ele não necessita se perturbar pelo conflito entre os alegados resultados da crítica bíblica histórica e da fé cristã. O conflito não é um empecilho para a aceitação das grandes coisas do evangelho — e à medida que os alegados resultados repousam sobre suposições epistemológicas não compartilhadas por ele, também não são anuladores de qualquer coisa aceita com base no ensino da Bíblia.

O comentário bíblico tradicional Os cristãos aceitam a crença de que a Bíblia é a Palavra de Deus e que nela o Senhor quer nos ensinar verdades importantes. (Não proponho em momento algum que ensinar verdades consista em tudo que o Senhor pretende por meio das Escrituras: há também a elevação do sentimento, o ensino do louvor, da oração, de como ver a profundidade dos nossos pecados, de quão maravilhoso é o dom da salvação, e de milhares de outras coisas). Nem sempre é fácil dizer o que o Senhor está nos ensinando em uma passagem. Seu ensino é verdadeiro; mesmo assim, algumas vezes não fica exatamente claro o que se ensina. Parte do problema é o fato de a Bíblia conter materiais de tipos muito diferentes; nesse aspecto, ela não é como um livro contemporâneo de teologia ou de filosofia. Ela não se assemelha a um livro cheio de sentenças declarativas, com análises e desenvolvimentos lógicos apropriados e todos os outros aspectos que os acadêmicos vieram a conhecer e amar. A Bíblia de fato contém asserções sóbrias, mas também há exortações, expressões de louvor, poesias, narrativas e parábolas, cânticos, materiais devocionais, histórias, genealogias, lamentos, confissões, profecias, apocaliptismo e muito mais. Algumas dessas coisas (o apocaliptismo, por exemplo) apresentam problemas reais de interpretação (para nós, agora): o que exatamente o Senhor ensina em Daniel ou no livro do Apocalipse? Isso não é fácil de dizer. Mesmo que nos limitemos às asserções diretas, há milhares de questões de interpretação. Alguns exemplos. Em Mateus 5.17-20, Jesus declara que nem a menor letra ou o menor traço da lei desaparecerá e: “se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino do céu”; contudo, em Gálatas, Paulo parece dizer que a observância da lei não conta muito. Como podemos colocar as duas coisas juntas? Como entender Colossenses 1.24: “Agora me alegro nos meus sofrimentos por vós e completo

no meu corpo o que resta do sofrimento de Cristo, por amor do seu corpo, que é a igreja”? Paulo sugere que o sacrifício de Cristo é incompleto, insuficiente, que requer sofrimento adicional de Paulo ou nosso? Isso parece improvável. O que ele quer dizer? De modo mais geral, pelo fato de Deus ser o principal autor da Escritura, como devemos pensar sobre as aparentes tensões apresentas pela Escritura? O texto de 1 João parece dizer que os cristãos não pecam; na epístola de Paulo aos Romanos, ele diz que todos pecam; devemos extrair a conclusão de que não há cristãos? Também há problemas em relação ao entendimento das parábolas de Jesus. Em Lucas 18.1-8, por exemplo, Jesus sugere que Deus só nos ouvirá se formos perseverantes, talvez respondendo só por não mais aguentar ser aborrecido? Isso não soa correto, mas então como devemos entender a parábola? A Escritura é inspirada: seus ensinos são verdadeiros; ainda assim, nem sempre é uma questão trivial dizer o que ela ensina. De fato, muitos sermões e homilias pregados em um milhão de igrejas todos as manhãs de domingo são devotados em parte a esclarecer o que de outro modo poderia ser obscuro na doutrina da Escritura. Sendo a comunicação divina à humanidade, uma revelação de Deus, há muito sobre ela que requer reflexão profunda e iluminadora, que exige muito dos nossos melhores recursos acadêmicos e espirituais. Esse fato não passou despercebido a Agostinho, Aquino, Calvino, e os outros mencionados antes; seus escritos formam um conjunto enorme de volumes devotados à reflexão poderosa sobre o significado e os ensinamentos da Escritura. (Só os comentários de Calvino compreendem mais de vinte volumes.) O objetivo deles era determinar tão acuradamente quanto possível o que o Senhor propôs a nos ensinar na Bíblia. Podemos chamar o empreendimento “comentário bíblico tradicional”; ele conta com, pelo menos, três características. Em primeiro lugar, considera-se a Escritura o guia autorizado e confiável da fé e moralidade; sua autoridade e confiabilidade decorrem de consistir em uma revelação divina, um modo de Deus falar conosco. Portanto, uma vez

esclarecido o ensino de parte da Escritura, a questão da veracidade e aceitabilidade desse ensino já está resolvida. Em um comentário sobre Platão, poderíamos decidir que o que Platão realmente quis dizer foi XYZ; poderíamos então prosseguir considerando e avaliando XYZ de várias formas, perguntando se é verdade, ou próximo da verdade, ou verdadeiro em princípio, ou superado por coisas já aprendidas desde a composição por Platão. Poderíamos também perguntar se as razões ou argumentos de Platão para XYZ são superficiais, aceitáveis, substanciais ou cogentes. Essas questões não se colocam no tipo de estudo da Escritura sob consideração. Uma vez convencidos da proposta divina XYZ para nossa crença, não seguimos em frente perguntando se XYZ é verdade ou se Deus tem boas razões para XYZ. Não se exige que Deus apresente boas razões. Em segundo lugar, um pressuposto do empreendimento é que o próprio Deus consiste no principal autor da Bíblia — de toda a Bíblia. Obviamente, cada um de seus livros tem também um autor ou autores humanos; mas o principal autor é Deus. Isso nos impele a tratar o todo mais como uma comunicação unificada que uma miscelânea de livros antigos. A Escritura não é uma biblioteca de livros independentes, e sim um livro com muitas subdivisões e um tema central: a mensagem do evangelho. Além disso, em virtude dessa unidade (em virtude do fato de haver só um autor), é possível “interpretar a Escritura com a Escritura”: se uma dada passagem de uma das epístolas de Paulo parece enigmática, é perfeitamente adequado tentar esclarecer o ensino de Deus nessa passagem não só mediante o apelo ao que Paulo mesmo diz em outros lugares, mas também ao ensino de outros pontos da Escritura (por exemplo, no Evangelho de João). Passagens nos Salmos ou Isaías podem ser interpretadas nos termos da revelação mais plena e explícita do Novo Testamento; a serpente colocada em um mastro para salvar os israelitas de uma calamidade pode ser vista como um tipo de Cristo (e assim recebendo algo da sua importância por meio da referência implícita a Cristo, que ao ser colocado na cruz impediu uma calamidade maior para toda a raça

humana). Uma consequência adicional é a possibilidade de aceitar proposições inferidas de premissas oriundas de diferentes partes da Bíblia: quando vemos o que Deus quer ensinar na passagem bíblica A e o que ele quer ensinar na passagem bíblica B, podemos colocar as duas passagens juntas e tratar as consequências dessas proposições como um ensinamento divino.95 Em terceiro lugar, e conectado com o segundo ponto, o fato de o principal autor da Bíblia ser o próprio Deus significa a impossibilidade de determinar o significado de uma passagem mediante a descoberta do que o autor humano tinha em mente. É claro que vários hermeneutas pós-modernos querem nos divertir dizendo que, nesse caso e em todos os outros, as intenções do autor não têm ligação com o significado da passagem, que o leitor mesmo confere à passagem seu significado, ou talvez afirmar o significado de um texto equivale a incorrer em “inocência hermenêutica” — acrescentando que essa inocência será sempre pervertida pela associação com a homofobia, o sexismo, o racismo, a opressão, e outras formas desagradáveis de pensamento. Isso é realmente divertido. No entanto, voltando à discussão séria, é claro que o significado de uma passagem bíblica será concedido pelo que o Senhor quer ensinar na passagem (sendo Deus o principal autor da Bíblia). O comentário bíblico procura discernir precisamente isso. Mas não se pode apenas presumir que o ensino do Senhor seja idêntico ao que o autor humano tinha em mente; este pode não ter nem sequer cogitado o ensino verdadeiro da passagem em questão. Assim, por exemplo, os cristãos assumem que as passagens do Servo Sofredor de Isaías são referências a Jesus; o próprio Jesus afirma (Lc 4.18-21) ser o cumprimento da profecia de Isaías 61.1, 2; João (19.28-37) utiliza passagens de Êxodo, Números, Salmos e Zacarias como referências a Jesus e aos eventos da sua vida e morte; em Hebreus 10 tomam-se passagens de Salmos, Jeremias e Habacuque como referências a Cristo e a eventos do curso de sua existência, como o faz Paulo em relação a passagens de Salmos e Isaías no discurso em

Atos 13. Não há razão para supor que os autores humanos de Êxodo, Números, Salmos, Isaías, Jeremias ou Habacuque tivessem em mente a entrada triunfal de Jesus, sua encarnação, ou outros acontecimentos relativos à sua vida e morte — ou, de fato, qualquer coisa explícita sobre Jesus. Mas o fato de Deus ser o principal autor possibilita que a matéria a ser aprendida com os textos em questão seja algo bem diferente do que o autor humano se propôs a ensinar.

