Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre

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Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre

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P aulo P erdigão

EXISTÊNCIA LIBERI)ADE U ma introdução à filosofia de S artre

A Filosofia de Sartre Sem Mistérios m sistema filosófico “tão excitante quanto uma novela de detetive”. Assim o cineasta Alexandre Astrae de­ finiu o universo de Jean-Paul Sartre (19051980), o autor mais estudado do século (mais de 4.000 livros foram escritos sobre ele), o furacão contestador que abalou as estruturas dominantes do mundo, o mais avassalador fenômeno da inteligência do nosso tempo. Paulo Perdigão mergulhou na filosofia de Sartre e emergiu quase vinte anos depois com este EXISTÊNCIA & LIBERDADE. Um livro preciso, no qual, levado pela mão segu­ ra de um profundo conhecedor, o leitor terá a filosofia de Sartre no ritmo de uma reporta­ gem, sem intricados discursos e críticas obs­ curas, numa verdadeira elegia à clareza, onde Sartre e sua obra são retratados e comentados de forma minuciosa, concisa e metódica. Gerd A. Bornheim, autor do prefácio, diz que este livro “é um instrumento indispensá­ vel, em que o ensejo para o conhecimento mais preciso do mestre francês se acasala perfeitamente bem com o caráter prático do livro, para situar detalhes e dirimir dúvidas”.

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Os Editores

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EXISTENCIA LIBERDADE U ma introdução à filosofia de S artre Prefácio de Gerd A. Bornheim

Capa: Ivan G. Pinheiro Machado sobre foto de Henri Cartier Bresson (Jean-Paul Sartre*e Jean Pouillon, Paris, 1946) Produção: Fernanda Verissimo e Jó Saldanha Revisão: Grazia Pinheiro Machado e Flavio Doth ISBN 85254 0502-7

P433e

Perdigão, Paulo Existência e liberdade : uma introdução ã filosofia de Sartre / Paulo Perdigão. —Porto Alegre : L&PM. 1995. 294 p. ; 2 lem. 1. Sartre, Jean-Paul - Filosofia. 2. Existencialismo. I.Titulo. CDU 141.32

Catalogação elaborada por lzabel A, Merlo. CRB 10/329

© 1995, Paulo Perdigão Todos os direitos desia edição reservados à L&PM Editores Rua Padre Chagas 185 / 802 - 90570-080 - Porto Alegre - RS - Brasil Impresso no Brasil Inverno de 1995

Para meus filhos Fernanda e Luis Paulo

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Indice Prefácio, por Gerd A. Bornheim, 9 Nota Preliminar, 14 Presença de Sartre, 17 P arte i: A In d iv id u a lid a d e , 29

Introdução: Sartre e a Fenomenologia, 31 CAPÍTULO 1: O PARA-SI, 35 O Ser, 35 / A Consciencia, 38 / A Relação Entre o Ser e a Consciência, 45 CAPÌTOLO 2: O CONHECIMENTO, 51 Características Gerais, 51 / Consciência e Conhecimento, 5 5 / 0 Eu, 58 / A Terceira Via do Conhecimento, 60 / Percepção e Imaginação, 64 CAPÍTULO 3: A TEMPORALIDADE, 68 Consciência e Tempo, 68 / A Dinâmica Temporal do Para-Si, 7 3 / 0 Cir­ cuito da Ipseidade, 7 7 / 0 Projeto, 81 CAPÍTULO 4: A LIBERDADE, 86 Conceito de Liberdade, 86 / A Existência Precede a Essência, 90 / Li­ berdade e Condicionamento, 91 / A Liberdade Situada, 9 5 / 0 Projeto Fundamental, 105 / A Angústia da Liberdade, 112 / Dissimulação da Angústia, 116/ Crítica ao Determinismo Psicológico, 121 / A Psicanálise Existencial, 127 / A Esquizofrenia, 131 CAPÍTULO 5: O OUTRO, 136 A Existência do Outro, 136 / O “Ser Visto”, 141 / O Conflito de Liber­ dades, 146 PARTE H: A SOCIABILIDADE, 155 Introdução'. Sartre e o Marxismo, 157 / O Método Dialético, 157 / A Dialética em Sartre, 161 / Razão Analítica e Razão Dialética, 169 / Considerações Finais, 176

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CAPÌTOLO 1: O HOMEM E A MATÉRIA, 184

Necessidade e Trabalho, 184 / A Escassez, 1 8 8 / 0 Pràtico-Inerte, 193 / A Liberdade no Pràtico-Inerte, 201 CAPÌTOLO 2: A FORMAÇÃO DO GRUPO, 207

A Experiencia Psicologica do-“Nós”, 207 / O Grupo-em-Fusão, 2 1 1 / 0 “Ser-no-Grupo”, 213 / O Grupo corno Praxis, 216 / O Grupo corno Ser, 218 CAPÌTOLO 3: A CONSOLIDAÇÃO DO GRUPO, 221

Ameaça de Dissolução do Grupo, 2 2 1 / 0 Juramento, 225 CAPÌTOLO 4: O GRUPO ORGANIZADO, 230

A Divisão de Tarefas, 230 / Reaparição da Práxis Individual, 233 / Nova Ameaça da Série: a Destotalização-em-Curso, 235 / O Grupo Institucio­ nal, 239 / O Soberano, 243 / Começo e Fim do Grupo, 247 CAPÍTULO 5: O CONJUNTO SOCIAL CONCRETO, 250

Relações Entre Séries e Grupos, 250 / Luta de Classes, 256 / O Sentido da Historia, 263 CAPÍTULO 6: CONSIDERAÇÕES FINAIS, 266 ANEXO: SARTRE E O ESTRUTURALISMO, 274

A Posição do Estruturalismo, 274 / A Posição de Sartre, 277 Bibliografia, 283 Indice Onomástico, 293

Prefácio Gerd A. Bornheim

Talvez o elogio mais completo que se possa fazer a um pensador como Sartre consista em dizer que ele soube, como nenhum outro, assumir e levar às suas conseqüências mais extremas as contradições do homem de nosso tempo. Inicialmente avesso, como se sabe, a qualquer contágio da História, seu pensamento termina se revelando o mais aberto aos entreveros de todas as latitudes em que se debate a realidade humana do nosso Século. Poderiamos, portanto, tomar sua filosofia como a expressão mais completa da plenitude crítica do homem burguês. Realmente, tome-se os conceitos mais significativos do primeiro Sartre - indivíduo, consciência, liberdade -, e sem dificuldades maiores perceber-seá que eles se enraizam nas próprias matrizes do assentamento burguês; aque­ les conceitos, em verdade, já se impõem, até mesmo antes de Descartes, como a configuração prévia das trilhas que haveriam de ser percorridas pelo homem moderno em busca de sua instalação definitiva aqui nesta terra - “estamos assistindo ao nascimento do mundo”, resume Sartre. Evidentemente, o oti­ mismo da Ilustração já toma hoje as suas distâncias, e tudo se faz agora de modo muito mais sofrido: é necessário atravessar sentimentos ímpios para despir o indivíduo dos resquícios que ainda o adulteram, vasculhar o absurdo para descobrir aquilo que a consciência realmente é, enfrentar a hipocrisia da má-fé para que a liberdade possa alçar-se ao nível mais maduro de sua res­ ponsabilidade. Mas tudo isso não deixa de obedecer às invenções originárias surgidas para a realização do projeto burguês, trata-se do desdobramento de um mesmo itinerário. Dentro desta perspectiva, a tardia descoberta da História não poderia deixar de surgir como uma fatalidade. Afinal, é na dominação do espaço c do Filósofo, autor de “Sartre: Metafísica e existencialismo” (1971) e “O Idiota e o Espirilo Objc tivo” (1980), entre outros.

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P aulo P erdigão tempo, ou seja, na História, que aquele projeto burguês consegue alcançar-., toda a sua dimensão. E, como já era de esperar, essa quase súbita invasão pe­ los amplos cursos históricos não aconteceria impunemente: numa segunda fase de sua evolução, Sartre retoma as categorias básicas de seu pensamento e repensa-as em função de novas necessidades, tais como o conceito de proces­ so totalizador ou o de razão dialética. Mas há ainda uma terceira fase, curiosamente condensada no mais ex­ tenso de seus livros, aliás, na mais extensa das biografias escritas até hoje, a de Gustav Flaubert, que nem por isso pretende ir muito além da infância e da primeira juventude do pai do romance moderno. E é justamente este último dos grandes livros de Sartre que permite, numa retrospecção, descortinar todo o andamento de suas idéias; longe de representar uma ruptura com as teses desenvolvidas na Crítica da Razão Dialética, O Idiota da Família concretiza aquelas análises na elucidação de um caso particular, na exegese do sentido que possa oferecer uma existência singular. E afinal, a existência do indivíduo concreto resume todo o empenho desbravador do nosso filósofo ao longo do desenvolvimento de sua filosofia; tudo sempre se concentra neste ponto: o homem. Mas há evolução no seu pensamento e, portanto, certas rupturas des­ pontam aqui e ali. Como conciliar, por exemplo, a defesa da lucidez transpa­ rente da consciência nos inícios da obra com o surto surpreendente do vécu, da vivência, que se quer opaca e se sabe sem conhecer-se? Em verdade, as análises do Idiota acabam sendo a aplicação prática de uma ampla teoria me­ todológica, que busca compatibilizar desde as nuanças das descrições dos primeiros textos, retomando inclusive os exames sobre a imaginação e o imaginário, até os esponsais em tudo delicados entre psicanálise e marxismo. Entretanto, lamentavelmente, toda essa ambiciosa teoria não chegou a ser desenvolvida. E a morte do filósofo, filosoficamente prematura, termina au­ torizando uma desolada sensação de vazio. A questão, porém, se complica, já que em momentos essenciais de suas três fases a obra de Sartre não foi concluída. É, sem dúvida, excessivamente fácil justificar as lacunas meramente por sucessivas interrupções exteriores ou por se revelarem descomunais as tarefas assumidas. É que, muito mais que isso, elas beiram o insolúvel, tropeçam em obstáculos talvez incontornáveis. Assim, por exemplo, como conciliar o extremo individualismo da liberdade absoluta com as aporias de uma ética “da salvação e da libertação”? Ou ainda: como admitir a existência de “uma história humana, com uma verdade e uma inteligibilidade”, sem embrenhar-se nas armadilhas de algum hegelianismo

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ateu? Existe o recurso, é claro, à já vasta obra póstuma; seu destino, contudo, só pode estar na sua condição de póstuma, isto é, de escritos definitivamente inconclusos e não publicados pelo próprio Sartre. Acontece que, além da constatação da obviedade, faz-se mister considerar filosoficamente aquele ca­ ráter inconcluso, e isso ao menos por uma razão que se impõe em tudo como decisiva: é que a incompletude pertence à própria condição do pensamento contemporâneo, e os problemas deixados em aberto por Sartre não são sim­ plesmente problemas dele, inerentes à mera aventura privada de um filósofo particular; longissimo disso, são questões que integram a própria consciência filosófica de nosso tempo, por assolarem a situação humana hodierna por in­ teiro. Constituem, pois, o endereço natural e a incógnita maior do pensamento filosófico de nossos dias. Mas isso tudo se deixa melhor elucidar, possivelmente, a partir daquilo que talvez configure a aporia fundamental do pensamento sartriano, a saber: como conciliar a fragmentação e a totalidade, o gosto do singular a qualquer preço e uma síntese possível ainda que provisória? Pois o cultivo extremado da fragmentação norteia sem descanso a vocação maior de Sartre - e por ventura existe algo de mais contemporâneo do que essa freqüentação obstina­ da das diferenças? O necessário nominalismo faz hoje tudo emaranhar-se na extensão selvagem de zonas nunca antes visualizadas. O fundamental está obviamente nessa perquirição da singularidade do singular - o pecado maior estaria no esquecimento do homem Hegel -, mas precisamente do fundo des­ se convívio com a singularidade brota a questão da totalidade: como inventa­ riar os comércios entre as singularidades, a partir de que princípios justificálos? E é no horizonte desta questão derradeira que se inscreve o ensaísmo sartriano. Seja na ética, na antropologia, na história, na metodologia - tudo termina por se armar nas coordenadas de algum tipo de totalidade. Não basta perseguir a totalidade bruta dos singulares, aquela que leva Sartre a dizer que o caso Flaubert não passa de um só entre outros, e que igualmente importante seria a análise de seu valet de chambre. Pois a totalidade vai além disso - ela reclama necessariamente um sentido que englobe os singulares, e isso não apenas porque esse sentido já nada consegue apresentar de comum com o ca­ ráter apaziguador e reducionista do Deus metafísico; já longe disso, de modo alheio a pressões de uma transcendência atrofiante, passa a efetuar-se a busca de horizontes mais abrangentes e mais permissíveis, e resguardadores da sin­ gularidade. É nesse resguardo que se concentra, exemplarmente, a teimosia maior de Sartre.

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I huís palavras sobre este livro de Paulo Perdigão. Acabo de atribuir a Salire mu traço que nele se torna uma qualidade, a teimosia. Pois Paulo Per­ digan, a seu modo, também é um teimoso; e, nele também, a teimosia se faz vii lude. Quando toma um tema, explora-o até suas possibilidades mais remó­ las, busca virar tudo ao avesso no afã de nada deixar escapar, e jamais se per­ doaria o mais leve esquecimento. Se não confira-se: veja-se o volume que publicou sobre o western clássico de George Stevens, Shane . Ou então, a longa e minuciosa análise da derrota clássica do futebol brasileiro, em 16 de julho ile 1950 , que, diga-se, não deixa de ser uma espécie de descrição fe­ nomenològica. Ainda que em outro nível, é o mesmo Paulo Perdigão que en­ contramos agora nesta longa e detalhada análise da filosofia de Sartre. O livro concentra-se na filosofia sartriana, e recorre à obra literária do filósofo apenas de modo acessório. Resultado de anos de demorado estudo, este ensaio já nasceu definitivo dentro da bibliografia filosófica brasileira. A pesquisa é abrangente; apresenta toda a obra filosófica de Sartre, inclusive textos desgar­ rados, de menor importância ou esquecidos pela maioria dos intérpretes; con­ sidera também todas as publicações póstumas do filósofo até agora editadas. Isso já basta para que o ensaio de Paulo Perdigão se torne referência obriga­ tória para todos os que se interessem pelo mestre do existencialismo. Paulo Perdigão despreocupa-se de qualquer arroubo interpretativo. O seu escopo está principalmente em apresentar as verdadeiras dimensões da filosofia sartriana. O livro se constitui, por isso mesmo, em um roteiro indis­ pensável, em que o ensejo para o conhecimento mais preciso do pensamento tio mestre francês se acasala perfeitamente bem com o caráter prático do livro, para situar detalhes e dirimir dúvidas. E isso não é pouco, é mesmo o ponto tic partida necessário de toda e qualquer interpretação ou análise comparativa. Quem está de parabéns com este lançamento é em primeiro lugar a bi­ bliografia já existente sobre a filosofia de Sartre. Essa bibliografia é, sem dú­ vida, bastante vasta. Mas convenhamos que, em sua quase totalidade, ela dei­ xa a desejar, por prender-se amiúde aos limites da divulgação e mesmo da vulgarização; ou são livros que falam do que realmente não entendem - como é o caso, cm especial, dos ensaios mais antigos, de inspiração católica ou comunista, todos eivados de preconceitos inaceitáveis. O mais difícil é 1er, e o acesso à filosofia baseia-se no aprendizado da leitura. É esse convite à leitura* *

"Western Clássico - Gênese e Estrutura de “Shane”. L&PM, 1985. "Anatomia de uma Derrota”. L&PM, 1986.

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que Paulo Perdigão consegue, com felicidade, propor ao leitor inteligente. A bibliografia existente sobre Sartre não pode ser comparada à excelência de tantos e inumeráveis ensaios escritos sobre o seu colega Heidegger; no caso deste último, é o contrário que se verifica: são os livros de divulgação que se revelam escassos. Já sobre Sartre, são poucos os livros que realmente mere­ cem o empenho da leitura. Mas isso quer dizer apenas que, em face da magni­ tude do filósofo, sua obra continua a exigir o esforço dos estudiosos, a discus­ são de alto nível filosófico - e é nesta linha que o estudo de Paulo Perdigão se insere, apto que está a dar a sua melhor contribuição.

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Nota preliminar

Este livro não pretende ser mais do que uma orientação aos nãoiniciados para a filosofia de Jean-Paul Sartre. O texto foi escrito em lingua­ gem o mais coloquial e concisa possível, sem rebuscamentos, de modo a simplificar uma doutrina em geral só acessível a especialistas, tal a sua exten­ são e complexidade. Empreendi consideráveis esforços para seguir todos os temas do pensamento de Sartre, de maneira detalhada, sem modificar os seus pontos de vista. Como toda condensação apresenta óbvias dificuldades, foi necessário planejar, estruturar, reorganizar e reescrever sucessivas vezes todos os capítulos, até que a exposição adquirisse ordenação crescente e progressi­ va, indo do mais simples ao mais complexo, assim proporcionando ao leitor uma visão clara e cada vez mais aprofundada do sistema filosófico sartriano. Essa estrutura crescente não se acha, na verdade, nos escritos de Sartre, onde os temas aparecem dispersos e desarticulados, a exigir do leitor constan­ tes consultas a fontes anteriores ou posteriores. Creio mesmo que esta é a primeira tentativa de se compor a filosofia de Sartre de forma didática, sem generalizações muito amplas, mas também sem desprezar qualquer aspecto es­ sencial da doutrina. Procurei não me arredar dessa linha, evitando desvios não relevantes. O leitor notará que muitas idéias ressurgem em capítulos sucessivos, assumindo, a cada menção, maior amplitude e significado mais rico. Assim, suponho que o presente trabalho difere tanto dos livros que pro­ curaram resumir os textos originais de Sartre, conservando-lhes a ordem e a forma com que foram escritos (o caso de The Marxism of J. P. Sartre, de Wilfrid Desan, sumário da Crítica da Razão Dialética), quanto dos que comPor essa razão, deve-se relevar a insuficiência natural de cada setor antes, de encerrada a expo­ sição ao longo do livro.Vamos aos poucos, pois não seria possível descrever tudo ao mesmo tempo. Noções novas irão se agregando, progressivamente, até que passem a se iluminar umas às outras, em movimento conjunto. Assim, a Parte I, “A individualidade”, é até certa altura bas­ tante parcial, considerando-se que o indivíduo não existe só.

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binaram dados biográficos com estudos críticos globais sobre a evolução fi­ losófica do pensador (o caso de Sartre et la Réalité Humaine, de Colette Audry). Durante o longo período em que este livro foi concebido e redigido, concentrei-me predominantemente nas obras teóricas de Sartre (incluindo inéditos, obras postumas e textos raros, como a conferência Consciência de Si e Conhecimento de Si, pronunciada pelo filòsofo na Sorbonne, em 1947). As criações de Sartre no teatro e no romance não são objeto primordial do nosso estudo. Esta exposição necessariamente sucinta não dispensa - antes exige - o posterior conhecimento dos textos originais de Sartre, cuja bibliografia se acha relacionada no fim do volume. Penso, por outro lado, que meu propósito vai ao encontro dos objetivos da filosofia que Sartre representa: motivar todas as pessoas, não apenas os técnicos, a apreender com lucidez a realidade hu­ mana em sua experiência concreta do cotidiano. Como disse o autor: “Ou colo­ camos a doutrina em um plano estritamente filosófico, contando com o mero acaso para que venha a ser divulgada, ou temos de aceitar vulgarizá-la, desde que a vulgarização não a deforme”. E lembrou que “Marx nunca deixou de vul­ garizar o seu pensamento, sendo o Manifesto Comunista um exemplo disso”. Por fim, um esclarecimento: para conservar a limpidez do texto, suprimi nas transcrições de frases de Sartre e outros autores quaisquer referências bibliográficas, sempre utilizadas em pé de página para remeter o leitor à fonte original de onde as citações foram extraídas. Isso porque considero indispen­ sável a leitura da obra teórica de Sartre na sua íntegra. E reconheço que mui­ tas vezes tive de ser abusivamente esquemático em relação a aspectos demasi­ ado densos do sistema sartriano (eventualmente recorri a exemplos meus, que Referências biográficas, ausentes dos propósitos deste trabalho, podem ser encontradas em “Sartre: 1905-1980”, de Annie Cohen-Solal, editado no Brasil pela L&PM, em 1986. Também de consulta obrigatória para o conhecimento da vida do filósofo é a série de livros de memorias de sua companheira Simone de Beauvoir (1908-1986), todos publicados na França pela Gallimard: “Mémoires d’une Jeune Fille Rangée”, 1958 (“Memórias de uma Moça Bem Comportada”; Di­ fusão Européia do Livro, São Paulo; Nova Fronteira, Rio de Janeiro) “La Force de L’Âge”, 1960 (“Na Força da Idade”; Difusão Européia do Livro, São Paulo; Nova Fronteira, Rio de Janeiro) “La Force des Choses”, 1963 (“Sob o Signo da História”, Difusão Européia do Livro, São Paulo; “A Força das Coisas”, Nova Fronteira, Rio de Janeiro) “Tout Compte Fait”, 1972. (“Balanço Final”, Nova Fronteira, Rio de Janeiro) “La Cérémonie des Adieux”, 1981. (“A Cerimônia do Adeus”, Nova Fronteira, Rio de Janeiro) Com entrevistas feitas em agosto e setembro de 1974.

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me pareceram mais fáceis para aclarar teses complexas do filósofo). Se, por­ ventura, a exposição fornecida neste livro possibilitar ao leitor menos dificul­ dades no entendimento dos escritos de Sartre, acredito que o meu objetivo te­ nha sido alcançado. Paulo Perdigão

Embora seja pueril para os especialistas, convém, na perspectiva deste livro, advertir o leitor para que evite o chamado “psicologismo” - a tendência muito comum de se explicar todos os problemas humanos por conceitos psicológicos, que de modo algum tém lugar po sistema aqui resumido.

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Presença de Sartre

Jean Paul Sartre morreu em 15 de abril de 1980, no Hospital Broussais de Paris, de edema pulmonar. Tinha 74 anos. Seus funerais, quatro dias depois, no cemitério de Montparnasse, foram acompanhados por cortejo de mais de 50 mil pessoas. Nenhum intelectual do século mereceu tal despedida. Mas também é difícil encontrar outro que tenha exercido influência tão determinante, profunda, duradoura e universal no debate ideológico de seu tempo. Nenhum filósofo da história foi, como Sartre, romancista, dramaturgo, crítico literário, crítico de arte, jornalista, militante político - e, talvez por essa atividade múltipla, ele teve a escutá-lo a audiência mais vasta que um pensador conheceu em vida . “Se a idade de Matusalém me fosse concedida, quase que ousaria entrever a possibilidade de vir ainda a ser filósofo”, disse Edmund Husserl, o criador da fenomenologia, quando já estava com 70 anos. E de fato espantoso que um único homem, como Sartre, tenha deixado obra tão ampla, no espaço de 74 anos, dos quais os últimos sete passou praticamente cego. Em toda a história da filosofia, nunca houve um pensador que escrevesse tanto, nem Kant, Hegel ou Marx: obras filosóficas, ensaios, conferências, crítica literária e teatral, peças de teatro, romances, contos, roteiros de cinema, correspondência, jornalismo etc. E tudo isso - o mais notável - não provindo de um pensador enclausurado em um gabinete de trabalho, mas de alguém com intensa atividade prática, engajado politicamente, participando de debates e entrevistas, reuniões políti­ cas e editoriais (como a revista mensal “Les Temps Modernes”, lançada em 1945 e por ele diri­ gida), viajante do mundo, boêmio, agitada vida amorosa. Pois, apesar de aparentemente não ter tido tempo para nada, esse único homem de múltipla existência conseguiu escrever 250 mil pa­ lavras nas 724 páginas de L ’Être et le Néant, 390 mil palavras nas 755 páginas de Critique de la Raison Dialectique. Seu Saint-Genêt chega a 690 páginas. E L ’Idiot de la Famille, em très vo­ lumes, vai ao recorde de 2.801 paginas! Quando Sartre morreu, já era impressionante a sua ca­ pacidade de criação conhecida. Além de conferências, entrevistas, artigos jornalísticos, etc, so­ mavam 57 os textos publicados em livros - dez obras filosóficas, 25 ensaios políticos e de críti­ ca literária, cinco romances, um livro de contos, um livro de memórias, 13 peças e ensaios tea­ trais, dois roteiros de filmes. E o que ele deixou sem publicar em vida e só veio à lume após o seu desaparecimento torna essa massa de produção ainda mais poderosa - os “inéditos” editados até agora já compõem, por si só, o trabalho de toda uma vida. Le Scènario Freud tem 580 pápi nas. O segundo tomo da Critique chega a 456 páginas. A Morale vai a 594 páginas. Os Carnets de guerra atingem 432 páginas. Em resumo, as obras postumas somam mais do que toda a cria ção de Sartre em seus últimos dez anos de vida.

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Em urna obra que, até o seu desaparecimento, havia sido traduzida ém 28 línguas, Sartre colocou em discussão todas as grandes idéias clássicas e contemporâneas, e poucos escritores souberam executar a seu modo a missão de fazer evoluir o saber e levar os seus leitores à participação cada vez maior na luta por uma sociedade mais humana. Sempre corrigindo e aprimorando o seu pensamento, sem nunca desencorajar-se na busca da verdade, Sartre foi, como disse o filósofo Herbert Marcuse, “a consciência universal”. Ao morrer Sartre, a perda repercutiu em todos os setores da intelectuali­ dade, à esquerda e à direita, visto ter sido ele o condutor de várias gerações. Serge July, em Libération, escreveu que “não se pode ser um indivíduo pen­ sante, um homem de seu tempo, sem ter cruzado as idéias fulgurantes, a inte­ ligência sartriana: Sartre foi, intelectualmente, um pai”. No Nouvel Observa­ teur, Jean Daniel exaltou o filósofo como “a inteligência mais vasta, fecunda, intrépida e também a mais generosa que este século produziu”, reconhecendo que “o seu lugar, agora vago, eis que o descobrimos enorme - e ninguém so­ nha em ocupá-lo”. Régis Debray acrescentou: “De Buenos Aires a Beirute, todos os intelectuais da nossa época pertenceram em certo momento à família Sartre. Somos dezenas de milhares a quem Sartre, um dia ou outro, e sem o querer, levou ao que chamamos um exame de consciência. Todo o nosso pe­ queno mundo atravessou Sartre, porque ele foi incontornável”. “Vejo no desaparecimento de Sartre o de um dos grandes luminares da inteligência de nosso tempo”, declarou o então presidente da França, Giscard d’Estaing. Da Itália, o então presidente Sandro Pertini enviou a mensagem: “Uma das vozes mais influentes e originais da consciência francesa, em prol dos mais altos valores humanos de liberdade e justiça”. Em Tóquio, o profes­ sor Takeshi Ebisaka, tradutor de Sartre, sintetizou o pensamento geral: “E um gigante que acaba de morrer. Ele encarnou o século XX, não somente em sua obra, mas em sua atitude perante a vida.” O pensamento de Sartre vai da análise da realidade humana individual e subjetiva, tema de suas primeiras reflexões, até o estudo dos grandes horizon­ tes da existência do homem no corpo social e a interpretação do movimento global dos acontecimentos históricos, que o ocuparam em seus últimos anos. Talvez acima de Martin Heidegger (1889-1976), Sartre foi o único pensador do século a realizar um sistema filosófico estruturado, com um todo exaustivo e coerente. E pode-se admitir que, como hipótese explicativa sobre o homem e a Historia, a doutrina sartriana tenha sido das mais completas já processadas na trajetória da filosofía - prova é sua vasta influência em diversos setores do

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saber contemporâneo, como a Psicanálise existencial, cujas raízes teóricas estabeleceu, ou o marxismo, que Sartre arrancou de longa imobilidade e cujos impasses anteviu. “Ler Sartre - disse Patrick Loriot - é um ato de liberdade”. Com efeito, em seu combate contra a hipocrisia burguesa, os valores estabelecidos e a exploração do homem na sociedade capitalista, Sartre representou uma reação contra tudo o que é instituído. Em sua insurreição ideológica, ele contrariou o que parecia já dado por evidente para os pensadores e contestou as “verdades eternas” de todos os outros filósofos. Por isso, a sua obra transgressora consti­ tui um divisor de águas na história da filosofia, representando para o nosso tempo o que Descartes representou para o século XVII, Kant para o século XVIII e Hegel e Marx para o século XIX. Além de filósofo e escritor, Sartre foi o protótipo do intelectual engaja­ do na ação política, defensor de causas nobres, freqüentemente em choque com autoridades e instituições do poder. Por sua capacidade de ser e pensar livremente, rejeitou todas as honrarias oficiais , deparou com intransigentes adversários e foi objeto de escândalo. Mas há uma explicação simples para isso: Sartre escreveu, especialmente para um grande público, peças de teatro, novelas, contos - enfim, obras dramáticas e de ficção nas quais pretendeu di­ vulgar, em forma mais acessível, com exemplos e situações concretas, as idéi­ as mais abstratas que desdobrou em seus ensaios teóricos, estes, como reco­ nheceu, “destinados estritamente aos técnicos e filósofos”. Romances e peças serviram como expressão simplificadora da obra teórica. Na verdade, segundo Jean-Pierre Revel, “todas as criações literárias de Sartre, não importa o seu gê­ nero, emanam de um epicentro: o coração de sua filosofia”. Revel diz mesmo que Sartre só escreveu, por exemplo, a peça Entre Quatro Paredes ou o roman­ ce A Idade da Razão “para os que não podem compreender O Ser e o Nada". Assim, Sartre não queria que a sua filosofia ficasse restrita aos especia­ listas, e com isso correu o risco de que ela fosse deturpada pelos outros. O es­ cândalo provocado pelo existencialismo de Saint-Germain-des-Près, no pós-* *

Depoimento insuspeito é o de Raymond Aron (1905-1983), amigo de mocidade e depois ad­ versário político de Sartre: “A Crítica da Razão Dialética parece urn monumento barroco, in classificável, estranho a todas as escolas, exterior a todos os movimentos filosóficos, expressão de uma personalidade poderosa e original”. Não participou da Academia Francesa, rejeitou a Legião de Honra e recusou o Prêmio Nobel, a ele atribuído em 22 de outubro de 1964 - tanto por razões políticas como “pelo dever que lodo escritor tem de não permitir ser transformado em instituição”.

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P aulo P erdigão guerra, se deu a Sartre imediata notoriedade, em compensação acarretou-lhe sérios constrangimentos. Os críticos superficiais, que nunca leram O Ser e o Nada e suas outras obras do período, censuraram a sua doutrina como “pessimista, desapiedada e angustiante” - tirando tais conclusões apenas pelo que podiam observar na boêmia de Saint-Germain-des-Près, cujos bares eram freqíientados por pessoas que, por sua vez, também não haviam lido o filóso­ fo, mas tinham ouvido em algum lugar que “Sartre pregava o niilismo, a abo­ lição de todos os valores morais, a promiscuidade sexual”, e assim por diante. Na ocasião, Sartre chegou a dar uma conferência (O Existentialisme) é um Humanismo) onde explicava que, “ao contrário do que supõem as pessoas ávidas de escândalo e agitação, esta é a doutrina menos escandalosa e a mais austera possível”. No entanto, ele era atacado por todos os flancos. Lia-se no jornal conservador Le Figaro: “Não há obra mais ofensiva ao ser humano, mais degradante do que a sua”. E em L ’Humanité: “Sartre, dramaturgo ém busca de escândalo e filósofo esotérico”. O pensador católico Gabriel Marcei (1889-1973) definiu Sartre como “um sistemático blasfemador que dissemi­ nou à sua volta as mais perniciosas lições e os mais venenosos conselhos ja­ mais despejados sobre os jovens por um corruptor conhecido”. Os teólogos acusaram-no de “não atentar para as belezas radiosas da vida” e de contestar a existência de Deus, suprimindo os mandamentos divinos inscritos na eterni­ dade. Em julho de 1945, o jornal católico La Croix condenou o existenciaIismo “como um perigo muito maior do que o racionalismo do século XVIII e o positivismo do século XIX”. A 30 de julho de 1948, toda a obra de Sartre, esse “destruidor de almas” e “semeador de desesperança”, foi colocada no ín­ dex do Vaticano. Os católicos nunca perdoaram Sartre pelo seu ateísmo. Na verdade, em sua doutrina não há lugar para “belas utopias”: nesse sentido, é uma filosofia dura e implacável. “Podemos afirmar sem exagero - escreveu I.M.Bochenski em A Filosofia Contemporânea Ocidental - que a história da filosofia jamais apresentou forma tão extensa de realismo”. Na já citada conferência, o pró­ prio Sartre afirmou: “Quis dispor as pessoas à compreensão de que só importa a realidade - e que os sonhos, as expectativas, as esperanças só permitem definir o homem como sonho malogrado, esperança abortada, expectativa inútil”.* *

Em 1974, acrescentou: “Fazia falta na filosofia um grande sistema realmente ateu. Quis traba­ lhar nessa direção: uma filosofia do homem, em um mundo material. (...) O fato de não crer em Deus saneou a minha liberdade. Essa liberdade não é feita para dar a Deus o que ele me exige,

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Mas os que haviam lido e compreendido O Ser e o Nada não se deixa­ ram contaminar pelo clima de escândalo. Descobriram, ao contrário, que, lon­ ge de ser pessimista, o seu sistema filosófico defendia a criatura humana ñaquilo que mais a dignifica - a sua liberdade de ser. E iluminava tudo o que pode obscurecer a condição humana e fazê-la prisioneira de preconceitos, er­ ros, ignorância e medo. Sendo uma verdadeira “filosofia da liberdade”, o existencialismo de Sartre constituiu-se, enfim, em um genuíno humanismo, capaz de fazer a vida humana compreensível, por definir o homem como res­ ponsável pelo que é, por libertá-lo de qualquer causa que pudesse determinar a sua ação, por mostrar que o seu destino está em suas próprias mãos. Em 15 anos, desde sua publicação em 1943, O Ser e o Nada vendeu 55 edições - e tornou-se a obra mais lida na história da filosofia. O fascínio que exerceu sobre várias gerações (“E uma leitura tão excitante quanto uma nove­ la de detetive”, disse o cineasta Alexandre Astruc) foi bem resumido por François Bott: “Frequentando O Ser e o Nada nós encontrávamos uma expli­ cação total do mundo. Quando a realidade se mostrava obscura, consultávamos avidamente a nossa biblia, para vencer nossas incertezas e dissipar as nossas dúvidas. Por sorte, Sartre sempre nos tirava das trevas. Ele tornou o universo transparente. A leitura de O Ser e o Nada nos livrava da melancolia e da inquietação.” O escritor Michel Tournier acrescentaria em 1964: “Houve um momento de estupefação, em 1943, e depois uma assimilação lenta. A obra era maciça, transbordante, dotada de força irresistível, repleta de sutile­ zas requintadas, enciclopédica, extraordinariamente técnica, transpassada de ponta a ponta por uma intuição de simplicidade cristalina. Não havia mais dúvida: acabávamos de ganhar um sistema.” Evidentemente, o escândalo do existencialismo foi um modismo passa­ geiro, enquanto O Ser e o Nada ganhava posição entre os marcos da literatura filosófica. Mas Sartre não esgotou o seu pensamento nesse livro. Foi apenas o fim de um período. Quem lê a obra de Sartre em ordem cronológica percebe uma cisão: até O Ser e o Nada, influenciado pela filosofia alemã de Heidegger c o método fenomenològico de Edmund Husserl (1859-1938), ele se dedicava a descrever o homem de um ponto de vista individuai (“Em O Ser e o Nada mas é feita para que eu invente a mim mesmo, e dê a mim mesmo o que eu exijo. Isso é essen­ cial. Além do que, minhas relações com os outros são diretas, não passam por um intermeditlrio todo-poderoso. Não preciso de Deus para amar o meu próximo. É uma relação direta, de homem a homem. Não tenho nenhuma necessidade de passar pelo infinito. (...) A primeira dcsalicnaçilo do homem é certamente a de não crer em Deus”.

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disse - limitei-me ao estudo da consciência, de suas raízes, de sua estrutura”); depois, passa a examinar o homem na sociedade e na História. A guerra divi­ diu em dois a trajetória sartriana: o drama da Europa conturbada serviu pára alertá-lo para os problemas sociais (luta de classes, exploração do proletaria­ do, etc.) que antes não transpareciam em seus textos filosóficos. No pósguerra, Sartre iniciava um diálogo com os marxistas que perdurou até a sua morte. Embora nunca tenha se filiado ao Partido Comunista, definiu-se como “um companheiro de caminho” dos marxistas, com quem travou relações freqüentemente intempestivas, marcadas por raros lapsos de tolerância mútua. Ao publicar a sua segunda e última grande obra filosófica, Crítica da Razão Dialética, em 1960, já afirmava Sartre que “o marxismo é a filosofia insuperável do nosso tempo”. Contudo, os marxistas ortodoxos continuavam a não vê-lo com bons olhos, pois ainda o julgavam à luz de O Ser e o Nada, que reputavam “idealista e reacionário”, por “ignorar o processo histórico”, isolar, no seu entender, o homem na sua subjetividade, concluir pela “contemplação” e o “quietismo”, e por defender uma liberdade humana “abstrata e interior”. Na verdade, em O Ser e o Nada, todo o esforço intelectual de Sartre destinava-se a demonstrar que o homem é livre - ou seja, uma condição ne­ cessária para que o marxismo tenha algum sentido, pois este se propõe a ofe­ recer ao homem meios que lhe permitam exercer essa liberdade. Quando o Pravda, de Moscou, escreveu em 1947 que “o existencialismo ignora o pro­ cesso histórico”, Sartre respondeu que o único dogma do existencialismo é a afirmação da liberdade humana, explicando que a sua doutrina não conduz a um “quietismo de angústia”, mas, pelo contrário, define o homem pela ação prática: o homem deve criar a sua própria essência, e para isso deve lançar-se no mundo, sofrendo e lutando, assim definindo-se pouco a pouco. “O exis­ tencialismo - disse - é uma filosofia humanista da ação, do esforço, do com­ bate, da solidariedade”. .

