Estudos Sobre As Tragédias De Sêneca [Filosofia ed.] 8598325147, 9788598325149

Lúcio Aneu Sêneca - também conhecido como Sêneca, o Filósofo - foi uma das figuras mais importantes do mundo intelectual

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Estudos Sobre As Tragédias De Sêneca [Filosofia ed.]
 8598325147, 9788598325149

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Estudos sobre as tragédias de Sêneca Zélia de Almeida Cardoso

L ú c i o Aneu Sêneca foi uma das figuras mais importantes do mundo intelectual romano do século I, tendo aliado às ati­ vidades politicas que desempenhou uma significativa produção filosófica e literária. Com o homem público, ocupou cargos de magistratura e foi conselheiro de Nero, de quem havia sido preceptor; representou um papel ativo ju n to ao poder desde a acla­ mação do jo vem imperador, em 5 4 d .C ., até 6 2 d .C ., quando se afastou definitiva­ mente da vida palaciana. Com o escritor, compôs textos filosóficos e tragédias. Nos primeiros, principalmente nas Cartas a Ludlio, permeadas do pensa­ m ento estóico, procurou mostrar que o im ­ portante, para o hom em , é saber fazer face às dificuldades e percalços, viver em confor­ midade com a natureza e cultuar a virtude, o que representa uma adesão voluntária à ordem universal. Considerando os vícios, a maldade, a insensatez e sobretudo as pai­ xões como fatores de desequilíbrio da ordem, que provocam o rompimento das leis natu­ rais e acarretam conseqüências desastrosas, Sêneca propõe, para que se atinja a felici­ dade, o exercício da virtude, o domínio dos sentimentos e o enfrentamento das vicissi­ tudes com tranqüilidade absoluta, ou seja, com a preconizada impassibilidade estóica, a apáthcia.

Estudos sobre tragédias de Sêneca

Copyright ® 2005 Zélia de Almeida Cardoso Edição: J oana Monteleone Capa: Clarissa Boraschi M aria e D jinan i S. de Lim a Alves Sugestão editorial e copydesk: Neusa Monteferrante P rojeto gráfico e diagramação: D jinan i S. de Lim a Alves Produção: Clarissa Boraschi Maria Imagem da Capa: A fresco encontrado abaixo das Term as de Caracala em Rom a.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cardoso, Zélia de Almeida Estudos sobre as tragédias de Sêneca/ Zélia de Almeida Cardoso. - São Paulo: Alameda, 2005. Bibliografia. ISB N : 85-98325-14-7 1. Sêneca, ca. 4 A .C . - 65 - C rítica e interpretação 2. Tragédia latina - H istória e crítica I. T ítu lo. 05_47!3

________________________________________ C D D -872.0109

índices para catálogo sistemático: 1. Tragédia: H istória e crítica: Literatura latina - 872.0109-

[2005] Todos os direitos desta edição reservados à

A L A M E D A C A SA E D IT O R IA L Rua M inistro Ferreira Alves, 108 - Perdizes C E P 05009-060 - São Paulo - SP T el. (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

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índice

Apresentação ^

7

A tragédia latina: origem e história *

11

As tragédias de Sêneca'

27

Fontes das tragédias de Sêneca v

37

Intertextualidade tm M edéia *

45

A tragédia de Sêneca: discurso ou espetáculo? *

65

O discurso como elemento caracterizador do espetáculo em As troianas

87

O discurso de Hécuba em As troianas e a caracterização da personagem trágica

107

O tratamento das paixões nas tragédias *

127

Teorias políticas nas tragédias

145

Vicissitudes que afligem os detentores do poder

167

O discurso de Hipólito em Fedra e a recusa da urbs

185

A presença da morte em As troianas * 197 Um a tragédia incompleta: Asfenícias

217

Abreviaturas utilizadas

239

Bibliografia

243

Apresentação

Lúcio Aneu Sêneca - também conhecido com o Sêneca, o Filósofo foi uma das figuras mais importantes do mundo intelectual rom ano do século I de nossa era, tendo aliado às atividades políticas que desempenhou uma significativa produção filosófica e literária. C om o hom em público, ocupou cargos de magistratura e foi conselheiro de N ero , de quem havia sido preceptor; representou um papel ativo junto ao poder desde a aclamação do jovem imperador, em 54 d.C., até 62, quando se afastou definitivamente da vida palaciana. C om o escritor, com pôs textos filosóficos e tragédias. Nos primeiros, principalmente nas Cartas a Lucüio, permeadas do pensamento estóico, procurou mostrar que o importante, para o hom em , é saber fazer face às dificuldades e percalços, viver em conformidade com a natureza e cultuar a virtude, o que representa uma adesão voluntária à ordem universal. Considerando os vícios, a maldade, a insensatez e sobretud o as paixões co m o fato res de desequilíbrio da ordem, que provocam o rom pim ento das leis naturais e acarretam conseqüências desastrosas, Sêneca propõe, para que se atinja a felicidade, o exercício da virtude, o dom ínio dos sentimentos e o enfrentam ento das vicissitudes com tranqüilidade absoluta, ou seja, com a preconizada impassibilidade estóica, a apátheia. O m esm o estoicism o, explorado em tratados e cartas, percorre as tragédias, peças que se co n fig u ram co m o um a espécie de elo que une, sob certo s aspectos, a exp eriência p o lític a do au to r, seus conhecim entos doutrinários e suas aptidões literárias. Nessas obras, inspiradas nas tragédias gregas do século V a.C . e em m uitas outras fo n tes, mas tratad as co m orig inalid ad e, o d ram atu rg o la tin o

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reelab o ra os tem as, adotando variantes dos m ito s, e d em on stra seu grande cuidado co m a caracterização das perso n agen s, o em prego da língua e a expressão de idéias e con ceitos, apresentados de fo rm a velada ou exp lícita.

*

Já houve quem considerasse as tragédias de Sêneca simplesmente com o veículos para propaganda da doutrina estóica ou para crítica política. N ão se sabe ao certo quais teriam sido as intenções do autor ao com pô-las, mas o fato é que as tragédias podem ser vistas com o metáforas ou parábolas nas quais a história dramatizada e as atitudes das personagens levam a refletir sobre os m odos da ação e sobre as catástrofes que se desencadeiam quando, no conflito que se estabelece entre a razão e as paixões, estas se saem vencedoras. E m nossos estudos sobre Sêneca, que já vêm de longo tem po, procuram os analisar alguns desses pontos. T em os agora o prazer de oferecer ao público, reunidos sob a form a de um livro, alguns ensaios sobre as tragédias, resultantes de nossas pesquisas. N o s dois prim eiros fizem os uma síntese das características da tragédia latina, desde a sua origem , e da tragédia de Sêneca, em particular. D iscutim os, nos seguintes, alguns problem as referentes às tragédias: a questão das fontes utilizadas pelo teatrólogo, na elaboração de seus textos, questão relativam ente espinhosa pela pobreza de documentação, uma vez que grande parte das pressupostas matrizes se perdeu ou se encontra fragmentada; a intertextualidade; a polêm ica referente à representabilidade das tragédias; a presença de marcas teatrais nos textos trágicos; a função do discurso com o elemento caracterizador de traços de personalidade das personagens; o tratam ento das paixões nos textos; a sugestão de teorias políticas; as considerações sobre os problem as enfrentados pelos governantes; a recusa das facilidades oferecidas pelas cidades; o enfoque dado à m orte. A esses capítulos se junta mais um em que se focalizam as características de As fenícias, tragédia que chegou mutilada até nossos dias.

Estudos sobre as tragédias de Sêneca

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Algum as versões prelim inares dos trabalhos agora reunidos chegaram a ser parcialm ente divulgadas em encontros científicos, no país e n o exterior, sob a form a de com unicações. N a indicação da Bibliografia não nos ativemos apenas à enumeração de obras “de últim a geração” por nós consultadas; arrolam os entre estas aquelas que, embora tenham sido escritas e publicadas há já algum tem po, continu am a ser consultadas p o r representarem valiosa contribuição para os estudos sobre a tragédia senequiana. Esperam os, com a divulgação de nosso trab alh o *, que ele tenha alguma utilidade para aqueles que iniciam seu percurso pelos estudos clássicos, aventurando-se no campo do teatro latino.

O s textos apresentados se fundamentam, em parte, em pesquisas realizadas com recursos concedidos pelo CN Pq, pelos quais reiteramos nossos agradecimentos.

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As tragédias de Sêneca

C om o se pode verificar, em bora tenha sido bastante significativo o núm ero de escritores rom anos que se consagraram à dram aturgia trágica, só restaram escassos fragm entos da m aior parte dos textos que escreveram. N a condição de obras praticamente completas apenas se preservaram para a posteridade as tragédias de Sêneca, escritas no século I de nossa era, e a pretexta Otávia, cuja autoria é d iscu tív el. A leitura dessas peças, sobretudo das tragédias senequianas, reforça a idéia de que a obra de cultura é produto de tod o um co n tex to , sendo extremamente im portante o conhecim ento desse contexto para que tal obra seja com preendida e sua própria existência possa ser justificada2. P o r essa razão, antes de alinhar nossas observações sobre as tragédias de Sêneca, apontarem os alguns dos aspectos da vida rom ana dessa época procurando verificar de que m aneira puderam refletir-se nos textos que o dramaturgo produziu. Sêneca pertenceu a um período de transição, bastante com plexo; viveu, co n fo rm e a expressão de A ndré de B ovis , na “crista que se­ para as duas vertentes da H istó ria: a v ertente pagã e a cristã ”; é1

1 Escrita possivelmente no primeiro século de nossa era, na época dos Flávios, a pretexta Otávia foi por vezes atribuída a Sêneca por ter sido encontrada em manus­ crito que continha as tragédias senequianas, mas costuma ser considerada apócrifa por grande parte da crítica especializada. C f. Carbone, M. The Octavia-, structure, date and authenticity. Phoenix 31 1977 48-67; Royo, M. L ’ Octavie entre N éron et les premiers Antonins. Revue des ÉtMes Latines 1983 189-200; e Poe, J . P. Octavia praetexta and its Senecan model. American Journal o f Philology 110 1989434-459. Cf. Candido, A. Literatura e sociedade. São Paulo, Nacional, 1967. pp. 4 ss. Cf. Bovis, A. La sagesse de Sénèque. Paris, Aubier, 1948. p. 9.