A crítica bíblica histórica O comentário bíblico tradicional tem sido realizado há muito tempo. Contudo, como mencionei antes, os últimos séculos viram o aumento de um tipo bem diferente de estudo da Escritura: a crítica bíblica histórica. Decerto, há muito o que agradecer a ela; aprendemos muito sobre a Bíblia, que de outro modo não poderíamos saber. Além disso, alguns métodos desenvolvidos por ela (crítica da forma, crítica das fontes etc.) podem ser e têm sido empregados com resultados excelentes no comentário bíblico tradicional. No entanto, a crítica bíblica histórica difere muito do comentário bíblico tradicional. Trata-se, em sentido fundamental, de um projeto do iluminismo: o esforço para observar e interpretar os livros bíblicos do ponto de vista dependente só da razão, ou seja, o esforço para determinar apenas do ponto do vista da razão os ensinamentos da Escritura e sua veracidade. Desse modo, a crítica bíblica histórica rejeita a autoridade e o direcionamento da tradição, dos Credos, ou de qualquer tipo de autoridade epistêmica eclesiástica ou “externa”. A ideia é ver o que se pode estabelecer (ou pelo menos tornar plausível) utilizando apenas a luz do que se pode chamar “razão natural, empírica”. As faculdades ou fontes de crença invocadas seriam, pois, as empregadas na história comum: a percepção, o testemunho e a razão — colocando de lado, porém, qualquer proposição conhecida pela fé ou pela autoridade da igreja. Spinoza (1632-1677) já formula a regra para esse empreendimento: “A regra para a interpretação [bíblica] não deveria ser outra que a luz natural da razão comum a todos — não alguma luz sobrenatural e nem qualquer autoridade externa”.96 Esse projeto ou empreendimento é considerado muitas vezes parte e parcela do desenvolvimento da ciência empírica moderna e, de fato, os praticantes da crítica bíblica histórica gostam de se cobrir com o manto da

ciência moderna. A atração existe não só porque a crítica bíblica histórica talvez possa se valer do prestígio da ciência moderna, mas também por talvez compartilhar do óbvio poder epistêmico e da excelência desta última. É comum considerar a ciência o nosso melhor trunfo para chegarmos a saber como o mundo é; a crítica bíblica histórica consiste, entre outras coisas, na tentativa de aplicar esses métodos aprovados ao estudo da Escritura e às origens do cristianismo. Assim, Raymond Brown, estudioso da Escritura muito respeitado, acredita que crítica bíblica histórica é a “crítica bíblica científica”;97 ela produz “resultados fatuais” (p. 9). Ele deseja que suas contribuições sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11); e considera os praticantes da crítica bíblica histórica como pesquisadores das Escrituras com “rigor científico” (p. 18, 19).98 O que significa estudar a Bíblia de forma científica? Isso não é claro; há mais de uma resposta para essa questão. Todavia, um tema de aceitação quase universal é que ao trabalhar nesse projeto científico (não importando sua compreensão) não se invocam, ou não se empregam, quaisquer suposições ou pressupostos teológicos. Não se presume, por exemplo, que a Bíblia seja inspirada por Deus de modo especial, ou contenha um discurso especificamente divino. Não se toma Jesus como Filho de Deus, ou sua ressurreição dos mortos, ou que seu sofrimento e morte consistam, de algum modo, na expiação conciliatória para o pecado humano. Não se presume nada disso, porque se diz que ao fazer ciência, não se assume ou emprega nenhuma proposição conhecida só pela fé. (Como consequência disso, o significado do texto será o que o autor humano quis dizer; as intenções e os ensinamentos divinos não pertencem ao significado.)99 A ideia, diz Ed Parish Sanders, é apoiar-se só na “evidência com que todos concordam”.100 De acordo com Jon Levenson, Os críticos históricos insistem com correção que o tribunal em que as interpretações são defendidas não pode ser confessional ou “dogmático”; os argumentos oferecidos precisam ter validade histórica, ou seja, capazes de forçar o

assentimento de historiadores de modo independente de filiação religiosa, ou não, conhecimento, experiências espirituais, ou crenças pessoais e sem privilegiar qualquer afirmação com base na revelação.101

Um aviso muito importante: a crítica bíblica histórica é um projeto e não um método. Quem se utiliza do comentário bíblico tradicional pode usar os mesmos métodos que o praticante da crítica bíblica histórica; a diferença aparece em relação a seus pressupostos quando levam adiante seus projetos. Levando adiante seu projeto, a pessoa partidária do comentário bíblico tradicional assume as principais diretrizes da fé cristã: a existência de Deus, a encarnação da segunda pessoa da Trindade em Jesus etc. Já quem pratica a crítica bíblica histórica se propõe a proceder sem empregar nenhuma suposição teológica ou qualquer coisa que se conheça pela fé; isso deve ser preterido. Em seu lugar, deve-se proceder de modo científico, apenas com base na razão. Mas além desses pontos há muito menos acordo. O que conta como razão? Quais premissas podem ser empregadas no argumento a partir apenas da razão? O que quer dizer proceder de modo científico? Aqui, a crítica bíblica histórica apresenta pelo menos duas posições diferentes. Crítica bíblica histórica troeltschiana Em primeiro lugar, há o tipo de crítica bíblica instigada pelo pensamento e pela teoria de Ernst Troeltsch.102 Troeltsch propôs vários princípios a serem seguidos na interpretação da Escritura, incluindo o “princípio de analogia”: o conhecimento histórico é possível porque todos os acontecimentos são similares em princípio. Isso significa que precisamos presumir a igualdade plena entre as leis da natureza nos tempos bíblicos e nos dias de hoje. Na comunidade crítica bíblica histórica, esse princípio é entendido de tal modo a excluir a ação divina direta no mundo. Assim, levando-se adiante a crítica bíblica histórica troeltschiana, faz-se necessário presumir que Deus jamais agiu de modo direto no mundo. Talvez Deus tenha criado o mundo e talvez o conserve em existência; no entanto, além da criação e conservação, Deus não

age e nem interfere no mundo. Portanto, o princípio implica que Deus de fato não inspirou nenhum autor humano, de tal modo que seus escritos consistam no discurso divino endereçado a nós; ele também não ressuscitou Jesus dos mortos, transformou a água em vinho, ou realizou qualquer outro tipo de milagre. Rudolf Bultmann afirma: O método histórico inclui o pressuposto de que a história é uma unidade no sentido de ser um contínuo fechado de efeitos em que os acontecimentos individuais são conectados pela sucessão de causa e efeito.

Esse contínuo, além disso, “não pode ser quebrado pela interferência de poderes sobrenaturais e transcendentes”.103 Portanto, a ideia aqui é que Deus talvez tenha criado o mundo, mas jamais age nele. Obviamente, isso entra em conflito total com a fé cristã. Crítica bíblica histórica duhemiana O estudo troeltschiano da Escritura é uma variedade da crítica bíblica histórica; há também outra versão mais moderada, que poderíamos chamar “crítica bíblica histórica duhemiana”. Pierre Duhem foi um cientista e também católico sério. Acusado de permitir que suas posições religiosas e metafísicas cristãs influenciassem a física de maneira imprópria. Duhem resistiu a essa sugestão, afirmando que seu cristianismo não influenciou a física de nenhum modo, e não a influenciou a fortiori de modo impróprio.104 Além disso, dizia, o modo por ele adotado era o correto ou próprio para o desenvolvimento de uma teoria física. A teoria física deve ser independente de todo de posições ou compromissos religiosos e metafísicos. A proposta de Duhem, reduzida à essência, afirma que o físico não deveria fazer uso essencial de pressupostos religiosos ou metafísicos ao estabelecer seu tema. Essa proposta pode obviamente ser aplicada além dos limites da teoria física: por exemplo, ao estudo da Escritura. Digamos que o estudo duhemiano da Escritura consiste no estudo da Escritura que não envolve

pressuposições teológicas, religiosas ou metafísicas rejeitadas por qualquer pessoa relevante na comunidade. Desse modo, o estudioso duhemiano da Escritura não assumiria que Deus é o principal autor da Bíblia ou que as principais linhas da narrativa cristã são de fato verdadeiras; isso não seria aceito por todo os participantes da discussão. Ele não assumiria que Jesus ressuscitou dos mortos, ou a ocorrência de qualquer outro milagre; não poderia nem admitir a possibilidade de milagres (pela rejeição por parte de muitos participantes da discussão). No entanto, é claro que o estudo duhemiano da Escritura também não pode presumir que Cristo não se levantou dos mortos ou que nenhum outro milagre ocorreu, ou que milagres são impossíveis. O estudo duhemiano da Escritura ajusta-se bem à sugestão de Sanders: “a evidência mais segura é a mais necessária, evidência com que todos concordam” (veja acima, na p. 98). Ele se ajusta também à fantasia de John Meier do “conclave não papal” de estudiosos judeus, católicos, protestantes e agnósticos, trancados no porão da biblioteca da Harvard Divinity School até chegarem ao consenso sobre o que os métodos históricos podem revelar sobre a vida e a missão de Jesus.105 Entre os benefícios propostos pela crítica bíblica histórica duhemiana, estão, obviamente, os benefícios citados por Duhem: as pessoas de crenças religiosas e teológicas muito diferentes podem cooperar nesse empreendimento.

O conflito com o cristianismo tradicional Há uma história de tensão considerável entre a crítica bíblica histórica e os cristãos tradicionais. David Strauss disse o seguinte em 1835: “Não, se quisermos ser sinceros conosco: o que uma vez foi história sagrada para o crente cristão é, para a porção esclarecida dos nossos contemporâneos, apenas uma fábula”.106 Obviamente, os crentes não esclarecidos não eram tão tolos a ponto de não notarem essa característica da crítica bíblica. Escrevendo dez anos antes da publicação do livro de Strauss, William Pringle se queixa do seguinte: “Na Alemanha, o crítica bíblica é quase um projeto nacional... Infelizmente, os críticos estão empenhados em demasia na sustentação dos erros mais perigosos, opondo-se a toda afirmação inspirada que a mente do homem é incapaz de compreender de modo pleno, privando a religião do caráter espiritual e celestial, e minando toda a estrutura da verdade revelada”.107 E Brevard Childs: “Por muitas décadas, o modo usual de iniciar os novatos nos estudos bíblicos foi desmantelar com lentidão os ensinamentos tradicionais da igreja sobre a Escritura, pela aplicação dos ácidos da crítica”.108 A crítica bíblica histórica tende a desconsiderar as narrativas de milagres, por considerarem a impossibilidade da ocorrência de milagres, no passado e no presente, ou, pelo menos, ao afirmar que o método próprio para crítica bíblica histórica não pode aceitar milagres como evidências ou conclusões. Talvez Jesus tenha realizado curas de algumas desordens psicossomáticas, mas nada que a ciência médica contemporânea não possa explicar. Muitos usuários desse método propõem que Jesus jamais se considerou divino, o Messias, ou capaz de perdoar pecados. Assim, Thomas Sheehan diz: “A crise nasce do fato de teólogos e exegetas protestantes e católicos admitirem agora com liberdade que, até onde se pode ver a partir dos dados históricos