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“Insuperável”, segundo Sartre, porque ainda perduram as condições econômico-sociais que o engendraram. E também porque todo pensador que pensa contra ele acaba recaindo aquém dele e reencontrando uma filosofia ultrapassada e defunta - o liberalismo do século XVIII. A recente falência do marxismo-leninismo em regimes que se proclamavam inspirados nele - a transição de países comunistas para a economia de mercado, na virada dos anos 80/90, com a glasnot e a perestroika - apenas reflete a esclerose de uma prática que deturpou a filosofia marxista. Nesse sentido, como veremos, as críticas de Sartre ao marxismo soam proféticas: elas apontam para in­ suficiências e distorções na doutrina que fatalmente iriam desembocar no atual impasse do mun­ do comunista.

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Já em 1943, Sartre reconhecia que, livre em consciência, o homem só será livre “em situação” (isto é, no meio onde se acha inserido) se ele agir para modificar a sociedade. A capacidade original de sermos livres, demons­ trada em O Ser e o Nada, exige uma liberdade a estabelecer no mundo, pelas vias do marxismo. Os marxistas falam em luta de classes, um fato inegável mas cabe demonstrar que essa luta se situa no plano mesmo da liberdade dos homens. Em 1975, Sartre alterou sua antiga fórmula “o homem está condena­ do a ser livre” para “o homem está condenado a ser livre, com outros homens livres”. Portanto, já em seus fundamentos, o existencialismo sartriano apareceu, não como uma negação do marxismo, mas como uma ideologia necessária ao marxismo: sem o pleno entendimento da consciência e da liberdade humanas, o marxismo não poderá evoluir nem reconhecer a que tipo de Ser deve servir. E preciso, primeiro, investigar a realidade humana - e foi isso o que Sartre fez em O Ser e o Nada. De acordo com Francis Jeanson, Sartre começou desta­ cando a análise da subjetividade (imaginação, emoções, temporalidade, an­ gústia, projeto, etc.) para suprir um vazio na doutrina marxista. Os teóricos marxistas estavam tão preocupados em retratar o mundo objetivo que acaba­ ram suprimindo toda a importância da consciência humana. Mas para tornar inteligíveis as próprias noções básicas de Marx (trabalho, necessidade, dialé­ tica, prática revolucionária, luta de classes, etc.), era preciso desenvolver dentro da doutrina campos ainda inexplorados de pesquisa. O estudo das estruturas da subjetividade, portanto, não está fora do marxismo, mas encravado nele, porque os conceitos marxistas já implicam aquelas estruturas. Faltava apenas estudá-las pelo prisma das novas descober­ tas filosóficas e psicológicas deste século. O marxismo, por exemplo, prosse­ guia atrelado à teoria dos reflexos condicionados de Ivan Pavlov (1849-1936) para explicar o processo da percepção. Sartre entendeu ser “necessário desen­ volver uma teoria da consciência”, porque “a teoria do conhecimento conti­ nua sendo o ponto frágil do marxismo”. Negligenciando a subjetividade humana, o marxismo “perdeu totalmen­ te a noção do que é um homem”. Isso se deve, segundo Sartre, ao radicalismo dos marxistas, fechados a todo e qualquer sistema filosófico que tenha por preocupação a subjetividade. Sartre disse não conhecer um único marxista “que seja capaz de 1er e compreender Heidegger”, acrescentando: “Literalmente, eles não entendem uma palavra do que lêem. É que não podem livrar-se de si mesmos. Recusam a frase inimiga, por medo, ódio ou preguiça, no momento

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mesmo em que pretendem abrir-se para ela. Essa contradição bloqueia-os.” Sartre censurava essa intolerância “não em nome de não sei qual subjetivismo burguês, mas em nome do próprio marxismo: os marxistas rejeitarão e conde­ narão mais precisamente, refutarão mais vitoriosamente quanto mais soube­ rem de início o que condenam e refutam”. O existencialismo sartriano veio a agir, assim, no interior mesmo do marxismo, pulverizando, é certo, alguns dogmas que deformavam o sistema original, mas constituindo-se um saber necessário à reposição do marxismo em seus eixos. Insistindo no valor da subjetividade, Sartre tomou o marxismo pelo avesso: começou pela consciência de cada indivíduo em sua situação própria, salientando as suas emoções, suas necessidades, seu trabalho, sua ca­ pacidade de superar o estado em que vive e atingir os fins futuros a que se propõe. “Os existencialistas ocuparam-se dos indivíduos, enquanto os marxis­ tas esqueceram-se deles”. Devemos “reconquistar o homem no interior do marxismo”, porque, se isso não for feito, o marxismo “irá degenerar em uma antropologia desumana”. Há, pois, um vazio no seio da doutrina que é preciso preencher. Em outros termos: o marxismo não pode ser unilateral, apreendendo apenas o mundo objetivo, já que a existência não é somente objetiva, pois dela também faz parte o mundo subjetivo. Claro que é sempre possível atingir-se verdades objetivas sem pensar na subjetividade, mas agir assim é ser­ mos incompletos: “Por trás da objetividade está a subjetividade, que pertence ao homem da mesma maneira.” Suprimir a consciência do mundo em que vi­ vemos e limitar-nos às verdades objetivas é o mesmo que eliminar o investi­ gador do campo de sua investigação, enunciando uma verdade independen­ temente daquele que a exprime e esquecer assim que “todo experimentador faz parte do sistema experimental”. “Os filósofos marxistas não tentaram evoluir o marxismo desde Marx: foi o que tentei fazer” - disse Sartre. E verdade que os aspectos essenciais da doutrina permanecem hoje como há um século (luta de classes, exploração capitalista, etc.), mas isso não quer dizer que o marxismo esteja esgotado. Longe disso, “está quase na infância, mal começou a evoluir”. Não está feito - está por se fazer. Mas, na segunda metade do século, o marxismo paralisou, em contradição com os seus objetivos práticos, e acabou completamente tor­ cido e falsificado pelos comunistas. “Durante muitos anos os marxistas se ne­ garam a interrogar os conhecimentos novos sobre o homem, e, por isso, o marxismo empobreceu.” Daí o papel do existencialismo sartriano: fazer pro­

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gredir teoricamente o marxismo, “condição necessária para se chegar a um verdadeiro socialismo”. Longe, portanto, de opor-se ao marxismo, o existencialismo conjuga-se com ele. O marxismo “fornece a única interpretação válida da História”, e o existencialismo “continua sendo a única abordagem concreta da realidade”. Mas que realidade? A realidade tal qual se apresenta hoje aos nossos olhos. Francis Jeanson diz que o existencialismo sartriano descreve a realidade hu­ mana como ela se manifesta em um mundo pré-marxista, em uma sociedade em que o marxismo ainda não prevaleceu - ou seja, a sociedade mesma em que vivemos, na qual o homem aparece deformado, alienado, solitário, con­ vertido em coisa ou utensílio. O existencialismo de Sartre se refere àquilo que existe (o homem tal qual o conhecemos) e nos remete àquilo que poderá exis­ tir (o humanismo marxista). Exatamente por preencher lacunas da teoria marxista, o pensamento de Sartre - segundo Colette Audry - deveria ser conhecido antes da leitura das obras de Marx. Dominado pela necessidade de explicar a sociedade de seu tempo, Marx não chegou a fundamentar ontologicamente a sua doutrina. “A Crítica da Razão Dialética - diz Audry - deveria preceder no tempo a doutri­ na de Marx, dado que a fundamenta e lhe confere a sua inteligibilidade”. Com efeito, Marx não fundou ontologicamente a sua concepção do mundo, mas apenas estudou a formação e o funcionamento das sociedades industriais. Sartre executou o que Marx não fez: estabeleceu os princípios originais (a base ontologica) que regem implicitamente toda sociedade humana. Um dos propósitos do presente livro é destacar essa contribuição do existencialismo sartriano ao marxismo. E também revelar a coerência que existe na doutrina de Sartre quando estudada globalmente, ao contrário do que se supõe. Sem dúvida, há um primeiro e um segundo Sartre. Até O Ser e o Convém advertir que, conforme Sartre, fazer avançar o marxismo não significa contestá-lo: qualquer argumento anti-marxista será sempre o rejuvenescimento de uma idéia pré-marxista, uma volta ao passado, a redescoberta de um pensamento já contestado pelo próprio marxismo que se pretende refutar. A evolução do marxismo processada por Sartre teve a sua importância reconhecida pelos psicanalistas ingleses R.D. Laing e David Cooper: “Sejam quais forem as inibições dos marxistas ortodoxos de hoje com respeito a 1er ou debater publicamente a obra de Sartre, é provável que o pensamento marxista só continue a sua evolução quando os seus segui­ dores empreenderem um radical reexame de suas posições filosóficas fundamentais segundo as diretrizes de Sartre”. Como frisamos, a crise do Leste Europeu na virada dos anos 80/90 confir­ ma o declínio do marxismo deturpado pelos comunistas que Sartre praticamente anteviu em suas criticasi

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Nada, Sartre, como ele pròprio admitiu, limitou-se ao “estudo da consciência, de suas raízes, de sua estrutura”. A partir de 1945, ele se consagra à descrição do homem na coletividade. Mas não é exato que Sartre tenha deixado de ser existencialista para tornar-se marxista: seu existencialismo já era um saber familiar ao marxismo, tanto que nele acabou desaguando. “Existe uma unida­ de intelectual em meu trajeto”, comentou o filósofo em sua última entrevista. Cabe, de fato, dizer de Sartre o que este disse a respeito do filósofo inglês David Hume: “Seu sistema é perfeitamente lógico. Deve ser aceito ou rejeita­ do em bloco”. A voz de Sartre em defesa dos direitos e da liberdade do homem era um baluarte filosófico que os novos pensadores - sobretudo os da escola estruturalista - consideravam ultrapassado, mas contra o qual tinham inevitavelmen­ te de se bater. É correto afirmar que a maioria dos estruturalistas franceses, como Michel Foucault em As Palavras e as Coisas e Louis Althusseur em Para Ler o Capital, escreveu os seus livros contra Sartre. O estruturalismo escreve Hélène Védrine, professora da Sorbonne, em As Filosofias da Histó­ ria - foi responsável “pela conspiração de silêncio que vitimou Sartre durante muito tempo”. Védrine lamenta verificar que a Crítica da Razão Dialética, por ela considerada “a maior elaboração teórica do nosso tempo”, foi mal compreendida na França e praticamente marginalizada pela intelectualidade francesa: “Temos a impressão de que o livro assustou os críticos por sua ex­ tensão, pelas dificuldades que apresenta e pelas demonstrações às vezes proli­ xas. Além do mais, a moda estruturalista afastou por alguns anos esse gênero de reflexão.” Coincidência ou não, o fato é que o estruturalismo emergiu na França justamente por volta de 1960, o ano de publicação da Crítica. Inconformista e audacioso, conversão do pensador clássico e acadêmico em revolucionário anti-burguês, defensor militante das causas populares, es­ pécie de “consciência crítica universal”, Jean-Paul Sartre, como sublinhou Luis Carlos Maciel, foi o “guia espiritual” de toda uma geração por chamar a atenção para o fato de sermos totalmente livres e totalmente responsáveis. Esse “desagregador dos (maus) costumes”, por isso acusado de niilista e amo­ ral, mas, ao oposto, fundamentalmente ético, defendeu a liberdade humana como infinita e absoluta: “Uma verdade intolerável - diz Maciel -, que os sistemas de dominação procuram ocultar, e continua hoje, tanto tempo depois de sua morte, a assegurar a necessidade da reflexão de Sartre e o seu lugar Sobre as relações entre Sartre e o estruturalismo, ver anexo no fim do volume.

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ímpar neste mundo afogado por tantas seduções para a passividade, a covar­ dia e a irresponsabilidade.” A repercussão provocada pelo desaparecimento do filósofo e, nos anos seguintes, sua ascensão ao nível dos clássicos modernos sugeriram que, com o declínio da moda estruturalista, deverá verificar-se uma volta a Sartre. Seus exegetas cunharam uma frase profética: “Sartre será o Marx do século XXI”. O resumo da doutrina desse pensador que, por toda a extensão de sua obra, fez a mais eloqüente exortação pela liberdade humana e o papel fundamental do indivíduo na ação histórica, pode indicar, ainda que superficialmente, um pouco do valor humanista de que se reveste. E as razões que provocaram tal impacto no desaparecimento do filósofo, bem resumido por sua biógrafa An­ nie Cohen-Solal : “Sartre está morto, a vida continua, e todos que o amaram escutam, órfãos e impotentes, essas homenagens que surgem de toda parte. Eles dizem, também, que daqui por diante não vão poder mais, como antes, diante de um acontecimento político, de uma decisão a tomar, perguntar a si mesmos, e à espera de opção: ‘Mas, afinal, qual é a opinião de Sartre?’.”

Nos dez anos seguintes à morte de Sartre, além da publicação póstuma de seus inéditos (ver bibliografia), sua obra foi incluída na coleção de La Pléiade (só dedicada a clássicos) e no pro­ grama de pesquisas do Centre National de Recherche Scientifique, de Paris, visando a informa­ tização de sua bibliografia para pesquisas. Sobretudo, a obra de Sartre foi incluída no programa dos exames de agregação das universidades francesas. “Sartre”, de Annie Cohen-Solal, L&PM Editores, 1986.

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PARTE I A I ndividualidade

“A história do mundo não é outra coisa senão o progresso da consciência da liberdade. "

Hegel

“É lamentável que, ainda hoje, alguém possa afirmar que o absoluto não é o Iwmem. ”

Sartre

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Introdução SARTRE E A FENOMENOLOGIA

Ao estudar em Berlim (1933/34) o método da fenomenologia, criado no início do século por Husserl - e que viria a constituir o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosòfico do século XX -, Sartre constatou que esse sistema de investigação correspondia às suas exigências de um sis­ tema voltado para a realidade concreta do cotidiano . Todos os trabalhos ini­ ciais de Sartre obedecem às premissas do método . A grande síntese dessa primeira fase da obra sartriana que é O Ser e o Nada subintitula-se mesmo Ensaio de Ontologia Fenomenològica. Já â partir do título, o livro constitui uma espécie de resposta ao principal tratado de Heidegger, Ser e Tempo (1927), que foi dedicado a Husserl. Mas, embora empregando a terminologia de Heidegger e Husserl, Sartre não foi mero discípulo desses pensadores: pelo contrário, O Ser e o Nada é, com freqüência, uma contestação à filosofia de Heidegger e uma crítica a *** ... Husserl, como veremos adiante . Por ora, hmitemo-nos a enumerar os prin­ cipais pontos da fenomenologia que Sartre endossou. Em linhas gerais, Husserl insurgiu-se contra um engano teórico que Segundo Simone de Beauvoir, foi Raymond Aron quem alertou Sartre para o método de Hus­ serl, que estudara em Berlim. Os três bebiam em um bar de Paris, em 1931, quando Aron apon­ tou o seu copo. “Estás vendo, meu amigo: se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia.” Lembra Simone: “Sartre empalideceu de emoção, ou quase: era exatamente o que ambicionava há anos - falar das coisas tais como as tocava, e que isso fosse filosofia”. Ver bibliografia no fim do volume. Raymond Aron reconheceu que, “como filósofo, Sartre deve a si pròprio o essencial de scu pensamento”, e que a fenomenologia e Heidegger “só lhe emprestaram um método, um vocabu­ lário”.

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P aulo P erdigão sempre predominou nas ciências humanas em geral: a separação radical entre a consciência do sujeito (em latim, res cogitans: o ser pensante) e o mundo exterior (res extensa: o ser material), consideradas ate então como entidades distintas e heterogêneas. Ou bem privilegiava-se a exterioridade das coisas, a chamada “realidade objetiva”, ëm detrimento da razão humana (postura do­ minante em geral no pensamento científico), ou bem, ao contrário, dava-se ênfase à interioridade da mente, a chamada “subjetividade” (posição frequen­ te em filosofia). Daí as duas linhas básicas do pensamento humano: o Mate­ rialismo e o Idealismo . Para Husserl, contudo, acatar tal dualismo é ser unila­ teral e insuficiente, porque a realidade é outra: o ser humano vive em uma unidade indivisa de mente-corpo-mundo e assim deve ser estudado. Como Husserl, Sartre, em primeiro lugar, suprimiu todos os conceitos de antemão dados como “verdades estabelecidas” sobre as coisas. É preciso “voltar às próprias coisas”, ou seja, descrever os fatos em sua essência. Quan­ do os filósofos falam cm “tempo”, “consciência”, “imaginação”, “trabalho”, etc., pressupõem já o pleno entendimento dessas essências, mas o importante é justamente saber o que elas são. Por exemplo: sei que aquilo que experimen­ to tendo este livro frente aos olhos é uma “percepção”. Assim, dá-se por evi­ dente por si mesmo o que é “percepção”, quando precisamos é saber o que é isso, qual a essência da percepção. Daí porque a fenomenologia é chamada de ciência eidetica (do grego eidos: “essência”). Em outras palavras, em geral só se entende as coisas superficialmente: o ser humano dá como “já sabido” precisamente aquilo que ainda precisa ser elucidado. Husserl propôs esse “retorno às coisas mesmas” para contestar o positi­ vismo (linha filosófica que defende a primazia do conhecimento pela ciência) precisamente em uma época, o início do século, em que as próprias “verdades eternas” da ciência eram refutadas com o surgimento da teoria da relatividade, das geometrías não-euclidianas e da teoria dos quanta. Disse Husserl: “Tudo o que se tem por evidente não é mais do que preconceito. Todos os preconceitos não são mais do que obscuridades vindas de uma sedimentação da tradição”. Com essa volta às essências, a fenomenologia quis fazer da filosofia uma ciência rigorosa e exclusivamente descritiva, evitando as “especulações metafísicas” comuns à maioria dos pensadores. Para Husserl, a filosofia deve expressar experiências que digam respeito a todos, e não simples (e sempre contestáveis) “visões do mundo” que apenas refletem as idéias de um único Ver, a propósito, Capítulo 2.

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pensador. Seguindo de perto esse princípio, a filosofia sartriana não nos diz “como a vida deve ser vivida”, nem pergunta “por que o homem existe”: limita-se a descrever o que a vida é, que tipo de Ser o homem é. Outra premissa fenomenologica é a de que o investigador deve ater-se à descrição da existência concreta, captando o homem no seu cotidiano. Um exemplo muito simples - seja a menção de um hábito, ou uma conduta que adotamos regularmente —é capaz de, estudado em sua essência, revelar mais sobre a realidade humana do que a metafísica tradicional dos filósofos que se isolam do mundo, a criar castelos de belas idéias cheias de fantasia. Os livros de Sartre estão repletos de imagens cotidianas: um jogo de tênis, o trabalho de um garçom, uma fila de ônibus, a reunião de um grupo de manifestantes de rua. Em Sartre a filosofia coloca os pés na terra, prendendo-se à vivência da realidade. “Meu objetivo - frisou - é entender o abstrato concretamente”. O homem de Sartre é um homem situado em nosso mundo, com nossos proble­ mas e conflitos de todos os dias, e não uma idéia abstrata que só existe na mente dos pensadores. É por isso que em geral todo leitor da filosofia sartria­ na é capaz de reconhecer-se nela de corpo inteiro. Outro dado básico da fenomenologia: a tarefa principal do filósofo con­ siste em investigar a atividade da consciência e discutir as origens e os fun­ damentos do pensar. Não seria possível descrever as essências a partir da nos­ sa experiência cotidiana sem colocarmos no centro desse campo de pesquisa a nossa própria subjetividade individual. O filósofo não deve adotar um ponto de vista exterior ao mundo, como se estivesse instalado como espectador a contemplar de fora a existência, na qual está atolado: isso é o mesmo que as­ sumir a utópica visão de um pássaro a sobrevoar a Terra. Assim, é pelo prisma da subjetividade que o filósofo deve descrever o campo objetivo circundante. Sua primeira missão será descrever a própria consciência, e, do subjetivo, chegar ao objetivo, do particular chegar ao geral. “A subjetividade do indivíduo é o ponto de partida do existencialismo”, disse Sartre. Mais tarde, em uma perspectiva marxista, acrescentaria: o projeto in­ dividual é o fundamento de toda ação comum de grupo. Essa ênfase na razão subjetiva, que percorre toda a obra de Sartre, reflete a fidelidade do filósofo ao cogito, ergo sum (“penso, logo existo”) do francês René Descartes (15961650): é pelo fato de podermos pensar que podemos saber que existimos. Ao contrário, sem a nossa consciência, o mundo objetivo nada significaria, já que se auto-ignora como existente. Posso pôr em dúvida a existência real do mundo e até de mim mesmo, dizia Descartes. Duvido de tudo, mas só não posso duvidar de que duvido. Quanto a isso, tenho absoluta certeza. Portanto, cs tou certo de que duvido. Logo, estou certo de que penso, e, consequentemente, existo.

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Além disso, há que se aproveitar de um privilégio menosprezado pela quase totalidade dos pensadores antes de Husserl: o fato de sermos o único tipo de Ser capaz de colocar o seu próprio ser em questão em si mesmo. “O existente que analisamos é o existente que somos”, disse Heidegger. O objeto da investigação (a realidade humana) consiste no próprio investigador. Logo, podemos examinar de perto aquilo que está mais diretamente ao nosso alcan­ ce: a nossa subjetividade. Em vez de começar interrogando a existência im­ pessoal do mundo, o filósofo deve voltar-se antes de tudo para si mesmo, tor­ nando-se assim, simultaneamente, o investigado e aquele que investiga." Podemos então entender por que o dinamarquês Sóren Kierkegaard (1813-1855) é tido como precursor de Husserl, Heidegger e Sartre. Havia Kierkegaard reagido contra a doutrina do alemão Hegel (1770-1831), que, a seu ver, falava idealisticamente de um mundo transcendental, utópico, fazen­ do suas palavras atuarem qual passes de mágica em um universo de possíveis. Perguntava Kierkegaard: que me interessa admitir, como fez Hegel, que os conflitos das idéias através da História conduzirão um dia ao Saber Absoluto, à perfeição da razão humana, à eterna glória do Espírito, se essa esplendorosa era virá no final dos tempos, enquanto eu só conhecerei minhas dores e ale­ grias, e o enigmático silêncio da morte? Antes de qualquer marcha inexorável do Espírito para um porvir magnificente, existe a minha presença no mundo, sem a qual esse mundo não poderia fazer nenhum sentido para mim, e exis­ tem os meus sentimentos, as minhas angústias, a minha maneira de ser e estar nesse mundo. Kierkegaard foi o primeiro a mostrar que a vida de um homem, pelo fato mesmo de ser vivida, experimentada subjetivamente, com suas pai­ xões e sofrimentos, não pode ser absorvida por uma idéia universal, nem pode ser compreendida ou assimilada por um sistema de idéias exterior a ela. Esse aspecto da obra de Kierkegaard, o método fenomenològico de Husserl e a ontologia de Heidegger - não se esquecendo o “penso” de Descartes - surgem sintetizados e debatidos na doutrina de Sartre e são, em suma, os elementos que ele empregará, na segunda fase de sua obra, para ativar e reno­ var o marxismo.* *

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Isso não significa que o existencialismo sartriano seja uma filosofia subjetivista ou individua­ lista: como veremos, em Sartre o subjetivo está sempre atrelado ao objetivo, o pensamento achase ligado à ação prática, o homem e o mundo nunca se apartam. Mas é pela subjetividade que tudo começa. Subjetividade, antecipe-se, que nada tem a ver com a “abstração interitor” dos filó­ sofos ** metafísicos. Outros conceitos de Husserl, como o da intencionalidade da consciência, serão examinados nos capítulos seguintes.

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Capítulo 1 O PARA-SI

O ser a) A pergunta fundamental. Em Ser e Tempo, Heidegger retomou a questão do sentido do Ser, que, segundo ele, caiu no esquecimento dos filósofos desde Platão e permaneceu, ao longo dos séculos, na mais completa obscuridade. A inteligibilidade do Ser, disse Heidegger, reveste-se de importância fundamental: nenhuma espe­ culação filosófica será válida se não soubermos preliminarmente do que é que estamos tratando. No entanto, apesar de aparentemente compreendido por to­ dos e dado por evidente, o Ser é algo que está sempre velado. Ninguém ignora o sentido de frases como “o céu é azul” ou “eu sou um homem”. Mas, se nos aprofundarmos, já não saberemos mais explicar o que é esse Ser que está em toda parte. Segundo Pascal (1623-1662), já ao tentarmos uma definição do Ser caímos em um círculo vicioso, dizendo “o Ser é...”. Pois, assim, aquilo que queremos definir já se acha contido na sua própria definição. Por mais longe que possamos chegar nessa pesquisa, como foi o caso do próprio Heidegger, vamos deparar com algo que foge ao nosso saber e do qual só possuímos um entendimento fugidiço. Por isso, Sartre não aborda o Ser do modo como fez Heidegger, procurando desvendá-lo, e sim se restringe a encarar o Ser por seus infinitos modos de manifestação - ou seja, o Ser já qualificado, assim como nos aparece, em forma de coisas (“entes”, na deno­ minação de Heidegger). Portanto, se a filosofia de Heidegger pretende anali­ sar a existência humana que conhecemos apenas como via de acesso a um ní-

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vel transcendental (a descoberta do mistério do Ser), a de Sartre mantém-se assentada no mundo concreto e na vida cotidiana do homem. à b) “Tudo está em ato" Sartre, todavia, aceita algumas premissas de Heidegger no tocante ao Ser. Ambos se descartam, em primeiro lugar, da secular ilusão introduzida por Aristóteles (384-322 a.C.) - e retomada por Kant (1724-1804) - de que o Ser é uma substância oculta por trás das coisas que nos aparecem. Isso apenas põe em dúvida a nossa capacidade de conhecer verdadeiramente as coisas, já que, segundo essa teoria, só podemos alcançar o invólucro, o disfarce exterior das coisas, que encobre as “coisas em si”. Eliminando o dualismo aristotélico de “ato-e-potência” e o dualismo kantiano de “fenômeno-e-nômeno”, Sartre segue o principio de Husserl:,_“Tudo está em ato”. Ou seja: a aparência (fenômeno) das coisas já encerra toda a essência (nômeno). Os fenômenos que nos aparecem (os “entes” de Heidegger) são totalmente reveladores de si mesmos e nada contêm de oculto: são exatamente aquilo que mostram ser, e não devemos supor que existem potências ocultas ou essências armazenadas por detrás das aparências que podemos observar. Todos os fenômenos através dos quais se manifesta o Ser (sejam os objetos, as emoções, os conflitos hu­ manos, etc.) estão em ato e só existem dando provas dessa existência em ato. Mas isso não quer dizer que o fenômeno por nós percebido se confunda integralmente com esse Ser propriamente dito: o Ser de uma aparição é algo que escapa à simples aparição, não se reduz ao conhecimento que temos de um fenômeno. Não que se trate de uma essência oculta por trás do fenômeno: o que ocorre é que o Ser de um fenômeno não se esgota na aparição ou na sé­ rie de aparições desse fenômeno. O Ser existe mesmo quando não nos apare­ ce. Escapa às leis da aparição. Por exemplo: o fenômeno-livro que tenho frente aos olhos revela todo o Ser desse livro, mas o Ser desse livro não se su­ prime quando o fenômeno-livro não me aparece. Seria mesmo absurdo supor que meu amigo Pedro deixasse de existir quando não o vejo.*

O próprio Heidegger negou-se a considerar a sua filosofia existencialista como a de Sartre. Este, recusando as abstrações transcendentais de Heidegger, e, ao contrário, tendendo cada vez mais para uma filosofia do concreto, comentou que as idéias do filósofo alemão o haviam con­ duzido afinal “a uma espccic dc misticismo.” Sartre contesta assim o idealismo filosófico, segundo o qual o mundo é uma “criação” da nossa mente. Ver, a respeito, o Capitulo 2: “O Conhecimento”. 36

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c) A contingência. Colocado nesses termos, podemos concluir que o Ser é regido pelo princípio de identidade: ele é somente aquilo que é. Como se existisse em re­ pouso, indolentemente, em uma espécie de frouxidão, o Ser nos surge tal qual uma matéria opaca e plena de si mesma, densa e maciça, algo plenamente constituído e sem rachaduras, esgotando-se nesse “não-ser-outra-coisa-senãosi-mesmo”. Uno e maciço, o Ser está fechado em si, sendo incapaz de estabe­ lecer qualquer relação consigo mesmo. Devemos compreendê-lo como pura positividade: o Ser é o que é, nada além disso. O Ser aparece como algo que está aí, sem que saibamos por que, algo cujo existir só podemos entender como absoluta contingência. Contingente no sentido de não necessário: nada parece impor ou justificar o aparecimento do Ser, nenhum sinal nos indica qualquer razão para que o Ser exista e seja o que é, e não de outra maneira. Contingente no sentido de que este Ser - o mundo que existe, e não outro - poderia ser diferente. A existência das coisas aconte­ ce desse modo, como poderia acontecer de outro, ou mesmo não acontecer. Não temos onde encontrar uma “causa primeira” para o Ser. Outro Ser (digamos, Deus) não poderia tê-lo criado, porque se todo Ser devesse ser cri­ ado por outro Ser esse outro Ser deveria igualmente proceder de outro Ser, e assim indefinidamente. Tampouco seria concebível que o Ser se criasse a si mesmo, porque, nesse caso, o Ser deveria existir de algum modo antes de se criar, exatamente para criar-se, o que é absurdo. Falta assim ao Ser um impul­ so original. Como um tecido canceroso que tende a tudo invadir e a tudo ocu­ par, obsidiante, com um poder de proliferação irreprimível e cego, o Ser sitianos por todos os lados, com o seu existir sem razão e sem necessidade. A brusca revelação dessa contingência, da gratuidade e da absurdidade do Ser, produz um sentimento de sufocação que Sartre simbolizou em uma fi­ gura literária, a náusea. Roquentin, o personagem da novela A Náusea (1938), percebe que todas as coisas encaradas com normalidade por simples hábito escoram-se, na verdade, no abstrato mundo dos conceitos e das palavras (essa falsa realidade) para nos dissimular o que de fato são: coisas estranhas, opa­ cas, impenetráveis, ininteligíveis. O que é uma árvore ou uma caneta-tinteiro, o que são as feições de um rosto, por trás dessas designações lingüísticas, se­ não pura materialidade indeterminada e absurda? Diz Roquentin: “Ora, ne­ nhum Ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilu­ são de ótica, uma aparência enganadora que se possa desnudar. E o absoluto e, por conseguinte, a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esta cidade, este jardim, eu mesmo”.

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A consciência a) Distância a si. Já o fato mesmo de um homem como Roquentin ser capaz de emitir um juízo sobre o Ser demonstra que, de um modo muito especial, ele não é exatamcnte como o Ser. Há uma diferença de qualidade que separa a sua consci­ ência das coisas. O Ser rege-se pela identidade de si a si, sem relação interna possível. Sendo algo que se auto-ignora, não tem consciência. A consciência, ao contrário, é essa propriedade que o Ser não possui de pensar sobre as coi­ sas, exprimir juízos sobre elas, interrogar a respeito delas e de si mesmo, co­ locando em questão o seu próprio ser. Para caracterizar melhor essa propriedade, podemos recorrer a uma metáfora. Tento descobrir a significação de uma pintura aproximando os olhos da superfície da tela. Nesse caso, nada consigo ver. Em seguida, tomo um recuo que me permita abarcar o quadro com o olhar. Da mesma maneira como (em termos de espaço físico) preciso me afastar do objeto a ser percebi­ do exatamente para poder percebê-lo, também a consciência precisa recuar de algum modo diante do objeto visado para ser consciente dele. E como se a consciência se colocasse a certa distância do mundo das coisas a fim de estar em condições de presenciá-las. Embora uma das deter­ minações fundamentais da consciência seja a de estar no mundo, atrelada ao Ser, a consciência não se identifica literalmente com ele, como se fosse coisa entre coisas. Está, sim, em presença dele, colocada à distância dele. Sartre ti­ rou essa concepção da consciência das conclusões de Heidegger em Ser e Tempo: o homem não está “no meio” do mundo, mas “em presença” dele, “frente” a ele. Heidegger diz que o homem é “o Ser das lonjuras”, o único Ser que ex-siste (com o prefixo ex indicando afastamento). Tudo se passa como se o Ser, perdendo a sua solidez, sofresse uma fis­ sura ou descompressão interna, um desgarramento de si, uma nãocoincidência consigo - e, já como consciência, viesse a se pôr à distância, em “outro lugar” que não o seu eterno repouso. É o que Sartre denomina “a única aventura possível do Ser”. Única porque, ao fazer-se consciência, o Ser perdese como uno e positivo, a identidade de si a si desagrega-se. Tornado consci­ ência, o Ser já não é “totalmente si”, mas uma “presença a”, uma “distância

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a”. Sua plena identidade cede lugar a uma relação - a relação que a consci­ ência mantém de si para si mesma. Sartre usa então a expressão Em-si para designar o Ser, compreendendo a realidade material, o mundo inorgânico dos objetos e o organismo humano: é porque o Ser está fechado em si, preso a si mesmo. O Em-si designa tudo o que existe, exceto a consciência humana. Sartre chama a consciência de ParaSi, pois se trata de uma relação de si para si. O Para-si (expressão que define a consciência como distância ao Ser) sugere o que seria uma degeneração, uma “doença” do Ser: é o Ser que experimenta uma desorganização interna, rompe-se e se descola de si. O fenômeno metafísico da consciência representa o contrário do princípio da conservação da energia, no plano físico: se um único átomo que constitui o universo fosse destruído, seguir-se-ia uma catás­ trofe em cadeia que se estendería à destruição da Terra e do sistema solar. Quando o Em-si se rompe para converter-se em Para-si, ocorre não a destrui­ ção, mas a “aparição” mesma do mundo: a consciência faz com que o mundo surja diante dela como existente. Vimos que o Em-si não se reduz à sua aparição à consciência, não ne­ cessita do Para-Si para existir, mas precisa do Para-Si para existir enquanto aparição ou fenômeno (assim como não preciso de um espelho para existir, mas para aparecer a mim). A consciência é que faz com que o Ser “se mos­ tre”. Ela não cria o mundo: apenas o constata. Da mesma maneira, é a consci­ ência que traz interrogações ao mundo e coloca os porquês. Sendo assim, não se pode saber com certeza por que há o Ser, ou por que o Para-Si surge a partir do Em-Si: as indagações desse tipo aparecem já com o Para-Si. Quando interroga­ mos o Ser, ele já está aí, diante de nós. (O máximo que se pode dizer, em uma metáfora, é que o Em-Si tenha se tornado consciência na tentativa de ser respon­ sável pelo que é, ou seja, fundamento de si mesmo, causa de si, criador de si.) b) O Nada Chegamos agora ao ponto principal: como entender a fissura interna (a distância a si) da consciência? Afinal, não há qualquer “separação” no espaço e no tempo entre a consciência e si mesma. Ou seja, a separação íntima que existe no miolo da consciência não é “distância física”. E a consciência tam­ bém não sofre solução de continuidade temporal, ainda que o curso do pen­ samento se rompa a todo instante e mude de um estado para outro. Então,

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resta uma hipótese: nada separa a consciência de si mesma, nada separa tini estado de consciência do estado seguinte. Ser consciente de alguma coisa é colocar-se “à distância” da coisa de uma maneira especial: uma distância/eito de nada. Logo, o que caracteriza'a consciência é esse Nada que a distancia do Ser. A lei suprema do Para-Si é estar separado de si e do mundo por um Nada. Convém, no entanto, sublinhar que esse Nada não pode ser compreendido como algo que é, tal qual o Ser: o Nada não é, não existe positivamente. Contaminado pelo Nada, o Para-Si apresenta-se, ao contrário do Em-Si, como plena negatividade. O Para-Si é o Nada que invade o Ser e provoca a abertura no seu miolo. “O homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo”. No entanto, o Ser é uma categoria geral que abrange todos os existentes, inclusive a consciência, e estar fora da existência é simplesmente não existir de maneira alguma. Desse modo, como devemos entender que haja dois mo­ dos distintos do Ser, o Em-Si e o Para-Si? Que espécie de relação pode haver entre eles? Existem de fato dois modos disfintos do Ser e não uma identidade abso­ luta entre eles: não se pode reunir as noções de Em-Si e Para-Si em um gêne­ ro comum. Há, na verdade, um conjunto desintegrado. Entre o Em-Si e o Para-Si ocorre, sim, uma reunião, um trânsito de um a outro - mas é um trânsito que jamais se opera completamente. Sartre fala em “curto-circuito”. O Em-Si e o Para-Si estão unidos cm uma conexão que é feita pelo Para-Si, já que este é por natureza uma “relação com o Em-Si”. Mas devemos abandonar a idéia de que o Para-Si constitua uma subs­ tância própria, autônoma do Em-Si, embora haja esse hiato a cindir o Ser. A única realidade que o Para-Si possui é a de ser uma nadificação do Ser. Sem o Em-Si, o Para-Si seria uma abstração, assim como não pode existir cor sem forma, ou som sem intensidade e timbre, ou sombra que não seja “sombra de alguma coisa”. Se o Em-Si, em sua plenitude, é bastante e desnecessita do Para-Si, este, ao contrário, está tão indissoluvelmente ligado ao Ser positivo quanto o verso ao reverso de uma moeda. Isso parece claro quando atentamos para o fato de que o Nada segregado pelo Para-Si só pode ser concebido como “Nada de alguma coisa positiva” ou “Nada de Ser”. Em outras palavras: o Nada só pode surgir em relação ao Ser, implícito no Ser e fundamentado em algo concreto, pressupondo o Ser para negá-lo. Inevitavelmente ele aparece “sobre um fundo de Ser” e em ligação com o Ser, dentro dos limites do Ser e 40

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jamais fora deles. Todo Nada é Nada de alguma coisa concreta. Por isso, Sar­ tre diz que o Para-Si é como “um buraco” no Em-Si . Heidegger escreveu: “O mundo e, fora dele, nada”. Só que esse “nada” não é “algo” em que o Para-Si surgisse, mas sim o próprio Para-Si, na medida em que este se constitui como não sendo o Em-Si, como negação interna e radical do Ser como um “todo” (“O mundo é tudo aquilo que eu não sou”). O Nada, limite dessa totalidade, está fora dela, excluído dela, para além do Ser. Por isso, como vimos, a percepção do mundo em nada o afeta, apenas o constata, faz corn que o Ser, que se auto-ignora, passe a “existir” enquanto “Ser percebido”. O Para-Si é o Nada pelo qual “há” o Ser. Podemos comprovar isso nos mais simples atos do pensamento. Ao re­ cuar diante do Ser, a consciência afeta-se de um caráter de negação, injetando a nadificação na plena positividade do Ser. Ocorre, portanto, um recuo nadificador, qualquer que seja o modo de manifestação da consciência. Por exemplo, é esse poder nadificador que explica de que modo somos capazes de nos interrogar a respeito das coisas. Quando perguntamos “porque isso é assim”, lançamos sobre o objeto da indagação e sobre nós mesmos a negatividade: queremos saber por que isso é assim e não de outro modo; e, se perguntamos, é porque não sabemos a resposta. Portanto, não é um juízo ne­ gativo que faz o Nada vir às coisas, mas o oposto: é o Nada (da consciência) que condiciona e sustenta qualquer juízo negativo. O mesmo se dá com as nossas percepções. A consciência perceptiva coloca tudo sobre um modo de não ser. Ao percebermos um objeto, lançamos a negatividade sobre (a) o objeto, (b) os outros objetos ao redor, (c) nós mes­ mos. Assim, por exemplo, para afirmar que este objeto é um livro, tenho implicitamente de nadificar (a) o objeto (vendo-o como não sendo eu), (b) os objetos ao redor (vendo esta mesa ou aquela cadeira como não sendo este li­ vro), (c) eu mesmo (vendo-me como não sendo este livro). Em outras pala­ vras, diante de um objeto presente aos nossos olhos, a afirmação que fazemos da sua percepção contém necessariamente a negação do contrário. Só pode­ mos perceber a distância de um segmento de reta A-B porque sabemos que, Era 1945, após a libertação, “L’Être et le Néant” tornou-se best-seller na França e obteve, se­ gundo Michel Contât e Michel Rybalka, “um prestígio que nenhuma obra filosófica havia co­ nhecido anteriormente”. Na ocasião, o livro foi vendido com uma tarja publicitaria para a qual Sartre encontrou a seguinte fórmula: “O que importa em um vaso é o vazio do meio”.

