Teoria Geral do Estado [3 ed.]
 8520430260, 9788520430262

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Teoria Geral

do Estado 3a edição

Teoria Geral

do Estado

MARCUS CLÁUDIO ACQUAVIVA Professor na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie

3a edição

Manóle

© Editora Manole Ltda., 2010, por meio de contrato com o autor. Capa: Departamento de Arte da Editora Manole Imagem da capa: Giuseppe Cesari Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Acquaviva, Marcus Cláudio Teoria geral do Estado / Marcus Cláudio Acquaviva. - 3. ed. Barueri, SP : Manole, 2010. ISBN 978-85-204-3026-2 1. O Estado 2. Estado - Teoria I. Título. 09-12088

CDD-320.101

índice para catálogo sistemático: 1. Teoria geral do Estado : Ciência política

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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. E proibida a reprodução por xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR - Associação Brasileira de Direitos Reprográficos. 3a edição - 2010 Editora Manole Ltda. Av. Ceei, 672 - Tamboré 06460-120 - Barueri - SP - Brasil Tel.: (11) 4196-6000 - Fax: (11) 4196-6021 www.manole.com.br [email protected] Impresso no Brasil Printed in Brazil

“ PRAXÁGORAS - Quero que todos tenham um quinhão dos bens comuns, que a propriedade seja de todos; de hoje em diante, deixará de haver distinção entre pobres e ricos; não se repetirá o caso de possuir um homem vastas extensões de terras, enquanto outro não tem sequer o suficiente para cavar a sua sepultura... É meu propósito que seja um só o modo de vida de todos... Para começar, farei que toda a propriedade particular se torne bem comum. BLÉPIRO - M as... quem fará todo o trabalho? PRAXÁGORAS - Para isso haverá escravos.” (Da comédia de Aristófanes Ecclesiazusae, apud Pitigrilli, D icion ário an ti-loroteiro, Rio de Janeiro, Vecchi, 1956, p. 44)

RÔMULO E REMO E AS ORIGENS MÍTICAS DE ROMA1 Roma, cidade eterna! Este conhecido axioma insinua a alta antiguidade des­ ta metrópole, que um dia foi a capital do mundo. A tradição a fez fundada aos 21 de abril de 753 a. C ., por obra dos irmãos Rômulo e Remo. De onde vinham os dois? Vejamos. Quando os gregos conquistaram e destruíram Tróia, restaram pou­ cos sobreviventes entre os vencidos. Dentre estes, um príncipe, Enéias, que após va­ gar sem destino pelo mundo, chegou à Itália, onde, na região do Lácio desposou a jovem Lavínia, filha do rei Latino, com a qual teve um filho, Ascânio, que fundou Alba Longa. Após oito gerações, Numitor e Amúlio, dois irmãos descendentes de Ascânio, passaram a disputar o trono da cidade, com vantagem para Amúlio, que expulsou seu concorrente e mandou matar todos os filhos deste, menos a menina Réia Sílvia, constrangendo-a, porém, a se tornar sacerdotisa da deusa Vesta, mú­ nus que a obrigava a preservar a virgindade e, com isto, não ter filhos que pudes­ sem se vingar no futuro. Acontece que o deus M arte se apaixonou por Réia Sílvia, engravidando-a e suscitando a cólera de Amúlio que, apesar de tudo, aguardou o resultado, que con­ sistiu em dois robustos garotos. Mandou colocar os gêmeos num cestinho de vime e soltá-los no rio Tibre, para que se afogassem na correnteza. Entretanto, o vento soprava forte e o cesto encalhou a pequena distância; os recém-nascidos faziam ta­ manho berreiro que atraíram a atenção de uma loba, que em vez de matá-los, os amamentou! Os dois cresceram e conheceram sua história, pelo que retornaram a Alba Longa, depuseram Amúlio e fizeram retornar Numitor, a quem deram o tro­ no. Sequiosos de aventura, não esperaram para receber a herança e o trono do avô, indo em busca de novas terras, acabando por se fixarem no mesmo local onde o cestinho em que embarcaram encalhara. Fundaram uma pequena cidade, em per­ feita harmonia de ideais; porém, quando se tratou do nome a ser dado à povoação, começaram a discutir, até que combinaram o seguinte: aquele que adivinhasse o número de pássaros que num dado momento sobrevoariam o local, daria seu nome à nova urbe. Rômulo ganhou a aposta, por isso a cidade chamar-se-ia Roma. De­ marcaram os muros da cidade, jurando que matariam quem ousasse transpô-los. Remo, despeitado pela derrota ou por infeliz gracejo, derrubou, com um pontapé, os primeiros lances da construção, ao que Rômulo, fiel ao juramento e friamente, o matou com um golpe de enxada!2 É evidente que, hoje, um estudo mais sério dos fatos não admite mais tanta fantasia. Ainda que verdadeiro o episódio do abandono à morte dos gêmeos, a pro­

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Imagem da capa: Rômulo e Remo amamentados pela loba, de Giuseppe Cesari. Ilustração extraí­ da de p o t t e r , David. Emperors o f Rome: the story of imperial Rome from Julius Caesar to the last emperor, Londres, Quercus, 2007, p. 17. m on tan elli , Indro. História de Roma, São Paulo, Ibrasa, 1961, p. 1-3.

teção que lhes teria dado uma loba, literalmente um animal, é pura lenda, pois a “loba” não passaria, na verdade, de uma mulher chamada Acá Larência, malcria­ da, violenta e adúltera, comportamento selvagem que lhe teria valido ser chamada, zombeteiramente, “ a loba”. O fato é que os primeiros romanos, sempre orgulhosos de si mesmos, preci­ savam passar para os filhos uma origem nobre, heroica, até sobrenatural, para que a sociedade nascente criasse personalidade forte, dominadora. Foi o que ocorreu, criando-se, desde logo, uma simbologia própria, inconfundível e perene, na qual se destaca, sem dúvida, a imagem da loba romana, identificada com a cidade. Os gê­ meos que ela amamenta foram acrescentados no Renascimento. Quanto às verdadeiras origens de Rom a, as coisas não se passaram de forma tão romântica. Parece que os primeiros habitantes da região, paludosa e insalubre, não tinham, absolutamente, origem nobre; tratava-se de gente humilde ou foragi­ da que se ocultava nos pântanos e sobrevivia com dificuldade. É provável que as agruras por que passaram tenham forjado seu caráter rude, seus costumes auste­ ros, seu apego à terra, o espírito guerreiro e, consequentemente, seu expansionis­ mo.3 Por outro lado, a cidade parece ser bem mais antiga do que conta a tradição, pois numerosos testemunhos arqueológicos, de muito antes de 753 a. C., revelam a existência de comunidades remotas, da era do bronze médio e recente, na área em que se assenta Rom a.4 O fato é que a cidade ingressa na Fdistória oficial com seus sete reis (753-509 a. C .), especialmente a partir da tomada do poder pelos monarcas etruscos, no fim do século VII a. C. Tem início, logo mais, no período republicano, talvez a mais glo­ riosa epopeia de um povo, que civilizaria o mundo em nome do Direito e da Pax Romana, criando um Estado em que a forma de governo alcançaria a perfeição, se­ gundo Políbio de Megalópolis, tangida por cidadãos cuja probidade e amor ao bem público esclarece, melhor que qualquer outra circunstância, a longa e profícua tra­ jetória do Estado romano.

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ACQUAVIVA, Marcus

Cláudio. Notas introdutórias ao estudo do Direito, 3. ed., São Paulo, ícone, 1992, p. 48-9. cabanes , Pierre. Introdução à história da antiguidade, Petrópolis, Vozes, 2009, p. 142.

ÍNDICE GERAL

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. XV 1

A DISCIPLINA............................................................................................................................. 1 Natureza, conceito e evolução histórica da Teoria Geral do E sta d o ...........................1

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A SOCIEDADE EO ESTADO.................................................................................................... 4 1) Fundamento da s o c ie d a d e ................................................................................................ 4 2) Definição de sociedade .................................................................................................... 8 3) Espécies de s o c ie d a d e s ...................................................................................................10

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O ESTADO..................................................................................................................................12 1) Conceito e evolução histórica do Estado....................................................................... 12 2) O Estado de D ireito.............................................................................................................17 3) Direito e Estado...................................................................................................................20 4) Causas constitutivas do Estado...................................................................................... 23 4.1) Causas m ateriais...........................................................................................................24 4.1.1) P ovo........................................................................................................................... 24 4.1.2) N a ç ã o ....................................................................................................................... 27 4.1.3) T e rritó rio ...................................................................................................................31 4.1.4) Natureza das relações entre o Estado e seu território enquanto base física: teorias do direito real institucional, do imperium e do domínio e m in e n te ............ 37 4.2) Causas fo rm a is .............................................................................................................39 4.2.1) Poder p o lític o ...........................................................................................................39 4.2.2) 0 princípio da separação de Poderes no Estado........................................... 43 4.2.2.1) A n te ce d en te s.................................................................................................... 43 4.2.2.2) 0 princípio da separação de Poderes segundo M ontesquieu................45 IX

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Teoria Geral do Estado

4.2.2.3) 0 Poder L e g isla tiv o ..........................................................................................47 4.2.2.4) 0 Estado contem porâneo e a delegação de fu n ç õ e s .............................47 4.2.2.5) 0 caso brasileiro: medida provisória e lei d e le g a d a ...............................48 4.3) S oberania....................................................................................................................... 51 4.3.1) A doutrina pactista m edieval................................................................................53 4.3.2) A doutrina do contrato s o c ia l............................................................................ 53 4.3.3) A doutrina da soberania lim ita d a ....................................................................... 56 4.3.4) Globalização e soberania ....................................................................................57 4.4) Ordem ju ríd ic a ...............................................................................................................57 4.5) Causa final: o bem comum.......................................................................................... 61 4.5.1) 0 liberalism o e o bem comum .......................................................................... 62 4.5.2) Concepção social do bem comum ................................................................... 66 4

A CONSTITUIÇÃO.....................................................................................................................74 1) Conceito e evolução h is tó ric a ........................................................................................74 2) Espécies............................................................................................................................... 77 3) Conteúdo político das C onstituições..............................................................................80 4) Revolução, golpe de Estado e insu rreição ................................................................... 82

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FORMAS DE ESTADO................................................................................................................86 1) União p e s s o a l......................................................................................................................86 2) União re al..............................................................................................................................86 3) Estado u n itá rio ...................................................................................................................87 4) Estado fe d e ra l.....................................................................................................................89

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FORMAS DE GOVERNO............................................................................................................93 1) Classificações antigas e m odernas................................................................................93 1.1) Platão (Arístocles)........................................................................................................ 93 1.2) A ris tó te le s .....................................................................................................................95 1.3) Políbio de M egalópolis................................................................................................ 97 1.4) C íc e ro ............................................................................................................................. 99 1.5) Nicolau M a q u ia v e l.................................................................................................... 100 1.6) M o n te s q u ie u ...............................................................................................................102 1.7) R o usseau..................................................................................................................... 104 1.8) K e lse n ........................................................................................................................... 108 2) Formas de governo clássicas........................................................................................ 111 2.1) M o n a rq u ia ...................................................................................................................111 2.2) R e p úb lica ..................................................................................................................... 113 2.3) A ris to c ra c ia .................................................................................................................116 2.4) D e m o cra cia .................................................................................................................118

índice Geral

3) 4) 5) 6) 7)

XI

2.4.1) Introdução ao te m a .............................................................................................. 119 2.4.2) Democracia d ire ta ................................................................................................ 119 2.4.3) Democracia representativa................................................................................121 2.4.4) Democracia s e m id ire ta ...................................................................................... 128 2.4.5) Sufrágio e vo to .......................................................................................................133 2.4.6) Partidos p olíticos.................................................................................................. 139 2.4.6.1) Os partidos políticos no B rasil....................................................................145 2.4.7) Democracia e com unicação de m assa........................................................... 149 T irania................................................................................................................................. 151 O ligarquia........................................................................................................................... 154 Demagogia e o c lo c ra c ia ................................................................................................ 155 D ita d u ra ............................................................................................................................. 157 C audilhism o....................................................................................................................... 165

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REGIMES DE GOVERNO.......................................................................................................173 1) P resid e n cia lism o .............................................................................................................173 1.1) In tro d u ç ã o ................................................................................................................... 173 1.2) Presidencialism o histórico e direito com parado................................................176 1.3) Presidencialism o versus parlam entarism o na Am érica L a tin a .....................177 1.4) Presidencialism o, m ilitarism o e Igreja naAm érica L a tin a ................................. 179 2) Parlam entarism o...............................................................................................................180

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IDEOLOGIAS........................................................................................................................... 186 1) Conceito de id e o lo g ia .................................................................................................... 186 2) Socialism o u tó p ic o ...........................................................................................................187 3) M aterialism o histórico e ditadura do proletariado...................................................191 4) Anarquism o e sindicalism o............................................................................................ 203 5) M ecanicism o e o rg a n ic is m o ........................................................................................211 6) Totalitarismo: fascism o e n acion a l-so cia lism o .........................................................214 6.1) Características do to ta lita ris m o ............................................................................219 6.1.1) Ideologia o fic ia l.................................................................................................... 219 6.1.2) Sistema de partido único, sob ocomando de um líd er.................................219 6.1.3) Controle policial pelo Estado..............................................................................220 6.1.4) Concentração da propaganda nasmãos do E stado......................................220 6.1.5) Concentração dos meios m ilita re s................................................................... 221 6.1.6) Direção estatal da economia ............................................................................221 6.1.7) A doutrina n a c io n a l-s o c ia lis ta ..........................................................................226 6.1.8) 0 Estado nacional-socialista e os direitos subjetivos.................................. 226 6.1.9) 0 princípio da liderança (Führung)no Estado n acional-socialista.............227 7) Humanismo s o c ia l...........................................................................................................228

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Teoria Geral do Estado

8) S ocial-dem ocracia...........................................................................................................229 9) N e o lib e ra lism o .................................................................................................................230 9

0 ESTADO ENTRE ESTADOS: AS ORGANIZAÇÕES INTERESTATAIS........................ 233 1) Natureza das Organizações In te re s ta ta is ................................................................ 233 2) A Organização das Nações Unidas - O N U ..............................................................235 3) Direito com unitário: antecedentes da União Europeia - UE................................. 235 4) O M ercado Comum do S u l-M e rc o s u l...................................................................... 238 5) Os tratados internacionais (natureza e e fic á c ia )....................................................238 6) O Tribunal Penal Internacional - T P I .......................................................................... 242

10 LEITURAS COMPLEMENTARES.......................................................................................... 243 1) M arco Túlio Cícero (Dos deveres)................................................................................243 2) Santo Tomás de Aquino (Suma teológica e Suma contra os gentios).................246 3) Nicolau M aquiavel (O p rín c ip e )...................................................................................247 4) W illiam Shakespeare (Júlio César) .............................................................................249 5) Henry David Thoreau (Desobediência civil)............................................................... 255 6) Joseph De M aistre (O pensamento so cial cristão antes de M a rx ).....................257 7) Simón Bolívar (Discurso perante o Congresso Constituinte de B o lív ia -1825). 259 8) Karl M arx e Friedrich Engels (O m anifesto com unista)...........................................267 9) Ferdinand Lassalle (Que é uma Constituição?).........................................................269 10) Fustel de Coulanges (A cidade a ntig a ).................................................................... 277 11) Gustave Le Bon (Leis psicológicas da evolução dos p o v o s ).............................280 12) Almeida Garrett (Obras)................................................................................................ 288 13) A lberto Torres (A organização n a c io n a l)................................................................. 289 14) Francisco José de Oliveira Vianna (O ocaso do Im pério) ................................... 292 15) Jacques M aritain (O homem e o Estado)................................................................. 300 16) Georges Sorel (Reflexões sobre a violência)...........................................................301 17) Nikolaj Lênin (Como ilu d ir o povo com os slogans de liberdade e igu a ld ad e )............................................................................................................................... 303 18) Léon Duguit (Os elem entos do Estado).................................................................... 309 19) Benito M ussolini (Prelúdio a O príncipe, de M a q u ia ve l)..................................... 310 20) Varlan Tcherkesoff (Erros e contradições do marxism o).....................................312 21) Hans Kelsen ( Teoria g era l do Direito e do Estado)............................................... 317 22) Alípio Silveira (Da interpretação das leis na Alem anha nacional-socialista e h itle ris ta )................................................................................................................................. 320 23) José Pedro Galvão de Sousa (Conceito e natureza da sociedade p o lítica ).. .325 24) M.A. Krutogolov (Palestras sobre a dem ocracia s o v ié tic a )................................332 25) S.l. Kovaliov (História de Roma) ..................................................................................339

índice Geral

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11 DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA................................................................ 341 1) Convocação da Assem bleia Geral Constituinte e Legislativa (Decreto de 03.06.1822)........................................................................................................ 341 2) Dissolução da Assem bleia Geral Constituinte e Legislativa (Decreto de 12.11.1823)............................................................................................................................... 342 3) Decreto n. 13, de novembro de 1823.......................................................................... 342 4) Proclamação de D. Pedro 1............................................................................................343 5) M anifesto de S. M. o Imperador aos brasileiros......................................................344 6) Proclamação do Governo Provisório, em 15.11.1889 ................................................ 347 7) Decreto n. 1, de 15.11.1889 (Proclam ação da R e p ú b lica )..................................... 348 8) Decreto n. 119-A, de 07.01.1890 (Liberdade de cu lto )..............................................349 9) Decreto n. 19.398, de 11.11.1930 (Institui o Governo Provisório da República dos Estados Unidos do B rasil).................................................................................................... 350 10) Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10.12.1948 ...........................353 11) Emenda Constitucional n. 4, de 02.09.1961 (Sistema p arlam e n tarista )............ 357 12) Preâmbulo do Ato Institucional n. 1, de 09.04.1964................................................363 13) Emenda Constitucional n. 26, de 27.11.1985.............................................................364 ÍNDICE ALFABÉTICO-REMISSIVO......................................................................................367

APRESENTAÇÃO

Esta nova edição da obra Teoria G eral d o E stad o, do Prof. Marcus Cláudio Acquaviva, acha-se inteiramente revista e ampliada, de modo a atender praticamente a todos os programas da disciplina determinados por universidades e faculdades de Direito. O autor, conhecido mestre de Direito, é advogado e leciona na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. No exercício de seu magistério, recebeu, por parte de colegas e alunos, inúmeros pedidos e incenti­ vo para a reedição do livro, esgotado há vários anos. Consciente da necessidade de republicar a obra, o Prof. Acquaviva passou a dedicar grande parte de seu tempo na revisão e na ampliação substancial do conteúdo do livro, tendo em vista a dinâ­ mica do mundo globalizado e seus novos questionamentos. Dentre os tópicos constantes da obra, cumpre mencionar a natureza, o con­ ceito e a evolução histórica da disciplina Teoria Geral do Estado, o fundamento, a definição e as espécies de sociedade, o conceito e a evolução histórica do Estado, o Estado de Direito, as causas constitutivas do Estado (povo e nação, território, po­ der político, soberania, ordem jurídica, bem comum), a Constituição política (con­ ceito, evolução histórica e espécies), as formas de Estado, as formas de governo an­ tigas e modernas, a democracia, o sufrágio e o voto, os partidos políticos, os regimes de governo (presidencialismo e parlamentarismo), as ideologias políticas (anarquis­ mo, sindicalismo revolucionário, marxismo-leninismo, social-democracia e outras) e as organizações interestatais. Várias inovações enriquecem a obra, com destaque para uma abordagem aos partidos políticos no Brasil, análise minudente sobre o princípio da separação das funções do Estado e um capítulo sobre as organizações interestatais, que muitos denominam “ internacionais” , incluindo tópicos como o Direito Comunitário (an­ tecedentes da União Europeia) e o Mercosul. Além desse nobre material de pesqui­

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Teoria Geral do Estado

sa, o autor promoveu inúmeros acréscimos ao próprio texto, dentre esses oportu­ nas referências a autores de nomeada. Um dos maiores atrativos da obra, a antologia de clássicos da Política e da Teoria Geral do Estado foi, também, aumentada, passando a contar com mais ex­ certos de obras famosas e de difícil acesso para o estudante, em face de sua rarida­ de ou alto custo. Isso permitirá ao aluno, e mesmo ao professor, uma pesquisa com mais conforto e rapidez. Participam da antologia, dentre outros clássicos, Cícero, Santo Tomás de Aquino, Shakespeare, Maquiavel, Karl M arx e Friedrich Engels, Lênin, Gustave Le Bon, Benito Mussolini e Hans Kelsen, isso sem mencionarmos outros textos de grande valor doutrinário constantes da primeira parte da obra. Encerrando o conteúdo desta, e também para enriquecer a informação aca­ dêmica, uma oportuna documentação histórico-legislativa pertinente à Teoria Ge­ ral do Estado, a partir do Primeiro Império brasileiro até a atualidade, valendo des­ tacar o Decreto n. 1, de 1 5 .1 1 .1 8 8 9 (Proclam ação da República), o Decreto n. 19.3 9 8 , de 1 1 .1 1 .1 9 3 0 (Governo Provisório da República), a Declaração Univer­ sal dos Direitos do Homem, de 1 0 .1 2 .1 9 4 8 e a Emenda Constitucional n. 4 , de 02.0 9 .1 9 6 1 (Sistema parlamentarista de governo).

A DISCIPLINA

NATUREZA, CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA GERAL DO ESTADO Bibliografia: d a l l a r i , Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, São Pau­ lo, Saraiva, 1981. f isc h b a c h , O. G. Teoria general dei Estado, México, Nacional, 1981. l im a , Paulo Jorge de. Curso de teoria do Estado, 2. ed., São Paulo, Bushatsky, 1970. s il v e ir a n e t o , Honório. Teoria do Estado, 7. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1985.

Ao ingressar na Faculdade de Direito, o iniciante do curso jurídico se depara com uma série de disciplinas denominadas básicas, cuja finalidade é orientá-lo quan­ to aos fundamentos do Direito e da sociedade. Da mesma forma que a Biologia, a Anatomia e tantas outras matérias congêneres constituem a base dos estudos espe­ cíficos no campo das Ciências Médicas, a Teoria Geral do Estado, a Introdução ao Estudo do Direito, a Sociologia e a Economia visam propiciar conhecimentos bá­ sicos para a compreensão e a própria justificação de disciplinas mais específicas, como o Direito Administrativo, o Direito Penal e o Direito Tributário, entre tantas outras. Quando um juiz comina pena de prisão, um fiscal de rendas impõe multa ao contribuinte faltoso, uma autoridade judicial intima alguém para depor em proces­ so ou para atuar com o mesário ou apurador de votos em uma eleição ou, ainda, proíbe o fumo em bares, restaurantes e condomínios e o álcool nas rodovias, é o Estado, entidade imaterial, mediante seus órgãos concretos, como magistrados, fis­ cais e servidores públicos, que faz valer a vontade da lei, à qual todos devem sub­ meter-se em prol do interesse público. 1

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Teoria Geral do Estado

Estado e Direito são, portanto, ideias inseparáveis, sendo a lei a formalização da vontade estatal. Ora, se o instrumental de trabalho do bacharel em Direito é a lei, como sonegar ao estudante uma sólida formação ética a respeito dos funda­ mentos do Estado, do Direito e da própria sociedade? Daí plenamente justificada a existência, no curso jurídico, de uma disciplina como a Teoria Geral do Estado, também denominada Teoria do Estado, Doutrina do Estado ou, ainda, Direito Cons­ titucional I, como Parte Geral do Direito Constitucional Positivo. A denominação T eoria G eral d o E stad o, proveniente da expressão alemã Allgem ein e S taatslebre, criada em 1 6 7 2 pelo holandês Ulric Huber, sempre recebeu críticas pelo adjetivo geral que contém, pecando por redundância, uma vez que, não podendo haver ciência do particular, uma teoria é, inevitavelmente, geral. Daí as vertentes T eoria d o E sta d o (Staatslebre), adotada por Hermann Heller, e D outrina d o E stad o, preferida por Alessandro Groppali. Todavia, ingleses e norte-america­ nos denominam essa disciplina Political Science, e os franceses, Science Politique. Sendo eminentemente teórica, a Teoria Geral do Estado é especulativa, e não prática, sendo seu objeto não a análise de um Estado con creto, esp ecífico, mas o estudo do Estado em a bstrato, como instituição universal, sob os mais variados pontos de vista, como origem, evolução, organização e ideologias políticas. Daí a precisa definição da Teoria Geral do Estado formulada por Paulo Jorge de Lima: “disciplina de caráter teórico e geral, que tem por objeto o estudo do Estado como fenômeno social e histórico, não só quanto ao seu conteúdo econôm ico-social como no tocante às suas formas jurídicas e, inclusive, às suas manifestações ideo­ lógicas” . Quanto à evolução histórica da Teoria Geral do Estado, vale observar que as obras ancestrais dessa disciplina são as de Platão (429-347 a.C.), Aristóteles (384322 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.), embora Aristóteles seja considerado seu funda­ dor, devido ao seu tratado Política (de polis, cidade), em que analisa as origens do Estado e as formas de governo existentes em seu tempo. Conta-se que Aristóteles visitou nada menos do que 150 países, estudando suas instituições e leis, do que re­ sultou a mais famosa de suas obras. Na Idade Média destacam-se Santo Agostinho (354-430), com o tratado A ci­ d a d e d e D eus, e Santo Tomás de Aquino (1 2 2 5 -1274), cujos escritos apresentam robusto matiz político, o primeiro buscando conciliar o platonismo com os dog­ mas cristãos, a inteligência com a fé; e o segundo enaltecendo a ortodoxia católi­ ca, sendo suas obras principais a Suma teológ ica e a Suma contra os gentios. Am­ bos dissertaram sobre temas referentes às relações entre o poder social e o poder espiritual. No ocaso da Idade Média surge Marsílio de Pádua, reitor da Universidade de Paris, com a obra D efen sor pacis (1324), na qual recomenda a separação e a mú­ tua independência entre Igreja e Estado, livro este considerado precursor da mo­ derna ideologia totalitária, como o demonstra o Prof. José Pedro Galvão de Sousa

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em tese primorosa intitulada O totalitarism o nas origens d a m odern a teoria d o E s­ tado, publicada em 1972. A evolução histórica da Teoria Geral do Estado recebe considerável impul­ so com Nicolau Maquiavel (ou M achiavelli), célebre escritor político florentino que viveu entre 1 4 6 9 e 1 5 2 7 , com o se constata em suas obras O prín cipe e D is­ cursos s o b r e a prim eira d éca d a d e T ito L ív io. Após Maquiavel, destacam-se Thomas Hobbes (1 5 8 8 -1 6 7 9 ), com L ev ia tã e Do cid a d ã o , John Locke (1 6 32-1704), com T ratado s o b r e o gov ern o civil, Montesquieu (1689-1755), com O espirito das leis, e Jean-Jacques Rousseau (1 7 1 2 -1 7 7 8 ), com O con trato social, que buscaram revelar o fundamento do poder político e da sociedade na própria natureza hu­ mana e na vida social. Somente no século X IX , na Alemanha, com Georg Jellinek (1851-1911), ju­ rista emérito e fundador do Direito Público alemão, a Teoria Geral do Estado tornou-se urna disciplina independente. No Brasil, até 1940 não se falava em T eoria G eral d o E sta d o , mas em D ireito P ú blico e C onstitucional. Nesse ano ocorreu a separação: a Teoria Geral do Estado passou a ser disciplina autônoma e o Direito Público e Constitucional a denominar-se apenas Direito Constitucional.

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1) FUNDAMENTO DA SOCIEDADE Bibliografia: Ar is t ó t e l e s . A política, 2. ed., tradução de Roberto Leal, São Paulo, Mar­ tins Fontes, 1998. calam e - g r ia u le , Geneviève. Manual de pbilosopbia, tradução e adap­ tação de D. Ludgero Jaspers O.S.B., São Paulo, 1926; e “A palavra e o discurso”, in His­ tória dos costumes, Jean Poirier (org.), v. 5, Lisboa, Editorial Estampa, 2000. h o b b e s , Thomas. Leviatan, 2. ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1984. so u z a , José Pe­ dro Galvão de. Conceito e natureza da sociedade política, São Paulo, 1949.

Embora seja o Estado a mais complexa das sociedades, manifestação suprema do espírito objetivo no mundo, como queria Hegel, é indispensável abordar a socie­ dade em geral, dada a vinculação daquele a esta. Pois bem, já vivenciou o leitor a desagradável experiência de permanecer trancado, durante horas, num velho eleva­ dor, quem sabe, no 12° andar? Fim de semana, expediente encerrado, prédio vazio e silencioso, sem celular ou qualquer outro meio de comunicação. O pânico e a de­ sesperança acabam quando, do lado de fora, uma voz amiga e trêmula pelo susto das pancadas na porta nos acalma e garante que a assistência técnica não demora e que tudo está sob controle... Por nascermos em sociedade, em convívio cotidiano com outras pessoas, conhecidas ou não, raramente nos damos conta da importân­ cia disso para nossa realização plena. A interação mais ou menos intensa que man­ temos com todos torna-se repetitiva e, por isso mesmo, despercebida, pouco valori­ zada, porque nos consideramos ilimitadamente autossuficientes. Quando, porém, em face de um infortúnio, isolamo-nos de forma involuntária, despertamos para a assustadora realidade da solidão e da impotência para sobreviver! Sozinhos, afasta4

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dos de todo o conforto que a sociedade tecnológica proporciona, damo-nos conta de nossa fraqueza perante o mundo natural. Temos a nosso favor apenas a inteli­ gência, o bom-senso e os conhecimentos que a própria sociedade nos transmite, con­ firmando a assertiva de Blaise Pascal de que o homem não passa de um caniço pen­ sante, que se quebra na mais leve brisa. Nada pior que o isolam ento forçado, portanto. Pois bem, nascendo e vivendo em sociedade, o homem se mostra uma cria­ tura eminentemente gregária e comunicativa por meio de uma linguagem articula­ da, o que levou o filósofo Aristóteles a considerá-lo um ser social e comunicativo por natureza, denominando-o por isso z o o n politikon , ou seja, um ser sociável por natureza. Em sua obra clássica Política, Aristóteles nos ensina: É, portanto, evidente que toda Cidade está na natureza e que o homem é natu­ ralmente feito para a sociedade política. Aquele que, por sua natureza e não por obra do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria um indivíduo detestável, muito acima ou muito abaixo do homem, segundo Homero: “Um ser sem lar, sem família e sem leis”. Aquele que fosse assim por natureza só respiraria a guerra, não sendo detido por ne­ nhum freio e, como uma ave de rapina, estaria sempre pronto para cair sobre os ou­ tros. Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, po­ rém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento obs­ curo do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a mani­ festação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil. O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a natureza. O todo existe necessaria­ mente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as par­ tes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da Cidade: ne­ nhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação na­ tural levou os homens a este gênero de sociedade. Santo Tomás de Aquino (1225-1274), o maior filósofo da Cristandade, inspi­ rando-se no próprio Aristóteles, considera que o homem, sociável por natureza, vi­ veria em solidão apenas em três hipóteses: a) hipótese da natureza divina (excellentia naturae), vale dizer, a do indivíduo que, dotado de carisma (graça divina), deixa o convívio social e retira-se para um

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local isolado, entregando-se à meditação, como fez Jesus em seu retiro no deserto, e como fazem os ermitões, indivíduos que, desiludidos pelas mazelas do gênero hu­ mano, optam pela purificação e pelo aperfeiçoamento do espírito, ingressando num monastério isolado, felizes na frugalidade da vida monástica e no silêncio austero que convida à espiritualidade. b) hipótese da natureza doentia (corruptio naturae), qual seja, a dos indivíduos atingidos por anomalias físicas ou mentais (moléstias contagiosas, loucura), as quais criariam uma barreira entre eles e a sociedade. É o que ocorria, como é sabido, com os leprosos durante a Idade Média, escorraçados das cidades e obrigados a viver isolados, formando comunidades indesejáveis a grandes distâncias dos centros ur­ banos. Também os alienados mentais, como foi dito, viveriam isolados da socieda­ de, pois na sua desgraça não teriam noção do mundo real, vivendo inconscientes, alheios à realidade (daí, a expressão alien ad o, alheio). c) hipótese da má sorte, azar {m ala fortuna), em que o indivíduo se vê privado do convívio social por um capricho do destino, como ocorreria com o sobreviven­ te de um naufrágio, da queda de uma aeronave ou, caso mais comum do que se pensa, do excursionista que se perde na mata espessa durante uma caminhada mais ousada. As vicissitudes da clássica personagem Robinson Crusoé e, no cinema con­ temporâneo, do náufrago vivido por Tom Hanks, ilustram bem a hipótese, sem fa­ larmos no impressionante O sen hor das m oscas, filme em que um grupo de garotos, sobreviventes a um desastre aéreo, torna-se selvagem, formando grupos inimigos e chegando ao assassinato. Para outros autores, entretanto, o homem, muito menos que a sociedade e, nesta, o próprio Estado, é resultado de um instinto, ou seja, da natureza gregária do ser humano. Ao contrário, a natureza agressiva deste o leva a investir fisicamen­ te contra seus semelhantes, de modo que somente um governo severo, autocrático e disposto a punir seus excessos sem contemplação poderia tornar possível a vida em sociedade. Tal a posição de Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês para quem, na aferição das origens do Estado, o ser humano é impelido, por natural in­ clinação, a destruir seus semelhantes. O homem, segundo Hobbes, é lobo do pró­ prio homem (h o m o h om in i lupus), frase criada pelo cronista latino Apuleio. Um apetite natural e irracional, fundado em ambição, orgulho e vaidade (superhia vitae), leva o homem a conquistar poder e glória a qualquer custo, mediante uma vio­ lenta submissão do próximo. Em sua visão pessimista, Hobbes adverte que esse fre­ nesi de dominação encontra sério obstáculo: o medo de morrer (tim or m ortis). Com efeito, a ameaça da morte imprevista e dolorosa, sempre presente, é a origem da lei e do Estado, formas que exprimem o desejo de autoconservação. Enfim, para Hobbes, a necessidade de sobreviver impele o homem à vida comunitária. Ora, por não ter fundamento natural, a sociedade pressupõe uma disciplina férrea, imposta pelo Estado, que Hobbes denomina Leviatã, monstro bíblico que empresta o nome à sua obra mais conhecida.

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L ’b o m m e est n é libre et p artou t il est dans les fers (O homem nasce livre, mas em todo lugar se acha acorrentado). Com esta preocupante sentença, Jean-Jacques Rousseau (171 2 -1 7 7 8 ), grande inspirador ideológico do individualismo da Revo­ lução Francesa e mesmo das democracias liberais modernas, procura demonstrar, logo no início do primeiro capítulo de seu famoso livro O con trato social, que o ser humano nasce bom, livre e feliz, le b o n sauvage (o bom selvagem) típico do ro­ mantismo do referido pensador. Todavia, para realizar seus objetivos, o homem pre­ cisa do auxílio de seus semelhantes e, por isso, tangido pela razão, e n ã o p o r urna suposta in clin ação natural, celebra um pacto social com esses, perdendo sua liber­ dade natural e ingressando em outra espécie de liberdade, limitada, a civil. No con­ vívio com o próximo, o homem, bom por natureza, corrompe-se. Cabe a lei preser­ var, a todo custo, a liberdade individual, que passa a ser um fim em si mesma.Como se vê, Rousseau toma orientação semelhante à de Hobbes quanto à origem da so­ ciedade, num pacto ou contrato social, e não como decorrência de uma natural in­ clinação do ser humano. Diferem, já percebe o leitor, na concepção do próprio ho­ mem: para Hobbes, este nasce individualista, sequioso de poder e glória, à custa de seu semelhante; já para Rousseau, ele nasce bom, mas a sociedade o corrompe de tal modo que é necessário restaurar sua primitiva liberdade individual, tão preco­ cemente perdida.Na verdade, a própria natureza humana se inclina para a vida em sociedade. Como poderia o homem, por si só, prover sua subsistência, especialmen­ te na infância? Ao contrário de muitas espécies animais, desde o nascimento aptas à luta pela vida, o ser humano recém-nascido carece de total proteção, pois sem esta, sucumbe. A par disso, outro indício marcante da sociabilidade humana é a própria linguagem articulada, cuja finalidade não poderia ser outra senão a comu­ nicação entre as pessoas. Observa Geneviève Calame-Griaule: A linguagem, como fenômeno universal, é ao mesmo tempo a condição necessá­ ria e suficiente para a definição do homem, de quem ela é um privilégio. “Fala, e eu batizo-te”, teria dito o cardeal de Polignac a um orangotango de aspecto muito huma­ no. Esta célebre historieta, relatada por Diderot, ilustra bem a antiquíssima convicção, nada abalada pelos estudos, cada vez mais avançados nos dias que correm, sobre a co­ municação animal. Por outro lado, vindo à luz, é graças à adaptação paulatina ao modo de ser da sociedade que o ser humano vai sendo condicionado a agir conforme os valores desta, num processo assimilativo denominado socialização, iniciado no lar, passando pela escola e pelos grupos sociais de variada natureza. Enfim, como adverte Lahr, o homem nutre simpatia (do grego sympatbia) pela vida em sociedade, empre­ gada tal expressão no seu sentido rigorosamente filosófico, a saber, a disposição pura­ mente passiva dos seres sensíveis de compartilhar espontaneamente as emoções daque­ les com que vivem. (Manual de pbilosopbia, p. 91)

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2) DEFINIÇÃO DE SOCIEDADE Bibliografia: d e l v e c c h io , Giorgio. Lições de filosofia do direito, São Paulo, Saraiva, 1948. JOLIVET, Regis. Curso de filosofia, 13. ed., São Paulo, Agir, 1979. l e m p e r e u r , Agnes e t h in e s , George. Dicionário geral das ciências humanas, Lisboa, Edições 70, 1984.

Como definir a sociedade? Do ponto de vista puramente biológico, advertem Agnes Lempereur e Georges Thines, a sociedade é a comunidade animal natural que agrupa indivíduos da mesma espécie, ligados entre si pela potência dos fenô­ menos interatrativos, e ocupando um biótopo que a comunidade condiciona estrei­ tamente. Em princípio, consideramos oportuno estabelecer uma discriminação con­ ceituai entre a so cied a d e propriamente dita (união estável de seres humanos), e o agregado an im al (união estável de outros seres), pois a sociabilidade humana impli­ ca uma complexidade de relações muito mais profunda que a observada no agrega­ do animal. A sociedade propriamente dita, a humana, mostra-se dinâmica e mutá­ vel, ora evolui, ora regride, mas sempre em perpétuo movimento. Fruto da cultura e da experiência acumulada pelo homem, ela segue no rumo de formas de convi­ vência cada mais complexas. Haverá erros, retrocesso, degeneração, todavia a so­ ciedade estará, sempre, renovando seus valores, mudando na busca da perfeição, da ordem absoluta. A definição de sociedade nos impõe, desde logo, esclarecer o que é definir. Definir é revelar a essência do definido. O que é essência, entretanto? É tudo o que identifica o objeto a ser definido. Sem seus elementos essenciais, o ser ou coisa careceria de existência, portanto, devem constar de toda definição apenas as causas essenciais do que está sendo objeto de definição. Assim, quando Anido Mânlio Torquato Severino Boécio ou, simplesmente, Boécio (474-524 d.C.), filóso­ fo e teólogo romano, define o homem como substância indivisível d otad a d e racio­ nalidade, percebe-se que a razão é o elemento essencial da definição do ser humano, pois seria inconcebível um gênero humano desprovido de racionalidade. Acontece que, a par dos elementos essenciais, existem outros, denominados acidentais ou con ­ tingentes, que integram casualmente o objeto a definir, e sem os quais este preserva sua essência, não sendo, portanto, indispensáveis à definição. Por exemplo, se defi­ nirmos o homem como ser racional, estaremos revelando a própria essência da es­ pécie humana. Sem racionalidade, não há que se falar em ser humano. Entretanto, se definíssemos o homem como um ser racional bom ou mau, humilde ou arrogan­ te, honesto ou desonesto, estaríamos pecando por acidentalidade, porque o homem, embora sempre racional, pode ser bom ou mau, humilde ou arrogante, honesto ou desonesto, características e atributos meramente acidentais. Muito cuidado, por­ tanto, quando formos definir o que quer que seja. O m nia d efin id o pericu losa est,

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já proclamava a sabedoria latina... Tentemos, não obstante, definir a sociedade. Há quem a defina como agru pam en to d u radou ro, d o ta d o de um esp aço territorial, de­ finição que peca pela acidentalidade, ao incluir o espaço territorial (base física) como elemento essencial, quando sabemos que pode haver sociedades desprovidas de base física, como os nômades, ou, exemplo mais concreto do Direito Privado brasileiro, uma associação (entidade sem fins econômicos) ou uma sociedade stricto sensu (entidade com fins econômicos), que venha a ser despojada, temporária ou definitivamente, de sua sede ou estabelecimento por motivo de dívidas. Regis Jolivet, conhecido filósofo contemporâneo, define a sociedade como a união m oral es­ tável, s o b um a única au torid ad e, d e várias p essoas, físicas ou m orais, q u e tendem a fim com u m . Satisfatória se mostra essa definição, pois nela não se inclui nenhu­ ma causa ou elemento acidental, ressaltada, apenas, a essência da sociedade. Ou­ tra definição reconhecida é a do jurista e filósofo italiano Giorgio Del Vecchio, para quem a sociedade é um complexo de relações, graças ao qual vários seres indivi­ duais vivem e trabalham conjuntam ente, daí surgindo nova e superior unidade. Nesta definição fica salientada a expressão relações, no sentido de que a vida co­ munitária pressupõe um relacionamento que os sociólogos denominam, sugestiva­ mente, in teração, definida esta como a ação exercida mutuamente entre duas ou mais pessoas. Ação recíproca, enfim. No período convivem e trabalham conjunta­ m ente, fica evidenciada a permanência, a estabilidade, o desejo de todos de conviver permanentemente em sociedade, intenção que os romanos já denominavam affectio societatis. Sim, para que um conjunto de indivíduos possa ser qualificado como sociedade, é indispensável a característica de perm anência, vale dizer, estabilidade. Deve a sociedade, portanto, ser criada com a intenção de preservá-la, fazê-la durar na consecução do bem social, sua causa última. Com a expressão n ova unidade, Del Vecchio deixa claro que a sociedade passa a ter existência própria, autônoma, independente da figura dos indivíduos que a integram, enfim, passa a ter p erson a­ lidade jurídica, sob a forma de pessoa coletiva, dotada, como seus filiados, de di­ reitos e deveres, embora inconfundível com a pessoa natural (ser humano dotado de direitos e deveres reconhecidos juridicamente) de cada um deles. A sociedade ou pessoa coletiva comporta-se como uma pessoa natural, e os indivíduos que dela participam, considerados isoladam en te, destacados dos outros, poderiam deixar a sociedade por vontade própria ou por morte, e nem por isso a existência jurídica da sociedade seria afetada. De todo modo, a sociedade reconhecida pela lei consti­ tui uma n ova u n idade, ou seja, tem vida própria. Quanto ao trecho su p erior uni­ dade, Del Vecchio proclama que, tendo existência própria, a sociedade tem um ob­ jetivo, uma finalidade transcendente, superior a cada um dos objetivos individuais dos sócios. De fato, o objetivo social está acima das ambições individuais, muitas vezes egoístas, mesquinhas, de cada sócio.

