Teatro e Construção de Conhecimento

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Gilberto lcle

Teatro e Construção de Conhecimento

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mercado aberto

Capa: Marco Cena Editoração eletrônica: Cristiano da Rocha Gutcrres Revisão: Paulo Sérgio Weirich Ilustrações: Ana Fuchs Agradecimento ao Núcleo de Investigaçiio Usina do Trabalho do Ator e GEARTE - Grupo de Estudos em Educação e Arte da UFRGS

Editor: Roque Jacoby

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Icle, Gilberto Teatro e construção de conhecimento I Gilberto lcle. - Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002. 188 p. ; 14 x 21 em. 1. Teatro - ensaios. 2. Teatro - fonnaçlo de atores. I. Titulo.

CDU 792-4 ClP - Catalogação na fonte: Paula Pêgas de Lima CRB 10/1229

ISBN 85·280·0555·0 Todos os direitos reservados a Editora Mercado Aberto Rua Dona Margarida, 894 - Naveganles 90240..610 - Porto Alegre - RS Fone: (51) 3337 4833 - Fax: (51) 3337 4905 www.mercadoaberto.com.br [email protected]

e Fundação Municipal de Artes de Montenegro - FUNDARTE Rua Capitão Porfirio, 241 - Centro 9578()..()00 - Montenegro - RS Fone: (51) 632-1879 www.fundarte.rs.gov.br í[email protected]

Para aquelas que têm me ajudadlJ a dançar sobre o demônio da ignorância: Alice, Celi1ta, Ciça e Leouor.

"Some-nte a ação é uiva,

mas só a palavra pe-rmanece."' Eugetzio Barba

Teatro e Construção de Conhecimento

AGRADECIMENTOS

À professora Dra. Analice Dutra Pillar, pela orientação dedicada e atenta. O respeito e a ética, além da delicadeza e a doçura, aliados a um rigor científico, produziram trabalho competente e levaram-me a uma compreensão teórica de meu trabalho que tem, por natureza, uma base empírica. Obrigado, Analice. Aos professores que tão atentamente leram e deram pareceres à minha proposta de dissertação e à dissertação, pela atenção e importantes considerações: Dra. Maria Lucia Pupo, Dra. Marta Isaacsson, Dr. José A. Avancini, Dra. Esther Beyer, e, em especial, ao prof. Dr. Fernando Becker pelas preciosas considerações em aula. À professora Maria Lúcia Raimundo, por ter contribuído de maneira significativa à minha proposta, tecendo comentários que muito me ajudaram. Aos colegas do grupo de orientação pelos comentários e pela força: Mirna Spritzer, Gládis Franck, Marli Meira, Suzana Vieria da Cunha, Neiva Panozzo e Maria Helena Rossi e, em especial, à amiga e colega Vera Bertoni. A todos os atores da Usina do Trabalho do Ator, por terem contribuído com seus respectivos trabalhos, sempre de forma digna e competente: Sirlei Alaniz, Alice Gui-

marães, Roberto Birindeli, Silvana Stein, Celina Alcântara, Raquel Carvalhal, Leonor Melo, Ciça Reckziegel, Xico de Assis e Eliza Pierim. À Cilene Corazza, por ter me incentivado a vir a Porto Alegre fazer teatro. À Fundação Municipal de Artes de Montenegro, a FUNDARTE, pelo tempo despendido, pelo incentivo e carinho dos colegas e pelo aprendizado com os alunos. Ao PPGEDU e, em especial, à prof. Dra. Margarete Axt pelo apoio. Ao CNPQ, pela bolsa. À Dóris Fiss pela revisão. A todas as pessoas que contribuiram com materiais, palavras e sorrisos, em especial: Dr. Franco Rufiini, Irion Nolasco, Graça Nunes, Isabel Petry Kerwald, Beatriz Brito, Sérgio Luckin, Lisa Becker, Carlos Modinger, Ana Carolina Fuchs. A Luis Otávio Burnier, agora um viajante do tempo, por despertar em mim a curiosidade da pesquisa. À Celina, por me amar tanto.

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I

SUMARIO

PREFÁCIO .....................................................·..................... LISTA DE FIGURAS.......................................................... APRESENTAÇÃO .............................................................. IN'fRODUÇÃO ...................................................................

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1- O DEMÔNIO DA IGNORÂNCIA .............................. 41 1.1 Teatro como arte......................................................... 46 1.2 O Trabalho do Ator..................................................... 48 1.3 O conhecimento tornado corpo .... .............. .... .... ...... 55 1.4. Antropologia Teatral: a construção da beleza no trabalho do ator........................................... 61

2 -A IMPROVISAÇÃO COMO PENSAMENTO-AÇÃO ...................................................... 75 2.1 A formação do ator: improvisação e processo criativo............................................................. 7 5 2.2 A Commedia dell'Arte: improvisação e memória.................................................. 81 2.3 A característica psico-fisiológica da ação física....... 85

2.4 O pensamento simbólico na improvisação.............. 92

3- PROCEDIMENTOS DE IMPROVISAÇÃO .............. 99 3.1 Dança dos Ventos ........................................................ 100 3.2 Samurai ......................................................................... 107 3.3 Gueixa ........................................................................... 112 3.4 Lançamentos ................................................................ 114 3.5 Batalha .......................................................................... 116 3.6 Koshi ............................................................................. 120 3.7 Acrobacia ...................................................................... 122 3.8 Elementos Plásticos ................................................... 130 3.9 Improvisação ................................................................ 131 3.10 Duas sessões de trabalho ........................................ 133

4 - ESTRUTURAS MENTAIS DE IMPROVISAÇÃO ......................................................... 141 4.1 Categorias gerais de pensamento-ação: superficial, plena e profunda ............................................ 145 4.1.1 Pensamento-ação superficial .................................. 146 4.1.2 Pensamento-ação pleno .......................................... 149 4.1.3 Pensamento-ação profundo .................................... 152 4.2 Aprender a aprender: imitação, jogo e composição ...................................................................... 156 4.3 Categorias gerais da energia corporal: o funcionamento e a complementaridade dos opostos ......................................................................... 163 4.3.1 A Energia Masculina ............................................... 165 4.3.2 A Energia Feminina ................................................. 168 4.3.3 A complementaridade dos opostos ....................... 170 4.4 Um pensamento equivalente: imagens mentais na improvisação .................................................. 172

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5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................ 177

A construção do conhecimento na improvisação: a tomada de consciência ................................................... 178 A segunda natureza do ator ou a "fenocópia" ................. 179 O ator dançando sobre o demônio da ignorância .......... 183 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................ 185

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' PREFACIO

"Quando o verão me passa pela cara, a mão leve e quente da sua brisa, o que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo!