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um a época de m udanças políticas, sociais, eco n ôm icas, de crises ideológicas e religiosas. Q uando o poeta nasceu, em data que medeia entre 4 a.C . e o ano 1 ou 2 de nossa era, o “Século de A ugusto”, julgado por D u p o u y 1*4* com o “uma das épocas fantásticas do espírito humano”, já ultrapassara seus m om entos mais gloriosos. D e acordo com Suetonio {Diu. Aug. X X I I I e L X V ) , os últim os anos do governo do príncipe, aqueles em que Seneca viveu sua adolescência, foram particularm ente difíceis em decorrência de problem as de diversas ordens, inclusive os de carater sucessório. M orrend o em 14 d .C ., Augusto foi substituído, sucessivamente, por Tibério, Caligula, Cláudio e N ero. T o d o esse p eríod o, que se estende de 14 a 68, foi m arcado por odios, violência e tirania. T ib erio , enteado, genro e filho adotivo de Augusto, esteve a testa do Im perio de 14 a 37. Apesar de ter tom ado algumas medidas prom issoras no início de seu governo, mostrandose co m p eten te, m oderado, sim ples e b en év o lo 6, o que lhe rendeu grandes elogios de V eleio P atércu lo (11,129-130), fo i aos poucos enveredando p o r um cam inho diverso, tornando-se extrem am ente duro e au stero. Valeu-se co m freqü ência da lex maiestatis que p o ssibilitav a a m ais severa pu nição para as m en o res ofensas7, instaurando-se, em conseqüência, um regim e de te rro r, em que ocorriam , a todo m om ento, denúncias, acusações, processos, prisões

1A. Dupouy, Op. cit., p. 136.

Os Doze Césares, de Suetonio, e o s A nais, de Tácito, bem como a História Rom ana , de D ion Cassio, são as principais fontes antigas de que dispomos para o conhecimento da época de Sêneca. As referências feitas com base nessas obras estão seguidas de indicações com as abreviaturas convencionais. ‘ Cf. Suet. Tib. X X V I-X X X in . 7 C f.T ac. Ann. 1,72-73. Cf. Bloch, G. U EmpireRomain. Êvolution et decadence. Paris, Flammarion, 1922. pp. 76 ss; e Piganiol, Histoire de Rome, p. 245.

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e execuções*. V ários intelectu ais, a exem plo de C rem ú cio C o rd o , É lio Saturnino e M am erco E scau ro , sofreram graves penalidades em d ecorrência dessa situação e, apesar de haver prosperidade e paz, T ib ério passou a ser visto com o tirano, tornando-se m otivo de tem ores e ressentim entos. Su etonio e T á c ito fazem referências explícitas aos grandes problem as então enfrentados p o r todos . C o m a m orte de T ib ério , em 37, o Senado conferiu poderes ao jovem C aio César Caligula, sobrinho-neto do imperador desaparecido. C om o Tibério, Caligula conquistou a simpatia do povo nos primeiros meses de seu governo, mas revelou, logo depois, evidentes sinais de dem ência que se m anifestaram sob a form a de extrem a crueldade, megalomania e violência . Sêneca, por essa época, se tornara um dos mais eminentes oradores de Rom a. A vaidade e a inveja do príncipe, que nutria grandes ambições intelectuais, fizeram com que m enosprezasse o orad or e tivesse até m esmo cogitado em condená-lo à m orte. C om o assassínio de Caligula, ocorrido em 41, o poder foi oferecido a C láudio. A figura do novo im perad or sem pre fo i o b je to de controvérsias e tem sido tratada de forma caricata desde a Antigiiidade. A o que parece, tinha grande cultura , mas era fraco, desprovido de prestígio e autoridade e, conseqüentemente, impopular . Suas atitudes sempre foram estranhas e contraditórias. Sua personalidade maleável era facilm ente m anobrada por libertos que o assessoravam e pelas duas últim as esposas que exerceram poderosa influência sobre ele. M essalina conseguiu o b te r de C láudio o ban im en to de Sêneca,

’ Cf. Dion Cass. LVII, 22; LVH[, 24. Cf. Suet. Tib. X X X III; X X X V I; X LV I; T ac. Ann. VI, 20. " Cf. Suet. Cal. X III, X V e X X II. u Cf. Bardon, Les empereurs et les lettres latines d ’A uguste a Hadrien, p. 125. ” Cf. T ac. Ann. X I e X X X III-X X X IV .

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envolvendo o poeta em intrigas palacianas. Agripina dominou o esposo de tal form a que dele obteve a adoção do filho que ela trou xera de um casam ento a n te rio r, L ú cio D o m ício , o fu tu ro N e ro . Para encarregar-se da educação do jovem , Sêneca foi cham ado de v olta a Rom a, aliando-se, então, a Agripina, com quem mantinha boas relações. C om a m orte de Cláudio, ocorrida em 54, em circunstâncias suspeitas que implicaram a própria imperatriz, N ero assumiu o poder'1e Sêneca passou a ser seu conselheiro. C o m o T ib ério e Caligula, N ero tam bém fez co m que o povo ro m an o , a p rin cíp io, sonhasse co m um reto rn o aos dias áureos de Augusto. O sonho, todavia, se foi desvanecendo à medida que o im perador manifestava, progressivamente, tendência ao despotismo, prepotência e crueldade, entregando-se a desmandos e crimes. E m 62, desgostoso, provavelm ente, com a vida pública, Sêneca se afastou de N e ro , retirando-se para uma propriedade particular, distante da cidade. Esse fato, porém , não o impediu de ser considerado co m o um dos participantes da abortada conspiração de Pisão, cuja finalidade era depor o im perador, nem de ser condenado à m orte em virtude dessa pretensa participação. O poeta se suicidou em 65 . N ero sobreviveu por algum tem po, mas em 68, durante uma sedição, apunhalou-se - ou foi apunhalado e perdeu a vida, pondo fim à tumultuada “dinastia júlio-claudiana”.

Tac. Ann. X II, 66-67. Cf. Cizek, E. Néron. Paris, Fayard, 1982. ,s Cf. Tac. Ann. X IV , 52-56. O impressionante relato da morte de Sêneca é encontrado nos Anais de Tácito (XV, 62-64). Segundo o historiador, ao saber que fora condenado à morte por N ero, por ter sido acusado de participar de uma conjuração que objetivava a deposição do impera­ dor, Sêneca se despediu de seus amigos, ordenou que lhe fossem abertas as veias dos braços e das pernas e ditou a seus secretários um longo discurso; em seguida, como custasse a morrer, mandou chamar um médico para que lhe desse um veneno. Como, porém, nenhum desses expedientes tivesse abreviado a chegada da morte, num último esforço, Sêneca exigiu um banho quentíssimo e foi sufocado pelo vapor.

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C o m o se pode verificar, toda a vida adulta de Sêneca decorreu em um am biente caracterizado pela violência, pela crueldade de go­ vernantes, pelo despotism o. E m bora tivesse tido freqüente acesso à corte, nela chegando a desempenhar im portantes papéis, isso não foi suficiente para garantir-lhe imunidades: foi hostilizado por Caligula , banido por Cláudio, condenado à m orte por N ero. A obra de Sêneca reflete, de alguma form a, tod o esse estado de coisas. A própria escolha dos gêneros literários a que se consagrou é explicável. D edicando-se à filosofia, sobretud o a divulgação de princípios doutrinários estóicos, propôs ao hom em de sua epoca uma reflexão sobre a felicidade humana, a paz de espírito, a curta duração da vida, o descaso pelo supérfluo, o exercício da virtude; escrevendo tragédias e derramando-se num estilo pom poso e elaborado, valeu-se d o jn ito com o alegoria, e, ao condenar os heróis e heroínas da fábula que se deixaram vencer pelas paixões, condenou, ao m esm o tem po, de fo r m a v ela d a , os p ro c e d im e n to s c o m p o r ta m e n ta is que caracterizavam os poderosos . A época não favorecia, realmente, o desenvolvimento de gêneros literários que exigissem tom adas de posição diante dos fatos, o que poderia, eventualmente, determinar sanções. A situação política, desde que o poder do imperador se tornara despótico, provocava a repressão da m anifestação independente do pensam ento. E m condições se­ m elhantes não é raro que o tem o r de censuras e punições faça com que os escritores abordem matérias alheias à vida p olítica, muitas vezes de form a superficial, sem grande profundidade. D aí, talvez, a preferência do escritor pelos temas filosóficos e pela poesia trágica. O s te x to s de Sêneca eram destinados a um a espécie de elite so cial, a um a p opu lação co n stitu íd a de pessoas bem situadas na *1

Cf. Suet. Cal. Lm. 11 Cf. Cizek, E .L 'époquedeNéron etses controvertes idéologu/ues. Leiden, Brill, 1972. pp. 291 ss.