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3) ESPÉCIES DE SOCIEDADES Bibliografia: c a eta n o , Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional, Lisboa, Coimbra, 1972, t. 1. c o st a j r ., Paulo José da e p e l l e g r in i , Angiolo. Crimi­ nalidade organizada, São Paulo, Jurídica Brasileira, 1999. d in iz , Maria Helena. Di­ reito civil brasileiro - Teoria geral do direito civil, 18. ed., São Paulo, Saraiva, 2002, v. 1. GROPPALi, Alessandro. Introdução ao estudo do direito, 3. ed., Coimbra, Coim­ bra, 1978. Ro d r ig u e s , Sílvio. Direito civil - Parte Geral, 32. ed., São Paulo, Saraiva, 2002, v. 1. sa l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 6. ed., São Paulo, Sa­ raiva, 1984. TÕNNiES, Ferdinand. Princípios de sociologia, México, Fondo de Cultura Económica, 1942. v en o sa , Silvio de Salvo. Direito civil - Parte Geral, 2. ed., São Pau­ lo, Atlas, 2002, v. 1. w a l d , Arnold. Curso de direito civil brasileiro - Introdução e Par­ te Geral, 9. ed., São Paulo, Saraiva, 2002. w e b e r , Max. Ecomnnia y sociedade, Méxi­ co, Fondo de Cultura Económica, 1992.

Classificar as sociedades é tão difícil como defini-las. Sociólogos e juristas su­ gerem inúmeras tipologias que, embora respeitadas, não conseguiram, ainda, una­ nimidade. Do ponto de vista sociológico, duas orientações se tornaram clássicas, a de Ferdinand Tõnnies e a de M ax Weber, ambos alemães. Tõnnies apresentou, em 1877, uma classificação das relações sociais, dividindo-as em com unidades e so c ie­ d ad es (associações). A comunidade seria um produto espontâneo da vida social, correspondente à vida real, orgânica, ao passo que a associação resultaria da vonta­ de tangida pela razão, diante de um interesse material. Marcello Caetano observa que as diversas formas de sociedade são comunidades quando, existindo indepen­ dentemente da vontade de seus membros, os indivíduos se acham a elas vinculados pelo simples fato do nascimento, ou por um ato que não tenha por fim imediato aderir a elas; e serão associações quando, criadas pela vontade dos indivíduos, re­ sultarem da união daqueles que a elas resolvam aderir, e que delam possam sair quando queiram. Seguindo este critério, caracterizam exemplos de comunidades: a nação, a família, o meio residencial (a escolha de um local para viver integra, au­ tomaticamente, a pessoa num meio social), o meio profissional. Exemplos de asso­ ciações: um clube esportivo, uma irmandade religiosa, uma sociedade comercial, uma academia científica, uma entidade beneficente. Curiosa a observação do autor citado: en con tram o-n os nas comunidades, mas entram os nas associações. Na co­ munidade os membros se acham unidos, apesar de tudo quanto os separa; na as­ sociação permanecem separados, apesar de tudo quanto fazem para se unir. Quan­ to a M ax Weber, considera a comunidade o fruto de um sentim ento subjetivo, de caráter emotivo, de sim patia, que impele os indivíduos a constituir um todo, ao pas­ so que a associação seria resultante da von tade manifestada por um impulso racio-

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nal. Assinala Weber, todavia, que comunidade e associação correspondem a tipos ideais, raramente realizáveis quando consideradas de maneira isolada, porque numa determinada sociedade acham-se mesclados valores afetivos e objetivos racionais. Outra classificação é aventada por Pedro Salvetti Netto, que as tipifica em n eces­ sárias e contingentes. Das sociedades necessárias - a própria denominação adota­ da revela seu sentido - o homem não pode prescindir, por exemplo, a sociedade familial, a religiosa e a política, ao passo que as contingentes, embora concorram, circunstancialmente, para o aprimoramento e o conforto do homem, não se mos­ tram indispensáveis à sua existência, podendo deixar de existir (qu od p o test non esse). Observa o autor citado que o maior traço distintivo entre as sociedades ne­ cessárias e as contingentes é o fato de que aquelas preexistem a o h om em , o qual, tão logo vem à luz, a elas se vincula, ao passo que essas constituem obras da von­ tade humana. Do ponto de vista jurídico, porém, nem sempre tais classificações são satisfatórias. Basta dizer que a Sociologia se interessa, sem preconceitos, por toda espécie de sociedade, mesmo aquelas inim igas d a ord em ju rídica e, p o rta n to , d o p ró p rio E stad o, reprimidas pela lei, ilícitas, tais como a Máfia siciliana, a Camorra napolitana, a Yakuza (máfia japonesa) e a Russkaja (máfia russa), cuja estrutu­ ra “ administrativa” já recebeu um brilhante estudo dos juristas Paulo José da Cos­ ta Jr. e Angiolo Pellegrini, ao passo que a lei exige, das sociedades regulares, uma série de pressupostos inafastáveis para sua atuação.

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1) CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO Bibliografia: g u m p l o w ic z , Louis. Précis de sociologie, Paris, Léon Chailley, 1896. d u Léon. “L’État, les gouvernants et les agents”, in Études de droit public, Paris, Fontemoing, 1903. m a q u ia v e l o , Nicolás. El príncipe, Barcelona, Bruguera, 1979. m a r x , Karl. Manifesto do Partido Comunista, São Paulo, Global, 1981. n a ra n jo v il l e g as , Abel. Filosofia dei derecbo, Bogotá,Temis, 1959. m e jía , Hugo Palacios. Introducción a la teoria dei Estado, Bogotá, Temis, 1965. pla tã o . A República ou da justiça, Madri, Aguillar, 1979, Livro I, Título XII, p. 672-3. p r é l o t , Marcel e b o u l o u is , Jean. Institutions politiques et droit constitutionnel, 7. ed., Paris, Dalloz, 1978. r a d b r u c h , Gustav. Filosofia do direito, 6. ed., Coimbra, Armênio Amado, Sucessor, 1997; Leyes que no son derecbo y derecbo por encima de las leyes, Madri, Aguilar, 1971. s o u z a , José Pedro Galvào de, g a r c ia , Clovis Lema e c a r v a lh o , José Fraga Teixeira de. Di­ cionário de política, São Paulo, T. A. Queiroz, 1998. s p e n g l e r , Oswald apud Paulo Bonavides, Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. g u it ,

A palavra esta d o apresenta vários sentidos inconfundíveis. Em princípio, o termo surge do latim status, condição pessoal do indivíduo perante os direitos ci­ vis e políticos (status civitatis, status fam iliae). Modernamente, a expressão estad o civil identifica o indivíduo solteiro ou casado, ao passo que status é um termo apli­ cável ao estado eco n ô m ico daqueles bem-sucedidos no mundo dos negócios. Toda­ via, a palavra E stad o, agora com £ maiusculo, denomina, modernamente, a mais complexa e perfeita das sociedades civis, qual seja, a sociedade política, que pode­ ria ser conceituada como a “ sociedade civil politicamente soberana e internacio12

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nalmente reconhecida, tendo por objetivo o bem comum aos indivíduos e comuni­ dades sob seu império”. Gregos e romanos denominavam a sociedade política p olis e res publica, res­ pectivamente. A palavra E sta d o passou a iden tificar a sociedade política a partir do Renascimento, graças a Nicolau Maquiavel, que, no seu livro clássico O p rín ­ cipe, dizia: “ Tutti gli stati, tutti i d o m in i che b a n n o avu to e b a n n o im p ero sopra gli uom ini, so n o stati e so n o rep u blicbe o p rin cip ad ” (“Todos os estados, todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens, foram e são repúblicas ou prin­ cipados” ). Em William Shakespeare (1564 -1 6 1 6 ), nas pegadas de Maquiavel, tam­ bém encontraremos a expressão E sta d o indicativa da sociedade política, mais pre­ cisamente na tragédia H am let, pela boca da personagem M arcelo, que diz: “Há algo de podre no reino da Dinamarca” (“ [...] in the State o f D an em ark”). Na Fran­ ça, o termo estat ou éta t foi recebido do latim a partir do século XIII, no sentido de situação de alguma coisa e, dois séculos depois, como estado, posição de uma pessoa. No século X V I, passou a ser empregado no sentido de sociedade política, embora alguns escritores, como Jean Bodin, tenham preferido o termo repú blica (R é p u b liq u e) ou, como Charles Loyseau, sen h oria (Seigneureries). Execrado por uns (comunistas e anarquistas), endeusado por outros (fascistas e nazistas), o Esta­ do sempre foi objeto de estudo de seus defensores (Hobbes, Hegel) e de seus detra­ tores (Marx, Engels, Bakunin), e hoje, com o crescente intervencionismo estatal, ele se faz presente nos mínimos detalhes de nossa vida cotidiana. Por que somos obri­ gados a fazer o serviço militar (CF, arts. 5 o, VIII, e 15, IV), pagar imposto sobre a renda, trabalhar como mesário ou apurador nas eleições, usar cinto de segurança), pagar pedágio quando em viagem, não fumar em locais públicos ou ouvir, compul­ soriamente, o programa A Voz d o Brasil ou, ainda, o notório h orário político, dedi­ cado aos candidatos a cargos públicos? Por que sem nossos documentos pessoais, como o cartão de identidade, a carteira de trabalho, tornamo-nos ilustres desco­ nhecidos perante a autoridade que no-los pede, com cara de poucos amigos? É que todos esses deveres nos são impostos pelo Estado, e somente ele tem a prerrogati­ va de nos dar a quitação respectiva. Houve época, conta-nos Fustel de Coulanges, em sua obra imortal A cid ad e antiga (Capítulo XVIII), que, na antiga Grécia, o Es­ tado sufocava por inteiro a liberdade natural do indivíduo, a ponto de - em algu­ mas cidades-Estado helénicas - os homens serem obrigados a deixar crescer a bar­ ba e as mulheres não poderem levar, em viagem, mais do que três vestidos. Em outras cidades, as mães, que recebiam os cadáveres dos filhos mortos em batalha, deviam mostrar alegria, mesmo forçada, pois, se chorassem, estariam cometendo crime contra o Estado. Modernamente, a exacerbação do poder do Estado se mos­ tra cristalina e aterradora no delírio de dominação dos Estados fascista, na Itália, e nacional-socialista, ou nazista, na Alemanha, sem falarmos os horrores da dita­ dura totalitária do proletariado, na União Soviética, estalinista.

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Sabemos que o Estado é uma sociedade necessária e condicionante das demais, e conhecemos detalhadamente sua evolução histórica. Como, porém, defini-lo? As definições são tantas quanto os autores que as formulam, a ponto de um grande publicista do século X IX , chamado Bastiat, propor vultosa recompensa a quem for­ mulasse um conceito de Estado unánimemente aceito... O próprio Hans Kelsen (1881-1973), inspirador da célebre doutrina pura d o D ireito, já advertia que a vo­ lumosa soma de definições do Estado dificulta a precisão do termo, reduzindo-o a mero juízo de valor, desprovido de caráter científico (Teoria general dei E stado, p. 3-4). Seja como for, não podemos deixar de fazer algumas referências a tais defini­ ções, colhendo-as na seara do próprio Direito ou da Sociologia. Assim, Giorgio Del Vecchio define o Estado, do ponto de vista jurídico como “o sujeito da Ordem Ju ­ rídica, na qual se realiza a comunidade de vida de um povo” (P bilosop bie du droit, Paris, Dalloz, p. 351-2). Para Georges Burdeau, eminente publicista contemporâ­ neo, o Estado se forma quando o poder torna-se uma instituição, não se confun­ dindo mais com aquele que o encarna, mediante o fenômeno da institucionaliza­ ç ã o d o p o d e r (Traité d e Science p o litiq u e, t. 2 , p. 128). No plano da Sociologia, Oswald Spengler, citada por Paulo Bonavides, surpreende no Estado a História em repouso, e na História o Estado em marcha (C iência política, 6. ed., Rio de Janei­ ro, Forense, 1 986, p. 52). Quanto às origens históricas do Estado, cumpre observar, de imediato, que não se pode confundir uma única origem para todos os Estados, idealizada pela or­ todoxia doutrinária, e a origem histórica de cada um destes. Em vez de um fenô­ meno recorrente, peculiar a todas as sociedades, o surgimento de cada Estado se acha ligado a toda sorte de circunstâncias, dentre estas o próprio meio ambiente. Não obstante, várias doutrinas procuram demonstrar uma só origem, embora re­ mota, da sociedade política, sendo as principais a patriarcalista, a teocrática, a contratualista, a patrimonialista e a da força. Vamos resumi-las. A teoria patriarcalis­ ta, preconizada por Bossuet e Robert Filmer, observa que, da mesma forma que na família os filhos devem obediência aos pais, todos eles devem obediência ao Esta­ do, pois este nada mais é que a união de muitas famílias. Daí a natural inclinação desta doutrina para a monarquia, devendo o rei governar como um pai para os sú­ ditos. Ademais, o gênero humano teria uma natural inclinação para a forma mo­ nárquica, como ocorre em certos agregados animais complexos, por exemplo o das abelhas, cujo instinto as leva a viver em função de uma abelha-rainha. Em que pese a razoabilidade de sua argumentação, o fato é que o patriarcalismo acabou por se tornar mera justificativa do poder monárquico. A doutrina teocrática, desenvolvida ao longo do tempo por Demóstenes, Luís XIV, Bossuet e J. F. Stahl, dentre outros, apresenta inúmeras variantes, que têm em comum a ideia de que é da vontade de Deus o Estado existir, vontade esta manifes­ tada concretamente pela Providência, sendo esta a atuação de Deus na História.

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Assim, natural a defesa de um direito d ivin o d o s reis pelos adeptos dessa doutrina, com fundamento na afirmação de que Deus, ao eleger determinada forma de go­ verno, qual seja, a monarquia, demonstrou à Humanidade ser esta sua Vontade, ra­ zão pela qual, em qualquer estágio histórico, aquela deve ser adotada. Quanto à doutrina contratualista, ao contrário do que se pensa, é uma das mais antigas no tocante à origem do Estado. Jean-Jacques Rousseau, tido por mui­ tos com o seu inspirador é, na verdade, um dos últimos, como assinala Leopold Uprimny (apud Hugo Palacios M ejía, In trod u cción a la teoría d e i E sta d o , p. 45). Antes dele, Platão, Santo Agostinho, Suárez, Hobbes e Grócio, entre outros, desen­ volveram a ideia de que o Estado resulta de um contrato, um acordo entre os ho­ mens. A tese do contrato social surgiu de pontos de vista diversos e, muitas vezes, conflitantes, ora para explicar a origem do Estado (Hobbes), ora para justificar o poder do príncipe, como ocorreu na Idade Média, período em que era usual reconhe­ cer a existência de um contrato entre o governante e o povo, pelo qual este se com­ prometia a obedecer àquele (p a cta sunt servanda). Seja para garantir um mínimo de liberdade (Rousseau), ou para evitar a guerra de todos contra todos (Hobbes), os homens, tangidos pela razão, foram paulatinamente se congregando e abdican­ do de uma liberdade natural perigosa e irrealizável, para adotar uma liberdade ci­ vil que, embora limitada, garantiria a liberdade (Rousseau), a paz (Hobbes) e a pro­ priedade (Locke). No que tange à doutrina patrimonialista, defendem-na, entre outros, John Locke e Adam Smith. Para Locke, o Estado existe principalmente para proteger a propriedade individual, havendo uma corrente do patrimonialismo que justifica sua teoria pelo fato de o próprio Estado ter o direito natural de defender sua pro­ priedade. Por fim, a teoria da força, desenvolvida, mais remotamente, por Charles Darwin e, mais tarde, dentre outros, por razões radicalmente opostas, Gobineau, M arx e Engels, Thomas Carlyle, Gumplowicz, Franz Oppenheimer e Léon Duguit. Segundo tal doutrina, haveria uma tendência natural, inevitável, da dominação dos fracos pe­ los fortes, seja por razões genéticas, raciais (Gobineau) ou econômicas (M arx e Engels). Franz Oppenheimer, situa a origem do Estado na violência imposta por um grupo social a outro, definindo-o como a “ instituição social que um grupo vitorio­ so impôs a um grupo vencido, com o objetivo de organizar o domínio do primei­ ro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões intestinas e agressões estran­ geiras” (D er Staat, Stuttgart, 1 9 5 4 , p. 5, apud Paulo Bonavides, C iência política, cit., p. 53). Léon Duguit, respeitável publicista do início do século X X , mostra o mesmo pessimismo de Oppenheimer ao conceituar o Estado como o “grupo huma­ no estabelecido em determinado território, onde os mais fortes impõem sua vonta­ de aos mais fracos” (D roit constitutionnel, 4. ed., Paris, p. 14-5). Em suas próprias palavras,

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o Estado não é uma pessoa jurídica nem soberana. O Estado é o produto histórico de uma diferenciação social entre os fortes e os fracos em determinada sociedade. O po­ der pertencente aos mais fortes, indivíduo, classe, maioria, é mero poder de fato, ja­ mais legítimo em sua origem. Os governantes que detêm este poder são indivíduos como tantos outros, sem nunca possuir, na qualidade de governantes, o poder legíti­ mo de impor suas ordens. Como todos os indivíduos, encontram-se submetidos à re­ gra de direito, que encontra seu verdadeiro fundamento na solidariedade social e se impõe a todos, governantes e governados. Toda manifestação de vontade dos gover­ nantes é legítima quando está conforme o direito; neste caso, eles podem, de forma le­ gítima, pôr em prática a força de que dispõem, porque esta é empregada na realização do direito. Os governantes não têm o direito subjetivo de comandar, mas apenas o po­ der objetivo de querer conforme o direito e de assegurar a realização deste. (“L’État, les gouvernants et les agents”, in Études de droit public, 1903, p. 1-2) O pai do socialismo científico, Karl M arx (1818-1883), e seu companheiro de ideias e de lutas Friedrich Engels (1820-1895), conceituam o Estado como um fe­ nômeno histórico transitório, mero resultado do aparecimento da luta de classes sociais, a partir do momento em que, da propriedade comunista, passou-se à apro­ priação privada dos meios de produção, em detrimento da maioria explorada. Trata-se de instituição passageira, pois nem sempre existiu e nem sempre existirá. Com o Estado desaparecerá o poder político, definido por M arx como “o poder organi­ zado de uma classe para oprimir outra” (M an ifesto d o Partido Com unista, 1981). Curioso se mostra, neste cipoal doutrinário, o diálogo em que Platão coloca na boca de Trasímaco o seguinte: - Ouça, disse então [Trasímaco]: Para mim o justo não é outra coisa que o con­ veniente para o mais forte. Entretanto, por que você não aprova esta resposta, que aca­ bo de dar? Não vai querer responder, simplesmente? - Não duvide que vou dá-la, res­ pondi, depois que entender o que você quis dizer. No momento, confesso, não sei. Você diz que o justo é o que interessa ao mais forte? Pois bem, o que você quer dizer com isso, Trasímaco? Não vai querer dizer, por exemplo, que se Polidamante, o campeão da luta, é mais forte que nós e lhe convém comer carne bovina para sustentar sua for­ ça física, tal alimento será conveniente e, também, justo para nós, mais fracos que ele? -Você fala com despudor Sócrates, disse Trasímaco, ao tomar minhas palavras de for­ ma tendenciosa, prejudicial. - Nada disso, querido amigo!, eu disse, só desejo que você explique mais claramente o que significam suas palavras. - Não sabe, porventura respondeu - que algumas cidades são governadas tiranicamente, outras de forma de­ mocrática e, ainda, outras por uma aristocracia? - Claro que sei! - Pois bem, em cada cidade não exerce o poder quem possui a força? - Sem dúvida! - Portanto, cada go­ verno estabelece as leis conforme o que lhe convier: as democráticas, de forma demo­ crática; as tirânicas, de forma tirânica e, assim, todas as outras. Uma vez estabelecidas,

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estas leis declaram que será justo para os governados apenas o que os governantes qui­ serem, e aqueles que se afastarem deste ditame serão punidos como infratores das leis. O que eu quero dizer, meu bom amigo, é que em todas as cidades será justo tudo o que os governantes, que são aqueles que mandam, assim entenderem, de modo que, para quem quiser discutir este assunto com seriedade, o justo é sempre o mesmo, ou seja, o que convém ao mais forte.

2) 0 ESTADO DE DIREITO Ubi societas ibi jus (onde houver sociedade haverá direito), disse Aristóteles há 2 .5 0 0 anos. Tal afirmação ainda é plenamente verdadeira. Vivendo em socieda­ de, o homem pode ficar privado do conforto material e das utilidades que a tecno­ logia oferece, como energia elétrica, automóvel e mesmo educação escolar ou em­ prego fixo. Com alguma dificuldade ele viverá. Sem um mínimo de ordem, porém, ou aquilo que Jeremias Bentham denominava m ínim o ético d e convivência, a vida não seria possível nem por um instante. A insegurança, a incerteza e os abusos des­ truiriam a sociedade quase na rapidez de um terremoto. Por isso, dentre os atribu­ tos essenciais do Estado, refulgem o poder amparado na força, e o Direito que mo­ dela o exercício desta. Rudolph von Ihering, em sua obra clássica A luta p e lo D ireito, afirmava, com inteira razão, que o Direito desprovido de força “é fogo que não queima, luz que não ilumina”. Ora, se o Direito é uma qualidade essencial de qualquer sociedade, a fo rtio ri do Estado, a expressão E stad o d e D ireito seria tau­ tológica. Antes de mais nada, para revelarmos o sentido da expressão E stado d e D irei­ to, é imprescindível formularmos outra indagação: o que se deve entender por D i­ reito? Sabemos que esse vocábulo não é unívoco, mas plurívoco-analógico, ou seja, apresenta uma pluralidade de sentidos conexos. Observam José Pedro Galvão de Souza, Clóvis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho, em obra primorosa: As concepções que têm idealizado o Estado de Direito prescindindo do direito natural e encerrando-se nas perspectivas estreitas do positivismo jurídico, reduzem o direito à lei, não distinguem o que é legal do que é legítimo e não vão além de um Es­ tado de legalidade, que nem sempre é um Estado de justiça. Daí a razão pela qual, para conceituar e justificar o Estado de Direito, importa, antes de mais nada, saber o que é o direito. Cumpre partir do seu significado originário: o ius (de iustum), o que é por justiça devido a outrem. É preciso entender que a lei não cria o direito, mas o reconhe­ ce e estabelece as condições de exercício dos direitos subjetivos. É necessário compreen­ der que o direito subjetivo é uma faculdade ou um poder moral essencialmente vincu­ lado ao justo objetivo, e depende deste. É indispensável ter presente que no Estado não reside a fonte única das normas de direito, pois há na sociedade política, em correla­ ção com os grupos ou corpos intermediários que a constituem, uma pluralidade de or-

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denamentos jurídicos. Ora, o justo objetivo é inerente à ordem natural, por isso a lei só é justa se conforme a essa mesma ordem. E os direitos subjetivos fundam-se na pró­ pria natureza humana, na dignidade pessoal do homem, na liberdade do ser racional, no seu destino transcendente e eterno. Consequentemente só poderá haver Estado de Direito desde que haja respeito ao direito natural, respeito à ordem superior, à vonta­ de dos detentores do poder e dos que fazem a lei. Então, o Estado de Direito, na ple­ nitude do seu significado, será um Estado de Justiça. (Dicionário de política, 1998, p. 208-9) A concepção tradicional do Estado de Direito provém de Emmanuel Kant (1724-1804) e de Jean-Jacques Rousseau (171 2-1778), como se depreende de sua concepção individualista, racionalista e voluntarista do Direito, que cairia como uma luva nos interesses de uma nascente burguesia. Daí a expressão E stad o d e D i­ reito L ib er al Burguês para denominar a concepção de Estado intransigentemente vinculado às garantias individuais, proteção absoluta da propriedade privada, im­ plantação do sufrágio censitário (só teria direito a voto quem tivesse um conside­ rável patrimônio econômico), abolição da representação profissional e outras me­ didas de caráter notoriamente individualista. Kant separava o Direito da M oral, sendo aquele apenas um conjunto de condições destinadas, simplesmente, a garan­ tir a coexistência das liberdades. O Estado subordinado ao Direito, prossegue Kant, assim procede para reger os atos externos do homem, independentemente da lei moral, pois esta, segundo o kantismo, disciplina exclusivamente os atos internos, de foro íntimo. Das teses de Kant exsurgem duas doutrinas bem conhecidas pelos publicistas a de Georg Jellinek e a de Hans Kelsen. Jellinek considerava a possibilidade da autolimitação do poder do Estado pelo próprio direito positivo, o que acarreta notó­ ria aporia: se o Estado se limita pelo Direito qu e ele m esm o cria, e que pode alte­ rar via poder constituinte, então é o Direito que depende do Estado, não o inverso... Quanto a Hans Kelsen, acredita - e fez escola - na identidade da ordem jurídica e da estatal, ideia que desenvolve à luz do formalismo positivista da sua famosa T eo­ ria Pura d o D ireito. Os chamados elem en tos fo rm ad ores d o E stad o, povo, territó­ rio, poder, pertencem ao mundo exterior e passam a ter sentido apenas quando re­ lacionados ao Direito. Quanto a este, na visão kelseniana, seria, simplesmente, o conjunto das normas emenadas do Estado, disso resultando que o Estado cria seu próprio Direito e impõe à sociedade a ordem jurídica a que esta deve amoldar-se. Logo, todo Estado é Estado de Direito. Nesse caso, haveria um Estado de Direito liberal, um Estado de Direito social-d em ocrático, um Estado de Direito m arxistaleninista e, até mesmo, um Estado de direito n a cion alsocialista. Mais moderada é a ponderação de Gustav Radbruch, que, tentando superar a visão estreita do neopositivismo kelseniano, disserta:

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somos sempre necessariamente compelidos, se quisermos achar uma solução para o problema da anterioridade ou posteridade do Direito com relação ao Estado, a colo­ carmo-nos mais para além dum e doutro, isto é, mais para além do direito positivo e mais para além da realidade do Estado. Isto é: seremos levados a buscar essa solução num outro plano que não poderá deixar de ser constituído, não por fatos e realidades, mas por normas, que não poderão ser as normas do direito positivo do Estado e só poderão ser as dum direito natural. Na verdade, o positivismo jurídico e político pres­ supõe sempre, quando levado logicamente às suas últimas consequências, como já foi mostrado (§ 10), um preceito jurídico de direito natural na base de todas as suas cons­ truções. Eis esse preceito: quando numa coletividade existe um supremo governante, o que ele ordenar deve ser obedecido. (Filosofia do direito, 1997, p. 354-5) Na verdade, embora haja valores universais e perenes, que a própria razão assi­ mila e que, por isso mesmo, toda a Humanidade reconhece e institui juridicamente, v. g., o direito à vida, à expressão do pensamento ou de constituir família, não é me­ nos verdade que o direito positivo dos povos acha-se impregnado de notória relati­ vidade. Conforme as peculiaridades de cada povo, será instituída sua ordem jurídi­ ca. No Brasil, v. g., a Constituição entroniza um E stado D em ocrático de D ireito (art. I o, caput), cujas premissas serão encontradas em vários dispositivos, como o art. 4°, cujos incisos II e VIII preconizam, respectivamente, a prevalência dos direitos huma­ nos e o repúdio ao terrorismo e ao racismo, ou a soberania popular (arts. I o, parágra­ fo único, e 14). Uma ordem jurídica, já se vê, representa a cosmovisão do legislador constituinte num Estado em particular e em dado momento histórico, não podendo haver suas ordens jurídicas idênticas sem prejuízo da identidade dos povos. Assim, quando algumas Constituições adotam o sufrágio universal, como a brasileira (art. 14, capu t), tal fato não desqualifica aquelas que, na União norte­ americana, adotam o sufrágio cultural. Quando a maior parte das legislações oci­ dentais veda a poligamia, considerando-a, como o faz nosso Código Penal, crime contra a família (art. 2 3 5 ), tal fato não pode servir de argumento para considerar o regime familiar do sultanato oriental, que permite ao homem ter várias esposas (poliginia), desde que tenha condições financeiras para isso, um atentado ao Esta­ do de Direito. Reitere-se, todavia, que, se valores humanos universais são violados por um suposto Direito, surge, tenebroso, um espectro de bom Direito, ou, na fe­ liz imagem de Gustav Radbruch: Quando nem sequer se aspira a realizar a justiça, quando na formulação do di­ reito positivo se deixa de lado conscientemente a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, então não estamos ante uma lei que estabelece um direito defeituoso, mas o que ocorre é que estamos ante um caso de ausência do direito. (Leyes que no son de­ recho y derecho por encima de las leyes, 1971, p. 14)

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De qualquer forma, e concluindo, podemos extrair alguns princípios da con­ cepção dominante de E sta d o d e D ireito: a) princípio da supremacia da lei (rule o f law ), com a limitação do poder pelo direito positivo; b) princípio da legalidade, mediante o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se­ não em virtude de lei; c) princípio da irretroatividade da lei, para resguardo dos di­ reitos adquiridos; d) princípio da igualdade jurídica ou isonomia, pelo qual a lei vale para todos e, portanto, a todos deve ser aplicada; e) princípio da independên­ cia funcional dos magistrados, consolidado pelas garantias inerentes ao Judiciário (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos). A tais princípios acrescentem-se as garantias constitucionais de direitos, v. g., h a b ea s corpus e man­ dado de segurança, e a responsabilidade dos agentes públicos quanto a prejuízos causados aos particulares.

3) DIREITO E ESTADO Bibliografia: a f t a l ió n , Enrique R., o lano , Fernando Garcia e v ila n o v a , José. Intro­ ducción al derecho, Buenos Aires, Coop. de Derecho y Ciencias Sociales, 1972. k e l se n , Hans. Teoria pura do direito, São Paulo, Acadêmica, 1939; Teoria general del de­ recho y dei Estado, México, Unam, 1979. r o m a n o , Santi. L’ordinamento giuridico, Firenze, Sansoni, 1967.

Quanto às relações entre o Direito e o Estado, surgem duas teorias principais: a) teoria dualística, pela qual o Estado e o Direito são duas realidades distin­ tas, não relacionadas, como dois mundos separados que se ignoram mutuamente; b) teoria monista, que reduz o Estado e o Direito a uma só entidade, sendo ambos unum et idem . Esta teoria se biparte em outras duas, conforme seja o Direi­ to considerado criador do Estado, como um prius deste, ou como criação do Esta­ do, como um posteriu s deste. Um grande jurista italiano, Santi Romano, afirmou a existência de uma plu­ ralidade de ordens jurídicas, de um pluralism o jurídico. O Direito, diz Santi Roma­ no, deve ser considerado não como um produto exclusivamente estatal, mas como um fenômeno verificável em todas as organizações sociais, as quais, como o pró­ prio Estado, são verdadeiros centros de produção de normas, mesmo porque ubi societas ibi jus (onde houver sociedade haverá direito). Para Santi Romano, por­ tanto, onde houver qualquer so cied a d e haverá, sempre, direito. Qualquer institui­ ção, diz ele, qualquer organização estável e individuada tem o seu ordenamento ju­ rídico próprio e, portanto, assim como ao lado do Estado existe uma pluralidade de outras instituições mais amplas ou mais restritas, assim também ao lado do Di­ reito Positivo ou estatal se encontram o Direito Canônico ou Eclesiástico, os esta-

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tutos da Máfia ou de qualquer outro bando organizado fora da lei. Então, prosse­ gue Santi Romano, não só o Estado, mas qualquer grupo social, é fonte do Direito, e se o Direito estatal é Direito, nem por isso o Direito deve ser sempre e necessaria­ mente estatal. Poder-se-ia acrescentar à tese de Santi Romano que o Estado somen­ te aparece depois de um lento processo evolutivo, ao passo que formas primitivas do Direito já regulavam a sociedade primitiva. O Estado surgiría tão somente para servir e manter o Direito, portanto é o Direito que atribui e limita ao Estado seu poder de império. Depreende-se, da teoria de Santi Romano, que podem coexistir várias ordens jurídicas: uma estatal, uma infraestatal (sociedades civis e comerciais), uma supraestatal (ONU, OEA) e urna paraestatal (indiferente ou contrária ao Es­ tado). Contra a doutrina de Romano se posiciona a teoria monística, esposada, en­ tre outros, por Hans Kelsen e Alessandro Groppali. Hans Kelsen, um dos grandes juristas do século X X , autor da obra clássica intitulada Teoria pura d o direito, afirma, desde logo, que Direito e Estado se confun­ dem. O estudo do Direito e do Estado deve ser depu rado, pu rificado - daí o título de sua obra - de toda contaminação emocional, ideológica, metafísica, sociológica ou política. Ora, um conhecimento ideologicamente livre, portanto desembaraça­ do de toda metafísica, não pode reconhecer a essência do Estado a não ser como uma ordem coercitiva de normas. Ora, se o Estado é um sistema normativo, não pode ser outra coisa que a própria ordem jurídica positiva (imposta), já que é im­ possível admitir a validade simultânea de várias ordens norm ativas igualm ente coer­ citivas. O Estado vem a ser, com efeito, a personalização da ordem jurídica. Poderíamos complementar tal pensamento deduzindo o seguinte: a) o Direito da sociedade arcaica, diluído no costume, se achava tão distante das formas claras, distintas e acabadas do Direito atual, como sua organização es­ tava longe do Estado moderno. b) o Direito é elaborado seguindo um roteiro traçado p elo E stado ou, pelo me­ nos, reconhecido por este (processo de elaboração das leis e processo judicial). En­ tão, fora do Estado não pode haver Direito. c) a coercibilidade do Direito depende da atuação do Estado e, portanto, a atuação do Direito depende do Estado. d) a formação originária do Direito nos tratados confederativos e na revolu­ ção triunfante tem por base os Estados contratantes ou o Estado em que se impôs um novo regime político. Logo, tais fenômenos jurídicos supõem a existência do Estado. Também para Alessandro Groppali, fora do Estado não pode haver Direito. As normas que qualquer outra sociedade expedir para sua própria organização e funcionamento são normas de caráter meramente social, e somente se tornam jurí­ dicas quando reconhecidas pelo Estado ou admitidas na ordem jurídica estatal. Os grupos sociais menores que existem no Estado, diz Groppali, podem ser regulados

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por um sistema próprio de normas, mas estas somente serão consideradas como or­ dens jurídicas válidas apenas no âmbito interno, pois, consideradas do lado de fora, isto é, do ponto de vista da ordem estatal, ficam imediatamente privadas de autono­ mia, pois se forem contrárias à ordem jurídica estatal serão eliminadas. Mesmo uma quadrilha bem organizada, denominada societas sceleris, pode apresentar uma hie­ rarquia com especificação de “direitos” e “deveres”, e suas normas podem, até, ser análogas às normas do Estado, mas nunca serão idênticas, pois não são verdadei­ ras, autênticas normas jurídicas; são o contrário disso. Seus membros agem em aber­ to contraste com a ordem jurídica que tutela um determinado conjunto de valores sociais. Aliás, prossegue Groppali, somente tendo como referência o Direito estatal é que podemos qualificar como ajurídicas, antijurídicas ou jurídicas as várias ordens normativas existentes. Em face de uma longa evolução histórica, ao cabo da qual seu poder tornou-se so b era n o (do latim superanus, suprem itas, supremacia), o Es­ tado se impôs como entidade dotada de um poder incontrastável no âmbito inter­ no, assegurando para si, com hegemonia, o monopólio da criação das normas jurí­ dicas. Tendo Santi R om ano afirm ado a juridicidade das norm as do D ireito Canônico e do Direito Internacional, Groppali opôs as seguintes observações: quan­ to ao Direito Canônico, de fato, é um autêntico Direito, que encontra sua fonte no poder originário e independente da Igreja, poder que, embora de caráter espiritual, tem sobre os seguidores da religião católica uma notável eficácia. Entretanto, os fins do Direito Canônico são diversos dos fins do Estado, além do que, complementan­ do o pensamento de Groppali, lembraríamos o caráter de generalidade do Direito Estatal, seu alcance muito maior se comparado com os cânones eclesiásticos. Quanto ao Direito Internacional, Groppali afirma ser uma ordem normativa ainda em formação, sendo seus dispositivos desprovidos da eficácia que caracteri­ za as normas estatais. O Direito Internacional não possui outras fontes além dos tratados e do costume. Suas normas não são dotadas de poder coercitivo que ca­ racteriza a ordem estatal. Enquanto os ramos do Direito Positivo já apresentam um certo grau de estabilidade, o Direito Internacional nem codificado se acha, impos­ sibilitado, portanto, de atuar coercitivamente. O Estado totalitário, nas pegadas de Kelsen, considerou Direito apenas as normas estatais, sendo confrontados pela dou­ trina corporativista cristã, que afirma a necessidade de o Estado atuar apenas su­ pletivamente perante os indivíduos e as sociedades menores, uma vez que o Esta­ do não seria a única fonte de normas jurídicas. Na verdade, Estado e Direito são irmãos xifópagos, predestinados a viver unidos, sem poder separar-se. Se, na ver­ dade, a ideia de um Direito d ifu so, espalhado pela comunidade primitiva, represen­ tado pelo totem ou m an a, entidade espiritual que governaria os destinos da comu­ nidade, pode ser uma hipótese encantadora para explicar a precedência do Direito sobre o Estado, na verdade, quando surge este, passa tal entidade a ser a fonte su­ prem a do Direito, su perior em poder e eficácia a todas as outras, embora a existên­ cia destas não possa ser negada.

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4) CAUSAS CONSTITUTIVAS DO ESTADO Bibliografia: a bba g n a n o , Nicola. Dicionário de filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1982. Obras, Madri, Aguilar, 1982; Tratado dei alma. b a c o n , Francis. “Afo­ rismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem”, in Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, v. 13. sa l v e tt i n e t t o , Pedro. Curso de ciência política, Teoria Geral do Estado, São Paulo, Tribuna da Justiça/FIemeron, 1977, v. 1.

Ar is t ó t e l e s .