disponíveis, Jesus de Nazaré não se considerava divino [e] não afirmou nenhuma das alegações messiânicas que o Novo Testamento atribui a ele”.109 Quem segue esses métodos é algumas vezes criativo de modo bem incomum; não consigo resistir à menção de algumas das explicações mais inovadoras. Por exemplo, de acordo com Barbara Thiering, em Jesus and the Riddle of the Dead Sea Scrolls [Jesus e o enigma dos rolos do mar Morto],110 Jesus foi sepultado em uma caverna; ele realmente não morreu, foi reanimado por Simão, o Mago. Casou-se com Maria Madalena, fixou residência, teve três filhos, divorciou-se e por fim morreu em Roma. George A. Wells chega a afirmar que o nome “Jesus” é desprovido de significado; da mesma forma que “Papai Noel”, “Jesus” não diz respeito a nenhuma pessoa e não representa ninguém.111 John Allegro aparentemente também pensa que Jesus de Nazaré não existiu; o cristianismo começou como um embuste para enganar os romanos e preservar o culto de um certo cogumelo alucinógeno (Amanita muscaria). Mas o nome “Cristo” não é vazio; ele na verdade dá nome a esse cogumelo.112 Uma afirmação tão surpreendente como as outras é que Jesus, embora não tenha sido apenas uma lenda nem um cogumelo, foi, na verdade, um ateu, o primeiro cristão ateu.113 É claro que essas sugestões não são típicas da crítica bíblica histórica, e, em geral, a crítica bíblica histórica é muito mais razoável. Não obstante, mesmo que coloquemos de lado essa facção fanática, Van Harvey está certo: “No que diz respeito aos historiadores da Bíblia [...] não há uma crença tradicional sobre Jesus aceita pelo povo que não seja vista com considerável ceticismo”.114 Desse modo, a crítica bíblica histórica não tem sido geralmente simpática à fé cristã tradicional; ela não pode ser considerada uma fonte de encorajamento aos fiéis. Contudo, os fiéis saem relativamente incólumes; eles consideram o comentário bíblico tradicional de grande interesse e importância, mas as crenças e atitudes da crítica bíblica histórica não parecem ter sido incutidas nele, a despeito da predominância em seminários importantes. Ainda de acordo com Van Harvey: “A despeito de décadas de

pesquisa, a pessoa comum tende a considerar a vida de Jesus nos mesmos termos que os cristãos pensavam séculos atrás”.115 Uma razão possível é a inexistência de argumentos irrespondíveis, ou mesmo razoavelmente decentes, para fazer supor que os procedimentos e suposições da crítica bíblica histórica sejam preferidos, pelos cristãos, aos do comentário bíblico tradicional. Um pouco de reflexão epistemológica nos permite ver algo mais: os cristãos tradicionais têm uma boa razão para rejeitar as afirmações céticas da crítica bíblica histórica e continuar a manter a fé cristã tradicional a despeito dos alegados ácidos corrosivos da crítica bíblica histórica. Consideremos as críticas bíblicas históricas troeltschiana e duhemiana. Os estudiosos troeltschianos da Escritura aceitam os princípios de Troeltsch a respeito da pesquisa histórica, sob a interpretação baseada na exclusão da ocorrência de milagres e da inspiração divina da Bíblia (com o corolário de que a Bíblia conta com um tipo de unidade característica de um livro com um autor principal). Não causa surpresa, pois, que os troeltschianos tendem a chegar a conclusões totalmente discordantes das aceitas pelos cristãos tradicionais. Se os críticos troeltschianos oferecessem boas razões para considerar seus princípios verdadeiros, então os cristãos deveriam prestar atenção; nesse caso, seriam obrigados a levar a sério as afirmações céticas dos críticos históricos. No entanto, os troeltschianos, ao que parece, não oferecem boas razões para apoiar seus princípios. Portanto, por que os cristãos deveriam prestar atenção nas afirmações baseadas nelas — ou seja, baseadas no princípio de que Deus jamais age no mundo — com a implicação de que Deus não ressuscitou Jesus dos mortos e que a Bíblia não é inspirada de modo especial? Se essas afirmações dependem em essência desses princípios, os cristãos têm o direito de ignorá-las — pelo menos até que os troeltschianos apresentem argumentos a seu favor. O que dizer da crítica bíblica histórica duhemiana? Ela é bem diferente. Os duhemianos propõem empregar apenas as suposições aceitas por todos os participantes do projeto de interpretação bíblica. Não são aceitas (para o

propósito de estudo) as posições tradicionais cristãs a respeito da Bíblia ou da vida do Cristo, mas também não aceitam os princípios de Troeltsch. Não se pressupõe que os milagres não ocorreram ou não poderiam ocorrer; mas isso é bem diferente de afirmar que não ocorreram ou não poderiam ocorrer — algo não pressuposto. Essa linha crítica não presume que a Bíblia seja de fato uma revelação divina e, por isso, detenha autoridade e seja confiável; mas também não presume que ela não conte com autoridade e não seja confiável. É óbvio que pode não sobrar muito para essa linha dar sequência. Isso decorre da existência de controvérsias enormes no estudo da Escritura; aqui, os fundamentos da matéria são muito disputados. A Bíblia tem um autor principal, Deus mesmo? Ela é divinamente inspirada, de tal modo que seu ensino é verdadeiro e deve ser aceito? A Bíblia relata episódios miraculosos — mortos que ressuscitam, a virgem que dá à luz, a transformação de água em vinho, curas de cegos ou deficientes de nascimento: tudo isso deve ser tomado pelo que parece à primeira vista ou recusado como contrário ao “que agora sabemos”? Há um caminho diferente para chegar à verdade nessas questões — a fé ou o testemunho divino mediante a Escritura, por exemplo — diferente da pesquisa histórica comum? Todas essas são questões de disputa feroz; mas se não tomarmos uma posição a respeito delas, e procedermos com responsabilidade, o que se alcança é provavelmente um resultado muito magro. Anthony E. Harvey, por exemplo, propõe o seguinte como além da dúvida razoável de seu ponto de vista (i.e., da escola duhemiana): “Jesus era conhecido na Galileia e em Jerusalém; ele foi um mestre que realizou curas de várias doenças, em particular de possessão demoníaca e as amplamente consideradas miraculosas; ele se envolveu em controvérsias com seus pares judeus sobre questões da lei de Moisés; e foi crucificado sob o governo de Pôncio Pilatos”.116 Ou considere o livro monumental de John Meier A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus [Um judeu marginal: reconsideração do Jesus

histórico]. (O primeiro volume tem 484 páginas; o segundo tem 1.055; também há o terceiro e o quarto.) O objetivo de Meier é duhemiano: “Meu método segue uma regra simples: ele prescinde do que a fé cristã, ou o ensino tardio da igreja, diz sobre Jesus, sem afirmar ou negar esses pontos” (p. 1). (Penso que ele também intenciona abster-se de suposições incompatíveis com a fé cristã tradicional). A fantasia de Meier do “conclave não papal” de estudiosos judeus, católicos, protestantes e agnósticos, encerrados no porão da biblioteca da Harvard Divinity School até chegarem ao consenso sobre o que os métodos históricos podem revelar a respeito da vida e missão de Jesus, é totalmente duhemiano. Esse conclave, ele diz, produziria “um esboço grosseiro do que a expressão escorregadia ‘todas as pessoas razoáveis’ poderiam dizer sobre o Jesus histórico” (p. 2). Meier visa estabelecer esse consenso de forma judiciosa, objetiva e cuidadosa. Porém, o que surpreende nas suas conclusões é sua magreza, e seus caráter provisório. Quase tudo que emerge do trabalho penoso de Meier é: Jesus foi um profeta, o anunciador de uma mensagem escatológica de Deus, alguém que realizou grandes proezas, apresentou sinais e fez milagres que anunciam o reino de Deus e também ratificam sua mensagem. Como duhemiano, obviamente, Meier não pode acrescentar que esses sinais e milagres envolvem a ação divina especial ou direta; e nem pode dizer que eles não envolvem essa ação. Tampouco pode declarar que Jesus ressuscitou ou não dos mortos; não se pode concluir que a Escritura foi inspirada de forma especial ou não. Portanto, a crítica bíblica histórica duhemiana se limita ao que é aceito por todos os participantes. Já o cristão tradicional toma a Bíblia como o testemunho divino; portanto, ele crerá que, por exemplo, Jesus ressuscitou dos mortos, mesmo que essa proposição não seja aceita pelo “conclave não papal”. Mas ele não precisa ficar desconcertado pelo fato de a crítica bíblica histórica duhemiana não apoiar suas posições a respeito do que Jesus fez e disse. Essa linha crítica não precisa colocar o cristão tradicional em uma crise

intelectual ou espiritual. Considere uma analogia: podemos imaginar um grupo renegado de físicos excêntricos propondo reconstruir a física e se recusando a usar crenças da memória, por exemplo, ou da memória sobre o que se passou antes de um minuto atrás. Talvez algo assim possa ser feito, mas seria uma coisa pobre, trivial, truncada e insignificante. Suponha agora que as leis de Newton ou da relatividade especial se tornassem desse ponto de vista dúbias e sem confirmação: isso presumivelmente daria muito trabalho para os físicos mais tradicionais. Mas a física truncada não poderia colocar em questão a física do tipo mais robusto. O mesmo ocorre no nosso caso. O cristão tradicional pensa saber pela fé que Jesus era divino e que se levantou dos mortos. Por isso, ele não se perturbará com o fato de essas verdades não serem especialmente comprováveis por conta da evidência à qual a crítica bíblica histórica duhemiana se limita — ou seja: a evidência que explicitamente exclui o que se sabe pela fé. Por que isso deveria ter grande importância para ele? Para o cristão, confinar-se aos resultados dessa crítica seria como tentar aparar a grama do jardim com uma tesoura de unhas ou pintar a casa como uma escova de dentes; essa poderia ser uma experiência interessante se você tiver tempo disponível; contudo, à parte disso, por que se limitar desse modo? Em caráter mais geral: a crítica bíblica histórica é troeltschiana ou duhemiana. Se pertencer à primeira, então ela começa a partir de suposições que grande parte da crença cristã tradicional é falsa; isso não surpreende, pois suas conclusões são incompatíveis com a crença tradicional. Mas ela tem também pouco interesse direto para o cristão tradicional: não lhe apresenta nenhuma razão para rejeitar ou modificar suas crenças; também não oferece a promessa de lhe permitir alcançar a compreensão melhor e mais aprofundada sobre o que efetivamente aconteceu. Quanto à crítica bíblica histórica duhemiana, essa variedade de crítica histórica omite grande parte do que os crentes tomam como evidências e considerações relevantes. Portanto, sobra muito pouco dessa crítica para seguir em frente. Mais uma vez, o fato de ela

não apoiar a crença tradicional não precisa preocupar os crentes; dadas essas limitações, espera-se exatamente isso, e ela não lança nenhuma dúvida sobre a fé cristã. Portanto, seja como for, o cristão tradicional fica tranquilo com as afirmações da crítica bíblica histórica; ele não precisa sentir nenhuma obrigação intelectual, ou de qualquer outro tipo, de modificar sua crença à luz dessas afirmações e dos resultados alegados.