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depois dos limites A e B, não há mais segmento. Ocorre uma dupla negação: a externa (este copo não é aquela mesa) e a interna (não sou este copo). c) A Imaginação Todavia, onde mais claramente se revela o caráter nadificador da cons­ ciência é na imaginação. Ao imaginar, a consciência se dirige a um objeto to­ talmente destacado do mundo real percebido e que não mantém qualquer li­ gação com ele - seja por não existir em parte alguma (a imagem de um cen­ tauro), seja por não estar presente à percepção (a imagem de Pedro, quando este se encontra em outro lugar; ou ainda, mesmo que Pedro se ache presente, a sua imagem de há dez anos). A consciência da imagem exige inclusive a exclusão radical da capacidade de percepção do real: quando imaginamos, nada podemos perceber, pois o nosso objeto está à margem da realidade, e nós o constituímos mantendo o real à distância, nadificando o real. Nadificamos o que é, para atingirmos o que não é. Quando imaginamos, nossa consciência preenche-se apenas desse Nada que a atravessa. Na verdade, ela não se acha frente a nenhum objeto fora dela, porque esse objeto é a própria “consciência da imagem” se manifestando. Ela se dirige, sim, a um Nada que é ela mesma. Ter uma imagem de Pedro é uma maneira de não ver Pedro realmente, de não poder tocá-lo, de não estar a certa distância dele - ou seja, uma maneira de ver nada. Por nadificar inteiramente o real, repetimos, é que a imaginação não pode coexistir com a percepção: não podemos experimentar simultaneamente uma e outra, ou confundir uma com a outra *. Se percebermos um objeto desenhado em uma folha de papel e de súbito imaginarmos uma cena de que participamos horas antes, o objeto “apaga-se” diante dos nossos olhos. Sartre oferece alguns exemplos de consciência de imagem (que prefere chamar de “consciência imaginante”, pois o termo “imagem” dá a entender um objeto ao qual a consciência dirigir-se-ia, o que não ocorre). Procuro por Pedro em um bar e não o encontro. Capto a sua ausência - ou seja, nadifico o Daí a conclusão do filósofo holandês Baruch Spizona (1632-1677) de que “toda afirmação é uma negação”. Ao afirmar “isto é um livro” estou dizendo simultaneamente que “isto não é uma caneta”. A confusão entre percepção e imaginação só ocorre no plano da memória, porque, no passa­ do, percepções e imagens acham-se niveladas no campo subjetivo, sem deixar explícito seu ca­ ráter de realidade ou irrealidade. Daí porque às vezes não sabemos ao certo se determinado fato ocorreu realmente ou não passou de nossa imaginação.

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real percebido para atingir “Pedro-em-imagem”, captando o nada de Pedro. Não me limito a constatar o que me aparece (o bar), mas sou capaz de dizer “não vejo Pedro”. Do mesmo modo, se leio este livro, não atinjo apenas o que vejo (os caracteres tipográficos impressos no papel), mas transcendo o livro como objeto, nadifico-o, para captar o sentido das palavras e das frases, trans­ formando as simples marcas pretas do papel em uma história, fazendo do livro-objeto uma sucessão de idéias. Também diante de um retrato de Pedro, não apreendo somente manchas pretas e brancas impressas no papel, ou seja, não capto só aquilo que me é dado. Vou além, ultrapassando o objeto-retrato para ver, nas manchas, a “imagem de Pedro”. Dito de outra forma: reduzo o objeto-livro a nada, para ver o que ele não é. Nego a realidade concreta do retrato, para ver o que ele não é. Tomemos uma pintura. As tintas e a moldura provocam apenas o prazer dos sentidos, enquanto a beleza estética do quadro pertence ao imaginário, é um “objeto irreal”. Na música, a execução pelos instrumentistas serve somen­ te de análogo a um objeto irreal perpetuamente ausente — tanto que, por exemplo, podemos comparar a execução da Nona Sinfonia de Beethoven com uma certa “Nona Sinfonia em pessoa” que não está presente na sala de con­ certos, nem mesmo na pauta musical (pois esta é apenas uma folha de papel com notas impressas). Em uma peça teatral, o ator se “irrealiza” através do personagem, da mesma maneira como o retrato de Pedro serve de análogo a um Pedro irreal animado pela consciência imaginante.* d) O Absurdo Positivismo Por tais considerações, verificamos que os atos do pensamento não po­ deríam explicar-se caso tomássemos a consciência como um objeto, um Ser positivo. E o que fazem em geral os fisiologistas e psicólogos: para eles, a consciência é um “produto” segregado pelo cérebro, assim como a bílis é se­ gregada pela vesícula. A teoria dos reflexos condicionados de Pavlov vê na consciência um conjunto de deterninismos psicológicos e mecanismos nervo­ sos - hipótese acatada pelos marxistas ortodoxos sem objeções. Do mesmo modo, o behaviorismo de John Watson (1878-1958) encara o homem como *

Desenvolvemos a teoria de Sartre sobre o imaginário no Capítulo 2 (“O Conhecimento”). Des­ de já, diga-se que o fato de, na imaginação, a consciência ver nada, não significa que seja possí­ vel qualquer idealismo: a consciência não pode existir “pura”, pois, como veremos, exige o mundo real exterior para existir, ainda que no plano da imaginação.

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“máquina orgânica pronta a funcionar”, e tal tem sido a concepção dominante entre psicólogos da escola anglo-saxônica. Entretanto, a perdurar tal compreensão fisiológica, a consciência per­ manecerá obscura. Isso porque um Ser positivo é incapaz de negações, já que o positivo só pode conceber o positivo. Tal consciência limitar-se-ia a captar o que lhe aparecesse positivamente: diante de um livro, veria manchas im­ pressas e, no máximo, podería soletrar letra por letra, sem alcançar o signifi­ cado das palavras, o sentido do texto. Já não seriam possíveis as indagações e a imaginação. A idéia da consciência como reflexo (sugerindo analogia com o espelho) parece implicar um certo imediatismo do conhecimento, como se aprendéssemos apenas o que nos aparece (na verdade, até mesmo a percepção de algo dado exige, como vimos, a nadificação). A consciência não pode existir salvo como Para-Si - isto é, como relação interna e fonte que insere o Nada no Ser. e) O inacabamento do Para-Si Essa separação interna do Para-Si faz dele uma espécie de Ser inacaba­ do, ao qual está sempre faltando alguma coisa para se completar e preencher o seu miolo. Se fosse algo dado e acabado, a consciência seria idêntica a uma coisa. Mas há no Para-Si uma separação interna que não pode ser suprimida, a menos que o Para-Si se perca como tal e se converta em Em-Si. Sartre também desenvolveu essa concepção a partir de Heidegger, que em Ser e Tempo afirma residir na realidade humana um constante estado de inacabamento. Se não faltasse algo ao Ser do homem, este se aniquilaria. Pro­ va é que a morte, que completa o seu Ser, representa a extinção da consciên­ cia. Segundo Heidegger, o homem é sempre um “ainda-não que será”, uma não-totalidade, ou uma totalidade inacabada. Sartre prefere a expressão “totalização-em-curso”: somos uma perpétua totalização em busca de uma totalidade que nos falta (o nosso “si” propriamente dito). O Para-Si vive tentando preencher esse vazio interior, essa distância feita de Nada que o separa de seu Ser pleno e acabado. Podemos sentir tal inacaba­ mento em um exemplo simples: os nossos desejos. A sede, desejo de beber, não Como veremos, o Para-Si gasta sua vida buscando em vão escapar ao Nada que é através do que seria uma síntese com o Em-Si, algo consolidado “de uma vez por todas”, um ideal de pleni­ tude e segurança, como Deus. Segundo Sartre, seria impossível não ser assim, e essa meta trans­ parece nas mais corriqueiras atividades humanas. 44

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poderia ser o efeito de uma necessidade fisiológica, porque a carência de água no organismo (fenômeno positivo) só pode gerar efeitos físicos, como a coagulação sangüínea (fenômeno igualmente positivo). Ora, a sede, como todo desejo, é um tipo de consciência: a consciência de alguma coisa que se deseja e que nos falta. Para sentir sede, tenho de ser “consciência de beber”. Isto é: tenho de ul­ trapassar-me para uma totalidade que me falta (a sede já saciada) e então retro­ ceder para determinar a minha consciência atual como “desejo por água”. Se te­ nho sede, é porque vejo este copo cheio d’água como “copo já bebido por mim”. Se nada faltasse no meu Ser, o desejo sequer seria concebível, pois não se entendería que qualquer coisa pudesse fazer l'alta a um Ser completo. Sartre ainda mostra que, se queremos ser sinceros ou sofrer à maneira de uma sinceridade ou um sofrimento absolutos, não o conseguimos. Sentimos que sempre nos seria possível ser mais sinceros, ou sofrer mais. Isso acontece porque somos uma falta em nós mesmos, uma separação em nosso ventre: distanciados de nós próprios, estamos inevitavelmente como que nos “observando” a certa distância. Assim, o máximo que podemos fazer é “representar uma comédia”.

A relação entre o Ser e a consciência a) A Intencionalida.de A consciência manifesta-se sempre como constante movimento em dire­ ção ao Ser, para nadificá-lo. Husserl denominou essa característica de intenci­ onalidades afirmando: “Toda consciência é consciência de alguma coisa”. Ou seja: todos os atos da consciência tendem para um objeto, visam um objeto (que pode ser um objeto imaginado, ou o próprio pensamento, no caso da re­ O exemplo encerra a idéia de “projeto”, fundamental na filosofia de Sartre. O tema será abor­ dado no Capítulo 3 (“A Temporalidade”), onde iremos ver que estamos sempre no rumo daquilo gue ainda não somos e que jamais seremos. O estudo do “Outro” (Capítulo 5) mostrará que a sinceridade ou o sofrimento como coisas absolutas só existem para nós nas ações das outras pessoas, porque elas nos aparecem vistas do exterior, como objetos totalizados.

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flexão, quando pensamos em nossos próprios pensamentos). Não há consci­ ência sem o objeto ao qual ela se dirije intencionalmente. Uma consciência que operasse no vazio, que fosse consciência de objeto algum, seria realmente uma substância autônoma do Em-Si, mas isso não pode existir, porque já aí a consciência não seria o que é: tima nadificação do Em-Si. Tal consciência se­ ria apenas um Nada absoluto, e portanto podemos concluir que, fora do EmSi, o que existe é literalmente nada. Não há duas substâncias. Logo, não há uma suposta síntese. Sartre desenvolveu o conceito de intencionalidade de Husserl para mos­ trar que o Para-Si precisa do Em-Si para existir. A consciência de amar, por exemplo, é consciência de “amar alguma coisa”. A consciência de fé é cons­ ciência de “fé em alguma coisa”. No ódio, no amor, no desejo, algo é sempre odiado, amado, desejado. A consciência é esse deslizamento, esse “partir em direção às coisas”, essa relação com um objeto (real ou imaginário). Sendo Nada sobre um fundo de Ser, o Para-Si só pode existir perseguindo o Ser, fa­ zendo um “apelo ao Ser”. Antes de Sartre, Heidegger já dissera que a realida­ de humana é um “dirigir-se para fora de si”, uma abertura para o mundo. b) O Vazio do Para-Si Portanto, força que se projeta a si mesma para fora, visando o Em-Si (ainda que seja para nadificá-lo e, pela imaginação, captar um objeto irreal), o Para-Si não tem por si mesmo nenhum conteúdo de Ser: é uma extroversão vazia, um ponto-de-vista insubstancial sobre o mundo. Como já frisamos, não se concebe mesmo o que seria uma subjetividade absoluta, um puro Nada, que não fosse “Nada de algo concreto”. Se isolarmos o Para-Si do Em-Si para o qual tende, teremos não um existente feito de Nada, mas um nada de exis­ tente. Não há Ser para a consciência fora dessa obrigação que ela tem de se remeter ao Em-Si. O Para-Si é fuga incessante em direção ao mundo e Nada em si mesmo: ele constitui todos os objetos e valores do mundo e não é nem esses objetos nem esses valores. O mundo lhe surge como aquilo com relação ao qual o Para-Si é Nada. Se tudo está fora dele, pode-se dizer que a desaparição de todos os objetos acarretaria a desaparição da consciência. Sem mundo não haveria consciência. Cabe lembrar que a consciência imaginante visa um Nada, mas que isso não a isola do Em-Si. Qualquer imagem, mesmo a de um centauro, é sempre um nada rebatido sobre um fundo de Ser. Sartie evita qualquer possibilidade de idealismo. A propósito, ver Capítulo 2 (“O Conhecimento).

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Segundo Sartre, o chamado “mundo interior” da consciência resulta da ilusão de que o Para-Si possui um conteúdo, uma suficiência de Ser, tal qual um recipiente que contém emoções, desejos, imagens, etc. Na verdade, a consciência, ao contrário, é absoluta negação de ser substância. “Se, por ab­ surdo, pudéssemos entrar na consciência”, diz Sartre, “cairiamos em um turbi­ lhão e seríamos jogados para fora”. Caso removéssemos as coisas nas quais pensamos, nada mais encontraríamos. Radicalizando a idéia da intencionalidade, Sartre afirma que todo Ser acha-se fora de nós, no mundo do Em-Si - inclusive o nosso próprio Eu (Ego). Husserl expulsou as coisas da consciência, mas fez “honrosa exceção” a um suposto Eu Transcendental, espécie de epicentro que ficaria no interior da consciência, organizando à sua volta os atos psíquicos, as percepções e as experiências, como um imã organiza os filamentos de ferro espalhados ao seu redor. Para Sartre, não é este pseudo-Eu que unifica a consciência: embora nos pareça tão íntimo, o Eu não “habita” a consciência, situa-se fora dela, como um objeto do mundo exterior. Em todos os nossos pensamentos, esta­ mos “lá fora”, atingindo as coisas (reais ou imaginárias). Aquilo que somos, o Ser da nossa consciência, acha-se nas coisas em que pensamos: “somos” este livro ou esta mesa de que temos consciência. c) Transcendência e Facticidade Para existir, o Para-Si necessita portanto do Em-Si, visto que o Nada só pode ser “Nada de alguma coisa” e, assim, o mundo objetivo se conserva como fundo indispensável a toda nadificação ou ato da consciência. Em ou­ tros termos: o Em-Si faz parte da estrutura do Para-Si, infesta-o com a sua contingência original e insuprimível. E essa permanência do Em-Si, impedin­ do a consciência de viver como pura abstração (teoria idealista), o fato mesmo Para Sartre, tomar a consciência como um lugar povoado por percepções, imagens, etc., é re­ cair em uma ilusão de imunência (ou “erro substancialista”). Imanência: qualidade do que “reside em”, do que é “contido” em um Ser e interior a ele. O contrário de transcendência (ver nota adiante). É o que iremos constatar ao reconhecer o mundo objetivo como o “campo” onde encontramos o que somos. No capítulo seguinte, veremos que o Eu não “reside” na consciência, prova é que nem sempre está presente em nossos pensamentos, pois precisa ser visado para aparecer à cons ciência.

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que explica o grande paradoxo da realidade humana: somos ao mesmo tempo transcendência e,facticidade. Somos transcendência porque um Nada nos separa do Ser que sofhos, impossibilitando assim a nossa plena coincidência conosco. Distanciados do Ser pelo Nada, somos um ponto-de-vista sobre o mundo, separados da solidez das coisas. Mas, paradoxalmente, também somos facticidade. Isso significa que, por causa do Em-Si que nos habita, temos de ser exatamente o que so­ mos, à maneira dos objetos do mundo. É por existirmos enquanto facticidade que temos um corpo. Minha consciência afasta-se do mundo para contemplálo, mas continua nele comprometida pelo corpo. Somos obrigados a conviver com um corpo que nos mantém atolados no mundo, amarrados à camisa-deforça da matéria, à contingência do Em-Si. Deve-se salientar que tal permanência do Em-Si no Para-Si é tanto ne­ cessária quanto contingente. Necessária porque, sem o Em-Si, o Para-Si não seria possível. É o corpo que permite à consciência ser “um ponto-de-vista situado”. Não temos uma visão exterior do mundo, qual um pássaro que tudo sobrevoa, sem se encerrar no mundo ao qual contempla do alto e de fora. Pelo corpo, estamos situados neste mundo: as coisas se organizam à nossa volta, e a consciência é um centro de referência na percepção do mundo. O corpo, nesse sentido, assume tal relevância que chega a fazer parte integrante da consciência. Não se entendería, aliás, o que pudesse ser uma consciência sem corpo. Nesse particular, Sartre desfez uma dúvida dominante desde que Descar­ tes concebeu consciência c corpo como entidades distintas. Indagava-se, até então, como algo incorpóreo e imponderável (o pensamento) seria capaz de causar o movimento de um objeto espesso e material (o corpo). Como, à sim­ ples intenção de erguer meu braço, aconteceria dele erguer-se? No conceito de Descartes, o corpo seria algo que a mente utiliza, tal qual um instrumento. Sartre disse que a questão foi mal colocada. Descartes e os filósofos que se seguiram formaram do corpo um conceito falso, visualizando-o “de fora”, ou seja, como um cientista que examina o corpo objetivamente, entendendo-o Transcendência, usualmente designando a qualidade de um Ser superior (por exemplo, a “transcendência divina”, isto é, a superioridade infinita de Deus com relação à sua criação), apa­ rece em Sartre com outro sentido: indica a intencionalidade da consciência, o movimento da consciência para sair fora de si e atingir seu objetivo, a faculdade do Para-Si de ultrapassar-se para o mundo. Facticidade, usado por Heidegger (do latim “factum”),indica o caráter do que é puro fato, algo dado, jogado aí, sem fundamento, como contingência injustificável. Sartre usa a expressão para tratar os aspectos não escolhidos por nós da nossa condição humana concreta: o corpo que possuímos, a situação onde aparecemos, a época histórica que vivemos, etc.

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como objeto entre objetos do mundo. Claro que às vezes podemos adotar uma relação de conhecimento com o corpo, se, por exemplo, observamos o com­ primento dos nossos dedos da mão, se verificamos se nossos cabelos estão crescidos, etc. Nesses casos, meu corpo é um objeto para mim. Isso acontece com o recém-nascido: para ele, sua mão é um objeto estranho e alheio, em * igualdade com o chocalho que ele segura. Mas tal não é a modalidade primordial de viver o meu corpo. A relação normal, típica, que mantenho com o meu corpo não é uma relação de conhe­ cimento. Por exemplo: ao acionar os controles de um veículo, ignoro a minha mão; ao caminhar pela rua, ignoro as minhas pernas. Ou seja, eu não “uso” o meu corpo, sequer o “conheço” enquanto objeto: simplesmente vivo-o. Minha mão é usada por minha mente para dirigir um veículo: ela é que usa o guidão e a alavanca de mudanças. Em outras palavras, eu sou o meu corpo. Entre a mente e o corpo não há lacuna a preeencher: o Para-Si é completamente consciência e completamente corpo. Daí sequer se pode dizer que a mente esteja “unida” a um corpo - pois só podemos unir o que antes estava separa­ do. (“Para mim não há diferença de natureza entre corpo e consciência”, re­ petiu Sartre em 1975). Dissemos também que a permanência do Em-Si no Para-Si é contingen­ te. Sem dúvida, embora necessário, o Em-Si que nos infesta exprime a nossa contingência de “estar aí”, a nossa maneira de existir não escolhida por nós. Por causa desse Em-Si maciço do qual sou Nada, não posso fazer-me outro que não eu mesmo: não escolhi nascer com este corpo, portador de determi­ nada estrutura fisiológica, nesta época, pertencente a determinada classe so­ cial e determinada nacionalidade, etc. Não há qualquer razão para que meu corpo seja este e não outro, a situar-me no mundo desta maneira e não de ou­ tra: tenho porque tenho de possuir tal estatura e compleição orgânica, tenho porque tenho de ser mortal, etc. d) Definição do Para-Si Descrevendo o Para-Si como essa mescla de transcendência e facticida­ de, Sartre chegou à seguinte definição: enquanto o Em-Si é o que é, o Para-Si não é o que é e é o que não é. Explicando: por causa da transcendência, o Veremos no Capítulo 5 (“O Outro”) que todo conhecimento que temos do nosso corpo como objeto depende do que a visão das outras pessoas nos ensina sobre ele: adotamos para o nosso corpo o ponto-de-vista que o outro tem sobre ele; vemos nosso corpo da maneira como ele apa­ rece para o outro. Esse, porém, não é o modo original de “Ser corpo”.

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Para-Si não é o que é, pois se coloca à distancia de si enquanto Ser, pelo re­ cuo nadificador. Mas, por causa da facticidade, o Para-Si também é o quç não é, ou seja, tem de ser esse Ser que não é: embora me coloque à distância do Ser que sou, tenho de ser este Ser com o qual não coincido inteiramente. Não posso escolher-me Nada de outro Ser. A minha maneira de “não ser eu mes­ mo inteiramente” é única e não pode ser outra. Daí a fórmula de Sartre: não somos o Ser que somos, mas igualmente somos este Ser que não somos. Eis, em conclusão, dois tipos ontologicamente diferentes do Ser. O EmSi não possui consciência, e seu existir não depende de qualquer consciência que se tenha dele, em nada é afetado pelo Para-Si. (“Nós não criamos o mun­ do: apenas o descobrimos”). Já o Para-Si, pelo contrário, é consciência e (como vamos estudar no capítulo seguinte) só pode existir na dependência da consciência que tenha dele mesmo. Por outro lado, o Em-Si é pura facticida­ de, algo que está “dentro do mundo”. Ao passo que o Para-Si, transcendênciafacticidade, acha-se tanto dentro do mundo, como Ser, quanto fora dele, como consciência, “presença a”, “distância de”, etc. A realidade humana, diz Sartre, é portanto ôntico-ontológica.

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Ôntico, em Heidegger: referente à existência cotidiana do Dasein, sem o aspecto metafísico ou ontològico.

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Capítulo 2 O CONHECIMENTO

Características gerais a) O Para-Si conhecedor Já sabemos que o Para-Si é um deslizamento para fora de si, e também uma presença ao Ser, no qual insere o Nada. E possível agora compreender melhor o fenômeno do conhecimento - o principal modo de existir do Para-Si (embora não o único, como veremos). O conhecimento consiste na manifesta­ ção fundamental do Para-Si pela razão mesma de que a natureza do Para-Si é a de estar ligado ao Ser em uma relação ontologica de base (“Toda consciên­ cia é consciência de alguma coisa”). Além disso, o Para-Si, sendo uma “presença a” e capaz de negações, acha-se habilitado a ficar presente àquilo que ele não é. Conhecer alguma coisa é estar presente àquilo que não se é. Por exemplo: conheço este livro, quer dizer, estou presente àquilo que não sou. Percebo a cor verde de um objeto: estou presente àquilo que não sou (minha consciência não pode existir como verde). Percebo o espaço como extensão: estou presente àquilo que não sou (meu pensamento é inextenso). O conheci­ mento exige presença e negação, e por isso o Em-Si, pura identidade e positividade, não pode conhecer.* *

Dessa forma, Sartre substitui o conceito clássico de intuição (“E a presença da coisa à consci­ ência”) pelo seu inverso: “É a presença da consciência.à coisa”.

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O fenômeno do conhecimento também se deve ao vazio interior, à falta de Ser do Para-Si. Sendo “todo negação”, a consciência pode ser “negação do todo”: o mundo é tudo aquilo que eu não sou. Mas esse “todo de mundo” apa­ rece apenas enquanto fundo comum a qualquer conhecimento. Estamos pre­ sentes à totalidade do mundcr è, no entanto, jamais podemos captá-lo como um todo, e sim somente através da apreensão deste ou daquele objeto deter­ minado. Ou seja, só podemos conhecer o mundo parcialmente, por meio desta ou daquela forma particular, enquanto o mundo, como totalidade, se conserva como fundo comum. Falta-nos sempre a percepção de outros objetos do resto do mundo e, no entanto, temos consciência de que há um “todo” por detrás de cada “isto” ou “aquilo” observados. Isso ocorre devido ao estado de inacabamento e do vazio do Para-Si. Por ser inacabada, a consciência só está apta a conhecer “isto” ou “aquilo”, jamais “tudo”. Caso pudesse fazê-lo, o Para-Si seria uma totalidade acabada. Assim, o fato de me ser impossível conhecer a totalidade do mundo me anuncia o inacabamento de meu Ser. Do mesmo modo, o Em-Si é um tipo de ser incompleto, porque, sozi­ nho, jamais pode ser “Em-Si” para si mesmo, já que se auto-ignora e requer o Para-Si conhecedor para “ser” alguma coisa. Portanto, “conhecer” alguma coisa é como que “arrancar o Ser da noite do ser”, ou seja, iluminar o Ser, dar-lhe uma certa nova dimensão de ser - o ser conhecido. b) Experiência e Conhecimento A compreensão da consciência como Para-Si permitiu a Sartre refutar certos postulados tradicionais a respeito do conhecimento. Kant afirmava que “todo conhecimento começa com a experiência”. O conhecimento seria algo que se acrescenta ao Para-Si a posteriori, como resultado de uma experiência prévia. Mas dá-se justamente o contrário: o conhecimento surge concomitan­ temente à própria aparição do Para-Si e deve preceder necessariamente toda experiência. Na verdade, não é através da observação prática do mundo que se faz a revelação desse mundo para nós - como supunha Kant - porque é a própria revelação do mundo (como caráter fundamental do Para-Si) que faz possível qualquer observação prática. Forma e fundo sempre dependem um do outro. O “todo” é sempre fundo de cada “isto” per­ cebido. Por um lado, o “isto” só se revela sobre o fundo de um “todo de mundo”, sempre neces­ sário para que a consciência possa estar presente a um “isto”. Por outro lado, reciprocamente, esse “todo de mundo” só pode se revelar nos e pelos “istos” singulares.

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Quando investigamos o mundo, isso implica já possuirmos, de alguma forma, um conhecimento desse mundo, caso contrário a experiência seria, em princípio, impossível. Quando indago “que sou eu?”, é sinal de que tenho, antes de qualquer observação empírica, o conhecimento de que “sou eu”. A experiência nos fornece, sim, não o conhecimento como faculdade, mas o sa­ ber: preciso primeiro saber o que é um proletário para depois ter condições de definir e identificar um proletário. Mas a origem dessa experiência é a minha capacidade inata de conhecer. c) A Verdade O método fenomenològico de Husserl reuniu diversos pensadores (além de Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty) em uma contestação comum ao con­ ceito de Aristóteles sobre o conhecimento verdadeiro: “E a adequação entre o pensamento e o objeto”. Sendo a consciência sempre um dos pólos da relação de conhecimento, somente outra consciência, uma testemunha, poderia com­ parar o conhecimento que temos do objeto com o próprio objeto, para verifi­ car se há ou não um nexo essencial entre eles. Para saber se o meu conheci­ mento da cor verde é verdadeiro, teria de verificar a adequação entre a minha consciência do verde e o “verde em si”, o que é impraticável. O problema da “verdade” é um falso problema, como notou Heidegger. “Estar na verdade” é uma estrutura constitutiva da consciência, pois o concei­ to mesmo de “verdade” já é um produto da consciência e surge com ela pró­ pria, como sua parte integrante. “Descobrir o mundo” é o modo de ser da rea­ lidade humana, e toda verdade é um descobrimento. O mundo surge à consci­ ência como um “há”, ou seja, uma verdade. Heidegger disse que as leis de Newton, antes de serem descobertas, não eram “verdades”, embora o fato de a gravitação haver existido sempre. Para que haja uma “verdade” é necessário que uma consciência a afirme como tal. A verdade surge e desaparece com o homem, circulando entre os homens. Ou o homem “vê para o Outro” ou “vê o já visto (pelo Outro)”. Não há, assim, nenhum sentido em se duvidar da capacidade da consci­ ência de conhecer “verdadeiramente” as coisas. Merleau-Ponty (1908-1961) critica o chamado “erro d,e juízo”: estamos sempre na verdade, mesmo quan­ do a experiência nos induz a substituir uma verdade por outra. Digamos que percebo no deserto um oásis no horizonte. Procuro-o, em vão. Descubro tra­ tar-se de miragem. Ora, só posso saber que o oásis é uma miragem depois que

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novos elementos foram incorporados ao meu campo de conhecimento (as du­ nas, a ausência de água) - ou seja, depois que o mundo conhecido tornou-se outro. Merleau-Ponty diz que qualquer correção que eu faça em um conheci­ mento irá assentar-se sobre outro conhecimento, ambos verdadeiros no senti­ do de que cada um deles é relacionado a um determinado mundo específico conhecido. Assim, o Para-Si “vive na verdade como o peixe na água”. As aparências não enganam: se nos atemos a elas, são sempre verdadeiras. Por exemplo: se na escuridão tomo uma árvore por um homem, a aparênciaárvore é verdadeira, a realidade é que é falsa (o falso é uma não-verdade, o que dá no mesmo). Por fim (outro princípio fenomenologico), observe-se que só podemos conhecer o mundo através da nossa consciência. Mesmo operando um esforço para nos livrarmos da nossa subjetividade, verificamos que somos ainda nós mesmos, com a nossa consciência, que realizamos essa tentativa e estamos presentes como espectadores, observando com os nossos olhos. Nesse sentido, é cabível duvidar-se do pretenso “objetivismo absoluto” da ciência, aceito pelas teorias marxistas da observação do mundo “sem adição estranha” (isto é, sem a subjetividade). O cientista costuma agir como se o mundo examinado não fosse por ele visto de um determinado prisma. Contudo, todo experimentador sempre faz parte do sistema experimen­ tal. O cientista que imagina um mundo que “não é visto por ninguém e de lu­ gar algum” é ele mesmo um homem situado no mundo, e jamais esse mundo deixa de existir ao seu redor para se tornar um puro objeto a ser observado. O heliocentrismo da Galileu (a Terra e demais planetas giram em torno do Sol) exige um observador situado à distância do sistema solar. Por mais que a ci­ ência nos prove essa “verdade objetiva” por meios não-humanos, a verdade do meu conhecimento é outra: o Sol gira à minha volta, porque a consciência é um centro de percepção universal. Há ainda o exemplo da “ilusão de Muller-Lyer”:

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Embora um instrumento de medição científica possa comprovar a mes­ ma extensão dos dois segmentos de reta, a verdade da nossa percepção será invariavelmente a mesma: a reta A é mais extensa do que a reta B. A insufici-

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ènei a mais comum dos cientistas (e dos marxistas ortodoxos, com iremos ver) é ater-se apenas ao aspecto objetivo, esquecendo o subjetivo. Mas no campo mesmo da ciência o “objetivismo absoluto” vem sendo posto em discussão. Em 1927, o físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976) anunciou, por exemplo, o chamado “princípio da indeterminação”, segundo o qual a obser­ vação de um fenômeno como que altera esse fenômeno - e o cientista acaba descrevendo, no fundo, a relação que existe entre ele próprio e sua experiên­ cia observada.

Consciência e conhecimento a) Consciência irreflexiva e Consciência reflexiva Consciência é uma coisa, conhecimento outra. Tratam-se de fenômenos distintos, embora filósofos e psicólogos suponham que a consciência seja ex­ clusivamente cognoscente e que, portanto, ambas as noções se confundam. Sartre mostra que o próprio conhecimento, para ser possível, requer um fun­ damento não-cognoscente, que denomina de cogito pré-reflexivo. A consciência cognoscente apresenta-se de dois modos: como consciência irreflexiva, voltada para as coisas (sejam reais ou imaginárias), e como consciência reflexiva, aquela que toma consciência de si, isto é, faz da consci­ ência irreflexiva o seu objeto de conhecimento. A consciência irreflexiva é a mais comum, pois dela fazemos uso quase permanentemente, pensando nisso ou naquilo. Já a consciência reflexiva só aparece quando fazemos uma refle­ xão sobre os nossos próprios pensamentos. Assim, pode-se dizer que a cons­ ciência irreflexiva não precisa da consciência reflexiva para existir: quase sempre pensamos nas coisas sem refletir sobre esse pensamento mesmo. Ao contrário, a consciência reflexiva exige sempre a consciência irreflexiva, visto que é exatamente a esta que se dirige. Husserl denominou as duas modalida-* * Tais comentários genéricos sobre aspectos polêmicos do conhecimento estão longe de saturar o assunto e têm mesmo papel sem destaque na ontologia de Sartre. São registrados aqui mais para interessar o leitor em algumas questões levantadas pela fenomenologia. Cogito (em latim: “penso”): expressão abreviada para designar o cogito, ergo sum (“penso, logo existo”) de Descartes. De modo amplo, indica o pensamento individual. Usado geralmente como cogito cartesiano. Cartesiano é adjetivo referente a Descartes pelo seu nome latinizado: Cartesius.

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des cognoscentes da consciência de posicionais, porque todo conhecimento põe em posição, coloca seu objeto conhecido como existente no mundo. Sartre faz notar que esses dois modos de ser da consciência cognoscente são e não são a mesma coisa. Por um lado, a consciência irreflexiva e a cons­ ciência reflexiva têm de estar unidas intimamente, fundidas em um Ser único, pois nada separa uma da outra, e, a rigor, não há propriamente relação de co­ nhecimento entre elas (na reflexão, não “conhecemos” genuinamente a nossa consciência irreflexiva, porque esta é, ela mesma, Para-Si, e não um objeto exterior à consciência). Mas, por outro lado, elas devem achar-se desligadas de alguma forma, para que, na reflexão, uma possa desempenhar a função de conhecedora e a outra o papel de conhecida. Seja como for, de qualquer modo, no cotidiano, geralmente agimos ir­ reflexivamente, e só às vez,es usamos a reflexão. Isso desmente a afirmação do filósofo francês Alain (1868-1951), um dos inspiradores de Sartre, segun­ do a qual “saber é saber que se sabe”. Ou, em outras palavras: para Alain, todo conhecimento que temos das coisas implica necessariamente uma cons­ ciência reflexiva (cognoscente) desse conhecimento. Ora, nem sempre isso acontece; só eventualmente paramos para refletir. b) O Cogito Pré-Reflexivo No entanto, caímos em um impasse. E verdade que nossos pensamentos irreflexivos nem sempre (ou quase nunca) são acompanhados de um conhe­ cimento reflexivo sobre eles. Mas também é verdade que, para ser consciente de um objeto, preciso ser consciente de ser consciente dele - senão eu seria consciente do objeto sem ser consciente disso, daí resultando uma absurda “consciência que se ignora”. A consciência reflexiva nem sempre está presen­ te, mas é necessário que haja essa “consciência de ser consciência”. Como entendê-la? A experiência cotidiana nos prova que tal “consciência de ser consciên­ cia” não é do tipo reflexivo, já que a reflexão só ocòrre eventualmente. Além do que, se a “consciência de ser consciência” fosse cognoscente, tal como a reflexão comum, cairiamos em uma espécie de remissão ao infinito: a consci­ ência conhecedora (do objeto) seria conhecida por outra consciência conhe­ cedora (de si). Mas então, se todo conhecedor tiver de ser conhecido, esse co­ Em Husserl e Sartre, “posicionai” é sinônimo de “tético”: do grego thetikós, que significa “próprio para colocar ou estabelecer”.

