Tempos Conservadores: estudos críticos sobre as direitas [1 ed.] 9788568205112

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Tempos Conservadores: estudos críticos sobre as direitas [1 ed.]
 9788568205112

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TEMPOS CONSERVADORES

estudos críticos sobre as direitas Organização Lucas Patschiki Marcos Alexandre Smaniotto Jefferson Rodrigues Barbosa

Goiânia, 2016

Copyright © 2016 Edições Gárgula A marca — Edições Gárgula — está organizada como Selo Editorial do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Contemporânea da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (NEPHC/FH/UFG) e do Grupo de Pesquisa – Capitalismo e História: Instituições, Cultura e Classes Sociais (UFG/CNPq). Seu propósito editorial é o de publicar a produção acadêmica dos professores e pesquisadores que compõem o NEPHC e o GP — Capitalismo e História. Tratase de um Selo Editorial de autores associados e sem fins lucrativos. Todas as obras editadas e publicadas pelas Edições Gárgula são custeadas pelos membros participantes do núcleo e do grupo de pesquisa e, eventualmente, por verbas de custeio originadas de editais públicos de agências de fomento à pesquisa. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas / Organização: Lucas Patschiki, Marcos Alexandre Smaniotto e Jefferson Rodrigues Barbosa. Goiânia: Edições Gárgula, 2016. ISBN: 978-85-68205-11-2 1. História. 2. História do Brasil. 3. Ciência Política. 4. Lucas Patschiki. 5. Marcos Alexandre Smaniotto. 6. Jefferson Rodrigues.

Editores Prof. Dr. David Maciel (FH/UFG) Prof. Dr. João Alberto da Costa Pinto (FH/UFG) Conselho Editorial Carla Luciana (Unioeste) Cláudio Maia (UFG/Catalão) Dilma de Paula Andrade (UFU) Eurelino Coelho (UEFS) Fábio Maza (UFS) Gilberto Calil (Unioeste) Gilson Dantas (NEPHC) Marcos Del Roio (Unesp/Marília) Maria Letícia Corrêa (UERJ) Maurício Sardá de Faria (UFPB) Walmir Barbosa (IFG/Goiânia) Organização Lucas Patschiki Marcos Alexandre Smaniotto Jefferson Rodrigues Barbosa Editoração eletrônica Carol Piva Revisão Ana Carolina Neves

Sumário

Apresentação

6

Pedro Leão da Costa Neto

Introdução

8

Gilberto Calil

Paulo Francis, o polemismo a serviço da agenda ultraliberal Alexandre Blankl Batista

12

“A voz do povo, o espírito da França”: uma análise sobre a ascensão da nova líder da Frente Nacional, Marine Le Pen (2011-2014) Guilherme Ignácio Franco de Andrade

35

Gen pés descalços e o nacionalismo japonês: interseções

53



Janaina de Paula do Espírito Santo

Skinheads chauvinistas: integralistas, os “carecas do subúrbio” e o nacional-socialismo brasileiro Jefferson Rodrigues Barbosa

77

A burguesia dependente-associada e a crise: o Instituto Millenium em suas análises sobre 2008

97

Lucas Patschiki

A direita “filantrópica”: o Rotary Clube em debate

121



Marcos Alexandre Smaniotto

Democracia e o pensamento conspiratório: uma análise sobre a função das teorias da conspiração na sociedade a partir das manifestações anti-PT 2014-2015

148

Marcos Meinerz

Golpe de Estado e luta de classes: o caso argentino de 1976

171



Marcos Vinicius Ribeiro

Reflexões sobre a teologia do livre mercado: democracia e livre mercado segundo o Instituto Ludwig von Mises Brasil



194



219

Raphael Almeida Dal Pai

O Instituto Brasileiro de Filosofia: contrarrevolução e justificação ideológica da autocracia burguesa (1964-1965) Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves

Agradecimentos a Paulo Jeca Schulz, Carol Piva, Ana Carolina Neves, Gilberto Calil, Pedro Leão da Costa Neto, David Maciel, João Alberto da Costa Pinto, Jonas Christmann Koren, Thomaz Herler, Julius Daltoé, Alexandre de Almeida e César Saad.

Apresentação Pedro Leão da Costa Neto

O presente volume reúne diferentes contribuições de nove historiadores e um cientista social, apresentando-nos os resultados de suas pesquisas acadêmicas, que foram realizadas, em particular, na Unioeste de Marechal Cândido Rondon e em distintos centros de pós-graduação — UFG, UFPR, UFRGS, PUC-RS e Unesp. Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas revela, em seu caráter crítico, a homogeneidade das fontes primárias consultadas, destacando-se uma forte influência do teórico marxista italiano Antonio Gramsci e seus conceitos de intelectual orgânico e aparelhos privados de hegemonia, bem como uma análise temática sobre as manifestações teóricas e práticas da direita, em escala nacional e internacional, desde os anos 1970, mas com claro predomínio de experiências das últimas décadas. Desse modo, o livro analisa manifestações da ofensiva conservadora, abrangendo as diferentes internacionais — o Golpe de Estado Militar da Argentina, em 1976; as críticas nacionalistas ao mangá Gen pés descalços, publicado no Japão em 1973 e difundido no país por mais de uma década; e a evolução da Frente Nacional francesa, entre 2011 e 2014, quando Marine Le Pen assumiu-lhe a direção. Sobre a direita no Brasil, temos um conjunto de artigos dedicados a alguns de seus intelectuais representativos (Miguel Reale, Paulo Mercadante e o polemista Paulo Francis, cujo estilo tem-se tornado um modelo para os intelectuais da direita), bem como a seus diferentes institutos de pesquisa (Instituto Millenium e sua influente divulgação das políticas neoliberais, o Instituto von Mises Brasil e o Instituto Brasileiro de Filosofia). Há também abordagens acerca da atuação do Rotary Clube em Marechal Cândido Rondon, do nebuloso universo das teorias conspiratórias e da evolução dos movimentos skinheads em âmbito nacional. 6

As discussões aqui propostas são bastante atuais, sobretudo nessa época dominada por uma ofensiva cultural e política da direita cada vez mais aberta e, necessariamente, disposta a cumprir seu objetivo e complemento econômico e social: a destruição dos direitos dos trabalhadores. Neste sentido, o livro representa uma relevante contribuição e um importante instrumento de combate à tentativa de construção de uma hegemonia conservadora no Brasil.

7

Introdução Gilberto Calil

Há 30 anos era lançado o livro Tempos Conservadores,1 organizado pelo historiador equatoriano Agustín Cueva, uma obra fundamental para a compreensão dos efeitos do processo internacional de direitização na América Latina. Sob o impacto dos governos de Reagan e Thatcher, tratava-se de identificar e compreender a popularidade de teóricos reacionários como Hayek e Friedman, a seriedade com que eram tratadas pseudociências como a sociobiologia e o avanço ou retomada de fenômenos antigos como o racismo, o machismo e a xenofobia. Tratava-se então de uma “virada conservadora” — título de um capítulo escrito pelo próprio Cueva. A década seguinte veria o auge do neoliberalismo, do irracionalismo e do pós-modernismo, sob o efeito político e ideológico da queda do Muro e do desmoronamento do “socialismo realmente inexistente” (feliz expressão proposta por Edmundo Dias). A eleição de Hugo Chávez, em 1998, marcou o início de uma etapa distinta na América Latina, onde, a despeito de inúmeras contradições e ambiguidades, constituíram-se, em grande parte do subcontinente, governos situados “à esquerda”, com perspectivas reformistas em distintos graus, ainda que sempre dentro dos marcos do sistema capitalista. A despeito de seus evidentes limites, a contraposição com o período de fundamentalismo neoliberal alimentava esperanças. O ciclo de governos petistas no Brasil (2003-2016) se insere neste contexto, ainda que em um formato muito particularmente conservador e conciliador, restringindo-se a algumas políticas econômicas anticíclicas e a políticas assistencialistas focalizadas.

1

CUEVA, Agustín. Tiempos Conservadores: América Latina y la derechización de Occidente. Quito: El Conejo, 1987. A edição brasileira foi lançada dois anos depois, pela Hucitec.

8

Os atuais “Tempos Conservadores” são marcados pelo fim deste ciclo, com a derrocada ou fragilização dos chamados governos progressistas e uma violenta ofensiva ideológica da direita e, particularmente, da extrema-direita. Se em âmbito internacional este processo é marcado simultaneamente por políticas neoliberais, crescimento de partidos fascistas e por fortes resistências que se expressam de distintas formas (como a recente greve na França e a mobilização popular em torno da candidatura Sanders nos EUA), na América Latina e, em especial, no Brasil as forças de esquerda encontram-se na defensiva, com escassa capacidade de disputa hegemônica, enquanto visões de mundo conservadoras, fundamentalistas e antissociais são crescentemente compartilhadas. No Brasil atual, o avanço da direita e da extrema-direita é facilmente perceptível nas manifestações públicas, na disseminação de visões conservadoras nos terrenos social, político, econômico, cultural, educacional e moral e no avanço de articulações políticas envolvendo grupos religiosos fundamentalistas, lideranças ruralistas e tradicionais grupos políticos antipopulares. Uma obra coletiva recentemente lançada — A onda conservadora2 — colocou em destaque alguns dos aspectos e formas de manifestação desta ascensão da direita: atuação de meios de comunicação; criação e fortalecimento de aparelhos privados de hegemonia voltados à disseminação de visões de mundo reacionárias; privatizações e ajuste social;

repressão

policial;

machismo;

instrumentalização

do

discurso

“anticorrupção”; reordenamento urbano excludente; mercantilização da vida; avanço do “politicamente incorreto” agressivo e desqualificador... Estas são algumas dentre as muitas expressões e evidências deste processo e, certamente, há muito mais a ser investigado e discutido, e neste sentido, a contribuição deste livro é certamente valiosa.3

2

DEMIER, Felipe & HOEVELER, Rejane (Orgs.). A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2016. 3

Nota dos organizadores: indicamos, junto com a obra citada, o livro organizado por Sebastião Velasco e Cruz, André Kaysel e Gustavo Codas, Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015) e o amplo dossiê Direitas, política e ideologia, organizado pelo Marxismo21. Disponível em: . Acesso em: 13.6.2016.

9

A disseminação de visões de mundo conservadoras e antipopulares acompanha todo o ciclo dos governos petistas e é facilitada pelas suas contradições e inconsistências e pela renúncia à confrontação ideológica por parte de um governo que era identificado como sendo “de esquerda”. A burocratização e a cooptação dos sindicatos, entidades estudantis e movimentos sociais promoveram a decapitação da direção dos subalternos e abriram caminho para que a atuação dos aparelhos privados de hegemonia controlados pela direita tivesse sua eficácia potencializada. Os efeitos deste processo são enormes e apenas recentemente foi possível que tenham se constituído à esquerda mobilizações e ações massivas comandadas por uma nova geração que já não identifica o Partido dos Trabalhadores como referência de esquerda — as mais destacadas são Jornadas de Junho de 2013 e as ocupações das escolas, iniciadas em 2015 e, atualmente, em curso em vários Estados. Os governos petistas pavimentaram o caminho para a ascensão conservadora através de um conjunto de escolhas conscientes. A intocada subordinação ao capital financeiro determinou estritos limites às políticas sociais, sobretudo em momentos de acirramento da crise. Propostas como a “Agenda Brasil”,4 apresentada pelo governo Dilma, em agosto de 2015, e caracterizada por um sistemático ataque aos direitos trabalhistas e pelo favorecimento ao grande capital favorecem a visão simplória de que “os políticos são todos iguais”, tão cara à extrema-direita que sempre se apresenta como um elemento externo ao sistema. E, para completar, a Lei Antiterrorismo — proposta pelo governo Rousseff, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidenta poucos dias antes de seu afastamento — proporciona um salto de qualidade na escalada repressiva, criando base legal para o enquadramento dos movimentos sociais como organizações terroristas. A rendição ideológica conduzida pelo Partido dos Trabalhadores é, portanto, elemento fundamental do quandro em que se dá o avanço ideológico da direita, sobretudo porque desqualifica e deslegitima perspectivas e projetos que proponham pensar a organização da sociedade em outras bases, ao mesmo tempo em que torna possível que a direita atribua à “esquerda” os perversos efeitos sociais da crise

4

Agenda Brasil (2015). Disponível em: . Acesso em: 18.8.2015.

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capitalista, mesmo permanecendo a economia gerida sob a perspectiva de total subordinação aos interesses e imposições do capital financeiro transnacionalizado. A vigência de um governo que se apresenta como sendo de esquerda, juntamente com sua opção sistemática pelo não enfrentamento ideológico contra a direita — e, na maior parte dos casos, operando mesmo a explícita reificação das premissas ideológicas do capitalismo —, ofereceu condições ótimas para o avanço da direita e da extrema-direita, ao menos até o afastamento de Rousseff. É inegável o avanço ideológico de posições socialmente conservadoras, culturalmente obscurantistas e economicamente liberais e antipopulares, aliado a uma expressiva popularização de intelectuais e lideranças políticas que podem ser caracterizadas como de extrema-direita, defendendo posições fascistizantes e um discurso violentamente antipopular. É igualmente inegável que a virulenta oposição aos governos petistas, em especial de Dilma Rousseff, é combustível decisivo para este avanço. O PT e o governo Rousseff aparecem como objeto principal contra o qual se dirige este discurso. O paradoxo é aqui perceptível: como é possível que seja

apresentado

como

“ameaça

comunista”

um

governo

que

impõe

contrarreformas, mantém uma política econômica estritamente neoliberal, ainda que temperada por políticas assistencialistas focalizadas e, ainda, consegue manter parte dos movimentos sociais submissa? Tudo indica que se trata da construção de uma tropa de choque fascista, cujo crescimento é fomentado pelas misérias do governo petista, mas que visa sobretudo aos movimentos populares autônomos e às eventuais alternativas reais em processo de formação, que têm como perspectiva a construção de uma hegemonia do mundo dos trabalhadores.

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Paulo Francis, o polemismo a serviço da agenda ultraliberal Alexandre Blankl Batista1

Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, o Paulo Francis, chegou a ter o maior salário do jornalismo brasileiro na década de 1990. Para alguns, surpreende que o teor de seu conteúdo textual tenha sido tão valorizado durante aquela época. No final dos anos 1980 e durante os anos 1990, vários leitores espantavam-se diante dos apelos preconceituosos e conservadores de Paulo Francis em suas colunas na Folha de S. Paulo (FSP) e, depois, n’O Estado de S. Paulo (OESP). A despeito dessa fase, o jornalista tem ainda relevante incursão na produção sobre crítica cultural e cobertura da política estadunidense na imprensa brasileira durante a segunda metade do século XX. Foi também um dos maiores polemistas do país e influenciou vários profissionais da imprensa que, em boa medida, hoje, sendo também polemistas, procuram imitar algumas características de seu estilo. Paulo Francis declarava-se trotskista na juventude, tendo uma produção jornalística mais identificada com a esquerda, especialmente na década de 1960. Ao longo da década de 1970, percebe-se uma “fase de transição” em sua postura político-ideológica e, especificamente, a partir de meados da década de 1980, uma guinada ao liberalismo. Na transição da década de 1980 para 1990, Francis apresentava a sua faceta conservadora, registrando em seus textos e avaliações político-sociais o preconceito contra afrodescendentes e nordestinos, além de sua

1

Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor do Colegiado de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

12

vulgata ultraliberal, reproduzida do pensamento único, reinante na grande imprensa brasileira naqueles tempos. Este texto objetiva apresentar alguns resultados de pesquisa, tratando brevemente do polemismo e da trajetória de Paulo Francis a partir de sua atuação na imprensa.

O polemismo de Francis O polemismo, atualmente, parece ser uma ferramenta bastante difundida em blogs de internet, na televisão e em determinados espaços de jornais e revistas da grande imprensa. Tem sido apresentado para vulgarizar posições ideológicas e constituir um chamariz que atraia público, pró ou contra as ideias em pauta. Diante da popularização dos blogs, os textos de polemistas são comumente replicados nas redes sociais, tanto por simpatizantes de determinado blogueiro, para mostrar o grau de identificação com o texto replicado, quanto por opositores daquele discurso, para contrastar o ponto de vista com argumentos distintos e tentar desqualificá-lo. Na televisão, tanto aberta como a cabo, Arnaldo Jabor e Diogo Mainardi foram os primeiros a destacarem-se como os potenciais “herdeiros de Francis”. Mainardi é seu confesso admirador, tentou imitar seu estilo agressivo, permutado a certas doses de aparente erudição, quando escrevia na revista Veja. Jabor, por sua vez, foi quem ocupou espaços importantes na grande imprensa e mídia deixados por Paulo Francis.2 Sobre uma eventual pretensão de Jabor em se parecer com Paulo Francis, o jornalista Paulo Henrique Amorim conta que, em certo momento da trajetória do ex-cineasta, teria se passado o seguinte: “Arnaldo Jabor tinha acabado de saber que o Evandro Carlos de Andrade decidiu dar-lhe uma coluna diária no Jornal da Globo. No térreo do prédio da Globo, na Terceira Avenida, ele celebrou comigo: ‘Vou ser o Francis brasileiro!’. E foi” (AMORIM, 2015, p. 139). Além de Arnaldo Jabor e Diogo Mainardi, hoje, destacam-se variados polemistas, os quais, diversas vezes, lembram o “estilo Paulo Francis”. Esses

2

Nos telejornais da Rede Globo, Jabor passou a ocupar os espaços que antes eram de Francis, imitando o teor irônico e ácido de seus comentários. Tinha ainda substituído Francis na Folha de S. Paulo, quando este migrou para o Estadão. Da mesma forma, o substituiu no Programa Manhattan Connection, do qual, posteriormente, Diogo Mainardi participou.

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profissionais não apenas ocuparam espaços deixados por ele, mas os ampliaram consideravelmente, levando em conta o advento das novas mídias e nichos da internet, não existentes na época de Francis. Entre eles, podem-se citar os escritores Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino, Luiz Felipe Pondé e Olavo de Carvalho. Este último, por exemplo, como destaca Patschiki, “irá emergir na imprensa no vácuo deixado pela morte de Paulo Francis em 1997, em plena conjuntura onde a grande mídia

batalhava

ostensivamente

pela

implementação

do

ultraliberalismo”

(PATSCHIKI, 2013, p. 35). Outros, ainda, criaram-se na esteira do antipetismo exacerbado, neste novo milênio, inaugurado após as eleições presidenciais brasileiras de 2002. Essa maneira de escrita, caracterizada pelo tom polêmico, não é apenas um estratagema político-ideológico. Tem estado em evidência e tem o seu lugar garantido nos meios jornalísticos justamente porque atrai o leitor, tanto o simpatizante quanto o opositor do sujeito que escreveu a polêmica. No caso de Francis, não faltam depoimentos alegando que essa era uma faceta importante de seus textos, ou seja, atraía tanto os admiradores quanto os opositores.3 Por estar em evidência, esse mote começa a despertar o interesse de pesquisadores, especialmente os da área de comunicação social e jornalismo, mas também os das ciências sociais em geral. Alguns estudos dão conta deste tema como estratégia para atrair a atenção do leitor, por uma questão meramente mercadológica ou como artifício para construir uma espécie de ethos, um espaço jornalístico para o qual o leitor seja atraído e permaneça interessado em virtude da polêmica (PEREIRA, 1997; WAINBERG, 2002; BISSON, 2004; PETRIK, 2006; FERREIRA, 2009). Os principais elementos do polemismo — cuja característica fundamental é a linguagem ferina — são o cinismo, a violência verbal e a ênfase na ironia. Desse modo, estimulam-se ou até criam-se casos aparentemente banais, mas que acabam tomando uma proporção maior do que a expectativa comum poderia supor, tendo em vista o ataque a pessoas, a grupos ou organizações político-partidárias e a

3

Cf. o depoimento de Boris Casoy, entre outros, no documentário CARO Francis. Direção: Nelson Hoineff. Brasil. 2010, 98 min, DVD.

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movimentos sociais, evidenciando-se, assim, o caráter político da postura polemista. Além disso, os profissionais que adotam tal postura possuem, frequentemente, laços orgânicos com aparelhos privados de hegemonia, visando determinado projeto de classe ou atuando como vulgarizadores de certa agenda ideológica. Da mesma forma, o “politicamente correto” tem sido desqualificado e até ridicularizado como uma perspectiva de hipocrisia político-filosófica. Mostram-se, então, os traços conservadores que visam legitimar uma postura reacionária frente a temas progressistas, como a contraposição agressiva à atitude feminista e a discussões sobre gênero, por exemplo, ou à aceitação social da homossexualidade, dentre outros assuntos. O mais curioso é que tais posturas são colocadas pelos seus autores como “corajosas”, ou como “desafiadoras do lugar comum” e dos “posicionamentos intelectuais abjetos”.4 Francis foi um precursor recente dessa faceta, pois reunia em seus textos boa parte dos elementos elencados acima. A linguagem ferina de Paulo Francis, no entanto, sempre foi uma característica de seus textos, mesmo em sua fase declaradamente trotskista.

5

Todavia, é importante lembrar que, antigamente,

especialmente nos anos que precederam o golpe de 1964, a imprensa brasileira era bastante incisiva em suas críticas sobre política, assumindo a parcialidade editorial e estimulando a verve de seus colunistas. Naquele ambiente é que se forjou o polemismo de Francis, ainda quando era crítico teatral nos anos 1950. Na década de 1960, adaptou seu estilo para atacar outro polemista da época, o famoso político e jornalista Carlos Lacerda. No jornal Última Hora, entre 1962 e 1964, quando Paulo Francis atuava como colunista político, é que se moldou boa parte do seu “polemismo político”. A primeira de suas polêmicas famosas, no entanto, aconteceu em 1958, quando era crítico teatral do jornal Diário Carioca e atacou a atriz Tônia Carrero, deixando entender que ela ascendera na carreira apenas por sua beleza. Além disso,

4

MAINARDI, Diogo. Acabou o antídoto contra o abjeto. In: Revista Veja, ano 30, n. 6, 12.2.1997, p. 79.

5

Apesar de Francis, ao que parece, nunca ter militado em uma organização trotskista, em sua atuação jornalística na década de 1960 percebem-se indícios de posturas estratégicas que vão ao encontro do trotskismo brasileiro de então. Entre eles, a defesa do brizolismo no pré-golpe de 1964 e a simpatia pelo “nacionalismo militar” de Gal Afonso Augusto de Albuquerque e Lima, em plena ditadura, às vésperas do AI-5.