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sociedade, am antes do lu xo e da o sten tação, de m orad ias ricas, m obiliário fino, alfaias preciosas e mesa farta, ao público habituado a freq ü en ta r círcu lo s lite rário s e sessões de recitationes, nelas encontrando uma form a particular de lazer intelectualizado. Havia, sem dúvida, em R om a, grande núm ero de auditores e leitores para suas obras. A cidade se transform ara, tornando-se um grande centro cosm opolita. A sociedade se m odificara pela presença de elem entos estran h o s que se m esclavam em verdadeira fusão cu ltu ral e pelo ap arecim en to de “tip o s n o v o s”, criados pela p ró p ria co n ju n tu ra p o lítica: senadores que, em virtude do absolu tism o rein an te, não tin h am mais necessidade de preocupar-se com negócios pú blicos, cavaleiros e oficiais desocupados, um núm ero crescente de novosricos, que encontravam na literatura uma resposta a seus anseios'’. N e m as obras filo só fica s, nem as peças trágicas são tex to s para grandes m assas. A s tragédias, p o r dem ais requ in tad as e o ferecen d o alguns p ro blem as para a rep resen tação, certa m en te não teriam feito sucesso num teatro popular. A dem ais, o gosto da p lebe se m o d ificara tam b ém . É ce rto que a grande m u ltid ão de o cio so s presen tes na cidade -

soldados in a tiv o s, egressos dos

cam p o s, antigos escravos, lib erto s sem posses - precisava ser entretida para não causar m aiores problem as aos governantes. Para essa m u ltid ão eram m ontados grandes espetáculos: espetáculos de arena e de circo , com bates, corridas, lutas de gladiadores, batalhas navais. E tam bém m im os e pantom im as que substituíam os antigos gêneros d ram ático s, flo rescen tes na ép oca rep u b lican a e já não tão apreciados naquele m om ento.

Cf. Paoli, U. E. Rome, itspeople, life and customs. London, Longmans, 1963. pp. 78 ss., e Carcopino, J . Daily life in ancient Rome. London, Routledge, 1946. pp. 23 ss.

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T u d o isso explica o que ocorreu no século I de nossa era. As restrições e o fato de muitos gêneros literários terem atingido altíssimo mvel na época anterior levaram a literatura a enveredar p o r outros cam inhos. O esvaziam ento de conteúdos passou a ser com pensado pela exuberância verbal, pelo gosto do efeito, pela ênfase, pela pompa de estilo. A ornam entação da frase se equilibrava co m a ausência de opiniões pessoais, uma vez que expressá-las poderia acarretar conseqüências desastrosas. Com preende-se, assim, a obra de Sêneca, a escolha dos gêneros, a superficialidade, a verbosidade, tantas vezes censurada. F o i ele um típico autor do início da decadência romana. O s textos filo s ó fic o s que escreveu abord am tem as m o rais, sem grande aprofundam ento, e neles se observa um pendor acentuado pela filosofia estóica. As tragédias, escritas talvez mais para a leitura e a declamação do que para a representação propriam ente dita, com o supuseram alguns especialistas , se revestem de um to m eloqüente, oratorio e empolado, em bora em certos m om entos revelem um estilo vivo, nervoso e patético. Sobre esses textos, bastante especiais em suas particularidades, passamos a fazer algumas observações mais porm enorizadas. C om o já se disse anteriorm ente, foram oito as peças trágicas que chegaram praticamente na íntegra até nossos dias: A loucura de Hércules (Hercules

furens), As troianas (Troades), Medeia (Medea), Fedra (Phaedra), Agamemnon (Agamemnon), Édipo (Oedipus), Tiestes (Thyestes) e Hércules no Eta (Hercules Oetaeus). A sfen kias (Phoenissae) está m utilada ou talvez não tenha sido concluída. Inspiradas nas tragédias áticas, sobretudo nas de Euripides, mas sofrendo influência tam bém dos dramas latinos da época republicana,

Cf. M. Bieber, Op. cit., pp. 397 ss.

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da poesia épica e lírica, as peças de Sêneca se distanciam de seus modelos principais’1. P o r um lado, são inferiores às gregas no tocante à teatralidade; p or o u tro , apresentam traços bastante nítidos de originalidade criativa. As lendas mitológicas, que fornecem o assunto a ser desenvolvido, são, em m uitos casos, reform uladas em alguns de seus porm enores. E m As troianas, por exem plo, a ocultação de A stíanax no túm ulo de H e ito r parece ser criação senequiana; em A sfenícias, diferentemente do que o co rre em Sófocles, Jocasta assiste ao duelo dos filhos; em

M edéia, a feiticeira mata uma das crianças diante do esposo; em Fedra, a confissão feita pela madrasta à ama é original, bem com o o expediente de que esta se vale para salvaguardar a honra da filha de criação, acusando H ipólito diante do povo de Atenas. C enas escabrosas, de h o rro r e de violência perm eiam os textos. Sêneca, em alguns m om entos, talvez para ressaltá-las, não se preocupa co m o d ecoro, co m a conveniência - em As troianas, as mulheres desnudam os seios em sinal de protesto; em A loucura de Hércules, a cena de dem ência do herói é apresentada ao público; em Edipo, uma novilha é sacrificada em cena com o ritual próprio dos sacrifícios. N o que diz respeito à progressão da ação, as tragédias senequianas tam bém se diferenciam das gregas p o r serem bastante estáticas. H á, em geral, falta de m ovim entação e de clím ax. Parte-se de uma crise inicial, que se m antém até o fim sem m aiores mudanças na ordem dos fatos. A catástrofe é prevista desde o início. U m “patamar” crítico substitui, por vezes, o ponto culminante. N o tratam ento dado às personagens está um dos m éritos do poeta F o i ele capaz de construir tipos dotados de grande vigor. A acentuação intencional de traços de personalidade faz algumas das figuras se

Cf. L. Herrmann, Op. c it, pp. 233 ss.

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assemelharem a grandiosas caricaturas trágicas. H á especial cuidado na com posição de personagens fem ininas. M égara, em A loucura de

Hércules, H écuba e Andrôm aca, em As troianas, M edéia e Fedra, nas tragédias hom ônim as, Jocasta e Antigona em As fenicias, D ejanira em

H ércules no E ta, C litem n estra, em A gam êm non, são m u lheres inesquecíveis, cada uma com seus atributos próprios, seus contornos peculiares e sua força de construção. U m dos traços m arcantes a caracterizar as figuras de Sêneca é a luta que enfrentam em seu íntim o e que se trava entre as paixões e a razão. As personagens são dotadas de livre-arbítrio e têm consciência de que, se não são totalm ente donas de seu destino, têm possibilidade de fazer o bem e evitar o mal. O fatalism o, presente na m aioria das tragédias gregas, é substituído, nas de Sêneca, pelo drama psicológico. A lém de elaborar cuidadosamente as personagens vivas, Sêneca tam bém dispensa especial atenção às personagens m ortas, quer apa­ reçam no texto com o fantasmas ativos (é o caso de Tântalo em Tiestes, e de Tiestes em Agam êm non ), quer com o fantasm as apenas m en­ cionados (Aquiles e H eito r em As troianas, ou Laio, em Édipo), quer com o simples lem branças, dotadas, contud o, de algum poder de atuação (Príamo, em As troianas) . O s cânticos corais que entrem eiam os episódios são bastante diferentes dos coros presentes nas tragédias gregas. Assemelham-se a poemas líricos, sendo construídos e metrificados com o tais, e deles se vale o poeta para que a personagem coletiva narre um fato, discuta um assunto, faça um com entário. .

A linguagem das tragédias é bem característica da época em que .

2?

viveu o escritor . T em traços acentuadam ente retóricos, o que lhe

Cf. Cardoso, Z. A. A construção de As troianas de Sêneca. São Paulo, U SP-FFLCH , 1976 (Tese de doutoramento, policopiada). pp. 120 ss. Cf. Coutinho, A. Crítica epoética. Rio de Janeiro, Acadêmica, 1968. p. 40.

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confere, ao lado da solenidade própria do gênero, um to m artificial e, por vezes, pedante. M estre da língua e conheced or do m aterial que ^ reelaborou , sobretudo nos porm enores, o poeta se valeu a todo m om en to de figuras de estilo e das variações form ais que o período latino adm itia. À extensão dos m onólogos se opõe m uitas vezes a vivacidade dos diálogos, vazados em frases curtas, lacônicas e incisivas. Sendo am ante e divulgador da filosofia, Sêneca im pregnou suas tragédias de elem entos doutrinais, princip alm en te estóicos, ex­ pressando-os freqüentem ente sob a form a de sentenças morais. A influência exercida pelo trágico latino sobre a literatura posterior foi imensa. O cham ado “senequism o” foi um fenôm eno literário de grandes p roporções. N as nações mais cultas do m undo ocidental, principalm ente nos séculos X V I, X V II e X V III, grandes teatrólogos, tais co m o L. D o lce, C in zio , F o sco lo , na Itália, D e La Pérouse, P. Mathieu, R . Gamier, Buchanan, Billard, La Pinelière, Corneille, Racine, Crébillon, na França, Sackville, N orton, Daniel, Greville, Shakespeare, Peele, G reene, Jo n so n , Massinger, na Inglaterra, com puseram obras 24

im portantes nas quais se observa, nítida, a herança senequiana .14

14 Cf. Highet, G . La tradición clásica. México, Fondo de Cultura Econôm ica, 1954. Vol. I, pp. 70 ss.

Fontes das tragédias de Sêneca

Em bora já tenham sido publicados num erosos trabalhos sobre as fontes das tragédias de Sêneca , o assunto continu a a preocupar os estudiosos, dando constantem ente origem a novos livros e artigos. C o m o exem plos m odernos, podem os lem brar a tese de A ndré Arcellaschi, Medée dans le théâtre latin dEnniusa Sénèque (École Française de R om e/ Palais Farnèse, 1990), os artigos de F rancesco C orsaro', “ Variatio in imitando nelle Troades di Seneca” (5iodorum Gymnasium X U V [1991] 3-34) e “Andromaca, Astianatte e Ulisse nelle Troades di Seneca: fra inovazzione e conservazione” ( Orpheus, X I I [1991] 63-92), os de Santiago L ó p ez M o r e d a , “A lgunas co n sid eracio n es so b re los compuestos poéticos en las tragédias de Sêneca” {Anuário de Estúdios