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nhecedor-conhecido terá, por sua vez, de ser também conhecido, e assim in­ definidamente. Para evitarmos essa corrente ininterrupta, temos de eliminar a idéia de que toda consciência é do tipo cognoscente. É preciso haver um ter­ ceiro modo de ser da consciência que não seja posicionai: a ele Sartre dá o nome de cogito pré-reflexivo. O cogito pré-reflexivo é a consciência que tenho de ser consciência, mas de uma maneira não-posicional. Ou seja, aqui o cogito não visa a consciência como objeto de conhecimento, não coloca a consciência como existente no mundo, não posiciona o “penso” como objeto. Se o fizesse, não saberiamos que aquilo de que somos conscientes é a nossa própria consciência - ou seja, algo mais intimamente relacionado conosco do que os demais objetos que co­ nhecemos. Através de exemplos simples podemos descobrir o cogito pré-reflexivo e constatar que ele, além de preceder, é que possibilita mesmo qualquer ato de conhecimento, seja na consciência irreflexiva, seja na reflexão. Eis um caso de consciência irreflexiva: penso em meu amigo Pedro (não importa se em uma percepção ou em imagem). Só posso ser consciente de Pedro de modo cognoscente, neste momento, porque, quando não penso nele, sou consciente de Pedro de modo não-cognoscente. É claro que, quando não penso em Pedro, ele não se tornou um estranho para mim ou ficou “retido” em uma região inconsciente (pois isso o deixaria inacessível à consciência). Se isso sucedesse, Pedro já não me seria um rosto familiar toda vez que a ele dirigisse meu pensamento. Quando não penso em Pedro, devo necessariamen­ te ser consciente dele - mas à maneira não-posicional, em forma de cogito pré-reflexivo, sem estabelecer com ele qualquer relação de conhecimento. Tomemos agora um exemplo de reflexão. Primeiro, minha consciência é irreflexiva: leio um livro e posiciono (conheço) as palavras e o sentido das frases, mas sem posicionar (conhecer) o ato de 1er propriamente dito. De súbi­ to, alguém me pergunta o que estou fazendo. Interrompo a leitura, faço uma reflexão e respondo que estava lendo. Pois bem: para que eu possa refletir so­ bre o que passou (ou seja, sobre o ato de estar lendo sem ter então conheci­ mento disso), minha consciência anterior não poderia ser unicamente irrefle­ xiva. Necessariamente eu já era consciente do ato de 1er, de maneira nãoSartre define o cogito pré-reflexivo - essa auto-consciência originária e não-posicional de meu próprio pensar - pela expressão “consciência (de) si”, com o de entre parênteses para indicar não haver relação de conhecimento entre o cogito e a consciência, mas sim relação imediata de si a si.

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posicionai, porque, caso contrário, eu não teria consciência de ter lido, nem então, nem agora, nem nunca. Ocorre que, ao refletir sobre o que estava fa­ zendo, tomo consciência de algo do qual eu já estava consciente antes, embo­ ra não-cognoscentemente. Para haver reflexão, é preciso que exista já antes, de modo especial, a própria reflexão, em forma não-posicional, precedendo e informando a reflexão propriamente dita. Portanto, o cogito pré-reflexivo conserva-se como fundo necessário de qualquer pensamento, irreflexivo ou reflexivo. Ou seja: toda consciência cog­ noscente é simultaneamente consciência não-cognoscente (de) si. Só posso conhecer um objeto se sou consciente desse objeto de maneira não-posicional. Só posso conhecer meus pensamentos se sou consciente deles de maneira não-posicional. Conclui-se então que ser consciente de algo é ser consciente de ser consciente de algo. O cogito pré-reflexivo pensa no próprio pensar. Até mesmo a diferença entre percepção e imaginação baseia-se no cogi­ to pré-reflexivo. A consciência da imagem de Pedro, representado por seu re­ trato, não nos induz a crer que estamos diante do próprio Pedro em pessoa. Não tomamos a imagem por percepção, e isso porque o conhecimento da imagem como imagem exige a consciência não-cognoscente dessa imagem como “não sendo uma percepção”. Sou capaz de reconhecer uma imagem en­ quanto tal porque tenho, concomitantemente, a consciência não posicionai de que “nada percebo”.

O Eu No capítulo anterior dissemos que Sartre excluiu a hipótese de um “Eu” interior a unificar a consciência. Repetindo Kant, Husserl disse que o “Eu” deve acompanhar todos os nossos pensamentos. Mas isso não acontece: na maioria das vezes, não há “Eu”. No plano irreflexivo, quando penso nas coi­ sas (se fico absorto em uma leitura, corro para pegar uma condução, fico dis­ traído de alguma forma), não me dou cónta de que sou eu que leio, eu que corro, etc. A consciência irreflexiva é sempre impessoal, está mergulhada no mundo dos objetos. Assim, o “penso” não é driginário e irredutível: há algo atrás, que faz reflexão sobre o pensa­ mento. A rigor, o “penso, logo existo” de Descartes não corresponde à verdade: o certo seria “sei que penso, logo existo”.

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Já a consciência reflexiva pode fazer surgir o “Eu”, mas ainda assim nem sempre. Sem dúvida, o “Eu” só pode aparecer na reflexão: ao pensar so­ bre um pensamento que tive - a visão de uma paisagem, por exemplo - lem­ bro que fui eu quem viu aquela paisagem. Mesmo aí, esse “Eu” transparece de maneira fugidiça, como se o espreitássemos pelo rabo dos olhos. Na verdade, com grande frequência, nem sequer na reflexão existe o “Eu”: penso na pai­ sagem que vi ontem e só me recordo da própria paisagem, sem posicionar o fato de que fui eu que a vi. A reflexão também pode ser impessoal. O cogito não é obrigatoriamente um “eu penso”, mas simplesmente um “penso”. Ao aparecer na reflexão, o “Eu” traz todas as características de mero objeto do nosso conhecimento, algo que está como que “fora de nós”, entre as coisas do mundo exterior. Sabemos que, para Sartre, a consciência não tem conteúdo, nem mesmo um “Eu” interior - pois a densidade desse Eu constitu­ iría um obstáculo à plena espontaneidade do Para-Si. Nessa concepção, não se pode dizer que a consciência provenha de um “Eu” interior: ao contrário, ela visa um “Eu”, quando reflete sobre esse “Eu”; dirige-se a algo que não a habi­ ta, embora lhe pareça tão íntimo. Assim, não se deve dizer “minha consciên­ cia”, mas “consciência de mim” - ou melhor: em vez de dizer “eu sou consci­ ente disso”, devo dizer “há consciência disso”. Não há um Eu-consciente, mas só consciência do Eu.* Sendo o Para-Si um “apelo ao Ser”, a consciência encontra-se sempre “lá fora”, nos objetos (reais ou imaginários) visados por ela. “Somos” as coi­ sas que percebemos ou imaginamos, estamos no lugar para onde a nossa consciência se dirige. O “Eu”, como todas as manifestações da psiquê, nos dá uma ilusão de interioridade, mas também vive “lá fora”, como esta árvore ou esta cadeira. “O Eu é um objeto que temos diante de nós”. E certo que a consciência - embora nem sempre sendo pessoal - é algo individual, no sentido de ser indivisível. Quando vejo uma árvore, há uma individualidade, uma unidade na consciência: sou eu quem vê a árvore, e não outrem. Resta saber o que unifica a consciência, se não há um “Eu” interior para fazê-lo. A resposta pode ser: a consciência é um “partir em direção ao _______________________________________________

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Note-se que, já em 1934, ao escrever A Transcendência do Ego, Sartre se antecipava aos mo­ dernos estruturalistas e psicanalistas da escola de Michel Foucault e Jacques Lacan ao “descentrar” o sujeito, isto é, ao contestar a idéia de um “Eu” central a partir do quai desenvolver-se-ia o pensamento Para Lacan, o Eu é uma ficção, uma criatura imaginária dotada de certa conduta e gerada pelo mundo social e familiar, com a qual nos identificamos como se nos olhás­ semos em um espelho.

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Ser”, logo, como foi dito, a consciência é aquilo que visa; então, a unidade dos atos da consciência também só pode nos chegar de fora. Quando vejo uma árvore, ocorre uma série de “consciências de árvore”. Essa série é unifi­ cada, não pela consciência ela mesma, sob o domínio de um “Eu”, mas sim pela própria árvore. O processo de unificação da consciência é dado pelo ob­ jeto exterior posicionado, real ou imaginário. Vemos, pois, que sempre o EmSi exerce o seu predomínio sobre o Para-Si: este não possui Ser próprio, pois tudo nele, até a sua unidade, é dado pelo Em-Si para o qual tende.

A terceira via do conhecimento a) Idealismo e Materialismo Antes de Husserl e Sartre, as teorias do conhecimento se dividiam em duas correntes dominantes: o idealismo, segundo o qual todas as coisaS são produtos das nossas idéias, não passam do conhecimento que temos delas (daí a fórmula de Berkeley: “Existir é ser percebido”); e o materialismo, que, ao contrário, reduz toda a realidade à matéria, fazendo da consciência um Ser do tipo positivo, no qual se “imprimem” as percepções, os conceitos e os juízos provenientes do mundo. Para fugir às duas correntes a fenomenologia de Husserl ao mesmo tempo deu razão e negou a ambas. O idealismo, de certo modo, está certo, porque, de fato, o mundo só pode ser conhecido como “algo pensado por nos­ sa consciência”. Mas não há como suprimir o mundo enquanto realidade de fato, uma vez que, se o mundo nada é, como podemos conhecer algo que não existe? O materialismo também tem razão: a consciência só pode conhecer alguma coisa se esta coisa existe por si, se há efetivamente um mundo. Mas não se pode suprimir a consciência: se a consciência nada é, como o mundo pode ser conhecido por algo que não existe? Husserl concebeu mundo e consciência como realidades distintas, pre­ servou a existência real de cada uma delas. No entanto, para entender o feA concepção de um Ego a determinar a consciência também decorre, como veremos, do projelo humano de fazer-se Em-Si-Para-Si, possuir um ser plenamente constituído, dotado de unidade interior dada e acabada do nascimento à morte - um modo de escapar à angústia de ser livre. Como veremos neste capítulo, por não distinguir imagens de percepções, Husserl, segundo Sartre, acabou deixando duvidosa a existência do mundo, incidindo no idealismo que queria combalcr.

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nômeno do conhecimento, não podemos separá-las, como faz o senso co­ mum. Há, isso sim, uma correlação de base. Em primeiro lugar, a consciência é sempre “consciência do mundo” (Noese, palavra grega que designa “pensamento”). Embora o princípio de Husserl seja o mesmo de Descartes “penso, logo existo” - não devemos considerar o cogito uma entidade aparta­ da do mundo: o “eu penso” está sempre relacionado a um “objeto pensado”. Em segundo lugar, o mundo - entenda-se, no fenômeno do conhecimento - é sempre “mundo para a consciência”, “objeto percebido” (Noema, palavra grega que designa “percepção”). A consciência é a condição mesmo para que haja a “aparição” do mundo, já que lhe cabe dotar o mundo de sentido (espaço, tempo, etc). O mundo não está “contido” na consciência, da mesma forma que a consciência não está “contida” no mundo. Depois de suprimir o que restou de idealismo na teoria de Husserl, como foi visto, Sartre conservou a realidade do mundo e da consciência, acrescen­ tando: o Em-Si não depende do Para-Si para existir, apenas para ser “descoberto”, enquanto o Para-Si, sendo “apelo ao Ser”, precisa do Em-Si ao qual tende e diante do qual se acha “em presença”, em um recuo nadificador. Tratam-se de duas categorias diferentes da existência: o Ser e o Nada. Assim, a partir de Husserl, Sartre-instituiu uma “terceira via” do conhecimento, nem idealista, nem materialista, mas síntese e contestação de ambas. A relação de conhecimento “sujeito-objeto” é, para Sartre, insuficiente para provarmos a existência real tanto do mundo quanto da consciência. Os filósofos, até então, limitavam-se a isso: os idealistas reduziam o mundo ao conhecimento que temos dele, privilegiando assim a “consciênciaconhecedora” como única realidade; os materialistas esgotavam a consciência em não ser mais do que simples parte material do resto do mundo a refletir o meio material circundante, privilegiando assim o “mundo-conhecido” como única realidade. Ora, se ficarmos apenas com a relação de conhecimento, nada consegui­ remos provar. Ou melhor: vamos eternamente vagar entre as hipóteses idealisA idéia ingênua do conhecimento é a seguinte: quando percebemos, por exemplo, uma maciei­ ra, temos duas coisas isoladas - a macieira em si, lá no jardim, e a representação dela na nossa mente. Daí o impasse: de que modo duas macieiras podem constituir uma só? *>l< „ E concepção geral do positivismo (nas ciências e no senso comum do homem da rua) a certe­ za de que a consciência está “no meio do mundo” como coisa entre coisas, situada em um lugar do espaço, debaixo do céu, entre objetos e outras consciências. Não se vê que essa “localização em um espaço” é dada pela própria consciência, como vamos demonstrar.

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(as c as teorías materialistas. Na verdade, diz Sartre, a relação de conhecimen­ to não prova, nem poderia provar, a existência real seja do mundo, seja da consciência. Pelo contrário: é a existência real mesma do mundo e da consci­ ência que torna possível a própria relação de conhecimento. Pois esta, afinal, 6 uma relação entre dois existentes: o sujeito e o objeto. b) A Transfenomenalidade do Sujeito e do Objeto Para que haja relação de conhecimento, consciência e mundo devem es­ capar, por princípio, a essa mesma relação, devem, de algum modo, existir independentemente dessa relação. A consciência não pode ser apenas um “fenômeno conhecedor”, nem o mundo apenas um “fenômeno conhecido”. Há, pois, um “Ser transfenomenal” da consciência e um “Ser transfenomenal” do mundo. Transfenomenal no sentido de que tal Ser está além do fenômeno que se manifesta (seja a consciência-conhecedora ou o mundo-conhecido). Foi, aliás, recordemos, o exposto anteriormente na questão do Ser, quando dissemos que o fenômeno que nos aparece revela todo o Ser, mas que o Ser dessa aparição é algo que transcende a simples aparição. O Ser é transfeno­ menal. Assim, a consciência escapa à relação de conhecimento: embora o ParaSi necessite do Em-Si e a ele se dirija intencionalmente para nadificá-lo, isso não significa que toda consciência seja do tipo cognoscente. O cogito préreflexivo, que fundamenta todos os atos da consciência, é não-posicional, não-cognoscente. Esse cogito seria o “Ser transfenomenal” da consciência, visto que sublinha todo pensamento irreflexivo ou reflexivo mas não aparece como fenômeno. No cogito pré-reflexivo a consciência existe sem ser “conhecedora”, de si ou do mundo. O mundo, do mesmo modo, também não se esgota em sua aparição a nós, como pensam os idealistas. Existe independente do conhecimento que dele temos. No máximo podemos dizer que o mundo apresenta-se como obje­ tivo e subjetivo: objetivo porque nos aparece como já existindo antes que nos­ sa consciência o revele; subjetivo porque, ao tornar-se conhecido, é traspassado por nossa subjetividade. Mas a consciência nada cria no mundo: este já nos +

Já foi bastante rebatida a teoria materialista que faz da consciência pura matéria a refletir o mundo com um espelho: a matéria do tipo positivo, incapaz de relações e negações, não permite o “recuo nadificador”, a “distância ao Ser” que caracteriza o Para-Si. Novos argumentos serão acrescentados nos capítulos seguintes quanto à não-materialidade positiva do Para-Si.

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surge plenamente constituído. Nada que percebemos vem de nós, a consciên­ cia nada acrescenta à realidade concreta do mundo. Por exemplo: espacialidade, movimento e quantidade existem no mundo real, ainda que, por se ignorarem como tais, não passem de relações de exterioridade indiferente entre os objetos. A consciência limita-se a torná-los co­ nhecidos: sendo uma relação de si a si e capaz de negações, o Para-Si pode fazer do espaço uma “extensão”, pode captar o movimento como tal, relacio­ nando o objeto móvel consigo mesmo (nadificando o que ele era no ponto A de sua trajetória para apreendê-lo no ponto B), ou ainda assimilar a quantida­ de como uma relação entre parcelas que se ignoram (a soma 3 dos objetos x, y e z é revelada pela consciência, pois tal soma não pertence a nenhum desses objetos nem é uma propriedade reconhecida pelo conjunto deles). Mesmo a qualidade de um objeto (sua cor, sua consistência, seu sabor) não é criada pela consciência, mas constitui um aspecto do próprio Ser do objeto. Seria absurdo crer que a consciência pudesse criar e aniquilar indefini­ damente o mundo, fazendo e desfazendo os objetos à medida que fosse pen­ sando e deixando de pensar neles. Isso porque toda criação, uma vez criada, adquire seu Ser próprio e se desliga do criador: este livro que escrevo, uma vez concluído, passa a' ter existência independente de mim. Se admitirmos, por outro lado, que o mundo criado por mim é um irreal (segundo a teoria idealista), então a consciência nada cria - e, portanto, só é capaz de perceber o Nada, jamais o Ser. Neste ponto, uma dúvida pode ter sido suscitada no estudo sobre o “recuo nadificador” da consciência (Capítulo 1). Acabamos de sublinhar que um juízo afirmativo da nossa consciência (por exemplo: “isto é um livro”) não é capaz de criar as coisas positivas, ou o Ser. No referido Capítulo 1, fi­ cou dito que o Nada existe no Para-Si como seu componente originário, aloja­ se no seu núcleo. Pois bem: está certo que os juízos positivos não podem criar o Ser, mas quem dirá que os juízos negativos não são os criadores do Nada? Longe de ser o fundamento do Para-Si, o Nada não será uma ilusão formada por nossa consciência, pelo fato de sermos aptos para emitir juízos negativos sobre as coisas? A qualidade não é tampouco um adorno que reveste o objeto, o que seria uma essência por trás da aparência. A qualidade é o próprio objeto. Sartre diz que, “se enfio o dedo em uma lata dc marmelada, o frio pegajoso da marmelada é a revelação a meus dedos do seu gosto açucarado”. Como será exposto a seguir, isso tornaria idênticas uma percepção e uma imaginação.

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Sartre responde com um argumento: o juízo negativo é ele mesmo um modo dc ser da consciência - e, nessas condições, “consciência de alguma coisa que existe”, ou seja, o Nada. Esse Nada é que origina e fundamenta as nossas negações, não o contrário. Surge concomitantemente com a aparição do Para-Si e é mesmo o que possibilita essa aparição, pelo exposto no Capítu­ lo 1.*

Percepção e imaginação Em sua crítica ao idealismo. Sartre esvazia a consciência de todo conte­ údo (“ilusão de imanência”) e mostra que o Para-Si volta-se para fora de si, o que supõe já um mundo exterior que a consciência atinge pela intencionalidade. Mas é diferenciando a percepção da imaginação, duas atividades da cons­ ciência, que Sartre deduz que as coisas conhecidas existem independentemen­ te da nossa consciência delas. Sua tese - como veremos - é a de que somente a existência real do mundo nos possibilita diferenciar percepções e imagens. Não experimentamos qualquer dificuldade, não nos equivocamos nem preci­ samos de árduos raciocínios ao discriminar imagens de percepções. “É im­ possível para mim formar uma imagem sem saber que estou formando uma imagem”. Isso acontece por causa de duas condições fundamentais, ambas comprobatorias da realidade do mundo:

1. O objeto percebido e o objeto imaginado devem possuir dois tipos d existência diferentes, uma real, a outra irreal. Em essência, a imagem de Pedro e o próprio Pedro são idênticos (tratase da mesma pessoa). Mas não há igualdade de existência. Descartes, Spinoza, Leibniz (1646-1716), Hume (1711-1776) e Bergson (18591941) acreditavam que a imagem é uma “coisa” impressa na massa psí­ quica, como um simulacro do objeto real, tendo, como este, urna exis­ tencia concreta, sem cessar de existir ao deixar de ser visada pela consDeve-se acrescentar, a propósito, que o Nada surge a partir do Ser, mas que, tal qual o Ser, o Nada não poderia criar-se a si mesmo. Sendo um não-Ser, não feria de onde tirar a força positiva necessària para nadificar-se. Para aniquilar-se há que, antes de tudo, ser: para que minha mão seja “mão que se destroçou”, é necessário que seja antes “mão que se destroça”. O Nada, como o Ser, ó contingente e sem impulso original.

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ciência. A imagem estaria assim depositada no fundo da mente, em uma certa ordem, vindo à consciência por uma excitação corporal, conforme o trajeto das células nervosas. Porém, como vimos, Sartre, a partir de Husserl, mostrou que a imagem é unicamente uma maneira de a consciência se manifestar, um tipo de consciência: a consciência de nada. A imagem é um irreal. Assim, só. pode ser Nada de alguma coisa real e existir sobre um fundo de mundo real. Para que eu possa saber que experimento uma imagem de Pedro, preciso perceber um mundo real em que Pedro não está presente. Se identificamos uma imagem como tal, é em nome de uma percepção que se reconhece como visando um existente concreto. Foi o que examina­ mos ao tratar do cogito pré-reflexivo. Em uma palavra: para que seja possível a imaginação, é necessário que exista um mundo real, não “produzido” pela consciência. 2. perceptiva.

A consciência imaginante deve diferir radicalmente da consciência

Podemos atestar ainda a realidade do mundo verificando que o objeto desse mundo real é captado na percepção de maneira completamente di­ ferente daquela com que a consciência apreende uma imagem irreal. Ou seja: a consciência perceptiva difere da consciência imaginante precisa­ mente porque cada uma delas visa um objeto diferente: na imagem, visa um puro Nada; na percepção, visa um Ser concreto. Na percepção, a consciência não é capaz de agir sobre o seu objeto para fazê-lo existir, mas submete-se a ele, permanecendo passivamente à es­ pera de que o objeto lhe apareça, em uma total imprevisibilidade. Na imaginação, pelo contrário, a consciência é ativa, vive em constante processo de criação de si por si mesma, anima-se ao seu livre arbítrio para intencionar o seu objeto, e a aparição desse objeto sempre depende da nossa livre escolha. Eis aqui uma concepção fisiológica da consciência: ela não explica de que modo as imagens aparecem conforme a nossa livre escolha. Segundo as limitações impostas por essa teoria, a consciência deveria recebê-las de acordo com um determinismo orgânico. Há casos de imagens involuntárias, que nos surgem inesperadamente, mas isso não significa que as imagens me foram impostas. Na verdade, eu mesmo as criei, pois minha vontade nada lem a ver com isso: tanto faz que eu intencione voluntariamente uma imagem ou que ela me apareça de imprevisto, em qualquer hipótese ela é fruto da minha consciência.

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Na percepção, a consciência retira o seu saber do objeto, o qual é sem­ pre capaz de revelar o que ignoramos, ou ainda de nos enganar e nos surpreender, porque não fomos nós que o criamos. Por isso, nosso saber vai se formando lentamente: só podemos perceber o objeto de um certo ângulo, e precisamos multiplicar os nossos pontos-de-vista para tirar uma síntese. Por exemplo: só posso ver de cada vez três faces de um objeto que me parece um cubo e, para me certificar, tenho de olhar as outras três faces, buscando novo ângulo de visão, porque é bem possível que eu me engane e as outras três faces não existam. Na imaginação, po­ rém, a consciência nada pode captar que já não saiba antecipadamente do que se trata, pois no objeto só encontrará o que nele colocou. A ima­ gem nada nos revela, não contém qualquer novidade: já sabemos tudo a seu respeito no ato mesmo com que a constituímos. Assim, nosso saber se forma instantaneamente. No momento em que imagino um cubo, já sei tudo sobre ele, tenho absoluta certeza de que se trata de um cubo, sem precisar sequer imaginá-lo de outros pontos-de-vista. A imagem é uma evidência que não comporta dúvidas, porque sou eu que a constituo com o meu saber. A rigor, não devemos dizer que “observamos” uma imagem: mais correto seria chamar o fenômeno de “quase-observação”. Por fim, na percepção a consciência capta o seu objeto com uma deter­ minação de espaço e tempo. O objeto é contemplado no espaço exterior: quer dizer, há uma distância com relação à localização desse objeto. Ocorre inclusive uma orientação do corpo: adaptação do campo visual, convergência do olhar, etc. Já na imaginação a consciência capta o seu objeto sem determinação de espaço e tempo. Nada contemplamos, pois nenhuma distância nos separa do objeto: não posso imaginar Pedro “a três metros de distância”, posto que o espaço habitado pela imagem não contém qualquer afastamento com relação a mim. Também não há qual­ quer orientação do corpo. E o tempo da imagem é elástico: às vezes in­ determinado (se imagino um centauro, que nunca existiu, em tempo al­ gum, ou o sorriso de Pedro, não o sorriso que mostrou ontem, mas seu “sorriso de sempre”), outras vezes se expande ou se contrai (posso so­ nhar durante duas horas um episódio que durou na vida real cinco minu­ tos, ou vice-versa). Por não determinar tais diferenças entre imagens e percepções, Husserl segundo Sartre - impossibilitou qualquer distinção entre elas e, pior, incidiu 66

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no idealismo que pretendia rebater. Para Husserl, a consciência manifesta-se sempre da mesma maneira: a realidade psíquica (hylé, palavra grega: “matéria”) dirige sobre o seu objeto uma intenção que o anima com um si­ gnificado ou sentido, sem o qual esse objeto seria somente um conteúdo físico indiferenciado. Tocado pela intenção da consciência, o objeto assume o senti­ do que recebe, e é assim que nos aparece. Como já vimos, Noese é o nome que Husserl dá ao nosso pensamento do objeto, ao ato de intencionar o objeto, e Noema é o objeto pensado, já portador de um sentido ao ser absorvido pela consciência, no movimento inverso. Sendo assim, todo e qualquer objeto co­ nhecido (imagens ou objetos reais) nos aparece com o caráter de Noema, de “matéria de pensamentos”, filtrado pela subjetividade. Logo, diz Sartre,, criar uma imagem psiquicamente seria o mesmo que experimentar uma percepção. A imagem seria uma percepção com outro nome. Na hipótese de Husserl, a consciência, não importa se imaginando ou percebendo, sempre se apropria de seu objeto da mesma maneira: colocando nele (Noese) o que nele achará (Noema). Então, como iremos saber se o mun­ do não passa de algo imaginário, não se reduz ao nosso conhecimento? Até mesmo a intencionalidade de Husserl (“Toda consciência é consciência de alguma coisa”) perde sentido, porque, conforme sua teoria, a consciência acha-se sempre frente ao Noema, ao mero reflexo de si mesma. O objeto per­ cebido converte-se na própria percepção do objeto, e a intencionalidade, lon­ ge de ser um ultrapassamento para o mundo exterior, é um ultrapassamento para o mundo interior, um partir em direção a si mesma. Tanto a imagem quanto a percepção irão refletir apenas aquilo que já possuo de antemão na minha mente. Recaímos no mais puro idealismo. O que Husserl não levou em conta é que, para diferirmos imagens das percepções, o objeto imaginado e o objeto percebido devem existir de modos diferentes, e a própria realidade psíquica (hylé) precisa variar nos dois casos. Sartre, corrigindo Husserl, concluiu que o mundo real escapa ao conteúdo noemático que possamos lhe atribuir e tem existência autônoma, ainda que só nos apareça através das intenções da nossa subjetividade.

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Capítulo 3 A TEMPORALIDAD E

Consciência e tempo Nos capítulos anteriores mostramos que a realidade humana é um Nada sobre um fundo de Ser (sendo assim uma falta em si mesma) e também que tanto a consciência quanto o mundo têm existência acima de dúvida. Podemos agora aprofundar o estudo da consciência como Para-Si, e isso exige uma descrição da temporalidade, pois, como veremos, tempo e consci­ ência se igualam intimamente. Foi Heidegger, em Ser e Tempo, quem primei­ ro afirmou repousar na temporalidade o sentido mesmo da realidade humana: sem ela jamais decifraríamos os mistérios ontológicos do fenômeno humano. a) Teorias clássicas Antes de demonstrar a sua tese, Heidegger descartou-se de antiga ilusão filosofica, rebatendo o que chamou de “conceito vulgar de tempo”. Todos os pensadores - de Aristóteles a Hegel e Bergson - encararam o tempo como “tempo mundano”, fenômeno do mundo exterior, algo que a consciência co­ nhece e que pertence à realidade objetiva. Para Heidegger, no entanto, o tem­ po é uma categoria própria da realidade humana. Sartre conclui que o tempo é uma dimensão do Para-Si e não se enquadra no mundo do Em-Si: a noção mesma de tempo impõe propriedades (relação interna, falta, negatividade) que não cabem no Ser positivo, fechado em si e totalizado. 68

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No conceito vulgar de tempo, os pensadores se repartiam em duas cor­ rentes. Alguns, como Descartes, consideravam o tempo uma soma de instan­ tes sucessivos, permanentes e isolados uns dos outros. A segunda corrente (à qual se filia Leibniz) negava os instantes: o tempo seria um fluir continuado, uma unidade, uma absoluta mudança. Mas ambas as hipóteses apresentam impasses. Uma soma de instantes não poderia redundar em uma duração tem­ poral, posto que o instante (unidade infinitesimal do tempo) não tem extensão e a soma de zeros tem, por resultado, zero. Na segunda hipótese, uma mudan­ ça que fosse absolutamente mudança já não seria mudança alguma, porque tudo o que muda, muda em relação a alguma coisa que permanece. Por exemplo: o rosto de Pedro mudou nos últimos 30 anos - em relação ao rosto que ele tinha há 30 anos. b) Exigências da Temporalidade Logo - afirma Sartre - a temporalidade necessita tanto da permanência dos instantes (pois eles devem permanecer o que são, distintos uns dos outros e perfeitamente individualizados) quanto da mudança de um fluir continuado (pois os instantes devem estar ligados em uma síntese comum, em uma de­ pendência mútua). Tal dualidade permanência-mudança encerra necessaria­ mente características que só o Para-Si tem condições de ostentar, a saber: 1. Relação. Deve haver no tempo uma relação de tal ordem que permita a um instante A, embora conservando a sua permanência, ser anterior ao instante B, e permita a um instante B, também se conservando perma­ nente, ser posterior ao instante A. Além disso, deve haver uma relação do passado e do futuro com o presente, pois passado e futuro só existem com relação a algo presente. Por exemplo: o amor dedicado à música por Pedro, que morreu há anos, não é passado em si mesmo. Era presen­ te para Pedro. Só é passado com relação ao presente atual, para alguém que se recorda de Pedro. 2. Falta. Para ser anterior a B, o instante A deve possuir em si mesmo uma falta: a falta de B como aquele que é o seu futuro. Também, para ser posterior a A, o instante B deve conter A como o passado que lhe falta. Os instantes não estão assim isolados, mas interligados por faltas. O passado contém um “futuro já advindo” (o tempo que lhe sucedeu e dele me distancia). O futuro contém um “passado a advir” (o tempo que o antecede e dele me afasta).

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3. Negatividade. O tempo baseia-se no Nada. O passado não é mais! O futuro ainda não e. E o presente não é mais do que um inexistente limite entre passado e futuro. Então, como poderiamos assimilar o tempo ob­ jetivamente, se passado, presente e futuro não estão em parte alguma? O Para-Si atende a essas propriedades e ao dualismo permanênciamudança. Presente, passado e futuro (que Heidegger denomina “os três êxta­ ses da temporalidade”) só podem ser entendidos enquanto modos de existir do Para-Si, porquanto devem possuir o duplo caráter de permanência e mudança, de ser e não-ser, que o Em-Si desconhece. Sc não, vejamos: Por um lado, sendo uma facticidade, com o Em-Si originário cm seu miolo, o Para-Si manifesta-se como “aquele que permanece”. Ou seja: nele, cada instante temporal conserva-se isolado e distinto, permanecendo sempre o que é. Para dar sinais de sua existência e não sucumbir no completo nada, os instantes passado e futuro precisam ser no presente. Isso implica uma perma­ nência: para que passado e futuro possam anunciar aquilo que passou c aquilo que virá, é necessário que sejam sustentados por um tipo de Ser (o Para-Si) capaz de existir no presente contendo em seu bojo esse passado e esse futuro, sem no entanto suprimir-lhes o caráter de “algo que não é mais” e “algo que ainda não é”. Por outro lado, sendo uma nadificação, o Para-Si mostra-se também como “aquele que muda”: nadifica no presente o que foi no passado e nadificará no futuro o que é no presente. Para se diferenciarem do presente, os ins­ tantes passado e futuro precisam não ser, o que implica uma mudança: o pas­ sado não é mais, o futuro ainda não é. Já se vê que o tempo é a própria maneira de ser do Para-Si, pelo fato mesmo de o Para-Si nadificar-se, constituir-se em permanente arrancamento de si e perpétuo inacabamento (ou totalização-em-curso). Ao contrário do pressuposto vulgar, a consciência não existe no tempo: o tempo é que existe na consciência. A definição que Sartre dá ao Para-Si (“O Ser que não é o que é e é o que não é”) exprime mesmo o composto de três êxtases (passado, pre­ sente, futuro) que estruturam sua temporalidade. Se não, vejamos. c)Passado, Presente, Futuro O passado é o modo de o Para-Si existir como não sendo (mais) o que é. Nadificando o que foi, o Para-Si constitui o passado como não-ser. Mas, mantendo-se sempre o mesmo (pois não se tornou outro no presente), o Para-

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Si conserva o passado como seu integrante (ele é esse passado que foi). Por­ tanto, no passado, pode-se dizer que o Para-Si não é mais o Ser que, parado­ xalmente, continua sendo. O Ser passado que fui em 1970 não é mais o que sou hoje, no presente, mas, por outro lado, eu continuo sendo esse passado (não posso extingui-lo ou modificá-lo). O futuro, pelo contrário, é o modo de o Para-Si existir como sendo o que (ainda) não é. Nadificando o que é no presente, o Para-Si se arremessa ao porvir e constitui o futuro como não-ser. Mas, contendo no presente esse futu­ ro que será (caso contrário já não haveria sequer futuro possível), o Para-Si faz do futuro, dc certo modo, algo que já é. O Ser futuro que pretendo realizar ainda não é o que sou hoje, no presente, mas, concomitantemente, posso dizer que já sou esse futuro, pois ele está presente como mola propulsora do projeto que vivo agora. Quanto ao presente, nada mais representa do que uma ligação entre pas­ sado e futuro: por isso, no presente, o Para-Si existe como não sendo (mais) o que é e sendo o que (ainda) não é. Daí porque não existe um “presente puro”. Costuma-se dizer: “Vivo para o presente”. Mas em todo e qualquer ato do pensamento entram as três dimensões do tempo. Se vejo uma pessoa conheci­ da, ela só é conhecida porque no passado fui testemunha desse rosto que hoje me é familiar. Se observo uma roda descrevendo um movimento circular, só capto o movimento porque no passado imediato testemunhei as sucessivas etapas desse movimento (claro que, se me ativesse ao instante presente, per­ cebería apenas a roda em repouso, como em uma fotografia). Se me lanço em uma ação, só posso fazê-lo porque no passado imediato testemunhei o meu intento de realizá-la, e porque o futuro me guia como esse projeto a realizar. Se, durante um jogo de tênis, procuro rebater a bola arremessada pelo adver­ sário, só posso agir assim porque o passado imediato me indicou a direção em que ela me foi jogada, e porque o gesto futuro derrebater a bola - como vere­ mos melhor adiante - determina cada uma das posições que adoto como mei­ os de me aproximar dela. Eis aqui o Para-Si enquanto evanescente “Ser das lonjuras”; algo sem a constituição plena do Ser Em-Si: onde quer que o procuremos concretamente não o encontramos. Se busco o Para-Si no passado, ei-lo adiante de si, no pre­ sente, não sendo mais o que era. Se o busco no presente, ei-lo à distância dc si, não sendo mais o que era e sendo o que ainda não é. Se o procuro no futu­ ro, ei-lo atrás de si, no presente, sendo o que ainda não é. O conceito de projeto será melhor esclarecido no decorrer deste capítulo.

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d) A Concepção Positivista A consciência não pode ser entendida de outra forma, sob pena de dei­ xarmos sem solução o problema do tempo. Cientistas e psicólogos têm difi­ culdades de explicar a cadeia temporal que interliga os pensamentos porque, para eles, não só o tempo, mas até a consciência é um Em-Si, uma coleção de fatos psíquicos inertes. Cada instante psíquico apresenta-se como coisa aca­ bada, com um caráter de passado, de Em-Si que já foi. Um amor, por exem­ plo, é encarado como emoção dada, com a sua história passada - e mesmo o luturo desse amor já surge como futuro-passado, integrando o fato psíquico enquanto seu constituinte já totalmente realizado: minha fé na perenidade de um amor é um falso futuro, pois eu o vejo incorporado à realidade passada desse amor. Algumas interpretações fisiológicas da consciência chegam mesmo a tratar o passado como “uma série de impressões presentes nas célu­ las cerebrais” - mas isso não explica de que modo o passado nos surge en­ quanto aquilo que “não é mais” e se distingue assim do que seriam as tais “impressões” do presente. De outra parte, certas concepções científicas (aceitas inclusive pelos marxistas ortodoxos) colocam o tempo como “propriedade da matéria”. Situ­ ado o tempo no mundo exterior, a consciência seria, ela mesma, intemporal. Ora, em tal hipótese, não poderiamos testemunhar a “passagem do tempo”: atrelados ao instante presente, seríamos incapazes de retroceder ao que passou ou avançar ao que ainda virá, de maneira a operar a necessária conexão entre os instantes passado e futuro e saber que “um ocorreu antes do outro”. Isso equivale à situação de um cachorro que olha para um relógio a registrar os minutos, sem apreender o Sentido do que está vendo. Na verdade, se o tempo fosse uma corrente exterior a nos arrastar cm seu fluxo, não teríamos pontos dc referência para sentir a mudança dos instantes, já que tudo estaria avan­ çando junto conosco, sem que nada ficasse para trás: nesse caso, conheceria­ mos apenas o instante, nunca o deslocamento do tempo. Segundo Merleau-Ponty, costuma-se supor que o tempo é um movimen­ to dc “acontecimentos sucessivos”, tal como “algo que passa”, a exemplo do curso das águas de um rio que nasceram ontem das geleiras das montanhas, passam hoje à nossa frente e irão desembocar no mar amanhã. Mas tal con­ cepção pressupõe a presença sub-reptícia de um observador situado em pon­ tos sucessivos, de onde veria desfilarem os acontecimentos e faria então uma ligação entre as suas visões sucessivas (“Vi a geleira derretendo, vejo as águas

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passando, verei o mar”). Isso porque “não há acontecimentos sem alguém para quem eles ocorram”. Ou seja, o fenômeno do tempo requer uma teste­ munha de seu curso: “O tempo supõe uma visão do tempo”. Na verdade, em si mesmo, “o mundo objetivo é incapaz de exprimir o tempo”, pois comporta apenas uma série de “agoras” que não se ligam entre si nem se sucedem. O Ser objetivo é pleno: nele não cabería o não-ser do ontem e do amanhã. O que há no mundo real é somente um único ser que não muda (salvo para um observador). O que há é o “presente”, o “agora”. E na consci­ ência humana que o tempo encontra a possibilidade de não-ser que ele exige. Portanto, o tempo não constitui um processo do mundo objetivo que a consci­ ência se limitaria a registrar, não é um objeto do nosso saber, mas sim uma dimensão do nosso ser, parte da estrutura da subjetividade. Nasce da minha relação com as coisas: a passagem de um “presente” a outro eu não assisto como espectador, mas eu a efetuo. “Nós é que fazemos surgir o tempo. Eu mesmo sou o tempo.” É certo que experimentamos sempre essa impressão errônea de que o tempo existe objetivamente no mundo. Mas isso decorre da ligação íntima entre a consciência e o mundo, que provoca certa confusão. Sabemos que a consciência é sempre “consciência de algo”. Assim, no passado, foi consci­ ência de um “mundo passado” a ela correlato. O mesmo se aplica ao presente e ao futuro. Pois bem: como em geral só agimos irreflexivamente, voltados para o mundo objetivo, é natural que apreendamos as dimensões do tempo como se de fato fizessem parte da realidade exterior, e não enquanto êxtases da subjetividade. O mundo aparece como o campo por intermédio do qual entramos em contato com as dimensões temporais, daí a ilusão muito comum sobre a “objetividade do tempo.”