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insinuava que a atriz dormia com seus colegas de palco e que informantes lhe teriam oferecido, a ele, Francis, fotos provocantes de Tônia, em poses sensuais, publicadas em uma revista pornográfica dos EUA. A reação imediata veio de Adolfo Celi, produtor de Tônia Carrero, que teria dado uma bofetada no jornalista, e do colega de Tônia nos palcos, Paulo Autran, que, ao término de uma peça teatral em que Francis fazia-se presente, soltou-lhe uma cusparada no rosto (MOURA, 1996; NOGUEIRA, 2010). Houve outros ataques pessoais de relevante repercussão, como aqueles direcionados a Carlos Lacerda, no Última Hora, chamado de “fascista” ou “Her Carlos”; a Roberto Marinho, n’O Pasquim, classificado como “um homem chamado porcaria”; e a Roberto Campos, em diversos momentos, e em vários periódicos de imprensa, compreendido como o grande vilão da nação brasileira.6 Do mesmo modo, Caetano Veloso, na FSP, foi menosprezado por Francis, acusado de subserviente diante de Mick Jagger, em uma entrevista, ao que Caetano respondeu, chamando-o de “bicha amarga”. No mesmo jornal, tornaram-se muito conhecidas as polêmicas e ataques ao primeiro ombudsman da FSP, Caio Túlio Costa, ao Partido dos Trabalhadores, de modo geral, a Luiz Inácio Lula da Silva e Luíza Erundina, em particular. Ainda, disparou impropérios e difundiu preconceitos contra nordestinos e a afrodescendentes. Quando atuou n’OESP, Francis conviveu com dois processos acarretados por sua “língua afiada”. Ao referir-se, seguidamente, a Eduardo Suplicy como “Mogadon” (medicamento que, entre os seus efeitos colaterais, deixa o usuário sonolento), foi proibido pela justiça de mencionar o nome dele em suas colunas. O processo movido pelos diretores da Petrobrás também data dessa época, mais precisamente de 1996. No entanto, embora Paulo Francis tivesse feito acusações semelhantes, antes, no próprio jornal, aquele processo teria sido motivado em virtude de uma manifestação do jornalista no programa Manhattan Connection, acusando os diretores da estatal de manterem contas secretas na Suíça, oriundas, supostamente, de desvio de dinheiro público.

6

A partir de 1985, contudo, Francis passava a considerá-lo um grande intelectual, uma espécie de referência na área político-econômica.

16

Da mesma maneira, o jornalista direcionava ataques de agressividade verbal de menor repercussão, mas com teor igualmente ácido, bem como manifestava com proeminência seus rancores políticos e viés ideológico. Parte deles são suas diversas manifestações contrárias, ao longo dos anos 1980 e 1990, ao Movimento Sem Terra e à Central Única dos Trabalhadores, aos grevistas de várias categorias, ao ensino público (considerado ineficaz), a diversos grupos estatais, ao Partido Comunista Brasileiro, à esquerda brasileira em geral, aos professores universitários com viés marxista, especialmente os lukacsianos, mencionados em fins dos anos 1970 em textos da FSP, e os gramscianos, mais citados nos anos 1980. A polêmica de Paulo Francis também parece conservar um estreito limite entre o caráter informativo do jornalismo e a forma de expor o ponto de vista de maneira descompromissada. Em parte, isso explicaria os diversos erros e imprecisões cometidas por ele, além das trocas de datas e nomes. A confiabilidade das fontes e a checagem das informações parecem ficar em segundo plano frente ao impacto do que se quer dizer ou fazer pensar. Segundo Paulo Henrique Amorim, que conviveu de perto com o polemista no escritório da Rede Globo de TV, em Nova Iorque, Francis, a certa altura, não escrevia mais as colunas para a Folha — até ser defenestrado — e depois para o Estadão e O Globo. Apenas se deitava na cadeira da redação, usava o telefone da Globo e ditava a coluna — geralmente em torno do que tinha acabado de gravar. Outras vezes, no auge da crise da dívida, ele dizia: “Conversei com um banquei-ro…” E espinafrava o Brasil. Geralmente, o “ban-quei-ro” era o Pimenta das Neves, funcionário subalterno do serviço de imprensa, em Washington, do Banco Mundial, outro que espinafrava o Brasil no Estadão. Ou Francis se baseava num relato precário de um produtor d’O Globo e da Globo, Régis Nestrovski, que ia às coberturas da dívida e captava o que cabia nos termos do futebol americano, tema em que se especializou (AMORIM, 2015, p. 138).

É esclarecedor constatar que uma das causas que o aborreceram na polêmica contra o ombudsman, na FSP, foi o fato de Caio Túlio Costa afirmar, em

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certo momento, que Francis não faria jornalismo na Ilustrada: 7 “Ali ele é mais o Francis ficcionista, o cronista dos tempos, diz besteiras e coisas sábias. Escreve o que muitos pensam e não ousam falar em voz alta. É preconceituoso, vulgar, chuta alguns dados […]” (COSTA, 2006). O exemplo torna-se simbólico, referente ao legado que Francis deixou, já que um de seus pretensos imitadores de estilo, ao que parece, acabou sendo defendido com o mesmo argumento de que não deveria ser levado a sério. Este foi o caso de Arnaldo Jabor, tendo a incumbência de comentar sobre política nos telejornais da Rede Globo.8 Por tudo isso, não é à toa que Francis tornou-se um guru para vários jornalistas controversos e polemistas brasileiros contemporâneos. Foi assim com Rodrigo Constantino e Diogo Mainardi, desde cedo apontados como pretensos prodígios, potenciais continuadores do estilo Francis. Ele também tem sido a referência para Arnaldo Jabor nos seus comentários televisivos, para Reinaldo Azevedo (que se diz ex-trotskista, a exemplo do que ocorria com Francis) e até para Olavo de Carvalho, que combina uma linguagem de baixo calão com aparência de erudição. Aquilo que Bernardo Kucinski chamou de “método Paulo Francis”, ou “Paulo Francis, uma tragédia brasileira” tem protelado a incumbência de “chocar e divertir”, como dizia o autor, e menos informar (KUCINSKI, 1998), o que vai contra a essência de um jornalismo feito com maior seriedade.

7

Em depoimento para o documentário CARO Francis, já citado, Daniel Piza relata: “Chamar de cronista, neste contexto, é uma coisa meio negativa… ‘Ah, não é um jornalista!’ E ele era um jornalista, só que um jornalista de opinião”. 8

Luiz Carlos Azenha relatou o seguinte sobre Jabor, quando explicava um caso de assédio moral que teria sofrido, relacionado ao processo político eleitoral de 2006: “Argumentei, então, que o comentarista de política da Globo, Arnaldo Jabor, havia dito em plena campanha eleitoral que Lula era comparável ao ditador da Coreia do Norte, Kim II-sung, e que não acreditava ser essa postura compatível com a suposta imparcialidade da emissora. Resposta do editor, que hoje ocupa importante cargo na hierarquia da Globo: Jabor era o ‘palhaço’ da casa, não deveria ser levado a sério”. AZENHA, Luiz Carlos. Globo consegue o que a ditadura não conseguiu: calar a imprensa alternativa. In: Carta Capital, 30.3.2013. Disponível em: . Acesso em: 31.3.2013.

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Trajetória jornalística e virada ideológica de Francis Podemos identificar os principais motes da atuação intelectual de Paulo Francis, entre a década de 1960 até o seu falecimento, no início de 1997, tentando compreender sua atuação orgânica em determinados momentos e, em outros, uma indefinição quanto ao apoio de agendas políticas, junto aos periódicos de imprensa para o quais escrevia. Nesse percurso é preciso destacar tópicos como o processo de sua transformação ideológica e os momentos em que desempenhou o papel de intelectual orgânico, na defesa de agendas socioeconômicas e no apoio a programas políticos e a certos candidatos em determinados pleitos eleitorais. Desse modo, é preciso esclarecer que, durante a trajetória intelectual do jornalista, projetam-se fases ideológicas distintas. Paulo Francis descobriu o trotskismo na década de 1950 e, após o golpe de 1964, sofreu o impacto oriundo do advento da ditadura, que impôs um período de mais de vinte anos de repressão político-social ao país. Decorreria daí uma gradual transformação de sua postura intelectual, passando da esquerda para a direita do espectro político, apresentandose como um vigoroso defensor da agenda ultraliberal implantada no país na década de 1990 e tornando-se hegemônica na grande imprensa a partir daquela mesma época. Parte dessas informações, grosso modo, com alguma variação interpretativa, encontra-se nas avaliações de seus principais biógrafos e em certos artigos e dissertações acadêmicas sobre o jornalista. Assim, objetivamente, vamos tentar identificar as prerrogativas que, de uma forma ou outra, estiveram associadas às mudanças que o seu perfil ideológico foi tomando. Uma das questões importantes diz respeito ao seu propalado trotskismo. Notamos em nosso estudo que Francis, aparentemente, jamais militou em quaisquer organizações trotskistas, talvez desconhecesse boa parte delas ou, pelo menos, não as mencionava em seus textos, limitando-se a falar sobre Leon Trotsky ou acerca de seus comentadores. Uma obra em particular parece tê-lo marcado. Trata-se da conhecida trilogia biográfica sobre Trotsky, escrita por Isaac Deutscher. Paulo Francis chegou a participar da equipe editorial de tradução brasileira dessa obra, publicada no final da década de 1960 pela Civilização Brasileira, editora de seu amigo Ênio Silveira. Não é possível descartar completamente uma atuação de 19

Francis em torno das estratégias do trotskismo brasileiro, na época, e das teses de suas organizações militantes. Sabe-se, por exemplo, que o Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR ou PORT), no Brasil, defendeu as teses do trotskismo argentino de vertente posadista, especialmente a partir de 1963, quando passou a defender o nacionalismo de Leonel Brizola até antes do golpe de 1964, além de alinhar-se ao “nacionalismo militar” de Albuquerque e Lima, em meio à ditadura (PEREIRA NETO, 2003). Essas posturas encontram simetria com os escritos de Francis, primeiro no jornal Última Hora, onde atuou até 1964, depois no Correio da Manhã, onde escreveu até o final de 1968. Dessa forma, em sua atuação jornalística pré-1964, mais do que defender Brizola, alinhou-se ao “bloco populista” identificado com lideranças do PTB, alternando, por vezes, apoio condicional com críticas mais contundentes ao então presidente João Goulart. O jornal Última Hora, em seu editorial, assim como em muitos dos textos do próprio Francis, estava focado em defender o governo Goulart e atacar seus adversários políticos, sobretudo o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Portanto, pode-se dizer que o jornalista teve papel conectivo como intelectual, atuando a favor da permanência daquele bloco no poder, predicando um projeto nacionalista de desenvolvimento econômico e social do país. Para isso, utilizou-se do jornalismo diário, adotando, embora com alguma reticência, o perfil editorial da Última Hora, em que apontava caminhos possíveis, tentando persuadir os leitores, por meio de suas ideias, de prováveis soluções dos problemas enfrentados pelo governo brasileiro de então. Todavia, é necessário deixar claro que esse chamado “bloco populista” não era coeso. Entre outras divergências e disputas, havia o enfático interesse de Brizola em liderá-lo. No jornal Última Hora, o jornalista e repórter Samuel Wainer, chefe do jornal, era amigo de João Goulart e o defendia como a principal liderança do PTB. Paulo Francis, ao contrário, deixava clara a sua predileção por Leonel Brizola em vários de seus artigos naquele mesmo periódico. Além disso, existem dados que confirmam Francis como um atuante intelectual orgânico do brizolismo, por um curto período, entre o final de 1963 e 1964. Ainda no final de 1963, tornou-se membro de um dos “grupos dos onze”, os quais foram concebidos por Leonel Brizola (em 29 de

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novembro de 1963, Brizola anunciava a concepção de formação desses grupos em um de seus programas na rádio Mayrink Veiga). Além disso, Francis foi um dos principais articulistas do efêmero jornal O Panfleto, que circulou entre fevereiro e março de 1964, tendo apenas sete números publicados. Esse jornal, pouco estudado até hoje, foi organizado por Brizola para divulgar as suas pretensões nacionalistas e demais estratégias políticas.9 A crítica político-social e a condenação ao chamado “stalinismo” — elementos claramente ligados ao trotskismo — só viriam mais delineadas na produção textual de Francis no período pós-1964. Nesse momento, os seus textos expressavam, fundamentalmente, a preocupação com a falta de liberdade intelectual. Não foi coincidência que esse assunto ganhou dimensão em seus artigos a partir de então. Francis chegou a escrever bastante contra a ditadura civil-militar brasileira em suas colunas do Correio da Manhã e em artigos para a Revista Civilização Brasileira. No entanto, após o AI-5, seus artigos passaram a refletir indiretamente sua insatisfação com a situação nacional, apontando exemplos externos à realidade do país. O regime político soviético foi alvo constante de seus textos para O Pasquim, bem como o exemplo do regime cubano, ambos apontados como ditaduras que cerceavam e reprimiam a liberdade de expressão e a vontade individual dentro do conjunto social. Anos mais tarde, Francis argumentava que essas suas posturas comprovavam que nunca fora conivente com certas práticas da esquerda brasileira, essencialmente as defendidas pelo PCB, pois a crítica ao stalinismo seria produto de sua formação trotskista. Consideramos que, de fato, essa conduta esteve presente na trajetória de Francis, sendo inaugurada, mais evidentemente, após o AI-5, quando publicou um longo artigo para a revista Realidade, em 1969, seguindo linha semelhante em sua produção para O Pasquim. Apesar disso, é difícil encontrar em seus textos uma defesa explícita do trotskismo. Até mesmo eventuais inclinações à esquerda, supostamente vinculadas ao marxismo, na prática, são difíceis de

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A historiadora Elenice Szatkoski publicou recentemente o resultado de sua pesquisa de doutorado, estudando e analisando o conteúdo deste jornal, o qual se encontra, segundo ela, preservado apenas no acervo da Fundação Alberto Pasqualini, no Rio de Janeiro (SZATKOSKI, 2014).

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identificar, haja vista a sua atuação orgânica pré-1964 junto ao projeto nacionaldesenvolvimentista perseguido pelo PTB, no Última Hora, e reafirmada em seus textos produzidos antes do AI-5, quando apoiou abertamente, mesmo com alguma hesitação, a corrente nacionalista da ditadura, contrária à corrente representada por Castello Branco. Francis afirmava-se continuamente como um intelectual pragmático, bradando a necessidade de optar sempre pelo “mal menor”. A postura antistalinista foi uma prerrogativa de vários intelectuais de prestígio, reconhecidos mundialmente durante a Guerra Fria. A própria CIA teria utilizado e estimulado a produção desses intelectuais como forma de reforçar a propaganda antissoviética, dentro e fora dos EUA (SAUNDERS, 2001). Entre eles, encontravam-se vários trotskistas. Paulo Francis envolveu-se profundamente naquele caldo de cultura, já que acompanhava as tendências intelectuais diretamente a partir de diferentes publicações da grande imprensa estadunidense. Não é incorreto aventar que tenha contribuído, mesmo que involuntariamente, para a desejável propaganda ocidental por parte do establischment anticomunista do período. N’O Pasquim, por exemplo, foram comuns comentários seus argumentando sobre a degenerescência do Estado soviético:

Algumas pessoas me consideram inimigo profissional da União Soviética. Ainda não me chamam, que eu saiba, de lacaio da embaixada americana, talvez porque eu seja um crítico tão veemente do imperialismo americano como do soviético, mas conhecendo a intolerância de certos tipos e os antolhos que usam, acho que esse dia chegará. Respondo que lido com fatos. […] À parte realizações materiais, considero a URSS um Estado bárbaro (FRANCIS, 1970, p. 10).

Afinal, ao passo que tecia críticas aos EUA por conta do intervencionismo militar (Francis denunciou avidamente os graves e violentos excessos cometidos pelos EUA no Vietnã), elogiava o ambiente de maior liberdade individual encontrada naquele país comparado com países de orientação comunista no cenário mundial da época. As críticas mais intensas aos EUA foram diminuindo na mesma proporção em que aumentava sua aversão à URSS e ao PCB, coincidindo com seu exílio voluntário nos EUA e o ingresso na grande imprensa paulista, no jornal FSP, a partir do final do

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ano de 1975. No entanto, sua autodeclarada virada ideológica viria em fins dos anos 1970, incorporando elementos novos nos anos subsequentes. Em 1979, por exemplo, declarava na FSP que havia abandonado a esquerda e, conforme dizia, não acreditava mais no socialismo. Assim, confirmava não só ceticismo que já era possível perceber em seus romances Cabeça de Papel, de 1977, e Cabeça de Negro, de 1979, mas também demonstrava uma clara mudança, mais ponderada, quanto à reavaliação de suas críticas políticas, percebidas n’O Pasquim. Sugerimos que sua ponderação naquele momento foi motivada pela repressão do regime ditatorial e foi também um produto de sua revisão em sua condição de intelectual. É difícil assinalar uma posição de organicidade de Francis naquele período, que decorre de sua participação n’O Pasquim, em 1969, até os primeiros anos da década de 1980. Uma publicação, com um título significativo, que já refletia bem a hesitação em suas posições ideológicas, foi Certezas da Dúvida, de 1977, quando expunha uma síntese de suas reflexões intelectuais ao longo da década de 1970. Nessa época, Francis vacilava em apontar caminhos e soluções para os problemas sociais, econômicos e políticos nos âmbitos nacional e mundial. Para ele, os modelos experimentados no capitalismo e no socialismo não serviam. Observava que, na verdade, não havia socialismo nos países do Leste Europeu e em parte alguma. Todas as experiências nesse sentido teriam se transformado em regimes tirânicos e perversos. É bastante expressivo o fato de que pouco tenha argumentado em favor de uma proposição ou projeto social de cunho trotskista como alternativa ao poder constituído no período. Ao contrário, enfatizamos este ponto, percebe-se que jamais militou a favor do trotskismo, sendo, no máximo, um simpatizante de comprometimento distante com a causa e com suas ramificações e organizações. Em fins dos anos 1970, Francis chegou a flertar com o chamado “eurocomunismo”, elogiando em suas colunas para a FSP as concepções democráticas que, segundo ele, guiariam o perfil daqueles projetos elencados por certos PC’s da Europa. A debilidade daqueles projetos, entretanto, parece ter tirado as últimas crenças do jornalista em relação à possibilidade socialista. É preciso frisar que, em 1979, quando declarava o abandono do socialismo, ainda permaneceu

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hesitante quanto a posições ideológicas melhor definidas. A síntese dessa postura é identificada em várias passagens de seu primeiro livro de memórias, O afeto que se encerra, publicado em 1980. Um ano depois, a partir de 1981, foi contratado por Roberto Marinho, o mesmo que ele havia insultado n’O Pasquim, chamando-o de “porcaria”. Sua figura pública colocou-se em maior evidência com as frequentes inserções de seus comentários nos telejornais da Rede Globo de TV. Paulo Francis, então, começou a tornar-se mais popular, também, devido às imitações que os humoristas realizavam de sua performance caricata enquanto apresentava suas crônicas internacionais nessas inserções televisivas. A sua “virada ideológica assumida” somente se completaria em meados dos anos 1980. Precisamente em 1985, no mês de fevereiro, Francis escrevia uma coluna redimindo o até então desafeto Roberto Campos. O economista foi alvo histórico de Francis, execrado desde os seus escritos para o Última Hora, passando pelo Correio da Manhã e pela FSP, em diversas colunas do jornalista. A partir de então, Francis não apenas eximia Campos de boa parte dos males que afligiam o país, como o tomava por guru e grande intelectual brasileiro. Era o início de sua condição orgânica em favor da construção de uma agenda ultraliberal para o país, que se tornaria mais evidente na década de 1990, mas que tinha seus primeiros elementos constitutivos já nesta época. Conforme Francis: Roberto Campos é um guerreiro. Pouca gente é tão odiada no Brasil. […] Mas Campos é respeitado, intelectualmente. Não é um adversário fácil, num debate. Melhora horrores, em pessoa. […] Escrevi coisas brutais sobre Campos. São erradas. Retiro-as. “Como eu não ia dizendo…”. Acontece. Nunca tive a pretensão de ser santo milagreiro. Corro os riscos que sempre levam a erros. […] Mas cheguei à conclusão que capitalismo num país rico é opcional. Num país pobre, no tipo de economia inter-relacionada do mundo de hoje, a suposta saída que se propõe no Brasil de o Estado assumir e administrar, e é o que mais leio neste jornal, leva à perpetuação da miséria, do atraso, da estagnação. Capitalismo no Brasil é uma questão de sobrevivência. […] O que ele [Campos] propõe no Brasil é mais adequado à nossa realidade econômica e social. Ele tem sido xingado por muita gente. É tolice. Se os recursos que o Estado brasileiro canalizou para o estatismo tivessem sido postos ao dispor da iniciativa privada, o Brasil hoje seria uma potência de peso médio e talvez mais. E quanto mais gananciosos os capitalistas, melhor. Ganância é sinônimo de ambição. Se ganha

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dinheiro no capitalismo produzindo e vendendo, produzir e vender requerem garra e gana, ambição. Ganhar dinheiro requer criação de empregos e mercados (FRANCIS, 1985).

Não é coincidência que a FSP, jornal em que atuava, passava por transformação idêntica. A FSP alterava seu perfil editorial exatamente naquele ano, mais precisamente entre julho e agosto de 1985 (FONSECA, 2005). Até aquele momento, o jornal defendia um modelo de desenvolvimento capitalista próximo ao que se entende por “nacional-desenvolvimentismo”, bastante similar àquele com que Paulo Francis simpatizava desde que começou no jornalismo político. Essas posturas confluentes, possivelmente, integraram um grande redirecionamento das classes e frações de classes dominantes, refletidas pela grande imprensa e grande mídia, como resposta à crescente crise econômica e política há tempos sentida no país, oriunda de fatores internos (aumento inflacionário, instabilidade social e econômica) e externos (crise do petróleo, ascensão de um neoconservadorismo nos países centrais do capitalismo mundial, descrédito e penalizações impostas pelos organismos internacionais aos países latino-americanos, etc.). Tudo isso desgastou a ditadura civil-militar e foi parte dos elementos causais que conduziram o país ao processo de transição do governo militar para o governo civil em meados dos anos 1980. A partir de então, Paulo Francis tornou-se, gradativamente, um dos grandes vulgarizadores da agenda ultraliberal aconselhada pelos grandes organismos internacionais, mediadores do controle da economia mundial capitalista, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, tendo respaldo e amparo insinuantes dos EUA para a concretização daquela agenda, formalmente instituída a partir do Consenso de Washington, em 1989. A mesma recomendava o equilíbrio fiscal, exigindo corte de gastos estatais, diminuição da máquina pública e estímulo às privatizações e à abertura dos mercados econômicos. Paulo Francis foi um insistente e agressivo agente defensor das privatizações do setor público brasileiro, seguindo muitos argumentos formulados pelo antigo desafeto Roberto Campos, tentando convencer seus leitores sobre a suposta ineficiência irrecuperável das grandes estatais nacionais e do sistema de ensino público.