Filológicos [Cáceres. U niv. de Extrem adura] X I II [1990] 185-191), o de Alessandro Schiesaro', “Form s o f Senecan intertextuality” ( Vergilius

Em Le théâtre de Sénèque (Herrmann, 1924, pp. 5-30), Léon Herrmann relaciona 102 trabalhos referentes às fontes das tragédias de Sêneca . A tese de doutorado de André Arcellaschi, defendida na Sorbonne, em 1986, é um estudo exaustivo, de 469 páginas, no qual o autor estuda a figura de Medéia tal como se apresenta nos diversos autores latinos. N o primeiro artigo o autor analisa o uso feito por Sêneca de modelos gregos e la­ tinos não exclusivamente trágicos, realçando a liberdade com que o poeta trágico se valeu de tais modelos; no segundo, trabalha com as cenas que envolvem a questão do arrebatamento e da m orte de Astíanax, confrontando-as com cenas similares observa­ das em autores anteriores a Sêneca. Nesse artigo o autor discute a questão dos compostos utilizados por Sêneca, mos­ trando que grande parte deles se encontra no repertório de formas empregadas por seus predecessores. O autor procura mostrar a função da intertextualidade, num momento posterior a

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X X X V I I I [1992] 56-63), e a tese de doutorado de Jo sé Eduardo San­ tos Lohner, A retórica e a poética; a técnica de composição da poesia dramática

no A gam em non de Sêneca, defendida em 2002, na Universidade de São Paulo. São obras especializadas que focalizam aspectos particulares das tragédias relacionados com as questões de intertextualidade e imitatio. C om o texto mais abrangente, apesar de não tão recente, lembramos o ensaio de R. J . T arrant, “Senecan drama and its antecedents” {Harvard

Studies in Classical Philology [1978] 213-263) e nele nos detemos. Tarrant volta a insistir na questão das influências que se exerceram sobre as tragédias de Sêneca, apresentando alguns dados com plem entares. Lem brando inicialm ente que a crítica moderna fez um a revisão da postura do passado que costumava proceder sistem aticam ente à com paração das tragédias de Sêneca com as peças áticas do século V, m ostra que essa crítica prescreve a leitura analítica dos textos em si, independentemente do conhecimento de pressupostos modelos, e chama a atenção para a existência de outras fon tes, m uitas das quais, infelizm ente, bastante fragmentadas: as tragédias gregas de autores m enores dos séculos V e IV a.C ., tais com o a M edéia, de N éo fro n ,

Anthos, de A gatão , Agam em non, de Ion de Q uios; a Com édia N ova, tanto grega com o latina; as tragédias alexandrinas de que a Alexandra, de L íco fron representa um exemplo; as tragédias romanas do período republicano e imperial; e, ainda, a poesia épica e lírica latina. As considerações de Tarrant nos levam a retom ar as observações sobre os m odelos escolhidos por Sêneca feitas p o r L éo n H errm an n em L e théâtre de Sénéque (1924, pp. 254-331). E m que pese o fato de terem sido feitas no fim do prim eiro quartel do século X X , essas o b ­ servações refletem um a pesquisa acurada e profunda, am plam ente

Virgílio e O vídio, discorrendo sobre os pontos de contato entre esses autores e Sê­ neca, tanto em Tiestes com o em outras tragédias.

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documentada. H errm ann parte de uma indagação prelim inar: Sêneca im ita a tragédia grega do século V , a tragédia helenística, os tragediógrafos arcaicos latinos ou os autores da época de Augusto? Para responder, rem em ora cinco hipóteses formuladas por estudiosos que 0 precederam , discutindo-as e contestando-as, quando lhe pareceu necessário. C onform e H errm ann, para alguns críticos, a exem plo de R . Schreiner , a influência prim ordial sofrida pela tragédia de Sêneca viria dos teatrólogos latinos arcaicos. Apoiando-se em referências de Pérsio (Sat.l, 75) e do próprio Sêneca (A dLucil. Ep. 114,12), Schreiner lembrara que na época de N ero o público ainda apreciava as tragédias antigas e arrolara alguns versos de Sêneca sem elhantes aos de Lívio Andronico e Á c io . A hipótese de Schreiner, segundo H errm ann (pp. 254-255), foi combatida por F . Strauss e por outros por considerar-se que Sêneca em algumas de suas obras filosóficas e nzApocolocintose chegara a zom bar dos textos trágicos do período republicano e talvez só tivesse conhecido da tragédia arcaica os versos que foram citados por C ícero. Para H errm ann, há evidentem ente vestígios da influência dos

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5

autores arcaicos nas tragédias de Sêneca, mas os m odelos áticos não podem ser esquecidos.

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A segunda hipótese referente à predom inância de fontes fora proposta pelo p róprio Strauss, sendo tam bém partilhada p o r outros críticos: Sêneca teria utilizado a tem ática grega, mas com p osto as tragédias à maneira das de V ário e Clvídío. Para H errm ann é possível que tenha realm ente havido influência desses autores, sobretudo no *1

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A hipótese de Schreiner se encontra em obra referenciada por Herrm ann, intitulada

Seneca quomodo in tragoediis usus sit exemplaribus graecis. Como exemplos são mencionados os seguintes versos: Med. 176; Agam . 421 ss.;

Thy. 221 ss. 1 Sen. A dLucil. Ep. 22; D e ira 3, 37; A pocol. 12.

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que diz respeito ao retoricism o dos textos; nada se sabe, entretanto, sobre os processos de com posição das obras de V ário e O víd io, que, apesar do sucesso de que desfrutaram, parecem ter sido continuadores dos tragediógrafos arcaicos do período republicano. A te rce ira hip ótese fora apresentada p o r F . L eo : as tragédias senequianas teriam sofrid o in flu ên cia p red o m in an te da tragédia h elen ística. H e rrm a n n pond era que o d esap arecim en to dos m o ­ delos to rn a im possível o co n fro n to , e, por conseguinte, a aceitação da suposição. A quarta hipótese fora defendida por A. Pais , para quem Sêneca teria praticado usualmente a contam inatio ao com p or suas tragédias, trabalhando os textos a partir de dois modelos gregos ou de um grego e um latino. H errm ann descarta a hipótese julgando-a m uito estranha p o r Pais ter considerado com o apócrifas as tragédias A gam êm non e

Édipo que se baseiam num único modelo. A quinta hipótese, apresentada por K . Lied loff, endossada por H errm an n e por ele denom inada “eclética”, é a de que Sêneca se valeu de fontes m últiplas para a com posição de seus textos trágicos. Para com provar sua posição, H errm ann procedeu ao exam e de cada tragédia separadam ente, a fim de verificar os procedim entos do teatrólogo e poder manifestar-se não apenas sobre o que Sêneca imitou mas, principalmente, sobre como im itou seus antecessores. A análise de H errm ann é exaustiva. Ele trabalhou minuciosamente co m as possíveis fontes de cada tragédia e analisou, por com paração, em Sêneca e no que foi possível en con trar de seus antecessores, o tratam ento dado aos m itos, a com posição da intriga, a progressão da

9 Herrmann se refere à obra de Friedrich Leo, intitulada De Senecae tragoediis obseruationes

criticae. A hipótese se encontra na obra de A. Pais, II teatro d i Seneca illustrato.

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ação, a configuração das personagens e a função dos coros. Para H errm ann - e tudo o que ele diz decorre da análise que fez - m uitos foram os modelos utilizados pelo tragediógrafo rom ano: A loucura de

Hércules se baseia no H eracles de Euripides, mas se co n stitu i num a adaptação bastante livre e possivelm ente tenha sofrid o alguma influência do A nfitrião de Á cio, peça modelada sobre o A nfitrião de Sófocles; as influências dos “Hércules ” de L íco fron e de D iógenes são descartadas p o r H errm ann, bem com o as que proviríam de dramas satíricos tais com o o Heracles no Tênaro e o Heracles, de T im esiteu jrís

troianas resultam de um processo de contaminatio, tendo Sêneca mesclado a H écuba e as Troianas de Euripides co m outros elem entos; o tem a fora profusamente trabalhado pelos trágicos gregos e latinos, tais com o Sófocles, que havia tratado da m orte de A stíanax em Os prisioneiros

(Aechmalotides) e da de P olíxena em Polixena, E n io , que com pusera Andrômacaprisioneira {Andromacha Aechmalotis), Ácio, Troianas e/ou Astíanax e Hécuba e Q uinto Túlio Cícero, Hécuba e Troianas-, a peça de Sêneca tem alguns pontos de contato com a Ifigênia em A ulis, tais como o estratagema de Helena para enganar Políxena, com a Andrômaca de Euripides, com o Ajax de Sófocles, no passo em que Agam êm non e P irro discutem , e, ainda, com a Eneida de V irg ílio (II, 2 7 0 ss.) que teria exercido influência sobre o relato do sonho de AndrômacapÁs

fen ícias são “um a co m bin ação de várias peças d entre as quais, principalmente, Asfenícias de Euripides”, havendo possíveis influências do Édipo, de Euripides, do Édipo em Colono e da A ntígona de Sófocles;