93 “In Search of the Foundation of Theism”, Faith and Philosophy 2, n. 4 (1985): 481. Veja, de minha autoria, “The Foundations of Theism: a Reply”, Faith and Philosophy 3, n. 3 (1986): 298ss.; e a resposta de Quinn em “The Foundations of Theism Again”, In: Rational Faith: Catholic Responses to Reformed Epistemology, Linda Zagzebski (org.) (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1993), p. 14ss. 94 “New Testament Scholarship and Christian Belief”, In: Jesus in History and Myth, Joseph Hoffman & Gerald A. Larue (orgs.). Buffalo: Prometheus, 1986, p. 193. 95 Obviamente, esse procedimento, como muitos outros, pode e tem sido mal usado; essa possiblidade em si mesma, no entanto, não depõe contra si, embora sirva como advertência salutar. 96 Tractatus Theologico-politicus, 7.196 [Publicado em português com o título: Spinoza, Tratado Teológico-político, São Paulo, Martins Fontes, 2003.] 97 The Virginal Conception and Bodily Resurrection of Jesus. New York: Paulist Press, 1973, p. 6. 98 Veja também John Meier, A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus (New York: Doubleday, 1991), vol. 1, p. 1. 99 Assim, Benjamim Jowett (professor no séc. XIX do Balliol College e eminente tradutor de Platão) afirmou: “A Escritura tem um significado — o significado para a mente do profeta ou evangelista que o pronunciou ou escreveu, para os primeiros ouvintes ou leitores a receber esse pronunciamento ou escrito”. (“On the Interpretation of Scripture”, In: The Interpretation of Scripture and Other Essays [London: George Routledge, 1906], p. 36; apud Jon D. Levenson, The Hebrew Bible, the Old Testament, and Historical Criticism [Louisville, Westminster/John Knox Press, 1993], p. 78. Jowett não era um exemplo de modéstia intelectual, o que pode explicar um poema composto e colocado em circulação por estudantes do Balliol College: “First come I, my name is Jowett. / There’s no knowledge but I know it / I am the master of the college / What I don’t know isn’t knowledge”. 100 Jesus and Judaism (Philadelphia: Fortress, 1985), p. 5 101 “The Hebrew Bible, the Old Testament, and Historical Cristicism”, In: Hebrew Bible, p. 109. Uma versão desse ensaio foi publicada sob o mesmo título em: Hebrew Bible, or Old Testament? Studying the Bible in Judaism and Christianity, John Collins & Roger Brooks (orgs.) (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1990). 102 Veja, em especial, de sua autoria: “Über historische und dogmatische Methode in der Theologie”, In: Gesammelte Schriften (Tübingen: Mohr, 1913), vol. 2, p. 729-53, e

“Historiography”, In: James Hastings, Encyclopedia of religion and Ethics (New York: Scribner’s, 1967 [1909]). 103 Existence and Faith, Schubert Ogden (org.). New York: Meridian Books, 1960, p. 2912. Note a sugestão de que se Deus agisse de forma especial no mundo por ele criado, isso constituiria “interferência”. 104 Veja o apêndice do livro de Duhem The Aim and Structure of Physical Theory, traduzido por Philip P. Wiener, com o prefácio de Louis de Broglie (Princeton: Princeton University Press, 1954 [1906]). O apêndice é intitulado “Physics of a Believer”. 105 Marginal Jew, vol. 1, p. 1-2. 106 The Life of Jesus, Critically Examined, George Eliot (transl.). London: Chapman, 1846, p. 776. Publicado originariamente em alemão, com o título: Das Leben Jesu kritisch bearbeitet (Tübingen: Osiander, 1835). 107 “Translator’s Preface”, Calvin’s Commentaries, vol. 16, William Pringle (transl.). Grand Rapids: Baker, 1979, p. vi. O prefácio de Pringle foi escrito em Auchterarder, em 4 de janeiro de 1845. 108 The New Testament Canon: An Introduction (Valley Forge, PA: Trinity Press International, 1994), p. xvii. 109 The First Coming. New York: Random House, 1986, p. 9. Veja, de minha autoria, “Sheehan’s Shenanigans: How Theology Become Tomfoolery”, In: The Analytic Thesist, James F. Sennett (org.) (Grand Rapids: Eerdmans, 1998). 110 San Francisco: Harper San Francisco, 1992. 111 “The Historicity of Jesus”, In: Jesus in History and Myth, Hoffman & Larue (orgs.), p. 27ss. Veja também Richard Carrier, On the Historicity of Jesus (Scheffield: Scheffield Phoenix Press, 2014). 112 The Sacred Mushroom and the Cross. Garden City, New York: Doubleday, 1970. 113 Sheehan, First Coming. 114 Veja a nota n. 2, acima. 115 “New Testament Scholarship”, p. 194. 116 Jesus and the Constraints of History. Philadelphia: Westminster Press, 1982, p. 6.

capítulo 9 Anuladores? Pluralismo

A crítica bíblica histórica, como argumentei, não oferece, ou pelo menos não oferece automaticamente, um anulador da fé cristã. Mas o que dizer do fato do pluralismo religioso: o mundo apresenta uma variedade enorme e caleidoscópica de formas de pensar religiosas e antirreligiosas, todas adotadas por pessoas sérias e inteligentes? Há religiões teístas, mas há também pelo menos algumas religiões não teístas (ou talvez linhas não teístas de religião) entre a enorme variedade de religiões colocadas sob os nomes de “hinduísmo” e “budismo”. Entre as religiões teístas, há o cristianismo, o islamismo, o judaísmo, determinadas linhas do hinduísmo e do budismo, as religiões americanas nativas, algumas religiões africanas, e ainda outras. Todas elas são muito diferentes entre si. Além disso, alguns indivíduos — a despeito da panóplia de opções religiosas — rejeitam todas as religiões. Pelo fato de eu ter conhecimento dessa enorme diversidade, não é de algum modo arbitrário, irracional, injustificado ou não garantido (ou talvez até mesmo opressor e imperialista) escolher uma religião em detrimento das outras? Como pode ser correto selecionar e aceitar só um sistema de crença religiosa dentre toda essa confusão exuberante e ruidosa? Isso não seria de algum modo irracional? Nesse caso, o pluralismo consiste em um problema para a fé cristã? Como escreveu Jean Bodin no século XVI: “Cada uma delas é refutada pelas demais”.117 De acordo com John Hick: “À luz do conhecimento acumulado das outras religiões mundiais, [o exclusivismo cristão] tornou-se inaceitável para todos, exceto para a minoria de dogmáticos obstinados”.118

Esse é o problema do pluralismo, e nossa questão é se o conhecimento dos fatos do pluralismo estabelece um anulador da fé cristã. O problema específico que discutirei pode ser entendido como se segue. Para colocá-lo de um modo interno e pessoal, tenho crenças religiosas, e crenças religiosas que percebo não serem compartilhadas por quase ninguém mais. Por exemplo, acredito que: 1) O mundo foi criado por Deus, um ser pessoal todo-poderoso, onisciente e perfeitamente bom (i.e., o tipo de ser que tem crenças, objetivos e intenções, e pode agir para realizar esses objetivos). E: 2) Os seres humanos necessitam de salvação, e Deus ofereceu o único caminho de salvação por meio da encarnação, vida, morte sacrificial e ressurreição do seu Filho divino. Noto a existência de muitas pessoas que não creem nessas coisas. Em primeiro lugar, há quem concorde comigo a respeito de 1) mas não de 2): há religiões teístas não cristãs. Em segundo lugar, há quem não aceite 1) nem 2); todavia, apesar disso, acredita haver alguma coisa além do mundo natural, algo tal que o bem-estar humano e a salvação dependam de entrar em uma relação correta consigo. Em terceiro lugar, no ocidente e desde o iluminismo, pelo menos, há pessoas — naturalistas, podemos chamá-las assim — que não acreditam em nenhuma dessas três opções. Um modo de reagir às outras respostas religiosas ao mundo é continuar a acreditar no que tenho acreditado todo o tempo; aprendo sobre a diversidade, mas continuo a acreditar (i.e., a tomar como verdadeiras) proposições como 1) e 2) acima. Como consequência, considero falsas quaisquer crenças, religiosas ou não, incompatíveis com 1) e 2). Seguindo a prática corrente, chamarei essa posição exclusivismo; o exclusivista afirma que os princípios ou

alguns dos princípios de uma religião — por exemplo, o cristianismo — são de fato verdadeiros; ele acrescenta, naturalmente, que quaisquer proposições, incluindo-se outras crenças religiosas, incompatíveis com esses princípios são falsas. Nossa questão, pois, gira em torno da possibilidade de o exclusivista ser racional, ou seja: meu conhecimento da realidade do pluralismo religioso é um anulador da minha fé cristã? Afinal, preciso reconhecer que a existência desses outros modos de pensar me dá um anulador do meu próprio modo de pensar? Aqui, a sugestão mais importante talvez seja a aparência arbitrária da aceitação da fé cristã. Essa arbitrariedade é interpretada como tendo dois componentes: um moral e um intelectual. O ataque moral afirma haver um tipo de egoísmo, talvez orgulho ou arrogância, na aceitação das crenças quando se percebe que outras pessoas não as aceitam, e que provavelmente não se dispõe de um argumento convincente para os dissidentes. O ataque epistêmico também foca na arbitrariedade: nesse caso, a afirmação é que o exclusivista trata coisas similares de modo diferente, incorrendo, por consequência, em uma arbitrariedade intelectual. A ideia é que nos dois casos, quando o crente passa a observar essas coisas, ele encontra um anulador da crença, uma razão para abrir mão dela, ou, pelo menos, assumi-la com menos firmeza. Focarei no ataque moral, tratando do ataque da arbitrariedade epistêmica no desenvolvimento da discussão. Assim teremos de ampliar a noção do anulador. O tempo todo pensamos em anuladores epistêmicos. Grosso modo, obtenho um anulador epistêmico para a crença C quando adquiro a nova crença C*, de modo tal que seria irracional continuar a acreditar em C enquanto também acreditar em C*. Mas há também anuladores morais. Obtenho o anulador da crença C quando adquiro a nova crença C*, de tal modo que seria imoral para mim continuar a acreditar em C enquanto também acreditar em C*. Está em questão aqui o tipo moral de anulador. O ataque moral preconiza um tipo de arbitrariedade autofavorecedora, uma arrogância ou egoísmo,