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Na mesma proporção de sua atuação orgânica ultraliberal, cresceu a sua aversão aos socialmente desfavorecidos, o seu preconceito racial e regional e, sobretudo, o seu anticomunismo. Acreditamos que essas características são indissociáveis da própria agenda ultraliberal. É necessário lembrar que, na década de 1980, tanto nos EUA como na Inglaterra, multiplicaram-se os discursos de ódio e de aversão ao “terceiro-mundismo”, ao comunismo, ao socialismo e às minorias raciais (CUEVA, 1987). O polemismo de Francis sintetizou todos esses elementos em um só alvo, no final dos anos 1980, ao atacar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à eleição para a Presidência da República. Na oportunidade, hostilizava o fato de Lula ser, em primeiro lugar, supostamente ignorante, porque era oriundo do Nordeste brasileiro, além de não ter frequentado as cátedras superiores de ensino; em segundo lugar, por sustentar uma ideologia socialista, na contramão de tudo o que estaria acontecendo na Europa e no restante do mundo. Segundo Francis, essas seriam características que o desqualificariam para o posto de Presidente da República. Conforme ele mesmo explica: Mais um amigo por dentro e inteligente com quem almoço. […] Pergunto-lhe quem vai ganhar a eleição. Lula. Temos de ir ao fundo do poço. Chafurdar. A ala albanesa dos petelhos, prevê meu amigo, proporá legislação, porque é uma das treze alas do PT. Marilena Chauí convocará reunião ministerial para determinar se é democrático que haja serventes que varram os ministérios. […] Lula nos coloca au niveau de Cuba e Nicarágua. É uma besta quadrada. Não sabe de nada do que está falando […]. Com Lula, seriam porteiras abertas. O cangaço se tornaria nacional e prestigiado pelo governo federal. As classes produtoras se defenderiam. Entropia. Sudão. Já escrevi aqui várias vezes que todo mundo que conheço que pesa acha que Lula leva a eleição. […] Com Lula o dinheiro todo brasileiro já foi ou vai embora. Só quem não puder tirar é que deixará qualquer coisa aí. E as estatais vão falir e a hiperinflação vem. […] Adverti daqui o leitor de que não dissesse “pior do que Ribamar não pode haver”. Há Lula. Os petelhos, Érundíina, que se parece com Jeff Chandler, a República do paraíba, do pérapado, e, como diz Veja, Lula se assemelha ao eleitor médio... (FRANCIS, 1989).

Analisando-se as diversas colunas de Francis na FSP, percebe-se claramente a sua procura, a exemplo do editorial do próprio jornal em que publicava

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seus textos, por um candidato que representasse os pressupostos da agenda por ele vulgarizada. O apoio a Collor de Mello fora circunstancial e estratégico. Embora ele não fosse o candidato ideal, era o mais próximo do projeto que Francis defendia, especialmente pelo anticomunismo declarado e pela promessa de abertura da economia brasileira. A grande imprensa nacional, de maneira geral, teve posição semelhante, apoiando-o nas eleições, visivelmente no segundo turno, mas sendo reticente no início de seu mandato, além de tomar cuidados ao apoiar as metas de seu governo. Depois da famosa ação de confisco das poupanças, da dificuldade de sustentação das bases e dos escândalos de corrupção, a grande imprensa foi rapidamente abandonando o apoio ao governo e endossou a cassação do mandato do Presidente. Nesse lapso de tempo, Francis já havia trocado o jornal FSP pelo rival, OESP. Neste periódico, de posição editorial semelhante à FSP, quanto à vulgarização e adoção da agenda ultraliberal no país, mas com de viés mais conservador (FONSECA, 2005), Francis consolidou sua posição ultraliberal. Provavelmente, em nenhum momento precedente de sua carreira jornalística tenha sido tão lido quanto nos anos 1990. É necessário lembrar que o contrato com a FSP exigia exclusividade, ao passo que o contrato com OESP permitia que seus textos fossem publicados em jornais de outros Estados. Desse modo, Francis passou a colaborar com O Globo, no Rio de Janeiro, o Zero Hora, no Rio Grande do Sul, dentre outros periódicos, tornando-se, nessa época, o jornalista mais bem pago do país. Seu sucesso esteve ligado ao seu potencial de gerar polêmicas, ao seu estilo de polemismo calcado na ironia e no cinismo, pautado em uma peculiar erudição, reconhecida por alguns e muito contestada por outros, haja vista os diversos erros que cometia e os imponderados julgamentos que fazia. Certos analistas como Luís Augusto Fischer (1998), Carlos Bissón (2004) ou mesmo Isabel Lustosa (2000) reconhecem certo valor literário, e até histórico, em seu estilo jornalístico, ou mesmo sua importância como divulgador cultural de obras literárias e de produções musicais e cinematográficas. Entretanto, não é objeto de nossa análise realizar semelhante avaliação de estética literária. Este artigo, em particular, e nossa pesquisa, de forma geral, tentam sobretudo evidenciar a importância que Francis teve dentro da

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imprensa brasileira como comentador da política nacional. Neste sentido, não cabe insistir dizendo que sua trajetória representou um saldo positivo ou negativo para a nossa história e a história da imprensa no país, e sim reforçar que, de fato, Francis cumpriu um papel importante como intelectual de imprensa e colunista político. Sua organicidade e status jornalístico, percebidos em diversos momentos de sua carreira profissional, atestam sua importância como intelectual, tanto mais próximo à esquerda quanto à direita do espectro político. O último ponto que destacamos sobre sua trajetória intelectual diz respeito à sua avaliação do golpe e da ditadura civil-militar no Brasil. Em um momento bastante confortável da carreira, ao publicar, em 1994, seu segundo livro de memórias, Trinta anos esta noite, Francis sintetiza várias impressões de sua visão contextual sobre a ditadura brasileira, seus agentes, suas causas e consequências para o processo histórico brasileiro. Imbuído do comprometimento com a agenda ultraliberal, o jornalista realiza uma verdadeira revisão de algumas das suas leituras feitas anteriormente sobre o período, como no imediato pós-1964. Entre outros temas, destacam-se o seu silêncio sobre a ação e o envolvimento empresarial durante o regime; a relativização do conceito de golpe de Estado, ao tratar acerca dos episódios que marcaram 1964; a sobrevalorização de sujeitos atomizados como condutores dos acontecimentos, em detrimento de grupos sociais, classes ou quaisquer representações coletivas; e a minimização do papel dos EUA no golpe e na manutenção da ditadura brasileira (BATISTA, 2012). A maioria dessas posições são conciliáveis com a revisão que tem sido reproduzida por importantes empresas jornalísticas da grande imprensa nacional, como o Grupo Folha, as Organizações Globo e a editora Abril. Nos editoriais d’OESP, também prevalecem alguns elementos elencados na interpretação de Francis resumida acima. A questão fundamental, talvez, diga respeito à “interpretação liberal”, que é reforçada pela grande imprensa, e que ganhou importante divulgação na coleção publicada, a partir de 2002, pelo também jornalista Elio Gaspari (2002). Para Gaspari, assim como para Francis, o período presidido pelo ditador Castello Branco representou uma importante renovação econômica, materializada em um projeto com feições liberais que previa maior abertura do mercado brasileiro e foi

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contraposto pela ala nacionalista de Costa & Silva. Segundo Gaspari, Castello Branco tinha a intenção de retomar o processo democrático, sendo essa fase da ditadura intitulada de “envergonhada” pelo autor. Porém, esse termo não foi criação de Gaspari, uma vez que ele já constava nas análises de Francis, em Trinta anos esta noite, embora num sentido mais amplo, para designar as sucessões de lideranças no interior do mais alto escalão do regime ditatorial (FRANCIS, 1994). Gaspari e Francis eram amigos e essa sociabilidade, de maneira geral, guardava mais afinidades acerca do tema em questão, em seus aspectos fundamentais, do que divergências. A ideia de “ditadura envergonhada” também diz respeito a uma tentativa de atenuação das perversidades cometidas durante o regime ditatorial no Brasil. A comparação com outros regimes congêneres latino-americanos, como o argentino e o chileno, por exemplo, sugere que esses regimes não poderiam ser comparados com o caso brasileiro, tendo em vista que produziram maior contingente de mortos e desaparecidos. Essa é a mesma lógica adotada pelo conhecido editorial da FSP, de 17 de fevereiro de 2009, que apresentou o período de mais de vinte anos de ditadura no Brasil como uma “ditabranda”. A revista Veja, da editora Abril, também utilizou, entre a década de 1990 e início dos anos 2000, um expediente semelhante ao dos demais veículos da grande imprensa, evidenciando a voz dos militares e sua versão dos acontecimentos. Em cada uma dessas falas, e no conjunto delas dentro das diferentes edições da revista, a ditadura é claramente apresentada como um mal necessário para evitar uma suposta ditadura de esquerda e a consequente contenção do comunismo (SILVA, 2013). A grande imprensa nacional, em especial a do centro do país, tem realizado um “trabalho pedagógico” notório em relação à interpretação da natureza da ditadura brasileira, agregando à atuação de seus (considerados) protagonistas as (vistas desta forma) inevitáveis limitações da democracia no período e o levantamento de “saldos positivos” resultantes das opções práticas adotadas na época. A disputa pelo consenso não se dá apenas em âmbito meramente jornalístico, mas também na divulgação de obras acadêmicas oportunas e mais próximas deste conjunto elencado de concepções.

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Diante disso, temos mais um significativo aspecto do intuito “pedagógico” de Francis. Ao dispor de uma série de argumentos para vulgarizar a agenda ultraliberal em suas variadas publicações, utilizava o polemismo, o status e o lugar privilegiado que dispunha na imprensa, com amplo espaço para expor suas ideias. Consequentemente, além de comentar o cotidiano e a rotina das estratégias políticas e econômicas, envolvendo a situação do país e sua interação com a realidade internacional, o polemista voltava seu olhar para o passado e interpretava a história, usando exemplos considerados positivos e agregadores para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro, mesmo no interior do regime ditatorial. Assim, foi um dos precursores importantes dos trabalhos de Gaspari e da construção consensual que vem se formando na grande imprensa a respeito da interpretação da ditadura-civil militar brasileira. Entretanto, sobre uma eventual contribuição acerca da interpretação geral do período, na época em que escreveu, não trouxe nada de muito original, nem mesmo fontes inéditas, transformando Trinta anos esta noite, hoje, no nosso modo de ver, em mais uma produção memorialística do cenário histórico nacional de outrora, importante, porém, para compreender esse movimento de construção hegemônica a respeito das explicações que tentam dar sentido aos episódios do período. A produção de Francis na imprensa, entre 1962 e 1975, até o momento, foi pouco estudada e, por coincidência ou não, é pouco exibida e esmiuçada, tanto pela grande imprensa quanto pelos seus biógrafos. Francis ocupou espaços importantes nos periódicos Última Hora, Correio da Manhã, Revista Civilização Brasileira, O Pasquim e Tribuna da Imprensa. Durante a ditadura, alternou a postura mais agressiva com um posicionamento mais defensivo e reticente referente a uma estratégia de ação, fazendo uma oposição que variava de um discurso mais incisivo e combativo, contra alguns dos generais que disputavam o poder entre 1964 e 1968, até um distanciamento político mais hesitante a partir de 1969, pós-AI-5.

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Considerações finais

Certos estudiosos da trajetória de Francis o colocam como um intelectual independente, sem vínculo significativo com as empresas jornalísticas em que atuou ou sem qualquer compromisso com agrupamentos sociais próximos ao poder. Nosso posicionamento é de que não foi bem assim. A própria sociabilidade de Francis comprova o contrário. Quando seu núcleo de amizades e ambiente profissional estiveram circunscritos a profissionais de determinados jornais, próximos de um projeto nacional desenvolvimentista, ou mesmo identificados com setores da esquerda, o jornalista aproximou-se de tais posicionamentos políticos. Mudando-se para Nova Iorque, foi adquirindo status como jornalista, ingressou na grande imprensa e passou a conviver com grandes empresários, banqueiros e a frequentar os bastidores do poder político, de modo que se aproximou da direita. Foi nessa época que travou amizade com homens como Delfim Neto e, posteriormente, com Roberto Campos, civis respeitados e poderosos dentro da ditadura civil-militar. Possivelmente, deslumbrou-se com o centro do capitalismo em contraste com o Brasil, distinguindo-se dos bairros provincianos do Rio de Janeiro das décadas de 1950 e início de 1960, bem como registrando a lembrança do Nordeste brasileiro que conheceu quando viajou com o Teatro do Estudante do Brasil, momento em que teve contato com a pobreza do interior brasileiro. A ditadura, como bem reconhecia Paulo Francis, contribuiu para que ele rompesse com a expectativa inocente de transformar o país em uma nação forte, rica e independente. Ademais, outros analistas insistem que as mudanças de opinião eram comuns nas ponderações do jornalista que frequentemente se contradizia. Isso tem servido para justificar uma pretensa independência intelectual de Francis, especialmente em sua fase ultraliberal, atuando na imprensa. Esse viés de intelectual atuando na imprensa é importante, significativo e diferencia-se do jornalista intelectual da imprensa. Certamente, Francis conheceu maior liberdade para escrever na FSP e n’OESP, não só em virtude do status jornalístico que ele mantinha, mas também por suas posições políticas e intelectuais, as quais não divergiam em essência dos editoriais daquelas empresas. O comprometimento de Francis foi maior com a agenda política internacional hegemônica do período do que 31

com qualquer outra coisa. Por essa razão, nessa fase, foi um intelectual orgânico nos jornais, mais do que dos jornais, mas de modo algum “independente”. O que observamos, na verdade, é uma quase inabalável defesa da agenda ultraliberal em voga, de seus princípios fundamentais e da crença na necessidade de sua aplicação prática, concepções que o jornalista passou a defender desde meados dos anos 1980 até o fim de sua vida, em princípios de 1997. Por outro lado, certas posições contraditórias existiram e, algumas delas, serviram ao seu polemismo, destacando-se como uma espécie de chamariz para o texto do jornalista, tanto por parte de seus admiradores como de seus opositores.

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Fontes FRANCIS, Paulo. A grande tonteria. In: Folha de S. Paulo (Ilustrada), 23.11.1989. ________. Dicas. In: O Pasquim, n. 41. Rio de Janeiro, 2-9.4.1970. ________. O guerreiro Roberto Campos. In: Folha de S. Paulo (Ilustrada), 9.2.1985.

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“A voz do povo, o espírito da França”: uma análise sobre a ascensão da nova líder da Frente Nacional, Marine Le Pen (2011-2014) Guilherme Ignácio Franco de Andrade1

A Frente Nacional (FN) — partido francês, originalmente criado como Front National pour l'unité Française (MAYER & SENEAU, 2002, p. 43) — foi fundada em 5 de outubro de 1972, procurando reunir o eleitorado dos conservadores franceses. A direita francesa se encontrava em situação delicada na década de 1970, tendo em vista que os movimentos conservadores não vislumbravam a confiança e o respeito da população. Após várias tentativas de organização partidária, ou de formação de outros movimentos conservadores, a direita estava desorganizada, dividida em pequenas facções. Durante o período do pós-guerra até a década de 1970, os grupos conservadores haviam falhado em suas tentativas de representação política e de união partidária (VIZENTINI, 2000, p. 51). A FN surge, nesse contexto, influenciada pelo sucesso eleitoral do partido neofascista italiano — Movimento Sociale Italiano (MSI). O próprio logotipo da FN foi

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Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Sociedade, Urbanização e Imigração, sob orientação do Prof. Dr. Leandro Pereira Gonçalves. Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected].

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inspirado no símbolo usado pelo MSI; apenas as cores foram substituídas para fazer referência às cores da bandeira da França. A FN se originou, segundo Paulo Fagundes Vizentini, como uma mistura de várias vertentes do pensamento conservador, incluindo os nostálgicos de Vichy, neofascistas, intelectuais e ativistas, sob a liderança de Jean-Marie Le Pen e François Duprat. Os membros dos partidos de extrema-direita da Europa apresentavam particularidades distintas, conforme observa Vizentini: Os partidos de extrema-direita tinham uma composição etária curiosa. Eram formados por pessoas acima de 60 anos e que haviam sido nazistas no passado; e depois seguia-se a faixa de pessoas de meia idade, onde a pirâmide reduzia-se drasticamente; abaixo, uma ampla base social de jovens entre dezesseis e vinte e quatro anos. [...] Fora essa exceção, normalmente os partidos viviam uma vida vegetativa e semiclandestina; veteranos de guerra, entre outros, que tinham seus clubes e associações e que utilizavam certas causas periféricas (cabe salientar que essa é uma forma de retomar-se a linha política) (VIZENTINI, 2000, p. 51).

Dentre esses grupos distintos, destacam-se membros do governo de Vichy, do movimento Poujadista, opositores do general de Gaulle, neofascistas, militantes que participaram da Fédération des Etudiants Nationalistes2 (FEN), da Jeune Nation3 (JN) e ativistas que, embora não possuíssem vínculo partidário, simpatizavam com a ideia de organizar um partido de extrema-direita. Após a formação do partido, Jean-Marie Le Pen foi escolhido para presidi-lo, pois decidiu-se que o presidente deveria ser alguém cujo passado não fosse marcado por uma militância violenta ou por envolvimento com grupos neofascistas (MARCUS, 1995, p. 18). Para Milza, Jean-Marie Le Pen era um bom orador e possuía uma boa reputação política entre os membros da extrema-direita, considerando que era um grande defensor do patrimônio nacional e que não tinha uma carreira política marcada por ações violentas, embora existam relatos sobre sua participação em torturas durante a Guerra da Argélia (MILZA, 1987, pp. 341-342).

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Federação dos Estudantes Nacionalistas.

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Jovem Nação.

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A primeira formação hierárquica do partido evidencia, tendo em vista os membros que o compõem, suas lideranças, sua essência radical e sua aproximação com o fascismo. Embora no plano discursivo tal formação se apresente como um movimento político com a pretensa ideia de modernizar o pensamento da extremadireita, notamos a participação de vários sujeitos com ampla experiência em movimentos extremistas. Para Jonathan Marcus, a criação da FN já era esperada, pois sempre existiu na França uma extrema-direita ativa, o único problema era a forma de organização desses grupos. O autor assinala ainda que a grande virtude de Jean-Marie Le Pen foi saber trabalhar com os diferentes projetos existentes dentro da FN e transformálos em uma plataforma partidária. O FN foi legalmente criado em 1972, mas na realidade ele herdou um número de tendências políticas muito mais antigas. A grande virtude de Jean-Marie Le Pen é que ele conseguiu unificar todas estas tendências, ele unificou todas essas tendências para criar uma força coerente, no FN, encontram-se ex Poujadistas que se juntaram ao partido simplesmente por razões fiscais e econômicas, católicos tradicionais que estavam escandalizados pela influência socialista na igreja, bem como veteranos da guerra da Argélia revoltados com o fracasso da política de Charles de Gaulle. Eu poderia listar ainda mais motivos até sobre os monarquistas. Na realidade, uma extrema direita verdadeiramente determinada existe desde antes da Segunda Guerra Mundial (MARCUS, 1995, p. 19).

Os grupos autoritários da França ficaram por muito tempo desacreditados da política. Devido à existência de diversos grupos franceses de pequeno porte, a extrema-direita até então havia falhado em suas tentativas de conseguir representação parlamentar (WILLIAMS, 2006, p. 35). O partido ficou marcado pelo seu discurso xenófobo e sua postura agressiva contra a imigração: […] na França, um partido de extrema-direita, a Frente Nacional, que procura negar a sua identidade neonazista, mas que a todo o momento faz referência ao passado do regime de Vichy, ganha base de apoio social, a ponto de políticos de esquerda, socialistas ou comunistas, serem obrigados às vezes, nas suas circunscrições eleitorais, a defender políticas restritivas à imigração (VIZENTINI, 2000, p.15).

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A FN, em seu “programa de governo”, mantinha uma estrutura política e ideológica baseada na defesa da identidade nacional — ameaçada pela imigração, pela internacionalização do comércio e pela globalização — e no retorno do “glorioso” nacionalismo francês. Em seu alegado plano de defender a França, lançava-se contra os inimigos internos (anteriormente judeus, maçons e protestantes, agora imigrantes, principalmente árabes e muçulmanos) e os inimigos externos (especulação internacional e as forças das multinacionais e do corporativismo). A FN defende valores tradicionais e instituições que, segundo ela, devem pautar a identidade francesa pelos princípios de família, exército, autoridade e catolicismo (HAINSWORTH, 2004, p. 44). Até hoje, muitos membros do partido mantêm conexões com grupos neonazistas e neofacistas da Europa, mesmo que, oficialmente, a FN, no intuito de conquistar a respeitabilidade do meio político, negue qualquer tipo de ligação com esses grupos. Todavia, individualmente e principalmente, a ala mais jovem (e também a mais radical) é quem mais se aproxima desses grupos. Existem diversos grupos, como o Front National de la Jeunesse4 (FNJ) e a Renouveau Étudiant5 (RE), que fazem panfletagem para a FN, colaborando com as campanhas políticas e, geralmente, agindo como tropa de choque nas passeastas do partido (DECLAIR, 1999, p. 66). Em sua primeira eleição, ocorrida em 1973, a FN intitulava-se como um partido defensor do nacionalismo e das raízes do povo francês. Assim, ela entendia a nação francesa como resultado de uma entidade orgânica, construída por uma civilização etnicamente homogênea, sendo produto da história, da cultura e da sua civilização (BOURSEILLER, 1991, p. 88). Segundo a FN, a França seria uma nação construída a partir das memórias das grandes batalhas, do sofrimento e do sacrifício da população francesa. Dessa forma, todo cidadão francês deveria honrar e reverenciar os costumes, as tradições e as conquistas, respeitando, assim, o passado de glória (BOURSEILLER, 1991, p. 89). Segundo Jean-Marie Le Pen,

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Frente Nacional da Juventude.

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Renovação Estudantil.

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O que nós temos de mais comum entre nós, aqui, hoje, e com nossos compatriotas franceses que estão no exterior deste recinto é a noção de patrimônio, seu patrimônio cultural acumulado por séculos de trabalho e de sacrifícios, por gerações que nos precederam, seu imenso patrimônio moral cultural (LE PEN, 1987, p. 10).