IMéd^g) tem co m o fontes as tragédias hom ônim as de Euripides, N eofron, Eruo, A cio e Qvidio, bem com o o poema epico de Apolônio de Rodes (Argonáuticas) e outros textos; Fedra deve ter-se inspirado nos dois “H ipólitos" de Euripides (o Portador de Coroa e o Velado), na

Fedra de Sófocles e na quarta heróide de O vid io; Edipo se baseia no Édipo R ei de Sófocles, mas apresenta num erosas m odificações e possivelm ente teria sofrido influência dos num erosos “Édipos”

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com postos por Euripides, L íco fron , N icô m aco, D iógenes e outros; não se sabe se Sêneca teria chegado a conh ecer o Édipo de Jú lio C ésar, cuja publicação, de acordo com Suetonio {Diu. Cues. 56), foi proibida por Augusto; Agamemnon tem com o fonte principal a tragédia hom ônim a de Sófocles, mas pode ter recebido influência do Egisto e da Clitemnestra de Sófocles, do Agamemnon de Ion de Q uios, dos dois

“Egistos” latinos, o de Livio A ndronico e o de Á cio, e de outras obras; Tiestes deve ter tido p o r m odelo as tragédias h om ônim as de E n io e Vário bem como o A treu de Ácio; Hércules no Eta se inspira nas Traquínias e no Filocteto de Sófocles e no Heracles de Euripides e pode ter sofrido influência do Heracles de Dionísio, o Tirano. A partir da análise feita, H errm ann enumera suas conclusões: 1. Sêneca não utiliza um único método para suas imitações: ora se vale de

contaminatio (é o caso de As troianas), ora recorre a um modelo principal (A loucura de Hércules ou Edipo), utilizando-se por vezes apenas de fontes dramáticas {Edipo) e, em outros m om entos, de fontes dramáticas somadas a modelos épicos e/ou líricos {Medéia, Fedra); 2. o teatrólogo se baseia sobretudo nos grandes trágicos gregos, mas não deixa de aproveitar-se dos textos de poetas arcaicos latinos; 3. O vidio foi uma fonte m uito im portante para Sêneca; 4. de todas as hipóteses sobre as fontes senequianas, a “eclética” parece ser a mais justa. C o n sid eran d o “o rig in a l” o p ro cesso im ita tiv o de Sêneca, H errm an n aponta algumas das características desse processo. Para ele, Sêneca não foi, co m o os trágicos arcaicos, um im itad o r servil dos m odelos gregos. D os seus antecessores latinos conservou apenas o gosto pela retó rica e pela filoso fia e a “vontade de latin izar e ro m an izar os assuntos gregos”. T ra to u os m ito s co m liberdade, c o n se rv a n d o as grandes lin h as e m o d ific a n d o -o s em alguns porm enores, e os considerou som ente com o bases para a construção da intrig a. O tratam en to dado à ação é diferente em Sêneca e nos trágicos áticos; as personagens são construídas pelo autor latin o de

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forma bastante especial: Sêneca recompôs os caracteres, modificandoos bastante, por vezes; os coros não participam da m archa dos fatos e não se inserem na continuidade da ação, os cân tico s, inspirados nos poetas lírico s, consistem sobretud o em preces, d escrições, narrações, com entários; a oratória é valorizada e as notações cênicas (marcas teatrais) são realçadas. A im itação, co n cebid a em novos m oldes, passa p o r um p rocesso de m o d ern ização , co n ferin d o originalidade às tragédias. A posição de Tarrant em parte coincide com a de H errm ann, em parte lhe acrescenta novos matizes. C om o H errm ann, Tarrant afirma (r*'1

ser inegável a influência da tragédia ática do século V sobre Sêneca, mas enfatiza a contribu ição da C om édia N ova, o que se constitui num dado novo. C om o H errm ann, considera as adaptações bastante livres, não sendo possível, quando se dispõe dos m odelos, reconhecer a tradução de versos, por exemplo; em alguns casos (Agam em non , As

troianas, Fedra) o tratam ento do m ito é algo diferente do que foi dado pelos dramaturgos gregos. Para Tarrant, as principais diferenças observadas entre a tragédia grega e a de Sêneca se encontram: 1. na divisão em atos (a tragédia senequiana apresenta usualmente cinco atos, separados por quatro cânticos, conform e as prescrições aristotéliça e horaciana); 2. no uso do coro (na tragédia grega, após a sua entrada, o coro permanece em cena integrandose com a ação e desempenhando um papel ativo; na de Sêneca, em geral ele não tem nenhuma função no desenvolvimento da ação, limitando-se a cantar odes narrativas, descritivas, lamentosas ou laudatorias, anunciar a chegada de personagens e provocar o diálogo, afastando-se do palco depois de ter cantado - cf. Phae. 601: En locus ab om ni liber arbitrio uacat, “O lugar está livre de qualquer presença”); 3. na falta de transição entre algumas cenas ( Tro. 163-202/ 203 ss.; Med: 380-430/ 431-578; 879890/ 891-977/ 978-1027; Thy. 404-490/ 491-545; Agam. 108-225/ 226309); 4. na “falta de coerência orgânica” (opinião sem dúvida discutível);

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5. na ruptura da estrutura dramática que pode acenar para uma influência posterior ao século V ou para a experiência de um novo gênero dramático, a tragédia declamada; 6. na suspensão do tempo dramático, determinada pelo uso de procedimentos bastante usuais em algumas comédias de Plauto, ou seja, de m onólogos de entrada de algumas personagens” e de “apartes” , dos quais um tipo especial ocorre quando, no interior de um soliloquio, uma personagem se dirige a si própria, interrogando-se ou exortando-se à ação; 7. na utilização de elementos dramáticos, próprios da encenação, tais com o ruídos referenciados por personagens (barulho de portas que se abrem, em Med. 177-178, Oed. 911 ss., H O 254 ss.), procedimento usual na comédia (Pl. Mil. 1330 ss.), e comentários sobre a ação das personagens (Phoe. 363-386; Aga. 867 ss.) - trata-se de uma técnica dramática diferente da que encontramos na tragédia ática; 8. na utilização de metros diferentes dos metros gregos: utilização preferencial do jâm bico senário nos monólogos, diálogos e partes faladas; mescla de metros no interior dos cânticos. D iante das análises mencionadas podem os co n clu ir que Sêneca, na verdade, dispôs de farto material para a com posição das tragédias. Reelaborando-o a sua maneira e recriando-o, im prim iu em seus textos a m arca da originalidade.

Entrada de Lico, em HF. 329 ss., enquanto Mégara e Anfitrião dialogam; monólogo de Helena em Tro. 861-871; monólogos de Creonte e de Jasão em Med. 179-186e431444; de Atreu em Thy. 491 ss.; soliloquio de Clitemnestra em Aga. 108-124. Vejam-se, por exemplo, o aparte de Medéia, em Med. 549-550, ao saber que Jasão amava os filhos mais do que qualquer outra coisa, e os de Ulisses e Andrômaca em Tro. 607-618; 642-662; 686-691, quando hesitam em relação a formas de agir.

Intertextualidade em M edéia

Antiga e com plexa é a lenda de Medéia, explorada na tragédia de Sêneca. Vincula-se intim am ente a outros m itos, igualm ente antigos, representados na iconografia grega e mencionados em textos anteriores ao de Euripides, tais com o: o m ito da viagem de F rix o à Cólquida, o sacrifício do carneiro voador e a oferta do velo de ouro ao rei Eetes, lenda mencionada no Catálogo, atribuído a Hesiodo, F r. 68, e na Pítica IV , de Pindaro; o m ito das insidias de Pélias, em Io lco s, tam bém mencionado na Pítica IV ; o da expedição dos Argonautas, referido em

Od. X II, 70; o do encontro de Jasão e Medéia, na C ólquida, presente em Pindaro, Pítica IV , e tam bém em autores pouco lembrados, com o Eum elos de C o rin to , F r. 9 K in kel, e K arkinos de N aupacta, F r. 5 Kinkel; o da viagem de retorno do navio Argo, citada em Od. X II, 5970; o da perm anência de Jasão e M edéia em Iolcos, resum ido por H esiodo em Theog. 992-1002; o da perm anência de Jasão e M edéia em C orinto, explorado por Eumelos nas Corintíacas, F r. 3 Kinkel, obra perdida da qual Pausânias nos oferece um resumo, e p or C reófilos de Samos, autor do século V I a.C ., F r. 4 K in k e l.

' Filho de Néfele e de Atamante, rei da Queronéia, ou de Tebas, segundo outras ver­ sões, Frixo e sua irmã Hele foram expulsos de casa por instigação da madrasta, Ino. Um carneiro alado, de velo de ouro, os levou ao O riente, mas Hele caiu no mar e morreu. Cf. Grimal, P. D icionário da m itologia grega e romana. Trad, de Victor Jabouille. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993. s.v. “F rixo”. Cf. Moreau, Alain. Le mythe deJason et deMedée. L e va-nu-pied et la sorcière. Paris, Les Belles Lettres, 1994. pp. 23-61.

