Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo Barroco e a sua origem na Itália [5 ed.]
 8527302152

Citation preview

Título do original alemão Renaissance wul Barmck - Eine Umersuclmng iiber Wesen und Emsrelumg des Barockstils

Copyright © 1968 by Schwabe & Co. Base!

Dados Internacionais de Cawlogação na Publicação (ClP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Wolftlin, Hcinrich, 1864-1945. Renascença e barroco: estudo ~obre a ess6ncia do estilo barroco e sua origem na Itáli a I Heinrich Wol fnin ; t tradução Mary Amazonas Leite de Barros c Antonio Steffen]. Sào Paulo: Perspectiva, 2005. - (Stylus; 7 I d irigida por J. Guinsburg) Títul.o original: Renaissance und Barock: eine untersuchung über Wesen und Entstehung des Barockstils in Italien. 2' rcimpr. da I. cd. de 1989. Bibliografia. ISBN 85-273-02 15-2 I. Arquitetura barroca - Itália 2. Arquitetura italiana 3. Arquitetura renascentista- Itá lia 4. Arte barroca 5. Arte renascentista 6. Wolfflin. I leinrich. 1864- I 945 - Crítica e interpretação I. Guinsburg, J.. li. Título. Ill. Série. 05-3780

CDD-709.032 Ltdiccs para catálogo sistemático: I. Arte barroca: História 709.032

s· cdi!ão -

1' reimpressão

Direitos reservados em lfngua portuguesa à EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 0140 1-000- São Paulo- SP- Brasil Telefax: ( 11) 3885-8388 www.cditorapcrspcctiva.com.br 2005

SUMÁRIO

WÕLFFLIN: ESTRUTURA E FORMA NA VISUALIDADE ARTÍSTICA , •.• •• • , , , 11 PREFÁCIO DA REEDIÇÃO • . . . • . . • . . . PREFÁCIO ... ... ... •... .. .... ... . . INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . 1. Importância do Estilo Barroco Italiano • • . 2. Importância do Estilo Barroco Romano . . 3. Localização no Tempo . . . . . • . • . . . . . . 4. Os Mestres • . . . . . • • • . . . . . . • • . • . . . 5. Interpretações Contemporâneas da Mudança de Estilo. A Denominação "Barroco" . 6. Atitude Face à Antiguidade. Consciência do Próprio Valor . . . . . • • . . . . • . • . . . . 7. Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Primeira Parte: A NATUREZA TRANSFORMAÇÃO ESTILÍSTICA

21 23 25 25

26 26 28 34 35 36

DA 37

1. O Estilo Pictórico . . . . . . . . . . . . . . . . .

39

1. Conceito do "Estilo Pictórico" em Geral 2. O Estilo Pictórico na Pintura . . . . . . . . . 3. a)Linhas e Massas (Luz e Sombra); Superfície e Espaço . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. b) O Estilo Livre . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. c) O Infinito e o Insondável . . . . . . . . . 6. A Opasição entre o Pictórico e a Cor . . . 7. O Estilo Pictórico nas Artes Plásticas . . . 8. Aplicação ao Estilo Barroco . . . . . . . . .

39 40

2. O Grande Estilo . . . . . . . . . . . . . . . . . .

47

I. Impressão Geral da Renascença e do Barroco . . . .......... . ....... . . . . . 2. O Grande Estilo. As Dimensões Aumentam até o Colossal ..... .. ... . .... . 3. Simplificação e Homogeneização da Composição . . .•.... . ........ . . . .

3. Os Efeitos de Massa ............. . . 1. O Aumento da Massa Acentuando o Peso até a Abolição da Forma ........... . 2. O Caráter da Massa: Macia, Saborosa. A Protuberância . . . .. . . ........ . . . 3. A Massa Não é Perfeitamente Formada nem Perfeitamente Dividida . . . . . . . . . a) Formas Ligadas à Massa e Pouco Diferenciadas: Pilares, PilastraS, Saliancias; a "Coluna Mural"; •.• b) Multiplicação dos Elementos . • . • • • • • • . • . . c) Multiplicação dos Motivos Iniciais e Finais . . . . . d) Descnbo das Molduras c dos Cantos •••••••.• e) O Todo não é um Organismo Estruturado. Massa Lisa, que Não se Desenvolve ••••.••••••..

4. Movimento

40 42 42 44 45 46

47

48 49 55

55 59

2. O Ímpeto para o Alto . . . . . . . . . . . . . . 3. O Ímpeto para o Alto como Motivo da Composição Vertical (a Calma Aumenta à Medida que se Sobe) . . . . . . . . . . . . . 4. O Movimento na Composição Horizontal 5. O Motivo da Tensão: Formas e Proporções Insatisfeitas . . . . . . . . . . . . . . . • . 6. O Motivo do Véu e da Infinidade . . . . . 7. O ilimitado: Composição dos Interiores por Meio de Efeitos de iluminação . . . . 8. Conclusão. O Sistema da Proporcionalidade na Renascença e no Barroco . . . . .

Segunda Parte: AS RAZÕES DA TRANSFORMA ÇÃO ESTILÍSTICA . . . . • . • . . I. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.

74

76 76 77 78 79 79

85

Teoria Mecânica e Teoria Psicológica . 87 Exame da Primeira . . . . . . . . . . . . . . . 88 Exame da Segunda . . . . . . . . • . . . . . . 89 O Ideal Corporal da Arte Barroca . . . . 93 Os Infcios em Michelangelo . . . . . . . . 94 Seu Estado Anúnico . . . . . . . . • . . . . . 95 A "Gravitas" da Pós-Renàscença . . . . 95 A Poesia . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . 98 O Indefinido Pictórico. O Sublime • . . . 99 A Renascença e a Antiguidade Opõemse ao Barroco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1O1

63 65 67

69 69 70

.....................

73

I. Relação entre Força e Massa . . . . . . . . .

73

Terceira Parte: TIPOS

A

EVOLUÇÃO

DOS

1. A Arquitetura Religiosa . . . .• . • . ....

103 105

I. Construção Central e Construção Longitudinal . . . . . . . . . . . • • • • . • . • . • . . . . 105

2. Organização da Fachada . . . . . . . . . . . . 108 3. Desenvolvimento Histórico da Construção das Fachadas • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 4. Organização do Espaço Interior . . . . . . . 120 a) b) c) d)

A Nave Longa com Capelas • Abóbada de Berço • . • • • • Tratamento Dado às Paredes Cópula e Efeito de Luz • • •

. • • •

• • • •

. • . •

• • . .

. • • •

. . . .

. . . .

. • . •

• • . •

. • • •

• • . •

. • • •

2. Os Palácios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. Generalidades. Contraste entre Fachada e Interior. O Palácio Particular e o Palácio Póblico . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Parede e Divisão. Relação entre Parede e Abertura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. A Composição Horizontal . . . . . . . . . . 4. A Composição Vertical . . . . . . . . . . • . 5. As Divisões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. As Janelas . . . . . . . . . . . • . • . . . . . . • 7. Os Portais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • 8. O Pátio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. • • •

121 123 125 127

131

9. As Escadas . . . • • . . . . . . . . • . • . . . . 147 10. Interiores . . . . . . • . • . • . • . . • . • . • . • 147

3. Villas e Jardins . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

151

Villa Urbana e Villa Campestre . . . . . . Arquitetura da Villa Urbana . . . . . . . . Arquitetura da Villa Campestre . . . . . . Acesso, Esplanada Anterior e dos Fundos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Composição do Jardim: o "Tectônico" e o "Atectônico" . . . . . . . . . . . . . . . • . O Grande Estilo. Separação do "Giardino Secreto" . . . . . . • . • . . . . . . . . . . . Tratamento das Árvores: Grupo, Aléia, Bosque . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . • • Tratamento da Água: Fonte, Cascata, Tanque (Lago) . . . . . . . . . . . . . • . • . • Jogos de Água e Brincadeiras . . . . . . . Concepção do Jardim em Geral. Seu Caráter Póblico . . . . . •. . . . . . . . . . . . . .

151 152 155

1. 2. 3. 4. 5.

131

6.

132 134 134 140 140 142 143

7. 8. 9. 10.

157 159 160 161 163 168 169

WÕLFFUN: ESTRUTURA E FORMA NA VISUAUDADE ARTisTICA

Regina Helena Dutra Rodrigues Ferreira da Süva

A tradução para o portugu8s e a edição no Brasil de Renascença e Barroco, um clltssico da historiografia artística, publicado pela primeira vez na Su(ça em 1888, e aqui s6 a partir de agora acessível a alunos e estudiosos, é um acontecimento da maior importância no nosso meio cultural, tão desvitalizado e esvaziado de ~tulos e autores significativos. Heinricb Wõlfflin nasceu em 1864, em Winterthur. Estudou na Basiléia e depois em Berlim e Munique; esteve im.tmeras vezes na Itália, recolhendo material para seus estudos sobre história e arte italianas. Foi professor nas universidades de Basiléia, Berlim e Munique. A vocação universitária e literária, fio condutor de sua longa e profícua vida, desde muito cedo já se esboçava: aos dezoito anos, quando ainda em estudante na

Basiléia, escreveu ao pai indicando o caminho que desejava seguir: dedicar-se à história da cultura. A visão de Wõlfflin da história da arte, que culminaria na obra da maturidade, Conceitos Fundamentais da História da Arte, formou-se nos anos de estudante, através do contato com o mestre Jacob Burckhardt, mais tarde com o teórico Fiedler e o escultor Hildebrandt, com Dilthey e seus cursos, e mesmo com o ambiente cultural de refinado bom gosto e erudição de sua própria casa. Mas a condição determinante na formação da estrutura do pensamento do historiador foi a tradição universitária alemã, responsável por seu preparo filosófico e clássico. Por cultura alemã não entendemos aqui apenas a presença de pensadores fundamentais corno Kant e Hegel, mas as correntes do século XIX que valorizam a erudição reconhecem a importância dos conoisseurs e experts e pressupõem a exigente coleta de dados para estudo e análise de fenômenos culturais. · Referimo-nos particularmente ao método filológico da história, que floresceu na Alemanha desse período, e que consiste na verificação de documentos em suas origens, posterior decomposição em mim.1cia dos detalhes, seleção e agrupamento de elementos, pesquisas de autenticidade etc. Foi esse método que permitiu que importantes fontes literárias viessem à tona, que documentos de arquivo fossem avaliados, e que medidas, datas e técnicas de obras fossem conferidas. Coube a historiadores desse penodo o comentário cntico e a publicação de documentos inéditos. O livro mais conhecido de Vasari, Vida dos mais Excelentes Arquitetos, Pintores e Escultores Italianos, inclusive de Cimabue, at~ Nosso Tempo, foi revisto e tornou-se 12

respeitável referência para o estudo da arte no renascimento italiano. Para o historiador da arte, os principais m1cleos de análise filológica foram as próprias obras de arte, estudadas segundo sua iconografia (conteúdo expressivo), técnica (no sentido tradicional: construtiva, escult6rica e pictórica) e estilo (convenção figurativa). Para Wõlfflin, a convivência com esses procedimentos trouxe o rigor e a disciptin·a, evidentes desde os seus primeiros escritos, sem, contudo, transformá-lo num limitado especialista. Tal enfoque metodológico lhe era familiar, não apenas pela experiência da vida universitária, mas porque seu próprio pai era um filólogo, professor de lfngua e cultura latinas, que havia fundado e dirigido o Thesaurus Linguae Ltuinae. De Dilthey, com quem havia feito cursos em Berlim, Wõlfflin extraiu a idéia da autonomia artística, baseado na independência da metodologia das ciências históricas com relação às ciências naturais. Em Conceitos Fundamentais da História da Arte está amadurecida a idéia de uma história da arte de evolução imanente, uma disciplina autônoma, com regras e quesitos que independem de determinações externas. Caberia lembrar aqui a importância das idéias de Comte, e como elas podem ter influenciado o historiador: a busca de regras estritas e de validez geral para a ciência pode ser transposta para o campo das artes, resultando na existência de leis que regem a evolução interna, inviolável dos processos artísticos. Entre outros, Burckhardt publicou, em 1855, O Cicerone, e em 1867, O Espfrito do Renascimento Italiano, onde evidenciou sua especialização no estudo da Antiguidade clássica e do Renascimento. A dedicação à análise da cultura re-

nascentista e a aparente dificuldade de compreender a sensibilidade barroca (intu(a o valor das composições de Rubens, mas não compreendia a dramaticidade de Tintoretto ou a grandiosidade de Bernini) abriram ao discípulo o caminho para um penodo ainda não explorado com a merecida atenção e justiça. Está claro que as viagens de Wõlfflin à Itália e Grécia são reveladoras do interesse que o mestre lhe despertara. Mas o tema fundamental de seu estudo será o penodo barroco, ainda que sempre adote a Renascença como ponto de partida. Em Burckhardt não encontramos uma unidade cntico-filosófica definida: sua obra oscila entre a narrativa e a cntica, entre interpretação via caminhos estil(sticos ou via personalidades artísticas. Em Wõlfflin a conquista da unidade se esclarece através de método e disciplina invejáveis. Opõe-se o autor a seu professor também na medida em que não pretende fazer a história da arte dependente da história da cultura, mas sim uma história das formas artísticas. Embora Burckhardt tivesse consciência da relatividade das ligações da história da cultura com a história da arte, seu livro sobre o Renascimento é, principalmente, a história dos costumes, tradições e cultura italianas, no qual a história da arte aparece mais como complemento e ilustração do penodo. O contato com Fiedler, Hildebrandt e Riegl trouxe para a teoria de Wõlfflin a influência da pura visualidade, a atenção concentrada nos símbolos visíveis. A linha, a cor, a estrutura de composição, os materiais empregados nas formas de expressão constituem, não apenas a essência concreta da obra de arte, mas podem ser entendidos como a essência mesma dos estilos artísticos, constituídos de grupos de obras de arte afins.