A dinâmica temporal do Para-Si a) Fugindo do Em-Si rumo ao Futuro Entendida a consciência como temporalidade, podemos acompanhar a aventura temporal da realidade humana, que se processa indefinidamente, do nascimento à morte. O passado. Com a sua absoluta determinação, seu caráter de permanên­ cia, acabamento e constância, o passado assemelha-se ao Em-Si: está aí, não

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pode ser eliminado, é uma inelutável contingência, algo de irreparável qüe tem de ser, dado e acabado. O passado é um Em-Si que carrego atrás de mjm, exatamente como o rabo de peixe para o corpo da sereia. Representa urna ameaça: é como se alguma coisa me perseguisse, prometendo coagular-me em objeto, transformar-me em um Ser já feito, fazer-me para sempre “o passado que fui e não posso deixar de ser”. Colocar-me no presente é um modo de es­ capar ao passado. Ao fazê-lo, deixo um rastro atrás de mim: a petrificação de meu Ser, a redução de minha transcendência à pura facticidade, a conversão total do Para-Si em Em-Si. É continuamente que a consciência nadifica o seu Ser passado. Tudo ocorre como se fugíssemos do passado para não sermos coisificados e para conservarmos a nossa consciência como tal. No entanto, não temos nenhuma chance de nos livrarmos dessa facticidade irremovível que vem em nosso en­ calço, porque existe sempre a necessidade de fato de nos relacionarmos com o que ficou para trás. Já ao nascer o Para-Si tem um passado, ou seja, a relação com um Em-Si, no caso o puro Em-Si original: o feto. Não se pode dizer que antes do nascimento “não havia passado para o Para-Si”, pois isso seria ad­ mitir a existência de um “tempo universal” em que o Para-Si viesse a surgir. Ora, é precisamente a partir do surgimento do Para-Si no mundo que aparece o tempo (incluindo o passado). É por isso que, quando nos aprofundamos mais e mais na memória, não esbarramos com um limite rígido que seria a “falta de passado”, mas sofremos um progressivo obscurecimento, pois até o mais remoto Para-Si já possui um passado. A existência do Para-Si exige sempre o passado, na medida em que o Para-Si é um Nada sobre um fundo de Ser, o que impõe a presença do Em-Si em seu núcleo, sendo o passado uma expressão desse Em-Si. O presente. O presente onde nos colocamos logo se petrifica em passado e temos a imediata necessidade de um novo presente. Assim, o presente é perpétua fuga, e só nos aparece quando já está transcendido e se desvaneceu em passado (uma simples concentração mental basta para provar que é, com efeito, impossível pensar o presente: como diz Hegel, quando digo “eu sou”, já não o sou). O novo presente de que necessitamos (onde iremos nos res­ guardar da aproximação do passado) nós o colhemos do futuro, espécie de Sartre compara a fuga perpétua do Para-Si perante o Em-Si que o congela “à mobilidade de um rio rápido que, no inverno, consegue escapar, graças à rapidez de seu curso, ao congelamen­ to: se parar, será apanhado”.

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eterno fornecedor do presente, essa salvaguarda temporal que nos impede de sermos devorados pelo Em-Si. O futuro. Ao contrário do passado (aquilo que sou sem nenhuma pos­ sibilidade de não o ser), o futuro é uma indeterminação, um possível. O futuro é aquilo que posso ser, mas não obrigatoriamente aquilo que serei, visto que há sempre a possibilidade contrária de não o ser. Dá-se uma curiosa contradi­ ção no que tange ao futuro: embora, como vimos, ele confira um sentido ao presente (por exemplo, o ato futuro de rebater a bola de tênis determina as minhas sucessivas posições no lance do jogo), de modo algum pode decidir absolutamente o que serei, porque é em si mesmo uma rede infinita de pos­ sibilidades (posso tropeçar e não conseguir rebater a bola) e também porque a minha consciência futura decidirá amanhã o que irei ser e não é determinada por minha consciência presente (meu propósito de abandonar o cigarro não impede que, no futuro, eu venha a mudar de idéia).* Sendo aquilo que ainda não sou, o futuro representa bem aquilo que me falta. Um Ser cujo complemento se acha sempre mais além, o Para-Si, totalização-em-curso, tem no futuro o seu Ser faltante, a sua totalidade. O futuro anuncia ao Para-Si o preenchimento dessa falta, mostra-lhe a totalidade sem­ pre inconclusa de seu Ser, indica-lhe aquilo que pode ser e ainda não é. O fu­ turo surge como a “aparição-à-distância” de seu Ser inteiramente acabado. Encaro o futuro como se nele eu próprio me aguardasse, sólido e completo, absoluta totalidade. b) "Uma Paixão Inútil” Portanto, o Para-Si se arremessa ao futuro para fundir-se consigo mes­ mo, no propósito de realizar o seu “Si mesmo”, a síntese ideal de seu Ser pre­ sente (ao qual falta alguma coisa) com o seu Ser futuro (aquele que lhe falta). Mas o Para-Si quer adquirir essa opacidade do Em-Si sem perder a transcen­ dência da consciência: não almeja ser apenas uma “coisa que se ignora”, um simples Em-Si (pois isso seria inclusive uma contradição, já que foge justa­ mente do Em-Si representado pelo passado). O que deseja o Para-Si é ser uma “coisa consciente”, todo inteiro coisa, todo inteiro consciência - um Em-SiPara-Si semelhante a Deus (um tipo de Ser consciente e, além disso, maciço e permanente como um rochedo). Para Sartre, a angústia humana provém do fato de a consciência ser o seu próprio futuro i\ um neira de não sê-lo.

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Mas essa que é a principal meta do Para-Si (como veremos a seguir) constitui a sua ruína, porquanto já sabemos que o Para-Si só poderia se totali­ zar caso deixasse de ser consciência, perdendo o Nada que o distancia do Ser e convertendo-se em puro Em-Si. Assim, diz Sartre, “o homem se perde tentando se encontrar, e só pode se encontrar perdendo-se”. Vivendo como “possibilidade de Ser”, como totalização-em-curso, como algo que está prestes a ser e nunca o é inteiramente, o Para-Si se descobre sempre para além, e vê a realização de seu Ser como to­ talidade em constante adiamento, na impraticável coincidência de si com o possível que ele é e que se encontra no futuro, indefinidamente para lá de seu alcance. Somos eternamente aquele que se anuncia a si mesmo aquilo que deve ser e ainda não é, um “ainda-não-que-serâ”. Logo, jamais podemos “alcançar o futuro”. Seria o mesmo que preen­ chermos a nossa falta. E assim o nosso impulso para o possível iguala-se a um impulso para o impossível: cada vez que supomos encontrar esse futuro que daria complemento ao nosso Ser, ao realizarmos um possível, uma totalidade, sofremos uma decepção, porque abre-se imediatamente uma nova falta. O futuro atingido cai no passado, continuamos sendo totalização-em-curso e surge um novo futuro no campo de possíveis do nosso horizonte. A concreti­ zação de um projeto abre uma nova falta e nos deparamos conosco mesmo “mais adiante”. Em outras palavras: a falta em nosso Ser sempre avança à medida em que a perseguimos para tentar suprimi-la. Tal como a miragem no deserto, o futuro se desfaz à nossa aproximação para ressurgir mais à frente. Por essa razão, Sartre - recorrendo a uma expressão bíblica - diz que o homem é “uma paixão inútil”. O Para-Si e o Em-Si se revelam em estado de desintegração com respeito a uma síntese ideal que seria Deus. Mas, buscando uma totalidade que não pode alcançar, o Para-Si não consegue realizar senão um Deus malogrado. A paixão do homem é o inverso da Paixão de Cristo: se Cristo despojou-se do poder divino para martirizar-se como homem, o ho­ mem, ao contrário, quer perder-se como homem para tornar-se Deus. Sua situação é idêntica à de um burro de carga que vai puxando uma carroça e procura abocanhar uma cenoura espetada na extremidade de uma vara fixada na própria carroça: por mais que avance, não varia a distância que o separa da cenoura. Assim somos nós: vamos correndo em direção a nós mesmos, o nos­ so Ser acabado que se encontra no futuro, o nosso “Si mesmo”, e somos Ver Capítulo 4, “A Liberdade”.

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aquele que não pode jamais alcançar-se. Essa é a significação ontologica pro­ funda da realidade humana: o anseio por um modo de ser infinitamente dese­ jável e perpetuamente inatingível, o Em-Si-Para-Si, eterno “irrealizável a rea^ lizar”. “O homem se sacrifica por algo que nem conceitualmente pode exis­ tir”, afirma Sartre. Não se trata, porém, de um ato voluntário que possamos evitar: essa busca por seu acabamento futuro é a própria condição humana, fundamenta o que somos. c) Perseguição e Morte Para evitar uma interpretação psicológica, devemos deixar claro também que o Para-Si não existe primeiro, para só depois fugir do passado em busca do futuro: essa dinâmica temporal não se agrega posteriormente ao Para-Si, mas constitui o seu próprio modo se Ser. Portanto, o que define a realidade humana é o “partir rumo ao futuro”, fugindo do passado pela temporalização. O Para-Si se temporaliza como “fuga para...”: transcende a sua facticidade (o passado) na direção de um futuro sempre perseguido e inatingível (o Em-SiPara-Si). Assim, o Para-Si é ao mesmo tempo fuga (do passado) e persegui­ ção (do futuro). E um perseguidor-perseguido. A morte encerra esse movimento temporal e registra a derrota final do Para-Si. Na morte, o Em-Si que o persegue finalmente o alcança, em um tri­ unfo definitivo. Com a morte, o Em-Si retoma o puro Ser positivo que possu­ ía antes do nascimento do Para-Si. Mortos, somos puro Em-Si para os outros, porque nos tornamos plenamente passado. Nossa existência faz-se coisa dada e acabada para os outros, que se transformam em nossos guardiões e juizes. Como disse André Malraux, “a morte transforma a vida em destino”. Ou seja, reduz o que é projeto em aberto em uma coisa “determinada-de-uma-vezpara-sempre”, ou seja, destino já cumprido.

O circuito da ipseidade Pelo exposto, infere-se que, dos três êxtases temporais, o futuro é o que se reveste de maior importância para a realidade humana. Heidegger foi o* *

Essa base ontologica da realidade humana, que Sartre chama de “projeto fundamental”, será examinada mais detidamente no capítulo seguinte.

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primeiro pensador a destacar o papel do futuro, observando que o homem se supera sem cessar em direção ao porvir e que estamos sempre adiante de nós mesmos e do mundo, vivendo em função dos possíveis futuros. Só podemos assimilar esse valor do futuro examinando o conceito de “projeto”, o que será feito depois. Por ora, basta-nos Verificar de que modo o futuro influi em nossa visão do mundo, no conhecimento que temos das coisas. Sartre diz que o mundo conhecido por nós é atravessado por um movimento temporal de ida e volta, do presente ao futuro e vice-versa, que denomina “Circuito da ipseidade” (do latim ipse: “si próprio”, “a pessoa”). O mundo que conhecemos no seu estado presente é sempre captado a partir de nossa ida ao futuro. Perceber uma janela como “fechada” só é possível porque eu projeto a possibilidade futura de abri-la: sem isso, a janela não estará “aberta” nem “fechada”; a ri­ gor, será apenas “uma janela”. Já foi dito que nossa consciência futura visa um mundo futuro a ela cor­ relato e que, por agirmos o mais das vezes irreflexivamente, é esse mundo futuro (e não a consciência que dele temos) que serve de objeto para o nosso conhecimento. Daí porque consideramos quase sempre o futuro como um componente do mundo objetivo. Vimos também que o futuro nos anuncia um Em-Si-Para-Si inatingível, um estado de Ser em que nossa consciência teda a solidez da coisa sem se perder como Para-Si. Devemos acrescentar: esse mundo correlato a esse Em-Si-Para-Si que desejamos ser é igualmente um mundo irreal, perfeito, definitivo, absoluto e que jamais poderá existir. Quando conhecemos o mundo, processamos o “Circuito da ipseidade”: vamos ao mundo futuro (correlato à nossa consciência futura) e retornamos ao presente, trazendo conosco aquele “mundo futuro perfeito e acabado” para determinar o nosso conhecimento do mundo presente. O mundo é, assim, o campo através do qual nos transcendemos rumo a nós mesmos, e nele se ins­ creve o futuro que somos. Para entender melhor esse movimento, vamos es­ tudar algumas categorias do conhecimento: 1. O sentido das coisas. Aquele automóvel que se aproxima, esse copo d’água sobre a mesa, aquela ladeira no meu caminho, a estrada à minha frente - tudo isso é absolutamente neutro: são coisas que se auto-ignoram e não têm significação em si mesmas. No entanto, podemos ver o automóvel como “perigo-a-evitar”, o copo d’água como “copo-a-ser-bebido”, a ladeira como “obstáculo-a-transpor”, a estrada como “distância-a-percorrer”. Isso só ocorre porque me relaciono com o mundo futuro, onde minha consciência futura vê

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o “automóvel que me atropela”, o “copo d’água já bebido”, a “ladeira que es­ calei”, a “estrada que percorri”. Faço o circuito de volta ao presente e confiro um sentido aos objetos conhecidos. 2. As potencialidades. O Em-Si, ao qual nada falta, é a cada momento tudo o que pode ser. Sua relação com um possível só pode ser operada pelo ( Para-Si, totalização-em-curso que tem a falta e o possível como seus elemen­ tos constituintes. Por exemplo: a macieira sem frutas, a meia-lua no céu, a nuvem escura no horizonte, urna curva aberta desenhada no papel. São coisas sem potencia em si mesmas. Porém, perfazendo o “Circuito da ipseidade”, superamos os objetos percebidos, ultrapassamos o que é dado e vamos ao fu­ turo para presenciar o que esse objetos não são, recuando então para determi­ nar o que eles são: vemos maçãs na macieira, uma lua cheia no céu, a tempes­ tade que se avizinha, um círculo fechado no papel. No retrocesso, constituí­ mos os dados como deficientes: a macieira nos aparece como “algo-compotência-de-dar-maçãs”, a meia-lua como “lua crescente”, a nuvem escura (que em si mesma é apenas certa quantidade de vapor d’água suspensa na at­ mosfera) como “chuva-iminente”, a curva aberta no papel como “círculofechado-em-que-falta-um-segmento”. Quando percebo a lua crescente, estou adiante dela, junto à lua-cheia. Quando vejo um casulo, estou no futuro, junto à flor. O que chamamos de potencialidades do mundo é um modo dc captar­ mos a nossa falta através do mundo objetivo. 3. Aí tarefas e os utensílios. Da mesma forma, ao avançarmos tempo­ ralmente até um mundo plenamente acabado, retrocedendo em seguida ao que nos é dado, captamos as coisas como “inacabadas”. A falta em nosso Ser faz com que o mundo nos apareça infestado por “faltas-a-serem-suprimidas”, “totalidades-a-serem-executadas”. Assim, as coisas nos surgem como utensí­ lios, como objetos a serem utilizados, instrumentos para tarefas a serem cum­ pridas na supressão das faltas. Por isso nos entregamos ao trabalho e à ação. E, sendo a “falta no mundo” um reflexo da falta no meu Ser, a preferência que dou à realização dessa ou daquela tarefa, ao cumprimento dessa ou daVeremos depois que o homem é um Ser significante, ou seja, criador de signos. O signo é um objeto presente que serve para designar outro objeto não presente. Somente o homem, com sua atividade projetiva, pode criar e compreender o que seja um signo: por exemplo, uma seta na pa­ rede do corredor do metrô, indicando a saída, ou uma faixa de segurança para pedestres.

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qucla totalidade, reflete os meus possíveis, a imagem daquilo que sou - p'odcndo-se afirmar, assim, que o homem se define por seus atos e escolhas. 4. Aí abstrações e as essências. Indo ao futuro, relacionamo-nos com um mundo perfeito e, porque inexistente, inteiramente abstrato. É por essa ra­ zão que somos capazes de atribuir qualidades e essências abstratas às coisas concretas. Por exemplo: a cor verde do limão. Eu me relaciono com ela atra­ vés da minha consciência futura de um verde absolutamente verde, a essência do verde, o verde puro - um irreal que não existe concretamente em parte al­ guma. O verde do limão, por isso mesmo, jamais é suficientemente verde: o concreto do presente caminha sempre rumo ao abstrato, que se conserva além de seu alcance, no futuro. Ao oposto do que se costuma afirmar, não é a partir das coisas concretas que abstraímos-as qualidades: a própria abstração é o modo de ser originário da consciência para que ela possa sequer conhecer o concreto. Já havíamos observado isso quando abordamos a imaginação. E, se o mundo concreto existe antes das nossas abstrações, podemos também dizer que a existência das coisas precede a sua essência (que vem do futuro). 5. Os valores. Só podem ser explicados pelo “Circuito da ipseidade”. Os esforços dos moralistas em atribuir ao valor a solidez das coisas, estabelecen­ do sistemas de valores sociais, políticos, éticos e religiosos, constituem uma vã tentativa de situar os valores no mundo objetivo. Ora, coagulado em leis e preceitos estabelecidos, o valor passa a ser coisa dada e finita, contamina-se de contingência - e morre como valor. Morre, porque o valor não pode ter apenas a opacidade do Em-Si, mas precisa ser dotado de uma significação em si mesmo, deve existir com um sentido próprio que as coisas, como vimos, não têm. O valor é algo que só pertence ao homem. Por exemplo: o valor da lealdade, o Bem, o Mal, se tivessem a solidez de coisa, já não seriam valores. O valor é um Em-Si-Para-Si, um tipo de Ser irreal, suspenso na existência, que só pode ser concebido pelo homem com a sua consciência futura. Quando adotamos o valor da lealdade, queremos realizar esse valor totalmente, sermos leais à maneira de como somos altos ou magros, baixos ou gordos, mas sobre­ tudo queremos sê-lo sem deixar de saber que somos leais. Tanto quanto as potências, os valores entram no mundo pelo Para-Si. Pertencem ao “futuro perfeito e acabado” do qual temos consciência: um Na II Parte estudaremos o trabalho humano e a necessidade que o engendra enquanto manifeslações de um tipo de Ser, o Para-Si, que busca no futuro a totalidade que lhe falta.

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mundo de essências puras e absolutas, correlato à “coisa consciente”, ao EmSi-Para-Si que almejamos ser. Por exemplo: o ideal do Belo é um valor per­ tencente a esse mundo perfeito do futuro, e nossa intuição estética é a capta­ ção de um mundo que desejamos como correlato ao nosso Ser acabado. Jus­ tamente por essa razão é que reconhecemos o mundo presente como “imperfeito”, um mundo onde a Beleza está eternamente por se fazer. O valor reside no futuro, inatingível, sendo assim um limite em relação ao qual apre­ ciamos os nossóstetos. Se tento agir com bondade, nobreza ou lealdade, nunca o faço suficien­ temente, porque os valores-limite “bondade”, “nobreza” e “lealdade” ficam além do ponto onde posso chegar. E sempre possível ser mais leal, mais cora­ joso, mais franco. Não importa qual o valor que queremos realizar, o que con­ seguimos é invariavelmente menos do que o valor absoluto. O valor se fixa para além da nossa capacidade. É parte da estrutura do Para-Si, e nem teori­ camente pode existir no mundo do Em-Si. Portanto, não faz sentido o que os moralistas chamam de valores “universalmente válidos e logicamente neces­ sários”, parte integrante da natureza, como os “dez mandamentos divinos”.

O projeto a) A Consciência como Futuro Essas noções preliminares sobre a função do futuro nos levam agora ao conceito de projeto - ou seja, essa propriedade da realidade humana de ser continuamente lançada adiante de si e estar sempre no futuro. Diz Sartre que “o homem não pode compreender o menor dos seuS- gestos sem ultrapassar o presente puro e explicá-lo pelo futuro”. Realmente, é fácil notar que, em qualquer atividade, estamos sempre mais além de nós mesmos: ao escrever este livro, estou adiante da minha mão e das folhas em branco, estou já na conclusão da obra, ou seja, no fim do meu projeto, na totalidade a alcançar. Se pretendo rebater a bola arremessada pelo adversário em um jogo de tênis, ou quero pegar aquela caneta para escrever, ou vou atender um telefonema, estou já no futuro, antes de esboçar qualquer ação: estou já no ato de rebater a bola, estou já escrevendo ou falando ao telefone. Com relação à consciência, tudo o mais é passado. Estou para além de tudo o que faço, sempre futuro com relação a mim mesmo.

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A linguagem, por exemplo: ao falar ou escrever, estou já no fim da sen­ tença, no significado geral do que pretendo expressar. Ao caminhar em uma direção, sou orientado pelo fim futuro que projetei: levanto-me para apanhar um livro na estante situada a certa distância e, se não me desoriento no meio do caminho, é porque cada um. dos meus movimentos é determinado pelo fu­ turo projetado (o ato de 1er o livro). O corpo também é passado para a consci­ ência. Estou sempre à frente de meu corpo: em um jogo de tênis, a minha consciência está já no gesto futuro de rebater a bola, enquanto o corpo é pas­ sado com relação a esse gesto futuro, e tenho de conduzi-lo até lá. (O corpo é o transcendido pela minha consciência, o passado imediato que está sempre atrás de mim e que perpetuamente preciso superar, algo como um obstáculo que sou para mim mesmo). Sem o futuro não seriamos sequer capazes de dar um passo orientado, esboçar o mais leve gesto coordenado. Portanto, ao agir, disponho de meios com vistas a um fim não existente, realizo um projeto com vistas a um resultado final, uma totalidade, que só existe no futuro. Sou constantemente um poder ser, uma totalização-emcurso, urp partir no sentido do futuro, um salto adiante de mim e do mundo. A verdadeira estrutura de uma vida humana é o estado perpétuo de “Ser-paraalém-de-si-mesmo-em-direção-a". Dito de outro modo, sou um ultrapassar do presente: quando ajo, supero as condições atuais para alcançar uma condição futura. E isso só é possível porque o Para-Si é nadificação do Ser: nadificamos o que é (a realidade presente) para atingirmos o que não é (a realidade ausente que projetamos realizar). Fazer um ato é necessariamente negar algo que existe em função do que não existe: se tiro o paletó devido ao calor, nego o calor em função do menor-calor, que ainda não existe. b) O trabalho Como já sublinhamos, o Para-Si, por ser uma falta, é capaz de projetar, de totalizar-se, porque o projeto se propõe justamente a preencher uma falta, a realizar um possível que ainda não existe. O homem vive em uma “perpétua migração”: de uma falta a suprimir, de uma totalidade a executar, movimentase para outra falta a preencher, outra totalidade a executar. Daí porque “estar consciente”, em certo sentido, é “ter trabalhos a realizar”. O trabalho (qualquer ação prática, por mais simples que seja) é decorrente da falta do* *

Futuro, aqui, não significa obrigatoriamente um porvir distante: estamos à frente de nós e do mundo nem que seja pelo que chamamos “uma fração infinitesimal de segundo”.

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Para-Si - voltaremos a isso na II Parte - e não se trata de uma imposição ou um “castigo” divino, mas de uma exigência mesmo da estrutura do nosso Ser inacabado, da totalização-em-curso que somos. Projeto de um futuro em contínuo esboço, o Para-Si descobre no mundo “atos-por-fazer-e-ainda-não-realizados”, percebe a matéria como “algo-amodificar”, “falha-a-preencher”, “totalidade-a-efetivar”. Superando o que existe, o homem concebe o que não existe, um puro Nada, um futuro estado de coisas idealizado, constituído por objetos ainda não presentes no mundo, tarefas ainda não cumpridas, campos ainda não conquistados, totalidades ain­ da não totalizadas. Assim, o projeto, ou totalização-em-curso, constitui uma espécie de in­ termediário subjetivo entre duas situações objetivas, uma mediação subjetiva entre dois momentos da objetividade - a objetividade presente (material, real) e a objetividade futura (idealizada, irreal). Escrevendo este livro, meu projeto é superar o dado objetivo existente (o texto inacabado, as páginas por escre­ ver) para uma situação objetiva ainda inexistente (o livro concluído). O enge­ nheiro que constrói um edifício conforme um plano arquitetônico transpõe o dado (a área não edificada) para um irreal futuro (o prédio já construído). O. que conduz de uma objetividade a outra é essa mediação subjetiva, o projeto, sem a qual a ultrapassagem não teda lugar. Em todos os meus gestos, minha consciência projetiva serve de mediadora entre duas situações objetivas e é essa mediação subjetiva que me encaminha no sentido de vencer o dado pre­ sente e buscar a realização de um fim ou totalidade ainda por fazer. c) A Iluminação que vem do Futuro Mas o papel desempenhado pelo futuro não termina aí. Além de guiar as nossas ações, o fim futuro visado pelo projeto é que vem iluminar, em retro­ cesso, a situação presente, conferindo-lhe este ou aquele significado. O ho­ mem é um ser que coloca fins, e é à luz desses fins que compreende o mundo - ou seja, é o futuro que lhe determina o presente. Eis, por exemplo, uma rea­ lidade objetiva: a França ocupada pelos nazistas. Em si mesma, a situação é neutra ou indiferenciada. Os membros da resistência, porém, vivem o projeto Cumpre notar que a realidade material a superar é, de certo modo, portadora de um porvir, im­ põe já um determinado conteúdo de futuro visado: restringe certas possibilidades, favorece ou­ tras, fornece certos meios de ação que, de alguma forma, irão caracterizar o resultado final. Não se constrói um edifício em alto-mar.

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de ver a França livre. É à luz desse fim que a ocupação afigura-se para eles como “insuportável”, logo, motivo bastante para a resistência. Os colabora­ cionistas, ao contrário, projetam outro fim (a constância da ocupação) e por isso a realidade objetiva se lhes impõe como algo a ser conservado, suportável e mesmo favorável. Para que as coisas se me revelem desse ou daquele modo, é necessário que sejam iluminadas pelo fim futuro do meu projeto. Podemos nos adaptar a uma situação ou procurar suprimi-la, projetando-nos a metas que elegemos, mas em qualquer caso o futuro escolhido é que decide sobre o sentido dessa situação. O Para-Si descobre o estado de coisas onde vive como portador des­ se ou daquele significado porque põe os fins futuros com relação aos quais esse estado de coisas se revela “ameaçador”, “favorável”, “útil”, “adverso”, etc. Na verdade, nunca podemos encarar os existentes em bruto na sua neu­ tralidade objetiva, mas sempre já com a significação dada pelo fim que ele­ gemos - ou seja, através do “Circuito de ipseidade”. A realidade objetiva é neutra, surdo-muda. Não poderia, por si mesma, motivar uma ação humana. Sartre diz que “o mundo só dá conselhos quando interrogado” - ou seja, a partir do momento em que nosso projeto confere a esse mundo um sentido e passamos a encontrar no mundo motivos (conselhos) para agir desse ou daquele modo. Tomemos alguns exemplos. A dor física é um dado objetivo. Se, por­ ventura, sou torturado para confessar um segredo, não será a dor que me fará ceder ou resistir: se meu fim consiste em dar mais valor ao segredo do que ao sofrimento, irei julgar a dor tolerável e resistirei sem cessar; caso contrário, elejo-a insuportável e confesso o que me exigem. Se estou excursionando a pé e desisto de prosseguir a caminhada, não é a condição da minha musculatura que me faz interromper a marcha. Certo: o aclive da encosta que escalo e a noite mal dormida da véspera podem constituir minha fadiga - que é apenas uma dor física, um modo como existo nesse momento enquanto corpo. Mas o que determina a minha desistência é a maneira como eu padeço essa fadiga, de acordo com o fim que projetei: se não estou tão interessado em atingir o cume da encosta, desistirei ao menor sinal de esgotamento. Ceder à fadiga é superar pelo projeto o caminho que hei de andar e, fazendo o retorno pelo “Circuito da ipseidade”, constituir esse caminho como “difícil-demais-para-percorrer”. Convém observar também que, enquanto caminho, minha consciência cognoscente tem em mira apenas a estrada e o fim que persigo. De meu corpo fatigado só tenho consciência não-posicional. É preciso, pois, que eu faça uma reflexão para padecer a fadiga como “suportável” ou não.

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Se Pedro me provoca irritação, não é porque ele seja odioso em si mes­ mo, mas porque a minha consciência, à luz dos fins que persigo, torna-se rai­ vosa e faz Pedro odioso. Suponhamos que meu projeto é conservar a mulher amada e sou traído por Pedro: nesse caso, ele me será detestável; mas irei vêlo de modo diferente se pretendo, ao contrário, separar-me dessa mulher e a presença de outro homem facilita a minha decisão. Uma montanha à minha frente eu a verei como situação favorável se o meu fim é escalá-la para contemplar uma bela paisagem, ou será um obstácu­ lo se pretendo apenas atravessá-la para continuar viagem. Um impedimento físico pode ser um fardo insuportável (à luz do meu projeto de praticar esporte) ou uma condição útil (se meu fim é conseguir tempo e tranqüilidade para 1er). Esses exemplos banais nos levam a outros mais densos, como as preten­ sas “motivações subjetivas” estudadas pelos psicólogos: para estes, um com­ plexo de inferioridade é uma estrutura passada que me faz ser dessa ou daque­ la maneira. Ora, o complexo - como todo ato da consciência - é um projeto que elegi e deve ser considerado à luz do futuro. Meu projeto é que me fará sentir complexo de inferioridade, se, por exemplo, escolho ser jogador de basquete apesar da minha baixa estatura. O erro comum de psicólogos é dar o comando ao passado e ignorar o futuro, quando nenhuma ação é efeito de um estado psíquico anterior, mas deve ser entendida por um retorno do futuro ao presente (o “Circuito da ipseidade”). Se os “motivos psicológicos” deixam no psicólogo a ilusão de serem coisas inertes e acabadas, isso acontece porque, ao procurar o motivo de um ato, o psicólogo o encontra já como puro passa­ do, coisa dada e finita. Mas, na verdade, esse motivo passado só pode agir se for retomado pela consciência que temos dele, e é essa consciência projetiva que lhe dará forças ou não. Somente o meu projeto decidirá o sentido que tal estado psíquico passado tem agora para mim. Essa concepção da consciência como projeto (o “Circuito da ipseidade”) esclarece a definição de temporalidade dada por Heidegger em Ser e Tempo: “A temporalização não é uma sucessão. O futuro não é posterior ao passado e este não é anterior ao presente. A temporalização se temporaliza como futuroque-vai-ao-passado-vindo-do-presente”. O tema “motivação” será tratado com maior amplitude no capítulo seguinte, onde também são desenvolvidas teses sobre o projeto, fundamental na filosofia sartriana. No anexo final, “Sartre e o Estruturalismo”, novas noções irão enriquecer o conceito de projeto. 85

Capítulo 4 A LIBERDADE

Conceito de liberdade A liberdade desponta já na origem do Para-Si. Ao escapar ao Ser, recu­ ando diante dele, o Para-Si expressa essa liberdade, porque, não fosse livre, permanecería encarcerado no Ser. É a liberdade que lhe possibilita nadificar o Ser e temporalizar-se, fugindo do passado e lançando-se em projeto aos pos­ síveis futuros. A liberdade constitui, pois, a razão mesmo da existência do Para-Si, algo que se confunde com o próprio modo de existir da realidade humana. Não se trata de um privilégio eventual, de uma propriedade a con­ quistar. Nem se confunde com vontade, decisão consciente, deliberação raci­ onal. O problema consiste em definir precisamente as características dessa li­ berdade ontologica e nos desvencilharmos das interpretações equívocas a que se viu sujeita essa noção essencial do sistema filosófico de Sartre, todo colo­ cado “em defesa da insuperável singularidade da aventura humana”. Pois, para ele, se toda a natureza é regida pelo determinismo, ao homem, e só a este, cabe o reino da liberdade. a) Ato e Situação Não é, contudo, uma liberdade abstrata, espécie de “potência interior” repousando no homem, à exemplo do livre arbítrio cristão. Como tudo na existência, a liberdade deve manifestar-se concretamente, dar provas de si em ato. Ou seja: através da escolha de uma ação, da tomada de uma decisão. Ser 86

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livre é fazer escolhas concretas - e até mesmo a abstenção e a inatividade são modalidades de escolha. Não se compreendería uma liberdade sem escolhas: solicitada igualmente por todos os lados, a consciência desagregar-se-ia em um absurdo caos. A individualidade e a finitude de nosso ser também são de­ finidas pela realização de alguns possíveis com exclusão de outros: caso fôs­ semos dotados de infinidade temporal, poderiamos realizá-los todos, mas nes­ se caso já não seríamos livres (a liberdade é escolha irremediável de certos possíveis), pois não passaríamos de um desenrolar em série infinita de todos os possíveis e desapareceríamos como individualidade. A liberdade subenten­ de o fato de que todos os possíveis não serão realizados. Em termos ontológicos, significa que o Para-Si é livre por ser inacabado, “não ser o bastante”, por haver nele “insuficiência de ser”: caso fosse plenitude de ser, não haveria li­ berdade de escolha de seu modo de ser. A liberdade também não poderia ser pura abstração ou absoluta trans­ cendência, porque a consciência - recordemos - não vive apartada do mundo, mas inserida nele, comprometida pelo corpo no mundo do Em-Si (que se con­ serva como “fundo” do Para-Si), sujeita, pois, a necessidades concretas. Toda liberdade é liberdade situada na realidade objetiva, situada no câmpo da facticidade. Por essa razão, a livre decisão da minha consciência rção me faz alto, se sou baixo, nem me permite movimentar-me além dos limites da minha cela, se estou confinado à prisão, nem me transforma em capitalista, por passe de mágica, se pertenço à classe operária. b) A Resistência Necessária A situação e a ação mostram-se tão indispensáveis à liberdade quanto, no tocante à temporalidade, a permanência é necessária à mudança. Assim como a mudança temporal não pode ser absoluta, mas exige uma relação com algo que permanece, também a liberdade exige alguma coisa que a contrarie. Em outros termos: a liberdade precisa de um campo de resistência do mundo. Sem obstáculos não há liberdade. Para que haja liberdade, algo deve separar a concepção de um ato da realização concreta desse ato, apartando o projeto de seus fins. Só somos livres porque o fim a realizar se acha separado de nós pela existência real do mundo. Ao agirmos, nossa liberdade se faz precisa­ mente ao sofrer a adversidade do real e as pressões de força do mundo; faz-se Isso não exprime uma suposta “limitação” à liberdade. Veja adiante, neste capitulo.