O conhecimento científico, verdadeiro, só é possível mediante a apuração das causas dos fatos naturais e humanos. Aristóteles, pioneiro na demonstração da ver­ dade pelas causas, já delimitara, em sua M etafísica, o termo prin cípio como causa em sentido amplo, abrangendo as causas formal, eficiente e final, às quais o médi­ co Galeno acrescentou a causa instrumental. Conhecer verdadeiramente, disse Fran­ cis Bacon séculos mais tarde, é conhecer pelas causas. Forte em Aristóteles asseve­ ra: “Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o saber pelas causas. E, não indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a matéria, a forma, a causa eficiente, a causa final”. Nesta esteira de pensamento, Pedro Salvetti Netto adverte: “Não se conhece, cientificamente, pela verdade revelada nos livros sagrados, como se fizera durante a Idade Média, mas sim pela explicação causai do objeto do conhecimen­ to. Todas as coisas se explicam, considerando-lhes as causas”. Acrescentaríamos ao exposto o conceito de cau salidade, a saber, a conexão entre duas coisas, em virtu­ de da qual a segunda é univocamente previsível a partir da primeira, como assina­ la Nicola Abbagnano. Do exposto, podemos indicar quatro causas suscetíveis de revelar a natureza das coisas e dos seres: eficiente, material, instrumental, formal e final. A causa efi­ ciente (do latim facere, fazer, criar) revela o criador, o autor de algo, de modo que, num exemplo rudimentar, podemos dizer que a causa eficiente da mesa que tenho diante de mim é o marceneiro que a fez. Causa ou causas materiais vêm a ser a m a ­ téria, o m aterial com que este confeccionou a mesa (madeira, cola, pregos). Causa ou causas instrumentais, por sua vez, seriam os instrum entos utilizados no traba­ lho (martelo, serrote, formão). Causa fo r m a l seria a própria forma, aparência da mesa, permitindo-nos distingui-la de uma cadeira ou de outras mesas, embora to ­ das resultantes da mesma causa eficiente, material e instrumental, faculdade ine­ rente mesmo aos deficientes visuais. Finalmente, a causa final, que nos revela o por­ quê da mesa, ou seja, sua finalidade. Para um selvagem, a mesa pode significar simplesmente um abrigo contra a chuva; para um homem civilizado, é um objeto para colocar alimentos e tomar refeições, redigir ou ler. Pois bem, se transportarmos essas ponderações para a sociedade em geral, per­ cebemos que essa nos revela, com clareza, sua causa eficiente (fundadores), causas

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materiais (seres humanos e base física), formais (órgãos diretivos e normas regula­ doras) e a final (pode ser de várias naturezas, conforme a espécie de sociedade). Em certas situações, seria polêmico, quando não embaraçoso, demonstrar a causa efi­ ciente da primeira sociedade, na verdade do próprio ser humano: Deus? Obra do acaso? Qual teria sido a primeira causa material? O barro, com que o Criador fez o homem e, de uma costela deste, a mulher? Questão de fé! Quanto ao Estado, se quisermos estudá-lo cientificamente, devemos fazê-lo mediante o estudo de suas causas constitutivas. Tal estudo se mostra indispensável, pois nos permite desconstruí-lo, estudando, pormenorizadamente, cada um de seus elementos. As causas constitutivas do Estado são m ateriais, form ais e final. São causas materiais do Estado o povo, ou o elemento humano, e o território, ou base física, área material ou ideal em que o Estado faz valer seu Direito positivo. Quanto às causas formais, vale dizer, aquelas que identificam o Estado quanto à sua form a ju ­ rídica ou constituição política, graças à qual um Estado não se confunde com ou­ tros - daí, a importância de conhecer o Estado por sua constituição! - são a ordem jurídica e o poder político, exercido pelos governantes (do grego ku bern etes, pilo­ to de embarcação) que o encarnam em dado momento histórico. Quanto à causa final do Estado, vale lembrar que cada sociedade tem, conforme sua natureza, uma causa final específica. Assim, uma sociedade beneficente tem por causa final a prá­ tica da benemerência; outra, esportiva, tem por finalidade o aperfeiçoamento físi­ co e o lazer de seus filiados, enquanto uma sociedade empresarial tem por objeti­ vo o lucro, mediante a prática habitual de atos mercantis. Quanto ao Estado, tem por causa final o bem com um de todas as sociedades menores que atuam em seu território. O adjetivo com um atribuído ao bem visado pela sociedade política é bastante sugestivo: o Estado existe, por evidente, para rea­ lizar o bem-estar geral de to d o s, no tocante, por exemplo, à educação, à saúde e à segurança. Analisemos cada uma destas causas.

4.1) Causas materiais 4.1.1) Povo

Bibliografia: a z a m b u ja , Darcy. Teoria geral do Estado, 4. ed., Porto Alegre, Globo, 1966. BONAViDES, Paulo. Ciência política, Rio de Janeiro, Forense, 1978. fa lc ã o , Alcino Pinto. Parte Geral do Código Civil, Rio de Janeiro, Konfino, 1959. m a lu f , Sahid. Teoria geral do Estado, 13. ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1982. o l iv e ir a , Denni­ son. Os soldados brasileiros de Hitler, Curitiba, Juruá, 2008. sa l v e tt i n e t t o , Pedro.

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Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. silva , José Afonso da. Cur­ so de direito constitucional positivo, 2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984.

População é a totalid ad e das pessoas que se acham, num dado momento, em determinado Estado. Tal conceito inclui toda e qualquer pessoa, independentemen­ te de nacionalidade, idade, situação política etc. Por isso, quando dizemos que o Brasil tem uma população de quase duzentos milhões de habitantes, estamos em­ pregando corretamente o vocábulo. P opu lação é conceito eminentemente numéri­ co, quantitativo, demográfico e, portanto, não interessa, de imediato, ao Direito. Povo, todavia, é termo que pode revelar um conceito ju rídico ou um conceito p o ­ lítico. São conceitos an álog os, porém inconfundíveis. Com efeito, a palavra p o v o sugere plu ralidade de sentidos análogos, sendo, portanto, plurívoco-analógica. Em sentido vulgar, ela pode designar as pessoas residentes de um bairro qualquer ou uma comunidade unida pela religião, pelo idioma ou pela etnia. Pode, até, ser em­ pregada pejorativamente, ao designar a parte menos instruída da sociedade, ou aquela colocada em posição hierarquicamente inferior das categorias sociais. Por exemplo, na França pré-revolucionária, havia três estamentos, pela ordem, clero, nobreza e povo, o célebre Terceiro Estado. A democracia grega, quando se referia à assem b leia d o p o v o , indicava uma minoria seleta que, pelos dotes intelectuais e pela origem, podia deliberar politica­ mente durante todo o dia. Tal atividade era denominada ó cio, bastante respeitada então e longe de sofrer o sentido pejorativo de hoje. Aqueles que não tinham o di­ reito de deliberar, que não podiam nem mesmo residir na cidade, eram os nec ócio, isto é, os negociantes, escravos e estrangeiros. Montesquieu afirmava que o povo não podia ser confundido com a ralé, o populacho, devendo ser proibido o direito de voto àqueles que se encontrassem num estado demasiadamente profundo de baixeza. Dizia este notável pensador que, mesmo no governo do p o v o , o poder não poderia cair nas mãos do b a ix o p o v o . Madame de Lambert, discípula de Montesquieu chegou a definir o povo: “Chamo povo todos aqueles que pensam de maneira baixa e vulgar”. Não foi à toa, portanto, que a palavra p o v o já foi tida como o grande troca­ dilh o da H istória. Classificada a palavra p o v o com o p lu rív oco-an alóg ica, sua análise torna-se mais fácil, em que pese a diversidade de sentidos que ela apresenta. Ao Direito, em especial o direito constitucional, interessam os sentidos jurídico e político. Povo, no sentido jurídico, é o conjunto de indivíduos qualificados pela n acion alidade. Nele não se incluem, já se vê, estrangeiros e apátridas. Todavia, o sentido p olítico é ain­ da mais restrito, pois exclui não só estrangeiros e apátridas, como também os me­ nores de 16 anos (CF, art. 14, §§ I o, II, c, e 2 o), estando o povo político, tido como o conjunto dos cidadãos do Estado, vinculado à ideia de cidadania. Como se vê, não

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basta ser nacional para se obter a cidadania; a nacionalidade é pressuposto, condi­ ção necessária, mas não suficiente para alcançar o status de cidadão. A idade do na­ cional se mostra o grande empecilho à obtenção da cidadania, como se observa no art. 14, §§ I o, I, e 3 o, VI, a a d, da Constituição Federal. Todavia, há outras restri­ ções, como aquelas impostas aos militares no art. 14, § 8o, e a cassação de direitos políticos, nas hipóteses do art. 15. A nacionalidade, então, é vínculo meramente ju­ rídico, pertinente a direitos civis, em razão do local de nascimento ou da ascendên­ cia paterna (nacionalidade originária), ou, ainda, de manifestação de vontade do próprio interessado (nacionalidade secundária, obtida mediante naturalização). N a ­ cional, portanto, é o brasileiro nato ou naturalizado, que integra o conceito jurídi­ co do povo, ao passo que cid a d ã o é o n acion al n o g o z o d os direitos políticos. Há dois critérios para a determinação da nacionalidade: o jus soli e o jus sanguinis. O jus soli leva em conta o local de nascimento do indivíduo, o solo, enfim. Trata-se de um critério normalmente adotado por Estados de forte contingente imigratório, isto é, que recebem imigrantes, estimulando-os a se radicarem, para compensar a rare­ fação demográfica. Por outro lado, o jus sanguinis é um critério determinativo da nacionalidade que considera a ascendência, o sangue paterno do indivíduo, para conferir-lhe a nacionalidade. Trata-se de critério típico de Estados de forte em igra­ ção, com o que se busca preservar a nacionalidade mediante a consanguinidade. O fundamento do jus sanguinis pode resvalar, perigosamente, o racismo, como ocorreu na Alemanha nacional-socialista, por acaso com cidadãos brasileiros. O pro­ fessor de História Dennison de Oliveira, em original e elucidativa monografia, tomou o depoimento de um brasileiro descendente de alemães que, achando-se na Alemanha em 1943, foi convocado para o serviço militar em plena Segunda Guerra Mundial, pior, quando a derrota do país já se avizinhava. Assim o autor descreve o episódio: Tendo atingido a idade para alistamento, ele compareceu diante da junta do ser­ viço militar local. Sua primeira inspiração foi alegar a condição de brasileiro (brasilianer), nascido em São Paulo, como demonstravam seus documentos de identidade. Em resposta teria ouvido a seguinte pergunta do encarregado do alistamento: “Mas se você tivesse nascido na África isso faria de você um negro?”. Desconcertado, respondeu que não, ouvindo em seguida a decisão de que ele teria de se alistar, uma vez que era des­ cendente de alemães. De fato, nos termos da jurisprudência alemã relativa à naciona­ lidade prevalece o princípio do jus sanguinis, isto é, aquela que deriva da nacionalida­ de dos pais, independentemente do local de nascimento (jus solis) que é típica da cultura brasileira, por exemplo. De nada adiantou a alegação do pobre recruta de que lhe seria penoso lutar até a morte contra outros brasileiros; na iminência de uma condenação à morte por desobediência, acabou sendo salvo por um oficial médico nascido de pais alemães, imaginem, na Namíbia. O facultativo, sensibilizado pela situação do nosso brasi-

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lianer, conseguiu para este uma internação hospitalar por suposta moléstia conta­ giosa, que acabou livrando-o do processo... Um caso banal como este esclarece, mais que muitos livros sobre a matéria, como o nacional-socialismo encarava o ser humano; para ser um bom alemão, o importante era o sangue, não importava o local de nascimento, tanto que o pró­ prio Hitler não era natural da Alemanha, e sim austríaco. Daí, a política de anexa­ ção, à Grande Alemanha, de territórios em que habitariam os chamados alem ães raciais, residentes fora do Terceiro Reich, levando à prática o lema nacional-socia­ lista: “ Povos do mesmo sangue devem pertencer ao mesmo Estado”. A Constituição do Brasil adota um critério intermediário, pois faz concessões ao jus soli (art. 1 2 ,1, a), e ao jus sanguinis (art. 1 2 ,1, b e c). Pode ocorrer qu e o indi­ víduo não tenha nacionalidade, sendo, então, apátrida (sem pátria), submetido, em tal caso, à C on venção sobre o Estatuto d o s A pátridos, adotada em 2 8 .0 9.1954, pela Conferência de Plenipotenciários convocada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em sua Resolução n. 526-A (XVII), de 2 6 .0 4 .1 9 5 4 , tendo entrado em vigor no dia 0 6 .0 6 .1 9 6 0 . Se tiver mais de uma nacionalidade, o indivíduo será polipátrida. Os critérios atributivos da nacionalidade decorrem da própria sobera­ nia do Estado, não da vontade dos interessados, de maneira que o apátrida estará nesta condição independentemente de sua vontade, valendo o mesmo para o p o lip á­ trida. Quanto à naturalização (CF, art. 12, II), é forma de aquisição secundária ou derivada da nacionalidade. Pode ser ex p ressa ou tácita. A naturalização expressa é aquela que resulta de pedido do interessado (CF, art. 12, II, a e b); a tácita, aquela que se confere ao indivíduo por iniciativa do próprio Estado (CF, art. 12, § I o). No que se refere ao povo político, reitere-se que tal conceito liga-se, de imedia­ to, ao de cidadania. Com efeito, sendo proveniente do latim civitas (de eives, cida­ dão), o termo cidadania denomina o vínculo político que liga o indivíduo ao Estado, fruindo o cid ad ão de direitos e deveres de natureza política, com evidente exclusão dos estrangeiros. O termo p o v o contido no art. I o, parágrafo único, da Constituição Federal confunde-se com o conceito de cidadania, pois congrega exclusivamente os nacionais d otados de direitos políticos, nas diferentes gradações apontadas pela Cons­ tituição (art. 14, §§ I o a 9o). Portanto, nunca será demasiado repetir que, ao decla­ rar, no art. I o, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo”, a Constituição Federal refere-se ao conceito p olítico do povo, excluindo estrangeiros, apátridas, me­ nores de idade, e, nos termos do art. 14, § 2 o, os conscritos durante o período do ser­ viço militar (do latim conscriptu, recrutado, alistado, recruta).

4.1.2) N a ç ã o

Bibliografia: a z a m b u ja , Darcy. Teoria geral do Estado, 4. ed., Porto Alegre, Globo, 1968. BONAViDES, Paulo. Ciência política, Rio de Janeiro, Forense, 1986. d e l o s , J. T.

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La nación, Buenos Aires, Desclée Brouwer, s.d. ren a n , Ernesto. Que es una nación?, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983. sa l v e tt i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. silv a , José Afonso da. Curso de di­ reito constitucional positivo, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1989.

Para muitos autores, a nação não pode ser satisfatoriamente definida, porque, como afirma Sestan, ela ostenta “caráter fugaz, plurissignificante e até equívoco”. Certo, porém, é que a nação não se confunde com o Estado, pois este envolve um conceito eminentemente jurídico, ao passo que aquela tem caráter tipicamente so­ ciológico. Com efeito, o Estado pode surgir até de modo abrupto, mantendo-se gra­ ças à coação exercida sobre cidadãos ou súditos, mas a nação somente se forma mediante demorada gestação. Dizia Ernesto Renan (1823-1892): Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Uma encontra-se no passado; a outra, no presente. Uma é a posse comum de um rico legado de tradição; a outra, o consenso atual, o desejo de viver junto, a vontade de prosseguir fazendo valer a heran­ ça por todos recebida. O homem não se improvisa. A nação - como o indivíduo - é consequência de longo passado de esforços, de sacrifícios e de desenvolvimento. O cul­ to dos antepassados, dentre todos, é o mais legítimo. Nossos ancestrais nos moldaram o que hoje somos. Um passado heroico, de grandes homens, de glória, eis o capital so­ cial em que se assenta a ideia nacional. Possuir glórias comuns no passado e vontade comum no presente; ter realizado grandes obras em conjunto e querer realizá-las ain­ da, eis a condição para se ser um povo! E prossegue: Ama-se a casa que se construiu e se transmite. O canto espartano: Somos o que fos­ tes, seremos o que sois é, na sua simplicidade, o hino abreviado de toda pátria. O homem não é escravo nem de sua raça, nem de sua língua, nem de sua religião, nem do curso dos rios, nem da direção das cadeias de montanhas. Uma grande agregação de homens, sã de espírito e cálida de coração, cria uma consciência moral que se chama nação! A nação é, pois, uma realidade eminentemente sociológica, que se forma com o passar do tempo, até que se sedimente aquele espírito nacion al oriundo das tra­ dições e costumes comuns. Por isso, Hans Kelsen distingue, com sutileza, entre povo e nação: “a noção de povo não se refere às qualidades físicas ou psíquicas dos ho­ mens. O povo, como objeto de estudo da Teoria Geral do Estado, é entidade pura­ mente normativa” . Que será, entretanto, uma nação? Seria a raça o único ingrediente a com p or a receita da n ação ? Vacher da Lapouge, Gobineau e Houston Stewart Chamberlain, assim como o principal ideólogo do

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nacional-socialismo, Alfredo Rosenberg, achavam que sim. Haveria, nas raças hu­ manas, uma hierarquia, representada por nações superiores a outras. O nacional­ socialismo, inspirando-se nestes autores, confundiu povo, nação e raça com uma unidade bioespiritual de sangue e solo (blutt und boden ), comandada por um úni­ co líder, sem contestação (D er Fü brer h a t im m er recbt). Na verdade, não há uma só raça pura e, como adverte Renán, “assentar a política na análise etnográfica é pretender assentá-la sobre uma quimera”. Se a raça não é o elemento imprescindível da nação, seria este a religião? Também não. Pode haver uma só religião em vários Estados, como há Esta­ dos em que se professa mais de um credo religioso. A Alemanha é metade protes­ tante e metade católica. Por outro lado, o catolicismo predomina em toda a Amé­ rica Latina. Daí as palavras de Ernesto Renán: “Já não há religião de Estado; é possível ser francês, inglês, alemão, sendo protestante ou católico ou israelita ou mesmo ateu. A religião é individual, contempla a consciência de cada um”. Se a religião não é o elemento imprescindível para formação da nação, seria este o idioma? Também não, se tomado isoladamente. Há Estados ou comunidades nacio­ nais onde se falam vários idiomas. Na Suíça, fala-se italiano, francês e alemão. E quem poderia recusar ao povo suíço sua condição de nacional? Diz Renán: “ Será que não é possível ter os mesmos sentimentos e pensamen­ tos e amar as mesmas coisas em línguas diferentes?”. Pedro Salvetti Netto afirma que dos elementos constitutivos da nação, preco­ nizados por Mancini, apenas as tradições e os costumes devem ser levados em con­ ta quanto à criação de um espírito nacional. Seria das tradições comuns, dos fatos heroicos, que restam no passado, que resultaria a identidade de sentimentos que leva uma comunidade a querer, espon­ taneamente, permanecer existindo. É das tradições comuns que brota o espírito da nacionalidade e o patriotismo. Dizia Thomas Carlyle (1 7 9 5 -1 8 8 1 ), eminente historiador e biógrafo, que a “História Universal é no fundo a História dos grandes homens”, isto é, “uma su­ cessão de biografias que representam o espírito de cada nação de que cada grande homem faça parte” . O que é a Itália, se não César, Dante, Mazzini? O que é a Gré­ cia, se não Péricles, Platão? O que é a Inglaterra, se não Shakespeare? Tal linha de pensamento talvez seja a mesma de Hegel (1770-1831), para quem tais grandes ho­ mens seriam o instrumento da evolução histórica, pois que a História é mais sábia que qualquer razão individual. Jean Bodin (1530-1596), autor da célebre obra Dos seis livros da R epública, afirmou que “de muitos cidadãos se faz um Estado (república), quando governa­ dos pela potência soberana de um ou diversos senhores, ainda que estejam diversi­ ficados em leis, línguas, costumes, religiões e n a çõ es”. Portanto, para Bodin, o E s­ tad o p reced e à n ação.

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Para Friedrich von Hardenberg (1772-1801), conhecido como Novalis, o E s­ tad o d eve co n fu n d irs e com a n ação. Diz ele: A nação é um organismo histórico vivo, que encerra em si o espírito e a vida, elaborados no decurso das idades. Por isso, a nação é uma ideia. A nação deve ser con­ cebida à maneira de um corpo místico ou de um organismo internamente animado pela vida espiritual, formada pela cultura e pela religião. A sociedade nada mais é que uma vida comum: uma pessoa indivisível que pensa e sente. Segundo Novalis, a organização do Estado deve ser confundida com o espíri­ to nacional. A mesma vida que anima a nação há de vitalizar o terreno político, pois a política não é senão a forma de que se reveste a ação em sua vida pública. Para Friedrich von Schlegel (1772-1829), ardente inimigo das concepções mecanicistas e racionalistas do Estado, a sociedade e o Estado são organismos vivos, formados pela História. Diz ele: “ Para que se possa dizer que um Estado forma um todo vivente e que é uma grande individualidade, é preciso que o Estado ou nação continuem vivendo sua vida histórica e que desenvolva e mantenha a vitalidade em seus órgãos” . Novalis e Schlegel influenciaram o conceito naturalístico de nação, levado às últimas consequências durante o nazismo, sob o aspecto raça. Portanto, para Novalis e Schlegel, a nação deve estar identificada ao Estado. Também para o fascismo, que segue Bodin em tal pensamento, o Estado for­ ja a nação. Benito Mussolini (1883-1945) não se preocupa em definir a nação; esta, a seu ver, é antes de mais nada um mito. O que é um mito? O mito, diz o Duce, “é uma fé, uma paixão, nem mesmo é necessário que seja real, como essência. Será uma realidade no sentido de que é uma fé, uma esperança, um valor”. “Nosso mito [prossegue] é a nação” (Escritos e discursos, t. 3, p. 187). “A nação [diz ele] é fun­ damentalmente espiritual” (cit., t. 2, p. 370). E o espírito, na concepção fascista não é algo pretérito, arquivado no museu da História. O espírito deve ser presente, a çã o atual, criadora e con qu istad ora. Para Mussolini, o Estado pode forjar a consciên­ cia coletiva, a solid aried ad e psicológ ica (expressão de Miguel Reale). Apesar das restrições a um conceito universal de nação, não faltam definições formuladas por autores de peso. Dentre estes, Pasquale Estanislao Mancini (18171888), um dos chefes do Partido Liberal italiano e autor de uma obra célebre, in­ titulada Vida d os p o v o s na hu m an idade, que definia a nação como “uma socieda­ de natural de homens, na qual a unidade de território, de origem, de costumes, de língua e a comunhão de vida criaram a consciência social”. O próprio Mancini aponta os elementos formadores de uma nação: a) elementos naturais: nação, lín­ gua, território; h) elementos históricos: costumes, tradições, religião e leis; c) ele­ mento psicológico: consciência nacional. Contemporaneamente, André Hauriou define a nação como “ o grupo humano no qual os indivíduos se sentem mutuamen-

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te unidos por laços tanto materiais como espirituais, bem como conscientes daqui­ lo que os distingue dos indivíduos integrantes de outros grupos nacionais”. Outro autor moderno, Aldo Bozzi, define a nação como: “o sentimento derivado da co­ munhão de tradição, de história, de língua, de religião, de literatura e de arte, to ­ dos estes fatores agregativos e pré-jurídicos”. Note-se a expressão pré-jurídicos nes­ ta definição, a atestar que a nação precede o Estado. Quanto à nacionalidade, consiste no vínculo jurídico que liga o indivíduo ao Estado, em razão do local de nascimento, da ascendência paterna ou da manifes­ tação de vontade do interessado. José Afonso da Silva diz que “n a cio n a l” é o brasileiro nato ou naturalizado, ou seja, aquele que se vincula, por nascimento ou naturalização, ao território do Brasil, cujo conjunto forma o povo; cid a d ã o é o nacional no gozo dos direitos po­ líticos”. Há dois princípios básicos para a aferição da nacionalidade: o jus soli, que leva em conta o local de nascimento, o solo (CF, art. 1 2 ,1, a); e o jus sanguinis, que considera a ascendência do indivíduo, não importando o local de nascimento (CF, art. 1 2 , 1, b e c). A Constituição Federal, com o se vê, adota um critério misto, fa­ zendo concessões ora ao jus soli, ora ao jus sanguinis.

4.1.3) T erritório

Bibliografia: b o n a v id e s , Paulo. Ciência política, Rio de Janeiro, Forense, 1978. g r o ppa Alessandro. Doutrina do Estado, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1968. m e jía , Hugo Pa­ lacios. Introducción a la teoría del Estado, Bogotá, Ternis, 1965. r o d r ig u e s , Dirceu A. Victor. Dicionário de brocardos jurídicos, 9. ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1979. l i,

A palavra território apresenta uma etimologia à primeira vista estranha; não provém, conforme se poderia pensar, de nada ligado à terra, esp aço geográfico, mas do verbo latino terreo, territo, isto é, intim ido, cau so m ed o , receio, mesmo porque o Estado exerce o seu poder antevendo a possibilidade de, a qualquer momento, utilizar a força (coerção) para ver suas determinações cumpridas pelos súditos. Diga-se o mesmo no âmbito externo, quando o Estado, para manter a soberania ín­ tegra, procura, na força das armas, impor respeito às demais sociedades políticas. Por isso, diziam os romanos: “ Territorium est universitas agrorum intra fines cuiusque civitatis q u o d a b e o dictum qu idam aiunt, q u o d magistratus eius loci in­ tra eo s fines terrendi, id est, su bm ov en d i ius h a b e t,, (“Território é a universalidade das terras dentro dos limites de cada Estado; alguns o chamam assim porque o ma­ gistrado desse lugar tem o direito de, dentro destas terras, aterrorizar, isto é, de afu gen tar” ). Diziam, também: “Se vis p acem para bellu m ” (“se queres a paz, pre-

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para-te para a guerra” ), e a modernidade, no mesmo diapasão, atenta ao estado de tensão política que lateja entre os Estados contemporâneos, cunhou, com rara fe­ licidade, o jargão: “ O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Hitler costumava afirmar - bazófia ou ameaça - que “ onde fosse ouvida uma canção alemã, aí esta­ ria a Alemanha”. Era o prenúncio do expansionismo nacional-socialista, em nome do chamado esp a ço vital... Tais arroubos e brocardos constituem um sintoma inevitável de que o Estado se mantém permanentemente em atitude de defesa ou de ataque, sempre com o in­ tuito de intim idar, im por-se às outras sociedades políticas, seja para conservar-se íntegro, seja para expandir-se à custa de seus vizinhos. Por isso, como veremos mais adiante, a faixa de fronteira de um Estado tem caráter muito mais estratégico do que político. Então, o conceito de território é jurídico-político, não simplesmente geográfico. Conceito geográfico é o de base física e o de país, designando, este úl­ timo vocábulo, as características telúricas da base física de uma sociedade política. Assim, quando nos referimos à influência do solo, do clima, sobre os homens de determinada região, estamos referindo-nos a um país e não a um território propria­ mente dito. Se o território fosse mero espaço geográfico, mera base física, como ex­ plicar que um navio militar, em águas territoriais pertencentes a estado diverso, faz parte do território do Estado cuja bandeira ostenta? Assim, pode o território ser definido como a área física ou ideal em qu e o E s­ tad o ex erce, com exclu sividade, seu p o d e r d e im pério ou seu direito de p ro p ried a ­ de s o b r e pessoas e coisas. Com efeito, o território tanto pode ser uma parcela do solo, na qual o Esta­ do exerce seu poder soberano, como uma ficção jurídica, isto é, um dado eminen­ temente abstrato, ideal. Daí o espaço aéreo, as belonaves militares e as embaixadas serem considerados partes integrantes do território do Estado. Nesse sentido, fazse oportuna a disposição do art. 5o, § I o, do Código Penal brasileiro, in verbis: Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo bra­ sileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasi­ leiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espa­ ço aéreo correspondente ou em alto-mar. Por outro lado, o Estado exerce jurisdição sobre pessoas (poder de império) e direito de propriedade sobre seus bens. Ademais, o Estado manifesta o seu poder de império também sobre seus súditos que se encontram em outros Estados; é o caso da ex traterritorialidade das leis. O Direito Romano já fazia uma distinção entre o território e o elemento hu­ mano nele vivente; a urbs era o conjunto de edifícios, ruas e logradouros, ao pas­ so que a civitas era o elemento humano vivente na urbs.

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Dois elementos do território apresentam, modernamente, importância muito grande: o esp a ço a éreo e o m ar territorial. Sobre o espaço aéreo, a soberania do Estado alcança uma altitude que justi­ fica um interesse público que possa reclamar a ação do poder político. Nesse sen­ tido, tal espaço compreende quatro camadas, bem determinadas: a troposfera, de 10 a 12 km de altitude; a estratosfera, com cerca de 100 km; a ionosfera, de 100 a 600 km, e a exosfera, zona de transição para o espaço cósmico. Neste predominam as normas de Direito astronáutico, também denominado interestelar, interplanetá­ rio, espacial ou cósmico. Firmou-se a doutrina de que o espaço cósmico fica sob o império do Direito Internacional, com a criação, em 1958, pela Organização das Nações Unidas - ONU - , da Comissão para o uso pacífico do espaço cósmico. Em 1961 foi criada a Resolução n. 1 .7 2 1 , que proclamou a extensão, ao espaço exte­ rior e aos corpos celestes, dos princípios do Direito Internacional e da Carta das Nações Unidas, bem como o direito de todos os Estados levarem a cabo explora­ ções cósmicas e a inapropriabilidade jurídica dos corpos celestes. Depois, em 1967 foi firmado o Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e os demais corpos celestes. Este tratado determina que a exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a Humanidade. O espaço cósmico, inclusive a Lua e os demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado, livremente, por todos os Estados, sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformida­ de com o Direito Internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as re­ giões dos corpos celestes. O espaço cósmico, inclusive a Lua e os demais corpos celestes, estará aberto às pesquisas científicas, devendo os Estados facilitarem e en­ corajarem a cooperação internacional naquelas pesquisas (art. I o). Por outro lado, o espaço cósmico, inclusive a Lua e os demais corpos celestes, não poderá ser ob­ jeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio (art. 2°). No espaço aéreo predomina a teoria de Westlake (soberania plena), devendo, entretanto, ser reservada uma zona de passagem inocente do território às aerona­ ves estrangeiras. Desta forma, os aviões civis de natureza pública usufruem de intangibilidade ao sobrevoarem ares estrangeiros, bem como de isenções fiscais, nor­ malmente não conferidas às aeronaves particulares. Navios ou aviões civis que se encontrem fora do território de um Estado, em águas ou ares que não pertençam a outro Estado, estão sob a jurisdição do primei­ ro, dando-se o inverso caso tais navios ou aviões estejam em águas ou ares do segun­ do. Quanto aos navios ou aeronaves militares, encontrar-se-ão sem pre sob a jurisdi­ ção do Estado a que pertençam, independentemente do local onde se encontrem.

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A Convenção Relativa a Infrações e a Certos Outros Atos Praticados a Bordo de Aeronave, de 1963, determina, no art. III, item I o, que o Estado de matrícula da aeronave será competente para exercer a jurisdição sobre infrações e atos praticados a bordo. Por outro lado, diz o art. IV que o Estado contratante que não for o da ma­ trícula não poderá intervir no voo de uma aeronave a fim de exercer sua jurisdição penal em infrações cometidas a bordo, a menos que: a) a infração produza efeitos no território desse Estado; b) a infração tenha sido cometida por ou contra um nacio­ nal desse Estado ou pessoa que tenha aí sua residência permanente; c) a infração afe­ te a segurança desse Estado; d) a infração constitua uma violação dos regulamentos relativos a voos ou manobras de aeronaves vigentes nesse Estado; e) seja necessário exercer a jurisdição para cumprir as obrigações desse Estado, em virtude de um acor­ do internacional multilateral. O art. VI contém importante disposição, qual seja, quan­ do o comandante da aeronave tiver motivos justificados para crer que uma pessoa cometeu ou está na iminência de cometer a bordo uma infração ou um ato previsto no art. I o, § I o, poderá impor a essa pessoa medidas razoáveis, inclusive coercitivas, que sejam necessárias: a) para proteger a segurança da aeronave e das pessoas e bens a bordo; b) para manter a boa ordem e a disciplina a bordo; c) para permitir-lhe en­ tregar essa pessoa às autoridades competentes ou desembarcá-la de conformidade com as disposições da Convenção que disciplinam a matéria. Quanto ao mar territorial, vem a ser a faixa marítima que acompanha, em largura variável, as sinuosidades da linha litorânea, e que integra o território do Es­ tado. Em outras palavras, é a faixa marítima que banha as costas de um Estado e que se acha sob o poder de império deste. Normalmente, a largura do mar territo­ rial é calculada a partir da linha de b a ix a -m a ré (b a ix a -m a r), que é a altura mais baixa atingida pela maré. Inicialmente, predominava a doutrina de que a soberania do Estado sobre o mar iria até onde a vista humana tivesse alcance; depois, com a evolução do arma­ mento, passou a predominar a doutrina de que o poder do Estado no mar territo­ rial cessaria onde terminasse o poder das armas, isto é, onde alcançasse um tiro de canhão: terrae p otestas finitur u bi finitur arm orum vis, ou: on d e h á força, a í o di­ reito (ubi vis ibi jus). Ora, com a evolução do armamento bélico, atualmente bastante sofisticado, esta teoria ruiu, porque, se aplicada, todos os mares seriam águas territoriais ou, sim­ plesmente, já não existiriam tais águas. A observação dos infinitos recursos do mar ensejou a ampliação do mar territorial. Como acentua Salvetti Netto, o interesse eco­ nômico sobrepujou o fator político, visto que os Estados alargaram a extensão de seu mar territorial na proporção inversa de seu desenvolvimento tecnológico, pois com muito maior facilidade os Estados mais desenvolvidos tecnologicamente pode­ riam buscar as riquezas submersas, distantes de seu litoral. Desta forma, realizou-se em Montevidéu, no ano de 1970, a Primeira Confe­ rência Latino-Americana sobre Direito Marítimo, com a participação de nove Es­

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tados: Brasil, Uruguai, Nicarágua, El Salvador, Panamá, Argentina, Equador, Chi­ le e Peru. A conferência debateu a exploração das riquezas do mar, a segurança nacional, a repressão ao contrabando, o controle de navegação para evitar polui­ ção das águas e outros temas. Já em 2 5 .0 3 .1 9 7 0 , o Brasil acompanhava Peru e Equador na ampliação de seu mar territorial para 2 0 0 milhas - não esquecer que um dos principais produ­ tos de exportação daqueles dois Estados é o atum! - mediante o Decreto-lei n. 1.098, do qual transcrevemos, agora, os arts. I o e 3o e o § I o deste: Art. I o O mar territorial do Brasil abrange uma faixa de 200 (duzentas) milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha da baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro adotado como referência nas cartas náuticas brasileiras. Art. 3o É reconhecido aos navios de todas as nacionalidades o direito de passa­ gem inocente no mar territorial brasileiro. § I o Considera-se passagem inocente o simples trânsito pelo mar territorial, sem o exercício de quaisquer atividades estranhas à navegação e sem outras paradas que não as incidentes à mesma navegação. A Lei n. 8 .6 1 7 , de 0 4 .0 1 .1 9 9 3 , revogou este decreto. O art. I o desta lei diz

o mar territorial brasileiro compreende uma faixa de 12 (doze) milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasi­ leiro, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmen­ te no Brasil. Esta norma acompanhou a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, conhecida por Convenção de Montego Bay, cujo art. 3o, referente à largura do mar territorial, diz: “Todo Estado tem o direito de fixar a largura do seu mar territorial até um limite que não ultrapasse 12 milhas marítimas, medidas a partir de linhas de base determinadas de conformidade com a presente Conven­ ção” . Importante ressaltar que já em 1958 e 1 964, duas Conferências sobre o Di­ reito do Mar, realizadas por iniciativa da ONU, preconizavam a largura do mar territorial de 3 a 12 milhas. A ampliação unilateral do mar territorial provoca dificuldades nem sempre solucionadas, em que pesem os esforços desenvolvidos por organismos internacio­ nais. Assim, os Estados Unidos, que, já em fevereiro de 19 7 0 , emitiram nota de apoio ao limite de 12 milhas apenas, advertiam que, enquanto este limite não fos­ se fixado, não reconheceriam águas territoriais mais amplas do que 3 milhas, limi­ te aceito sem objeção por todos os Estados. Vale lembrar que os principais oposi-

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tores às 2 0 0 milhas marítimas para o mar territorial sempre foram Estados Unidos e União Soviética. Oportuno lembrar, também, a sequela resultante da guerra das ilhas Malvi­ nas, que colocou frente a frente, em 1 982, a Inglaterra e a Argentina, que disputa­ vam o domínio daquelas, sorrindo a vitória militar para os ingleses. Recentemen­ te, a pretexto de preservar a pesca nas Malvinas, a Inglaterra, que já mantinha uma faixa de mar territorial na região, de 1 5 0 milhas, ampliou unilateralmente esta largura em mais 5 0 milhas. A verdadeira razão que levou os britânicos a esta me­ dida temerária foi, porém, tornar sem efeito prático os acordos de atividade pes­ queira na área, celebrados entre a Argentina, a Bulgária e a União Soviética. Com a tomada daquela medida, a Inglaterra tornou obrigatória uma licença para bar­ cos pesqueiros de qualquer país que esteja em atividade num raio de 150 milhas, impondo formal e unilateralmente sua soberania num raio de 2 0 0 milhas! Agindo de maneira análoga na sua possessão de Gibraltar, os ingleses teriam um mar ter­ ritorial que invadiria nada menos do que sete territórios de países diversos, nos quais se incluem, aliás, portos europeus de grande movimento. Do território argen­ tino, a Inglaterra atingiu, com tal medida, a ilha de Los Estados, situada no sul da Argentina. Do exemplo referido, fica a conclusão, agora mais clara, certamente, de que o território, muito mais do que uma expressão geográfica, revela, mesmo, o po­ derio militar e estratégico de um Estado quando em confronto com outro. Vale, agora, distinguir entre fron teira e lim ite no território do Estado. A pala­ vra fron teira vem do latim frons, frontis (fachada, frente). A fronteira é uma faixa de largura considerável, conforme o caso, e que se confronta com a linha de limi­ tes, na qual termina a ação jurisdicional do Estado. São finalidades da faixa de fron­ teira a delimitação do território, a intercomunicação com povos vizinhos e a pro­ teção contra a hostilidade externa. Ao tempo do Império, a legislação marcava para a faixa de fronteira do Brasil uma largura de 10 léguas (60 km), a partir da linha de limite. A Constituição de 1934 (art. 166) estipulou uma faixa de fronteira de 100 km, e as Constituições de 1937 e 19 4 6 , 150 km. Atualmente nos termos da Lei n. 6 .6 3 4 , de 0 2 .0 5 .1 9 7 9 , art. I o, é considerada área indispensável à segurança nacional a faixa interna de 150 km de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designa­ da como faixa de fronteira. Como se percebe, foi mantida a largura de 150 km para a faixa de fronteira. Por outro lado, do teor deste artigo ressalta a noção de limite: é a linha que separa a superfície do território de um Estado da superfície perten­ cente aos Estados vizinhos. Fronteira é faixa, limite é linha. Entre dois Estados confron tan tes existem, portanto, duas faixas de fronteira opostas e divididas por uma linha divisória, a linha de limite. O conceito de fronteira liga-se à estratégia, ao pas­ so que o conceito de lim ite vincula-se ao D ireito propriamente dito. Questão que despertou polêmica momentânea entre dois notáveis juristas ita­ lianos, Donato Donati e Alessandro Groppali, é a seguinte: a base física é elemento

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integrante do Estado? Donato Donad afirmou que o territorio (base física) não se­ ria elemento do Estado, exemplificando sua assertiva com Estados que foram des­ pojados temporariamente de sua base física, como Atenas, que, invadida pelos per­ sas, foi abandonada por seus habitantes, os quais se refugiaram nos navios de Maldades, sendo possível acrescentar a tal exemplo o da França de 1940, vencida e ocupada pela Alemanha nazista, durante quatro anos. Tais ocupações teriam afeta­ do a existência dos Estados que as sofreram? Se adotarmos o pensamento de Dona­ to Donad, para quem o território (como sinônimo de base física) não é elemento constitutivo do Estado, mas simples con d ição da existência deste, aqueles Estados Atenas e França - permaneceriam existindo. Alessandro Groppali contesta a dou­ trina de Donato Donad, afirmando que a perda de fato, tem porária, da base física, não acarreta a desaparição do Estado, o que certamente ocorreria em caso de perda definitiva. Adepto da opinião de Groppali, Pedro Salvetti Netto lembra que, em todos os casos apontados por Donato Donad, não houve sequer perda tem porária do território (base física), porém mera o cu p a çã o d o solo, e este não constitui, por si só, como visto, a amplitude do território estatal. No exemplo da França ocupada pela Alemanha, argumenta, permanecia o Governo da Resistência, sediado na In­ glaterra, a impor suas determinações às forças da restauração, às embaixadas situa­ das em outros Estados e aos navios e aeronaves de guerra. Ocorreu, assim, mera ocupação do solo, e não submissão total e definitiva, sendo a República de Vichy, vassala do Terceiro Reich, uma organização política anômala. Donato Donad, fina­ liza Salvetti Netto, considerou tão somente uma parcela do território (base física), já que a este se encontram integrados, além do solo, o subsolo, o espaço aéreo, o mar territorial, os navios e as aeronaves de guerra, onde quer que se encontrem os navios mercantes em alto-mar, as aeronaves comerciais sobrevoando o espaço livre e as embaixadas. Conclui-se, portanto, que o território, tomado como a expressão do poder de fato do Estado, constitui um elemento essencial do Estado, pois não há Estado sem poder soberan o, e a soberania pressupõe a fo rça necessária a sua autoconservação. O território, ao lado do elemento humano e do poder soberano, integra a pró­ pria essência do Estado. Sem território, portanto, o Estado sucumbe. A base física, contudo, é um elemento contingente, n ão essencial, do Estado. A sociedade política pode existir, embora, temporariamente, sem ele. A base física está para o Estado como a água está para um ser aquático. Aquela não faz parte da essência deste, o qual, po­ rém, despojado daquele elemento vital, sucumbe ao cabo de algum tempo.