Seguindo o mesmo raciocínio, Jean-Marie Le Pen assinala que “a nação é a comunidade de língua, de interesse, de raízes, seus mortos, o passado, a hereditariedade e a herança. Tudo o que a nação lhe transmite no nascimento tem já um valor inestimável” (LE PEN, 1987, p. 10). Podemos pontuar aqui que o discurso de exaltação das batalhas e do militarismo e a ideia de nacionalismo hereditário nos remete às pseudociências, às teorias raciais e de eugenia difundidas nos séculos XVIII e XIX. Esse discurso de Jean-Marie Le Pen é uma tentativa de sensibilizar a população quanto às questões nacionalistas, visto que parte dos militantes da FN — sobretudo os ex-combatentes da Argélia e da Coréia — sente frustração frente à derrota da França na manutenção das colônias africanas. No processo de construção do projeto político da FN, percebemos que, além de priorizar a questão militar para reforçar o nacionalismo, o partido também procurou construir outros símbolos, sobretudo buscando heróis e personalidades históricas francesas que pudessem reforçar e simbolizar o novo nacionalismo desenvolvido pela FN. Desse modo, o catolicismo se fortalece dentro do partido, tendo em vista que, para representar o nacionalismo da FN, foi escolhida a figura de Joana D’Arc, uma heroína francesa, nacionalista, católica, devota à nação, que sacrificou sua vida em prol da liberdade do país, sem ter qualquer ação individualista, ou seja, priorizando a nação acima de qualquer desejo individual. A escolha de Joana D’Arc como símbolo do partido também reforça a busca pela tradição histórica do país, demonstrando orgulho do passado histórico. Ademais, essa escolha é uma forma de unir todas as células dentro da FN, colocando um novo foco a ser seguido, supondo que isso supere antigas figuras como Napoleão Bonaparte, Marechal Pétain, General Boulanger, Charles Maurras e Pierre Laval. O uso da História Antiga pela extrema-direita na França já ocorria desde o governo de Vichy. Segundo Glaydson José da Silva, hoje a FN procura utilizar o passado para recriar uma identidade nacional,

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É da História, como grande campo de alusões e de suas relações com a “identidade nacional” que Le Pen extrai referências para seus discursos, estabelecendo paralelos com heróis (sobretudo Joana D’Arc) e atos fundadores da História nacional, criando uma França mítica da qual o partido tem necessidade e faz apelo na justificativa de suas posições ideológicas (SILVA, 2007, p. 11).

Parte da inspiração da FN também surge do governo de Vichy. Os saudosistas do antigo regime buscavam se inspirar em algumas leis racistas do governo provisório, tentando incorporá-las ao programa da FN, principalmente quando ainda se discutia o antissemitismo no partido. A influência do catolicismo é bastante presente na FN, quando identificamos o uso de sujeitos importantes para a Igreja Católica francesa, símbolos do nacionalismo e do cristianismo francês. Dessa forma, verificamos não só o uso da figura de Joana D’Arc como símbolo católico e nacionalista, mas também a figura de Clóvis, o rei do império franco, responsável por unir os diversos povoados francos. Clóvis é uma figura bastante importante para a cultura francesa, principalmente para os católicos. Ele foi responsável pela mudança religiosa nos territórios francos, pois se converteu ao catolicismo, abandonando os cultos nórdicos e germânicos que predominavam em grande parte da população (DAVIES, 1993, pp. 10-17). Quando Clóvis se torna cristão, ele promove o processo de cristianização em seu reino. Assim, a figura dele é importante para a FN em dois sentidos: primeiro, porque ele representa um ícone do nacionalismo francês, na medida em que unificou os territórios francos e deu início ao que se tornaria futuramente a França; em segundo lugar, porque ele representa forte apelo católico junto à ala católica do partido (DAVIES, 2010, pp. 576-587). Para Peter Davies, a elevação de Joana D’Arc e de Clóvis como símbolos do partido corresponde à nova visão da FN sobre nacionalismo, tendo esses dois sujeitos simbolizando o que há de mais puro e fiel à história e à tradição da França (DAVIES, 2010, p. 20). Com relação ao nacionalismo, a FN procurou se posicionar em defesa dos cidadãos naturais franceses. Noutros termos, o sujeito defendido pela FN equivale ao cidadão francês proveniente de uma longa geração de franceses (o francês

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branco caucasiano), católico, nacionalista, identificado com sua terra e com a história da França, orgulhoso de suas raízes e que valoriza o desenvolvimento da nação acima da vontade individual (FRONT NATIONAL, 1973). Para Jean-Yves Camus a questão da nação é algo central na FN, sendo seu principal ponto de referência ideológico. Podemos afirmar que o nacionalismo é fundamental para o discurso do partido e sua principal fonte de luta (CAMUS, 1989, p. 17). Dar ênfase à nação é a questão chave para ocupar os espaços deixados pelos outros partidos. A defesa da nação como pauta da agenda política da FN tem dois objetivos: primeiro, legitimar a ideia de que o nacionalismo lhe pertence, ou seja, caso outro partido utilize dessa tática, a FN o acusa de apropriação política; segundo, obrigar outros partidos a também fazerem um discurso que defenda a soberania nacional (CAMUS, 1989, p. 18). Na concepção do nacionalismo da FN, para Bruno Megret e George-Paul Wagner, a identidade francesa é mais que nacionalismo, é um “instinto natural”. Um dos secretários da FN, Jean-Pierre Stirbois, em um artigo publicado na revista do partido, a National Hebdo, afirma que “a FN se tornou referência, quando tomou como prioridade a política nacional” (STIRBOIS, 1988, p. 217). Jean-Marie Le Pen assinala, na mesma revista, que a “a nação é uma entidade política fundamental, é a crença de que o nacionalismo prospera em situações concretas, em que indivíduos e grupos se unem para sobreviver, proteger e se reproduzir” (LE PEN, 1989, p. 4).

Marine Le Pen Marine Le Pen ingressou na FN em 1986, aos 18 anos de idade, ao mesmo tempo em que ingressou na militância estudantil do partido, a FNJ (LISZKAI, 2011, p. 64). Por vários anos, ela foi uma das principais lideranças e referências políticas da FNJ. Nos anos iniciais em que esteve no partido, porém, sua atuação era mais esporádica, pois ela estava cursando a universidade, de modo que não podia dedicar parte integral do seu tempo à carreira política do partido (DÉZÉ, 2012, p. 132). Marine se formou em Direito e fez mestrado em Direito Penal. Em sua trajetória enquanto advogada, trabalhou com o deputado da FN, Georges-Paul 41

Wagner, cujo escritório era conhecido por defender militantes da extrema-direita. Georges-Paul Wagner foi militante da Action Française (AF) em sua juventude e ingressou na FN em 1988. Durante sua vida profissional, ele ficou marcado por ter defendido os militantes da Organisation Armée Secrète6 (OAS), que planejaram os atentados contra o general Charles de Gaulle, bem como por ter advogado nos processos em que Jean-Marie Le Pen era acusado de antissemitismo e racismo. Marine Le Pen dedicou-se às áreas do direito penal e civil, principalmente atuando em questões ligadas à imigração ilegal. Após alguns anos trabalhando, ela abandonou a carreira de advogada para se dedicar à militância (LISZKAI, 2011, pp. 23-24). Sua carreira política teve início em 1998, momento em que, efetivamente, ingressou na política francesa, assumindo, de 1998 a 2004, seu primeiro cargo político como Conselheira Regional7 da região de Nord-Pas-de-Calais (DÉZÉ, 2012, p. 13). Após concluir seu mandato, Marine Le Pen foi eleita como Conselheira Regional em Île-de-France, onde exerceu o cargo de 2004 a 2010. Ela também atuou em outras funções, pois, conforme permitido pela legislação francesa, poderia acumular mais de um cargo político, sendo eleita Conselheira Municipal da cidade industrial de Hénin-Beaumont, de 2008 a 2011 (DÉZÉ, 2012, p. 131). Marine Le Pen atuou na parte jurídica da FN, logo ingressando no comitê executivo, posição importante dentro do partido (MESTRE & MONNOT, 2011, p. 110). Com o sucesso eleitoral da FN nas eleições presidenciais de 2002, tendo Jean-Marie Le Pen alcançado o segundo turno, a diretoria da FN procurou explorar esse momento político, no intuito de manter o crescimento do partido. Dessa forma, o comitê político da FN, na tentativa de avançar, indicou Marine Le Pen à vicepresidência do partido e também renovou o comitê executivo. Marine Le Pen, em 2003, foi encarregada de organizar a campanha política do partido para as eleições presidenciais de 2007 (DÉZÉ, 2012, p. 132). Depois de se tornar vice-presidente da FN, ela passou por um processo de amadurecimento e procurou se especializar em comunicação e publicidade.

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Organização Armada Secreta.

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Cargo equivalente ao de governador de Estado.

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Após as eleições de 2007, quando a FN não conseguiu repetir a mesma campanha de 2002, tendo alcançado um número de votos bem abaixo do esperado, Jean-Marie Le Pen anunciou sua aposentadoria política, tornando-se presidente de honra do partido (MESTRE & MONNOT, 2011, p. 110). Com o fim do “reinado” de Jean-Marie Le Pen, a FN iniciou o processo de candidaturas para os membros do partido interessados em assumir o cargo de futura presidência. Esse momento representou uma passagem importante para o partido, pois, durante quase 40 anos, Jean-Marie Le Pen o comandou com mãos de ferro, sempre controlando e articulando a militância para seguir sua linha política. A mudança de liderança, neste sentido, permitiu aos militantes uma oportunidade de modificar o partido. Com a formalização das candidaturas de Marine Le Pen e Bruno Gollnisch para a presidência da FN, a base do partido ficou fragmentada. Marine Le Pen representava a ideia da renovação e transformação do partido, sendo vista pelos seus seguidores como aquela que daria novos rumos ao partido (MESTRE & MONNOT, 2011, p. 111). A base eleitoral de Marine Le Pen era representada pela ala jovem do partido, cujos militantes simpatizavam com as ideias de Marine Le Pen, pois muitos deles foram seus companheiros na FNJ, acompanharam sua trajetória e crescimento no cenário político. Segundo Sarah Proust, a ala mais jovem da FN se identificava com Marine porque acreditava em sua capacidade de liderança e transformação. A ala mais jovem do partido é contemporânea de Marine, ou seja, fruto das mesmas condições determinantes. Portanto, a considera capaz de compreender a sociedade atual e os problemas apontados pelas novas gerações (PROUST, 2013, p. 43). Em contrapartida, os jovens que apoiam a candidatura de Marine não reconhecem Bruno Gollnisch como alguém capaz de lidar com os problemas do desemprego, da desqualificação profissional, da diminuição do padrão de vida e da falta de perspectiva com relação ao futuro. Segundo Sarah Proust, a pouca empatia dos jovens com a candidatura de Bruno Gollnisch diz respeito ao fato de essa geração ter nascido em uma sociedade globalizada, dominada pelo neoliberalismo, fruto da internet e das redes sociais. Desse modo, esses jovens não são ressentidos com a Guerra da Argélia, não tiveram participação nas lutas do movimento estudantil

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nas décadas de 1960 e 1970, não cresceram durante a Guerra Fria (portanto, não dispõem do sentimento anticomunista), tampouco são saudosistas da Revolução Nacional que ocorreu durante o regime de Vichy (PROUST, 2013, p. 44). Após oficializar sua candidatura no Congresso da FN — com uma aprovação esmagadora, contando com o apoio de Jean-Marie Le Pen e da maioria dos membros do Comitê Central —, Marine iniciou sua campanha para a presidência da FN. Durante quatro meses, ela realizou reuniões com 50 delegacias da FN espalhadas pela França, a fim de explicar seu projeto político e indicar os novos rumos e posições que o partido assumiria, caso fosse eleita. Ela ainda buscava demonstrar que o vencedor da eleição interna deveria automaticamente ser o candidato do partido à presidência da França. Sua argumentação era baseada na questão da receptividade do novo nome da FN, o qual deveria não somente representar a maioria do partido, mas também uma imagem renovada para a FN. Durante os quatro meses de campanha, Marine Le Pen intensificou seu discurso sobre as transformações necessárias para colocar a FN no centro do debate político da França. O partido deveria ressurgir com um novo formato. Assim, ela iniciou o processo de “humanização do partido”, ou seja, segundo ela, seria necessário “desdiabolizar” a imagem da FN e neutralizar a rejeição sofrida por parte expressiva da população francesa. Em suas apresentações, Marine Le Pen gostava de deixar claro que não estava ali para construir um projeto que fosse estabelecido apenas internamente, mas uma alternativa política para a população, um projeto de mudança que deveria ser o centro da reforma política do país. O quartel general da campanha de Marine Le Pen se localizava na cidade de Hénin-Beaumont, conhecida por ter sido um polo industrial importante para o país, representando uma fatia expressiva da economia francesa. Porém, na atualidade, Hénin-Beaumont enfrenta uma crise econômica, caracterizada pela falência de várias indústrias e por uma elevada taxa de desemprego em ascensão. Ainda assim, a cidade representa a maioria dos eleitores da FN, sendo a região que mais apoia Marine Le Pen. Durante sua campanha para a presidência da FN, Marine Le Pen indicava as modificações que faria no partido, caso vencesse as eleições. Nas delegacias pelas

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quais passava, discutia sobre quase todos os temas centrais em debate na França, principalmente sobre a economia do país, o aumento do desemprego, a União Europeia, a segurança pública, o aumento da criminalidade e a suposta perda da identidade francesa. Marine Le Pen contestava a imigração e tecia críticas ao governo do então presidente Nicolas Sarkozy que, segundo ela, teria concedido ainda mais espaço para a entrada de imigrantes ilegais no país. A campanha de Marine Le Pen contra a imigração tinha o intuito de demonstrar o avanço da religião muçulmana na França, como o cotidiano dos cidadãos franceses supostamente teria sido transformado em virtude da ocupação dos espaços públicos para as cerimônias religiosas, como os comércios locais teriam sido modificados com o crescimento de restaurantes e comerciantes árabes. No discurso de Marine Le Pen, o uso da retórica xenófoba procurava criar um ambiente hostil, como se os franceses estivessem se tornando minoria em seu próprio país. Para a FN, defender a preservação da cultura francesa é primordial, frente ao suposto avanço da islamização no país. Desde o início do partido, com as ideias de François Duprat, a FN se encarrega de defender o que acredita ser uma “cultura” francesa. Em vários artigos das revistas Identité e National Hebdo, a FN tem-se dedicado a elaborar um discurso que supostamente defende a França e os valores morais do Ocidente cristão, em detrimento da invasão bárbara dos árabes. A “cruzada cultural” que a FN defende objetiva, em primeiro lugar, criar um novo inimigo no imaginário da população e, em seguida, criar um bode expiatório que seja responsável pelos problemas sociais e políticos que o país atravessa. Marine Le Pen procurou enfatizar a crítica à atual direita, acusando a União por um Movimento Popular (UMP), partido de Nicolas Sarkozy, de ter instalado o “caos social” no país. De acordo com ela, a “imigração descontrolada” é a grande fonte de tensão na República, já que o governo de Sarkozy não foi capaz de criar formas para que os novos habitantes se adaptassem aos “padrões franceses aceitáveis”, ou seja, abandonassem a cultura e a língua do país de origem e se tornem cidadãos franceses (FRONT NATIONAL, 2012, p. 1). Marine Le Pen assinala que a formação de guetos em Paris — os quais não reconhecem a língua e a cultura francesa — tem causado conflitos, brigas e provocações entre vizinhos, o que

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configura desrespeito ao “povo genuíno” (FRONT NATIONAL, 2012, p. 2). Além disso, tais conflitos também resultam do forte apelo religioso existente nas novas comunidades dominadas pelos imigrantes muçulmanos, os quais vivem conforme suas crenças. O cenário político e social em questão, segundo a FN, é consequência de um processo maciço de islamização do território francês. Nesse contexto, a população islâmica se torna cada vez mais expressiva, lutando para garantir seu espaço e seu predomínio cultural e político (FRONT NATIONAL, 2011). Durante sua campanha política, Marine Le Pen atacou o multiculturalismo, dizendo que o conceito seria uma invenção da esquerda socialista para corromper os Estados nacionais. Ela sugere que o debate proposto pela esquerda durante vários anos, de aceitação das diferenças culturais dos imigrantes, é incompatível com as sociedades ocidentais, pois estas foram forjadas no centro da democracia, da liberdade e da república, ao passo que a história dos imigrantes é direcionada para o fundamentalismo religioso, para o autoritarismo e para a submissão religiosa e patriarcal. Desse modo, os imigrantes considerados “bárbaros” pela FN não teriam condições de viver uma plena democracia, pautada pela neutralidade e laicidade do Estado. Logo, a adaptação deles seria algo impossível e corrosivo para ambas as culturas (FRONT NATIONAL, 2011, p. 1). Quanto ao posicionamento da FN em relação à situação econômica, Marine Le Pen difere-se de seu antecessor, pois acredita que um Estado soberano deve defender seus direitos econômicos e controlar a soberania nacional. Em um discurso em frente ao banco de investimentos Dexia, no distrito de La Défense, em Paris, Marine Le Pen convocou uma conferência para atacar a crise econômica e o sistema bancário francês (FRONT NATIONAL, 2010), demonstrando-se contrária à manobra do Estado francês de injetar dinheiro em bancos para evitar a falência dos grupos de investidores, pois, segundo ela, estes não passavam de especuladores que lucram com a exploração dos bens estatais e com a pobreza da população (FRONT NATIONAL, 2010). Ao mesmo tempo, ela defendia o final da lei Pompidou-Giscard, de 1973, cujas diretrizes proíbem que o Estado francês, quando necessário, contraia empréstimos no Banco Central Francês (FRONT NATIONAL, 2010). De acordo com essa lei, o Estado não pode contrair empréstimos no seu próprio banco sem taxas

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ou a juros baixos, o que o força a recorrer ao mercado internacional, vendendo títulos da dívida ou contraindo empréstimos em outras instituições, com taxas de juros elevadas (FRONT NATIONAL, 2010a). Segundo dados apresentados pela FN, no ano de 2010, o Estado teria pagado 135,5 trilhões de euros em juros da dívida, dos quais cerca de 1.650 trilhões representavam a dívida nacional (FRONT NATIONAL, 2010a). No discurso em que a FN se colocava contra o domínio do neoliberalismo, que, para Marine Le Pen, permanecia intocável, mesmo diante de uma recessão econômica, ela priorizava, sobretudo, o protecionismo econômico das empresas nacionais e do comércio nacional (FRONT NATIONAL, 2010). Neste sentido, ela parece beber do antigo projeto de Bruno Mégret, procurando apresentar uma alternativa ao atual sistema capitalista, uma “via alternativa” ou, nas palavras de Mégret, uma “terceira via”. Em entrevista para a revista do partido Nation Press, Marine Le Pen enfatiza essa mudança econômica e fala sobre a necessidade de se posicionar frente ao capitalismo e contra os especuladores. Para Marine Le Pen, o Estado deve ser forte e controlar a economia para garantir o desenvolvimento nacional, posição contrária à política da FN durante mais de 30 anos, quando o partido se declarava ultraliberal. Aqui, percebemos um dos pontos que diferenciam o programa político da FN de Marine Le Pen das antigas posições assumidas por Jean-Marie Le Pen. Quando ela discursava, por exemplo, demonstrava-se desfavorável à alteração dos planos de pensão promovida pelo governo do presidente Nicolas Sarkozy, condenando a política liberal-conservadora da UMP de ampliar as políticas de austeridade e defendendo a ampliação e a manutenção dos direitos sociais adquiridos pela população (FRONT NATIONAL, 2010b). O primeiro turno das eleições presidenciais da França foi marcado para ocorrer no dia 22 de abril de 2012, ao passo que o segundo turno ficou estabelecido para o dia 6 de maio de 2012. Conforme determina a Constituição francesa, os candidatos teriam até o dia 16 de março de 2012 para homologarem suas candidaturas, apresentando suas 500 assinaturas, cuja conferência é feita pelo Conselho Eleitoral e depois oficializada pelo Jornal Oficial. Assim, no dia da divulgação oficial, foram homologadas, além das inscrições de Marine Le Pen e de

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Nicolas Sarkozy, as dos seguintes candidatos: Nathalie Arthaud (Parti Lutte Ouvrière8 — LO); Jacques Cheminade (Parti Solidarité et Progrès9 — PSP); Philippe Poutou (Nouveau Parti Anticapitaliste

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— NPA); Nicolas Dupont-Aignan (Debout la

République 11 — DLR); Eva Joly (Europe Écologie Les Verts 12 — EELV); Jean-Luc Mélenchon (Front de Gauche13 — PFG); e François Hollande (do Partido Socialista — PS). A campanha oficial teve início no dia 20 de março, momento em que cada partido teve espaço nos meios de comunicação para divulgar seu programa eleitoral. Nos trinta dias que antecedem o primeiro turno, a legislação francesa determina que todos os candidatos possuam o mesmo espaço para apresentação dos seus programas políticos. Os programas políticos e de generalidades, veiculados nas rádios e tevês, são obrigados a contar o tempo de intervenção de cada concorrente. O Conselho Superior Audiovisual define as regras para garantir a pluralidade da expressão política, determinando o tempo das intervenções, as análises e as reportagens políticas. A imprensa escrita não está submetida a este tipo de regulamentação, ou seja, os candidatos têm liberdade para disponibilizar acessos à comunicação virtual. Entretanto, na véspera das eleições, todos os sites montados por eles são fechados. A campanha de Marine Le Pen foi pautada pelo nacionalismo. Durante seus discursos, seu grupo de campanha organizava o ambiente com enormes bandeiras da França, com símbolos dourados e representações de Joana D’Arc. O objetivo dessa campanha era criar um sentimento de patriotismo na população e, ao mesmo tempo, atribuir um sentido para a campanha de Marine Le Pen, sendo esta comparada à Joana D’Arc. Conforme demonstramos anteriormente, Joana D’Arc é uma personagem histórica da França, símbolo do nacionalismo, do amor à pátria, da entrega e devoção

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Partido Luta Operária.

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Partido Solidariedade e Progresso.

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Novo Partido Anticapitalista.

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(Partido) Levantar a República.

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(Partido) Europa Ecologia – Os Verdes.

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(Partido) Frente de Esquerda.

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à nação e da libertação do país. Não apenas uma heroína para a história da França, mas também figura emblemática para a Igreja Católica francesa, sendo considerada a santa padroeira da França. Joana D’Arc foi chefe militar durante a Guerra dos Cem Anos, ocorrida entre a França e a Inglaterra. Ela foi capturada e executada em 1431, tornando-se uma mártir do nacionalismo francês, sobretudo por ter devotado sua vida em defesa do país. A tentativa de associar Marine Le Pen à figura histórica de Joana D’Arc revela a estratégia de campanha da FN, ou seja, colocar Marine Le Pen no estandarte do nacionalismo, representando sua devoção e patriotismo.