Pe11so com os olhos e com os Ouvidos. E com as mãos e os pés E com o nariz E a boca. Sou místico, mas só com o cmpo.

Minha alma é simples." Fernando Pessoa

Este poema diz um pouco desta construção sensorial, perceptiva, cognitiva, de corpo e mente, que é a improvisação e a relação que o Gilberto com ela estabelece em seu trabalho. Ter podido compartilhar com o Gilberto - ator, diretor e professor de teatro- esta investigação foi um grande aprendizado, um desafio. Gilberto foi meu primeiro orientando e, de certo modo, trouxe uma outra energia ao grupo de orientandas. Sempre muito sério, objetivo e mer-

gulhando fundo em teorias bem complexas, buscou tecer relações entre os diferentes autores que estudou. Seu livro revela cuidado, seriedade e ousadia. Desde o título podemos ver sua ousadia, sua transgressão. Realizar uma reflexão sobre o próprio trabalho de criação/ construção é algo complexo e que o autor conseguiu com admirável desenvoltura. Escrito numa linguagem clara, o texto envolve o leitor e o leva aos bastidores da construção de conhecimento no trabalho do ator, via improvisação. O que aos olhos dos leigos parece pura brincadeira, algo que acontece de forma espontânea na improvisação, Gilberto desvela as construções subjacentes a esse "espontâneo".

Analice Dutra Pillar

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LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 - Escultura de Shiva-Nataraja, senhor da dança, sul da Índia, século XI. Museu de Arte de Cleveland. .......................................... 42 Fig. 2- O passo básico da Dança dos Ventos ............... 101 Fig. 3 - Rotação e translação na Dança dos Ventos ..... 103 Fig. 4 - Giro pelo peito na Dança dos Ventos ............... 104 Fig. 5-O chicote na Dança dos Ventos ........................ 104 Fig. 6- Dança dos Ventos com bastão .......................... 105 Fig. 7 - Posição base do Samurai.. .................................. 107 Fig. 8 - Passo número 1 do Samurai .............................. 108 Fig. 9- Passo número 2 do Samurai .............................. 109 Fig. 10 -Passo número 3 do Samurai ............................ 109 Fig. 11- Uma forma de se abaixar do Samurai ............ 110 Fig. 12 - Uma forma de saltar do Samurai .................... 11 O Fig. 13 - Uma forma de girar com o Samurai ............... 111 Fig. 14 - Passo número 1 da Gueixa .............................. 113 Fig. 15 - Passo número 2 da Gueixa .............................. 113 Fig. 16 - Passo número 3 da Gueixa .............................. 113 Fig. 17- Um lançamento e seu "sats" correspondente ........................................................ 114 Fig. 18 - Lançamento em duplas .................................... 116 Fig. 19 - Posição base da Batalha ................................... 117

Fig. 20 - Exercício preparatório para Batalha .............. 119 Fig. 21 -A Batalha ............................................................ 119 Fig. 22- A Batalha com sombrinhas ............................. 120 Fig. 23 - Posição básica do Koshi.. ................................. 121 Fig. 24 - Exercício de resistência para o Koshi ........... 122 Fig. 25- Rolo para frente ................................................. 123 Fig. 26- Rolo para frente pelo ombro ............................ l23 Fig. 27- Rolo para trás ..................................................... 123 Fig. 28 - Rolo para trás pelo ombro ............................... 124 Fig. 29- Salto Leão ........................................................... 124 Fig. 30 - Mata-borrão para trás ....................................... 124 Fig. 31 - Mata-borrão para frente ................................... 125 Fig. 32 - A ponte ................................................................ 125 Fig. 33- Parada de mão ................................................... 125 Fig. 34 - Parada de mão com rolo .................................. 126 Fig. 35- Parada de mão com ponte ............................... 126 Fig. 36- Parada de três apoios ....................................... 127 Fig. 37- Parada no ombro ............................................... 127 Fig. 38 - Parada com apoio nos braços estendidos ..... 127 Fig. 39 - Parada com apoio nos cotovelos ..................... 127 Fig. 40 - Primeira transferência ...................................... 128 Fig. 41 -Segunda transferência ...................................... 128 Fig. 42 -Terceira transferência ...................................... 129 Fig. 43 -Mergulho ............................................................ 129 Fig. 44- Rodada ................................................................. 129 Fig. 45 - Rodada árabe ...................................................... 130

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APRESENTAÇÃO

Nasci em Porto Alegre, mas cresci em Passo Fundo (RS), interior do Estado. Na época, uma cidade de cerca de 150 mil habitantes. E, como quase todas as cidades do interior, Passo Fundo possuía pouca atividade teatral. Assim, descobri o teatro em atividades escolares, no II Grau. Ingressei num grupo amador de teatro da cidade, no qual trabalhei durante quatro anos. A partir deste trabalho e com o incentivo de algumas pessoas vim para Porto Alegre cursar Artes Cênicas na UFRGS. Desde o tempo do teatro amador, algumas questões me acompanham. A mais intensa, por muito tempo, sempre foi saber o porquê em uma apresentação de determinado espetáculo, eu conseguia uma atuação enérgica, e logo, noutra apresentação da mesma montagem, uma atuação amorfa e desinteressante. Em 1989, ingressei como aluno do Curso de Artes Cênicas do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 1990, já havia com-

pletado cerca da metade do curso e, neste momento, encontrava-me confuso em relação ao tipo de trabalho que gostaria de seguir. Os caminhos, para mim, ainda eram enigmáticos.