quando se aceitam proposições como 1) ou 2); quem as aceita é culpado de algum defeito ou falha moral grave. De acordo com Wilfred Cantwell Smith (como vimos no Capítulo 2): “A não ser por insensibilidade ou delinquência, não é moralmente possível sair pelo mundo afora dizendo a nossos pares, seres humanos, devotos e inteligentes: ‘… cremos conhecer a Deus e estamos certos; vocês acreditam conhecer a Deus, mas estão completamente errados’”.119 Assim, o que o crente pode dizer a favor de si mesmo? Deve-se conceder, de imediato, que se ele acredita em 1) ou 2), então também pensa que quem acredita em algo incompatível com essas proposições está errado e acredita em algo falso; isso é apenas lógica. Além disso, ele também precisa crer que quem não acredita no que ele crê — quem não afirma 1) e 2), concordando ou não com suas negações — deixa de acreditar em algo verdadeiro, profundo e importante. Obviamente, ele crê nessa verdade profunda e importante; portanto, deve se considerar privilegiado em relação às outras pessoas. Existe algo de grande valor, deve pensar, que ele tem e que falta nas outras pessoas. Elas são ignorantes de algo — uma coisa de grande importância — que ele tem conhecimento. No entanto, isso o torna um objeto apropriado de censura? Sou realmente arrogante e egoísta só por acreditar em algo que sei e outras pessoas não acreditam, não podendo então mostrar a elas que estou certo? Não vejo como. Obviamente, é preciso conceder que há vários modos em que posso ser, e posso ter sido, intelectualmente arrogante e egoísta; sem dúvida incorri nesse erro no passado, e cairei no futuro, e não estou livre dele agora. Mesmo assim, suponha que eu pense toda a questão, considere as objeções com todo o cuidado possível, perceba minha finitude e, além disso, pecaminosidade; com certeza não sou melhor que as pessoas das quais discordo, e, de fato, sou inferior, em sentido moral e intelectual, a muitos descrentes de minhas crenças. Todavia, suponha que ainda me pareça claro que as proposições em questão são verdadeiras: sou realmente imoral por continuar a crer? Os quacres, do século XVIII, acreditavam que a escravidão era errada. Eles

sabiam, obviamente, que a maioria de seus contemporâneos não compartilhava dessa crença, e também percebiam não dispor de argumentos para convencê-los. Por estarem em descompasso com a maioria, eles sem dúvida refletiram com cuidado sobre essa crença. Após a reflexão, se a escravidão ainda lhes parecesse muito errada, eles ainda estariam fazendo algo imoral se continuassem a crer na escravidão como algo errado? Penso que não. Do mesmo modo, se, depois de refletir e pensar com cuidado, você permanecer convencido de 1) e 2), como poderia ser taxado de egoísta com propriedade por acreditar nessas proposições (mesmo sabendo que outros não concordam com você)? Não posso ver, portanto, como o ataque moral contra o exclusivismo pode ser mantido, e se esse ataque não pode ser mantido, ele não oferece um anulador moral para a fé cristã. Considere o rei Davi. Ele viu a bela Bate-Seba tomando banho, sentiu-se atraído, mandou que a trouxessem, dormiu com ela e a engravidou. Depois do fracasso de vários estratagemas para levar o marido dela, Urias, a pensar que ele mesmo seria o pai da criança, Davi encomendou a morte de Urias ao escrever a seu comandante: “Ponde Urias na frente da maior força da peleja; e deixai-o sozinho, para que seja ferido e morra” (2Sm 11.15). Então o profeta Natã veio a Davi e lhe contou a história sobre um homem rico e um homem pobre. O homem rico tinha muitas ovelhas e bois; o homem pobre tinha só uma cordeirinha, que cresceu junto com seus filhos. O homem rico recebeu convidados inesperados. Em lugar de pegar uma das próprias ovelhas, ele pegou a cordeirinha do homem pobre, abateu-a e a serviu aos convidados. Davi encheu-se de ira: “O homem que fez isso deve ser morto” (1Sm 12.5b). Nesse momento, em uma das passagens mais fascinantes da Bíblia, Natã se volta para Davi, estende os braços, aponta para ele e esbraveja “Tu és o homem” (v. 7). Então Davi percebe o que tinha feito. Estou aqui interessado na reação de Davi à história. Concordo com ele: essa injustiça é de todo errada. Creio que uma ação dessas é errada, e acredito que a proposição de que ela não é errada — seja porque nada é errado, ou

porque mesmo que algumas coisas sejam erradas, ela não é errada — é falsa. Reconheço, no entanto, que muitas pessoas discordam de mim; muitas acreditam que algumas ações são melhores, de algum modo, que outras, mas que nenhuma ação é realmente correta ou errada no sentido pleno de como considero essa ação. Mais uma vez, duvido que eu poderia achar um argumento para lhes mostrar que estou certo e os outros em erro. Além disso, suas crenças, consideradas, por assim dizer, da perspectiva interna, poderiam lhes parecer do mesmo modo que minhas crenças a mim. Nesse caso, sou arbitrário, ao tratar casos similares de maneira diferente ao continuar a manter, como faço, que de fato esse tipo de comportamento é terrivelmente errado? Penso que não. Estou errado ao considerar a intolerância racial desprezível e terrivelmente errada, mesmo que eu saiba não contar com argumentos convincentes? Também penso não estar equivocado. A razão aqui é esta: em cada um desses casos, o crente não pensa de fato que as crenças em questão se encontram no mesmo nível. Ele pode concordar que todos os envolvidos estão igualmente convencidos da veracidade das próprias crenças. Mesmo assim, ele considera a existência de uma diferença epistêmica importante: pensa que, de algum modo, as outras pessoas cometem um erro, têm um ponto cego, não prestaram atenção, não receberam a graça por ele recebida, ou estão cegas por ambição, orgulho, amor materno ou algo do gênero; ele deve imaginar ter acesso a uma fonte de crença garantida que as outras pessoas não têm. Se o crente concorda com a inexistência de qualquer fonte especial de conhecimento ou de crença verdadeira em relação à fé cristã — nenhum sensus divinitatis, nenhuma instigação interna do Espírito Santo, nenhum ensinamento da igreja inspirado e protegido de erro pelo Espírito Santo, nada indisponível para os discordantes — nesse caso, talvez ele pudesse ser acusado de egoísmo arbitrário; nesse caso, talvez haja um anulador da fé cristã. Mas por que ele teria de aceitar essas coisas? Normalmente, ele pensará (ou pelo menos

deveria pensar) que de fato existem fontes de crença garantida produtoras dessas crenças (Eis um meio de o epistemólogo ser útil ao crente). Ele acredita, por exemplo, que, em Cristo, Deus reconciliava o mundo consigo mesmo. E acredita nisso com base no ensino da Bíblia ou da igreja. Ele sabe que outras pessoas não acreditam nisso e, além disso, que elas não aceitam a autoridade da Bíblia (ou da igreja) sobre essa ou sobre qualquer outra questão. O crente tem uma explicação: há o testemunho do Espírito Santo (ou a igreja divinamente fundada e guiada); o testemunho do Espírito Santo nos capacita a aceitar o ensino das Escrituras. O Espírito Santo sela esse ensino no nosso coração, de tal forma que se pode conhecer, sem dúvida, o que Deus fala; ele nos convence o coração de que nossos ouvidos recebem o que vem de Deus. Portanto, em relação a essa proposição, ele pensa se encontrar em uma posição epistêmica melhor que a de quem não partilha suas convicções, pois acredita ter o testemunho da igreja divinamente guiada, o testemunho interno do Espírito Santo, ou talvez alguma outra fonte de conhecimento. Ele pode estar errado ao pensar assim, pode estar iludido, ser vítima de um erro sério e debilitante, porém não precisa ser culpado de manter essa crença. Não precisa ser culpado por crer com inocência que conta com uma fonte de conhecimento ou de crença verdadeira negada pelos discordantes. Isso o deixa protegido do egoísmo epistêmico e da arbitrariedade. Mas não seria esse mesmo pensamento — que ele conta com uma fonte de conhecimento ou de crença verdadeira negada pelos discordantes — um caso de egoísmo epistêmico? Como pensar em algo assim sem ser afetado pelo egoísmo epistêmico? Ora, isso acontece o tempo todo. Um professor de biologia oferece um teste: um dos estudantes dá uma resposta da qual o professor discorda; o professor com muita propriedade crê estar em uma posição epistêmica melhor em virtude dos anos de treino e estudo. Ele não é egoísta ao pensar assim. O crente sério, portanto, não precisa ser intelectualmente arrogante ou arbitrário caso se considere em um nível

epistêmico diferentes dos seus discordantes. Ele pode pensar assim com alguma razoabilidade? Sim, caso possa pensar razoavelmente que o modelo Aquino e Calvino estendido apresentado esteja de fato correto. No entanto, a realidade do pluralismo religioso não serve para alguma coisa? Não há nada relevante nas afirmações dos pluralistas? Negar a relevância do pluralismo seria correto? Sem dúvida, não seria correto. Para pelo menos alguns crentes cristãos, a consciência da enorme variedade de respostas religiosas humanas parece reduzir o nível de confiança nas próprias crenças cristãs. Isso não ocorre ou não precisa ocorrer por meio de um argumento. De fato, não há argumentos respeitáveis sobre a proposição de que muitas pessoas aparentemente devotas ao redor do mundo dissentem de 1) e 2) para a conclusão de que 1) e 2) são falsas ou podem ser aceitas só ao custo da deficiência moral ou epistêmica. Apesar disso, o conhecimento de que outras pessoas que pensam de modo diferente pode reduzir o grau de crença no ensinamento cristão. Da perspectiva cristã, a condição do pluralismo religioso é uma manifestação da condição humana miserável; e ela pode de fato privar o cristão de parte do conforto e da paz que o Senhor prometeu a seus seguidores. Ela também pode privar o crente do conhecimento da veracidade de 1) e 2), mesmo que elas sejam verdadeiras e ele acredite em sua veracidade. Visto que o grau de garantia depende em parte do grau de crença, é possível, embora não necessário, que o conhecimento dos fatos do pluralismo religioso reduza seu grau de crença e, desse modo, o grau de garantia que 1) e 2) têm para si; portanto, ele o pode privar do conhecimento de 1) e 2). Poderia ser tal a situação que se ele não tivesse conhecimento dos fatos do pluralismo, poderia conhecer 1) e 2), mas agora que conhece tais fatos, não mais conhece 1) e 2). Desse modo, ele pode vir a conhecer menos ao conhecer mais. As coisas poderiam ser desse modo. Entretanto, elas não precisam ser assim. Considere mais uma vez o paralelo moral. Talvez você tenha sempre acreditado ser muito errado uma assistente social usar a sua posição de

confiança para seduzir um cliente. Talvez você descubra que outras pessoas discordam; elas pensam nisso como um pecadilho menor, como ultrapassar o sinal vermelho quando não há tráfego. Você pensa a questão com mais cuidado, recria e simula situações assim na imaginação, torna-se mais consciente do que exatamente está envolvido nelas (por exemplo, a quebra de confiança, a injustiça e ilegalidade, a ironia desagradável da situação em que alguém busca um assistente social procurando ajuda, mas apenas recebe dor em troca), e chega a acreditar com mais firmeza que uma ação como essa é errada. Desse modo, a crença poderia adquirir ainda mais garantia para si por conta de você aprender e refletir sobre o fato de que alguém não vê a questão desse mesmo modo. Algo similar pode acontecer no caso das crenças religiosas. A consciência fresca e acentuada dos fatos do pluralismo religioso poderia gerar a reavaliação da vida religiosa do crente, um novo despertar, uma apreensão nova e profunda de 1) e 2). Da perspectiva do modelo Aquino e Calvino estendido, ela poderia servir como ocasião para a operação renovada e mais forte dos processos de produção de crença por meio dos quais chegamos a apreender 1) e 2). Desse modo, o conhecimento dos fatos do pluralismo poderia servir de início como anulador; mas com o tempo ele pode surtir justamente o efeito contrário. Por conseguinte, os fatos do pluralismo religioso, além da crítica bíblica histórica, não precisam consistir em anuladores da fé cristã.