Considerações finais Podemos concluir que a transformação cristalizada do programa político de Marine Le Pen é, em parte, resultado de um processo que teve início na década de 1990. Quando as lideranças intelectuais do partido — Bruno Mégret, Bruno Gollnisch e Jean-Marie Le Pen — organizaram-se para reformar o projeto político da FN, o fizeram tendo em vista uma nova leitura da conjuntura social e política inaugurada após a Guerra Fria, definida, em especial, pelo avanço da globalização e do neoliberalismo. Os militantes mais jovens da FN — como Marine Le Pen, Steeve Briois, Louis Aliot, Marion Marechal Le Pen, Nicolas Bay, Florian Philippot — são os responsáveis por essas mudanças. Vale lembrar que esse processo de transformação não aconteceu de forma passiva, visto que é resultado das lutas internas e dos embates entre as diferentes vertentes da FN. A aceleração desse processo de modernização é fruto, sobretudo, da liderança de Marine Le Pen, na medida em que ela não se limitou às antigas posições do partido, reestruturando sua política interna. Em grande medida, a transformação da FN deve ser creditada à liderança política encabeçada por Marine Le Pen, favorecendo uma nova leitura da conjuntura política nacional e internacional. Essa leitura da atual situação do sistema capitalista não só passa pelo impacto da União Europeia sobre a economia francesa, pelo enfraquecimento industrial do país e pela forma como o FMI impulsiona o projeto neoliberal, mas também proporciona mudanças significativas no campo discursivo, no programa econômico e na tentativa de aproximação com os trabalhadores. A FN,

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hoje, representa o partido defensor dos interesses dos pequenos burgueses que são atingidos diretamente pelo livre mercado existente na União Europeia. A grande concorrência dos produtos nacionais provenientes dos pequenos empresários não consegue competir com as grandes empresas de outros países sem que o Estado intervenha de forma protecionista. Desse modo, a pequena burguesia e a classe média sentem-se desamparadas pelo governo. Nesse contexto, a FN, enquanto representante do espectro fascista e de defesa da classe média, consegue avançar politicamente.

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Gen pés descalços e o nacionalismo japonês: interseções Janaina de Paula do Espírito Santo1

No ano de 1973, começou a ser publicado no Japão o mangá Hadashi no Gen, mais tarde traduzido para o português com o título de Gen pés descalços. Como usual no mercado de quadrinhos japonês, a série Gen foi publicada em capítulos semanais de inúmeras revistas durante aproximadamente um ano, mantendo-se no mercado editorial do país, entre edições e reeedições, por quase 12 anos. A história contada por Keiji Nakazawa também rendeu uma animação e duas live actions, produzidas nos anos 1980 e alcançando grande sucesso. No quadrinho, o enredo começa em 1945, nos arredores de Hiroshima, concentrandose na trajetória de seu personagem principal, um garoto chamado Gen, que presencia a destruição de sua cidade pela guerra e, especialmente, pela bomba atômica, tendo que lidar com as consequências do conflito e com os efeitos da explosão, bem como com a posterior ocupação estadunidense. Nakazawa, o autor da série, também foi um sobrevivente do cataclisma atômico: “a série foi baseada em minha experiência pessoal sobre a bomba. As cenas de família, as personagens e vários episódios que aparecem em Gen são pessoas e eventos reais que eu vi, dos quais ouvi falar ou que eu mesmo vivenciei” (NAKAZAWA, 2003, p. 13). Embora seja a mais conhecida, Gen pés descalços não foi a única nem a primeira obra em que Nakazawa tentou escrever sobre a experiência da bomba

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Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás e professora no Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail: [email protected].

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vivida por ele. Ainda em 1966, ele publicou um mangá intitulado Kuroi Ame Ame ni Utarete (Batido pela chuva negra), no qual descrevia, em cinco volumes, uma história fictícia sobre os sobreviventes de Hiroshima envolvidos no mercado negro do pósguerra. Na década de 1970, também publicou uma história chamada Ore wa Mita (Eu vi) em uma das revistas mais populares de mangás do Japão, a Shonen Jump, cujas histórias são publicadas em capítulos semanais. É essa revista que acaba por dar início àquela que se tornaria a sua obra principal, de maior difusão e impacto globalizado: De sua publicação original durante a mais de setenta edições da revista semanal Shonen Jump até agora, a obra já foi traduzida para diversas línguas (do alemão e francês até o esperanto e indonésio), foi adaptada para o cinema, transformada em animação, especial para a televisão e até mesmo em ópera. Somente no Japão já vendeu mais de cinco milhões de exemplares, nos Estados Unidos foi incluída em uma lista de livros recomendados para escolas públicas. A obra possui um simbolismo tão profundo que em 2007 foi levado para Veneza pelo governo japonês para ser utilizado no debate sobre o tratado de não proliferamento de armas nucleares (MOREIRA, 2014, p. 32).

Desde sua publicação, Gen pés descalços foi encarada como uma narrativa representativa do discurso pacifista que definiu a intelectualidade japonesa no período do pós-guerra. Este signo representou, inclusive, um elemento marcante para Gen enquanto obra, uma vez que sua primeira tradução resultou de um projeto coletivo, em que a informação funcionaria, de maneira geral, como uma espécie de avanço contra as armas nucleares. Sob este enfoque, o mangá foi encarado como “esforço pela paz”, uma forma de discutir e difundir os efeitos da bomba atômica. A história de Gen trata de pessoas que vivem situações desumanas, tanto nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, como também depois de um ataque nuclear (retratado nos volumes posteriores). Esperamos que Gen sirva como mais um alerta do sofrimento que a guerra traz a pessoas inocentes e como documento único de uma fonte de desespero particularmente horrível: a bomba atômica (NAKAZAWA, 2004, p. VIII).

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Apesar de todo o alcance de Gen e das questões propostas pelo quadrinho, recentemente ele foi alvo de uma polêmica encabeçada pelo Conselho Escolar Municipal de Matsue (cidade localizada no sudoeste do Japão) que decidiu retirá-lo das bibliotecas escolares. A medida e a polêmica não duraram muito. Em pouco mais de dois meses, grande parte dos diretores escolares de Matsue se manifestaram contrários à medida, e a obra continuou onde estava. Todavia, um adendo foi criado: o diretor e a escola poderiam optar por manter ou não o livro acessível aos estudantes e/ou diminuir o impacto do discurso antimilitarista promovido pelo autor, amenizando o retrato que ele traça do exército japonês. É interessante mencionar que a medida foi inspirada, segundo representantes do conselho, em um volume constante de cartas contrárias à abordagem histórica de Gen, especialmente no que diz respeito ao tratamento do conflito japonês com a Coreia. Algumas agências de notícias afirmam que tais cartas, embora chegassem constantemente, eram elaboradas por um único cidadão da província; outras não chegam a dar detalhes sobre os autores ou o possível autor desse tipo de reclamação. Esse evento, ainda que possa ser tomado como pitoresco ou como alguma espécie de falta de tato isolada de um grupo governamental específico, também representa um eco da resistência nacionalista que, por vezes, acompanha a obra em questão e outros mangás e livros que optam por uma abordagem questionadora frente ao exército japonês ou à participação nipônica na Segunda Guerra Mundial, bem como no período anterior a ela. De fato, no período de publicação, a opção de Nakazawa de apontar o papel central do militarismo e do nacionalismo japonês ia na contramão de um certo conservadorismo político, que marcou a explicação mais cara aos historiadores japoneses, entre as décadas de 1960 e 1980, centrada em uma afirmação do papel do Japão como uma grande vítima atômica do conflito mundial. Como relembra a historiadora Shimazu: Nesta atmosfera de crescente conservadorismo político, a atitude do pós-guerra popular tradicional para a guerra — de que os japoneses foram realmente as vítimas da guerra — foi estabelecida. A autovitimização dos japoneses, como um meio de chegar a um acordo com o passado, sugere que a memória da guerra precisa ser selecionada e higienizada para enfatizar o sofrimento, ao contrário da agressão. Em nenhum lugar essa tendência foi mais evidente do que na televisão, que

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se tornou o meio de comunicação mais poderoso da década de 1960 em diante. Em geral, os programas de televisão sobre a guerra são comemorativos, sendo exibidos em datas de importância histórica, ou seja, nos aniversários das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, e no dia da rendição incondicional, em 15 de agosto de 1945. Escusado será dizer que a intenção por trás, concentrando programas nestas comemorações particulares, é retratar os japoneses como as vítimas do militarismo, ao invés de os agressores. Além disso, mesmo o mais pequeno pormenor pode ser usado para afetar o retrato geral do Japão nesses dias. O melhor exemplo é o termo usado para descrever 15 de agosto. É comumente conhecido como o “bi shusen”, traduzido como “o fim da guerra”, em vez de “haisenbi”, ou “o dia d”! (SHIMAZU, 2006, p. 106 — tradução nossa).

Em seu estudo sobre o Japão, Renato Ortiz chama a atenção para a permanência da mentalidade nihonjinron (no original, 日本人論, que, em tradução livre, poderia significar algo como teorias/discussão sobre o “ser japonês”, “japonidade”), que é, na verdade, uma tentativa de, em um “pan-orientalismo”, reafirmar a “superioridade” japonesa entre os diferentes países da Ásia, usando, para isso, argumentos muito concentrados nas discussões sobre a identidade nacional. Um dos argumentos centrais destas discussões é justamente um mito que coloca o Japão como uma sociedade racialmente homogênea e, por isso mesmo, socialmente pura, o que permitiria que sua essência se mantivesse quase inalterada com o passar dos anos (ORTIZ, 2000, p. 25). Nesta perspectiva, a “característica” do povo japonês seria a sua originalidade “excepcional”, ou a sua natureza “única”, o que o colocaria em um patamar diverso de outros povos, tanto no Oriente como no Ocidente. Essa diferenciação, eventualmente, é retomada pela intelectualidade como um indicativo de uma certa “liderança natural” inerente ao país e como justificativa para incursões do governo de caráter expansionista. O argumento em torno de uma sociedade nipônica naturalmente superior não é nova e, ao longo da história do Japão, reaparece, em diferentes configurações, de tempos em tempos. No século XIX, por exemplo, esse tipo de discurso foi utilizado como uma ferramenta de resgate e revalorização da religião xintoísta, o que acabou

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por fortalecer o culto à figura do imperador e enfraquecer a Restauração Meiji. Estas diferentes leituras em torno do nihonjinron, ao longo dos anos, vão sendo adaptadas ao contexto político-social da nação e aos interesses políticos dos grupos no poder. Pode-se considerar o fascismo como um fenômeno político e supranacional. O fascismo, para autores como René Remónd (1994), é um protesto do instinto, um sobressalto contra o racionalismo. Ademais, é um movimento pragmático que enfatiza a eficácia e os valores da nação. Desta maneira, considerar o fascismo japonês como uma pálida tentativa de ocidentalização, ainda no início do século XX, desconsidera todo um universo de transformações bastante marcantes, nesse período, ocorridas em um país que, em meio século, tinha passado de uma economia com características medievais para um sistema de produção modernizado, ultrapassando a posição da Grã-Bretanha na região e passando a disputar mercados no Pacífico, dominados pelos EUA. Não se pode pressupor que o fascismo europeu e japonês formassem uma frente unificada, embora algumas das suas orientações e proposições políticosociais se aproximassem, ou seja, existiam pontos de contato entre o fascismo italiano e as diretrizes que o imperador Hirohito tentava executar no Japão. A este grupo, mais tarde se juntou a Alemanha. Estava formado, assim, um eixo comum de interesses e práticas ideológicas: “Nesses três países, comungava-se principalmente a exaltação da coletividade nacional; o desprezo ao individualismo liberal, o crescente dirigismo estatal, o culto ao chefe de Estado e ao nacionalismo defendendo-se as virtudes da raça” (GONÇALVES, 2011, p. 3). O regime em vigor no Japão era uma Monarquia de implicações liberais. No ano de 1926, com o falecimento do imperador Taishô, seu sucessor imprime em sua administração um militarismo chauvinista de fortes características fascistas — o que o associa ideologicamente aos movimentos europeus. Ainda que, usualmente, a figura do imperador Hirohito, fascista em essência, fosse apontada como o ponto definidor da política japonesa — uma vez que ela se fundava na existência de um grande líder, a exemplo de Hitler, na Alemanha, ou Mussolini, na Itália —, percebemos que o fortalecimento da liderança já estava presente anteriormente. A figura central, neste sentido, é o próprio Japão. Noutros termos, ainda que a

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convivência com diferentes partidos políticos fosse encarada como particularidade nipônica menor, diante da crença japonesa na origem divina do imperador e, portanto, de uma liderança naturalizada frente à Ásia, isso garantiria seu posto como um líder de peso semelhante às outras duas lideranças fascistas do período. A leitura usual, por vezes, desconsidera a complexidade do pan-asianismo e do basho, seu grande elemento norteador. Para os pensadores e políticos do período, que tentavam construir o pan-asianismo enquanto uma agenda de ação política, divulgar o basho era uma tentativa de usar elementos do poeta mais famoso do Japão até o momento como símbolo e síntese do caráter e dos objetivos do povo japonês: sabi (simplicidade), shiori (sugestão), hosomi (amor às pequenas coisas) e karumi (senso de humor) (FRÉDÉRIC, 2008). Desta maneira, dentro do movimento, naturalizar e sintetizar o caráter do povo japonês era uma forma de sustentar intelectualmente os projetos de uma liderança nipônica em todo o continente asiático. Ainda que ela encontrasse um símbolo na figura do imperador, para a intelectualidade e para os partidos políticos envolvidos com essa ideologia naquele período, a predominância japonesa sempre esteve além de sua autoridade formal. Essa presença marcante de uma liderança política, envolvida avidamente no processo de modernização industrial de um país como o Japão, remete-nos à definição de Leandro Konder, que enxerga o fascismo como […] uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração do capital; é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro (KONDER, 2009, p. 53)

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Nos anos anteriores à ascensão de Hirohito ao poder, o Japão iniciou um processo de industrialização acelerada, tornando-se, em pouco tempo, a nação mais industrializada da Ásia e, por isso mesmo, a grande fornecedora de produtos manufaturados para a região asiática. Essa rápida modernização e tomada de mercados adjacentes contribuiu para que o país tomasse consciência de sua limitação geográfica. Já sob o domínio do imperador Taishô, o aumento do poderio bélico e as guerras de expansão do território foram as táticas adotadas para impedir a estagnação do mercado exportador japonês, caracterizado pela ausência de matérias-primas. Crises econômicas e tensões sociais marcam o período posterior. O sufrágio universal (limitado ao sexo masculino) trouxe uma série de disputas sociais e reações conservadoras. Como para o Estado japonês não havia uma definição muito nítida no que concerne aos limites entre matérias pública e privada, o respeito ao governo era traduzido como um “senso de lealdade” esperado de todos os setores sociais. Por consequência, discussões ideológicas — como o direito ao voto ou a proposta de reforma socialista — eram vistas como um ataque direto à existência do Estado. Essa violência de Estado foi bastante presente no momento de transição do imperador Taishô para seu sucessor, Hirohito, que, no anos 1930, tentando reafirmar seu poder, usava de coerção, intimidação e controle, nos mais diferentes meios. Essa tática também se apoiava na ideia de “superioridade manifesta” japonesa, apregoada por uma elite em ascensão naquele momento. O sentido do basho era um dos sustentáculos teóricos da prática coercitiva. Formulada por Kitaro Nishida, sua proposição considerava, a partir das concepções da filosofia de Aristóteles, que o universo era formado de forças complementares que se dispunham não em torno de uma síntese, mas de um equilíbrio constante entre elas. O Japão, nessa perspectiva, deveria ser a força complementar do Ocidente, uma espécie de líder do Oriente. E o imperador, como líder do líder, não poderia ser contestado, enquanto traçava um caminho para a realização da liderança nipônica. Ainda que o imperador Hirohito tenha usado de força para garantir seu poder desde o primeiro momento, sua liderança estave calcada em um equilíbrio entre diferentes partidos. De maneira indistinta, estes partidos defendiam a volta de todas as propriedades para o imperador, visando, para eles, uma redistribuição mais

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equilibrada entre os súditos. Ao mesmo tempo, o fascismo japonês divulgava seu “apoio” à luta do proletariado contra o capitalismo, mas de uma maneira reinterpretada: as justificativas para que o Japão representasse uma liderança política natural no Oriente fundamentavam-se no “espírito nipônico”, considerado mais forte do que qualquer interesse social, visto que estava imbuído de uma origem divina e de uma missão perante a Ásia. A adoração ao imperador, noutros termos, aniquilaria os interesses econômicos e igualaria todos ao patriotismo, como se as classes fossem “apagadas” por esse objetivo comum, além do bushido, ou seja, a devoção e o culto aos antepassados e à religião comum. Na interpretação dada pelo fascismo japonês, em suma, a docilidade esperada do súdito apagaria a desigualdade e a luta de classes. Analisando o desenrolar desse período histórico, percebemos que a interpretação usual, construída no pós-guerra, imputa uma passividade ao imperador Hirohito, demonstrando que ele foi levado, muitas vezes, a tomar decisões contra sua vontade, em virtude das forças militares. Essa explicação justifica a invasão da Manchúria e uma série de manobras políticas e militares posteriores e, por vezes, o próprio militarismo japonês. Essa narrativa, chamada por Yoshikuni Igarashi de “narrativa fundadora”, é uma espécie de discurso conformador entre EUA e Japão, que, no pós-guerra, passaram de inimigos a aliados: No final da Guerra, os EUA e o Japão, em certo sentido, escalaram a si mesmos como personagens de um melodrama que culminou na demonstração de um poder atômico nunca antes visto. Através da bomba, os EUA, classificados como um sujeito salvaram e converteram o Japão, classificado como objeto feminino. A chamada decisão divina de Hirohito, participou deste drama ao aceitar o poder superior dos EUA. Apesar dessa hipérbole, essa narrativa popular foi efetiva ao definir a percepção dos dois países da guerra e como ela chegou ao fim (IGARASHI, 2011, pp. 59-60).

Em síntese, essa narrativa — que apresenta o Japão como o objeto passivo do conflito — contribui, no processo de manutenção do poder imperial, para que a explicação histórica usual coloque o imperador também como vítima do militarismo externo, o que marcou a política expansionista japonesa, ainda no período anterior à Segunda Guerra Mundial.

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O expansionismo japonês e os quadrinhos A política expansionista japonesa teve início ainda na Era Meiji. O primeiro conflito desse cenário desembocou na Primeira Guerra Sino-Japonesa, em que Japão e China se enfrentaram em uma disputa pelo território da Coreia. Saindo vitorioso desse conflito, o Japão ocupou a Coreia entre 1910 e 1945, impondo sua língua e seus costumes em todo o território. Ao mesmo tempo, um tênue equilíbrio entre Rússia e Japão se estabeleceu na disputa pelos territórios da Manchúria. Em 1931, o Japão realizou uma série de invasões também no território chinês. Estes conflitos eram chamados de jihen (conflito), já que não havia uma declaração de guerra formal. O governo de Tóquio, também naquele ano, aproveitando-se do caos interno que a guerra civil provocou entre as diversas províncias chinesas, desembarcou tropas na Manchúria, onde criou um protetorado, o Manchukuo. O país tentava ampliar sua influência na região, já no início do século XX, durante a guerra contra o império russo, o que causou um grande número de baixas no lado russo. A vitória japonesa é vista como o início do imperialismo japonês e da transformação do país em uma nação industrializada. Essa avanço é uma novidade no equilíbrio político da Ásia Oriental, pois colocou o Japão em disputa de mercado com os EUA, bem como com países da Europa. Essa mudança desencadeou forte pressão norte-americana no sentido de controlar e impedir o avanço industrial japonês. É a partir do desdobramento deste conflito que se dá a entrada oficial do Japão na Segunda Guerra, com a autorização do ataque nipônico às bases militares anglo-americanas situadas no Oceano Pacífico. Após essas ações bélicas, o Japão direcionou seus ataques a outras instalações militares anglo-americanas localizadas na Malásia, Indonésia, Birmânia, Singapura, Guam e Índias Orientais Holandesas. Neste sentido, na perspectiva nipônica, a participação do Japão no conflito mundial foi um desdobramento de uma política expansionista anterior. É neste contexto que Nakazawa começa a contar a história do menino Gen. O quadrinho do autor narra o que aconteceu antes, durante e após a detonação da bomba, tendo como fio condutor a história de uma família à imagem e semelhança da família do próprio Nakazawa. Ademais, é uma crítica à militarização da sociedade

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japonesa durante a Segunda Guerra Mundial e à fé cega dos japoneses no imperador. Os primeiros quatro volumes de Gen pés descalços foram publicados em inglês em 1976, sendo um dos primeiros mangás veiculados nos EUA, ainda que o resto da série tenha levado décadas para ser publicado integralmente. A edição em português, publicada pela editora Conrad, no fim da década de 1990, é uma tradução da edição estadunidense. A história completa começou a ser publicada no Brasil somente em 2014. O volume 10, que encerra a história, saiu no Brasil em maio de 2016. Tal atraso, no caso dos EUA, muitas vezes é imputado ao teor crítico do mangá e à mensagem transmitida pelo próprio Nakazawa através de seu trabalho, continuamente condenando a decisão dos americanos pela explosão da bomba atômica e acusando os comandantes militares americanos de terem usado os civis japoneses como cobaias para testar os efeitos secundários criados por essa explosão. De fato, em cada volume de Gen, Nakazawa amaldiçoa o imperador Hirohito (considerado pela sociedade japonesa, antes da derrota pela guerra, como tendo origem divina) e seus conselheiros. A resistência à guerra é demonstrada pelo pai de Gen, já nas primeiras páginas do mangá. Os meses anteriores à explosão atômica são retratados como momentos de intensa mobilização por parte da população, em diferentes esforços de guerra. O pai de Gen, neste sentido, satiriza tais esforços e tece muitas críticas ao imperador, sendo hostilizado pelos vizinhos e conduzido à prisão. Ao contraporse à guerra, tendo em vista a Coreia e as atrocidades cometidas pelos japoneses nesta região, o pai de Gen fundamenta toda a crítica posterior que é construída por Nakazawa, ou seja, a necessidade de romper com a irracionalidade da guerra. Conforme ilustra a figura abaixo, a crítica do personagem é direta:

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Figura 1: O pai de Gen discursa para os seus vizinhos durante um treinamento promovido pela associação do bairro. 2

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Fonte: NAKAZAWA, Keiji. Gen pés descalços: o nascimento de Gen, o trigo verde (vol 1). São Paulo: Conrad, 2011, p. 17.