Fiedler afirmava que o campo da arte é o campo das percepções objetivas e que a arte podia se reduzir ao conhecimento da forma. Visão e representação, intuição e expressão estão identificadas na obra de arte. O artista exerce a função de conhecedor da realidade, através da visão, e a história da arte é a história desse conhecimento do real, captado pela atividade artística. Para Fiedler a arte plástica é a forma da pura visualidade, assim como a literatura é a arte do idioma. Em função do seu pensamento, foi considerado o fundador da ciência artística, diferente da estética da arte. O escultor Adolf von Hildebrandt publicou em 1893 O Problema da Forma na Arte Figurativa, e aplicou os princCpios teóricos de Fiedler à análise da escultura. Éffi seu trabalho distingue a visão à distância, que chama de sintética, e é própria do artista, da visão próxima, analítica. A visão do artista se dá em superfície, mas deve referir-se aos planos de profundidade, através de recursos de organização espacial e jogos de luzes e sombras, de tal maneira· que o plano possa representar simbolicamente a unidade espacial. O contato com as teorias de Fiedler e Hildebrandt acentuou em Wõlfflin a atenção sobre os elementos plásticos constitutivos das obras, e o princCpio de que, da mesma maneira que a obra de um artista pode ser entendida a partir de símbolos visíveis, pode-se ampliar esse procedimento para a avaliação de um penodo artístico. Alois Riegl possuía um vasto conhecimento da arte e valorizou as chamadas artes menores ou decorativas, assim como os períodos antes vistos como decadentes. Embora sem o mesmo rigor kantiano do pensamento de Fiedler, imaginou a história da arte como história universal. BaseouWÕLFFLIN: ESTRUTURA E FORMA...

13

se no princípio da atividade artística autônoma e de natureza espiritual, e acreditava na evolução dos caracteres essenciais da arte dentro de uma dinâmica própria. Acreditava que a arte, se destacada do seu processo espiritual criativo, tenderia a morrer. O conceito que sustenta essa dinâmica é o da "vontade artfstica", ou seja, a tendência ou impulso identificados num dado perCodo, responsável pelas transformações que sofre a expressão plástica. A obra de arte deixa de ser um produto mecânico, de exigências práticas, técnicas ou funcionais, para tomar-se o reflexo de algo transcendente, a Kunstwollen que se manifestará numa mesma época, de forma equivalente em todas as artes. Wõlfflin se aproxima de Riegl na medida em que substitui conceitos absolutos e abstratos da estética por categorias e "formas de ver" a arte mais concretas. Para ambos os historiadores os fenômenos históricos individuais já estão implfcitos e seriam predeterminados por forças superiores. Existe um espfrito universal transcendente responsável pelo rumo da evolução artística que independe da ação isolada de um indivfduo. Riegl e Wõlfflin retomam o pensamento de Hegel, que defendera um princfpio ideal e supra-individual, condutor da evolução das formas artísticas. Só que ambos estabelecem quase tipologias, ao criar uma história da arte que vai identificar e classificar caracterfsticas formais, de estilo universal, porém desvinculada da filosofia.

Em 1886 Wõlfflin defende em Munique a tese Pr6logo a uma Psicologia da Arquitetura, onde se encontra expressa a idéia de que as formas artísticas não são criadas independentemente, mas 14

surgem do sentimento popular, fazem parte de um princfpio único norteador em que indivíduos e formas têm um destino aparentemente previsível. Em 1888 publica o livro Renascença e Barroco, obra de juventude que prefaciamos. O estilo barroco, durante muito tempo, teve um destino ingrato. A origem do vocábulo "barroco" é incerta e esteve vinculada à idéia de decadência ou, no mínimo, de estranheza, distorção, exagero, conceitos quase sempre pejorativos. Se o Renascimento jamais havia sido questionado como um período de valores positivos seguros, o barroco sempre foi visto como o estilo responsável pela dissolução das formas conquistadas no período anterior. No Renascimento o artista voltara-se para a análise e interpretação da Natureza, para a valorização do Homem, seu corpo e sentidos. Mas a partir do momento em que. os homens da ciência, sobretudo Galileu, se propuseram a decodificar e compreender a linguagem da natureza, estava superada, para as linguagens artfsticas, a doutrina que dominara os séculos XV e XVI. Era natural que surgisse na arte uma nova forma de representação. Para Wõlfflin, contemporâneo do impressionismo, movimento que propunha uma maneira totalmente inovadora de ver o mundo, exigindo, inclusive, a destruição do antigo espaço plástico e uma radical mudança na concepção de cor e luz com relação às técnicas acadêmicas, era · natUral enxergar o barroco, não como um estilo decadente, mas como uma forma de representação nova e vital, que havia evolufdo a partir do Renascimento. É com entusiasmo e confiança que o autor vai identificar essa corrente estética como inevitável decorrência da anterior.

Na introdução de Renascimento e Barroco o historiador define uma metodologia rigorosa ao delimitar o campo e o momento a serem observados e avaliàdos. Se a Itália é o local onde o Renascimento se manteve mais preservado e puro, Roma é a cidade escolhida por ter sido ainda menos invadida por idéias de fora, e Bramante é referido como o melhor exemplo disso. No Norte da Europa a arte sempre sofrera uma tendência ao decorativismo e ao pitoresco, não tendo nunca passado pelo processo das formas puras e tectônicas do Renascimento. A observação do fenômeno em Roma é mais fácil porque também fica clara a passagem dos estilos, e porque foram os próprios mestres renascentistas que introduziram o barroco. Wõlfflin define três tipos de barroco, que situa entre Renascimento e o neoclassicismo: o primeiro, severo e maciço, o segundo, leve e cheio de alegria, e o terceiro, que dissolve as formas construtivas clássicas. O Período eleito é o primeiro, que vai de 1520, quando já não se identifica um dnico estilo puro, até .1630. Este foi o período objeto de análise do livro. Embora o autor escolha uma abordagem de investigação formal, distinguindo linhas de massas, repouso de movimento, simetrias de irregularidades, não há um completo abandono das determinações sócio-culturais. O ambiente, se não considerado como determinante, é um pano de fundo que aproxima manifestações artísticas de diferentes origens e características. A arquitetura, a pintura, a escultura e até a literatura são irmãs e manifestam um mesmo pensamento subjacente num período determinado. Da maior importância é o capítulo dedicado às transformações estilísticas. Após longa e minu·ciosa conceituação de "pitoresco", o autor dis-

o

.corre sobre as particularidades de cada um dos estilos estudados, através de paralelismos e confrontos dos detalhes formais, revelando-se grande conhecedor da arte. Wõlfflin faz um estudo exaustivo das formas arquitetônicas, civil e religiosa: palácios, vilas jardins, igrejas são dissecados em seus elementos .estruturais e decor~tivos, com o objetivo de apreender a evolução dos tipos durante os períodos .pesquisados. A análise é principalmente formal, não há uma preocupação com a iconografia, pois a própria linguagem arquitetônica .convida a esse enfoque. Neste trabalho de Wõlfflin já estão lançadas as sementes que florescerão em sua obra da maturidade: recolhimento cuidadoso do material de pesquisa, exame exaustivo das formas artísticas, organização dos dados e conceituação, todos procedimentos do historiador que tem uma postura científica com relação ao seu objeto de estudo. E ainda, embora a análise seja formal, não está aqui definida uma metodologia desvinculada do meio ambiente ou de um enfoque psicológico. Isto se esclarecerá mais tarde. Em 1899 Wõlfflin termina o livro A Arte Clássica e em 1905 faz um estudo sobre Albrecht Dürer. Com a publicação de Conceitos Fundamentais da História da Arte, em 1915, torna-se o mais interessante dos historiadores da visualidade. Nessa obra define seu método de conhecimento da história da arte. Propõe que as formas artísticas devem ser analisadas a partir de si mesmas e que elas garantem uma evolução que ocorrerá, mevitavelmente, obedecendo a uma lógica e coe~ncia mternas, mdependente de fatores ambientais, religiosos, culturais, políticos ou tecnológiWÕLFFLIN: ESTRUTURA E FORMA ...

15

cos. Estabelece dois p6los: o Renascimento ou 'Ciássico e o Barroco, que se sucedem sempre na mesma ordem, tendo a seqüência um caráter evolutivo. O Renascimento é identificado com lt o imitativo, com as formas construídas e fecha- ~ das, próprios dos países mediterrâneos; o barroco é decorativo, de formas livres, característicos dos países do Norte da Europa. Essas duas categorias não têm necessariamente uma referência temporal, reaparecem ciclicamente ao longo da história da arte. --sãõ" cinco os pares de conceitos fundamentais:

l

1. Enquanto o clássico é linear e plástico, o barroco é pictórico. A linha limita e isola os objetos da visão, por isso a leitura da obra clássica é nítida e distinta, cada elemento é concreto e "perfilado", como afinna Wõlfflin. No barroco houve uma evolução para linhas mais livres, luzes e sombras, que conferem movimento e até dissolvem a figura. 2. A arte clássica se revela na superfície, pois o plano é o elemento próprio da linha. No barroco a imagem se organiza através da superposição de planos e a visão se dá em profundidade. A desvalorização do contorno é responsável pelo desaparecimento da representação em superfície. 3. Do clássico,ao barroco a evolução se dá da forma fechada para a forma aberta. Embora toda a obra de arte se apresente como uma forma fechada é completa em si mesma, a comparação .~ntre as formas clássicas e barrocas revela o se• gundo muito mais solto e flexível, enquanto o clássico obedece às leis rfgidas de construção.

16

4. A multiplicidade caracteriza o clássico, e a unidade, o barroco. No primeiro caso há pluralidade de elementos que, autônomos, formam um conjunto. No barroco os elementos isolados perdem a expressividade, uma vez que é a visão única, globalizada, a primeira que se percebe. 5. A clareza absoluta no clássico evolui para a clareza relativa no barroco. A clareza está intimamente ligada à forma de representação. A linha e a composição em superfície favorecem a leitura da obra de arte, enquanto que a clareza fica prejudicada em estilos pictóricos construídos com diversos planos de profundidade, movimentados por contrastes de luz e sombra, característicos do barroco.

Segundo Wõlfflin, as linguagens plásticas de uma época adquirem um estilo comum: arquitetura, escultura e pintura têm o mesmo denominador óptico. O historiador não nega a existência de personalidades diferentes numa mesma época e refere-se aos "estilos individuais" compostos de massas, cores, linhas, sombra e luz peculiares a cada artista, mas acredita que, acima desse estilo individual, há um "estilo nacional" ou "regional", representando uma tendência dominante para a qual convergem essas personalidades distintas • . E mais uma vez, acima dos estilos nacionais identifica o estilo de uma época, de um momento histórico. Justamente por causa desse denominador é possível encontrar semelhanças entre artistas tão diferentes como Caravaggio, Rubens e Rembrandt. / Melhor definindo, o estilo é para Wõlfflin a expressão de uma época, de um sentimento na-

cional e de um temperamento pesso~. Em sua teoria, o papel do artista fica muito relativizado, pois ele já se depara com um repertório de imagens e de idéias e com uma maneira de organizá-las: possibilidades ópticas predeterminadas, às quais está necessàriamente vinculado. Da( o postulado de Wõlfflin de que nem tudo é possível em todas as épocas. Na verdade é esta idéia que dá origem à teoria da arte decorrente do desenvolvimento imanente das formas, onde a intenção artística e outras causas transcendentes têm muito pouca interferência no processo. Cabe a( ao historiador a tarefa de buscar as "formas de intuir" contidas nas representações artísticas, bem como decodificar a gramática e a sintaxe que as organizam. Wõlfflin propõe essa decodificação através dos cinco pares de conceitos que mostram a evolução do clássico para o barroco. Esses dois momentos da história passam a ser vistos como m1cleos básicos para a compreensão da arte, que se sucedem e depois recomeçam, embora as curvas de evolução não mantenham a mesma uniformidade sempre. Esse conceito de periodicidade implica a visão ntmica da história: interrupção e recomeço. O fenômeno é explicado pela necessidade de interferência do contrário, que age de maneira a reverter a situação anterior. Nesse ponto Wõlfflin admite a atuação de fatores externos, que provocarão um rompimento nas leis intemas da evolução das formas e darão início a um novo ciclo. Embora um retrocesso dentro do proCesso evolutivo, a cada reinício, as novas conquistas se somarão.

Essas influências se estendem para além do campo da estética e da arte: nas ciências humanas

foi grande a contribuição dos métodos de autoinvestigação em sociologia, antropologia, literatura, lingüística, semiologia. A vertente estruturalista espalhou-se por várias áreas da investigação e passou a ser melhor conhecida a partir de 1930. Lévi-Strauss na área da antropologia, Piaget na educação, Saussure na lingüística, além de Jakobson e mais recentemente Chomsky, são alguns dos intelectuais que optaram por essa linha de pesquisa. Segundo lévi-Strauss a estrutura tem o caráter de sistema e consiste de elementos combinados de tal forma, que qualquer modificação num deles implica a modificação de todos os elementos. Há uma lei interna reguladora de todas as partes dentro desse sistema, e cada uma delas se comporta em função do todo: transforma-se dentro da relação desse organismo total, ao mesmo tempo que é responsável pela preservação do mesmo. No estudo de diferentes disciplinas, a abordagem estruturalista entende que as peculiaridades dos componentes pode elucidar o comportamento de todo o sistema. Em Wõlfflin, a teoria da evolução autônoma e imanente das formas, assim como o exigente procedimento de classificação e análise dos penodos, já prenunciam o aparecimento de uma abordagem radical como o estruturalismo. Não podemos deixar de mencionar Croce, cujo pensamento muito influenciou as correntes formalistas, e que também havia sido importante para Wõlfflin. Sua visão da história da arte está resumida na proposta: "estudar a obra poética em si e por si, fora de qualquer consideração que não seja estética". Ao lado do estruturalismo, aparece, e até se confunde, a chamada estética formalista, oriunda das mesmas fontes. Neste caso a obra deve ser WÓLFFLIN: ESTRUTURA E FORMA •••

17

entendida e avaliada sob o domínio exclusivo da forma: significante e significado, signo e símbolo constituem um todo orgânico, que nada mais é do que a poética artística. A partir de 1917 surge o movimento formalista russo, criado por um grupo de intelectuais que fundam a Associação para o Estudo da Linguagem Poética. Ja)cobson, saído desse m1cleo, traz valiosas contribuições para a ciência da literatura e para a lingüística. Na área de estética e teoria da arte, cabe mencionar o trabalho do fértil pensador e crítico italiano Umberto Eco. Afasta-se este autor do rigor objetivo do estruturalismo ortodoxo, pois não pretende a formulação de modelos definitivos para a realização da pesquisa. Não se considera formalista ou estruturalista, mas um pensador que mantém afinidades com essa linha de pensamento. Define seu campo de investigação como o campo da poética ou das poéticas, entendidas, não como um sistema autoritário de regras, mas como um programa operacional a que o artista se propõe. (Aproxima-se, neste ponto, da teoria da Kunstwollen, de Riegl.) A obra, que será o ponto de partida, o objeto de estudo do historiador, apresenta como característica uma ambigüidade fundamental, que é a sua "abertura", qualidade constante em qualquer tempo e qualquer obra. Essa abertura refere-se ·ao sentido de interpretação que aparece sempre na relação entre a obra e o receptor. Daí, na visão de Eco, fica necessária a existência da dialética entre a forma art(stica e aquele que a recebe e com ela estabelece uma conversa. Ao mesmo tempo que a forma art(stica é a cristalização, o produto final de idéias, experiências, criatividade, ordenação de elementos plásticos, do artista, é também o ponto de partida para o fruidor, que, buscando a compreensão de 18

sua estrutura, a recria a cada vez. A própria idéia de um modelo dialético, forma e resposta a essa forma, afasta Eco das teorias dogmáticas formalistas, e o torna um pensador extremamente original. Ele mesmo, entretanto, ao construir uma metodologia em· Obra Aberta, reconhece o débito com as teorias afins que o antecedem. De forma menos evidente, encontramos correlações do pensamento wõlffliniano com teorias sociológicas como, por exemplo, a de Weber, ou com pensadores da cultura, como os da Escola de Frankfurt. Weber, . contemporâneo de Wõlfflin, dedicouse ao estudo da história e sociologia da cultura, num enfoque de objetivação dos processos culturais. Para ele esses processos foram entendidos como passíveis de análise científica, e para isso estabelece um método de investigação social que parte da premissa de que o investigador tem uma limitação inicial, e que uma vez consciente dessa limitação será capaz da objetividade exigida por métodos científicos. Weber forma uma teoria baseada em tipologias que ajudam a diagnosticar os caracteres particulares do momento a ser estudado. A racionalidade e o uso de princCpios definidos na identificação e interpretação dos fenômenos culturais aproximam-no de Wõlfflin. A Escola de Frankfurt reuniu o conjunto de pensamentos de intelectuais, entre os quais Benjamin, Horkheimer e Adorno. Em 1924 foi fundado o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, que mais tarde, por razões de perseguição política, deslocou-se para Genebra, Paris e New York, s6 sendo reestruturado em Frankfurt após 1950. Caracterizou-se desd~ cedo pela liberdade de pensamento, por trabalhos de análise crítica e literária e pelos protestos contra as injustiças só-

cio-políticas resultantes do momento de crise de consciência pelo qual passava a Alemanha. Embora a pluralidade de interesses dos pensadores de Frankfurt dificulte o entendimento do grupo enquanto uma unidade, justamente por sua abertura a todas as questões da cultura do século XX, havia uma abordagem política comum, uma irmandade na visão do mundo, e um método de pesquisa bem definido, herança de uma postura cientffica já esboçada na metodologia de Wõlfflin. Benjamin, como mais tarde veóamos em Eco, acreditava na multiplicidade de significados implícitos na obra de arte. É a atividade da leitura e da interpretação que possibilita o leque de aberturas e pluralidade de sentidos nessa dinâmica estabelecida entre obra e leitor. ~aber narrar, para Benjamin, não é estabelecer conclusões definitivas, mas abrir caminho para interpretações variadas. Não cabe, num simples prefácio a Wõlfflin, estendermo-nos pelo universo de relações teóricas que se lhe vinculam direta ou indiretamente. Podemos imaginar muitas formas de pensamento que, mesmo extremamente originais, foram tocadas pela teoria de Wõlfflin, mas esse é assunto para outro ensaio. Resta-nos, sim, buscar o conhecimento da história, das maneiras de sua realização nas for-

mas artísticas nas páginas de Renascença e Barroco, entusiasmarmo-nos com a vitalidade e a erudição do autor e deixarmo-nos levar pelo prazer de ser conduzidos pelos caminhos do "ver" a arte.

Bibliografia

BAYER, Raymond. História da Estlríca. Lisboa; Editorial Es· tampa, 1979. ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo, Editora Perspectiva, 1971. - - - -.• La definición dei ane. Barcelona, Ediciones Martfnez Roca, S.A., 1972. FOCILLON, Henri. Vida das Formas. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1983. HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo, Perspectiva, 1988. HAUSER, Arnold. Histeria Socia.l de la Literatura y el Arte. Madrid, Ediciones Guadarrama, 1969, vol. li. ----.Introducción a la Histeria del Ane. Madrid, Ediciones Guadarrama, 1973. LEVY, Hannah. "A Propósito de Três Teorias sobre o Barro· co". Revista do Patrimônio Histórico e Arrlstico Nacional, n~ 5, Rio deJaneiro,l941. TAPI~. Victor. Barroco e Classicismo. São Paulo, Martins Fontes, 1974. VENTURI, Lionello. Storia del/a Critica d'Ane. Turim, G. Einaudi, 1964. WELLEK, René. História da Crftica Moderna. São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 1972, vol. IV. BENJAMIN, HADERMAS, HORKHEIMER, ADORNO. Coleção "Os Pensadores". São Paulo, Editora Abril Cultural, 1983.

WOLFFLIN: ESTRUTURA E FORMA ...

19

PREFÁCIO DA REEDIÇÃO

A primeira edição desta obra, dos primórdios de Wõlfflin, apareceu em 1888. Hans Willig supervisionou, com revisão moderada, a segunda edição, de 1907, e a terceira, de 1908, enquanto a quarta, de 1926, sofreu uma revisão mais profunda por Hans Rose com um comentário dele. Como Wõlfflin mesmo nunca fez alterações nas reedições, nem controlou as revisões, resolvemos fazer esta reimpressão de acordo com a primeira edição de 1888, pois s6 ela traduz o pensamento e o estilo de Wõlfflin na sua pureza e sem altera-: ções. A reedição foi executada por processo fotomecânico, mas foram corrigidos erros tipográficos e incorreções evidentes da primeira edição. Naturalmente, não tocamos nas opiniões científicas de Wõlfflin. Nas ilustrações, damos novas reproduções dos monumentos principais de que trata

o texto, incluindo remissões correspondentes às reproduções e estampas.

A Editora

22

PREFÁCIO

"\

O processo da dissolução da Renascença é o tema deste estudo. Ele pretende ser uma contribuição para a bist6ria do estilo e não para a história dos artistas. Eca minha intenção observar os sintomas da deca.d~ocia, para descobrir, possivelmente, no ..desandamento e na arbitrariedade", a lei que tomasse poss(vel um olhar para a vida interior da arte. Confesso que vejo nisso a verdadeira finalidade da hist.6ria da arte. A transição da Renascença para o Barroco é um dos capítulos mais interessantes do desenvolvimento da arte em tempos menos remotos. E se aqui fiz a tentativa de compreender psicologica. mente essa transição, certamente não preciso justificar este empreendimento, mas sim pedir um julgamento compreensivo. Este trabalho é uma tentativa em todos os sentidos. Que os leitores o queiram considerar como tal.

Na liltima hora abandonei o plano de dar uma exposição paralela do Barroco antigo. Isso teria sobrecarregado o livro. Espero em breve poder realizar em outra obra essa interessante comparação. Dr. Heinrich Wõlfflin

24

INTRODUÇÃO

1. Costuma-se designar com o nome de barroco o esti~o no qual se dissolveu a Renascença ou - como se diz muitas vezes - o estilo que resultou da degeneração da Renascença. Na arte italiana essa transformação estilística tem uma significação essencialmente düerente daquela que tem no Norte. O interessante proces. ~ que se pode observar na Itália ·é a passagem de uma arte severa para uma arte ..livre e pinturesca", do formal para o informal. Os povos nórdi- . cos nao conheceram esse desenvolvimento. Ali, a arquitetura da Renascença não chegou nunca à forma rigorosamente pura e regida por nomla.s como no Sul, permanecendo sempre mais ou menos presa à arbitrariedade do pinturesco e até do decorativo. Por isso, no Norte não é possível falar de uma ..decomposição" do estilo rigoroso 1 •

A história da arte antiga, em contrapartida, oferece um fenômeno paralelo, uma vez que nela também começa a instalar-se aos poucos o nome de Barroco2 • A arte antiga "morre" apresentando sintomas semelhantes aos da Renascença. 2. Nossa tarefa é identificar tais sintomas. Antes de mais nada, ela exige que se faça uma delimitação precisa de nosso domínio de observação. Não existe um barroco italiano geral e homogêneo. Mas entre as transformações que sofre a Renascença e que diferem entre si conforme as regiões, só a que se processou em Roma pode reivindicar o valor da tipicidade, se me é lícita a expressão. E isso por três razões. Em primeiro lugar foi em Roma que se deu a decantação suprema da Renascença. Bramante alcançou af o seu estilo mais puro. A presença dos monumentos antigos contribuiu para apurar o sentimento arquitetônico a tal ponto que, em Roma, qualquer negligência quanto à fonna devia ser sentida de modo muito mais agudo do que em outra parte. O que afirmamos para a arte italiana em geral, em oposição àquela dos povos do Norte, ali vigora nos pormenores: a transformação do estilo para o Barroco deve ser estudada onde se sabia welhor o que é forma rigorosa, realizando-se a dissolução da forma do modo mais consciente. Mas em lugar nenhum o contraste é tão grande como em Roma.

l. Quanto àquilo que no Norte se chama de Barroco, cf. DOHME, Studien zur Architecturgeschichtc des 17. und 18Jahr· hunderts. In Lützow' s Zeitscluiftfür bildende Kunst, 1878. 2. O 61timo exemplo é L. v. SYBEL, Weltgesclúchte der Kunst, 1888, que dá a um capftulo o t!tulo de " Estilo barroco romano".

26

Em segundo lugar, em nenhuma parte o Barroco surge tão cedo como em Roma. Não se trata de um estilo de maus imitadores, que aparece quando falta o gênio; pelo contrário, devemos dizer: foram os grandes mestres da Renascença mesmos que introduziram o Barroco. Ele nasceu da perfeição suprema. Roma ficou na vanguarda do desenvolvimento da arte. Finalmente, o barroco romano é a transformação mais completa e radical da Renascença. Enquanto em outra parte o estilo antigo sempre transparece mais ou menos e o novo muitas vezes consiste apenas na expressão empolada daquilo que antes se teria dito de modo simples, aqui desapareceu qualquer vestígio do sentimento anterior. O que se chama barroco veneziano e que se opõe ao romano no fundo não oferece nada de novo. "Os pensamentos mais mesquinhos do iofcio da Renascença veneziana continuam a circular cmpetecados em trajes barrocos" 3 • Afinal, talvez não fosse injusto falar apenas de um barroco romano. 3. Depois dessa delimitação espacial, cabe uma determinação crolUJlógica mais exata. Quanto ao passado, o Barroco está limitado pela Renascença, quanto ao futuro, pelo Neoclassicismo, que começa a surgir depois de meados do século XVIII; ao todo o Barroco ocupa cerca de duzentos anos. Mas nesse perfodo o estilo se desenvolve de um modo que toma difícil apreendê-lo como único. O começo e o fim têm pouca semelhança. Só a custo se reconhecem as características permanentes. Já Burckhardt observa que a exposição histórica deveria começar de fato uma nova época com Bernini. Seria aproxi3. BURCKHARDT, Jakob. Cicerone. I! ed. 1855, p. 258.

1. FRANCESCO BORROMINI. Pi.aua Navonna. Igreja de S. Agne e detalhe da Fonte dos Rios de BERNINI.

2. BRAMANTE. San Pietro i.n Montori.o. Roma.

madamente pelo ano de 1630. Nos seus in(cios, o Barroco é pesado, maciço, contra(do, severo; a ;guir, escapa aos poucos ao peso, o esttlo se toma mais leve, mais alegre, chegando-se afinal à dissolução brincalhona de todas as formas tectônicas, a gue chamamos de Rococ6. Nossa intenção não é descrever todo esse desenvolvimento, mas compreender a sua origem: que foi feito da Renascença? Por isso s6 nos ocupamos com o primeiro período (até 1630). Delimitamos o in(cio desse período imediatamente depois da Alta Renascença. Para Roma não posso admitir uma pretensa "Renascença tardia", conheço apenas renascentistas retardatários, em atenção aos quais porém não se pode consagrar um capítulo especial. . A Alta Renascença não se transforma numa arte decadente, especificamente diversa, mas do ponto culminante o caminho conduz diretamente ~ Barroco. Toda inovação é um sintoma dÓ emergente estilo Barroco. Por ora não vou justificar essa afmnação: deixo para fazê-lo por ocasião da análise das formas. Esta deverá mostrar o conjunto de sintomas que constitui o Barroco; apenas depois se poderá decidir onde ele começa. Mas o _ponto de partida permanece imutavelmente aquele grupo de obras que a admiração dos p6steros designou, há muito, como as criações da idade de ouro. Esse estado de suprema perfeição é efêmero. Depois de 1520, não deve ter havido uma s6 obra absolutamente pura. Aqui e ali, já aparecem os prendncios do estilo novo; tomam-se mais numerosos, começam a predominar, apoderam-se de tudo: nasce o Barroco. Pode-se admitir que, em meados de 1580, o estilo alcançou plena maturidade. 28

4. Os mestres. A tarefa da história dos artistas é inv~ntariar toda a riqueza das forças criativas e seguir cada individualidade em particular; a história do estilo se ocupa somente com os grandes gênios, aqueles que criam realmente um estilo. Ela pode dis pensar tudo o que é pessoal, remetendo para a literatura especializada4. Nomes principais: Antonio da Sangallo, Michelangelo, Vignola, Giacomo della Porta, Madema e, abrindo caminho, Brarnante, Rafael e as últimas obras de Peruzzi. Bramante (falecido em 1514) trabalha em Roma desde fins de 1499, onde realiza importante evolução. É mérito de H. v. GeymüllerS ter determinado sua ultima maniera5 • Embora possamos ver com razão na Chancelaria, em San Pietro in Montorio e nas construções vaticanas a expressão perfeita da Renascença, isso não nos autoriza a determinar exclusivamente por essas obras o estilo românico de Brarnante. A sua maneira final é de uma grandeza pesada. Monumentos: a sua própria casa, hoje destru(da, mas conservada num desenho de Palladio e o Palazzo de San Biagio (apenas iniciado). No domínio da arquitetura religiosa, São Pedro é a grande tarefa na qual se empenharam os melhores artistas da época. Os projetos de Bra-

4, VASA RI, Vite etc,, 2! ed. 1568. Cito segundo a edição· Sansoni, Florença, 1878-85. BAGLIONI, Le Vire de' Pittori, Scultori, Architetri etc. Dal 1572 fino a1 1642, Nápoles, 1733. Crônica da época. MILIZIA, Memorie degli Architetri Anrichi e Moderni, Bassano, 1784. Além disso, sobre os estudos mais recentes do assunto, ver adiante. 5. H. v. GEYMÜLLER, Die Urspn'inglichen Entwürfe für S. Peter in Rom, Paris e Viena, 1875 ess.- Idem,Raffae/loSanzio studiato come architetto con faiuto di nuovi documenti, Milão, 1884, in.-fol. 6. Publicado por GEYMÜLLER, Raffaello, Fig. 70.

mante marcam cada qual uma etapa estilística. Sem escrupulos poderíamos limitar nossa história a esse linico monumento, pois cada fase do desenvolvimento do estilo no decurso de um século deixou ali vestígios: a começar com o primeiro projeto de Bramante até a construção da nave longa por Madema. Rafael (falecido em 1520). Geymüller deter- . mina sua importância arquitetônica pelas duas palavras: continuador do liltimo estilo de Bramante, mediador entre Bramante e Palladio. O Palazzo Vidoni-Caffarelli está intimamente ligado à casa de Bramante. O Palazzo dali' Aquila (destruído, mas representado em desenhos e gravurasF foi concebido dentro de um novo senti- . mento, tomando-se importante, na época seguinte, em virtude da divisão da fachada na construção dos palácios. Citemos também o projeto da nave longa para a Basílica de São Pedro. Peruzzi (falecido em 1537). Sua liltima maneira é representada pelo Palazzo Costa e o Palazzo Massimi alie Colonne, onde se anuncia o novo sentimento da forma. Antonio da Sangallo, o Jovem (falecido em 1546), um dos representantes principais do desenvolvimento do Barroco. Seu estilo é maciço e severo, " robusto e severo" (Ricci)8 • Foi discípulo de Rafael, mas desenvolveu os conhecimentos adquiridos, dando-lhes uma forma pessoal. Em muitos casos é ele o inventor dos novos tipos de formas. Sua obra principal: o Palazzo Famese9 • Sua própria casa, agora Palazzo Sac7. FERRERIO, Palarzi di Roma. Um desenho do Parmegianino foi publicado em GEYMÜLLER, RaffaeUo, Fig. 30. 8. RICCI, Storia de/! arclútettura in /ta/ia, Ill, 57. 9. Como é sabido, foi Micbelangelo quem terminou o ediffcio. Ele estragou totalmente a fachada. Por causa da sua cornija

chetti é o modelo da residência urbana aristocrática (Figs. 64, 14, 58). Michelangelo Buonarroti (falecido em 1564), conhecido como o "pai do Barroco". Deve ter sido significativo o fato de Michelangelo só ter se ocupado com a arquitetura em sua maturidade, quando já possuía fama, o que lhe garantia admiração e imitação de qualquer coisa que fizesse. Já de início, trata as formas com soberana desenvoltura. Não mais questiona seu sentido, mas coloca-as a serviço de uma composição que procura apenas contrastes plásticos significativos e grandes efeitos de luz e sombra. Para ele cada linha era importante. Edifícios florentinos: San Lorenzo, projeto de fachadas de 1516, 1517; tlimulo dos Medici, cujos trabalhos tiveram início em 1520; Biblioteca de San Lorenzo (Laurenziana), iniciada por volta de 1523; a escadaria foi construída mais tarde10 (Fig. 16). Edifícios romanos: reforma do Capitólio; o projeto dessa obra data dos primeiros anos de Paulo Ill. O ano de 1538 está atestado numa inscrição da estátua de Marco Aurélio. O pedestal oval talvez já leve em conta o projeto de uma praça oval. No palácio senatorial a dupla escadaria é, com certeza, pelo menos de época anterior a 1555 11 • O resto do edifício foi completado ape-_ muito saliente os muros foram levantados por mais de dois metros, destruindo com isso toda proporção. 10. Datas principais: 1558. Micbelangelo descreve a escadaria numa carta a Vasarí. Em 1559, manda uma maquete a Ammannati, 11. . No plano de Roma daquele ano já está indicada. Uma gravura mais ou menos contemporânea está reproduzida em LETAROUILLY, Édijices de Rome, texto p. 721. Vê-se isso melhorem Müntz, Antiquitbde Ro~, 1886,p.l51.- Deresto aformaatualnão corresponde h intenção de Micbelangelo. Os dois deuses inclinados do rio estão corretos; mas para o centro ele tinha planejado um niINTRODUÇÃO

29

3. MICHELANGELO. O Capitólio e Palácio dos Senadores. A escada. Roma.

nas por Giacomo della Porta e Rainaldi. No tempo em que Vasari redigiu a segunda edição de sua obra, o Palazzo dei Conservatori ainda não estava de todo terminado, mas certamente o estava quanto ao essencial. Seu homólogo, construído defronte, pelo contrário, é de data posterior. A "Cordonnata", a escadaria principal, de aclive suave, é mencionada por Vasari como não acabada12 (Fig. 15). O destino da Basílica de São Pedro foi posto nas mãos de Michelangelo no dia 12 de janeiro de 1547. Ele se manteve na direção das obras até a · sua morte. O novo plano por ele elaborado, a forma dada à arquitetura exterior nas partes dos fundos da catedral e finalmente a maquete da ct1pula (1558) constituem etapas da maior importância para a nova arte (Figs. 13, 30). Nos t11timos anos da sua vida, transformará a sala principal das termas de Diocleciano para ali construir a Igreja de Santa Maria degli Angeli e a Porta Pia (1561). Toda a evolução posterior depende de Michelangelo. Ninguém que se aproxime dele escapará ao seu fascínio: ninguém ousa imitá-lo diretamente. - Os líderes (até Bemini) são Vignola, Giacomo della Porta, Madema. Jacopo Barozzi da Vignola (1507-1573, oriundo da região de M6dena)~ Considera-se geralmente Vignola como o perfeito homem das regras, e por ter escrito o célebre Tratado da.s Cinco Ordens, vê-se nele antes de tudo o teórico, o representante

cbo com uma estátua colossal de Jt1piter de pé. Agom o nicho está reduzido de tal modo pela fonte, que apenas houve lugar pam uma Roma pequena e feia. A fonte aparece em reproduções anteriores ao ano de 1600. 12. Vll, 222: "Una salita qual sard piana" (Uma subida que serd suave).

da legalidade acadêmica. Mas sem razão. Basta · olhar a folha de rosto da sua rego/a, para convencer-se de que a arte de Vignola usou de grandes liberdades. No átrio do Palazzo di Firenze chega a rivalizar com Michelangelo no tratamento arbitrário da forma (motivos da Laurenziana). Sua importância data de sua segunda estada em Roma na época de Jdlio IIl (1550)1 3 • Tinha então quarenta e três anos. Sua primeira viagem durante a juventude havia lhe dado uma formação clássica; sofre então a influência de Michelangelo. O pequeno oratório de S. Andrea diante da Porta dei Popolo ainda é uma obra severa e toda contida; mas a Villa do Papa Jt11io Ill, que é uma construção tateante e insegura, não parece pertencer-lhe no essencial14; ela é antes uma obra de Ammannati, de Vasari e de Jt1lio Ill, que mandou construf.:la, e talvez de Michelangelo, que parece, aliás, ter dedicado grande apreço a Vignola. Emprega-o no Palazzo Farnese, onde executou a "galeria" e muitos pormenores: portas, lareiras e coisas semelhantes; no Capitólio, onde dirigiu os trabalhos, construindo com independência as galerias laterais ·no alto da escadaria voltada para Araceli e o Monte Caprino15. Depois da morte do mestre, assume a direção dos trabalhos da Basilica de São Pedro, executando nesta qualidade as ct1pulas secundárias, onde, de modo significativo, vai além do projeto de Michelangelo. Mas s ua glória principal é o Castelo de Caprarola, uma gigantesca construção pentagonal dos Famese, cujas formas são características de uma época de transição (data dos anos 50) e a Igreja do Gesu (iniciada em 13. VASARI, VII, 107. Estaéadata correta. 14. VASARI, VIl, 694. 15. Existem em reproduções, desde 1555. INTRODUÇÃO

31

1568), que se tomou o modelo para toda a arquitetura eclesiástica barroca16• A morte impediu que Vignola tenninasse sua obra. Mas o projeto da fachada está conservado em gravura17 (Figs. 70 e 71, 27). Seu sucessor nesta igreja e em toda a arquitetura romana foi Giacomo della Porta (falecido em 1603). Não é irmão do escultor Guiglielmo della Porta, como geralmente se admite, nem sequer u~ lombardo, mas -segundo a expressão de Baglioni1 8 - "di patria e di virtil Romàoo" 19 • O ano tradicional do seu nascimento, 1541, parece pouco provável em face do fato de, já em 1564, ter terminado a fachada de Santa Catarina de' Funari (segundo inscrição). A força da personalidade de Giacomo expressou-se em todos os campos e atraiu o favor de todos os que se dedicavam às construções. Foi ele o primeiro a dar um cunho decididamente barroco às fachadas das igrejas (Gesu, Santa Maria ai Monti), às fachadas dos p;uácios e às vil/as. Sua melhor realização seria a grande c\ipula de São Pedro, se, realmente, não só a execução mas também o projeto pudessem ser atribuídos a ele (ver a seção correspondente na Terceira Parte) (Figs. 72, 19, 20, 21).

16. O princípio de Santa Maria degli Angeli, ~rto de Ass~ , do ano de 1569 é tão diferente do Gesü, que a tradição que consi-

dera VigJ~ola co~ o seu arquiteto é, provavelmente, incorreta. 17. FRANCESCO VILLAMENA,. Alcune Opere tf Architettura di Vig110/a, Roma, 1617. 18. BAGLIONI, Vite, etc., p. 76. 19. KINKEL em Mosaik zur Kunstgeschichte, .P· 46, dá a árvore genealó_gica dos della Porta de Milão (de Guilelmo etc.). O nosso Giacomo não aparece ar.- Se depois (d~sde Milizia) fazem dele um milanê_s, isso se deve ao fato de ter bavtdo também um arquiteto milanês, Giovan Jacomo de! la Porta. (V .A:SARI, VI~, 544). Já vasarl parece não ter conhecido bem a hístó?a da f~a della Porta: toma-o como tio em vez de pai de Gutlelmo. MaiS tarde tornaremos a encontrá-lo.

32

O que della Porta começou, Carlo Maderna ( 1556-1629), que nasceu às margens do lago Como, e, ainda criança, foi para Roma, tenninou, exagerou e- por assim dizer- destruiu. As \iltimas obras de Maderna já caracterizam a dissolução do estilo severo que até então era própria do barroco. A seriedade com que se procurava exprimir uma grande idéia desapareceu. Uma insipidez generalizada busca satisfação suprema no exagero da riqueza decorativa. Maderna mostrou todo o seu talento na notável fachada de Santa Susanna (tenninada em 1603). Sua primeira grande obra é também a melhor, enquanto a fachada de São Pedro, obra de maior dimertsão, tenninada em 1612, não satisfaz nossa expectativa; mas não se deve, contudo, esquecer quão imensa era a tarefa de dividir essa superfície; por outro lado, o artista não era livre, mas permanecia prisioneiro dos motivos já fixados por Michelangelo. O pórtico, em contrapartida, merece toda a nossa admiração (Figs. 25,11). Em volta desses três grandes mestres encontrase um grupo numeroso de artistas menores. Em primeiro lugar o consciencioso Bartolomeo Arnmannati, contemporâneo de Vignola, um florentino que já homem maduro se tornou arquiteto em Roma e que absorveu com muita pureza o modo de sentir romano (Palazzo Gaetani). Dentre suas construções florentinas a maravilhosa ponte da Trinità não é concebível sem a escola romana, ao passo que nos palácios por ele edificados retoma rapidamente a suas batidas trilhas florentinas. O Collegio Romano, uma obra de efeito muito duvidoso, construído durante uma segunda estada em Roma, mostra (principalmente na fachada) até que ponto ele perdeu o senso da grandiosidade.

4-5. CARLO MADERNA. Basilica de São Pedro. Cidade do Va· ticano.

Além de Ammannati surgem também Martino Lunghi e seu filho Onorio (falecido em 1619), Domenico Fontana, o tio de Madema (falecido em 1607) e seu irmão Giovanni (falecido em 1614), Flaminio Ponzio, Ottaviano Mascherino, Francesco da Volterra, Giovanni Fiamingo, cognominado Vasa112io, etc., nenhum dos quais romano. A maioria vem da Lombardia (principalmente da região do lago de Como). Mascherino é de Bolonha, Francesco da Volterra indica a sua procedência no nome; Vasanzio é holandês (Hans von Xanten). - Uma pequena minoria desses artistas se integrou devidamente ao novo movimento; na maioria nota-se o embaraço com que acolheu as novas fonnas, e a que ponto são incapazes de alcançar uma criação de conjunto, com um espírito novo. Em todo o caso, por sua origem mesma, os romanos mostravam mais disposição para aquela grandiosidade e imponência pesada que é própria do Barroco. Sobre estes elementos baseia-se o efeito que exerce um Giovanni Battista Soria (falecido em 1651), um artista med(ocre, mas que na qualidade de romano ainda foi capaz, embora tardiamente, de apresentar em suas construções toda a gravitas do estilo anterior. 5. Ao contrário da Renascença, o Barroco não foi;.companhado de teoria. O estilo se desenvoí:' Vé sem mõdélbs. Ao gue parece , em princ(pio, não havia um desejo de seguir novos caminhos. Por isso também não surgiu um nom.e preciso para este estilo: stilo moderno engloba, ao mesmo tempo, tudo o que não seja antigo ou pertença ao stilo tedesco (gótico). Em compensação, alguns conceitos antes desconhecidos surgem agora, nos autores que escreveram sobre arte, como critérios da beleza: capriccioso, bizarro, stravagante e 34

outros 20 • Sente-se um certo prazer pelo raro e que estivesse além das regras. O fascfuio pelo informal começa a operar. ..A expressão "barroco", como se usa hoje, e que os italianos igualmente adotarama1 , é de orifiãncesa. A etimologia é incerta. Alguns sugerem a figura lógica baroco, que resulta em algo absurdo; outros sugerem um tipo de pérola "não totalmente redonda", que é desi&.,nada com esse nome. A Grande Encyclopédie já conhece a_ palavra com sentido semelhante ao que lhe atribuímos:

gem

Baroque, adjectif en architectu.re, est une nuance du bizarre? 11 en est, si on veut, le raffinement, ou s'il était possible de Je dire, l'abus ... il en est le superlatif. L'idée du baroque entraine avec soi celle du ridicule poussé à l'exc~. Borromini a donné Jes plus grands mod~les de bizarrerie et Guarini peut passer pour Je maltre du baroque*.

A distinção entre barroco e bizalTo não nos é

familiar; talvez sintamos antes " segunda exprçssíio como a mais fone. Entretanto, em tennos de 20. Capriccioso, caprichoso, voluntarioso (de capro, o bode). Termo freqüente em Vasari, e que é expressão do mais alto louvor pela arte de Michelangelo: lntroduzione 1, 136 ("ricoprendo con vaghi e capricciosi omamenti" [ornamenti não s6 significa decoração] "i difetti della natura"),/bid. VI. 299 (v. Mosca: "non ~ possibile veder piu belli e capricciosi altari", etc.)./bid. VII. 105 (v. Vignola: "belle e capricciose fantasie", etc.). Um exemplo posterior: a coletânea dos "omamenti capricciosi" de Montani e Soria. Roma 1625. -No mesmo sentido: bizarro (Vasari, I. 136 e em outros lugares) e srravagante (Vasari, VII. 260, v. Michelangelo: "stravagante e bellisimo", a respeito da Porta Pia). - LOMAZZO, TraJtato dell Ane (Milão, 1585), usa exatamente as mesmas expressões. 21. Não estou em condições de indiCar desde quando Milizia (1784) ainda não a conhece. • Em francês no original: "Barroco, adjetivo em arquitetura, é uma nuance do extravagante. É, se quisermos, o refinamento ou, se assim se pode dizer, o abuso dele ... o superlativo. A idéia do barroco acarreta a do ridfculo levado ao excesso. Borromini forneceu os mais importantes modelos de extravagância e Guarini pode ser considerado o mestre do barroco''. (N. do E.)

história da arte, a palavra perdeu seu matiz de ridículo; em compensação, a linguagem comum ainda se serve dela para designar algo absurdo e monstruoso. 6. Já desde a morte de Rafael, o entusiasmo pela Antiguidade começa a diminuir. Não que tivesse havido menos interesse pelos resquícios do passado. Pelo contrário. Porém, não é mais uma admiração infantil que une a veneração a um temor quase sagrado22 , sem que se possa falar propriamente de imitação, mas· uma atitude fria que procura tirar ensinam.ento de toda contemplação. Em Roma nasceu uma academia vitruviana que organizou um rigoroso levantamento das ruínas23. Vignola está a seu serviço; como resultado de seus estudos, edita um manual das cinco ordens antigas 24 que permaneceu por dois séculos como o modelo clássico; mas os termos do prefácio são significativos do espírito com o qual foi escrito. Seu propósito é comparar as coisas que satisfazem e extrair dessa comparação uma regra que proporcione a cada um a tranqüilidade25. Mas fora das cinco ordens ele se considera completamente livre. Para ele pouco importa o espírito da Antiguidade.

22. Vasari: "Quelle reli'l.uie di ediflZj, che noi come co~a santa onoriamo e come sole bellisime c'ingegniamo d'imitare" (V. 448). De resto, encontram-se em Vasari opiniões que diferem desta. 23. BURCKHARDT, Renai.ssance in ltalien, p. 39, onde se encontra uma bibliografia sobre o assunto. 24. Rego/a de/li cinque ordini d' archilettura, in.-fol., Roma (1563). 25. "Mi ~ piaciuto di continuo intomo questa prattica degli ornamenti vedeme ll parere di quanti scrittori ho possuto, e quelli comparandoli fra lo r stessi e con I' opre antiche, vedere di trame unaregola."

Scàm0zzi26 queixa-se abertamente do poucocaso que se faz da Antiguidade. "Le cose fatte dagli antichi vengono sprezzate e quasi derise." "Sono molti, che non l'istimano molto"27. No conjunto, a Antiguidade começa a ser sentida como uma "regra". Alguns a transgridem intencionalmente, espíritos mais túnidos procuram mediar e desculpar o que de qualquer modo pode ser desculpado. Assim Lomazzo no Trattato dell' Arte faz um repertório de casos em que os antigos também se permitiram algumas liberdades, a fim de, com isso, justificar os modernos28. Lomazzo é milanês; no cfrculo de Michelangelo fala-se uma outra linguagem. Vasari saúd.. como uma libertação a extraordinária audácia de Michelangel~ mostrada na tumba dos Medici. G~ arti~ci gli hanno infinito e perpetuo obbligo, a vendo egli rotto 1 lacc1 e le catene dellc cose, che per via d'una strada commune eglino di continuo operavano29.

26: ldea dell Archfterrura Universale, infol., Veneza, 1615. 27. 1. üvro I, Cap. 22, p. 64. 28, Ele cita como exemplo uma poi1a da região de Foligno, onde o arco da abertura da poi1a penetra no túnpano. O frontão é ~rto para baixo. Apenas as meias-colunas de sustentação são encunadas por um entablamento. Cf. as janelas planejadas original· mente por Sangallo para o segundoliso do Palazzo Farnese (em Letarouilly, op. cit., texto p. 289). sígnificativo o que SerlúJ , que ~bém conhece o pequeno monumento e o reproduz, diz a respe1to: "E ancora que paja cosa ücentiosa, perch~ !'arco rompe il ~orso ~ell'architrave e dei fregio, nondimeno non mi dispiacque la mvenllone. La cosa ~ molto grata alia vista" (Arclúterrura, livro Ill, p. 74. Cito segundo a edição in-quarto. Veneza, 1566). 29. Vita di Michelangelo, VII, 193. Cf. CONDIVI, Vita di B_uonarroti, c. 52 (cf. C. FREY, Vire di M. B., p. 192): "Cosa inuSltata e nuova, non ubbligata a manient o lcgge alcuna antica over mo.derna" (falando de um projeto para a fachada de um palácio de Jl1l!o 111); "mostrando l'architettura non esser stata cosi dalli passau assolutamente trattata, che non sia luogo a nuova inventione non men vaga e men beUa". INTRODUÇÃO

35

Chega-se por fim a admirar na Antiguidade apenas o grandioso, o aspecto colossal de seus empreendimentos, e não mais a beleza da forma em si mesma30 • O estado de espírito que diviniza o menor traço do· gênio antigo desapareceu, Õ que se explica, talvez, por um aprofundamento da consciência de seu próprio valor, o que não se pode perdoar àquela geração. Aumenta cada vez mais a convicção de que era poss(vel competir com os antigos. Mesmo Michelangelo, cuja modéstia é louvada, opinou sobre um de seus projetos para San Giovanni de' Fiorentini que nem os romanos nem os gregos tinham alcançado algo semelhante nos seus templos 31 • Vasari freqüentemente exprime esta mesma idéia32• Esta convicção explica igualmente a indiferença que cercou a ordem dada por Sixto V de demolir o Septizonium Severi para retirar-lhe as pedras33 • Talvez como nenhum outro estilo, o Barroco possu(a o sentimento de ser o 11nico estilo legftimo e infal(vel, e é muito interessante contemplar mais de perto a natureza dessa sensibilidade art(stica.

-

7. Bibliografia JACOB B URCKHARDT, Cicerone. A primeira definição do estilo, fundamental para todas as tentativas posteriores. - - - -.• Architectur d;r Renaíssance initalien. 2! ed., 187Ít

30. "Con tanta magnificenw, che pareggia le cose antiche", diz Vasari da Porta do S. Spirito já muito barroca (Vila di A. Sangallo, V.465). 31. Vasari, VII. 263. 32. A propósito da cornija do Palaz.zo Farnese (V II. 223); do nhnulo dos Medici (VII. 193), etc. 33. Algumas pessoas da nobreza opuseram-se inutilmente a isso.

36

A. v. ZAHN, Barock, Rococo und Zopf. (Lürww's Zeilschriftfür bildende. Kunst. 1873.) Quanto ao Barroco, não con~m nada senão uma referencia a Burckhardt R. DOHME, Studkn zur Architecturgeschichte des 18Jahrhunderts (Lützow's Zeilschriftfür biJdende Kunst. 1878). A separação inicial do estilo romano e do veneziano é muito importante. G. EBE, Spatrenaíssance. Berlim, 1886. 2 v. Sem valor próprio. C. GURLliT, Geschichte des Barockstils, des Rococo und des · Cla.ssicimws. Vol. 1. Geschichte des Barockstils in /talien. Stuttgan, 1887. A reserva que, na minha opinião, deveria ser feita em primeiro lugar ao tíltimo livro é que ele não permite ao leitor ter uma idéia ex.ata do que é realmente o Barroco. A deflllÍção (p. 7) de que Barroco é o estil!' que, "panindo de uma base voltada para a Antiguidade, passou por um tratamento da idéia arquitetônica que unia uma liberdade conscientemente procurada e uma variedade formal moderna, para chegar a uma forma de expressão sobrelevada e finalmente exagerada até a loucura", E demasiadamente vaga. Daf resulta um andamento vacilante, que perpassa todo o livro . Por exemplo,- para Gurlitt, Maderna também é barroco e Santa Susanna·o modelo desse estilo, mas Giacomo della Porta, que p repara o terreno para Maderna e que é seu precursor imediato, pertenceria a uma esco la totalmente diferente, a assim chamada Renascença decadente, "escola, por um lado, dessa Contra-Reforma baseada no saneamento a partir do interior, e por outro, das regras que predominam absolutamente e que só involuntariamente são tranSgredidas. Por outro lado, os palácios venezianos de um Scamoui e Longhena, que não ofereciam, no essencial, absolutamente nada de novo e que, a~ então, passavam como palácios renascentistas, são atribufdos ao estilo barroco. O autor procura os inícios do novo estilo em Florença, não mostra com clareza a importância da evoluçãO românica, pela simples razão que s6 começa seu estudo depois de Michelangelo. O material de tal questão é tão extenso e ainda pouco estudado que todos os erros de pormenores que possa conter a obra me parecem não ser importantes, ao lado desses erros de princfpio. RICCI, Storia dell architettura in /ta/ia, III. Roma, 1864. - Freqüentemente fantasista; o autor deriva o Barroco do Oriente, de onde teria vindo para Roma, através da Sic!lia e de Nápoles.

Primeira Parte: A NATUREZA DA TRANSFORMAÇÃO ESTILÍSTICA

1. O ESTILO PICTÓRICO

1. Os historiadores da arte concordam em designar como marca essencial da arquitetura barroca seu caráter pict6rico. A arte da construção deixa de lado sua natureza particular para procurar efeitos emprestados a uma outra arte, tomando-se pictórica. Este conceito de "pictórico" é um dos conceitos mais importantes para a história da arte, mas, ao mesmo tempo, um dos mais ricos e menos claros. Assim como existe uma arquitetura pictórica, existe ·uma escultura· pictórica; a própria pintura apresenta em sua história um período "pictórico"; fala-se de efeitos de luz pictóricos, desordem e riqueza pictóricas etc. Quem quiser . expressar qualquer coisa precisa, utilizando esse conceito, deverá primeiro definir-lhe o conteódo. Que significa "pictórico"? Basta, primeira-

mente, dizer: "pictórico" é aquilo que faz um quadro, o que, sem que seja preciso acrescentar coisa alguma, oferece um modelo ao pintor. Um templo antigo, de linhas severas, que não esteja em ruínas, não é um objeto "pictórico". De fato, por maior que seja na realidade a impressão arquitetônica, no quadro o edifício parece plano; o artista moderno deveria empregar os maiores esforços para, com auxnio da iluminação, da atmosfera, do enquadramento, tornar interessante o objeto como pintura, desaparecendo com isso o caráter puramente arquitetônico quase completamente. Em contrapartida, de uma arquitetura barroca é mais fácil obter um efeito pictórico: ela tem mais movimento; as linhas mais livres e o jogo de luz e sombra que a anima satisfazem tanto mais o gosto no campo da pintura quanto mais se chocam com as leis mais altas da arquitetura. O sentimento arquitetônico é ofendido, sempre que a beleza não se encontra mais na forma bem delineada, no ordenamento sereno do corpo arquitetônico; o prazer deve ser buscado no movimento das massas, onde as formas parecem mudar a cada momento pelo saltitar inquietante e seu fluxo e refluxo apaixonado. Em resumo, a arquitetura rigorosa produz o seu efeito pelo que ela é, por sua realidade material; a arquitetura "pictórica" pelo contrário por aquilo que parece ser, pela impressão de movimento. Mas observemos, desde já, que não se pode falar de uma oposição exclusiva desses termos. 2. O pictórico funda-se na impressão do movimento. -Pode-se perguntar, por que aquilo que está em movimento é precisamente pictórico, por que · precisamente só a pintura estaria destinada à expressão do que está em movimento? Obvia40

mente a resposta deve ser obtida a partir da essência artística que caracteriza a pintura. Em primeiro lugar ela, por sua natureza, está destinada a impressionar pela aparência; ela não possui qualquer verdade material. Mas, em segundo lugar, dispõe de meios para reproduzir a impressão de movimento como nenhuma outra arte. Nem sempre, aliás, possuiu esses meios. Já observei que a própria pintura distinguia em sua história um período pictórico; só aos poucos desenvolveu-se o estilo pictórico, devendo a pintura desvencilhar-se primeiro da predominância do desenho. A transição realiza-se na arte italiana no apogeu da Renascença. Em diversos lugares. O exemplo mais célebre é o da transição em Rafael: numa obra monumental, as Stanze Vaticane, ele realizou, por assim dizer diante dos olhos do mundo, o desenvolvimento do antigo para o estilo novo. A Stanza d'Eliodoro é considerada como o ponto da ruptura deliberada (1512- 14) 1 • Quais são então e~ses novos meios de expressão que se tornariam decisivos para a arquitetura? Vou tentar expor a seguir as caracter(sticas principais do estilo pictórico. 3. A expressão mais imediata da intenção artística se encontra nos esboços. Eles nos revelam aquilo a que o artista dá importância essencial: vê-se como ele pensa. Outrossim, a comparação de dois esboços vai nos servir como ponto de partida. Por meio dela a relação entre as duas maneiras se esclarecerá melhor.

1. C. F. VON RUMO HR, /taüen.i.sche Forsclumgen, 1831, vol." III, pp. 85 e ss. A. SPRINGER, Raffael und Michelangelo, voi. 12 , pp. 279 c ss.

-

Já o material é diferente segundo o estilo. O estilo em que domina o desenho serve-se da pen~ àu do grafite duro, o pictórico usa o carvão, a sangwna macia ou até o pincel largo de aquarela. No primeiro, tudo é linha, tudo é delimitado e de contornos nítidos, sendo o contorno o elemento principal de expressão; no segundo, temos volu-;_ mes, tudo é grande, vaporoso, os contornos são iíldicados vagamente, em traços incertos e repetidos, ou até faltam completamente2 • - Não só o detalhe, mas toda a composição se estrutura segundo massas em claro e escuro, grupos inteiros são unificados e opostos uns aos outros por um matiz de luz. O estilo antigo pensava de modo linear, sendo a sua aspiração o belo movimento e a harmonia de linhas. O estilo pictórico só pensa em massas: luz e sombra são seus elementos. ~ ora, a luz e a sombra têm em si um elemento de movimento extremamente forte. Enquanto a linha que delimita um desenho era para o olhar um guia seguro, de modo que, seguindo o simples traço podia captar sem esforço a figura, aqui o movimento disperso de uma massa de luz o atrai para cá e para lá, sempre para mais longe, sem haver em parte alguma um limite, um fim determinado, mas cheia ou vazante desordenadas. É principalmente nisso que se funda a impressão de mudança contínua que esse estilo provoca. O contorno é destruído por princ(pio, em lugar da contínua linha tranqüila aparece uma área

2. Rumorh (op. cit. , III.l95) menciona um estudo para Heliodoro no qual Rafael só deu uma única aguada, "com a qual ' sombreia as figuras e grupos, cujo único .:ontomo é o que resulta 'da :z.ona de sombra. Do lado da luz, estas figuras se diluem no campo claro do fundo". Segundo Passa\'ant de resto, esta observação deveria ser modificada essencialmente. (Rafael, ll.527 .)

terminal indefinida, as massas não podem ser limitadas por linhas n(tidas mas se "perdem". As figuras, anteriormente, destacavam-se nitidamente contra o fundo claro; agora ele, quase sempre, é escuro, e os limites das figuras confundem-se com essa obscuridade. Apenas superf(cies isoladas iluminadas se destacam, o que nos leva a outra constatação. À oposição linha/massa corresponde outra: plano/espaço (material). O estilo pictórico que trabalha com efeitos de ~ombra cria um volume e lhe confere uma presença matenal; as diversas partes parecem avançar ou recuar no espaço3 • A expressão "avançar ou recuar" já designa o aspecto de movimento, que está contido em qualquer corporeidade, elll oposição a uma superfície plana. Por isso o estilo procura arredondar tudo o que é plano e obter em toda parte modelado, luz e sombra. Acentuandose o contraste entre claro e escuro intensifica-se a impressão criada, a ponto de fazê-la quase "saltar para fora" do plano. Pode-se constatar essa progressão nas pinturas das Stanze do Vaticano. Rafael parece ter usado o processo com plena consciência em conexão com uma ação mais movimentada. O efeito dramático da expulsão de Heliodoro do templo é consideravelmente intensificado por uma série de luzes que brotam do fundo escuro 4 •

.

3. Naruralmente, também aqui, trata-se apenas de diferenças quantitativas: o estilo anterior não era plano no sentido de um desenho puramente linear. 4. Mas os italianos não vão até os efeitos da vibração incerta da luz, tão apreciada pelos flamengos. Tambêm nesse caso, permanecem fiéis à sua natureza plástica, os. efeitos. d~ luz são grandes e simples; os artistas quanto ao essenc1~, se lumtam a.ft_guras que se movem não apresentando o movunento mdeterrrunado da vida da atmosfera e da luz, que constitui a grandeza de Rembrandt. O ESTILO PICTÓRICO

41

Ao mesmo tempo o espaço se ·toma mais profundo. A moldura circundante nos quadros posteriores é executada de modo a fazer crer que se está olhando através de um arco. Em seguida, tem-se não um s6 plano, uma série de personagens; o olho é, ao contrário, atraído bem para o fundo e até para insondáveis profundezas. 4. O estilo "pictórico" visa à impressão do inovimento5 • A composição segundo massas de luz e sombra é o primeiro momento desse efeito; menciono como segundo a dtssolução da regra (estilo livre, desordem pictórica). A regra é algo morto, sem movimento, não-pictórico. Não-pictórica é a linha reta, a superfície plana. Quando inevitáveis, como na reprodução de . objetos arquitetônicos, o pintor as interrompe por elementos acidentais, deixando supor um estado de ruína, de decomposição; uma dobra "casual" num tapete ou qualquer coisa semelhante intervém como elemento que concede vida.. Não-pictórico tampouco é o alinhamento uniforme, a disposição métrica. Prefere-se a eles a disposição rítmica e, ainda mais, o agrupamento aparentemente casual, cuja necessidade está apenas na distribuição precisa das massas de luz e sombra. Para conseguir mais um elemento de movimento, o todo ou ao menos uma parte considerável dele é orientado de modo oblíquo em rel~ção ao espectador. Quanto a figuras isoladas, já se usava há tempo essa ·liberdade, enquanto para grupos e tudo o que era tectônico continuava-se a respeitar as regras. Cf. a progressão em detalhes dos quadros do Vaticano: os livros colocados ti5. Cf. SPRINGER (op. cit., 1.279): "O tom pictórico da des· crição coaduna-se indubitavelmente com o caráter dramático". 42

_midamente em posição oblíqua na Disputa, a mesinha na Escola de Atenas, o cavaleiro em Heliodoro etc. 6 Finalmente todo o eixo do quadro (do espaço arquitetônico ou da composição das figuras) é disposta obliquamente em relação ao espectador. Vendo-se o quadro de baixo (quando o ponto de fuga é alto) acrescenta uma inclinação ao eixo de profundidade (Fig. 7). Não-pictórico é finalmente o ordenamento simétrico. Em vez da correspondência de formas particulares, o estilo "pictórico" apenas dá um equilíbrio de massas, podendo os dois lados do quadro ser muito diferentes entre si. O centro da imagem fica então indeterminado. O ponto de gravidade é deslocado para o lado, originando-se assim uma tensão, peculiar na composição. A composição pictórica livre não distribui por prindpio suas figuras segundo um esquema arquitetônico, não conhece uma lei da distribuição das figuras, mas apenas um jogo de luz e sombra, independente de qualquer regra7 • 5. Ao terceiro elemento do estilo "pictórico" poderíamos denominar o "inapreensível" (o ilimitado). Faz parte da "desordem pictórica" que os diversos objetos não se apresentem com toda a ela6. Para a representaçllo pictórica de fachadas arquitctOni= a orientação obUqua 6 indispensável. Quanto ao motivo de v6u que af comparece, cf. adiante. 7. Motivos planos que tem uma composição tão complicada que não se reconhece a regra, podem ter um efeito perfeitamente pictórico. Pensa-se em exemplos árabes, nos quais de fato muitas vezes resulta um tremeluzir inquieto que dá a impressão de movimento interminável. Quanto mais ctiffcil 6 a percepção da lei fundamental, tanto mais inquietante parece o efeito da composição. É interessante analisar os assoalhos das Stanz.e do Vaticano quanto a isto: em Disputa, eles sáo inteiramente calmos; emHe/iodoro, inquietos e estremecidos, reforçando assim o caráter geral do quadro.

6. BERNINI. Basnica de São Pedro. A Colunata. Cidade do Vaticano.

7. RAFAEL. Palácio do Vaticano. Aposentos. Detalhe de Heliodor o Expulso do Templo.

reza, estando em parte velados. O motivo do véu é um dos mais importantes do estilo "pictórico". Esse estilo está perfeitamente cônscio de que tudo que, à primeira vista, pode ser apreendido completamente causa impressão de fastio na pintura; por isso, algumas partes ficam encobertas; os objetos são colocados uns sobre os outros, aparecem apenas parcialmente, excitando o mais poss(vel a imaginação no sentido de imaginar o oculto. Poder-se-ia pensar que se trata de um impulso daquilo que está semi-oculto de lutar para chegar à luz. O quadro se torna vivo, o que esta"a velado parece descobrir-se etc. Sequer o estilo tnais severo conseguiu em todas as oportunidades evitar o ocultamento parcial, deixando ao menos aparecer o essencial, o que atenuava o sentimento de instabilidade; agora pelo contrário procura-se pelo deslocamento de elementos do quadro criar a impressão de algo passageiro. A essa mesma concepção está ligado o motivo estil(stico em que a moldura recobre em parte as figuras e as meias figuras se introduzem no quadro. ~a sua expressão suprema o estilo busca profundezas insondáveis. Se podemos dizer que a dissolução das regras marca a antftese da arte arquitetônica, temos aqui a antCtese radical do sentimento plástico! Tudo o que é indeterminado, que se perde no infinito repugna ao gosto plástico, mas é exatamente nisso que o estilo pictórico encontra a sua essência verdadeira. Esse estilo busca não figuras isoladas, formas isoladas, motivos isolados, mas um efeito de massa, não um espaço delimitado, mas infinito! O estilo antigo apresentava apenas um número limitado de figuras, que se podia apreender num olhar, podendo cada uma ser apreendida inteira44

mente. Agora surgem multidões cada vez maiores (observe-se esse aumento na série das Stanze); elas se perdem na obscuridade do fundo; a vista renuncia a seguir cada figura individualmente e se volta para o efeito geral; devido à impossibilidade de apreender tudo, tem-se a impressão de uma riqueza inesgotável, a imaginação permanece em atividade cont(nua, e é precisamente isso que o pintor procura. O que constitui a atração de um drapejamento, de uma paisagem, de um interior pictórico é, em grande parte, precisamente essa riqueza inesgotável de motivos -que não dá descanso à imaginação - a extensão ilimitada, o infinito. Como o espaço do Heliodoro parece infinito e inescrutável em comparação com a Escola de Atenas! Na sua t1ltima conseqüência o estilo pictórico tenderia a abolir inteiramente a forma plástica. Seu verdadeiro objetivo é reproduzir a vida da luz em tod~ as suas formas, e aqui o motivo mais simples pode substituir completamente toda diversidade, toda nqueza pictórica. 6. Mencionemos ainda um egu(voco que ocorre muitas vezes: a confusão entre pictórico e co1õnd..Q.. O estilo pictórico, como acabamos de examinar, pode renunciar completamente às cores. O maior mestre nessa matéria, Rembrandt, utilizava de preferência a gravura, que só conhece o claroescuro. A cor pode servir para reproduzir uma atmosfera com mais força, mas ela não é o essencial. Principalmente, o estilo pictórico não procura ~xtrair de cada cor individualmente sua força e pureza supremas, reunindo esses elementos para criar uma harmonia em que cada qual realça a

outra em seu efeito local. Pelo contrário, as cores locais são atenuadas na sua força individual, mediadas por transições múltiplas, subordinadas a uma tonalidade geral, de modo que nenhumã possa alterar o efeito principal que consiste no jogo claro-escuro. Rafael ilustra essa transição de forma característica. As superfícies monocromáticas e de unidade tranqüila de seu estilo anterior desaparecem, as cores são "matizadas" e "desenvolvidas" em todos os sentidos, criando em toda parte vida e movimento. Na história da escultura antiga temos outro exemplo da pouca relação entre o pictórico e a cor. As estátuas pintadas desaparecem no momento em que a arte se. torna pictórica, isto é, quando se julgou poder confiar no efeito de luz e sombras. 7. Espero ter analisado suficientemente os meios artísticos elementares do estilo pictórico9 • Nas artes plásticas naturalmente eles são mais limitados. Mas também ela atinge uma composição que utiliza luz e sombra a serviço de um gosto que visa sobretudo o movimento das massas10. A linha desaparece. Isso significa, na obra modelada, o desaparecimento da aresta. Ela é ar- · 8. O desenvolvimento é mais claro talvez no tratamento dado ao cabelo. 9. Ainda não foi escrita uma história do estilo pictórico, que, sem ddvida, apresentaria resultados muito interessantes. 10. Cf. KEKULÉ, sobreLissipo: "Omodcladoproduzumjogo de luz e sombras aparentemente autônomo, que muitas vezes é aparentado a um efeito verdadeiramente pictórico". (Kunstgeschíchtl. Einkitg. zum Bãdecker für Griechenland, p. CVII.)- Von Brunn diz, a propósito da gigantomaquia de Pérgamo: "Por meio de oposições pronunciadas de luz e sombra e também por um agrupamento de massas os artistas alcançam em alto grau o que eosruma designar como efeito pictórico". (Jallrb. der preu.ss. KU11Stsl1lrunlungen V, 237.)

redondada, de maneira a criar, no lugar de uma fronteira nítida entre sombra e luz, uma passagem em que ambas estão presentes. O contorno não é mais uma linha contínua. Não se quer fazer a vista seguir pelos traçados laterais e deslizar para baixo, como figura de superfície delimitada, mas levá-la sempre mais para o fundo. Consídere-se, por exemplo, o braço de um anjo de Bernini, que recebe o tratamento de uma coluna torcida. Se os artistas se sentiam pouco dispostos, quanto aos contornos, a dar continuidade à linha, tampouco procuravam simplificar o tratamento das superfícies; pelo contrário: as superfícies claras do estilo antigo eram dissolvidas, interrompidas intencionalmente por "acidentes", para conseguir a impressão de maior vivacidade. No relevo, temos o mesmo fenômeno. Enquanto no friso do Partenon é concebível um fundo dourado, do qual ressaltaria eficazmente o belo contorno das personagens, seria totalmente inadmissível ressaltar de modo eficaz os contornos, num relevo mais pictórico, como na Gigantomaquia de Pérgamo. Só se obteriam horrfveis manchas de cor, pelo fato de que o efeito se funda exclusivamente no movimento de massas e não no movimento das linhas,,, De resto, não preciso expor aqui até que ponto foi levada ou pode ser levada a aplicação do "pictórico" às artes plásticas. Tennino estas observações. Nosso tema é a arquitetura, e volto a minha proposta inicial: no barroco, a arquitetura se torna pictórica, e esta é a verdadeira característica do estilo. 11. A. CONZE, Über das Re.ü.ef bei den Griechen. O ESTILO PICTÓRICO

45

8. Devemos estudar o barroco segundo os pontos de vista desenvolvidos aqui? Parece-me que não se pode fundamentar um estudo do barroco no conceito de pictórico. Em primeiro lugar, com isso se dá azo a um erro ao dizer que a arquitetura imita uma técnica estranha, quando, na realidade, trata-se de uma mudança geral da forma que abrange todas as artes (inclusive a música) e que remete a uma base comum mais profunda. Mas então o que se quer dizer com a palavra "pictórico"? Que a arquitetura renuncia à realidade material, dirigindo o olhar apenas para a aparência? Nesse sentido, qualquer estilo não orgânico seria pictórico. Que a arquitetura procura dar a impressão de movimento? Com isso ao menos estaria dita alguma coisa determinada para designar o estilo. Mas o conceito do movimento não basta para caracterizar o barroco. Também existe movimento no rococó francês, que é, contudo, muito diferente. O movimento leve e saltitante é abso-

46

lutamente estranho ao barroco romano, pesado e maciço. Seria preciso, pois, acrescentar uma característica suplementar: o efeito de massa. Mas com isso estamos fora dos limites do pictórico. Esse conceito em sua generalidade já não é capaz de captar o barroco. Logo, para definir as caractensticas do novo estilo, será melhor compará-lo àquele que o precedeu, o da Renascença; veremos então quais são as composições formais que devem ser designadas como pictóricas. Mas a exposição não deve se contentar com a descrição ou a comparação de janela com janela, cornija com cornija, coluna com coluna - isso não só seria antifilosófico, mas anticient(fico - o que importa é descobrir os pontos de vista gerais que determinam as formas. Para começar, cabe-nos dizer algumas palavras sobre aquilo que chama imediatamente a atenção, sobre o caráter especial do efeito produzido pelos edifícios barrocos.

2. O GRANDE ESTILO

'\

1. A Renascença é a arte da beleza tranqüila. Oferece-nos aquela beleza libertadora que experimentamos como um bem-estar geral e uma intensificação uniforme de nossa força vital. Em suas criações perfeitas não se encontra nada pesado ou perturbador, nenhuma inquietação ou agitação -todas as formas manifestam-se de modo livre, integral e sem esforço. A abóbada do axco é do mais puro arredondado, as proporções são amplas e desenvoltas, tudo resP.ira contentamento perfeito, e cremos que não estamos errando reconhecendo precisamente nessa serenidade e ausência de qualquer preocupação a expressão suprema do gênio artístico dessa época. O barroco se propõe outro efeito. Quer dominar-nos com o poder da emoção de modo imc;: diato e avassalador. O que traz não é uma anima-

ção regular, mas excitação, êxtase, ebriedade. Visa produzir a impressão do momento, enquanto a Renascença age mais lenta e suavemente mas de modo mais duradouro1 : é um mundo que gostaríamos de jamais deixar. O barroco exerce momentaneamente um efeito poderoso, mas em breve nos abandona, deixando-nos uma espécie de náusea2. Ele não evoca a plenitudedo ser, mas o devir, o acontecer; não a satisfação, mas a insatisfação e a instabilidade. Não nos sentimos remidos, mas arrastados para a tensão de um estado apaixonado. Esse efeito, como o procuramos descrever em sua generalidade, funda-se num modo de tratar a forma que vamos caracterizar segundo dois pontos de vista principais: efeito de massa e movimento. Gostaríamos de, inicialmente, considerar aquilo que, na expressão de Vasari, se pode chamar de maniera graruJe3 ,... concepção monumental, própria principalmente do barroco, como ·um terceiro motivo autônomo, embora a intenção de um efeito de massa por si mesma exija em parte o grand style.

.. 1. Lembremos as belas palavras de Alberti (De Re Aedifica· toria, livro IX, final), que descrevem como as pessoas não podem se cansar de olhar um edifTcio, voltando-se a todo momento ao irem embora, para lhe lançar mais um olhar. "Neque qui spectent satis diu contemplatos ducant se quod iterum atque iterum spectarint atque admirentur: ni iterato etiam inter abeundium respectent.': 2. Todos os principais artistas do barroco sofriam de dor de cabeça. Cf. sobre Bernini: Milizia, Memorie D. 173; sobre Borromini, idem II. 158. Fala-se também de melancolia.

3. O conttáriç é a maniera gentik - Rumohr me parece equivocado quando identifica a maniera grande com o "estilo pictórico". O ingrandire la maniera certamente significa mais que isso. 48

2. Esse grand style apresenta-se sob um duplo aspecto: aumento das dimensões absolutas de um lado, simplificação e unificação da concepção, de outro. Desde os trabalhos de Michelangelo e Rafael no Vaticano, tanto a pintura como as artes plásticas, assim como a arquitetura, tendem sempre ao grande. Toma-se costume conceber o belo apenas como colossal. A variedade e a delicadeza cedem lugar a uma simplificação, que s6 procura grandes massas, e toda a obra é percorrida por um traço unificador, que não deve parecer constitu(da de elementos isolados. O gosto pelo grande e colossal, sempre mais ou menos presente em Roma desde a Antiguidade, recebera um novo impulso do pensamento arquitetônico -monumental dos papas da Renascença, que tinham concepções grandiosas. O exemplo decisivo para toda a arquitetura foi São Pedro. Dispunha-se de um critério que repentinamente fazia parecer peque!Jo tudo o que se edificara anteriormente. O entusiasmo pela construção da Contra-Reforma é continuamente estimulado por esse modelo, que o incita a um esforço extraordinário, ainda que em parte alguma se pu.: desse esperar igualá-lo. Nos edifícios particulares domina igualmente a intenção de se impor através das grandes dimensões. Desde que Alexandre Farnese, para marcar seu acesso ao pontificado4, mandara aumentar o Palazzo Famese, por ele iniciado quando ainda era cardeal, ampliando de 43 metros para 59 metros a largura da fachada, a necessidade de exibir poder se intensificou e se ge-

4. Vasari, V, 469 - LETAROUILL Y, Édijices de Rome modeme, texto p. 260.

oeralizou rapidamente, como se verifica no Palazzo Farnese em Piacenza (sob o influxo do modelo romano), o Castelo de Capr_arola, ambos construfdos por Vignola para os Farnese, e em Roma, os palácios dos nepotes, que procuravam superar uns aos outros. Mesmo a serenidade das vil/as se torna v(tima do desejo pelo colo~al. O que Florença pode apresentar do seu tempo de maior brilho parece relativamente pequeno ao lado dessas construções. A única exceção seria o Palazzo Pitti, mas não se deve esquecer a parte barroca desse edifício. A construção de Brunelleschi representava apenas a metade da fachada atual 5• O aumento das dimensões é um fenômeno que se encontra em toda arte em decadência, ou melhor, a arte começa a decair no momento em que procura o efeito de massas e proporções colos"Sais. Não há mais sensibilidade em relação à lorma em si, o senso das formas perde a finura: busca-se unicamente o. imponente e avassalador.

a) O tamanho maior dos ediffcios por si mesmo tornava necessário um desenho simplificado e mais eficaz do detalhe. Assim a divisão ternária da arquitrave se reduz a uma divisão binária; no perfil das cornijas os múltiplos elementos pequenos são substitufdos por linhas, pouco numerosas, mas significativas; a balaustrada, que antes se compunha. de dois elementos iguais (Fig. 8) torna-se um corpo homogêneo (Fig. 9), pela primeira vez, em Sangallo e Michelangelo7 •

8. Balaustradas segundo Rafael.

3. É do interesse desse estilo apresentar, não uma multiplicidade de partes individuais, mas, se possível, corpos de uma só peça. Em vez do múltiplo e pequeno, procura a grande composição homogênea; em vez oe dividir, ele reúne 6• Percebe-se uma transformação nesse sentido tanto no detalhe como no conjunto da obra de arte.

5. S6 a parte cenual com seus três andares é dele. As alas de dois andares que ampliaram a fachada de 107 para 205m foram acrescentad~ apenas no século XVII, as galerias laterais salientes, apenas no século XVIII. 6. Ouvem-se agora críticas como a seguinte; que "il componimento" é "troppo sminuzzato dai risalti e dai membri che sono piccoli". Assim fala Michelangelo sobre o projeto de Antonio da Sangallo para a fachada de São Pedro. Vasari, V, 467.

9. Segundo Michelangelo. Palácio dos Conservadores.

b) Esse princfpio é de uma importância capital na composição de grandes dimensões, na vertical e na horizontal. a) Começa-se a sentir como indesejável a divisão da fachada numa série de andares iguais. O grand style exige que ela se apresente como um corpo homogêneo; desse modo, compreende-se facilmente que é o palácio que oferece, nesse sentido, mais dificuldades. 7. Em Roma, a inovação é adotada imediatamente por todos. No Norte da Itália, em compensação, a forma renascentista se conserva ainda por muito tempo; em Palladio, Sansovino, Sanmichele e outros. - A balaustrada do início da Renascença era composta por uspa simples coluninha. Assim em Brunelléschi (Palazzo Pitti, Duomo, Capela Pazzi etc.). O GRANDE ESTILO

49

10. BRAMANT E. Chancelaria. Detalhe da fachada.

11. BERNINI. Palazzo Chigi Ode.scalchi.

12. MICHELANGELO. Palazz.o dei ConservaLori. Detalhe da fachada.

Também nisso Roma novamente precede todas as outras regiões. É o próprio Bramante que intmduziu mudªnça. Sua ultima maniera tende decididamente a uma unidade TW desenvolvimento vertical da fachada. O período da Chancele ria, que superpõe três andares de igual importância, representa também para ele uma fase superada: procura dar ao térreo o caráter de um pedestal sobre o qual repousa todo o edifício. (Ver adiante: A construção de palácios.)(Fig. 10) O mais enérgico é Micbelangelo: nos palácios do Capitólio reúne arrojadamente dois andares num só por meio de uma ordem colossal de pilastras. Palladio o imita nisso por um tempo. O exemplo não foi seguido em Roma, onde os artistas manifestam pouco interesse pelos elementos verticais (ver abaixo) e procuram outros meios para dar a impressão de homogeneidade. Para consegui-lo, davam a um andar grandeza e riqueza plástica, realçando-o e conferindo-lhe, desse modo, uma supremacia incontestável. Coube a uma época posterior (e a Bernini) criar, por meio da combinação do motivo da ordem contínua de pilastras e do tratamento do térreo como pedestal, o novo tipo que daí em diante desempenhou o papel mais importante na construção monumental8 • (Figs. 12, 11, 17) Veneza manteve-se nos trilhos antigos. A disposição das massas em ritmo livre não foi ali compreendida. Os palácios no estilo do Pesara (cerca de 1650, de B. Longhena) têm sempre uma sucessão de andares luxuosos análogos. Também em Palladio se enconLram muitas vezes dois e até três pisos idênticos sobrepostos.

ª

8. Sobre fachadas de igrejas e divisão mural, ver adiante os capftu los correspondenteS.

52

13) No que se refere ao princ(pio de divisão horizontal da Renascença, a Chancelaria é tão caracte rística quanto no que se refere ao vertical. As pilastras dividem · as superfícies de tal modo que um intervalo maior se alterna com dois menores. A largura dos intervalos laterais intermediários em relação à do inter valo principal é definida segundo o número áureo ~. Geymüller chama este motivo de "trave rítmica" de Brarnante (ver Fig. 68.) Esse motivo é muito característico da sensibilidade da Renascença 1o. Encontramo-lo, muitas vezes, principalmente em união com um arco central (motivo do arco de triunfo) . O elemento significativo é sempre a valorização das superfícies umas pelas outras; as partes laterais sempre se conservam bastante pequenas para não ameaçarem a posição dominante da parte central, mas de outro lado também suficientemente grandes para terem valor e significação autônomas. O barroco se afasta por princfpio dessa disposição, exige unidade absoluta e as partes laterais autônomas são sacrificadas. Compare-se, por exemplo, a transformação que sofreu o motivo do arco de triunfo no altar-mor do Gesu (de Giacomo della Porta): grande arco central, partes laterais bem estreitas, colunas tão comprimidas que parecem geminadas. O tipo da Renascença e ncontra-se em Serlio, Arch., livro IV. fol. 149 (Fig. 52). Outro exemplo nos é dado pela transformação · sofrida pelo nicho de Bramante no patamar médio

9. b:B ·= B: (b+B). 10. Já aparece em Alberti (com as proporções b:B Santa Maria Novella, Florença, Santa Andrea, Mântua.

1:2).

da escadaria no ÇJiardino della Pígna (provavelmente de A. de Sangallo)11 • Ao contrário de Roma, o Norte da Itália também conserva as formas da Renascença. Cf. o sistema interior, muitas vezes imitado, de S. Fedele em Milão ( 1569; Pellegrino Tibaldi), em que o motivo do arco de triunfo é repetido duas vezes; a divisão mural exterior de Santa Maria della Salute em Veneza (1631: B. Longhena) etc.

lf!) A disposição do espaço interior manifesta também uma evolução em direção à unidade: os espaços secundários autônomos devem desaparecer-diante do espaço principal, único e poderoso. A história do plano oferece um paralelismo total com a história da "trave rúmica". As basílicas florentinas dos começos da Renascença (San Lorenzo, Santo Spirito) definem a relação da nave lateral com a principal na proporção de 1:2; são as proporções utilizadas na época para a divisão das superfícies (cf. as fachadas de Alberti). No primeiro projeto de São Pedro, Br:amante determina as proporções das cúpulas laterais em relação à cúpula principal segundo o n11mero de ouro, que também se encontram na "trave rítmica" da Chancelaria. Os projetos posteriores para São Pedro mostram uma diminuição progressiva dos espaços laterais, princípio que recebeu sua expressão mais decidida na construção longitudinal do Gesu (Vignola, 1568): aqui só há urna nave com capelas que, embora tenham ligação entre si, absolutamente não produzem o efeito de uma nave lateral. O Ges() tomou-se o modelo para toda a construção de igrejas em Roma. Exatamente a mesma evolução da história do vestíbulo de três 1!. Reproduções em LETAROUlLL Y, Le Valican, vol. I b.

naves. A primeira etapa em Rafael, na Villa Madama, no primeiro projeto; a última no Palazzo Famese (A. da Sangallo) e o estágio intermediário no segundo projeto para a Yilla Madama12, A divisão do espaço continua a ser praticada pelos arquitetos do norte da Itália. 8) A Renascença gostava de um sistema de partes grandes e pequenas. O pequeno prepara para o grande, contendo de maneira exemplar a forma do conjunto. É por isso que a arte, embora adote o modo colossal, como no São Pedro de Bramante, o peso da grandeza é atenuado, retirando-se da impressão qualquer caracterfstica opressiva. O barroco só cria obras grandes. Compare-se o São Pedro de Michelangelo ao de Bramante. Primeiro o plano. Em Bramante (projeto ideal) os braços de cruz são repetidos duas vezes em proporções sempre menores ; em duas repetições o motivo colossal desvanece lentamente. Em Michelangelo desaparece qualquer vestígio de tal atenuação, e a evolução do sistema mural é ainda mais caracteóstico. Partindo de uma estrutura de dois andares, o próprio Bramante chegara a uma ordem colossal; mas para as extremidades dos braços da cruz conservara galerias com (pequenas) colunas. Assim não se fica sem ponto de apoio perante o colossal e inacessível; o sentimento encontra apaziguamento nessas formas que ficam mais próximas das dimensões humanas, o desmesurado toma-se, por assim dizer, apreens(vel. Michelangelo remove essas galerias de pre-

12. Reproduções em GEYMÜLLER,Raffaello Sanzio, pl. 4.5. - "Redtenbacher", Lützcw Zeit.scllrift.fiür bildende K1u1St 1!176 s 33. ' ' . O GRANDE ESTILO

53

paração. O esp(rito barroco procura o avassalador, aplastante. Poder-se-ia falar de um efeito patológico dessa característica colossal da arte.

54

3. OS EFEITOS DA MASSA

'\

1. O barroco exige massas grandes e pesa: das. As proporções esguias desaparecm. Os edifícios começam a se tomar mais pesados e, aqui ~· ali, até a forma ameaça sucumbir sob a pressão: A leveza graciosa da Renascença desaparece: Todas as formas se tomam maiores, mais impor-: tantes. Veja-se a balaustrada da escadaria do Capitólio de Michelangelo (Fig. 14); a transformação das pilastras e colunas seguem a mesma evolução1. 1. é interessante como na pintura de paisagens, por exemplo, na reprodução das árvores, manifesta-se um sentimento da forma análogo: grandes e cheias massas de folhas em vez das arvorezinh.as esbeltas dos começos da Renascença. A folhagem pesada e cbcja de seiva da figueira constitui uma verdadeira folhagem barroca, c aparece de modo tlpico em Annibale Carracci. Na cor igualmente há uma prefedncia pelos tons pesados, escu· ros. Aa pinturas como que recebem maia peso.

13. Piazza S. Pietro.

14. Palazzo Famese.

As arquiteturas religiosa e civil ampliam ao máximo as fachadas no sentido horizontal. (A fachada de São Pedro é alargada artificialmente por meio de torres aos cantos.) Na construção dos palácios, além disso, suprime-se qualquer divisão por elementos verticais. Segundo o exemplo do Palaz.zo Farnese são abandonadas as ordens de pilastras, mesmo numa fac hada de dezenove eixos (Palaz.zo Ruspoli de Anunannati). As igrejas não renunciam às linhas verticais, mas criam um forte contrapeso por cornijas muito salientes e pela multiplicação da largura das linhas (Figs . 13, 14). Uma expressão imediata do caráter pesado e carregado é o pronunciado rebaixamento do frontão . Ele não mais parece erguer-se, mas cair. Para essa impressão é decisivo que a linha de base terrnine horizontalmente, como no Gesu de Giacomo della Porta, um dos primeiros exemplos. A colocação de acrotérios grandes e pesados dos dois lados têm a mesma função (Fig. 49). Outros meios pelos quais o estilo procura alcançar essa impressão é a construção do pedestal baixo (cf. o Gesu de Vignola e de Giacomo della Porta, Figs. 48, 49, 70, 71, 72), e a sobrecarga dos elementos de sustentação por áticos altos acima do entablamento. As escadarias mostram a satisfação visível conferida pela pesada ampliação da massa. Querse salire con gravità, segundo a expressão de Scamozzi, mas muitas vezes os degraus são tão baixos que as escadas se tornam incômodas. Como exemplo monstruoso disso podem-se citar os degraus redondos que levam da praça das colunatas para São Pedro. Têm o aspecto de uma massa viscosa rolando vagarosamente para baixo. Não se pode mais pensar numa subida, tem-se unícarnente a sensação de descida (Figs. 4, 5, 13). 58

Essa capitulação ao peso conduz a certas manifestações em que a forma sofre realmente sob a violência do peso. O alegre arco de volta inteira recebe uma forma rebaixada e elfptica (Michelangelo foi o primeiro a dar-lhe essa curvatura2 no átrio do Palazzo Farnese, primeiro andar); os pedestais das colunas, antes tão esbeltos e altos, ajudando a inten sificar a impressão de leveza, são agora rebaixados até apresentar apenas uma forma pouco atraente, que transmite a impressão do formid ável peso que carrega . (Assim como no vestfbulo do Palaz.zo Farnese de Antonio da Sangallo.) Foi Michelangelo quem tomou a iniciativa das grandes construções. Escolheu para as arcadas do Palazzo dei Conservatori' no Capitólio uma proporção de indiscutrvel feiúra. O andar de cima pesa de tal modo sobre as colunas (pequenas demais) que elas são empurradas contra os pilares da ordem colossal. Estamos convencidos de que as colunas ali estão como que constrangidas. Essa impressão resulta em parte da proporção irracional do intervalo entre as colunas, que, vergonhosamente comprimidas, não transmitem a impressão de uma forma tranqüila e natural 3 (Fig. 15). Naturalmente, essa alegria provocada pelo poder da matéria introduziu na arquitetura uma tendência ao infonnal, e um homem a quem faltava qualquer consciência arquitetônica como .Giulio Romano passou logo ao exagero. Na Sala dos

2. Vasari VIl, 224. "Coa mLO\V modo di sesta in forma di meu.o ovato fece condurre Ie volte" etc. -C f. de resto o desenho de Bramantc para a EscoltJ de Arenas (p ublicado por A. Springer): abóbada rebaixada. 3. A fachada de S!o João de Larrão (de Alcssandro Galilci do s6culo XVIII) retoma o motivo dos pilares contÚluos com colunas no andar de b:ú.xo num tratamento muito puro.

Gigantes do seu Palazzo del Té em Mântua a forma é destruCda completamente. A massa bruta irrompe, blocos de rochas sem fonna substituem as comijas, os ângulos são cortados, tudo se desloca e o caos domina. Não obstante, tais casos são exceções e não chegam a prejudicar o caráter geral do barroco; pois devem-se atribuir ao naturalismo as massas informes que se encontram nas fontes n1sticas e nas arquiteturas de jardins. 2. A ampliação das formas, caracterlstica do estilo barroco, está ligada a uma concepção completamente nova da matéria, ou seja, daquela matéria ideal cuja vida e comportamentos inte~.: nos permitem aos membros da construção se ex-· pressar. É como se a matéria dura e quebradiç.i da Renascença tivesse se tomado tenra e saborosa. Por vezes nos sentimos tentados a pensar em, argila. De fato Michelangelo modelava elementos arquitetônicos em argila como, por exemplo, a escadaria ousadamente arqueada da Biblioteca de San Lorenzo (Florença) 4 e outras obras5 • Seus edifícios parecem trair essa técnica por uma expressão particular das foonas, observa J. Burckhardt6. Também a pintura começa a sentir desse modo a matéria. Compare-se, por exemplo, uma paisagem de Annibale Carracci com uma florentina do começo da Renascença (para escolher o contraste mais forte): em lugar da rocha aparece uma massa informe, num verde-azulado sumarento, no qual a luz penetra (Fig. 16). E vamos encontrar esse desenvolvimento a partir de um estilo de arestas agudas, quase se di4. VASARI, VII, 397. 5. BOTIARI,Leuerepittorichel,11. 6. BURCKHARDT,Rer.ascenzainltalia,p. 77.

ria de bronze, para um sabor suculento e de uma plenitude molemente maciça em todas as artes. Uma figura da fase final de Rafael parece ao próprio Annibale Carracci "de uma dureza cortante", "como um pedaço de madeira": "Una cosa di legno, tanto dura e tagliente 7 " (Fig. 16). Vasari queixa-se da secura da primeira maneira romana de Bramante, a d~ Chancelaria. O barroco tem horror à secchezza. Mas, com o amolecimento da matéria, que se torna por assim dizer fluida, dissolve-se a conexão ~tônica e o caráter maciço do estilo barroco, expresso na forma larga e pesada, também aparece agora na falta de ordenação na ausência de modelação exata. Em primeiro lugar, a parede não é mais tratada como se fosse composta por uma reunião de pedras, mas como uma massa ligada uniformemente. A disposição das pedras individuais em camadas não é mais utilizada como mo ti vo artCstico, mas são, na medida do poss(vel, completamente recobertas. No caso da Renascença, podemos pensar nas pedras de cantaria da Chancelaria, cuidadosamente ajustadas e, no mesmo ediíicio, na valorização do tijolo em toda a sua elegância nas fachadas laterais. Agora a regra geral é recobrir os tijolos de argamassa. Primeiro exemplo: o Palazzo Famese (Antonio Sangallo)a. A pedra de cantaria (em Roma utiliza-se, desde os tempos antigos, o esplêndido travertino) nunca deve agir em blocos isolados mas criar um efeito

7. Lettere pittoriche l, 120. - O mesmo ocorre quanto à pintura. · Fedcrigo Zucchero acha o colorido bolonhês seco demais em face do lombardo; dever-se-ia "ingrassare il secco colorire de!la seuola caraccesca". Lettere pittoriche V11, 513. 8. No Norte da Ilál.ia o tijolo aparente é ainda por longo tempo mostrado. Cf. Cicerone H4, 259. OS EFEITOS DA MASSA

59

15. MICHELANGELO. PaJazzo dei Conservatori. Roma.

de conjunto. Por isso, não há fachadas em material rústico . .A tentativa q ue Bramante e Rafael fi:t.eram com o material rústico 9 (para o andarpedes tal dos palácios) não foi retomada (Fig. 14). Dir-~c-iu yuç o barroco subtrai à parede o elemento tectônico. A massa perde sua estrutura interna. Onde não são pedraque se pode apreender, aspira tão-somente ao grandioso 1s. A arquitetura barroca e principalmente aqueles espaços enormes das igrejas produzem no espírito uma espécie de embriaguez. É uma sensação global, vaga; não se pode apreen.d er o objeto, sente-se o desejo de abandonar-se ao infinito. A religiosidade, reanimada pelos jesuítas, utiliza de preferência a representação dos espaços celestes infinitos e dos incontáveis coros de santos para dispor ao recolhimento 20• Deleita-se com a representação do que escapa a qualquer repre-

19. "A beleza está reservada a uma geração que conhece a felicidade, mas 6 pelo sublime que se deve procurar comover aquele que não a conhece." SCHILLER a SÜVERN. Cf. SPRINGER, Rajfael und Michelangt:lo, prefácio à dltima edição. 20. IGNATII LOYOLAE, Exercitia spirituaüa, 1546, Praeludium. AS RAZÕES DA TRANSFORMAÇÃO ESTILfSliCA

99

40. RAFAEL. O brase de Santa Cedlia. Detalhe. Bologna.

41. BERNINI. O f.xta.se de Sarua Tereza. Santa Maria da Vit6ria.

Roma.

sentação; arde-se de desejo de atirar-se aos abismos do infinito. Mas o arrebatamento não é próprio apenas da espiritualidade jesuítica: sem insistir no fato de que, na mesma época, Giordano Bruno esgotava a voh1pia desses sentimentos dissolver-se no todo é para ele a suprema felicidade21, apenas quero observar que os jesuítas retomam uma realidade preparada fazia muito tempo. Encontramos uma intensificação do sentimento nessa diteção (patológica) já nos últimos anos de Rafael. Santa Cecilia que deixa cair os braços e que, subjugada pela música celeste, ergue em silêncio o olhar, não para olhar, mas para se abrir aos sons, marca o começo de uma série de quadros que reproduzem o mesmo estado anímico, mais violento, mais apaixonado, como um naufrágio voluptuoso, como um êxtase arrebatado ou uma entrega cheia de nostalgia e de uma felicidade supraterrena (Fig. 41). A aspiração da alma de perder-se no infinito não pode encontrar satisfação na forma limitada, no espetáculo simples que se pode abarcar com o olhar. O olho semicerrado já não é receptivo ao encanto da linha bela, desejam-se efeitos mais difusos: a grandeza esmagadora, a extensão infinita do espaço, o fascínio inapreensível da luz, são estes os ideais da nova arte. C. Justi caracteriza Piranesi22 como uma "natureza moderna em sua paixão": o infinito, o mistério do sublime - do espaço e da força - é este seu domínio. Nada mais significativo que tais expressões.

10. Nesse aspecto, é inegável o parentesco de nossa época com o barroco italiano. Ao menos em algumas de suas manifestações. São as mesmas emoções a que recorre Richard Wagner. "Afogar-se - submergir - inconsciente - alegria suprema!" Seu estilo coincide inteiramente com a expressão do barroco e não é por acaso que ele evoca precisamente Palestrina23, cuja mdsica é contemporânea da arquitetura barroca. Não se costuma designar a arte de Palestrina como barroca; contudo, uma análise comparativa dos estilos mostra esse parentesco; mas no momento em que se inicia a decadência de uma dessas artes, a outra mal começa a tomar consciência de si mesma. O que se censura, e é sentido como inadequado na arquitetura, pode parecer perfeitamente acertado na mt1sica, porque é de sua própria natureza a expressão de estados de espírito informais. É precisamente essa regressão da frase rítmica uniforme, da construção rigorosamente sistemática e da articulação clara e ordenada que pode parecer conveniente e até necessário na mt1sica à expressão do estado anúnico; a arquitetura vai mais longe e ultrapassa seus limites naturais. E assim o "elemento vital" da mt1sica de Palestrioa, o que se designou24 como "latência do ritmo" (Ambros), como a introdução de algo "arrftmico" (Seidl) na arte, é saudado como progresso; para a arquitetura, porém, significa a dissolução. A arquitetura em seu apogeu se define pelo sentimento geral e poderoso da felicidade produzida pela fonna clara, precisa e limitada. A Re-

21. "Amai uma mulher se quiserdes, mas não vos esqueçais

23. RICHARD WAGNBR,Sd"mmt/iche Werke, IX, 98 ess. 24. A. SEIDL, Vom Musikalisch· Erhabenen, dissenaçâo de Leipz.ig, 1887, p. 126. AMBROS, Musikge.schichte, IV, 57.

de venerar o infinito."

22. C. JUSTI, Winkúnann, I, 254.

AS RAZÕES DA TRANSFORMAÇÃO ESTILfSTICA

101

nascença possuíra tal sentimento. A beleza suprema, a concinnitas, segundo Alberti, é animi rationisque consors; ela é o estado de perfeição, o objetivo que a natureza procura em todas as suas criações2 5. Onde quer que encontremos a perfeição, sentimos imediatamente sua presença, pois faz parte de nossa natureza buscá-la: natura enim oprima concupiscimus et optimis cwn voluptate adhoeremus. A perfeição é o meio exato entre o de mais e o de menos. A arte informal não conhece limitação, nenhuma expressão que seja esgotamento e conclusão.

25~ Lib. IX; "Quidquid enim

omne ex

concinnitatis

in medium proferat natuta, id

lege inoderatur, oeque studium est majus

ullw:n naturae quam ut quae produxerit allsolute perfecta &int." (Tudo o que a natureu produz 6 determinado pela lei da harmo· nia (concinnilas), não tendo a natureza empenho algum maior do que fazer que todas as suas obras sejam absolutamente perfeitas.) 102

O período clássico da Renascença tem a mesma sensibilidade que a Antiguidade clássica. E para enfatizar com toda a energia a oposição hist6rica ao barroco não conheço nada melhor do que repetir o que Justi cita como característico do sentimento artístico de Winckelmann, considerad