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É na M edéia de Euripides, porém , que encontram os a possível prim eira versão da lenda de Medéia e ja sã o , tal co m o a conhecem os hoje, lenda que explora os fatos que ocorreram em C o rin to , após o acerto do casamento de Jasão com a filha do rei C reon te3; as ameaças da m ulher desprezada e o decreto de expulsão; a vingança de Medéia, com o envio de um m anto e de um diadema envenenados à filha do rei, presentes que lhe causarão a m orte, bem co m o a de seu pai; o assassínio dos filhos ; a fuga de M edéia para Atenas. A presentada no concurso das G randes D ionísias de 431 a.C ., conquanto a tetralogia de que fazia parte não tivesse obtido senão o terceiro lugar, a tragédia de Euripides desfrutou de grande fortuna entre os pósteros do tragediógrafo, exercendo enorm e influência sobre o drama trágico de todos os tempos. Sêneca se encontra entre aqueles que se inspiraram em Euripides, m uito em bora tenha ele tido acesso a outras fontes que tam bém o influenciaram5; a poesia alexandrina6, o teatro latino da época helenística, a poesia épica e lírica que floresceram em R o m a na época clássica, a tragédia do periodo imperial. Sêneca, entretanto, não foi, com o os trágicos arcaicos, um imitador servil dos modelos gregos. Tratou os mitos com liberdade, conservando as grandes linhas e m odificando-os em alguns porm en ores, e os

O nome da filha do rei não é mencionado na Medéia, de Euripides. O nome Glauce aparece nos argumentos da tragédia e em Apolodoro (A pol. 1,9,28), Pausânias (P aus. II, 3,6) e Higino (H ig . Fab. 25); o nome Creúsa, em Ovidio (Ov. Her. X II, 56) e Sêneca (Sen. Med. 817,922). Cf. A. Moreau, Op. cit. p. 77, n. 98. N o texto de Eumelos, Medéia mata os filhos involuntariamente; no de Creófilos ela é acusada caluniosamente de ter assassinado as crianças (Cf. A. Moreau, Op. cit. p. 52); num fragmento supérstite da M edéia de N éofron, porém, detecta-se o combate inte­ rior da mãe prestes a matar os filhos. Para o conhecimento das fontes da Medéia de Sêneca recomenda-se não só o clássico Le théâtre de Sénèque, de Léon Herrmann, como também o estudo de André Arcellaschi, já mencionado. Curiosamente, embora as Argonauticas de Apolônio de Rodes tenham fornecido a Sêneca alguns detalhes do m ito, a “Medéia” construída pelo poeta alexandrino (Ap.

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considerou som ente com o bases para a construção da intriga. O tra­ tam ento dado à ação é diferente em Sêneca e nos trágicos áticos; as personagens são construídas pelo autor latino de form a especial uma vez que os caracteres são recom postos, o que p o r vezes os m odifica bastante; os cânticos corais independem da ação; a oratória é valorizada e as notações cênicas (marcas teatrais) são realçadas. A im itação, con ­ cebida em novos m oldes, passa p or um processo de m odernização, conferindo originalidade às tragédias . O c o n fro n to en tre as “M edéias ” de E u rip id es e de Sên eca nos m ostra as d iferenças acentuadas que ex istem en tre as duas peças, uma vez que os dois te a tró lo g o s assum em p o siçõ es d istin tas em m uitos dos aspectos da elaboração dos texto s. O arcabou ço m ítico é b a sicam en te o m esm o em sua essên cia; as d iferen ça s m ais sensíveis se e n co n tra m nos detalhes do m ito , na m o n tag em da in triga, na progressão da ação, n o papel desem penhado pelo co ro e, principalm ente, na caracterização das per-sonagens. A lém disso, o te x to senequ iano apresenta nas en trelin h as a visão estó ica do filósofo, explícita ou subentendida, e é trabalhado es-tilisticam ente nos m oldes da re tó ric a da época. A peça de Euripides é mais longa que a de Sêneca: tem 1419 versos enquanto a tragédia latina apresenta apenas 1027.0 número de episódios

Rhod. Argonaut. Ill, 948-972) não parece ter exercido influência sobre a do teatrólogo latino. O fenômeno é explicável. Ao invés de compor a figura de uma feiticeira adulta, de uma mãe desnaturada que comete crimes hediondos e acaba por matar os próprios filhos, A polônio cria em seu poema a figura de uma jovem princesa inexperiente e cândida, que conhece o amor pela primeira vez, deixa-se apaixonar e vivência sentimentos até então desconhecidos: o nervosismo, a perturbação, as angústias, 0 desejo de matar-se, o êxtase, a contradição íntima. Por essas características ela se aproxima da Dido, de Virgílio, e da Fedra, do próprio Sêneca, mas não de Medéia, a m ulher cheia de ódio e ciúme, que se envolve em crim es inom ináveis. Cf. A. Moreau, Op. cit., pp. 199 ss.

1 Cf. L. Herrmann, Op. cit., pp. 233-331.

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é diferente nas duas tragédias: a Medéia grega se compõe de um prólogo, quatro episódios e um êxodo, intercalados por cinco coros; a de Sêneca, segundo a prescrição aristotélica, se constitui de um prólogo, três episódios e um êxodo, intercalados por quatro cânticos corais. A ação é tratada de modo particular pelos dois tragediógrafos. N o prólogo de Euripides, ao iniciar-se a peça, o público se defronta com a nutriz de M edéia, que recita seu prim eiro m onólogo: tom a então conhecim ento de que o casamento de Jasão com a princesa de C orinto já se realizara e de que a ama está terrivelm ente preocupada com a de­ solação que abate sua filha de leite, fazendo-a clamar pelos deuses, recusar alim entos e desfazer-se em lágrimas o tem po todo; a entrada de um pedagogo, personagem ausente em Sêneca, contribu i para o agravamento da situação, uma vez que ele traz a notícia do banim ento de Medéia e das crianças; o diálogo que se trava entre os dois serviçais é entrecortado pelos gemidos da m ulher repudiada, vindos do interior do palácio. E m Sêneca, o prólogo é muito curto, tendo apenas 55 versos, e consta de um único m onólogo, recitado p or Medéia. A o invés de encontrarmos uma mulher desesperada e chorosa com o a de Euripides, entram os em contato com uma Medéia cheia de ódio, enlouquecida e sequiosa de vingança, que invoca os deuses com ousadia e se dispõe à ação, prometendo um crime terrível que antecederá sua saída da cidade. C on fo rm e a opinião de André A rcellasch i, uma das funções desse prólogo é colocar Medéia num espaço que corresponde ao centro do universo. E desse centro que ela invoca as forças divinas: os deuses conjugais, Lucina - a protetora do leito nupcial - , as divindades que dom inam o m ar (Atena e N etuno), os deuses do céu (o Sol e a Lua, representada por Hécate) e dos infernos (Plutão e Prosérpina), o Caos, os manes ím pios e as Fúrias. E m 15 versos (1-15) Medéia esboça o

’ Cf. A. Arcellaschi, Op. cit., p. 361.

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desenho de um universo tal com o é compreendido pela física estóica, no centro do qual ela se insere com seu poder dom inador9. Após invocar os deuses e pedir-lhes a m orte de Creúsa e C reonte, e “um mal maior que a morte para Jasão”‘°, Medeia amaldiçoa o esposo infiel, dispõe-se a agir por conta própria, arrancando com as mãos o fogo do ceu , e m ata sua mente a procurar nas proprias vísceras o caminho da vingança, a recuperar o antigo vigor, a despojar-se de medos fe­ mininos e a vestir-se com a ferocidade do Cáucaso , a enfurecer-se to ­ talmente, enfim , para com eter os crimes inauditos que a esperam. Para H elen F yfe , o prólogo de Sêneca é construído para esboçar a m otivação psicológica das ações de Medeia ante o desm oronam ento da estrutura moral de seu mundo. A invocação às divindades apontaria para a finalidade da peça: a indagação sobre a existência de uma ordem moral, tal com o a que é representada pelos deuses. A ambigüidade das divindades que Medeia invoca revelaria uma perturbadora falta de ordem no mundo divino. Daí o fato de, após as invocações, ter ela preferido agir por conta própria, atribuindo-se poderes divinos, dada a sua origem, e rememorando os crimes passados que a levariam a novos crimes.

Mais adiante Medéia afirma que foi capaz de vencer as águas e o fogo (M erita contempsit m ea/qu i scelereflam m as uiderat uinci et mare? - “Desprezou meus méritos aquele que viu as chamas e o mar serem vencidos pelo crime?” - Sen. Med. 120-121) e que nela estão o mar, a terra, o ferro, o fogo, os deuses e os raios (... bic m are et terras uides/ ferrum que et ignes et deos etfulm in a - “vês aqui o mar e as terras, e o ferro, e o fogo, e os deuses, e os raios” - 166-167) ... m ihipeius aliud, quod precer sponso, malum (“... algum mal pior, que eu pediría para meu esposo” - 19).

Manibus excutiam fa c e s / caeloque lucem (“Com as mãos eu arrancarei o fogo e a luz do céu” - 27-28).

Per uiscera ipsa quaere supplicio uiam ,/si uiuis, anime, si quid antiqui tib i/ remanet uigoristpelle fem ineos m etus/et inhospitalem Caucasusm mente indue (“Pelas proprias vísceras procura o caminho para o suplício, se estas viva, ó m in h’ alma, se algo do antigo vigor subsiste em ti; expulsa o medo feminino e introduz no espírito o Cáucaso feroz” - 40-43). ^f* Fyfe, Helen, An analysis of Seneca’s Medea. In: Boyle, A. J . (edit.). Seneca tragicus. Ramus essays on Senecan dram a. Victoria (Australia), Aureal Publications, 1983. pp. 77-93.

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Para Florence D upont , o prólogo é um canto de dolor e um “anticanto” de hymen, apresentando uma “estrutura de inversão”: a lamentação inicial se opõe, term o a term o, ao alegre epitalâmio em homenagem a Creúsa que o coro vai cantar em sua entrada em cena. O prólogo mos­ tra a degradação progressiva de Medeia e sua transformação em criatura inquietante e temível. O espetáculo produz inicialmente piedade e depois terro r ante o nascim ento de um m onstro. A invocação às Fúrias (1325) demonstra a entrega ao furor. As tochas negras que tais divindades empunham e que substituem os fachos nupciais caracterizam a inversão. As palavras de Medeia a levam à ação e ela se transform a na operadora das antinúpcias, em prônuba e sacerdotisa simultaneamente, naquela que vai manipular as tochas do incêndio, proceder ao sacrifício cruento, conform e suas próprias palavras5 e com eter o nefas terrível, o crim e hediondo para o qual não há perdão. As aberturas das duas tragédias são, portanto, totalmente diferentes, sendo distintos os traços de personalidade das duas protagonistas. Enquanto a de Euripides chora, desamparada, a sua desgraça e almeja a m orte, bem com o a do esposo e filhos, a de Sêneca se deixa acometer pelo furor, autoconfiante e cônscia de seu poder. R eferindo-se à construção euripidiana, M aria H elena da R och a P ereira a considera co m o “um ser hum ano agitado p o r uma paixão indomável - tão hum ano, que o m otivo dos poderes mágicos é quase com pletam ente esquecido, e apenas aflora uma vez, nos venenos do peplos com que m ata a sua rival” *.

" Cf. Dupont, L e théâtre latin, pp. 77 ss.

H oc restat unum, pronubam thalamoferam /u t ipsa pinum postque sacrificas preces/caedam dicatis uictim as altaribus (“Resta ainda uma coisa: conduzir-me-ei com o uma prônuba junto ao tálamo para que, depois das tochas e das preces sacrificiais, eu própria imole as vítimas nos altares sagrados” - 37-39). Cf. Euripides. Medeia. Trad. pref. e notas de M. H. Rocha Pereira. Coimbra, Atlântida,

1968. p. 7.

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A M edeia de Sêneca, em contrapartida, é um a m u lher sobre­ humana, extrem am ente forte, que considera “excessivam ente leves” os crim es que com eteu na juventude'7 perto dos que será capaz de cometer na condição de mãe . A lém disso, é uma feiticeira consumada, que manipula os segredos da magia e deles se vale a seu bel-prazer. A caracterização de uma feiticeira (maga), com todos os seus atributos, parece apontar para uma intencionalidade especial. As palavras

magus e maga, em latim , vem, através do grego, do universo religioso dos persas, onde o mágos (iÜ ãíò) “é um sacerdote, um especialista da religião” . A história da língua mostra a evolução do significado da palavra iÜ ãíò que, com o passar do tempo, assume conotações especiais /

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e ate contraditórias uma vez que as atribuições dos magos vão das curas, obtidas por sacrifícios e encantamentos, aos malefícios de diversas especies, as bruxarias e feitiçarias, cada qual com seus ritos próprios, ritos esses que prescrevem o emprego de palavras especiais e a utilização de filtros e acenam, portanto, para conhecim entos de propriedades, ditas ‘magicas”, de plantas, animais, minerais e objetos2'.

... leuia m em oraui n im is:/h aec uirgofeci (“eu me lembrei de coisas muito suaves: essas eu realizei quando virgem” - 48-49). ... m aiora iam m e scelera postpartus decent (“agora me convêm crimes maiores, depois que dei a luz - 50). A autoconfiança de Medéia se revela mais adiante em outros passos da tragédia quando ela afirma que fara frente aos próprios deuses e abalará o universo, se isso for necessario (... inuadam d eo s/et cuncta quatiam - “irei até os deuses e abalarei todas as coisas - 424/425), e que sempre dominou sua própria sorte (Fortuna semper om nis infra m e stetit - “Minha Sorte sempre esteve abaixo de m im ” - 520). A palavra iÜ ãíò e atestada em grego desde a época clássica, talvez até mesmo anteriormente. Cf. Graf, F. La magie dans 1’antujuitégréco-romaine. Idèologie etpratique. Paris, Les Belles Lettres, 1994. pp. 31 ss. São as seguintes as principais conotações da palavra iÜ ãíò: m embro de uma so­ ciedade secreta, de origem persa, responsável por sacrifícios reais, ritos funerários, adivinhações e interpretação de sonhos; sacerdote devotado ao culto dos deuses; va­ gabundo da noite, como as bacantes e mênades; armador de intrigas, charlatão; sábio persa, detentor de uma ciência especial. ' Cf. Apul. Met. 30,13.

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E m R o m a , onde a palavra magus só aparece tard iam en te, em 22

m eados do século I a.C ., co m C ícero e C atu lo , não ten d o ainda, nessa época, todas as conotações que assum irá mais tarde, a magia e a feitiçaria eram conhecidas desde épocas im em oriais. A L ei das

D oze Tábuas previa punições para aqueles que por m eio de sortilégios ou m aldições prejudicassem alguém. Para a referên cia a essas fo r ­ mas de “feitiçaria” empregavam-se os verbos excantare e incantare bem com o os substantivos carm en , por vezes qualificado de m alum -

malum carmen - , cantio e ueneficium, palavra com a qual se designava genericam ente a feitiçaria, passando a significar, depois, por redução sem ântica, a preparação de venenos. Plínio, o V elho, no livro X X X da H istória Natural, faz uma breve história da magia, considerando-a com o uma combinação de medicina, religião e astrologia . Para o escritor, as artes mágicas são de origem oriental e assumem duas funções principais: a m edicina curativa e a adivinhação. Curiosam ente ele não se refere à outra magia, a chamada

magia negra, tão em voga em seu tempo, e denominada ueneficium em textos legais com o a L ei Cornelia, por exemplo. N a R o m a de Sêneca, que é tam bém a R o m a de A ugusto, de Cláu-dio e de N ero , o papel dos uenefici, hom ens e, principalm ente, mulheres, era sobejamente conhecido. Se Canidia e Acântis, feiticeiras mencionadas por H orácio e Propércio, podem ser consideradas talvez

Cic. Diu. 1 ,46 e Catul. 90. A pudF. Graf. Op, cit. p. 46 e273. ” Sêneca (Sen. QN. IV , 7, 2) e Plínio, o Velho (Plin. HN. X X V III, 17 ss.) fazem referências a essas punições e H orácio usa as palavras incantare e excantare para desig­ nar atos de proceder a encantamentos (Hor. Epo. 5, 45; Sat. I, 8. 49). São palavras cog­ natas de carm en e cantio, empregadas freqüentemente com o sentido de palavra encantatória, cuja ação pode ser maléfica ou benéfica (Cf. Cic. Rep. IV , 12; C at. Agr. 160). Para Plínio, a magia teria nascido da medicina, deturpando-a, e se teria desenvolvido graças ao poder da religião, sobretudo da religiosidade excessiva, e das crenças no po­ der dos astros. Cf. F. Graf, Op. cit., pp. 61 ss.

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com o criações ficcionais, Locusta, citada p or T ácito , parece ter sido, realm ente, uma envenenadora profissional que prestava “serviços” à casa dos im peradores . N ada mais com preensível, portan to , que o dram aturgo latino explore a configuração de uma ueneficus em sua M edeia. T od os os procedim entos utilizados pelos uenefici em suas práticas mágicas são explorados para a caracterização, ou talvez a “caricaturização” da fei­ ticeira: o aspecto exterior, as palavras endereçadas aos deuses infernais, as terríveis im precações, a m anipulação de venenos. É esse retrato, desenhado co m traços fortes e cores violentas que faz o contraste entre a M edeia de Euripides e a de Sêneca. As palavras e ações das duas figuras são completamente diferentes. N o primeiro episódio do texto de Euripides, por exemplo, Medeia se dirige às mulheres de C orin to , justificando sua atitude e chamando a atenção para a situação dos estrangeiros num a nova p átria e para a condição das mulheres, em geral, na sociedade. H á um to m político, p o rtan to , em sua fala, e um a postura fem inista. As duas espécies de marginalidade - a da m ulher e a do estrangeiro - são postas em des­ taque, na veem ência de suas palavras:

Mulheres coríntias, saí do palácio. Não me censureis: sei que muitos mortais são venerados em vida, uns longe das vistas, outros em público, e eles a plácido passo ganharam infâmia e ainda covardia, pois não há justiça em olhos mortais, que, antes de ver e de ter ciência clara,

Hor. Epo. 3 ,8 ; Prop. IV, 5,1-18; Tac./1«». XII, 66.

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odeiam coração humano, sem serem lesados. 26

O hóspede sempre deve aquiescer à cidade , não louvo o domiciliado intratável por ignorância áspero com os cidadãos. Este inesperado fato que se deu comigo destruiu-me a alma. Vou-me e da vida deixo ir a graça e quero morrer, amigas. Quem para mim era tudo, bem sabe ele, o meu marido, virou o mais vil dos homens. De todos os que têm vida e têm noção, nós, mulheres, somos o ser mais infeliz: primeiro é preciso, com excessivo dinheiro comprar marido e aceitá-lo como senhor seu, esse mal inda dói mais que o (outro) mal. Este é o máximo certame: aceitar o reles ou o útil, pois o divórcio não é bem visto para as mulheres, nem podem repudiar o marido. Ao chegar à sua nova morada e condições sem vir instruída de casa, deve adivinhar qual o melhor convívio com o seu consorte. Quando nos saímos bem destas fadigas, e o marido convive sob o jugo sem violência, a vida é invejável; se não, a morte é melhor. O homem, aborrecido com os de casa, vai fora e afasta o coração do tédio divertindo-se com amigo ou companheiro, mas nosso fado é fitar uma só alma.

* “Força é que o estrangeiro se adapte à nação”, na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.

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Dizem que vivemos sem perigo a vida doméstica, mas eles guerreiam com a lança; não compreendem que eu preferiria lutar com escudo três vezes a parir uma vez. Mas não a mesma razão vem a ti e a mim: tens esta cidade e o palácio paterno e o gozo de viver e o convívio dos teus, eu, porém, órfã sem cidade sou ultrajada pelo marido, conquistada em terra bárbara, sem mãe, nem irmão, nem congêneres para abrigar-me deste infortúnio” (Med. 213-258)"7. É um m onólogo m uito diferente do da M edéia senequiana, que abre o prim eiro episódio da tragédia latina, mostrando-se co m o uma m u lh er enfu recid a e desesperada p o r te r ouvid o os can to s do him eneu . E m seu fu ro r e desespero ela reitera a intenção de vingarse, m atando a jo vem noiva e seu pai e transform and o o palácio real num am ontoado de cinzas . A ama intervém , p rocura dissuadi-la de

Tradução de Jaa Torrano (Euripides. M edéia. Ed. bilíngüe. São Paulo, Hucitec, 1991). A lamentação desesperada de Medéia, ao ouvir o epitalâmio (Occidimus, aures pepulit hymenaeus meas - “M orro, o canto do himeneu chegou a meus ouvidos - Sen. Med. 116) e uma ressonância das palavras que uma das Medéias ovidianas dirige a Jasão (Vt subito nostras Hymen cantatus ad au res/ uenit... - “Subitamente o canto do himeneu chegou a meus ouvidos” - Ovid. H er. X II, 137-138). E m bora em Euripides haja referências ao fogo que devora a princesa de C orinto no m om ento em que ela passeia pela casa, ornam entada com os presentes de Medeia, fogo que destroi C reonte quando ele se precipita sobre a filha, tentando salva-la, não se m enciona o incendio do palácio real. Em Sêneca o incêndio não so do palacio, mas de toda C o rin to , é prom etido desde o in ício da peça. N o prologo Medeia invocara o Sol, seu ancestral, pedindo-lhe que confiasse a ela as rédeas do carro fulgurante puxado por cavalos flamejantes, a fim de que ela pudesse incendiar Corinto, com seus dois mares (32-36). N o primeiro episódio, após ter-se afirmado com o senhora das chamas e do m ar, M édeia prom ete transfo rm ar o palácio

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seus intentos crim inosos e discute com a filha de criação . A discussão se trava em esticom ítia, as frases se tornam cada vez m ais curtas, as falas ocupam inicialm ente um verso, depois um h em istíqu io e, finalm ente, m eio hem istíquio, reduzindo-se por vezes a uma palavra apenas3'. São falas que contêm não raro, num processo m u ito senequiano, as m áxim as filosóficas que Sêneca precon iza na epístola 108, dirigida a L u cilio 32. “A fortu na tem e os fortes e oprim e os fra­ co s”” , diz M edéia; “A coragem é louvável, se tiv er ocasião de manifestar-se”33, responde a ama; “N ão é possível, nunca, não haver

de Creonte numa fogueira enorme, de forma que a fumaça seja vista do cabo Maléia

(Alto cinere cumulabo d om u m /uidebit atrum uerticem flam m is agi/M alea longas nauibusflectens m oras - “Farei do palácio uma montanha de cinza densa; o cabo Maléia que impõe longas demoras aos navios verá o negro turbilhão ser lançado das chamas” - 147-149). O fogo volta a ser mencionado por Medéia no terceiro episódio quando, após a realização das práticas mágicas para a preparação dos venenos, ela se refere à semente de fogos que recebera de Prometeu, de Vulcano, de Faetonte, do corpo da Quimera, e que se escondiam nos adereços a serem oferecidos a Creúsa. E, ainda, no êxodo, quando o mensageiro, num brevíssimo relato, dá contas ao coro do que acabara de acontecer - a princesa e o rei haviam sido sido queimados (Nata atque genitor cinere perm ixto iacent - “A filha e o pai jazem misturados às cinzas” - 880) - , ele acrescenta mais um dado: o fogo devorara o palácio e ameaçava a cidade (Auidusper omnem regiae partemfu r it/ ut iussus ignis: iam domus tota occidit;/u rbi tim etu r- “O fogo voraz, como se atendesse a uma ordem, se alastra, impetuoso, por todo o palácio; o edifício desmorona, por inteiro; teme-se pela cidade” - 885-887). Arcellaschi (Op. cit., pp. 342 ss.), para quem a M edéia senequiana foi escrita em 64 d. C ., vê nessas freqüentes referências ao fogo alusões ao incêndio de Roma: Corinto seria uma imagem da Cidade Eterna. 30 Florence Dupont (Op. cit., pp. 86-88) analisa a discussão, por ela considerada como um duo, ou seja, um diálogo de que participam a personagem acometida pelo fu ro r e uma personagem geralmente subalterna que procura reconduzir o furiosus à razão. O duo corresponde ao embate de dois mundos. A personagem que se opõe ao furiosus tenta impor as regras da civilização, da vida em sociedade, daí a utilização de máximas filosóficas, mas não há comunicação possível. A situação permanece a mesma.. 31M oriere.//C upio.//P rofu ge.//P aenituitfugae (“Morrerás./ Eu o desejo./ Foge!/ Eu me arrependería por fugir” - 170); M ed ea...//F ia m .//M ater e s ./ / Cui sim uides (“Medéia!/ Eu voltarei a ser./ És mãe./ Vês para que sou” - 171). 33 Cf. A. Arcellaschi, Op. cit., pp. 107-108. 33 Fortunafortes metuit, ignauospremit (159). ” Tunc est probanda, si locum uirtus habet (160).

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ocasião para a coragem ” , retruca M edeia; “A falta de esperança nas coisas m ostra o cam inho aos aflitos”36, volta a responder a ama; “Q ue aquele que não tem nenhum a esperança não desespere de nada”37, diz M edeia. E é no m om ento em que ela afirm a, de form a irrefutável, “A F ortu na pode arrebatar m inhas riquezas, não m inha coragem ”3*, que C reo n te entra em cena e dialoga com ela. O s encontros das duas “M edéias” com C reo n te e, mais tarde, co m Ja são , tam bém são tratad os de fo rm a d istin ta pelos dois teatrólogos. N a tragédia euripidiana, ao dirigir-se a M edéia para notifica-la de que a expulsa de C orinto porque tem medo dos sortilégios de que ela é capaz, C reo n te ouve a autodefesa da m ulher, que é hum ilde ao falar com o rei, gemendo e suplicando e fazendo com que ele considere suas palavras “brandas” e meigas3’. A M edéia senequiana, contrariam ente, é insolente e irônica ao falar com o rei, altiva e orgulhosa , “feroz e am eaçadora”4', um “m on stro cruel e h o rren d o ” , conform e as palavras de C reo n te, um a m u lh er “maquinadora dos m aiores crim es”, que une a maldade fem inina capaz de tudo ousar a uma força de hom em . O diálogo, um verdadeiro

duelo, co n fo rm e a concepção de F lo ren ce D u p o n t’4, é ponteado de

Numnquampotest non esse uirtuti locus (161). Spes nulla rebus monstrat adflictis uiam (162). Qui nilpotest sperare, desperet nihil (163). Fortuna opes auferre, non animumpotest (176). ” ÉYãâéò Üêíõóáé iáêôÜ ê’... (Eur. Med. 316). Regium imperium p ati/aliqu an d o discat (“Que ela aprenda, por uma vez, a submeter-se à ordem do rei” - Sen. Med. 189-190). Fert gradum contrafe r o x / minaxque nostrospropius affatus petit (“Feroz, ela dirige seus pas­ sos para cá; ameaçadora, procura ouvir nossas palavras de perto” - 186-187). ... monstrumquesaeuumhorribile(X91).

Tu, tu, malorum machinatrixfacinorum /cuifem inae nequitia ad audenda om n ia/robur uirile est (“Tu, tu, maquinadora de crimes hediondos, que tens a perversidade de uma mu­ lher e a força de um homem para tudo ousar” - 266-268). Os duelos, para Florence Dupont (Op. cit., p. 72), são discussões das quais participam

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sarcasmos e de acusações, de parte a parte, mas, co m o na tragédia de Euripides, C reo n te concede o que Medeia quer: um dia de prazo - o tem po suficiente para a execução da vingança. Q uanto às atitudes das protagonistas em seus encontros com Jasão, há em ambas uma natural agressividade que se depreende das palavras que dizem. A Medeia euripidiana, entretanto, sabe refrear-se, modular o to m do que diz e despertar a piedade do ex-esposo; a de Seneca so se m odera ao descobrir o lado fraco de Jasão, a vulnerabilidade que ela p rocurará atingir: o am or pelos filhos. “É dessa m aneira que ele ama as crianças?”'5, pergunta ela de si para si, num aparte; “O tim o! E le foi apanhado. Seu ponto vulnerável se m ostrou às claras!” N a elaboração dos terceiros episódios de cada uma das tragédias, os dois dramaturgos se distanciam ainda mais. O encontro de Medéia com Egeu, presente na tragédia euripidiana, não ocorre no texto de Sêneca. N a tragédia latina, em contraposição, o terceiro episódio é m uito im portante para que se com plem ente a caracterização da personagem principal com o feiticeira, co m todos os seus atributos. Inicia-se com um longo m on ólogo (69 versos) da ama que descreve, apavorada, as atividades de M edéia enfurecida, a preparar os venenos, chamando por serpentes e répteis, misturando ervas e plantas e recitando fórmulas mágicas; segue-se um m onólogo de M edéia em que ela, co m o autêntica maga, invoca os deuses infernais, os prisioneiros do T ártaro e H écate, a deusa da magia. Descreve-se a si própria e relata o que já fez. O m onólogo é irregular quanto ao ritm o, revelando o tumulto que existe no espírito de Medéia. M isturam -se jâm bicos octonários, trim etros trocaicos e jâm bicos,

pessoas do mesmo nível, situadas em campos opostos. N os duelos a técnica da ora­ tória é geralmente explorada. --£ . j p . 3 ^

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