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Como recurso narrativo, o pai de Gen não só representa uma homenagem do autor ao seu próprio pai — que, da mesma forma, acabou preso por se envolver com o movimento pacifista —, mas também constrói o contraponto que sustenta toda a história. No desenho, seu discurso é acompanhado pela imagem de soldados feridos com expressão vazia aos pés de um oficial festejando uma vitória. É o modo, de imageticamente, apresentar-se o paradoxo entre o discurso nacionalista da guerra e o custo social da batalha. No quadrinho final (já que a leitura deve ser feita em ordem invertida com relação ao padrão ocidental), o pai de Gen quebra a espada de bambu usada nos treinos enquanto diz: “Chega”. Isso assinala a ruptura do personagem e o enfrentamento da família Nakaoka contra o nacionalismo acrítico dos seus vizinhos. Contada por pessoas comuns, voltada ao cotidiano e aos custos sociais da guerra para a população japonesa, a posição pacifista do pai de Gen também permite a aproximação de outro personagem, que, de tempos em tempos, vai mudar os rumos da família Nakaoka: o vizinho, sr. Bok. É através dele que Nakazawa discute a postura belicosa de seu país frente à Coreia. Ele relata o conflito: Depois que a Coreia se tornou colônia do Japão, fomos trazidos para cá, para fazer trabalhos forçados e lutar nos campos de batalha. Nem imaginam quanto os coreanos estão sofrendo com essa guerra. Quero muito que essa guerra acabe. Quero voltar para minha esposa e filhos (NAKAZAWA, 2011, p. 74).

A postura do Japão e do exército japonês durante a guerra é alvo de uma discussão constante, de modo que uma série de narrativas, de tempos em tempos, tem ocupado espaço na mídia internacional, sobretudo no que tange às “mulheres de conforto”. A ação do exército japonês era bastante violenta e envolvia campos de trabalhos forçados, torturas, armas químicas e as mulheres de conforto, ou seja, escravas sexuais, recrutadas à força, sendo consideradas, atualmente, vítimas de abuso sexual. A prostituição em massa ainda é alvo de controvérsia, uma vez que o governo japonês é bastante reticente ao admitir a ligação destes grupos com o exército japonês. Especialmente desde que os nacionalistas voltaram ao poder, o discurso oficial evita admitir ou discutir grande parte dos chamados crimes de guerra

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neste período. O modus operandi das forças armadas no país era bastante agressivo: Pode não ter sentido tentar estabelecer qual dos dois agressores do Eixo na II Guerra Mundial, Alemanha ou Japão, foi o mais brutal para as pessoas que vitimou. Os alemães mataram 6 milhões de judeus e 20 milhões de russos [isto é, de cidadãos soviéticos]; os japoneses assassinaram algo como 30 milhões de filipinos, malaios, vietnamitas, cambojanos, indonésios e burmeses e pelo menos 23 milhões de chineses étnicos. Ambas as nações saquearam os países conquistados, em uma escala monumental, embora os japoneses tenham pilhado mais, por um período mais longo, do que os nazistas. Ambos escravizaram milhões e os exploraram como trabalhadores forçados — e, no caso dos japoneses, como prostitutas [forçadas] para tropas nas linhas de frente. Se você era um prisioneiro de guerra dos nazistas de origem britânica, estadunidense, australiana, neozelandesa ou canadense (mas não russa) tinha 4% de chance de morrer antes do fim da guerra; [comparativamente] o índice de mortalidade dos prisioneiros de guerra aliados mantidos pelos japoneses era de quase 30% (JOHNSON, C., 2003, s. p. — tradução nossa).

Até como uma forma de conformação com a derrota, de maneira geral, mesmo na atualidade, não é grande a discussão acadêmica, pelo menos no âmbito escolar, acerca da guerra ou das ações do exército japonês. A perda da batalha representa muito mais o fim de um processo que resulta em uma espécie de lição aprendida do que um espaço gerador de reflexões. Assim, na construção de sentido histórico japonês, a guerra representa o espaço de encerramento que gerou a paz pela qual as gerações posteriores são definidas.

O menino Gen, a guerra e o pós-guerra Como já foi dito, a história do mangá acompanha Gen, um menino de 8 anos. A narrativa tem início meses antes da explosão atômica, o que é demonstrado ainda no primeiro dos dez volumes que compõem a série. Neste primeiro volume, observamos a vida cotidiana, a carestia, a falta de comida, os treinamentos de sobrevivência e o medo constante dos bombardeios, ou seja, grande parte da história trata desses temas, por vezes questionadores para Gen e seus irmãos. Em

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virtude da atitude crítica tomada pelo pai — contrapor-se à postura conformista e belicosa da sociedade japonesa—, sua família é muito hostilizada pelos vizinhos, todos contagiados pelo nacionalismo militarista, que, narrativamente, figura como o grande sustentáculo do povo, seu espaço de conformação. Há um momento da narrativa em que o irmão mais velho de Gen acaba testemunhando o suicídio de um de seus colegas de batalhão, uma vez que este não aguenta os abusos físicos e psicológicos a que é submetido, ainda durante o treinamento para a batalha. Seu suicídio é encoberto pelos superiores e os pais dele partem para casa sentindo orgulho do filho, cuja morte só poderia ser honrada para um soldado naquele momento, pois transmitia respeito ao imperador. O testemunho de todos estes acontecimentos permite que o irmão de Gen assimile o discurso pacifista engendrado pelo pai e reflita dessa maneira: “Por quê? Por que as pessoas não conseguem pensar direito? Até quando serão manipuladas por essa guerra cheia de mentiras? Se cada japonês não aprender a se valorizar, essa guerra nunca terá fim” (NAKAZAWA, 2011, p. 229). Nos primeiros volumes, a crítica à guerra assume um teor bastante pessoal, sobretudo gerado nos pensamentos dos personagens. O único a se posicionar abertamente contra a guerra é o pai do Gen, sem, todavia, encontrar espaço para que sua crítica se transforme em um diálogo. Esse é um recurso empregado pelo autor para se referir aos efeitos do imperialismo, pois, ainda que existisse discordância quanto a este, ele acabava sendo uma experiência restrita à consciência dos envolvidos, em detrimento da coletividade. Mesmo que o foco narrativo de Nakazawa seja a vida cotidiana, questões políticas e motivações do governo japonês para a batalha aparecem de maneira constante em todos os volumes. Essas questões são, primeiramente, suscitadas pelo pai do personagem principal, o que ajuda a manter a coerência da narrativa, dado que, quando esta se inicia, o protagonista ainda é uma criança; em seguida, ele se torna mais e mais crítico da guerra e da situação do Japão, como resultado direto de suas experiências para sobreviver. Da mesma forma, a mãe de Gen assume o papel de crítica do exército japonês. Em suma, servindo-se tanto do pacifismo (presente em todos os momentos e em grande parte das falas dos personagens), como dos

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pais de Gen (do pai, nos primeiros volumes, e da mãe, no meio da história), o autor apresenta o contraponto de sua história, ou seja, demonstra que, ainda que vítima, o Japão foi protagonista de uma série de atrocidades e crimes de guerra. Situado entre a ficção e autobiografia, pode-se dizer que Gen pés descalços é uma obra que se situa também entre a memória, o discurso histórico, o imaginário e a crítica posterior de seu autor. De certa forma, constitui um espaço de intersecção de “verdades” em torno da experiência. Para Willian Moreira seria Interessante notar que, ao contrário do discurso histórico, aqueles que derivam da tematização do imaginário contém outra relação com a ideia de verdade, que é derivada do desejo e valores do seu agente. Nesse sentido, o discurso ficcional aparece como resultado do anseio de produzir algo diferente e questionadora da “verdade” socialmente estabelecida. A ficção e a autobiografia não se distinguem porque a segunda não se contamina com o imaginário, até porque se deixa levar pelas imagens, mas não pode se entregar inteiramente a esse aspecto. Por seu estilo discursivo, a autobiografia lida com uma constante instabilidade e tende em alguns momentos a se aproximar do discurso histórico, e em outros do discurso ficcional (MOREIRA, 2014, p. 98).

No momento em que Nakazawa se dedicou a escrever sua obra e ressignificar sua experiência, o mundo já não era mais o mesmo, considerando que as bombas já tinham sido lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, os japoneses viviam em uma nação ocupada, o sistema capitalista sofrera uma mudança essencial e o poderio industrial de uma nação lhe dava poder de decidir um conflito, muito mais do que a batalha direta de seus soldados. Neste sentido, a rendição e a capitulação, vivenciadas em 2 de setembro de 1945, serviram como reconhecimento de que a força estava no capital e não na pátria, em uma espécie de American way of life planetário. Esta mudança também aparece em algumas nuances da construção narrativa do mangá, quando este retrata as dificuldades de sobrevivência enfrentadas por uma cidade destruída pela bomba atômica. Ao passo que o primeiro volume é marcado pela explosão da bomba, grande parte do segundo nos apresenta Gen como testemunha da destruição causada por ela. Pessoas e animais, em diferentes graus de sofrimento, passam pelo protagonista, que busca sua família e a

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encontra soterrada em sua própria casa. Gen e sua mãe, os únicos sobreviventes, assistem à morte da família em um incêndio, sob os escombros, sem poder socorrêlos. Em sua autobiografia, o autor assinala que esta é uma das principais diferenças entre sua história e a de seu personagem principal. Embora seu pai tenha tido uma morte semelhante, Keiji Nakazawa não a presenciou, além de ter encontrado sua mãe, testemunha do incêndio que aniquilou-lhe a família, muitas horas depois do acontecido. A menção ao acontecimento, para o autor, foi uma forma de honrar seu pai: O que difere a morte do meu pai do pai de Gen é que eu eu não estava na cena do crime. Mamãe me falou sobre isso, em detalhes macabros. Ela estava na minha cabeça, então no mangá eu decidi que Gen estaria lá e tentaria salvar seu pai. Minha mãe sempre teve pesadelos com isso. Ela dizia que era insuportável, que ainda podia ouvir os gritos do meu irmão dizendo: “Eu vou morrer com você”. Ela o segurava pelos braços, mas não importava o quanto ela o puxasse, não podia libertá-lo. Enquanto isso, meu irmão dizia: “Está quente!”. Papai também dizia: “Faça alguma coisa!” Minha irmã mais velha, Eiko, talvez porque estivesse presa entre as vigas, não dizia nada. No momento, minha mãe dizia que ela mesma já estava enlouquecida. Ela chorava: “Eu vou morrer com você”. Felizmente, um vizinho que passava lhe disse: “Por favor, pare; Não adianta. Não há necessidade de você morrer com eles”. Tomando-a pela mão, ele conseguiu fazer com que que ela fugisse do local. Quando ela voltou atrás, as chamas eram ferozes, e ela podia ouvir claramente os gritos do meu irmão: “Mãe, está quente!”. Era insuportável. Uma maneira cruel de matar (NAKAZAWA, 2010, p. 19 — tradução nossa).

Quando o mangá foi publicado, o autor comenta que era comum receber cartas perguntando se todas aquelas coisas tinham realmente acontecido, se a situação de Hiroshima, de fato, assemelhava-se à retratada pelo quadrinho. As críticas à ocupação estadunidense — materializadas no texto a partir dos pensamentos de Gen e de seus amigos, órfãos da bomba — contribuíram para que, por algum tempo, o autor fosse classificado como politicamente alinhado à esquerda, sendo convidado para fazer parte do Partido Comunista Japonês. Além de denunciar o imperialismo japonês, ele também se posiciona quanto à luta proletária e à perseguição aos sindicatos, que tiveram lugar no pós-guerra. Para tanto, cria a

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personagem de um professor que auxilia Gen a elaborar críticas sobre a realidade enfrentada pelo Japão, conforme podemos observar na figura abaixo:

Figura 2: Gen e seu professor discutem a situação política do país no pós-guerra.3

O encontro com o professor, neste sentido, contribui para que Gen participe das manifestações pacifistas e questione os políticos em discursos e palestras. À medida que vai tomando consciência da falta de liberdade do Japão durante o processo de ocupação americana, o personagem assume um papel de enfrentamento aos estadunidenses. Esse enfrentamento é acompanhado de rancor, ao considerá-los como responsáveis pela bomba atômica que matou seus pais e

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Fonte: NAKAZAWA, Keiji. Gen pés descalços (vol. 8). São Paulo: Conrad, 2015, p. 120.

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irmãos. Em alguns momentos, a posição de revide aos EUA conduz o personagem a pequenos enfrentamentos e vandalismos contra o exército estadunidense, ou seja, contra o inimigo que, mesmo não reconhecendo a culpa pela destruição de Hiroshima, separa o Japão de sua liberdade. A ocupação americana é retratada, na maioria das vezes, como desdobramento de um mecanismo complicado de controle dos trabalhadores, dos governantes, dos sobreviventes e, especialmente, das informações sobre os efeitos cauados pela bomba. No quadrinho acima, o peso do discurso do professor faz com que Gen adormeça pensando em aprofundar-se nos estudos. Tudo isso acaba por revelar a imaturidade do personagem, com 13 anos na ocasião, correspondente à própria imaturidade do Japão, ainda traçando caminhos no pós-ocupação. As condições e tratamentos de saúde são retratados como desdobramentos do mercado negro, já que, em troca de cadáveres e de pacientes afetados pela bomba, os soldados ofereciam remédios a altos preços, enriquecendo-se às custas do desconhecimento e da falta de condições da população, de maneira geral. O controle das greves e das pessoas aparece, de tempos em tempos, como um mecanismo difícil de ser burlado, mas sempre alvo do pensamento crítico do protagonista. Ao mesmo tempo, os efeitos da ocupação vão, sutilmente, assumindo seu espaço, tendo em vista a imitação dos ianques feita por Gen e seus amigos, a adoção natural de termos e expressões em inglês por eles, além da absolvição do beisebol e da moda ocidental como parte do cotidiano deles, em maior ou menor grau. O cinema é retratado como o espaço em que o discurso da guerra é amenizado; ao lado do esporte, representa, para o japonês comum, uma folga de suas dificuldades cotidianas, bem como um Ocidente absorvido e ressignificado. Edward Said, ao escrever sobre o orientalismo, chama a atenção para o fato de que nossa aproximação com o Oriente sempre passa por um saber construído, organizado e normatizador do outro: [...] o intercâmbio entre os sentidos acadêmico e mais ou menos imaginativo do orientalismo é constante, e desde o final do século XVIII tem havido um comércio considerável, totalmente disciplinado — talvez até regulado — entre os dois. Neste ponto eu chego ao terceiro sentido do orientalismo, que é algo mais histórica e materialmente definido do

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que qualquer dos outros dois. […] o orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com o Oriente — negociar com ele fazendo declarações ao seu respeito, autorizando opiniões […] governando-o […] em um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente (SAID, 1990, pp. 15-16).

No caso do Japão, a explicação conformadora, de uma nação que “aprendeu” com a guerra, assume contornos ainda mais fortes: o uso da bomba atômica pelo vencedor, paradoxalmente, adquire expressão salvadora, passando a justificar o fim da guerra. Noutros termos, uma arma de destruição em massa de alcance tão profundo acaba representando o sacrifício final em nome da “paz”. Trocando em miúdos, o alinhamento bastante rápido do Japão a esta “nova ordem mundial”, capitaneada pelos EUA, apagou os crimes de guerra do imperialismo japonês, como um acordo tácito entre os dois países, uma compensação pela destruição da bomba. Em cima desta tradição inventada, explicações geradas tanto no Ocidente quanto no Oriente se constroem e se difundem. É importante notar o caráter aglutinador que a Segunda Guerra Mundial, enquanto acontecimento, acaba representando para os dois lados. Tudo isso faz de Gen uma obra de intersecção, de corte, ainda que, em alguns momentos, alinhe-se às explicações sobre o significado do conflito mundial. Todavia, ao mesmo tempo, representa uma voz dissidente, no âmbito da experiência vivenciada e testemunhada por seu autor. A resistência ao imperialismo, ao nacionalismo e aos conflitos se manifesta justamente no âmbito da experiência do indivíduo. A resistência, neste sentido, pode ser individual ou familiar, manifestando-se em grupos pequenos, em redes de apoio e em espaços de troca, sobretudo espaços sociais e coletivos. Mesmo diante dessas constatações, o discurso revisionista — que prevê a responsabilidade do Japão pela guerra e desconstrói seu papel de vítima, conformado com a posição na nova ordem mundial — muitas vezes incomoda. Tanto é que Gen foi alvo de críticas negativas. Sua narrativa não é a da história oficial, ainda preocupada em resguardar o espaço do imperador e do império. Na época em que Nakazawa estava crescendo e vivenciando o que ia se tornar sua arte sequencial, esse discurso garantia o militarismo e o nacionalismo das massas. Hoje, guarda um sentido conformador, também penhor da “ordem”. O caráter perturbador de Gen pés

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descalços não só testemunha uma grande calamidade, mas também esconde ecos desse nacionalismo, que tem se fortalecido no Japão e no mundo. Gen convoca todos a serem soldados e testemunhas da paz. Há lugar para a paz fora de suas páginas? Ao desafiar o próprio trauma, Nakazawa traz para o quadrinho um saber que não pode ser vetado, que tem o peso de um testemunho, por vezes contrário ao testemunho da história tradicional. Para além do peso usual dado aos quadrinhos, caracterizados pela simplicidade e pelo passatempo, histórias como Gen revelam que a arte sequencial pode suscitar reflexões sobre a existência de um mal, a necessidade de não esquecê-lo e, muito menos, banalizá-lo. Por outro lado, as críticas que a atualidade imputa à obra de Nakazawa são indicativos do crescimento de uma ideologia nacionalista no território japonês. O embate político entre a esquerda e a direita no Japão é, nos dias de hoje, um embate que também se dá por meio dos animes e mangás. Partindo deste pressuposto, fica mais fácil entender o lugar daquela petição que propunha a retirada de Gen das bibliotecas japonesas. Vale ressaltar que os termos “esquerda” e “direita” empregados aqui não são exatamente acurados no que concerne à política japonesa, uma vez que eles se referem, de maneira mais direta, à disputa entre o nacionalismo (representado pela direita) e o pacifismo (representado pela esquerda). Valores nacionalistas, militaristas, revisionistas e xenófobos são constantemente incorporados à pauta das reivindicações políticas do Jimintou (partido da direita japonesa), bastante influente no cenário político do Japão desde 1955 (em virtude de uma grande derrota, sua participação foi interrompida em 1992, afastando-se do poder entre 1993 e 1994) e, recentemente, influente graças à ascensão do ministro Shinzo Abe, símbolo da retomada dos setores mais conservadores do partido ao poder. Mesmo contando com alas “moderadas” e “conservadoras”, a agenda comum deste grupo “liberal-democrata” tem, desde os anos 1950, investido contra o artigo 9º que, em renúncia à guerra e à autodefesa, aboliu o exército japonês. Ainda que não sejam, hoje, pontos absolutos, esses temas sempre foram alvo de discussão e emendas deste grupo político. Para Eduardo Alves:

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As discussões persistem no presente, e com as recentes alterações legislativas podem tomar um novo rumo no sentido de efetivação da Reforma Constitucional, no entanto, os esforços do governo tem focado na remoção de bases militares americanas do território japonês, notadamente a Base dos Fuzileiros Navais em Futennma. Tais esforços podem, por outro lado, representar a tentativa de legitimar a efetiva remilitarização do país (ALVES, 2011, p. 77).

Outros pontos de embate dentro do nacionalismo conservador do Jimintou são a retirada dos poderes constitucionais do imperador e a chamada “ordem pública”, considerando que o militarismo anterior cedeu lugar a algumas políticas focadas em garantir um Estado de bem-estar social. Em suma, estes são os pontos que estiveram sempre na pauta de mudanças deste grupo político. Shinzo Abe foi um defensor do país durante a Segunda Guerra Mundial e já cogitou retirar alguns dos “pedidos de desculpas”, manobras diplomáticas de reconhecimento da ação bélica e violenta do exército japonês. Ainda que, nas análises sociais do retorno político desta ala conservadora ao poder, tal fato seja imputado à crise política e ao discurso protecionista do partido, o supranacionalismo e a defesa de uma historiografia conservadora são faces de um mesmo fenômeno. Em nome de um “resgate do espírito japonês”, associações como o Zaitokukai (um grupo de extremadireita contra o direito dos estrangeiros) ou a Atarashii Rekishi Kyōkasho o Tsukuru Kai (associação japonesa que busca reformar os livros de história no Japão) têm adquirido cada vez mais força em suas mobilizações. As petições contra Gen pés descalços são um exemplo disso. Desse modo, a política interna e externa japonesa tem sido marcada não por fatos isolados, mas por pontos de apoio que preveem toda uma reforma legal. A guinada nacionalista tem espaços diversos de inserção: está presente nos quadros políticos, formadores de opiniões, celebridades e organizações privadas. Ernani Oda, ao resgatar as análises dos intelectuais japoneses no entendimento deste fenômeno, chama a atenção para o fato de que o nacionalismo acaba adquirindo contornos de produto de consumo, que investe pesadamente na tentativa de ser aceito em um “mercado simbólico” global (ODA, 2014, p. 195). Ainda assim, as batalhas discursivas não podem ser encaradas como

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uma resposta isolada à globalização de maneira geral, mas como um alinhamento em torno do passado que tem um espaço de difusão cada vez mais amplo. Fábio Bertonha chama a atenção para o significado dessas transformações: O governo de Shinzo Abe criou recentemente um conselho nacional de segurança baseado no modelo americano, para onde convergem todas as informações relevantes. Desse modo, defende Abe, os japoneses poderão reagir com maior rapidez aos acontecimentos referentes às políticas externa e de segurança. Além disso, a coalizão governista de Abe conseguiu aprovar na câmara baixa do Parlamento uma controversa lei de segredos de Estado para impedir o vazamento de informações. No Japão, informações confidenciais costumam vazar com tamanha facilidade que os diplomatas e militares americanos têm por hábito compartilhar o mínimo possível com seus aliados japoneses e tal situação pode ser, no mínimo, suavizada com a nova lei. A nova END ainda não significou um rompimento completo com o status japonês de suposto “país pacifista”, mas é mais um passo nessa direção (BERTONHA, 2014, p. 40).

Tudo isso pressupõe não apenas uma disputa discursiva sobre o passado, mas sugere os indicativos de uma transformação política mais ampla que tem marcado a atualidade. Pontos da conhecida agenda fascista ressurgem com nova roupagem, como uma alternativa em tempos de crise. Os desdobramentos dessa nova ordem mundial devem ser entendidos e explorados, não tomados como nota de rodapé. Diante disso, podemos dizer que o estudo dos quadrinhos a partir de uma perspectiva histórica pode contribuir tanto para formularmos uma espécie de entendimento sobre os processos em que o passado adquire sua modelagem histórica específica, como para percebermos que a história é constituída de atos discursivos, formas de comunicação e padrões de pensamento. Esse dado também constitui um espaço importante na construção das mediações possíveis entre os quadrinhos e o conhecimento, neste caso, sobre o nacionalismo japonês, seus impactos, percepções e reflexos.