4.1.4) N a tu re za das re la ç õ e s entre o Estado e seu te rritó rio e n q u a n to base física: te o ria s do d ire ito real in s titu c io n a l, do im p e riu m e do dom ínio e m in en te Quando se diz que determinado Estado cedeu a outro uma parcela de seu ter­ ritório, está-se fazendo referência a um autêntico direito d e prop ried ad e do Estado?

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Partindo da velha distinção romana entre direitos reais (aqueles que incidem sobre os bens) e direitos p essoais (aqueles que incidem sobre as pessoas), sem considerar as teses unitárias que defendem a existência apenas de direitos pessoais, a teoria do direito real institucional parte do pressuposto de que o direito do Estado sobre seu território é verdadeiro direito de propriedade. Trata-se, porém, de um direito de pro­ priedade especialíssimo, ou melhor, institucional, distinto do regime jurídico da pro­ priedade particular. Somente assim poderíamos admitir expressões como território d o Estado e aceitar a possibilidade de cessões territoriais p e lo Estado. Entretanto, esta concepção não explica como é possível coexistirem dois direitos de propriedade - do Estado e dos particulares - incidentes sobre um mesmo objeto. Uma segunda doutrina, propugnada por Georg Jellinek, denominada doutrina do im perium , afir­ ma que não existe um direito real (dom inium ) do Estado sobre seu território, mas tão somente um direito pessoal sobre os indivíduos que vivem em seu território. Jelli­ nek considerava descabida a adoção de um conceito de direito civil no campo do direito público, propondo, por isso, a substituição do conceito de dom inium pelo de im perium (direito de compelir os habitantes do território a adotar certa conduta, di­ reito pessoal, portanto). O publicista colombiano Copete Lizarralde propôs, na ten­ tativa de solucionar a questão, a expressão dom ín io em inente do Estado, lembran­ do que, quanto ao direito do Estado, na qualidade de pessoa jurídica, de exercer poder soberano sobre seu território e bens nele situados, a ênfase recai justamente na ideia de soberan ia, característica do poder do Estado que incide primeiro sobre as pessoas e, apenas secundariamente, sobre os bens. Mas isso pouco difere do pa­ recer de Jellinek, com ressalva da originalidade da expressão d om ín io em inente. Na verdade, como observa Hugo Palacios Mejía, a vida jurídica do Estado deve estar, sempre, enfocada na perspectiva do Direito Público. O território, prossegue, é um elemento do Estado, pelo qual, mais que um “direito do Estado sobre o território”, há um condicionamento territorial da vida do Estado, que enseja diversas situações jurídicas. Estas são, basicamente, de duas classes. A primeira refere-se à faculdade de exercer o poder sobre as pessoas que vivem dentro de certas fronteiras, e a segun­ da expressa uma verdadeira relação direta entre o Estado e certas partes do territó­ rio, mas sem recorrer à figura do direito particular de propriedade, dando a uma a denominação im perium e à outra dom ín io pú blico. A nosso ver, há que distinguir o direito d e prop ried ad e do Estado, direito este, vale lembrar, inerente a qualquer pessoa jurídica, do p o d er d e im pério que, em face do interesse pú blico, o Estado exerce sobre a propriedade privada. Os bens de pro­ priedade do Estado são especificados pela própria Constituição que lhe dá forma, ficando a propriedade particular restringida por sua função social, sob administra­ ção do próprio Estado, que apenas dá cumprimento às normas de desapropriação, requisição ou confisco.

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4.2) Causas formais 4.2.1) P o de r político

Bibliografia: b o r ja , Rodrigo. Enciclopedia de la política, México, Fondo de Cultura Económica. 1997. b u r d e a u , Georges. Método de la ciencia política, Buenos Aires, De­ palma, 1964. Ca b r a l d e m o n c a d a , Luís. Problemas de filosofia política, Coimbra, Arménio Amado, Sucessor, 1963. f e r r e ir a f il h o , Manoel Gonçalves. Curso de direi­ to constitucional, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 1982. sa l v e tt i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. s c h m it t , Cari. Teoría de la Cons­ titución, México, Nacional, 1981.

Poder é a capacidade de impor obediência. A palavra tem origem no latim ar­ caico potis esse, contraída em posse e, daí, p otere. Poder, então, é possibilid ad e, é potên cia, p oten cialid ad e para a realização de algo. O poder não é a ção, é potência. O poder é, também, a fo r ç a a serviço de uma ideia, como define Burdeau. Ele se sustenta pela ideologia cristalizada na consciência coletiva de um grupo social. Em sua obra M éto d o d e la ciência política, assim se expressa este publicista: O poder é uma força a serviço de uma ideia. Trata-se de uma força nascida da vontade social preponderante, destinada a dirigir a comunidade a uma ordem social que considera benéfica, bem como impor aos seus integrantes o comportamento ne­ cessário para tanto. Nesta definição se destacam dois elementos: força e ideia se inter­ penetram estreitamente; parece-nos, portanto, que ela apresenta uma ideia exata da realidade. Se aquilo que pretendemos, como efeito, é isolar o duradouro no fenômeno do poder, enquanto se sucedem as figuras que exercem seus atributos, veremos que o poder é menos a força exterior que se coloca a serviço de uma ideia do que a potên­ cia mesma de tal ideia. Em outra obra de grande repercussão sobre a matéria, intitulada singelamen­ te O E stad o, Burdeau assinala: Na sua essência profunda, o Poder é a encarnação de uma tal energia provoca­ da no grupo pela ideia de uma ordem social desejável. É uma força nascida da cons­ ciência coletiva e destinada simultaneamente a assegurar-lhe a perenidade do grupo, a conduzi-lo na busca do que ele considera como coisa sua, e capaz, em tais circunstân­ cias, de impor aos membros a atitude requerida por esta busca. A definição que pro­ pomos emprega os dois elementos do Poder: uma força e uma ideia. Ora, se afastar­ mos momentaneamente os fenômenos concretos pelos quais se revela o Poder e cujo

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fulgor se arrisca a obliterar a reflexão, se procurarmos o que é permanente no Poder enquanto passam as figuras que nele exercem as atribuições, vemos que ele não é tan­ to uma força exterior que viesse pôr-se ao serviço de uma ideia como a mesma potên­ cia dessa ideia. Não é, pois, exato que a realidade substancial do Poder seja o mando, o imperium; ela reside na ideia que o inspira. A força, com efeito, é inerente ao poder. A possibilidade de sua aplicação efe­ tiva chama-se co erció ilida de. A coerção é o emprego efetivo da força inerente ao poder; temos, aqui, a vis m aterialis ou corporalis. A simples expectativa do empre­ go da força chama-se c o a ç ã o (vis com pulsiva). Se transportarmos a palavra p o d e r para o campo da Ciência Política, encon­ traremos o poder público ou do Estado definido por Alípio Valencia Vega como a força pública organizada coativamente, a fim de impor o cumprimento de um or­ denamento jurídico-político, obtendo a obediencia geral às regras deste. Se o po­ der fático é a capacidade de se fazer obedecer, o poder público nada mais é do que a capacidade de se fazer obedecer exercida pelo Estado. Daí a distinção entre p o d e r p ú b lico e g ov ern o. O governo é o complexo de normas que disciplinam o exercício do poder. O governo é a dinâm ica do poder. O poder é p otên cia, o governo é a çã o . Quem exerce ativa o poder, governa, enfim. Os governantes são a encarnação do poder. A própria etimologia da palavra govern o (conduzir, dirigir, administrar) transmite-nos esta ideia. Por isso, é comum denomi­ narmos os chefes do Poder Executivo govern antes, em especial aqueles do Poder Executivo estadual, chamado governadores. Embora essencialmente sustentado pela força, o poder público somente se legi­ tima quando seu exercício é consentido por aqueles que lhe obedecem. O assentimen­ to, o consenso social, enfim, é pressuposto para a legitimação da ideia que anima aqueles que encarnam o poder. Com efeito, assinala Georges Burdeau que o poder repousa numa ideia oriunda da consciência coletiva existente no grupo social. Ubi societas ibi jus, dizia Aristóteles; a este brocardo Pedro Salvetti Netto acres­ ceu a expressão a c potestas, vale dizer, on d e h ou v er socied ad e haverá direito e p o ­ der. Exceção feita à utopia dos anarquistas, que pretendem ver extinto o poder na vida em sociedade, o poder é essencial a qualquer sociedade. Poder social (socieda­ des condicionadas) ou poder p o lítico (poder do Estado, sociedade condicionante) são formas de poder inerentes ao convívio social. Vale frisar, porém, que o poder, amparado pela força, nem sempre disporá do assentimento social, da reverência dos governados, do respeito que estes, eventualmente, lhe votariam. Faltará, se for o caso, au toridade. O vocábulo au toridade, do latim auctoritas, deriva do verbo augere, que significa aumentar, vale dizer, algo que se acrescenta, contingencialm ente, ao poder. Autoridade é possibilidade de suscitar obediência espon tân ea e conscien­ te, sem recurso à força, à coerção. As pessoas simples, quando se referem, respeito­ samente, às palavras de um sábio, as denominam argum entos d e autoridade.

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No dizer de Cabral de Moneada, a evolução do termo autoridade foi a seguinte: A palavra autoridade, derivada do latim auctoritas, teve sempre nesta língua as mais variadas significações, antes de se fixar na de poder. Exemplos: as de produção, criação, exemplaridade, modelo, prestígio, conselho, etc. Etimológicamente deriva de auctor e de augere. Auctor era não só o autor, como o consultor, o conselheiro, o ga­ rante, o promotor, aquele que promove com o seu exemplo e conselho o bem de uma coisa (alem. Befördern). Augere, de que auctum é um participio-adjetivo, significava, por sua vez, aumentar, desenvolver, fazer crescer, tornar mais forte e poderoso alguém ou alguma coisa. Presume-se que se encontre aí também a origem semântica da pala­ vra para significar mais tarde, mediante uma transposição de sentidos, aquele ou aqui­ lo que constituía a força e o vigor duma comunidade. O direito público romano já fazia uma distinção entre im perium e auctoritas; aquele era a força em potência, a qualquer momento desencadeada; esta era a tra­ dição e o respeito, encarnados num órgão, no caso, o Senado, símbolo vivo de um fastígio secular alcançado pela altivez, bravura e talento dos pais da pátria. César jamais teve a autoridade de um Cincinato, embora dispusesse da força; por isso, foi assassinado. Os líderes carism áticos - a palavra carism a vem do grego cbarism a, que sig­ nifica d o m divino, graça divina - são chefes n ecessariam en te religiosos que fruem do resp eito social, embora desprovidos da força. É o caso de Moisés, de Cristo e dos profetas. Por vezes o líder carism ático pode ter consigo também a força; eis Maomé e os aiatolás contemporâneos. Vejamos, agora, o conceito de p o d e r constituinte, com a singeleza recomen­ dada pelo caráter meramente introdutório desta obra. Poder constituinte é a capacidade de criar ou de alterar a ordem jurídica do Estado. Para Schmitt, poder constituinte é a von tade política cuja força ou autorida­ de é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre o modo e a forma da própria existência política, determinando, assim, a existência da unidade política como um todo. Com efeito, conforme ele próprio esclarece: Uma Constituição não se apoia numa norma cuja justiça seja fundamento de sua validade. Acha-se apoiada, isto sim, numa decisão política surgida de um ser político, acerca do modo e da forma do próprio ser. A expressão vontade revela em contraste com qualquer dependência referente a uma justiça normativa ou abstrata - o essen­ cialmente existencial deste fundamento de validade. O conceito de poder constituinte formulado por Schmitt, acentua Salvetti Netto, não se vincula a tendências ideológicas ou a princípios norteadores deste ou

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daquele regime político. Desde que o povo seja capaz de organizar o Estado e exer­ cer o governo, soberanamente, é ele o titular do poder constituinte: se for o rei, dele será este mesmo poder. Não se trata, aqui, prossegue, do melhor regime. Alude-se ao que é e não ao que d ev e ser. Não passou despercebido a este autor que a pró­ pria soberania reside no querer irrecusável do poder constituinte, sendo este a cau­ sa eficiente, e a Constituição a causa instrumental da ação deste poder. O poder constituinte é distinto dos poderes estabelecidos pela própria Cons­ tituição por ele criada. No dizer de Burdeau, ele é aquela potência criadora da ordem jurídica da qual fixa os princípios e estabelece os instrumentos. Ele se encontra situado num ponto de intersecção entre a política e o di­ reito, entre a turbulência das forças sociais e a serenidade dos procedimentos legais, entre a aparente desordem revolucionária e dos regimes seguros de si próprios. Em muitos Estados da Antiguidade Oriental, teocráticos, a soberania não re­ sidia propriamente no monarca, como geralmente se pensa; o rei era, em verdade, mero executor de uma v on tad e superior, de caráter sagrado, vontade fu n d ad a na coletiv id ad e e imposta igualmente a governantes e a governados. Mais tarde, na Grécia clássica, em Atenas e Esparta, já se fazia uma distinção entre ato constituinte e ato legislativo. O ato constituinte seria aquele de natureza originária, mediante o qual se criava a nação e sua estrutura político-social, surgin­ do o povo, nestes dois Estados laicos, como o titular da soberania. Séculos mais tarde, na Inglaterra, mais precisamente como documento deno­ minado A greem ent o f t h e p e o p le (Acordo ou Pacto Popular), promulgado no ano de 1953, por Oliver Cromwell, sob a denominação Instrum ento d e G overn o, en­ contraremos, segundo Carlos Sánchez Viamonte, o antecedente mais remoto rela­ tivo à doutrina da separação entre poder constituinte e poderes constituídos. Importante, aqui, distinguir entre a mera legalidade e a legitim idade do poder constituinte. Quando tal poder se manifesta mediante o emprego da força, no pla­ no do Direito Positivo, ele será sempre ilegal, até o momento em que, vitorioso, se institucionalize. A obra revolucionária é sempre ilegal, inconstitucional. Entretanto, mesmo sendo ilegal, ela pode ser legítim a, desde que esteja de acordo com a ideia do justo que o sistema de referência social professa. A obra revolucionária, contudo, pode­ rá ser ilegítima, se não estiver de acordo com o con sen so social. Se os revolucionários alcançam o poder, empunhando a bandeira de um ideá­ rio legítim o, que é aquele, repito, seguido pela comunidade, resta unicamente a le­ galização do movimento. Concretizada esta, é evidente que o poder constituinte derrubado incorrerá na ilegalidade e na ilegitim idade. Como o movimento vitorio­ so é legalizado? Pela edição de uma nova Constituição.

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Se o movimento triunfante não contar com a legalidade, tentará legitimar-se, obtendo a aceitação dos governados, num esforço de legitim ação daquilo que era ilegítim o. Que vem a ser a legalização do movimento vitorioso? É o estabelecimento de normas positivas que justifiquem o conteúdo da obra revolucionária do poder cons­ tituinte. Tal medida, lembra Ferreira Filho, é beneficiária de um mecanismo psico­ lógico: o respeito à lei, sentimento que nos é incutido desde a mais tenra infancia. O homem é induzido a obedecer à lei, não a discuti-la. Quanto a suas espécies, o poder constituinte pode ser originário e instituído ou derivado. No primeiro caso, ele dá origem a uma nova Constituição; no segun­ do, apenas a modifica parcialmente. Tomemos como exemplo o seu art. 60. O poder constituinte originário é incondicionado, não se acha submetido a nenhum princípio que não seja o daqueles que o encarnam, não se encontra vinculado a nenhuma condição. Há, também, o poder constituinte decorrente, que é o poder dos Estados-Membros, no caso do Es­ tado federal (Constituição brasileira, art. 25).

4.2.2)

0 p rin c íp io da s e p a ra ç ã o de P o de res no Estado

Bibliografia: Ar is t ó t e l e s . Política, 3. ed., Livro IV, Capítulo II, tradução de Mário da Gama Cury, UNB, 1997. b a s t o s , Celso. Curso de teoria do Estado e ciência política, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1999. f e r r e ir a f il h o , Manoel Gonçalves. Do processo le­ gislativo, 3. ed., São Paulo, Saraiva, 1995. l o c k e , John. Dois tratados sobre o governo, 10. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1998. m e ir e l l e s , Hely Lopes. Direito administra­ tivo brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984. m o n t e s q u ie u . O espírito das leis, tradução de Cristina Murachco, São Paulo, Martins Fontes, 1993. v is s c h e r , Paul. Les nouvelles tendances de la démocratie anglaise, Paris, 1947.

4.2.2.1) A n te c e d e n te s Desde que, por natural tendência, o homem passou a viver em sociedade, uma de sua maiores preocupações foi evitar o arbítrio dos governantes e seus indesejá­ veis efeitos, dentre estes a insegurança imposta à liberdade individual. Por isso, os mais antigos e respeitadores pensadores já buscavam delinear soluções para o con­ trole do poder político. Assim Aristóteles (384-322 a.C.), em sua obra clássica Po­ lítica, prenuncia a separação de funções no Estado, ideia que seria retomada, sécu­ los depois, por Montesquieu. Assim se expressa Aristóteles:

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Todas as formas de Constituição apresentam três partes em referências às quais o bom legislador deve examinar o que é conveniente para cada Constituição; se estas partes forem bem ordenadas a Constituição será necessariamente bem ordenada, e na medida em que elas diferem uma das outras as Constituições também diferem entre si. Destas três partes uma trata da deliberação sobre assuntos públicos; a segunda trata das funções públicas, ou seja: quais são as que devem ser instituídas, qual deve ser sua autoridade específica, e como devem ser escolhidos os funcionários; a terceira trata de como deve ser o Poder Judiciário. A parte deliberativa é soberana quanto à guerra e a paz e a formação e dissolução de alianças, quanto às leis, quantos às sentenças de mor­ te, de exílio e de confisco da propriedade, e quanto à prestação de contas dos funcio­ nários. Observa Celso Bastos que as três funções de que falava Aristóteles são as mes­ mas que hoje conhecemos. Talvez a sua linguagem fosse um pouco diferente. Fala­ va ele numa função consultiva que se pronunciava acerca da guerra e da paz e acer­ ca das leis; uma função judiciária e de um magistrado incumbido dos restantes assuntos da administração. Embora autores que sucederam Aristóteles tenham dissertado a respeito do tema, como fez Cícero, o fato é que a separação de Poderes só voltaria a ser anali­ sada muito tempo depois, mais precisamente nos séculos X V II e XV III, por John Locke, Bolingbroke e o próprio Montesquieu, considerado por muitos, equivoca­ damente, o inspirador original da separação de Poderes. John Locke (1632 -1 7 0 4 ), pensador inglês, já desenvolvera, em sua obra D ois tratados so b re o gov ern o, uma doutrina mais detalhadas da separação de Poderes, privilegiando, notoriamente, o Legislativo. Ouçamo-lo: Sendo o principal objetivo da entrada dos homens em sociedades eles desfruta­ rem de suas propriedades em paz e segurança, e estando o principal instrumento para tal nas leis estabelecidas naquela sociedade, a lei positiva primeira e fundamental de todas as sociedades políticas é o estabelecimento do Poder Legislativo - já que a lei natural primeira e fundamental, destinada a governar até mesmo o próprio Legislati­ vo, consiste na conservação da sociedade e (até onde seja compatível com o bem pú­ blico) de qualquer um de seus integrantes. Esse Legislativo é não apenas o poder su­ premo da sociedade política, como também é sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade o tenha antes depositado; tampouco pode edito algum de quem quer que seja, seja de forma concebido ou por que poder apoiado, ter força e obrigação de lei se não for sancionado pelo Legislativo escolhido e nomeado pelo público. Pois, não fosse assim, não teria a lei o que é absolutamente necessário à lei, o consentimento da sociedade, sobre a qual ninguém pode ter o poder de elaborar leis salvo por seu pró­ prio consentimento, e pela autoridade dela recebida.

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Quanto ao Poder Executivo, Locke observa: como as leis elaboradas de imediato e em pouco tempo têm força constante e duradou­ ra, e requerem uma perpétua execução ou assistência, é necessário haver um poder per­ manente, que cuide da execução das leis que são elaboradas e permanecem vigentes. E assim acontece, muitas vezes, que sejam separados os Poderes Legislativo e Executivo. A par do Poder Executivo, Locke vislumbra certo Poder F ed erativ o, apto a cuidar da guerra e da paz, firmar alianças e acordos com todas as pessoas e socie­ dades políticas internacionais. Esses dois Poderes, Executivo e Federativo, embora distintos, compreendendo um a execução das leis municipais da sociedade dentro de seus próprios limites sobre todos os que dela fazem parte e outro a gestão da se­ gurança e do interesse e o público externo, com todos aqueles de que ela pode re­ ceber benefícios ou injúrias, quase sempre estão unidos.

4.2.2.2) 0 prin cíp io da s e p a ra ç ã o de P o d e re s s e g u n d o M o n te s q u ie u Quanto a Montesquieu (1689-1755), mais precisamente Charles Louis de Secondat, Barão de La Brède et de Montesquieu, no clássico O espírito das leis, após considerar o Poder Legislativo como o mais importante dos três Poderes, até por­ que o povo, não podendo exercer o autogoverno, pode, todavia, fazer valer sua vontade soberana mediante seus representantes, assim se expressa no Livro 11, § 6° (D a C on stitu ição d a In g laterra): Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder execu­ tivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particu­ lares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder exe­ cutivo do Estado [...]. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratu­ ra, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para exe­ cutá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for sepa­ rado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o po­ der sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções pú­ blicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.

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Desde logo, a doutrina da separação de Poderes foi prestigiada em célebres legislações, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789, que já dizia no art. 16: “Toute societé dans laqu elle la garantie des droits riest pas assu rée, ni la sép aration d es p ou v oirs determ in ée, r ia p o in t d e co n stitu tion ”, ou “Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separa­ ção de Poderes determinada, não tem constituição”. Não demoraria, entretanto, a se delinear uma crítica robusta e profunda a seus princípios, que ocasionaria seu declínio e sua transformação num mito. Com efeito, criou-se em torno do ideário de Montesquieu a ideologia de um modelo político em que os três Poderes d ev e­ riam estar rigorosam en te sep arad os: o Executivo (o rei e seus ministros), o Legisla­ tivo (primeira e segunda câmaras, câmara baixa e câmara alta) e o Judiciário (cor­ po de magistrados). Cada um destes “ Poderes” exerceria suas atribuições sem qualquer interferência dos demais. Ora, mesmo nos primórdios da aplicação práti­ ca das ideias de Montesquieu, já se reconhecia que o Executivo poderia interferir no Legislativo, em face do direito de veto concedido ao monarca; por outro lado, o Legislativo exerceria pressão sobre o Executivo, na medida em que controla as leis que vota, podendo exigir aos ministros prestação de cotas de sua administra­ ção; por sua vez, o Poder Legislativo interferiria nas atribuições do Judiciário quan­ do do julgamento dos nobres pela Câmara dos Pares, na concessão de anistias e nos processos políticos que deviam ser apreciados pela câmara alta sob acusação da câmara baixa. Num dos maiores clássicos da Ciência Política, intitulado O federalista (The federalist), Alexander Hamilton, James Madison e John Jay advertem que a tripartição das funções do Estado não é apenas divisão, mas também equ ilíbrio. Madi­ son pregava a necessidade de disciplinar o relacionamento entre as funções do Es­ tado, mediante um sistema d e freios e con trapesos (checks an d balances), a fim de estabelecer uma interdependência entre elas. Tal interdependência autoriza qual­ quer das três funções a exercer atribuições naturalm ente peculiares a um dos res­ tantes, sem ferir, com isso, a Constituição. Assim, se tomarmos como exemplo a Constituição brasileira, veremos que o Poder Executivo pode legislar (art. 62), o Legislativo julgar (art. 5 2 , 1 e II), e o Judiciário legislar (art. 9 6 , 1, a). Assim, a ex­ pressão sep aração d e Poderes passa a ter conotação meramente política, porque ju ­ ridicam en te é equivocada. Não há, na verdade, separação de Poderes no Estado, porque o poder político é, naturalmente, uno, indivisível. Daí, ser mais apropriado o termo fu n ção, em vez de pod er. O próprio Montesquieu, diga-se de passagem, não disse haver três Poderes mutuamente isolados, mas em equilíbrio, inspirando, assim, a doutrina dos freios e contrapesos, já mencionada, de modo que cada “po­ der” limitaria os demais: L e p ou v oir arrete le pouvoir. O eminente publicista Hely Lopes Meirelles adverte que apressados seguido­ res de Montesquieu interpretaram mal seu pensamento, falando em divisão e sepa­ ração de Poderes, como se esses fossem estanques, quando é certo que o Governo

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é resultante da in tera çã o dos três Poderes do Estado. No mesmo sentido, Paul Visscher, para quem atribuir a Montesquieu a separação absoluta de Poderes é ver­ dadeira escroqueria intelectual, que representa falsear totalmente o pensamento do ilustre autor de O espírito da leis.

4.2.2.3) 0 P oder L e g isla tiv o O Poder Legislativo, como o entendemos hoje, teve origem na Inglaterra, du­ rante a Idade Média, quando a nobreza e o próprio povo tentavam limitar a auto­ ridade absoluta dos reis. Com a doutrina de Jean-Jacques Rousseau, perenizada em sua obra O con trato social, o enfraquecimento do poder real se acentuou em pro­ veito do Parlamento. Com efeito, segundo Rousseau, a soberania reside no povo, que a exprime por meio da lei. Todavia, não podendo votá-la diretam ente, p essoal­ m ente, o povo se vê compelido a eleger seus representantes, parlamentares, que agi­ rão em nome do corpo eleitoral. Ao Poder Legislativo se confere, por definição, a competência de elaborar nor­ mas segundo um processo previamente estabelecido (processo legislativo), as quais inovam a ordem jurídica. Isto não significa que apenas o Legislativo elabora nor­ mas jurídicas, pois também o Executivo e, mesmo, o Judiciário, como já vimos. To­ davia, as normas emanadas do Legislativo têm primazia sobre as outras, em face do princípio da legalidade, pelo qual ninguém se obriga a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei, vale dizer, lei em sen tido estrito, ou seja, diploma le­ gal discutido e referendado no próprio Legislativo.

4.2.2.4) 0 Estado c o n te m p o râ n e o e a d e le g a ç ã o de fu n ç õ e s A doutrina clássica da separação de Poderes não admite a d eleg ação de fun­ ções de um aos outros, como se observa nesta sugestiva passagem de John Locke: não pode o legislativo transferir o poder de elaborar leis para outras mãos, não sendo ele senão um poder delegado pelo povo, aqueles que o detêm não podem transmiti-los a outros. Somente ao povo é facultado designar a forma da sociedade política, que se dá através da constituição do legislativo, e indicar em que mãos será depositado. E quando o povo disser: submeter-nos-emos às regras e seremos governados pelas leis estabelecidas por tais homens e sob tais formas, ninguém mais poderá que outros ho­ mens devam elaborar leis para o povo, e tampouco pode ser este submetido a nenhu­ ma lei, senão àquelas promulgadas pelos indivíduos escolhidos e autorizados para for­ mular as leis da sociedade. Uma vez que o poder do legislativo deriva do povo, por uma concessão ou instituição positiva e voluntária, não pode ser ele diverso do poder transmitido por tal concessão positiva, que é apenas o de elaborar leis e não de fazer

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legisladores, de sorte que não pode ter o legislativo nenhum poder de transferir sua autoridade de elaborar leis e colocá-la em mãos de terceiros. Não obstante, a realidade hoje é outra, bem diferente dos tempos de Locke e Montesquieu. O papel proeminente do Legislativo acarretou-lhe, em contrapartida, um acú­ mulo de funções, dentre as quais, na França, a prerrogativa de anular decisões ju­ diciais, por intermédio da Corte de Cassação. Com o passar do tempo, este acúmu­ lo de tarefas trouxe consigo a própria paralisia do Legislativo. Por outro lado, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a ascensão das massas ao processo de decisões políticas agravou a situação: O sufrágio universal, que para os democratas radicais do século passado [sic], parecia ensejar a plena realização da democracia, veio, assim, abalar a estrutura des­ ta que lhes parecia perfeita, agravando gravemente o órgão no seu entender principal. Em verdade, o sufrágio universal trouxe a divisão para o seio das assembleias. Deixa­ ram estas de ser grupos primários, como eram enquanto só a burguesia participava in­ tensamente da vida política, onde as discordancias não iam além dos pormenores, para se tornarem o campo de batalha onde cosmovisões hostis e interesses de classes irre­ dutíveis, ou aparentemente irredutíveis, se digladiavam. Por outro lado, o recrudescimento das reivindicações sociais no final do sécu­ lo X IX , inatendidas em face da paralisia parlamentar, obrigou os governos a repen­ sar o processo legislativo, buscando agilizá-lo, na medida do possível, permitindo a rápida edição de normas jurídicas de alcance social. Tal fenômeno mostrou-se ainda mais evidente a partir de 1920, com a inevitável delegação de funções pelo Legislativo ao Executivo, em face das maiores possibilidades de legislar, com rapi­ dez, por parte deste. Observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho: Incapazes de fazer o que se torna imprescindível, sem coragem para tomar deci­ sões inadiáveis, porém impopulares, as câmaras dão plenos poderes ao Executivo, para que este faça o que tem que ser feito, inclusive modificando, por decreto, as leis do país, e aguente as consequências [...]. A decadência do Parlamento teve como contrapartida o engrandecimento do Executivo. De tal evolução, não mostra mais ostensiva do que a retratada nalgumas Constituições posteriores à Segunda Guerra Mundial. Nestas, o an­ tigo Executivo passou a ser visto como poder governamental, como governo.

4.2.2.5) 0 ca so b ra s ile iro : m ed ida p ro v is ó ria e lei d e le ga d a No Brasil, o fortalecimento do Executivo se manifestou mediante três espé­ cies de normas: decreto-lei, lei d eleg ad a e m ed ida provisória.

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A natureza do decreto-lei é a de um diploma híbrido entre o decreto (mero ato administrativo) e a própria lei, já que o decreto-lei tem força de lei. Trata-se, em resumo, de uma lei em sentido m aterial, pois embora não tenha fo r m a de lei, seguindo processo legislativo próprio, tem fo rça de lei. O decreto-lei surge no Di­ reito brasileiro com a Constituição autoritária de 1937, outorgada por Getúlio Var­ gas. Este passou a legislar sozinho, mediante decretos-lei, valendo lembrar que inú­ meras leis importantes da época - ainda em vigor - são decretos-lei, v. g., o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Contravenções Penais, a Consolidação das Leis do Trabalho e a Lei de Introdução ao Código Civil. Repudiado na Constituição de 1946, o decreto-lei retornou na de 1967, emen­ dada em 1969, nos seguintes termos: Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse públi­ co relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias: I - segurança nacional; 11 - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. § I o Publicado o texto, que terá vigência imediatamente, o Congresso Nacional o aprova­ rá ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado. § 2o A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência. Observa-se, no § I o, que não sendo o decreto-lei aprovado em sessenta dias, ou seja, n ão h av en d o d eliberação, o texto seria tido p or ap rov ad o. Assim, não dese­ jando os parlamentares aprovar medidas eventualmente antipáticas, ou não desejan­ do comprometer-se com o todo-poderoso Governo Militar, deixavam aquele pra­ zo fluir in alhis, sem manifestação, ficando o decreto-lei definitivamente aprovado por decurso de prazo. Por outro lado, conforme advertia o § 2°, mesmo que rejeitado pelo Congres­ so, os atos praticados durante a vigência do decreto-lei se tornavam plenam ente vá­ lidos, pois a negativa do Legislativo tinha efeito meramente ex nunc, ou seja, sem retroatividade. Ora, a redemocratização do País, em meados dos anos de 19 8 0 , culminaria na Constituição de 0 5 .1 0 .1 9 8 8 e, com esta, na m edida provisória, velada sucesso­ ra do decreto-lei, assim dispondo o art. 62, cap u t e § 3o: Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá ado­ tar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congres­ so Nacional. [...] § 3oAs medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 per­ derão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7o, uma vez por igual período, devendo o Congresso Na­ cional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.

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Comparemos o decreto-lei da Constituição de 1967 e a medida provisória da Lei Magna de 1988. Percebe-se, de imediato, que a atual Constituição favoreceu o Poder Legislativo, pois este, na Constituição anterior, em matéria de decretos-lei fi­ cava limitado a uma atitude passiva: aprovava o texto, cuja vigência era imediata (art. 55, § I o), ou o rejeitava sem poder emendá-lo, sempre no prazo de sessenta dias contados de seu recebimento. Além disso, como vimos, a rejeição de um de­ creto-lei não implicava nulidade dos atos praticados na sua vigência, o que refor­ çava, consideravelmente, o Poder Executivo. Entretanto, com a medida provisória a situação se inverteu, já que se esta não for apreciada pelo Legislativo perderá sua eficácia “ desde a edição, se não for convertida em lei no prazo de sessenta dias”, prazo este prorrogável (§ 3 o). No direito comparado, constatam-se institutos assemelhados ao decreto-lei e à medida provisória, claro, com variantes compatíveis com as peculiaridades de cada ordem jurídica. Nesse sentido, dispõem os arts. 7 7 da Constituição italiana, 86 da C onstituição espanhola, e o 1° da Lei britânica sobre o Parlam ento, de 18.08 .1 9 1 1 : Art. 77. Não pode o Governo, sem delegação das Câmaras, ditar decretos com força de lei ordinária. Quando, em casos extraordinários de necessidade e de urgência, o Governo adotar, sob sua responsabilidade, medidas provisórias (provvedimenti provvisori) com força de lei, deverá apresentá-las no mesmo dia para sua conversão em lei às Câmaras, as quais, mesmo dissolvidas, serão devidamente convocadas e reunir-se-ão dentro dos cinco dias seguintes. Os decretos perderão todo o efeito desde o início, se não forem convertidos em lei (convertiti in legge) dentro dos sessenta dias de sua pu­ blicação. As Câmaras poderão, todavia, regular mediante lei as relações jurídicas sur­ gidas em virtude daqueles decretos que não forem convertidos em lei [...]. Art. 86. [...] § I o Em caso de extraordinária e urgente necessidade, o Governo poderá editar dispo­ sições legislativas provisórias, as quais tomarão a forma de decretos-lei e não poderão conflitar com as instituições fundamentais do Estado, os direitos, deveres e liberdades dos cidadãos sob as normas do Título Primeiro, ao regime das Comunidades Autôno­ mas, nem ao Direito Eleitoral Geral. § 2o Os decretos-lei deverão ser ¡mediatamente submetidos a debate e votação pela totalidade dos membros do Congresso de Deputa­ dos, convocado para tanto, se não estiver reunido, no prazo dos trinta dias seguintes à sua promulgação. O Congresso deverá pronunciar-se expressamente, dentro de referi­ do prazo, sobre sua convalidação ou derrogação, para o qual o Regulamento estabele­ cerá um procedimento especial e sumário. § 3o Durante o prazo estabelecido no pará­ grafo anterior, as Cortes poderão fazê-los tramitar como projetos de lei, mediante o procedimento de urgência [...]. Art. I o [...] § I o Se um projeto de lei, sobre matéria fi­ nanceira, aprovado pela Câmara dos Comuns, for enviado à Câmara dos Lordes, pelo menos um mês antes do término da sessão legislativa, e nesta não for aprovado sem emendas dentro do mês seguinte, ele será apresentado à Sua Majestade, salvo se a Cã-

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mara dos Comuns decidir em contrário, e converter-se-á em ato do Parlamento, me­ diante sanção real, independentemente do voto da Câmara dos Lordes.

4.3) Soberania Bibliografia: a c c io l i , Wilson. Teoria geral do Estado, Rio de Janeiro, Forense, 1985. Darcy. Teoria geral do Estado, Porto Alegre, Globo, 1968. b o n a v id e s , Pau­ lo. Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. d a l l a r i , Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, 28. ed., São Paulo, Saraiva, 2009. m a lu f , Sahid. Teoria geral do Estado, 13. ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1982. sa lv etti n et to , Pedro. Curso de teoria do Estado, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 1964. AZAMBUjA,

O termo soberan ia deriva do latim medieval superanus e, mais recentemente, do francês souveraineté. As duas palavras latinas das quais parece derivar, realmen­ te, o vocábulo sou verain eté são, com efeito, superanus e suprem itas. A so b era n ia é o a trib u to d o p o d e r d o E sta d o q u e o torn a in dep en d en te no plan o interno e interdepen den te n o p lan o extern o. No âmbito interno, o poder so­ berano reside nos órgãos dotados do poder de decidir em últim a instância; no âm­ bito externo, cada uma mantém, com os demais, uma relação em que a igualdade se faz presente. Referindo-se à posição do estado na ordem internacional, observa o professor Dalmo de Abreu Dallari: O mundo é uma sociedade de Estados, na qual a integração jurídica dos fatores políticos ainda se faz imperfeitamente. Para o jurista, o Estado é uma pessoa jurídica de direito público internacional, quando participa da sociedade mundial. Na prática, entretanto, apesar de todas as restrições dos teóricos e dos próprios líderes políticos, o reconhecimento de um Estado como tal não obedece a uma regulação jurídica precisa, ficando na dependência da comprovação de possuir soberania. Com efeito, indepen­ dentemente de atos formais de reconhecimento, o que se exige é que a sociedade polí­ tica tenha condições de assegurar o máximo de eficácia para sua ordenação num deter­ minado território e que isso ocorra de maneira permanente, não bastando a supremacia eventual ou momentânea. Assim, pois, o que distingue o Estado das demais pessoas ju­ rídicas de direito internacional público é a circunstância de que só ele tem soberania. Esta, que do ponto de vista interno do Estado é uma afirmação de poder superior a to­ dos os demais, sob o ângulo externo é uma afirmação de independência, significando a inexistência de uma ordem jurídica dotada de maior grau de eficácia. Enfim, o poder soberano é um elemento essencial do Estado. Não há Estado sem poder soberano, pois a soberania é a qualidade suprema do poder estatal; é ela

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que distingue este poder daquele observado nos grupos sociais condicionados pelo Estado. Conclui-se disso que, nas situações em que houver poder de decisão em úl­ tima instância, haverá soberania. Vimos, por outro lado, que a soberania é um atri­ buto essencial, uma qualidade do poder do Estado, do poder político, enfim. Se o go­ verno é uma das causas form ais do Estado, a soberania é a diferença específica de tal governo, é seu traço identificador. Haverá soberania nos casos em que houver p oder de d ecisão em últim a instância, sendo este o único critério distintivo do Estado. Graças à soberania, o Estado torna-se uma sociedade con dicion an te, ao pas­ so que as sociedades menores tornam-se con d icion adas pelo Estado. Daí a assertiva do professor Pedro Salvetti Netto: Assim como todas as sociedades possuem normas, mas as leis, que se originam do Estado, se sobrepõem àquelas emanadas de outros organismos sociais, estes tam­ bém, não dispensando o poder, sujeitam-se ao mando que caracteriza a sociedade po­ lítica. E isso porque o Estado é soberano, não reconhecendo nenhum outro poder que se lhe iguale, no limite de seu território. A Antiguidade já intuía a diferença entre as leis que estruturavam a organiza­ ção política e as que eram criadas por órgãos do governo, isto é, já havia uma dis­ tinção fugaz entre as leis con stitu cion ais e as leis que poderíamos denominar leis ordinárias. Em sua obra A política, Aristóteles faz tal distinção, e no direito público de Ate­ nas havia a noção de que certas leis pertinentes à própria estrutura política da polis, como as que estabeleciam a cidadania, eram superiores às demais. Tal superioridade era garantida por um procedimento que poderia ser tido como o ancestral da nossa a çã o direta d e inconstitucionalidade, que, geralmente se pensa, é uma criação do Di­ reito Constitucional moderno. Por intermédio daquele procedimento era possível im­ pugnar a criação de leis que contradissessem as normas fundamentais, concernentes à estrutura fundamental da cidade-Estado ateniense. Séculos depois, com as invasões dos bárbaros no Império Romano, fenôme­ no que assinala o início da Idade Média, surge o Feudalism o, como resultado des­ te marco histórico. O feudalismo, sistema político, social e econômico, fundava-se numa economia agrária, na qual cada castelo feudal buscava, mesquinhamente, perdurar independentemente dos demais. Surge a classe dos sen hores feu dais, de um lado, e a dos servos d a g leba , de outro. Politicamente, o poder não se conser­ vou centralizado como no Império Romano, mas fragmentou-se em miríades de se­ nhorios feu dais. Cada senhorio possuía, por direito próprio, uma parcela do poder político, e nas suas lides impunha seus costumes e suas leis. Na Alta Idade Média, a partir do século X I da Era Cristã, a sociedade feudal converteu-se em estam entária, vale dizer, formada por estam en tos. Que vem a ser um estamento? É uma ca­ mada social que compete com outras, dentro de uma rigidez relativa. Naquele pe-

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ríodo histórico o rei, a nobreza, o clero e o povo formaram estamentos que lutavam para ascender politicamente e exercer o poder soberano. Suprem as, ou sovrain (na França), tornava-se o estamento que passasse a exercer seu poder soberano sobre os demais. Daí a expressão soberan ia, como já vimos. Mais tarde, as lutas religiosas causadas pela Reforma ameaçaram destruir a própria sociedade civil; na França, tal perigo foi conjurado com o surgimento de uma sociedade intitulada “Os Políticos”, que pregava a necessidade de um poder supremo, soberano, que reinasse sobre os litigantes, sobre toda a nação, enfim. Nes­ sa sociedade pontificou Jean Bodin, autor de uma obra intitulada Os seis livros da R epú blica, precursora do Estado absolutista.