117 Colloquim Heptaplorneres de rerum sublimium arcanis abditis, escrito cerca de 1593, porém publicado em 1857. Tradução para o inglês de Marion Kuntz (Princeton: Princeton University Press, 1975), p. 256. 118 God Has Many Names. Philadelphia: Westminster, 1982, p. 27. 119 Religious Diversity (New York: Harper & Row, 1976), p. 14.

capítulo 10 Anuladores? O mal

Por último, volto a atenção para o mais formidável candidato a anulador da crença teísta: o tradicional “problema do mal”. Nosso mundo contém quantidade e variedade enormes de sofrimento e mal. Considero sofrimento como envolvendo algum tipo de dor ou desconforto: a dor ou o desconforto resultante de doença ou ferimento, opressão, sobrecarga de trabalho ou idade avançada, mas também do desapontamento pessoal ou com a sina da própria vida (ou a de pessoas próximas), dor da solidão, isolamento, traição, amor não correspondido; e há também o sofrimento resultante da consciência do sofrimento alheio. Em sentido fundamental, penso no mal envolvendo ações más de criatura livres (humanas ou não), incluindo-se, em particular, o modo como nós, seres humanos, maltratamos e violentamos uns aos outros. De modo geral, a dor e o sofrimento resultam do mal, como ocorreu em alguns acontecimentos pelos quais o século XX será lembrado — o Holocausto, o terrível experimento marxista na Europa Oriental, que durou setenta anos e fez milhões de vítimas, a vilania de Pol Pot e seus seguidores, as ondas de genocídio na Bósnia e na África. Obviamente, muitos sofrimentos e males são banais e cotidianos, e não são melhores por causa disso. O mal e o sofrimento em nosso mundo de fato perturbam os crentes em Deus. A perturbação e a perplexidade neles se fazem bastante presentes nas Escrituras cristãs e judaicas, em especial, mas não de forma exclusiva, em Salmos e no livro de Jó. Face à concretude chocante de um exemplo particularmente horrível de sofrimento ou mal, ocorrendo na própria vida ou na vida de alguém próximo, o crente pode achar-se tentado a tomar uma

atitude em relação a Deus que ele mesmo deplora — desconfiança, suspeita, amargura ou rebelião. Esse problema é espiritual ou pastoral. A pessoa nas garras do mal pode não ser tentada a duvidar da existência ou mesmo da bondade divina; apesar disso, ela pode ficar descontente com Deus, passar a desconfiar dele, ficar receosa, tornar-se incapaz de pensar a respeito de Deus como Pai amoroso, começar a pensar que ele está longe e não se importa.

Um poderoso argumento ateológico do mal? No entanto, muitas pessoas afirmaram que o conhecimento da quantidade, variedade e distribuição do sofrimento e do mal (“os fatos do mal”) confronta o crente com um problema de outro tipo. Esses fatos, afirmam, podem servir como premissas de um argumento poderoso contra a própria existência de Deus — ou seja, contra a existência de um ser todo-poderoso, onisciente e totalmente bom que criou o mundo e ama suas criaturas. Esses argumentos remontam ao mundo antigo, a Epicuro (341-270 a.C.), cujo raciocínio foi repetido no século XVIII pelo filósofo cético David Hume (1711-1776): A antiga questão de Epicuro permanece sem resposta. Ele quer impedir o mal, mas não é capaz? Então é impotente. Ele é capaz, mas não quer? Então é malévolo. Ele é capaz e quer? De onde, pois, provém o mal?120

A afirmação é que reconhecer esse argumento consiste em um anulador da crença teísta (a crença em Deus), e se esse conhecimento for um anulador da crença teísta, então, obviamente, ele também é um anulador da fé cristã. Nossa questão, portanto, é se o conhecimento dos fatos do mal estabelece um anulador da crença teísta e cristã. Ele faz com que eu não possa mais manter a fé cristã racionalmente? Note que esse não é o problema tradicional da teodiceia: não farei nenhuma tentativa de “justificar os caminhos de Deus ao homem” ou de apresentar uma resposta ao motivo de Deus permitir o mal, em sentido geral, ou por que ele permite algumas formas abomináveis de mal em especial.121 Em vez disso, a nossa questão é epistemológica: pelo fato de a crença teísta, ou cristã, ser garantida nos moldes que sugiro, o conhecimento dos fatos do mal é um anulador dessa crença? Ele a torna irracional ou não garantida? Obviamente, a resposta não precisa ser a mesma para todos os cristãos: talvez os fatos do sofrimento e do mal, em nosso pesaroso mundo, não sejam

anuladores para os cristãos muito jovens, ou os cristãos culturalmente ilhados, ou os que pouco sabem sobre o sofrimento e o mal no nosso mundo, ou para quem não aprecia com adequação a seriedade do que sabe. Nossa questão, no entanto, diz respeito a “adultos intelectualmente sofisticados em nossa cultura” (veja acima, na p. 89). Posso ser maduro em sentido intelectual e espiritual, estar ciente das quantidades e intensidades enormes e impressionantes de sofrimento e mal no mundo, ter ciência também dos melhores argumentos antiteístas a partir dos fatos do mal, e ainda ser tal que a fé cristã seja racional e garantida para mim? Poderia ainda haver para mim garantia suficiente para o conhecimento? Argumentarei que a resposta correta é: “Sim, sem dúvida”. E isso vale não só para umas poucas pessoas. Argumentarei que para qualquer cristão sério com conhecimento mínimo de epistemologia, os fatos do mal, apavorantes como são, não oferecem um obstáculo à fé cristã garantida. Trinta ou trinta e cinco anos atrás, o tipo favorito de argumento do mal objetivava estabelecer a conclusão de que haveria uma inconsistência lógica na crença cristã. Os cristãos creem na existência de Deus (i.e., um ser onipotente, onisciente e totalmente bom), e também que há o mal no mundo; não é logicamente possível (assim se afirmava) que essas duas crenças sejam ao mesmo tempo verdadeiras. A afirmação era de que a existência de Deus é logicamente incompatível com a existência do mal; pelo fato de o teísta estar comprometido com as duas, essa crença seria claramente irracional. Hoje, entretanto, afirma-se inexistir qualquer contradição ou falsidade necessária na conjunção de afirmações sobre a existência de Deus e do mal; a existência do mal não é logicamente incompatível (mesmo em um sentido lógico amplo) com a existência de um Deus todo-poderoso, onisciente e perfeitamente bom.122 Obviamente, isso não é o suficiente para livrar o teísta dessa situação difícil. Também não há contradição lógica na crença de que a terra é plana, ou que a terra está apoiada sob uma tartaruga, que se apoia em outra tartaruga, e

assim por diante, de tal forma que só haja mais tartarugas; apesar disso, essas crenças (pelo que pensamos saber) são irracionais. (Você ficaria preocupado se seu filho crescido adotasse essas crenças). Quem apresenta argumentos a partir do mal redireciona a atenção da afirmação de que a existência de Deus é diretamente incompatível com a existência do mal para argumentos evidenciais ou probabilísticos. Nesse caso, a afirmação não diz respeito à incoerência lógica da fé cristã, mas sim que os fatos do mal apresentam uma forte evidência contra a existência divina. Os argumentos evidenciais são também probabilísticos: nos casos mais simples, afirmam que a existência de Deus é inverossímil ou improvável, dados os fatos do mal. Assim, a afirmação ateológica típica no presente não é a incompatibilidade da existência divina com a existência do mal; em vez disso, afirma-se que o mal permite construir um forte argumento evidencial ou probabilístico contra a existência de Deus. Mas suponha que o mal seja algum tipo de evidência contra o teísmo: o que se segue disso? Não muito. Existem várias proposições que creio verdadeiras e racionalmente aceitas, e contras elas há algumas evidências. O fato de Pedro ser um bebê de três meses é evidência suficiente contra ele pesar 7 kg; apesar disso, eu poderia acreditar de forma racional (e verdadeira) que esse é exatamente seu peso. A ideia então é a improbabilidade da existência de Deus dada a nossa evidência total, todo o resto do que sabemos e acreditamos? Para mostrar isso, o ateólogo teria de considerar toda a evidência a favor da existência divina — os argumentos tradicionais ontológico, cosmológico e teleológico, além de muitos outros;123 ele seria obrigado a pesar o mérito relativo de todos esses argumentos, e pesá-los contra o argumento evidencial do mal para então alcançar a conclusão indicada. Isso não seria fácil. Além disso, imagine que o teísmo fosse improvável por conta de todas as minhas crenças; como outra opção, suponha que o restante do que acredito oferecesse evidência contra o teísmo e nenhuma a favor. O que se seguiria

disso? Mais uma vez, não muito. São várias as crenças verdadeiras que mantenho (e o faço com racionalidade plena) em tal nível que elas não são suscetíveis levando-se em consideração o restante de minhas crenças. Por exemplo, estou jogando pôquer; é improvável, considerando-se tudo o mais que sei ou acredito, que eu tenha tirado um inside straight; não se segue mesmo que haja a menor irracionalidade em minha crença de que de que acabei de completar um inside straight. A razão, obviamente, é que essa crença não depende, para sua garantia, de ser provável por conta do restante do que acredito; ela tem uma fonte bem diferente de garantia: a percepção. O mesmo ocorre em relação ao teísmo: tudo se volta aqui para a questão de, como tenho argumentado, o teísmo ter ou poder ter alguma fonte de garantia — a percepção de Deus, ou o sensus divinitatis, ou a fé e a instigação interna do Espírito Santo — distinta da probabilidade quando consideradas as outras proposições de minha crença.

O argumento mais forte do mal Inexiste argumento cogente para a conclusão de que a existência do mal é incompatível com a existência de Deus; também não há um argumento do mal evidencial ou probabilístico sério; concordo. Porém o sofrimento e o mal estabelecem algum tipo de problema para pelo menos alguns crentes em Deus; o Antigo Testamento está repleto de exemplos. De fato, há o grito agonizante de Jesus Cristo: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” — um grito que ecoa as palavras de Salmos 22. O livro de Jó consiste na busca e na procura intensa da realidade do mal e das respostas humanas a ele. Jó se encontra enfurecido; ele pensa que Deus age com injustiça em relação a ele e o desafia a explicar e justificar a si mesmo. Inúmeras pessoas, nas garras do próprio sofrimento cruel, ou do sofrimento de uma pessoa próxima, iram-se com Deus; como resultado do sofrimento e do mal na própria vida, a pessoa pode ficar descontente com Deus, desconfiada dele, antagônica e hostil a ele. Mesmo assim, de modo geral, essas situações não produzem um anulador da crença teísta. Não é o caso que Jesus, o salmista e Jó, estivessem inclinados a abrir mão da crença teísta. A dificuldade é diferente; trata-se de um problema espiritual ou pastoral, e não de um anulador da crença teísta. Talvez Deus permita que meu pai, ou minha filha, ou meu amigo, ou eu mesmo, sofra da forma mais apavorante. Posso então pensar do seguinte modo: “Sem dúvida, ele tem todas essas excelentes propriedades divinas, e, sem dúvida, tem uma boa razão para permitir essa abominação — afinal, não sou páreo para ele quanto à produção de razões — razões totalmente além da minha compreensão — mas o que ele permite é apavorante, e odeio isso!”. Posso querer dizer a ele frente a frente: “Tu podes ser maravilhoso, magnífico, onisciente, onipotente (e mesmo totalmente bom) e todas essas coisas

exaltadas, mas eu terminantemente detesto o que fazes!”. Um problema desse tipo não é de fato evidencial, e não constitui um anulador do teísmo. Mas essa talvez não seja a única reação realista: talvez eu pudesse reagir desse modo, mas não há outras reações racionais? Não poderia abrir mão da crença em Deus por completo? O sofrimento e o mal, sob certas circunstâncias, pelo menos, não poderia realmente servir como anulador da crença em Deus? A lista de atrocidades que os seres humanos cometem uns contra os outros é terrível e medonha; ela é também muito longa, e tão repetitiva que chega a ser maçante. Às vezes, no entanto, novos abismos são produzidos: Uma jovem mãe muçulmana foi repetidamente estuprada em frente do marido e da mãe, com seu bebê gritando no chão ao lado dela. Por fim, quando seus carrascos pareciam cansados dela, ela pediu permissão para cuidar da criança. Em resposta, um dos estupradores rapidamente decapitou o bebê e lançou a cabeça no colo da mãe.124

Essas coisas são absolutamente terríveis; só considerá-las e trazê-las à mente já é doloroso. Apresentá-las em uma discussão filosófica fria como esta é infeliz e pode parecer insensível. Surge agora a questão: um ser racional não pensaria, face a esse tipo de mal, que não pode haver um ser onipotente, onisciente, e totalmente bom supervisionando nosso mundo? Talvez ele não possa demonstrar que nenhuma pessoa perfeita seria capaz de permitir essas coisas; talvez também não haja um argumento antiteísta probabilístico ou evidencial: mas e daí? Não é claro e evidente que um ser com a reputação de Deus não poderia permitir algo assim? Não tenho aqui um anulador, mesmo que não seja um bom argumento a favor do mal? Penso que algo nesses termos consista na melhor versão da objeção antiteísta do mal. Em essência, afirma-se que uma pessoa sensível e ciente de forma própria do puro horror do mal exibido em nosso mundo sombrio e infeliz verá que nenhum ser semelhante ao tipo que se arroga a Deus poderia

permitir esse horror. Trata-se de um tipo de sensus divinitatis invertido: talvez não haja um bom argumento do mal; mas não se requer nenhum argumento. Um apelo desse tipo não procederá da enumeração de argumentos, mas, sim, pela colocação do interlocutor no tipo de situação em que o pleno horror do sofrimento e do mal no mundo surja de modo claro com toda a sua repugnância. De fato, do ponto de vista ateológico, a apresentação de um argumento é aqui contraproducente: isso permite ao crente em Deus desviar sua atenção, voltar os olhos para longe da abominação do sofrimento, refugiar-se nas discussões anticéticas de mundos possíveis, funções probabilísticas e outros arcanos. Isso desvia a atenção das situações que de fato estabelecem o anulador da crença em Deus.

Não há anulador para quem é plenamente racional Suponha que examinemos essa afirmação — a afirmação de que o exame claro do mal oferece um anulador da crença em Deus. Lembre-se, em primeiro lugar, que um anulador da crença depende do restante do que creio; se minha nova crença anula a antiga, isso depende do que mais eu creio a que minha experiência se assemelha. Para mim, essa árvore é um bordo; você me diz que se trata de um olmo. Isso anulará minha crença no bordo se eu pensar que você sabe do que fala e deseja me dizer a verdade, mas não o fará caso eu pense que você dispõe de menos conhecimentos sobre árvores que eu, ou que as chances são de meia a meio de você me dizer o que considera verdade. Ver o pleno horror do mal apresentado pelo mundo pode consistir em um anulador da crença teísta para algumas pessoas, mas não para outras. Quero argumentar inicialmente que, se o cristianismo clássico for verdadeiro, então a percepção do mal não é um anulador da crença em Deus para a pessoa plenamente racional, a pessoa que tem as faculdades cognitivas funcionando de modo próprio. Do ponto de vista do cristianismo clássico (pelo menos de acordo com o modelo Aquino e Calvino), isso inclui também a função própria do sensus divinitatis. A pessoa em quem esse processo funciona detém um conhecimento íntimo, detalhado, vívido e explícito de Deus; ela está tão convencida da existência dele como da própria existência. Essa pessoa poderia, portanto, ficar perplexa com a existência desse mal no mundo de Deus — pois Deus, ela sabe, odeia o mal com um sentimento sagrado e ardente —, mas, sem dúvida, a ideia de que talvez esse Deus pessoal não exista não passaria por sua cabeça. Confrontada com o mal e o sofrimento, essa pessoa poderia se perguntar por que Deus permite isso; os fatos do mal podem servir de aguilhão para a pesquisa e para a ação. Se não encontrar a resposta, ela com certeza concluirá que Deus tem uma razão que ultrapassa seu conhecimento; ela não ficará minimante inclinada a duvidar da

existência divina. No modelo Aquino e Calvino, a existência do mal não é um anulador da crença em Deus para a pessoa plenamente racional.

E os outros crentes? Portanto, no modelo Aquino e Calvino, os fatos do mal não estabelecem nenhum tipo de anulador da crença teísta para a pessoa plenamente racional. Apesar disso (assim o ateólogo astuto afirmará), o fato tem relevância duvidosa em relação à questão de os cristãos crentes em Deus — os que de fato são — encontrarem nos males do mundo um anulador do teísmo. Pois, de acordo com a própria doutrina cristã, nenhum de nós, seres humanos, nos encontramos na condição imaculada de completa racionalidade. O sensus divinitatis foi muito danificado pelo pecado; para a maioria de nós, e na maior parte do tempo, a presença divina não é evidente. Para muitos de nós (de qualquer modo, em muitos momentos) a existência de Deus e da sua bondade são um pouco obscuras e evanescentes, em nenhum ponto chegando a ser tão evidente quanto a existência de outras pessoas ou a existência de árvores no quintal. Para a pessoa plenamente racional, o conhecimento dos fatos do mal pode não ser um anulador do teísmo; para os seres humanos caídos reais, no entanto (assim se afirma), esses fatos estabelecem anuladores do teísmo. Levar adiante essa linha de raciocínio, no entanto, equivaleria a negligenciar outra característica da fé cristã: o dano ao sensus divinitatis é reparado, em princípio e de modo crescente, pelo processo da fé e da regeneração. A pessoa de fé se portar de modo que, pelo menos em algumas ocasiões, a presença divina lhe seja de todo evidente. Além disso, ela conhece o amor divino revelado na encarnação, o esplendor incompreensível de toda a narrativa cristã, o sofrimento e a morte de Jesus Cristo por nós, ele mesmo o divino e único Filho de Deus. Obviamente, esse conhecimento não apresenta resposta para a pergunta “Por que Deus permite o mal?”. Apesar disso, ela tem aqui uma importância crucial.

Leio a respeito de alguma atrocidade enorme e fico abalado. Contudo, penso no grande amor demonstrado no sofrimento e na morte de Cristo, na prontidão para se rebaixar e assumir a natureza de um servo, na prontidão para sofrer e morrer de tal forma que os seres humanos pecadores pudessem alcançar a redenção; e a minha fé pode ser restaurada. Ainda não posso imaginar por que Deus permite esse sofrimento, ou por que ele permite às pessoas torturarem e matarem umas às outras, ou por que ele permite experiências sociais enormes e horríveis como o nazismo e o comunismo. Apesar disso, vejo que ele deseja tomar parte no nosso sofrimento, passar por um sofrimento enorme, e fazê-lo por nós. Portanto, confrontado com um exemplo particularmente repugnante de mal, posso me ver inclinado a questionar Deus, até mesmo a ficar furioso e indignado: “Por que eu (ou a minha família) devo sofrer para promover os (sem dúvida elevados) fins de Deus, se não tenho nem mesmo um vislumbre de como o meu sofrimento contribui para algum bem?”. Contudo, penso na prontidão divina em suportar o sofrimento maior por mim e encontro conforto ou, pelo menos, quietude. Note que as probabilidades têm pouca relação com o tema. Alguém nessa condição não raciocina: não é muito provável que um ser onipotente, onisciente e totalmente bom permita essas atrocidades — contudo, é mais provável que um ser disposto a se submeter ao sofrimento por nós permita essas atrocidades. O conforto envolvido aqui não se baseia em um raciocínio probabilístico. Há outra consideração importante. É plausível pensar que o melhor dos mundos possíveis que Deus poderia ter atualizado contém o incompreensivelmente grande bem da encarnação divina e da redenção — no entanto ele contém, obviamente, também o pecado e o sofrimento. Deus escolhe um desses mundos para ser o mundo real; e nele a humanidade sofre. Apesar disso, também há nele a maravilhosa oportunidade para a redenção e para a amizade eterna com Deus, um bem incompreensivelmente grande que

supera em muito o sofrimento que somos convocados a suportar.125 E ainda, recebendo a oferta da eterna amizade com Deus, nós, seres humanos, somos convidados a partilhar do círculo atrativo da própria Trindade; e talvez seja o caso que o convite possa ser feito só às criaturas que caíram, sofreram, e foram redimidas. Se for mesmo assim, a condição da humanidade é muito melhor do que teria sido caso não tivesse havido o pecado e não houvesse qualquer sofrimento. Deveras, o felix culpa!126 Portanto, as pessoas que têm fé (em quem ocorre o processo de regeneração) serão também tais que, conforme o modelo, a presença e a bondade de Deus lhes é, em algum grau, evidente; assim, para elas, a crença de que há um ser como Deus terá considerável garantia. Como alguém que nunca teve o sensus divinitatis danificado, ela também sentirá pouca ou nenhuma inclinação para o ateísmo ou o agnosticismo quando confrontada com os casos de males horríveis. Elas podem ficar perplexas, chocadas; podem ser estimuladas à ação e investigação da presença do mal terrível no mundo de Deus; mas cessar de acreditar não será uma opção para elas. Se o sofrimento for delas, podem concordar com o autor de Salmos 119.75, 76: “Bem sei, ó Senhor, que os teus juízos são justos e que com fidelidade me afligiste. Venha, pois, a tua bondade consolar-me, segundo a palavra que deste ao teu servo”. O fato é que eles podem até mesmo sentir um contentamento abençoado. Eis o trecho de uma carta de Guido de Brès (autor da Confissão belga, 1561) à sua mulher, escrita pouco antes de seu enforcamento: Sua aflição e tristeza, perturbando-me em meio à minha felicidade e contentamento, são minha motivação para lhe escrever esta carta. Peço a você, com toda a sinceridade, que não fique aflita além da medida… Estou encerrado na mais fétida e desprezível masmorra, tão escura e sombria que tem o nome de Buraco Negro. Posso receber não mais que um pouco de ar, e esse é dos mais podres. Tenho sob as minhas mãos e pés ferros pesados que são uma tortura constante, esfolando a carne até meus pobres ossos. Porém, apesar disso

tudo, meu Deus não deixa de realizar sua promessa, e de confortar meu coração, e me dar um abençoadíssimo contentamento.127

De Brès sofreu muito; ainda assim, ele sentiu “um abençoadíssimo contentamento”. Sem dúvida, a coisa mais distante de sua mente era o pensamento de que talvez não houvesse ninguém como Deus, que talvez ele tivesse sido enganado o tempo todo. E continuar a crer não revela irracionalidade: ele não teve no sofrimento um anulador da crença teísta, mas de algum modo o suprimiu (talvez por meio do pensamento positivo) e continuou a crer. Não, sua crença era, em vez disso, o resultado da função própria de processos cognitivos — o sensus divinitatis revitalizado, a instigação do Espírito Santo — que produz a crença em Deus.

Não há circunstâncias anuladoras para a crença teísta? Com certeza, a maioria de nós não se encontra na condição espiritual de Guido de Brès. E nem todos nós sentimos esse conforto e contentamento em face do sofrimento. Como Calvino ressalta (A instituição, III.ii.15), a maioria de nós algumas vezes tem dificuldade de pensar que Deus é realmente benevolente para conosco; e mesmo os grandes mestres da vida espiritual às vezes se encontram em estado de escuridão espiritual. Os cristãos concordam que suas situações epistêmicas e espirituais diferem muito de pessoa para pessoa, e em relação a uma única pessoa, de tempos em tempos. Então não há nenhuma condição em que os fatos do mal estabelecem um anulador da fé cristã ou teísta? Eu deveria considerar a resposta correta um “provavelmente não”. Considere a pessoa desprovida do sensus divinitatis em pleno funcionamento; alguém que crê em Deus de modo impensado e superficial, para quem a crença não tem vivacidade, profundidade ou vigor reais — talvez essa pessoa, sentindo profundamente os fatos do mal, abra mão da crença teísta. No entanto, isso não mostra que essa pessoa conta com um anulador da crença teísta. Ela tem esse anulador somente se, nessas circunstâncias, se comportar de modo irracional, contrário à função cognitiva própria de continuar a acreditar em Deus. Ela terá esse anulador apenas se for parte do nosso projeto de design cognitivo abrir mão da crença teísta nessas circunstâncias. Mas não temos razão para pensar que nosso projeto de design prescreva o abandono da crença teísta nessas circunstâncias. O projeto de design inclui a função própria do sensus divinitatis; como as coisas realmente se passam quando esse processo não funciona propriamente poderia ser parte do projeto de design; é mais provável, no entanto, que isso seja um subproduto não intencional em vez de parte do projeto de design.

Apesar disso, aceitemos, só para efeito de argumentação, que uma pessoa conte, de fato, com um anulador da crença teísta. O importante a observar aqui é que se ela tem um anulador, isso acontece só pela falha da racionalidade em algum ponto de sua estrutura noética (talvez haja uma disfunção do sensus divinitatis). Agora imagine que voltamos à questão originária: a pessoa S, que crê na existência de um ser como Deus, tem um anulador nos fatos do mal? Podemos agora perceber que não há razão para pensar que ela conte com esse anulador. O próprio fato de S manter a crença teísta evidencia o bom funcionamento do sensus divinitatis nela, pelo menos em algum grau. Talvez seja possível (se o não crer nessas circunstâncias for parte do projeto de design) que ela tenha um anulador; contudo, não há razão para pensar que ela conte com esse anulador. Portanto, muito provavelmente os crentes em Deus não têm anuladores da crença teísta no conhecimento dos fatos do mal. Para concluir: obviamente, não posso afirmar ter demonstrado a inexistência de anuladores da fé cristã ou teísta. Mas posso afirmar (e afirmo) que três dos mais plausíveis candidatos a esse posto — a crítica bíblica história, o pluralismo, e o mal — não são realmente bem-sucedidos.

120 Dialogues Concerning Natural Religion, Richard Popkin (org.). Indianapolis: Hackett, 1980, p. 63. Hume coloca o argumento na boca de Filo, conhecido como representante das posições de Hume. [Publicado em português com o título: Hume, Diálogos sobre a religião natural, São Paulo: Martins Fontes, 1992.] 121 Para uma sugestão nesse sentido, veja, de minha autoria, “Supralapsarianism, or ‘O Felix Culpa’”, In: Christian Faith and the Problem of Evil, P. van Inwagen (org.) (Grand Rapids: Eerdmans, 2004). 122 O ponto essencial é a possibilidade, em um sentido lógico amplo, que 1) não estivesse no poder de Deus criar pessoas livres que sempre fizessem coisas corretas e 2) o valor de ter pessoas livres supera a perda do valor decorrente do mal feito por elas. Um desenvolvimento do argumento pode ser visto no livro de minha autoria God, Freedom, and Evil (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 7ss. [Publicado em português com o título: Deus, a liberdade e o mal, São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 20ss.] 123 Veja, de minha autoria, “Two Dozen (or So) Theistic Arguments”, disponível como Apêndice de: Contemporary Philosophy in Focus, Diane-Peter Baker (org.) (Cambridge: Cambridge University Press, 2007), p. 203ss. 124 Eleonore Stump, “The Mirror of Evil”, In: God and the Philosophers, Thomas Morris (org.). New York: Oxford University Press, 1994, p. 239. 125 Paulo continua em Rm 8.18: “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós”. 126 Felix culpa (lit., culpa bendita, ou feliz) é parte de uma expressão latina encontrada em um hino da liturgia romana, entoado na vigília da Páscoa, intitulado Exsultet. Lê-se na estrofe do hino que contém essa expressão: O felix culpa, quæ talem ac tantum meruit habere Redemptorem! [Ó culpa feliz que obteve para nós um Redentor tão grande, tão glorioso!]. [N. do R.] 127 Apud Cornelius Plantinga Jr. in: A Place to Stand. Grand Rapids: Board of Publications of the Christian Reformed Church, 1981, p. 35.

Epílogo

Neste livro, argumentei, em primeiro lugar (no Capítulo 1), que a fé cristã existe de fato, e que se pode falar e pensar sobre Deus. No Capítulo 2, distingui dois tipos de objeções à fé cristã: a de jure e a de facto; as objeções de jure se caracterizam pela afirmação de que a fé cristã é questionável em sentido intelectual ou racional, mesmo que verdadeira. Embora as objeções de jure sejam comuns desde o iluminismo, não é fácil dizer com exatidão o que se supõe serem essas objeções. Argumentei que não se pode encontrar nenhuma objeção de jure viável pelos lados da justificação, concebida em termos de dever e obrigação. Propus então argumentar a inexistência de objeções de jure plausíveis, independentes das objeções de facto. Declarei que o único candidato inicialmente promissor para a objeção de jure à fé cristã pode ser abordado pela afirmação de Freud de que a fé cristã não tem garantia, ou pelo menos garantia suficiente para o conhecimento. Freud, no entanto, apenas pressupõe a falsidade da crença teísta (por isso, da fé cristã); portanto, essa alegada objeção de jure não independe da verdade da fé cristã. Argumentei, além disso, que a mesma sina é partilhada por qualquer alegada objeção de jure formulada em termos de garantia. No Capítulo 3, apresentei o modelo Aquino e Calvino de como a crença em Deus pode ter garantia, e mesmo garantia suficiente para o conhecimento. Nos Capítulos 4, 5 e 6, estendi o modelo Aquino e Calvino de tal modo a lidar com o pecado e toda a panóplia da fé cristã: Trindade, encarnação, redenção e ressurreição. O Capítulo 7 tratou de algumas objeções ao modelo. Por fim, nos Capítulos 8, 9 e 10 considerei a crítica bíblica histórica contemporânea, o

pluralismo, e o antigo problema do mal como anuladores atuais ou potenciais da fé cristã. Nenhum deles, argumentei, apresenta uma objeção séria à garantia de que a fé cristã pode ter se o modelo, e de fato a fé cristã, for, realmente, verdadeiro. Mas ele é verdadeiro? Essa é realmente uma questão importante. E aqui ultrapassamos a competência da filosofia. Em minha opinião, nenhum argumento com premissas aceitas por todos ou por quase todos é forte o bastante para apoiar a fé cristã plena, mesmo que essa crença seja, como penso, mais provável que improvável — dadas as premissas desse tipo. Falando por mim mesmo, e não em nome da filosofia, só posso dizer que ela me parece realmente verdadeira, e uma verdade especialmente importante.