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Skinheads chauvinistas: integralistas, os “carecas do subúrbio” e o nacional-socialismo brasileiro Jefferson Rodrigues Barbosa1

Uma questão divide chauvinistas tradicionalistas e chauvinistas modernos na contemporaneidade: os primeiros guardam lealdade às experiências da primeira metade do século XX, como o fascismo, o nazismo e, no caso brasileiro, o integralismo. Os segundos opõem-se aos tradicionalistas, pois consideram prejudicial a identificação de suas propostas com os modelos ideológicos, estéticos e organizacionais estigmatizados pelos desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. Para os membros desta segunda vertente chauvinista, os indivíduos em sociedade são definidos pelo sentimento de pertencimento a comunidades culturais específicas, que dão sentido e valor à sua existência. Daí se originam certas concepções hoje em voga, pautadas pelo repúdio aos imigrantes, tendo em vista um discurso impregnado de um sentido específico de lógica territorial, para justificar a xenofobia e o racismo, como acontece com a Frente Nacional — partido chauvinista francês. Nacionalismo regional ou nacionalismo étnico é a forma como denominou Manuel Florentin: “São os grupos que rejeitam o atual conceito de Estado-nação e atribuem essa categoria à comunidade orgânica de idêntica etnia, cultura ou língua”

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Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp. E-mail: [email protected].

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(FLORENTÍM, 1994, p. 73). As organizações em questão são caracterizadas por um discurso fortemente moralizador que sempre focaliza o conteúdo de sua propaganda contra o caráter materialista da vida moderna, referenciando-se a princípios de ordem simbólica como, por exemplo, o pertencimento a uma comunidade étnicocultural que precisa ser protegida. Não só na Europa e nos EUA, mas também na América Latina, os herdeiros dessa

insanidade

parecem

profundamente

divididos

entre

organizações

chauvinistas tradicionalistas e modernas. As primeiras — a quem a imprensa jornalística e alguns trabalhos acadêmicos acrescentam o prefixo “neo” (fascista ou nazista) — insistem na herança histórica de Hitler e Mussolini e em sua simbologia característica (a exemplo de uniformes), assim como na defesa inalterável e irrefutável dos seus pressupostos ideológicos. Já as segundas se interessam em adaptar suas concepções diante da conjuntura contemporânea, negando a simbologia de outrora, na busca de maior inserção para suas concepções irracionalistas. No emaranhado dos grupos chauvinistas contemporâneos, destacam-se grupos juvenis que, sem dispensar certos símbolos anacrônicos na afirmação de sua identidade política, buscam firmar presença como portadores de valores nacionalistas extremados ou de “superioridade étnica”. Neste caso, não focalizando partidos políticos, mas organizações e movimentos sociais regressivos, alguns grupos

skinheads

nacionais

apresentam-se

como

portadores

de

valores

irracionalistas e violentos, como é o caso de determinados grupos skinheads brasileiros. Os nacionais-socialistas “White Power” e os integralistas “Carecas do Subúrbio”, por exemplo, são expressões destas manifestações e, em geral, são denominados como grupos de extrema-direita pelos meios de comunicação e por trabalhos acadêmicos.

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Gênese da cultura skinhead: tendências, diferenciações e ideologias É necessário pontuar as origens do movimento skinhead, surgido na Inglaterra no final da década de 1960. A Inglaterra, naquele período, era o cenário de muitos grupos juvenis, a exemplo dos rudeboys ou rudies (grupos de migrantes jamaicanos conhecidos por posturas violentas e machistas) e dos mods (gangues violentas retratas no filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick). Os skinheads surgiram, inicialmente, como um grupo juvenil não racista que frequentava os círculos dos mods (conhecidos como hard mods) e dos rudeboys nas festas de ska e reggae. Eram, em sua maioria, filhos de operários e vangloriavam-se de pertencer a um movimento genuíno de trabalhadores nacionalistas na construção de suas fronteiras de identidade social e territorial. Ao mesmo tempo que nutriam um sentimento exacerbado pelo futebol (defesa do território), os primeiros skins articularam a construção de sua identidade social, servindo-se de elementos associados à estética dos operários ingleses, tais como botas, suspensórios e calças jeans. Ademais, em oposição aos hippies — que, segundo os skinheads, eram cabeludos, usuários de entorpecentes e alienados —, utilizavam como marca identitária as cabeças raspadas, o que foi legado à cultura skin contemporânea. Fontes bibliográficas apontam que a estética das cabeças raspadas é oriunda também de estratégias para melhor desempenho nas brigas de ruas, de modo que os skins não possam ser agarrados pelos cabelos, e tem relação com a ideia de higienização (COSTA, 1993). As cabeças raspadas e o fisiculturismo, neste sentido, correspondem à ideia de saúde, força e virilidade, ao passo que a conduta moral rígida corresponde à ideia de força moral. A Inglaterra, durante as primeiras manifestações skinheads, recebeu um grande número de imigrantes, sobretudo jamaicanos e paquistaneses, os quais foram inseridos no país como mão de obra barata. Com a crise econômica da década de 1970, ocasionada pela alta mundial do preço do petróleo, as taxas de desemprego começaram a aumentar e, para muitos ingleses, os imigrantes que disputavam com eles o mercado de trabalho eram os responsáveis por isso. Naquele contexto, começaram a ocorrer na Inglaterra as primeiras ações violentas de

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skinheads

contra

esses

imigrantes

que

passaram

a

ser

acusados

e

responsabilizados pelo desemprego. Somam-se aos conflitos entre os skinheads e as culturas juvenis então em voga os reflexos da crise econômica:

Tratava-se de uma revolta antiburguesa que reivindicava os valores da comunidade e da solidariedade da classe operária, um fenômeno de banda e de moda em que o racismo estava ausente: os skinheads escutavam duas variantes da música negra, o ska e o steady beat. Depois, no começo dos anos de 1970, ocorreu uma evolução fundamental: os jovens trabalhadores brancos e os jovens negros divergiram musicalmente quando o reggae se tornou uma música de reivindicação cultural do rastafarianismo. O movimento skinhead (inglês) cessa, então, de ser multirracial, e a radicalização ideológica dos skinheads começa: alguns se tornam membros do National Front ou do British Movement, outros engrossam a fila dos hooligans nos estádios de futebol (CAMUS, 2000, p. 420).

Naquele contexto, concepções chauvinistas (nacionalismo radical) e xenófobas (aversão ao estrangeiro) passaram a fazer parte dos valores defendidos pelos skinheads, alterando-lhes a configuração ideológica. Começavam, assim, a aparecer os primeiros sinais da inclinação de determinados segmentos desta cultura urbana-juvenil às estratégias racistas e violentas para afirmação de sua identidade enquanto grupo social. Na década de 1980, ocorre um segundo momento na construção da identidade skinhead, a construção de uma identidade mais politizada, quando muitos grupos começaram a se rearticular, identificando-se com propostas de partidos chauvinistas, a exemplo do National Front, partido político inglês defensor de valores nacionais-socialistas. Desse modo, ocorre entre os skins ingleses a inserção de valores relacionados à pureza racial e a suposta defesa da necessidade de um espaço vital para uma sociedade inglesa sem imigrantes, para a construção de uma Inglaterra somente para os ingleses. A partir daquele contexto, a constante pressão da mídia acerca da infiltração do preconceito racial dentro de grupos skinheads proporcionou o surgimento de um maior engajamento político entre eles (tanto aqueles à esquerda quanto à direita), resultando na fragmentação de vários submovimentos rivais. Desde então, existem conflitos entre as diversas tendências

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sobre o legado da cultura skinhead. Ainda na década de 1980, muitas organizações skins passaram a se identificar de forma explícita com ideias nazistas, ganhando visibilidade a vertente skinhead “White Power” (ou boneheads, como são pejorativamente chamados dentro da cultura skinhead). Começavam também a aparecer, em outros países, jovens que assumiram os valores e a estética skinhead; nos EUA, por exemplo, muitas organizações skins estabeleceram vínculos com os remanescentes da Ku Klux Klan (KKK), organização racista atuante desde o final do século XIX, conhecida pelo extermínio de negros no sul daquele país. Os antagonismos e diferenças ideológicas entre as facções skinheads se tornam ainda mais complexas, tendo em vista o surgimento dos skins antifascistas (antifas), 2 o que potencializou as divergências entre esquerdistas e direitistas, racistas e não racistas, politizados e apolíticos. Assim, surgiram os “Skin Heads Against Racial Prejudice” 3 (SHARP), cujo princípio é ser contra toda forma de discriminação racial e fascismo, apresentando-se como apolíticos, e os “Red and Anarchists Skinheads”4 (RASH), que promovem ideologias de esquerda, a princípio mais como uma forma de combater o White Power.5 Neste sentido, estes grupos, em específico, não se ajustam à conceituação de chauvinistas. O terceiro momento na construção da identidade skinhead acontece no final da década de 1980 e início de 1990, a partir da organização de grupos internacionais, como a organização “Blood and Honour” e a “Hammerskin Nation” (organização neonazista originária dos EUA, atualmente com filiais em vários países):

É necessário bem compreender que o movimento skinhead não está organizado segundo uma lógica nacional e sim supranacional: há grupos em todos os países da Europa, nos EUA e no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia, assim como na maior parte dos países da América Latina. Eles intercambiam jornais, participam de algumas

2

Sobre as ações antifascistas, cf. o documentário que apresenta maiores detalhes sobre os enfrentamentos urbanos envolvendo esse grupo: ANTIFA: Chasseurs de skins, 2008. Disponível em: . Acesso em: 26.2.2016. 3

“Skinheads contra o preconceito racial”.

4

“Skinheads vermelhos e anarquistas”.

5

Sobre os diferentes grupos cf. o documentário: SKINHEAD Attitude. Direção: Daniel Schweizer, 2003, 90 min. Disponível em: . Acesso em: 11.3.2016.

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manifestações comuns e se comunicam pela internet. Além disso, a tecnologia do CD tem permitido a grupos musicais venderem as suas produções a baixo preço e para além das fronteiras do país de que um grupo skin é originário [...] o movimento se dividiu, em plano mundial, em várias facções, que concorrem entre si de forma impiedosa: por um lado os “Hammerskins”, de origem americana, ligados em sua origem aos grupos religiosos neopagãos dos Identity Churches, como o Aryan Nation ou a Igreja do Criador; por outro, o movimento “Blood and Honour”, de origem britânica, próximo dos neonazistas [...]. Entretanto, é na Europa Oriental que o fenômeno tem conhecido crescente inquietude [...] (CAMUS, 2000, p. 420).

No ano de 2005, por exemplo, ocorreram, em Portugal, grandes manifestações promovidas pela Frente Nacional portuguesa (organização composta também por militantes skinheads que integram a “Hammerskin”), cujos discursos subordinaram-se a temas contra a identidade cultural e a imigração. A mobilização de organizações internacionais como a “Hammerskin” e a “Blood Honour” traduz uma nova dimensão da articulação entre tendências skinheads chauvinistas e racistas, bem como reflete o resultado de articulação destes grupos, os quais potencializam suas ações de propaganda através de tecnologias de comunicação e de iniciativas no campo da cultura,6 a exemplo dos festivais de música e da difusão de bandas, como a RAC (Rock Against Comunist).

Skinheads no Brasil: “Carecas” e skins integralistas No Brasil, as primeiras organizações skinheads datam também do início da década de 1980, sem vínculo direto com os ideais nazistas. Oriundos de facções divergentes existentes dentro do movimento punk brasileiro, os skinheads logo se organizaram de forma independente, tornando-se inimigos do punk devido à incompatibilidade ideológica entre suas ideias nacionalistas e conservadoras em oposição às posturas libertárias defendidas pelo movimento punk e aos valores anarquistas, difundidos, em especial, pelos anarcopunks.

6

Sobre as modalidades de propaganda e mobilização, bem como iniciativas no campo da cultura de caráter regressivo cf.: WHITE Terror. Direção: Daniel Schweizer, 2005, 89 min. Disponível em: . Acesso em: 23.2.2016.

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Os primeiros skinheads brasileiros atuavam inicialmente na Zona Leste da cidade de São Paulo. Como limitavam-se a essa região periférica, foram denominados de “Carecas do Subúrbio”, organização composta de jovens trabalhadores das indústrias e do comércio de São Paulo, segundo dados levantados pelos pesquisadores Alexandre Almeida e Márcia Costa (2011).7 A influência de partidos e organizações chauvinistas buscando atrair os jovens dessa organização foi marcante, surtindo o efeito de dividi-los entre aqueles que se identificavam com as ideias integralistas e aqueles que começaram a identificar-se com o nacional-socialismo e suas concepções políticas:

A aproximação de alguns membros dessas organizações com os “Carecas do Subúrbio” pode ser considerada um dos motivos que aprofundou o fracionamento do grupo, resultando no surgimento de outras facções. Esse processo começou a ocorrer mais ou menos por volta de 1985 e se aprofundou, com problemas e contradições, como em parte veremos a seguir, no decorrer da década seguinte. Postulamos que esses grupos nacionalistas, formados ou rearticulados a partir dos anos 1980, tiveram um papel fundamental na politização e consequente fracionamento dos skinheads locais, e apontamos principalmente a Ação Integralista Brasileira (AIB), o Partido Nacional Socialista Brasileiro (PNSB) e o Movimento Participativo Nacionalismo Social (PARNASO), cuja articulação propiciou reagrupamento de uma parte dos skinheads, que passaram inicialmente a se considerarem integralistas ou nacionais-

7

“Os primeiros skinheads que apareceram no Brasil assumiram a denominação de “Carecas do Subúrbio”. Eles surgiram em nosso país mais ou menos no ano de 1978, na Zona Leste da cidade de São Paulo, e em cidades localizadas na região metropolitana. As informações que chegaram para jovens sobre a existência de skinheads na Inglaterra e Estados Unidos tiveram procedências diversas, como meios de comunicação de massa (revistas, jornais e programas de televisão) e discos importados das bandas desse estilo musical, que eram pirateados em fitas cassete, para viabilizar a venda, por conta do baixo preço. Além disso, seguindo uma forma de atuar herdada dos punks, os Carecas teceram uma rede alternativa nacional e até internacional que incluía troca de informações e contatos entabulados de diversas maneiras, como fanzines, cartas e músicas. O contínuo fluxo de informações trouxe dados sobre as particularidades e transformações na cena skinhead internacional. Dessa maneira, relatos sobre a atuação de organizações racistas entre os skinheads europeus e norte-americanos também começaram a circular entre os Carecas brasileiros. Na minha pesquisa sobre a formação do Poder Branco Paulista, uma facção skinhead local, entrevistei um antigo membro dos “Carecas do Subúrbio", que me relatou os intensos contatos com o exterior, por meio de correspondência, e como foram importantes para conhecer algumas características da cena Skinhead White Power, e também as bandas e os skinzines, como o inglês Blood And Honour e o belga Pure Impact. Todos esses contatos foram importantes e, como veremos a seguir, a relação com organizações nacionalistas brasileiras revelou-se fundamental em todo o processo de politização vivido pelos skinheads locais.” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 248).

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socialistas. A seguir, houve o surgimento em São Paulo dos denominados skinheads “White Power”, conhecidos na época como Poder Branco Paulista (ALMEIDA, 2011, p. 250).

Diante da crise econômica da década de 1980, responsável por afetar o mercado de trabalho da região onde atuavam os “Carecas do Subúrbio”, eles se propagaram com a afirmação de uma identidade baseada nos pressupostos ideológicos de um “nacionalismo proletário”, em repúdio às transformações oriundas das políticas neoliberais do período. Para os “Carecas do Subúrbio” que, posteriormente, organizaram-se no Rio de Janeiro e em outras regiões do país, também sob a denominação de “Carecas do Brasil”, o movimento não era “nem racista nem fascista” (COSTA, 1993). A internet, sendo cada vez mais acessada pela imprensa, constitui-se em um dos territórios de atuação de vários grupos chauvinistas nacionais de diferentes vertentes. A articulação entre grupos nacionalistas foi, assim, potencializada através dos recursos de comunicação, o que possibilitou o armazenamento e o compartilhamento de informações e a sociabilização de recursos imagéticos, tais como vídeos, fanzines virtuais, textos de formação política e informações sobre encontros e shows musicais. A atuação dos grupos skinheads brasileiros pode ser evidenciada pelo número expressivo de sites, blogs e vídeos disponibilizados na internet. A exemplo disso, no vídeo intitulado “Carecas e nacionalistas unidos Ativismo 7 de setembro, anti-comunismo, anti Dilma, PT, Foro de SP” 8 são disponibilizadas imagens de “carecas” de diferentes tendências participando do desfile ocorrido em 7 de setembro, na cidade do Rio de Janeiro. Abaixo do vídeo está inscrito: “Ativismo Patriota conservador no Rio de Janeiro” e, entre as siglas das organizações que participaram do ato, há referência ao Movimento Integralista Linearista Brasileiro (MIL-B). Dentre as fontes analisadas nesta investigação, há um vídeo esclarecedor sobre a relação entre os skinheads e os “carecas” integralistas. Intitulado “Carecas

8

Disponível em: . Acesso em: 14.4.2012.

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Força Nacionalista”, 9 esse vídeo demonstra as estratégias e ações adotadas por esse grupo para a propaganda de concepções chauvinistas. Desse modo, os “carecas” são apresentados durante um desfile militar, no qual ostentam cartazes com frases nacionalistas, sob a música da banda Anti Narcose, Manifesto Nacionalista, cuja letra homenageia o antissemita Gustavo Barroso. Ao final do vídeo, há a seguinte mensagem: “Agradecimento ao Núcleo Integralista do Estado do Rio de Janeiro (NIERJ), Carecas do Subúrbio SP e todas as forças nacionalistas”. Em sua maioria, as vítimas das agressões empenhadas pelos skinheads são militantes de esquerda, homossexuais, consumidores de entorpecentes e grupos juvenis, tais como roqueiros e punks; em suma, estes são os inimigos mais comuns dos skins, cuja violência adquire, sobretudo, justificativas homofóbicas (aversão aos homossexuais). Nesse caso, ações de perseguição e espancamento de homossexuais tornaram-se, em muitos países, uma das marcas mais distintivas dos skinheads homofóbicos. De qualquer forma, é importante ressaltar que a homofobia não é um elemento compartilhado pelo universo ideológico que orienta todas as tendências dos skinheads. A diferença mais notória entre os diferentes grupos skinheads 10 pode ser percebida no grupo “White Power”, defensor da supremacia branca. Para este, os principais alvos do combate nas ruas são os negros, as pessoas portadoras de necessidades especiais, os judeus, os imigrantes, os anarquistas e marxistas. No caso brasileiro, em especial, muitas vezes a vítima é o imigrante nordestino. Para diferenciar o conjunto de skinheads brasileiros é necessário pontuar que existem facções com diferentes graus de influência no espectro político e cultural, a exemplo

9

Disponível em: . Acesso em: 14.4.2012.

10

“Os ‘Carecas do Subúrbio’ já apresentavam em seu interior diferenças de concepções e divergências entre lideranças. No início da segunda metade da década de 1980, o estilo skinhead se espalhou por várias cidades brasileiras, na forma de facções, assumindo novas denominações e ostentando contradições e disputas internas. Essas novas facções, tanto em maior ou menor grau, se aproximavam dos ‘Carecas do Subúrbio’, quanto refletiam novas facetas dos skinheads existentes em outros países, relações tecidas com determinados grupos racistas e nacionalistas, e mesmo a sociedade em geral, particularidades e processos locais. Assim, surgiram os ‘Carecas do ABC’, ‘Carecas do Ceará’, ‘'Carecas da Baixada’, ‘Carecas da Bahia’, ‘Carecas do Vale do Paraíba’, entre outros grupos. Já o ‘Poder Branco Paulista’, ao negar a postura nacionalista e propor uma ‘São Paulo branca’ contra um ‘Brasil mestiço’, se constituiu em outra facção” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 253).

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dos “Carecas do Subúrbio” que, em parte, são integralistas. Assim, defendem o lema integralista “Deus, Pátria e Família” (difundido pelos seguidores de Plínio Salgado, na década de 1930), o que evidencia o arcabouço moral desse grupo. Noutros termos, a característica ideológica singular desta facção skinhead fundamenta-se em elementos do catolicismo. Segundo Almeida e Costa (2011), como reação à associação da imagem skinhead ao racismo e como manifestação de uma ideologia “genuinamente nacional”, segmentos skinheads do ABC começaram, na década de 1980, a identificar-se com o integralismo: A partir de meados da década de 1980, vários skinheads da segunda geração, e alguns da primeira geração que por serem muito jovens à época não tinham posição de liderança, procuraram constituir um novo movimento mais politizado, distante, se possível, da violência e com alguma consistência ideológica coerente com o contexto multicultural brasileiro, se afastando do nazismo, em contraposição aos skinheads do “Poder Branco Paulista”. Para atender essas expectativas, grupos de skinheads nacionalistas de várias localidades do país tomaram o Integralismo como referencial. Entre esses skinheads, alguns passaram a se afirmar integralistas, principalmente por influência de militantes de organizações nacionalistas, que tentavam cooptar jovens para suas fileiras, pois, tal como as antigas milícias da Ação Integralista Brasileira, lideradas por Gustavo Barroso, os skinheads “verdes” seriam a nova força nacionalista nas ruas. Eles dizem seguir o Integralismo da “linha de Gustavo Barroso” e se autoproclamam skinheads de “Terceira Posição”, ou seja, nacionalistas (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 7).

A relação entre skinheads que se apresentam como seguidores da ideologia do sigma e os integralistas organizados é polêmica, 11 pois, para os militantes

11

“Cito dois exemplos desses momentos de tensão. Um deles ocorreu durante o evento em comemoração ao Dia do Trabalho, na década de 1980, na Praça da Sé (SP). O evento, organizado por partidos, sindicatos e organizações de esquerda sofreu uma tentativa de invasão por parte de um grupo de nacionalistas, encabeçado por Anésio Lara Campos, com a participação de alguns ‘Carecas do Subúrbio’. Segundo alguns entrevistados que estavam presentes no evento, Anésio foi acusado de manipulá-los provocando assim a prisão de vários membros dos ‘Carecas’, enquanto ele saiu incólume. Pouco tempo depois, Anésio seria agredido por alguns desses skinheads. O segundo exemplo foi uma discussão entre o militante integralista Cássio Silveira e ex-membros dos ‘Carecas do Subúrbio’, durante o I Congresso Integralista para o século XXI, realizado em São Paulo, em 2004. Durante o debate sobre a formação do Movimento Integralista Brasileiro (MIB), a participação de skinheads foi rechaçada por Cássio Silveira, por considerá-los muito violentos. Tal acusação foi rebatida pelos ex-menbros do grupo, justificando a aceitação dos skins, pois para eles esses grupos podem ser considerados a ‘porta de entrada’ para os jovens que se interessam pelo nacionalismo” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 6).