4.3.1) A d o u trin a p a c tis ta m e d ie va l Quanto à titularidade da soberania, são inúmeras as doutrinas a respeito. A doutrina pactista medieval ensinava que todo o poder vem de Deus: Om nis potestas a D eo ; mas, de tal poder, tinha um intermediário: o povo. Então, O m nis potestas a D eo sed p er popu lu m , isto é, “Todo poder vem de Deus, por intermédio do povo”. O consentimento popular, tacitam en te m an ifestado, seria a fonte do poder político. Tal consentimento importaria num verdadeiro pacto, o chamado pactum subjectionis.

4.3.2) A d o u trin a do c o n tra to s o c ia l A doutrina pactista medieval não deve ser confundida com a do contrato so­ cial, que se desenvolve a partir do século X V I, para acentuar-se nos séculos XV II e XVIII. Há uma diferença sutil entre a doutrina pactista m edieval e a doutrina d o con ­ trato social: A doutrina pactista m edieval via n o a c o rd o d e vontades a fon te d o g o ­ verno, ap en as; m as a doutrina d o con trato so cia l via em tal a c o rd o d e vontades a fon te d a p róp ria socied ad e. Para a doutrina pactista medieval a fonte da sociedade era a inclinação natu­ ral do homem, como predicava Santo Tomás de Aquino, era a sociabilidade inata do homem; mas os autores que difundiram a ideia do contrato social viam, neste contrato, a própria fonte da sociedade. A doutrina do contrato social pode ser ana­ lisada na célebre Escola do Direito Natural e das Gentes, encabeçada por Hugo Grócio, e nos três mais significativos autores da doutrina contratualista: Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Afirmava Hobbes que, se não existisse a sociedade, os homens estariam em guer­ ra continuamente: o homem seria lobo do próprio homem (hom o hom ini lupus). Para evitar tais males, os homens abdicariam de sua liberdade em favor de um m on arca, cuja função seria manter a paz. O monarca não seria p arte no contrato

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social; seria mero beneficiário de uma delegação. Haveria um ato que, em direito civil, denominaríamos estipulação em favor de terceiro. Com a Revolução Francesa, são consagradas duas doutrinas de relevo sobre a soberania: a da soberania popular, segundo Jean-Jacques Rousseau, e a da sobe­ rania nacional, de Emmanuel Joseph Siéyès. Em sua obra clássica O con trato social, Rousseau afirma que o poder só é le­ gítimo quando se origina da vontade de todos os que serão governados. Para que o Estado seja legitimado, o poder estatal deverá estar em mãos de todos os indiví­ duos que compõem o povo. Haverá, portanto, legitimidade somente se houver iden­ tificação entre governantes e governados, vale dizer, as decisões fundamentais de­ vem partir da vontade geral, sendo esta a vontade dos cidadãos sobre problemas de interesse comum. Segundo Rousseau, já se vê, todo cidadão, no Estado consti­ tuído legitimamente, é um soberano, é parte da soberania. Cada cidadão é deten­ tor de uma fração da soberania. Se o Estado possuir 10 mil cidadãos, cada um des­ tes será titular da fração correspondente da soberania. Conclui-se, então, que a participação política do cidadão não deve ser compulsória, pois o direito de votar não implica um dever d e votar. Por outro lado, sendo a soberania uma prerrogati­ va personalíssima, ela é, por via de consequência, indelegável. Por isso Rousseau não acreditava na representação política e refugava os chamados representantes do p o v o . Vale notar, porém, que a ideia rousseauniana de que o governo só é legítimo quando to d o s os cidadãos participam da tomada das decisões fundamentais deve ser apreciada em termos. Não pretende Rousseau que to d o o povo tome e execu te as decisões; com efeito, todos os cidadãos devem participar da formação da von­ tade geral, mas a a p lica çã o das medidas decorrentes desta vontade pode ser feita por todos, por alguns ou, mesmo, por um único homem. Considera Rousseau, em face disso, que as três formas básicas de governo, monarquia, aristocracia e demo­ cracia, poderiam ser legitimadas, com exceção da democracia, porque somente um povo de deuses poderia, simultaneamente, tomar as decisões e aplicá-las: “Se hou­ vesse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Governo tão perfeito não convém aos homens” (O con trato social, Livro III, Capítulo IV, parte final). Esta doutrina de Rousseau, então, é a doutrina da soberania popular. Ela não se confunde com a doutrina da soberania n acion al, preconizada por Emmanuel J o ­ seph Siéyès (174 8 -1 8 3 6 ), a qual, na verdade, tem uma importância prática muito maior. Afirma Siéyès que o poder do Estado não é exercido em nome do povo, mas em nome da nação. O que é a nação, entretanto? Para conceituar a nação, Siéyès começa por dizer que, numa sociedade historicamente considerada, existem inte­ resses momentâneos, os quais não se confundem com os interesses perm anentes das gerações que se sucedem no tempo. P ovo, em tal concepção, seria uma comunida­ de concreta, presente, historicamente considerada; seria o conjunto das pessoas con­ temporâneas que formaria o elemento humano do Estado num dado momento. Ora, se o fundamento da soberania fosse a vontade do povo, comunidade limita-

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da no tempo, os interesses permanentes das gerações em sucessão poderiam ser ir­ remediavelmente lesados. O supremo poder do Estado, adverte Siéyés, deve estar dirigido aos interesses permanentes da sociedade. As gerações que se sucedem cons­ tituem a nação, entidade espiritual que é o fundamento da soberania. A nação, en­ tretanto, é uma entidade imaterial. Como fazer valer a sua vontade? Diretamente, como na doutrina da soberania popular, seria impossível. É preciso, então, que a nação seja rep resen tad a por aqueles que atuem em seu nome, segundo os interes­ ses permanentes e definidos da sociedade. Quem escolherá, entretanto, os represen­ tantes da nação? Tais representantes serão escolhidos por aqueles que a nação de­ signar como eleitores. Então os representantes da nação serão eleitos pelo povo todo, ou por uma parcela deste, conforme institucionalizado em lei. Disso decorre que o voto não representa um direito, mas um dever, um munus. Além disso, se é a nação quem vai selecionar o corpo eleitoral destinado a eleger seus represen­ tantes, é evidente que ela pode restringir ou ampliar o número de participantes do sufrágio. Em face disso, por influência do próprio Siéyès, todas as Constitui­ ções da França revolucionária adotaram o chamado sufrágio censitário. Somen­ te em 1848 foi instituído, neste país, o sufrágio universal, ainda assim sem parti­ cipação das mulheres. O destaque de maior importância no raciocínio de Siéyès é que, sendo a representação fundada na Constituição, e não na vontade do eleito­ rado, e levando-se em conta que os representantes da nação representam esta, e não seus eleitores, fica rompido um possível vínculo jurídico entre eleitor e eleito, pas­ sando a representação política a ter natureza institucional e não consensual. A res­ cisão da investidura do representante da nação não parte mais da vontade do elei­ tor, mas apura-se, tão som ente, nos term os da C on stituição. Já se vê que o representante da nação não tem instruções de seus eleitores a cumprir, nem contas a prestar, a menos que infrinja a Constituição. Antes da Revolução Francesa, havia o m an d ato im perativo, pelo qual o representante de cada estamento comparecia às reuniões apenas para formalizar a vontade de seus representados perante o gover­ no e, se não cumprisse sua obrigação, seria substituído. Com Siéyès, entretanto, o representante do povo passou a ser representante da n ação, incumbido de repre­ sentar, com total liberdade e sem a pressão do eleitorado, os interesses permanen­ tes da nação. Modernamente, em face do progressivo declínio dos parlamentos, en­ sejado por fatores que não vêm, por ora, à balha, percebe-se que a doutrina da soberania nacional originou, em verdade, não uma democracia com fundamento na nação, mas uma oligarquia parlamentar, totalmente divorciada dos interesses populares, não sendo de todo falso afirmar que soberana não é a nação, mas o par­ lamento. Com o passar do tempo, as doutrinas da soberania popular e da soberania nacional acabaram por se fundir, mesmo porque, como se tornara difícil definir a nação, esta foi identificada com o povo, afirmando-se que o povo é o soberano (!), nos termos, porém, do pensamento do Siéyès, vale dizer, com total independência

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para os seus representantes, perante o eleitorado. É o que se constata, de imediato, por exemplo, da leitura conjunta dos arts. 53, 55 e 56 da Constituição brasileira. Como reação aos princípios da soberania nacional, Constituições modernas voltaram-se para o m an d ato im perativo, buscando vincular, juridicamente, o eleitorado aos seus representantes, podendo estes ser afastados do cargo pelos próprios elei­ tores. Assim fizeram algumas Constituições modernas, que, embora desaparecidas, são recentes, como a da extinta União Soviética e, ainda em vigor, a de Cuba. Se, para alguns, a soberania pode ter por fundamento o povo (Rosseau) ou a nação (Siéyès), há quem afirme que a soberania pertence ao próprio Estado, como o fazem Georg Jellinek e Hans Kelsen. O Estado precede o Direito; este é criado por aquele. Só há um Direito: o Direito Positivo, criado e imposto pelo Estado. Não existe, portanto, um direito natural e, mesmo, um Direito Internacional, em face da ausência da coercibilidade, inerente à norma de direito positivo, estatal. Depreende-se disso que não há limitação ao poder do Estado. Vale notar que a soberania é una e indivisível, características que lhe são es­ senciais. Em princípio, a soberania é una porque não pode existir mais de um poder soberano num mesmo Estado. Se o adjetivo “ soberano” significa “supremo”, “su­ perior”, como admitir duas entidades “soberanas”, concomitantemente, numa mes­ ma sociedade política? A indivisibilidade da soberania é corolário de sua unidade. Como adverte Sahid Maluf, o poder soberano delega atribuições, reparte compe­ tências, mas não divide a soberania. Não há que falar, portanto, em p od eres d o E s­ tado, como na célebre tripartição d e Poderes que nos vem de Aristóteles a Montesquieu, e que se consagra na Constituição brasileira, art. 2 o. Não há, em verdade, três Poderes, mas três órgãos, cada qual atuando, de forma soberana, na esfera d e sua com petên cia.

4.3.3) A d o u trin a da s o b e ra n ia lim ita d a Trata-se de uma doutrina formulada pela União Soviética, durante a chama­ da “Guerra Fria” consequência imediata da Segunda Guerra Mundial, caracteriza­ da por uma tensão permanente entre os dois grandes blocos ideológicos vencedo­ res, o comunista soviético e o capitalista ocidental. A ideia de soberania “limitada” foi afirmada pelo líder soviético Leonid Brezhnev em 1968, por ocasião da invasão militar da Checoslováquia pelas tropas soviéticas, consistindo, basicamente, no rí­ gido controle político dos Estados socialistas “ satélites” da hoje extinta União So­ viética, que fruiriam de uma liberdade ou soberania meramente relativa, para evi­ tar a desintegração do império soviético. Na verdade, a doutrina de Brezhnev foi, simplesmente, uma reação contra a chamada D outrina Truman, divulgada em mar­ ço de 1 947, pelo próprio Truman, no Congresso norte-americano, e que preconi­ zava a intervenção dos Estados Unidos naqueles Estados que, apoiando a política

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norte-americana, estivessem ameaçados por minorias ativistas paramilitares prósoviéticas.

4.3.4) G lo b a liza çã o e so b e ra n ia O fenômeno da globalização da economia mundial se expressa na abertura dos mercados, no livre comércio, na eliminação de barreiras fiscais em favor deste, no fluxo internacional de capitais, no fortalecimento das empresas multinacionais, na internacionalização da tecnologia e, mesmo, no notável incremento do turismo internacional. Como observa Rodrigo Borja, nesta nova ordem econômica interna­ cional o capital criou sua própria “soberania” . Com efeito, o capital, especialmen­ te o especulativo, move-se com espantosa rapidez e total liberdade, escolhendo os Estados que adotará como fonte de renda. Conforme suas conveniências, em ques­ tão de segundos salta as fronteiras dos Estados, emigrando em busca de maior lu­ cro. Quando um Estado deixa de oferecer condições vantajosas para este capital, é imediatamente sancionado com a desinversão, formando-se o pânico nas suas bol­ sas. Impossível evitar, então, a perda do controle de sua economia e criar alterna­ tivas independentes da especulação internacional. Assim, forçoso reconhecer que o poder p o lític o dos Estados vem a ser superado pela planificação econômica das grandes empresas multinacionais, que dispõem da economia mundial em favor de seus interesses, sem considerar as conveniências sociais (E n ciclopédia d e la políti­ ca, M éxico, Fondo de Cultura Económica, 1997).

4.4) Ordem jurídica Bibliografia:

Hans. Teoria pura do direito, São Paulo, Acadêmica, 1939. sa l Pedro. Curso de teoria do Estado, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 1984. t e l j r ., Goffredo. O direito quântico, São Paulo, Max Limonad, 1985. k e l se n ,

vetti n etto, le s

O homem é um ser social. Em sociedade, ele alcança seus objetivos individuais e satisfaz sua tendência gregária, formando, a partir da célula familiar e o municí­ pio, o próprio Estado, sociedade condicionante das demais e dotada de poder so­ berano. Ao viver comunitariamente, entretanto, o homem não apenas age, mas tam­ bém interage, passando por um processo de integração paulatina denominado socialização, sendo disciplinado em suas relações de amizade, cortesia e, principal­ mente, em suas relações jurídicas, estas garantidas pelo Estado. Assim, o poder po­ lítico tem por missão principal ordenar a vida em sociedade, sendo seu fundamen­ to, diga-se de passagem, manter a paz social. Disciplinando as relações jurídicas

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entre as pessoas, o Estado ordena a vida humana, conferindo-lhe uma direção con­ sagrada por determinada concepção de ordem. O vocábulo ordem traz consigo um radical antiquíssimo, de origem sánscri­ ta: or, que significa diretriz, rumo a seguir. Por isso, ele sempre está presente em ter­ mos an álogos, conexos; por exemplo, oriente, orientar, nortear, formar, forma, con­ tornar. Assim, ordem implica a ideia de forma, podendo ser definida como a unidade na m u ltip licid ad e ou a conveniente disposição de elementos para a realização de um fim. E como o Estado ordenaria, coativamente, a vida em sociedade? Mediante a imposição de normas jurídicas. E o que é uma norma? Norma é uma diretriz de conduta socialmente estabelecida. Quanto à norma jurídica, é uma diretriz de con­ duta socialmente estabelecida pelo direito positivo. Curiosamente, o vocábulo n orm a, de origem latina, significava régua, esqua­ dro, algo que é d ireito, reto, e não sinuoso, incerto. No direito romano, o jus positum era o direito criado pelo Estado e, portan­ to, posto, imposto, positivo. Daí direito positiv o, isto é, direito imposto, norma es­ tatal dotada de coercibilidade. Veja-se que o termo norma traz, como não poderia deixar de ser, o mesmo ra­ dical sánscrito or, encontrado na palavra ordem, daí a analogia. Para que haja or­ dem, é preciso que existam normas que definam o que pode e o que não pode ser feito ou deixado de fazer. Se observarmos, com atenção, quantas normas, das mais variadas naturezas, cumprimos durante nosso cotidiano, ficaremos impressionados. Normas de polidez, de afeto, de caráter religioso e, principalmente, jurídicas. Es­ tas, já se disse, são dotadas de coercibilidade, vale dizer, possibilidade do emprego da violência física (vis m aterialis), pelo Estado, para que alguém faça ou deixe de fazer algo, restando evidente que a coerção somente pode ser exercida quando au­ torizada pela norma jurídica, por exemplo, a legítima defesa. Coercibilidade deriva de coerção, violência corporal, ao contrário de coação (coatividade), que denomina a pressão meramente psicológica, por exemplo, a sim­ ples ameaça. Não houvesse ordem jurídica e teríamos o caos, a desordem. Alguns filósofos do Direito não admitem a existência da desordem, pois sen­ do o conceito de ordem eminentemente subjetivo, ideológico, a desordem seria, tão somente, uma ordem inconveniente. Não foi sem razão que Aristóteles, o grande filósofo da Antiguidade Clássica, afirmou que, “onde houver sociedade haverá direito” (u bi societas ibi jus). Viven­ do em sociedade, os homens poderão dispensar uma série de bens úteis, mas não essenciais; entretanto, não poderão, jamais, dispensar a ordem jurídica. Mesmo os regimes políticos mais despóticos e injustos não podem deixar de se amparar num mínimo de legalidade; em caso contrário eles próprios naufragariam na desordem e na insegurança. Então, deve haver uma ordem imposta na vida em sociedade.

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Um dos maiores teóricos do absolutismo monárquico, o inglés Thomas Hobbes, enfatizava, no seu livro célebre intitulado L eviatã, que o homem é lobo do próprio homem (h om o bom in i lupus), vale dizer, o ser humano é perverso por índole, e seu instinto pernicioso somente pode ser controlado por um poder político severo, am­ parado numa ordem jurídica férrea. Esta ordem se formaliza, toma forma de normas jurídicas. Pois bem, todas as normas jurídicas de uma ordem jurídica consistem no elemento m ultiplicidade, que, como vimos, integra o conceito de ordem. Mas é preciso que ha ja outro elemento neste conceito, qual seja, a unidade, fornecido pela razão. Já se percebe que a ordem jurídica é uma estrutura. O que vem a ser, entretanto, uma estrutura? É uma dispo­ sição harmoniosa das partes para a realização do todo. Várias notas musicais emi­ tidas ao léu não formam, necessariamente, uma melodia pois, embora formando o elemento multiplicidade, carecem de unidade até que o compositor lhes dê uma dis­ posição estética conveniente. Vejam a paleta na qual um pintor derrama suas tintas, a fim de iniciar a pintura da paisagem que contempla. Essas tintas estão em desali­ nho; formam uma multiplicidade que não satisfaz, por si só, o artista. Mas quando elas forem dispostas, convenientemente, na tela em branco, teremos, sem dúvida, complementado o conceito de ordem, de estrutura. Ora, a ordem jurídica é uma es­ trutura an á lo g a a uma estrutura musical ou plástica, mas não idêntica. Sim, a or­ dem jurídica não é idêntica às demais estruturas, pois possui uma característica que lhe é essencial e que, portanto, a distingue das outras: a hierarquia entre suas partes (normas) integrantes. As normas jurídicas de uma ordem jurídica não estão no mes­ mo plano de eficácia, de força; estão, isto sim, dispostas hierarquicamente, sob o im­ pério da C onstituição. Qual o fundamento desta ideia? Se abrirmos uma coletânea de legislação e a analisarmos detidamente, vere­ mos que ela apresenta uma estrutura, uma ordem que pareceu convenien te ao le­ gislador. Cada um dos dispositivos se relaciona, direta ou indiretamente, com os demais. Inicialmente, um preâmbulo, contendo epígrafe, parágrafos, incisos e alí­ neas, tudo disposto harmoniosamente, orden adam en te. O complexo de normas ju­ rídicas em vigor numa sociedade não se acha disposto mecanicamente, mas sim de modo organizado, ordenado, formal. As normas jurídicas não se acham soltas, iso­ ladas umas das outras; umas dependem de outras, umas complementam outras. A ordem jurídica é uma estrutura, um conjunto harmônico, orgânico, e não mera soma de partes simplesmente justapostas, em desconexão. Assim, a ordem jurídica bem se assemelha às notas de uma melodia, à disposição ordenada dos capítulos de um livro. Ela possui, contudo, uma característica sui generis: a hierarquia entre as normas. Uma norma só é válida se não conflitar com a ordem jurídica da qual faz parte. Uma lei, um contrato, uma sentença judicial somente são válidos se esti­ verem em conformidade com os demais diplomas legais. Foram Hans Kelsen e Adolf Merkel que interpretaram a ordem jurídica como uma pirâmide escalonada, no topo da qual se acha a Constituição. Desta derivam todas as demais normas, sem­

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pre hierarquicamente. Assim, a Constituição não pode ser ferida por uma lei ordi­ nária, nem um decreto regulamentar pode dispor de modo contrário à lei que ele próprio está regulamentando. Numa passagem de grande vigor intelectual e de cla­ reza, Hans Kelsen (1939, p. 60-1) sintetiza seu pensamento a respeito: O Direito, como ordem - a ordem jurídica - é um sistema de normas jurídicas. E a primeira pergunta a que é preciso responder, formula-a a Teoria Pura do Direito pela maneira seguinte: o que é que estabelece a unidade de uma pluralidade de nor­ mas jurídicas? Por que razão uma determinada norma jurídica pertence a um certo sis­ tema de Direito? Uma pluralidade de normas constitui uma unidade, um sistema, uma ordem, se a sua validade puder ser referida a uma norma única como último funda­ mento dessa validade. Essa norma fundamental constitui, como última fonte, a unida­ de da pluralidade de todas as normas que constituem uma ordem. E se uma norma pertence a uma determinada ordem, é porque a sua validade pode ser referida à nor­ ma fundamental dessa ordem. Conforme a espécie de norma fundamental, isto é, con­ forme a natureza do princípio de validade, podemos distinguir duas espécies de ordem (sistemas normativos). As normas da primeira valem por si, quer dizer, a conduta por elas prescrita ao homem impõe-se pelo seu conteúdo, o qual possui uma determinada qualidade, de evidência imediata, que lhes confere essa validade. E as normas obtêm esta qualificação concreta pelo fato de estarem relacionadas com uma norma funda­ mental, a cujo conteúdo está submetido o conteúdo das normas constitutivas da or­ dem em questão, como o particular se subsume ao geral. São desta espécie as normas da moral. Por exemplo, as normas “não deves mentir”, “não deves enganar”, “deves cumprir tuas promessas” etc. derivam da norma fundamental da veracidade. Suponha­ mos a seguinte norma fundamental: “deves amar o próximo”; podemos referir-lhe uma enorme quantidade de normas derivadas: “não deves prejudicar os outros”, “deves au­ xiliar o teu próximo em caso de necessidade” etc. Não nos interessa saber, aqui, qual é a norma fundamental de um determinado sistema de moral. Trata-se, na verdade, de compreender que as diversas normas da moral já se acham compreendidas numa nor­ ma básica, da mesma maneira que o particular está contido no geral e que, por isso, todas as normas particulares da moral podem fazer-se derivar, mediante uma opera­ ção lógica, da norma fundamental, procedendo a uma dedução do geral para o parti­ cular. As normas jurídicas criadas pelo Estado são incontrastáveis, somente limita­ das por outra norma estatal. Essas normas jurídicas, cuja fonte é o Estado, formam um todo denominado direito positivo, isto é, o direito impositivo, p o sto , im posto, enfim. O conjunto de tod as as n orm as jurídicas n o E stad o chama-se, então, direi­ to objetiv o. D ireito o b jetiv o é o conjunto de todas as normas jurídicas em vigor no Estado; são normas de direito objetivo a Constituição, o Código Civil, os contra­ tos e os atos administrativos. Porém, é preciso fazer uma distinção: somente a Cons­

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tituição, o Código Civil, o Código Penal e outras leis oriundas d o Estado formam o direito positivo. Todas as normas jurídicas são de direito objetivo, mas somente as normas jurídicas provenientes do Estado são normas de direito positivo, porque se im p õem a todas as outras.

4.5) Causa final: o bem comum Bibliografia: b i g o , Pierre. A doutrina social da Igreja, São Paulo, 1969. c a b r a l d e Luís. Problemas de filosofia política, Coimbra, Arménio Amado, Sucessor, 1963. DALLARi, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado, São Paulo, Moderna, 1980. d u v e r g e r , Maurice. Os regimes políticos, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1966. f e r r e ir a f il h o , Manoel Gonçalves. A democracia possível, São Paulo, Saraiva, 1979; e Curso de direito constitucional, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 1982. g a lv ã o , Paulo Braga. Os direitos sociais nas constituições, São Paulo, 1981. k e l s e n , Hans. Teoria pura do direito, Coimbra, Arménio Amado, Sucessor, 1979. l a s k i , Harold J. O mani­ festo Comunista de Marx e Engels, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. m o n t e s q u ie u . Oeuvres complètes, Paris, Hachette, 1859. p io x i . Encíclica Quadragésimo Anno, 3. ed., São Paulo, 1981. r u t t e n , O. P. G. C. A doutrina social da igreja segundo as encíclicas Rerum Novarum e Quadragésimo Anno, São Paulo, 1946. sa l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. s o u z a , José Pedro Gal­ vão de. Conceito e natureza da sociedade política, São Paulo, 1949. t e l l e s j r . Goffredo. O direito quântico, 6. ed., São Paulo, Max Limonad, 1985. moncada,

B em é tudo o que seja objeto do desejo humano. As coisas não constituem bens em si mesmas, sendo necessário que se lhes atribua um valor. Que é valor? É a importância que se atribui a um bem. Neste sentido, elucida o professor Goffredo Telles Júnior: De fato, a palavra valor, quando empregada corretamente, em seu sentido pró­ prio, não designa a essência e a existência de coisas. Uma coisa não pode ser um va­ lor. Não se pode dar a uma coisa o nome de valor, a não ser que se falsifique o senti­ do da palavra valor. Quando dizemos os valores estão no cofre, o que realmente queremos dizer é que os bens de valor estão no cofre. Nem mesmo seres ideais podem ser valores. A santidade (ou o santo), por exemplo, não é um valor. Afirmar que a san­ tidade é um valor é o mesmo que afirmar que uma joia é um valor. Mas uma joia não é um valor. Ela é um bem. É um bem a que se atribui valor. É uma coisa valiosa. Igual­ mente, a santidade é um bem de valor. Mas não é um valor em si. A santidade tem va­ lor, mas somente para quem vê nela um ideal de vida, um ideal mais alto do que os ou­ tros ideais.

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Ora, a valoração dos bens varia no tempo e no espaço. Os valores sociais têm uma existência histórica, não são perpétuos nem imutáveis numa mesma socieda­ de, alterando-se conforme o ensejarem novas circunstâncias. Cada sociedade, em diferentes épocas, adota uma tábua de valores e, desta formulação, concebe e ado­ ta as normas jurídicas e morais. A norma jurídica não se origina apenas do fa to e da inteligência, pois, quando o intelecto valora um fato, o faz com fundamento nos valores adotados pela comunidade. A m oral social, tida como o conjunto dos valores sociais, confunde-se com a concepção do que é ju sto em determinada sociedade. Tal concepção chama-se con ­ sen so social. Não é difícil depreender, então, que nem sempre a ordem jurídica é justa, embora seja, necessariamente, legal. A ideia de ju sto ou de legitim idade de uma ordem jurídica fundamenta-se no con sen so social. A norma jurídica, essencial­ mente legal, somente será legítima se estiver conforme o con sen so social. Embora a ordem jurídica tenha por objetivo final o hem com um , consubstanciado na ideia de justo, nem sempre tal finalidade é alcançada, pois, justa ou injusta, nem por isso a norma jurídica, enquanto válida, deixa de ser legal. Conclui-se dessa breve digressão introdutória que o conceito de hem com um varia no tempo e no espaço. Causa final da sociedade política, o bem comum deve ter como objetivo a plena realização espiritual e física do homem. O Estado não é mais do que um meio de realização do bem comum, e para tanto deve atuar inci­ sivamente, sem ferir, contudo, a liberdade e a iniciativa individuais, caso contrário cairíamos no totalitarism o, mesmo porque, se a concepção totalitária de bem co ­ mum supera, inquestionavelmente, a visão limitada do individualismo, o preço a ser pago por essa superação é de tornar cada ser humano mera parcela do todo so­ cial, puro instrumento de um todo. Por outro lado, houve época, mais precisamen­ te o século XVIII, em que o bem comum foi definido como a ordem jurídica, como sinônimo de p a z social. Sim, bem comum era, então, a mera conservação da ordem social. Estávamos, na oportunidade, em pleno apogeu do Século das Luzes, perío­ do de esplendor do Ilum inism o, doutrina que, como o próprio nome revela, pre­ tendeu libertar o homem “das trevas da superstição medieval”, mostrando-se o reto caminho das luzes d a razão. Foi aquele o século do racionalism o, que culminaria na Revolução Francesa, e também do individualism o e do cid a d ã o abstrato.

4.5.1) 0 lib e ra lis m o e o bem com um Absoluta e unánimemente, todos os sistemas políticos se declaram adeptos da liberdade individual. Infelizmente, o conceito de liberdade não é unívoco; ele varia com o tempo. Há uma liberdade de tempos de guerra que não é, absolutamente, uma liberdade de tempos de paz; há uma liberdade de época de fartura que não é, evi­ dentemente, a mesma liberdade de tempos de escassez. Enormes divergências entre os homens residem, com certeza, na disparidade das interpretações da liberdade.

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Aquilo que para uns é liberdade, para outros é exatamente o oposto desta. Aliás, a renúncia à liberdade é, para alguns, a suprema liberdade. No campo da doutrina, a essência da liberdade também está longe de ser revelada. Observa, acuradamente, o grande Montesquieu, que não há palavra que te­ nha mais acepções e que tenha tanto impressionado os espíritos como a palavra li­ berd ad e. Cada homem denomina liberdade ao governo que mais se ajusta aos seus costumes e inclinações pessoais; porém, é mais frequente que a coloquem os povos na república, não a percebendo nas monarquias, porque naquela não têm, sempre, diante de seus olhos, os motivos de seus males. Afinal, como nas democracias o povo tem mais facilidade para fazer quase tudo o que deseja, colocou a liberdade nos governos democráticos e confundiu o poder do povo com a sua liberdade. Afirma, ainda, que é verdade que, nas democracias, o povo, aparentemente, faz o que deseja. A liberdade política, porém, não significa fazer o que se quer. Em qualquer Estado, em qualquer sociedade dotada de leis, a liberdade consiste em po­ der fazer o que se deve querer e em não ser obrigado a fazer o que não se deve que­ rer. É preciso distinguir, prossegue, entre in dependência e liberdade. A liberdade é o direito de fazer o que as leis permitem, e, se cada um de nós pudesse fazer o que as leis proíbem, não haveria mais liberdade, porque todos teriam o mesmo poder. Hans Kelsen, criador da célebre teoria pura d o direito, definiu, num primeiro momento de sua vida, a liberdade como a ausência de quaisquer laços obrigatórios para o indivíduo, posição esta reformulada mais tarde, quando passou a ver na li­ berdade política uma autodeterminação conseguida pela participação do indivíduo na criação da ordem social. Outro eminente publicista francês, Léon Duguit, defi­ nia a liberdade como o poder que pertence ao indivíduo de exercer e desenvolver sua atividade física, intelectual ou moral, sem que, com isso, o Estado lhe possa de­ terminar outras restrições senão aquelas necessárias à proteção da liberdade de to­ dos. Ainda assim, a exemplo de Kelsen, Duguit mudaria, mais tarde, sua concep­ ção de liberdade, redefinindo-a em forte matiz socialista, declarando que cada vez mais o Estado faz penetrar em seu ordenamento jurídico o elemento socialista. Tal postura revela bem a intervenção do poder político no domínio económico-cultu­ ral, a fim de impedir que a liberdade dos fracos seja sufocada pela liberdade de uma minoria, proporcionando, ademais e a todos, um nível de vida que ofereça um mí­ nimo de decência aos menos favorecidos. Já para Harold Laski, a liberdade será inatingível até que a paixão da igualdade seja satisfeita. Georg Jellinek afirmou, por sua vez, que a vida do gênero humano gira, perpetuamente, em torno de dois valo­ res: indivíduo e coletividade. O equilíbrio entre ambos ainda não foi alcançado: ora predomina um, ora outro. Silva Telles, publicista pátrio, afirma que as duas ideias essenciais da democracia, liberdade e igualdade, assim como foram apresen­ tadas pelos pensadores da era do Iluminismo e assim como se desenvolveram na teoria política das ideologias modernas, são dois conceitos que, na prática, se hos­ tilizam e se excluem. A liberdade - prossegue - possibilita o desenvolvimento das

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diferenças entre os homens, e estes, dotados de inclinações diversas e deixando-se plasmar por perspectivas diferentes, criarão condições em que alguns poucos do­ minarão os muitos, e estes, dominados, deixarão de ter a liberdade apregoada. O resultado de certa concepção de liberdade, então, é a desigualdade econômica. Dian­ te da pressão social, o Estado intervém para nivelar as condições de vida; interfe­ rindo, ofende a liberdade de alguns ou de muitos e, quanto mais procura impor a justiça igualitária, mais reduz a liberdade, até suprimi-la de vez. Não é à toa que o individualismo excessivo acarreta males gravíssimos para a vida em sociedade, propiciando tiradas muito bem postas, como esta: “O Estado que quisemos fraco demais para não nos oprimir foi também fraco demais para nos defender” , de Bossuet. Ou esta outra: “Entre o fraco e o forte, a liberdade opri­ me e a lei liberta”, de Lacordaire. Lenin, o grande revolucionário inspirador da re­ volução socialista da Rússia, costumava dizer: “A liberdade é um bem tão precio­ so que deve ser racionada”. Crítica bem posta, consciente e esclarecedora é a formulada pelo eminente jurisfilósofo Cabral de M oncada, em preciosa síntese: São conhecidos os excessos a que conduziu o liberalismo econômico e político, justamente pelos meados do século XIX: o egoísmo desenfreado dos chefes de empre­ sa; o seu espírito de lucro insaciável; a baixa constante dos salários a um nível incom­ patível com toda a dignidade da vida humana; o desemprego das multidões proletá­ rias, com a destruição, por vingança, das máquinas da indústria algodoeira em Inglaterra; o trabalho desumano das mulheres e das crianças nas fábricas; o dia de trabalho das doze e mais horas sem limite; as regulamentações artificiais do mercado pelos trusts e grandes monopólios; a superprodução, as depressões econômicas; enfim, a imensa mi­ séria das massas operárias entre os anos de 30 a 50 desse século. Tudo consequência do individualismo econômico apoiado no seu poderoso aliado, o liberalismo político da democracia reinante. Para se defender destas consequências, a democracia viu-se obrigada a procurar uma ideia nova que lhe servisse de base. Era preciso deslocar ago­ ra o acento tônico da ideia de liberdade para outro elemento. E a ideia nova para a qual ficava agora aberto o caminho, que era preciso também hipostasiar e sublimar, como antes se fizera com a de liberdade, era a da igualdade - a outra irmã gêmea da liberdade e, no dizer de Herculano, afinal a mais forte paixão da democracia. Mas ago­ ra uma igualdade, não de pura teoria, mas de verdade. Para Dallari, a própria afirmação de que a liberdade de cada um termina onde começa a de outro é inaceitável, pois as liberdades dos indivíduos não podem ser tomadas isoladamente e colocadas uma ao lado de outra, uma vez que, na realida­ de, acham-se entrelaçadas e necessariamente inseridas no meio social. Claro que existem várias espécies no gênero liberd ad e: liberdade política, li­ berdade pessoal, liberdade econômica, liberdade religiosa, liberdade de reunião etc.

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É inegável, porém, que a liberdade p olítica - que foi, até agora, a tratada neste ca­ pítulo - é a mais ampia de todas e que, ipso fa cto, compreende muitas liberdades, despertando, em razão disso, um interesse mais incisivo do leitor. É à liberdade po­ lítica que o filósofo Karl Jaspers se refere, ao dizer: a liberdade começa com a vi­ gência de leis registradas do Estado em que se desenvolve. Esta liberdade se chama liberdade política e o Estado em que ela existe se chama Estado de Direito. Referi­ do Estado é aquele em que as leis não podem ter vigência nem ser modificadas se­ não por via legal. Esta via legal depende do povo, de sua cooperação e participa­ ção direta ou indireta, por intermédio de representantes periodicamente substituídos em eleições livres e sinceras. Já se disse até, com Royer-Collard, ser a liberdade a coragem d e resistir... Já percebe o leitor a dificuldade existente na formulação de um con ceito uni­ fo rm e de liberdade, válido para todas as épocas e todos os lugares. Reagindo contra o absolutismo monárquico (deturpação do exercício legíti­ mo do poder e, portanto, da autoridade), a Revolução Francesa destruiu o concei­ to tradicional de poder político, exaltando o indivíduo em detrimento do social. Na verdade, a liberdade apregoada pelo liberalismo era uma liberdade sem pers­ pectivas, sem fundamento na própria natureza humana, pois colocava o indivíduo contra o Estado, transformado este em mero fiscal da manutenção da ordem pú­ blica, enquanto os desajustes econômicos se agravavam. Tal liberdade era, ainda, um fim em si própria, e não um meio para o aperfei­ çoamento do homem. A liberdade não é o valor supremo da vida humana; ela pres­ supõe sempre uma razão que a justifica. Por outro lado, a vida em sociedade, ine­ rente à natureza do homem, impõe restrições aos possíveis excessos das liberdades civis e políticas. Não foi sem fundamento que Montesquieu - corifeu do liberalis­ mo - definiu a liberdade como o direito d e fazer aqu ilo q u e as leis perm item . A concepção de liberdade do liberalismo acabou por se autodestruir. O exces­ so de livre-con corrên cia gerou a exploração dos fracos pelos fortes e, com esta, a formação de um capitalismo monstruoso e a proletarização dos produtores, todas estas, paradoxalmente, condições propícias para o aparecimento dos totalitarismos e do socialismo exacerbado. Como acentua com muita clareza Dalmo de Abreu Dallari, no século XV II a afirmação da necessidade de liberdade foi feita em favor dos que já eram dotados de poder econômico. Por esse motivo entendia-se que bastava impedir a interferên­ cia do poder público para que os indivíduos fossem livres. Nas sociedades indus­ triais do fim deste século X X , contudo, o principal inimigo da liberdade individual nem sempre é o Poder Público. Com frequência um indivíduo muito rico ou um poderoso grupo econômico reduz seriamente a liberdade de muitos indivíduos, ou até de um povo inteiro, por meio da dominação econômica, havendo mesmo inú­ meros casos em que o Poder Público se vê subjugado e inteiramente controlado por grupos econômicos. Em razão disso, prossegue o autor citado, não se pode colocar

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o controle do Poder Público de um Estado como necessário e suficiente para garan­ tir a liberdade de todos os indivíduos. Muitas vezes é indispensável o fortalecimen­ to do Poder Público para impedir que os economicamente fortes reduzam a liber­ dade dos economicamente fracos e estabeleçam uma profunda desigualdade entre os indivíduos. Além disso, finaliza, a experiência tem demonstrado que a simples declaração de que todos são livres torna-se completamente inútil se apenas alguns puderem viver com liberdade. Ademais, é necessário corrigir o sentido egoísta da liberdade individual. Se todos os homens são livres e iguais e se os homens não vi­ vem isolados uns dos outros, é preciso que a convivência, a repartição dos bens e o acesso aos benefícios da vida social não permitam grandes desníveis. Enfim, o liberalismo fez da liberdade ilimitada o valor supremo do ideal de­ mocrático, ao sustentar que o melhor meio de realizar a felicidade do homem é do­ tá-lo da maior liberdade possível, sendo o Estado mero coordenador desta liberda­ de. Por outro lado, partindo da premissa de Emmanuel Kant, de que a finalidade do Direito Objetivo não seria mais do que realizar a coexistência dos Direitos Sub­ jetivos, vale dizer, restringindo-se a limitar a liberdade de cada um ao mínimo exi­ gido pela sociedade, o liberalismo consagrou a escola clássica do Direito Natural, ou seja, o homem seria dotado de direitos imprescritíveis, anteriores ao surgimen­ to da própria sociedade, direitos estes ditados pela própria natureza, por isso n a­ turais. Referidos direitos transcenderiam a própria lei escrita, seriam direitos abso­ lutos que o Estado deveria reconhecer e preservar. Os seguidores dessa escola não levaram em conta que o direito tem seu fundamento na própria sociedade; o ho­ mem isolado é mera abstração, não existe juridicam ente, porque despojado de di­ reitos e deveres. Com efeito, o direito só frutifica no relacionamento humano, e este pressupõe a sociedade. Por outro lado, a concepção eminentemente individualista da sociedade ensejaria a própria eliminação dos mais fracos pelos mais fortes, acen­ tuando as desigualdades naturais e, por via de consequência, as desigualdades so­ ciais.