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no esforço despendido para realizar no mundo o nosso projeto; faz-se quando nos engajamos em uma situação. Afinal, se nos bastasse conceber idealmente um fim para realizá-lo, já não haveria diferença entre realidade e imaginação. No sonho e no imaginá­ rio, a consciência não depara com obstáculos, resistências, e não há necessi­ dade de ação: a concepção de um possível acarreta a instantânea aparição des­ se possível (que deixa, portanto, de ser um “possível”). Assim, se imagino o edifício que estou projetando como arquiteto, eis de imediato a imagem completa e acabada da obra, o que não se passa na vida real. c) O Papel do Corpo O homem encontra-se entranhado no mundo do qual se distancia em consciência. Como dissemos, a realidade humana é ôntico-ontológica. O cor­ po que somos nos impõe a necessidade de agir entre os objetos, utiliza ins­ trumentos para certos fins e nos deixa à mercê dos coeficientes de adversida­ de ou de utilidade do mundo. Se pudéssemos conceber uma consciência sem corpo, nenhum projeto teria cabimento, porque já não haveria possíveis, mas realidades instantâneas, como no imaginário ou no sonho. Sendo a consciência também corpo, e não pura abstração, é a ação desse corpo que separa o esboço de um projeto da concretização desse projeto. Por exemplo, é a liberdade da minha consciência que me leva ao projeto de reba­ ter a bola lançada pelo adversário em uma partida de tênis, mas, como não estamos no reino do imaginário, esse fim idealizado não basta para que a bola seja rebatida: preciso chegar até a trajetória da bola, tenho de acionar o meu corpo, correr alguns metros, movimentar o braço e empunhar a raquete, etc. d) Idéias vulgares da liberdade O senso comum, ao contrário, supõe que só somos livres com relação a um estado de coisas que não nos constrange. Liberdade, nesse caso, seria a condição que usufruímos quando nada nos oprime ou impõe resistência aos nossos projetos. Mas isso é uma liberdade de sonho. Não pode haver liberdaSe o homem nao fosse livre, a idéia mesma de uma “opressão” perdería o sentido: uma pedra não oprime, não se oprime uma pedra. Daí o fatalismo e a imediatez de um pesadelo: quando sonho que um veículo se aproxima ameaçadoramente, não há expectativa de um desastre, pois só a imagem do atropelamento pro­ duz a imediata aparição do acidente e acordo em sobressalto. 88

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de real, já dissemos, salvo quando a consciência está comprometida cm um mundo a ela resistente: a situação é o obstáculo necessário que devo transpor para realizar os meus fins. Sem a situação, minha liberdade desvanecer-sc-ia. E, como a liberdade depende da resistência que se lhe opõe, podemos até di­ zer que essa liberdade se afirma mais claramente quando sujeita a maiores pressões. Segundo Sartre, “nós (os franceses) nunca fomos mais livres do que durante a ocupação alemã”. No entanto, repetimos, como não se trata de uma liberdade abstrata (porque não há projeto sem ato), a liberdade encerra sempre um mínimo de ação. Em uma sociedade de exploração, somos livres para tentar uma reação, e, justamente porque a resistência ao nosso projeto é muito forte, fica mais patente o fato de sermos livres, já que nenhuma pressão se mostra capaz de extinguir aquela tentativa de reação. Estamos longe do conceito cristão de “livre arbítrio”, segundo o qual o homem possui sempre o bem infinito de sentir-se livre interiormente, seja senhor, escravo, opressor ou oprimido. Isso conduz ao conformismo: não há mais razões para tentarmos mudar as condi­ ções da vida social, porque o homem, por mais explorado que seja, já possui integralmente a sua liberdade. O conceito sartriano de liberdade não afirma que um homem cativo é livre porque pode “pensar o que quiser”, mas sim que ele é livre para agir dessa ou daquela forma, seja para tentar um¿t fuga, seja para resignar-se ao cativeiro. “A vida de um escravo que se rebela e morre no curso da sublevação é uma vida livre”. Em outras palavras, a liberdade de es­ colha implica já um fazer. O êxito ou o fracasso de um projeto não importam para a nossa liberda­ de. O conceito vulgar de liberdade diz que ser livre é poder realizar um proje­ to, poder obter-se o que se quer. Liberdade, aqui, seria a faculdade de se con­ quistar o desejado, o dom de se obter os fins elegidos. Assim, recaímos de novo na confusão entre o real e o imaginário: somente no imaginário realiza­ mos tudo o que concebemos. Ora, no mundo real, o fato de não conseguirmos realizar um fim almejado não significa que não somos livres. A verdadeira li­ berdade não é. a liberdade de obtenção, mas a liberdade de eleição. Ser real­ mente livre não é obter-se necessariamente o que se quer, mas determinar-se a querer por si mesmo: a liberdade humana está na autonomia da escolha. Não consiste em poder fazer o que se quer, mas em querer fazer o que se pode. O conceito sartriano de liberdade está longe de se esgotar nessas linhas: será enriquecido, e melhor definido, no decorrer da presente exposição, com o acréscimo de noções até aqui não abordadas.

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A existência precede a essência Se a liberdade é o fundamento do Para-Si, isso quer dizer que nenhuma razão motivadora pode determinar o seu Ser. O Para-Si, ao nascer, não é de­ finido dc antemão por uma essência pré-existente. Segundo o pensamento re­ ligioso, tal essência seria prefixada por Deus, que a produziría conforme um conceito prévio, assim como um artesão produz uma cadeira, que já surge no mundo provida de uma finalidade predeterminada. Nesse caso, não haveria li­ berdade possível, porque o homem estaria de uma vez para sempre e a priori dotado de um sentido, antes mesmo1de viver a sua vida. Mas, por ser livre, o Para-Si, ao surgir, apenas existe, descobre-se no mundo, vazio, uma total indeterminação de si mesmo. No começo, não é nada - apenas uma “possibilidade de ser”. A partir dessa pura existência, o homem se faz a si mesmo e cria a sua essência. Isso explica o princípio sartriano de que “a existência precede a essência”. Cabe ao homem, pois, forjar a sua essência. De que modo? Não há valo­ res inscritos no mundo que possam lhe servir de base, nem sequer a mais ín­ fima essência originária em si mesmo que o ajude a determinar suas decisões. Sem ter em que se apoiar, nem fora nem dentro de si, o homem fica obrigado a suportar o peso da sua liberdade, solitário e sem ter em que se agarrar, sem nenhuma lei universal que o force a agir e pensar dessa ou daquela maneira. Nada pode “salvá-lo” de si próprio. Resta-lhe ser o único responsável por sua vida, definindo-a tal como a si próprio vier gradativamente a decidir se fazer, à exemplo de um jogador que inventa as regras de seu jogo. A realidade humana não tem “desculpas”: somos responsáveis pelo mundo, porque o elegemos. O homem é o único legislador de sua vida, e a única lei de sua existência diz apenas: “Escolhe-te a ti mesmo”. Ou então, como prefere Jules Lequier (1814-1862): “Fazer e, ao fazer, fazer-se”. A cada momento o homem deve escolher o seu Ser, lançando-se continuamente a seus possíveis e constituindo pouco a pouco a sua essência, através dessas es­ colhas, contando, para agir, somente com a voz da sua consciência. Já usado, mas em outro sentido, quando dissemos que as abstrações chegam ao homem do fu­ turo e são precedidas pela realidade concreta: ver “Circuito da Ipseidade”, no capítulo anterior.

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Assim, o homem, que de início nada é, irá definir-se pela sucessão de seus atos, pela série de opções que ele faz em face de cada situação concreta. Em ne­ nhum momento da vida de um homem se pode afirmar que ele é isso ou aquilo, de uma vez para sempre. Como o homem inventa perpetuamente o seu Ser, sem possuir “caráter” congênito ou uma “essência” imutável, sua definição jamais se completa em vida, e se conserva sempre em aberto até a sua morte.

Liberdade e condicionamento a) A Vontade É comum supor que às vezes somos responsáveis por nossos atos quan­ do manifestamos a força da nossa vontade. Em uma situação de perigo, esco­ lhemos agir com coragem. Se preferirmos Beethoven a Brahms, nossa vonta­ de parece soberana. Mas - ainda segundo essa teoria - quase sempre nos ilu­ dimos sobre nossa liberdade: seríamos, na verdade, condicionados, seja por fatores externos (nossa situação no mundo, as condições da vida material, o estado econômico ou político, etc.), seja por causas internas (forças incons­ cientes, instintos cegos, estigmas hereditários, necessidades biológicas, for­ mação educacional, etc.). A rigor, agiríamos como marionetes manobradas por cordéis invisíveis. Prova disso (alegam os adeptos dessa hipótese) seria, por exemplo, o fato de eventualmente nos sentirmos motivados por forças alheias à nossa vontade: diante de uma ameaça, fugimos amedrontados, como se impelidos por um instinto nato. Enfim, o que tais teorias admitem é que às vezes somos livres, outras não, e confunde-se aqui liberdade com vontade. Ora, a consciência, uma vez livre, tem de ser livre sem cessar, porque, se uma única vez, qualquer compul­ são motivasse a nossa consciência, não mais teríamos como recuperar a liber­ dade perdida: afinal, de onde iríamos retirar essa “liberdade adormecida” para deixarmos de ser um joguete e assumirmos o nosso poder de decisão? E, ain­ da que isso fosse cabível, já ao fazer despertar essa liberdade estaríamos forçosamente manifestando a priori uma decisão livre (negar o condicionamen­ to), o que é contraditório. Além disso, o ato voluntário não é a manifestação da nossa liberdade: é apenas um modo especial de ser da consciência, já sustentada, esta, por uma

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liberdade originária. Ou seja, a vontade exige uma liberdade mais profunda. Ao agirmos voluntariamente, fazendo valer as nossas decisões, apenas capta­ mos pela reflexão o projeto já estabelecido por nossa liberdade originária. Agimos assim para nos recuperarmos enquanto Ser que atua e decide, para nos apropriarmos dessa liberdade originária através de uma decisão reflexiva (posicionamos a própria consciência que somos enquanto liberdade). Daí a satisfação que acompanha o ato voluntário: “Fiz o que quis”. Mas o fim visa­ do já estava anteriormente posto: quando agimos por vontade, a decisão já estava tomada. b) A Emoção Igualmente falso é contrapor o ato voluntário (sinal de liberdade) ao ato emocional (em que somos aparentemente “dominados” por paixões). Quando nos emocionamos também agimos livremente, visando um fim colocado por nosso projeto. As paixões não nos são impostas: uma paixão é ela mesma um projeto, a consciência de algo, e propende a um fim determinado. Esse equí­ voco decorre de uma concepção errônea das emoções. Psicólogos em geral acreditam que o fato de uma emoção às vezes nos surgir como que por encanto resulta de uma causa oculta no inconsciente que nos toma de assalto. Mas o medo que me faz fugir ante o perigo não é um “estado que me domina”: tenho consciência do que me amedronta. Como toda emoção, o medo é “medo de alguma coisa”. Conserva-se na emoção o prin­ cípio da intencionalidade: quando agimos emocionalmente, nossa consciência se organiza livremente com vistas a um fim. O que sucede é que no mais das vezes não refletimos sobre a emoção e só fazemos uso da consciência irrefle­ xiva, voltada para o objeto da nossa emoção, mantendo no plano pré-reflexivo a consciência não-cognoscente da própria emoção. Podemos nos amedrontar sem refletir sobre o nosso medo. Daí a suposição de que “não sabemos” por­ que nos amedrontamos. Sartre diz que a consciência emocionada tende a um objeto, é uma pos­ tura assumida pela consciência livre. Nenhuma emoção nos é imposta. Por exemplo: obrigado a confessar um segredo, começo a chorar. Não choro por­ que não posso confessar, mas choro para não confessar. Em uma situação de perigo, posso desmaiar. Não desfaleço por causa da impossibilidade de en­ frentar o perigo, mas para não enfrentá-lo, para abolir o conhecimento desse perigo, para “apagar” a realidade. A emoção não é determinada por uma cau­ sa, mas representa uma intenção projetiva da consciência livre.

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Dito de outro modo: a emoção é uma “conduta de magia”. Frente a uma dificuldade, nossa consciência decide livremente investir-se dessa conduta mágica para transformar ficticiamente o mundo real, que escapa ao nosso co­ mando, e assim tentar viver esse real como se correspondesse aos nossos de­ sígnios. Pela emoção, fazendo-se alegre ou colérica, a consciência fantasia a realidade, escolhendo uma escapatória particular para iludir dificuldades, substituir uma conduta que não se quer manter, etc. c) Dois modos de ser livre Para Sartre, compete pois à consciência escolher a melhor maneira de viver a sua relação com o mundo: pela emoção, opta pelo aspecto mágico; pela razão e vontade, opta pelo aspecto real. A vontade é uma atitude realista: rechaçamos a magia e buscamos nossos fins com os instrumentos reais dis­ poníveis. Em uma situação posso me escolher medroso, em outra faço-me co­ rajoso - mas em qualquer caso investimos toda a nossa liberdade. Vontade e emoção são dois modos de manifestação da nossa liberdade, dois expedientes de que nos valemos para viver uma situação dada. Face a fins já postos pela liberdade originária, cabe-nos tomar uma atitude voluntária ou passional. Cla­ ro que não poderiamos ser livres ao agir voluntariamente e condicionados ao agir emocionalmente. De que modo a vontade poderia surgir nó meio das pai­ xões? De que modo a espontaneidade poderia atuar sobre um determinismo já constituído? O que doutrinas psicológicas admitem é a possibilidade de o determi­ nismo atuar sobre a espontaneidade livre da consciência. Ora, tudo que per­ tence ao mundo do Em-Si (no qual Sartre coloca a psique, como veremos adi­ ante) tem caráter de passado, inércia e petrificação. O Em-Si, já sabemos, é incapaz de estabelecer relações com qualquer coisa. Além disso, o Ser positi­ vo só pode determinar o Ser positivo e jamais o Nada: o que é não pode de­ terminar o que não é. Assim, o Em-Si (seja o mundo exterior, sejam os instin­ tos da psique) não teria como motivar uma ação humana, porque todo ato humano é um projeto que propende a um futuro que ainda não é. d) Os Motivos Sem dúvida, reconhece Sartre, o projeto humano é movido por uma in­ tenção, e essa intenção se baseia em motivações. Por exemplo: há um motivo real para a ação da resistência francesa durante a ocupação nazista. Sem a

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ocupação, não teria havido resistência. Como, porém, a ocupação (realidade do tipo Em-Si) apareceu com esse caráter de “motivo” para a resistência? A resposta nos foi dada quando estudamos o conceito de projeto, no capítulo anterior. Se não, vejamos: Toda estrutura do tipo Em-Si é uma massa amorfa, inominável e sem si­ gnificação em si mesma. A situação em que nos encontramos, a realidade objetiva, as escolhas que fizemos no passado, etc., são fatos irrefutáveis, mas, na sua neutralidade e inércia, não são capazes de motivar os nossos atos. Pelo projeto, o Para-Si vai ao futuro e esse fim visado retrocede para iluminar a situação presente. Logo, repetimos, é o Para-Si que atribui sentido às coisas ê_ delas faz um “motivo” para o seu ato. Logo, os “motivos” que pesam nas decisões humanas só têm forças por­ que elas lhe são dadas por essas mesmas decisões. A ocupação nazista só se tornou motivo para um francês aderir à resistência porque ele assim a elegeu, projetando como fim futuro desejado a França livre. Também como já vimos, sequer um fator subjetivo inerte poderia “nos motivar”. Os complexos são, eles mesmos, projetos. Só elejo meu corpo como “débil” se meu projeto é ser, digamos, pugilista. Não é porque sou feio que tenho complexo de ser ator, mas, pelo contrário, meu projeto de ser ator é que elege meu corpo como feio e, portanto, “motivo” bastante para que eu aja timidamente, com vergonha de minha aparência física, etc. O “motivo” só aparece a partir da liberdade hu­ mana. Entende-se então que nenhum “motivo” pode atuar sobre a escolha ori­ ginal que fazemos de nós mesmos. Nosso projeto aparece e muda a qualquer momento sem que possamos prever ou saber por que, já que os “motivos” só serão criados depois que o projeto já está feito. Digamos que sou um campo­ nês apolítico em plena França ocupada e, de súbito, projeto a França livre, mudando a escolha que fiz de mim mesmo e aderindo à resistência. Só depois de feita essa escolha é que a ocupação aparece com caráter de “motivo” para as minhas ações. Em suma, o “motivo” de uma ação surge somente com o aparecimento do fim futuro do nosso projeto. Sem esse projeto, nenhum estado de fato das coisas é suscetível de “provocar” uma ação humana. Os “motivos” não “causam” as ações humanas: são parte do ato mesmo, enquanto “sentido da situação” dada pelos fins visados, de acordo com o “Circuito da Ipseidade”. O tema “condicionamento” prossegue ao longo deste capítulo e estende-se à Parte II.

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A liberdade situada a) As Pseudo-Limitações Vimos que a liberdade depende da situação: somos livres porque existe um mundo resistente à liberdade, no qual estamos situados. O lugar que ocu­ pamos, o nosso corpo, o passado imutável, a existência dos outros, tudo isso define a nossa situação. Trata-se de pura facticidade que nos é imposta, na qual deparamos com obstáculos e resistências que não foram criadas por nós e não podemos evitar. Pois bem: sem atentar para o projeto (cujos fins futuros atribuem à situação, como vimos, um caráter de “motivo”), a quase totalidade das doutrinas filosóficas e psicológicas levanta objeções à liberdade humana, supondo que a facticidade do mundo constrange essa liberdade. Examinemos, porém, caso a caso, os diferentes aspectos da situação, à luz do projeto. 1. O sítio que ocupamos no mundo. Já ao nascer estamos obrigatoria­ mente situados em um lugar qualquer. Facticidade inegável: se estou a vinte quilômetros de um vilarejo, não posso estar mais perto dele só porque minha consciência assim o decidiu. Mas, ao contrário do que parece, meu sítio não limita a minha liberdade. Para começar, o “sítio” só existe por causa mesmo da liberdade do Para-Si. O lugar geométrico que ocupo nada significa em si mesmo. O sítio, para ser vivido como tal, exige o Para-Si: é o “lugar que ocu­ po como centro de uma percepção” (percebo-me sentado junto à escrivaninha, a certa distância da estante, da janela e da porta). Heidegger diz inclusive que o espaço não teria sentido sem a nossa percepção: a realidade humana é que “abre um espaço” no mundo. E, se isso acontece, é porque o Para-Si reúne as categorias do Ser e do Nada. Uma “distância” se estabelece pela relação entre o que eu sou e o que eu não sou. Digamos que me encontro junto à escrivaninha, “a certa distân­ cia” da estante. Para que tal distância possa existir, é necessário: (a) que eu não seja eu - quer dizer, que eu nadifique o que sou, escape de mim e vá ao objeto percebido, esteja lá, junto à estante: (b) que eu seja eu - quer dizer, que Assim, não faz sentido a tão comum impressão de pequenez diante da “grandeza do universo”, já que tal “grandeza” não existe salvo pela própria consciência.

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eu permaneça aqui, definindo-me como “centro do mundo” ou “ocupante de um sítio”, sentado junto à escrivaninha, nadificando portanto o objeto perce­ bido, escapando a ele, para captá-lo como aquilo que não sou. Em outras'pa­ lavras, a percepção da distância e do sítio requer uma dupla nadificação (da consciência perceptiva e do objeto percebido) que somente se verifica pelo Para-Si. Portanto, o próprio “sítio”, enquanto tal, existe por causa mesmo da li­ berdade. Além disso, como já sabemos, um sítio só possui sentido por causa de nosso projeto livre. Se o meu fim é alcançar uma cidade a vinte quilôme­ tros de distância por uma estrada asfaltada, essa cidade está muito mais pró­ xima de mim do que a montanha sem acesso que vejo a apenas cem metros de distância, com 800 metros de altura, que não tenciono escalar. Heidegger ob­ serva, nesse sentido, que os óculos que tenho sobre o meu nariz e que não percebo enquanto aprecio uma paisagem estão infinitamente mais longe do que a paisagem que vejo a quilômetros de distância. O termo “distância” é aqui mal empregado, porque “distância” nada tem a ver com geometria: só pode existir pelo prisma do meu projeto. As coisas do mundo do Em-Si igno­ ram o que' seja distância: podem estar justapostas, em mútuo contato, lado a lado, acima ou debaixo da outra, ou separadas, mas sempre, entre elas, só existem relações de exterioridade. Quer dizer: um relacionamento que se auto-ignora. Só a consciência humana presencia a relação espacial entre as coisas mundanas: estas não estão “presentes” umas às outras - ao contrário, estão ausentes, desconhecem o sítio que ocupam no espaço e a distância que as separa. 2. As coisas que nos cercam. Eis uma montanha íngreme à minha frente. Não há como negar: o penhasco está aí, é menos escalável do que outro, e minha consciência não pode fazê-lo mais suave. Tento escalá-lo e fracasso. Será então correto afirmar que esse objeto “limitou” a minha liberdade? De modo algum: repete-se aqui o mesmo que foi dito quanto ao sítio. O mundo dado só se revela como “resistente”, “favorável”, “indiferente”, etc., na de­ pendência de meus fins, que coloco livremente e que irão iluminar a realidade objetiva com esse ou aquele sentido. Por exemplo, minha liberdade escolhe um fim impossível: escalar a montanha íngreme. Ora, o penhasco só aparece como obstáculo para algo que pretendo. A impossibilidade surge como uma criação da própria liberdade. Se o penhasco se mostra difícil ou impossível de escalar, isso se dqve ao fato de que eu livremente fiz o projeto de escalá-lo, 96

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escolhi o penhasco como “escalável”, dotei a montanha de um sentido. O pe nhasco só demonstra um grau de resistência ao ser integrado em meu projeto de escalá-lo. Para quem apenas pretende apreciar uma montanha como parte da paisagem, a montanha não ostenta nenhum caráter de obstáculo, mas pode ser algo belo, imponente, etc. Um penhasco será algo útil, se quero subir às alturas para contemplar uma bela vista. Mas será um transtorno, se pretendo construir através dele uma ferrovia. Outro exemplo: vou de bicicleta encontrar um amigo que está para em­ barcar de trem. Repentinamente começa a chover. Com a estrada enlameada, concluo que não chegarei a tempo na estação e volto ao ponto de partida. Foi a chuva que mudou o meu projeto, limitou a minha liberdade? Não: a adver­ sidade surge por causa do próprio projeto. É porque projetei “encontrar Pedro antes de seu embarque”, que a chuva me levou a desistir. Se eu estivesse vol­ tando para casa, poderia, por exemplo, saltar da bicicleta e caminhar a pé, sem nenhuma pressa. Não há uma “impossibilidade de conduta” que possa provo­ car minha renúncia: o meu projeto é que faz as coisas parecerem “impossíveis” e decide então pela renúncia, como no exemplo citado. 3. Meu passado. Recordemos que o Para-Si se encontra sempre adiante de si, da situação e do mundo: tudo épassado com relação à consciência, cuja principal característica é estar no futuro, ainda que o mais infinitesimalmente imediato. Já vimos também que o passado, por si mesmo, não pode agir sobre nossos projetos, pois o que é (o passado) não tem como atuar sobre o que não é (os fins que visamos), o positivo só pode engendrar o positivo. Em si mesmo, o passado é apenas um irremediável. Se contraí sarampo aos cinco anos e cometi uma deslealdade aos vinte, são fatos acabados que não posso alterar. Não resta dúvida de que esse “passado imutável” nos com­ promete permanentemente: a casa que habito, a mulher que amo, o livro que escrevo, tudo o que sou vem desse passado. O passado está presente em todos os nossos projetos. Se, porventura, curso Filosofia e projeto estudar para os exames, graduar-me e fazer carreira de professor, estou comprometido por minha decisão passada de cursar a faculdade. Mesmo que eu projete “eliminar” o passado (abandonando o curso, por exemplo), estou implicita­ mente reconhecendo a existência desse passado, já que é a partir desse passa­ do mesmo que nasce minha decisão (não poderia “eliminar” o que não existe, abandonar um curso no qual nunca ingressei). No entanto, de nenhum modo essa “imutabilidade” do passado pode limitar a nossa liberdade. O passado somente adquire sentido e força à luz de 97

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nosso projeto livremente escolhido: este é que decide se o passado deve con­ tinuar vivo ou já está morto, se o passado ainda existe ou será suprimido. En­ tão, não faz a menor diferença ter este ou aquele passado: é meu projeto'que decide sua eficácia e seu sentido. O poder do passado vem do futuro. Se agi desonestameníte quando tinha vinte anos e depois renunciei à ilegalidade, eu é que decido, por meu projeto de me conservar honesto, que esse passado é algo “vergonhoso”. Se no passado casei com esta mulher, a existência desse passado tqrá um certo significado se pretendo continuar a ser um marido fiel, e outro sentido, oposto, se quero me divorciar. Poderiamos dizer: “Se queres ter tal ou qual passado, pensa dessa ou daquela maneira”. O passado só con­ quista capacidade de ação se retomado e reativado pelo projeto. O fato de o passado ser irremediável não constrange a liberdade: pelo contrário, tal condição “irremediável” é que faz possível a liberdade. Com efeito: se o passado fosse “mutável”, pudesse se modificar por si mesmo, tôdo projeto humano perdería a sua razão de ser. Afinal, o projeto é precisamente a superação do dado existente para um fim inexistente: logo, o projeto necessita da imutabilidade desse dado para exercer seu poder de mudança sobre ele. Aquilo que é (o passado) tem de ser imutável em si, para que venha a ser mu­ dado pelo projeto. Toda mudança só é mudança com relação a alguma coisa que permanece sempre a mesma. 4. A existência dos outros. A questão, aqui, é mais complexa, porque não se trata mais do nosso projeto solitário frente a um Em-Si em bruto (um penhasco, um passado, etc.). Antes de nós, outros homens dotaram as coisas de um significado, estabeleceram um mundo de técnicas que não elegemos: nascemos já pertencendo a uma nação, uma família, uma língua, uma religião, uma classe social, uma coletividade previamente portadora de um sistema métrico e monetário, regulada por leis criminais, etc. Quando deparo com um prédio, não vejo um existente em bruto, mas algo já possuidor de um signifi­ cado dado por outros (trata-se de uma moradia, ou um quartel, ou um estádio esportivo, etc). Parece que penjemos a nossa individualidade e levamos uma existência “qualquer”, submetida a fins “quaisquer”. Mas esse mundo já traba­ lhado de antemão pelos outros não limita a nossa liberdade. Vejamos-por quê. Para que nos fossem impostas, essas técnicas e significações teriam de ser auto-suficientes, deveriam existir e serem aplicadas por si mesmas. Mas, Esboça-se aqui o conceito de “Pràtico-Inerte” que iremos estudar na Parte II. 98

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na verdade, nenhuma técnica pode preexistir ao uso que dela fazemos: sua existência depende do nosso projeto. O sapateiro que prega solas não é um mero Ser passivo que se limita a aplicar uma técnica que o domina: ele é uma consciência livre em projeto. O sapateiro capta a situação dada (o sapato a consertar) como “algo a ser mudado”, e assim o faz porque visa a um porvir ainda inexistente (o sapato consertado) que só poderá existir graças à sua ação (pregar a sola). A técnica é sustentada pela liberdade: ela é passado, e quando a usamos estamos situados adiante dela, nos fins futuros que visamos. É ao interiorizarmos a técnica (as coisas já dotadas de significação por outros, etc.), que iluminamos e damos um sentido vivo à realidade circundante na qual se imprimem os projetos passados de outros homens, transcendendo tal realidade para um fim que colocamos no futuro. De acordo com o fim que projetamos é que descobrimos nossa maneira própria de ser brasileiro, operário, burguês, obediente às regras sociais, rebelde ao sistema político, etc. Se sou judeu e existem leis criadas por outros homens que me roubam certos direitos, cabe a mim aceitar ou infringir as proibições, por achá-las naturais ou absurdas. Cabe a mim viver a meu modo, conforme o meu projeto, essa ou aquela situa­ ção, mesmo em um mundo habitado e trabalhado no passado por outros ho­ mens, que se encarregaram de dotar as coisas de fins não projetados por mim. Ainda com relação à existência dos outros, pode-se supor outro tipo de limite à liberdade: não posso me ver de modo como a liberdade da consciên­ cia alheia me vê. Se os outros me fazem “gordo”, “menor de idade”, “vulgar”, etc., não posso sentir-me assim, tal qual uma “coisa petrificada”, porque não posso me apreciar de fora (uma impossibilidade ontològica que vamos estudar no capítulo seguinte). No entanto, tal limite só existe na dependência da nossa liberdade mesma: como veremos adiante, somos sempre livres para reconhe­ cer o Outro como uma liberdade que me julga e limita a minha liberdade ou, ao contrário, como um objeto à mercê do nosso juízo. Além disso, é a minha própria liberdade que confere ao juízo alheio o seu poderio. Se o Outro me faz “covarde” ou “feio”, tal juízo só terá peso se eu mesmo me eleger “covarde” ou “feio” - ou seja, se eu tento assumir o ponto-de-vista que o Outro tem de mim e busco me realizar como ele me vê, Impossível, por ora, aprofundar essa complexa questão, a ser desenvolvida na Parte II. No to­ cante às técnicas, devem ser destacadas a língua e as leis gramaticais. Preferimos abordá-las no anexo final sobre Sartre e o Estruturalismo. 99

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procurando o mais possível ser “vulgar”, ou “medroso”. Logo, procurando ser para mim mesmo um “objeto acabado”. No capítulo posterior mostraremos que essa tentativa é irrealizável - mas por enquanto basta verificar que tal limite só aparece à luz de meu projeto. Quer dizer: não sofro passivamente os juízos alheios, mas os assumo ou descarto-me deles. Digamos que, sendo ju­ deu, eu sinta vergonha disso. Ora, não é a raça na qual fui classificado por outros que me impõe um limite (ser inferior aos não-judeus): é a minha pró­ pria eleição de mim como “inferior” (quer dizer, a minha aceitação do juízo do anti-semita) que atribui à minha raça o seu sentido de inferioridade.

5. A morte. Enquanto estamos vivos, decidimos o que somos, damos um sentido ao nosso passado e aos nossos projetos. Mortos, como que ficamos à disposição dos outros, reduzidos à condição de puro passado, coisa dada e acabada. Nossos atos ficam para trás, petrificados, fixados em destino irre­ mediável, para que deles o juízo alheio faça o que bem entender. A morte re­ presenta a vitória do ponto-de-vista do Outro sobre mim. Nossa subjetividade exterioriza-se, torna-se pura “objetividade” para o Outro. Estar morto é ser uma presa dos outros. Uma vida morta é uma vida da qual o Outro se faz guardião. Por atribuir à nossa vida uma significação que nos escapa e é dada pelos outros, a morte representará então um limite à liberdade do Para-Si? Enfim, mortos, já não somos livres para nos elegermos, porque são os outros, vivos, que nos elegem. Seria pois a morte um limite a nos impedir de dar um sentido ao nosso Ser já completado? Heidegger quis mostrar que até a morte, longe de limitar a nossa liberdade, só adquire peso e sentido por causa dessa mesma li­ berdade. Afirmou que a realidade humana é um “Ser-para-a-morte”: como existir é estar exposto à possibilidade de morrer, a morte (ameaça que pesa sobre o homem desde o nascimento) faz parte da realidade humana, sendo algo que lhe é essencial. O homem é sempre “possibilidade de ser” e, incluído entre seus possíveis, acha-se o “poder morrer”. Para Heidegger, escolhemos livremente a nossa morte como um projeto, uma possibilidade suprema, que irá concluir e dar acabamento final ao nosso Ser até então sempre inconcluso. Com a morte, alcançamos enfim a nossa unicidade de pessoa, totalizamo-nos* *

O problema do Outro apenas começa a ser delineado aqui. Continua a ser investigado no capí­ tulo seguinte e na Parte II. 100

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como Ser individualizado, porque “a morte é a única coisa que ninguém pode fazer por mim”. Para Sartre, a título de manter intata a liberdade, Heidegger “humanizou” a morte, por assim dizer: a morte já “faria parte” da vida huma­ na, sendo uma conclusão que adere à série por ela finalizada, da mesma forma como o silêncio que sucede ao último acorde de uma melodia pertence, em certo sentido, a esse som conclusivo. Mas Sartre discorda de Heidegger: a morte, está certo, não é um limite à liberdade, mas não porque seja um projeto livre da consciência ou pertença à estrutura do Para-Si - e sim, ao contrário, por não ser um projeto nem pertencer ao Para-Si. A morte nada tem de “humana”, mas é totalmente estranha à existência humana. Escapa, por prin- ; cípio, ao Para-Si, não faz parte essencial da vida nem é um componente ou um “prolongamento” da existência. Para começar, não é a morte que individualiza o nosso Ser, por torná-lo finito e acabado. Mesmo que eu fosse imortal, continuaria sendo finito e aca­ bado: é o que nos informa a temporalidade. Aquilo que fui no passado, o projeto que escolhi outrora com exclusão de outros e depois abandonei, petri­ ficou-se para sempre, em eterna finitude, mesmo que um dia eu decida reto­ má-lo (a situação e os motivos terão mudado). A nossa finitude surge porque somos livres, elegemos o que somos ao longo da vida, e cada escolha que fa­ zemos exprime a unicidade da nossa pessoa, coagula-se em Em-Si finito, dado e acabado, do qual fugimos rumando ao futuro. Já sabemos disso: mu­ damos e avançamos porque algo em nós se conserva permanente, no passado, como coisa morta que carregamos atrás de nós. Além disso, a minha morte não constitui minha unicidade de pessoa. Pelo contrário: é a individualidade do Para-Si que sou que determina a morte como algo meu. Ora, não é apenas na morte que experimento algo que nin­ guém pode experimentar por mim: em qualquer ato sou insubstituível e único, porquanto ninguém pode amar ou sofrer por mim, vivendo o amor ou o so-* *

Em Heidegger, a contingência e a condição de “poder morrer” (como se diz, “basta estar vivo para morrer”), a tal ponto fazem parte essencial da existência humana que esta tem seu ser mais profundo na angústia. “O Ser-para-a-morte é essencialmente angústia.” No cotidiano, por medo ou insegurança, o homem evita pensar na morte, mas a angústia se mantém velada ou latente sob a forma do que Heidegger denomina “cura”, vocábulo latino para designar “cuidado”. Ou seja, o pressentimento de nossa finitude nos leva a ter cuidado com a vida: em todos os momentos que­ remos prolongar nossa existência no mundo, evitar seu término, salvá-la da morte. Aquilo que a psicologia define como “instinto de sobrevivência” nada mais é que esse fenômeno essencial à existência humana. 101

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frimento que são meus. Minha individualidade prescinde da morte para se constituir. Sartre também nega que a morte seja um possível escolhido, como qualquer outro possível dentro dos projetos humanos. Todo projeto é a super­ ação de uma situação dada para Um inexistente futuro, um fim visado que, em retrocesso, confere um sentido ao dado presente. Além do que, todo projeto, uma vez realizado, abre novo campo de possíveis, pois o que caracteriza o Para-Si - esse “ainda-não-que-será” - é estar sempre adiante do que é dado, é estar no futuro: o Para-Si consiste em espera de esperas que, por sua vez, es­ peram esperas, e assim indefinidamente. E claro também que todo projeto implica a expectativa de sua realização. Ora, a morte infringe todas essas peculiaridades do projeto. Em primeiro lugar, ela é sempre inesperada, porque contém uma indeterminação constante, ainda que disponhamos de antemão de uma data para morrer (por exemplo, minha execução na cadeira elétrica pode ser sustada pelas autoridades) ou mesmo se recorremos ao suicídio (podemos desistir no último instante, ou so­ breviver à tentativa). O próprio da morte é que ela pode sempre nos surpreen­ der, de tal maneira que jamais sabemos se estamos longe ou perto do fim. A morte existe na eventualidade de um azar e foge assim a qualquer projeto. Não somos condenados entre condenados que aguardam o dia da pena capital e nos preparamos para isso como um projeto nosso. Estamos, sim, na situação do condenado que, mesmo certo de morrer no dia marcado e preparando-se, digamos, para fazer de sua morte um ato heróico (algo portanto livremente projetado), sucumbe antes da data prevista, por mero acaso, vítima, por exemplo, de inglório derrame cerebral. Mais: a morte, ao oposto do projeto, não abre novos possíveis, mas destrói todos os projetos futuros. O que define o Para-Si como projeto é o fato de constituir-se em um Ser que reclama sempre um “depois” . Já a morte é a negação de toda espera. Perpétua aparição do azar no seio dos meus projetos, a morte não é uma “possibilidade” do meu Ser, uma determinação projetiva de mim mesmo: é, sim, uma possibilidade, mas de natureza exterior, que vem de fora e me atinge. E como o nascimento: um fato contingente, absurdo e acidental, que pertence à facticidade do Em-Si. Longe de ser um projeto, a morte é uma supressão sempre possível dos meus possíveis, fora dos meus Assim, o homem nunca é “velho demais” para morrer: morre-se sempre cedo^já que o homem, não importa a sua idade, é sempre um “projetar-se para mais longe” quando a morte o atinge. 102

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possíveis. Não há, pois, um “poder morrer” na realidade humana, mas só um contingente “dever morrer”. Por isso Sartre escreve: “E absurdo que tenhamos nascido, é absurdo que tenhamos de morrer”. Menos admissível ainda é dizer, como Heidegger, que a morte é um projeto que dá sentido acabado e definitivo à nossa vida. Ora, todo significado da nossa situação e dos nossos atos vem do futuro, dos fins projetados (“Circuito da Ipseidade”). Na morte, pela ausência de futuro, esse significado nos é vedado. O valor da nossa vida fica em suspenso, como que indetermi­ nado. Portanto, sem ser aquilo que dá sentido à vida, a morte é, por excelên­ cia, o que lhe tira toda significação. Sua principal característica, repetimos, consiste em ser uma exterioridade que converte o Para-Si que somos em Em-Si-para-os-outros, transforma a nossa subjetividade em objetividade-para-os-outros, faz a nossa consciência existir somente “fora”, como uma coisa. A morte é como um ladrão que nos despoja de nosso maior bem, a vida, para entregá-lo ao Outro. Enfim, se a morte é um limite, trata-se de um limite que a nossa consci­ ência jamais encontrará, porque acha-se sempre além da subjetividade. Ao advir a morte, e com ela o domínio do ponto-de-vista do Outro, o Para-Si já não existe, de modo que não se pode considerar que haja, aí, qualquer limite à liberdade, pois simplesmente não há mais liberdade a ser limitada. A crítica de Heidegger de que costumamos encarar a morte como um fato que só acontece aos outros (é hábito dizermos: “morre-se”) na verdade não procede, porque, com efeito, a morte é algo que só podemos experimentar no Outro. A idéia de “encontrar a morte” não passa de licença poética, porquanto, no mo­ mento em que advém a morte, já não existo. Jamais terei a experiência da mi­ nha morte: “estar morto” é uma vivência impossível para mim. Só posso “estar morto” na consciência dos outros que sobreviverem a mim. De certo modo, tanto faz para o Para-Si ser mortal como imortal: por desconhecer-se como “já morto”, o Para-Si como que vive em uma condiçf ' ; eternidade. Por outro lado, se nossos possíveis devessem necess mente se reali­ zar a partir de sua escolha, já não haveria liberdade: esta exige mesmo o fato de que os possíveis possam sempre não ser realizados. A morte representa Sartre reabilita assim, em plano filosófico, o esquecimento que o homem comum dedica à morte. E natural que os homens conservem ordinariamente a morte no esquecimento. Não se trata de atitude ditada pelo medo: a morte não pode ser pensada, porque não faz parte essencial da vida, não pertence à estrutura ontologica do meu Ser, e jamais irei encontrá-la efetivamente. Por ser inteiramente indiferente à existência, o homem lhe deve ser indiferente.