O curso do DAD/UFRGS era um sonho, algo que, até então, era distante e um pouco disforme. Na época, havia assistido apenas algumas montagens de teatro. A vontade de ser ator vinha, portanto, muito mais do fazer do que do ver. Percebi, em seguida, que o curso não tinha todas as respostas e que deveria buscar encontrar as minhas. Existem muitas possibilidades de se realizar o fazer teatral, cada professor do curso apresentava um caminho distinto e às vezes oposto. Minha inserção na área do teatro, nesta abordagem específica, iniciou em 1990, durante o Festival de Teatro de Canela (RS). Neste evento, quase acidentalmente, participei de uma oficina de treinamento para atores com Carlos Simioni, ator do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais - LUME, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP). Ao conhecer o LUME vi que aquele era o trabalho pelo qual me interessava e a que poderia me dedicar. Mais uma vez, através do fazer, pois foi participando de suas oficinas e não assistindo seus espetáculos, compreendi o que significava fazer teatro. O LUME, então dirigido pelo Prof. Luiz Otávio Burnier, investigava técnicas corpóreas e vocais de treinamento e representação para atores e bailarinos com base na cultura popular brasileira. Este trabalho tinha bases na Antropologia Teatral 1 , forma de análise e estudo sobre o comportamento cênico criada pelo italiano Eugenio Barba e seus colaboradores. A idéia de um trabalho contínuo, disciplinado e investigativo estava posta. Incentivados por Burnier e Simioni passamos a tentar construir, em Porto Alegre, um trabalho semelhante ao do LUME, ou pelo menos nas mesmas bases. Tentávamos realizar alguns aspectos do traba1

Sobre Antropologia Teatral ver capitulo I.

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lho exercitando-nos de forma sistemática e diária. A aridez que este tipo de trabalho impõe com suas técnicas exaustivas e a falta de um mestre presente fizeram-nos iniciar e abortar nosso projeto várias vezes nos dois anos que se seguiram após o primeiro contato, em Canela, em 1990. Foi somente em 1992 que conseguimos manter um trabalho diário dentro dos princípios2 da Antropologia Teatral. Isto se deveu não só ao amadurecimento do trabalho pelos inúmeros contatos que mantivemos com o LUME, nos dois anos anteriores e que iríamos manter nos seguintes, como também, à criação do Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator (UTA). Maurício Guzinski, então Diretor da Oficina Teatral Carlos Carvalho, da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, entusiasmado com as idéias do LUME criou um projeto no qual previa um espaço (físico e financeiro) para que diferentes atores pudessem realizar projetos de pesquisa sobre o trabalho do ator. Foi realizado um concurso público com uma prova prática que consistia em mostrar o trabalho de cada ator e a apresentação de um projeto de pesquisa pessoal para uma banca examinadora. A Banca era formada por Maurício Guzinski, Luiz Otávio Bumier e pela professora Nair D'Agostini, do Departamento de Artes Cênicas, da Universidade Federal de Santa Maria. Em 25 de Maio de 1992, o Grupo de doze atores iniciou suas atividades. A verba era quase simbólica e no início era recebida apenas por duas das doze pessoas. O principal problema era, no entanto, a estrutura anárquica e a falta de objetivos em comum. Dos doze atores, poucos, e aqui me incluo, possuíam uma afinidade de trabalho e tinham claro seus objetivos. 2

Sobre os princípios da Antropologia Teatral ver o capítulo I

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No decorrer de dois meses, o Grupo fez diversas tentativas de consolidar um trabalho em comum, mas sem sucesso. Seis das doze pessoas saíram, e os seis restantes trabalharam os primeiros meses a duras penas, sempre na iminência de o trabalho acabar. Em setembro de 1992, fomos a Campinas, em São Paulo, participar de uma Oficina-Montagem com o espanhol Toni Cots3 , no Festival Internacional de Teatro de Campinas. Ele e seus atores, a italiana Laura Colombo e o venezuelano Francisco Salazar, nos proporcionaram uma experiência muito importante durante os quarenta dias que estivemos lá. Pudemos compreender uma série de princípios para nosso trabalho em Porto Alegre. O mais significativo deles foi o de que era impossível seguirmos realizando um trabalho sem uma linha de condução e sem alguém que tivesse como função orientar o trabalho dos atores. Como não tínhamos a figura do diretor ou assemelhado, ao retornarmos de Campinas, me propus a ser este elemento coordenador, passando a dirigir os trabalhos. Embora na ocasião nos parecesse impossível desenvolver o trabalho de ator paralelo ao de diretor, com o decorrer do tempo criamos mecanismos que .Possibilitaram tal fato. A noção de diretor que o Grupo elaborou está longe de tratá-lo como uma figura elevada, de caráter independente e com autoridade máxima. A liderança do Grupo sempre foi dividida com todos e a função de diretor se dividiu em dois aspectos: um pedagógico-investigativo e outro artístico. No nível da pedagogia, os atores mais expe-

Toni Cots foi integrante por cerca de dez anos do Odin Teatret, grupo dinamarquês dirigido por Eugenio Barba. Cots e sua equipe trabalharam sobre elementos muito parecidos com os que estávamos interessados na época e num caminho muito preciso. 3

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rientes 4 do Grupo sempre participaram de forma ativa, conduzindo seu próprio trabalho e o trabalho dos atores iniciantes, dividindo esta tarefa com o diretor. No nível artístico não houve uma expectativa unilateral de propostas. O trabalho como diretor foi sempre o de criar junto com os atores, propondo idéias para cenas e espetáculos, caminhos e técnicas, questões de pesquisa. A função do diretor, em nosso Grupo, é a de sintetizar em ações concretas as idéias de todos, em projetos que envolvam planejamento, execução, acompanhamento e avaliação. Desse modo, sempre houve espaço, no Grupo, para desenvolver meu trabalho de ator, podendo receber a ajuda dos demais; bem como ser diretor, no sentido de propor uma direção para que todos caminhem juntos num trabalho participativo. A partir de então, o Grupo realizou demonstrações técnicas, espetáculos, ministrou cursos e oficinas, fez seminários de estudo e participou de oficinas e estágios com outros grupos. Em 1993, já com o trabalho do Grupo em andamento, ingressei como professor na Fundação Municipal de Artes de Montenegro-FUNDARTE, em Montenegro, a setenta quilômetros de Porto Alegre. O trabalho nesta Instituição possibilitou uma série de experiências, onde procurei aplicar, com crianças e adolescentes, os princípios investigados pela Usina do Trabalho do Ator. Com o decorrer do tempo fui desenvolvendo uma série de propostas para o ensino de teatro, sempre com a preocupação de vincular o fazer teatral na sala de aula ao fazer teatral produzido por artistas, na tentativa de 4

Consideramos atores mais experientes os que tiverem tido uma iniciação no tipo de trabalho que o Grupo desenvolve. seja no próprio Grupo ou trazidos de experiências anteriores.

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contextualizar o teatro como algo palpável e próximo do aluno, usando como referência o teatro produzido pelos artistas da cidade e da região. O conflito que, muitas vezes, é externado por determinados colegas por serem artistas e professores ao mesmo tempo, para mim, foi uma forma única e integradora de produzir teatralmente. Neste sentido, a idéia de um Teatro-l..aborat6rio5 vinha ao encontro do trabalho artístico-pedagógico. Ou seja, trabalhar sob a suspeita da dúvida, oscilar entre o conhecido e o provável. Em 1994, o Grupo participou da 8g Sessão da International School of Theater Antropology, em Londrina-PR. Esta foi uma experiência significativa para nós, pois conhecemos o trabalho do Odin Teatret e de grupos orientais mais de perto. Esta aproximação com o Grupo dinamarquês se aprofundou durante nossa viagem à Dinamarca, em 1995, para trabalhar durante quinze dias com Eugenio Barba e seus atores na sede do Odin Teatret, numa oficina promovida pela EITALC-Escola Itinerante de Teatro da América Latina e Caribe. Nesse momento, busco no curso de Mestrado em Educação, refletir sobre o trabalho da UTA, através da formulação de questões e de suas respostas. As teorias epistemológicas têm caráter explicativo para as práticas que o Grupo realiza e, assim, impulsionam a prática para outro patamar de desenvolvimento. Dessa forma, este trabalho não é apenas uma dissertação de mestrado, senão parte de um projeto de vida, pois não inicia nem termina dentro da perspectiva acadêmica, ao contrário, busca nela forças e motivos para seguir adian5

Neste trabalho o uso de negrito é empregado nos grifes. destaques, nomes de obras e usos particulares de palavras e expressões. O itálico é usado para citações, palavras estrangeiras e protocolos (relatos da pesquisa empírica).

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te. Resulta, portanto, de um trabalho maior, que possui características particulares e encontra barreiras em vários níveis. A Usina do Trabalho do Ator tem tido sua existência baseada em alguns princípios, como por exemplo: a de não se enquadrar como um grupo tradicional6 ou comum, que busca a realização de espetáculos; a necessidade de criar maneiras particulares de fazer teatro 7 ; o interesse de manter um trabalho disciplinado que seja, ao mesmo tempo, uma forma de nos transformarmos e uma maneira de nos unirmos; um certo isolamento que, no entanto, nos une a outros artistas de diferentes tempos e lugares que concebem este fazer de forma semelhante; um constante questionar da nossa identidade pessoal e cultural8 , e ainda, a convicção de que teatro é conhecimento e, enquanto conhecimento, é profundamente revolucionário, porque temos a possibilidade de transformarmo-nos e, com isso, dar exemplos de liberdade. É a partir desta atitude, frente ao teatro e ao mundo, que este trabalho se realiza, wna atitude prática e reflexiva que se renova durante o trabalho cotidiano. A idéia de disciplina e dedicação nos impõe a necessidade desta prática contínua, um laboratório onde a cada dia, durante muitas horas, reafirmamos nossa convicção de viver sob 6

Por grupo tradicional nos referimos àquela prática teatral voltada unicamente muitos casos, estas práticas se relacionam a trabalhos não regulares, ou seja, atividades que reúnem diretor e atores somente no período necessário aos ensaios. Oposto à idéia de grupo tradicional está o chamado leatro de grupo, relacionado a continuidade de tra· balho c à convivência grupal. 7 Por maneira particular de fazer teatro queremos referir a busca de uma identidade cultural, poética e estética. A base dos princípios do Grupo está na construção de técnicas pessoais, ou seja, o uso de técnicas apreendidas de uma maneira pessoal e dentro de um contexto especifico. ~ Por identidade pessoal e cultural nos referimos às nossas atitudes frente ao traba lho e à vida, como tomamos consciência destas atitudes e nos reconhecemos nelas.

a produção e comercialização de espetáculos. Em

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regras diferentes das do mundo que nos cerca9 , sob regras que respondem às nossas convicções. Nesta abertura talvez consista a originalidade de nosso trabalho, por buscar formas distintas de ver e de responder às angústias, o que vai na contramão da soc iedade utilitária e massificadora. Este texto se divide em quatro capítulos. No capítulo I, partimos da representação de Shiva, na qual metaforicamente o ator, através da construção da beleza10 , esmaga a ignorância11 , para abordar em que conceito de te-atro estamos operando, considerando o fenômeno teatral enquanto processo na relação ator-público. Discutimos, ainda, o ator enquanto fazedor de ações, a ação física e as formas pelas quais o ator pode trabalhar com ela. Esta beleza é construída, como uma " segunda 1wtureza '' 12 , por princípios específicos estudados pela Antropologia Teatral. No capítulo II, discutimos a improvisação na formação do ator e a contribuição da Commedia dell'Arte, enfocamos a idéia de pensamento-ação como objetivo e natureza de todo trabalho do ator, as características psicofísiológicas da ação física e o pensamento simbólico. Neste capítulo relacionamos o pensamento-ação a alguns conceitos de Piaget. No capítulo III, passamos a descrever os procedimentos de improvisação do Grupo UTA, objeto deste trabalho. Vale ressaltar que nem todos os procedimentos de improvisação do Grupo são abordados, mas apenas aque-

' Quando dizemos viver sob regras muito diferentes das do mundo que nos cerca estamos considerando nossas opções não muito favoráveis financeiramente, mas arraigadas em princípios que se opõem à banalidade, à facilidade de leitura e a caminhos râpidos na resolução dos problemas. 10 Ver o conceito operacional de beleza no capitulo I. 11 Por ignorància consideramos a oposição à beleza e ao conhecimento. Ver capitulo I. 11 No capítulo I falaremos sobre "segunda natureza".

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les que pertencem ao campo do Trabalho Diário. A opção por tais procedimentos é porque não visam a criação de um espetáculo, mas ao trabalho do ator sobre si mesmo. Estes procedimentos se caracterizam por possuírem pontos de partida precisos e por desencadearem processos de aculturação do comportamento cênico 13 . Os procedimentos nos forneceram indícios das estruturas mentais presentes na improvisação. Enfocamos, assim, a formação do ator. No capítulo IV, buscamos compreender as estruturas mentais a partir do estudo do nosso corpus de análise, ou seja, da nossa observação dos procedimentos citados e suas relações com a construção do conhecimento do ator. Foram utilizadas anotações sobre o trabalho diário do Grupo coletadas in loco no mesmo momento da observação e condução do trabalho. O Grupo possui, ainda, um acervo de registros videográficos e fotográficos que foi consultado. Em suma, este estudo exploratório sobre a improvisação enfoca a aculturação do comportamento cênico, no que diz respeito à construção de conhecimento, neste processo de incorporação, ou seja, de tornar corpo o conhecimento.

13

Ver conceito de aculturação do comportamento cênico no capitulo I.

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INTRODUÇÃO

Conforme Hornby, muito pouco se sabe sobre a pedagogia teatraP e o fazer teatral na escola. Talvez, nenhuma outra atividade artística tenha tido tão pouca produção científica2 capaz de esclarecer acerca dos procedimentos, métodos e técnicas que artistas e não artistas empregam para realizar o intento de representar ou como disse Carasso3, "agir como se". A pouca literatura em nosso meio, no que diz respeito ao teatro, seja em sua inserção na educação ou numa abordagem pedagógica, conta com um limitado número de publicações. De fato, dentro deste assunto e com o foco específico que trabalhamos não foi possível, até o presente momento, localizar nenhum trabalho similar em língua portuguesa. Assim, o presente trabalho possui um caráter original, ao tentar refletir sobre a improvisação como construção de conhecimento.

1 Por pedagogia teatral entendemos os processos de ensino-aprendizagem que visam à formação do ator profissional. 2 Sobre a pouco produção científica em teatro ver HORNBY, Richard. Scn"pt itztc per[orma11ce. New York: UNY, 1979. ~ CARASSO, Jean-Gabriel. C'est du théàtre. In: MONOD, Richard (Org.) ]eux dramatiques et pédagogie. Paris: Edilig, 1983. p. 19-27.

Ao levantar a literatura nesta área, o professor Dr. Franco Ruffini do Dipartimento della Comunicazione Letteraria e dello Spettacolo, da Universidade de Roma, enviou-nos, como possível bibliografia sobre o tema impro· visação, apenas cinco títulos que estamos usando neste tra· balho, dos quais nenhum encontra-se em língua portugue· sa. Muitos processos de ensino-aprendizagem nas escolas ou em outros espaços pedagógicos refletem esta falta de conhecimento a respeito da arte do ator. A valorização do chamado talento 4 como sendo o único valor nas aulas de teatro, dentro da disciplina de Educação Artística ou em oficinas livres, ainda é o tom principal praticado em muitos casos por profissionais reconhecidos tanto pelo senso comum quanto pelo meio acadêmico. Conforme Eugenio Barba: O mal-entendido começa com a pedagogia, esta situação íntima e particular, na qual uma geração oferece suas experiências - de arte e de vidaa outra geração. É completamente ilusório aprender uma série de elementos que, na realidade, não são mais que clichês e estereótipos: um pouco de dicção, um pouco de história do teatro, um pouco de psicologia e quando muito um pouco de dança moderna e acrobacia. Somente mediante uma renovação contínua de nossa atitude pessoal diante da vida se determinará um novo enfoque de nossa arte. É o processo que nos transforma, o modo de etzcarar cotidianamente nosso trabalho. 5 • Por talento entendemos uma habilidade inata que independe do trabalho e do esforço. i BARBA. Eugenio. Além das ülzas flutuantes. São Paulo: Hucitec/Unicamp, 1991. p. 33-34.

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É difícil, neste ponto de vista, encontrar sentido num trabalho teatral, dentro ou fora da escola, com não atores 6, que fuja às práticas ou aos princípios do trabalho do ator contemporâneo 7• Esta questão pode parecer deslocada, já que é tácito que o exercício do teatro para atores e não atores baseia-se na linguagem específica do teatro. Porém, as práticas realizadas nas escolas não o consideram assim. A arte é dinâmica e os procedimentos artísticos se revisam cada vez mais rápidos. Muitos professores de teatro, no entanto, continuam a praticar fórmulas em sala de aula, que nada têm de semelhante com as práticas teatrais contemporâneas ou, pior ainda, não encontram base em nenhum princípio teatral. Não pertencem, na verdade, nem ao âmbito do novo e renovador, tão pouco ao antigo e tradicional. Esta prática é muitas vezes baseada naquilo que professores e alunos vêem sobre o palco: espetáculos que retratam modos e práticas sem nenhum referencial contemporâneo e, por outro lado, desvinculados de qualquer tradição. Enfim, sem a motivação básica da arte.

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Por não atores entendemos todo indivíduo que pratica alguma atividade teatral, mas não dedica seu tempo profissional exclusivamente a este fim e/ou não realiza tais atividades em troca de remuneração. 7 Na falta de um conceito melhor, entenderemos o teatro contempo râneo e, portanto, o trabalho do ator contemporâneo, como uma prática que contemple as grandes mudanças teatrais do século XX no ocidente, o que não elinúna as explorações de tradições teatrais, pois o contemporâneo não é necessariamen· te sinônimo de novo. Tais mudanças estão relacionadas ao uso diferenciado do espaço, extrapolando o palco à italiana e levando o fazer para outros espaços físicos; à retomada da utilização da improvisação como recurso e processo de criação; à busca da noção de ensemble ou coletivo, na tentativa de uma criação participativa que envolva todos os indivíduos do Grupo; e à noção de autentici· dade, entendendo o fazer do ator como algo subsidiado conscientemente pelo inconsciente, pressupondo o trabalho do ator como fonte e resultado de todo o fenômeno teatral, encarando sua atividade criativa como uma postura ética pe· rante o mundo.

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A prática do fazer teatral que deixa de lado princípios inerentes à arte como, por exemplo, a idéia de que o fazer deve ser construído pelo indivíduo e pelo grupo, em detrimento da idéia autoritária de que este fazer deve ser ditado por alguém, é uma prática que não respeita a construção de conhecimento. Neste sentido, é raro pensar um ensino de teatro, independente da linha de atuação, que não seja o resultado da interação entre conteúdos relativos aos princípios teatrais e práticas pedagógicas construtivistas8, entendendo o teatro enquanto cognição. Da mesma forma que o professor de geografia tem como objeto de conhecimento o trabalho produzido pelo geógrafo, o professor de ciências trabalha com os conhecimentos produzido pelos cientistas, o professor de teatro utiliza os procedimentos de algum ou alguns diretores e/ou atores. Em que outro lugar o professor buscaria este conhecimento? Mas qual é o trabalho do ator? Que elementos tornam uma pessoa um ator? Que princípios o ator domina e, conseqüentemente, são objetos de sua arte, a serem construídos também com não-atores? Na verdade, cada professor, cada artista, cada grupo terá um ponto de vista diferente. Muitas respostas poderão ser construídas para elucidar tais questionamentos. O importante é cada um de nós encontrar as suas respostas. A qualidade ou tipo de conhecimento do trabalho do ator necessita de um veículo vivo para sua construção. A arte da atuação, historicamente, se constrói na relação mestre-discípulo, numa tradição oral e algumas vezes secreta. Entretanto, as artes são entendidas e respeitadas na medida em que possuem uma teoria capaz de lhes conte1

Por práticas pedagógicas construtivistas entendemos as praticas que se articulam a partir de teorias que entendem o conhecimento como algo que pode ser ~onstruido pelo sujeito dependendo de suas relações com o meio.

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rir importância. O teatro, sobretudo no Brasil, é talvez a arte que menos possua esta teoria, principalmente quando pensamos na construção sistemática de seu conhecimento. Assim, é preciso delimitar os princípios que regem esta arte para que sirvam de alicerce ao trabalho pedagógico. O assunto pesquisado busca trazer uma contribuição teórica e prática, como base para os procedimentos do teatro em sala de aula. Ao observarmos a inserção do teatro na educação, no nosso meio, entendemos que a falta de uma prática capaz de tratar o ensino do teatro enquanto construção do conhecimento tem origem no desenvolvimento do teatro enquanto arte. Para tentar esclarecer e visualizar um caminho para esta prática pedagógica, é importante voltar ao cerne desta problemática: o teatro. _P ara Copeau "escola e teatro são a mesma coisa "9• O problema de o que ensinar se confunde com o de como ensinar. A referência para o ensino do teatro deve ser o próprio teatro. Os procedimentos da escola em relação ao fazer teatral encontram-se deslocados, muitas vezes, de seu tempo, resultando em procedimentos não contemporâneos, os quais não acontecem apenas na escola, podendo ser vistos também na arte dita profissional. Exacerbando esta idéia, poderíamos dizer que o processo de construção de conhecimento no teatro é o mesmo no artista e no ensino-aprendizagem na escola, ou em oficinas com não-atores, pois o conhecimento que se pretende construir ao realizarmos um espetáculo de teatro é da mesma natureza do conhecimento produzido em uma aula de teatro, numa oficina livre de teatro, seja com 9 COPEAU apud BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator. São Paulo, Campinas: Hucitec/ Unicamp, 1995. p.26.

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crianças, adolescentes ou idosos, seja com operários ou não. Segundo Carasso10 , a idéia de que o fazer teatral se divide em várias partes como, por exemplo, teatro na educação, teatro profissional, teatro amador, teatro terapêutico, teatro recreacional, teatro promocional, teatro de vanguarda, teatro de pesquisa, promove a noção de que existem vários segmentos, alguns sendo mais importantes do que outros. Quase sempre, este tipo de pensamento considera o teatro profissional tradicional como o teatro realmente importante, no qual a figura do diretor é a autoridade máxima, relegando a segundo plano todas as outras atividades teatrais porque seriam menos importantes. Se, ao contrário, pensarmos que o fazer teatral é uno e único, subsidiados pelos mesmos princípios teremos, então, uma idéia inequívoca de que todas as formas do fazer teatral, incluindo o teatro profissional, o teatro experimental, o teatro na educação e na psicologia, são inserções do fazer teatral em diferentes contextos. O teatro, como linguagem artística, é idêntico, nos seus princípios, tanto para o ator quanto para o professor. As diferenças nas respectivas atividades configuram-se no contexto e, neste sentido, os princípios teatrais já prevêem uma adaptação de procedimentos a cada um. O teatro, em qualquer contexto, poderia assegurar ao indivíduo e ao grupo a possibilidade de um processo construído a partir das experiências dos sujeitos, na iminência de ser o resultado da interação de princípios comuns em realidades particulares. Este processo ainda é obscuro, inclusive para alguns profissionais de teatro, devido à escassa presença de trabalhos de reflexão aprofundada sobre o assunto. Assim,

° CARASSO, Jean-Gabriel. C'est du théãtre in: MONOD, Richard (Org.) jeux dramatiques et pedagogie_ Paris: Edilig, 1983_

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dentre os inúmeros itens a serem discutidos, enfocaremos a improvisação teatral pela sua importância no processo de construção de conhecimento no trabalho do ator. É neste sentido que buscamos na arte respostas e novas questões para a educação, e procuramos inserir o teatro como uma forma específica de cognição, oferecendo mecanismos que possibilitem improvisar no sentido teatral. Historicamente, os problemas a respeito do trabalho do ator se dividem em dois grandes eixos: o de preparação e o de representação. Jose Luis Valenzuela11 formula a problemática do ator discutindo, de um lado, quais são as fontes, condições e causas do comportamento cênico, e, de outro, como articular estas condutas de maneira a construir uma rede de significações que constituam um texto ou discurso para o espectador ler. Para Meyerhold, "o ator deve conter em si mesmo tanto quem organiza como quem deve ser organizado"12• Em outras palavras, o ator contém a formulação mental da tarefa que se constitui na porção invisível do seu h·abalho e o corpo executor que, por sua vez, constitui a parte visível São três os problemas da atuação teatral para Grotowski:

a) Estimular um processo de auto-revelação, recuando até o subconsciente e canalizando este estímulo para obter a reação necessária. b) Poder articular este processo, discipliná-lo e convertê-lo em gestos. (. ..)

Jt VALENZUElA, Jose Luis. De Barba a Stanislavski. San Luis: Universitaria San Luis, 1993. p. 13. 12 MEYERHOLD. E/ actor sobre la escena: diccionario de practica teatraL México: Gaceta, 1998. p.82.

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c) Eliminar do processo criativo as resistêtzcias e os obstáculos causados pelo orga1tismo de cada um, tanto o físico quanto o ps{quico (os dois formando um todo). 13 No mesmo caminho, Barba, através dos estudos da Antropologia Teatral, aborda o trabalho do ator de modo bifurcado, no sentido do nível pré-expressivo 14, onde encontramos a utilização do corpo de forma extra-cotidiana, portanto, aplicando fatores fisiológicos como peso, equilíbrio, postura, oposições, direção dos olhos, que determinam tensões orgânicas; e do nível expressivo15, onde Barba fala de uma dramaturgia do ator, um trabalho de entrelaçamento de ações colocando em cena as tensões orgânicas mobilizadas pelo nível pré-expressivo. De outra forma, podemos resumir a problemática da atuação em interno e externo. Sendo interno o que Valenzuela16 classifica como "problema dinâmico-causal " ou de onde surgem os impulsos do comportamento cênico. E externo o que ele classifica como "semi6ticoestéticd', ou a produção de sentido no espectador. Isto pode ser relacionado ao trabalho de Stanislavski, que primeiro formulou sua obra teórica em dois pontos: o trabalho do ator sobre ele mesmo e o trabalho do ator sobre o papel. Ao conceber o trabalho do ator deste modo, interessa, nesta dissertação, investigar o primeiro ponto: o trabalho do ator sobre ele mesmo. Daí a questão de pesquisa: como o ator constrói conhecimento? u GROTOWSKI, Jerzy. Em úusca de um tuzlro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. p. 102-103. u Ver capítulo L 15 Ver capítulo I. " VALENZUEI.A, Jose Luis. De Barba a StanisuJtJSki. San Luis: Universitaria San Luis, 1993, p. 15.

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Ao delimitar nosso enfoque, passamos do trabalho do ator à improvisação e da improvisação às estruturas mentais. Procuramos quais são e como funcionam os procedimentos (práticos) e as estruturas (mentais) envolvidos no pensamento-ação do ator, durante o ato de improvisar. A reflexão está amparada por alguns conceitos da teoria epistemológica de Jean Piaget e pelos estudos de Eugenio Barba e seus colaboradores sobre o comportamento cênico. Na tentativa de lançar luzes sobre a questão do conhecimento específico na arte da atuação, analisamos alguns procedimentos e estruturas de improvisação usados pelo Grupo Usina do Trabalho do Ator (UTA), entre 1992 e 1999, onde se empregam técnicas de aculturação do comportamento cênico. Tais técnicas são procedimentos codificados, provenientes das tradições de dança e teatro do oriente e ocidente, entendidos como uma das possibilidades de construir conhecimento de que dispõe um ator. Os pressupostos do trabalho estão baseados nas teorias de Stanislavski, Grotowski, Barba e Piaget, que dão suporte para as questões em arte, teatro e educação, ao discutirem a improvisação e a construção do conhecimento. O objetivo deste trabalho é refletir sobre os procedimentos de improvisação empregados pelo Grupo Usina do Trabalho do Ator na realização de seu trabalho cotidiano, buscando indícios das estruturas mentais presentes na construção de conhecimento, através de exemplos práticos de técnicas de aculturação do comportamento cênico. Além disto, pretendemos produzir literatura a respeito da improvisação enquanto construção de conhecimento, contribuindo com a educação, em especial a área do ensino de teatro e aprofundando idéias acerca do teatro, que transcendam a produção de sentido habitual.

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A pesquisa centrou-se numa atividade artístico-pedagógica na qual o observador estava irremediavelmente envolto. De fato, observador e objeto observado são, em gran-

de parte, o mesmo. O trabalho foi pensar sobre minha própria ação e a ação de meus colegas de grupo em nosso trabalho cotidiano, ou seja, como organizamos nosso trabalho e como esta organização envolve nosso corpo, mente e psique em geral. Neste sentido, a metodologia de pesquisa procura descrever, analisar e refletir sobre o trabalho da UTA, utilizando minha atividade como objeto de observação e interação. Tal abordagem filia-se a ''uma metodologia nãoconvencional". A este respeito, Magda Soares diz que "a não-neutralidade valorizada é o reconhecimento do eu como objeto de pesquisa possível (. ..) "17 . A participação ou o envolvimento empírico, portanto, perpassa o objeto deste estudo por se referir à construção em arte. Nos vários tipos de pesquisa participante, podemos identificar e estabelecer diversas características próximas às do trabalho aqui apresentado. Estas características são inerentes tanto ao nosso trabalho quanto às propostas apresentadas pelas abordagens metodológicas referidas. A pesquisa-ação, por exemplo, que para Thiollent tem base empírica: (. ..) é concebida e realizada em estreita associa-

ção com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. 18 7 ' SOARES, Magda. Metodologia não convencional. In: FAZENDA. Ivani (Org.) Novos tmfoques na pesquisa edtu:acümal. São Paulo: Cortez, 1989. p. 119. 11 THIOU..ENT. Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez. 1998. p. 14.

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Esta abordagem aproxima-se, de certa forma, do conceito de implicação, colocado por Barbier para a pesquisa-ação19, onde dialeticamente objeto e sujeito observador interagem influenciando-se um ao outro. Para Lüdke; André, dentro da Etnografia, ''o pesqui-

sador deve exercer o papel subjetivo de participante e o papel objetivo de observador, colocando-se numa posição ímpar para compreender e explicar o comportamento humano".20 A escolha do método está ligada ao tipo de problema que encontramos, portanto, é nesta perspectiva que se fez a escolha dos instrumentos capazes de explicarem os comportamentos observados, sejam eles participativos ou não. O grupo Usina do Trabalho do Ator é autônomo na sua pesquisa e produção, tendo como objetivo a realização de espetáculos que sejam o resultado de um processo de pesquisa sobre determinado aspecto do trabalho do ator ou da linguagem cênica. As fases do trabalho do Grupo traduzem-se em: 1) Investigação - momento em que se procura resolver problemas sobre atuação, linguagem e criação; 2) Produção - etapa na qual se realizam mostras, espetáculos, performances e outras interferências para o público, com o intuito de formalizar e difundir artisticamente os conhecimentos investigados; 3) Pedagogia - tempo/ espaço no qual o trabalho é partilhado em situação de ensino-aprendizagem, através de cursos, oficinas, seminários, publicações, demonstrações e outros veículos.

19 BARBIER, René. A pesquisa-ação 11a i11Stituição educativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 105·128. 20 LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. p. 15.

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A base do trabalho está firmada no que denominamos Investigação de Técnicas de Representação para Atores e Bailarinos21 • Nossa principal busca consiste em dar

feições a um trabalho que mescle técnicas estrangeiras e a cultura popular brasileira. Nos seus anos de existência, foram atores do Grupo: Sirlei Alaniz, Roberto Birindelli, Silvana Stein, Celina Alcântara, Alice Guimarães, Ana Cecília Reckziegel, Leonor Melo, Raquel Carvalhal, Francisco de Almeida Júnior, Eliza Pierim e eu. Os atores envolvidos na pesquisa são os que mais tempo permaneceram no Grupo e que estiveram presentes nos anos observados. Os sujeitos são identificados apenas por letras. Os sujeitos envolvidos tinham entre 22 e 38 anos, em janeiro de 1999, todos possuem formação superior em teatro (apenas um em andamento). Dos dez sujeitos, antes de ingressarem no Grupo, apenas dois não possuíam experiência profissional em teatro e um não possuía experiência em dança. Por não se tratar de um estudo de psicogênese, não argumentaremos, de forma direta com base em experiências precedentes dos atores, o que, de fato, seria impossível para os limites deste trabalho. Nossa análise se restringe ao momento em que os atores estão improvisando, no seu cotidiano de trabalho, inferindo quais estruturas estes procedimentos propiciam.

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Uma das informações mais significativas a respeito do trabalho do Grupo é a continuidade. O trabalho tem sido desenvolvido em períodos regulares e ininterruptos desde o início. Nos primeiros dois anos e meio, o Grupo trabalha· va 30 horas semanais (de segundas a sextas-feiras, das 7:00 às 13:00). Após a mudança de sede da Usina do Gasômetro para a Cia. de Arte, o Grupo passou a trabalhar 20 horas semanais (das 8:00 às 12:00, de segundas a sextas-feiras).

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" " 1 - O DEMONIO DA IGNORANCIA

Nataraja é um dos nomes mais conhecidos de Slziva. Ele é o rei dos dançarinos. Ele é ator e público ao mesmo tempo. Para os indianos, Slziva-Nataraja personifica o movimento do universo. Sua dança é tida como uma manifestação física do ritmo cósmico. Os épicos hindus, como Ramayana e o AfalJabharata encontrados no Bhagavad-GitB (uma espécie de Bíblia da cultura e da tradição religiosa hindu), e, também, os tratados sobre dança, como o Natyashastra, fazem inúmeras referências a esta divindade. rnclusive sugerem que o ator e o artista em geral é a personificação de Shiva quando consegue atingir um alto grau de especialização e devoção à dança. Cabe dizer que, em quase todas as culturas do oriente, e não é diferente com a dança indiana, não há limites definidos entre ator e bailarino ou entre dança e teatro. A representação visual de Shiva é feita, quase sempre, usando-se uma figura de quatro braços, como ilustra a figura 1.

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