4.5.2) C o n c e p ç ã o s o c ia l do bem co m um Os erros do liberalismo acarretaram, embora tardiamente, uma série de pro­ vidências por parte do Estado, que, de mero espectador do drama humano que sua passividade havia desencadeado, se tornou um organismo dinâmico, atuante e in­ tervencionista. A mera legalidade, apanágio da liberal-democracia, cedeu espaço ao moderno E sta d o d e justiça, que, à luz de três metas políticas, jurídica e social, bus­ ca reequilibrar a vida em sociedade, dando ênfase à igualdade e restringindo os ex­ cessos da liberdade. Por isso, Alexis de Tocqueville já previra, com muita proprie­ dade, que a liberdade é um valor destinado a oferecer seus benefícios apenas de quando em vez, ao passo que as vantagens da igualdade brilham, diuturnamente, com esplendor incomparável. Seria trágico, porém, adverte, antever a possibilidade

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de efetivação de uma sociedade estandardizada, na qual todos vivessem e pensas­ sem da mesma forma, sob o acicate de um poder irrestrito. É inegável que o valor igu aldade atrai, hoje, muito mais do que o valor liber­ d ad e, na ânsia de correção dos desajustes sociais. O adjetivo social tornou-se uma palavra mágica; a democracia passou a ser muito mais atraente quando adjetivada de social. A própria doutrina da tripartição de Poderes, oriunda de Aristóteles e de Cícero, bem como de Locke e, depois, definitivamente sistematizada por Montesquieu, foi colocada em questão no Estado contemporâneo. Tal doutrina, baluarte na luta contra a con cen tração do poder num órgão apenas, sofreu um abalo mui­ to grande com o desenvolvimento da tecnologia. Como acentua Silveira Neto, se o uso da pólvora liquidou o sistema das guerras medievais, o uso dos computadores revolucionou a administração moderna. Todos os governos procuram adaptar-se às novas circunstâncias sociais. O reforço do Poder Executivo é, hoje, universal. Fruto disso é a d eleg a çã o legislativa, hoje frequentíssima e inevitável, às ocultas ou às escâncaras, como bem frisa Ferreira Filho. O crítico mais mordaz do princípio da tripartição de poderes, Marcei de Fa Bigne de Villeneuve, que se batia tenazmen­ te pela u n idade e u n icidade do poder estatal, tornou-se mais atual do que nunca. Quando o W elfare State substituiu o É tat g en darm e, adverte Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o Estado iniciou a sua atividade interveniente na vida econômica dos indivíduos, em busca do bem-estar social. O caráter essencialmente técnico de muitas decisões e a inconveniência do debate público, pertinente a certos assuntos, conduziram os parlamentos ao dilema de paralisar sua atividade ou delegar pode­ res, sendo acolhida, é claro, esta última alternativa. O Executivo, órgão capaz de decisões mais rápidas, em razão de sua própria estrutura, passou a ter, então, preemi­ nencia notável. Novas tarefas ingressaram em sua esfera de ação; outras, de sua competência, foram substancialmente ampliadas, como a criação e a gerência de serviços assistenciais. Os Estados em desenvolvimento, mais do que os outros, sentiram os reflexos dos novos tempos. A concepção secularmente arraigada do elemento político torna-se menos importante que o elemento econômico. A ideia do governante supergerente, émulo do executivo das empresas privadas, começa a substituir a figura do estadista convencional. Mesmo nos Estados Unidos da América, como acentua Duverger, o interven­ cionismo estatal foi ignorado durante um século e meio porque o Estado represen­ tava um papel secundário, numa comunidade em que o liberalismo econômico, triunfante, dava aos chefes de indústria o poder real. Por outro lado, o mundo nor­ te-americano, isolado dos demais povos, dos quais não necessitava intensamente, podia dar-se ao luxo de cometer seus erros ao abrigo de suas riquezas. Durante anos o talento de Roosevelt ocultou um mal que, com sua morte, veio bruscamen­ te à luz: o sistema governamental norte-americano pareceu não estar mais à altu­ ra das novas tarefas político-econômicas. Percebeu-se que o Estado deve, hoje mais

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do que nunca, intervir, com ou sem vontade, na vida econômica e social, além de definir e aplicar uma política exterior e manter um exército formidável. Como acentua Salvetti Netto, as profundas alterações ocorridas nas estrutu­ ras sociais motivaram a revisão do conceito de democracia e de representação. De um lado, a liberdade continua a ser valor transcendente do ideal democrático; de outro, o fa to r e c o n ô m ic o motivou a hipertrofia do Estado moderno; à liberdade agregou-se a igualdade. Em oposição ao cid a d ã o abstrato, livre por excelência, sur­ ge o h o m em con creto, o op erário, o h o m em d o cotid ian o, com seus p ro b lem a s e sentim entos. O governo democrático, afirma Salvetti Netto, nos tempos atuais, só atinge seus fins quando logra realizar o bem-estar da comunidade. É regime muito mais de con teú d o que de form a. Logo após a Primeira Grande Guerra, surgem os direitos sociais, tutelados nas mais avançadas Constituições da época. A Constituição mexicana de 1 9 1 7 e a Constituição de Weimar em 1919 pre­ viram direitos sociais, numa autolimitação do poder do Estado que evocava para si deveres p ú blicos subjetivos. Em tal diapasão, surgem em nossa Lei Magna de 1934 dispositivos referen­ tes à matéria, com o título “ Da Ordem Econômica e Social” (arts. 115 e 143), se­ guida pela Constituição de 1 0 .1 1 .1 9 3 7 , que dispunha sobre a ord em eco n ô m ica nos arts. 135 a 155, sendo a seguinte a redação do art. 135: Art. 135. Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de in­ venção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a pros­ peridade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições in­ dividuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. Por sua vez, o art. 136 dispunha o seguinte: Art. 136. O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto, e este, como meio de subsistência do in­ divíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa. A Constituição Federal de 1 8.09.1946 dispunha sobre o assunto nos arts. 145 a 162, também sob o título “Da Ordem Econômica e Social”, assim:

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Art. 145. A ordem econômica deve ser organizada conforme os principios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho hu­ mano. Parágrafo único. A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social, [grifo nosso] A Constituição brasileira de 2 4 .0 1 .1 9 6 7 , com a Emenda Constitucional n. 1, de 1 7 .1 0 .1 9 6 9 , estabelecia, em seus arts. 160 a 174, a respeito da ordem eco n ô m i­ ca e social, dispondo o art. 160 o seguinte: Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: I - liberdade de iniciativa; II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana; III - função social da propriedade; IV - harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; V - repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros; e VI - expansão das oportunidades de emprego produtivo, [grifo nosso] A Constituição Federal vigente, promulgada em 0 5 .1 0 .1 9 8 8 , demonstra re­ dobrada preocupação com a questão social, como se depreende de vários de seus dispositivos (arts. I o, III e IV, 3o, 6o - direitos sociais - e 170). Assim: Art. I o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Di­ reito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, ida­ de e quaisquer outras formas de discriminação.

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Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desam­ parados, na forma desta Constituição. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre-concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. Até a eclosão da Primeira Grande Guerra, as Constituições dos diversos Es­ tados só se preocuparam com a organização política, exceção feita à Constituição mexicana de 1 917, preocupada com questão social. Somente com a Constituição de Weimar de 1919 e a Constituição espanhola de 1931, houve uma tendência mais acentuada para acrescentar ao texto político fundamental os princípios destinados a reger o campo econômico-social, buscan­ do assegurar, dessa forma, por meio do plano econômico e social, o desenvolvimen­ to e a segurança das próprias instituições políticas. Vimos como as Constituições brasileiras de 1934 e 1937 trataram do proble­ ma, sofrendo o influxo de vários diplomas legais estrangeiros, como a Constitui­ ção de Weimar e a Carta do Trabalho da Itália fascista. A Constituição de 1967, emendada em 1969, parece defender o princípio de que a democracia não pode de­ senvolver-se, a menos que a organização econômica lhe seja propícia. Vale assinalar que, embora situadas em pé de igualdade no caput do art. 170 da Constituição em vigor, o desen volvim en to n acion al e a justiça social devem ser considerados, respectivamente, m e io e fim ; o desenvolvimento nacional não deve ser um fim em si mesmo, porém um meio de se alcançar a justiça social. Que vem a ser justiça social? Eis uma expressão de difícil delimitação. Divul­ gada principalmente pela doutrina social da Igreja, mesmo nesta, ela é bastante di­ vergente. Por outro lado, cumpre fazer algumas observações sobre o conceito de justiça. Do latim justitia, de justus (de acordo com o direito, jus), a justiça foi defi­ nida por Ulpiano assim: “Ju stitia est constans et p erp etu a voluntas jus suum cuiqu e tribu en di”. A indevida repetição desse conceito terminou por desgastá-lo, trans-

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formando-se na fórmula: “A justiça consiste em dar a cada um o que é seu”. Qual o “seu” de cada um, porém? Para se poder dar a cada um o seu, seria preciso sa­ ber, desde logo, o que pertence a cada um. Ora, o princípio de justiça é invocado exatamente para dirimir a disputa entre partes que invocam aquilo que é seu. As­ sim, o elegante princípio de Ulpiano não resolve o problema, pois deveria fornecer um critério para dizer qual “seu” devemos dar a cada um. A verdade é que, se o ideal do justo nasceu com a própria humanidade, a revelação da essência desse ideal ainda não ocorreu. A concepção de justiça varia com as ideologias predomi­ nantes em cada momento histórico, ora se assentando na liberdade, ora na igual­ dade. Platão, por exemplo, concebia a justiça como um princípio que impunha de­ terminada estrutura social, determinando a cada homem que se limitasse a fazer o que lhe fosse atribuído. Platão compara o Estado a um ser humano e, delineando as premissas do moderno organicismo, afirma que os homens são naturalmente de­ siguais, cabendo aos filósofos o papel de cérebro da sociedade, de governo, enfim. Aos militares e operários, respectivamente, pulmões e estômago da sociedade, ca ­ beriam, respectivamente, a segurança e o abastecimento do Estado. Essa divisão de classes e funções deve ser rígida, inafastável, pois, sendo a justiça uma ideia de har­ monia e unidade, como o corpo humano, os órgãos sociais devem restringir-se a suas atribuições impostas pela natureza. Aristóteles, discípulo de Platão, divide a justiça em espécies: distributiva, equiparadora, comutativa e judicial. A justiça dis­ tributiva preconiza a distribuição das benesses sociais entre os membros da comu­ nidade, observada uma igualdade proporcional, visto que a distribuição deve ter com o referencial o mérito de seus destinatários. A justiça equiparadora leva em conta o intercâmbio dos bens, a prestação de serviços e as relações entre todos, pre­ conizando a exata correspondência entre a coisa dada e a recebida. A justiça co­ municativa leva em conta as relações contratuais entre as pessoas, estabelecendo a equivalência entre o que se dá e o que se recebe como compensação. A justiça ju­ dicial é aquela dada pelo juiz, exigindo paridade entre o dano e a reparação, o cri­ me e a pena a este cominada. Como assevera J. Flóscolo da Nóbrega, a justiça é a ideia, a representação abstrata do estado de pleno equilíbrio da vida social. Ora, tendo como pressuposto um valor, a ideia de justiça varia constantemente: o que era justo para os antigos talvez não o seja para nós, embora possa voltar a sê-lo no futuro. Não resta dúvida de que, modernamente, o valor predominante é a igual­ d ad e, como a liberdade o foi por ocasião da Revolução Francesa. Em nosso entender, será em Aristóteles que vamos encontrar o moderno sig­ nificado da justiça social, quando afirma o princípio da justiça distributiva, pelo qual a comunidade distribui, com cada um de seus membros, os bens, recompen­ sas, honras, cargos e funções, observada uma igualdade proporcional ou relativa. Princípio regulador das relações entre a comunidade e seus membros, o princípio da justiça distributiva disciplina a fixação dos impostos, a assistência social ao ho­ mem da cidade ou do campo, a aplicação de recursos da coletividade etc. Os ins-

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frumentos de que se serve a justiça distributiva são o direito administrativo, o di­ reito fiscal, o direito do trabalho e a previdência social. A justiça distributiva, vale lembrar, invoca a proporcionalidade na distribuição das benesses sociais, visto que estas devem ser distribuídas conforme o mérito de seus destinatários. Devem-se dar coisas iguais aos iguais, e coisas desiguais aos desiguais; se as pessoas são desiguais, não se deve dar-lhes coisas iguais. Eis a doutrina da isonomia, fixada no art. 5o, I, da Constituição Federal. Por outro lado, a virtude moral que tem por objetivo o bem com um é o que Aristóteles chama de “justiça legal” . Para ele, ju sto legal é a q u ilo q u e o b em c o ­ m um justifica e exige. Aqui é importante notar que o “legalmente justo” não é, no pensamento aristotélico, aquilo que o positivismo denomina com tal fórmula. Para Aristóteles, a lei não consiste simplesmente no mandado por aqueles que têm, a seu encargo, a função governamental, mas em requerer a prudência (É tica a N icôm aco, X , 1.180/21), e a prudência implica a retidão moral da intenção, ou seja, a von­ tade deve estar inclinada à realização do bem moral. Modernamente, essa orientação de Aristóteles é de grande atualidade, tendo em vista o papel cada vez mais dinâmico que o Estado vem desenvolvendo em face das novas e múltiplas reivindicações sociais. Para horror dos defensores intransigentes da tripartição e separação absolu­ ta dos poderes políticos, preconizados por Montesquieu, o problema do reforço do Poder Executivo tornou-se uma realidade cristalina. A delegação legislativa é hoje prática correntia e inevitável “às ocultas ou às escancaras”, como acentuou M a­ noel Gonçalves Ferreira Filho, em seu Curso d e direito constitucional. Tal delegação, repudiada unánimemente pelos ideólogos da liberal-democracia, colocou em xeque o caráter ideológico da chamada indelegabilidade de poderes. Quando o W elfare State substituiu o É ta t g en d arm e, o Estado passou a ter uma missão de intervencion ism o na vida econômica individual, em busca do bemestar social. Como o caráter eminentemente técnico de muitas decisões que deve­ riam ser tomadas em tempo recorde, bem como a inconveniência do debate públi­ co relativo a certas matérias, conduziu os parlamentos ao dilema de paralisar a administração ou delegar poderes, foi ¡mediatamente escolhida esta segunda alter­ nativa. O Poder Executivo, órgão capaz, p o r sua própria estrutura, de decisões mais prontas, p assou a ter, en tão, um a ascen dên cia cada vez m aior. Novas tarefas foram atribuídas ao Poder Executivo, e aquelas que já eram de sua competência foram bastante ampliadas. Por exemplo, a criação e a gerência de serviços assistenciais. Conforme acentua Duverger em sua obra Os regimes políticos, o intervencio­ nismo estatal foi ignorado durante cerca de 150 anos nos Estados Unidos, porque o Estado representava um papel apenas secundário, numa época em que o libera­ lismo econômico triunfante dava aos chefes de indústria o poder real. Além disso, a América, isolada de um mundo do qual não tinha necessidade, podia dar-se ao luxo de cometer todos os erros ao abrigo de suas riquezas e de seus oceanos. Quan-

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do, por exemplo, o Senado se recusava a ratificar o Tratado de Versalhes, apenas a Europa suportava as consequências. Modernamente, as condições sofreram uma mudança. O Estado deve intervir, queiram ou não queiram os governantes, na vida socioeconómica dos indivíduos. O aspecto político torna-se até menos importante que o econômico. O Esta­ do que providencia o desenvolvimento não pode deixar de ser preponderantemen­ te empreendedor, alcançando o campo da iniciativa privada. A ideologia do gover­ nante supergerente, tão eficiente quanto o executivo da empresa particular, acha-se, em muitos Estados, em desenvolvimento, substituindo a do estadista tradicional. Do exposto, conclui-se que o conceito de bem comum foi bastante alterado com o surgimento de novas circunstâncias sociais. Como fruto do século XVIII, o século do individualismo, o bem comum nada mais era do que a m an u ten ção da ord em p ú b lica p e lo E sta d o , cuja função, meramente passiva, seria aquela de um gen d arm e (policial) na sarcástica imagem de Ferdinand Lassalle. Na verdade, vão longe os tempos da mera tutela da ordem jurídica pelo Estado, preconizada pelo liberalismo clássico de Emmanuel Kant, John Locke e outros. Não basta a garan­ tia dos direitos subjetivos para que o bem comum esteja alcançado. Não, a moder­ na concepção de bem comum exige a a ç ã o do Estado, que deve renunciar ao seu caráter passivo, peculiar a uma fase da História da humanidade, que não pode, no mundo moderno, continuar a ter guarida. Para o exercício de suas funções sociais, a iniciativa privada pode, às vezes, ser restringida, por exemplo, quando uma fá­ brica que causa poluição é obrigada a minorar este mal ou encerrar suas ativida­ des, quando ocorre a vacinação compulsória ou quando surgem restrições à frui­ ção irrestrita da propriedade, em nome de uma função social da propriedade. O Estado, portanto, deve transcender a mera legalidade e buscar, de forma ativa, a justiça social. Em princípio, aliás, todo Estado é E sta d o d e D ireito, pois toda so­ ciedade tem, essencialmente, seu direito, seu ordenamento jurídico, que poderá ser justo, isto é, amparado no con sen so social ou não. Entretanto, se todo Estado é Es­ tado de direito, ao manter a legalidade pura e simplesmente, nem todo Estado de direito será Estado de justiça, que é o Estado que transcende a mera legalidade, dei­ xando de ser o Estado gen darm e, mero cão de guarda da ordem pública, e que pas­ sa a atuar, a agir, em três planos bem definidos: a) plano político, ao manter sua segurança interna e externa; b) plano jurídico, ao construir o Estado de justiça; c) plano social, ao atender às necessidades assistenciais, previdenciárias e edu­ cacionais da coletividade.

A CONSTITUIÇÃO

1) CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA Bibliografia: f e r r e ir a f il h o , Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 1982. sa l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. so u z a , José Pedro Galvão de. História do direito polí­ tico brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1962. v ia m o n t e , Carlos Sánchez. El poder consti­ tuyente, Buenos Aires, Bibliográfica Argentina, s.d.

A palavra con stitu ição vem do latim cum + stituto, constitutio, de constituere (constituir, construir, edificar, formar, organizar). Tem como sinônimo o vocábu­ lo com p leição, que também contém a ideia de um todo fo rm a d o , estruturado, o rd e­ nado, isto é, de u nidade na m ultiplicidade. O corpo humano tem uma constituição, uma co m p leiçã o ; não é ele, porventura, um org an ism o? Não nos referimos, às ve­ zes, ao vocábulo constituição como a ordenação que preside a organização dos cor­ pos físicos? Assim, a palavra constituição apresenta sentidos análogos; ela pode ser toma­ da em um sentido a m p lo; e em outro, estrito. Tomada num sentido am plo, pode-se dizer que todos os seres apresentam uma constituição que os identifica. Tomada em sentido estrito, a palavra con stitu ição vai revelar o m o d o p e lo qu al um a socied ad e se estrutura basicam en te. Aristóteles conceituava a p o liteia (Constituição) como a ordem da vida em comum naturalmente existente entre os homens de uma cidade ou de um territó­ rio ou, simplesmente, a o rd en a çã o d o s p o d eres d o E stado.

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Em termos jurídico-políticos, a Constituição é a lei fu n dam en tal d o E stado, lei que um povo impõe aos que o governam, para garantir-se contra o despotismo destes, conforme doutrina Romagnosi. No dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a constituição em sentido jurídi­ co pode ser entendida como o “conjunto de regras concernentes à forma do Esta­ do, à forma do governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimen­ to de seus órgãos, aos limites da sua ação” . Ou seja, a base fixada juridicamente da organização política. Segundo Pedro Salvetti Netto, a C onstituição política estrutura a organização do Estado, disciplina o exercício do poder político e discrimina a competência para tal exercício, definindo-a como o “conjunto de normas que, estruturando a orga­ nização do Estado, estabelece relações de natureza política entre governantes e go­ vernados” ou, levando-se em conta o advento dos direitos sociais no mundo mo­ derno, o “conjunto de normas que, estruturando a organização do Estado, limita politicamente o exercício do poder e declara os direitos individuais e sociais e suas respectivas garantias”. “ U b isocietas ibi ju s”, já dizia Aristóteles, ou seja, onde houver sociedade have­ rá normas de conduta, haverá Constituição. Da mesma forma que todos os seres têm uma C on stitu ição p róp ria (causa formal), a fortiori a sociedade terá, por sua essência, uma forma de organização. Ser eminentemente social, o homem agrega-se a seus semelhantes organicam ente, formando grupos sociais estruturados, sendo in­ concebível, mera abstração, a concepção mecânica da sociedade. Pois bem, as or­ ganizações sociais surgem, inicialmente, no seio da família, do clã, da tribo, até que cheguemos ao Estado, a mais perfeita forma de convivência social. As normas cons­ titutivas das sociedades primárias repousam nos hábitos sociais consagrados pelo tempo. Com o aparecimento do Estado, so cied ad e necessária d otad a d e p o d er s o ­ beran o e voltada para o bem com um , surge a Constituição política. Conforme aduz Pedro Salvetti Netto, não há que se falar em Constituição política antes que o Es­ tado se organize, antes que nele se integrem seus elementos constituintes. Somente quando se verificam tais exigências é que aparece a Constituição política, justamen­ te para, estruturando a organização do Estado, disciplinar o exercício do poder po­ lítico e discriminar a competência para tal exercício. A tendência das sociedades de se estruturarem sob a égide de uma lei funda­ mental surge muito cedo na História humana. Inicialmente, ela tem caráter religio­ so, místico, revelando a vontade divina (mana) sob a forma de tabu, como acentua Viamonte. Tal norma fundamental tem natureza consuetudinária, costumeira, não se apresenta sob a forma escrita. Com maior razão, os gregos já distinguiam as normas jurídicas pela hierar­ quia, classificando-as como leis constitucionais e leis com uns, a exemplo dos roma­ nos, que, ao se referirem à elaboração daquelas, usavam a expressão rem publicam constituere. As leis de Licurgo, em Esparta, de Drácon e de Sólon, em Atenas, são

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verdadeiras Constituições, imperando sobre as demais normas. Conforme adverte Carlos Sánchez Viamonte, essas leis fundamentais de Licurgo e de Sólon constituem a expressão unificada da vontade nacional em cada caso, e com elas é criada a na­ ção como unidade política e jurídica e atribui-se forma à sociedade e ao governo. Nisso consiste a essência do ato constituinte. No dizer de Pedro Salvetti Netto, as primeiras Constituições sistematicamen­ te codificadas apareceram no século XV II, por influência, segundo alguns autores, das tradições puritanas, cujas normas eram efetivamente escritas e codificadas - os covernants - , destinadas à estruturação da igreja e do culto. Em razão disso, a In­ glaterra foi estruturada, durante o governo do puritano Oliver Cromwell (15991658), por uma Constituição escrita, única em sua História, o Instrum ent o f G o ­ vernm ent, calcada numa doutrina absolutista do poder político, fundada, aliás, no exacerbado puritanismo de Cromwell. Na História constitucional inglesa encontraremos, ainda na Idade Média, p a c­ tos, forais e cartas de franquia. Conforme aduz Manoel Gonçalves Ferreira Filho, tais documentos firmaram a ideia de texto escrito destinado ao resguardo de direi­ tos individuais, que a Constituição iria englobar a seu tempo. Tais direitos, contu­ do, prossegue o autor citado, sempre se afirmaram imemoriais, fundados no tem­ po passado, enquanto eram particulares a homens determinados e não apanágio do homem, ou seja, do ser humano enquanto tal. Ainda segundo M anoel Gonçalves Ferreira Filho, próximos dos pactos, de cujo caráter participavam pela sanção real, mas já bem próximos da ideia setecen­ tista de Constituição, situam-se os contratos d e colon ização, peculiares à História das colônias da América do Norte. Chegados ao Novo Mundo, os peregrinos, mor­ mente puritanos, imbuídos de igualitarismo, não encontrando na nova terra poder estabelecido, fixaram, por m ú tu o con sen so, as regras por que haveriam de se go­ vernar. Os chefes de família firmam, a bordo do M ayflow er, o célebre C o m p a ct (1620); desse modo, são estabelecidas as Fundam ental Orders o f Connecticut (1639), mais tarde confirmadas pelo rei Carlos II, que as incorporou à carta outorgada em 1662. Transparece aí - finaliza - a ideia de estabelecimento e organização do gover­ no pelos próprios governados, que é outro dos pilares da ideia de Constituição. Profunda influência, além da tradição puritana, sobre o advento das Consti­ tuições escritas, vai exercer a doutrina do contrato social, preconizada por Jean-Jacques Rousseau. A cláusula pacta sunt servanda ou pacta quantum cum que nuda servan d a sunt, isto é, os contratos devem ser cumpridos pelas partes, peculiar às relações jurídicas de caráter privado, contida na forma escrita e solene exigida, é transportada para o Direito Público, assegurando melhor direitos e deveres de go­ vernantes e governados. Como acentua Pedro Salvetti Netto, a Constituição escri­ ta revela a preocupação de asseverar, em seus artigos, compromissos recíprocos de governantes e súditos.

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Com efeito, adverte Manoel Gonçalves Ferreira Filho que somente no século XVIII - o Século das Luzes, daí a expressão Ilum inism o - é que se concretizou, na Europa, a ideia de que o homem pode estabelecer a organização do Estado, segun­ do sua vontade, numa Constituição. Antes do Iluminismo, ninguém ousara afirmar que o homem poderia modelar uma organização política segundo um ideal racio­ nalm ente estabelecido. Daí reafirmar-se a importância de Rousseau para a filoso­ fia iluminista e para a Revolução Francesa e, como consequência, para a consoli­ dação das Constituições escritas. 2)

ESPÉCIES Bibliografia: a cq u a v iv a , Marcus Cláudio. Constituição da República Federativa do Brasil anotada, São Paulo, Global, 1987. b i s p o , Luís. Curso de direito constitucional brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1981. sa l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Esta­ do, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 1984.

Quanto às espécies de Constituições, sintetizando as várias classificações exis­ tentes, podemos apresentar o seguinte esquema:

1. Quanto à forma:

f

f orgânicas escritas \ [ inorgânicas

\

rígidas 2. Quanto à estabilidade ou possibilidade de reforma

semirrígidas flexíveis

{

editadas, também denominadas votadas outorgadas

Vejamos cada uma dessas espécies e subespécies. Inicialmente, as C onstitui­ ções escritas. C onstituições escritas orgânicas: são aquelas que se acham formalizadas e x ­ pressam ente em um documento escrito ou em vários. No primeiro caso, teremos as C onstituições escritas orgânicas (um só documento); no segundo, as Constituições escritas inorgânicas (várias leis escritas, de natureza constitucional). A origem das Constituições escritas orgânicas encontra-se nos séculos XV II e XVIII, inicialmente por influência dos covenants, documentos escritos que forma­ lizavam os preceitos da religião puritana, na Inglaterra.

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Depois, já no século XV III, em razão da doutrina do contrato social desen­ volvida por Jean-Jacques Rousseau, que vai inspirar, na França, a ideia de que uma Constituição deve ser, necessariamente, escrita, para maior garantia dos direitos dos governados. As C onstituições escritas orgânicas têm a natureza de uma codificação, isto é, de um corpo único e sistematizado de normas. A Constituição escrita orgânica se acha contida, portanto, em uma única lei. As inorgânicas, porém, não têm forma de uma única lei; com efeito, uma Consti­ tuição escrita inorgânica é formada por várias leis, encontra-se espalhada por inú­ meros diplomas legais de natureza constitucional. Assim, enquanto a Constituição escrita orgânica tem a natureza de uma co ­ dificação, a Constituição escrita inorgânica se assemelha muito mais a uma simples com p ila çã o , vale dizer, leis dispostas ordenadamente e atualizadas, sem que com isto cada uma dessas perca sua existência autônoma. Dessa ordem é a Constitui­ ção britânica, que muitos autores afirmam ser apenas costumeira. Existiria, entre­ tanto, uma Constituição formada apenas por costumes e nada mais? Isto seria im­ possível. A Constituição britânica se constitui em volumes e mais volumes de leis e acórdãos. O que a caracteriza n ão é o fa to de n ão ser escrita, m as sim de n ão estar sistem atizada em um C ód ig o; n ão estar, enfim , codificada. Nem por isso se negue o grande papel desempenhado pelo costume nas Cons­ tituições. Diga-se de passagem que o costume pode influenciar a própria Constitui­ ção escrita orgânica, por exemplo, o caso célebre da reeleição, por uma terceira vez, dos presidentes da República norte-americana. Nos primeiros tempos da vigência da Constituição dos Estados Unidos, o presidente podia candidatar-se à reeleição quantas vezes quisesse. Bastou, contudo, que George Washington e, mais tarde, Thomas Jefferson se recusassem a disputar uma terceira reeleição para que seus su­ cessores não se sentissem encorajados a fazê-lo. Quando, três quartos de séculos mais tarde, Ulysses Grant postulou sua reeleição pela terceira vez, sua candidatu­ ra fracassou. Tempos depois, uma exceção: Theodoro Roosevelt seria reeleito vá­ rias vezes, em face das vicissitudes da situação internacional; entretanto, depois de Roosevelt, a Emenda X X II vetaria, expressamente, o terceiro mandato. C onstituições rígidas, sem irrígidas e flexíveis: quanto à estabilidade ou possi­ bilidade de reforma, as Constituições podem ser rígidas, semirrígidas e flexíveis. As flexíveis podem ser modificadas sem a exigência de um procedimento mais comple­ xo; assim, uma lei ordinária pode alterá-la; não é preciso um procedimento legis­ lativo mais trabalhoso. Exemplos: as Constituições da Noruega, da França e a Cons­ tituição do antigo Reino da Itália, chamada Estatuto Albertino. Semirrígidas são aquelas que, em parte, podem ser alteradas mediante um pro­ cedimento comum, ordinário, e, em outros artigos, somente por meio de um proce­ dimento mais dificultoso. Exemplo: a Constituição do Império do Brasil, de 1824.

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Finalmente, as Constituições rígidas, assim denominadas porque só podem ser alteradas por intermédio de um rito legislativo próprio, destinado a dificultar os abusos reformistas. Exemplos: as Constituições dos EUA, da Austrália, da Di­ namarca, da Suíça e do Brasil em vigor. Com efeito, a nossa Constituição só pode ser alterada ou corrigida por via de emenda (art. 60), sendo que este dispositivo exige seja a proposta firmada por um terço, no mínimo, dos membros da Cámara dos Deputados ou do Senado Federal (art. 6 0 , 1), pelo Presidente da República e por mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. Ademais, o § 4° introduz uma cláusula pétrea no tocante a determinados assuntos, cuja disci­ plina jurídica não pode ser, em qualquer hipótese, modificada. Por exemplo, os dis­ positivos do art. 5o sobre direitos e garantías individuais (art. 60, § 4°, IV). Importante notar que a facilidade ou a frequência com que uma Constituição pode ser alterada não depende, apenas, do disposto na lei, mas também de fatores políticos, por exemplo, a predominancia desta ou daquela ideologia num dado mo­ mento histórico. Assim, a Constituição suíça, rígida, foi modificada muito mais fre­ quentemente do que a Constituição francesa da III República, cuja alteração de­ pendia apenas de uma sessão conjunta do Parlamento. Ademais, o conceito de Constituição escrita não se confunde com o conceito de Constituição rígida, pois o Estatuto Albertino (Constituição do antigo Reino da Itália), embora escrito, era, como vimos, modificável por via de lei ordinária, por­ tanto, flexível. C onstituições ou torgadas e C onstituições editadas ou votadas: quanto à ori­ gem, as Constituições podem ser outorgadas e editadas, conhecidas estas últimas também como votadas. As outorgadas são im postas à nação pelo próprio agente do poder constituinte originário, sendo, posteriormente, submetidas a referen d o popular, pois o povo é, em última análise, o titular do poder político. Exemplos: as Constituições brasileiras de 1824, 1 8 9 1 ,1 9 3 7 e 1967. Quanto às Constituições editadas (votadas), são discutidas pelo próprio povo, diretamente ou mediante a eleição de uma assembleia constituinte, formada por re­ presentantes da nação. Em nome desta, a assembleia irá elaborar, com total inde­ pen dên cia, uma nova Constituição. Se não houver independência da constituinte, não se pode falar em Constituição editada. Por exemplo, quando D. Pedro I enviou, logo após a Independência, uma recomendação à Assembleia Constituinte incumbi­ da de elaborar a nova Constituição do Império, Assembleia depois desfeita, exigiu que a nova Lei Magna deveria conservar a dinastia governante e a religião católi­ ca apostólica romana na qualidade de crença oficial do Estado, tolhendo, portan­ to, a liberdade da assembleia, que, por ser constituinte, deveria estar investida de um poder in con dicion ado.

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3) CONTEÚDO POLÍTICO DAS CONSTITUIÇÕES Bibliografia: l a ssa l l e , Ferdinand. Que é uma Constituição?, São Paulo, Edições e Pu­ blicações Brasil, 1933. m a r x , Karl e e n g e l s , Friedrich. O manifesto do partido comu­ nista, 6. ed., São Paulo, Global, 1986. sa l v e tt i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Es­ tado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981.

Uma Constituição não é apenas a mais política, como também a mais polê­ mica das leis. Fundamento da ordem jurídica, dela derivam, por consequência, to ­ das as demais leis. Por isso, já dizia Ferdinand Lassalle, que a alteração das leis or­ dinárias não desperta, via de regra, a atenção da sociedade, ao passo que a reforma ou a substituição de uma Constituição por outra acarretam comoção social. Daí a constatação evidente de que uma Constituição não é apenas um documento for­ mal, pois que se reveste de um conteúdo ideológico, que espelha ou deve espelhar os fatores de ordem política e econômica que prevalecem no momento de sua ela­ boração. Tal conteúdo varia, portanto, na medida em que mudam as circunstân­ cias históricas. Como acentua Salvetti Netto, a uma Constituição de caráter liberal-dem ocrá­ tico, vicejante à época do apogeu do liberalismo político e econômico, jamais ocor­ reria declarar os direitos sociais ou disciplinar as relações entre o capital e o traba­ lho, hoje as grandes preocupações das Constituições em vigor. Assim, uma Constituição, para ser bem entendida, deve ser analisada sob dois pontos de vista: a) como ordenamento jurídico estruturador do Estado; b) como objeto das ideologias que, predominantes num dado momento histó­ rico, são recolhidas pelo legislador constituinte. Pelo menos nos primórdios do movimento conhecido como constitucionalis­ mo, isto é, a aceitação unânime da Constituição como documento escrito, esta cui­ dava apenas da estruturação p olítica do Estado, vale dizer, da forma de Estado, da forma de governo e do regime de governo. No Brasil, por exemplo, a forma de na­ tureza monárquica sucede a de natureza republicana. Uma Constituição elaborada em disfunção com os valores sociais predomi­ nantes num dado momento nada mais seria que um corpo sem alma, mera fo lh a de papel. Qualquer Constituição, afirma Lassalle, deve representar a som a d o s fatores reais d o p o d er existentes na sociedade. Os fatores reais do poder são essa força ati­ va e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade, determi­ nando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.

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Lassalle é o típico representante da corrente doutrinária denominada s o c ia ­ lism o constitucional. Para ele, os fatores reais d o p o d er constituem-se fatores jurí­ dicos quando, observados certos procedimentos, são transformados em um a fo lh a de p ap el, recebendo expressão escrita: a partir de então já não são mais simples fa­ tores reais do poder, mas transmutam-se em d ireito, em instituições ju rídicas, e qu em aten tar contra eles atentará, pura e sim plesm ente, contra a lei e será castiga­ d o. Segundo Lassalle, há, na verdade, duas Constituições num Estado: a real e e fe ­ tiva, formada pela soma dos fatores reais e efetivos que imperam na sociedade, e a escrita, mero documento ou folha de papel. Esta folha de papel, este documento, enfim, só será durável se corresponder à constituição real, aquela que tem suas raí­ zes nos fatores reais de poder. Os problemas constitucionais, afirma Lassalle, não são, primariamente, pro­ blemas de d ireito, mas de p o d e r ; a verdadeira Constituição é a real e efetiva; as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis, a menos que venham a ser a expressão fiel dos fatores reais do poder. Acusado de professar uma doutrina que afirmava o predomínio do poder sobre o direito, Lassalle defendeu-se afirmando que sua teoria era desenvolvida no plano do que real e efetivam ente é, e não no pla­ no do dever ser. A doutrina dos fatores reais do poder foi tacitamente comprovada por várias obras de conhecidos autores, como Charles A. Beard e Harold Laski. No surgimento dos EUA, a maior parte dos membros da Convenção de Fila­ délfia reconhecia que a propriedade tinha direito especial na Constituição, assim como esta não foi criada p o r to d o o p ov o, como afirmam os juristas, e tampouco p elo s E stad os, como sustentaram, por longos tempos, os que, no sul, desejavam anulá-la. Foi obra de um grupo compacto, cujos interesses não reconheciam fron­ teiras estaduais e que eram realmente de âmbito nacional. Em seus C om en tários à C on stitu ição F ederal brasileira, v. 1, p. 35, Ruy Bar­ bosa afirmava que “as constituições são consequências da irreversível evolução eco­ nômica do mundo”. A exemplo da concepção de Lassalle, também a concepção marxista de Cons­ tituição é sociológica. Para o marxismo, E stado e D ireito são meras superestruturas que se sustentam sobre as relações d e p rod u ção da sociedade dividida em classes. E s­ tado e D ireito são o produto da divisão da sociedade em classes antagônicas e cons­ tituem um instrumento nas mãos da classe dom inante. Para o marxismo, qualquer Estado é, antes de mais nada, a organização política da classe dominante, que garan­ te seus interesses de classe, ao passo que o Direito representa a vontade desta classe. Na concepção marxista, a Constituição é um produto das relações de produção e visa assegurar os interesses da classe dominante, representando a norma suprema da organização estatal, determinada pelas condições da existência material. Em posição antagônica ao sociolog ism o constitucional de Lassalle e Marx sur­ ge o norm ativism o m eto d o ló g ico de Hans Kelsen, estribado numa concepção me-

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ramente jurídica da Constituição. Para Kelsen a norma constitucional é norm a p u ­ ra; o Direito deve ser concebido estritamente como direito positivo, sem nenhuma pretensão a fundamentações sociológicas, políticas ou filosóficas. Embora Kelsen admita que na base do Direito existem dados sociais, uma realidade social comple­ xa que o explica, e que também o Direito é inspirado por teorias e princípios filosó­ ficos, ele afirma que o estudo de tais fenômenos n ão com p ete a o jurista, e sim ao so­ ciólogo e ao filósofo. A teoria pura do Direito busca justamente expurgar da ciência jurídica toda classe de juízo de valor moral ou político, social ou filosófico.

4) REVOLUÇÃO, GOLPE DE ESTADO E INSURREIÇÃO Bibliografia: c a eta n o , Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional, Lisboa, Coimbra Editora, 1972. e r ö s , J. S. “Revolução”, in Dicionário de ciências so­ ciais, Fundação Getúlio Vargas/MEC - Fundação de Assistência ao Estudante, 1986. f e r r e ir a f il h o , Manoel Gonçalves. Direito constitucional comparado, São Paulo, Bushatsky/Edusp. Gö r l it z , Axel. Diccionario de ciencia política, Madrid, Alianza, 1980. PARETO, Vilfredo. Trattato di sociologia generale, Milano, Edizioni di Comunitá, 1981. REVOL Mo l in a , Elugo. “Golpe de Estado”, in Dicionário de ciências sociais, Fundação Getúlio Vargas/MEC - Fundação de Assistência ao Estudante, 1986.

O termo rev olu ção denomina a mudança brusca e radical de convicções so­ ciais. Tais convicções podem ter a mais variada natureza: política, econômica, ju­ rídica, artística e até, so i disant, sexual. Interessa-nos, evidentemente, o conceito de revolução política. Esta pode ser definida como a mudança repentina, violenta ou não, das instituições e dos governantes. Com efeito, na revolução política tu do é subvertido: os governantes são apeados do poder, e as leis que haviam consagrado são substituídas, em nome de uma nova ideologia. Apontam-se, como exemplos tí­ picos de revoluções violentas, a Revolução Francesa (1789) e a socialista russa (1917). Como exemplo de revolução não violenta podemos citar a Revolução R e­ publicana do Brasil (1889), quando houve substituição dos governantes, bem como da forma de Estado (de unitária para federal), da forma de governo (de monárqui­ ca para republicana) e do regime de governo (de parlamentarista para presidencia­ lista). Já se vê que, na revolução, o emprego efetivo da violência material (vis m aterialis) ou coerção nem sempre é necessário, embora a violência psicológica (vis com pulsiva) seja inafastável nos movimentos de fato. Como negar, entretanto, o poder revolucionário a uma Assembleia Constituinte? Sem o emprego da força, pode esta Assembleia subverter, por inteiro, a ordem jurídica vigente, substituindo-a por outra, bem como os próprios governantes, que a ela, soberana, devem curvar-se. J. S. Erõs, em verbete intitulado “Revolução”, aponta três correntes moder-

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nas do estudo da revolução: a p rog ressista ou ev olu cion ária, a con serv ad ora e a positivista ou científica. A concepção progressista pontificou no século X IX , con­ gregando homens de esquerda e liberais-democratas. Aqueles, afirmando que as re­ voluções constituem etapas do progresso inevitável da Humanidade, rumo ao igua­ litarismo; estes, mais preocupados com o incentivo à sublevação das massas contra os déspotas, mostrando mais preocupação com a liberd ad e individual. A corrente con servadora mostra-se uma reação à Revolução Francesa, e suas concepções têm natureza feudal, tradicionalista, teocrática ou monarquista. Para os conservadores, as revoluções são meras explorações dos sentimentos populares, mostrando-se incontroláveis e destrutivas, manifestações de regressão à mentalidade primitiva. Fi­ nalmente, na concepção positivista, o termo rev olu ção apresenta um matiz pura­ mente descritivo, sem qualquer conotação ideológica. Para esta corrente, todas as revoluções são genuínas, desde que se possa aferir que elas sejam apoiadas por uma camada considerável da coletividade. Para os anarquistas, como Proudhon, Bakunin e Kropotkin, uma revolução não passa da substituição de um déspota por ou­ tro. Contudo, a somatória dos pequenos benefícios que cada movimento revolu­ cionário irá incorporar às conquistas sociais acarretará, felizmente, a vitória da igualdade no mundo. Curiosas se mostram as doutrinas de Karl M arx e Vilfredo Pareto sobre a re­ volução. M arx nega, veementemente, a teoria da revolução deflagrada em nome dos direitos naturais, que ele considera não científica. Para ele, a revolução surge, de forma inevitável, da confrontação entre classes sociais, como resultado da con­ tradição entre as possibilidades de trabalho, as ferramentas correspondentes (for­ ças de produção) e as relações de fortuna e trabalho (relações de produção). Ora, tal contradição chega, inevitavelmente, a um ponto crítico, que não encontra mais solução no m o d o d e p ro d u çã o tradicional, acarretando o congelamento do desen­ volvimento social e, por consequência, a tensão social. Temos, então, uma confron­ tação entre o ordenamento social estabelecido, estático, e as forças de produção, essencialmente dinâm icas. Isto só pode levar a uma solução revolucionária, mesmo porque as classes possuidoras dos meios de produção estão, necessariamente, inte­ ressadas na manutenção do status qu o. Tais fatores são objetivos; na revolução, po­ rém, haverá, segundo Lenin, uma parcela de su bjetividade, vale dizer, a atividade dos grupos sociais e dos partidos. A conjunção de todos estes fatores acarreta a re­ volução. No dizer de Pareto, conhecido sociólogo ítalo-francês que elaborou um ma­ gistral tratado de sociologia, em todas as épocas e lugares, o Estado é dinamizado por dois setores sociais, que vêm a ser, precisamente, uma elite que governa e ou­ tra que é governada. Com ou sem sufrágio universal, diz Pareto, é sempre uma mino­ ria que governa e que sabe dar a expressão que deseja à vontade popular. Quando a elite dirigente se torna esclerosada e corrompida, surgem movimentos tendentes a estabelecer uma nova ordem. Isto é inelutável. Com efeito, toda elite dirigente,

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inicialmente jovem e vigorosa, cheia de ideais, traz consigo o vigor e a coragem dos leões; entretanto, a influência de fatores negativos, como a corrupção econômica, o abrandamento dos costumes, a ascendência de demagogos e pacifistas, a agita­ ção política e a intranquilidade social, tudo isso faz com que a elite dirigente, já a par de sua própria debilidade, comece a confiar mais na astúcia do que na força. Desta forma, os governantes de leões fazem-se raposas... É chegado, então, o mo­ mento propício ao surgimento de uma nova elite dirigente, casta e portadora de novos ideais, que, desde logo, põe abaixo o ordenamento corrompido, realizando obra tão interessante como a destru ição d e anim ais daninhos. A revolução caracteriza-se, quase sempre, pela manifestação violenta de for­ ças sociais estranhas à organização do Estado, ao establishm ent, enfim. É a massa, uma classe ou partido, com o apoio ou não das Forças Armadas, com o fito de mu­ dar o regime político, a ideologia dominante, as leis e instituições e o pessoal gover­ nante. Quanto ao golpe de Estado, vem a ser a substituição de alguns ou de todos os pressupostos da ordem jurídica vigente, imposta pelos próprios governantes, com a finalidade de permanecerem no exercício do poder. Constitui, no mais das vezes, a usurpação, pelo Poder Executivo, das prerrogativas do Legislativo e, até, do Ju ­ diciário. O golpista ou golpistas contam, invariavelmente, com o apoio de uma par­ cela considerável das Forças Armadas para o reforço de seu poder. Podemos citar, como exemplo típico de golpe de Estado, a outorga da Constituição de 1937, por Getúlio Vargas, a qual instaurou o chamado E stado N ov o. Ao perceber que seu po­ der começava a esmaecer, pressionado pelos litígios partidários, e antecipando-se a uma possível tentativa insurrecional por parte de uma pequena facção das For­ ças Armadas, o caudilho antecipou-se a qualquer tentativa deste naipe, e reforçou bruscamente o seu poder, impondo à Nação uma carta constitucional de caráter autoritário. Insurreição, rebelião, revolta ou pronunciamento (do espanhol p ron u n cia­ m iento) são as várias denominações que toma a manifestação das Forças Armadas, apoiadas ou não em outras forças sociais, contra os governantes, a fim de substi­ tuí-los ou lhes impor orientação política diversa. Assim, se pelo golpe de Estado os governantes pretendem manter-se no poder e, por isso, alteram as instituições neste sentido, na revolução ou na insurreição a principal finalidade é substituí-los. A insurreição pode não alcançar as instituições, pois visa apenas à derrubada dos governantes - por exemplo, no Brasil, a insurrei­ ção de março de 1964 - , mas a revolução atinge, por definição, a própria ordem constitucional, alterando a estrutura social, substituindo a ideologia dominante e criando um novo ordenamento jurídico. Seja como for, consoante advertência de Hugo Revol Molina, pode ficar difícil para o analista estabelecer, desde logo, quando um movimento político repentino é um golpe de Estado ou uma revolução, pois as primeiras ações e decisões do grupo que

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toma o poder político resumem-se, via de regra, a medidas destinadas a consolidar a posição alcançada. A diferença entre golpe de Estado e revolução somente pode ser es­ tabelecida ex p ost facto. Dessa forma, embora os grupos que, na América Latina, che­ gam ao poder, mediante uma ação apoiada na violência ou na ameaça desta, qualifi­ quem sua posterior ação governamental como revolução, a análise sociológico-política encarada sob uma perspectiva histórica permitiu mostrar que, salvo raras exceções, a maioria das ações desse tipo, ocorridas no século X X , resumiu-se a meros golpes de Es­ tado, não obstante as manifestações verbais que as acompanharam.

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FORMAS DE ESTADO

1) UNIÃO PESSOAL Bibliografia: SALVETTi

Paulo. Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1986.

b o n a v id e s ,

n etto,

A união pessoal de Estados vem a ser uma espécie de fed eração, em que, aci­ dental e involuntariamente, as leis de sucessão monárquica ensejam a coincidência de um só príncipe ocupar dois tronos, tornando-se o titular comum do poder em Estados que preservam sua soberania. A união pessoal: a) é casual, fortuita, decorrendo de mera coincidência na or­ dem sucessória dinástica; b) é transitória, pois cessa o vínculo com a extinção da dinastia imperante; c) inexiste fundamento jurídico unitário entre os Estados par­ ticipantes da união, os quais mantêm incólume sua soberania, sendo a União des­ tituída de personalidade jurídica internacional. A união pessoal, assim como a união real, constitui, hoje, mera figura histó­ rica, em face do declínio da forma monárquica de governo. Constituem exemplos históricos de uniões pessoais: Espanha e Portugal (1580-1640); Inglaterra e Hanover (1714 -1 8 3 7 ); Alemanha e Espanha (1519-1556).

2) UNIÃO REAL Bibliografia:

Paulo. Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. SALVETTi n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1986. b o n a v id e s ,

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A união real de Estados é uma espécie de fed era çã o consistente na celebração, consciente e voluntária, da união de Estados em torno de um objetivo comum (res). Cumpre ressaltar que o adjetivo rea l atribuído à união não se refere, necessaria­ mente, a rei, m on arca, mas a uma coisa {res), um objetivo concreto. A união real: a) não cria um novo Estado, limitando-se a formar uma união de Estados; b) abrange, por via de regra, Estados contíguos; c) a soberania de cada Estado permanece intacta; d) exclui administração uniforme e nacionalidade pró­ pria, admitindo administração comum e economia societária; e) sua duração pode ser permanente ou transitória, podendo dissolver-se por acordo entre os Estados participantes, pela caducidade dos tratados ou pelo desaparecimento da dinastia governante; f) criam-se exército e marinha comuns, e adota-se a mesma política ex­ terna; g) o governante e seus ministros não atuam como representantes de cada Es­ tado participante; h) as relações entre dois Estados da união real são relações in­ ternacionais. Constituem exemplos de uniões reais: Suécia e Noruega (1815-1905); Dinamarca e Islândia (de 1815 até a deflagração da Segunda Grande Guerra); Im­ pério Austro-Húngaro (1 8 6 7 -1 9 1 8 ), quando a Áustria e a Hungria se agregaram sob a autoridade de Francisco José. Este monarca chamava-se Carlos I, na quali­ dade de Imperador da Áustria, e Carlos IV, como rei da Hungria.

3) ESTADO UNITÁRIO Bibliografia: b o n a v id e s , Paulo. Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. Mariano. Las constituciones europeas, Madrid, Nacional, 1979, v. 2. m a l u f , Sahid. Teoria geral do Estado, 13. ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1982. sa l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1986. x if r a h e r a s , Jorge. Curso de derecho constitucional, Barcelona, Bosch, 1962, v. 2. DARANAS,

As formas de Estado podem ser resumidas a duas: sim ples e com postas. A for­ ma simples de Estado é representada pelo Estado unitário, do qual trataremos a se­ guir; as formas com p ostas de Estado correspondem às fed erações, que são: a união pessoal, a união real, a confederação de Estados e o Estado federal. Vejamos o Estado unitário. Essa forma de Estado mostra-se politicamente cen­ tralizada, embora dotada de descentralização meramente administrativa. O poder central irradia-se por todo o territorio, sem limitações de natureza política. Caracteriza-se o Estado unitário, portanto, pela u n icidade do poder. Preleciona Sahid Maluf que o Estado unitário é aquele que apresenta uma or­ ganização política singular, com um governo único de plena jurisdição nacional, sem divisões internas que não sejam simplesmente de ordem administrativa. No di­ zer de Jorge Xifra Heras, um Estado chama-se unitário quando suas instituições de

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governo constituem um único centro de impulsão política. No Estado unitário, to ­ dos os cidadãos estão sujeitos a uma autoridade única, ao mesmo regime constitu­ cional e a uma ordem jurídica comum. A forma política unitária corresponde a uma exigência natural. O Estado, como sociedade necessária, estruturada sob uma or­ dem e um objetivo social, tende à unidade. O problema surge quando se trata de estabelecer o grau ou intensidade desta unidade. Se a centralização política e a des­ centralização administrativa são as características marcantes do Estado unitário, a verdade é que a moderna doutrina já distingue, no Estado unitário, entre centrali­ zação con cen trada e centralização descon cen trada. Na centralização concentrada, os agentes das entidades administrativas são meros núncios das decisões do poder central, de modo que não passam de simples cumpridores dessas determinações, sem qualquer au ton om ia, tanto no qu e fazer quanto no c o m o fazer. Na centralização desconcentrada, porém, já se observa certo grau de competência atribuído aos agen­ tes periféricos do poder, embora persista a depen dên cia hierárquica. O poder, ain­ da aqui, é d eleg a d o , não a u tô n o m o . Por via de regra, portanto, observa-se que o Estado unitário desconcentrado divide-se em d epartam en tos e com unas, que go­ zam de relativa autonomia quanto aos serviços de seu interesse, tudo, porém, como mera d eleg a çã o do poder central, não como poder originário ou de auto-organiza­ ção (self-governm ent). Não se confundem, por outro lado, a referida centralização descon cen trada e a descen tralização prop riam en te dita, porque naquela os agentes atuam em nome do próprio Estado, ao passo que nesta os órgãos descentralizados atuam em nome da entidade secundária da qual se originam. Análoga é a distin­ ção, sempre válida, entre E stad o unitário descentralizado e E stad o fed eral aponta­ da por Paulo Bonavides: naquele, temos a dependência dos órgãos descentraliza­ dos quanto ao Estado unitário; neste, a independência desses mesmos órgãos, no caso do Estado federal. Fenômeno intimamente ligado ao Estado unitário, e que empolga, permanentemente, a doutrina, é o regionalism o, que enseja, por vezes, a própria confusão entre E stad o unitário e E stado federal. Com efeito, a região é uma entidade orgânica de caráter histórico, unidade linguística e até racial, dotada de leis próprias, a ponto de algumas regiões de Estados unitários demonstrarem maior unidade do que certos Estados federais. Assim, na Itália, não é tarefa das mais fá­ ceis caracterizar este Estado como unitário, porquanto, embora a Constituição ita­ liana proclame, no art. 5o, ser a Itália uma república una e indivisível, confere às regiões a mais ampla autonomia político-administrativa (arts. 115 e 117). Quanto ao Brasil, somente durante o Império tivemos como forma de Estado a unitária, de centralização concentrada, desde a promulgação da Constituição de 1824, até 1834, quando, mediante a Lei de 12 de agosto, chamada A to A dicional, complementada pela Lei de 3 de outubro do mesmo ano, que marcou as atribuições dos presiden­ tes das províncias, promoveu-se alguma descentralização política, que permitiu a cada província eleger suas próprias assembleias legislativas.

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4) ESTADO FEDERAL Bibliografía: b o n a v id e s , Paulo. Ciencia política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. Mariano. Las constituciones europeas, Madrid, Nacional, 1979, v. 2. f e r ­ r e ir a f il h o , Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, 16. ed., São Paulo, Saraiva, 1987. m a l u f , Sahid. Teoria geral do Estado, 13. ed., São Paulo, Sugestões Li­ terárias, 1982. SALVETTi NETTO, Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1986. So u z a , José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado, 2.ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976. x if r a h er a s , Jorge. Curso de derecho constitucional, Bar­ celona, Bosch, 1962, v. 2. d a ra n a s ,

Esta forma de Estado constitui uma esp écie do gênero fed eração. Surgiu com a Revolução norte-americana do século XV III, que resultou no aparecimento dos Estados Unidos da América do Norte, mediante a Constituição de 1787. As treze colônias vitoriosas sobre o domínio inglês, inicialmente unidas em con fed eração, conforme estabelecido no documento chamado Artigos de Confederação, de 1777, mostravam-se frágeis neste tipo de união, levando George Washington a dizer: “A Confederação não passa de uma sombra sem substância, e o Congresso, de um ór­ gão inútil”. Por outro lado, como assinala Pedro Salvetti Netto, proibia-se à Con­ federação impor tributos aos Estados confederados, de modo que se exauriam os cofres daquela, empenhada em gravames financeiros para sustentar a frágil união. A situação mostrava-se insustentável. Para solucionar o impasse, reuniram-se os representantes dos Estados confederados para rever os Artigos de Confederação, na célebre Convenção da Filadélfia. Refulgem, então, os memoráveis escritos de três jornalistas: Hamilton, Madison e Jay, que consolidaram a doutrina do federalism o, reunida, posteriormente, no clássico O fed eralista, que esclarece a natureza e as vantagens do Estado federal. Tal doutrina calou fundo na opinião pública, e logo a Constituição terminou por ser ratificada pelos Estados, que exigiram fosse man­ tida a denominação E stad o para cada uma das colônias integrantes do pacto fede­ rativo. Daí a tradicional epígrafe E stad os U nidos d a A m érica. Como assinala José Pedro Galvão de Souza, a partir de então o Estado era um só. Não mais os treze Estados de logo após a Independência. Era um Estado constituído por Estados que se haviam federalizado. Os doutrinadores norte-americanos que inicialmente cos­ tumavam dizer: “T h e United States a re...” acabaram por empregar o verbo no sin­ gular, construção permitida na língua inglesa graças ao artigo invariável: “T he Uni­ ted States is...” . Como lembra, oportunamente, o autor citado: o nome do Estado aplicado a uma entidade não soberana explica-se, pois, no caso nor­ te-americano, em virtude das circunstâncias históricas. Não assim no caso brasileiro,

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quando se começou a chamar de Estados as antigas províncias do Império, tal foi o furor imitativo dos primeiros homens da República. Um Estado só havia sido, sempre, o Brasil, desde os primórdios da colonização, salvo a malograda e efêmera experiên­ cia das capitanias. A Argentina, apesar de Estado federal, adota a denominação pro­ víncias para as unidades federadas. Tanto no caso do Brasil como no da Argentina, chegou-se ao Estado federal partindo da unidade para a multiplicidade, ao passo que no caso dos Estados Unidos partiu-se da unidade para chegar à unidade, através de uma confederação em seguida à qual surgiu o Estado federal. (Iniciação à teoria do Estado, p. 62) Fato curioso é que o Estado de Nova Iorque somente ratificou a Constituição norte-americana após um ano da vigência desta, em 1788. Pois bem, o Estado federal é uma esp écie de federação, composta por unida­ des que, embora dotadas de capacidade de auto-organização e de autoadministração, não são dotadas de soberania, submetendo-se a uma Constituição Federal. Com efeito, o Estado federal não se confunde com a confederação, porque esta é formada por Estados propriamente ditos, vale dizer, entidades políticas dotadas de poder soberan o, in con d icion ad o, ao passo que no Estado federal os Estados-Mem­ bros renunciam ou são despojados de sua soberania, em proveito do próprio Esta­ do federal. Os Estados-Membros passam a dispor de mera au ton om ia, subm etend o-se a uma C on stitu ição que lhes proíbe o direito de secessão, isto é, o direito de se separarem da União. É célebre a Guerra d a Secessão, deflagrada nos Estados Uni­ dos da América do Norte entre 1861 e 1865, quando a Carolina do Sul separou-se da União, seguida nesta atitude por outros Estados-Membros. Quanto à União, é a p esso a jurídica de direito p ú b lico q u e representa o E sta­ d o federal. Tem suas próprias competências (CF, arts. 21 e 22), a par da competên­ cia dos Estados-Membros (CF, art. 2 5 , § I o), e dos municípios (CF, art. 30), cada qual dentro de seu campo de ação, sem poder interferir na competência das demais entidades federadas, com ressalva da competência com u m (CF, arts. 2 3 , 145 e 155) e da intervenção federal da União nos Estados-Membros (CF, arts. 2 1 , V, e 34), e destes nos municípios (CF, art. 35), mas, ainda aqui, as entidades interventoras não atuam em nome próprio, e sim com vistas à integridade do próprio Estado federal como um todo. Vale lembrar, aliás, que a intervenção federal é uma e x c eç ã o à re­ gra da n ão intervenção, como se percebe do texto do art. 34. O E stad o-M em bro ou E stad o fed erad o, para usar a terminologia da própria Constituição, é a unidade básica do Estado federal, sendo dotado do poder de auto-organizar-se e de autoadministrar-se limitado pela Constituição Federal. Tal po­ der chama-se au ton om ia (do grego, au tos = por si só + n om os = norma) e se sub­ mete ao poder soberano do Estado federal, representado pela União. A doutrina clássica é taxativa: os Estados federados não têm o direito de secessão, vale dizer, o poder de se separar da União, como se observa do art. I o, caput, da Constituição

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Federal, na expressão u n ião indissolúvel nele constante. Qualquer tentativa de se­ paração ensejará a intervenção federal, promovida pela União (art. 2 1 , V) nos ca­ sos do art. 34. Exceção ao princípio da indissolubilidade do Estado federal nos dava a extin­ ta Constituição soviética de 1 9 7 7 , que, no art. 72, ao estruturar o Estado federal socialista, admitia, expressamente, que “cada república da União conserva o direi­ to de se separar, livremente, da URSS” . Se a União pode intervir no Estado federa­ do, este pode intervir no município (art. 35), mas em qualquer caso, como vimos, a intervenção é exceção, não regra. A Constituição Federal assegura a autonomia política e financeira dos Esta­ dos federados ao longo de vários artigos, pois de nada valeria a autonomia políti­ ca (art. 25) sem a necessária autonomia financeira (art. 155), concedida esta, tam ­ bém, ao D istrito Federal (art. 1 5 5 ) e aos municípios (art. 1 5 6 ). A exem plo da federação norte-americana (Constituição dos EUA, art. I o, Seção 3a, 17° Aditamen­ to ao texto), o Estado federal brasileiro conta com a participação dos Estados fe­ derados na formação da vontade nacional, mediante o Senado Federal (CF, art. 46), no qual cada Estado federado e o Distrito Federal contam com três senadores (art. 4 6 , § I o). A forma federativa de Estado surge no Brasil com o advento da República (Decreto n. 1, de 1 5 .1 1 .1 8 8 9 ), cujo art. I o estabelece: “Fica proclamada proviso­ riamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira - a República Federativa”, e o art. 2°: “As províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil”. Tal orientação será definitiva­ mente confirmada com a primeira Constituição republicana, de 2 4 .0 2 .1 8 9 1 , arts. I o e 2 o. Concluindo: no Estado federal brasileiro, em vez de duas, há três ordens de competências: a da União, a dos Estados federados e a dos municípios. Nenhuma dessas entidades federadas poderá invadir a competência das demais, sob pena de inconstitucionalidade, com ressalva, como já foi visto, da competência comum a todos (CF, art. 23). No caso específico do Brasil, o E sta d o fed era d o é entidade integrante do Es­ tado federal (CF, art. I o, caput), dotado de poder de auto-organização (art. 25, caput), limitado pela Constituição Federal (arts. 2 5 , caput, parte final, e 34). Tal po­ der de auto-organização chama-se au ton om ia, estando submetido, como vimos, à Constituição Federal, sendo o próprio Estado Federal representado pela União, pes­ soa jurídica de direito público (arts. I o, caput, 2o, 2 1 , 1, e 84, VII, VIII, X IX , X X e XX II). A doutrina clássica é taxativa: os Estados federados n ão têm o direito de se­ cessão, vale dizer, o poder de se separar da União (art. I o, caput); qualquer tentati­ va separatista será tolhida pela intervenção federal (art. 3 4 , 1). O Estado federado pode, por sua vez, intervir nos seus municípios (art. 35). Em qualquer caso, porém, a intervenção é ex ce ç ã o , jamais regra, como se deduz,

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claramente, do teor dos arts. 34 e 35. A par da autonomia política, a Constituição confere, aos Estados federados, autonomia financeira (art. 155). A exemplo dos Es­ tados Unidos da América (Constituição dos Estados Unidos da América, art. I o, Se­ ção 3a e 17° Aditamento ao texto), a federação brasileira prevê a participação dos Estados federados na formação da vontade nacional, por intermédio do Senado Fe­ deral (art. 46). A Constituição Federal aponta, no art. 2 6 , como bens dos Estados federados: 1- as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalva­ das, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; 11 - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob do­ mínio da União, Municípios ou terceiros; 111 - as ilhas fluviais e lacustres não perten­ centes à União; IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União. Quanto à criação de novos Estados federados, assim dispõe o art. 18, § 3o, da Constituição: Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congres­ so Nacional, por lei complementar.

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1) CLASSIFICAÇÕES ANTIGAS E MODERNAS 1.1) Platão (Arístocles) Bibliografia: lin a r es q u in ta n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. p l a t ã o . La República, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1981, v. I; e Las leyes, Madrid, Centro de Estudios Constituciona­ les, v. I. r o b ín , Léon. Platão, trad. Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, Inquérito.

É imperioso distinguir entre fo rm a d e E stado, fo rm a de g overn o e regim e d e govern o. A expressão fo rm a d e E stad o indica a maior ou menor irradiação do po­ der político. Se este é centralizado ou centrípeto, temos o Estado unitário, caracte­ rizado pela cen tralização político-adm in istrativa; se é descentralizado ou centrífu­ go, teremos o Estado federal, de nítida descentralização político-administrativa. Em face disso, as expressões Estado unitário e Estado fed eral indicam form as d e E sta­ do. Já a expressão fo rm a d e gov ern o revela se o poder é exercido temporária ou vi­ taliciamente. No primeiro caso, teremos como forma de governo a R epú blica; no segundo, a M onarquia. Ora, em cada form a d e govern o democrática desenvolve-se um relacionamento peculiar entre as funções executiva e legislativa. Tal relaciona­ mento é chamado regim e d e g ov ern o, de modo que esta expressão afere qual ór­ gão exerce a função governamental. Na série de classificações de formas de governo que ora iniciamos, ocorre-nos a sugestiva tirada do poeta inglês Percy B. Shelley (1792-1822): “Somos todos gre­ gos”. Quis este famoso literato enfatizar a importância da herança cultural helêni-

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ca, colocação à qual aderimos sem hesitar. Por isso, começaremos este tópico com um panorama das ideias de Platão (429-347 a .C ), discípulo de Sócrates (470-399 a.C.) e mestre de Aristóteles (384-322 a.C.). Platão, cujo verdadeiro nome era Arístocles (o apelido derivou do fato de este filósofo ter as espáduas largas, evocando o termo om oplata), pertencia a uma famí­ lia aristocrática, sendo, pelo sangue materno, parente do grande legislador Sólon. Em 4 0 4 a.C., com a tomada de Atenas por Lisandro, a aristocracia chega ao poder, favorecendo a ascensão política de Platão; entretanto, desiludido com a condena­ ção de Sócrates, descrê da organização política tradicional de sua pátria. Dedica-se à filosofia, viajando pelo Egito - do qual tornou-se grande conhecedor - e pela Mag­ na Grécia. Em Siracusa, tentou persuadir o tirano Denis, o Antigo, a aceitar as ideias que expôs no Livro Quinto de sua obra D a república, enaltecendo o valor dos filó­ sofos e criticando a frivolidade e a devassidão da corte. Incomodado, Denis o ex­ pulsou da cidade. Em 387 a.C., Platão fundou sua própria escola, às suas expensas, numa bela propriedade arborizada e regada por nascentes, em meio à qual se eleva­ va um ginásio, conhecida como o parque do herói Academus, nos arredores de Ate­ nas. Em homenagem a Academus, a escola platônica foi denominada A cadem ia, ex­ pressão que passou a designar as sociedades científicas, literárias ou esportivas. Platão morreu em 347 a.C ., aos 82 anos de idade, quando concluía sua obra As leis, que revela seu pensamento definitivo. No livro D a república, Platão idealiza um processo dinâmico de rodízio das formas de governo, fundado num determinismo inafastável. Da aristocracia (de aristoi, melhores, e kratos, poder), forma que considera a melhor de todas, partem, numa sequência inevitável, outras formas. Assim: timocracia (de tim os, honra, e kratos, poder) ou autocracia militar, olig arqu ia (de oligoi, poucos, e arcbe, gover­ no), d em ocracia (de d em os, povo, e kratos, poder) e tirania. Surge a timocracia quando indivíduos de condição social inferior enriquecem e tentam chegar ao poder pela astúcia, no que são impedidos pelos militares, que passam a exercer o poder oprimindo aqueles a quem deveriam proteção. Na timo­ cracia surge agudo conflito entre o bem e o mal, mesclando-se uma sã filosofia de vida com a sede crescente de honras e bens materiais. A timocracia, por sua vez, degenera em oligarquia, quando, então, uma mino­ ria abastada impõe sua arrogância a toda a sociedade, sendo o dinheiro, secunda­ do pela corrupção, a única chave para as portas da ascensão social e política, de modo que logo a desordem campeia irrefreada.Tal situação insustentável vem abai­ xo quando se instala a democracia, forma em que os ricos são expulsos do poder, com a consequente ascensão da massa. Todavia, também ocorrem graves disfun­ ções sociais, pois além dos ricos são banidos os sábios, considerados perigosos para a nova ordem, implantando-se a mais grosseira mediocridade. A corrupção cam­ peia, as Constituições políticas abundam e as boas leis são desprezadas. Tudo isso leva à tirania, pois a liberdade tornada licenciosa só pode levar à escravidão.

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Na obra As leis, Platão mostra-se mais realista, porque mais maduro; já não pretende descrever um Estado ideal, mas aquele que mais se coadune com a praxe política. Então afirma existirem, fundamentalmente, duas formas de governo: a m on arqu ia e a d em ocracia, fundadas em princípios opostos, porém igualmente le­ gítimos: a a u torid ad e e a liberd ad e. Cada uma dessas duas formas de governo só subsiste se faz concessões à outra: a monarquia à liberdade, e a democracia à obe­ diência. Assim, não se configuram nem poder, nem liberdade excessivos. Em As leis, Platão se antecipa a muitas classificações posteriores, ao preconizar uma forma mis­ ta de governo, em que haveria, numa combinação harmoniosa de princípios opos­ tos, um equilíbrio de forças políticas antagônicas.

1.2) Aristóteles Bibliografia: Ar is t ó t e l e s . Política, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983; e La política (passi scelti e commentati da Giuseppe Saitta), Bologna, Zanichelli, 1947. b a r k e r , E. The political thought o f Plato and Aristotle, New York, Dover Publications, s.d. l in a r e s q u in ta n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas politicos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. s t e . c r o ix , G. E. M. de. Las luchas de clases en el mundo grie­ go antiguo, Barcelona, Editorial Crítica, 1988.

Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, era natural da Macedônia, con­ terrâneo de Filipe e do filho deste, Alexandre Magno. Era um típico aristocrata, fi­ lho de um médico abastado, Nicômaco, que soube dar ao filho refinada formação intelectual. Aristóteles correspondeu por inteiro à expectativa do pai; conta-se, até, que num dia em que faltou à aula, seu mestre Platão, ao observar os alunos presen­ tes e constatar a ausência de Aristóteles, teria dito: “Hoje a inteligência faltou!”. Depois de estudar durante vinte anos com Platão, foi encarregado por Filipe da Macedônia de educar Alexandre, que se tornaria, graças às suas conquistas mi­ litares, senhor de vasto império, sendo cognominado o G rande ou Alexandre M ag­ n o. Acompanhando seu discípulo nas expedições que caracterizaram a vida deste, Aristóteles teve oportunidade de visitar e estudar cerca de 150 Constituições de po­ vos diversos. Reunindo este valioso material em obra notável, intitulada Política, formulou sua célebre classificação das formas de governo, adotando, para tanto, dois critérios: o critério num érico, com o qual classificou tais formas consoante o número de indivíduos que governam, e o critério m oral, pelo qual classificou tais formas em puras e im puras, levando em conta o intuito de o governante ou gover­ nantes administrarem visando ao interesse geral ou ao benefício pessoal. Quanto ao número de pessoas a exercer o poder (critério numérico), temos o governo de um apenas, chamado m o n a rq u ia (de m on os, um, e arcb e, governo),

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quando o poder é exercido no interesse geral, forma pura, portanto, ou tirania, quando é exercido no próprio interesse do governante. Sendo o poder exercido por uma minoria no interesse geral, temos a a risto­ cracia (de aristoi, melhores, e kratos, poder), termo que, como se vê, tem sentido original bem diferente do atual; porém, quando a minoria dominante se sustenta na força do dinheiro ou na hereditariedade, visando tão somente seu próprio be­ nefício, surge a oligarquia (de oligoi, poucos, e arcbe, governo), forma impura, cor­ rupção da aristocracia. Finalmente, quando o poder é exercido por muitos no interesse de todos, sur­ ge a p oliteia, cujas formas corrompidas são a dem ocracia (de dem os, povo, e kra­ tos, poder), em que os pobres governam no próprio interesse, ou a dem agogia (de dem os, povo, e agos, orador), situação gravíssima em que todos se julgam aptos a governar, sendo as massas, as multidões desorganizadas, levadas à deriva por aven­ tureiros inescrupulosos, graças a uma empolgante e astuta oratória. Em face do exposto, podemos esquematizar as formas de governo aristotéli­ cas assim: Critério numérico (Leva-se em conta o número de pessoas que governam) M onarquia: governo de um Aristocracia: governo de poucos Politeia: governo de muitos Tirania: governo de um Oligarquia: governo de poucos Dem ocracia: governo de muitos Demagogia: governo de todos

Critério moral (Leva-se em conta a intenção dos que governam) • Formas puras M onarquia: governo de um n o interesse geral Aristocracia: governo de poucos n o interesse geral Politeia: governo de muitos n o interesse geral • Formas impuras Tirania: governo de um n o interesse p essoal Oligarquia: governo de poucos n o p ró p rio interesse Dem ocracia: governo de muitos no p ró p rio interesse Demagogia: governo de todos, em que predominam as paixões e a desordem

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Aristóteles não propende, diretamente, para esta ou aquela forma pura de go­ verno. Ele afirma que cada Estado deve adotar a forma de governo que mais se coa­ dune com suas peculiaridades, até porque a melhor forma de governo é aquela que tem os melhores governantes (Política, Livro III, Capítulo V). Se, por um lado, a monarquia é, na teoria, a forma ideal de governo, pois a aspiração maior do rei é a virtude, enquanto a do tirano é o prazer, na prática, a monarquia é mais suscetí­ vel de corrupção, porque a virtude e o poder raramente andam juntos. Por outro lado, a própria democracia é mais estável que a oligarquia, porque nos regimes oli­ gárquicos a revolução pode operar contra os próprios governantes ou contra o povo, ao passo que, na democracia, a subversão atua apenas contra a minoria oli­ gárquica. Um povo jamais se volta contra si próprio, e a politeia, forma em que predomina a classe média e que tem mais afinidades com a democracia do que com a oligarquia, é também a mais estável de todas estas formas de governo (Política, cit., Livro VIII, Capítulo I).

1.3) Políbio de Megalopolis Bibliografia: lin a r es q u in ta n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. p o l í b io d e m e g a l ó p o l is . Historia universal duran­ te la república romana, Barcelona, Iberia, Muntaner. p r é l o t , Marcel. As doutrinas po­ líticas, Lisboa, Presença, 1973, v. 1. s t e . c r o ix , G. E. M. de. La lucha de clases en el mundo griego antiguo, Barcelona, Editorial Crítica, 1988.

Natural da Arcádia, mais precisamente de Megalópolis, Políbio (205-125 a.C.) foi um historiador grego que recebeu profunda influência das instituições romanas de seu tempo. Embora bem-nascido e exercesse importante papel durante a guerra entre Roma e a Macedónia (171 a 168 a.C.), ao comandar a cavalaria da liga aqueia, foi conduzido à condição de escravo após o conflito. Todavia, seu talento logo foi percebido nos altos círculos de Roma e, obtendo a proteção dos Cipiões, viajou e escreveu livremente, sendo-lhe conferida a administração da Acaia. Impressionado com a organização da República romana, lançou-se à empre­ sa de escrever a história deste período da civilização romana. Em sua obra (da qual, num total de quarenta, restaram os primeiros cinco li­ vros e anotações dos Livros I e XIII) tentou explicar como Rom a, em menos de duas gerações, conquistou o mundo conhecido na época, identificando na sadia concepção e organização da ordem jurídico-política a razão maior de seu sucesso. Seu trabalho, embora afetado em alguns pontos por naturais deficiências, acha-se estribado em séria e copiosa documentação.

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Assim como Aristóteles, Políbio reconhece três espécies boas de governo: a realeza, a aristocracia e a democracia, distinguindo entre m on arqu ia e realeza, sen­ do aquela obtida pela força, e esta, pela equidade e a razão. Na sua H istória uni­ versal durante a R epú blica rom an a, Políbio adverte que os conhecedores da Políti­ ca veem três formas boas de governo: a realeza, a aristocracia e a democracia. Seria de se perguntar, observa Políbio, se tais formas são as únicas ou as melhores. Em qualquer caso há equívoco. Não são as únicas nem as melhores, porque - e nisto reside a originalidade de Políbio - a m elh o r fo rm a de g ov ern o é aqu ela qu e sintetiza as virtudes das dem ais. Como exemplo de Constituição política deste tipo, Políbio indica a de Licurgo, na Lacedemônia. Por outro lado, como se disse, as três formas puras de governo não são as únicas, pois, adverte Políbio, vemos certas monarquias ou tiranias distanciarem-se muitíssimo da realeza, embora monarcas e tiranos procurem, na medida do possível, fazer-se passar por reis. Da mesma forma, há muitos Estados governados por uma minoria, que se busca passar por aristocracia, bem assim por democracia (H istória, cit., Livro VI, Capítulo II). Observa Políbio que nem toda monarquia é realeza, mas apenas aquela que conta com súditos voluntários, e que é exercida pela razão, jamais por medo ou violência. Por outro lado, nem toda oligarquia merece o epíteto de aristocracia, mas apenas aquela em que governam os mais justos e sá­ bios. Finalmente, não é a democracia a forma de governo em que o populacho faz o que bem entende, mas apenas aquela em que o povo venera os deuses, respeita os pais, reverencia os idosos e obedece às leis. Haverá democracia onde tais senti­ mentos prevalecerem (H istória, cit., Livro VI, Capítulo II). Fique assentado, pois, continua Políbio, que há seis formas de governo: três que todo mundo conhece e outras três que com elas se relacionam, sendo que o governo pode ser exercido por uma, por várias ou por muitas pessoas. O governo de um ou monarquia estabele­ ceu-se sem arte, por mero impulso da natureza; dele deriva a realeza, que se im ­ planta com arte e correção. A realeza pode contrair vícios que a transformam em tirania, de cujas ruínas surge a aristocracia. Desta, por natureza governo de pou­ cos, surge a democracia, quando o povo, irritado, busca reparar os desvios dos go­ vernantes, ou a oclocracia (de oclos, multidão, e kratos, poder), em que o povo se torna insolente e menospreza as leis, implantando a irracionalidade e a inseguran­ ça (H istória, cit., Livro VI, Capítulo II). A Constituição da República romana, adverte Políbio, reúne as três formas puras de governo: monarquia, aristocracia e democracia. Em relação aos cônsules (magistrados eleitos anualmente que, em dupla, exerciam a administração pública em substituição ao rei), o regime se assemelha ao monárquico; o Senado, por sua vez, traz consigo a feição aristocrática da República romana e, no que tange aos comícios populares e tribunos da plebe, o elemento democrático. Ora, tal sistema misto, perfeitamente equilibrado, só pode trazer bons resultados, e foi durante sua vigência que Roma conquistou Cartago e estendeu seu império pelo Mediterrâneo. Outro grande mérito da forma mista de governo é o de resistir à natural deteriora­

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ção pelo tempo, a que todas as outras estão sujeitas. Para Políbio, o Estado imóvel, estacionário, é irrealizável, pois, fundado na filosofia de Heráclito, Políbio observa que tudo está em movimento perpétuo; nada é estático. Toda Constituição políti­ ca, por excelente que seja, tende à degeneração e ao perecimento, porque contém em si o germe de sua própria morte.

1.4) Cícero Bibliografia: c íc e r o . Da república, Rio de Janeiro, Athena, s.d. c o s t a , Emilio. Cice­ rone giureconsulto, Bologna, Zanichelli, 1927,2 v. lin a r es q u in ta n a , Segundo V. Sis­ temas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. p r é l o t , Mar­ cei. As doutrinas políticas, Lisboa, Presença, 1973, v. 1.

M arco Túlio Cícero (1 0 6 -4 3 a.C .), o príncipe dos jurisconsultos romanos, além de notável orador, advogado e político, legou à posteridade escritos de gran­ de valor para a literatura e a ciência política. Neste campo, escreveu D a república e D as leis, obras importantíssimas para o Direito Público. D a repú blica é um tra­ tado formado por seis livros, do qual apenas em 1814 foi localizado, por Angelo M ai, um antiquíssimo palimpsesto com o texto integral da obra. Quanto ao Das leis, escrito em exaltação às leis romanas, ficou, ao que parece, inconcluso, com apenas três dos seis livros para os quais a obra foi planejada. Quanto às formas de governo, Cícero não se mostra muito original, ao seguir a classificação tradicional de realeza, aristocracia e governo popular. Para Cícero, qualquer destas espécies de governo se mostra a ideal, conforme as circunstâncias existentes em cada Estado. Todavia, cada uma destas formas tem seus próprios de­ feitos: na monarquia, todos, exceto o monarca, são privados quase completamen­ te de direitos e da participação nos negócios públicos, enquanto no governo aris­ tocrático apenas o povo é livre, porque não precisa intervir nas assembleias, nem detém qualquer poder. Finalmente, no Estado popular, embora se pense que tudo é justo e moderado, a verdade é que prevalece a iniquidade, visto que não há uma natural desigualdade fundada no merecimento (D a república, cit., Livro I, Título II). Embora considerando a monarquia a forma ideal de governo (D a república, cit., Livro I, Título II), e o governo do povo a pior, afirmando, por outro lado, que nenhuma forma de governo será a ideal se considerada isoladamente, propugna, como Políbio, um sistema misto, catalisador das três formas apontadas, com recí­ proca moderação (D a repú blica, cit., Livro I, Título II). Curioso observar que no Livro II, Título II, de D a república, Cícero se antecipa à moderna teoria de separa­ ção de Poderes do Estado ao advertir que:

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se em determinada sociedade não são divididos equitativamente os direitos, cargos e obrigações, de tal forma que os magistrados tenham poder excessivo, os poderosos ex­ cessiva autoridade e o povo exagerada liberdade, não se pode esperar que a ordem es­ tabelecida dure muito tempo.

1.5) Nicolau Maquiavel Bibliografia: lin a r es Qu in ta n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. m a c h ia v e l l i . II príncipe e altri scritti, Novara, Edipem, 1973. p r é l o t , Marcei. As doutrinas políticas, Lisboa, Presença, 1973, v. 2.

Niccolò Machiavelli (1469-1527) ou, em vernáculo, Nicolau Maquiavel, é o famoso pensador italiano, de Florença, que deu origem ao substantivo “maquiave­ lismo”, para denominar, equivocadamente, uma suposta doutrina em que a má-fé e a traição prevalecem, caracterizando o indivíduo “maquiavélico”. Na verdade, e não é este o momento adequado para demonstrá-lo, em sua obra O príncipe, M a­ quiavel pôs a nu a dinâmica política, com realismo e frieza, vendo na Política uma técnica de alcançar o poder e permanecer nele, empregando, para tanto, quaisquer meios, d esd e qu e o o b jetiv o fo s s e legítim o. Daí a frase que lhe é atribuída: “O fim justifica os meios”. Nesse sentido, observe-se a clareza com que Marcei Prélot sin­ tetiza o pensamento de Maquiavel: A simulação e a dissimulação: o Príncipe é conhecedor das circunstâncias, é cola­ borador avisado da Providência, mas é também o que engana a sorte, grande amador da astúcia e grande adorador da força. A grandeza: o Príncipe está acima do comum. O que o autoriza a escapar à moral é o fato de estar colocado acima da mediocridade ambiente. Situa-se para além do bem e do mal. Cupidez, capacidade, fraude, dolo, rou­ bo, libertinagem, deboche, velhacaria, perfídia, traição, que importam, visto que tudo isso não deve ser julgado segundo a bitola comum que rege a vida privada, mas segun­ do o ideal de um Estado que se tem de constituir e de manter. Desde que o Príncipe al­ cance o resultado desejado, todos os meios são considerados honestos. {As doutrinas políticas, v. 2, p. 40) Quanto às formas de governo, Maquiavel formula suas espécies, e a dinâmi­ ca respectiva, em duas obras fundamentais: os D iscursos so b re a prim eira décad a de T ito L ív io, publicada em 1531, e O príncipe, de 1532. Nos D iscursos, Maquia­ vel expõe seus conceitos referentes à forma republicana, ao passo que em O p rín ­ cipe o faz relativamente à forma m on árqu ica. Logo na abertura desta última obra adverte: “ Tutti gli stati, tutti i d om in i cbe h an n o avuto e han n o im pero sopra li uo-

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Nicolau M aquiavel (1469-1527)

mini, s o n o stati e so n o o repu bliche o prin cip ati” (“Todos os Estados, todos os do­ mínios que tiveram e têm poder sobre os homens, foram e são repúblicas ou prin­ cipados” ). Nos D iscursos Maquiavel lembra que pensadores antigos reconheciam três espécies de formas de governo: a monárquica, a aristocrática e a democrática, de­ vendo os legisladores de cada Estado optar por uma delas. Outros, todavia, classi­ ficavam as formas de governo em seis, três péssimas e três boas - monarquia, aris­ tocracia e democracia, porém estas, mesmo sendo boas, acham-se tão expostas à corrupção que chegam a ser perniciosas também. Assim, quando o legislador orga­ niza o Estado sob a égide de uma das três boas formas de governo, o faz por pou­ co tempo, uma vez que não percebe que ela, fatalmente, se corrompe. Todas as for­ mas de governo, isoladamente consideradas, são nocivas: as três consideradas boas, por sua curta duração, e as demais pela malignidade que lhes é intrínseca. O legis­ lador prudente não as levará em conta, esta belecen d o um a fo rm a m ista d e q u e to ­ das as form as b oas participem , a qual será mais firme e estável, porque, numa Cons­ tituição em que coexistam a monarquia, a aristocracia e a democracia, cada uma destas formas vigia e reprime o abuso das demais (Discursos, cit., Livro I, Capítu­ lo II). Ao contrário da maior parte dos autores clássicos, Maquiavel não reconhece a existência de três ou seis formas de governo, mas apenas duas, como o faz em O prín cipe: a m on arqu ia e a repú blica. Aliás, em seu tempo, Maquiavel não conhe­ ceu, na prática, mais do que duas formas de governo: república e tirania. Seu país, dividido por lutas internas, onde as cidades formavam verdadeiros Estados em luta, era um campo fértil para as ambições de tiranos e demagogos. Na obra D iscurso sob re a refo rm a d a C on stitu ição d e F loren ça, assume postura diversa da adotada

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nos Discursos, ao questionar a forma mista de governo, afirmando que não se pode garantir a Constituição de um Estado senão estabelecendo uma verdadeira repú­ blica ou uma verdadeira monarquia, sendo defeituosos todos os sistemas interme­ diários. A razão, prossegue, é evidente: tais governos concorrem para a destruição tanto da república como da monarquia, conforme a forma mista deriva para uma ou outra destas formas.

1.6) Montesquieu Bibliografia: lin a r es Qu in ta n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. m o n t e s q u ie u . D o espírito das leis, São Paulo, Difu­ são Europeia do Livro, 1962, v. 1. p r é l o t , Marcei. As doutrinas políticas, Lisboa, Pre­ sença, v. 3. st a h l , Lederico Julio. Historia de la filosofia dei derecbo, Madrid, La Es­ pana Moderna, s.d.

Charles-Louis de Secondat, Barão de la Brède e de Montesquieu (1689-1755), nasceu em Brède, perto de Bordéus. Pertencente à antiga nobreza, estudou Direito sem ter ficado muito satisfeito, por não desejar ficar adstrito aos textos legais, mas sim buscar o verdadeiro “espírito das leis” . Talentoso, demonstrou pendor não só pela História e pelas letras, sendo tido por muitos como o precursor da Sociologia, enveredando, também, pelas ciências puras e pela própria anatomia. Em 1716 pu­ blicou sua D issertação s o b r e a p olítica d os rom an os na religião, criou um prêmio para trabalhos sobre anatomia, publicando, também, comunicações sobre certas doenças; escreveu sobre as glândulas renais e chegou a iniciar uma H istória física da terra antiga e m od ern a. Conheceu toda a Europa, em especial a Inglaterra. Fez excelentes relações de amizade, das quais poderia ter tirado grande proveito, toda­ via, preferiu retirar-se para um castelo de sua cidade natal e trabalhar em novas obras, com base na experiência adquirida em suas viagens. Em 1734 publica a mo­ nografia C on siderações s o b r e as causas da grandeza e d a d ecadên cia d os rom anos e, em 1748, após nada menos do que vinte anos de esforços, sua maior obra O es­ pírito d as leis, seguida, dois anos após, de um suplemento intitulado E m d efesa d o espírito das leis. Alquebrado pelo trabalho, já com mais de sessenta anos de idade, vê sua saúde arruinada, vindo a falecer em Paris, em 1755. Montesquieu foi o grande sistematizador do princípio da separação das fun­ ções do Estado, mais conhecido como princípio da separação de Poderes, apaná­ gio dos Estados democráticos contemporâneos. Em O esp írito d as leis (Primeira Parte, Livro Segundo, Capítulo Primeiro), Montesquieu afirma:

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Existem três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico. Para descobrir-lhes a natureza, é suficiente a ideia que deles têm os homens menos ins­ truídos. Suponho três definições ou, antes, três fatos: um, que o governo republicano é aquele em que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano; a monarquia é aquele em que um só governa, mas de acordo com leis fixas e estabelecidas, enquanto no governo despótico, uma só pessoa, sem obedecer a leis e regras, realiza tudo por sua vontade e seus caprichos. Quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberano, tra­ ta-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, trata-se de uma Aristocracia. O povo, na democracia, é, sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o súdito. O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua au­ toridade. Só pode decidir-se por coisas que não pode ignorar e por fatos que estão ao alcance de seus sentidos. Sabe muito bem que determinado homem esteve muitas ve­ zes em guerra e que obteve tais e tais êxitos; é, então, capaz de eleger um general. Sabe que um juiz é assíduo, que muita gente sai de seu tribunal satisfeita com ele, que não se pode corrompê-lo: isso é suficiente para que eleja um pretor. Se está impressiona­ do com a magnificência ou com as riquezas de um cidadão, isso é suficiente para que possa escolher um edil. Todas essas coisas são fatos que o povo aprende melhor na praça pública do que um monarca em seu palácio. Entretanto, saberá o povo dirigir um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos e aproveitá-los? Não, não saberá. Tal como a maioria dos cidadãos que possuem suficiente capacidade para eleger mas não a possuem para ser eleitos, igualmente o povo, que possui suficiente capaci­ dade para julgar da gestão dos outros, não está apto para governar por si próprio. Em cada forma de governo, adverte Montesquieu, há que se identificar uma natureza e um prin cípio. A natureza de um governo é o que faz com que ele seja o que é, vale dizer, sua estrutura e seu mecanismo. Quanto ao princípio, vem a ser aquilo que faz o governo agir, ou seja, a motivação das ações do cidadão, a mode­ lar o espírito geral. Da natureza do governo em Montesquieu, adverte Marcei Prélot, derivam as “leis políticas”, aquelas que têm como objetivo a organização governamental. Por outras palavras, da natureza do governo procede aquilo a que chamamos, hoje, d i­ reito constitucional. Do p rin cípio do governo provêm as leis civis e as leis sociais. Estas visam a conservação de certo meio e a escolha de certas orientações. Diría­ mos, atualmente, que prin cípio informa o direito público geral (As doutrinas p o lí­ ticas, v. 3, p. 58-9).

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O ra, o princípio das repúblicas é a virtude, termo que na obra de Montesquieu denomina a primazia dada ao interesse público. Na república dem ocrática, a virtude chama-se civ ism o; na república aristocrática chama-se m o d era ç ã o por parte dos governantes, a fim de que o povo tenha alguma participação política. Em qualquer caso, a república é uma forma de governo adequada a Estados de peque­ nas dimensões. Quanto à monarquia, mostra sua natureza no fato de o poder político estar nas mãos de um só homem, porém submetido ao império de leis previamente esta­ belecidas. Embora o rei seja a fonte de todo o poder, não concentra em si toda a autoridade, porque também é próprio da natureza da monarquia haver órgãos in­ termediários subordinados e dependentes, que restringem a vontade momentânea e caprichosa de um só homem, e assegurar a continuidade e o cumprimento das leis fundamentais. O poder intermediário mais conveniente é o do clero; o mais natu­ ral, o da nobreza, sendo um terceiro organismo um corpo de magistrados que zela pela preservação das leis e que lembra ao monarca o dever de cumpri-las. O princípio da monarquia vincula-se à honra, a qual nos diz que um rei ja ­ mais deve ordenar uma ação que nos envergonhe, porque isto nos liberaria de servi-lo. Quanto ao despotismo, sua natureza reside no fato de o rei governar sem le­ var em conta as leis, guiando-se apenas por sua vontade e seus caprichos. O prin­ cípio desta forma de governo é o medo, e lembra, ironicamente: “Quando os indí­ genas da Luisiana querem colher frutas, cortam uma árvore pela raiz e apanham-nas. Eis o governo despótico” . Por outro lado, referindo-se, indiretamente, à melhor forma de governo, as­ sim doutrina Montesquieu: A força geral pode ser colocada nas mãos de apenas um ou nas mãos de muitos. Alguns pensaram que, tendo a Natureza estabelecido o poder paterno, o governo de um só estaria mais de acordo com a Natureza. Porém, o exemplo do poder paterno nada prova, pois, se o poder do pai está relacionado com o governo de um só, depois da morte do pai, o poder dos irmãos ou, depois da morte dos irmãos, muitos. O po­ der político implica, necessariamente, a união de muitas famílias. É melhor dizer que o governo mais de acordo com a Natureza é aquele cuja disposição particular melhor se relaciona com as disposições do povo para o qual foi estabelecido. (O espírito das leis, cit., Primeira Parte, Livro Primeiro, Capítulo Segundo)

1.7) Rousseau Bibliografía: lin a r es q u in ta n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. m o r e a u , Joseph. Rousseau y la fundamentación de la

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democracia, Madrid, Espasa-Calpe, 1977. p r é l o t , Marcei. As doutrinas políticas, Lis­ boa, Presença, v. 3. r o u s s e a u , Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos, São Paulo, Cultrix.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filho de um casal de protestantes, Isaac Rousseau e Suzanne Bernard, nasceu em Genebra. Sua mãe faleceu poucos dias após o parto, e seu pai, premido por dificuldades financeiras, resolveu emigrar, dei­ xando-o com sua tia, que orientou Jean-Jacques em suas primeiras leituras. Isaac, emigrando, passa por uma vida atribulada, cheia de vicissitudes. Em 1753, Rous­ seau publica o ensaio O rigem da desigu aldade entre os hom en s; em 1762, sua obra mais conhecida: O con trato social. No seu trabalho sobre a origem e o fundamen­ to da igualdade entre os homens, Rousseau expõe sua famosa teoria do “bom sel­ vagem”, que influenciaria pensadores de todo o mundo. O único período realmen­ te feliz da Humanidade, diz Rousseau, foi o estágio tribal, porque nele ainda não existia a desigualdade social e econômica que viria depois. O contrato social, toda­ via, foi tido por muitos com o uma obra cheia de contradições, pecando, mesmo, por falta de convicção do autor em determinadas passagens, cujas únicas motiva­ ções seriam igualar-se a Montesquieu e adquirir prestígio fácil. Seja como for, a obra continua a ser um clássico da literatura política e sociológica. O contrato s o ­ cial resume o ideal rousseauniano de um governo que limite ao mínimo sua intro­ missão na liberdade dos indivíduos, conferindo a estes, todavia, a mais ampla par­ ticipação política. Em O con trato social Rousseau formula uma classificação das formas de go­ verno nos moldes tradicionais: O soberano pode, de início, confiar o depósito do governo ao povo em conjun­ to ou à maioria do povo, de modo a haver maior número de cidadãos magistrados que simples cidadãos particulares. Dá-se a essa forma de governo o nome de democracia. Ou pode então restringir o governo às mãos de um pequeno número, de sorte a haver maior número de cidadãos particulares que de magistrados, e esta forma de governo recebe o nome de aristocracia. Finalmente, pode o soberano concentrar todo o gover­ no em mãos de um magistrado único, do qual todos os demais recebem o poder. Esta terceira forma é a mais comum de todas, e chama-se monarquia, ou governo real. Devo assinalar que todas essas formas, ou ao menos as duas primeiras, são sus­ cetíveis de maior ou menor e mesmo de grande latitude, porque a democracia pode abarcar todo o povo, ou então restringir-se até a metade. A aristocracia, por sua vez, pode restringir-se da metade do povo até indeterminadamente ao menor número. A própria monarquia é suscetível de alguma partilha. Esparta, de acordo com sua Cons­ tituição, sempre teve dois reis, e houve, no Império Romano, até oito imperadores si­ multaneamente, sem que por isso se pudesse dizer que o Império estava dividido. As-

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sim sendo, existe um ponto em que cada forma de governo se confunde com a seguinte, e vê-se que apenas sob três formas de domínio já se mostra o governo capaz de adqui­ rir tantos aspectos diversos quantos cidadãos possui o Estado. Há mais: podendo um mesmo governo subdividir-se, por diversos motivos, em várias partes, uma administrada de certa maneira, outra de maneira diversa, pode re­ sultar dessas três formas combinadas uma infinidade de formas mistas, cada uma das quais suscetível de ser multiplicável por todas as formas simples. Discutiu-se em todos os tempos a melhor forma de governo, sem considerar que cada uma delas é a melhor em determinados casos e a pior em outros. Se, nos diferentes Estados, o número de su­ premos magistrados deve estar constituído em razão inversa do número dos cidadãos, segue-se que, em geral, o governo democrático é o que mais convém aos pequenos Es­ tados; o aristocrático aos Estados médios; e a monarquia aos grandes. Um povo que jamais abusaria do governo também jamais abusaria da independên­ cia; um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de ser governado. Rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais exis­ tirá. Contraria a ordem natural o grande número governar e ser o pequeno governa­ do. É impossível admitir esteja o povo incessantemente reunido para cuidar dos negó­ cios públicos; e é fácil de ver que não poderia ele estabelecer comissões para isso, sem mudar a forma da administração. Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão per­ feito governo não convém aos homens. As primeiras sociedades governaram-se aristocraticamente. Os chefes de família deliberavam entre si sobre os negócios públicos. Os jovens cediam sem dificuldade pe­ rante a autoridade da experiência. Daí os nomes de padres, anciãos, senado, gerontes. Os selvagens da América setentrional ainda assim se governam em nossos dias, e são muito bem governados. Mas, à medida que a desigualdade de instituição sobrepujou a desigualdade natural, a riqueza ou o poder foi preferido à idade, e a aristocracia pas­ sa a ser eletiva. Finalmente, o poder, transmitido juntamente com os bens dos pais aos filhos, enobrecendo as famílias, torna o governo hereditário, e viram-se então senado­ res de apenas vinte anos. Há, pois, três espécies de aristocracia: natural, eletiva e he­ reditária. A primeira não convém senão a povos simples; a terceira é o pior de todos os governos; a segunda é a melhor: é a aristocracia propriamente dita. Quanto à monarquia, Rousseau demonstra sua ojeriza por tal forma de go­ verno, concedendo-lhe poucas virtudes: Até aqui consideramos o príncipe como uma pessoa moral e coletiva, unida pela força das leis, e depositária no Estado do Poder Executivo. Temos agora a considerar

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este poder reunido em mãos de uma pessoa natural, de um homem real, único investido do direito de dele dispor segundo as leis. É o que se chama um monarca ou um rei. Ao contrário das outras administrações, em que um ser coletivo representa um indivíduo, nesta aqui é um indivíduo que representa um ser coletivo; desse modo, a unidade moral que constitui o príncipe é simultaneamente uma unidade física, na qual todas as faculdades que a lei reuniu na outra, com tantos esforços, se achem natural­ mente reunidas. Assim, a vontade do povo, e a vontade do príncipe, e a força pública do Estado, e a força particular do governo, tudo enfim responde ao mesmo móbil; todas as molas da máquina estão na mesma mão, tudo caminha para o mesmo objetivo: não há mo­ vimentos adversos que se destruam mutuamente, e não se pode imaginar nenhuma es­ pécie de constituição em que um esforço menor produza uma ação mais considerável. Mas se governo não há mais rigoroso que este, também outro não há em que a vontade particular seja mais respeitada e mais facilmente domine as outras; tudo ca­ minha para o mesmo objetivo, é verdade, mas esse objetivo não é o da felicidade pú­ blica; e a própria força da administração gira sem cessar em prejuízo do Estado. Os reis desejam ser absolutos, e de longe lhes bradamos que a melhor maneira de o serem consiste em se fazerem amar por seus povos. Esta máxima é muito bela e ver­ dadeira em certo sentido. Infelizmente, sempre rirão disso nas cortes. O poder oriundo do amor dos povos é sem dúvida o maior, mas precário e condicional; os príncipes ja­ mais se contentarão com ele. Os melhores reis desejam ser malvados, quando lhes ape­ tece, sem cessarem de ser os senhores. Por mais que se esforce um orador político em adverti-los de que a força do povo é a sua própria e de que seu maior interesse deve consistir em que o povo seja florescente, numeroso, temível, eles sabem perfeitamente que tal coisa não é verdade. Seu interesse pessoal está, antes de mais nada, em que o povo seja débil, miserá­ vel, e jamais lhes possa resistir. Confesso que, imaginando os vassalos sempre inteira­ mente submissos, me parece que o interesse dos príncipes residiria na existência de um povo poderoso, a fim de que, sendo dele tal poder, o tornasse temido de seus vizinhos; como, porém, tal interesse é secundário e subordinado, e as duas suposições se mos­ tram incompatíveis, é natural que os príncipes deem sempre preferência à sentença mais imediatamente útil para eles; é o que Samuel, com vigor, apontava aos hebreus, é o que Maquiavel demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as ele, e grandes, aos povos. O príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos. Um defeito essencial e inevitável, que sempre porá o governo monárquico abai­ xo do republicano, está em que, neste último, a voz pública quase nunca eleva aos primeiros postos homens que não sejam esclarecidos e capazes e não os ocupem com dignidade; ao passo que, nas monarquias, os que se elevam são, as mais das vezes, pe­ quenos rixentos, pequenos velhacos, pequenos intrigantes, cujos pequenos engenhos,

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que permitem, nas cortes, alcançar os grandes postos, só lhes servem para demons­ trar ao público o quanto são ineptos, tão logo aí consigam chegar. No tocante a essa escolha, o povo se engana hem menos que o príncipe, de sorte que é quase tão raro encontrar um homem de real mérito no ministério quanto um tolo à testa de um go­ verno republicano. Um inconveniente mais sensível do governo de uma única pessoa consiste na fal­ ta dessa sucessão contínua, que forma nos dois outros uma ligação ininterrupta. As eleições abrem intervalos perigosos; são tempestuosas; e a menos que os cidadãos se­ jam de um desinteresse, de uma integridade acima dos méritos desse governo, as dis­ putas e a corrupção se misturam. É difícil que aquele, a quem o Estado foi vendido, não o venda por seu turno, e não se indenize, à custa dos fracos, do dinheiro que os poderosos lhe extorquiram. Cedo ou tarde tudo se torna venal sob semelhante admi­ nistração, e a paz de que se desfruta sob o governo dos reis passa a ser então pior que a desordem dos interregnos. Na verdade, para Rousseau, a forma ideal de governo é a democracia, que ele aprendeu a admirar observando a antiga Roma republicana e os cantões suíços. Vale lembrar, entretanto, que a democracia eleita por Rousseau é a democracia di­ reta, pois o governo representativo é uma forma de escravidão (O contrato social, cit., Livro III, Capítulo X V ); somente quando participa diretam ente da elaboração das leis o cidadão reafirma sua condição e é verdadeiramente livre. Quanto menos numerosos forem os cidadãos mais a opinião de cada um terá peso, de modo que o ideal democrático é viável apenas nos pequenos Estados da Antiguidade: “Quan­ to maior o Estado, menor a liberdade” , adverte Rousseau (O contrato social, cit., Livro III, Capítulo I).

1.8) Kelsen Bibliografia: ala d á r m é t a l l , Rudolf. Hans Kelsen (Vida y obra), México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1976. k e l se n , Hans. Teoria general dei derecbo y dei Estado, México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1979. lin a r es Qu in ta ­ n a , Segundo V. Sistemas d e partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976.

Hans Kelsen, o criador da famosa T eoriapu ra d o direito, nasceu em 11.10.1881 e morreu em Berkeley, na Califórnia, em 1 1 .0 4 .1973. Não era austríaco, de Viena, como geralmente se pensa, mas tchecoslovaco, de Praga. De ascendência israelita,

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sua vida foi pautada por perseguições raciais, em especial durante o período nacio­ nal-socialista. Conta-nos, a respeito, Rudolf Aladár Métall: É verdade que durante uma sessão sobre o tema Os judeus na ciência do Direi­ to, o professor Erich Jung referiu-se a Kelsen como Kelsen Kohn. Certamente sessões como esta, realizadas em 3 e 4 de outubro de 1936, sob a presidência de Karl Schmitt, foram organizadas pelo Grupo de Professores de Educação Superior da Liga Nacio­ nal-Socialista dos defensores do Direito. O boato de uma pretensa mudança de nome de Kohn para Kelsen foi repetido quase 30 anos depois, por um professor austríaco, como se fosse vergonhoso alguém se chamar Kohn ou Cohn, ou como se a importân­ cia de Hans Kelsen como cientista fosse ofuscada se ele próprio, seus pais ou mais re­ motos ancestrais não se chamassem Kelsen. (Hans Kelsen - Vida y obra, p. 9) Tido por muitos como o grande jurista do século X X , Kelsen inovou, real­ mente, ao criar uma originalíssima Teoria do Direito, não havendo nenhum exage­ ro em afirmar que ele representa para a ciência jurídica o que Karl M arx represen­ ta para a ciência econômica. Embora sua obra mais conhecida seja A teoria pura d o direito, é sobre a Teoria geral d o direito e d o E stado que nos debruçaremos para observar como Kelsen aborda as formas de governo. Afirma Kelsen (T eoria gen eral d e l d erech o y d e l E stad o, Universidad N acio­ nal Autónoma de M éxico, 1979, p. 335) que o problema da teoria política é a clas­ sificação dos governos. A teoria política da Antiguidade distinguiu três formas de Estado (sic): monarquia, aristocracia e democracia, e a moderna doutrina ainda não superou essa tricotomia. A organização do poder é tida como o critério em que a referida classificação se fundamenta. Quando o poder soberano de uma comunida-

Hans Kelsen (1881-1973)

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de pertence a um indivíduo, afirma-se que o governo ou a Constituição são monár­ quicos. Quando o poder pertence a vários indivíduos, a Constituição se diz repu­ blicana. A república será uma aristocracia ou uma democracia conforme o poder pertença a uma minoria ou a uma maioria do povo. Todavia, prossegue Kelsen, o número de indivíduos em quem reside o poder é um critério muito superficial (T eo­ ria general, cit., p. 336). A vontade do Estado não pode ser uma vontade psicológi­ ca, mas jurídica, pois a produção de um ato psíquico de vontade é uma questão psi­ cológica, alheia, por natureza, à Teoria do Estado. Para Kelsen, o qu erer do Estado é o dever ser de sua ordem jurídica, e a vontade estatal nada mais é do que a ima­ gem do sistema normativo unitário da ordem estatal. O critério pelo qual a forma monárquica se distingue da republicana, e a aristocrática da democracia, reside no modo de criação da ordem jurídica. A classificação das formas de governo é, na verdade, uma classificação das Constituições, usado este termo no seu sentido ma­ terial. A distinção entre monarquia, aristocracia e democracia se refere, basicamen­ te, à organização da legislação. Um Estado é considerado democracia ou aristocra­ cia se a sua legislação é de natureza democrática ou aristocrática, mesmo que a administração e o Poder Judiciário possam ter caráter diverso. Da mesma forma o Estado se classifica como monarquia quando o monarca é, juridicamente, o legisla­ dor, mesmo quando seu poder nesta parcela do Executivo se ache rigorosamente restringido e, no campo do Poder Judiciário, praticamente inexista (Teoría general, cit., p. 336). Assim, se o critério de classificação consiste na forma em que, confor­ me a Constituição, a ordem jurídica é criada, então é melhor distinguir, em vez de três, apenas dois tipos de Constituição: a d em o cra cia e a au tocracia, com funda­ mento na ideia de liberd ad e política. Politicamente livre é o indivíduo que se encon­ tra submetido a uma ordem jurídica de cuja criação tenha participado. Um indiví­ duo é livre se aquilo que, de acordo com a ordem social, deve fazer coincide com aquilo que d eseja fazer. A democracia significa que a vontade representada na or­ dem legal do Estado é idêntica às vontades dos cidadãos. A forma oposta à demo­ cracia reside na servidão imposta pela autocracia. Nesta forma de governo, os sú­ ditos se acham excluídos da criação da ordem jurídica, razão pela qual não há garantia de que esta se harmoniza com a vontade popular (T eoria general, cit., p. 337). Assim definidas, a democracia e a autocracia não são realmente descrições de Constituições historicamente consideradas, mas sim tipos ideais. Na realidade po­ lítica não há nenhum Estado que se ligue, com exclusividade, a um ou outro des­ tes tipos ideais. Cada Estado representa uma mescla de elementos de ambos, de tal forma que algumas sociedades se aproximam mais do primeiro destes modelos, ou­ tras do segundo. Entre estes extremos há uma infinidade de etapas intermediárias, a maioria das quais não possui uma terminologia específica. Conforme a termino­ logia usual, um Estado é democrático se nele prevalece o princípio democrático, e autocrático se nele predomina o dogma autocrático (Teoria general, cit., p. 337).

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Segundo Kelsen, a democracia moderna sustenta-se nos partidos políticos, cuja significação cresce com o fortalecimento progressivo do princípio democráti­ co. Por isso considera natural a tendência a institucionalizar expressamente os par­ tidos no texto constitucional, instrumentalizando-os juridicamente para o que são há muito tempo: órgãos para a formação da vontade estatal.

2) FORMAS DE GOVERNO CLÁSSICAS 2.1) Monarquia Bibliografia: a cq u a v iv a , Marcus Cláudio. Novíssimo dicionário jurídico, São Paulo, Brasiliense, 1991, v. 2. b o r d e s , Jacqueline. Politéia, Paris, Les Belles Lettres, 1982. e r r a n d o n e a , Ignacio. Diccionario dei mundo clásico, Barcelona, Labor, 1954, v. 2. g o u v e a p i n t o , Antonio Joaquim de. Os caracteres da monarquia, Lisboa, Impressão Régia, 1824. f i g g i s , John Neville. El derecbo divino de los reyes, México, Fondo de Cultura Económica, 1942. sal ve tt i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981.

Monarquia (do grego m on os, um, e arche, governo) é a forma de governo vi­ talícia em que apenas uma pessoa exerce o poder político. Quando a monarquia é exercida visando ao bem comum, deve ser chamada realeza, mas, quando serve ape­ nas de instrumento para os interesses do governante, denomina-se despotia ou d es­ p otism o. Exercida sob a égide da legalidade, a monarquia chama-se realeza con s­ titu cion al; todavia, se o monarca faz tábua rasa da lei, tornando-se arbitrário, porém visando ao bem comum, deve ser denominada realeza absolu ta. Quando o governante, sem justo título de monarca, empolga o poder pela in­ timidação ou pelo favorecimento de um estamento social, a forma de governo chama-se tirania ou cau dilhism o. Por outro lado, exercida em fraude à lei, no intuito velado do monarca de se manter, sem legitimidade, no comando do Estado, temos o cesarism o, porque foi Júlio César que, traindo a República, tentou perpetuar-se no poder, sendo assassinado no ano de 4 4 a.C. Pedro Salvetti Netto classifica as monarquias em absolu tas ou constitucionais. A monarquia absoluta caracteriza-se pela concentração do poder e pelo arbítrio do rei, que governa desvinculado de qualquer limitação jurídica (solutus legibus). Por outro lado, a monarquia constitucional mostra-se limitada pela lei: rex sub legem qu ia lex faciat regem . A monarquia constitucional, a seu turno, divide-se em m o­ narquia constitucional pura e monarquia constitucional parlam entar. Na primeira, o rei exerce plenamente a função governamental, na condição de chefe de Estado e chefe de governo, consagrado, porém, o princípio da separação e independência

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dos poderes; na segunda, o monarca é apenas chefe de Estado, pois a chefia de go­ verno é exercida pelo gabinete ou conselho de ministros. Sem dúvida a mais antiga das formas de governo, a monarquia é tida por mui­ tos como instintiva, sendo peculiar aos agregados de animais complexos, como o das abelhas, em que uma tendência inata impele estes insetos a viver em função de uma abelha-rainha. A História Sagrada nos ensina que Adão foi o primeiro monarca, a ele pres­ tando obediência Seth e sua família. Os títulos de pais de família, de príncipes e de legisladores pertenceram aos patriarcas bíblicos. Os filhos de Heth (hititas) chama­ ram a Abraão “senhor” e “ príncipe de Deus” (Gênesis, 2 3 , 6). A força de Moisés, investido na Justiça de Deus para castigar a abominação e a idolatria do povo; o poder absoluto de Josué em Socota; e em Fanuel, sem concelho popular nem con­ firmação por senadores, demonstram que Deus lhes confiara sua autoridade: “Per m e R eges regnant, et L egu m C on ditores justa decern u n t,, ou “Por mim reinam os reis, e os príncipes decretam leis justas” (Provérbios, 8, 15). Isto significa que rei­ nam os reis não por convenção humana ou capricho, nem por necessidade ou aca­ so, mas por Deus. Monarcas governaram egípcios, assírios, babilônios, medas, per­ sas, gregos e macedônios. Entre os hebreus, a monarquia começou a se firmar no período dos juízes, consolidando-se com Davi e seu filho Salomão (1082-975 a.C.), que implantou a centralização do poder. O monoteísmo hebraico proibia a divini­ zação do monarca, afirmando, por outro lado, que todo o poder vem de Deus, como afirmavam os profetas. Na Grécia antiga, a monarquia já era praticada na civilização micênica, rece­ bendo referências nas obras de Homero (século IX a.C.). Roma inicia e termina sua história sob a égide da monarquia, e os Estados que resultaram do esfacelamento do Império Romano foram, todos, monárquicos: o dos francos, na França; o dos godos, na Espanha; o dos anglos ou saxões, na Inglaterra; o dos vândalos, na Áfri­ ca; o dos borgonheses, na Borgonha; o dos hérulos, ostrogodos e longobardos, na Itália; o dos hunos, na Hungria; o dos búlgaros, na Bulgária; o dos sarracenos, na Síria, Egito, Mesopotâmia e Arábia. A monarquia teria passado por quatro estágios históricos, a saber: o fam iliar ou patriarcal, o guerreiro, o teocrático e o civil. Todavia, para alguns autores, não há que falar em monarquia patriarcal, pois a monarquia exige um Estado perfeita­ mente integrado em seus elementos formadores, ao passo que o patriarcado era exercido em comunidades pouco desenvolvidas, como a tribo. Quanto à forma de sucessão, na monarquia há três: h ereditariedade, eleiçã o e c o o p ta çã o . Monarquia eletiva encontramos na história de Roma, durante o pe­ ríodo monárquico (753-509 a.C.), até o rei Túlio Hostílio. Exemplo contemporâ­ neo de monarquia eletiva temos na eleição do Papa, efetuada por um colégio car­ dinalício. Quanto à cooptação, trata-se de uma forma de investidura em que o sucedido escolhe, livremente, o próprio sucessor. Como exemplo, o de Nerva, se-

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nador romano, fundador da dinastia, que escolheu como sucessor Trajano, um de seus generais. Também na história dos Incas, reis peruanos que criaram vasto im­ pério na América do Sul pré-colombiana, temos exemplo de cooptação na escolha aleatória, pelo rei Huayna Capac, de seus filhos Huáscar e Ataualpa, que deveriam governar um império fragmentado em duas metades. Os herdeiros, mutuamente enciumados, ocasionaram sangrenta guerra civil, que ensejaria a fácil conquista do Peru pelos espanhóis comandados por Francisco Pizarro.

2.2) República Bibliografia: ananias n e v e s , Márcia Cristina. Nova terminologia jurídica, São Paulo, Rideel, 1992. b e n e y t o f e r e z , Juan. Historia de las doctrinas políticas, 2. ed., Madri, Aguilar, 1950. b o d i n , Jean. Les six livres de la république, Aalen, Scientia Verlag, 1977. Cí c e r o , Marco Túlio. Délia repubblica, Garzanti, 1946. c r e t e l l a j r ., José. Curso de direito romano, Rio de Janeiro, Forense, 1968. l a f e r r i è r e , M. F. Histoire des princi­ pes, des institutions & des lois pendant la Révolution Française, Paris, Libr. Cotillon, 1851-1852. Ma l e t , Alberto. Historia romana, Buenos Aires, Libr. Flachette, s.d. m a t t e u c c i , Nicola. “República”, in Diccionario de política, 3. ed., de Norberto Bobbio e Nicola Matteucci, México, Sigla XXI, 1985, v. 2. m e i r a , Silvio A. B. Curso de direito romano (História e fontes), São Paulo, Saraiva, 1975. Mo n t e s q u i e u . D o espírito das leis, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962, v. 1. p r é l o t , Marcel e b o u l o u i s , Jean. Institutions politiques et droit constitutionnel, 7. ed., Paris, Dalloz, 1978. r o s s i , Pellegrino. Cours de droit constitutionnel, Paris, Guillaumin, 1866, v. 1. s a m p a io d ô r i a . Direito constitucional, 5. ed., São Paulo, Max Limonad, s.d., v. 1, t. 2.

Do latim res pu blica (aquilo que pertence ao povo), o termo república indica, do ponto de vista semântico, o próprio interesse pú blico, ou seja, tudo o q u e é ine­ rente à so cied a d e. De modo usual, todavia, rep ú blica significa uma forma de go­ verno caracterizada, essencialmente, por não ser vitalícia como a monarquia, pois seus cargos políticos são preenchidos, periodicam ente, conforme a vontade do povo, manifestada por eleições, em que a comunidade escolhe seus representantes políti­ cos; ou votações, em que ela manifesta, por maioria, sua vontade a respeito de ou­ tros assuntos de seu interesse. Então, a essência da república não reside, propria­ mente, no fato de ser eletiva - porque há monarquias eletivas, como o Papado, por exemplo - , mas no fato de seus cargos p olíticos n ão serem vitalícios. Observa o Prof. Sampaio Dória: República é governo do povo. Pelo povo, quando representativo. E, para o povo, sempre. No governo republicano, qualidades há essenciais, e, entre elas, atributos pri­

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vativos. Não há república representativa sem eletividade dos que fazem a lei. Mas esta qualidade, embora essencial à república, que não prefira o governo, direto, não lhe é exclusiva, pois que também pode existir na monarquia. O que realmente caracteriza a república como elemento privativo é a eletividade e a temporariedade do chefe do exe­ cutivo. Esta, sua qualidade específica. Não há república, senão quando é o chefe eleito pelos governados, e por tempo certo. Onde houver governo com chefe eleito pelo povo, por tempo determinado, aí se terá república. (Direito constitucional, v. 1, t. 1, p. 155) Sendo popu lar, a república apresenta analogia com a d em o cra cia da antiga Atenas, onde uma parcela da população deliberava, diretam ente, sobre os negócios de Estado. Na verdade, como já foi dito, muito mais do que uma forma de gover­ no como a m on arqu ia, termo que ressalta a raiz arqu ia (do grego arche, governo), repú blica (latim) e politeia (grego) são expressões que denotam o próprio interes­ se p ú blico , aqu ilo q u e é inerente à so cied a d e, e não apenas denominações de for­ mas de organização do poder. Foi M arco Túlio Cícero quem delimitou, com precisão, o sentido mais autên­ tico de res pu blica, ao demonstrar que “ r