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bem essa imprevisibilidade que se aloja no seio da propria previsibilidade de meu devir: a liberdade encerra em sua essência a sua destruição, com a cons­ tante ameaça de sua perda a partir da certeza de sua aniquilação final. Ser li­ vre é correr o perpétuo risco de ver nossas ações fracassarem e a morte des­ truir o projeto. b) "Estamos condenados a ser livres ” Dos parágrafos precedentes, infere-se que não há liberdade sem situação (ou seja, a minha posição no mundo, com todos os obstáculos, apoios e resis­ tências que devo superar para alcançar as minhas metas). A.liberdade surge graças ao Em-Si em bruto, sem o qual ela não existiría. Mas, paradoxalmente, a própria noção de “situação” também só existe por causa da liberdade. Não há uma coisa sem a outra. Evidentemente, não escolhemos a situação: o que elegemos é a nossa atitude em face dela e o que fazemos dela. O mundo se me revela de maneira como uso os meus fins e é dotado de sentido conforme a minha livre escolha. O importante, pois, é o que fazemos daquilo de que so­ mos feitos, chame-se a isso situação, estrutura , natureza ou outra designação qualquer: o importante é o nosso projeto livre de superar a facticidade e o dado pela ação. Assim definida a liberdade humana, no sentido específico dado por Sar­ tre, deduzimos que tal liberdade não pode ser determinada por nenhuma causa nem limitada por nenhuma outra. A liberdade só encontra no mundo os limi­ tes que ela mesma colocou. É ela que estabelece os obstáculos com os quais porventura irá se defrontar. Somente ela opõe limites a si própria. Se limites externos existem, são postos pela liberdade mesma: a consciência não pade­ ce, mas, ao contrário, elege tais limites. Em outras palavras: apenas a liberda­ de pode limitar a liberdade. A única limitação que a liberdade conhece deriva de si mesma. (Veremos no capítulo seguinte que a liberdade do Outro pode ser um limite à nossa liberdade, e vice-versa). Podemos dizer que a liberdade nos aprisiona nela própria: estamos como que “condenados a ser livres”. A única liberdade que não temos é jus­ tamente a liberdade para não escolher sermos livres. A liberdade é um fato contingente que nasce com o nosso Ser. Não posso escolher não ser livre, do mesmo modo como também não escolho ser livre. Se eu pudesse eleger-me livre ou não, isso implicaria uma liberdade prévia de eleição - e, uma vez liSobre estrutura, ver o anexo “Sartre e o Estruturalismo”, no fim do volume. 104

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vre, já ó seri a então para sempre. Por isso Sartre observa que não somos l'un damento da nossa liberdade, já que não a escolhemos.

O projeto fundamental a) A coerência de cada um Essa liberdade de escolha não significa que o homem viva a agir a esmo, de qualquer maneira, imprevisivelmente, fazendo não importa o que queira, a qualquer momento, sujeito a uma série de impulsos arbitrários, ca­ prichosos e gratuitos. Agir livremente não quer dizer “agir de maneira tal que pudesse ser de outra maneira”. Não: há uma coerência interna, uma maneira própria de ser de cada pessoa. Isso porque cada um de seus atos abriga uma .si­ gnificação mais profunda, reflete uma eleição originária de si, que fundamenta todas as suas deliberações. É o que Sartre denomina “projeto fundamental”. O projeto fundamental não é inconsciente (pois é preciso haver consci­ ência para haver eleição), mas apenas de natureza não-cognoscente, nãoposicional, tal como o cogito pré-reflcxivo. Também não é “anterior” aos nos­ sos atos, como se existisse primeiro “em potência”, para só depois aparecer: o projeto fundamental é contemporâneo aos atos, existe neles, penetra em nossas escolhas, emoções, tendências, etc., enquanto seu fundamento mesmo. Todas as manifestações concretas da vida humana são diferentes expressões desse projeto fundamental. Não houvesse tal projeto, cada homem agiria de modo incoerente e aleatório, o que não sucede nem mesmo com os “dementes”. Por outro lado, embora possa ter certa permanência, o projeto funda­ mental não é obrigatoriamente imutável. Se assim fosse, já não seríamos li­ vres: uma vez nos elegendo, teríamos nos escolhido em definitivo. Mas o ho­ mem pode mudar (ou não mudar) seu projeto fundamental. Dissemos que, enquanto vivo, nenhum homem é isso ou aquilo, de uma vez por todas. b) A meta do Em-Si-Para-Si Cabe averiguar, em profundidade, em que consiste esse projeto funda­ mental. Recordemos: sendo uma falta de Ser, uma totalização-em-curso, o Ver adiante, neste capítulo: “A esquizofrenia”. 105

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Para-Si é um desejo de conquistar a estabilidade, a totalidade acabada, a den­ sidade compacta, a impermeabilidade do Em-Si, sem perder-se, porém, en­ quanto consciência. Almeja o estatuto ontologico de um Em-Si-Para-Si. Èoi o que chamamos de “principal meta do Para-Si”, ao tratar da temporalidade. No capítulo 1, por outro lado, aludimos à “única aventura possível” do Em-Si, que é a de sofrer uma descompressão interna e converter-se em Para-Si. Não sabemos por que o Ser perde a sua solidez, sofre uma fissura inter­ na, faz-se Para-Si. Repetimos: Sartre diz apenas que “tudo se passa como se” o Em-Si, que se auto-ignora, quisesse ser o próprio fundamento, ou seja, res­ ponsável pela criação de si mesmo, e para isso fizesse nascer o Para-Si, que é capaz de se fundamentar como Ser, pois tem consciência, poder de escolha, etc. Quanto ao Para-Si, sua meta de conquistar a plenitude do Ser, preen­ chendo a sua falta, oferece como vimos uma razão pertinente: é capaz de ser responsável pelo seu Ser, mas essa capacidade atua no vazio, porque precisa­ mente o Para-Si carece de um Ser pleno que possa vir a fundamentar. Então, o Para-Si quer concretizar tal capacidade. Para isso, precisa converter-se em um “Em-Si capaz de fundamentar-se a si”. É o projeto de ser, tal como Deus, um Em-Si-Para-Si. Um esforço fadado ao fracasso, já sabemos, mas que não de­ move o Para-Si de persistir eternamente em uma busca impossível pela esta­ bilidade do Ser (o estar no futuro enquanto “espera de esperas”, como um eterno “ainda-não-que-será”). O que falta ao homem, diz Sartre, “é ser o seu próprio fundamento”. Essa “meta principal do Para-Si” é a marca característica do projeto fundamental. O “desejo abstrato de Ser”, o projeto fundamental de constituir­ se em um Em-Si-Para-Si, em uma “coisa consciente”, em um Em-Si que seja responsável (consciente) pela criação permanente de si, transparece como o sentido geral de toda atividade humana. Não se trata de algo como uma “natureza humana em geral”, porque o homem não possui essência prévia, mas é livre para criar a sua própria essência a partir de sua existência. O proje­ to fundamental constitui apenas o sentido geral de cada projeto humano es­ pecífico, representa uma estrutura abstrata que em nada limita a liberdade. Concretamente, o projeto individual não é constituído por esse “sentido geCurioso notar a discordância entre Sartre e a filosofia oriental, que propõe a abolição do desejo como meio de salvação da angústia. Para Sartre, o Para-Si é essencialmente “desejo de ser (EmSi-Para-Si)” e seria inconcebível um Para-Si satisfeito. 106

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ral”: é uma invenção particular de seus fins, é uma maneira livre de ser e vi­ ver situações específicas. c) Fazer, Ter, Ser Mas se examinarmos as principais categorias das ações humanas - fazer alguma coisa, ter esse ou aquele objeto, ser isso ou aquilo - iremos concluir que todas se resumem, no fundo, à mesma busca pela apropriação do que nos falta para nos completarmos como Em-Si-Para-Si. Esse “projeto abstrato de possuir o Ser em geral” se revela, na vida concreta, em nossos projetos de nos apropriarmos de alguma coisa específica, pelo desejo de fazer, ter ou ser. O desejo de fazer é uma possessão, porque se iguala ao desejo de ter. Por exemplo: faço um bastão para ter um cajado, faço uma pintura ou uma peça musical para ter uma criação artística minha, dotada de minha marca pessoal. No desejo de ter se enquadram modalidades mais sutis de apropria­ ção: por exemplo, o fenômeno do conhecimento, e até certas atividades es­ portivas. Se não, vejamos. “Conhecer alguma coisa”, com efeito, é uma relação de posse: de certo modo, nós nos apoderamos do que conhecemos (Heidegger diz que o conhe­ cimento é um ato de roubo e pirataria). No conhecimento científico, violamos o oculto, o virgem, o desconhecido. O objeto conhecido é como o reverso da criação artística: é algo que me pertence, mas que continua todo fora de mim, não foi criado por mim, não é afetado pelo meu conhecimento. Conhecer é como comer alguma coisa sem consumi-la. Também o esporte revela o de­ sejo de ter: desejo apoderar-me de um recorde, de uma boa performance, de­ sejo possuir um físico atlético, etc. Assim, quando pratico esqui em um cam­ po de neve, meu deslizamento pela montanha é um modo de apossar-me dela, torná-la minha, imprimir nela as marcas do meu esqui. Eis, em qualquer caso, uma autêntica possessão: queremos ter uma mo-* * É sempre difícil entender as conexões entre os nossos atos e nosso projeto fundamental, por­ que cada Para-Si elege essas mesmas conexões a seu modo, inventando o seu sistema de inter­ pretações e significações. A compreensão do projeto fundamental necessita de uma disciplina nova, a psicanálise existencial. Ver adiante, neste capítulo. Sartre define o processo de “violação de virgindade” do conhecimento como “complexo de Acteón”, referindo-se ao mito grego do caçador que, oculto, afasta os arbustos para melhor apreciar Diana no banho. Já a posse pelo conhecimento, Sartre a designa como “complexo de Jonas”: o conhecedor mantém o objeto possuído sempre intato, sem deixar rastros sobre ele, como acontece na posse carnal. < 107 J

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radia, uma mulher, um automóvel, fazer alguma coisa que nos pertença, assim como queremos ser isso ou aquilo, possuir um “Ser feliz”, um “Ser realiza­ do”, etc. O fazer e o ter se resumem, enfim, ao desejo de ser, que é o modo de apropriação por excelência. d) A Posse Mas qual é, precisamente, o sentido dessa “apropriação” que traduz as ações humanas? Não tratamos aqui de uma questão legal ou social (o chama­ do “direito de propriedade”): na sua essência, a relação que une o homem possuidor e o objeto possuído é de natureza ontologica, antecedendo qualquer conceito jurídico de propriedade - e existe mesmo nas sociedades comunistas, onde a propriedade, como forma de direito, não é reconhecida. A posse é,. sim, um vínculo interno de Ser entre possuidor e possuído, que existe origi­ nariamente como relação ontològica espontânea. Só depois, se for o caso, ela poderá ser legitimada como categoria social pelas leis jurídicas. Que será essa relação interna? Ora, é lógico que o objeto possuído não é afetado pela posse, assim como o objeto conhecido não é afetado pelo co­ nhecimento, porque tem existência independente de nós. No entanto, se eu possuo um objeto, ele me aparece com a significação de “ser meu”. Trata-se de uma verdade subjetiva, de uma intenção de minha consciência que dá essa qualidade ao objeto possuído, embora ele exista em exterioridade absoluta. Como sei que a posse nada tem de realidade concreta e que o objeto possuído é, em si mesmo, matéria indiferente a mim, para que eu possa “sentir a possessão”, “gozar a propriedade”, não me basta contemplá-la: pre­ ciso submeter o objeto a um processo de criação contínua, de modo a conser­ var vivo o nexo interno de propriedade. Ou seja, devo usar o objeto possuído, transcendê-lo para os fins futuros do meu projeto, desfrutá-lo com vistas a um devir - caso contrário ele se torna algo inerte. Uma caneta é uma verdadeira posse quando a tenho entre os dedos como meio para o fim de escrever, a tal ponto que não a distingo mesmo do ato de escrever. O “objeto meu”, se não o uso, morre como tal, tanto quanto morrería meu braço se o decepassem. O sentido dessa ânsia de possessão já nos parece claro. Sabemos que o Nas antigas sociedades, esse vínculo era mais evidente porque as pessoas criavam os seus pró­ prios objetos. A divisão de trabalho mascarou essa relação interna, mas não a eliminou: o di­ nheiro tornou-se o instrumento de que dispomos para poder possuir, representa a eficiência do meu desejo de posse. 108

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Para-Si, totalização-em-curso, é uma falta de Ser: a apropriação é, portanto, uma tentativa (ainda que idealizada e simbólica) que adotamos para nos unir­ mos ao objeto e com isso totalizar o nosso Ser. Queremos, através da posse, operar a unidade possuidor-possuído - como se pudéssemos “ser” nós mes­ mos e a nossa propriedade. Na posse, tudo ocorre como se eu, sabendo-me in­ suficiente, procurasse existir também à maneira do Em-Si: procuro apreender o meu Ser fora de mim, no objeto possuído, pensando “sou o que tenho”. Quero realizar o meu Ser fora de mim, objetivando-me no mundo. Desfruto de meu Ser-corporificado-em-coisa-dada-e-acabada (o objeto possuído, a obra realizada). Mas isso não é tudo, pois nosso projeto fundamental é atingir o ideal do Em-Si-Para-Si. Assim, na posse, não quero existir somente enquanto “sendo o objeto que possuo”: capto esse objeto - repetimos - como algo sujei­ to ao meu uso permanente e, portanto, como algo “fundamentado” por mim. E um modo simbólico de fundamentar o que sou, sendo o que tenho, como se eu me tornasse fundamento de mim, mesmo existindo lá fora, no objeto. Mas a impossibilidade ontològica de totalizar o Para-Si que somos des­ tina esse propósito ao fracasso. Na relação de propriedade, o objeto possuído conserva a sua independência. Se eu o crio e o utilizo, ele permanece fora de mim, e me escapa a cada instante. Aliás, tanto é verdade que sei que busco ser aquilo que possuo, mas sempre fora de mim, reconhecendo a exterioridade do objeto, que o uso do objeto nunca me satisfaz, é sempre insuficiente. Um uso leva a outro: se possuo um automóvel novo, primeiro o aprecio e toco na sua carroceria e no equipamento interno, etc.; depois, ponho-o para funcionar e vou dirigi-lo; mais tarde, uso-o para excursões, etc. A possessão é uma em­ presa inconclusa, requer eternamente novos fins, porque o sentido que ela re­ presenta - o gozo do Ser supremo, o Em-Si-Para-Si - encontra-se para além do que podemos conseguir com o objeto possuído. A posse só se realiza sim­ bolicamente, jamais no concreto. Quando sentimos o desejo de destruir uma propriedade, estamos com isso tentando possuir negativamente aquilo que não podemos possuir positi­ vamente: ao aniquilar o objeto, este deixa de “ficar aí”, fora de mim, e passa a ter uma “existência honorária”, a viver na minha memória, torna-se somente parte da minha subjetividade. E como se eu me apropriasse dele em meu Ser, dizendo: “Eu o destruo, logo ele se converte em mim”. O consumo de alimen­ tos é um exemplo semelhante a essa destruição apropriativa: comemos, ou seja, destruímos o alimento, incorporando-o a nós, daí o prazer que sentimos quando nos alimentamos - é um prazer gustativo de fundo ontològico (nós 109

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nos “enchemos” com o Ser concreto que nos falta). Quando comemos não nos limitamos a saborear qualidades: apropriamo-nos delas. Os dentes, ao mascar, revelam a densidade do corpo que se transforma em bolo alimentar. O comer revela o tipo de Ser com que vou fazer a minha carne: escolhendo os alimen­ tos, escolho certo modo de “ser corpo”. e) Em Busca do Ser Total Evidentemente, quando queremos possuir um objeto qualquer, não es­ tamos querendo apenas esta coisa em particular: o nosso projeto de “fundar o nosso Ser” mostra que desejamos, na verdade, é possuir o Ser Em-Si na sua generalidade (o que chamamos de “mundo”), fazendo isso simbolicamente, através da posse de um determinado objeto ou de outro que se destacam sobre esse fundo total de mundo. Não visamos somente aquilo que nos aparece, mas sim o Ser mesmo dessa aparição. Assim, possuir uma coisa ou outra é querer possuir o Ser total que nos falta, é querer a totalidade idealmente constituída por nosso projeto fundamental. Eis porque o desejo de ter se reduz ao desejo de ser, já que ambos miram o mesmo objetivo. A busca do Ser total se manifesta pois pela posse de objetos específicos. Assim, podemos determinar o projeto fundamental de cada pessoa pelos obje­ tos que ela escolheu possuir. Cada objeto tem qualidades próprias (cor, gosto, densidade, etc.) e isso quer dizer que o Ser total se nos aparece sempre sob certo aspecto qualitativo: o Ser “dá-se” a nós pelo amarelo ou o vermelho, pelo gosto do tomate ou do purê, etc. Através das escolhas das qualidades, representadas pelos objetos possuídos, desponta o tipo de livre eleição que cada um fez para tentar apoderar-se do Ser, preenchendo o vazio do Para-Si. Não preferimos a laranja ao limão só porque “gostamos mais do doce do que do azedo”: preferimos assim porque elegemos qual o aspecto ou o modo do Ser (revelado pelo doce ou o azedo) que queremos capturar para completar o Para-Si que somos. O que aceito ou recuso em determinado alimento é um modo do Ser que aceito ou recuso. O que escolhemos para possuir é sempre uma maneira qualitativa com que o Ser sé revela, maneira essa que elegemos para totalizar o nosso inacabamento. Algumas pessoas querem “possuir o Vimos que a qualidade de um objeto não é uma “percepção subjetiva” nem um “ornamento” que reveste o Ser, mas sim o próprio Ser desse objeto: o amarelo do limão, por exemplo, é o li­ mão mesmo. Assim, a viscosidade de um objeto não é um modo com que captamos subjetiva­ mente o objeto, mas uma forma com que o Ser nos aparece. 110

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mundo” por meio de certos objetos, outras por meio de objetos diferentes. Sc Pedro gosta de laranja e não de limão, não se pode dizer que “gosto não se discute”, como se o gosto fosse mero capricho insignificante de cada um. Ao contrário: o gosto revela a escolha do que queremos ser. Melhor dito: o ho­ mem é aquilo que prefere. Por exemplo: há pessoas que denotam atração por objetos viscosos e pegajosos. A viscosidade simboliza o triunfo do sólido sobre o líquido, pois é como se o sólido absorvesse o líquido na sua materialidade exterior e indife­ rente. O líquido, no caso, representa a evanescência do Para-Si, e o sólido é a representação do Em-Si maciço. Logo, a solidificação do líquido no pegajoso, na viscosidade, traduz a queda da consciência na matéria, a perda da nossa li­ berdade. O homem atraído pelo viscoso é aquele que almeja ter a opacidade das coisas e renunciar à sua liberdade. f) Preenchendo Vazios O projeto fundamental de atingirmos o ideal do Em-Si-Para-Si aparece já na infância. A teoria freudiana supõe que a criança gosta de tapar buracos porque (a) é dominada pelo caráter anal da sexualidade infantil, e (b) tem um pressentimento do ato sexual. Essa segunda hipótese atribui à criança o co­ nhecimento de uma experiência que ela ainda não tem. A primeira hipótese pressupõe que a criança percebe um buraco da mesma maneira como vive o seu ânus. Ora, já sabemos que o meu corpo, para mim, não pode ser vivido como algo objetivo: somente o Outro pode encarar qualquer parte do meu corpo como objetividade, somente para o Outro meu ânus aparece como “orifício”. Não posso vivê-lo como tal. Logo, só através do Outro a criança aprende que seu ânus é um buraco - e isso geralmente acontece depois que ela começa a querer tapar buracos. Na verdade, um buraco é um nada a en­ cher com minha carne. A criança tapa o buraco para fazer uma espécie de sa­ crifício de seu corpo a fim de que exista a plenitude do Ser. Boa parte da nos­ sa vida levamos tapando buracos, preenchendo vazios, realizando o pleno. Sem dúvida, desde pequena a criança aprende que tem orifícios no cor­ po (não o ânus, porque este é desprovido de terminações nervosas táteis). A boca serve de exemplo. Por que, mal ao nascer, a criança põe o dedo ou a chupeta na boca? É porque espera (não cognoscentemente, mas como ten­ dência original de seu Ser) que o dedo ou a chupeta se fundam com o palatino e os lábios e tapem ó orifício bucal, tal como se tapa com cimento um buraco 111

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na parede: a criança já busca a densidade, a plenitude uniforme do Ser, movi­ da pelo projeto fundamental. Se ela chupa o dedo, o faz precisamente para diluí-lo, para transformá-lo em uma pasta gomosa que obture o buraco de sua boca. Essa tendência é a mesma do ato de comer: o alimento é a massa que tapará a boca. A sexualidade também significa o desejo de encher e de encher-se: por penetração do pênis, a vagina transforma-se em plenitude de Ser.

A angústia da liberdade Ao contrário do que parece, a descoberta da liberdade não é uma expe­ riência jubilosa: dela decorrem dois tipos de angústia - uma de origem temporal, outra de natureza ética, ambas decorrentes do fato de o Para-Si, sendo li­ vre, não ter como se precaver contra a permanente possibilidade de fazer nova escolha de sua maneira de ser. a) A Angústia Temporal No caso da angústia temporal, nós nos apreendemos separados do que fomos no passado e do que seremos no futuro, obrigados a criar eternamente aquilo que somos. Porque sou livre, uma decisão do passado não pode de­ terminar obrigatoriamente uma decisão atual, nem uma decisão presente de­ cidirá o que serei amanhã. A livre eleição que fazemos de nós está sempre ameaçada de metamorfose - e assim os possíveis que escolhemos correm ris­ co permanente, já que não temos domínio sobre o futuro. Por exemplo: o jogador que um dia resolveu abandonar o vício pode, frente a uma mesa de jogo, sentir-se atraído, pois a decisão anterior não o obriga a manter a conduta assumida. Ou seja: angustiamo-nos por não termos sequer a nós mesmos como apoio para uma nova decisão. Deixei de fumar há um ano, mas preciso a toda hora reiterar aquela decisão, porque, a qualquer momento, sou livre para mudar de projeto e voltar ao cigarro. Da mesma maSartre dá um curioso exemplo dessa “ânsia pelo Ser”: o vício do cigarro. Quem fuma almeja encher-se de Ser (realizar o Ein-Si-Para-Si), simbolicamente. Escreve Sartre: “Através do tabaco que eu fumava, era o mundo que ardia, que fumava, que reabsorvia em vapor para entrar em mim”. 112

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neira, ao atravessar um precipício, além da reação de medo - o medo de es­ corregar e cair no abismo - experimento a angústia temporal: ainda que eu procure me ver no futuro, já em segurança do outro lado do precipício, e faça o projeto de atravessar o caminho com atenção e cuidado, nada me garante que, no meio do trajeto, eu não mude de idéia e decida me lançar no vazio (É comum esse “receio de si mesmo” que se apodera das pessoas quando se vêem diante de um abismo, ou com uma arma na mão, etc.) b) A Angústia Ética : os Valores No caso da angústia ética, constatada nossa liberdade, advém a certeza de que os valores morais têm como único fundamento possível a nossa decisão de criá-los. A vida é permanente escolha, e, com cada uma de nossas escolhas, es­ colhemos o que somos, definimos a nós mesmos, por nós mesmos. A cada ins­ tante temos de optar por um valor, uma regra de conduta. O que nos angustia é saber que não temos a que recorrer para orientar as nossas escolhas. Vimos que os Valores não são objetivos, não estão “inscritos em um céu inteligível”: o valor é um Em-Si-Para-Si idealizado por nossa subjetividade; transformado em puro objeto (as leis morais da censura artística, por exem­ plo), perece como valor. Logo, não há qualquer imperativo categórico univer­ salmente válido e logicamente necessário, nenhuma lei ética geral que nos indique como devemos agir ou o que fazer nesta ou naquela situação. “Não está escrito em parte alguma que o Bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir”. De fato, nada nos diz que decisões tomar, nada justifica a adoção de um valor em detrimento de outro. Nada - exceto a voz da minha consciência. A liberdade que sou é o úni­ co fundamento a que posso me apegar. Não sofro imposições éticas de fora: ao contrário, eu é que faço a imposição, exijo e constituo o valor. “Sou eu quem dá sentido às coisas, que me proíbe disso ou daquilo, que considera isso significante e aquilo não, etc. ,Os valores dependem de mim e são aquilo que eu houver decidido que sejam”. Para que o certo e o errado existam para mim é preciso que a minha consciência intencione constituí-los como tais. Psicólogos confundem angústia e medo. O medo é uma emoção que se ignora e que nos assalta quando nos sentimos ameaçados por algo exterior, puro azar e facticidade. O soldado que parte para a guerra sente medo de ser baleado. Já a angústia, longe de ser emoção de alguma coisa que não po­ demos precisar, é o pleno conhecimento daquilo que nos ameaça - a nossa liberdade. O soldado que vai para a frente de batalha angustia-se por saber que, mesmo se armando de coragem, sua consci­ ência livre poderá vir a acovardar-se e deixá-lo indefeso diante do perigo. 113

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Resta saber como eu faço surgir um valor. Se recebo uma convocação para combater na frente de guerra, não posso consultar um valor prévio (por exemplo, o princípio da não-violência) para só depois fazer a minha escòlha (no caso, desertando do serviço militar). Ora, não recolhi esse valor de parte alguma, já que os valores não-existem no mundo, passivamente, à espera de que eu os examine antes de tomar minha decisão. Logo, o valor só pode apa­ recer a partir do ato mesmo da minha escolha. É pelo fato de desertar que eu estabeleço o valor da não-violência. O valor surge concomitantemente com a conduta ou a escolha que o define, somente se determina pelo fato de ter sido ele o escolhido, e não outro. Não posso determinar o valor de um sentimento, salvo se esse sentimento se manifesta, constituindo assim o valor. Escolha e valor se confundem no mesmo ato. Resulta assim a angústia de estarmos arremessados em um mundo sem valores estabelecidos: sabemos que os valores dependem da nossa liberdade, do livre impulso que em nós se manifesta para agirmos em certa direção, seja qual for. O valor é um propósito que se justifica a si mesmo, e portanto ne­ nhum valor é gratuito, posto que depende do compromisso que cada homem assume com as suas decisões. Como os valores sãò escolhidos por nós em um juízo de coerência conosco, não nos sentimos “culpados” por qualquer ato que realizamos: até o carrasco que inflige torturas julga-se inocente. O que pode ocorrer é o arrependimento, quando mudamos o nosso projeto e colo­ camos em questão o valor anteriormente constituído. c) A Escolha do Universal “Enquanto Ser pelo qual os valores existem, sou injustificável e 'sem desculpas”. Isso significa que somos inteiramente responsáveis não apenas por nossos atos, mas também pela significação do mundo ao qual atribuímos valores. Pressente-se, daí, a enorme responsabilidade que pesa sobre os nos­ sos ombros, já que o sentido de tudo o que existe depende do nosso compro­ metimento, e o “meu mundo” reflete a imagem da livre eleição que faço de mim. Se sempre sou livre para desertar ou me suicidar, e no entanto aceito me incorporar às forças armadas, de certo modo faço-me responsável pela própria guerra. Esta, enquanto situação, não me é imposta: eu a escolho, elejo-a como “minha”. O valor do meu próprio nascimento no mundo não existe a priori: a mim cabe regozijar-me ou surpreender-me ou envergonhar-me com isso, se considero a vida digna ou não de ser vivida. 114

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Em cada uma das escolhas que faço, fixo um valor - e minha respon­ sabilidade é incomensurável, porque ocorre como se, a cada instante, cu esti­ vesse escolhendo também por todos os seres humanos, decidindo o que a hu­ manidade em geral deve ser. Se sou proletário e me inscrevo em um sindicato comunista em vez de uma agremiação cristã é porque, no fundo, fiz uma idéia do Homem: o comunismo é, para mim, o que mais convém à humanidade. Cada ato nosso abriga uma ligação com a humanidade inteira. Quando esco­ lho, faço-o por toda a humanidade, como se fosse o representante de todos. Escolhendo o homem que quero ser, escolho o modo como todos os homens deveriam ser: se me caso e tenho filhos, se fumo ou bebo, não vejo por que os outros devam fazer diferente. No menor gesto, na mais simples escolha eu decido, a meu modo, o que deve ser o “homem universal”. Claro que não se trata de uma decisão voluntariosa, de uma deliberação consciente ou sequer de uma atitude egoísta. Quando torço por um clube de futebol, não quero impor aos outros a minha escolha. O problema é filosófico, não psicológico. Há até casos em que parece suceder o contrário: um tirano, por exemplo, não desejaria que seus vassalos fossem como ele, mas quer exatamente que adotem valores opostos aos seus (como a obediência e a submissão). No caso, está bem evidente que o tirano não quer impor um mo­ delo de vida a seus semelhantes, pois prefere que estes permaneçam incapazes de realizar os valores que ele, tirano, escolheu (o poder, a ostentação, etc.). O que se quer dizer aqui é que o indivíduo, inventando a sua vida, sem­ pre traça a imagem do que um homem deve ser, segundo os seus juízos e va­ lores - mesmo que não faça a menor reflexão sobre isso e mantenha, diga­ mos, uma total indiferença para com os outros. Seja o militante comunista que luta para libertar o proletariado, seja o capitalista qiie,g_xplora os seus empre­ gados, não importa a vida que se leve, sempre o indivíduo, ao escolher-se, es­ colhe o universal, implica nos seus atos toda a humanidade, decide sobre aquilo que, a seu ver, convém ao Homem. Age, em suma, como se fosse o legislador universal. Daí porque cada um deve se preocupar com seus valores: afinal, que aconteceria se, de fato, todos os homens os adotassem? Nossa res­ ponsabilidade individual envolve toda a humanidade. E uma angústia moral: que valores devemos eleger, que humanidade queremos estabelecer no mun­ do? Somos livres. Resta-nos descobrir o que devemos fazer com essa assom­ brosa liberdade. Percebe-se a envergadura dos problemas éticos e sociais suscitados por tal revelação da liber­ dade humana. A questão remete à Parte II do livro. 115

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Dissimulação da angústia a) A Recusa à Liberdade Por sermos livres, somos angústia. Para mascará-la, precisamos disfar­ çar a liberdade que somos, e, nesse sentido, usamos cotidianamente diversos expedientes e truques. Mentimos a nós mesmos para acreditar que não somos livres ou responsáveis por nossos atos. Pode-se dizer, de mojdo geral, que há uma tendência do homem para se negar como liberdade. Sartre considera mesmo que a ciência, a religião, a psicologia, determinado marxismo mecanicista - acrescentaríamos, crendices populares (como a astrologia) - inventa­ ram o que chama de “ídolos explicativos de nossa época” - seja Deus, o in­ consciente, a dialética da natureza, etc. - basicamente como um esforço para sufocar a nossa liberdade, livrar-nos da angústia, eximir-nos da responsabili­ dade por nossos atos. Algumas vezes, certas doutrinas nos levam a considerar o Ser que so­ mos como um Em-Si pleno e acabado. Julgamo-nos portadores de um arqué­ tipo preexistente, um Eu profundo já perfeitamente constituído, que seria o verdadeiro autor dos nossos atos. Tal “essência imutável” nos dá a ilusão de solidez e permanência, a idéia de possuirmos uma “alma”, um “caráter” esta­ belecido, um “destino” prefixado, contra os quais nada podemos fazer. Somos apenas vítimas de uma sorte já lançada e irremediável, de um determinismo orgânico ou psicológico, e já nascemos da maneira como temos de ser. Se nascemos covardes, façamos o que fizermos, não fugiremos desse estigma. Alegamos: “Bem, agimos assim porque nossa constituição física nos levou a isso, ou por causa da hereditariedade”. E por essa razão que as pessoas, de modo geral, se comportam na vida social e profissional como guardiões desse suposto “Ser imutável” que julgam ser, desempenhando “o papel que lhes cabe”. Com isso, evitam tomar deci­ sões, procurando ser aquilo que os outros esperam que seja, fazendo uma es­ pécie de representação teatral para que possam se ver, a si mesmas, tal qual os outros as vêem, confiando aos outros a propriedade de escolher no seu lugar e guardando assim, intato, o tão temido fardo de sua liberdade. O garçom de bar que age com “atitudes de garçom”, o executivo que se comporta como “executivo”, o professor que adota uma postura professoral, 116

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todos agem como se exercer seu ofício fosse sua própria “essência imutável”, como se pudesse “ser garçom” ou “ser professor” do mesmo modo como uma raiz é uma raiz, uma couve-flor é uma couve-flor, sem direito de escolha. Nessa maneira de ser tal qual uma coisa inerte e finita, o homem quer viver como a pedra, como a estátua, em seu repouso tranqüilo. Assim, tenta disfar­ çar de si o fato de que ser garçom, executivo ou professor é uma escolha que ele fez - e, mais ainda, o fato de que, para continuar a ser garçom, executivo ou professor, deve reafirmar a cada momento a sua escolha anterior. Ninguém é para sempre isso ou aquilo. Mas o sonho de viver como objeto já totalmente constituído é uma farsa que conduz ao malogro, pois o homem é um Ser ina­ cabado, um projeto, uma perpétua totalização em andamento, jamais uma “adesão total de si a si”. Outras vezes, acobertamos nosso poder de criar os valores e agimos como crianças grandes. A criança supõe que todas as coisas já foram vistas, dominadas e classificadas pelos adultos - o que é bem tranquilizador. Aceita passivamente os sistemas de valores inventados pelos outros - valores esses que, além de refletirem uma estrutura social, tendem a preservá-la. Não ve­ mos, assim, que dispomos sempre da possibilidade de suprimir os valores herdados do passado. Não vemos que o significado das coisas deriva da nossa liberdade - e preferimos captar os valores como “provenientes do mundo ex­ terior”. Em alguns casos, culpamos os condicionamentos externos por nossas ações, dizendo: “Agimos assim porque a influência do meio me inclinou nes­ se sentido, ou porque fomos educados para isso”. Dessa forma, as pessoas procuram se conformar com o que não fizeram ou não puderam fazer, argu­ mentando que as circunstâncias conspiraram contra sua vida, “pois eu valia rnais do que fui”. Se não amaram, não tiveram grandes amigos, não escreve­ ram bons livros, nem tiveram filhos, foi porque não encontraram uma compa­ nhia ideal, não tiveram tempo para se dedicar à literatura ou a sorte de parti­ lhar com uma pessoa adequada a dedicação a filhos. Isso equivale a dizer: “Permaneceram em mim, inteiramente viáveis, inúmeras disposições, inclina­ ções, possibilidades que me dão um valor pessoal não deduzível da simples série de meus atos”. Eis uma desculpa agradável para tudo o que fazemos ou deixamos de fazer. Não queremos ver que, se somos covardes, somos responsáveis pelo ato que nos fez covardes, porque o covarde se faz covarde, assim como o herói se faz herói. Não queremos ver que cada um tem a vida que fez por merecer: 117

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“Não há amor diferente daquele amor que se constrói, não há possibilidade de amor senão aquela que se manifesta no amor, não há gênio senão o que se ex­ prime em suas obras”. O gênio de Proust é a totalidade das obras de Proust, o gênio de Racine é a série de suas tragédias. Tudo, sabemos, acha-se em ato. Por que atribuir a alguém o gênio capaz de escrever uma obra-prima literária, já que, precisamente, ele não a escreveu? “O homem embrenha-se por sua vida, desenha seu retrato - e, para além desse retrato, não há mais nada”. Exemplo típico do repúdio à liberdade é a crença em Deus. A existência de Deus, repetimos, encerra uma contradição: Deus seria um sujeito-objeto, um Em-Si-Para-Si, ao mesmo tempo dotado da plenitude de Ser que define o Em-Si (o qual se basta a si mesmo, não necessitando de mais nada para ser o que é) e consciente como o Para-Si (que não se basta, mas precisa do Em-Si para existir). O homem, em seu projeto fundamental, quer ser como Deus, po­ rém se frustra em ser todo-consciência e todo-coisa. Por uma fé irracional, idealiza esse modelo onipresente que vê a todos e não pode ser visto. Em certo sentido (que iremos esclarecer no capítulo seguinte), o homem que crê em Deus é aquele que se julga “visto pelo Outro absoluto”, e, desse modo, exterioriza-se, considera seu Ser captado de fora, enquanto objeto. Atribui-se, assim, o modo de existir de uma rocha, a consistência, a inércia e a opacidade de uma coisa (o Em-Si-Para-Si). Perde sua liberdade na plenitude do Ser, agarra-se à facticidade, tenta fazer-se objeto, como se tal fosse possível, a fim de anular a sua subjetividade livre. b) A Má-Fé Eis, nesses exemplos, a eterna procura da realidade humana em funda­ mentar-se como Ser sólido e acabado, negando a sua liberdade, a distância feita de Nada que a separa da solidez acabada do Ser. Tal projeto fundamental abriga, contudo, um problema a ser elucidado: como é possível que tenhamos condições de nos enganar, capacidade de mentir a nós mesmos sobre nossa pretensa solidez e a não responsabilidade por nossos atos? Claro que essa ati­ tude, em si, já implica sermos livres - posto que, de outro modo, não poderi-* „

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Já sabemos que a meta fundamental da consciência é criar-se a st mesma, ser o seu proprio fundamento. A idéia de Deus como Ens causa sui (“Ser causa de si”) satisfaz simbolicamente tal sonho absoluto. Mas a crença em Deus é crença em nada, pois se opõe à própria natureza psico­ lógica da crença, não permitindo qualquer operação psicológica concreta que se possa efetuar por meio de experiência ou da intuição (não podemos ver Deus ou captá-lo por intuição racional). 118

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amos negar o que somos, não poderiamos nos colocar à distância de nós para nos julgarmos como algo que não somos. Mas a faceta mais intrigante dessa dissimulação é a seguinte: ela nos permite acreditar nas mentiras que prega­ mos em nós mesmos, ainda que sabendo a verdade. Sendo a consciência uma unidade, e não uma soma de compartimentos estanques , há o problema de saber como eu posso ser, de um mesmo golpe, o enganador e o enganado. Se tudo o que se passa na consciência só pode ser explicado na própria consciência, acontece então que eu sou consciente de me enganar e também consciente de ser enganado. Como enganador, devo saber que estou me enganando. Como enganado, devo crer naquilo que inventei, ocultando a verdade de mim mesmo. Mas como posso crer que sou herói se me reconheço como covarde? Como posso me julgar condicionado e petrifi­ cado se sei que sou livre? Isso se explica pelo fenômeno da Má-Fé. Esse fenômeno é de tal importância que foi através dele que Sartre, em O Ser e o Nada, iniciou seu estudo da estrutura do Para-Si como o Ser que não é o que é e é o que não é. Porque a Má-Fé, para ser possível, exige essa dualidade fundamental: a consciência é totalmente si mesma (o enganador) e, no mesmo ato, situa-se à distância de si, para não ser totalmente si (o engana­ do). É_£vidente^qu.e, para enganar a mim mesmo, tenho de ser e não ser eu mesmo - e assim as atitudes de Má-Fé revelam a fissura interna do Para-Si que somos. Para achar que sou corajoso, mesmo não o sendo, é necessário que, em um sentido, eu não seja covarde - e também que o seja (senão estaria de boa-fé). Porque se eu fosse um “covarde” do mesmo modo como um tin­ teiro é um tinteiro, se eu estivesse atrelado ao meu “Ser covarde”, sem qual­ quer possibilidade de não o ser, se eu fosse, em suma, um Ser Em-Si, não se­ ria capaz de Má-Fé. Esta, ao contrário, é prova de que posso, como Para-Si, fazer-me de modo “não sou o que sou”, ou, o que dá no mesmo, não fazer-me do modo “sou o que sou”. Há na consciência um risco permanente de Má-Fé, decorrente do fato mesmo de que ela não-é-o-que-é e é-o-que-não-é. Na verdade, em um nível puramente ontològico, pode-se dizer que a realidade humana é sempre de Má-

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Sartre recusa a hipótese do inconsciente freudiano. Veja-se a seguir. Não devemos confundir Má-Fé com mentira. A Má-Fé é uma atitude que tomo com relação a mim, e tudo se passa na esfera da minha consciência (sou concomitantemente o enganador e o enganado). A mentira é uma atitude que assumo com relação aos outros (supõe a dualidade do enganador e do enganado). Ao contrário do que ocorre na Má-Fé, na mentira eu não acredito nessa mentira como se fosse verdade. 119

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Pé, e nem poderia ser diferente. Confirmação disso é que a atitude oposta que poderiamos tomar com relação a nós mesmos - a sinceridade - é de todo im­ possível. Se não, vejamos. O “campeão da sinceridade” é aquele que decide ser exatamente aquilo que é, sem reticências: “Sou issò, e ponto final”. Então, o que ele almeja é ser para si mesmo aquilo que ele é, em uma coincidência total consigo mesmo. Ocorre que esse “ser si mesmo”, como um Em-Si, não existe para a consci­ ência. Alguém que confessa “ser mau”, querendo possuir um caráter inanima­ do de mau, um ilusório ser-mau-em-si, totalidade acabada, no mesmo mo­ mento em que pretende ser essa total fusão com uma suposta “coisa que ele é”, evade-se dela, põe-se à distância para contemplá-la, tomar sobre ela um ponto-de-vista, decidir sobre sua permanência ou não, e então dizer “sou mau”. A sinceridade, para existir, exigiría que o homem fosse somente aquilo que é o que é. Além disso, na realidade humana, o “ser isso” e o “não ser isso” não diferem muito. “Ser covarde”, por exemplo, não é uma coisa do tipo Em-Si, mas é projeto, totalização-em-curso, logo algo que sempre se pode questionar, evanescente, suscetível de mudanças - algo próximo de “não ser covarde”. Nunca posso ser total e verdadeiramente “covarde”. Para compreender melhor a Má-Fé e o irrealizável da sinceridade, eisnos agora no cerne da questão: a própria essência das atitudes - a fé, a crença propriamente dita. Na crença, a consciência se põe frente a um objeto não cla­ ramente dado ou totalmente oculto. O caso de tudo o que se passa na realida­ de humana: temos crença na genuinidade do nosso amor, depositamos fé em certo modo nosso de ser, etc. O que a crença pretende é realizar o Ser do “crer” à maneira de um Em-Si: ter a certeza da crença, crer no que se crê, as­ sim como o ideal da sinceridade é ser o que é. Mas novamente recaímos aqui em uma impossibilidade: crer é “saber que se crê”, é um ato de consciência, logo, um projeto, algo sempre por totalizar, colocação à distância do objeto, etc. Daí por que a crença nunca é suficientemente crença. Nunca se crê o bastante. Nunca se realiza o “Ser Em-Si da crença”. De certo modo, crer é não crer. A Má-Fé virá assim a utilizar essa auto-destruição da crença. Ela consti­ tui uma disposição natural e não-voluntária da realidade humana para dar-se por satisfeita com mentiras e não-evidências, para preferir o duvidoso ao cer-* *

Só podemos ser sinceros quando nos referimos ao passado (“fui covarde”), porque, no passa­ do, já deparamos com o nosso Ser plenamente constituído. No presente, o “ser covarde” é um projeto que se faz, uma liberdade agindo para ser covarde. 120

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to, para entregar-se persuadida c sem resistência à não-persuasão, escolhendo a suposição em vez da convicção. Pela Má-Fé, minha consciência se determi­ na a convencer-se, mal convencida, de que sou o que não sou, ou de que não sou o que sou. Não se trata de um ardil que empregamos cinicamente, ou de um ato voluntário culposo: ao contrário, não podemos saber que agimos de Má-Fé, porque, se o soubéssemos, apenas estaríamos ludibriando os outros (o caso da mentira). Por causa da desintegração íntima de seu Ser é que, por exemplo, um covarde persuadido de sua valentia ou uma mulher que, embora entregando-se sexualmente ao amante, julga-se em uma relação espiritual mais elevada, são capazes de agir de Má-Fé.