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integralistas, os skinheads, em sua maioria, são estigmatizados como desordeiros e violentos, ao passo que, para os skins, os integralistas são vistos como muito “intelectualizados” e pouco propensos à ação direta: A relação entre os skins “verdes” e outros militantes do Integralismo é marcada por momentos de aproximação e tensão, pois muitos militantes das organizações integralistas viam e vêem com certa apreensão, a inclusão de skinheads em seus grupos. Essa apreensão é motivada pela imagem estigmatizada do grupo e pela consequente repercussão negativa na imprensa; pela conduta violenta de alguns membros e pelos possíveis conflitos com grupos rivais, como punks e “Antifascistas”; pelas discordâncias doutrinárias (como a questão do antissemitismo e a negação do Holocausto); pela ameaça de deturpação da doutrina; pela falta de disciplina e recusa de muitos skins de abandonar seu estilo, especialmente no que diz respeito à estética visual belicosa. Os skins criticavam e ainda criticam os militantes integralistas “tradicionais” por considerá-los manipuladores e indivíduos demasiadamente “intelectualizados” e não realizarem atividades do tipo “ação direta” nas ruas (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 6).

Como apontam Almeida e Costa (2011), entretanto, os segmentos de skinheads brasileiros denominados “carecas” identificam-se com o nacionalismo e com o culto à Plínio Salgado, bem como vinculam-se a elementos ideológicos, a exemplo do anticomunismo e de valores conservadores, estes últimos representados pelo primado da religião e da ordem social sob fundamentos moralizantes:

Estes skins buscam constituir um movimento autônomo com uma identidade política própria, sincretizando elementos da cultura skinhead (em especial a estética visual e sonora) com elementos de organizações e partidos “tradicionais”, como a simbologia e algumas ideias de força, no sentido de se apresentar como uma continuidade desses movimentos, adaptados aos tempos modernos. Criam assim, não só um movimento autônomo, mas o que podemos chamar de uma “ideologia skinhead”. Neste sentido, o lema “Deus, Pátria e Família” foi apropriado pelos skins por sintetizar, segundo relatos, a essência de um verdadeiro nacionalista e por dar sentido e consistência ideológica à existência ao movimento local. Desta maneira, os skinheads entusiastas do Integralismo têm como principais características identitárias o anticomunismo, o repúdio às drogas e ao aborto, a homofobia, o antirracismo, o antisionismo, o antiliberalismo, a xenofobia, a defesa do

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Estado forte e interventor e dos valores cristãos. Ainda assim, não é totalmente correto afirmar que um “abismo” divide esses dois grupos, pois existem skins que se mantêm ligados a alguns dos grupos citados e há certo respeito pelas partes, em especial aos militantes integralistas de longa data. Também não é incomum, em eventos como os desfiles cívico-militar, em comemoração aos aniversários da Revolução Constitucionalista de 1932 e da Independência do Brasil, a convivência respeitosa entre militantes integralistas “tradicionais” e skinheads (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 7).

Conforme assinalam os pesquisadores em questão, independentemente das divergências ideológicas entre facções skinheads e grupos nacionalistas, existem elementos que comprovam a articulação entre eles. Neste sentido, os autores destacam o papel de Anésio Lara Campos, importante militante integralista entre as décadas de 1980 e 1990, que buscou tornar os skinheads próximos da ideologia integralista.12 Nacional-socialismo brasileiro: PNSB e os skins “White Power” Em 1985, foi fundado o Partido Nacional Socialista Brasileiro (PNSB) por Armando Zanine, 13 antigo oficial da Marinha. A base deste nacionalismo é a

12

“As relações e contatos entre esses skinheads, particularmente os ‘Carecas do Subúrbio’, ocorreram, ainda que eventualmente surgissem discordâncias de algumas lideranças com o PNSB. E, portanto, apesar dos ‘Carecas do Subúrbio’ negar a proximidade com o ideário defendido pelo PNSB, em 1989, durante as comemorações dos 100 anos do nascimento de Adolf Hitler, membros dos ‘Carecas do Subúrbio’ e skinheads do PNSB estiveram, como no caso de São Paulo, presentes nas comemorações realizadas em várias localidades do Brasil. Entre os integralistas que se aproximaram dos skinheads, uma figura de destaque foi o advogado A. L. C., anticomunista, monarquista, defensor da ideia de um Estado cristão, no qual a autoridade do estado viria de Deus. Ele também negava a existência do Holocausto, apoiava o revisionismo histórico e ainda afirmava que entre os integralistas existiam centenas de membros representantes da ‘mistura de todas as raças’ formadora do povo no Brasil” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 253 e p. 257). 13

“Nascido no Rio de Janeiro, em 1930, Armando Zanine, um oficial da Marinha Mercante e exmilitante do Partido Socialista Brasileiro, tornou-se conhecido ao fundar, em 1985, o PNSB (Partido Nacional Socialista Brasileiro), baseado no partido nazista alemão. Esse partido, que se denominava sem rodeios de nazista, pleiteou por várias vezes o seu registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral, a fim de lançar candidatos próprios aos diversos cargos políticos, obtendo a rejeição do TSE em todas as suas investidas, por se chocar com vários pontos do artigo 17 da Constituição Brasileira, que se refere a liberdade de criação de partidos políticos desde que sejam resguardados os direitos fundamentais da pessoa humana. Ainda que não tenha sido legalmente registrado, o PNSB, dissolvido a poucos anos, contava com filiados em vários estados brasileiros, como Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Espírito Santo, Santa Catarina e Paraná. O seu principal grupo de sustentação era o movimento dos ‘carecas’, considerados os skinheads brasileiros” (GUIMARÃES, 2000a, p. 451).

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construção do que seu fundador denominava de “raça brasileira”, para a qual seriam aceitas pessoas de todas as “raças e religiões”: Nas entrevistas concedidas à imprensa, Zanine — simpatizante das ideias de Hitler, Mussolini e Enéas Ferreira Carneiro (“os carecas e o Enéas foram as melhores coisas que surgiram nesses últimos anos no que se refere a Brasil”) — expõe com convicção e sem hesitar o seu pensamento nitidamente conservador que tem atraído muitos adeptos provocado grande polêmica. A base de seu raciocínio é o nacionalismo exacerbado, xenófobo, apoiado na construção do que denomina de “raça brasileira”, para a qual seriam aceitas pessoas de todas as raças e religiões “obrigatoriamente brasileiras”. Ao contrário do racismo nazista, mestiços e negros seriam bem-vindos já que “raça ariana só existe na Europa” (GUIMARÃES, 2000a, p. 451).

O PNSB tentou, por várias vezes, o seu registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral, a fim de lançar seus candidatos em eleições, obtendo do TSE rejeição todas as vezes, devido às garantias constitucionais que repudiam qualquer forma de apologia ao nazismo. Ainda que não tenha sido legalmente registrado, o PNSB contava com uma articulada rede de comunicação de âmbito nacional, composta de militantes distribuídos em vários Estados brasileiros, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, mas também em Estados do Nordeste, como o Sergipe e a Bahia. Sob este enfoque, a base do pensamento nacional-socialista ganhou novos traços e significados, tanto históricos como locais. Os integrantes do PNSB, assim, são nacionalistas ferrenhos no sentido político e pautam-se pelos princípios de caráter

distributivistas

e

igualitários,

porém

restringem

seus

benefícios

exclusivamente aos membros de suas comunidades, ou seja, àqueles que compartilham uma espécie de sentimento de pertencimento às comunidades imaginárias, norteadoras das concepções destes grupos. Nas décadas de 1980 e 1990, em específico, o PNSB teve como principal núcleo de sustentação os “Carecas” — grupo surgido como um desdobramento dos skinheads europeus —, cujos membros buscavam a construção de um movimento de “cabeças raspadas” genuinamente nacional.

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No blog Nacional socialismo em rede, 14 por exemplo, os internautas têm acesso a vários vídeos do youtube sobre a atuação de organizações nacionaissocialistas em diversos países. Além disso, há um site intitulado Partido Nacional Socialista Brasileiro,15 em que a utilização da suástica e de outros símbolos nazistas articula-se à propaganda que busca apresentar uma releitura do nacional-socialismo adaptado à realidade brasileira. Clicando no link “ativismo”,16 abrimos o texto “Leis do lobo solitário”,17 cuja revisão, segundo dados do site, foi elaborada pela “diretoria do PNSB”, o que coloca em evidência a continuidade da ação deste grupo. Não se sabe, porém, se existe uma relação direta entre os antigos e os novos militantes do PNSB. No texto mencionado, são colocadas, de forma explícita, estratégias para que o “lobo solitário” haja com eficiência e descrição nas suas atividades de militante nacional-socialista. A referência aqui de parte do texto tem o intuito de fazer com que os leitores reflitam sobre o seu conteúdo velado, ou seja, o estímulo à violência veiculado livremente na internet.18 É interessante, tendo em vista a diversidade dos grupos chauvinistas na contemporaneidade, a bricolagem formada pelos herdeiros das ideologias violentas. Na perspectiva desta investigação, militantes do PNSB, skinheads nacionaissocialistas e integralistas representam o aspecto do irracionalismo e o retorno à 14

Disponível em: . Acesso em: 14.5.2009.

15

Disponível em: . Acesso em: 14.5.2009.

16

Disponível em: . Acesso em: 14.5.2009.

17

Disponível em: . Acesso em: 4.4.2009.

18

“Qualquer um é capaz de ser um Lobo Solitário. Resistência é um estilo de vida, basta ter perseverança e fé na Revolução Nacional-Socialista. Sucesso e experiência virão com o tempo. Sempre comece aos poucos. Saiba ponderar ‘custo-benefício’, riscos e objetivos de cada ação. Conhecimento é poder. Aprenda com seus erros e com os erros dos outros. Nunca se apresse ao fazer nada, tempo e planejamento são as chaves do sucesso. Quanto menos um estranho souber, mais seguro e mais chances de sucesso você terá. Mantenha sua boca fechada e seus ouvidos abertos. Nunca confesse nada, ou mesmo diga coisas que você acredite que não venham a comprometer o grupo ou sua ação individual. [...] Lembre-se, até as menores coisas farão diferença. Nunca deixe nenhum registro de suas atividades que possam te conectar à mesma. Tenha em mente que repetir as atividades na mesma área irá deslocar a atenção possivelmente a você. Quanto mais você mudar suas táticas, mais efetivas elas serão. [...] Não descartamos a possibilidade de existir uma hora quando pequenas células e Lobos Solitários se envolverão em uma alta estrutura, uma grande organização com grandes líderes. E essa é a proposta no PNSB, em longo prazo. Mas essa hora não é agora e parece estar longe de se realizar, pelo menos feita uma leitura atual da situação. Tenha a consciência de que o seu ativismo pode significar não mais do que a preparação para as futuras gerações – ‘manter acesa a chama do NS’ – e que isso de forma alguma representa um fator de desânimo para o militante” (Trechos do texto “Leis do lobo solitário”, idem, ibidem).

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insanidade caracterizada pelas práticas violentas e excludentes destes grupos. Neste sentido, como desdobramento da cultura política de decadência ideológica e do irracionalismo (LUKÁCS, 1959), é possível a análise comparativa das atuais formas de organização de determinados segmentos skinheads como uma dimensão da generalização da cultura da violência que marca muitas organizações de formação miliciana e de valores segregadores. Porém, existem algumas diferenciações ideológicas entre aqueles que se apresentam como “cabeças raspadas”; desse modo, diversas tendências devem ser consideradas quando enfocamos a cultura skinhead como objeto de análise de certas expressões do comportamento político-juvenil. As diferenças entre militantes e organizações que fazem apologia às concepções ideológicas de Adolf Hitler devem ser destacadas, pois, no Brasil e em outros países, nem todo nazista é skinhead, ainda que o “White Power” se apresente como nazista. Entretanto, muitos militantes das organizações contemporâneas nacionais-socialistas não têm vínculo ou relação direta e explícita com grupos skins. Nesta lógica, nem todo skinhead ou “careca” é necessariamente um apoiador do nazismo enquanto ideologia; porém, muitos compartilham de determinados valores difundidos pelos intelectuais da suástica, como evidenciou o estudo de Márcia Costa (1993) sobre os “Carecas do Subúrbio”. Assim, é possível considerar que algumas características da cultura skinhead têm relação com as as práticas e valores políticos de caráter fascistizante. Considerações: skinheads, chauvinismo e violência Existem várias facções skinheads, nem todas aderem aos mesmos componentes ideológicos, embora o chauvinismo seja a marca identitária mais expressiva entre as duas vertentes analisadas aqui de forma suscinta: os “Carecas do Subúrbio”, autodenominados antirracistas — porém conservadores, homofóbicos e violentos — são portadores de pressupostos chauvinistas, sendo o integralismo fundamento ideológico singular entre outras vertentes skinheads de âmbito nacional. Somam-se a este mosaico de insanidade os nacionais-socialistas, representados pelo grupo skinhead “White Power”, marcado por características ideológicas de racismo, homofobia e xenofobia. 91

Ambas as vertentes são relativamente organizadas nas grandes cidades, em grupos autônomos; o “White Power” é o segmento mais singular, fato que exacerba os antagonismos deste grupo com os demais. Por outro lado, em cidades do interior, onde existem poucos skinheads, é comum a presença, em eventos musicais ou em manifestações públicas, de militantes de grupos diferentes, o que ocasiona, muitas vezes, a tolerância entre esses membros, devido ao respeito pela cultura skin e pelos valores nacionalistas. O movimento skinhead no início do século XXI é segmentado, isso deve ser ressaltado para evitarmos generalizações deficitárias. A cultura

skinhead

caracteriza-se por tendências ideológicas distintas. Embora nem todos segmentos skinheads sejam racistas, a violência é um elemento comum na maioria deles, o que pode ser percebido, por exemplo, nos embates ocorridos entre skins neonazistas e antinazistas. Tendo em vista os confrontos entre as diversas tendências de grupos skinheads, mais um fato sobre a violência difundida pela cultura skinhead foi noticiado. Nesse caso, durante um show realizado na cidade de São Paulo, em 4 de setembro de 2011, ocorreu um conflito envolvendo grupos skins neonazistas e antifascistas.19 As ações dos “cabeças raspadas”, nesse contexto, evidenciam seus reais valores. A esse respeito, também é emblemático o caso em que dois adolescentes — ambos com cabelos compridos e trajando camisetas de bandas de rock — foram atacados por “carecas” em um trem na região metropolitana de São Paulo, em 7 de dezembro de 2003.20 O adolescente Flávio Augusto do Nascimento

19

“Briga de skinheads na zona oeste de SP deixa um morto. Uma briga envolvendo cerca de 70 membros de diferentes gangues de skinheads deixou ao menos uma pessoa morta e outra gravemente ferida, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, neste sábado. Gangues de skinheads neonazistas, entre elas a Front 88 e a Terror Hooligan, estavam na porta da boate Carioca Club, na rua Cardeal Arcoverde, onde a banda de punk inglesa Cock Sparrer iria se apresentar. Outra facção de gangues skinheads, que se posicionam contra as ações fascistas, desceu a rua também em direção ao clube. Havia cerca de 35 pessoas de cada facção. Quando as facções se encontraram, iniciaram um confronto usando armas de fogo, facas e coquetéis molotov. Cerca de 400 pessoas estavam na frente da boate no momento da briga. Segundo testemunhas, carros estacionados foram depredados. A polícia usou spray de pimenta para conter o tumulto. A assessoria do HC (Hospital das Clínicas) confirmou uma morte e um ferido em estado grave. Oito pessoas foram detidas para averiguação e encaminhadas para o 14º DP (Pinheiros)” Disponível em: Acesso em: 4.9.2011. 20

Disponível em: . Acesso em: 4.6.2009.

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Cordeiro, de 16 anos, perdeu o braço direito, enquanto que Cleiton da Silva Leite, de 20 anos, morreu após traumatismo craniano. Na verdade, eles foram obrigados a pular de um trem em movimento para não serem assassinados pelos skins dentro do vagão. Cabe aqui reiterar que os vídeos do youtube disponibilizados na internet possibilitam o acesso a programas jornalísticos sobre os crimes e a atuação de grupos skinheads. A bibliografia aqui referenciada assinala os elementos ideológicos que revelam a aproximação entre muitas organizações skinheads no Brasil e organizações skinheads atuantes em diversos países. De qualquer forma, alguns sites e blogs disponibilizados por skinheads pregam a não violência entre eles, embora sejam minoritários, se comparados à grande maioria dos grupos de “cabeças raspadas”. Esse grupo minoritário representa os defensores da vertente skin tradicionalista e preza, em especial, a cultura, a estética e a musicalidade do movimento. De fato, a popularização da cultura skinhead em diversos países contribuiu para que muitos jovens crescessem em um ambiente de contato contínuo com as músicas e a estética skinhead, assimilando tal identidade como manifestação apenas de uma cultura urbana, uma “cultura das ruas”. Todavia, analisando as origens da cultura skinhead inglesa, a partir do final da década de 1970, e seus desdobramentos em certos segmentos de skins na atualidade, é pontual ressaltar os vínculos ideológicos existentes nas práticas de muitas organizações e os valores propagados há décadas por extremistas de direita, como a defesa do território, baseada em um paradigma chauvinista e xenófobo, e a afirmação de suas convicções políticas através da violência contra seus antípodas. É evidente que a cultura skinhead é multifacetada e pressupõe uma diversidade de tendências. Um aspecto que marca muitos skinheads é a valorização da cultura militar, associada, sobretudo, à preparação física, ao treinamento para o combate através de táticas de confronto, ao conhecimento de esportes de contato e, em alguns casos, à utilização de armas brancas ou de fogo. Quanto a isso, os boletins policiais registram o porte de armas por determinados skins, não só no Brasil, mas em outros países, o que remete ao modelo organizacional paramilitar e corresponde às formas

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de organização de determinados grupos skinheads. Como exemplo, o livro de Márcia Regina Costa (1993) — elaborado a partir de várias entrevistas com “Carecas do ABC”

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e “Carecas do Subúrbio” — demonstra que muitos dos militantes

entrevistados articulam uma hierarquia composta de soldados e generais. Ademais, segundo a autora, os “Carecas do Subúrbio” afirmaram que “um dia teriam um exército de carecas para salvar o Brasil”. Os militantes de muitas organizações skinheads apresentam em suas práticas a afirmação de valores conservadores, fundamentados em princípios de conduta social, sexual e familiar, com destaque para o repúdio às concepções políticas igualitárias; em suma, essas organizações elegem o chauvinismo como paradigma político. Os valores chauvinistas e violentos também foram expressos pela “Juventude Nacionalista Brasileira”, organização articulada na segunda metade da década de 1990 por segmentos dos “Carecas do ABC”, os quais buscaram se vincular ao integralismo, no intuito de proporcionar uma identidade política nacional aos skinheads brasileiros, uma vez que estes estavam sendo influenciados por culturas skinheads estrangeiras, a exemplo dos skins racistas e dos vinculados ao movimento SHARP.22

21

Modelo de skinhead surgido na região da grande São Paulo, nas cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano. 22

“[...] uma parcela dos “Carecas do ABC” optou em se vincular novamente ao Integralismo e, na segunda metade da década de 1990, estruturaram um movimento denominado ‘Juventude Nacionalista Brasileira’ (JNB). Esse movimento articulou-se com outros grupos skinheads brasileiros que tinham fracassado na tentativa de implantar o SHARP e adotaram elementos do Integralismo, mesclado com a conduta skinhead, como ideologia. Tal rearticulação estava em consonância com um processo em âmbito internacional no qual grupos skinheads nacionalistas buscavam se afastar do nacional-socialismo e criar organizações inspiradas nos movimentos nacionalistas históricos locais e estes, por sua, vez ligados a uma organização chamada ‘Internacional Terceira Posição’. O Integralismo seria o movimento nacionalista local nos qual os skinheads dos anos 1990 se inspirariam. Basicamente, havia dois polos da JNB: um em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e o outro em Niterói (RJ), formado pelos skinheads daquela localidade, além de núcleos em Fortaleza (CE), Barra do Piraí (RJ) e Porto Alegre (RS). Em entrevista ao jornal Diário do Grande ABC, em 1995, membros da JNB do ABC paulista afirmaram que objetivo do movimento recém-criado era ‘despertar um instinto patriótico, nacionalista e defender os interesses nacionais até pegando em armas se for o caso’; consideravam Plínio Salgado e Gustavo Barroso seus ideólogos, acusavam o então presidente Fernando Henrique Cardoso de ‘entreguista’, não admitiam a homossexualidade, o consumo de drogas e o capital estrangeiro investido no país. Também não aceitavam envolvimento com a criminalidade por parte de seus membros, e ainda diziam acreditar que tanto Hitler quanto Mussolini tinham sido ‘úteis à suas nações’, mas que as ideologias nacional-socialista e fascista eram incompatíveis com a realidade vivida no Brasil” (ALMEIDA, 2011, p. 253 e pp. 259-260).

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A atuação dos movimentos e partidos políticos chauvinistas é complexa e difusa, tendo em vista que se faz presente desde o início do século XX, em diversos países, ganhando configurações e perfis distintos em cada época histórica. Assim, tais grupos podem atuar na sociedade como gangues de skinheads ou através de grupos políticos mais estruturados, como é o caso das organizações políticas sem registro partidário, a exemplo dos integralistas contemporâneos ou dos nacionaissocialistas brasileiros do PNSB. Entre as expressões chauvinistas, as manifestações regressivas dos skinheads nacionais-socialistas e integralistas contribuem para a configuração de um panorama diversificado, caracterizado por formas de nacionalismo extremado, instrumentalizado como fundamento para as práticas violentas dos ativistas destas respectivas organizações.

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Fontes Carecas: Força Nacionalista Disponível em: . Acesso em: 14.4.2012. Carecas e nacionalistas unidos Ativismo . Acesso em: 14.4.2012.

7

de

setembro.

Disponível

em:

FOLHA DE S. PAULO. Skinheads se apresentam à polícia de Mogi das Cruzes em SP. Disponível em: . Acesso em: 4.6.2009. PARTIDO NACIONAL-SOCIALISTA BRASILEIRO. Ativismo. Disponível em: . Acesso em: 14.5.2009. ________. Leis do lobo solitário. Disponível socialismo.com/LoboSolitario.htm>. Acesso em: 4.6.2009.

em: