Provas de Liberdade: uma Odisseia Atlântica na era da Emancipação 9788526810693

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Provas de Liberdade: uma Odisseia Atlântica na era da Emancipação
 9788526810693

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Rebecca J. Scott |Jean M. Hébrard

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SEÍ 1^7? Rosalie

PROVAS OE Uma odisséia atlântica na era da emancipação

Éd°u.aliraVjT* ca. 173S

S>;!II1I.fjÊÈt du Sei ;egal

P o r v olta de 1785, u m a m u lh e r foi levada de sua casa n a S enegâm bia e enviada p a ra S a in t-D o m in g u e (fu­ tu ro H a iti), n o C aribe. A queles que a escravizaram lh e d eram o n o m e de Rosalie. Seus esforços posteriores p a ra escapar d a escravidão consti­ tu e m o início d e u m a saga fam i­ lia r que d u ro u cinco gerações e se e sten d e u p o r três c o n tin en tes, em busca d e u m a v ida com d ignidade e igualdade. P rovas de liberdade situa a h istó ria d e R osalie e d e seus descen­ d e n te s n o contexto d e três grandes lu tas antirracistas d o século X IX : a R evolução H a itia n a (1791-1804), a R evolução F rancesa de 1848 e a G u e rra C ivil e a R econstrução nos E stad o s U n id o s (1861-1877). A lforriada

d u ra n te

a

R evolução

H a itia n a , R osalie e sua filha E lisab e th fugiram p a ra C u b a e m 1803. P oucos anos m ais tarde, E lisabeth p a rtiu p ara N o v a O rlean s, onde se casou com u m carpinteiro, Jacques T in c h a n t. N a década de 1830, com a tensão co n tra as pessoas livres d e cor a um entando, a fam ília seguiu para a França. G erações subsequentes de m em bros da fam ília T in c h a n t lu ta­ ra m n o E xército d a U n ião durante a G u e rra C ivil A m ericana, d efende­ ra m a igualdade d e direitos na A s­ sem bléia C o n stitu in te d o estado de L uisiana e criaram u m a rede transa­ tlân tica d e negócios com tabaco que tran sfo rm o u seu passado caribenho em u m a vantagem com ercial. N o en tan to , a fragilidade da liberdade e d a segurança ficou clara quando, u m século m ais tarde, a b isneta de

U niversidade Estadual de C ampinas Reitor

J osé Tadeu J orge Coordenador Geral da Universidade

Á lvaro Penteado C rósta

Conselho Editorial Presidente

Eduardo G uimarAes Esdras Rodrigues Silva - G uita G rin D ebert Jo A o L u iz de C arvalho P into e Silva - L u iz C arlos Dias

Luiz Francisco D ias - Marco Aurélio C remasco Ricardo Antunes - Sedi H irano

Rebecca J. Scott Jean M. Hébrard

Provas de liberdade ÜMA ODISSÉIA ATLÂNTICA NA ERA DA EMANCIPAÇÃO

Tradução

Verajoscelyne

©

UtUCAMP

Universidade Estadual de C ampinas Reitor

J osé Tadeu J orge Coordenador Geral da Universidade

Álvaro Penteado C rósta g D I T O WA Conselho Editorial Presidente

Eduardo G uimarães Esdras Rodrigues Silva - G uita G rin D ebert João Luiz de C arvalho Pinto e Silva - L u i z C arlos D ias Luiz Francisco D ias - Marco A urélio C remasco Ricardo Antunes - Sedi H irano

Rebecca J.Scott Jean Aí.HébiVPd

Provas de liberdade UMA ODISSÉIA ATLÂNTICA N&JsRA DA EMANCIPAÇÃO

Verajoscelyne

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor n o Brasil a partir de 2009. FICHA CATALOGRAf ICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO RebeccaJ. (Rebecca jarvis), 1950Provas de liberdade: Uma odisséia atlântica na era da emancipação / Rebccca J. Scott, Jcan M. Hébrard; tradução: Vera Joscelyne - Campinas, SP: E ditora da Unicam p, 2014. Scor,

Sco85p

1. Tinchant, Família. 2. Negros - Atlântico, Oceano, Região - Migração. 3. Negros Atlântico, Oceano, Região - Condições sociais. 4. Negros - Atlântico, O ceano, Região Biografia. 5. Escravos - Atlântico, Oceano, Região - Migração. 6. Escravos - Atlântico, Oceano, Região - Condições sociais. 7. Escravos - Atlântico. Oceano, Região - Biografia. 8. Fumo - Comércio. 1. Hébrard, Jcan M . (Jcan M ichcl), 1944. II. Joscdyne, Vera Lúcia Mello. 111. T itu la CDD 305.896 301.45196 920.93014493 301.4493 ISBN 978-85-268-1069-3 338.476797 índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4.

Tinchant, Família Negros - Atlântico, Oceano. Região - Migração Negros - Adântico, Oceano, Região - Condições sociais Negros-A tlântico, Oceano. R egião-Biografia

5. 6. 7. 8.

Escravos - Adântico. Oceano. Região - Migração Escravos - Atlântico, Oceano, Região - C ondições sociais E scravos-A dântico, Oceano, R egião-B iografia Fumo - Comércio

305.896 305-896 301.45196 920.93014493 305.896 301.4493 920.93014493 338.476797

Copyright © by RebeccaJ. S cott e Jcan M . H ébrard Copyright © by President and Fellows o f H arvard Collcge Copyright O 2014 by Editora d a Unicam p

T ítulo original: Freedompapers: a n A tla n tic odyssej in tb e age o f em ancipatioa

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 d e 19.2.1998. É proibida a reprodução total o u parcial sem autorização, po r escrito, dos detentores dos direitos. Printcd in BraziL Foi feito o depósito lcgaL Direitos reservados à Editora d a Unicamp Rua C aio Graco Prado, 50 - Cam pus Unicam p CEP 13083-892 - Cam pinas - SP - Brasil Tcl./Fax: (19) 3521-7718/7728 wwwxditorajmicamp.br - vendas@ editora.unicamp.br

Para nossos companheiros PeterRailton eM artha Jones

!

í

Sumário

Abreviações.............. ............... ... ................... ........... .... ........... ...........

11

Prólogo: O fa b rica n te de charutos escreve para o general...................... ...........

13

1. "Rosalie, m ulher negra de nação PoulardT..................... ..... ........ ................ 2. *Rosalie... m inha escra va ................................................................._...............

21

3. A cidadã R osalie........................................................ ........................... ...... ....

73

4. A travessia do G olfo........................................................................................... 97 5. A terra dos direitos do hom em ................................................................ ......... 121 6. Joseph e seus irm ãos......................................................................... .................. 14 1 7. "Ê preciso fa ze r com que o term o direitos públicos ssgntfsque algum a coisa*............................................... - ................................................ . Ié9 8. H orizontes de comércio....................................... ......................- .................— 191 9. Cidadãos para além da nação..................................... ........... ...... .......... ....... 219 Epílogo: mPor um m otivo racial*.................-

......... .......................................... 2 '3

Agradecim entos e colaborações ..................- ............................. ....... .... .............. 2*1 ín d ice onomástico........ ..................... ....... ............... .............. —......... .................... 271 Caderno de im agens

... 177

Três gerações da famflia Vincent/Tinchant

Louls Nicolas François DUHART 1772-1849

1

Maric Françoisc

I

Plcrre DUHART 1810-1877

d ite Suzette BAYOT ca. 1778-1840

Cavado com Octavie Rieffel

loscph T1N CH A N T 1766 ?

M ichcl fetienne H enri M arie Françoise V IN C EN T — — d ite RfiSâIic_[VINCENTj ca. 1730-1804 ca. 1767 ?

1

Louis Alfrcd DUHART 1814-1870

1 Françoit Louii T IN C IIA N T 1824 1900

~

loscph. Ilosê] T1NCHANT 1827 1899 ('a sa d o com Stêphanic Gon rales

1------------------------lacques T IN C H A N T ca. 1798-1871

V IN CEN T 1799-1883

1

1

Pícrrc.

luste [lulc}) T IN C H A N T 1836-1902

T IN C IIA N T 18331866

I

1 Juste T héodore

M arie-Louise d ite Résinette

1 François Em est TIN CH A N T 1839 1923 C asado com H ubertine Plom deur D epois casado com M ane C athenne L éonardine Yonck

Etienne Hilaire d it Cadet

I A ntoine Edouard T IN C H A N T 1841-1915 C asado com

Louise Dcbergue

Nota: O s termos dil e dite (dito, dita) eram usados na linguagem francesa dos registros Jurídicos para indicar um apelido ou pseudônimo. Usamos uma linha continua (•) para denotar um casamento reconhecido pelo Estado; uma linha interrompida | —) para significar um relacionamento conjugal n io reconhecido pelo Estada Nomes pelos quais os indivíduos sâo identificados com maior frequência no testo estio sublinhados.

*

r ► r . >•

Abreviações

Arquivos AANO Archives o fth c Archdiocese ofN ew Orlcans, New Orlcans (Arquivos da arquidiocese de Nova Orleans, Nova Orleans) ADPA Archives départementales des Pyrénées-Atlan tiques, Pau (Arquivos departamentais dos Pirineus Atlânticos, Pau) AC-Gan: Archives communaies de Gan (Arquivos comunais dcG an) AGI Archivo General de índias, Seville (Arquivo Geral das índias, Sevilha) AGR Archives générales du Royaume, Bruxelles (Arquivos Gerais do Reino, Bruxelas) MJ: Ministère de Ia Justice (Ministério da Justiça) ANC Archivo Nacional de Cuba (Arquivo Nacional de Cuba) AP: Asuntos Políticos (Assuntos Políticos) CCG: Correspondência de los Capitanes Gcncrales (Cor­ respondência dos Capitães Generais) FMG: Fondo Máximo Gómez (Fundo Máximo Gómez) ANS Archives narionales du Sénégal (Arquivos Nacionais do Senegal) ASVG Direction générale Victimes de la Gucrre, Service archives et documentarion, Bruxelles (Direção geral Vítimas da Guerra, Serviço de arquivos e documentação, Bruxelas)

11

BL Baker Library, H istorícal C ollections, H arvard Business School (Biblioteca Baker, Coleções Históricas da Escola de Administração de Empresas) R.G.D un: R.G. D un & C o. CoUcction (Coleção R . G . D un & Cia) CADN C entre des archives diplom atiques de N antcs (C entro dos arquivos diplomáticos de Nantes) CARAN C entre d accueil e t de recherche des Archives nationalcs, Paris (C entro de acolhim ento e pesquisa dos Arquivos na­ cionais, Paris) M i: M icroíilm des Archives nationalcs (M icrofilm e dos Arquivos nacionais) SOM: Séries O utre-m cr (Série Além-mar) CEGES-SOMA C e n tre d ’études et de docum entation G ucrre e t sociétés contem poraines, Studic-cn D ocum entatiecentrum O orlog en Hedendaagse, Maatschappij, Bruxclles (C entre de estudos e de docum entação G uerra e sociedades contem porâneas, Bruxelas) SRA; Services de renscignemcnt et da ctio n (Serviço de in­ form ação e de ação) CO , N O Conveyancc Office, N ew Orleans (C artório de registro de transmissão de propriedades, Nova Orleans) COB: Conveyance O ffice Books (Registro de transmissão de propriedades) D G H R D irection générale H um an resources de Farmée belge, Q uarticr Reine Élisabeth, Bruxelles (Arquivos do D epartam ento de Relações H um anas d o Exército da Bélgica, Q uarteirão Rainha Élisabeth, Bruxelas) FA FelixArchief, A ntw erp (Arquivo Felix, A ntuérpia) MA: M odem A rchief (Arquivo M oderno) MGR-SGB M ahn-und Gcdenkstâtte Ravensbrück/StiftungBrandenburgische G edenkstãtten, Ravensbrück (M em ória e Memorial de Ravensbrück/Fundação do M emorial de Brandemburgo, Ravensbrück)

12

MMA M obile M unicipal Archives, M obile, A labama (Arquivo Municipal de Mobile, Mobile, Alabama) NAUK N ational Archives o f the U nited Kingdom, Kew (Arquivos Nacionais do Reino Unido, Kew) CO : C olonial Office Records (Documentos da Secretaria Colonial) T : Treasury Rccords (Documentos do Tesouro) W O : War O ffice Records (D ocum entos da Secretaria da Guerra) NONARC New Orleans N otarial Archives Research C cnter (Centro de Pesquisa dos Arquivos Notariais de Nova Orleans) N OPL N ew O rleans Public Library (Biblioteca Pública de Nova Orleans) CA: C ity Archives (Arquivos da Cidade) LD: Louisiana Division (Divisão da Luisiana) RA Rijksarchief te A ntw erpen, A ntw erp (Arquivos do Estado de Antuérpia, Antuérpia) TFP Tinchant Family Papers (Documentos da Família Tinchant) FC: Courtcsy o f Françoise Cousin (Cortesia de Françoise Cousin) II: Courtesy oflsabellc Ivens (Cortesia de Isabelle Ivens) MK: Courtesy o f M ichéle KJeijncn (Cortesia de Michélc Kleijnen) M L W : Courtesy o f Marie-Louise Van Vclsen (Cortesia de Marie-Louise Van Velsen) PS: Courtesy o f Philippe Struyf I(Cortesia de Philippe Struyf) UFL University o f Florida George A. Smathers Libraries, Gaines* ville (Biblioteca G eorge A. Smathers da Universidade da Flórida, Gainesville) JP: Jércmic Papers (Documentos de Jérémic) SC: Special Collections (Coleções Especiais) U N O University o f New Orleans, Earl K. Long Library (Univer­ sidade de Nova Orleans, Biblioteca Earl K. Long) LSCD: Louisiana and Special Collections D epartm ent USNA U nited States N ational Archive (Arquivo Nacional dos Es­ tados Unidos)

13

Outros AGH exp.

A ssociarion de généalogie d ’H aiti (Associação de G enealogia d o H aiti). expediente (arquivo)

fbL fo lio Ieg.

legajo (maço)

RG

R ccord G ro u p (G ru p o de docum entos)

sig.

signatura (núm ero de cham ada)

14

Prólogo: 0 fabricante de charutos escreve para o general

E m 1899, a lu ta m ilitar p ela independência de C u b a do governo espanhol, que d u ra ra décadas, já havia term inado. O cenário, n o entanto, não era o esperado p e lo s p a trio ta s cu b an o s q u a n d o a guerra com eçara. N o s ú ltim os meses do c o n flito , o s E stados U nidos tin h a m in terv in d o e, conform e as tropas espa­ n h o las se retiravam d a ilha, a autoridade foi transferida não para as figuras que c o m a n d a ra m a rebelião, m as p a ra a ocupação m ilita r norte-am ericana e o gov e rn o m ilitar subsequente.

Durante todo o verão e o outono daquele ano, cubanos de todas as partes da ilha escreveram ao general Máximo Gómez, o respeitado líder que havia sobrevivido à luta, para lhe falar sobre as dificuldades enfrentadas naquela que des imaginaram se tornaria uma Cuba livre c independente. Muitas vezes sem terra e sem trabalho ou recursos, veteranos comuns procuravam seu antigo comandante em busca de conselho c assistência. Em centenas de cartas, des expressavam suas aspirações à cidadania cm uma nova nação, aspirações que agora pareciam frustradas. U m a carta, d a ta d a d e setem bro de 1899, escrita em inglês n o p a p d tim bra­ d o d e u m a em presa, n o e n ta n to , vinha de um a fonte incom um e levava um p e d id o igualm ente incom um . O a u to r n ã o era cubano e sim um com erciante d e ch aru to s d e A n tu é rp ia cham ado É douard T in c h an t. Ele se dirigiu ao ge­ n e ral G ó m e z d a seguinte form a: Ardentemente solidário desde o princípio com a causa cubana, tenho sempre mc orgulhado de ser um de seus mais sinceros admiradores. Ficarei extremamente honrado se o senhor tiver a bondade de me autorizar a usar seu ilustre nome para a marca de um de meus melhores artigos, com seu retrato ador­ nando as etiquetas, na forma da prova em anexo1.

15

N a c a rta , T in c h a n t sugere q u e ele talvez "n ã o fosse to ta lm e n te d e sc o n h e ­ c id o a a lg u n s d o s so b rev iv en tes d a ú ltim a luta", referin d o -se aos 30 a n o s d e desafios c u b a n o s a o g o v e rn o e sp a n h o l desde a G u e rra d o s D e z A n o s (1868 a 1878). E x p lic a , ta m b é m , q u e tin h a sid o " u m c o n trib u in te c o n s ta n te e h u ­ m ild e p a ra o F u n d o p a ra C u b a , e m u ito s são seus c o m p a trio tas, o s c u b an o s, e seus se g u id o re s a q u e m d e i a lg u m a ajuda*. A esperança d e T in c h a n t e ra q u e a lg u n s d o s co leg as d e G ó m e z , p re su m iv e lm e n te aqueles q u e tin h a m e stad o exilad o s e m N o v a O rle a n s n a d é c a d a d e 1860, p udessem a in d a "lem brar-se d e m im c o m o u m m e m b ro d a C o m p a n h ia C d o Sexto R eg im e n to d e V oluntários d a L u isia n a , d iv isão B a n k s, e m 1863; c o m o re p re se n tan te d o 6fi D is trito d a c id a d e d e N o v a O rle a n s, n a C o n v e n ç ã o C o n stitu c io n a l d o e stad o d a L u isian a e m 1867-1868; e c o m o u m fa b ric an te d e c h a ru to s cm M o b ile, A la b am a, de 1869 a té 1877”. F alan d o d e v e te ra n o p a ra v e te ra n o, T in c h a n t estava d a n d o a G ó m e z u m a p is ta so b re su a p ró p ria p o lític a e id e n tid a d e . O Sex to R e g im e n to d e V o lu n tário s d a L u isia n a e ra u m a U nidade^do e x érc ito d a U n iã o re c ru ta d a d u ra n te a G u e r r a C iv il e flu e o s h o ifiê n s d e c o r livres o u re c e n te m e n te lib e rta d o s-e m N o v a O rle a n s. A c o n v e n ç ã o d e 1867-1868 d a L uisiana tin h a e la b o ra d o u m a d a s C o n s titu iç õ e s e s ta d u a is m a is ra d ic a is ja m a is v ista s, c o m e ç a n d o c o m u m a g a ra n tia e n fá tic a d e q u e to d o s o s c id ad ão s d o estad o , in d e p e n d e n te m e nt e ^ k c o r, te n a m o s m esm o s d ireito s “civis, p o lítico s e púbJ ic o T T C o m o era p ossível q u e u m h o m e m d a B élgica tivesse sido u m so ld a d o d a U n iã o c u m r e p re se n ta n te e le ito p a ra a q u ela assem bléia? T in c h a n t p ro v a v elm e n te suspeitava q u e M á x im o G ó m e z iria se p e rg u n ta r a m e s m a c o isa e, p o r essa razão, ele já dava ind icaçõ es p a ra a resp o sta: N ascido na França em 1841, sou descendente de haitianos já que tanto m eu pai quanto m inha mãe nasceram em Gonaives no começo deste século. Tendo se estabele­ cido em Nova Orleans após a Revolução, meu pai, embora em circunstâncias modestas, partiu da Luisiana para a França com o único objetivo de criar seus seis filhos em um país em que nenhum a lei abominável ou preconceito ignorante pudesse im pedir que L eles se tom assem HOMENS.

r

A q u i, e n tã o , estava a q u e stã o c rucial, u m a evocação d a R e v o lu ção H a itia n a c u m a p e lo im p líc ito a o a n tirra c ism o q u e , T in c h a n t sabia. G ó m e z e n d o s­ sava, c o m ê n fa se p a rtic u la r cm u m a m a tu rid ade c m ascu lin id a d e h o n radas. A c a rta d e E d o u a rd T in c h a n t retratav a umj m u n d o a tlâ n tic o )ern q u e várias (ju ta s so b re ra ça e d ireito ? estavam entrelaçad as, e n o q u a f idéias c c o n c e ito s

16

H avana a acrescentar brilho àqueles que eram, m uito provavelmente, charutos enrolados na Bélgica e não em Cuba? P a ra ver se. o u comovo relato de Édouard pode ser coeso, podem os acom­ p a n h ar rastro d o itinerário de sua ramífiat usando osíregistros^nantidos por padres, tabeliães, oficiais e recenseadores locais em C uba, na Luisiana, no H aiti, na França, no México e na Bélgica. Surpreendentemente, esses registros acabam p o r nos levar a um período ainda mais antigo, para um lugar que a carta de Édouard T in ch an t não m encionou: o vale m édio do rio Senegal n a Á frica O cidental, na época em que cativos africanos crãm tíèportados para as A m éricas p ara serem vendidos com o escravos., _ ^ O rc tra to que emerge é o de um a família com um compromisso obstinado: I exigir dignidade e respeito. Além disso, m em bros de cada uma de suas gerações , m ostravam-se conscientes do papel crucial d o sdocum cntos p araa reivindica- \ ção d e seus direitos, c se organizavanypara que esses docum entos fossem \ produzidos — registros sacramentai^quando levavam uma criança para ser ' batizada, registros notariais quando estabeleciam um contrato, cartas ao edi- ! t o r d e jo rnal q u an d o envolvidos em um debate público, correspondência privada quando transmitiam notícias entre eles próprios. Para muitos membros , . . -v d a fam ília a nacionalidade individual c a cidadania formal não estavam d a ra(J7 m en te definidas, m as um a pessoa ainda podia disputar espaço colocando palavras ncTpãpêíTPor exemplo, os docum entos de alforria ela b o ra d a para p rotege r os m em bros das primeiras gerações jla escravidão ou de uma nova escravizaçáo revelam-se criações de extrem a complexidade, com um poder ao m esmo tem po mais frágil e m aisjeal do que se podería imaginar. Um a odisséia familiar que começou com uma passagem da Scnegàmbia / para Saint-D om ingue n o final do século XVIII, continuou ate Santiago dc I C uba, N ova O rleans, P orto Príncipe, Pau, Paris, Antuérpia, Veracruz e Mobile, com várias viagens de volta à Luisiana c à Bélgica. A cada passo do cami- | oO ) n h o esses viajantes interpretavam c transm itiam para o u tro sa trilha que a I fam ília tinha seguido, e enquadravam a viagem em termos que poderíam va* lidar as escolhas que tinham feito e a posição social que esperavam obter. A

carta de Édouard Tinchant para Máximo Gómez foi um desses reenquadramentos, mas houve muitos outros. Um lugar cruciai para a história da família é a cidade de Nova Orleans. Em 1809, milhares de refugiados originalmente vindos da colônia franco-caribcnha de Saim-Domingue — recentemente transformada na nação independente do Haiti — chegaram à Luisiana após terem sido expulsos de seu primeiro exílio em Cuba. Um desses refugiados era a mãe de Édouard Tinchant, Élisabeth Vincent. Portanto, embora Édouard Tinchant tenha ocultado alguns dos detalhes da história de sua vida para que esta se ajustasse a suas metas, ele era realmente de ascendência haitiana — embora não exatamente da maneira que sugeria. E foram os anos de sua mãe em Nova Orleans, durante os quais ela se casou com o homem chamadoJacques Tinchant, que deixaram os traços arquivísticos fundamentais para narrar a história dessa parte da família. A história que se desenvolve é tanto pública quanto privada, pois Édouard Tinchant e seus antepassados e descendentes repetidamente buscavam driblar ou dcsáfiafdiferehtes variantes do preconceito racial e da exclusão. Quando ( elTse apresentou em 1867-1868 para participar na elaboração da notável Constituição estadualdaLuisiana, na época da Reconstrução, Édouard enco­ rajava seus colegas a defender os direitos civis das mulheres, independente­ mente dã cor, e a reconhecer uniões conjugais que não tinham sido formali­ zadas pelo rnatrirnônio. Nesse esforço, vemos o reflexo de uma lembrança familiar dos obstáculos que tinham confrontado as gerações antes dele. Em­ bora Édouard não tivesse como saber, sua insistência no direito ao casamento e sua rejeição ao estigma — descrevendo a si próprio como um homem de cor e um "filho da África" — também prefigurou os desafios com que alguns dos que vieram depois dele iriam se deparar. Édouard Tinchant morreu exilado na Inglaterra, tendo trocado o sul dos Estados Unidos pela Bélgica em 1878, após o colapso da Reconstrução, e tendo fugido da Bélgica durante a invasão alemã na Primeira Guerra Mundial. A história que se inicia com a carta a Máximo Gómez podería logicamente se concluir com o exílio de Édouard e sua morte em 1915. Mas em 1937 um ar­ tigo na imprensa britânica deu à sobrinha-neta belga de Édouard — Marie-José Tinchant — um momento de breve visibilidade pública na Inglaterra, no ano em que o desfecho da invasão da Etiópia por Mussolini e a formação do Eixo Roma-Berlim eram manchetes em todos os jornais. O episódio co­ meçou quando os pais do noivo belga de Marie-José contestaram os procedi­ mentos preparatórios do casamento em um cartório de Londres. Entrevistada por um jornalista, Marie-José Tinchant explicou, "Não sou uma moça branca...

18

ten h o cor, e os pais de A ndré não querem sequer ouvir falar de nossa união” M as ela insistiu: “N ós nos casaremos”. O destino de Maric-José T inchant após seu casam ento e suas atividades subsequentes na resistência belga aos nazistas tornou-se assim um epílogo dram ático para a odisséia de sua família2. Este livro é um experim ento que pode ser caractcrizadg_conio de m icro-história posta em m ovim ento. Ele se apoia na convicção de que o estudo de um local ou evento cuidadosamerite escolhido, examinado bem dc perto, pode revelar dinâm icas que não estão visíveis através das lentes mais familiares dc região c nação. Nesse caso, seguimos um a cadeia interconectada dc eventos definidos pelo itinerário d e um a fam ília. É claro, não há nada “micro” no m undo atlântico d o século XIX, mas mesmo nesse quadro tão amplo, a aná­ lise mais profunda pode surgir da intensa atenção ao particular. N ão reivindicamos qualquer tipicidade ou representatividade para a famí­ lia V inccn t/T in ch an t. N ossa investigação é moldada, em vez disso, pelas vicjssitudes de um a genealogia e u m padrão de atividade que não p oderiamos t e r previsto. Com eçam os com um conjunto de p ista s bastante específicas c enigm as interpretativos que surgiram de um a descoberta imprevista nos ar­ quivos cubanos. Estes, p o r sua vez, nos levaram ao âmago do problema da li­ berdade e dos fe n ô m e n õ rd era ça , racismo e antirracismo. A história dessa fam ília se desenvolveu em um a narrativa de escolhas individuais e coletivas condicionadas pela escravidão, pela guerra c pela hierarquia social. Apesar disso, os m em bros dessa família abriram seu cam inho com discernimento e habilidade através da era da emancipação, cujas complicações se tom am mais visíveis à m edida que seguimos suas trilhas sinuosas. Essas vidas foram carac­ terizadas p o r um m ovim ento contínuo dc pessoas e de papéis através do C a­ ribe, d o G olfo d o México e do próprio Adânrico. O s capítulos que se seguem norm alm ente começam com um a chegada e term inam com um a partida, re­ fletindo fases diferentes dessa odisséia. A cada passo do cam inho, ademais, alguém usou papel e tinta, ou fez com que outros usassem, construindo um arquivo de m ovim ento e de memória.

Notas 1 2

Édouard Tinchant para Máximo Górocz, 21 dc setembro de 1899, sig. 3868/4161, kg. 30. Fon­ do Máximo Gómcz, Archivo Nacional de Cuba. Veja “Wedding-Day Bid to Stop a Marriagc’, Daily Express (Londres), 10 de abril de 1937,13, e “Fled co W eàSeaeúyin\jonàorT,D aifyM ail (Londres), 9 de abril dc 1937,11.

19

Ti.

CAPÍTULO 1

“Rosalie, mulher negra de nação Poulard”

Q u a n d o Édouard T inchant, escrevendo ao general M áximo G óm ez em 1899, referiu-se a si mesmo com o “descendente de haitianos”, ele conectou sua pró ­ pria história à era durante a qual seus pais tinham sentido as ondas de choque d e três grandes revoluções — aquelas que fizeram surgir os Estados Unidos d a A m érica, a R epública francesa e a nação do H aiti. Q uando falou de si m esm o com o “um filho d a África”, ele tam bém assinalou o lugar de seus ante­ passados entre aqueles n o C aribe cujo estatuto era o de escravos, ou cuja condição se equilibrava precariam ente entre a escravidão e a liberdade1. Para vários hom ens e m ulheres africanos trazidos com o escravos para o C aribe, aquelas não tinham sido as primeiras revoluções que haviam encon­ trado. N o vale do rio Senegal, na África O cidental, na região chamada Fuuta T ooro, um setor d a elite clerical islâmica havia dirigido um m ovim ento que derrocara a aristocracia m ilitar na m etade da década de 1770 e trouxera forçosam ente p a ra o debate p úblico a questão d a legitim idade de vender seus conterrâneos m uçulm anos com o escravos para os europeus. O Almamy (ou im am ) q u e governava F uuta Tooro, depois daquela revolução, obrigou os franceses a assinar um tratado pelo qual concordaram em não mais transportar quaisquer de seus súditos para o comércio de escravos. Apesar disso, vizinhos e rivais que rejeitavam a autoridade d o Almamy continuaram a atacar seu ter­ ritório e a capturar pessoas que seriam vendidas e deportadas para as Américas2. O povo de Fuuta Tooro, ju n to com outros que falavam a língua Pulaar, era cham ado pelos franceses de “Foulcs” ou de “Poules”, termos que, nas Américas, m uitas vezes se transformavam em “Poulard”. Q uando as pessoas na colônia franco-caribenha de Saint-D om inguc se referiram a uma cativa jovem com o “Rosalie, negra de nação Poulard”, era sua origem cm Senegâmbia que estava sendo sugerida. A trilha de papéis que liga Édouard T inchant a essa m ulher cham ada Rosalie envolve dois documentos, cada um deles criado em um mo-

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mento de luta e mais tarde depositado com autoridades locais na tentativa de obter um estatuto legal, ainda que frágil. A fim de provar que ela podería, de direito, adotar o sobrenome de seu pai apesar de ter nascido de pais não casados, a mãe de Édouard Tinchant, Élisabeth Dicudonné, foi a um tabelião público em Nova Orleans em 1835 com uma cópia de sua certidão de batismo. Segundo esse documento, ela tinha nascido cm 1799 na colônia de Saint-Dominguc, no meio da Revolução Hai­ tiana. A mãe de Élisabeth era uma mulher negra livre cujo nome era Marie Françoisc, mas que era chamada de Rosalic. Um francês, Michel Vincent, reconheceu no ato batismal que era o pai de Élisabeth. Tendo examinado o documento, o tabelião de Nova Orleans autorizou que Élisabeth adotasse o sobrenome Vincent e, como era prática normal, arquivou uma cópia do ato em seu volume encadernado de registros cartoriais para aquele ano9. Os nomes de Michel Vincent c Rosalic aparecem uma segunda vez nos documentos que eles depositaram em 1804 com autoridades francesas em Santiago de Cuba. Eles fugiram para Cuba não como resultado da rebelião de escravos na planície ao norte de Saint-Dominguc cm 1791. mas, ao contrário, para escapar da guerra que se alastrou pelo campo em 1802, quando Napolcáo Bonaparte enviou uma força expedicionária para tentar destruir o poder dos generais negros e pardos que governavam a colônia em nome da França, o primeiro entre eles sendo Toussaint Louvcrture. Em sua fuga, Michel e R o s a lie levavam consigo uma carta de alforria que a identificava mais plcnamcntc como "Marie Françoisc, dita Rosalie, negra de nação Poulard" Juntos, esses documentos confirmam que a avó de Édouard Tinchant, Rosalie, era uma sobrevivente do cativeiro, da travessia da África Ocidental para o Caribe c da escravização4. As palavras "de nação Poulard” são sugestivas, mas não são geográfica ou cronologicamente precisas. Na medida em que os capitães dos navios negreiros faziam suas aquisições no litoral da Sencgâmbia, eles raramente categori­ zavam cativos individuais com alguma precisão. Para o comprador e o vende­ dor em um porto da África Ocidental, a troca de cativos por mercadorias era normalmentc caracterizada por uma frase genérica como "jovens cativos, pièccs fin d e sem qualquer defeito”. Pièce d ln d e era uma unidade baseada no valor de troca de uma peça de tecido estampado da índia, o custo de um cativo saudável do sexo masculino entre as idades de 14 c 35 anos. Nomes individuais c ctnicidade normalmente não eram registrados4.

Era, ao contrário, na chegada às A ntilhas que os capitães dos navios come­ çavam a se gabar das “nacionalidades” daqueles que iriam vender. O navio L a Valeur, po r exemplo, deixou o porto francês de N antes dia 22 de junho de 1786 para Saint-Louis d u Sénégal, onde, em fevereiro, embarcou cerca de 74 cativos. D ois meses mais tarde, as Affiches Am éricaincs descreviam a carga d o L a Valeur oferecida à venda n o p o rto d e Cap-Français, Saint-D om ingue, com o “um a bela carga de negros de nações Yolof, Poulard e Bambara”6. E m alguns casos, essas marcas “nacionais” eram simplesmente um indica­ d o r tosco m as eficaz dos portos africanos onde atracava o navio negreiro. A palavra “Senegal”, p o r exemplo, era m uitas vezes usada para se referir generi­ cam ente àqueles com prados n o p o rto de Saint-Louis du Sénégal, perto d a foz d o rio SenegaL M as em m uitos casos os vendedores usavam um rótulo que designava não só um local de aquisição mas tam bém um local de origem, definindo um povo p o r referência a um a região, um grupo linguístico ou uma entidade política. Esse sistema de designação dependia de um a geografia eu­ ropéia da África que era flexível e até certo p o n to imaginária, e que atribuía características específicas a grupos particulares, que eram , po r sua vez, asso­ ciados a lugares imprecisam ente definidos. O s capitães dos navios e os comer­ ciantes m uitas vezes usavam essas associações para descrever africanos em term os que poderíam evocar imagens favoráveis de habilidades, robustez, força, beleza o u afabilidade. O colono M oreau de Saint-Méry, po r exemplo^ se entusiasm ava quando falava dos cativos a que se referia mais geralmente co m o “sencgaleses”, evocando tanto o p o rto de Saint-Louis du Sénégal quan­ to o vale do rio Senegal mais amplamente. Esses eram escravos “superiores”, escrevia ele, “inteligentes, bondosos, leais, até n o amor, agradecidos, excelen­ tes em pregados dom ésticos”7. M oreau de Saint-M éry identificou um grupo de cativos intim am ente rela­ cionados com o term o “Poulard”, um a palavra que ele considerava um a defor­ m ação popular do nom e próprio “Foule”. O term o “Foule”, que se originava d o vernáculo “Pullo” (no plural, “Fulbe”), era usado pelos comerciantes, ad­ m inistradores c exploradores de língua francesa para se referir a um povo, m u ito s deles vaqueiros, que norm alm ente vivia no vale m ediano do rio Se­ negal. M oreau distinguia os Foules, p o r exemplo, dos Jo lo f (seu term o era “YoIofFes”) que dom inavam o vale inferior bem com o grande parte da área in terio r e litorânea mais para o sul8. E m teoria essas designações se destinavam a identificar lugares de origem dos cativos, mas tam bém refletiam o senso comum dos donos de escravos com relação a sua aparência: M oreau e outros acreditavam que os Poulards eram

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caracteristicam ente altos, m agros e “acobreados”9. E tnógrafos e histo riad o res vêm a d o ta n d o u m uso m ais am plo dos term os m odernos “Pcul”, “F ulani” o u “Fulbe”, distin g u in d o entre m uitas das populações hoje extrem am ente disp er­ sas que p o d e m falar variantes da língua cham ada Pulaar. O s estudiosos geral­ m en te evitam a atribuição de elem entos culturais atem porais e características físicas específicas ao grupo, concentrando-se em vez disso n a variabilidade linguística, cu ltu ral e econôm ica entre aqueles q ue m igraram em m o m e n to s diferentes, e nas transform ações que ocorreram à m edida que eles e n tra ram em c o n ta to com o u tro s g ru p o s10. N o e n ta n to , p ara os com erciantes e fazendeiros d o século X V III q u e a tri­ b u íam “nações” àqueles q u e c o n stitu íam os carre g am en to s h u m a n o s q u e procuravam vender o u com prar essas sutilezas só eram vistas raram en te. E m Saint-D om ingue o ró tu lo “Poulard” parece sim plesm ente te r im p lica d o um to m positivo, significando um grupo em que se esperava que os h o m en s fossem bons p ara lid ar com os anim ais e as m ulheres caracterizadas p o r suas h a b ili­ dades dom ésticas e p o r sua beleza. É claro, p ara aqueles assim ro tu la d o s é possível que tam bém correspondesse a algum grau de h istó ria e lín g u a c o m ­ p artilh ad as11. E m bora um a proporção significativa dos cativos d u ra n te os p rim e iro s anos d o com ércio p a ra S aint-D om ingue tivessem v in d o da S cn cg àm b ia, aqueles d en o m in ad o s P oulard eram superados p o r o u tro s d esignado s B am b ara, Se­ negal, Soso e M andingo. A relativa raridade d a designação " P o u la rd ” to rn a provável que, q u a n d o variantes d a frase “Rosalie d e n a çã o P o u la rd ” foram usadas nos registros d o d istrito d e Jérém ie em S a in t-D o m in g u e p a ra id e n ­ tificar um a m u lh er rclativam cnte jovem , elas realm ente se referissem à m esm a pessoa12. A designação “d e nação P o u lard ” p o d e te r sid o re fo rç a d a p e la p ró p ria Rosalie. C ham ar-se a si m esm a de m em bro d a nação P o u lard p o d e ría , n o final d o século X V III, já ser um a to p o litica m en te ressonante. O s fran ceses que con tro lav am a ilha d e Saint-L ouis d u Sénégal estavam e n v o lv id o s c m um conflito com um novo regim e n o vale central, cujas po líticas levantavam o bs­ táculos à d eportação d e cativos m uçulm anos p a ra o c o m é rcio a tlâ n tico . R u­ m ores tin h a m chegado à França e à Inglaterra m e tro p o lita n a s d e q u e havia um a política en tre os Poulcs agora g overnados p o r u m h o m e m c h a m a d o o A lm am y q ue reivindicava o d ireito de b lo q u ear a passagem d o s m ercadores d e escravos p o r seu território. O ativista inglês anticscravista T h o m as C larkson, após te r entrevistado u m m édico francês q u e tin h a viajado p e la região, escre-

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veu elogiando aquilo que ele considerou as ações diretas contra o comércio escravista, contrastando-as com as hesitações dos governantes europeus13. U m aventureiro francês, M . Saugnier, que tinha abandonado a vida de dono de m ercearia p ara ten ta r sua sorte com o comerciante de escravos n a África, nos deu um relato m eticuloso de sua viagem pelo rio Senegal em 1785 — qua­ se u m anúncio publicitário p ara aqueles que pudessem desejar seguir seus passos. A o descrever a nação dos Poules com o terras que se estendiam desde a cidade de P odor n a parte alta do rio até M atam , uma aldeia fortificada ocu­ pada ta n to pelos Poules quanto pelos Saltinguets, Saugnier deu a seus leitores u m a descrição acrimoniosa que refletia sua própria fhistração com o comer­ ciante de escravos diante da falta de cooperação de seus lideres, particularmente o clérigo cham ado A bdulkaadir Kan: “Em bora a nação Poule habite um a das partes mais bonitas d a África, essa área, no entanto, é extremamente mi­ serável [...] Eles são governados po r um chefe de sua religião — uma m istura execrável de m aom etism o e paganism o — cham ado o Almamy”14. A bdulkaadir K an era um líder m uçulm ano m uito culto que tinha se jun­ tad o a um m ovim ento que denunciava a lassidão religiosa e as razias em que eram capturados para o tráfico adântico até mesmo os dependentes dos cléri­ gos mais respeitados. D epois de sua vitória naquilo que veio a ser conhecido com o a Revolução de Toorobe, Abdulkaadir Kan adotou o titulo de Almamy e governou a área designada com o Fuuta Tooro, que se estendia p o r centenas d e quilôm etros ao longo do rio e através da faixa estreita de terras ricas às suas m argensls. O s súditos d o Almamy geralmente falavam ou aprendiam a falar a língua Pulaar, e aqueles que ainda não eram m uçulm anos se convertiam ao Islã. Para os com erciantes e administradores franceses n a ilha de Saint-Louis, essas pessoas — de quem eles dependiam tanto para suas provisões alimentícias com o p ara um a travessia segura pelo rio — seriam conhecidos como os “negros Poules do país de Tooro" o u simplesmente com o os Poules16. H istoricam ente as pessoas do vale central há m uito vinham participando d e ataques e batalhas em que capturavam hom ens, m ulheres ou crianças que, p o r sua vez, podiam o u ser resgatados p o r suas comunidades de origem ou ser vendidos com o escravos n o comércio doméstico, transaariano ou do Atlân­ tico. O A lm am y introduziu um a nova política, baseada em um a leitura mais exigente d o C orão, e pro ib iu a venda de m ulçum anos para o comércio do A tlântico. E m bora a escravidão doméstica continuasse a ser praticada em seus dom ínios, em 1785 ele já conseguiu im por um tratado aos franceses que os proibia de adquirir cativos em seu território. O controle que o Almamy tinha sobre um segm ento im portante do rio possibilitava que ele inspecionasse os

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c o m b o io s e n ã o p e rm itisse q u e cativos q u e c o n sid erav a c o m o seus sú d ito s fossem v en d id o s aos co m ercian tes n a ilh a d e S a in t-L o u is q u e fo rn e c ia m es­ cravos ao s e u ro p e u s. D a d a s as d ific u ld a d e s d e n a v eg a r p o r a q u e le rio , e a v u ln era b ilid ad e d o c o m b o io d u ra n te a lo n g a viagem , o s c o m e rc ia n te s n ã o tin h a m m u ita escolha a n ã o se r o b e d e c e r ã p ro ib iç ã o 17. A p ó s a ascensão d e A b d u lk a a d ir K a n a o p o d e r, p a sso u a se r m e n o s p ro v á ­ vel q u e os h a b ita n te s d e F u u ta T o o ro fossem tra n s p o rta d o s p a ra as A m éricas c o m o escravos. H av ia, n o e n ta n to , o u tra s trilh a s p a ra o cativeiro, m e s m o d u ­ ra n te o p e río d o e m q u e v ig o ro u o tra ta d o e n tre o A lm a m y e o s franceses. M udanças d e ru m o n as g u e rra s d e exp an são d o A lm am y colocavam cativos nas m ãos d e seus v izin h o s; seus rivais n ã o h esitav am e m te n ta r in cu rsõ es e m seu te rritó rio ; e ele p ró p rio p o d ia u sa r a v e n d a c o m o u m m e io d e c o n tro le in te rn o . G ru p o s arm ad o s d e vários tip o s invadiam F u u ta em b u sca d e p ris io ­ neiros, c o m o o b jetiv o d e vendê-los p a ra os e u ro p e u s e m S a in t-L o u is, G o ré e , o u e m o u tro s lugares. Se n ã o fossem resgatados a te m p o , h o m e n s e m u lh e re s d e lín g u a P u la ar e n tre esses p risio n e iro s acabavam assim n o c o m é rc io e sc ra ­ v ista d e longa d istân c ia 18. O

c o m e rcia n te S au g n ier d e u a seus leito res franceses u m re tra to d e u m a

sequência d e even to s q u e p o d e ría lev ar a esse cativeiro. A o d esc re v e r o p o v o q u e ele cham ava d e S altin g u ets, o a u to r escreveu: Eles são comandados p o r um príncipe que po r direito de nascimento deveria ter sido o rei dos Poules; mas os sacerdotes que o roubaram o perseguiram para que «afw de sua terra. Esse príncipe é corajoso e faz incursões frequentes nas terras dos Poules e vende todos seus prisioneiros para seus vizinhos, os mouros, que os levam para (Saint-Louis du) Sénégal19. C o m e feito , a p ro te ç ã o d o A lm a m y só e ra e fic ie n te o n d e c q u a n d o ele p u d esse im p o r sua v o n tad e , e havia u m g ra n d e n ú m e ro d e rivais a n sio so s p a ra d rib la r seus e scrú p u lo s d e ver seu p o v o v e n d id o a o c o m é rc io d o A d â n tic o . A designação d e R osalie, u m a m u lh e r afric an a escravizada e m S a in t-D o m in g u e , c o m o s e n d o “d e n a ç ã o P o u la rd ”, q u a se q u e c e r ta m e n te sig n ific a q u e ela falava — o u cm u m d e te rm in a d o m o m e n to tin h a fa la d o — a lín g u a Pulaar. M u ito p ro v av elm en te ta m b é m significava q u e ela te ria sid o fe ita p r i ­ sio n eira em alg u m a p a rte d o vale d o rio Senegal o u p e r to d a li, in clu siv e em F u u ta T o o ro , apesar d a p ro te ç ã o fo rm al ofe re c id a p e lo A lm am y A b d u lk a a d ir K a n . Essa designação p o d e ta m b é m te r assin alad o a lg u m a e x p e riê n c ia c o m textos escritos. E m b o ra a região estivesse su je ita à d isru p ç ã o p e la g u e rra , os

seguidores d o A lm am y em Fuuca T o o ro davam m u ito v alor ao a prendizado, à lin g u a g e m e a c o lo c a r p a la v ra s n o p a p e l. A c re d ita v a m a m p la m e n te , p o r exem plo, q u e versos escritos preparados c o m o a m uletos tin h a m o p o d e r d e protegê-los20. A s palavras “d e nação Poulard”, além disso, foram inscritas n o papel ao lado d o n o m e de Rosalie em 1803 p o r M ichel V in cen t, o francês com q u e m ela viveu p o r vários anos e teve filhos. O objetivo d o d o c u m e n to em qu estão n ão era a u m e n tar o valor m o n etá rio d e R osalie, m as sim id entificá-la b a sta n te especificam ente a fim de confirm ar seu estatu to de pessoa livre. É possível q u e o te rm o “P o u lard ” fosse u m a designação q u e seus vizin h o s re co n h e cia m e q u e ela pró p ria reivindicava com orgulho. A lguns p o d e m te r p e rce b id o q u e isso a conectava com um a nação c ujo líd e r atuava p a ra p ro te g e r seus sú d ito s d o com ércio d o A dântico e cujo povo resgatava prisioneiros sem pre q u e p o d ia. P o r o u tro lado n a tio n P oulard tam bém era um ró tu lo im p o sto pelos co m er­ ciantes de escravos e refletia a linguagem com a qual ela seria designada d u ­ ra n te sua prim eira venda n a colônia21. A idade de Rosalie, com o indicada em u m a to d e venda posterior, sugere um a d a ta de nascim ento aproxim ada em 1767, p o rta n to ela teria sido ain d a m enina d u ra n te a revolução em F uuta Tooro. Sua travessia a d ân tica provavel­ m en te o correu na década de 1780 o u bem n o com eço da d écada d e 1790. O p o rto m ais provável de seu em barque foi Saint-L ouis d u Sénégal, o n d e co m er­ ciantes agrupavam prisioneiros ta n to d o rio Senegal q u a n to dos sertões seneg am b ian o s e os encam inhavam p a ra as colô n ias fra n c o -c arib cn h a s e p a ra o u tro s lugares. M u ito s cativos eram levados em navios franceses d a Á frica O c id en tal p ara o C aribe d u ra n te a década d e 1780, m as a m aioria dos co m er­ ciantes d e escravos já n ã o ousava desem barcar em S a in t-D o m in g u e ap ó s a dram ática rebelião d e escravos n o n o rte daquela colônia em 179122. Saint-Louis d u Sénégal era, ele próprio, um local to talm en te atlântico, um a ilha estreita ao longo d o litoral d a Á frica O c id en tal em q u e ad m inistradores, com erciantes, m arinheiros, trabalhadores livres o u escravos coexistiam so b um frágil governo colonial francês. A localização era ta n to p e rfe ita q u a n to precária, pois a ilha estava situada n o rio Senegal cerca d e 29 q u ilô m etro s rio acim a, d istante d a foz, ten d o o territó rio dos M aures (m ouros) ao n o rte , o dos K ajor e J o lo f ao sul, os Vfóialo ao leste e F uuta T ooro e G alam q u e se p o d ia alcançar p o r barco su b in d o o rio. O s p ortugueses tin h a m desem barcado n a foz d o rio Senegal em m eados d o século XV, e em 1659 u m agente d a C o m pagnie française d u C ap-V ert e t d u Sénégal (C o m p a n h ia Francesa d o C a b o Verde e d o Senegal) tin h a con stru íd o u m fo rte n a ilha23.

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A localização estratégica de Saint-Louis m uitas vezes era um a tentação p ara que as potências europeias rivais entrassem sem permissão. Interessados p o r acesso ao rio, os ingleses capturaram e m antiveram a cidade p o r uns pou co s meses em 1693 e depois, um a vez mais, durante alguns anos após 1758. E m b o ­ ra o controle real da população heterogênea e do com ércio variado d a peque­ na ilha não necessariamente exigisse declarações de soberania formais europeias, o Tratado de Paris de 1763 conferiu autoridade sobre a região aos ingleses. D urante o período de ocupação da ilha pelos ingleses, os nascidos n o local, geralmente de ascendência mista, cham ados de habitants, exerceram um grau substancial de autonom ia prática. Um tratado p osterior de 1783 rc in sd tu iu o controle francês, mas os habitants estavam ansiosos para m anter a liberdade de ação que tinham adquirido, inclusive um papel significativo n o com ércio ribeirinho. N o entanto, grande parte do vale central d o rio Senegal já estava a essa altura sob a autoridade do Almamy A bdulkaadir K an, fazendo com que o acesso ao comércio fosse, em grande m edida, um a questão a ser negociada24 N os anos que se seguiram, com boios de barcos c barcaças, a m aioria p e r­ tencente aos habitants, subiam o rio até uma série de entrepostos (escales) ao longo das margens, trocando tecidos, papel, álcool e outras m ercadorias p o r marfim, goma arábica, m ilhete (m ilho m iúdo) c prisioneiros. N a cheia, entre junho e setembro, o rio era navegável até a terra de G alam , e alcançava a região em que hoje estão Mali, M auritânia e Senegal; nos entrepostos p e lo cam in h o os comerciantes vendiam prisioneiros capturados em áreas a inda m ais interioranas. Ao term inar a comercialização, o com boio voltava, descendo o rio com mercadorias e cativos. Sob o tratado assinado pelos franceses cm 1785. no entanto, representantes do Almamy de Fuuta T ooro p o d iam inspecionar os passageiros, libertando cativos que eles consideravam terem sido escravi­ zados ilcgalmcntc25. A chegada do comboio de volta a Saint-Louis era um a ocasião im portante. Famílias voltavam a se reunir, dívidas eram pagas, m ortes eram relatadas, ca­ tivos eram vendidos. D urante todo o ano os residentes de Saint-L ouis faziam empréstimos e com frequência prom etiam pagá-los cm pièces d 'In de q u an d o o comboio voltasse. Agora era a hora d o ajuste de contas. Para os q u e não podiam pagar suas dívidas, seriam realizados processos d ian te d o greffe, o es­ critório do governador, considerado a “única autoridade judicial* n a ilha. Para os próprios cativos esse era o m om ento da transferência o u p ara a escravidão doméstica na ilha, ou para depósitos tem porários onde ficariam à espera da estação do comércio atlântico, ou dirctam cnte para navios p arad o s próxim o ao porto26.

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M u ito mais do que um simples p o n to de transbordo, Saint-Louis du Sénégal h á m uito tem po já era um a sociedade própria — um a clássica feitoria africana ocidental, m as tam bém um local de encontro e intercâm bio. Um p equeno núm ero de hom ens europeus, geralmente vivendo em uniões costu­ m eiras com m ulheres locais conhecidas com osignares, tinha desde o começo estabelecido redes de relacionam ento a fim de levar a cabo o com ércio de m ercadorias e pessoas a p a rtir d o continente. N o final do século XVIII, gran­ de p a rte d o com ércio da ilha já estava nas mãos das signares e seus descenden­ tes. O s registros d o greffe de Saint-Louis contêm inúmeros contratos c transa­ ções anotados em francês em nom e de m ulheres cujos apelidos refletem uma ascendência africana e m ista. O núm ero total de hom ens franceses na ilha era pequeno e a m aioria trabalhava diretam ente para o governo colonial. Algumas atividades comerciais, no entanto, estavam reservadas aos representantes da C o m p an h ia d o Senegal, que era reconhecida oficialmente27. M uitos residentes de Saint-Louis tinham escravos para seu próprio uso c geralm ente os m an tin h am bem longe dos cativos destinados ao com ércio atlântico. A m ão de obra desses hom ens e m ulheres escravizados — estimados em m ais d e 2 m il pessoas — era usada n a ilha n a produção domiciliar, no transporte, nos afazeres domésticos, e tanto hom ens quanto mulheres podiam tam bém ser alugados p ara um a renda im ediata. Escravos qualificados, co­ nhecidos com o laptots, eram essenciais para os comboios anuais que subiam o rio, que perm aneciam em grande m edida nas mãos dos habitants sediados n a ilha, operando sob a proteção de forças francesas durante a viagem. A ‘ri­ queza em pessoas”, m edida pelo núm ero de escravos que pertenciam alguém, era, em Saint-Louis com o em outras partes do litoral da África Ocidental, um elem ento fundam ental de posição social assim com o uma fonte de renda e m ão de obra28. O s d o n o s d e escravos de Saint-Louis podiam tam bém adaptar os p ro ­ cedim entos franceses para acom odar os ideais tradicionais africanos ociden­ tais de caridade, proteção e clientelismo. A alforria de escravos preferidos registrada pelo escrivão d o greffe passou a ser um ato público de caridade, com um principalm ente entre m ulheres. P or solicitação destas, o escrivão m uitas vezes incluía um a exigência de que o beneficiário da liberdade assim concedida reconhecesse a antiga senhora como sua “benfeitora”. A libertação d o m enino de 13 anos cham ado fiouccari-Sam bapor um a m ulher designada com o Signare Com ba-Poule, p o r exemplo, parece um assunto doméstico, form alizado para se enquadrar às norm as francesas da prática adm inistrativa e jurídica29.

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r -------- ---------------------------------j- i--------------------------------------------------- -"por si próprios" o governador francês Blanchot ordenou que as vendas só poderíam ser realizadas sob a supervisão do m a itre de langue, um in term e­ diário autorizado30. O s donos de escravos em Saint-Louis geralm ente m antinham u m a d a r a distinção entre aqueles que eram seus próprios esclaves de case o u esclaves de tapade (escravos domésticos) e permaneceríam nessa posição e aqueles que estavam em trânsito e iriam para o comércio d o A tlântico. Escravos m antidos no domicílio eram m uitas vezes reconhecidos com o ten d o nom es e fam ílias individuais. N o inventário do espólio de M arianne Flcury, p o r exem plo, os escravos que lhe pertenciam foram m encionados pelos peritos co m o indiví­ duos com nomes em grupos designados com o famílias — tais co m o T im ac, marinheiro, com 55 anos, e seus dois filhos com 15 e 13 anos, um deles carpin­ teiro c o outro pedreiro — e foram m antidos ju n to s (pelo m enos n o papel) no decorrer da divisão da propriedade. A ameaça de deportação p elo com ércio do Adândco, n o entanto, acom panhava m esm o aqueles que viviam n o s d o ­ micílios, e os registros dogreffè confirmam que indivíduos acusados d e crim es poderíam perder sua condição de protegidos e serem vendidos a u m com er­ ciante que iria para as Américas31. Para aqueles destinados ao comércio atlântico, ao co n trário d o q u e o co r­ rera com Tim ac e seus filhos, um a privação de seus nom es assinalava u m a ruptura com suas vidas passadas. N ão havia sequer a form alidade d e u m b a ­ tismo grupai e a designação de um novo nom e. Q u a n d o a m u lh e r m ais tarde chamada de Rosalie chegou às mãos de um dos com erciantes d e Saint-L ouis, não há qualquer dúvida de que ela foi registrada n o papel não co m o u m in d i­ víduo, e sim como um a m ercadoria m edida em pièces d ln d e 52. O s registros m antidos pelos escrivães n o final d o século XV11I e com eço do século XIX em Saint-Louis contêm m uitos vestígios dos m ercadores fran­ ceses e tam bém dos habitants que acumulavam cativos p ara serem vendidos aos comerciantes d o Atlântico. U m dos m ais conspícuos e n tre eles era um habitante cham ado Paul Bénis, às vezes de M onsieur Paul, q u e com prava e

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vendia prisioneiros c gom a arábica para a C om panhia e para outros. É possível acom panhar seu rastro docum ental nos contratos e docum entos de venda sobreviventes, já que ele comprava terra c prédios, fazia empréstimos e nego­ ciava com os europeus que chegavam e partiam d a ilha. Bénis tam bém equi­ pava navios para a viagem rio acima até Galam e depois abrigava os captifs sem nom e em suas propriedades em Saint-Louis33. Q u an d o chegava a estação das travessias do Atlântico, os navios envolvidos n a arriscada busca de lucro n o com ércio da África O cidental chegavam de N antes, L a Rochelle, Filadélfia c outros portos d o Atlântico. A princípio os navios ficavam n o alto-m ar, mais além da linha assustadora da arrebentação ao longo da costa, enquanto os capitães decidiam qual seria a m elhor maneira de realizar sua tarefa. As vezes perm aneciam fora da barra de areia que prote­ gia a ilha e transferiam pessoas e a carga dos navios para terra firme c vice-ver­ sa nas longas canoas m anobradas p o r rem adores africanos. Uma estratégia alternativa era fazer com que o navio tentasse seguir o canal pelo meio da barra. Esse era um processo angustiante, transm itido de m odo vivido nos posteriores depoim entos formais escritos p o r capitães de navios sobreviventes que não tinham tido sucesso em suas tentativas34. M esm o um capitão qualificado que levasse um piloto experiente a bordo corria um risco substancial ao tentar atravessar a barra. Se um navio carregado exigisse um a profundidade m ínim a de 3 m etros para navegar, por exemplo, e a água sobre a barra de areia naquele dia chegasse apenas a 2,6 metros, parte d a carga teria que ser descarregada prim eiram ente em um barco alugado da cidade — com o consequente risco de danos. D epois chegava a hora de içar as velas, ganhar velocidade e tentar atravessar a própria barra. Se o vento es­ tivesse m uito fraco e a corrente m uito forte, seria simplesmente impossível concluir a travessia. Se os cálculos estivessem errados e as ondas m uito altas, todos ouviríam o terrível som dilacerante d o casco batendo contra a areia. Preso na barra no final de julho de 1804, o capitão da escuna sueca chamada (apropriadam ente) Speculation observava “enquanto os nativos d o conti­ n e n te ” se juntavam para ver sua embarcação im potente. À perda da carga para as ondas se juntava agora o risco de pilhagem33. Para cativos com o Rosalie, que estavam sendo levados na viagem de volta, variações d o m esm o dram a ocorriam em ordem contrária. Um a descrição p articularm ente vivida é a de um a viagem feita pelo bergantim Fly de Fila­ délfia. O F ly teve um a chegada difícil, mas ancorou com segurança diante da “cidade da ilha de Senegal c atracou no cais do Senhor Valentin* no dia 3 de abril de 1805. O ito semanas mais tarde o Fly estava pronto para começar sua

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Além das complexidades envolvendo o com ércio n o A tlântico, as transa­ ções relacionadas com cativos vendidos no m ercado local podiam ser politica­ m ente tensas, já que os líderes dos estados afiicanos c o n tin e n ta is tin h a m tanto princípios quanto interesses em jogo com relação ao que ocorria n a ilha. Em um episódio, um escravo que pertencia ao D am el de K ajor conseguiu chegar até Saint-Louis, embriagou-se e "vendeu a si próprio" n o m ercado, presum ivelm ente guardando p ara si o p ro d u to d a venda e p ro v o c a n d o o protesto do DameL Em um esforço para fazer cessar essas vendas d e escravos "por si próprios* o governador francês Blanchot ordenou que as vendas só poderíam ser realizadas sob a supervisão do m aitre de langue, um in te rm e ­ diário autorizado30. O s donos de escravos em Saint-Louis geralm ente m antinham u m a d a ra distinção entre aqueles que eram seus próprios csclaves de case ou esclaves de tapade (escravos domésticos) e perm aneceríam nessa posição e aqueles que estavam em trânsito e iriam para o comércio d o A tlântico. Escravos m antidos no domicílio eram m uitas vezes reconhecidos com o ten d o nom es e fam ílias individuais. N o inventário do espólio de M arianne Fleury, p o r exem plo, os escravos que lhe pertenciam foram m encionados pelos peritos co m o indiví­ duos com nomes em grupos designados com o famílias — tais c o m o T im ac, marinheiro, com 55 anos, e seus dois filhos com 15 e 13 anos, um deles c arp in ­ teiro e o outro pedreiro — e foram m antidos juntos (pelo m enos n o p apel)

no decorrer da divisão da propriedade. A ameaça de deportação pelo com ércio do Atlântico, no entanto, acompanhava mesmo aqueles que viviam nos d o ­ micílios, e os registros dogreffe confirmam que indivíduos acusados d e crim es poderíam perder sua condição de protegidos e serem vendidos a um co m er­ ciante que iria para as Américas31. Para aqueles destinados ao comércio atlântico, ao co n trário d o q u e o c o r­ rera com T im ac e seus filhos, um a privação de seus nom es assinalava um a ruptura com suas vidas passadas. N ão havia sequer a form alidade de um ba­ tismo grupai e a designação de um novo nom e. Q u a n d o a m ulher m ais tarde chamada de Rosalie chegou às mãos de um dos com erciantes de Saint-L ouis, não há qualquer dúvida de que ela foi registrada n o papel não co m o u m in d i­ víduo, c sim como uma mercadoria m edida em piices d ’Indesl. O s registros m antidos pelos escrivães no final d o século XV1I1 c com eço do século XIX em Saint-Louis contêm m uitos vestígios dos m ercadores fran­ ceses e tam bém dos habitants que acumulavam cativos para serem vendidos aos comerciantes do Atlântico. U m dos m ais conspícuos en tre eles era um habitante cham ado Paul Bénis, às vezes de M onsieur Paul, que com prava c

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vendia prisioneiros e gom a arábica para a C om panhia e para outros. É possível acom panhar seu rastro docum ental nos contratos e docum entos de venda sobreviventes, já que ele comprava terra e prédios, fazia empréstimos e nego­ ciava com os europeus que chegavam c partiam da ilha. Bénis tam bém equi­ pava navios para a viagem rio acima até Galam e depois abrigava os captifc sem nom e em suas propriedades em Saint-Louis33. Q u an d o chegava a estação das travessias do Adântico, os navios envolvidos n a arriscada busca d e lucro n o comércio da África O cidental chegavam de N antes, La Rochelle, Filadélfia e outros portos do Atlântico. A princípio os navios ficavam n o alto-m ar, mais além da linha assustadora da arrebentação ao longo da costa, enquanto os capitães decidiam qual seria a m elhor maneira de realizar sua tarefa. Às vezes permaneciam fora da barra de areia que prote­ gia a ilha e transferiam pessoas c a carga dos navios para terra firme e vice-ver­ sa nas longas canoas m anobradas p o r rem adores africanos. Um a estratégia alternativa era fazer com que o navio tentasse seguir o canal pelo m eio da barra. Esse era um processo angustiante, transm itido de m odo vivido nos posteriores depoim entos formais escritos po r capitães de navios sobreviventes que não tinham tido sucesso em suas tentativas34. M esm o um capitão qualificado que levasse um piloto experiente a bordo corria um risco substancial ao tentar atravessar a barra. Se um navio carregado exigisse um a profundidade m ínim a de 3 m etros para navegar, po r exemplo, e a água sobre a barra de areia naquele dia chegasse apenas a 2,6 metros, parte d a carga teria que ser descarregada prim eiram ente em um barco alugado da cidade — com o consequente risco de danos. D epois chegava a hora de içar as velas, ganhar velocidade e tentar atravessar a própria barra. Se o vento es­ tivesse m u ito fraco e a corrente m uito forte, seria simplesmente impossível concluir a travessia. Se os cálculos estivessem errados e as ondas m uito altas, to d o s ouviríam o terrível som dilacerante do casco batendo contra a areia. Preso na barra n o final de julho de 1804, o capitão da escuna sueca chamada (apropriadam ente) Spectdation observava “enquanto os nativos do conti­ n e n te ” se juntavam para ver sua embarcação impotente. À perda da carga para as ondas se juntava agora o risco de pilhagem35. Para cativos com o Rosalie, que estavam sendo levados na viagem de volta, variações d o m esm o dram a ocorriam em ordem contrária. Uma descrição p articularm ente vivida é a de um a viagem feita pelo bergantim Fly de Fila­ délfia. O Fly teve um a chegada difícil, mas ancorou com segurança diante da “cidade d a ilha de Senegal e atracou no cais do Senhor Valentin* no dia 3 de abril de 1805. O ito semanas mais tarde o Fly estava p ronto para começar sua

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viagem de volta pelo A tlântico. À s 7 d a m an h ã d o d ia 4 d e ju lh o , eles em b a r­ caram um p ilo to local, desatracaram "e velejaram rio ab aix o ; âs 1 1 h o ra s, cerca de 10 quilôm etros abaixo de Saint-L ouis, o navio e m p a re lh o u c o m o barco patrulha... o A gente atracou a c o n tra b o rd o com o u tro b a rco c h e io de escravos”. O navio perm aneceu naquele local p o r c in c o d ias e “em b a rca ram

m ilhete para os escravos”. A seguir o F ly navegou rio abaixo e a n c o ro u a cerca de 4 quilôm etros d a barra36. O p ilo to e o im ediato saíram para verificar a p ro fu n d id a d e d a ág u a so b a barra e m arcar o canal com boias. M as, q u a n d o o b e rg a n d m c o m e ç o u a atravessar, o vento subitam ente m u d o u de direção e, “presas n o v e n to d o n o ­ roeste”, as velas foram atingidas de frente. Isso significava catástrofe. "Já so b re o banco de areia o navio to m b o u para um lado e golpeava c o n tra as o n d a s.”

I

O s tripulantes não tinham o u tra escolha a não ser e n c o n tra r u m c a m in h o para "a água m ansa, n a direção d o litoral afiicano* e n q u a n to "p a rte d a trip u la çã o e m uitos dos cativos estavam ocupados em se livrar do s barris d e á g u a a rm a ­ zenados no porão, e em arrem essar sal ao m ar para to m a r o nav io m ais leve, e ao m esm o tem po bom beando a água d o m ar que estava e n tra n d o ”37. O

capitão agora tinha de fazer um co n ju n to d e cálculos rá p id o s d e lucro

prioridades e vidas. E n q u an to o navio lançava um sinal d e so c o rro , o barco p ilo to levou dezesseis ou vinte escravos p a ra "o b erg an tim N ew York q u e esta­ va a uns 3 quilôm etros d a barra”. Q u a n d o a barca d o g o v e rn a d o r v e io para socorrer a tripulação que ainda estava n o navio, o cap itão c o m e ç o u a tra n s fe ­ rir escravos, o m édico e passageiros para o barco p ilo to e p a ra o u tra e m b a rc a ­ ção pequena. M as quan d o os pequenos barcos com eçaram a su b ir o rio foram atacados p o r "nativos” d o con tin en te e foram obrigados a remar novamente para perto do bergantim, para que os canhões do bergantim pudessem protegê-los e eles não fossem capturados pelos africanos, mas, por chegarem muito próximos ás ondas, as velas dos dois barcos se estufaram com o vento e eles capotaram [...] E um número de escravos se afogou, ao mesmo tempo. D epois as coisas pioraram ainda m ais. "D esco b rim o s q u e a e m b arcação estava tão destruída que fom os obrigados a c o rta r o m astro d e p ro a a fim dc im pedir que o navio se despedaçasse.” A s o n d a s quebravam so b re o convés, na proa e na popa. A tripulação subiu to d o s os escravos h o m e n s p a ra o convés e se esforçou para livrá-los dos grilhões. E n q u an to isso, atiravam co m o s grandes canhões e as arm as pequenas d u ra n te a n o ite "para ev itar qu e os afric an o s nos abordassem”. O cálculo final foi dram ático: "o im e d iato e 7 m a rin h e iro s c 13

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escravos hom ens perm aneceram a bordo”. Então, ao m eio-dia, um bote do navio de guarda chegou pela segunda vez e resgatou “o im ediato e o resto da tripulação com alguma bagagem” Esse foi o últim o esforço de salvamento. Os a13 escravos hom ens” que poderíam ou não ainda estar acorrentados foram aparentem ente deixados a bordo enquanto o navio se despedaçava. Em seu depoim ento, o capitão relatou que, dos 70 escravos oríginalmente embarcados n o F ly, só 24 sobreviveram38. A própria viagem de Rosalie pode te r ocorrido em um navio francês ou britânico; não tem os com o saber o seu nom e. Mas sabemos que cada partida de um navio de Saint-Louis significava desafios m últiplos para o capitão e sua tripulação, e terrores m últiplos para os cativos — de coerção, de abandono o u de ser abandonado, da linha m ontanhosa das ondas e do risco de se afo­ garem . Além disso, algumas das circunstâncias da viagem de Rosalie podem ser inferidas se exam inarm os os registros de outros navios que içavam velas p a ra as ilhas d o açúcar francês a p a rtir d o p o rto de Saint-Louis durante a década d e 178039. L A m itié , p o r exemplo, tin h a deixado La Rochelle para Saint-Louis (a que se referiram sim plesmente com o Sénégal) no final de 1786. Chegando a Saint-Louis em janeiro de 1787, o capitão levou três meses para adquirir 224 cativos, m uitos deles d o com erciante residente M onsieur Paul. A imagem do carregam ento é vivida: os cativos eram acorrentados com “ferros e algemas* e levados a bordo um p o r um . Trazidos para o convés para a comida naquela noite, eles foram submetidos a um a exibição de força: “ao mesmo tempo demos 12 tiros de fecharia de pederneira e três de bacamarte” para que os cativos soubessem que, em caso de rebelião, “nós podíam os nos defender”. U A m itii foi p ara o sul ao longo da costa até Gorée para apanhar mais 52 cativos e depois içou velas p ara Saint-D om ingue dia 10 de abril de 178740. A exibição de força n o convés em Saint-Louis, n o entanto, não teve o efeito desejado. N o dia 4 de m aio a tripulação descobriu que um a conspiração estava sendo organizada entre os escravos — ou pelo menos foi isso que os hom ens negros contratados com o guardas disseram ao capitão. O foco da revolta era o sofrim ento p o r estar fisicamente acorrentado, c foi d ito que os cativos estavam planejando ameaçar a tripulação com a m orte se suas cor­ rentes não fossem removidas. Trazidos ao convés um p o r um para serem casti­ gados, os cativos hom ens produziram o nom e de um líder. Este, após muitas chicotadas, forneceu um relato da suposta conspiração, na qual tanto mulheres q u an to crianças estavam envolvidas:

Ele nos confessou que todas as mulheies teriam aproveitado o momento da refeição

da noite quando os oficiais estavam abaixo do convés para se revoltar, isso é, que eJas teriam se organizado para matar todos os brancos do tombadilho, enquanto os homens lutavam contra os marinheiros na proa. Essas mulheres tinham se conectado com os homens por meio das crianças que trabalhavam na cozinha, a quem elas instigavam a realizar essa tarefa. Tendo ouvido esse relato, o capitão registrou: "N ós atuam os c o n tra as mulheres exatamente como contra os hom ens”. Três semanas após esse dram a de conspiração e castigo, o V A m itié chegou a Port-au-Princc e os 206 cativos sobreviventes foram vendidos41. Como o V A m itié , o navio que trouxe Rosalie provavelmente chegou p ri­ meiro a Port-au-Prince ou a um dos o utros p o rto s p rin cip ais em S aint-Domingue. O cais em Jérémie, onde Rosalie finalmente term inaria, era mal protegido do mar e recebia apenas uns 12 navios p o r an o d iretam en te da França. A expansão contínua da produção de café na região garantia um mer­ cado para trabalhadores escravizados, mas os poucos transatlânticos que atracavam em Jérémie com cativos naqueles anos geralmente traziam prisioneiros da África Central, particularmente de Angola. Portanto, a m aior p arte dos senegambianos que chegaram a esse distrito isolado na península do sul teriam sido levados até lá por barcos menores do comércio litorâneo42. A reconstrução do provável itinerário adântico de Rosalie nos dá certos indícios sobre o conhecimento que ela trouxe consigo para seu período de cativeiro no Caribe. É possível, embora improvável, que ela já tivesse rece­ bido o começo de uma alfabetização. Ainda que não tivesse frequentado a escola, ela estaria, apesar disso, familiarizada com a importância da escrita. Os mesmos comerciantes de Saint-Louis que enviavam os navios rio acima para encontrar cativos sabiam que valia a pena carregar seus barcos com papel, uma mercadoria demandada por ser muito usada nas comunidades encontradas pelo caminho43. O papel não só registrava informação crucial para aqueles envolvidos no comércio ou no estudo formal; ele podia, dc uma maneira bastante diferente, I servir como base para um talismã ou um amuleto, algo para dar proteção cm momentos de dificuldade. O padre David Boilat, escrevendo sobre a região senegambiana algumas décadas mais tarde, transmitiu sua própria impressão dos povos de língua Pulaar (inclusive daqueles chamados Toucouleur) c seus costumes. Uma das aquarelas que Boilat pintou capta a imagem dc uma jovem

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v iúva p ro c u ra n d o p ro teç ão após a m o rte d e seu m arido. Ela estava sentada c o m u m m a ra b o u t (um hom em santo) q u e p u n h a tin ta sobre o papel para criar u m am u le to p a ra ela44. Palavras p ro teg iam e palavras p o d ia m escravizar. A jovem q u e em breve se ria ch a m a d a d e R osalie p o d e o u n ão te r visto o s d o cu m en to s q u e foram intercam b iad o s e n tre o ca p itão d o navio e o com erciante q u e a m anteve n o cativeiro até sua v en d a em u m arm azém o u n o cais em Saint-Louis. O co n h e­ c im e n to d e q u e a escrita co n fere p o d er, n o e n ta n to , a havia aco m p an h ad o q u a n d o ela com eço u sua viagem , deixando para trás qu alq u er reivindicação d e seus direito s co m o m em b ro d a nação Poulard, e dirigindo-se a um a socie­ d a d e colonial o n d e ela seria registrada co m o propriedade.

Notas 1 2 5

Ele usou a frase "filho da África” em Édouard Tinchant. Communiqué, La Tribune de U Nouvelle-OrUans, 21 de julho de 1864. Veja Oavid Robinson, "The Islamic Rcvolution o f Fuuca Tooro”, InternationalJournal ofA frican H istorical Studies 8 (1975): 185-221. A certidão de batismo está. transcrita em "Rectiflcation de noms d‘épousc Tinchant dans son contrat de mariage”, 16 de novembro de 1835. ato 672,1835, Tabelião Théodore Seghers, New Orleans. Notarial Archives Research Ccnter.

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O documento da alforria, elaborado em Lcs Abricots, Sain t-Dom inguc, em maio de 1803. está transcrito em “Enrcgistrement de Iibcrté par. de Marie Françoisc" 26 Vcntôse. ano XII (17 dc março de 1804), folio 25v, 26r, Actes, dédarations & dépòcs divcrs. 10 Pluviôsc. ano XII (31 de janeiro de 1804) — 10 Vendémiairc, ano XXIII (2 de outubro de 1804), documento 2, serie 6, suplemento Saint-Domingue (daqui em diante, SUPSDOM. seguindo a convenção para números de chamada, cx. 6SUPSDOM/3). Dépôt des papiers publies des colonics (daqui em diante DPPC), Archives nationales doutre-mer, Aix-cn-Provcnce (daqui em diante ANOM). * Essa é a frase que aparece, por exemplo, no documento intitulado "Saisic Dixon, 31 janvier 1806” na caixa 2, Fonds (ou Sous-Série) 4Z2, Archives nationales du SénégaJ (daqui em diante ANS). 6 O texto é "avec une bclle cargaison de nègrcs de nations Yblof, Poulard et Bambara”. Citado cm Jcan Mettas, Ripertoire des expéditions négrièresJrançaises au XVllT siècle, voL I: Nantes, org. Scrgc Dagct (Paris, Socicté française dTtistoire doutre-mer, 1978). 676 (verbete 1192). 7 Médéric Louis Élie Moreau de Saint-Méry, Description topographique,physique, civile, politique e t historique da la partie française de Visle Saint-Domingue, 2 vols. (Philadelphia, pelo autor, 1797), 1:26,27. 8 “Lcs Foulcs, appcllcs vulgairemant Poules ou Poulards. voisins des Scnégalais et des Yolofiès, mais plus intéricurcment placas”. Moreau de Saint-Mcry, Description topographique, 1:27. 8 Moreau dc Saint-Méry descreve um Poulard como de cor "avermelhada” (rougâtre) (Description topographique, 1:27). Já no século XVII Afonso de Sandoval tinha declarado que "Fuios se dis­ tinguem pela cor clara dc sua pele, embora muitos tenham uma pele muito escura” Alonso de

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Sandoval, SJ. Treatise on Slavery, org. e trad. Nicolc Von Gcrmctcn (Indianapolis, Hackett, 2088), 44. 10 Embora Poulard não seja prccisamcntc sinônimo do termo mais familiar PcuI, veja Rogcr Botte, Jcan Boutrais ejean Schmitz, orgs., Figure peules (Paris, É diaons Karthala, 1999); e Oumar Kanc, La Première Hégémoniepeule: L e Fuuta ToorodeKoli Tengella à A lm aam i A bdul (Paris, Édibons Karthala, 2004), 40-53,90*91. Sobre a informação que pode ser extraída de etnônimos, veja Michael Gomez, Exchanging O ur Country M arks (Chapei Hiíl, Univcrsity o f North Carolina Press, 1998), caps. 1 e 3. Megan Vaughan apesar disso avisa que não se pode necessariamente'estar certo de que eles nos levem a uma etnia o u ‘raiz* cultural, eles nos levam, ao contrário, a um processo". Megan Vaughan, Creating the Creole Island. Slavery in Eighteenth-Century M auritius (Durham, NC, Dulce Univcrsity Press, 2005), 114. 1 Estamos gratos a Boubacar Barry, Mamadou Diouf, M artin Klein, David Robinson, Mamadou Sy, Ibrahima Thioub e Rudolph Warc por suas discussões das afiliações que podem ser assina­ ladas pelo termo "Poulard". 12 Veja J. Ho[udaille], "Lcs esdaves dans Ia zone doccupatíon anglaisc de Saint-D om ingue cn 1796", Population 26 (janciro-fevereiro de 1971): 152*157. Houdaille encontrou apenas 48 es­ cravos designados como Poulard entre um grupo de 3.296 inventariados, enquanto 314 eram chamados Bambara e outros 121 Sénégal. Veja também G. Dcbien, J. Houdaille e R. Richard, "Les origines des esdaves des AntiUcs", Buüetin de llnstitutfrançais de lA frique noire (publica­ do nos volumes 23,25,26,27 e 29 da série B, entre 1961 e 1967); e David Geggus, “Scx Ratio, Age and Ethnicity in the Adantic Slave Trade: Data from French Shipping and Plantation Records”,Journal ofAjrican History 30 (1989): 23*44. ^ Thomas Clarkson, Letters on the Slave Trade, a n d the S ta te o f th e N atives in Those Parts t f África, W hich are Contiguous to Fort St. Louis a nd Gorie (Londres, Impresso e vendido por James Phillips, 1791), 31-33,80-81. M M. Saugnier, Rdation de plusieurs voyages à la côte cLAfrique, à M aroc, au Sénégal, à Gorie, à Galam, etc. (Paris, Guefficrjeune, 1791), escreve "les Poules". Veja 203*209 e 207*208 (citação). 15 Veja Robinson, "Islamic Revolubon o f Futa Toro"; Robinson, "Abdul Q adir e Shaykh Umar: A Continuing Traditíon o f Islamic Lcadership in Futa Toro”, InternationalJournal ofA jrican Historical Studies 6 (1973): 286-303; c Rudolph T. Warc III, The W alking Q uran: Islam ic Education, Embodied Knowledge, a n d H istory in West Á frica (Chapei HiU, Univcrsity o f N orth Carolina Press, 2014), cap. 1. 16 A primeira citação é de um registro relacionado com o assassinato de um comerciante no co­ mércio do rio, 7 de agosto de 1806, ato 1694, caixa 2, Fonds 4Z2, ANS. O term o "Poules" apa­ rece nos mapas do final do século XVIII, inclusive um elaborado para T hom as Clarkson cerca de 1789*1790 por M. de Villeneuve c guardado nos Clarkson Papers n a W illiam R . Clem ents Library, Univcrsity o f Michigan, Ann Arbor. 17 Robinson, "Islamic Revolution” e "Abdul Qadir” As questões teológicas que subjazem à inter­ pretação do Corão relacionadas com a escravidão são cxcepcionalmentc complexas. Veja Ru­ dolph T. Warc UI, "Slavery in Islamic África, 1400-1800", in The Cambridge W orld H istory o f Slavery, vol. 3, org. David Eltis e Stanley Engerman (Cambridge, Cambridge Universiry Press, 2011): 47-80 18 Kane, L a Première H igim onie, 273. A presença de pessoas de língua Pulaar fora do dom ínio de Almamy Abdulkaadir Kan complica o quadro. É difícil saber se o Almamy iria se recusar a permitir a passagem de tais indivíduos como cativos. Algumas pessoas d e língua Pulaar da parte superior do rio na direção de Galam também podiam ser enviadas via outras rotas para o norte ou sul do rio.

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19 Saugnicr continuou observando que "eles são sempre comprados, apesar do tratado com o Almamy para se recusar a com prar qualquer pessoa de sua nação, sem dúvida porque se acre­ d ita que esse tratado só se aplica quando a pessoa vai para sua terra cm comboio para ir rio acima até Galam". Veja Saugnicr, Relation, 266. Sobre essas rivalidades, veja Abdoulaye Bathily. L a P o rta de Tor: le royaume de Galam (Sénegal) de lere m usulm ant au tem pt d a negners ( 17ITX V lir siiele) {Paris, Édirions L’Harm attan, 1989), 319. 20 Sobre o ensino em Scnegàmbia. veja Warc, The W alking Q uran. Veja também Abbé David Boilat, Esquines sénégalaisa (1853; rep. Paris, Éditions Karthala. 1984). 384-386. 388-413. Boilar enfatizou o grande número de escolas no pais assim como o amplo alfabctismo em árabe (390-391). 21

Boilat usou o term o "toucoulcur" para os residentes de Fuuta Tooro. extraindo-o do term o mais antigo “Tekrur”, e escreveu deles: “Eles não sofrerão que um deles seja leito escravo, e se isso ocorre cies farão qualquer sacrifício a fim de pagar o resgate". Boilat. Eujuisses. 394. 22 Rosalic é descrita com o "com aproximadamente 28 anos’ cm "Afíranchisscment dc Ia nègresse Rosalic para Marchonnc", 2 de dezembro dc 1795, Tabelião Dobignics. arquivo 9-218. Jeremie Papers, Special Collections, University o f Florida Gcorgc A. Smathers Libranes. Gamesvillc. Sua designação de Poulard reflete o etnônim o usado pelos franceses das colônias caribcnhas; dai nossa inferência de que ela provavelmente foi transportada cm um navio francês que saiu de Saint-Louis. No entanto, como alguns barcos faziam múltiplas paradas em Gorce c na foz

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do rio Gâmbia, uma origem na região mais ao sul chamada Fuuta lalon não c impossível. Para o período mais antigo, veja Abdoulaye Ly. L a Compagme du Senegal (Pins. f ditions Karthala, 1993), 281-292. Para o período posterior, veja Ibrahima Thioub. "Lésclavagc a Saint-Louis du Senegal au XVHF-XIX* siiele’,Jahrhueh 2008/3009 (VTisscnschaftskollcg zu Berlin. 2010), 334-356. Abdoui H adir Aidara, Saint-Louis de Sénegald’h ierà aujoureThui (Bnnon-sur-Sauldrc. Grandvaux, 2004), 9-11: James F. Searing. West Afriean Slavery a n d A tla n tu Com m ene: The Senegal R iver Vdlley, 1700-1860 (Cambrídgc, Cambridgc University Press. 1993). Negociações entre oi

franceses e o Almamy aparecem na correspondência do governador François Blanchot. Veja “Registre et correspondance du comm andant du Sénegal", 28 de dezembro dc l~89.2 dc mar­ ç o de 1793-8 de novembro dc 1808, Fonds 3B1, ANS, e Mamadou Diouf, Le Kajoor au XIX" siiele;pouvoirceddo et conquéte coloniale (Paris, Éditiona Karthala, 1990). 25 Saugnier, R elation, 287-300. Sobre Galam c as mercadorias comerciais levadas para li. veja Bathily, Les Portes de Tor. Para um relato da viagem rio acima na década dc 1-80. veja Antoinc Edm c Pruncau de Pommegorge, Description de la N igritie (Paris, Maradan. 1789) 26 Para as m uitas transações após a chegada do comboio, veja os registros nos pacotes 1 e 2, Fonds 4Z2, ANS. 27 Para um a visão geral, veja M ichael Oavid Marcson, “European-Afriean Interaction in thc Prccolonial Pcriod: Saint Louis, Senegal, 1758-1854’ (dissertação dc doutorado, Princcton University, 1976). Veja Searing, West A friean Slavery, caps. 4 e 5. Para estimativas do número de aelaves de case, veja Silvain M cinrad de Golbéry, Fragmens d ’u n loyagefait pendam les annéa !~8S, 1786 a 1787, vol. 2 (Paris, Treuttel et Wiirtz, 1802), 328-363. Sobre um fenômeno paralelo na cidade portuária de Lagos, ao sul, veja Kristin Mann, Slavery a n d the B trth o f an Afriean C ity: Lagos, 1760-1900 (Bloomington, Indiana University Press, 200“), cap. 2 29 Veja Afíranchisscment, 22 dc fevereiro de 1”89, pacote 1, Fonds 4Z2, ANS. Para um exemplo de uma alforria cm massa de escravos africanos por um proprietário que era de ascendência

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mista, veja o ato da viúva Thévenot, ato 430, pacote 1, Fonds 4Z2, ANS. Agradecemos a Mamadou Diouf por suas sugestões relacionadas com a interpretação desses documentos. 30 A discussão do escravo do Damel está na ordem 111, fólio 27r, datado de 14 Frimaire, ano XI ($ de dezembro de 1802) do registro da correspondência entre o governador Blanchot e o prefeito de Saint-Louis, in Fonds 3B1, ANS. Cópias dessas ordens foram enviadas ao Ministério da Marinha c das Colônias em Paris, e a mesma ordem aparece ãs páginas 29*30 d o "Livre dordies depuis le mois de mai 1792, époque du retour du citoyen Blanchot, com m andant en chef du Sénégal", registro 30, subsérie 6, série C, ANOM. 1 Veja “Les Arbitres appcllés par les heririers de Marianne Fleury..." na pasta "M inutes 6c autres actes du Grcffc an 14", pacote 2, Fonds 4Z2, ANS. Thioub, "Lcsdavage”, enfatiza o papel da ameaça de venda no comércio atlântico. £ portanto pouco provável que o batismo que declarou que o nom e cristão de Rosalie era Marie Françoise tenha ocorrido logo no principio de sua passagem p o r Saint-Louis. Alguns muçulmanos livres em Saint-Louis, no entanto, realmente se converteram. Veja "Afiranchisscment para la S. Louise Couvat négresse chréticnne de la capti ve Marie Dimbalayc”, 22 de setembro de 1789, ato 467, pacote 1, Fonds 4Z2, ANS. Vários documentos sobre Paul Bcnis estão no pacote 1, Fonds 4Z2, ANS. Veja também Saugnier, ReLuion, 176, para uma descrição de Bénis como um antigo tonnelier [fabricante de barris] para a Compagnic cm Gorée, transplantada para Saint-Louis. Vários destes podem ser encontrados no pacote 2, Fonds 4Z2, ANS. A história do naufrágio vem da transcrição do livro de bordo do Speadation c dos depoimentos do capitão, na pasta marcada "1804" no pacote 2, Fonds 4Z2, ANS. O navio de dois mastros tinha deixado o cais do Sr. Crousleatt na Filadélfia dia 10 de dezembro de 1804 e parou em Praia nas Ilhas de Cabo Verde para recolher água. Veja docum entos n* 856 (antigo na985) "Protest CapcStewar$" e o documento rotulado “N®966, Rapport C apt. Stcward" na pasta marcada "1805*, ambos no pacote 3, Fonds 4Z2, ANS. Ibidem. Ibidem. Sobre os navios que carregavam cativos como prisões e lugares de terror, veja Marcus Rcdiker, The Slave Ship: A Hum an History (New York, Viking Press, 2007). Para um a viagem francesa de um periodo anterior, veja Robcrt Harms, The D iligent: A Voyage through the W orlds o f the Slave Trade (New York, Basic Books, 2002). 40 Jean Mettas, Répertoire des expédiíions négrièrcsfrançaises auX V Jir siècle, voL 2, P ortsautre que Nantes, org. Serge Daget (Paris, Société írançaise dhistoire doutre-m er, 1978), 372. 41 Ibidem., 372-373. Como historiadores assinalaram, cada m orte a bordo apresentava aos outros escravos o espetáculo da morte sem um funeral apropriado, uma alm a separada de seus ante­ passados e descendentes. Veja Stephanie Smallwood, Saltwater Slavery: A M iddle Passagefrom África to American Diaspora (Cambridge, MA, Harvard Univcrsity Press, 2007). 4* Informação detalhada sobre viagens individuais está em Mettas, Répertoire. ® Veja, por exemplo, a referência a esse tipo de documento na lista de carga "État des marchandiscs livrées par la C “ du Sénégal au Sr. Mandcau pour une livraison attendue de 25 captifs à remettre à M. Paul Benis lors de la prochaine descente de Galam", 25 de julho de 1788, pacote 1, Fonds 4Z2.ANS. 44 Boilat, Esquisses, Atlas, placa nfl 20, intitulada "T hiem o Gr and M arabout", o u em algumas edições "Hommc et Femme Toucoulaure. Marabout faisant u n Grigri”.

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CAPÍTULO 2



Rosalie... minha escrava



Q u a n d o a m ulher que em breve seria chamada de Rosalie desembarcou de um navio q u e a trazia p ara a colônia caribenha francesa de Saint-D om inguc, aqueles que a tinham sob controle continuaram o processo pelo qual ela se transform ou em um a pessoa m antida com o propriedade. Palavras foram trocadas e docum entos preenchidos, transferindo para um ou outro residente da colônia a autoridade legal para exercer sobre ela os poderes associados com o direito de propriedade. Categorizada simplesmente com o alguma fração de um apièce d ’ln d e quando foi forçada a entrar cm um navio em Senegâmbia. ela agora fora designada com o escrava e recebera um nome escolhido pelo comprador. Talvez jovem o bastante para ser poupada da dor dc ser marcada com u m ferro quente, ela foi, então, entregue ã pessoa que dali cm diante seria considerada seu d o n o 1. A reconstrução da história da vida de uma mulher considerada por lei como alguém sem direitos exige um exame dos registros escritos produzidos por aqueles que afirmavam ter um interesse patrim onial cm sua pessoa. N o caso de Rosalie de nação Poulard, cinco documentos confirmam sua existência cm Saint-D om ingue. Três deles foram elaborados na cidade sulina porruiria de Jérém ie, outro, na aldeia próxima dc Les Abricots c o último, em uma igreja da paróquia de C abo Damc-Maric, algumas léguas a oeste. Esses documentos registram certos aspectos da vida diária de Rosalie. inclusive sua venda dc uma família para outra e a m udança potencial em sua condição iniciada po r várias tentativas de se to m a r livre p o r alforria. O único docum ento que reflete sua vida íntim a — o batism o de sua filha Élisabcth — só existe porque, em 1799, Rosalie já tinha se tom ado uma m ulher IcgaJmente livre, para cuja filha o sa­ cram ento seria registrado em detalhe pelo sacerdote oficiante, ao contrário do que ocorria nos batismos daqueles nascidos na escravidão2.

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Os dois homens e a mulher que mantiveram Rosalie como escrava deixaram nos escritórios dos tabeliães locais uma trilha de papéis deles próprios, que nos dá um vislumbre das casas em que ela viveu e revela as íntim as conexões com a África daqueles que se apropriaram dela. Eles próprios eram todos descen­ dentes diretos de africanos; nenhum deles tinha um pai francês; dois tinham sido libertados da escravidão recentemente. Para cada dono, a com pra de Rosalie foi parte de uma estratégia para acumular “riqueza em pessoas” em uma casa, um padrão familiar para aqueles que moravam em cidades portuárias no Caribe escravista e em muitas sociedades na costa ocidental da África. A passagem de Saint-Louis du Sénégal para Jérémie em Saint-D om ingue era longa, mas essas estruturas de poder e acumulação eram bem conhecidas entre os moradores das cidades nos dois lados do Atlântico. Os anos que Rosalie passou em Saint-Domingue incluíram a sequência de desafios, revolta, repressão e guerra da Revolução H aitiana e que finalm ente provocou a expedição militar francesa de 1802-1803, cujas consequências fi­ zeram com que Rosalie deixasse a ilha. D o ponto de vista das casas e bairros em que ela morava, a dinâmica daquela revolução foi m uito além da luta fa­ miliar entre “colonos”, “negros livres” e “escravos”. O s relacionam entos de apadrinhamento, casamento, propriedade legal, alforria e herança atravessavam essas categorias e moldavam o comportam ento de Rosalie e daqueles a seu redor. Embora o primeiro encontro de Rosalie com a revolução ten h a ocorri­ do quando ela ainda era escrava, ela iria, no decorrer da década entre 1793 e 1803, se tom ar uma mulher livre, parceira conjugal, mãe, e depois refugiada.

O primeiro documento que registra a presença de Rosalie vem de Jérém ie em GrandA nse, um distrito que recebeu esse nom e em virtude d a am pla enseada (ame) na costa noroeste da faixa de terra que se estende (ao longo de uma linha de falha maciça) ao sul e oeste de Porto Príncipe. O in terior da GrandAnse era intimidador, com trilhas acidentadas c às vezes intransponíveis que levavam a uma sucessão de montanhas desertas. Jérémie fazia parte d a rede de circulação marítima caribenha. O s m arinheiros que entravam e saíam do porto havia m uito estavam familiarizados com Kingston, C uraçao e Santiago de Cuba, bem como com Léogane ou Porto Príncipe3. Exceto por algumas áreas planas perto da foz dos rios, a terra d a G rand’Anse não era apropriada para plantar açúcar, e a econom ia prim itiva da região era modesta, baseada na pesca, no contrabando e em plantações de pequena es­ cala. Como resultado tanto de sua pobreza quanto de sua geografia, a G randAnse escapava de grande parte do peso do controle direto p o r p arte das autori-

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dades coloniais francesas. N a década de 1750, no encanto, as autoridades tinham com eçado a d istrib u ir “concessões* para terrenos n o sul da península. Nas p a rte s m ais altas, havia bastante solo rico cm que plantar os cacaueiros e ca* feeiros. R eivindicando cerras p o r concessão real ou com prando pedaços de concessões anteriores, colonos recém -chegados tin h am com o objetivo o b ter u m a p o rta para a econom ia de exportação d o A tlântico. N a década de 1770, esses colonos já estavam em barcando seus produtos em navios que iam para o o cean o e em escunas litorâneas cujos com andantes tam bém facilitavam um com ércio ilegal vigoroso com a Jam aica4. E m term o s m arítim o s, n o e n ta n to , jé ré m ic continuava a ser um p o rto p o u c o atraen te com um canal raso e um a ancoragem exposta aos ventos d o n o rte . H avia um ban co de areia ardiloso para atravessar c n enhum cais a não se r a p ró p ria p raia, p o rta n to o carregam ento e o dcscarregam ento tinham d e ser feitos p o r barcos abertos conhecidos co m o canots. O s estím ulos econô­ m icos, apesar disso, eram suficientes para atrair alguns navios grandes, legais o u d e c o n tra b a n d o . A p a rtir d o com eço d e 1766, os ingleses haviam autori* z a d o os barcos franceses e espanhóis a p a rar nos p o rto s da Jamaica, c os c o ­ m erciantes tin h a m se apressado para chegar a K ingston c com prar cargas de cativos q u e seriam vendidos em Saint-D om inguc. O s colonos franceses recla­ m avam , d iz e n d o q u e n ã o qu eriam a d q u irir o s “restos” dc seus rivais, mas co n tinuavam a com prar5. G e ralm en te , as concessões iniciais de terra agrícola náo contavam com qu alq u er força de trabalho, e os colonos lutavam para form ar a tch en (senzalas) d e m ão d e o b ra cativa p a ra plantar, cultivar e colher as safras. O tráfico dc cativos africanos acelerou rapidam ente, em bora dependesse fortem ente dos com erciantes estrangeiros. Em 1784 e um a vez mais em 1786, as autoridades ofereceram aos transportadores um a gratificação — prim eiro dc 100 c depois d e 200 libras — p a ra cada tête d e nègre (cabeça de negro) introduzida nos d istrito s d o sul6. N avios transadânticos franceses que estavam envolvidos no tráfico de ca­ tivos africanos responderam a esses incentivos. O Trois Frèrcs, p o r exemplo, a n c o ro u em Jérém ie em abril de 1789 e desem barcou 80 escravos, a m aior p a rte deles vindos d e A ngola. L 'É m ilie chegou cm setem bro dc 1790 com m ais 150. E m setem bro d e 1791 o N o u velA m o u r cntregou 339. M uitos escra­ vos tam bém chegavam ajé rém ie em barcos que traziam pessoas c mercadorias d e o u tro s p o rto s na colônia, inclusive Eéogane, P orto Príncipe e Les Caycs, assim co m o alguns de C ap-Français'.

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PROVAS DE U M iu m u »»

Quando o cronista e jurista JLouis M orcau de Saint-M éry visitou o lugar em 1788 descobriu que praticam ente todos estavam obcecados com o café. Especuladores e colonos ambiciosos falavam sobre as riquezas a serem obtidas plantando na área montanhosa do interior. N o departam ento com o um to d o Morcau contou 118 plantações que se concentravam n o cultivo d e café ju n to com cacau, 32 que cultivavam algodão, 10 que produziam índigo c 7 q u e cul­ tivavam cana de açúcar. Havia também um com ércio de m adeira a p a rtir do interior, principalmente na região de Plym outh8. A atividade econômica trouxe um desenvolvim ento da adm inistração. A autoridade colonial em Jérémie concentrava-se nas instituições conhecidas como o Alm irantado e a Sénéchaussée (tribunal de prim eira instância) que organizava sessões às sextas e aos sábados, com a ajuda de cinco procuradores, oito tabeliães, sete baillis (juizes), um exem pt (alcaide p e q u en o ) e um briga­ deiro (ambos oficiais militares), quatro policiais, um étalonneur (encarregado de pesos e medidas) e um carcereiro. Essa era u m a adm inistração bastante grande para uma cidade relativamente m odesta, m as ela refletia o tam a n h o e a importância crescente do interior de Jérém ie e d o com ércio q u e passava pelo seu porto. Morcau estimou que em 1788 a paróquia co m o u m to d o , que incluía distritos rurais, abrigava aproxim adam ente 2 m il brancos e m il affranchis (pessoas de cor designadas com o livres), além de um a população d e 17 mil pessoas mantidas com o escravas9. Algumas das 180 casas de Jérémie eram bastante agradáveis, n a o p in ião de Moreau. A cidade baixa, que se estendia ao longo da R ue d e la M arin e e da praia, era extremamente quente e estava sem pre cheia d e g ente, m as apesar disso era conveniente para os negócios que o co rriam n o p o rto . N o platô uns poucos m etros mais acima, a cidade alta estava em expansão e tin h a uma praça principal cercada de árvores. As ruas eram lam acentas o u p o eiren tas c Jérémie tinha m uitas características de um a cidade em crescim ento. Dizia-sc que os aluguéis haviam triplicado nos últim os dez anos10. A economia da região atraía não só colonos agrícolas, m as tam b ém aqueles que viam o potencial dessa econom ia urbana. M ais o u m en o s e m 1775» uma m ulher negra que nascera livre, cham ada M arthe G uillaum e, foi p a ra o oeste, partindo de Porto Príncipe para Jérémie. Já m ãe d e q u a tro filhos (cham ados de enfants naturels porque nascidos fora d o casam ento), e c o m 35 anos de idade, M arthe Guillaume começou, em Jérém ie, um p e q u e n o investim ento em um a loja que dava para a rua e que deveria ser paga n o d e co rre r d e vários anos. A partir dessa base de operações ela se to rn o u u m a m archande — uma comerciante que vendia artigos variados para os m oradores d a cidade, inclu-

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* I O I A U I » MINHA U C U V A *

tive connaisseurs co m o o hom em q u e com prou um corte d o tecido descrito c o m o d e c o r q u e u e d e serein — o a m a relo c a n á rio q u e estava n a m o d a cm Paris. M a rth e tam bém adquiriu escravas que enviava para vender merca­ d o rias n a rua. Essas eram pacotilleuses, quitandeiras vendendo ao varejo para co m p rad o res em pequena escala". E m 1777, M a rth e G uillaum c colocou seu filho de 13 anos, Pierre Alies, c o m o a p ren d iz p o r q u a tro anos c o m um p e d reiro local, que, p o r sua vez. p ro m e te u se c o m p o rta r com o m en in o "com o u m bom pai de família". A p ró p ria M a rth e G uillaum c era considerada um a m adrinha conveniente por seus vizinhos, incluindo um a senhora cham ada Agnés, que deu a seu bebé o n o m e d e M a rth e 12. E m 1784 M a rth e G uillaum c já tin h a exp an d id o a sua operação: d o p e q u en o com ércio passara para a com pra c venda de escravos, q u e ela m arcava com u m ferro de m etal que queim ava em sua pele as letras d e seu apelido, M arth o n e, com um "G " para G uillaum c m ais abaixo. C o m ­ p ra n d o cativos de vários navios c de seus capitães, ela a seguir os revendia com lucro. Essa m ulher, nascida de um pai africano escravizado c de um a mãe negra livre, logo estava a cam in h o de um a posição de p o d e r financeiro na cidade". E stabelecendo conexões tam bém com a área rural, ela casou sua filha M aric A n n c Alies com um m em bro da fam ília Azor, pessoas negras livres que pos­ suíam propriedades rurais. O presente de M arche para os rcccm-casados foram c in c o d e seus escravos14. E n tre os p io n eiro s agrícolas n a G ran d ’A nsc estavam "brancos da cerra" de o u tra s p a rte s d a colônia, além de alguns colonos franceses. O s mais prósperos e n tre eles traziam capital, escravos e pretensões para a riqueza rural c para a vida urbana. A lgum as fam ílias — co m o os G albaud d u F ort ou os C o u é t de M o n ta ra n d — já possuíam grandes propriedades n o n o rte, um a região há m u ito colonizada, m as investiam nas novas terras abertas ao suL O utros, com o o im ig ran te francês cham ado M ichel V inccnt, chegaram m ais ou m enos de m ãos vazias, n a expectativa de en co n trar sucesso na região fronteiriça após seu fracasso em o u tra s regiões. M ichel V in ccn t c om prou um p e q u en o lote de te rre n o em L es A bricots, p e rto d a grande propriedade da família G albaud du F o rt, e com eçou a p lan ta r café15. T e n d o em igrado d o oeste d a França para Saint-D om inguc décadas antes, M ic h el V in c en t se estabelecera p e rto d e Les Caves n o litoral d o sul. T in h a te n ta d o duas das estratégias clássicas de um aventureiro colonial: ob ter um privilégio real, em seu caso a fe rm e d e lã boucherie (a coleta das taxas fiscais pagas pelos vendedores d e carne locais) e casar-se com um a rica viúva branca d a terra. N ã o teve sucesso em nenhum a delas, perdendo o m onopólio e sendo

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PROVAS DE UBERDADV

decepcionado pela viúva, que cuidadosam ente ajustou com o tabelião um a form a de deixar toda sua riqueza para seus filhos de um casam ento prévio. A o se m udar para Les Abricots, adquirir um a p eq u en a p ropriedade e c o n stru ir um a casa, ele presum ivelm ente tin h a a intenção d e se to m a r u m fazendeiro de alta classe. Mas sua posição tin h a caído desde os dias em Les Cayes, e ele continuaria a escorregar pela escada social abaixo16. N enhum registro direto da prim eira venda de Rosalie em Saint-D om ingue parece ter sobrevivido, em bora haja algum as fontes paralelas relacionadas com outras jovens m ulheres de Senegâm bia que vieram ser m antidas co m o escravas p o r residentes negros, livres, da cidade. E m m arço de 1787, p o r exem plo, um a m u lh e r cham ada É lisabeth Z eila trab a lh o u p o r m eio de M ag lo ire C abrocorso (que se autodesignava m ulato) para c om prar um a escrava d e 14 anos cham ada Julie, rotulada “de nação Poulard”. O v endedor era u m com erciante branco, o S ieu r C laude C ollet; a com pradora É lisabeth Z eila foi u m a m ulher negra d e posses m odestas. A o contrário d o q u ad ro clássico d e u m fazendeiro próspero que sobe ao navio que traz cativos para inspecionar a "carga”, o u que adquire escravos à m edida que eles desem barcam n o cais, essa foi u m a transa­ ção de pequena escala, realizada p o r m eio d a interm ediação de u m lib e rto 1'. A aquisição de um único cativo p o r u m a pessoa de ascendência africana era u m padrão com um em Saint-D om ingue, p e rm itin d o q u e u m a pessoa recen­ tem ente alforriada adquirisse algum a re n d a alugando aquele escravo com o m ão de obra n a econom ia urbana. O fenôm eno d a acum ulação e o d a “com odificação” operavam nessas circunstâncias, m as em um a escala a in d a m uito pequena em term os d o esquem a colonial em geral — m esm o q u e p o ten c ial­ m ente enorm e para a pessoa assim presa ao tra b a lh o 18. A prim eira fam ília a que Rosalie foi in co rp o rad a p o r venda foi aparente­ m en te a de u m forro idoso cham ado A lexis C o u b a . N a Á frica O cid en tal, ta n to os povos de língua P ulaar q u a n to os de lín g u a W ò lo f usavam “C um ba” com o nom e de m ulher, e esse term o p o d ia en tão ser aplicado p o r extensão ao filho d e um a m u lh er q ue tivesse aquele nom e. A o u tra fo rm a d e escrever o m esm o nom e, em S aint-D om ingue, “C o u b a”, parece estar associada aos afri­ canos19. O clérigo que realizou o casam ento de Alexis C o u b a , n o entanto, especificou que ele tin h a nascido n a paró q u ia d e Jérém ie, provavelm ente por volta de 1712, e que fo ra alforriado em 1778. N a alforria, o tab e liã o tinha obedecido à lei em vigor n o antigo regim e em S a in t-D o m in g u e q u e proibia as pessoas libertadas de adotarem o sobrenom e d e u m a fam ília francesa. Ele

-ROSAL1E... MINHA ESCRAVA*

inscreveu então o nom e C o u b a, que pode ter refletido as origens senegambianas d a m ãe d e Alexis20. Alexis C o u b a adquiriu um a escrava cham ada A nnc c casou-se com cia três an o s após sua p ró p ria alforria. Sob o C ó d ig o N egro, que regulam entava a escravidão em S aint-D om inguc, esse casam ento autom aticam ente libertou A nnc. Progressões desse tip o eram com uns cm Jerem ie, à m edida que hom ens q u e tin h a m o b tid o sua própria liberdade garantiam seus direitos de paterni­ d a d e e com eçavam a form ar famílias de dependentes livres c escravizados21. A lexis C o u b a estava co n stru in d o um a fam ília c não um a fortuna. Q u atro anos após seu casam ento com A nnc, ele libertou outra escrava, cham ada Lisette, trazen d o -a d o estatu to de propriedade para o de pessoa livre. A julgar p o r sua idade, parece provável que Lisctte fosse a m ãe de A nnc c. p ortanto, sogra d e A lexis C o u b a . A qu ilo q u e inicialm cntc cm um registro cartorial parece acum ulação com eça a assum ir um aspecto um ta n to diferente. Alexis e A n n e p o d e m te r sido parceiros p o r m uitos anos, m as só quando adquiriu sua liberdade foi que ele pô d e tam bém com eçar a livrá-la c a outros m em bros d e sua fam ília d a escravidão22. A fam ília à qual Rosalie foi incorporada p o r venda, provavelmente no final d a décad a de 1780, foi» assim, o tip o de casa cm que estava claro que a escravi­ d ã o nã o era necessariam ente um estatuto perm anente. Vendo os exemplos de A n n e e L isette antes dela, Rosalie podia logicam ente esperar que sua própria escravidão seria seguida em um determ inado m om ento pela alforria, ou pelo m en o s q u e ela seria tratada da m aneira esperada pelos esclaves d e case na Á fri­ ca O cid en tal, e talvez p rotegida de novas vendas. A lexis C o u b a tin h a obtido, para si próprio, "riqueza em pessoas” c acesso ao trab a lh o de Rosalie o u à renda d o trabalho que ela podia produzir. Mas ele p arece te r chegado ao m áxim o de suas possibilidades financeiras e logo abriu m ão d a escrava Rosalie em beneficio de sua vizinha mais próspera, a em preen­ d e d o ra m archande M a rth e G uillaum e. É possível que tivesse sido obrigado a isso p o r te r algum a dívida pendente, ou que tenha necessitado de d inheiro com urgência. D e q ualquer form a, Rosalie m udou, então, de um a casa dc um h o m e m negro recentem ente alforriado para um a que tinha com o chefe uma p ró sp e ra m u lh er negra que já nascera livre23. C o m um a casa na praça central dc Jerem ie, a Place dA rm cs, várias proprie­ dades alugadas e um a filha casada com um m em bro d e um a família m u ito c o n h e c id a de pessoas negras livres, M a rth e G uillaum e era, n o com eço da décad a d e 1790, um a m ulher dc posse. Q uase todas as pessoas da cidade lhe dev iam d in h e iro , um sinal claro d c sua posição n a rede de reciprocidades

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PROVAS DE LIBBRDADB

dentro da comunidade. A lista de todos seus devedores, que ela m ais tard e fez com que íbsse elaborada p o r um agente, tin h a um as 30 páginas24. Com o uma pessoa negra em Saint-Domingue, no entanto, M arthe Guillaum e tinha sempre de estar preparada para provar sua liberdade. C ad a vez que ia ao cartório — fosse para vender escravos ou perseguir um em preiteiro com quem estava insatisfeita — era obrigada a apresentar u m d o c u m e n to que comprovava seu nascim ento livre. Aquelas que trabalhavam com o dom ésticas em sua casa presumivelmente vieram a conhecer o p ro cedim ento p e lo qual M arthe resgatava aquele pedaço de papel (talvez guardado em um m alão no quarto?) e o levava cuidadosamente para o cartório. Rosalie, com o u m a m u lh er da Senegâmbia, já conhecia o poder dos talismãs em seu pró p rio país. A gora ela podia ver em um novo ambiente a eficácia d a tin ta n o papel25. A estratégia de M arthe Guillaum e para co n stru ir u m a rede d e escravos, clientes e crédito perm itiu que ela prosperasse, apesar d a crescente hostilidade p or parte de m uitos brancos com relação àqueles que eles consideravam com o pessoas de ascendência africana excessivamente am biciosas. M a rth e tin h a conexões na própria cidade de Jérémie, n o cam po e tam bém n a cidade de Les Cayes n o litoral d o sul. Ela p o d ia convocar artesãos b ra n co s p a ra serem responsabilizados p o r trabalhos que ela julgava insatisfatórios e c o b rar alu­ guéis de inquilinos brancos dos m ais ilustres. E ra sogra o u m a d rin h a d e crianças classificadas com o mulatas livres ta n to n a cidade q u a n to n o cam po. Sua riqueza expandia-se com o trabalho das quitandeiras escravas descritas com opacotilUtises, bem com o de escravos adicionais de vários tipos, dos quais Rosalie agora era um . O s sismos secundários d a Revolução Francesa, n o en­ tanto, em breve iriam prejudicar a capacidade d e M arth e G uillaum e d e m an­ te r essa rede coesa. Já em 1790 notícias dramáticas chegavam a Jérém ie de Paris e d a cidade de Les Cayes. Julien R aim ond e vários outros hom ens livres d e c o r d a colônia tinham , durante anos, pressionado a França para ten ta r fazer cu m p rir as ga­ rantias de direitos iguais entre as pessoas livres, que tin h am sido enunciadas pela m onarquia n o C ó d ig o N egro de 1685. D epois d e 1789 eles p o d ia m es­ tender essa reivindicação p o r m eio de um a leitura am pla e inclusiva d a D ecla­ ração dos D ireitos d o H om em . C o m a transform ação d o s E tats G énéraux (Estados Gerais) em um a Assembléia N acional, vieram as convocações para que as assembléias locais enviassem representantes a P o rto Príncipe, o n d e eles iriam escolher delegados para ir a Paris26. Em m arço d e 1790 a Assembléia N acional publicou um c o n ju n to d e “Ins­ truções" p ara a constituição das assembléias locais em S aint-D om ingue. Es-

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" rosalie ... minha escrava "

critas de um a m aneira ambígua, as instruções pareciam oferecer a possibilida­ de de dar cidadania a alguns hom ens livres de cor. As questões de estatuto, posição social e ascendência familiar — em bora ainda não a própria questão d a escravidão — agora estavam sobre a mesa27. C o lo n o s brancos conservadores, tan to os que viviam cm Paris quanto os que residiam em Saint-D om inguc, queriam a qualquer custo evitar que as assembléias locais elevassem a posição pública dos hom ens livres de cor c di­ m inuíssem seu próprio poder. Havia todos os m otivos para acreditar que eles tentariam m anter o controle quando as assembléias fossem convocadas, e o governador sugeriu-lhes que fizessem exatam ente isso. N ão só hom ens livres d e cor, m as tam bém os Blancs m ésalliés — hom ens brancos que tivessem ca­ sado atravessando a “linha de cor" — geral m ente acabavam sendo excluídos d a participação28. N o o u to n o de 1790, V inccnt O gé, um hom em livre de cor bastante rico q u e tin h a v o ltad o d e Paris p a ra a colônia, criou um m ovim ento arriscado exigindo direitos iguais p ara todas as pessoas livres, independentem ente da cor. Seus seguidores inicialm entc conseguiram desarm ar os brancos no bairro d e G ra n d e Rivière, p e rto de C ap-Français, m as foram logo derrotados pelas tro p as conduzidas p elo governador interino. O g é fugiu atravessando a fron­ teira p a ra S anto D o m in g o espanhol. Exrradicado de volta à colônia com o um “chefe dos bandoleiros”, ele foi sub m etid o à to rtu ra da roda na praça principal d e C ap-F rançais. A b ru talid ad e d o castigo aplicado a O gé e a seus colegas solapou a possibilidade d e u m a aliança estratégica de proprietários que atra­ vessasse a lin h a d e cor, n a qual os brancos senhores de escravos conccdcriam d ireito s p o lítico s a pessoas d e c o r livres a fim d e criar um a frente unida contra a p e rsp ectiv a d e rebelião dos escravos. O assassinato de O g é pelos colonos seria evocado nas lutas seguintes ta n to p o r hom ens livres de c o r q u a n to po r n e g ro s escravizados c o m o um sím bolo da terrível proteção de um m onopólio d e p o d e r p e la classe “aristocrata” d e fazendeiros brancos29. E m n o v e m b ro d e 1790 um g ru p o d e ho m en s livres de c o r d o sul se uniu p a ra exigir o d ire ito ao voto. A cam pados na p ropriedade de um c erto Prou, n a p lan íc ie pró x im a a Les Cayes, eles foram atacados p o r um grande g ru p o de b ra n c o s d a cidade c o n tra os quais eles in icialm entc resistiram . D ia n te de re­ forços, n o e n ta n to , os m anifestantes recuaram , recebendo aquilo que a p rin ­ c íp io p a re c ia ser u m a a n istia das a u to rid ad e s coloniais. A n d ré R igaud, um h o m e m liv re d e c o r q u e viría a se to m a r um líd e r im p o rta n te , m ais tard e lem b ro u -se d as palavras d ita s p e la a u to rid ad e francesa que foi enviada p ara rep rim i-lo s: “H o m e n s d e c o r [.-] vocês nu n ca devem esperar atravessar a lin h a

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PROVASDHU M M / a v i .

de demarcação que os separa dos brancos, seus pais e patronos. Voltem às suas obrigações [...]. Ofereço-lhes paz com uma mão e guerra com a outra"30. Nesses protestos armados, negros livres que muitas vezes eram designados por seus inimigos como m ulatos ou forros — mas que geralmente se consi­ deravam como homens de cor — exigiam participação na sociedade politica­ mente organizada. Inicialmente, não abordavam a questão da escravidão. Essa posição era consistente com as reclamações políticas compartilhadas nas p o ­ sições de classe bastante variadas daqueles que formavam esses prim eiros movimentos. Algumas famílias de ascendência mista possuíam plantações de café e de­ zenas de escravos. Estavam entre as mais eloquentes quando se tratava dc condenar as distinções políticas com base na cor, mas com o proprietários também ofereciam um reduto potencial contra a insurreição de escravos. Muitas pessoas alforriadas, no entanto, como Alexis Couba e sua esposa Anne, simplesmente trabalhavam no campo como agricultores ou na cidade como artesãos e comerciantes. Podiam possuir um ou dois escravos, mas também tinham laços sociais múltiplos com aqueles que ainda continuavam sendo escravos, que, algumas vezes, incluíam seus próprios parentes. Tanto negros ricos quanto aqueles modestamente posicionados concordavam quanto à exigência de direitos civis iguais. Suas reações podiam diferir, no entanto, com j relação a uma dara demanda pela abolição imediata da escravidão31. Durante esses anos, os termos usados para designar indivíduos eram com plexos, refletindo processos sociais contínuos, e não categorias fixas. O respei c ou desrespeito implicado podia variar dependendo do esquema e do contextt >. A tríade branco/mulato/negro, por exemplo, geralmentc estigmatizava as du.i' últimas categorias, embora a valência de um termo estigmatizante pudesse ocasionalmente ser desafiada cm momentos de autoafirmaçào. O s termos "europeu”, “americano”, mcréolen (da terra) e “africano” podiam ser usados dc maneiras diferentes para objetivos também diferentes e estes se sobrepunham em vez de duplicar os vários termos de cor. A distinção legal nascido livre forro/escravo não se enquadrava facilmente à dicotomia mulato/negro, já que a condição legal e a cor designada vinham de esquemas de categorias diferentes. Finalmente o termo ajjranchi (alforriado), embora assinalando um estatuto de livre, podia ser intencionalmente desrespeitoso, lembrando publicamente que um indivíduo tinha sido escravizado em um determinado momento. Em cer­ tos momentos da luta, o termo ajfranchi foi rejeitado por aqueles assim rotu­ lados, a favor da expressão mais abrangentepersonne de couleur (pessoa de cor), que afirmava o estado de pessoa. Talvez não seja preciso dizer que na busca I

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“rosalie... minha escrava”

p a ra co m p reen d er a dinâm ica d a Revolução H aitian a não podem os usar q u a l' q u e r co n ju n to desses rótulos d e m o d o isolado, com o se eles pudessem , p o r eles p róprios, d e n o m in a r as facções relevantes e os grupos de atores32. E n q u a n to a lu ta pelo d ireito ao v o to trazia divisão ao longo das linhas de c o r entre os don o s de propriedades, notícias e rum ores vindos de Paris pareciam p ro m e te r m udança para os escravizados. E m bora ta n to a m onarquia q u a n to a nova A ssem bléia N acional fossem m u ito relutantes em lidar com a questão da abolição, notícias persistentes circulavam d e que ao rei tin h a dado aos escravos três dias livres p o r semana0 e q u e os brancos estavam bloqueando essa reform a. O ru m o r com eçou a assum ir um p o d e r pró p rio nas com unidades de escravos p o r to d o o C arib e francês. Em S aint-D om ingue, algum as versões d o rum or afirm avam q u e os negros livres n a colônia tin h am prom etido ajudar os escravos a a d q u irir os d ireitos anunciados, u m a inferência q u e m ais tarde seria reforçad a pelas ações de vários líderes entre as pessoas d e cor, inclusive A ndré Rigaud33. N o co m eço d e 1791, o con flito n a colônia já estava to m an d o um a nova form a. A o re d o r d e Port-Salut n o sul, cena dos prim eiros protestos em preen­ d id o s p o r pessoas livres d e cor, um h om em cham ado Jean-C Iaude Lateste ap are n te m en te espalhou a notícia entre os escravos dessa suposta prom essa de três dias p o r sem ana p a ra si m esmos. M enciona-se que, n o d ia 24 de janeiro, esses escravos se ju n taram a outros para planejar um a rebelião em busca desse objetivo. A tram a foi descoberta antes que fosse m uito longe e deixou apenas u m p e q u e n o traç o n o s arquivos. N o en ta n to ela prefigurava eventos que es­ tavam p o r vir34. N o d ia 22 de agosto, 1791, trabalhadores escravos nas plantações da p laní­ cie d o n o rte ao re d o r d o C ap-Français pegaram em arm as contra seus senho­ res e q u eim aram com tochas o s locais o n d e eram escravizados. E m bora as dem andas originais d o s escravos possam te r sido lim itadas, a possibilidade de u m a rebelião em grande escala aterrorizava os fazendeiros. Para os conserva­ dores, a catástrofe d e queim ar plantações pareceu confirm ar as previsões de lo n g o p ra zo de que qualquer concessão q u e confirm asse os direitos políticos d e ho m en s livres de c o r p odería causar problem as sociais. Para reform adores convictos, isso deixou claro que o p io r cenário era realm ente possível e assim, p o r um a questão d e prudência, fortaleceram suas dem andas p o r m udanças nas políticas que m elhorassem a situação35. N a verdade, era difícil e star seguro d a relação d e causa e efeito entre o m o v im en to p o lítico d e pessoas de co r livres e os atos de rebelião com etidos p elo s escravos d a p lan íc ie d o n o rte . E m b o ra os conservadores caracterís­ ticam en te detestassem am bos, não havia qualquer aliança autom ática entre

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aqueles que lutavam contra a humilhação daquilo que era chamado de caste* e aqueles que lutavam contra as circunstâncias da escravidão. A capacidade dos escravos de empunhar armas — em seu próprio nome ou nas lutas de outros — no entanto estava clara. Os donos de propriedade na G rand Anse havia muito usavam essa capacidade enviando seus escravos contra incursões tentadas por piratas ou invasores estrangeiros36. As lutas que agora ocorriam tinham uma amargura particular na Grand’Anse, onde muitas famílias livres de ascendência africana estavam bem estabeleci­ das e alguns brancos recém-chegados eram particularmente cuidadosos com relação a seus próprios privilégios. Em todo o sul, donos de propriedade cate­ gorizados como brancos, assim como aqueles designados como "de cor”, co­ meçaram a armar seus escravos em preparação para as lutas que viríam. Para os brancos conservadores — que consideravam armar seus próprios escravos um ato legítimo —, parecia que as pessoas livres de cor estavam incitando a rebelião entre os ateliers (senzalas) das fazendas. Em dezembro de 1791, os membros do novo conselho municipal de Jérémie descreveram a oposição que enfrenta­ vam por parte de homens que eles caracterizavam como "brigands* (bandolei­ ros) e atribuíram essa oposição precisamente às ações dos negros livres37. No final de 1791, então, a posição de Marthe Guillaume tinha se tomado potencialmente delicada. O poder na cidade de Jérémie estava nas mãos de um órgão controlado pelos fazendeiros o qual era às vezes chamado de Coa­ lizão da Grand’Anse, que estava travando uma guerra aberta contra os negros que tinham reunido suas próprias forças nas áreas montanhosas do interior. Todos presumivelmente sabiam que a filha de Marthe Guillaume tinha casado com um membro da família Azor, e que era Noél Azor e a rede de famílias vizinhas interconectadas que estavam fornecendo a liderança para os homens livres de cor nas colinas. Alguns podem também ter sabido que o próprio filho de Marthe, Pierre Alies, agora um jovem com idade apropriada para carregar armas, tinha amigos íntimos entre os milicianos negros na cidade, homens que muito provavelmente não iriam se submeter às tentativas por parte dos líderes brancos no município de controlá-los38. D urante janeiro e fevereiro de 1792, m uitos negros que tinham fugido para o campo em revolta foram capturados pelas forças enviadas para reprimi-los, e alguns foram presos em um barco ancorado ao largo d a costa de Jérém ie. C orreu então um ru m o r pela cidade de que os brancos vitoriosos estavam intencionalmente inoculando os prisioneiros com varíola. Nesses meses tensos, o registro das atividades econômicas de M arthe G uillaum e em Jérém ie, tão denso para os anos anteriores, começa a se rarefazer um pouco39.

• U M i l E » MINHA KH.RAVA

N o tícia s d a F rança m etro p o lita n a a u m e n tara m a incerteza. N a p rim avera d e 1792 o s revolucionários cm Paris já tin h a m c o n c lu íd o q u e concessões ás pessoas d e c o r livres p o d e ría m forn ecer um co n tra p eso p a ra as d e m a n d as d o s escravos. E m abril d e 1792 a A ssem bléia Legislativa Francesa d e c re to u u m fim p a ra as d istinções legais d e c o r e n tre pessoas livres n a co lô n ia, c o n fe rin d o u m a igualdade d e d ireito s p o lítico s aos 'h o m e n s d e c o r e negros livres”. N o tícia s d a q u ilo q u e veio a ser co n h ec id o c o m o ”o d e c re to d e 4 d e ab ril” chegaram à c o lô n ia n o final d e m aio40. A m a io r p a rte d o s bran co s em Jérém ie, n o e n ta n to , n á o tin h a q u a lq u e r in te n ç ã o d e a b rir m ão d e seu p o d e r d e im p o r restrições sociais e p o lítica s aos h o m e n s q u e eles tin h a m v en cid o tã o recentem ente. C o m isso e n tra ra m em c o n flito com as au to rid ad es coloniais responsáveis p o r fazer c u m p rir a legis­ lação q u e chegava d e Paris. P ara afirm ar sua a u to rid a d e , c a a u to rid a d e d e P aris c o n tra a op o sição local, o g o v e rn ad o r c o lo n ia l. V isco n d e d e B lanchelande, voltou-se p a ra Les Caycs e p a ra as forças sob as ord en s de A n d ré R igaud. u m h o m e m d e c o r livre. P o r m eio dessa aliança com h o m en s d e c o r arm ados, as a u to rid ad e s francesas obtiveram u m a aparência d e subm issão p o r p a rte dos b ra n co s q u e controlavam Jérém ie, m as apenas p o r algum tem p o . C o n flito s terríveis c o n tin u a ra m e n tre colonos e h o m en s d e c o r ativistas, co m cada lado u sa n d o escravos arm ados co m o soldados p ara alcançar seus objetivos. H istórias d e b ru talid ad e s circulavam , inclusive acusações c o n tra N ocl A zor. o irm ã o d c Je a n B aptiste A zor, casado com a filha d c M a rth e G u illa u m c 4'. N o co m eço d e 1793, M a rth e G u illaum e — n o rm a lm c n tc co n h ec id a pelos v izinhos co m o M a rth o n e — com eçou a to m a r certas precauções. D eclarando-se d o e n te , c h a m o u um tab elião a sua casa p a ra e la b o rar um te s ta m e n to e disposição d e ú ltim a v o n tad e d etalhado, o rg a n iz an d o cuid ad o sam en te a d is­ trib u iç ã o d e seus b en s e n tre os paren tes. E m b o ra m u ito s daq u eles q u e ela m a n tin h a c o m o escravos iria m sim p le sm e n te se r d is trib u íd o s c o m o p r o ­ p rie d a d e e n tre seus herdeiros, ela estabeleceu co n d iç õ es especiais p a ra um n ú m e ro deles. E m particular, declarou que, c o m sua m o rte , sua escrava c h a­ m ad a R osalie devia ser libertada42. U m a sem ana m ais tard e M a rth e G u illaum e convocou o tabelião o u tra vez e fez com q u e ele elaborasse um n o v o testa m en to . O n o m e d e R osalie n ã o apareceu nessa segunda versão. E m vez disso, um d o c u m e n to d a m esm a d a ta fo rm alizo u a v en d a d e ”u m a n e g ra c h am ad a R osalie n açã o P o u la rd ”, c o m cerca d e 26 anos d e idade, p ara um v izinho c h am ad o Jean B aptiste M ongol, u m açougueiro categorizado co m o hom em livre e m ulato. N ã o é possível saber se essa foi u m a venda verdadeira o u um a transação d estin a d a a c u m p rir u m a

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mcca diversa daquela declarada no aco. O preço declarado era alto — 2.400 libras. Como era comum nesses casos, tudo indica que o dinheiro passou de uma mâo para a outra longe da vista do tabelião. Parece possível que alguém que quisesse tirar Rosalie da casa de Marthe Guillaume possa ter fornecido o dinheiro a Jean Bapdste Mongol como intermediário, mas não há meios de saber se isso realmente aconteceu43. A transferência de Rosalie paraJean Bapdste Mongol veio em um momento de grande tensão na cidade de Jérémie, onde o conselho municipal estava se revoltando de forma mais ou menos aberta contra os com issários civis que tinham sido mandados para Saint-Domingue pelo governo em Paris. Os comissários foram encarregados de exercer autoridade sobre aqueles agora considerados "cidadãos" coloniais da França. Em princípio, exigia-se que os conselheiros municipais obedecessem ao decreto de 4 de abril de 1792, que autorizava direitos civis iguais entre as pessoas livres, independente­ mente de sua cor. O conselho municipal em Jéremie apesar disso se reunia como um órgão composto só de brancos, embora membros do conselho viessem a afirmar mais tarde que dois homens de cor tinham sido eleitos, mas se recusaram a servir44. O conselho então anunciou que as unidades da Guarda Nacional compos­ ta e comandada por homens de cor seriam dissolvidas e seus membros trans­ feridos para unidades brancas existentes sob as ordens de oficiais brancos. Em vez de ampliar os direitos, eles pareciam assim solapar o respeito que alguns homens de cor tinham adquirido como participantes da força de defesa local. No início de 1793, no entanto, o conselho não teve coragem para ordenar que a transferência fosse realizada. Numa noite no meio desse tenso impasse, um oficial branco da Guarda Nacional tentou fechar um festejo animado— um ruidoso b a l à bam boula (uma dança acompanhada por tambores), demais barulhento segundo as autoridades municipais. A festa em questão aparentemente contava com a presença tanto de escravos quanto de pessoas de cor livres. O cidadão Thomani, um celebrante que era ele próprio um tenente na Guarda Nacional, trocou palavras ríspidas com o oficial que veio para pôr Em à festa. O município convocou Thomani para responder por suas ações, mas decidiu, pelo momen­ to, não tomar outras iniciativas. O confronto entre as autoridades municipais e os homens de cor na milícia ocorreu à sombra do conflito em expansão por todo o sul, à medida que as forças sob os comissários buscavam conter a insurreição por parte dos escravos, enquanto ao mesmo tempo se deparavam com a insubordinação por parte

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daqueles Koscis à nova República francesa, inclusive os conselheiros cm Jeremie. N otícias tinham chegado reccntcm ente à cidade de que o exército republica* n o havia atacado um forte de insurgentes negros nos Placons, entre Jeremie c Les Caycs. O u tro s “bandoleiros” estariam tam bém operando na vizinhança d a aldeia cham ada Les Anglais. Autoridades brancas cm Jérémic imaginaram que ainda poderiam com andar os hom ens de cor que participavam da Guarda N acional p ara juntar-se aos outros e assim garantir a segurança da cidade co n tra um possível ataque, mas tinham sido rejeitadas. Agora cias tentavam reafirm ar seu controle45. Relatando seus confrontos com aqueles a quem se referiam como os homens aanteriorm ente conhecidos com o de cor”, os membros do conselho tentaram argum entar que eles na verdade estavam seguindo o espírito da declaração de igualdade civil desm obilizando as unidades definidas pela cor. Para qualquer pessoa que observasse os procedimentos, no entanto, ficava claro que os oficiais brancos estavam na verdade tentando desarmar os hom ens que cies não con­ sideravam te r direito de constituir ou com andar unidades daquele tipo. O resultado de forçar esses hom ens a form ar unidades de milícia comandadas p o r brancos podería ter sido previsto: os oficiais de cor perderíam suas comis­ sões e teriam que obedecer a com andantes que poderíam mandá-los lutar c o n tra aqueles que eles não necessariamente consideravam seus inimigos. Um com entário em um dos relatos traz a história da intranquilidade entre os mi­ licianos para mais perto: presentes no m om ento da rixa com Thomani. estavam não só N oél Azor, um m ilitante m uito conhecido, mas também o jovem de­ signado com o "filho da C idadã M artonc"46. Logo as autoridades municipais acusaram o tenente Thomani de um ataque físico a o u tro cidadão, prenderam -no e ordenaram que fosse julgado. Essa hum ilhação de um oficial da milícia provocou mais protestos e homens de cor tan to da cidade quanto do campo se agruparam num acampamento em La V oldrogue n o interior. Em breve chegaram notícias em Jérémic de que os hom ens acampados teriam a com panhia de trabalhadores escravos das plan­ tações que eles tinham invadido. Dizia-se tam bém que eles tinham aberto com unicação com Les Cayes, baluarte de A ndré Rigaud, onde o comissário civil republicano Étienne Polverel agora residia47. O m ovim ento que se formava em La Voldrogue tinha tan to um a estru­ tu ra política quanto um a estrutura militar. O filho de M arthc Guillaumc, Pierre Alies — que algumas testem unhas designavam simplesmente com o “Pierre M artonne" — , havia se encarregado de uma “subscrição" pela qual iriam coletar dinheiro para seus esforços para exigir a liberdade de seu colega

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Thomani. Poucos dias mais tarde, um informante disse que Pierre estava no comando, ao lado de um colega, de 68 homens de cor “subversivos” armados que estavam indo de fazenda em fazenda exortando (ou intimidando) os es­ cravos para que estes se juntassem a eles. Quando o filho de Marthe Guiliaume assinou uma carta formal de protesto dirigida ao município em 23 de fevereiro, identificou-se como "Pierre Aliesse, tenente”, invocando o sobre­ nome que os conselheiros tinham se recusado a lhe conceder. Agora ele estava servindo sob um capitão chamado Adas, um homem que iria reaparecer como um líder no futuro48. A reação inicial do conselho municipal foi convocar todas as pessoas "pa­ cíficas" de cor, aquelas que resistiam ao apelo da "rebelião”, ordenando que aparecessem na prefeitura e inscrevessem seus nomes em uma lista. As autori­ dades então tomaram alguns como prisioneiros — particularmente mulheres e crianças associadas com homens livres de cor. Não está claro se a própria Marthe Guillaume foi presa, talvez como um meio de pôr pressão sobre seu filho. Provavelmente não, dado o número de pessoas na cidade, muitos bran­ cos entre eles, que a usavam como seu banqueiro. Mas não era provável que o poder econômico fosse garantir impunidade indefinidamente49. Conforme a notícia da renovada repressão cm Jérémie se espalhou, a pos­ sibilidade de qualquer aliança dos livres contra os escravos, independentemen­ te da cor, parecia cada vez mais incerta. Dos homens e mulheres escravizados que participavam do bal a bamboula em Jérémie, até aqueles antigos escravos insurgentes nos Platons que estavam dispostos a ser soldados nas recém-fbrmadas Legiões da Igualdade sob André Rigaud, uma aliança alternativa e frágil estava se formando entre os escravos c aqueles que estavam conectados a um passado de escravidão pela sua cor. Com os emissários da República | francesa agora se voltando para os oficiais de cor e tropas tiradas das fazendas, os conservadores em Jérémie logo se colocaram na defensiva. O grupo de homens que o filho de Marthe Guillaume tinha reunido agora havia aumen­ tado para 300, inclusive mulheres, e se dirigia a Les Cayes para dialogar com o Comissário Polverel50. À medida que o drama da rebelião aberta seguia adiante, novas possibili­ dades surgiam para algumas mulheres nas circunstâncias de Rosalie. O poder no campo estava mudando e grupos rivais buscavam a lealdade daqueles mantidos como escravos. Apesar disso os detalhes da situação são difíceis de discernir, em parte por uma queda súbita na quantidade de registros escri­ tos que sobreviveram. Pois, durante o ano da venda de Rosalie para Jean Baptiste Mongol e da rebelião envolvendo o filho de Marthe Guillaume, esse

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canto do noroeste da pcnfnsula sulina de Saint-Dominguc saiu da órbita da autoridade colonial francesa e entrou no campo da rivalidade interimpcrial. Para os fazendeiros c comerciantes mais conservadores de Jeremie, já to ­ talm ente afastados das autoridades enviadas de Paris, a única maneira de de­ fender seus interesses parecia ser negociar sua própria aliança internacional antirrepublicana. Refugiados políticos de Saint-Dominguc que tinham che­ gado a Londres propuseram um passo drástico: convidar as tropas britânicas para desembarcarem em Jérémic para estabelecer um a posição segura na co­ lônia francesa a fim de obstar a radicalização da revolução. Esses conspirado­ res em preendedores realizaram um a cam panha vigorosa de lobbying cm L ondres para provar sua própria credibilidade e alcançar seus objetivos. No início, o governo britânico estava hesitante cm se com prom eter com homens que eram obviam ente agentes livres, mas a região da G randAnsc ainda estava exportando grandes quantidades de café e as vastas plantações de açúcar de Saint-D om ingue faziam da colônia o mais rico dos prêmios potenciais. Even­ to s n a Europa, além disso, estavam em purrando na direção de um conflito renovado entre a Inglaterra e a França. N o dia 1 ° de fevereiro de 1793. a Ingla­ te rra declarou guerra à França. U m acordo prelim inar com os refugiados políticos de Saint-D om ingue foi assinado em Londres mais tarde naquele m esm o mês. O envio a Saint-D om ingue de uma força expedicionária da Ja­ m aica não estava fora dc questão51. N o s meses que se seguiram, um conflito desastroso surgiu cm Saint-Do­ m ingue entre os comissários civis republicanos e o reccm-chcgado governador geral François Thomas Galbaud. O s comissários tinham tentado reforçar os decretos de direitos iguais e ao mesmo tem po conter a rebelião na colônia. M as G albaud (irm ão de um proprietário de terras cm Jerem ie) tinha suas próprias idéias sobre a m elhor form a dc pacificação. N o dia 20 dc junho dc 1793, sua luta explodiu transform ando-se em uma guerra aberta, c os comis­ sários civis buscaram um a aliança com os escravos ao redor do porto dc Lc C a p p a ra ten ta r garantir sua autoridade. Em uma proclamação impressa c distribuída em 2 1 de junho, eles ofereceram liberdade aos "guerreiros negros que lutarão pela República, sob as ordens dos comissários civis, tanto contra os espanhóis com o contra outros inimigos, internos ou externos"'2. C o m o govem ador-geral Galbaud em retirada c a cidade de Lc C ap em cham as, ficou claro que a própria abolição da escravidão estava agora ga­ n h a n d o prioridade, agarrada pelos republicanos com o a única maneira de m a n te r a colônia fora das mãos dos espanhóis que estavam próximos, dos britânicos que ameaçavam e dos colonos que eles consideravam contrarrc-

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volucionários. Na metade de agosto um conjunto explosivo de avisos por parte dos comissários Sonthonax e Polverel foi emitido: a escravidão logo terminaria em toda a colônia — embora muitos daqueles a serem emancipa­ dos fossem forçados a continuar em seus postos. Os decretos foram planeja­ dos para ser estendidos para o sul em outubro de 1793. Oficialmente a lei já não reconhecería qualquer direito á propriedade de homens ou mulheres na cidade onde morava Rosalie53. Exatamente quando a noticia da abolição declarada pelos comissários da República se encaminhou para o sul, o fazendeiro emigrante Venault de Charmilly assinou um acordo formal com o general Adam WiIIiamson, que co­ mandava as forças britânicas na Jamaica. No dia 19 de setembro de 1793, as tropas britânicas desembarcaram em Jérémie ao som dos gritos de “Viva os britânicos!* e “Viva o rei George!*. Por dois anos os fazendeiros em Jérémie tinham conseguido manter distância das autoridades republicanas, em grande medida governando sozinhos a região. Agora, insulados m ilitarm ente do avanço das Legiões de Igualdade comandadas por André Rigaud, eles puderam constituir um Conseilprivé (Conselho Privado) para aconselhar os ingleses, instruindo-os sobre os costumes da colônia. No tratado assinado com os re­ fugiados políticos, Williamson tinha concordado em repelir a concessão feita pela Assembléia Legislativa de igualdade civil e política para os homens livres de cor. Os ingleses mais do que cumpriram essa promessa, permitindo a exe­ cução de 160 homens livres de cor que estavam presos em Jérémie. Os conser­ vadores podiam contar com seus novos comandantes para não tolerar qualquer conversa sobre abolição34. A presença da ocupação inglesa de setembro de 1793 em diante protegeu os senhores de escravos cm Jérémie dos efeitos legais diretos da abolição da escravidão decretada pelos comissários e ratificada mais tarde, no dia 4 de fe­ vereiro de 1794, pela Convenção Nacional Francesa. Isso foi gratiíicante para os fazendeiros e comerciantes, mas a cidade ainda mantinha aquilo que um de seus aliados descreveu como “une masse de Canaille attachée à la Republique” (um bando de canalhas devotados à República) — isto é, uma população não disposta a transferir sua lealdade para os ocupantes britânicos. A divisão da população livre entre aqueles dispostos a dar as boas vindas a uma potência estrangeira e aqueles ainda “devotados à República* fez com que o cumpri­ mento dos direitos de propriedade sobre pessoas fosse bastante delicado55. A Legião da Igualdade comandada por André Rigaud continuava no con­ trole era Les Cayes, e os homens locais, “anteriormente conhecidos como de cor* tinham se reagrupado em vários acampamentos fora de Jérémie. À me-

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l U k . MINHA ESCRAVA*

d id a q u e o s ingleses tentavam expandir seu controle pelo sul c pelo oeste, eles assim enfrentavam um a oposição implacável daqueles que cies caracterizavam c o m o “os negros”, “os bandidos” ou o “Exército dos Comissários**. Escrevendo d e K in g sto n , Jam aica, H cnry Shirley evocou a dificuldade: “Temos m uitos am igos em Les Cayes, m as Rigaud. um m ulato que com anda, não só m antem t u d o tra n q u ilo p o r lá, mas provavelm ente irá nos expulsar de Jerem ie”' 7. O s b ritâ n ico s tentaram m anter os trabalhadores escravos trabalhando nas fazendas d e café. O fazendeiro Vcnault de C harm iliy vangloriou-se: “N unca te n d o ficado so b o p o d e r dos bandidos nem dos comissários civis, esta região n u n c a foi saqueada ou roubada; ela está cm um a situação m u ito próspera*. Ele p re v iu u m a co lh eita d e 15 a 18 m ilhões de libras de café. Mas adm inistrar as áreas sob c o n tro le b ritânico continuava a ser um a trem enda dor de cabeça c o general W illiam son cada vez m ais se encontrava obrigado a oferecer liberdade p a ra alguns daqueles m antidos com o escravos em troca de serviço m ilitar*. A hetero g ên ea sociedade colonial que os britânicos encontraram no local n ã o facilitava o m apeam ento da distinção entre livre c escravo sobre a dicotom ia d e bra n co e negro. C o m o escreveu D e Charmiliy. cm um a denúncia d a ­ q u ilo q u e ele considerou com o indulgência com relação a pessoas livres de cor: “É D ifícil C o n c eb e r o n úm ero de m ulheres livres de C o r que hoje existe cm S aint-D om ingue”. M ulheres livres designadas com o mulatas ou negras — com o a com erciante M a rth e G uillaum e — pareciam a D c C harm iliy um elem ento d e dissolução n a colônia, e um a perturbação da própria ordem das coisas. (Tais d en ú n cias, é claro, não evitavam que os fazendeiros adotassem m ulheres dc c o r c o m o m énagères (governantas) c tivessem filhos com elas.) U m oficial b ritâ n ico , n o en ta n to , escreveu de um a form a bastante direta para seus supe­ riores: “O s M ulatos e todas as pessoas de cor que estão livres devem ser equi­ parados aos brancos, e sem isso os ingleses não podem m anter a colônia”. Ele a c h o u im provável q u e “30 m il pessoas dessa categoria retornassem a um e sta d o d e degradação”. O s britânicos imaginavam que eles lhes podiam con­ c ed e r apenas “os direitos dados a essa classe nas colônias inglesas”, mas alguns oficiais n a área p o d iam perceber que m ais seria exigido99. D u ra n te o s p rim eiros meses d a ocupação britânica, M arthe G uillaum e p arece te r sido capaz de m an ter seu equilíbrio, em bora a participação dc seu filh o Pierre Alies nas rebeliões dos hom ens d e cor, bem com o a participação d a fam ília d o m arido de sua filha, os Azors, provavelmente tenha atraído mais vigilância p a ra suas próprias atividades. Ela assum ira a responsabilidade de a d m in istra r várias fazendas, presum ivelm ente aquelas que pertenciam a seus p arentes, e a interrupção da vida tan to d a cidade q u anto do cam po fazia com

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que fosse difícil para ela cobrar as quantias de dinheiro que lhe eram devidas. Em fevereiro de 1794, M arthe Guillaum e aparentem ente decidiu q u e um a retirada estratégica era a coisa mais sábia a fazer. Elaborando um a procuração particular, ela conferiu autoridade a um juiz local para adm inistrar seus negó­ cios durante sua ausência. Desapareceu, então, d a cidade d e Jérém ie, talvez para juntar-se a seu filho ou a sua filha em algum a área d o territó rio que esti­ vesse sob o controle das forças republicanas de A ndré Rigaud60. O s conflitos militares e políticos entre os britânicos e os exércitos republi­ canos parecem ter tido consequências tam bém para Rosalie. M a rth e G uillau­ me, que em um determ inado m om ento readquiriu a propriedade d e Rosalie do açougueiro M ongol, agora estava ausente. Além disso, fora das áreas de efetiva ocupação britânica, a escravidão já não existia p o r lei, transform ando a região ao sul e ao oeste de Jérémie em um a zona de liberdade potencial. U m a evidência circunstancial sugere que mais ou m enos em 1794 a p ró p ria Rosalie saiu de Jérémie e se m udou para a aldeia costeira de Lcs A bricots p a ra viver com o colono Michel Vincent61. Em outubro de 1794 aqueles que os ingleses cham avam d e “os rebeldes de Les Cayes* as forças sob o com ando de A ndré Rigaud, já tin h a m id o e m dire­ ção ao Cabo Dame-Marie, onde a igreja da paróquia que servia Les A bricots estava localizada. C om Rigaud com o um potencial executor dos d ecretos de abolição, é uma questão em aberto se seria possível dizer que a p ró p ria escra­ vidão formal ainda existia nessa data na fazenda de M ichel V in c e n t em Les Abricots62. O relacionamento entre Rosalie e M ichel V incent tin h a p o u c o a ver com a fantasia de rom ance entre fazendeiro rico e escrava d e p e le clara q u e era m uito im portante na imaginação de colonos com o M oreau d e Saint-M éry. M ichel não era jovem nem próspero e Rosalie era u m a m u lh e r n ascid a na África designada como negra e não com o m ulata. N ão h á q u a lq u e r evidência de que ela estivesse m antida legalmente com o escrava d e M icheL E m algum ponto, os caminhos do colono francês que descia a escada social e os d a m ulher africana que a subia tinham se cruzado e alguém tin h a arranjado p a ra q u e ela trabalhasse para ele. Talvez eles tivessem se conhecido n a cidade q u a n d o R o­ salie estava na casa de M arthe Guillaume. (Q u an d o M arth e G u illaum e reapa­ receu em Jérémie em agosto de 1794 e convocou seu pro cu rad o r p a ra preparar um relatório contábil de sua posição financeira, a lista incluía u m a q u a n tia que lhe era devida p o r “Vincent*). Talvez M ichel, que tin h a co letado taxas fiscais nas lojas de açougueiros nos primeiros anos, tam bém conhecesse Je a n Baptiste

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M ongol, o açougueiro local para quem M arthe Guillaum e tinha vendido Rosai ic em janeiro de 1793a3. D o is fragm entos docum entais de 1795 parecem esboçar alguns dos con­ to rn o s d a união de Rosalie com Michel. O prim eiro é um a folha avulsa sepa­ ra d a d o livro d e registros ao qual teria servido de índice. Nela o padre da igreja paroquial de C abo Damc-Maric, de quem as pessoas de Les Abricots depen d iam p ara os sacramentos, dava um a lista dos batismos que ele tinha registrado d urante o ano. O s nom es de dois daqueles batizados sobressaem na página: M arie Louise e Jean H iáodore. Esses são, com uma pequena variação, os nom es d e dois dos filhos de Rosalie, tal com o foram registrados em um d o c u m e n to posterior: M arie Louise e Juste Théodore. Parece bastante prová­ vel q u e essas sejam as crianças — talvez gêmeos? — nascidas da união de R osalie e M ichel e batizadas na igreja paroquial mais próxima*.

O segundo documento é uma alforria para Rosalie, preparada cm dezem­ bro de 1795 a pedido de Marthe Guillaume, que tinha, cm um determinado momento, readquirido a propriedade formal de Rosalie, pelo menos no papel. Invocando a fidelidade de “Rosalie negra Poulard”, o texto notarial expressava o desejo de Marthe Guillaume de conceder liberdade plena a Rosalie e a esti­ mulava a seguir todas as leis que governavam as pessoas libertadas na colônia. Marthe Guillaume prometeu obter a ratificação oficial da liberdade de Rosa­ lie das autoridades britânicas que estavam agora no controle da região4'. C om esse papel notarial certificando sua alforria. Rosalie chegou bem perto de uma liberdade oficial plena. Mas a aquisição da assinatura das auto­ ridades civis colocou Marthe Guillaume na posição de suplicante diante do general britânico Williamson e seus conselheiros franceses. A questão do es­ tatuto de pessoas de ascendência africana que buscavam reconhecimento form al de sua liberdade continuava em disputa. De sua base de operações em Porto Príncipe, o general Williamson estava tentando reprimir dois grupos de resistentes, em parte persuadindo-os a mudar de lado: as Legiões da Igual­ dade comandadas pelo general republicano André Rigaud e aqueles a quem as pessoas se referiam como ‘os negros revoltados* inclusive um grupo coman­ dado p o r um homem chamado Dieudonnc, que estava se mantendo firme­ m ente na parte exterior de Porto Príncipe. Williamson precisava continuar a recrutar tropas coloniais das plantações e, quando possível, atrair desertores das fileiras das Legiões da Igualdade. Seus conselheiros achavam que, a fim de m anter essa p o lítica de atração, a liberdade só devería ser concedida àqueles que concordassem em servir militarmenre a Grã-Bretanha4*.

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Os consultores de Williamson no Conseilprive se opuseram à aprovaçãr de qualquer outra alforria ‘enquanto durasse a confusão* embora não achas sem que seria sábio indagar com muita rigidez o estatuto de indivíduos que j í estivessem exercendo a liberdade. Com André Rigaud enviando apelos comoventes para a resistência a partir de Les Cayes do outro lado das mon­ tanhas, os fazendeiros aliados de Williamson aconselharam cautela, e reco­ nheceram que alguns ‘abusos* teriam de ser tolerados por aqueles que estavam reivindicando liberdade, dada a delicadeza da situação. Williamson estava preocupado com os-riscos causados pelas pessoas de cor livres e, quando o pedido de Marthe Guillaume passou por sua mesa, ele se recusou a certificar seus atos de alforria, com a justificativa de que eram inoportunos. Rosalie estava sem sorte67. Ppt enquanto, Rosalie ainda podia viver como se fosse livre, já que Marthe Guillaume aparentemente se propôs a não fazer qualquer reivindicação legal sobre ela. Mas Rosalie tinha agora se tornado aquilo que hoje poderiamos chamar de *scmdocumentos’, uma pessoa sem qualquer título que estabelecesse a legitimidade de seu estatuto civil. E quando examinamos de perto sua vida e a de Michcl Vincent, as fronteiras que separavam as categorias usuais para a população de Saint-Domingue começam a ficar indistintas. Rosalie não era nem escrava nem livre. O viúvo colono francês Michcl Vincent não era realmente um ‘fazendeiro’, embora presumivelmente ninguém tampouco se referisse a ele como ‘ralé*. Algumas pessoas podem tê-lo chamado de ‘petit Blanc* (pe­ queno branco), mas ele era filho de um tabelião, sabia ler e escrever perfeitamente, tinha uma pilha de documenK confirmando o fato de ser dono de propriedades e, em um determinado momento, de escravos. Anos antes ele havia tido um monopólio real da coleta de taxas sobre a Venda de carne cm um distrito de Les Cayes e havia sido casado com uma mulher rica. Isso tudo era passado agora, e Les Cayes estava no lado republicano da divisão entre a zona decontrole britânico e aquela das forças de Rigaud. A extraoficialmente livre Rosalie e o viúvo Michel se encontravam em circunstâncias precárias, habitantes sem recursos de um territórip ocupado dentrp de uma colônia tumultuada. No decorrer de 1797 e 1798, os britânicos perderam terreno no sul para o general Rigaud e foram pressionados a sair do norte pelo general Toussaint Louverture, reconhecido pelos franceses como comandante principal da co­ lônia. Igualmente importante, os britânicos perdiam hom ens para a febre amarela, a malária e o tifo. No final de 1798, Louverture já tinha negociado a partida das tropas britânicas de todo o Saint-Domingue. C om a saída dos

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b ritâ n ico s, a abolição form al d a escravidão p ela C o n v e n ç ã o N a cio n a l F ran ce­ sa a g o ra era lei cm coda a co lô n ia. M as a o cu p aç ão d e u lugar ã g u e rra civil, já q u e L o u v crtu re c R igaud lutaram p elo c o n tro le d a p e n ín su la d o sul**. É possível q u e te n h a h a v id o alg u m re fú g io n a c id a d e lito râ n e a d e L cs A b ric o ts o n d e , n o final d e 1798, R osalic estava grávida o u tra vez. N o d ia 12 d e ju n h o d e 1799, foi M ic h cl V in c c n t q u e m levou o re cé m -n a sc id o p a ra a igreja p a ro q u ia l d o C a b o D am c-M aric p a ra ser b atizado. Ele re c o n h e c e u sua p a te rn id a d e c assinou o registro batism al. O bebê. c h a m a d o d e É lisab cth , e ra assim u n e n fa n t n a tu re l (u m a filha n a tu ra l) p o rq u e seus p a is n ã o estav am casados, m as n ã o seria registrada c o m o d e "pai d e sc o n h e c id o ”. M esm o sem a san ção form al, a u n ião d e R osalic c M ichcl V in c c n t estava c o m e ç a n d o a se p a re c e r m ais com u m a fam ília69. A c e rim ô n ia teve ta n to a form a q u a n to a substância d e u m b a tism o a p ro ­ p ria d o . R osalic agora já era identificada com um n o m e batism al, M aric F rançoise, p re su m iv e lm e n te u m reflexo d e um b a tism o re c e n te d e la p ró p ria . A c ria n ç a fo i c h a m a d a É lisa b c th , m as, c o m o m u ita s pessoas d e a sc e n d ê n c ia a fric an a e m S a in t-D o m in g u e , ela tam b é m tin h a um ap elid o , n o caso d e la , D ie u d o n n é . H o u v e u m p a d rin h o — um h o m e m d e sig n a d o c o m o U sic u r L avolaille, q u e trabalhava c o m o c arp in te iro d e navios. O uso d o tra ta m e n to sie u r (se n h o r) — q u e n ã o foi e ste n d id o a M ich cl V in c c n t — sugere q u e o p a d re c o n sid erav a o c a rp in te iro c o m o um h o m e m d e c e rta p o siç ão social. H o u v e ta m b é m u m a m ad rin h a, M aric B lanchc. viúva A u b crt. Ela n ã o recebeu o títu lo d e co rte sia m as tam p o u c o foi ro tu la d a com algum te rm o d e c o r — e m b o ra em anos posteriores, c cm o u tro país. ela p o d e ría ser d e s e n ta c o m o u m a " m u lh e r d e cor*. O s dois p a d rin h o s parecem te r o fe re c id o c e rto g ra u d c e s ta tu to o u p ro te ç ã o à criança — Lavolaille com sua resp eitab ilid ad e c a viúva A u b c rt c o m seus recursos. O c arp in te iro logo desapareceu, talvez d e v o lta á França. M as a viúva iria surgir vários anos m ais tard e co m o a pessoa q u e c u id o u d e É lisa b e th em o u tro p e río d o d c dificuldades'0. Q u a n d o a g u e rra civil dc 1799 resolvcu-sc com a v itó ria d c T o u sta in t L o u ­ v c rtu re , c u ja a u to rid a d e agora abrangia ro d o o te rritó rio , a v ida n a casa d e M ic h el c R osalic parece ter-se a co m o d ad o em u m a m o d esta ro tin a . M ic h cl m an te v e u m a h ab itação n a p a rte in ferio r d c Jérém ic, c u jo valor anual d o a lu ­ g u e l e ra cerca d e 300 libras. Isso colocava M ichcl bem abaixo d e sua v izin h a, a c o m e rcia n te M a rth c G uillaum c, a antiga sen h o ra d e R osalic. cujas várias p ro p rie d a d e s alugadas na p a rte superior d a cidade lh e traziam m ilh a res d c libras p o r ano. N a verdade, a p ro p ried ad e d e M ichcl V in c c n t foi avaliada co m o m e sm o v a lo r daquela d o se n h o r de R osalic antes d c M a rth c G u illa u m c, isso

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é, o velho Alexis Couba, e apenas um grau acima daquela do açougueiro Jean Baptiste Mongol. A partir de janeiro de 1802, quando foi realizado o censo da cidade, todos os antigos donos de Rosalie ainda estavam cm Jeremie, em bora pareça provável que cia e Michcl passassem a m aior p arte de seu tem po no pequeno sitio em Les Abricots71. Michel ocasionalmente ia a um tabelião local para vender o u tro pedaço de seu lote de terra, que ia diminuindo. Em 1801 ele vendeu terra a com pradores registrados como Tomtom e Olive, cultivateurs (trabalhadores rurais), quase que certamente ex-escravos. A casa de Michel era agora aparentem ente com ­ posta dele mesmo, Rosalie, seus filhos e talvez uma em pregada dom éstica adicional, todos morando muito próximo dos lavradores recentem ente liber­ tados da fazenda adjacente do Galbaud du Fort. Podería ser anacrônico dizer que Michel tinha dessa maneira “atravessado a linha da cor* pois, durante o conflito pelo controle militar c político do sul entre os generais Toussaint Louverture e André Rigaud, nenhuma das partes era vista com o branca e a própria brancura não era, sob o governo de Toussaint Louverture, um bastião de privilégio. Mas Michel tinha certamente mudado a estrutura de suas alian­ ças e sua rede de sociabilidade desde seus dias como marido de um a viúva rica em Les Cayes72. O papel de Rosalie na casa é difícil de estabelecer. Não tinha havido casa­ mento, portanto ela não era uma esposa legaL Parece que ela não recebia qualquer pagamento, portanto não era exatamente uma empregada. Mas a escravidão tinha acabado, portanto Michel não tinha qualquer autoridade legal para obrigá-la a permanecer com ele. O termo tradicional m énagère (governanta) pode ser mais adequado, com a distorção de que Rosalie talvez tenha ajudado Michel a se integrar no transformado mundo social do sul em revolução, em vez de ser simplesmente sua criada doméstica e parceira íntima. Na cidade de Jérémie, Marthe Guillaume aparentemente continuava a prosperar. Uma de suas casas na Place d’Armes era ocupada p or Jean Baptiste Dommage, o comandante militar republicano de Jérémie, que tinha como seu superior imediato Toussaint Louverture. Vários dos tabeliães de antes da re­ volução continuavam seu trabalho na cidade, embora seus registros agora le­ vassem o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” em vez das fórmulas realistas do antigo regime ou da ocupação britânica. A compra, a venda e o aluguel de propriedades — mas não de pessoas — continuavam em um ritmo bastante rápido73. Se é verdade que Rosalie e Michel tenham alcançado certa estabilidade após o nascimento de seus filhos, as coisas foram lançadas em uma situação

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M INH A ESCRAVA"

caótica um a vez mais por um a queda de braço entre Toussaint Louvcrture c N apolcão Bonaparte. Em julho de 1801, Louverturc prom ulgou uma C ons­ tituição para a colônia que reiterava a abolição da escravidão e endossava a igualdade racial, ao mesmo tem po em que reivindicava mais autonom ia eco­ nôm ica e política no império francês do que aquela tolerada por Bonaparte. O prim eiro cônsul respondeu enviando uma expedição m ilitar com o objeti­ vo de hum ilhar os generais negros c im por um regime mais apropriado aos interesses dos colonos brancos mais ricos, m uitos dos quais estavam agora em Paris clam ando pela restituição de seus privilégios. Antes de a (ilha de Michcl e Rosalie — Élisabcth — ter atingido a idade de 4 anos, uma força expedicio­ nária francesa sob o com ando do general Charles Victoire Emmanucl Lcclerc, c u n h ad o d e Bonaparte, chegou a Jérémie. O s expedicionários rapidamente venceram o com andante designado por Toussaint Louvcrture, Jcan Baptistc D om m age, inquilino de M arthe Guillaumc74. E ra óbvio pelo com portam ento de Napolcão Bonaparte cm outras partes q u e ele tin h a a intenção de restabelecer a escravidão em Saint-Domingue. em bora não o admitisse. Formalmente, a colônia de Saint-Domingue não foi m encionada na lei francesa de 1802 que restaurava a escravidão cm sua forma a n te rio r a 1789 nas colônias devolvidas à França pelo Tratado de Amiens. A d m itir que a reescravização era um a m eta im portante da expedição sob o general L ederc seria prejudicar o general em suas relações com suas próprias tropas “coloniais”, m uitas delas compostas por hom ens que tinham sido liber­ tados pela abolição anterior. Isso teria também confirmado as piores inferên­ cias que poderíam ser feitas sobre as intenções francesas, fortalecendo o apelo de Louvcrture para mobilizar a resistência arm ada'5. O exército de Lederc conseguiu ocupar as principais cidades portuárias c ele foi inicialm ente capaz de expandir seu controle po r áreas extensas da co­ lônia. A o m esmo tem po, o General articulava para atrair, enganar, ou depor­ ta r aqueles que ameaçavam sua autoridade. Apesar de ter preso c deportado Toussaint Louvcrture, Lederc não pôde vencer a oposição local á afirmação d o p o d e r m etropolitano. N o começo de 1803 as forças expedicionárias se depararam com insurreições p o r todo o sul, m uitas vezes comandadas por oficiais que tinham servido sob André Rigaud. Essas forças da resistência foram capazes de reunir veteranos de vários contextos, bem como milhares de cultivateurs (ex-escravos de fazendas) decididos a recusar a reescravização. N o dia 16 d e janeiro, um desses grupos tom ou a cidade de Tiburon, a o sul de Lcs A bricots e d o C abo Dame-Marie, e conseguiu apossar-se da munição arma­ zenada lá antes de ter sido forçado a recuar. Em março, vários grupos de resís-

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téncia armada já convergiam sobre Les Cayes, o nde concordaram em integ rar sua luta com aquela d o Exército Indígena (A rm ée indigène) sob a a utoridade de Jean-Jacques Dessalines76. A conflagração no sul agora atraiu a total atenção d o alto com ando francês. O próprio general Leclerc tinha falecido de febre amarela, e o general D onatien Rochambeau passou a com andar as forças francesas. R ocham beau p ô s d e prontidão 1.200 tropas sob o com ando do general Sarrazin com ord en s p ara limpar a rota terrestre de T iburon até Les Cayes, mas as unidades de Sarrazin se depararam com forte resistência. Reforços franceses chegaram a Jérém ie n o dia 10 de abril, mas, quando essas colunas tentaram avançar a p a rtir d a cidade, elas também foram desviadas pelas forças da resistência77. Q uando a luta se aproximou da aldeia de Les Abricots, M ichel V in c e n t fez planos para partir — sozinho — para a França. Sua partida naquele m o m e n ­ to teria tido consequências sérias p ara Rosalie. Se a força e x p ed icio n á ria francesa triunfasse, seria m uito provável que a escravidão fosse reim posta sobre aqueles que a revolução tinha libertado. D e fato, o general R ocham beau j.i estava agindo com o se a escravidão estivesse no cam inho de volta. M as, para Rosalie, fugir para outra colônia n o Caribe seria tam bém correr grandes riscos. O s decretos dos comissários civis republicanos franceses, as co n q u istas m ili­ tares de Toussaint Louverture e A ndré Rigaud, e a ratificação d a abolição pela Convenção Nacional eram todos vistos pelas outras potências coloniais com o atos ilegítimos de violência e não transformações definitivas d a lei. N ã o estava claro se qualquer mudança em estatuto obtida graças à revolução seria m antida se a pessoa ultrapassasse os limites da colônia. M as p ara u m a m ãe solteira dc quatro crianças permanecer desamparada em m eio àquilo que estava rapida­ mente se tom ando um campo de batalha era arriscar a vida de to d a a família™. Com a autoridade e a soberania totalm ente contestadas em Saint-D om ingue, a própria ideia de estatuto — escravo ou livre — tin h a se so ltad o d e suas amarras legais normais. Mas isso não significava que M ichel c R osalie deixaram dc se preocupar com a lei. Talvez para persuadir Rosalie a ficar c o m ele até que partisse, ou talvez po r um sentido de obrigação, M ichel p re p aro u u m docu­ mento de alforria que podería servir como prova de liberdade individual depois de sua partida. Escrevendo sem a ajuda de um tabelião, m as u tiliza n d o a lin­ guagem que tinha sido convencional nesses docum entos antes d a abolição, ele declarou que M arie Françoise, cham ada Rosalie, “m u lh e r n e g ra d e nação Poulard”, e seus quatro filhos eram seus escravos e que ele o s libertava. Prom e­ teu também que, se Rosalie decidisse ficar com ele a p a rtir daquele m om ento, ele lhe pagaria salários por seu trabalho79.

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O documento, datado de 10 de maio de 1803, é, de muitas maneiras, um escrito peculiar. Náo há qualquer evidência de que Michcl Vincent tenha sido "dono" de Rosalie como escrava segundo a lei Francesa e ele certamcntc não era seu senhor em maio de 1803, quando todos ainda estavam legalmentc livres sob a lei da Convenção Nacional Francesa. Mas, para conceder a liber­ dade, ele tinha primeiro de reivindicar propriedade. Ele escreveu que desejava que Rosalie e seus quatro filhos pudessem “desfrutar a plenitude da liberdade [...] como os outros ajjranchis dessa colônia”. O termo affranchi (pessoa alfor­ riada) era sob muitos aspectos arcaico em 1803, tendo sido amplamcnte substituído sob os comissários c sob Louverture pelo termo citoyen (cidadão), mas ele se referia à linguagem original do Código Negro, segundo o qual aqueles que tivessem sido affranchis por virtude de uma alforria deveriam gozar dos mesmos direitos que aqueles nascidos livres. O termo tinha, além disso, sido reintroduzido quando o general Leclerc ofereceu declarar jjfram hu aqueles homens negros que se juntassem a suas tropas coloniais. Para Michcl e Rosalie, a propriedade fictícia e as fórmulas do antigo regime nesse docu­ mento tinham aparentemente a intenção de conferir a ela c a seus filhos uma liberdade mais durável e mais defensável que aquela declarada pela Convenção Nacional Francesa. Era de esperar que um regime sucessor ou um regime vi­ zinho aceitassem a declaração de intenção escrita por um homem que se descrevia como um senhor de escravos, fosse qual fosse a política eventual sobre a própria escravidão80. A esse documento improvisado também faltava a assinatura dc um escri­ vão — já que os tabeliães oficiais tinham em grande medida fugido da região em maio de 1803, e alguns deles poderíam ter hesitado em autenticar um texto desse tipo, já que ele oferecia um reconhecimento oficial de um direito de propriedade sobre um ser humano, direito este que estava legalmentc ex­ tinto em Saint-Domingue. Para produzir o texto, Michel parece ter copiado frases de uma carta de alforria padrão, talvez aquela que Rosalie tinha recebido de M arthe Guillaume cm 1795, durante a ocupação britânica, e que nunca tinha sido assinada. Sem qualquer certificação oficial, essa nova declaração de liberdade era efetivamente um texto sous setngprivé, isto é, um texto elaborado pelas partes, mas sem autenticação por uma autoridade legal. É possível que só tivesse plena força se o próprio Michcl Vincent estivesse presente para confirmar sua validade, ou se posteríormente fosse registrado de alguma ma­ neira. Mas as circunstâncias eram totalmente desesperadoras, e isso era pro­ vavelmente o melhor que podiam fazer".

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O documento também enumerava vários elementos da liberdade que M i­ d i el disse estar concedendo a RosaJie — como se o simples fato da m anum issáo não fosse suficiente para garantir que ela podería realmentc ir e vir, cuidar de seus próprios negócios e receber salários, se continuasse a trabalhar para ele. Esse nível de detalhamento refletia em pune qual era a real situação dos ex-escravos.Já em 1793-1794os Comissários Civis Sonthonax e Polvcrel tinham imposto várias restrições ao movimento que podia forçar os recém-libertos a permanecer nas fazendas ou a continuar servindo como domésticos, e em 1800 Toussaint Louverture havia desenvolvido suas próprias regras com pelindo os I lavradores ao trabalho. Então L ederc havia chegado e as reais intenções de Napoleão fionaparte começaram a se espalhar. Q uando L ed erc p rom eteu liberdade àqueles que se alistassem para apoiá-lo, ficou perfeitam ente claro que a escravidão era uma possibilidade renovada para quem não o fizesse. Rosalie e Michel estavam assim criando um docum ento à som bra d e leis contraditórias e das terríveis realidades da guerra. Aos nossos olhos, cientes de que o Haiti acabaria se tom ando independente e do m ovim ento d e longo prazo que se indinaría no sentido da destruição da escravidão nas Américas, uma “alforria” realizada uma década após a declaração de abolição pela C o n ­ venção Nacional parece algo absurdo, particularm ente po rq u e n ã o havia qualquer evidência de que Michel Vincent havia sido "dono” de Rosalie. Mas aquilo que o governo metropolitano na França havia autorizado ele podería também invalidar, e aqueles que estavam na região não tinham meios de saber como essa luta terminaria. Quando as tropas do Exército Indígena, agindo em concerto com Dessalines, prepararam o ataque final contra as forças expe­ dicionárias francesas em Jérémie na primavera de 1803, o destino d a abolição geral em Saint-Domingue estava a ponto de ser decidido. Mas, p ara M ichel e Rosalie, uma alforria individual que lembrava um a prática do ancien régime podia ainda parecer mais segura do que a emancipação geral declarada pela França sob a Convenção Nacional, agora solapada pela restauração d a escra­ vidão por Bonaparte em outros lugares das Antilhas, juntam ente com a rea­ bertura do comércio de escravos no Atlântico. O s dias dos comissários civis republicanos e seus decretos devem ter parecido coisa de um a vida passada. Além disso, se Rosalie se visse obrigada a fugir da ilha, um a declaração escrita por um suposto senhor de escravos provavelmente viajaria m u ito m elhor através das jurisdições do que o decreto de um regime revolucionário contes­ tado. Em uma das últimas linhas do documento, M ichel declarava com oti­ mismo que seu ato particular tinha que ter a mesma força com o se tivesse sido redigido diante de um tabelião82.

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Rosaiie não foi a única a tentar legalizar sua passagem para a liberdade cm um momento de crise. Poucas semanas mais tarde. Charles Daromon. um carpinteiro que estava em uma situação paralela na comunidade vizinha de Grande Rivière, deu um jeito de elaborar um documento semelhante. Nesse caso, um tabelião estava disponível c lhe forneceu a linguagem para formalizar o que ele estava buscando realizar c aquilo que a mulher que o servia tinha esperança de obter. Charles Daromon, escreveu o tabelião, tinha recebido da “cidadã Marie Jeanne, negra", "serviços importantes não especificados na épo­ ca dos maiores alarmes e terrores" e de desejava recompensá-la por sua lealda­ de e bons serviços, libertando-a de todo "compromisso” (m gagem m t) para com ele e seus herdeiros. O tabelião se esforçou para evitar usar a palavra “escravidão” que agora era um anacronismo legal, mas descreveu as ações de Charles usando os term o sa ffram hir (alforriar) e manumtssion (manumissáo), ambos termos clássicos para a concessão de liberdade da escravidão. O texto assinalava uma consciência da mudança do lócus da autoridade, enfatizando que seria responsabilidade da própria Marie Jeanne obter qualquer certificação oficiai desse ato cartorial. Ela deveria, além disso, adequar seu próprio com­ portam ento às leis estabelecidas e "às leis que podem ser e serão estabelecidas no futuro para pessoas na situação cm que ela se encontra e também pelas razões estabelecidas acima”83. Q uando o tabelião de Grande Rivière transcreveu a cópia oficial desse texto em seus registros, não deu a ele o título de affrdnchissem m t ou alforria. C ham ou-o simplesmente de uma "Declaração estabelecendo o estatuto pes­ soal \ita t civil) de Marie Jeanne”. Com efeito, a questão do estatuto pessoal tinha agora se tom ado im portante para todos. Indo adiante em uma zona desconhecida de leis em mutação — ou talvez até de ausência provisória de leis — , relações que tinham contido um componente de reciprocidade, por mais assimétricas que fossem, agora precisavam ser formalizadas dc uma ma­ neira que reconhecia essa incerteza. O carpinteiro podería ter necessidade de m anter M arie Jeanne por p e n o para preservar sua própria saúde ou até sua vida; M arie Jeanne podería ter necessidade dc m anter o carpinteiro a uma distância legal para estabelecer sua própria autonomia. Marie Jeanne, Rosalic e m uitas outras negociavam nesse momento de crise com escrivães, vizinhos e parceiros íntimos, na expectativa de garantir no papel algo daquilo que elas tinham ganhado p o r meio da resolução*4. D en tro de algumas semanas após a assinatura da carta de alforria, a guerra chegou ao distrito de Les Abricots. Um prefeito francês descreveu a situação sem meias-palavras: “Lc N ord est détruit; 1c Sud est cn feu” (O N orte está

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destruído; o Sul está em chamas). Avanços contra os franceses pelas forças dc Dessalines agora eram acompanhados por uma mudança na geopolítica mais ampla do império. O Tratado de Amiens entre os franceses e os britânicos foi rompido na metade de maio e as hostilidades recomeçaram na Europa. O padrão de navegação no Atlântico seria tumultuado conforme a guerra se deslocava para os mares. Michel teve de abandonar seu plano de partir para a França. Considerando a força naval britânica, agora seria quase impossível que as tropas francesas em Saint-Domingue fossem reabastecidas com provisões vindas da Europa85. A combinação de perdas na colônia com a falta de provisões da França deixara a força expedicionária na defensiva diante das tropas que avançavam a partir do baluarte de Les Cayes, deslocando-se para o norte na direção dc Jérémie. Para muitos residentes das comunidades na zona de guerra, o puro terror diante do fogo e da luta que se aproximavam substituiu qualquer pro­ cesso organizado de escolha entre ficar ou fugir. Escrevendo de um amargo exílio posterior nos Estados Unidos, o comerciante e fazendeiro Pierre Chazotte expressou sua fúria em relação ao general francês Sarrazin por não ter conseguido enviar tropas para proteger a população, e se descreveu como tendo supervisionado a evacuação em Les Abricots: “À minha chegada [...] após uma consulta com os moradores presentes, tendo nada mais que duas pequenas embarcações, foi decidido embarcar primeiro as mulheres e crianças brancas e depois as de cor". Sem quaisquer reforços franceses esperados dc Jérémie, ele lembra: abandonamos a aldeia de Abricots no momento em que uma coluna de mil negros entrava correndo nela, com tochas acesas em suas mãos. Do alto das colinas onde esta­ vam as plantações de café dos herdeiros Pauvert contemplamos a aldeota sendo devo­ rada pelo fogo c todas as coisas valiosas depositadas nela pelos fazendeiros vizinhos reduzidas a cinzas.

Navios britânicos estavam rondando o Canal do Vento, e refugiados que tinham subido nos barcos em Les Abricots só podiam esperar que os capitães conseguissem fugir para o reduto seguro mais próximo em Cuba. Aqueles que não puderam encontrar espaço nos barcos se arrastavam com seus pertences pela estrada de terra na direção de Jérémie86. Do ponto de vista do general Dessalines e de subsequentes historiadores haitianos, essas batalhas no sul foram parte de uma guerra muitas vezes cruel que posicionava suas forças contra aquelas de uma potência colonial brutal.

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» • • • • M iiif l A O L R A V A

N o começo de julho de 1803 o Exército Indígena marchou em duas colunas n a direção do porto de Jérémie e as tropas francesas, com alguns infelizes aliados poloneses, descspcradamcntc tentaram ganhar tempo. Apanhados no m eio daquilo, muitos dos civis que tinham se refugiado cm Jérémie já estavam procurando encontrar uma passagem cm algum tipo de navio, com a esperan­ ça de chegar a Santiago ou a Baracoa cm Cuba. Logo a evacuação era geral, com tropas e civis lutando para descobrir uma saída durante um breve cessar* >fogo. U m a capitulação formal por parte dos franceses, possibilitando uma ocupação relativamente pacífica da cidade pelo Exército Indígena, ocorreu nos prim eiros dias de agosto87. Para os refugiados que fugiram da colônia durante essa primavera e esse verão, a questão de estatuto e condição — c particularmcnte se uma pessoa u m a vez libertada p odería se tornar um escravo novam ente — iria se am ­ p lia r m uito, conform e eles se deslocassem para a colônia espanhola de Cuba. C u b a havia fornecido refugio no passado para exilados que fugiam da luta em Saint-D om ingue, mas as autoridades espanholas que lá estavam agora tinham u m a p rofunda suspeita dos regimes revolucionários tanto da França quanto de sua colônia e das políticas que cies haviam introduzido. Sobrevivería a “liberdade natural” reconquistada por aqueles que tinham sido escravizados na colônia francesa a uma m udança de jurisdição? Se não. en tão p ara M aríe Françoise, chamada Rosalie, a liberdade podería em breve ser tão tênue q uanto uma folha de papel, garantida apenas pelo docum ento escrito a tin ta p o r M ichel Vincent.

Notas 1

Para uma descrição do processo gerai de desembarque c atribuição dc nomes, vcya Mcdenc Louis Élic Moreau de Saint-Méry. D acnptm »topoguphupu. pkruqmt, cm lt. polaiqar ri hui» riqtu négres par Marthone Guillaume Aliés fàveur du Sieurs Nartigue”, 7 de dezembro de 1784, Ta­ belião Lépine, SDOM 1277, DPPC, ANOM. O batismo dc Marthe Guillaume na paróquia dc Sainte-Rose em Léogane dia 12 de março de 1741 está registrado em Saint-Domingue, Registro de Ia paroissede Léogane, microfilme de Archives narionalcs, Centre daccueil et de rechercht des Archives narionalcs, Paris (daqui em diante apresentado em formato de número de chama­ da, SOM 5 Mi/62, CARAN). Nele, seu pai é identificado como um escravo e sua mãe, como unu mulher negra livre. Seu pai subsequentemente foi libertado, e seus pais se casaram. Agradecemos a Andrée-Lucc Fourcand por ter contribuído para que nos dirigíssemos a esse documento. 1 Para o casamento da filha de Marthe Guillaume, Marie Annc (Aliés), com Jean Baptiste Azor dit Fominat no dia 28 de fevereiro dc 1783, veja SOM 5 Mi/60, CARAN. Azor, designado um quarteron, tinha adquirido sua liberdade apenas um ano antes. Veja o contrato de casamento de 26 de fevereiro de 1783, Tabelião Lépine, SDOM 1273, DPPC ANOM. 15 Sobre a família Couét de Montarand, veja Regnault de Beaucaron, Souvenirsdefamille: voyages, agriculture, pricédés dune Causerie sur le passé, vol. 1. (Paris, Plon-Nourrit, 1912), 97. Sobre Michcl Vinccnt e a localização de sua terra, vejaJean Hébrard, “Les deux vies de Michel Vincent, colon à Saint-Domingue (c. 1730-1804)’, Reviu dhistoire modeme et contemporaine 57 (abril-junho 2010): 50-77.

70

** H ébrard, "Les dcux vies’. Veja "Venre par Ic Sr. Collet faveur dc M ijçIo ik d u n c négres*e nomméc Julie*. 20 d r março de 1787 n o Tabelião Lépine. SDOM 1283. DPPC. ANOM.

** Veja DominiqucRogcrs,* Les Libres dccouleur dam les capitalcs de Saint Dommguc. Fortune, mentaiicés, et intégrarion à Ia fin de LAncicn Regime 17W)*, (tese dc doutucadn, Univenité de Bordeaux 111, 2001); e Stewart R. King. Blue Cmat tr /ViWrrrd Mtg hrrr IWp/c t f Color in Pre-Revolutionary SaintDomingut (Atbens. Universiry of Geórgia Prrsv 2001). 19 Veja a m o rte registrada cm Porto Príncipe dia 9 dc outubro dc 1833 de um homem idovocom o sobrenom e C ouba, nascido na África: docum ento SOI960. resumido para o AGM. accwado n o site . ** E m um registro de casam ento dc 1802 dc Jérémie, Alexu Couba aparece com o testem unha c lh e atribuem a idade de 90 anos, o que colocaria seu nascimento cm mais ou mm*» I 'I 2. Veia o casam ento dia 17 de julho de IK02 dc Jean Mcynard c Mane l.ada f nenne. documento M v j | 2. A G H , . O casamento do p rópno Couba esta registrado d u 9 de lanrwo de 1781, nos registros da paróquia dc jeremie, reproduzidos em micmtUmc V »M ' M i '9 . C A1 AN 21

C o m p ras de escravos p o r pessoas de cor livres e alguns casamentos entre pm p n eta m » e escra­ vos aparecem nos registros can o n ais de Jeremie m anados em ANOM Sobre o C odigo Negro e a alforria, veja MaJick G hachcm . T h t O U Regime u n J the H-utiam R n o lttw n New York. C am b rid g c Univcrsity Press, 2012), cap. 2.

22 "Liberté de Liscrtc’, 26 de outubro de 1783, no Tabelião Robinet. SDOM 1363.1»PP( thr l mtrd Kingdom. Krw (daqui cm diante NAl'K ),c tio analisadas par |) m d Patmk 1iqgtuici" Vjtv»v. WãranáRn-olutum The Bntuh ,»/ Vj /h/ lK>mvnfme. / -«• b t .tíl Free: The H míiah RrtoJutivn and th* li—Jui** ef Simer^ kN m Ymk. Uambesdge l m m sin Press. 2010). 212. ^

Veja [Le G .G .], "Au* ongines de labolition de loclaiage Pn*lamao>>n» de P«»hefel et de Sonthonax 1793-1“94*. R n nr dhutinrr d n ,oL>mn. V> I pnmetn> trimestre. |* f i ' 24 " t 9 (terceiro c q uarto trimestres. 1949) VU t2V O decreto inniaJ. aplKasrl oo norte declarou qwe todos que estivessem na escrasidào estariam lisrrs e deu a todos os difettm de cidadania h u i cesa. em bora sujeitos a um regime de trabalho especial (43 I " 2 ' A rdouin. É tudes. 2:26S-2~6. Veja Gcggu». SLtvrrt. Már. und /ínWaOM. M

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Bérault Saint Maurtcc. citado cm Gcgguv SLttery. H jr. un.t XnW a/iM

mi

Enes são os termos usados em Coloncl Whitckickr to Mt lesnv 22 «le janemsde I ''M etn 1 \ ) 1/59, NAUK. Sobre os acampamento» nas colmas, « m ‘Adresse a tous les (« m m i iharge» de» autoritês civiles Sc militaircs.” mars l”94* 37 “Extract o f i lettcr from Hcnrv Shirley F.sq to bis Bn*her. dated kwgston 20* luh I*♦» . 423. WO 1/59. NAUK. Veja "Lettcr on thc Sute o f St. Domingo", agosto de 19"4. esento por IV Chamull». e** %Qfc. *

W O 1/59. NAUK. D e Charm illy to M. King. datada lerémie 29 de laneim de I ">4, C arta de um cdvial em S* D om ingue. datada 22 de maio de 1”94. ambas em WO 1/59. NAUK Veta também iKilwis

Avengers, 16”. “Procuration spccialc et gcneraJe par la n” Marthe Guillaume. íaseur d* M Padlette . 12 «k fevereiro de l “94. Tabelião Lafiigc Jcunc. pasta v io . IP. S t. UFL 1 A evidência mais forte para uma data inicial para *cu relac lonamenfo som Mu hei V u* em t o nascim ento dc seus filhos, discutido a seguir Sobre o c ic n to n da liberdade iu> arra* d» «J controladas por Rigaud. veja Carolvn 1 Fwk. * 1 h< Ham an Rrvolunon and the 1 inuts ai ^

Frecdom: D efiningCitizcnship in the Rcssdunonar» Fra*. .U u / // i tf a o - '2 12(*> 1 Ms s l t Veja "Copie des Proccs Ycrbauí d o Dclihcranon» du ( onsetl Pnse dr Mr ^ bvrr II dr m Um de 1 ” 94 ate 12 de setembro de l"94. *2 1 V in Colonial ( h í s f Rrcoed» daqui em diarsrr l i>)

245/5. NAUK. 3 "Remise dc creance par le S. Manolas a Marthe Guillaumr*. W de ag«»»o de l ‘*94. Tabri «ao ^

Lépinc. pasta 6C-2I0. JP. SC. UFL Veja o fragm ento datado dc l ”9S. Bapcêmc». m Paper» a í the Grcflit. pasta 12. carta IV |f ,

SC UFL 63 "AfFranchissement de la negrose Rosai ic par .Marthonrsc*. 2 de driem bro dr 1^*5. T ih d iie

Dobignio. pasta 9-218. JP. SC. UFL ** Veja as discussões nos doctimentos do Conseil prr»e em draembro dr l '* ' r poeiro dr I '44, Treasury Records 1daqui cm diante T) *1 ” , NAUK. ^ Veja a carta do Conseil pnve para o Comandante Morra» d u 12 de setembro dr I ”43. a «? t*irr m o a n u r n . M / t M ^ a i s r **

5 7 (2010): 50-77. S o m e ru e lo s a R alãcl G ó m e z R o u b a u d . V) de iu lh o dc l twva. exp I leg 9. A P XN
a imp« >r ta ç ã o d e escravos", o s navios d everíam ser lib erad o s assim q u e os c ap itae s pa g a sse m a s c u s ta s ju d ic ia is . Isso foi a c o m p a n h a d o cm m a rç o d c IK lo p o r u m a to d o C o n s e lh o L egislativo d a L uisiana su s p en d e n d o as cauções in u ia! m e n te p a g a s p e lo s re fu g ia d o s qu e tin h a m e n tra d o na cidade a firm an d o m a n ­ t e r o u t r o s se re s h u m a n o s c o m o escravos. Esses “d o n o s " a g o ra p«*deriam “p o ss u ir, v e n d e r e d is p o r" d a q u eles q u e eles tin h a m id en tificad o c o m o seus escrav o s n a c h e g a d a . N a d a n a lei federal p ro ib in d o a im p o rta ç ã o de cativos rc a lm e n te c o n c e d ia lib e rd a d e às vítim as d aqueles qu e a tin h a m tran sg red id o . E m e n o s a in d a iria re v e rte r a escravizaçáo dc passageiros trazidos pelos capitães d o s b a rc o s d e S a n tia g o , q u e ag o ra tin h a m sido perdoados*. N ã o só o e s ta tu to d e escravo havia sido a trib u íd o a h o m en s, m u lh e res e c ria n ç a s q u e tin h a m v ivido c o m o pessoas livres cm S a in t-D o m in g u e . m as ate a d e sig n aç ão c o m o livre n o m o m e n to d o d e se m b a rq u e era insegura em um a m b ie n te d e rccscravização em g ra n d e escala. A m u lh e r c h a m a d a A delaide M é tay e r, p o r ex em p lo , havia c h e g a d o a N ova O rle a n s com seus três filhos em u m d o s n a v io s v in d o s d a cid ad e c u b an a d e Baracoa. L ivre sob a lei francesa

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depois de 1794, ela também tinha pago dinheiro a seu antigo dono em Cap•Français, Saint-Domingue, em 1801 a fim de ser liberada de qualquer obriga­ ção restante de trabalho que ela pudesse lhe dever. C om isso, tinha obtido dele um recibo assinado reconhecendo sua liberdade. Em Baracoa ela havia se com portado como uma mulher livre e batizado suas duas filhas recém-nascidas com o livres. Seus vizinhos concordavam que ela tinha estado “à vontade” e gozava sua liberdade à época de sua partida de Cuba. N inguém aparentem en­ te questionou essa liberdade quando ela desembarcou em Nova O rleans c foi com putada como “urna mulher livre de cor”9. Uma vez estabelecida na cidade, no entanto, Adélaidc Métayer se encontrou p or acaso com um alfaiate chamado Louis Noret, que tinha sido sócio de seu antigo dono em Saint-Domingue, Charles Métayer. A firm ando que a família de Charles Métayer ainda tinha uma dívida com ele, N oret conseguiu per­ suadir um tribunal em Nova Orleans a que autorizasse o xerife a prender Adélaidc Métayer e seus filhos e oferecê-los à venda em um leilão a fim de pagar a quantia que N oret afirmava lhe ser devida. E m bora A délaide fosse inicialmente capaz de obter uma suspensão de sua própria venda e a de suas filhas, o tribunal perm itiu que o leilão de seu filho fosse adiante, com a justi­ ficativa de que seu nome não aparecia no recibo assinado p o r C harles Métaver em Cap-Français nove anos antes. O resultado da venda d o rapaz acabou sendo suficiente para cobrir toda a dívida afirm ada p o r N o re t, e Adélaidc M étayer voltou para casa, embora sem qualquer decisão definitiva sobre seu estatuto. Poucos anos mais tarde, o alfaiate N oret ten to u rep etir seu estrata­ gema. Ele conseguiu obter uma procuração do filho de C harles M étayer e uma vez mais afirmou ter direito de propriedade sobre Adélaide Métayer. Foram necessários vários processos legais até que Adélaide M étayer pudesse final­ m ente estabelecer sua liberdade diante dos tribunais da Luisiana10. Antes e depois da incorporação do território de O rleans aos Estados Uni­ dos com o o estado da Luisiana em 1812, parecia fácil afirm ar a propriedade sobre outro ser hum ano e — se a pessoa fosse de ascendência africana — era difícil provar ser dona de si mesma. O estatuto territorial de 1807 sobre mi­ grantes de Hispaniola tinha fornecido algumas sugestões sobre com o a distin­ ção entre escravo e livre podería ser estabelecida: l o d o hom em c m u lh er de co r de H ispaniola, alegando ser livre, irá p rovar sua dita liberdade d ian te d o prefeito d a cidade o u d e q u a lq u e r m a g istra d o p o r depoimentos confiáveis, c o b te r um certificado dessa justificação, c o n firm a d a p e lo d ito prefeito ou m agistrado, c se tal justificação não p u d e r ser feita, o d ito h o m e m o u mulher dc

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A T R A V E S S IA D O G O LEO

c o r *erá considerado um escravo fugitivo c em pregado nas obras pubJicas ate que ele ou eia possa provar sua liberdade ou ser reivindicado por seu dono por meto dr títulos válidos". O ô n u s d a p ro v a recaia sobre o in d iv íd u o qu e afirm ava ser livre, n à o havia q u a lq u e r su p o sição d e q u e a abolição em S ain t-D o m in g u c cm I ~9 V | ~9 « tin h a re a liz a d o u m a tra n sfo rm a ç ã o geral em seu e statu to . N a ausência dc q u a lq u e r d o n o p u ta tiv o , a p e sso a p o d ia até ser co n sid era d a "um escravo fugitivo" O d e s e m b a rq u e cm m assa cm 1809, além disso, d c u a ra p o u c o te m p o o u espado p a ra in q u é rito s fo rm ais, p a rtie u la rm e n te se um d e te rm in a d o "escraso" tosse v e n d id o ra p id a m e n te p a ra um n o v o do n o .

A q u e s tã o d o e s ta tu to p asso u a ser um a q u e stão ta n to dc u r i u n s t á n t i a q u a n to legal. A m a io r p a rte d o s refugiados qu e tin h a m orig in ai m en te fu g id o d c S a in t-D o m in g u c cm g ru p o s havia sido registrada por tabcliacs c au to r ida d e s c o lo n ia is c m C u b a so b u m a m iríadc dc categorias — es< rasos. tn a d o s , n e g ro s, b ra n c o s , m u la to s etc. T in h a m estabelecido d n m u ilio s cm S a n tia g o c foi c o m esses p a re n te s c v izin h o s q u e eles re e m b a n a ra m para a i u o ia n a ( ada p e sso a assim c h e g o u a N o v a O rlc a n s envolvida cm relações dc p a re n te sc o e d e p e n d ê n c ia —

C cm

a lg u n s casos p ro p rie d a d e alegada — que iriam d efinir o

e sp a ç o so c ial in ic ial d a q u e la pessoa na Luisiana. N a m ed id a em que os refu g ia d o s se e stab e le c e ra m n a c id a d e eles teceram aqueles laços um a s e / m ais. c o n s id e ra n d o n ã o só a sua p ró p ria p a rtid a apressada, m as tam b ém o fato dc q u e a L u is ia n a e ra u m te rritó rio d o s E stados L n id o s. P a ra a jo v e m E lisa b e th D ie u d o n n c . filha de RosaJie e M u hei Y in c c n t. a s e g u ra n ç a fo i g a ra n tid a in ic ia lm e n te p ela viuva A u b c rt. q u e s is ia em um a u n iã o c o n s e n s u a l c o m o c a rp in te iro b elga c h a m a d o Je a n L a m h e rt I ) c tr s Q u a n d o eles c h e g a ra m ju n to s cm N ova O rlc an s o estigm a d o ro tu lo "dc c o r ’ foi im p o s to ta n to a E lisab eth q u a n to a sua m ad rin h a, m as sua liberdade apa r e n te m e n te n ã o fo i q u e s tio n a d a . D o m ic ílio s c o m p o s to s p o r u m h o m e m b ra n c o , u m a m u lh e r d e c o r e um a criança n ã o eram exatam ente p o u c o tam i liares c m N o v a O rlc a n s c agora iríam se to m a r ainda m ais num erosos, E am bcrt D c try , a lé m d isso , p a re c ia te r e s ta d o b a sta n te d is p o s to a servir c o m o um p r o t e t o r in fo rm a l d a afilhada d e sua co m p a n h eira .

A v iú v a c o c a rp in te iro c v id c n tc m c n tc tin h a m tra z id o c o m eles dc C u b a t a n t o d in h e ir o vivo q u a n to pessoas q u e eles afirm avam serem seus escravos, fa z e n d o c o m q u e fosse rc la tiv a m e n tc fácil p a ra eles se e stab elecerem na c i­ d a d e . O e m p re sá rio e b o n v tv a n t d e N ova O rlc an s B crnard M a n g n y estav a c m p le n o p ro c e s s o d c su b d iv isã o d c sua p ro p rie d a d e p a ra c ria r u m b a irro

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PROVAS DE UtlliKiSAj

residencial cham ado Faubourg M arigny e esperava v ender terra a créd ito para o s imigrantes que. chegavam. D étry com prou dois lotes na R ua M oreau (agora Chartres) — sem entrada, com 15 anos para pagar. A seguir ele esta­ beleceu um a carpintaria e adquiriu senadores escravos p ara a ju d í-lo em seu trabalho. À época d o censo de 181Q, Lam bert D é try aparecia com o chefe de um a casa descrita com o sendo com posta peá um hom em branco (D étry), três ‘outras pessoas Iivretr ( a viúva, sua afilhada Élisabeth e talvez o u tra criança) e 13 escravos. C o m as pessoas que conseguiram que fossem classificadas co m o sua propriedade n o m om ento de sua chegada e aquelas que eles adqui­ riram na cidade, o casal tinha ascendido eom pletam cnte à categoria de donos de escravos . A própria viúva Aubert, agora cotftSÜ anos, cómeçoiila co m p rar e vender terra e escravos em seu próprio nome. E la rd fi era — e segundo a lei d a Luisiana não podería ser — casada legalmente ç® n Détry, p o rta n to não precisa­ va de qualquer aprovação de um marido para operar e tò n tra ta r em seu próprio nom e. E foi isso que ela fez. N os 40 anos seguintes ela se estabelecería como um a irascível e temível m oradora de Faubourg M arigny, fazendo dinheiro, brigando com os vizinhos ç strv in d o como m ãe substituta para É lisabeth13. A aliança entre Lam bert D étry c a viúva A ubert era u m a u n ião conjugal inter-racial, mas não tinha nada a ver com um costum e (m u ito m itologizado) que mais tarde foi cham ado de plaçage, pelo qual se dizia que m ães de mulhe­ res de cor jovens ‘colocavam" (plaçaient) suas filhas com hom ens brancos como um meio de mobilidade ascendente ou segurança. D étry e a viúva A ubert eram, em vez disso, dois sobreviventes envelhecidos, tendo deixado m uitas dificul­ dades para trás, e com um a disposição evidente de im p o r dificuldades a ter­ ceiros, usando a propriedade de pessoas com o um m eio de ascensão social. T anto D étry quanto a viúva A ubert obtinham renda p o r m eio d o trabalho não rem unerado de hom ens e mulheres que eles m antinham com o escravos. Seu domicílio em conjunto tam bém incluía pessoas jovens de várias condições, inclusive Élisabeth D ieudonné. Logo houve pelo m enos um a o u tra jovem de Saint-Dominguc com prada pela viúva com o escrava em 1813 e cham ada pelo apelido de Trois-Sous (Três-Tostões)w. Q uando D étry morreu em 1821, foi em um a casa que lhe pertencia e que era ocupada pela viúva A ubert. Em um “testam ento cerrado" isso é um testam ento que é colocado lacrado na m ão de um tabelião — ele deixou a maior parte de sua propriedade para duas jovens m ulheres de cor que eram as filhas de seu amigo e executor François Xavier Freyd. À viúva A u b ert ele deu o uso e controle da m aior parte dessa propriedade, porém apenas enquanto

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A T R A V E SSIA DO GOLEO

ela vivesse. E le especificou tam bém q u e dois d c seus escravos deveríam ser li* b e rta d o s q u a n d o atingissem "a idade exigida pela lei para a alforria"1'. D é tr y ta m b é m d esig n o u um legado d c 500 dólares p ara É lisabeth D icud o n n é , q u e p a re c e te r sid o c o n h ec id a na fam ília p elo n om e d c M aric. o p ri­ m e iro n o m e ta n to d e sua m âe (M arie Françoisc dica R osalie) e sua m ad rin h a (M a rie B la n c h e P eillo n , viúva A u b e rt). D é try explicou o legado rcfcrindo-sc a É lisa b e th c o m o su a p ró p ria afilhada, e m b o ra isso não fosse form alm cnce o caso . T a lv e z lo n g o s a n o s d e v id a c o m a viúva A u b e rt te n h a m fe ito d e le

o v e rd a d e iro p a d r in h o d e É lisa b e th 16. D é try n ã o m en c io n o u cm seu te s ta ­ m e n to h e rd e iro s legais p o te n c ia is q u e pudessem estar na Bclgica. m as d e p o is d e su a m o r te u m g ru p o desses p a re n te s cQ n trato u u m a d v o g ad o c te n to u in v a lid a r o te s ta m e n to , in v o c a n d o a “c o n cu b in ag c m ” a b e rta d c D e trv c o m a viú v a A u b e rt. M a s eles ra p id a m e n te chegaram a um a co rd o , re c e b e n d o u m a p o r ç ã o d a h e ra n ç a 17. C o m a p ro m e s sa d o leg a d o d c D é try cm m ãos, É lisabeth (o u M arie) D icud o n n é , a g o ra c o m 23 a n o s d e idade, ficou noiva dc um jovem c h am ad o Jacqucs T in c h a n t, filh o d e u m a m u lh e r d e c o r em igrada d c S a in t-D o m in g u c . Q u a n d o o c o n tr a to d e c a s a m e n to fo i assinado cm 1S22, foi a viúva A u b e rt q u e apareceu c o m eles n o c a r tó r io , a firm a n d o q u e ela tin h a sid o u m a m ãe p a ra a fu tu ra

noiva d e s d e su a in fâ n c ia e q u e a v e rd ad e ira m ác d e É lisab eth estava a tu a lm e n ­ te m o r a n d o n ã o e m N o v a O rle a n s m as n aq u ela região a q u e a viuva se re fe n a a in d a c o m o “S a in t- D o m in g u e ”. A pre sen ç a a u sen te d a m u lh e r q u e a viuva c h a m a v a d e R o sa lie V in c e n t foi assim re co n h e cid a , m as su b o rd in a d a aos d e ­ sejo s d a m a d r in h a , c u ja fa m ilia rid a d e c o m q u e stõ e s d e p ro p rie d a d e estava re fle tid a n o s d e ta lh e s d o c o n tr a to 18.

O parceiro de Élisabeth no casamento era um jovem cujo lugar dc nasci­ m ento era dado de diversas maneiras: Baltimorc, Marvland. ou Halifax. América Setentrional (presumivelmente a Nova Escócia). Jacqucs Tinchant foi designado como “um filho natural”, isto é, nascido dc pais que não eram casados — e foi classificado como uma pessoa dc cor livre. Seu pai aparente­ mente era um colono francês de Saint-Dominguc que tinha emigrado para Baltimore levando consigo pelo menos um homem que ele tentou reivindicar como seu escravo. Um anúncio um tanto queixoso nos jornais dc Baltimorc, assinado p o r um Joseph Tinchant, clama pela volta de *mcu rapaz negro* chamado Jack Zacharie, de quem Tinchant dizia “que tinha passado algum tempo em Hispaniola e que por vários anos vem sendo empregado como co­ zinheiro a bordo de embarcações que saem deste porto”. Joseph Tinchant avisava os capitães dos navios que não contratassem aquele homem. Com o a

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PROVAS DB LIBEKu a u e

fuga dc Jack Z acharic para o m ar sugere, N ova O rleans n ão era o ú n ic o lugar onde a liberdade um a vez ganha em S aint-D om ingue p o d e ría ser reafirm ada. O próprio Joseph T in ch an t deixou poucos vestigios nos registros d e B altim ore e parece ter desem penhado um papel peq u en o o u n u lo n a v ida d e seu filho cm N ova O rleans, além dc lhe ter dado um sobrenom e19. A mãe dc Jacques T in ch an t, ao contrário, aparece n o s registros cartoriais em N ova O rleans com m u ita frequência. Seu n o m e de b a tism o e ra M arie Françoise, mas ás vezes ela era cham ada de Suzette. Seu so b ren o m e era alguma variação de Bayot, Bayole, B aillhot o u Bayotte20. C o m o refugiada d e Saint' -D om inguc, é possível que ela ten h a chegado aos E stados U n id o s (provavel­ m ente Baltim ore) n a década de 1790, acom panhada p e lo T in c h a n t sênior, e talvez p o r um a irmã. Em algum m o m en to após te r d a d o à lu z a criança que seria cham ada de Jacques T in c h an t, ela íoi para N o v a O rle an s, o n d e os regis­ tros cartoriais a classificam com o um a m u lh er livre d e co r21. O itinerário de M arie Françoise Bayot ilustra o p a d rã o re c o rre n te pelo qual refugiados com recursos m odestos se estabeleciam e c o n stitu ía m n ov o s lares. Sendo um a m ulher desacom panhada com u m bebê p a ra cu id ar, B ayot juntou-se, em N ova O rleans, com L ouis D u h a rt, u m ex-oficial e ta m b é m maçom d a região próxim a ao F orte D a u p h in em S a in t-D o m in g u e q u e — como m u ito s em igrados brancos sem d in h eiro , m as c u lto — o fe re c ia seus serviços co m o professor. A fam ília de D u h a rt p o r p a rte d e p a i v iera d o sudoeste a França, cspecialm ente da região d e B éarn p e rto d o s P irin e u s c d o distrito basco d e Saint-Jean-de-Luz. O s antepassados D u h a r t in c lu ía m u m a longa lin h a de m arinheiros c capitães ligados aos d o n o s d e navios e arm adores do p o rto d e N antes22. L ouis D u h a rt e M arie Françoise B ayot form avam u m casal cu ja união, com o a de D é try com a viúva A ubert, n ã o p o d ia ser fo rm a liz a d a em Nova O rleans p o r um m atrim ônio, d ada à proibição legal n a L u isia n a d e casamen­ to entre pessoas brancas e pessoas d e cor. A p esar disso, eles b a tizaram seu p rim eiro filho n a C a te d ral d e S aint L ouis em ju n h o d e 1810, d ando-lhe o nom e d e Pierre D u h a rt. U m segundo m en in o foi c h a m a d o d e L ouis Alfred D u h a rt. Jacques T in c h an t, o filho de M arie F rançoise B ayot, ad q u iriu assim dois m eios-irm ãos que m ais tarde seriam seus sócios co m e rcia is e, posterior­ m ente, p a d rin h o s d e suas crianças23. O professor L ouis D u h a rt tin h a um a posição considerável e n tre os maçons vindos d e S aint-D om ingue, m as sua situação fin an c eira e ra frág il — Nova O rleans estava repleta d e refugiados te n ta n d o sobreviver e n sin a n d o francês. Em 1817-1818, L ouis te n to u se to rn a r u m fazendeiro, c o m p ra n d o plantações

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A TRAVESSIA DO GOLEO

d e algodão n a P aróquia de Plaqucm inc cm sociedade com outros investidores (u m deles tam b é m m em bro de sua loja maçônica). Aparentemente ingênuos em seus negócios com erciais, os sócios acabaram sendo enganados, perderam m u ito capital e d e um m o d o geral se viram cercados de falta de sorte. Por sua vez, eles passaram a desgraça para seus escravos domésticos, que haviam sido tran sferid o s p a ra o trab a lh o na plantação. O em preendim ento não prosperou e o g ru p o d e investidores foi dissolvido com m uito ressentimento*'4. A o v o lta r p a ra N o v a O rle an s após sua ruína. Louis D u h art aparente­ m e n te a b a n d o n o u sua identidade com o hom em de negócios solteiro e aber­ ta m e n te estabeleceu dom icílio com Maric Françoisc Bayot. C ontinuaram a c o m p ra r e v en d er escravos conform e seus filhos iam crescendo c m uitas vc/cs se envolviam em transações cartoriais complexas moldadas pelas restrições legais so b re o tip o d e bens que hom ens brancos poderiam transm itir para m u lh eres com q u e m viviam naquilo que a lei considerava com o "concubinagem ”. A lg um as dessas com pras parecem ter sido subterfúgios jurídicos, escon­ d e n d o arra n jo s destinados a proteger o futuro de Maric Françoisc Basot c o das crianças, o u talvez para m anter a propriedade fora das mãos de quaisquer credores p o ten c iais d e L ouis D u h a r r \ Q u a n d o o filho de M arie Françoisc Bayot. Jaeques Tinehant. c a s o u se c o m a filha d e R osalie Vincent, Élisabeth Dieudonné, em 1822. sua união foi. assim, em b lem ática d a criação d e novas famílias “americanas" pela segunda geraçao d a p o p u la ç ã o d e refugiados. D uas m ulheres de cor engenhosas — Marie Françoise B ayot e a viúva A ubert — tinham garantido os primeiros anos de seus jo v en s d e p e n d e n te s em N ova Orleans, apesar da existência de uma legis­ lação h o stil, e tin h a m lhes fornecido recursos e conexões. A próxima fase iria exigir m u ito tra b a lh o p o r p a rte dos próprios antigos dependentes, bem com o a renegociação desses relacionam entos familiares26. D u ra n te o prim e iro a n o após o casam ento, Jaeques e Élisabeth moraram c o m a viúva A u b e rt e faziam as refeições em sua casa. A viuva podia ser tanto u m a b e n fe ito ra q u a n to um a pessoa difícil, exercendo seu controle e levando seus p a re n te s e vizinhos a tribunais em disputas sobre dinheiro. Com efeito, esteve envolvida em p e lo m enos quatro processos entre 1822 e I8-*0 inclusive u m deles p ro v o c ad o p o r sua recusa de repassar a herança de 500 dólares de D é try p a ra É lisabeth e Jaeques (ela afirm ou tc-Jos gasto com a hospedagem e as refeições q u e lhes dera). Parece quase que cada casam ento ou funeral de alguém p ró x im o a ela p o d ia se to m a r a ocasião para uma disputa legal. Até o m o m e n to d e sua m o rte , décadas mais tarde, a viuva guardava uma pilha desses a to s e decisões ju ríd ico s em um a caixa de ferro cm seu armário2-.

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PROVAS DB LIBERDADE

N o dia 1° de janeiro de 1825> Élisabeth e Jacques, q ue tin h a m se m u d ad o d a casa da viúva, levaram seu prim eiro filho para ser batizado n a C a te d ra l de Saint-Louis, n o coração d a cidade velha. A o c o n trá rio d e seus pais, o bebê François Louis T inchant, designado um quarteron libre, era um a criança legí­ tim a, nascido de um casam ento legalm ente reconhecido. A rede d e a p o io fa­ m iliar — e presum ivelm ente a inspiração para o nom e d o bebê — estava visí­ vel n a cerim ô n ia, com a m ãe d e Jacques, M a rie F ran ço ise B ayot, c o m o m adrinha e seu parceiro, Louis D u h art, com o p a d rin h o 28. Para quase todas as pessoas livres designadas com o “d e cor", n o e n ta n to , o espaço social em N ova O rleans tinha se estreitado. O C ó d ig o C ivil d e 1825 p ro ib iu àqueles que tin h am vivido em “concubinagem ab erta ” d e receber propriedade real substancial de seus parceiros — u m esforço d ire to d o legis­ lativo para reduzir uniões de longo prazo entre hom ens brancos e m ulheres de cor. Isso não prejudicaria Jacques e Élisabeth diretam ente, m as afeto u a mãe d e Jacques, M arie Françoise Bayot, que foi im pedida pela lei da L uisiana de casar com seu parceiro branco, L ouis D u h a rt. P ouco depois, u m e statu to adicional declarava que todas as pessoas de cor livres que tivessem e n tra d o no estado desde 1825 eram obrigadas a partir. U m a vez m ais, Jacques e É lisabeth não foram implicados diretam ente, m as a intensificação d a h o stilid a d e oficial era inequívoca29. E m bora Élisabeth e Jacques tenham , eles próprios, se casad o d e n tro da categoria de “pessoas livres d e co r”, cada u m deles tin h a sido c ria d o em uma casa atravessada p o r aquilo que estava cada vez mais re tratado c o m o u m a firme lin h a de cor. As investidas d a legislação d a Luisiana c o n tra casais inter-raciais representavam ta n to um ataque sim bólico q u a n to substantivo ao m e io social em que Jacques e Élisabeth viviam e serviría para restringir a esco lh a d e par­ ceiros para seus próprios filhos. E m m arço de 1830 o tom das declarações produzidas p e lo legislativo do estado era violento. M isturando a ameaça p otencial d e “d e sc o n te n ta m en to entre a população de co r livre” com o perigo de “in su b o rd in ação e n tre os es­ cravos”, um novo regulam ento prescrevia “prisão p e rp étu a c o m tra b a lh o for­ çado” o u a pena d e m o rte para aqueles considerados c u lp a d o s d e escrever, im prim ir, p ublicar o u d istrib u ir q u alq u er coisa q u e p u d esse e n c o ra ja r tal descontentam ento. Q ualquer um que fizesse uso d e linguagem “e m qualquer discurso público, d o tribunal, d a tribuna, d o palco, d o p ú lp ito o u qualquer lugar, fosse ele qual fosse”, inclusive conversações privadas, q u e tivesse uma tendência a produzir tal descontentam ento ou a excitar in su b o rd in aç ão devia ser penalizado com três a vinte anos de trabalho forçado o u m o rte “à discrição

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M a rie Françoisc B ayot c L ouis D u h arc possuíam escravos d o m é s­ tic o s e se ria p o u c o p ro v á v el q u e fossem e n c o ra ja r in su b o rd in a ç ã o e n tre os escravos e m g e ral. M a s eles ta m b é m eram um casal inrcr-racial com d o is filhos q u e te ria m d e e n f re n ta r essas am eaças d e estigm a c suspeição. P o r v olta de 1831-1832, M a rie F ra n ç o isc e L o u is d ecid ira m ab a n d o n a r a L uisiana c e m b a r­ c a r p a ra a F ra n ç a . D irig ia m -se a B éarn, n o sopé do s P irineus, p e rto d a arca da q u a l o s p r ó p r io s p a re n te s d e L o u is D u h a rt tin h a m p a rtid o para as colônias u m a g e ra ç ã o a n te s 30.

Jacques e Élisabcth continuaram em Nova Orleans, onde se prepararam para abrir cam inho pelo labirinto de leis restritivas e tentar se aproveitar da economia urbana em expansão. Sua vantagem primordial seria a própria ha­ bilidade e trabalho de Jacques, mas eles também podiam depender do sistema escravista. Era com um que pessoas livres de cor em Nova Orleans estivessem envolvidas com ele de várias maneiras — às vezes se beneficiando diretamen­ te da propriedade de domésticas ou outros escravos, às vezes facilitando a li­ berdade de escravos com os quais estavam conectados por laços de parentesco ou experiências com partilhadas. N o contrato de casamento de Jacques c JÊjp sabeth, a viúva A ubert tinha transferido para o novo casal a propriedade de uma m ulher chamada G ertrude e de sua filha de 12 anos. Gertrudc continuou a ser alugada nos anos que se seguiram, trazendo uma renda cstavcl para a família. M ais ou m enos uma década após seu casamento, no entanto. Jacques e Elisabeth tom aram a iniciativa de dar a ela uma carta de alforria'1. A m a n u m is s ã o d e u m esc ra v o p o d ia , n o e n ta n to , ser c o m p e n sa d a pela a q u isiç ão d e o u tro s . N a m e ta d e d a dé ca d a d e 1830 a cidade de N ova O rle an s estava se e x p a n d in d o ra p id a m e n te e Ja c q u es T in c h a n t e seu m eio -irm á o Picrre D u h a r t fo r m a lm e n te c o n c o rd a ra m e m c o m b in a r seus b e n s c c ria r um a so c ied a d e p a r a c o m p r a r te rra e c o n s tru ir casas. P edaço após pedaço, eles a d ­ q u irira m te rre n o s n o s s u b ú rb io s d a c id a d e ch am ad o s d e F au b o u rg M angny. N o v a M a rig n y e F ra n k lin . E m 1836, T in c h a n t e D u h a rt gastaram 1000 dólares p a ra c o m p r a r u m n e g ro e sc ra v o c h a m a d o G iles, d ito C la rk , c o m m ais ou m e n o s 21 a n o s d e id a d e . A ssim , e m b o ra Jacq u es T in c h a n t te n h a lib e rtad o , três a n o s a n te s, u m a d a s d u a s escravas d o d o te d e sua esposa, agora ele m a n ti­ n h a u m in te re sse p a rc ia l cm o u tr a pessoa co n sid era d a c o m o p ro p rie d a d e '2.

N os próximos anos, T inchant e D uhart venderam lotes de terra nos subúrbios, estreitos na frente mas suficientemente profundos para construir uma casa e suas dependências. M uitos dos compradores eram homens e mulheres de cor. Jacques T inchant era um carpinteiro que se tomara construtor e trans­ formava terra rural de propriedade de brancos, à margem da cidade, em lotes

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N o dia Ia de janeiro de 1825, Élisabech e Jacques, q u e tin h am se m udado d a casa da viúva, levaram seu prim eiro filho p ara ser batizado n a C atedral de Saint-Louis, no coração da cidade velha. A o c ontrário d e seus pais, o bebê François Louis T inchant, designado um quarteron libre; era u m a criança legí­ tim a, nascido de um casam ento legalm ente reconhecido. A rede d e apoio fa­ m iliar — c presum ivelmente a inspiração para o n om e d o bebê — estava visí­ vel n a cerim ô n ia, co m a m ãe d e Jacques, M a rie F ran ço ise B a y o t, com o m adrinha e seu parceiro, Louis D uhart, com o p a d rin h o 28. Para quase todas as pessoas livres designadas co m o “d e c o r”, n o entanto, o espaço social em Nova O rleans tin h a se estreitado. O C ó d ig o C ivil de 1825 p ro ib iu àqueles que tin h am vivido em “concubinagem ab erta” d e receber propriedade real substancial de seus parceiros — um esforço d ire to d o legis­ lativo para reduzir uniões de longo prazo entre hom ens brancos e mulheres de cor. Isso não prejudicaria Jacques e Élisabeth diretam ente, m as afetou a mãe de Jacques, M arie Françoise Bayot, que foi im pedida p e la lei d a Luisiana de casar com seu parceiro branco, Louis D u h a rt. P o u co d epois, u m estatuto adicional declarava que todas as pessoas d e cor livres q u e tivessem entrado no estado desde 1825 eram obrigadas a partir. U m a vez m ais, Jacques e Élisabeth não foram implicados diretam ente, mas a intensificação d a h ostilidade oficial era inequívoca29. E m bora É lisabeth c Jacques tenham , eles próprios, se casado d entro da categoria de “pessoas livres de cor”, cada um deles tin h a sido criado em uma casa atravessada p o r aquilo que estava cada vez mais re tra ta d o co m o um a firme linha de cor. A s investidas d a legislação d a Luisiana c o n tra casais inter-raciais representavam tan to um ataque sim bólico q u a n to substantivo ao m eio social em que Jacques e Élisabeth viviam e serviría p ara restringir a escolha de par­ ceiros para seus próprios filhos. Em m arço de 1830 o tom das declarações pro d u zid as p elo legislativo do estado era violento. M isturando a am eaça potencial d e “descontentam ento entre a população de cor livre” com o perigo d e “in subordinação entre os es­ cravos”, um novo regulam ento prescrevia “prisão p e rp é tu a com trabalho for­ çado” ou a pena de m orte para aqueles considerados culpados d e escrever, im prim ir, p ublicar o u d istrib u ir qualq u er coisa q u e p u d esse encorajar tal descontentam ento. Q ualquer um que fizesse uso d e linguagem “em qualquer discurso público, d o tribunal, d a tribuna, d o palco, d o p ú lp ito o u qualquer lugar, fosse ele qual fosse”, inclusive conversações privadas, q u e tivesse uma tendência a produzir tal descontentam ento o u a excitar insubordinação devia ser penalizado com três a vinte anos de trabalho forçado o u m o rte “à discrição

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d o trib u n a l”. M arie Françoisc Bayot c Louis D uhart possuíam escravos dom és­ tic o s e seria p o u c o provável que fossem encorajar insubordinação entre os escravos em geral. M as eles tam bém eram um casal intcr-racial com dois filhos q u e te ria m d e e n fre n ta r essas ameaças de estigma c suspeição. Por volta de 1831-1832, M a rie Françoisc e L ouis decidiram abandonar a Luisiana e em bar­ c a r p a ra a F rança. D irigiam -se a Béarn, no sopé dos Pirineus, perto da arca da q u a l o s p ró p rio s parentes de Louis D u h art tinham partido para as colônias u m a geração a n te s30. Jac q u es e É lisab eth continuaram cm Nova O rlcanv onde se prepararam p a ra a b rir c a m in h o pelo labirinto d e leis restritivas c tentar se aproveitar da e c o n o m ia u rb a n a cm expansão. Sua vantagem prim ordial seria a própria ha b ilid a d e e tra b a lh o d e Jacques, mas eles tam bém podiam depender do sistema escravista. E ra c o m u m q u e pessoas livres de cor cm Nova Orlcans estivessem envolvidas c o m ele d e várias m aneiras — às vezes se beneficiando dirctam en te d a p ro p rie d a d e d e dom ésticas o u outros escravos, às vezes facilitando a li b e rd a d e d e escravos co m os quais estavam conectados por laços dc parêntese o o u e x p eriên cias c o m partilhadas. N o contrato de casam ento de lueques c f lisab eth , a viúva A u b e rt tin h a transferido para o novo casal a propriedade de u m a m u lh e r c h am ad a G e rtru d e e dc sua filha de 12 anos. ( .ertrude continuou a sc r a lu g a d a n o s a n o s q u e sc seguiram , trazendo uma renda cstascl para a fa m ília . M a is o u m e n o s um a década após seu casamento. n entanto. J (pies e É lisa b e th to m a ra m a iniciativa dc d a r a ela uma carta de alfrna' . A m a n u m issã o d e um escravo podia, n o entanto, ser compensada pela a q u isiç ão d e o u tro s. N a m etade da década dc 1830 a cidade dc Nova ( >rlcan\ estava se e x p a n d in d o rapidam ente eJacques T inchant c seu m cm-irmao iV r rc D u h a r t fo rm a lm e n te concordaram cm com binar seus bens c criar uma so cied ad e p a ra c o m p ra r terra e construir casas. Pedaço apos pedaço, clrs ad q u irira m te rre n o s n o s subúrbios d a cidade cham ados dc Faubourg Marignv. N o v a M a rig n y e Franklin. Em 1836. T inchant c D uhart gastaram

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p a r a c o m p r a r u m n e g ro escravo cham ado Gilcs. d ito Clark, com mais ou m e n o s 21 a n o s d e idade. Assim, em bora Jacques T inchant tenha libertado, trê s a n o s a n te s, u m a d as duas escravas d o dote dc sua esposa, agora ele m anti­ n h a u m in te resse parcial cm o u tra pessoa considerada com o propriedade'*. N o s p ró x im o s anos, T in c h a n t c D uhart venderam lotes dc terra nos su­ búrb io s, e streito s n a frente m as suhdcnrcm enrc profundos para construir uma casa e suas d epen d ên cias. M uitos dos com pradores eram hom ens c mulheres d e cor. Ja c q u e s T in c h a n t era um carpinteiro que sc tom ara construtor e trans­ fo rm av a te rra ru ra l de p rop riedade dc brancos, à margem da cidade, em loccs

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com casa e m oradia para um a clientela m ultirracial. Blaise, c o n h e c id o com o Blaise Léger, um negro forro, p o r exem plo, p ag o u a T in c h a n t e D u h a r t 400 dólares p o r um lote em Faubourg Franldin m ed in d o 11 m etro s n a R u a W a­ shington e 36 na Rua M orales. A s redes de parentesco e d e p e n d ê n c ia nessas comunidades eram bastante densas. O p ró p rio Blaise L éger tin h a sid o rccentem ente alforriado de acordo com o testam ento e disposição d e ú ltim a von­ tade de Jcan L am bert D étry, o m esm o carpinteiro belga q u e tin h a ajudado a esposa de Jacques T in c h an t um a década antes. E n tre a m o rte d e D é try e a alforria formal, o jovem Blaise tin h a vivido n a casa d a viúva A u b e rt, inclusive durante o ano que Jacques e É lisabeth tam bém m oravam lá. A v e n d a d o lote para uma pequena casa para Blaise Léger q u a n d o ele a tin g iu a id ad e d e 23 anos e adquiriu sua liberdade pode m u ito bem ter envolvido ta n to o cum prim ento de um a obrigação fam iliar com o p u ra lógica com ercial33. Jacques prosperou com o artesão e h o m em d e negócios, e ele e Élisabeth estabeleceram um a família acom odada e estável. C o m m ú ltip lo s laços d e pa­ rentesco e aliados que podiam fornecer recursos e p ro teç ão , e c o m u m lugar seguro na área da construção du ran te u m p e río d o d e expansão u rb a n a , o casal progrediu regularm ente até o b te r um a p ro sp erid ad e m o d esta . E n tre 1825 e 1836 tiveram cinco filhos, com eçando com L ouis (François L o u is) e passando p o r Joseph, Pierre, Jules e finalm ente Ernest. À m edida q u e Jacques e É lisab eth p ro sp e rav a m e c o n o m ic a m e n te , eles tam bém procuravam se desfazer d e alguns d o s sinais d o estig m a individual que pesava sobre seus p róprios p ro b lem as d e p o sição social. Jacq u es tinha, desde o começo, adotado o sobrenom e de seu p a i ausente, T in c h a n t, e ninguém parece ter questionado esse uso. É lisabeth, n o e n ta n to , tin h a c h eg ad o a Nova Orleans com o “filha natural” de u m a m u lh e r africana e u m francês falecido. N o contrato de casam ento que sua m ad rin h a tin h a supervisionado, ela recebeu apenas o prim eiro nom e M arie e o apelido D ie u d o n n é . É lisa b e th m ais tarde viría a dizer que o nom e M arie lhe tin h a sido a trib u íd o e rro n e a m e n te , porque era o nome de batism o de sua m ãe ausente. Fosse q u a l fosse o p rim e iro nome que ela usasse, quando É lisabeth assinava sem u m so b re n o m e, su a falta de li­ nhagem legítim a— e a possibilidade d e q u e ela e su a m ãe tivessem sido escra­ vas — tomava-se visível34. O casam ento co m Jacques T in c h a n t n ã o a p a g o u o e stig m a . A prática normal nas jurisdições da lei civil d e língua francesa exigia q u e u m a mulher casada fosse identificada nos d ocum entos legais c o m o n o m e q u e aparecesse em sua própria certidão d e nascim ento, g eralm e n te se u p rim e iro nom e c o sobrenome paterno. O casam ento n ão m udava o n o m e legal d e u m a mulher;

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o u so d o so b re n o m e d o m arid o era costum e, não um uso legal. A tarefa de É lisa b e th , p o r ta n to , foi o b te r o d ireito a um sobrenome paterno respeitável em v e z d o a p e lid o D ie u d o n n é. Q u a n d o seu prim eiro filho foi bati/.ado em 1825, e la tin h a d a d o u m passo nessa direção, persuadindo o padre a inscrever seu n o m e c o m as palavras "É lisabeth V incent". C om o sua própria mãe. Élisab e th a g o ra in fo rm a lm e n te adotava o sobrenom e de Michcl Vincent. que tinha m o rrid o e m C u b a . A p aren tem en te nada a im pediu de fazer isso diante do p a d re M ic h a u d n a c a te d ra l” . S e ria u m p o u c o m ais o usado fazer essa afirmação cm um docum ento ».cr tificad o p o r u m n o tá rio p úblico, aum entando assim sua aparente legalidade E m 1834, Ja c q u e s T in c h a n t vendeu um terreno c o tabelião Octave de Armas fo rm a liz o u a v e n d a , m en c io n an d o o com prador c o vendedor um io çrn> ,ir couleur lib res (p esso as d e c o r livres). Sob os termos de seu contrato dc casa m e n to , É lisa b e th m a n tin h a um a hipoteca geral sobre todas as propriedades d e Ja c q u e s e, p o r ta n to , seu consentim ento para a venda era necessan* • 1’rcMi m iv e lm e n te o b te n d o a p ista sobre seu nom e legal no contrato dc casamento, o ta b e liã o a m e n c io n o u p rim eiro com o Marie I )ieudonnc Mas ele ta n .k m re c o n h e c e u a m a n e ira c o m o cia agora sc intitulava e expandiu o nome para “M a rie D ie u d o n n é d ite É lisabeth V incent" hra comum que o tabclia< ■tram micisse u m p o u c o d a com plexidade dos nomes dc Nova Orlcans a t r a 'i ' d > u so d o te r m o d ite (d ita ) — co m o d ite significando sua pr«*pna n u e rtc /a q u a n to a o e s ta tu to d o se g u n d o nom e. A própria Élisabeth t»»i cm trente c assin o u o d o c u m e n to c o m o “É lizabth V incent" O m odo dc escrever estava in c e rto , m a s s u a re iv in d icação im plícita, que era levar sua ascendem, u ate M ic h cl V in c e n t, estava d a r a 36. A p e sa r d isso , a faJta d e sobrenom e, que era um estigma, continuav a vivivcl em seu c o n tr a to d e c asam ento, u m docum ento que ela tinha que apresentar re p e tid a m e n te q u a n d o Jacques precisava se envolver cm transa», «k-s legais h m n o v e m b ro d c 1835, p o ré m , Jacques c Élisabeth encontraram uma maneira de fo rm a liz a r o c a m in h o d e Élisabeth para a respeitabilidade, fa/cnd-»com que o s p ro c e d im e n to s n o tariais o s beneficiassem. Eles foram ao rscritono do ta belião T h é o d o re Seghers p ara apresentar uma “retificação" formal dc seu nome c o m o a p a re c ia n o c o n tra to dc casam ento. O casal agora apresentava uma c ó p ia d a c e rtid ã o d e batism o, n a qual seu pai Michel Vincent tinha reconhe­ c id o su a p a te rn id a d e . E solicitavam que, com base nessa evidência, o nome d e la fosse fo rm alm en cc “retificado" para Élisabeth D ieudonné V in c e n t'. O s ú b ito a p are cim en to desse pedaço dc papel foi certamcnrc conveniente. O d o c u m e n to era a p are n te m en te um a cópia oficial, datada de 25 dc m aio dc

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1823, da certidão de um batismo que tinha ocorrido décadas antes na colônia francesa de Saint-Domingue. Alguém tinha evidentem ente conseguido que um funcionário público haitiano rctranscrevcsse aquele assento sacramental de 1799, que tinha, ele próprio, sido elaborado n o m eio d a Revolução H ai­ tiana. £ agora alguém tinha enviado ou trazido o novo docum ento para £lisabcth na Luisiana38. Uma lista de passageiros de um navio, que sobrevive nos arquivos, sugere quem provavelmente foi essa pessoa. N o dia 20 de abril de 183S um a em bar­ cação de dois mastros, o brigue A n n , atracou em N ova O rlean s após uma viagem desde Porto Príncipe, Haiti. A bordo estava um passageiro cujo nome era listado como Rosalia Vincent. A forma espanhola do nom e Rosalie pode ter sido da época em Cuba; o sobrenome V incent vinha de seu agora falecido companheiro, o colono francês Michel Vincent. Parece um bom palpite dizer que Rosalie trouxe consigo o assento cuidadosamente certificado, provando o fato de Michel Vincent ter levado a filha dos dois até a p ia batism al em Cabo Dame-Marie, Saint-Domingue, 36 anos antes39. Esses documentos, porém, não eram necessariamente suficientes para al­ cançar a meta de Élisabeth. Sob o Código Civil de 1825 da Luisiana, crianças de cor livres mas ilegítimas só eram legalmente "perm itidas a p ro v ar sua des­ cendência de um pai também de cor”. Em 1835, no entanto, o m arido de Éli­ sabeth, Jacques Tinchant, era um construtor respeitado, conh ecid o pelo ta­ belião de Nova Orleans, Théodore Seghers, com o um cliente que comprava e vendia terras e ocasionalmente um escravo. O notário, p o rta n to , estava dis­ posto a ignorar a pequena irregularidade na proposta de "retificação” d o nome de Élisabeth. Seu pai Michel Vincent, afinal, era um francês m o rto há muito tempo, e não um membro da elite branca de Luisiana. Ele n ã o escava em uma situação que lhe permitisse criar objeções a essa afirmação d e paternidade'*0. Considerando a sutil distinção feita n o C ód ig o C ivil d a Luisiana entre reconhecimento e legitimação, não é totalm ente claro se o fato d e o nom e de Michel Vincent estar na certidão de batism o realm ente c oncedia a sua "filha natural” o direito legal de adotar seu sobrenom e. M as, n o m o m e n to em que a "retificação” foi incluída no registro, e foi feita um a referência cruzada à margem da cópia de arquivo de sua certidão de casam ento original, Élisabeth Dieudonné tomou-se, para todos os objetivos práticos, É lisabeth Vincent Agora, quando seu nome aparecia em docum entos legais, nã o m ais lembrava o de uma criança nascida fora do casamento de um a m ãe q u e havia sido escra­ va, e sim era indistinguível da denominação daqueles nascidos em famílias que sempre tinham sido livres41.

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A m odificação d o n o m e de Élisabeth foi um passo im portante para sua resp eitab ilid a d e , m as n ã o p o d ia m itigar as lim itações práticas im postas ás pessoas d e c o r em N ova O rlcans na década dc 1830. Desde sua prim eira in­ fância Jacqucs e É lisabeth tin h am vivido em um meio profissional de artesãos q u e tin h a c o m o n ú cleo principal os refugiados de Saint-D om inguc. m uitos dos q u ais haviam ad q u irid o um a boa instrução. O padrasto de Jacques. l.ouis D u h a rt, e ra p ro fesso r c o p ró p rio Jacques assinava seus contratos com uma m ão con fian te. A le tra de É lisabeth era mais hesitante, mas ela tinha conse­ g u id o pelo m en o s u m a alfabetização básica. As perspectivas para seus proprios filhos, n o e n ta n to , foram prejudicadas pelo escrutínio hostil im posto as p o u ­ cas escolas q u e aceitavam crianças de cor, com binado com a falta dc cdtu ação secundária (colégios) disponível para essas crianças cm Nova O rlcans |a n |iirs e É lisabeth provavelm ente conseguiram a princípio se adaptar a falta dc c h o Ias apropriadas arran jan d o instrutores particulares para seus filhos mais selhos. L ouis e Jo se p h , m as havia um lim ite para essa estratégia'**’. U m d c se n co ra ja m en to adicional pode ter sido a perspectiva dc uma atenção m ais rig o ro sa a o cum p rim en to da lei que exigia que todas as pessoas dc c o r livres cm N o v a O rleans, exceto aquelas nascidas no estado, sc registrassem a n u a lm c n te n a pre fe itu ra , m ostrando evidência dc seu estatuto legal i» m o livres e a te sta d o s d e sua confiabilidade fornecidos por uma pessoa branca. Jacques e É lisab eth , c o m o m uitos outros membros relato amente prosperos d a co m u n id a d e, haviam aparentem ente sc recusado a obedecer a essa regra nos p rim e iro s an o s. O n o m e de Jacqucs aparece no catalogo da cidade e nas listas d e im p o sto s, m as n ã o consta nesse registro hum ilhante. N ão estasa J a ro . no e n ta n to , p o r q u a n to tem p o os privilégios dados a sua modesta riqueza irum durar. O legislativo d a Luisiana estava fortalecendo uma única c aviltante linha d c cor. A ssem bléias xenófobas de brancos pedindo restrições no emprego de escravos e pessoas livres d e c o r sugeriam que mais restrições estavam pros avelm en te a c a m in h o 43. N o fim d a décad a d e 1830, o casal começou a vender suas propriedades cm preparação p a ra o u tra partida. A mãe dc Jacques, Maric Françoisc Havot. tinha se estabelecido n a França e parece ter estado mal de saude. A mãe de FJisabcth. Rosaiie V in c en t, agora m ais o u m enos nos seus "0 anos, tinha m uito prova­ v elm ente c o n c lu íd o sua visita à m etrópole escravista dc Nova O rlcans c vol­ ta d o p a ra o H a iti, o n d e reconstruira sua vida depois da expulsão dc C uba. Jacques ag o ra v e n d eu alguns dos pequenos lotes urbanos cm Nova O rlcans ao m esm o te m p o em q u e m anteve alguns para renda de aluguéis. N o dia 12 de m aio d e 1840 ele foi p ela últim a vez ao tabelião da família e registrou uma

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procuração para seu m eio-irm ão Louis A lfred D uharc para que este adm inis­ trasse seus negócios em sua ausência44. N o entanto, havia um a transação embaraçosa p a ra com pletar. Seis anos antes o casal havia alforriado a escrava cham ada G ertru d e que tin h a trabalha­ d o n o dom icílio da viúva A ubert quando Élisabeth era criança e tin h a sido cedida legalmentc a Jacques e Élisabeth à época de seu casam ento. M as eles ainda m antinham com o escrava a filha de G ertrude, M aric Louise, que agora tin h a 22 anos. As restrições legais da Luisiana sobre alforria faziam com que a libertação de um escravo dessa idade fosse trabalhosa e difícil e Jacques e Élisabeth parecem nunca ter tom ado a iniciativa. Em vez disso, apenas algumas semanas antes de deixar N ova O rleans eles foram ao tabelião d a fam ília e oficialm ente venderam M aria Louise para sua própria m ãe . Sob os term os do contrato, G ertrude deveria pagar ao casal 800 piastras (mais ou m enos o m esmo valor em dólares) em várias prestações. Q uando o últim o pagam ento fosse feito, M aric Louise se to m aria livre. Jacques e Élisa­ b e th parecem ter planejado esse procedim ento a fim de drib lar as restrições sobre alforria, ao mesmo tem po em que extraíam algum a renda d o processo. O contrato transform ou M arie Louise em um tipo específico de “pessoa com um preço”, legalmentc escrava de sua própria mãe, que, p o r sua vez, tinha de pagar um a quantia próxim a ao valor de m ercado pela liberdade d a jovem. A lei da Luisiana considerava M arie Louise um sta tu liber, alguém que tin h a unu promessa reconhecida de liberdade futura. M as um a sequência d e pagamentos e passos jurídicos adicionais ainda seriam necessários p a ra q u e a prom essa sg tomasse realidade44. \ C om seus negócios financeiros e legais em ordem , Jacques e Élisabeth es­ tavam prontos para partir. Seu filho mais velho, L ouis T in c h a n t, ficaria para trás, um a conexão com o m u n d o dos negócios n a cidade e m expansão. É possível que Jacques tenha enfrentado um m o m en to difícil q u a n d o procurou um passaporte para si m esmo e seus dependentes, p o rq u e sua nacionalidade continuava bastante incerta. Provavelmente nascido em B altim ore, esse “filho natural” de refugiados de Saint-D om ingue teria tid o apenas u m frágil direito á nacionalidade francesa. Sua reivindicação de u m a cidadania norte-america­ na era ainda mais tênue. H om ens de cor nascidos nas A m éricas co m o Jacques T in c h an t foram os construtores da cidade, m as n ã o p o d ia m c o n ta r com di­ reitos o u respeito com o recom pensa. O s estados escravistas raram ente confe­ riam cidadania form al a pessoas designadas com o “m ulatos” o u “hom ens livres d e cor", em bora alguns dos atributos práticos d a cidadania pudessem às vezes ser exercidos p o r eles47.

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Nesse período de categorizaçóes incertas dc local de nascimento c de resi­ dência, e de definições instáveis de nacionalidade c cidadania, é possível que não tenham exigido dc Jacques muitos documentos para obter um passapor­ te que lhe perm itisse embarcar cm um navio para a França. A legislarão da Luisiana tin h a criminalizado qualquer encorajamento dc "descontentamento” entre pessoas de cor livres. Mas, ironicamente, se o descontentamento fosse produzido pelos próprios atos da legislação c fizesse com que uma família dc co r abandonasse a cidade, as autoridades muito provavelmente não irum im pedir seu cam inho.

Notas 1

D unbar Rowland, org, O ficial Letter Books o f \U C .C CLaihome. »,»l * U U m MS Scatc Departm ent o f Archives and History. 191"). 354-355.

I

Acts P assedatthe First Session ofthe F m t I.epiLuurrofthe IfTTUon ot(hlfjn\ i > i M t f. f Passed a t the Second Sesston o f the F int Lepslature ofth< im r Rowland, O ficia l letter Books, 4:351. Ibidem, 4:354, 363,372. Sobre a autorização veja An A.t for th< Rernnuou ( enair. /Vna./.-ei a n d Forfeitures, andO ther Purposes, 2 Stat. 549çl809' Sobre osonteu.. p.litu.. «tu \o»l,

3 *

5

6

7

*

W hite, Encountering Revolution: H aiti and the Makmg oj the £jrti Rrt-utv. bammore |. tm, Hopkins University Press, 2010), capitulo 5. Rowland, O fficial letter Books, 4:380 c vols. 5, 6. Sobre a questão dc estatuto. ve»a Rrt>c,, , I Scott, “Paper T hin: Frccdom and Recnslavemcnt m the Diaspora of tbc Mamar Rooluii../,' L a w a n d H istory Review 29 (novembro 2011): 1061-108". Sobre esses números, veja Paul Lachance,*The 1809 Immigration ofSaint I)..mincue Rrtugrn to New Orleans: Reccption, Intcgration, and Impact*. I louistana Histon 24 Mm | in u i O s relatórios do prefeito de New Orleans estão cm Rowland. O ficul l etter a mi 387-423; c no M oniteur de la Louisune, 2-» de março dc 1810. Para uma das primeiras transações dc propriedade pela viuva Aubert cm que ela e rotulada ii»mo tal, veja “Vcnte desdave par Pclon V* Aubert a Pm Fourcand*. 29 de (unho de 18I V labeluo Broutin, New Orleans Notarial Archives Research Ccnter daqui em diante St )N \R( , Robert A. Rudand et aL, orgs., The Papers o f James Madison: Presidential Senti. v«J \. i de março - 30 de setembro de 1809 (Charlonesvillc. University Press ofVirginu. 1 . tso. vitJin do Smith a Grymes, 7 de setembro dc 1809: Moniteur de la Loumane. 21dc março de 11 10 Veja Rebecca J. Scott, ' ‘Shc... rcfuscs to ddiver up hcrsdf as the tlavc o i vou/ Peuooner f jm grés, Enslavemcnt and the 1808 Louisiana Digest of the Civil Law» * Tulane turopea» & C tnl Law Forum 24 (2009): 115*136.

18 Ibidem. II Acts Passed a t the First Sesàonofthe First Leguíature. capitulo 30. 121-130.

PROVAS DE LIBERDADE

12 Veja o anúncio da divisão em lotes da propriedade do Marigny no M oniteur de la Louisiane, 3 de junho de 1809. O documento de compra da terra é “Vente de terrain par Bd Marigny à Lambert Détry’, 20 de julho de 1809. Tabelião M. de Armas, NONARC. Veja também o oitavo verbete na primeira folha do censo da Ruc Moreau, em Faubourg Marigny, sobre o registro manuscrito do Terceiro Censo dos Estados Unidos, 1810, reproduzidos no rolo 10. United States National Archives (daqui em diante USNA), Microcópia M252. 1J O artigo 8, cap. 2. titulo 4, livro 1 de A Digest ofth e C ivilLaws Nou/ in Fone in the Territoryof Orleans (1808) (Baton Rouge, Claitors Publishing Division, 2007) afirmava que casamentos entre pessoas brancas livres e pessoas de cor livres eram inválidos. D étry e a viúva aparecem cm registros adjacentes de compras dc escravos nos atos cartoriais de Philippc Pcdcsclaux, 8 c 10 de março de 1817, NONARC. M Sobre plaçage veja Shirley Elizabeth Thom pson, E xiles a t H om e: T he Struggle to Become American in Creole New Orleans (Cambridge, MA. Harvard University Press, 2009), 11-12: Kenncth Aslakson, "Making Race: The Role of f t e e Blacks in the Developmcnt o f New O r­ leans’ Three-Caste Society, 1791-1812* Ctcsc de doutorado, University o f Texas, 2007). A compra de Trois-Sous por Lambert Dctry, atuando em nome da viúva se encontra em “Vente desdave de Louis Seguin i Pelon V " Aubert”, 11 de junho dc 1813, Tabelião Narcisse Brourin. NONARC. 15 Veja “Liquidacion 8c partage de la Succ°* Lambert Détry, aux termes de la transaction judiciampassée entre les héritiers 8c les légataires de feu Lambert Détry* in Succession and Probati Records; e ‘Invcntory o f the Estate o f the late Lambert Détry* arquivo D-1821, Inventorics oi Estates, ambos na Court de Probates, Paróquia de Orleans, Luisiana e nos C ity Archives (d jqu i em diante CA), Louisiana Division, New Orleans Public Library (daqui em diante LD, NOPL'. 1 Veja “Liquidacion 8c Partage* e "Invcntory’, citados acima. 17 O grupo que se apresentou como 'herdeiros legais’ contratou P. Derbigny como seu advogado e pediu o cancelamento do testamento por ser nulo e inválido. Veja Marie Louise Blanche, viúva Aubert, fwc v$. Détry Jcan (François X. Freyd, testamenteiro de). Ano 1822, caso número 206 na Court o f Probates (Séries numeradas) arquivado com os “flattened records' (registros des­ dobrados) em CA, LD, NOPL 18 O contrato de casamento, Jacques Tinchant e Marie Dieudonné, se encontra em 26 de setem­ bro de 1822, Tabelião M. Lafitte, NONARC. O assento sacramental do casamento — que pa­ rece ter sido mal transcrito pelo sacerdote em oficio, que confundiu o nome da noiva com o da mãe do noivo — é o ato 328,28 dc setembro de 1822, em Catedral de Saint Louis, Casamentos de escravos e dc pessoas de cor livres, vol. 1,1827-1830, p c 2, nos Archives o f the Archdiocesc de New Orleans (daqui em diante AANO). Ele lista “la expressada Madre de la contraycntc" (a previamente mencionada mãe da contratante) como uma das testemunhas. Rosalie Vinccnt podería ter chegado a Nova Orleans vinda do Haiti nos dois dias que se passaram após a elabo­ ração do contrato de casamento. Dados os outros erros feitos pelo padre nesse caso, é mais provável que ele se referisse à viúva Aubert, acreditando que ela fosse a mãe da noiva. 19 O assento batismal de Joseph Tinchant, nascido numa família que enviou vários migrantes a Saint-Domingue, se encontra com a data de 30 de maio de 1766 em Registres Paroissiaux, Bonvillet, État civil, Archives départementales des Vosges. Um Joseph T inchant aparece mais tarde em Baltimorc no batismo de A.H.J. Dcnis, 7 de setembro de 1793, Regiscro dc Batismos 1782, SC 2707, reproduzido no microfilme 1510-2, Maryland State Archives. W illiam Thomp­ son, The Balthnore Toum and F dls Point Directory (Baltimorc, impresso para os proprietários por Pechin 8c Co„ 17%), menciona um Tinchant na página 76.0 anúncio no jornal dc Balti-

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m o re p o r Jo s c p h T in c h a n t aparece n o A m eru a n a n d C o m m rrtia l D a ü i A d i ertiser. 4 dc vetem b ro d e 1805. Esses sâo m u ito provavelm ente o m esm o hom em , pai dc |a«.qucs T m ih a n t 20

P a ra a id e n tific a ç ã o c o m o B a y o tte . veja “ V cnte dcsclavc par M r L ouis D u h a rt a S u /c ttc B ayotte, f. d c c.l. [ fc m m e d c c o u lc u r lib re]’, com d ata dc 6 dc janeiro dc 1820, n o lab e li ao M an. L afirte. N O N A R C .

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U m a B ijo tte B a y o tte . d e S a in t-D o m in g u e , m orava cm Baltim orc cm 1“9U“ M a ç o n n iq u e s (FM 2), M a n u scritso ccid cn tau x . B ibliothcquc natior.alc dc 1 C a ry n C osse Bell, R evo lu tio n , R om anticism , a n d t h e .f*ni (

/ ’• :r : 1 ■■■■•■ ■

1 7 1 8 -1 8 6 8 (B a to n R ouge, L ouisiana State Univcrsirv Press,

. " o V b n a>

trad a s d c D u h a r t c o m o d o n o d c plantação, veja “D e p ó t dc l actc J ’a>M»ciati1817; "A ctc su p p lc m e n ta ire dassociation". 28 dc fevereiro dc 1M v c I n r c p '

I luhaf*

D u h a r t e t a u tre s”, 13 d c abril d c 1818; c “É i ssolution dc s»H.ictc entre .c* s

de I.M*-

Frédéric L etan n e u r, A u g u ste L ouis D cstournellcs et A ntom e AK are/ 1 r u / ■'• J to d o s n o T ab e liã o B ro u tin , N O N A RC.

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■•lega dc Veja, p o r e x em p lo , a v e n d a d c escravos dc A m orne Rene M ane l a m \ Soulm**n um 1 D uhart e m e m b ro d a m esm a loja m açônica) a M arte Françoisc Bayot d itr S u /ctt s dc d e 1815, Tabelião Narcissc Broutin. NONARC. O artigo H'. capitulo 2. titulo 2. h s r" ^ ( o f th e C iv il L a w s d c 18Ü8 p ro ib iu um a doação po r titu lo u n iv c rs j entre a q u ele' ' 1 c o n cu b in ag c m . O C ó d ig o C ivil d c 1825 foi ainda mais restritivo. Sobre ri 'tris tas às pessoas d c c o r livres, veja tam bém T hom as Ingcrsoll. "Free Blasks in a slase

26

le g a s im p " '

S . K i c t '

Sc*

O rle an s, 1718-1812", W illia m a n d .\la r y Q uarterly 48 ^199|): l ' ' 2 S o b re essa p rim e ira g eração, veja Lachancc, ‘ |$ 0 9 liiim igration". c N a th a h f D c " *

Saint-D om ingue to New O rleans: M igration a n d Influentes (Ciamcssille. I lll' c r*'t F lo rid a, 2007). S o b re as atividades c o m ovim ento dc pessoas de cor na regia" d c Uj j JfVJrd geral, veja Ja n e G . L anders, A tla n tic Creoles m the Age ofRevolution> Cainhridgc. V

U niv ersity Press, 2 0 10 ). V e ja ja c q u e sT in c h a n tw .M a rie B la n c h c viúva A ubert.caso*W 20. Pansh Oourt. ‘

' ,n \ '"

Seu in v e n tá rio p o st m o rtem se e n co n tra cm "Invcntairc dc Ia succcssion dc feu M ® 2$

J. B. A u b e rt”, 24 d c ja n e iro d c 1849, T abelião O ctave dc Armas, NONARC. St. l-«u , * 0 A ssu n to b a tism a l d c F rançois L ouis T in c h an t. 1“ dc janeiro dc 1825. ato 6"4. na th e d ra l, b a p tism s Slaves-Frce Persons o l C olor. 182.3-1825. Parte II. A.3NO

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P R O V A S D E L IB E R D A D E

29 Thompson, E xila, 81: artigo 1468. cap. 1, título 2, livro 3, C ivil Code o flh e State ofLouisiana (182$); e "An Act to prcvcnc fiee pcnons o f colour from entering into this State and for othcr purposes* aprovado 16 de março dc 1830 em Acts a t the Second Session o f the N in th legislaiure o f the State o f Louisiana (Donaldsonville, LA. C.W. Duhy. State Printcr, 1830), 90-9$. 10 "An Act to punish the crimes thercin mcntíoned, and for othcr purposes”, Aprovado 16 dc março de 1830, cm Acts ã t the Sccond Session o f the N in th Legislature, 96-97. Sobre sua vida na Rança, veja o Capítulo $. 31 Vejao contrato dc casamento dc Jacqucs Tinchant e Marie Dicudonné, 26 de setembro de 1822. Tabelião M. Lafitte, NONARC, e a carta de alforria "Affranchisscmenc dc Ia négresse Gcrtrudc parJacqucs Tinchant et son épouse", 23 de janeiro de 1833, ato 40, Tabelião T héodore Seghcrs. NONARC. Sobre as regras que governavam as alforrias, veja Judith Kelleher Schafêr, Slavery, the C ivil Law and the Supreme C ourtofLouisiana (Baton Rouge, Louisiana State Universitv Press. 1994), 180-181. 32 "'Vente desdave par Marianne Nabon fcJ. [írmmc dc couleur libre] ãJ. Tinchant & P' Duhart", 25 de abril dc 1836. ato 695,1836, Tabelião Théodore Seghcrs, NONARC. ” Veja "Vente de terrain par Tinchant & Duhart à Blaise Légcr n.l. (nègre libre]", 7 dc outubro de 1835, ato 590, Tabelião Théodore Seghers, NONARC. Veja a petição pela emancipação dc Blaise em Pctitions for the emancipatíon o f slaves, 1813-1843, Orleans Parish C ourt, CA, LD, NOPL Lambert Détry tinha morrido em 1821, quando Blaise tinha apenas 10 anos dc idade, e seu testamento pedia que Blaise fosse alforriada quando isso fosse possível dc acordo com a lei da Luisiana. Veja o inventário de Lambert Détry. citado acima, e seu testamento, página 200. Livro de Testamentos 3. CA. LD, NOPL 54 Contrato de casamento de Jacqucs Tinchant e Marie Dieudonné, 26 de setem bro de 1822. Tabelião M. Lafitte. NONARC w Veja o contrato de casamento de 1822 e o assento batismal de François Louis Tinchant, ambos citados acima. 26 "V* de terie parJacqucs Tinchant á Eulalie Dcsprés g.cJ. [gens de couleur libre]", 20 de setembro dc 1834, ato 442, Tabelião Octave de Armas, NONARC 27 Veja "Recrification de noms depouse Tinchant dans son contrat de mariage", 16 de novemb ro de 1835, ato 672, Tabelião Théodore Seghers, NONARC ** Ibidcm. * "List o f ali Passengers taken on board the Brig Ann whereof Charles Sutton is master at the Port of Fort au Prince and bound for New-Orleans", chegando 20 de abril de 1835, nas Listas de Passageiros dc embarcações chegando a Nova Orleans, 1820-1902, reproduzida no rolo 12. USNA, microcópia 259. 40 Veja artigo 226, cap. 3, título 7, livro 1, Civil Code o f the State o f Louisiana (1825). 41 A legitimação era difícil e mesmo o ato menor dc reconhecimento era complexo. Veja artigos 217,220 e 221 do cap. 3, título 7, livro 1, do C ivil Code o fth e State o f Louisiana (1825). 42 Congregações religiosas ocasionalmente forneciam treinamento a crianças dc cor. Veja F.mily C la rk , Masteriess Mistresses: The New Orleans Ursulines and the D evelopment o f a New W orld Society, 1727-1834 (Chapei Hill, Univcrsity of N orth Carolina Press, 2007), cap. 1; e Roulhat Toledano e Maria Louisc Christovic, New Orleans Architecture, vol. 6, Faubourg Trem i and the Bayou Road (Grctna, LA, Pclican PublishingCo., 2003), 99-100. 45 A lista, intitulada “Mayofs Office. Register o f Free Colored Pcrsons 1840-1863", está cm mi­ crofilme em LD, NOPL Sobre as reuniões xenófobas, veja Joseph G. Treagle jr., Louisiana in

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A TRAVESSIA DO GOLFO

th e A ge o fja ckso n : A CLxsh o fC u ltu ra a n d P cn o tu d itu i ( Baton Rougc. Louisiaru State l n n r r

sity Press, 1999 ). 309 -313 . A o c o n trá rio d e seu irm ão Pierre, Louis Alfrcd D u h a n não tinha •* iuntadminguc. pr- n a u ! m en te em 1793, c p o r vários anos subsequentes, a França não tena ncicssj riam ente sid o u m d e stin o acolhedor. Em 1819. no entanto, a» proibiçncs dr casam ento e im igração foram suspensas. Pelo menos na lei. cm 1 s > Foi assim , p o rta n to , q u e n o dia 1~ de abril de 1832. a mac dc lasques I in c h an t havia íin a lm e n te se to m a d o uma m ulher casada rc\pcitascl. ij não mai% vulnerável à h u m ilh ação e privação de direitos de herança que tinham wdo u m p e so p a ra aquelas designadas pela lei da Luisiana como 'concubinas. le n d o p u b licad o os proclam as na porta principal da prefeitura durante os d. isso não lhe daria justificativas suficientes para reivindicar a nacionalidade francesa A m ãe d e É d o u a rd , É lisabeth, nascida na Saint-D om ingue colonial, pode ria te r tid o u m a justificativa m aior para reivindicar a nacionalidade trancesa p o r c o n ta p ró p ria . Seu estatu to com o um a criança nacoda tora do u u m e n t o fazia c o m q u e q u a lq u e r possibilidade de rastream ento da nacionalidade por m eio d e seu p a i francês fosse tênue, mas ja que a própria Saint-D om ingue era francesa à é p o ca d o nascim en to de Élisabeth. a prova do nascim ento la p o d e ­ ría p o r si só ser suficiente. R efugiados nascidos em Saint-D om inguc haviam no passado tid o sucesso em suas solicitações de restituição de sua qualiie de Jrançais. N o e n ta n to , É lisabeth era um a m ulher casada c e bastante provável que sua n a cio n alid ad e fosse considerada atrelada àquela 1 bastante incerta) dc seu m arid o Ja c q u e s1*. P o r e n q u a n to , essas questões dc nacionalidade c cidadania não eram um obstáculo p a ra a realização das metas imediatas da família. O s meninos podiam freq u e n tar a escola. O s pais não sofreram qualquer restrição de direitos signi­ ficativa. E q u a n d o Jacques e É lisabeth registraram a com pra dc suas terras, n en h u m ró tu lo aviltan te os designou co m o gens de couleur libres. O tabelião francês, n o e n ta n to , se d e u ao trabalho de anotar a trilha complicada pela qual É lisabeth, desig n ad a c o m o en fa n t nM urei com apenas um pnm ciro nom e e u m a p e lid o à é p o ca d c seu c o n tra to de casam ento, havia apresentado mais

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PROVAS DE LIBERDADE

tarde um a certidão de batism o a um tabelião de N ova O rleans para estabelecer sua paternidade e adotar o sobrenom e de seu pai, M ichel V incent. A “retifi­ cação” de seu nom e naquele contrato de casam ento original havia sido eficaz, m as apesar disso havia deixado um rastro19. A fazenda cham ada Pédcmarie era um a propriedade am pla e atraente de 21 hectares situada no flanco de um a colina, com um a face voltada p ara a es­ trada que levava ã cidade de Eaux-Bonnes, no cam inho real p ara a Espanha. U m a casa de pedra e dois celeiros adjacentes definiam um pátio retangular; e as terras ao redor da casa incluíam pastagens, cam pos para plantar, florestas de castanhas, vinhedos, terrenos arborizados para lenha e bosques de samambaias usadas com o alim ento para os animais. Jacques e Élisabeth haviam ad­ quirido as seis vacas no estábulo, a grande provisão de grãos e forragem já nos celeiros e um a pedreira que produzia o tipo de p edra dem andada para a recu­ peração de estradas. Em G an e em sua vizinhança, a co lheita d e uva de 1840 foi de alta qualidade, de tal forma que tu d o indica que o em preendim ento teve um bom com eço20. Pédemarie não era um simples sítio familiar. E m bora u m a grande parte de sua área fosse coberta de bosques c não de cam pos o u vinhedos, sua dimensão a colocava no terço superior da distribuição segundo o tam a n h o das proprie­ dades rurais n a França. Sem qualquer experiência an terio r d e administração rural, Jacques e Élisabeth se ajustaram rapidam ente ao costum e local de con­ tratar meeiros. C o m o Louis c M ane Françoise um a década antes, o casal co­ m eçou operando sua fazenda no sistema de métayage, terceirizando as tarefas agrícolas para lavradores locais que trabalhavam a te rra c o m suas próprias ferramentas, e às vezes seus próprios anim ais, e que recebiam u m a parte da colheita com o pagam ento. D iretam ente sob a autoridade d o proprietário da terra, os m eeiros dos Baixos Pirineus não tin h a m n e m a a u to n o m ia nem a segurança de agricultores independentes o u de a rrendatários que pagavam aluguéis po r meio de contratos de longo prazo. O p rim eiro m eeiro em Péde­ marie foi um hom em solteiro e mais velho cham ado Péguille, que logo passou a ser incluído no censo com o Péguille à T inchant, o u seja, o Péguille de Tinchant. Péguille tin h a o apoio de dois em pregados dom ésticos, Jean-Pierre Adam e Jean Paya, tam bém designados co m o de T in c h a n t, am bos prova­ velm ente lavradores. E m bora o uso de um m étayer pudesse fazer de um pro­ prietário um a pessoa localm ente im portante, na década de 1840 o sistema já estava com eçando a ser visto po r m uitos observadores co m o arcaico, desencorajador de investimentos e m uito provavelm ente p o u c o rentável para ambas as partes no final do ano21.

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Três em pregadas trabalhavam p ara a família, fazendo com que a quinta tivesse 13 pessoas n o to ta l. A firm ar sua autoridade sobre dependentes não era um papel e stra n h o p a ra Jacques e Élisabcth, que vinham da sociedade escra­ vista de N o v a O rle an s, o n d e tin h a m controle sobre a escrava G crtrudc e sua filha, bem c o m o sobre u m carpinteiro escravo que trabalhava com Jacques. Sua m udança d a atividade u rb a n a para a rural, no entanto, não foi fácil. Su­ pervisionar a a d m in istraç ão de um vinhedo, um a leiteria e a produção de ce­ reais era u m a re sp o n sa b ilid ad e especializada para a qual eles haviam tido pouca preparação. A s coisas com eçaram a dar errado. Em cada u m d o s recenscam entos subsequentes — 1841.1846, e 1851 — as identidades d o s em pregados que trabalhavam nos campos c das criadas que cuidavam d a casa eram diferentes. O m étayer cham ado Péguillc logo desapa­ receu da lista d e residentes d a propriedade, o que sugere que os T inchants agora estavam te n ta n d o cultivar a terra diretam ente, talvez usando jom alcirot que não apareciam n o censo. E m 1846, o dom icílio já tinha apenas uma criada. O experim ento n o e m p re en d im en to agrícola aparentemente não estava pro­ duzindo os re to rn o s financeiros esperados22. Jacques n ã o alcan ço u a categoria de contribuinte de nível suficiente para exercer o d ireito ao v o to que seu padrasto havia rapidamente alcançado, uma posição p ara a q ual sua falta de nacionalidade francesa documentada teria sido um obstáculo adicional. É possível tam bém que Jacques c Élisabcth fossem considerados p o r seus vizinhos com o pessoas de cor sem raiz conhecida c, cm algum sentido, forasteiros. N o s últim os anos, seu endereço postal incluía a frase “Jacques T in c h a n t, américain", que o distinguia das pessoas do lugar. Mas as conexões am ericanas eram com uns nessa região de emigração frequente para a A m érica d o Sul e o C aribe, c é pouco provável que fossem alvo de um estigma c o n sisten te . A lém disso, em bora sua posição social possa ter sido frágil, o p ad rão d e educação que Jacques e Élisabcth buscavam para seus filhos sugere ta n to a a m p litu d e das aspirações dos pais quanto o ambiente cm que eles conseguiram c o lo car as crianças apesar das dificuldades financeiras que a família e n c o n tro u n a transição para a vida rural23. A fam ília V in c e n t/T in c h a n t havia chegado à França no m om ento cm que a política educacional d o país prom ovia um sistema que ampliava o acesso à educação ao m esm o te m p o cm que reforçava as distinções sociais. As escolas de m eninos fu n d ad as cm cada com una durante a administração do m inistro G uizot eram m odestas, m as garantiam que todos aprendiam a ler. escrever e contar a u m baixo custo, sendo que os indigentes estavam isentos de qualquer pagam ento. M as ir à icole commuruxU era um sinal de condição social infcrioc.

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N as cidades, as famílias m ais prósperas rin h am a o p ç ã o d e m a tric u la r seu s filh o s cm um apension, um a escola p a rtic u la r q u e oferecia u m c u rríc u lo b a s e a d o cm línguas m odernas, h istó ria e geografia. O s m elh o re s e s tu d a n te s d a s p e n s io m poderíam alm ejar a educação superior, in clu siv e n a s g ra n d e s écoles q u e e ra m destinadas a trein ar oficiais, engenheiros, o u professores. Im ig ra n te s fra n c e se s que viviam n o C aribe às vezes enviavam seus filh o s à F ra n ç a p a r a f r e q u e n ta r internatos com o esses, o n d e eram ed u ca d o s ao la d o d o s filh o s d e c o m e rc ia n te s e do s artesãos m ais ricos. N o to p o d a h ie ra rq u ia estav am o s collèges e lycées públicos, m ais caros, q u e ofereciam u m a e d u ca çã o clássica ao s filh o s d o s m ais ricos, especialm ente daqueles q u e eram c h am ad o s d e re n tie rs p o r q u e viviam d e rendas e não de seu p ró p rio trab alh o . C o m a R e v o lu ç ão F ra n c e sa , o a cesso ã educação clássica havia chegado a ab ran g e r m ais d o q u e a p e n a s o s filh o s d a aristocracia e d a alta burguesia, m as a m a tríc u la nessas esc o la s c o n tin u a v a a ser ta n to um sím bolo d e posição social q u a n to u m in v e s tim e n to im p o r t a n te para os pais. N a década d e 1840, apenas cerca d e 5% d a s c ria n ç a s q u e fre q u e n ­ tavam a escola estavam m atriculadas n o s collègesu . O collège royal em Pau (ch am ad o d e lycée ap ó s 1848) e ra c o n s id e r a d o u m a escola d e alta qualidade, e foi para aq u ela in s titu iç ã o e litis ta q u e J a c q u e s e Élisabeth m andaram seus filhos. S e g u in d o a tra d iç ã o d o s e s ta b e le c im e n to s d o A ntigo Regim e dirigidos p o r o rd en s religiosas, essas e sc o la s p ó s -re v o lu c io n á rias públicas com eçavam com m en in o s d e sete o u o i to a n o s c o s in ic ia v a m em um a longa educação dedicada às línguas clássicas, á s h u m a n id a d e s e à c u ltu ra cristã. O s alunos eram in tro d u z id o s n o s seg red o s d a e s c rita fo rm a l c d a re tó ­ rica que eram h á m u ito os estudos básicos p a ra h o m e n s q u e e n tr a r ia m p a ra a vida pública. N a m etade d o século X IX , alg u n s filh o s d e c o m e rc ia n te s e arte ­ sãos já estavam conseguindo chegar a essas in stitu iç õ e s, e m q u e e ra m alvo de chacota p o r p arte d e seus colegas m ais ricos. A s ficções d o p e r ío d o — in c lu in ­ do, de m aneira brilhante, M a d a m e B ovary d e F la u b e rt — e s ta v a m re p le ta s de retratos dessas figuras lutadoras q u e se arriscavam a se r h u m ilh a d a s n a busca de ascensão p o r m eio d a educação25. Em 1845 os inspetores gerais d o gov ern o já avaliavam o collège e m P a u com o um dos m elhores n a região. Joseph T in c h a n t h avia s id o a lu n o d e ssa escola pelo m enos desde 1843 e indícios da m atrícula d o s o u tro s m e n in o s T in c h a n t podem ser encontrados nos jornais locais. É d o u a rd , em p a rtic u la r, iria , c m a n o s pos­ teriores, aparecer freq u en tem en te c o m o g a n h a d o r d e p r ê m io s p o r suas con­ quistas acadêm icas26. O s estudos elem entares nessas escolas c o n c e n tra v a m -s e h á m u it o n a gra­ m ática francesa e latina ensinada p o r m e io d e "p a ssa g e n s e x tra íd a s d e autores

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clássicos". E m 1839, u m a lista form al de autores franceses e latinos apropria* dos para in stru çã o fo i publicada e perm aneceu em vigor com algumas varia­ ções até 1851. A lu n o s dos anos elementares {huitièm e e septième) deviam es­ tudar, além d e seus livros de gramática, as Fábulas de La Fontaine e Fénelon. Para seu latim eles se aventuravam pelo D e Viris iUustnbus urbis Romae (A vida de hom ens ilustres d a cidade de Roma), um conhecido pastichc dc Piotarco. Q u a n d o os alunos passavam para a sixièm e e cinquième, continuavam com Fénelon e La F ontaine com a adição de uma obra de história religiosa do Abbé Fleury, assim co m o novos textos em latim. As coisas ficavam muito sénas na quatrièm e, c o m V irgílio, C ícero e o próprio Plutarco, bem como algum Voltaire (as o bras históricas em vez das filosóficas) e o bcst-selJcr TéUmaque dc Fénelon27. Era um currículo q u e podería encorajar um jovem visionário a se ver como um seguidor dos "hom ens ilustres" da Antiguidade e podería fornecer as ha­ bilidades retóricas p a ra te n ta r to m a r aquela visão real. Para um adolescente provinciano, além disso, ele encorajava a aspirar a ir para Paris, o lugar cm que a própria c u ltu ra parecia estar localizada. Joseph— o mais velho dos filhos dos Tinchant a vir p a ra a França — term inou seus estudos no colUge rvyalcm Pau com 18 anos, p o rta n to , em 1846. A história oficial da escola confirma que apesar de te r com eçado tarde n o sistema educacional francês, ele havia ganho um prêm io p o r seu desem penho na quatrièm e. Com seu treinamento formal em latim , em re tó rica e em história, ele estava pronto para deixar a região m ontanhosa dos Pirineus e pôr-se a caminho, sozinho, para a capital2*. Joseph T in c h a n t tin h a se acostum ado ao gozo pleno dc igualdade civil na França em um contraste m arcante com a deferência que era exigida dos homens livres de cor em N ova O rleans. A abolição dos privilégios legais formais asso­ ciados à aristocracia e àquilo que era chamado de "caste", uma das realizações da República francesa, ainda era respeitada sob a monarquia consàtucionaL As diferenças de classe continuavam rígidas e visíveis, mas agora eram muitas vezes determ inadas pela fortuna e não pelo nascimento. Em teoria, a distinção social tam bém resultava das diferenças em talento, embora os críticos fossem céticos com relação a isso. Além disso, até que ponto a atribuição dc direitos iria a co m p an h a r a igualdade cívica formal continuava a ser uma questão cm aberto29. Se, ao chegar a Paris, Joseph foi atraído para o ambiente de jovens cultos c ambiciosos q u e ocasionalm ente assistiam a aulas sobre direito ou filosofia, é bastante provável que ele tenha ouvido opiniões diversas sobre essa questão. O jurista que m an tin h a a cátedra dc economia política no CoUcgc dc France,

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o liberal italiano Pellegrino Rossi, m inistrava um curso de direito c onstitu­ cional que explicava os lim ites dos direitos e liberdades sob a m o n arq u ia p ro p o n d o um a divisão trip a rtite de direitos civis, políticos c públicos. O s direitos civis — inclusive o de propriedade — deveríam estar disponíveis a todos. N a tipologia de Rossi, “direitos públicos” — inclusive de expressão e de reunião — deveríam tam bém ser acessíveis a todos os m em bros d a socie­ dade. D ireitos políticos, no entanto, poderíam ser lim itados com base n a va­ riação das capacidades presum idas (e p o r isso, p o r exemplo, eram negados às m ulheres ou restringidos p or um a exigência de propriedade)30. O e rudito Pellegrino Rossi era obrigado a lidar com questões d e cor de um a form a um tan to cautelosa, enquanto ainda houvesse escravidão nas colô­ nias francesas. Refletindo o tenso relacionam ento entre a teoria liberal e os interesses gerados pela colonização, Rossi falava de um a m aneira condenatória d a escravidão, mas aparentem ente não usava sua posição p ara clam ar aberta­ m ente pela abolição. Ele adotava os estereótipos convencionais d o período com relação a “raças” (referindo-se, po r exemplo, às “proporções belas” dos “caucasianos”), em bora ele observasse a ascensão de hom ens de cor nas A ntilhas às posições de autoridade pública e expressasse a esperança d e que a “luta entre a raça branca e a raça negra” em breve term inaria31. Críticas diretas à escravidão e ao preconceito racial, n o e n ta n to , estavam ficando cada vez mais audíveis em Paris na década de 1840.0 reform ista Victo r Schoelcher, o poeta rom ântico e político A lphonse de L am artine e outros, baseados na cam panha anterior contra o com ércio de escravos, agora voltaram sua atenção para a própria abolição. Cyrille Bissette, um h o m em de cor bani­ do da colônia francesa d a M artinica, havia com eçado em 1834 a p ublicar uma gazeta contra a escravidão, L a R evue des Colonies. Esses m ilitantes fundiram o rom antism o com o reform ism o, am pliando os lim ites d a crítica política aceita sob a m onarquia. Joseph T inchant pode m uito bem te r tid o contato com os seguidores dessas correntes, em bora ele ainda estivesse prim ordialm en­ te preocupado em encontrar oportunidades para desenvolver sua carreira e não em adotar um a posição pública sobre as questões d o m o m e n to 32. Paris nos anos entre 1846 e 1848 era politicam ente estim ulante, mas não era fácil. C om o o personagem ficcional Frédéríc M oreau n o rom ance L ‘Éducation S e n tim e n ta le d e G ustave F la u b ert, Jo s e p h T in c h a n t tin h a um a boa educação na bagagem, mas nenhum treinam ento profissional específico, nenhum a ocupação particular e nenhum a certeza de u m a heran ça à frente. Apesar disso, ele teve um a vivência intensa e educativa d e republicanism o e repressão na cidade, um a formação que m oldou sua personalidade política

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nos anos que se seguiram. U m elemento-chave daquela educação foi a aqui* sição de uma linguagem (c uma prática) de reivindicação de direitos e igual­ dade cívica33. Essas idéias circulavam; e eram cada vez mais bem recebidas. Em suas pa­ lestras na Faculdade de D ireito em Paris, Pellegrino Rossi observou com prazer que sua tipologia de direitos civis, públicos e políticos estava “come­ çando a ser adotada mais amplamentc”. Rossi considerava os direitos civis como inerentes à p ró p ria natureza humana, mas capazes de emergir e expandir conforme as sociedades se tomavam mais desenvolvidas — e daí seu uso intercambiável dos term os “direitos públicos* e “direitos sociais”. Os conceitos de direitos de Rossi eram tanto robustos quanto flexíveis, com potencial para abranger diferentes esferas da vida pública34. O s direitos p ú b lico s d e associação e expressão vinham sendo cada vez mais usados co m o arm as n a busca p o r reformas à medida que autores e oradores censuravam o s privilégios e a corrupção associados à m onarquia e alguns proferiam u m apelo sedicioso p o r um a volta ao republicanismo. As restrições ao direito d e v o to c o m base n a propriedade eram desafiadas, a própria escra­ vidão estava se n d o q uestionada e os ativistas sugeriam que a legitimidade do regime tin h a se esgotado. O m ilitante abolicionista Cyrillc Bissctte passou do jornalismo p a ra a ação d ireta e, em 1847, batia de porta cm porta colhendo assinaturas d o s trab alh ad o res parisienses em petições contra a escravidão34.

D efrontando-se com a realidade da miséria nas cidades e no campo, ati­ vistas começavam a falar não só de direitos sociais mas também de igualdade social, enquanto tentavam visualizar um mundo do qual tal miséria seria banida. Extrapolando as propostas liberais de Rossi, eles imaginavam uma “república social* que garantiría trabalho e salários para todos. Os mais pro­ gressistas dos ativistas políticos buscavam conceder amplos direitos c poder ao peuple, afirmando que o povo da França era a única fonte da verdadeira autoridade36. A p a rtir d o in ício d e fevereiro de 1848, os eventos se aceleraram rapida­ mente. G randes ban q u etes públicos foram organizados cm nome da reforma e depois cancelados em v irtu d e das proibições impostas por uma monarquia alarmada. A s m u ltid õ es se form avam nas ruas c a elas se uniam os estudantes m archando e c a n ta n d o a “M arseillaise* a plenos pulm ões para despertar uma vez m ais as lem branças da grande Revolução de 1789. Enviados para re­ prim ir um p euple cada vez mais assertivo, alguns integrantes da Guarda Na­ cional preferiram confraternizar em lugar de atirar. Barricadas foram m onta­ das p or to d a a cidade; m ultidões forçaram a entrada no palácio, o rei abdicou.

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A tentativa de estabelecer uma regência fracassou e, em questão d e dias, um governo provisório de coalizão foi formado. A França era novam ente um a República37. Seguiu-se um embate complexo sobre o destino do novo governo: se iria realmente se tom ar uma "república social" ou se a derrubada d a m onarquia e o restabelecimento do governo republicano seriam suficientes para definir seus princípios centrais. O s radicais clamavam por uma bandeira verm elha em vez da tricolor e usavam faixas vermelhas na cintura quando se juntavam às mul­ tidões nas ruas. Imerso nesse ambiente, Joscph deve ter se identificado com os princípios de direitos públicos e igualdade social, com b in ad o s com um a hostilidade intensa contra todas as chamadas distinções de “castc”3*. O fermento de 1848 se estendeu m uito além de Paris, e n contrando eco nas áreas rurais que haviam tido colheitas ruins e onde os salários dim inuíam . A década de 1840 foi difícil para os roceiros e os pequenos fazendeiros, com poucos bons anos para aqueles que produziam cereais e batatas, os alimentos básicos da França rural. Na propriedade de Pédemarie na região d o Béam , em 1846, Jacques e Élisabeth Tinchant já tinham reduzido o n úm ero de empre­ gados assalariados em sua quinta, apesar de não lhes ser possível c o n tar com a mão de obra familiar, pois Joscph estava na escola e os outros m eninos eram jovens demais para proverem uma ajuda substancial. Então, em 1848, um ciclo de depressão agrícola se iniciou, para durar até 185239. Esses anos definem a era da "República na aldeia" quan d o o debate sobre idéias republicanas floresceu — e foi reprim ido — nas cidades e vilarejos por todo o país. Os professores em particular eram conspícuos entre os seguidores dos ideais da República, embora os docentes n o lycée em Pau frequentado pelos irmãos Tinchant possam ter sido um po u co m ais reticentes do que aqueles da école communale da aldeia que atendia às classes trabalhadoras. Quando Édouard Tinchant se lembrou, de um a m aneira um ta n to romântica, que seu pai havia sempre lhe ensinado a detestar "a tirania aristocrata", a frase ecoa uma denúncia característica da Revolução de 1789 m ais d o q u e uma ex­ pressão de 1848. Édouard, no entanto, atualizou os term os para estabelecer um paralelo entre a escravidão e a aristocracia40. Na própria cidade de Pau o entusiasmo pela am pliação d o direito ao voto instituída para as eleições de 1848 foi acompanhado p o r com em orações cívicas exuberantes, inclusive procissões, reuniões c o plantio d e um a árvore da liber­ dade. Já não vigorava a exigência censitária que havia reduzido o número de eleitores tão drasticamente. Um anúncio colocado em lugares públicos expli­ cava que todos os franceses adultos agora eram "cidadãos políticos” e concluía:

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"todo cidadão é um eleitor, l o d o eleitor é soberano. A lei é igual c absoluta para todos". A s eleições fo ram anunciadas em Pau com um rufar de tambo* rcs bem cedo p ela m an h ã, o som de trombetas e a chegada da infantaria e da cavalaria d a G u ard a N acional p ara proteger os locais de votação. Havia drama suficiente nesse cenário p a ra alim entar a imaginação republicana de jovens observadores c o m o É douard T inchant, assim como de eleitores adultos41. A votação, n o e n ta n to , foi um a derrota para os proponentes mais radicais de uma "república social". M uitos membros da população rural resscntiam-sc com os im postos q u e tin h a m de pagar para apoiar as Oficinas Nacionais que eram usadas pelos radicais p ara expandir o emprego na cidade; outros não tinham sido convencidos pelos líderes socialistas. Embora algum departamen­ tos rurais continuassem a apoiar a "república social”, quando o resultado das eleições d o fim d e abril p ara a Assembléia Constituinte foi anunciado, ficou claro que a m aioria n o cam po havia optado por uma república liberal c não pelo socialismo42. Antes de a A ssem bléia C o n stitu in te poder tom ar posse, no entanto, um passo crucial foi dado. E coando o radicalismo da geração revolucionária que havia votado o p rim eiro decreto da abolição cm 1794, o governo francês no­ vamente se a lin h o u ao abolicionism o e à campanha pela igualdade. Estimula­ da pela ferm entação p o p u la r n a m etrópole e as iniciativas de escravos nas colônias, a nova R epública decretou a abolição formal da escravidão cm 27 de abril de 1848, m edida que entraria em vigor cm todo o império francês dois meses depois. Sob as novas leis, nenhum cidadão francês poderia possuir es­ cravos, m esm o fora d a jurisdição da França — um passo que chamou a atenção de observadores em N ova Orleans. Uma declaração surpreendente nos textos que acompanhavam os decretos m etropolitanos estabelecia que nenhum a nova lei poderia criar obstáculos á "igualdade social”. U m a vez mais, esses passos ressoaram do outro lado do Adântico. O m in istro haitiano residente na França saudou o advento da Re­ pública com "entusiasm o" com o um evento que representava imenso progresso para a hum anidade e recebeu com prazer os decretos que tranam a eman­ cipação para "nossos irm ãos infelizes”, referindo-se àqueles ainda mantidos como propriedade nas A ntilhas francesas43. O s eventos d o com eço de 1848 cm Paris foram entusiasmantes c o momento da abolição foi um p o n to alto. Mas os meses que se seguiram foram caracte­ rizados po r divisão e frustração. Depois vieram as terríveis ‘Joumccs de juin* (Dias de Junho): um a insurreição na capital em que trabalhadores que perde­ ram o em prego pelo fecham ento das Oficinas Nacionais íbram para as ruas

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protestar. Eles foram recebidos com violência e massacrados p o r um exército de recrutas camponeses comandado por um general que havia aprendido as técnicas de repressão na Argélia colonial. Assim que a República foi consagra­ da , as implicações de seus princípios centrais foram am argam ente questiona­ das, tanto na capital quanto na província. Em Pau, professores radicais foram postos sob a autoridade do prefeito departam ental e em fevereiro de 1849 o diretor de uma école communaU local foi despedido. Em 1850 o governo na­ cional reduziu drasticamente o número de eleitores c cm 1851 Luís N apolcão Bonaparte levou a cabo seu golpe de Estado, com eçando a transform ação da república num regime autoritário caracterizado p o r plebiscitos episódicos. Os ativistas republicanos foram “proscritos”, alguns deles exilados44. Se os eventos na cidade eram assustadores, a vida na província tam bém estava muito difícil. Nenhum debate sobre a "república social” podería fazer esquecer o problema sério das colheitas ruins. Joseph e n te n d ia n ã o haver qualquer futuro em seguir os passos de seus pais na região d o Béarn. Sua em­ presa agrícola estava encolhendo cm vez de se expandir, com a possibilidade de que o pior ainda estivesse por vir. Após um a o n d a de forte repressão ter varrido Paris nos últim os meses de 1848, Joseph T in c h a n t aparentem ente concluiu que havia chegado a hora de partir. Fiel à tradição atlântica dos V incent-Tinchant, em vez d e fincar raízes, ele levantou acampamento e viu no além-mar um cam inho qu e o distanciava do perigo e levava a maiores oportunidades. Ele havia alcançado um dos objetivos principais de seus pais na mudança da família para a França, ten d o adquirido um alto nível de educação formal. Mas, por mais que ele apreciasse a oportu­ nidade educacional e a igualdade civil na França, e fossem quais fossem seus sentimentos sobre o advento da Segunda República em 1848, havia começado a olhar uma vez mais para a Luisiana com o um lugar de m elhores oportuni­ dades econômicas. Havia quase meio século que a Luisiana não mais era uma colônia da França, mas para jovens m etropolitanos em preendedores ela ainda podia representar o sonho colonial clássico de riqueza fácil. E m sua própria família, a renda de aluguéis de Nova Orleans havia c o n tin u ad o alimentar o caixa de Jacques Tinchant em Pau, mesmo quando os lucros d a nova empresa agrícola da família na França haviam começado a falhar45. É possível que seus pais e seu tio Pierre D u h a rt ten h a m d ito algo a Joseph sobre as dificuldades da vida nas Américas quando a pessoa era rotulada como pessoa de cor, mas é possível tam bém que ten h a m sid o d iscreto s ao falar diante das crianças, evitando narrar as experiências h u m ilh a n te s a que as pessoas podiam ser submetidas pelas "leis abomináveis o u preconceitos igno*

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rantes" d a Luisiana. Joseph ainda era bastante jovem, e não tinha qualquer obrigação d e p rever exatam ente com o os princípios de direitos iguais de um quarante-huitard, u m ativista d a Revolução de 1848, poderíam ser defendidos em uma cidade escravista n o coração do Vale do Mississipi. Ele enfrentaria esse problema q u a n d o chegasse a hora. Por enquanto, a coisa mais im portante era seguir adiante46. Havia, além disso, u m a ro ta óbvia de volta às Américas. O irmão mais velho de Joseph, L ouis, havia ficado em Nova Orleans. Ele havia começado um pequeno n egócio p ró p rio . O funcionário do censo de Nova Orleans re­ gistrou Louis T in c h a n t co m o grocer, um “dono de mercearia’, o que sugere que ele provavelm ente tin h a um a loja de esquina em que os clientes podiam encontrar beb id a e sociabilidade além de alimentos. Seria possível que Louis precisasse de um jovem ajudante?47 No final de 1848, Joseph reservou a passagem saindo de Bordeaux no navio Mount W ashington, q u e ia p ara N ova Orleans. T inha 21 anos de idade, leva­ va um m alão e viajava na classe de preço mais acessível. Nenhuma menção de cor acom panhava seu n om e na lista de passageiros preenchida pelo capitão no porto de p a rtid a n a França. M ais ou m enos um ano após o navio ter atracado, no entanto, o fu n c io n á rio d o censo de Nova Orleans iria inscrever Joseph T inchant n o d o m ic ílio d e seu irm ão n o quarto departam ento do terceiro distrito de N ova O rle an s e colocar ao lado do nome a letra M de mulato4*.

Notas 1 A primeira citação é de Édouard Tinchant, ‘Communiqul*. La Tnbmmede U SmveUe-Odéam (daqui em diante Lã T rib u n e),l\ de julho dc 1864. A segunda éde Édouard Tinchant a Máximo Gómcz. 21 de setembro de 1899, sig. 3868/4161. leg. 30, Fondo Máximo Góocx (daqui cm diante FMG), Archivo Nacional de Cuba (daqui cm diante ANC). 2 Veja Jcnnifcr Heuer, “Onc-Drop Rule in Rcvcrsc? Intcrracial Marriages in Napokonsc and Restoration France", Law a n d H istory Review 27 (2009): 515*348. 3 Para o estatuto de 1833, veja Jcan Bapóstc Joseph Pailliet. Sianueide droufran^ou. pt.2 (Para. Lc Normant, 1837), 1915. A frase que se refere à igualdade diante da lei ocorre canto na Cana Constitucional de 1814 quanto na de 1830. Sobre a política colonial do regune liberal da déca­ da de 1830, veja Denisc Bouche, Histoire de U cobmuotwnfron^out, voL 2. FJux et rtflmx (1815* *1962) (Paris,Fayard, 1991), cap. 1. 4 Veja o casamento de M artin D uhart com a jovem viúva de outro capitão do mar cm 2f de no­ vembro de 1741, folio 118v, Registres dc Ia paroisse Saint-Nicolas, Nantev Archives departemcntalcs de la Loirc-Atlandque. Martin Duhart aparece como capitão cm duas viagem com cativos entre o G olfo de Bcnin e Saint-Dominguc. Veja viagens 4**5 c 522 cm jcan Mcttaa.

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P R O V A S D B L IB E R D A D E

Répertoire des expéditions négriiresfrançaises au X V lir siécle (Paris, Société française d’histoirc dbutrc-m er, 1984), vol. 1,279,303. 5 Veja capitulo 2, art. 95, C iv il Code o f th e S ta te o f Louisiana (Publicado p o r um cidadão da Luisiana, 1825), 76. Sobre a sequência de regras sobre imigração e casam ento, veja Sue Peabody, "T hereA reN o Slaves in F ra n c eT h e Political C ulture ofR ace a n d Slavery in th e A ncien Régime (N ew York. O xford University Press, 1996), cap. 7, e Hcuer, “O ne-D rop Rule". M arie Françoise Bayot é m encionada com o Suzette D uhart cm Ventc d csclavcs, Françoise Bayot dite S. D uhart, fcl [femme de coulcur libre], Joscph Jourdan’ e o “Ccrtificatc du C onservatcur des hypothèques’ acrescentado ao mesmo ato a chama de “Françoise Bayot dite Bayotte alias Suzette D u h art”, ambos no Tabelião T. Scghers, 11 de março de 1831, ato 82, N ew O rlcans N otarial Archives Research Center. 6 A to de casam ento, 17 de abril de 1832, État-Civi], Pau, Archives départem entales des Pyrénées•Atlantiques (daqui em diante ADPA). 7 Veja os registros de parcelas 719 e 720, folha A, 1833, M atricc cadastrale, ADPA. * Sobre sua situação, veja os censos de 1834, 1836, 1841, 1846, Recensem cnt de la population, Section de Canfranc, Archives communales d e G an (daqui em d ian te A C -G an), 1 F4, c as com pras c vendas de terra n o Registre des m utations de propriété (IIIP 3/2 ), M atrice cadastrale 1833, 1842,1864, 1867, todos em ADPA 9 Veja o “ato de casamento’ datado de 14 de janeiro de 1840, ato na 2,1840, M ariages, AC-Gan, 1821-1853, reproduzidos no rolo 4, microfilme 5Mi 230, ADPA 10 A ntoine Prost, L ‘E nseignem ent en France (1800-1967) (Paris, A. C olin, 1968), partes 1 e 2. 11 H cuer, "O ne-D rop Rule”, 540. 12 O nom e D u h art é mencionado ocasionalmente n o A nnuaire a d m in istra tifju d icia ire et indus­

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triei d u départem ent des Basses-Pyrlnies. Veja os anos de 1830 a 1848, sob o títu lo “Liste électorale, C anton de Pau-Ouest, G an”. Veja Paul G o n n ct,“Esquisse dela crise économ iqueen France de 1827à 1832’, R evue dhistoirt économique et sociale 3 (1955): 249-292. O contrato é “Vcnte", 25 de setembro de 1840, ato 904,1840, T abelião Pierre Scmpé, ADPA Para uma estimativa da população de Gan, veja “D énom brcm ent de la po pulation”, 1846, ACGan. 1F4, ADPA O ato de óbito de Marie Françoise Bayot (datada de 8 de novem bro d e 1840, ato n®77) está em AC-Gan, Décès, 1821-1853, reproduzida em microfilme rolo 6, 5MÍ230, ADPA. O mesmo mi­ crofilme inclui o posterior ato de óbito de Louis D u h a rt (16 de fevereiro de 1849). Veja Patrick Weil, Q u est-ce qu u n Françaisi H istoire de la n a tio n a litê française depuis la Rivolution (Paris, Grasset, 2002), 42-47.

18 O índice para naturalizações é descrito em e pode ser consultado no Centre d accueil et de recherche des Archives nationales, Paris. Sobre as complexidades da cidadania de uma mulher, veja Jennifer H cuer, The Fam ily and the N ation: Gender a n d C itizenship in Revolutionary France 1789-1830 (Ithaca, NY, Com ell Uni­ versity Press, 2005), caps. 7 e 8. 19 Veja ato 904,25 de setembro de 1840, Tabelião Pierre Scmpé, ADPA. A propriedade é descrita no docum ento de com pra, citado acim a. L e M ém orial des Pyrénées, 31 de outubro de 1840, informa sobre a colheita de uvas em G an c Jurançon. Veja o censo de Gan de 1841, Recensemcnt de la population, Section de Bastarrous, AC-Gan, 1F4, ADPA; e Michel D em onet, Tableau de lagriculturefrançaise au m ilieu d u X IX siècle: l'enquéte de 1852 (Paris, Éditions de L’EHESS, 1990), 49. Para alguns co m e n tirio s do século XIX

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A T E R R A D O S D IR E IT O S D O H O M E M

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sobre o m itayage veja A dricn de G asparin, M ém oire sur le mitayage (Lyon. Impe. De J.-M. Barrct, 1832) o u Lucien Rcrollc, D u colonage partiaire et spécialement du métayagt (Paris, Chcvalier-Marcscq e t C o., 1888). Iodos os relatórios dos três censos estão em Reccnscmcnt de Ia popularion, Sccòon de Bastar* rous, AC-Gan, 1F4, ADPA. “Jacqucs Tinchan t [, ] Am éricain, près d u pont, Jurançon Basses-Pyrénées’ aparece como ende­ reço cm um carta enviada p o r Louis Alfred D uhart, 7 de julho de 1854, citado no texto datilo­ grafado “Histoirc des T inchant”. copilado por Xavier Tinchant em 1997 c revisado por Philippc Struyfem 2002. Agradecemos a Philippc Struyf por compartilhar uma cópia desse registro fa­ miliar conosco. Prost, LE nseignem ent en France, 21 -69. O relatório d a inspeção d a escola está no Annuaire adm inistrai/, ju d ià a irt et im dm thel i a Basses-Pyrénées (Pau. V igancourt) para 1845, na seção intitulada ‘Éphéméride* para julho. Gustave Flaubert, M adam e B ovary, foi publicado em série em La Revoe de Paru, de outubro a dezembro de 1856. H onoré de Balzac, Louis Lam bert (Paris Gossclin. 1832). e Alphonsc Daudet, L e P etit Chose (Paris, H etzel, 1868), também retratam esse fenômeno. Veja Joseph Dclfour, H istoire du lycie de Pau (Pau, Garct, 1890). Joscph Tinchant aparece no apêndice. O nom e de E douard T inchant aparece sobre o palmaris, a lista dos ganhadores de prêmios d o lycie de Pau publicada em L e M im orial des Pyrénées, dia 31 de agosto de 1852. quando ele estava na h u itiim e (com a idade de 10 anos); 25 de agosto de 1853. quando d e esta­ va na scptiime-, e um a vez mais em 26 de agosto de 1854, quando ele havia chegado à stxtéme. André Chervel, Les AuteursJrançais; la tin s etgrees au programme de 1'enseignement secomdatre de 1800 À nosjo u rs (Paris, Institut national de rccherche pédagogique/Publicatiofts de la Soebonnc, 1986), 43*123. Para sua graduação e m udança para Paris, veja a ‘noticc biographiquc* no dosssé 2*88. Naturalisations, M inistère de la Justice, Archives généralcs du Royaumc. Bruxelas. Sobre o prêmio, veja Dclfour, H istoire, 432. Veja os escritos de Jean-C harles Houzeau. que mais tarde conheceu Joscph Tinchant em Nova Orlcans,cspccialmcncc “Lc joum al noir.auxÉtats-Unis,dc 1863 à 1ÍT0 (l)“. Rexuede Beipque 11 (1872): 5-28. referência em 8. Para os trabalhos publicados de Rossi, veja CEuvres completes de P. Rosa paUsèes som la amprea du gouvem em ent italien. Cours de droit constitutionnA professe à la Faculte de drost de Paru, voL 1 (Paris, Librairíc de Guillaum in e t C ". 1866), introdução. 1-12. Para transcrições de cursos que Rossi deu em Paris, veja P. Rossi. Coua fé comomte pobttque: annéescolaire 1835-1836, semestre d e ti (Paris, Êbrard. 1836). Pp. 57-58 tratam da escravidão. Sobre esse período, veja os ensaios em Marcei Dorigny. org.. L a Akolstiom deíesdavage: de L-F. Sonthonax â V. Schoelcher, 1793-1794-1848 (Saint-Dcnis e Paris. Prcsscs univerotaucs dc Vmccnnes c Uncsco, 1995). A formulação clássica de um a linguagem dc direitos, liberdade e dignidade, publicada alguns anos mais tarde, foi de Charles Renouvier, M anuel répuUicain de í homm e et du atoyrm, t»4» (Paris, Pagnerc, 1848; rept. Paris, G am icr Frèrcs, 1981). CEuvres com pleta dc P. Rossi, 1:9-10. Lawrcncc C. Jennings, “Cyrillc Bissettc, Radical Black Frcnch Abolitiorust* Fveuds Hsstory 9 (março de 1995): 48-66. Veja Blandine Kricgel, “Les droits de l’homme dam les déclarations de 1848 et dc 1948“. • L a Droits de 1’b omme et le suffrage universel, org. Gérard Chianéa cJcan-Luc Chabot (Panv fdmon»

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L’H a n n a tta n , 2000), 187-192; Jennings, "C yrille Bisscttc". 63. Sobre o fe rm e n to d e 1848, veja M aurice A g u lh o n , 1848 ou l ‘a p p ren tia age d e la R epublique (Paris, É d itio n s d u Seuil, 1973), esp. cap. I. 57 Veja M aurízio G ríbaudi e M ichèle Riot-Sarccy, 1848: U révolution oubliée (Paris, L a D écouverte, 2009), prólogo, caps. 1 e 2. 58 Sobre o diálogo entre ideais europeus de 1848 e o pensam ento p o lítico su b seq u en te e m N ova O rlcans. escrito á época de sua am izade com Joseph T in c h a n t, veja Je a n -C h arles H ouzcau, L ettres adressées des É tats-U nis À sa fa m ille, 1857*1868, orgs. H ossam E lkhadem , A n n e tte Félix e Liliane W cllens-Dc D o n d e r (Bruxelas. C en tre national d ’histoire des Sciences, 1994), 303-314, 374-430. ^ Jean-François Soulet, L es Pyrénées a u X JX 'siicle: 1‘i v e il d'une société civile, 2 vols. (B ordeaux, É ditions Sud O u c st, 2004), 332-333. 40 A expressão "República n a aldeia” é d e M aurice A gulhon, L a R épublique a u village (Paris, Plon, 1979). Sobre a "tirania aristocrata”, veja a c arta d e É douard p a ra o e d ito r de L a T rib u n e (N ova O rlcans), 21 de julho d e 1864. 41 Veja Jeanne D auzié. org., L a Vie p o litiq u e dons les Basses-Pyrénées sous la Seconde Republique, voL 1 (Pau. C e n tre départem entai de d o c u m c n tad o n pédagogique, 1976), esp. d o c u m e n to s 6, 9.18 c 22. 41 A gulhon. 1848,52-56 45 Veja a C irculairc m inistéricllc n* 358, em B u lletin officiel d e la M a rtin iq u e , 7 d e m aio d e 1848, 594; e L e M on iteu r universel (Paris), 15 de ju n h o d e 1848. 44 Sobre Louis-Eugène Cavaignac e a repressão das "Joum écs d e Ju in ”, veja A g u lh o n , 1848.68-75. N as eleições de m aio d e 1849 em Pau. o P a ra d o d a O rd e m c h eg o u n a fre n te c o m 27,4% dos votos, em bora os Republicanos M oderados e os D em ocrata-Socialistas, c o m o eram conhecidos, obdvessem 14% e 18,9% respectivam ente. Veja D auzié, L a V ie p o litiq u e. 2:27. 4* Sobre a Luisiana na im aginação po p u lar francesa d a m eta d e d o século, a g rad e ce m o s nosso colega François W cil, com unicações pessoais, 2008. A expressão citada é d e É douard T in c h a n t a M áxim o G ó m c z , 21 d e se te m b ro d e 1899, sig. 3868/4161, leg. 30. FMG. ANC. 47 O registro d o censo é D om icílio 4647, Q u a rto d ep artam e n to . T erceiro D is trito , N o v a Orlcans, Sétim o C enso dos Estados U nidos, 1850, ro lo 238, U n ite d States N a tio n a l A rchivcs (daqui em d ian te USNA). M icrocópia M432. "L ist o f all Passengers takcn o n b oard th c M o u n t W ashington... a t th e P o r t o f B ordeaux and b o u n d for New-Orlcans". em "Passcnger Lists o f Vesscls A rriv in g a t N e w O rlc a n s, Louisiana, 1820-1902* RG 36, U S N A reproduzida n o rolo 29. U S N A m ic ro c ó p ia M 259. O registro do censo para o dom icílio 4647 é citado acima.

CAPÍTU LO 6

Joseph e seus irmãos

Havia certo risco p a ra u m jo v em d e cor ten ta r buscar recursos e respeito ao mudar-se p a ra a L uisiana, e m 1849. R ecolhendo os fios restantes da vida an­ terior d a fa m ília c m N o v a O rle an s, d e início Joseph T in c h an t encontrou emprego c o m o a u x ilia r d e e sc ritó rio , talvez trab a lh a n d o p ara seu irm ão Louis que havia re c e n te m e n te se casado com um a jovem nascida na Luisiana, chamada O c tav ie R ieffel1. O m eio-irm ão de seu pai, Louis Alfred D uhart, ainda estava n a c id a d e e a m a d rin h a de sua mãe, a viúva Aubert, havia falecido recentemente. N a p rim e ira c a rta que escreveu à família, Joseph contou à mãe sobre as com plexidades d a q u e stão d o espólio d a viúva, a astuta e controladora mulher de negócios e m c u jo do m icílio Élisabeth havia sido criada2. Sobrevivente lo n g e va d as gerações d e refugiados dos pais e avós de Joseph, a viúva tin h a p e rm a n e c id o d u ra n te m u ito s anos na m oradia que lhe havia sido deixada p o r se u a n tig o c o m p a n h eiro , Jean L am bert Détry. Ela final­ mente abriu m ã o d e seu d ire ito a o u so d a casa em janeiro de 1848, p erm itin­ do que os te s ta m e n te iro s com eçassem o processo de transferência da casa para os h e rd e iro s d e D é try . P o u c o s m eses m ais tard e ela faleceu, te n d o chegado à id ad e d e 90 a n o s. Q u a n d o os avaliadores chegaram à casa, foram recebidos p e la a n tig a escrava d a viúva, M arie-A ntoinette Lam bert, que os guiou pelos q u a rto s c o n fo rm e iam registrando os bens d a viúva em um in­ ventário oficial3. Q uando escreveu p a ra sua m ãe sobre o ajuste d o espólio, Joseph T inchant não se referiu à viúva p o r q u a isq u e r d o s nom es que aparecem n o registro oficial d o processo. E m vez disso, cham ou-a de “M adam c L am bert”. A pa­ rentemente, o s filhos d e É lisabeth V in cen t tinham aprendido a dirigir-se à madrinha d a m ãe c o m o se fosse u m a m ulher legalmente casada, atribuindo-lhe um dos sobrenom es d e seu c o m p an h eiro Jean Lam bert D étry4. C om o o rela­ cionam ento e n tre S u z e tte B ayot e L ouis D u h a rt, o u m esm o aquele entre

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PROVAS DB UBERDADB

RosaJic e M ichcl V incent, a união da viúva de Sainc-D om inguc com o carpin­ teiro da Bélgica foi retrospectivam ente transform ada em casam ento p o r algu­ m as das pessoas a seu redor. O so b ren o m e L a m b e rt fo i e n tã o e ste n d id o tam bém para a liberta M arie-A ntoinette, à época de sua alforria5. Em geral imagina-se q u e aqueles que» com o a viúva A u b ert, eram classifi­ cados com o gens d e couleur libres perm aneciam distantes do s q u e a in d a eram escravos. As rcciprocidades desenvolvidas du ran te um a longa vida, n o e n ta n ­ to. poderíam criar complexas relações de dependência. E m seu testa m en to , a viúva deixou m uitos de seus bens para M arie-A ntoinette L am bert, a q u e m ela própria tinha tido com o sua escrava. A m aior p a rte dos m óveis n a casa em que a viúva m orreu pertenciam à jovem, agora casada com u m p e d re iro local. N o inventário de bens registrados pelo testam enteiro, M a rie-A n to in ette assinou com um a m ão firme, com o havia assinado seu p ró p rio d o c u m e n to d e alforria 16 anos antes6. À época da m orte da viúva, os bens m ais im p o rta n te s inv en tariad o s n o espólio consistiam de pessoas m antidas com o p ro p ried ad e: L ouis, tam bém conhecido com o Jean-G odo, com 23 anos de idade; duas jovens, cad a um a delas designada com o “négresse C réole”; e a m u lh er m ais velha apelidada de Trois-Sous (Três-Tostões), “créole" de S aint-D om ingue. Vários d o s escravos eram listados com o “statu-libre”, o que significava q u e lhes fo ra p ro m etid a a liberdade, refletindo as alforrias concedidas n o testam en to d a viúva7. N o segundo dia do inventário da herança, o testam enteiro (u m procurador branco) e o herdeiro se voltaram para os d ocum entos d a viúva. A q u i, cuidadosam ente conservada, estava um a pilha de petições e processos, assim como m uitas compras de escravos, com eçando com T rois-Sous, e m 1813, e conti­ nuando até a escrava cham ada A m anda, em 1831. O te s ta m e n to d a viúva deixou outra escrava, Marie Jeanne, para um a so b rin h a q u e ela pensava estar m orando em Tampico, México, e dois escravos p a ra seu testa m en teiro , com a condição de que ele os libertasse. E finalm ente o te s ta m e n to declarava “Je donne la liberté à ma négresse esclave Trois-Sous, âgée d e nviron cinquantecinq ans” — D ou liberdade a m inha negra escrava T rois-Sous, q u e tem cerca de 55 anos. Essa m ulher de Saint-D om ingue, m antida co m o escrava pela viúva p o r 35 anos, com um a promessa escrita de liberdade d e p o sita d a em cartório, foi ím almente libertada8. O u pelo m enos parece que sim. D ocum entos oficiais relacionados com os últimos desejos de alguém são fontes ricas de inform ação, m as n ão determinam necessariamente os eventos q u e buscam con tro lar. O te x to d o testam ento da viúva — que tinha sido testem unhado p elo irm ão m ais v e lh o d e Joseph,

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JOSEPH E SEUS IRMÃOS

Louis — d izia q u e T rois-S ous deveria ser libertada. Mas, na verdade, q u an d o o espólio Foi d istrib u íd o , Jo sep h T in c h a n t inform ou a sua mãe *nós [Joscph e seu irm ã o L o u is] a c o m p ra m o s ”. A in te rp re ta ç ã o mais generosa d a c o m ­ pra — pela q u a l eles p a g ara m apenas 37 dólares — seria que a antiga escrava cinha necessidade d e c u id a d o s o u d e um lugar para morar. Joseph se refere a ela com o a in d a “ b a sta n te alerta”, sugerindo que ela estava envelhecendo mas ainda estava ativa9. C o m o revela o d e s tin o d e T rois-Sous, a fronteira entre escravidão c li­ berdade, c o m o aquela e n tre concubinagem e casam ento, não era necessaria­ mente um a lin h a clara n a N o v a O rleans d a m etade do século XIX. A form a de uma venda p o d ia o c u lta r u m a alforria de fato; ou um m andato aparente­ mente legal d e alfo rria p o d ia ser evitado com um a com pra. Para que a alforria apropriada fosse finalizada, o d o n o o u agente tinha de com pletar um conjun­ to complexo d e exigências, inclusive a postagem de avisos, a obtenção de au­ torizações e a p re sen ç a d ia n te d e um juiz. Para Trois-Sous, isso parece ter sido uma tarefa q u e n in g u é m tin h a assum ido. U m a vez que o testam enteiro Edgar M ontégut a u to riz o u a c o m p ra p e lo s T in c h an ts, Trois-Sous já não tin h a qualquer m ecanism o p a ra fazer cum prir a alforria po r conta própria. Ao pagar 37 dólares p e lo d ire ito d e p ro p rie d a d e sobre ela, Louis e Joseph T in c h an t a transferiram p a r a seu d o m ín io fam iliar, exercitando seja qual for o grau de interesse q u e con sid erav am a propriado para um a m ulher que m uito p ro ­ vavelmente havia a ju d a d o a criar a m ãe deles. Mas Trois-Sous continuou le­ galmente a ser u m a escrava.

Ao informar a aquisição de Trois-Sous, Joseph mostrou sua habilidade em dar seguimento às conexões e responsabilidades de seus parentes cm Nova Orleans. Mas, por si só, esse não era um caminho muito produtivo de ativi­ dade econômica. Seu pai já tinha um agente que coletava os aluguéis das propriedades da família que ainda restavam na cidade, e enviava o dinheiro diretamente para a França. Tampouco atuar como ajudante de escritório o ajudaria a elevar sua posição ou acumular benefícios. Algo mais promissor precisava ser encontrado. Louis e Joseph não eram carpinteiros como seu pai. capaz de adicionar valor a pequenos lotes de terreno em uma cidade em expansão. Nem tinham o capital para trabalhar com propriedades em uma escala substancial. Precisavam de um negócio que fosse acessível àqueles de meios modestos, mas com a perspectiva de lucro. Embora o açúcar e o algodão estivessem trazendo m uita riqueza para os fazendeiros e comerciantes da cidade, esses não eram os setores em que pequenos operadores tinham a probabilidade de prosperar.

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PROVAS DB LIBERDADE

N o começo da década de 1850, o catálogo da cidade já apontava a escolha que eles haviam feito: Louis c Joseph T inchant começaram a ser listados como "fabricantes de charutos”. G rande parte do tabaco exportado dos Estados Unidos passava pelo po rto de Nova Orleans, e a técnica de fazer charutos era comum entre as populações de cor, escravas ou livres, na cidade. U m em­ preendedor talentoso podia enrolar charutos sozinho para começar, o u com­ prar charutos de outros que os enrolavam e mais tarde com prar folhas de ta­ baco n o atacado e c ontratar trabalhadores para fazer o en ro lam en to . As restrições cada vez maiores impostas pelas leis da Luisiana às pessoas de cor livres eram tanto incômodas quanto humilhantes, mas isso náo im pediu que os Tinchants se envolvessem em atividades comerciais. D e boa vontade (e por um preço)os tabeliães da cidade oficializavam vendas, contratos, empréstimos e hipotecas — embora geralmente registrassem a designação dos irm ãos como hommes de couleur libres junto aos detalhes de cada transação10. À medida que sua ambição aumentava, Louis e Joseph procuraram persu­ adir seus pais a adiantar-lhes algum capital para ajudá-los a expandir o proje­ to. C inco anos após sua viagem de Bordeaux para N ova O rleans, Joseph T inchant atravessou novamente o A tlântico para p e d ir ap o io a Jacques e Élisabeth para o novo empreendimento. A renda dos aluguéis das proprieda­ des dos Tinchants em Nova Orleans havia sustentado a vida d a fam ília na França, mas agora os filhos tinham a esperança de vender essas propriedades. Em janeiro de 1853, Élisabeth Tinchant passou um a procuração diante de um tabelião em Gan para seu filho Joseph que assinou o docum ento com uma letra elegante, redonda e clara. Dado os termos do contrato m atrim onial de Élisabeth com Jacques, sua permissão era necessária cada vez que um a proprie­ dade fosse vendida. Sua procuração, portanto, era essencial para levar a cabo as transações relacionadas com as propriedades restantes em N ova Orleans, cujo valor os irmãos esperavam aplicar no novo em preendim ento. N a prima­ vera de 1853, três dessas propriedades foram vendidas, já que Jacques as cedeu para seu antigo sócio (e meio-irmão) Pierre D u h art pela som a substancial de 3250 dólares11. Louis e Joseph agora podiam expandir sua operação para um armazém na Rua New Levee, n9 5, em Nova Orleans e com prar (a um preço reduzido e sem garantias) um fabricante de charutos escravizado, de 45 anos de idade, chama­ do Martin Mitchel. C om o M artin M itchel sobreviveu anos com o escravo, informações sobre ele aparecem em registros posteriores. E ra u m homem negro, nascido na Carolina do N orte. Depois d a G u erra C ivil, vivia como parte de uma casa numerosa que incluía outro fabricante de cigarros além de

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uma m ulher c h am ad a N a n c y M icchcl (talvez um a irmã?) tam bém d a Caroli* na do N o rte, q u e , e m 1870, foi listada co m o “cega”. Am bos tinham quase que certamente sid o v ítim as d o co m ércio dom éstico de escravos que havia deslo­ cado hom ens, m u lh e res e crianças d a p a rte superior d o Sul para a econom ia em expansão d o S u d o e ste d o s E stados U nidos12. O s irm ãos T in c h a n t presu m iv elm en te com plem entavam o trabalho do escravo M a rtin M itc h e l c o m o seu p ró p rio e o de hom ens livres que eram seus empregados o u e m p re ite iro s independentes. Em vários bairros da cidade, artesáos de p e q u e n a escala a d q u iriam caixas de folhas de tabaco p o r com pra ou consignação e d e p o is enrolavam os charutos cm casa. D e fato, a fabricação de charutos p o d e ría ser u m ú ltim o recurso para hom ens na cidade que estavam com m á so rte . B e n ito J u á re z , o a d vogado e antigo governador d o estado mexicano d e O a x aca, p a sso u u m an o n o exílio em Nova O rlcans m orando em um a p e n sã o e se s u s te n ta n d o c o m o enrolam ento de charutos. A ndré Cailloux, u m h o m e m n e g ro nascid o n a Luisiana que, mais tarde, conseguiría distinção n o exército d a U n iã o , era o u tro fabricante de charutos11. Q uando o catálo g o d a c idade d e N ova O rleans de 1854-1855 foi publicado, Louis c Joseph T in c h a n t já tin h a m sido prom ovidos de “fabricantes de cha­ rutos” para “p ro d u to re s d e c h a ru to s”, com um a empresa atacadista c varejista

no distrito d o s arm azéns. Os irm ãos agora estavam com eçando a realizar um plano ainda m ais am b icio so — u m p lan o cuja própria viabilidade dependia da rede de c o n e x õ e s te c id a d u ra n te as viagens d a fam ília pelo A tlãndco. A quinta d e seus p a is e m P édem arie, cm G an, tinha em patado a m aior parte do capital d a fa m ília . Se P é d e m a rie fosse vendida, isso liberaria recursos que Louis c J o s e p h p o d e ría m u sa r p a ra expandir intcm acionalm cnte a em ­ presa de tabaco. J u n to c o m seus irm ãos mais novos, eles procurariam ocupar pontos diferentes n a q u ilo q u e os historiadores da economia chamam de “cadeia de m ercadorias”, lid a n d o sucessivam ente com a folha d o tabaco, charutos importados, e n ro la m e n to d e c h a ru to s e o em pacotam ento e m arketing do produto final14. As regiões o n d e o s c h a ru to s tradicionalm ente haviam sido produzidos, inclusive C u b a , estavam , n a m etad e d a década de 1850, com eçando a perder parte do c o n tro le q u e tin h a m d o m ercado, na m edida cm que a exportação da folha d o tab a co p e rm itia q u e fabricantes de outros lugares produzissem, eles mesmos, os c h aru to s. E m 1855-1856, o governo liberal no México — no qual o antigo fa b ric an te d e ch aru to s B enito Juárez serviu com o m inistro de Justiça — ab riu o c a m p o p a ra a expansão da produção e para a exportação, culminando c o m a d issolução d o m onopólio estatal do tabaco. O cam inho

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estava livre para que em presários entrassem em um m ercado agora m ais diversificado15. U m a família com um a âncora em cada extrem idade d o processo — o Golfo e o Caribe para o tabaco, a Europa para os consum idores e talvez, mais tarde, para a fabricação — podería se beneficiar com a aceleração dessas m u­ danças. O po rto de Nova Orleans, que estava voltado para as duas direções, era um ponto privilegiado para perceber as possibilidades dessa estratégia. £ uma família acostumada a m udar de um lugar para o outro, m ultiplicando as conexões em vez de abandoná-las, podería arriscar. O s eventos na França rural estavam pressionando Jacques e Élisabeth a se desfazer da quinta nos Baixos Pirineus, na mesma época em que seus filhos mais velhos estavam tentando persuadi-los a financiar a proposta do tabaco com um empréstimo de longo prazo. Em 1852, o fungo oidium atacara os vi­ nhedos por toda a França, destruindo um após outro. Para Jacques e Élisa­ beth, cuja propriedade incluía vastas áreas de vinhedos, esse foi um golpe sério. Começaram, então, a agir para se retirar totalm ente da vida agrícola16. Em fevereiro de 1854, encontraram um com prador que adquiriría Pédemarie por 26 mil francos (um pouco menos do que aquilo que eles tinham pago por ela), mas apenas em prestações durante vários anos. Eles ficaram com seus móveis, a lenha já cortada, algumas galinhas e um cavalo e se m udaram para um a pequena casa na cidade próxima de Jurançon, para esperar pelos pagamentos finais por sua propriedade. Estavam am bos nos seus 50 e poucos anos, e aparentemente prontos para passar a tocha do cm preendedorism o para a próxima geração17. Não pode ter sido fácil descer de uma posição em que eram propriétaircs de Pédemarie para passar o inverno em um a casa alugada perto da ponte sobre o rio Jurançon que muitas vezes transbordava. Em 1856, Jacques, conhecido na cidade com o "Jacques T inchant, am éricain”, assinou u m a procuração perm itindo que seus filhos vendessem ou hipotecassem suas propriedades restantes em Nova Orleans. A mudança de propriedade em terras para o co­ mércio foi tanto um risco financeiro quanto um a transição geracional, mas na economia agrícola francesa na depressão da m etade d a década d e 1850 isso pode ter parecido inevitável18.

Louis c Joseph podiam agora preparar o terreno para a versão Atlântica de seu empreendimento, aquela que iria explorar o mercado europeu de charutos em expansão. Mas onde estabelecer sua base continental? A França e a maio­ ria das outras nações europeias tinham monopólios de tabaco nacionais rígidos e de longa duração, tomando-as pouco hospitaleiras para o iniciante. O reino

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da Bélgica, n o encanto, taxava os produtos de tabaco em vez de m onopolizar sua venda. O p o rto belga de A ntuérpia tinha conexões diretas com uma va­ riedade de destinos n o G o lfo d o M éxico e uma indústria modesta de proces­ samento de tabaco. N avios de A ntu érp ia m uitas vezes atracavam cm Nova Orleans trazendo im igrantes alemães e produtos do norte europeu. fc possível que algum capitão de u m navio belga o u algum comerciante tenha falado com os irmãos T in c h a n t sobre o m ercado em desenvolvimento e a mão de obra barata disponível cm A n tu é rp ia 19. O reino d a Bélgica era u m am biente potencialmente acolhedor para uma família como a dos T in ch an ts. N a com unidade de comerciantes c em negócios oficiais, o francês continuava a ser a língua dominante. Embora socialmente conservadora e c o b erta d e tensões dassistas, a Bélgica era uma nação estável, altamente urbanizada e form alm ente democrática, com uma imprensa relati­ vamente livre. E n tre os exilados que encontraram refúgio lá (além de Kari Marx), estava um a variedade de ativistas que haviam se envolvido na revolução de 1848 na França e sofrido d urante sua repressão, inclusive muitos dos cha­ mados proscrits d u D eux-D écem breyaqueles expulsos por Napoleão III depois de tentar resistir ao golpe de E stado de 1851. A Bélgica, além disso, era um Estado jovem (in d ep e n d en te apenas desde 1830) e ainda não era um poder colonial, tin h a u m a população im igrante substancial e nenhuma história de discriminação form alizada d e cor. Para Joseph, o mais ousado dos filhos, valia a pena tentar20. Em junho de 1856, Jo sep h T in c h an t tirou um passaporte cm Nova Orleans e se preparou para atravessar m ais um a vez o Atlântico. Seu destino inicial bem pode ter sido o p o rto d e B ordeaux, o que lhe perm idria visitar sua família em Pau e consultar seus pais e irm ãos sobre o próximo passo. O projeto de­ pendia da disposição d e Jacques e Élisabeth em continuar financiando o em­ préstimo substancial a seus filhos mais velhos e de Joseph encontrar alguma maneira para que a fam ília inteira pudesse se reagrupar cm uma nova cidade21. No outo n o d o m esm o ano, Joseph T inchant já estava cm Paris, onde se encontrou com u m am igo q ue era m úsico e fabricante de charutos de Nova Orleans cham ado E d m o n d D édé, que dnha viajado para a França de Veracruz, no México. É bem provável que E dm ond Dédé dvesse como objedvo fazer dinheiro suficiente p ara se m atricular n o Conservatório de Paris, c ele se jun­ tou a Joseph e n q u an to se p u n h am a cam inho para Antuérpia, a grande cidade comercial belga. A o se registrar com a polícia belga à sua chegada, Joseph, com bastante otim ism o, declarou ser um ‘‘fabricante de charutos” que dependia de seu próprio com ércio. E d m o n d se descreveu como “contador* de Joseph22.

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Enquanto isso, na Luisiana, Louis T inchant se desfez d o fabricante de charutos, o escravo M ardn Mitchel, que ele havia com prado dois anos antes. O preço foi duas vezes maior daquele que ele tinha pago — 2S0 dólares em vez de 125 — mas ainda assim, bastante baixo. T udo indica que, dali em diante, a família já não m antinha ninguém como escravo a não ser, talvez, que Trois-Sous ainda estivesse viva c morasse com Louis e Octavie. Parece prová­ vel que as atividades manufatureiras de “L & J T inchant" cm N ova Orleans agora estivessem sendo realizadas por artesãos livres23. Para a equipe em Antuérpia, os primeiros meses de inverno devem ter sido m uito difíceis. Joseph e seu amigo Edm ond se m udaram para quartos de alu­ guel na Ruelle du Livre/Boeksteeg, 188, em um bairro pobre p e rto d o po rto 24. Eles se defrontaram com a dupla dificuldade de encontrar trabalhadores para ajudá-los na fabricação de charutos e de desenvolver um m ercado para o pro­ duto final. Antuérpia na metade da década de 1850 era um ím ã para trabalha­ dores pobres vindos do campo. O colapso do sistema de produção p o r enco­ mendas de têxteis tinha jogado homens, mulheres e crianças fora da produção rural e para a cidade, desesperados em busca de trabalho. O s dois recém-che­ gados partilhavam suas condições de moradia com esses m igrantes mais pobres, e mesmo que pudessem conseguir progredir o suficiente para c o n tratar traba­ lhadores na produção de charutos, só era possível fazê-lo com salários bem baixos. N o começo de 1857 agregaram a sua casa u m fazedor de charutos ainda adolescente, chamado Salomon Benni, da H olanda25. Com o primeiro passo dado em Boeksteeg, o contingente d a França co­ meçou a chegar a Antuérpia — primeiro o irmão Ernest em m arço de 1857, depois o irmão Jules em maio, depois Jacques, Élisabeth e É douard em agosto. (Édouard ainda não tinha completado 16 anos e é possível que os pais tenham permanecido em Jurançon durante a primavera para que ele pudesse terminar o ano letivo.) A essa altura uma migração parecia necessária— a fam ília já não possuía uma casa na França e tinham transferido a m aior p a rte de seu capital para os filhos26. Enquanto todo o grupo se amontoou em quartos alugados, E dm ond Dédé foi embora, voltando para a França e para aquilo que acabou se to m a n d o uma carreira ilustre como compositor e maestro. A casa de A n tu é rp ia agora era constituída por pelo menos seis Tinchants e pelo jovem Salom on B enni e eles lutaram para conseguir um lugar seguro na vida econôm ica d a cidade. Joseph na Bélgica e Louis na Luisiana teriam de atuar im ediatam ente para concretizar seus projetos transatlânticos27.

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Prim eiro, eles re o rg a n iz a ra m os irm ãos a fim de aproveitar as habilidades de Louis, q u e tin h a u m a h istó ria com ercial m ais longa, tan to com o d o n o de mercearia q u a n to c o m o fa b ric a n te d e tabaco. Em m arço de 1857, agindo em nome de seu pai, L o u is v e n d e u m ais um dos terrenos em Nova O rlcans — o da Rua B arracks e n tre B o u rb o n e Royal - p o r 2.000 dólares. E, na prima* vera de 1858, a c o m p a n h a d o p o r sua esposa O ctavic Rieffel, seus três filhos e uma criada, L o u is e m b a rc o u n o navio P hiladelphia para Nova York. D ali a família c o n tin u o u in d o p a ra A n tu é rp ia , o nde Louis com eçou a dirigir um a empresa de e x p o rta ç ã o e im p o rta ç ã o de pequena escala sob o nom e M aison Américainc28. A chegada d e L o u is a A n tu é rp ia liberou Joseph para que este pudesse voltar à L uisiana e desenvolver a p a rte d o tabaco nos planos de seus irmãos, usando com o base a em p resa q u e eles tinham estabelecido em Nova O rlcans como L. & J. T in c h a n t. O s irm ãos Pierre e Jules se uniram a Joseph em Nova Orlcans, o n d e se h o sp e d a ra m com um carpinteiro cham ado Félix Azéma. Como seu p a i a n te s deles, os irm ãos construíram laços com artesãos na p o ­ pulação de c o r livre d a cid ad e, assim com o com clientes da população branca. 0 recenseador re g is tro u A zém a co m o m ulato e Pierre e Jules com o traba­ lhadores em u m a “loja e fábrica de charutos”29. N o d ia 20 d e j u n h o d e 1859, Jo s e p h T in c h a n t levou essa aliança um pouco m ais longe, casan d o -se c o m S téphanie Gonzales, Hlha de um carpin­ teiro c ham ado V in c e n t G o n z ale s, e irm ã de m eia dúzia de novos artesãos. Tanto Joseph q u a n to S té p h an ie fo ram designados com o pessoas de cor livres em sua certidão d e casam en to . O jovem casal se m udou para a casa dos pais de Stéphanie e seu p rim e iro filho nasceu em abril de 186030. Pessoas d e c o r livres e m N o v a O rleans agora estavam enfrentando cons­ tantes a ta q u es ju ríd ic o s a su a a u to n o m ia . A pesar disso, elas m an tin h am uma rede su b sta n c ia l d e in stitu içõ e s, inclusive a Société C atholiquc p o u r rinstruetion d es O rp h e lin s d a n s 1’Indigence, que administrava um a escola para crianças d e c o r livres. A d ireto ria dessa sociedade era um p o n to im por­ tante de atividades associativistas e Joseph T in c h an t entrou para ela, fazendo-se útil p o r m e io d e seus laços c o m fornecedores de m anuais didáticos em língua francesa. P o u c o d e p o is ele foi nom eado tesoureiro31. Em 1860 é provável q u e a em presa de tabaco da família pudesse ser consi­ derada com o u m sucesso m odesto. A agência de classificações de crédito R.G. Dun observou q u e L. & J. T in c h a n t, fabricantes de charutos, localizados na Rua New Levee, 9, N o v a O rleans, “cum priam seus compromissos com rapidez” e estavam a ptos p a ra em préstim os d e um a quantia m odesta. O s avaliadores

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consideraram que a firma, logo chamada T inchant Brothers, era um a "empresa pequena mas segura". O s Tinchants vendiam prim ordialm ente n o atacado para o comércio, anunciando um tanto sugestivamente para "donos de m er­ cearias, gerentes de bares e todos os negociantes de charutos” que suas "im ita­ ções das marcas mais conhecidas* eram tão perfeitas q u e “é im possível até mesmo para os melhores especialistas perceberem qualquer diferença, exceto pelos preços, que são extremamente m oderados”32. D e volta a Antuérpia, o mais velho dos Tinchants e seus irmãos m ais jovens conseguiram sair de Boeksteeg e m udar para o endereço m ais respeitável de Schuttershof, 59/3. Jacques e Élisabeth, agora com 60 e poucos anos, podiam apropriadamente se chamar de rm tiers c ter a expectativa de sobreviver dos lucros dos pagamentos dos empréstimos e do aluguel das m odestas proprie­ dades que ainda possuíam em Nova Orleans. Sob a recom endação de Joseph Tinchant, o irmão Louis conseguiu arranjar um a escola em G ante para o filho de amigos da família no Alabama. O jovem Auguste Joseph, de M obile, Alabama, seguiu assim, com o haviam feito os T inchants mais jovens, um a trilha europeia estabelecida para superar as limitações das oportunidades educacio­ nais para pessoas de cor nos Estados do Sul. D e m odo geral, a estratégia da família Tinchant de estabelecer redes através do Adântico estava funcionando, embora ainda não produzisse lucros m uito significativos33. Conform e o ano de 1860 ia term inando, no entanto, ficou claro que tudo isso podería despencar como resultado da crise secessionista que se acelerava rapidamente nos Estados Unidos. O s estados escravistas m ais agressivos co­ meçaram a se separar após a eleição em novem bro de A braham Lincoln e, conforme aumentava o ím peto de desunião, os eleitores d a Luisiana (todos eles, por definição, brancos) elegeram um a convenção favorável à secessão. O estado deixou a União no dia 26 de janeiro de 186134. C om o outros homens de cor relativamente prósperos em N ova Orleans, Joseph T inchant estava agora em um a posição m u ito delicada. Seu colega Armand Lanusse da Société Catholique escolheu o cam inho d a lealdade os­ tentosa para com a Confederação, aprovando a form ação d e u m a milícia confederada de hom ens de cor, que desfilaram diante da escola que Lanusse dirigia. Embora o próprio Joseph tivesse durante algum tem p o m antido um interesse parcial em um fabricante de charutos escravo, suas sim patias políticas estavam com a União, e parece que ele estava disposto a esperar o momento oportuno. O s irmãos T inchant mais jovens, Jules e Pierre, ao contrário, não esperaram para ver o que a guerra podería trazer e partiram p a ra tentar sua sorte do outro lado do Golfo do México, em Veracruz35.

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O s c u n h a d o s d e Jo se p h T in c h a n t, A rm and, Gustavc c Paul Gonzales, fossem quais fossem suas convicções privadas sobre a guerra, seguiram a li' derança d e m u ito s d o s h o m en s d e cor livres mais proem inentes em Nova Orleans e ofereceram seus serviços às unidades confederadas que se organi­ zavam para d e fen d e r a cidade. Estudiosos m odernos têm debatido essa inicia' tiva, evocando razões q u e vão desde um egoísmo elitista po r parte de um grupo relativam ente “privilegiado’’ de proprietários c artesãos, até o puro temor diante de um p a d rã o com provado de hostilidade feroz às pessoas dc cor livres por parte dos secessionistas que estavam no poder no estado. É razoável supor que decisões individuais d e se alistar resultaram de muitas motivações dife­ rentes. A lém disso, c o m o um historiador recentemente assinalou, em época de crise, a recusa p o d ia ser vista com o covardia, “c o medo de parecer menos que um h o m em c o m p le to era u m a visão de m undo que não deve ter sido afetada pela c o r d a pele d e um a pessoa”36. Joseph T in c h a n t se deparava com o desafio de m anter boas relações com a clientela branca d e sua loja varejista na Avenida Saint Charles, e ao mesmo tempo esconder sua h ostilidade p ara com o regime confederado e conseguir manter um delicado c o n ju n to d e relacionamentos com a população de coc. No começo d e jan e iro de 1862 ele discretamente abandonou sua posição como tesoureiro n a S ociété C a th o liq u e em que A rm and Lanusse desempenhara um papel conspicuam ente favorável aos confederados. Ele manteve a cabeça baixa e n q u an to as n otícias d a guerra transmitiam uma grande incerteza do resultado d o co n flito e n tre a U nião e os Confederados37. O bloqueio d a U n iã o lim itava o com ércio pelo p o rto de Nova Orleans e os negócios se to rn a ra m cada vez m ais difíceis. D o outro lado do Atlântico, em A ntuérpia, a im p ren sa acom panhava o desdobram ento da Guerra Civil nos Estados U n id o s com interesse, observando o debate sobre a escravidão e tentando p rever as consequências para seu próprio porto. Louis Tinchant continuava a d irig ir a M aison Am éricaine que dependia desse comércio, mas sua situação financeira d eterio ro u . A guerra fez com que fosse mais difícil receber recursos d o s E stados U n id o s e logo o diretor da escola onde eles haviam colocado o filh o d e seus amigos do Alabama começou a exigir paga­ mento d o s T in c h a n ts q u e tin h a m sido os interm ediários. T udo isso foi muito c o nstrangedor38. Mas ainda havia constrangim entos mais sérios p o r vir. O mais jovem T in­ chant — É d o u ard — era o últim o que ainda estava na casa de seus pais cm Schuttershof 59/3. E m b o ra tivesse sido um estudante exemplar no lycéc em Pau, o rapaz parece te r ficado m eio perdido em Antuérpia, rapidamente se

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tran sfo rm a n d o cm u m ro m ân tico p roblem ático. E n tre abril e se te m b ro de 1861 freq u e n to u bares n a área d o p o rto , se apaixonou e c o m freq u ên cia colocava a rep u tação d e sua fam ília em risco. A pós seis m eses desse c o m p o rta ­ m e n to in controlável, algo horrível ocorreu — o u pelo m enos algo qu e seu pai Jacques co n sid ero u horrível. A essa distância é im possível d e te rm in a r qual foi a transgressão, e m b o ra pareça te r sido in d irc tam en te relacionada c o m um a jovem . Talvez a bebida e o jo g o tivessem e n tra d o nisso tam b é m ; o to m dos subsequentes pedidos de desculpa sugere q u e ele p o d e te r fe ito dívidas que seu pai foi o b rigado a pag ar39. M e tic u lo sa m e n te c o rre to , Jacques T in c h a n t a p a re n te m e n te n ã o tin h a q ualquer intenção de esperar para ver que o u tro d a n o a sua rep u tação É douard a in d a p o d ería causar. Ele e n tã o organizou para q u e o jovem saísse discreta­ m en te d a Bélgica para a H o la n d a c fosse colocado em u m navio a c a m in h o das A m éricas, o n d e se esperava que ele pudesse ser ú til a seus irm ãos. N en h u m registro d a p a rtid a de É douard de A n tu é rp ia parece te r sid o arq u iv a d o com as autoridades belgas, m as n o dia 29 de setem bro d e 1861 ele e m b a rco u em u m navio n o p o rto holandês de Vlissingen. D o prim eiro p o r to em q u e o navio parou, D over, cie enviou um a carta arrependida a sua m ãe, e m q u e inform ava estar se se n tin d o m u ito bem a bo rdo, len d o um c ap ítu lo d a Im ita çã o d e Cris­ to to d o s os dom ingos e pratican d o o e sp an h o l d u a s h o ra s p o r d ia. Afirm ou sentir-se ansioso para en co n trar com seu irm ão Jules, a g o ra estabelecido em Veracruz, c a com eçar a com pensar pelas coisas terríveis q u e tin h a feito40. A nos depois, É douard a in d a p e d ia o p e rd ã o d e seu p a i p o r suas "loucuras*. M as a b o rd o d o navio n o o u to n o d e 1861, p o r m ais a rre p e n d id o q u e estivesse, ele parece te r ficado encantado com a viagem . A travessia d u ro u 73 dias e levou o navio a pouca distância das Ilhas d a M ad eira e d a s C a n árias, d ep o is para o o u tro lado até G uadalupe, P o rto R ico e C u b a . U m a te m p e sta d e atrasou sua chegada a Veracruz, m as pu d eram desem barcar n o d ia 15 d e dezem b ro 41. Lá, n o en tan to , É douard se d eparou com as c o n se q u ên c ia s d e um a rasga internacional econôm ica e diplom ática q u e se agravava ra p id a m e n te. Q uando B enito Juárez em ergiu vitorioso d a G u e rra d a R e fo rm a e assu m iu a presidên­ cia d o M éxico em 1861, e n c o n tro u u m a d ív id a in te rn a c io n a l esmagadora c ontraída p o r seus predecessores — inclusive o s co n se rv a d o re s q u e haviam p ed id o em préstim os na E uropa a fim de travar a g u e rra c o n tra ele. N o dia 17 d e ju lh o de 1861, o C ongresso m exicano su sp en d e u o p a g a m e n to dos juros sobre a dívida nacional. U m a expedição m ilita r c o n ju n ta d e ingleses, franceses c espanhóis para o M éxico foi organizada, o ste n siv am e n te , p a ra persuadir o governo m exicano a m u d a r d c ideia.

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As ambições de Napoleâo III, imperador dos franceses, no entanto, viriam a ser de alcance bem maior. A intervenção no México ofereceu a possibilidade de desafiar o poder regional dos Estados Unidos — uma perspectiva que se tornava mais factivel graças à possibilidade de que a Confederação pudesse ter sucesso em dividir a nação norte-americana. No mínimo, a Guerra Civil pren­ dería os militares americanos e deixaria espaço considerável para uma ação por parte das potências européias no México42. As tropas das três potências deveríam chegar simultaneamente ao México, mas na prática a M arin h a espanhola adquiriu vantagem sobre os aliados da Espanha e saiu diretam ente de Cuba para Veracruz. Lá, os espanhóis, os franceses e os britânicos tinham a intenção de capturar a alfândega e começar a coletar a renda que, a seu ver, era devida a seus nacionais. No dia cm que Édouard desembarcou n o porto, a cidade de Veracruz tinha acabado dc ser tomada pela M arinha espanhola e os franceses e britânicos se juntaram a eles pouco depois. O exército mexicano estava a umas poucas léguas da cidade, interrom pendo o com ércio e a comunicação com o interior. Tudo isso foi m uito excitante p a ra contar em uma carta para a família, mas não cra muito promissor para um jovem nascido na França que esperava fazer fortuna no comércio43. Além disso, o irm ão mais velho de Édouard. Jules, havia recebido uma carta amarga de seu pai dando sua versão da história das loucuras de Édouard que, segundo ele, incluíam frequentar o porto de Antuérpia com acc quil y a de plus crapuleux” (com os maiores crápulas), jules não mostrou qualquer interesse em tom ar conta do irresponsável Édouard, cujo 'caráter* ele achava desagradável. C om a justificativa de que os negócios iam mal e de que Édouard não ralava espanhol, Jules o despachou para os Estados Unidos, com a espe­ rança de que o irm ão Joseph seria capaz de lidar com o problema. A cidade confederada de Nova Orleans estava sob um bloqueio naval da União, mas isso não importava: Édouard podia pegar um navio até o Texas e depois ir por terra até a Luisiana. N ão prometia scr uma viagem fácil, mas Édouard havia ficado m ortificado ao saber da cana de seu pai contando aJules e seus colegas o episódio em A ntuérpia e aparentemente estava ansioso por partir4*. Foi assim que Édouard Tinchant, com 20 anos, chegou à metrópole do comércio e da escravidão na primavera de 1862 e entrou no meio da Guerra Civil. Édouard se m udou para a casa dos sogros de seu irmão Joseph, os Gonzales, na Rua Prieur, 256. Segundo seu próprio relato, eles eram simpá­ ticos e generosos com ele, e ele parece ter ficado animado com toda aquela aventura45.

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Em cartas futuras para a família, Édouard retratou esse m om ento como de grande tensão política na Luisiana, no qual ele foi obrigado a ocultar seu próprio abolicionismo dos simpatizantes confederados que frequentavam a loja de charutos de Joseph. Em abril de 1862, a cidade confederada caiu dian­ te das forças unionistas do oficial comandante da esquadra David G . Farragut, dando o controle da saída do Mississipi à União. Hom ens e mulheres de cor ativistas agora podiam aparecer na cena pública, embora fossem rapidamente desafiados pelos unionistas conservadores e insultados pelos pró-confêderados. As questões de raça, respeito e posição social que tinham perturbado a geração dos pais de Édouard e Joseph vieram à tona mais uma vez — mas agora com a perspectiva de que a ocupação da Luisiana pela União pudesse ajudar a mu­ dar as regras do jogo46. Sendo um estrangeiro em uma cidade ocupada em um país em guerra, Édouard se apressou para se registrar no Consulado francês em setembro de 1862. O cônsul se dispôs a aceitar sua certidão de nascimento em Gan, nos Baixos Pirineus, como evidência suficiente de que ele era realmente francês. Édouard, a ponto de completar 21 anos, estava provavelmente ciente de que qualquer reivindicação futura que ele pudesse vir a fazer com relação à cidadania francesa podería depender do fato de ele ter dado esse passo afir­ mativo formal47. Sob o Código Civil francês, um filho nascido na França de pais estrangeiros tinha, por lei, de fazer uma declaração de lealdade à França n o ano após ter alcançado a maioridade se desejasse garantir a cidadania. Um a lei de 1851 — cujo objetivo era aumentar as fileiras dos militares — havia am pliado essa possibilidade de acesso, declarando que o filho nascido n a França de um pai estrangeiro automaticamente passava a ser um cidadão francês — se o próprio pai tivesse nascido na França. Mas os pais de Édouard, cada um “filho natu­ ral” de um colono francês estabelecido em Saint-Domingue que mais tarde deixara a colônia, parecem não ter tido qualquer nacionalidade óbvia. Tudo indica que o pai de Édouard, Jacques, havia nascido em Baltimore. A principal reivindicação de Édouard com relação ao “nascim ento francês” de um de seus pais baseava-se no batismo de sua mãe em Saint-Domingue, algo que ela podia provar com documentos, mas que ela nunca havia reconfirmado formal­ mente depois de chegar à França. De qualquer forma, inscrever seu nome cm um registro consular foi uma iniciativa inteligente de Édouard, se, por acaso, questões de cidadania surgissem fúturamente. A alternativa bem podería ter sido a vulnerabilidade do apátrida48.

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Essa foi um a era em que a cidadania para os jovens raramencc podia ser separada da questão d o serviço m ilitar compulsório — c alguns expatriados explicitamente renunciavam à sua nacionalidade francesa a fim de evitar serem convocados para o exército francês. Édouard pode ter acreditado que ao se registrar com o um francês nos Estados Unidos podería, em vez disso, escapar do serviço m ilitar com pulsório no exército ocupante da União. Certamente outros residentes da Luisiana com uma reivindicação à nacionalidade francesa haviam antes procurado evitar o serviço confederado por meio desse meca­ nismo. (N o final, esses hom ens acabaram sendo convocados de qualquer maneira, apenas com a promessa de que seu serviço ficaria restrito aos limites da cidade). M ais tarde, Édouard negou vigorosamente que sua motivação tivesse sido evitar o serviço da União e, com o passar do tempo, seu compor­ tamento sugere que ele considerou que a cidadania francesa tinha valor por si mesma49. Proteger-se sob a nacionalidade francesa, no entanto, era uma estratégia incerta para um jovem de uma família identificada na cidade como sendo d t cor. Isso não obteria a boa vontade dos ocupantes: os ofidais da União cm Nova Orleans suspeitavam que a população francesa e o governo francês sim­ patizavam com o regime escravista. Aliar-se com o consulado francês, além disso, criaria um a lealdade política desconfortável para Édouard. Conforme o debate político se aquecia, o cônsul francês expressou uma suspeita crescen­ te a respeito d a população de cor e uma hostilidade para com as correntes abolicionistas, que, a seu ver, estavam se fortalecendo*0. Durante 1862 e 1863, além disso, um conflito de objetivos entre os impérios aumentou a tensão. A coalizão espanhola-inglcsa-francesa em busca de paga­ mento da dívida no México havia se rompido, e a incursão original cm Ycracruz agora fora substituída p o r uma expedição de grande escala sob as ordens de Napoleão III da França, que pretendia implantar um poder francês duradouro no continente norte-americano. Para Édouard, que desprezava Napoleão III. considerando-o um tirano, essa agressão de um Império contra uma República era repelente, abrindo um abismo ainda maior entre suas idéias e aquelas re­ presentadas pelo cônsul francês. Em Nova Orleans, jovens hostis á invasão francesa tinham se juntado para formar um grupo que se autointitulava "De­ fensores da D outrina de Monroe". Havia assim, agora, uma segunda questão importante, além d a escravidão, sobre a qual os princípios declarados dc Édouard T inchant o distanciavam da França e o faziam mais próximo das idéias dos radicais na cidade51.

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O irmão m ais velho de Édouard, Joseph T in ch an t, estava se to rn an d o extremamente visível com o porta-voz dos hom ens de cor radicais d a cidade. Jean-Charles Houzcau, um emigrante belga que trabalhava com o jornalista em Nova Orleans, descreveu esses compromissos políticos com o o resultado lógico da experiência de Joseph T inchant e outros com a igualdade civil na Europa. O contraste entre igualdade na França e desigualdade na Luisiana, H o u ­ zcau argumentou, tomava esses homens impacientes com os fardos d a discri­ minação racial. Invocando uma metáfora favorita dos radicais, que com para­ vam seu porta-voz com os eloquentes representantes populares da República romana, Houzcau escreveu que Joseph Tinchant “tinha o fogo de um tribuno"52. N a primavera e no começo do verão de 1863, as forças d a U nião, inclusive uma unidade de homens de cor de Nova Orleans, estavam sitiando o fone confederado em Port Hudson, ao m esmo tem po em que um a im portante ofensiva unionista estava ocorrendo contra Vicksburg. N inguém sabia se a União teria sucesso e o cônsul francês inform ou que era quase impossível obter notícias militares confiáveis. O general da U nião N athaniel Banks, te­ mendo um possível ataque confederado a Nova Orleans, apelou para que os homens leais da cidade se apresentassem com o “voluntários de 60 dias” para ficar de guarda contra um ataque. Édouard T inchant, que se retratava em suas cartas para a família como um ardente abolicionista {U plus enragé des abolitionnistes), agora se preparava para m udar sua autoidentificação de francês expatriado para americano radical53. Joseph Tinchant — nascido na cidade e conhecido p o r seus vizinhos — rapidamente assumiu um papel im portante m obilizando apoio m ilitar para a União e fechando sua loja de charutos para se dedicar à tarefa de recruta­ mento. A eloquência sobre a qual H ouzeau falou mais tarde fez-se visível em uma assembléia realizada no Economy H all no final de ju n h o de 1863. Nelson Fouché, que uns poucos anos antes havia organizado a em igração de homens de cor livres de Nova Orleans para o M éxico, congregou u m a assembléia massiva reunindo um enorme grupo de ativistas inclusive Paul Trévigne, da “Unidade africana” da Loyal National League, e Joseph T in c h an t, jun to com respeitados veteranos das companhias de hom ens de co r qu e haviam lutado sob Andrew Jackson em 1815.0 item principal d a agenda era um a declaração do desejo dos homens de cor de servir às forças m ilitares para defender a União e a cidade. Para expressar a amargura da exclusão política de longa data, Joseph Tinchant buscou uma analogia familiar clássica. A té agora, ele disse à multidão, a perseguição tinha sufocado o amor à pátria. A pátria tin h a sido com o uma madrasta, afastando-os de seu seio54.

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Para incentivar o s ouvintes à ação, ele m udou a metáfora, transformando-a em uma alegoria de renovação e d e sucesso e depois de volta á família: o pa­ triotismo esm orecido p ela escravidão podería reviver sob o sol da liberdade; a madrasta tin h a se arre p e n d id o dos erros cometidos. O Código Negro, o chicote, os grilhões n ão voltariam jamais. Será que os homens de cor agora se exporiam à acusação d e covardia? Será que deixariam o m undo acreditar que sua raça estava d estin ad a a ser servil? (“Não! Não!", gritava a multidão). Se fosse verdade q u e a h o n ra era o m aior bem do hom em , eles podiam agora deixar para seus filhos o conhecim ento de que seus pais, embora pudessem perecer, haviam escolhido a m o rte em vez da infâmia e da desonra ("aplauso prolongado”)55. No dia 4 de ju lh o d e 1863, o governador Shcpley recrutou Joseph Tinchant como segundo te n e n te n o exército da U nião na unidade chamada Sexto Re­ gimento d e V oluntários da Infantaria da Luisiana (D e C or)54. Entre os que se alistaram n o m esm o regim ento estavam Arm and, Valcour e Paul GonzaJes, todos irmãos d a esposa d e Joseph, Stéphanie, e outros residentes d o Sexto Distrito de N o v a O rlean s. A rm and, que se to m o u sargento, era pedreiro, Valcour, sapateiro, e Paul, aprendiz. A rm and e Paul eram veteranos da anterior Guarda N ativa C onfederada, mas, com o m uitos membros daquelas unidades, eles parecem te r tid o um a transição suave para o serviço pela União5'. Edouard Tinchant, que havia m o rad o com a família Gonzales ao chegar à cidade, apa­ rentemente se alistou tam bém 58. O Sexto R egim ento da Luisiana m ontou guarda nas muralhas da cidade em preparação p ara u m possível ataque confederado. Embora a unidade não tivesse participado de grandes batalhas, o fato do recrutamento generalizado entre hom ens d e c o r alterou o equilíbrio de forças na cidade. Jcan-Charlcs Houzeau, que tin h a p articipado dos "banquetes” da era republicana de 1848 na Europa, viu essa d inâm ica com o um a nova realidade polídea que se impu­ nha aos m oradores d e N ova O rleans pró-escravidão, obrigando-os a renunciar à ideia de “contrarrevolução” Ele foi otim ista demais nessa questão, mas seus colegas com partilhavam essa sensação de que as coisas estavam m udando c as editoras aum entaram o tam an h o do jornal radical U U nion*. Logo as notícias das vitórias da União em Vicksburg c Port H udson che­ garam. A unidade unio n ista d e hom ens de cor havia participado do sítio de Port H udson e a coragem d o capitão A ndré Cailloux. um oficial negro da União e fabricante de charutos em Nova Orleans que tinha sido m orto no começo da cam panha, tom ou-se um símbolo da contribuição dos homens de cor francófonos p ara a causa unionista. Édouard identificou esses homens que

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caíram cm Port Hudson com o ‘nos Créoles", um term o que era frequente­ mente usado entre a população de cor de ascendência francesa. O sacrifício de Cailloux foi sentido pelos hom ens e m ulheres negros de língua inglesa também. N o dia 29 de julho de 1863, a unidade de Édouard ejoseph Tinchant, o Sexto Regimento da Luisiana, incorporou a dignidade marcial quan d o duas companhias de seus hom ens acompanharam o caixão d e Cailloux pelas ruas da cidade na imensa procissão fúnebre pública. M ilhares de pessoas de cor, tanto livres quanto escravas, se eníilciraram à beira do cam inho, visivelmente tom ando p a n e na esfera pública da cidade de Nova O rleans60. Esse pode ter sido o cume da carreira pública d o Sexto R egim ento. As vitórias de Vicksburg e Port Hudson deram às forças da U nião o controle do rio Mississippi e o risco de um ataque confederado a Nova O rleans dim inuiu drasticamente. O regimento foi então desmobilizado cm agosto sem te r visto nenhum combate. Édouard falou vagamente cm um a carta para seus pais sobre ter sido convidado por seu coronel para aceitar o posto de capitão e ajudar a formar um regimento da União para um a expedição para o Texas, m as parece não haver qualquer vestígio de um segundo alistam ento. É d o u ard disse a seus pais que ele havia pedido demissão após um mês, te n d o visto com o o comando da União tratava os soldados de cor. Seu irmão Joseph, com o tenente, foi realmente afetado pela hostilidade contra os oficiais de c o r p o r parte do general Banks61. O que Édouard não disse a seus pais foi que, quando arm ado e em unifor­ me, ele tinha sofrido um incidente hum ilhante. Ele estava em um bonde na direção de Carrollton quando um sargento da U nião — aparentem ente acre­ ditando que um soldado de cor não devia estar no m esm o b o n d e que seus colegas brancos — o empurrou para fora do veículo. U m ten e n te d a União então prendeu Édouard. O s bondes eram um po n to focal ta n to para racistas quanto para ativistas pela igualdade de direitos, e viajar neles em igualdade de condições suscitava questões não só de cor e respeito, m as envolvia as políticas do exército da União. Édouard protestou jun to a seu oficial superior e aparen­ temente foi desagravado e apoiado pelo coronel que com andava a unidade62. O problema, no entanto, não se restringia a sargentos individuais com impulsos racistas. O presidente Lincoln e o alto com ando d a U nião ainda não haviam decidido sobre um a política relacionada à escravidão n o s estados ocupados, ou sobre o serviço m ilitar dos hom ens de cor. O pró p rio general Banks, embora precisasse do potencial hum ano oferecido pelos hom ens de cor da Luisiana, recusava as reivindicações relacionadas a seu respeito e re­ conhecim ento com o líderes e cidadãos. A questão d a elegibilidade para

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comissões era u m p o n to de conflito e Banks tinha forçado o pedido de demis­ são de hom ens que haviam sido comissionados como oficiais no exército da União na p rim e ira fase d o recrutam ento. Em bora sua lealdade para com a União não fosse questionada, alguns dos homens associados com os regi­ mentos “de cor" — inclusive Joseph T inchant — começaram a se afastar do alto comando d a U nião e de sua cumplicidade com os preconceitos associados com uma sociedade escravista63. A empresa de tabaco cham ada, com otimismo, de Tinchant Brothers, além disso, escava vacilando sob a pressão da guerra e da ocupação. Os sócios origi­ nais de Joseph — Pierre e Jules — tinham deixado a Luisiana. Édouard, recém-chegado, tin h a p o u c o a oferecer em term os de experiência e nada em termos de recursos. Jo sep h aparentem ente ajudou Édouard a começar um negócio de compra e venda d e lenha, em um a escala m uita pequena, mas não o convidou para ser seu sócio64. Édouard te n to u n ã o se aborrecer com a situação, explicando para a mác que ele era u m p o u c o co m o u m nôm ade, trabalhando sozinho mas sem acu­ mular m uita coisa (ele disse estar ganhando seis dólares por semana). Em algum momento em 1864 É d o u a rd se m u d o u para m orar com uma família cujo chefe era François Xavier, um sapateiro em FaubourgTremé. Conectada ã mác de Édouard, Élisabeth, p o r laços de parentesco verdadeiros ou fictícios, a fa­ mília estava lu ta n d o n a N ova O rleans da época da guerra e Édouard contou que ele fazia o possível p a ra ajudar os “primos" Xavier. Com o seus irmãos, Édouard foi a tra íd o p a ra o com ércio de charutos, mas no seu caso o em ­ preendimento se restringia a com prar um lote de charutos p or atacado em Nova O rleans, viajar rio acim a até M em phis para vendê-los e depois voltar para Nova O rleans65. Embora sua carreira comercial não fosse exatamente brilhante, Édouard Tinchant estava d a n d o seus prim eiros passos em busca de um espaço na vida política de N ova O rleans. O jornal V U nion, estabelecido e financiado pelo médico Louis C harles R oudanez e editado por Paul Trévigne, oferecia uma plataforma tentadora. O jornal publicava ensaios literários c políticos além das notícias e conseguia ter entre seus contribuintes homens de cor francófbnos, tan to u n io n ista s poderosos quanto antigos confederados, inclusive Armand Lanusse, que era p o eta além de diretor de escola66. O artigo que iria provocar a entrada de Édouard Tinchant para o mundo da polêmica política foi aquele em que Armand Lanusse defendeu a f a i a do imperador M axim iliano, que tinha chegado ao México em junho de 1864 para ser declarado chefe de E stado sob patrocínio dos franceses. Lanusse escreveu

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para elogiar a intervenção francesa e insistir para que seus colegas d e c o r francófonos migrassem para o México. A o fazê-lo Lanusse estava endossando uma opção que há m uito tem po se colocava para as pessoas de co r livres em Nova Orleans. Já em 1857, um grupo de pessoas de cor livres da Luisiana tin h a su­ gerido estabelecer um a colônia que eles chamaram de Eureka, n a C o sta do Golfo do México, perto de Tampico. Atraídos pelas políticas pró-im igração do regime Liberal e dirigidos pelo posterior aliado de Joseph T inchant, Nelson Fouché, os colonos contavam adquirir terra e a cidadania m exicana. O em­ preendim ento no final não teve sucesso, mas a reputação antiescravista do México e suas terras abertas continuavam a ser um a atração67. N o verão de 1864, no entanto, a questão da m udança para o M éxico estava assumindo um sentido bem diferente. Alguns confederados defendiam apoiar a reivindicação de Maximiliano, de que ele era o legítim o chefe d e Estado, em troca de seu reconhecimento dos Estados Confederados da A m érica. M uitos republicanos do Norte, ao contrário, apoiavam o liberal B enito Juárez, recen­ temente deposto68. Maximiliano e seus aliados conservadores fizeram um a tentativa para atrair migrantes brancos entre os confederados com o colonos. A ideia era que as famílias de língua francesa seriam particularm ente apropriadas para o projeto imperial de “regenerar” o México p o r m eio da im igração. N o com eço de agosto de 1864, um jornal de língua francesa na Cidade d o M éxico apelou para que os seguidores da Confederação viessem para o M éxico, e deu o exemplo de ura “luisiano” que já tinha se estabelecido lá69. O tim ing de Armand Lanusse combinava precisam ente com o dos publi­ cistas de Maximiliano no México, mas, considerando seu público, ele adotou um conjunto diferente de argumentos. Dirigindo-se aos leitores de L ‘Union, um jornal conhecido como grande defensor da igualdade de direitos, Lanusse acusou as autoridades federais em Nova O rleans de não estar servindo aos interesses dos homens de cor. O México ocupado pelos franceses, argumentou ele, era um lar mais apropriado para os hom ens de cor d a Luisiana. O México há muito era conhecido como uma nação em que, argumentavam seus defenso­ res, "seja qual for a cor de sua pele, todos os hom ens são iguais perante a lei”70. Criticas das políticas unionistas vindas dessa direção irritaram Édouard Tinchant, que se considerava um abolicionista feroz, um pro p o n en te da igual­ dade de direitos e um inimigo total de N apoleão III. A posição argumentativa de Tinchant foi prejudicada, no entanto, pelo fato de o governo federal dos Estados Unidos realmente não fornecer garantia efetiva de cidadania igual para os homens de cot. N o verão de 1864, apesar do colapso quase total da

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escravidão na Luisiana, a questão mais ampla do destino legal do cativeiro n o estado ainda estava em debate71. Para o presidente A braham L incoln, a Luisiana ocupada pela União for* necia um exem plo p o ten c ial da futura reconstrução pós-guerra a ser realizada com um e sp írito d e a n istia e cooperação. Seria p erm itido aos unionistas brancos que tom assem a liderança e a questão da igualdade de direito ao voto seria adiada. E m abril d e 1864 um a convenção constitucional formada apenas por brancos se re u n iu , encarregada d e elaborar um a C onstituição com a qual o estado p o d e ría re en trar n a União. Embora se entendesse que a nova Constituição precisaria reconhecer a abolição da escravidão, um juiz da Lui­ siana tin h a re c e n te m e n te p u b licad o um a sentença que implicava que, do ponto de vista d o D ire ito , a escravidão ainda existia no estado. Delegados à convenção co n tin u aram a discutir a questão da compensação monetária para antigos donos de escravos considerados leais à União, e muitos denunciavam apropria ideia de p articipação política dos negros. N o plenário daquela con­ venção um delegado p ro p ô s que fosse adotada como parte da nova lei básica do estado a p ro p o sta d e que "nenhum negro terá a permissão para votar*. Decidiu-se q u e a m oção era im procedente pois, *com o relatório adotado, só cidadãos brancos livres p o d e m ser eleitores, e isso é forte o bastante* O governador M ichael H a h n m ais tarde ordenou que o juiz que havia declarado que a escravidão a in d a estava em vigor fosse destituído de sua função c o tex­ to final da C o n stitu iç ão pro p o sta confirm ou a abolição da escravidão. Mas certamente era possível dizer que os ocupantes federais e seus aliados unionis­ tas brancos tin h am contem porizado na questão da escravidão c estavam longe de conceder o p le n o gozo d a igualdade cívica para homens e mulheres de as­ cendência africana72. N o nível federal, o Senado tin h a aprovado a proposta da Décima Terceira Emenda a bolindo a escravidão, mas a Casa dos Representantes a tinha rejei­ tado, p o rtan to ela a in d a não estava disponível para possível ratificação. O alto comando d o exército d a U nião na Luisiana, além disso, muitas vezes se com­ portava de um a m aneira desrespeitosa para com os homens de cor unionistas na cidade. H a v ia m u ita coisa q u e A rm and Lanusse podería m encionar quando ele a rg u m e n to u q u e os nortistas não respeitariam os direitos dos homens de co r n o Sul73. Para É douard T in c h an t, n o entanto, o apelo político para emigrar para o México ia n a direção totalm ente contrária àquilo que havia significado para ele escolher a cidadania nos Estados U nidos — a explosão de entusiasmo em 1863 que fizera com que ele abandonasse sua reivindicação à nacionalidade

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P R O V A S D B L IB E R D A D E

francesa ao en trar p ara o exército d a U nião. O s E stados U n id o s n ã o eram , em qualquer sentido literal, a pátria de É douard; ele tin h a n ascid o e v iv id o 20 d e seus 23 anos n a França. M as ele agora estava co nvencido d e q u e, a fim d e aca­ b ar co m a escravidão d e um a vez p o r to d as, os h o m e n s d c c o r tin h a m d e perm anecer n a Luisiana para levantar-se e lu ta r pela U n ião . E, p o rta n to , em ju lh o d e 1864, ele em punhou sua caneta para d en u n c ia r a id eia d e expatriaçáo para o M éxico e para desafiar o eloquente e ta len to so A rm a n d L anusse. Ele o faria nas páginas d e L U n io n e d e seu sucessor, o b ilín g u e T rib u n e , jo rn a is ra­ dicais sofisticados lidos até em W ashington, D .C . Ele p recisaria u tiliz a r to d o o treinam ento em retórica q u e tin h a ad q u irid o n o lycée em P au, a o m esm o tem po cm que se situava novam ente com o um p atrio ta am erican o . E ele teria d e fazer tu d o isso sabendo q ue seu p ró p rio irm ão m ais v elh o , Jo s e p h , um am plam ente respeitado antigo te n e n te d o ex ército d a U n iã o , estav a quase p ro n to para desistir d a causa e partir, ele p ró p rio , p ara o M éxico74.

Notas 1

Veja o registro do censo: Domicílio 4647, Q uarto Departamento. Terceiro Distrito. Nova

Orleans, Sétimo Censo dos Estados Unidos, 1850, no rolo 238, U nited States National Archives (daqui em diante USNA). Microcópia M 432.0 registro do casamento, datado 18 de dezem­ bro de 1849, está na St Mary s Italian Church, Chames St.. Marriages, Pcrsons o f Color, vol. 1, Archives o f che Arch diocese o f New Orleans (daqui cm diante AANO). 2 Essa carta deJoseph Tinchant para Élisabeth VincentTinchant.de 19 de março de 1850,perma­ neceu nas mãos da família. Uma transcrição nos foi gentilmente fornecida por Philippe Struyf, um dos descendentes deJoseph Tinchant. Agradecemos à família calorosamcnte por sua gene­ rosidade em compartilhar esses documentos privados e por nos dar permissão de citar trechos das cartas. Elesserão citados como Tinchant Family Papers, na posse de Philippe Struyf (TFP-OS). 3 Veja 'Rcnonciarion à droits dusufruit par Marie Blanche V” Aubert dans Ia Succ°" Jean Détry* 28 de janeiro de 1848, ato 28,1848; e “Inventarie de la succession dc feu M ' B‘h Pelon V**J.B. Aubert’, 24 e 25 de janeiro de 1849, ato 16,1849, ambos no Tabelião Octave de Armas, New Orleans Notarial Archives Research Center (daqui em diante NONARC). 4 Joseph Tinchant para Élisabeth Vincent Tinchant, 19 de março de 1850, transcrição em TFP-OS. Para uma discussão das uniões que eram consideradas como casamentos por seus participantes, apesar dc ser negado aquele estatuto pelo Código Civil da Luisiana, veja Diana Irene Williams, “ They Call Ir Marriage’: The Louisiana Interracial Family and the Making o f American Legitimacy’ (tese de doutorado, Harvard Univcrsity, 2007). 3 Veja a carta de alforria: “Affranchis1par Marie-Blanche Peillon V” A ubert á Sophie, Marie•Antoincttc & Frédéric Bruno, ses esclaves”, 12 de setembro de 1832, ato 457, Tabelião Octave de Armas, NONARC. 6 “Inventaire de la succession de feu M“ B* Pelon V"J.B. Aubert”, 24 e 25 de janeiro de 1849. ato 16, Tabelião Octave de Armas, NONARC.

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J O S E P H E S E U S IR M Ã O S

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‘Tcstam cnt de M KBd Pclon V " J.B. A ubcrt f.c.L [fcmmc de couleur libre]", 5 de abril de 1841. ato 102, 1848; e “Inventairc d c la succcssion de feu M “ B** Pclon V " J.B. Aubcrt", 24 e 25 de Janeiro d e 1849, a to 16, 1849 am bos n o Tabelião Octave de Armas, NONARC. O escravo de nome Louis, tam b é m c o n h ec id o com o Jean Godcaux ou Jean Godo, com cerca de 25 anos, acabou sendo vendido a [M aric] A ntoinette [Lambcrt] DcCoud. Veja página 468 de Conveyance O ffice B o o k (d a q u i e m d ia n te C O B ) 52, Conveyance Office, New O rlcans (daqui cm diante C O , N O ). M u ito s d o s antigos escravos da viúva parecem ter morado Juntos. O censo de 1850 m ostra um do m icilio co m p o sto do pedreiro Antoine Decoud, sua esposa A. [Maric-An­ toinette] L am b crt, seus filhos, assim com o Sophie Lambcrt, com 48 anos c nascida em Saint•Dom ingue, Frédéric L am b ert e um L am bcrt mais Jovem. Veja Moradia 644, Domicílio 761, Primeiro D e p arta m e n to , Terceiro D istrito, Nova Orlcans, Sétimo Censo dos Estados Unidos, 1850, rolo 238, USNA M icro có p ia M432. “Tcstam cnt d c M ICB‘h P clon V**J".B“. Aubert", 5 de abril de 1848. “La succession d e M a d a m e L a m b e rt se st vendue réccmm ent. Parmi Ics csclavcs vendues se trouvait T rois-Sous q u i e st encore b ien alerte. N ous 1’avons achetée*. Joseph Tinchant a Élisabcth V in c cn t T in c h a n t, 19 de m arço dc 1850, transcrição em TFP-OS. A venda de Trois-Sous p o r 37 piastras, p o r a to da ta d o d e 18 d e março de 1851, está registrada na página 466 de COB 54. C O . N O . Veja Coherís N e w O rleans D irectory fo r 1853 (N ew Orlcans. impresso no escritório do D aily D elta, 1852), 224. S o b re o tabaco, veja Lewis Cecil Gray, History o f Agnculture m the Southern U nited States to 1860, vol. 2 (N ew York, Pcter Sm ith, 1941). 774,1037. A procuração está in c lu íd a em “V ente d e propriété par Mons. Jacqucs T inchant à Mons. Pierrc D u h a rt”, 12 d e m arço de 1853, ato 107, Tabelião Ducatel, NONARC Jacqucs Tinchant

tinha anteriormente dependido dc A. Soubic para cuidar dc seus negócios em Nova Orlcans. Veja, p o r exem plo, A . S oubie p a ra Jacqucs T inchant, 19 de abril de 1849. pasta 108. Mia. 4~2. Arm and Soubic Papers, H isto rie N ew O rleans Collcction. New Orlcans. cópia por cortesia de Adriana Chira. 12 A com pra dc “um c e rto h o m em negro, escravo vitalício, dc nome Martin" está rcgwrrada cm “Salc o f Slave. M atias M a rtin c z to Louis & Joseph Tinchant* 28 dc outubro dc 1854. Tabelião Alex Bicnvcnu, N O N A RC, L ouis e Joseph pagaram 125 dólares cm *ready money* (cm espécie). (N ota: S obrenom es d e origem espanhola, tais com o Gonzálcz ou Maranez. muitas vezes eram escritos de form a d iferen te na Luisiana, e os acentos originais eram então abandonados.) Mar­ tin M itchel aparece n o d om icílio 1041, Sétim o Departamento. Nova Orlcans. Nono Censo dos Estados U nidos, 1870, ro lo 522, USN M icrocópia M593. Sobre a Carolina do Norte como ponto de p a rtid a e N ova O rleans com o local dc chegada, veja Stcven Dcvic. Carry M e Back: The D om esticSlave Trade in A m erican L ife (N ew York Oxford Univeniry Press. 2005). H 1 18. 13 Sobre Juárez em N ova O rleans, veja Rafael de Zayas Enriqucz. Benito Jiu rez: Sm vtda - sm abra (México, T ipografia d e la V iuda d e Francisco de Léon. 1906). 50. Para uma discussão sobre os fabricantes de ch aru to s dc N ova Orleans, que. em parte, concentra-se cm André Cailloui. veja Stephen J. O chs, A B lack P a trio t a n d a H h ite P nest: A ndré CjuUoux a n d CLamde Paichal M aistre in C iv il W a rN ew O rleans (B aton Rouge. Lou isiana State Univenárv Press. 2000). 2 '-2 t. 57-59. ** Para a nova lista profcssional, veja C ohens N ew Orleans D treaaey f.] p a r a 1854 (New Orleans: impresso no escritório d o Picayune, 1854), 228. Sobre as particularidades da cadeia de produção e venda de tabaco, q u e tam bém po d e ser considerada como uma rede. veia Barbara M. Hahn. M aktng Tobacco B right: C reatingan Am erican Commodity, 1617-1937(Baltunorc. Johns Hopkms Universiry Press, 2011).

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P R O V A S D B L IB E R D A D E

,S Jcan Scubbs, Tobacco oh thc Periphery. A Case Study in Cuban Labour History, 1860-1958 (Cambrídgc, Cambridge Univcrsiry Press, 198$). Sobre o México, veja José Gonzálcz Sierra, E l monopolio dei bumo: Elementospara la historia dei tabaco em México y algunos conflitos de tabaquens veracruzanos: 1915-1930 (Xalapa, Universidad Veracruzana, 1987), 70-72. ** Sobre o ataque de fungo na região deJurançon, vejaMémoires de lAcadémie des Sciences, inscriptions et belles-lettres de Toulouse, Série 4, voL 2 (1852): 414-41S. 17 Para a venda de Pédemarie, veja “Vcnte” 1854, ato 116, Tabelião Picrre Sempé. Archives déparcemcncales des Pyrénées-Adantiques, Pau. ** Sobre a agricultura e a economia, veja Jean-Erançois Soulet, Les Pyrénées au XUCsiècle: Téveil dune société civile, 2 vols. (Bordeaux, Édidons Sud Ouest, 2004), 321-38$. Uma carta de Alficd Duhart dia 7 de julho dc 18$4 foi dirigida a ‘Monsieur Jacques Tinchant [,], Américain, près du pont, Jurançon-Basscs Pyrénées” (citado em “Histoire des Tinchant”, compilado por Xavier Tinchant e revisado por Philippc Stiuyf, TFP-OS). A procuração de 1856 está em “Vence de propriété, Jacques Tinchant à Jean Ducoing”, 21 de fevereiro de 18S7, ato 56, Tabelião Joscph Lisbony, NONARC. 19 Veja, por exemplo, a coluna “Marine News” da Bee/LAbeille para o dia 14 de junho de 1856, anunciando a chegada do navio Baden de Antuérpia, carregando charutos entre outras coisas. Joscph Tinchant mais tarde lembrou que ele viu a Bélgica como ‘de todas as formas favorável para o estabelecimento de uma fábrica de charutos”, embora ele então não estivesse se referindo a sua viagem de 1856 e sim a uma volta à Bélgica vindo do México duas décadas mais tarde. Veja a ‘Notice biographique* submetida ao governo belga junto com sua solicitação de natu­ ralização em 1893. Arquivo 3788, Naturalisations, Ministère de la Justice, Archives générales du Royaume, Brusscls. 20 E. Wittc, É. Gubin, J.-P. Nandrin e G. Deneckere, Nouveüe Histoire de Belgüpte, voL 1:1830•1905 (Brusscls, Édidons Complexe, 200$). Sobre as vantagens de Antuérpia como um centro comercial, veja Anne Wintcr, Migrants and Urban Change: Newcomers to Antwerp, 1760-1860 (London, Pickering & Chatto, 2009), esp. cap. 4. 21 Referência a esse passaporte aparece em sua ficha no registro policial de estrangeiros, elaborada quando ele chegou a Antuérpia, citada adiante. A evidência do empréstimo de Jacques a seus filhos mais velhos está nos documentos produzidos por um processo legal posterior, Tinchant v. Tinchant (1881), arquivo 2173, Fonds Cuylits, FelixArchicf, Antwerp (daqui em diante FA). 22 Veja a ficha de registro policial de Joseph Tinchant, número 14046, datada 22 de dezembro de 1856, e a de Edmond Dédé, número 14012, datada 24 de dezembro de 1856, ambas na co­ leção de microfilmes da Vreemdelingendossiers, 1856-1857, M odern Archief (daqui em diante MA), FA. 23 O comprador nessa transação dc 6 dc dezembro de 1856 foi Joseph Bcnito “desta cidade”. Veja página 426, COB 70, CO, NO. Uma pesquisa preliminar dos livros de transmissão de proprie­ dades não produziu quaisquer compras ou vendas de escravos pela família após 1856. 24 Veja a inscrição para 188 Boeksteeg sobre a lista de residentes chamada Burgerlijkc Stand, Antwerpen, 1856-1866, em MA, FA. Sobre a Bélgica nesses anos, veja Sophic de Schacpdrijver, Elitesfo r tbe Capital? Foreign Migration to M id-Ninetcenth-Century Brusscls (Amsterdam, Th csis Publishers, 1990), esp. 16-17; F. Suykens et aL, orgs., Antwerp: A Portfo r AU Seasons, 2*ed. (Antwerp, MIM Publishing Co., 1986), 354-418; e Winter, M igrants and Urban Change. 23 Para uma história social de Antuérpia nesses anos, veja Catharina Lis, Social Change and tht LaboringPoor:Antwerp, 1770-J860 (New Haven, CT, Yalc Univcrsity Press, 1986). Nas páginas 71-73 ela discute aquilo a que se refere como o “Boeksteeg ghetto”. Salomon Bcnni aparece na lisa de residentes de 188 Boeksteeg, citado acima.

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J O S E P H E S E U S IR M Ã O S

2* As chegadas podem ser datadas com base na informação na lisu de residentes de 188 Bockstecg de 1856'1857 citada acim a. N ão é claro onde o terceiro filho, Pierre, estava nesse momento; é possível que ele tenha acom panhado Joscph para Nova Orieans alguns anos antes. 27 Veja a inscrição para 188 Bockstecg, citado acima. 11 A venda desses lotes p a ra A . Brousseau, de 5 de março de 1857, está registrada na página 590. COB 70, CO, N O . Para a travessia transadântica, veja a lista de passageiros a bordo do Pbdadelphia, no N ew York Tim es, 14 d e m aio de 1858. 29 Sobre as residências e ocupações dos três irmãos Tinchant, veja as inscrições para a moradia 1152 e m oradia 1201, Sexto D epartam ento, N ova Orieans, Oitavo Censo dos Estados Unidos, 1860, rolo 419, USNA M icrocópia M653. 20 O casamento de Joseph e Stéphanie está registrado á página 128, Paróquia de St. Ann, Maniages, vol. 2,1856-1859. AANO. 21 Veja Mary N iall M itchcll, R a isin g Freedoms C hild: Black Children a n d Visions t f the Future afier Slavery (N ew York, NYU Press, 2008), 16-21. M uitos dos registros da escola estão em AANO. Para as atividades de Joseph T inchant, veja 'Journal des séanccs de la direcrion. 23 avril 1859 á 4 m ai 1875”, particularm ente as atas das sessões de 2 de maio de 1859 e de 1*de julho de 1860, em AANO. 22 Veja as inscrições em Louisiana, vol. 2, p. 324, R.G. D un 8c C o, Collcction, Baker Library. Historical Collections, H arvard Business School. Para um exemplo desses anúncios, veja pági­ na 6 do D aily Picayune, 2 d e m aio d e 1857. 22 Para a família T in c h an t em A ntuérpia, veja o Vreemdelingendossiers e a inscrição no Burgerlijke Stand, am bos citados acim a. O envio de Auguste Joseph para a Bélgica é contado nos documentos d e um processo legal subsequente, Q uanone v. Tinchant, arquivo 1792. Foods Cuylits, FA. 24 Sobre a política d e secessão c os prim eiros anos da Guerra cm Nova Orieans, veja Jusrin A Nystrom, N ew Orieans a fie r th e C ivil H br: Roce, Politics, and a N ew B irtb e f Freedom (Baiomore, Johns H opkins Univcrsity Press, 2010), cap. 1. 22 Sobre Lanusse, veja C aryn Cossé Bell, Revolution, Romanticism and the Afro-Creole Protest Tradition in Louisiana, 1718-1868 (Baton Rouge, Louisiana State Universiry Press, 1997). 125. 232-233. 24 VejaJames G. H ollan d sw o rth jr., The Louisiana N ative Guards: The Black M tlàary Expenenceduring th e C ivil W ar (B aton Rouge, Louisiana State Univcnity Press, 1995), cap. 1; Shiriey Elizabeth T hom pson, E xiles a t Home". The Struggle to become American in Creole New Orieans (Cambridge, MA, H arvard University Press, 2009), cap. 5; c Ochs, Black Patriot, cap. 3. A cita­ ção é de Nystrom , N ew Orieans, 21. Referências ao alistamento de Armand. Gustave e Paul Gonzales aparece n o banco de dados on-line mantido pelo US. National Park Service, Civil War Soldiers 8c Sailors System,

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12 e 13. Em 1899, Édouard Tinchant, agora estabelecido como um fabricante de charutos em Antuérpia, escreveu ao general Máximo Gómez em Havana, pedindo permissão para usar o nome e o retrato do general para “a marca de um de meus melhores artigos”. Dirigindo-se ao herói sobrevivente da guerra pela independência de Cuba, Édouard fundam entou seu pedi­ do por esse favor evocando sua própria solidariedade com a luta cubana e a oposição de sus família às “leis abomináveis e preconceitos ignorantes” das sociedades escravistas das Amé ricas. (Fondo Máximo Gómez, Archivo Nacional de Cuba, Havana.)

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C A D E R N O P B IM A Ü tN S



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Segredos internos. "Èr^n^as I^escravos najociedade _

colonialy 1550-1835 , liv ro tra d u z id o lF p v ib lic a d o n o B rasil e m 1 9 8 8 , p e la C o m p a n h i a d a s L e tra s ).

O CEAN O PACÍFICO