Crítica ao determinismo psicológico a) Pragmatismo, Behaviorismo, Gestaltismo O que já sabemos do Para-Si enquanto projeto, temporalidade, nadificação, etc., nos possibilita rechaçar a tendência dominante em doutrinas psico­ lógicas de considerar a consciência como máquina controlada por estímulos. Esse condicionamento é puro determinismo: cada estado psicológico apresenta-se como efeito determinado automaticamente por uma causa interior (o in­ consciente) ou exterior (meio social, educação, hereditariedade, etc.). É um mecanicismo que suprime da consciência qualquer sinal de espontaneidade, autonomia ou responsabilidade, e reflete bem a tentativa, antes mencionada, de mascarar a liberdade, negar a translucidez da consciência, segundo o an­ seio de constituir o Para-Si como ser plenamente dado e acabado (Em-SiPara-Si). Essa tendência se mostra claramente no tocante às emoções. O pragma­ tismo, elaborado por William James (1842-1910), definiu a emoção como consequência de perturbações orgânicas (tensão arterial, aceleração do ritmo respiratório, etc.). Mas essa teoria não explicou de que forma uma certa alte­ ração fisiológica poderia motivar uma emoção correspondente. E muito me­ nos por que uma mesma perturbação orgânica provocaria emoções de tipos variados (por exemplo, a taquicardia é acompanhada às vezes por angústia, 121

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outras vezes por euforia, etc.)- Contestando essa interpretação fisiològica, Pi­ erre Janet (1859-1947) classificou a emoção como efeito provocado por um insucesso: situações que nos exigem demasiado nos impelem a uma reação emocional (choramos porque não podemos suportar um grande tormento). Todayia, Janet não viu que um fracasso não pode agir sobre a consciência: como sabemos, é o próprio projeto livre que decide o que é ou não insucesso e qual a situação que nos parece insuportável. Janet colocou o efeito (o insu­ cesso) antes da causa (a conduta emocional). Praticamente dominando todo o modelo psicológico norte-americano, o behaviorismo de John B. Watson levou a extremos limites a recusa da subje­ tividade livre. Reciclando a teoria dos reflexos condicionados de Pavloy, Watson reduziu o homem ao estado de objeto condicionado de fora, afirman­ do: “Dêem-me um bebê, e dele farei um ladrão, um pistoleiro ou um toxicô­ mano. A possibilidade de moldá-lo em qualquer direção é infinita”. Ora, co­ nhecemos já os argumentos contrários a essa doutrina: o mundo exterior não pode motivar a consciência a adotar esse ou aquele estado psicológico, seja porque os objetos não têm força para agir sobre nós, seja porque o próprio mundo só se manifesta à consciência depois que esta o descobre e, pelo proje­ to, lhe atribui esse ou aquele sentido. Um avanço foi registrado pela teoria da Gestalt (em alemão: “forma”), criada por Max Wertheimer (1880-1943). De certa maneira, a psicologia da forma tratou de inverter a hipótese de Janet: uma situação problemática não pode determinar uma emoção; pelo contrário, assumimos uma conduta emo­ cional porque nós mesmos conferimos à situação o sentido de “problemática”. Em uma operação aritmética que não conseguimos resolver, rasgamos o pa­ pel. Para responder à humilhação e amedrontar os outros, encolerizamo-nos. Há aqui uma intuição correta do projeto (“partir para...”). Mas, os gestaltistas terminaram recaindo no mecanicismo, porque conservaram a idéia de que um estado psicológico decorre do estado anterior (rasgamos o papel porque não conseguimos realizar a operação aritmética; encolerizamo-nos porque fomos humilhados). -------------- —

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b) A Psicanálise Freudiana: o Inconsciente A teoria psicanalitica de Sigmund Freud (1856-1939) teve o mérito de mostrar que os atos humanos contêm um sentido simbólico, representam mais do que aparentam. Contudo, pelo fato de nem sempre sabermos as razões que 122

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nos levam a nos emocionar, a adotar esse ou aquele estado psicológico, Freud concluiu que as emoções seriam resultado de causas provenientes do fundo obscuro da psique - o inconsciente, porão subjetivo onde repousariam os “instintos básicos” do homem. Na consciência não haveria senão representa­ ções simbólicas de conteúdos ocultos no inconsciente. A censura (superego) Freud atribuiu a missão de “vigiar” os impulsos emitidos do inconsciente, libertando-os ou reprimindo-os. Desse modo, Freud infringiu o princípio de unidade da consciência. Para explicar como frequentemente agimos de Má-Fé, cindiu em dois a massa psíquica: o consciente seria o enganado; o inconsciente e a censura fariam o papel de enganadores. Imaginou, assim, uma espécie de “mentira sem menti­ roso”, já que apenas o significado dos nossos pensamentos seria acessível à consciência, mas não a causa desse significado. A parte enganadora de nós mesmos ficaria oculta no inconsciente. Estaríamos, em consciência, eterna­ mente enganados, mas sem sermos conscientemente nossos próprios engana­ dores. Como entender então uma emoção ou um desejo? Como posso amar ou odiar alguma coisa, sentir inveja, prazer e até mesmo fome se não está ao meu alcance saber o que isso significa? No máximo, eu poderia sentir essas emo­ ções sem saber o que elas são, o que é absurdo. A consciência, para Freud, constitui-se em significado, sem estar consciente da significação que, afinal, ela mesma também constitui. É o mesmo que dar à consciência um papel se­ cundário e passivo. Foi, a rigor, exatamente isso o que Freud fez: a consciência aparece aqui comandada pelo inconsciente - um conjunto de fatos psíqui­ cos que atuam sobre a conduta do indivíduo mas escapam ao âmbito da consciência e não podem ser trazidos a esta por nenhum esforço da vontade ou da memória, aflorando apenas nos sonhos, nos atos falhos , nos estados neuróticos ou psicóticos. Refere-se Freud ao caso bastante comum do paciente que resiste ao psi­ canalista quando este se aproxima da revelação de um trauma: mostra-se des­ confiado, nega-se a falar, mente sobre seus sonhos, etc. Ora, se a pessoa re­ correu à terapia por decisão consciente, não teria por que se inquietar com a descoberta da verdade e uma possível cura. Assim, a teoria freudiana supõe uma reação vinda do próprio inconsciente que se quer elucidar - um papel exercido pela censura. Mas, na verdade, a censura, para agir, deveria ser não Ato falho, em Freud, é a interferência, em um ato intencional, de outro, acidental e aparente­ mente sem propósito, produzido pelos mecanismos secretos de um desejo inconsciente. 123

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inconsciente, mas absolutamente consciente (a) de si mesma, enquanto ativi­ dade repressora, atribuindo-se uma função, uma utilidade; (b) da validade ou à não dos impulsos que precisa vigiar, liberando alguns e reprimindo outros; (c )desses mesmos impulsos, do que eles representam, para saber quais deve reprimir e quais deve liberar. Com a censura inconsciente, Freud criou uma espécie de “consciência autônoma” de Má-Fé: a consciência de rèprimir para não ser consciente disso. Em outras palavras, Freud apenas transferiu para uma suposta região inconsciente um processo típico da consciência, a Má-Fé, pela qual temos consciência de reprimir o que somos para não sermos consci­ ência disso. Nesse particular, Sartre baseou-se nas conclusões do psiquiatra Wilhelm Stekel (1868-1940), que contestou o inconsciente freudiano, equiparando-o à Má-Fé. A psicanálise freudiana precisou conceber “impulsos inconscientes que comandam a nossa ação” para explicar por que, por exemplo, realizamos o ato de escrever ou dirigir um automóvel sem refletirmos sobre esse ato mesmo (geralmente, escrevemos pensando no que queremos dizer, sem in­ tencionar nossa conduta de “pessoa que escreve”, ou podemos dirigir um car­ ro conversando com os passageiros, alheios à técnica de dirigir propriamente dita). Ora, o inconsciente jamais seria alcançado pela consciência, e, no entan­ to, podemos a qualquer momento abandonar o plano irreflexivo a fim de in­ tencionar o próprio ato (quando dirijo um carro, se nos dizem para prestar atenção no trânsito, abandono a conversa e passo a pensar no volante, nas marchas, etc.). Foi o que vimos ao tratar do cogito pré-reflexivo. Ainda que a técnica de escrever ou dirigir automóvel pertencesse a um inconsciente, ela não poderia determinar nossa escrita nesta ordem, com estas palavras, nem o comando do nosso carro com este trânsito, estas curvas, estes imprevistos, etc. Já não haveria liberdade, mas comando à distância. Ficaría­ mos a escrever e dirigir um automóvel como autômatos, colocando no papel algo predeterminado, guiando o veículo segundo um rumo e uma velocidade prefixadas. Ao apartar, no pensamento, a causa do efeito do significado dos nossos atos, Freud tornou inconcebível o pensamento mesmo. Para que a consciência seja possível, deve conter causa e efeito da significação de todo ato como um elo infra-estrutural. É certo que por vezes Freud reconhecia para o inconsciente proprieda­ des que dizem respeito à consciência (projeto, finalismo, etc.), mas quase sempre conservou o inconsciente como uma determinação mecanicista, in­ compatível com a noção de Para-Si. Sem dúvida, há coisas que desconhece124

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mos em nós mesmos - mas isso se deve a que a consciência não é obrigatori­ amente do tipo cognoscente. O inconsciente seria uma consciência nãocognoscente que jamais pode se conhecer. Mas o que acontece na realidade é que a consciência sempre pode passar do plano não-cognoscente para o plano cognoscente. Sim, existe a Má-Fé: a consciência tem a astúcia de esquecer isso ou aquilo, às vezes submerge na ausência total de conhecimento sobre si, faz-se opaca para si. Tal não indica a existência de uma outra consciência autônoma por trás da própria consciência, a conduzi-la por controle remoto. c) A Psique Dá-se nessas teorias deterministas uma apreensão não filosófica da rea­ lidade humana: os psicólogos consideram a consciência como purajjsique. E o que Sartre chama de “reflexão impura”. Sabemos que a consciência reflexi­ va, ao interrogar a consciência irreflexiva, não realiza propriamente uma rela­ ção de conhecimento: a consciência irreflexiva forma um todo com ela, e, as­ sim, de modo algum poderia ser “um objeto a contemplar”. No entanto, psicó­ logos - fazendo coro com o homem comum - tendem a forjar uma suposta “relação de conhecimento” quando pensam no próprio pensamento: por meio de uma “reflexão impura”, como que “contemplam” a consciência tal qual fosse ela um “objeto conhecido”, igual a qualquer Ser do mundo objetivo. Para psicólogos, todas as manifestações da consciência se integram em uma unidade, a psique, que possui a mesma condição ontològica de um Em-Si. A psique é uma espécie de receptáculo que “contém coisas” (imagens, percep­ ções, emoções, etc.). São os chamados “objetos psíquicos”. O comum das pessoas incide na “reflexão impura”: encara a sua própria consciência como psique - ou seja, um Em-Si com outro nome. Os estados da consciência lhe surgem, na reflexão, enquanto coisas objetivas, inertes e da­ das para sempre. Incorre-se aqui na já referida “ilusão de imanência”, que in­ troduz substância e opacidade na consciência, obscurecendo-a enquanto ParaSi, ou seja, enquanto translucidez, transparência total, “presença a”. Psicólo­ gos não agem diferentemente: a consciência é apenas psique, não mais que isso, um puro Em-Si e, como tal, algo já finito e determinado. Como sabemos, tudo o que pertence ao mundo do Em-Si é passado. Assim, na psique, a consciência aparece, enquanto passado, já absolutamente “constituída”. Nela, até o futuro já está dado a priori. Por isso é comum a fé que as pessoas de­ positam na perenidade de um amor, ou a convicção que costumamos ter de que não corrigiremos jamais os nossos vícios. ,

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Isso está certo, se limitamos a consciência ao estado de psique: de fato, a psique representa toda a nossa vivência acumulada até aqui, tudo aquilo que interiorizamos no passado (até esse passado mais imediato). Sartre não nega a psique e reconhece que psicólogos, assim como os homens em geral, a ela se atrelam por causa de uma tendência natural de sua condição: a “reflexão im­ pura” traduz o esforço que a consciência faz para captar-se como Ser acaba­ do, para se apreender de um modo que console a nossa nostalgia de existir à maneira do Em-Si, com o sereno repouso de uma estátua de pedra. Identificamos na “reflexão impura” (ou “cúmplice”) o projeto funda­ mental da realidade humana (existir como Em-Si-Para-Si) e o fenômeno da Má-Fé que nos possibilita camuflarmos a nossa liberdade para viver no estado de coisa já constituída. A “reflexão impura” - que “contempla” o Para-Si como um Em-Si - representa bem, como diz Sartre, “o drama do Ser (o Paradû) que não pode ser objeto para si mesmo “. E um esforço de recuperação do Para-Si por si mesmo, para chegar a um Para-Si que seja Si. Não que não se faça esforço para isso. Por exemplo, quero me ver como algo já dado e acaba­ do, dizendo “sou um homem apaixonado”. Tento me reconhecer apenas como “algo que é o que é”: a paixão aparece enquanto coisa autônoma que me foi imposta, e “sou essa paixão” assim como “uma árvore é uma árvore”. Porém, por mais esforço que despenda, não posso deixar de ser consciência livre. Em meu projeto de ser um Em-Si-Para-Si, quero viver como coisa, mas sendo consciência. Por isso, viso recuperar-me enquanto consciência, no mesmo movimento em que me afirmo como coisa: assumo a respeito da psique a postura de um espectador sobranceiro que pode, quando bem lhe apetecer, dominá-la: “Sou apaixonado, mas posso me controlar pela força de vontade”. Ou seja, agora já reconheço a paixão como a minha própria consciência se manifestando livremente. Não há como escapar a essa contradição. Já a “reflexão pura” toma a consciência de projeto vão de sermos um Em-Si-Para-Si e descobre a consciência inteira como Para-Si: espontaneidade, transparência, nadificação, temporalidade, carência de Ser, projeto, etc. A psique não é negada: existe, mas só enquanto Em-Si, puro passado, inércia já constituída. A psique é o dado que o Para-Si transpõe, pelo projeto, no rumo dojfuturo. O Para-Si jamais se reduz a ser apenas psique, posto que é a supera­ ção mesma da psique, o ultrapassamento da psique (o já feito) em um eterno salto para o fazer-se. Só sobre uma consciência morta pode-se falar em psique como a sua única forma de existência. A psique é uma totalidade já termina­ da, mas o Para-Si é isso e mais do que isso: uma totalização que se totaliza sem cessar. 126

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Psicólogos atuam como os cientistas ao definir o corpo: mantêm um ponto-de-vista exterior sobre o paciente. Mas o paciente não é um Em-Si, não pode apreender-se do modo como é visto pelo outro: ele vive a sua consciên­ cia como Para-Si (perpétuo ultrapassar do dado e propensão ao futuro), e não como psique (inércia passada). Se tento me encarar da maneira como psicólo­ gos definem o que sou, incorro na supracitada contradição.

A psicanálise existencial a) A Perda do Indivíduo O determinismo e a “reflexão impura” não são os únicos pontos discutí­ veis da psicologia clássica e da psicanálise freudiana. Ambas também partem do pressuposto de que o indivíduo é produzido por leis abstratas e universais. Além de admitir uma ação mecânica do meio ou da psique sobre o sujeito, essa generalização dificulta a compreensão do que seja uma pessoa concreta e singular. As leis gerais (“vontade de poder”, “libido”, “projeção”, “transferência”,etc.) despontam como caracteres comuns a todos os homens. O abstrato surge antes do concreto, ou seja, antes do caso individual de de­ terminada pessoa. O homem é a priori “sexualidade” ou “vontade de poder”, e isso é um determinismo, pois os complexos existem antes sequer de serem encarnados em uma figura humana, como se flutuassem no espaço “à espera de suas vítimas”. Assim, para explicar, por exemplo, por que certo indivíduo como Gus­ tav Flaubert manifestou disposição literária, a psicanálise recorre a estruturas genéricas, como “desejo da adolescência em geral” ou “sonho de um ambici­ oso”. Mas nada disso explica por que Flaubert decidiu ser escritor em vez de ser médico. Os postulados gerais sobre a psicose, por exemplo, não levam à compreensão de um exemplo individual (por que este homem deseja ser Na) poleão, e não Adolf Hitler). Fazer de Pedro, um desportista, algo como “um membro da família dos que amam o esporte” é uma postura comum em psico­ logia. Tem-se a impressão de que a “tendência ao jogo” existe em suspenso na existência, primeiro, para depois materializar-se em um caso concreto. O “complexo de Édipo” é também algo que “vitima” grande número de pessoas, mas não se pode reduzir essas pessoas a um único conceito explicativo gené-

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P aulo P e rdi o ã o rico: cada uma delas tem a sua maneira peculiar de viver esse complexo; e, sem dúvida, fazem-no de forma tão específica que, levada ao extremo rigor, a , . à expressão “complexo de Edipo” já não serve como explicação geral para nin­ guém. O complexo, portanto, é algo universal que só existe quando se encar­ na em um caso singular. b) Singularidade e Unidade Sintética Desse modo, fica-se sem saber por que este homem em particular res­ pondeu desta maneira à sua situação. Uma disciplina nova - a psicanálise existencial - deve ter, por princípio, negar essa impregnação de teorias gerais e abstratas em uma vida singular. A psicanálise existencial precisa obter res­ postas específicas a perguntas específicas. Seu objetivo será mostrar como certo indivíduo escolheu viver precisamente a vida que vive, esta e não oütra qualquer - fato que os padrões da psicanálise freudiana não revelam. A psica­ nálise existencial deseja saber como este homem experimentou a sua situação, de maneira única, propriamente sua e de mais ninguém. Evidentemente, essa nova disciplina não pretende fazer o sujeito tomar consciência de si (já que ele é sempre consciente), mas sim fazê-lo tomar co­ nhecimento de si (pois nem sempre a consciência é cognoscente). Almeja, em uma palavra, encontrar uma eleição única: a que determinado indivíduo fez de si mesmo. Descobrir o projeto fundamental. Sabemos que cada escolha que faço, por mais banal que seja, representa a minha decisão sobre a espécie de homem que sou, a espécie de mundo onde vivo e a espécie de vida que levo. Embora cada ato humano pareça parcial (por exemplo, ao 1er um livro não manifesto o meu gosto pela música) e em­ bora cada um deles seja suscetível de novos desenvolvimentos (um gesto de ciúme pode anteceder uma conduta afetuosa), essas escolhas não são episódi­ os isolados, mas cada uma delas se integra às demais em uma totalização-emcurso. Quer dizer: em cada ato humano encontramos a pessoa inteira. Gostar disso ou daquilo, ter isso ou aquilo, fazer isso ou aquilo significam um tipo de Tendo desenvolvido em seus últimos escritos esse conceito do “universal singular” para defi­ nir um homem, Sartre criticou igualmente freudianos e marxistas por explicarem o indivíduo por uma causa única. Como os freudianos poderiam justificar pelos impulsos sexuais a escolha que fazemos de um filme para ver ou um amigo que convidamos para jantar? E como os marxistas conseguiríam definir a atração que sentimos por determinada mulher de acordo com os funda­ mentos econômicos e as classes sociais? 128

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relação global do indivíduo com o mundo, uma eleição que cada um faz de si. Até na mais insignificante conduta - já afirmava Heidegger - deparamos com a expressão do todo da realidade humana. Não há um tique, um gesto, que não testemunhem o que somos inteiramente. Em outros termos, ao contrário das concepções da psicologia clássica", a consciência não é uma “coleção” de elementos isolados ou desconexos (temperamento, desejos, emoções, vícios, vocações, etc.), mas deve ser trata­ da como uma unidade sintética que - embora distinta na soma de suas partes - se reencontra integralmente em cada uma delas. Por exemplo: a emoção. Em geral, para o psicólogo a emoção é um fato acidental, que “nos acontece”. Mas o homem emocionado investe na emoção todo o seu Ser. A emoção é a realidade humana que “se dirige emocionada” para o mundo, é o Para-Si fa­ zendo-se “emocionado”, assim como pode se fazer “atento”, “compreensivo”, “desejoso”, etc. A significação real de uma emoção como o ódio é a própria relação que o Para-Si estabelece com o mundo. Em cada momento de sua manifestação o Para-Si aparece todo inteiro. Isso não quer dizer que um ho­ mem revoltado não possa ser também uma pessoa afetuosa, e sim que, na manifestação da revolta, seu Ser é, todo ele, um “Ser revoltado”. Exclui-se assim a hipótese de que o homem possa ter potências ocultas, como se fosse capaz de revelar apenas um ou outro aspecto de si, conservando em repouso os demais aspectos. Tudo está em ato na realidade humana: o que existe no Para-Si é somente aquilo que aparece de alguma maneira. c) Investigação do Projeto Compete ainda à psicanálise existencial reconhecer que a realidade hu­ mana se anuncia e se define pelos fins que persegue (o projeto). Deve investi­ gar então esses fins. A psicanálise freudiana ocupa-se do passado, dos trau-* *

A teoria da Gestalt é caso à parte, porque considera os fenômenos psicológicos não como soma de elementos a isolar e analisar, mas como conjuntos em que o modo de ser de cada ele­ mento depende da estrutura do conjunto. Na psicanálise existencial, o terapeuta já não encara o paciente como um conjunto de catego­ rias diagnosticas, um campo de forças ou um feixe de instintos, mas como um homem - ou seja, uma totalidade inacabada que não pode ser fragmentada em instintos estanques ou conjuntos se­ parados de estímulos e reações, nem considerada uma unidade acabada e inerte. A realidade de cada homem apresenta-se, pois, como sendo, em cada ato, tudo o que manifesta ser, sem potên­ cias ocultas, e, simultaneamente, como projeto, totalização-em-curso. 129

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mas de infância, mas o passado não determina o que somos, e sim o futuro. Claro que o passado exerce o seu papel, como sabemos, mas os “complexos”, os “traumas”, não têm a função que lhes é dada pela psicanálise tradicional: esses elementos são tidos por ela como irredutíveis, além dos quais nada mais existe, limites últimos, fundamentos absolutos do que somos. A psicanálise existencial irá demonstrar que o projeto fundamental antecede esses dados. E uma disciplina que busca dar ao homem plena consciência de sua livre elei­ ção, consciência de sua responsabilidade, e jamais convencê-lo de ser “determinado” por leis gerais ou forças que comandam à distância seu supos­ to Ser objetivado. A psicanálise existencial resta a missão de apurar de que modo transparece nas diversas condutas humanas o sentido do projeto funda­ mental (o desejo de ser Em-Si-Para-Si). Eis um exemplo simples, examinado à luz da psicanálise existencial: parto em excursão com alguns amigos e, a certa altura, desisto de caminhar, enquanto os outros prosseguem, embora tão cansados quanto eu. Minha desis­ tência é um ato livre da consciência, como já sustentamos anteriormente em exemplo similar (não é a fadiga muscular que determina a minha escolha). Pois bem: tal decisão se apoia em um projeto fundamental, que bem poderá ser a minha disposição originária de me “negar como corpo” e viver o máxi­ mo possível enquanto consciência livre (eliminei o cansaço físico a fim de sentir menos que “tenho um corpo”). Sou, porém, livre para retomar a marcha, desde que transforme brusca e radicalmente aquilo que sou, a eleição originária que faço de mim mesmo. Deixo então de ter horror à contingência da matéria e irei padecer minha fadi­ ga com meus amigos, agora com base em outro projeto: o de abandonar-me ao Em-Si, entregar-me ao corpo e ao mundo das coisas, para experimentar o sol, o calor, as dores musculares, integrando-me à paisagem e à natureza o máximo que posso. Dessa maneira, passo a negar-me enquanto consciência livre, na medida do possível, para existir como puro objeto corporal, ainda que isso nunca venha a acontecer efetivamente.*

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O leitor pode multiplicar os seus próprios exemplos, verificando quando a pessoa assume a sua liberdade em detrimento da facticidade do Em-Si ou, ao contrário, disfarça essa liberdade em benefício da tranqiiila estagnação da coisa. 130

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A esquizofrenia a) O Imaginário Absoluto O postulado da liberdade humana não pode excluir o caso da conscien­ cia alucinada, em que o individuo parece cativo de seus delírios de imagina­ ção. Se devemos preservar aquele postulado, a esquizofrenia, tal qual a emo­ ção, não deve ser interpretada como uma “perturbação” ou “anomalia” da mente, e sim corno um modo de escolhermos livremente a nossa presença no mundo. Melhor: a chamada “doença mental” precisa ser vista como “uma es­ tratégia que o organismo livre, em sua unidade total, inventa para poder viver uma situação intolerável”. A esquizofrenia é uma radicalização da conduta emocional. Vimos que a emoção é uma tentativa de transformarmos ficticiamente o mundo real, um “passe de magia” com que matizamos o mundo para que este sirva às nossas intenções. Mas o esquizofrênico não se satisfaz com esse “modo mágico” de perceber o real. Para ele, a realidade é a tal ponto insuportável que, em vez de procurar alterá-la pela emoção, dela foge completamente, entregando-se a um “outro mundo”, inteiramente imaginário. Ambos, o homem emocionado e o esquizofrênico, tentam igualmente viver o mundo como se este estivesse sob seu domínio. A diferença é que a emoção constitui uma percepção fantasiosa do real, enquanto a alucinação é uma fuga ao real e uma imersão no irreal. O mundo imaginário seduz o esquizofrênico porque não oferece quais­ quer coeficientes de adversidade. Nele, tudo depende da nossa intenção, seus ** objetos e personagens são totalmente passivos e inócuos. Tal como o sonho, a alucinação é um mergulho completo nesse mundo irreal, totalmente fechado Criticando a filosofia cartesiana, Michel Foucault diz que ela deixa a impressão de que todos os homens gozam sempre de um juízo perfeito. O racionalismo teria esquecido os alucinados. Mas a objeção não se aplica ao racionalismo sartriano. Note-se que Sartre foi um dos primeiros intelectuais a descrever em livros a sua própria experiência com alucinógenos: um psiquiatra ministrou-lhe mescalina, em 1935, quase vinte anos antes que Aldous Huxley se submetesse à mesma prova para escrever As Portas da Percepção (1953). ** ' ' ,. E falso que uma imagem possa “agir” contra nós, provocando, por exemplo, uma reação físi­ ca. Não é uma imagem repugnante que pode me causar uma reação de náusea. Ocorre o contrá­ rio. É uma reação física, a manifestação do corpo, que provoca a aparição da imagem: ao criar a imagem repugnante, eu já estava nauseado. 131

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em si, com suas dimensões próprias de espaço, tempo e ação. Um mundo em que até o Eu é imaginário. Prova disso: às vezes sonhamos uma cena como se a observássemos com os nossos olhos; outras vezes, vemo-nos situados à dis­ tância. Posso sonhar que estou sendo perseguido e me tranco em um quarto: sou capaz de ver não apenas a porta que tranquei, do meu ponto-de-vista, mas também o outro lado da porta, e o perseguidor que tenta abri-la. b) Percepções e Imagens Para que se dê essa entrega total ao imaginário, própria da esquizofre­ nia, é necessário que: (a) a consciência decida pela absoluta impossibilidade de percepção, ou seja, prive-se da faculdade de perceber o real; (b) a consci­ ência se deixe fascinar integralmente pela imagem, fazendo-se de tal maneira que não possa dispor de recursos para escapar ou resistir a essa sedução. Portanto, o alucinado não pode concomitantemente imaginar e perceber. Mas há casos em que o esquizofrênico parece, de fato, imaginar um objeto ir­ real em um espaço real (vendo, por exemplo, um centauro no consultório do psiquiatra) ou então dialoga consigo mesmo, parecendo falar por si e também por um interlocutor imaginário. Por essa razão, o psiquiatra costuma supor que o paciente se acha ao mesmo tempo no plano do real e do irreal. Na ver­ dade, o psiquiatra se ilude, porque, para ele, enquanto o paciente e a sala estão no nível da realidade, o centauro e o interlocutor situam-se no plano alucinatório. Mas o alucinado não vê as coisas dessa maneira: para ele, a sala onde se encontra e sua própria pessoa aparecem como irreais. Só o fato de o paciente afirmar “ver um centauro” ou “dialogar com alguém que não existe” já indica que se colocou na irrealidade e que a sua percepção dissipou-se. Da mesma forma, o esquizofrênico não confunde imagens e percepções. Como sabemos, isso é impossível, porquanto toda consciência posicionai (cognoscente) da imagem encerra uma consciência não-posicional de si como sendo “de natureza não perceptiva”. Em outras palavras: ao pensar uma ima­ gem, tenho consciência pré-reflexiva de que essa imagem não é uma percep­ ção. A esquizofrenia não foge a essa regra. Contudo, psiquiatras costumam supor que o alucinado confunde o real e o irreal, não sabe que suas imagens não passam de imagens e deixa-se convencer por elas, vivendo o imaginário “como se fosse real”. Daí por que reagiria às imagens como realidades, an­ gustiando-se, sentindo-se ameaçado, em pânico, etc. Reações desse tipo acontecem, mas não porque o esquizofrênico tome imagens por percepções. Aliás, a consciência alucinada representa mesmo a 132

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decisão de querer o inundo imaginário exatamente por ser um irreal. Um lou­ co que se imagina rei não se contentaria com um reinado de verdade, porque esse reinado, como tudo o que é real, contém possíveis que escapam a seu controle, e, nele, tudo é imprevisível. O que o louco deseja é ser rei de fanta­ sia, e desfrutar do conforto de um mundo cujas possibilidades se conservam sob o seu domínio e que não trazem outras conseqüências além daquelas que o louco pretende tirar. O que se passa, no caso da alucinação, é que a consciência não reflete sobre si, o cogito pré-reflexivo faz-se incapaz de se converter em reflexão. A consciência alucinada permanece no plano do irreflexivo: ela simplesmente conhece a sua alucinação, sem se conhecer como “consciência de uma aluci­ nação”. A “consciência da alucinação como tal” se conserva em estado nãocognoscente, no cogito pré-reflexivo, aqui em permanente repouso. Ocorre uma espécie de desintegração interna da consciência que impede um pensa­ mento orientado, harmônico e capaz de concentração e atenção. Nesse “estado crepuscular”, a consciência não pode meditar sobre si. Privada da fa­ culdade de perceber e da noção mesma do que é a realidade, também encontra-se incapacitada para se reconhecer como consciência imaginante. Desse modo, o esquizofrênico não faz uma reflexão sobre a natureza (real ou irreal) de seus pensamentos. Da mesma forma como não os considera imaginários, também não poderia tomá-los por perceptivos. c) A Crença na Alucinação Se a consciência não permite equívocos entre imagens e percepções e não pode experimentar ambas concomitantemente, resta explicar como o es­ quizofrênico - tal qual o homem adormecido - pode sobressaltar-se com as suas alucinações. Seduzida sem resistência pelas imagens, impossibilitada de reflexão, a consciência alucinada acredita simplesmente nelas, sem colocar em questão a sua veracidade. Toda crença é de natureza cega e não-reflexiva. Fenômeno semelhante se passa durante a leitura de um romance. Acreditamos É por refugiar-se no imaginário que o esquizofrênico não quer curar-se, a menos que mudem as condições reais da sua existência, a função repressiva das instituições sociais (incluindo os asilos). A esquizofrenia tem sido entendida pela chamada anti-psiquiatria, sob influência direta de Sartre, como uma forma de rebelião, uma recusa consciente do mundo real. Também a neuro­ se já não é uma “deficiência de ajustamento”, mas uma forma superior de ajustamento: uma de­ liberada auto-defesa. Ninguém “é feito” neurótico: todos “se fazem” neuróticos. 133

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nas aventuras descritas no livro, somos enfeitiçados por elas, embora nem pòr isso as consideremos reais. Somos atraídos pelas vidas dos heróis das novelas assim como o alucinado é atraído por suas imagens. É o fenômeno da crença que nos induz, por exemplo, a experimentar angústia assistindo a um filme de suspense, embora não tomemos a imagem projetada do filme em uma tela como uma cena real. A diferença entre a alucinação e a leitura de um romance ou a visão de um filme reside no fato de que a angústia ou surpresa, no caso do livro ou do filme, advém do nosso próprio desconhecimento do que irá acontecer. Já no imaginário, como sabemos, tudo está previsto, nada nos aparece que não sai­ bamos de antemão. Quando experimento uma imagem e mantenho minha percepção do real, nada me surpreende no plano imaginário. Dirigindo meu automóvel em uma estrada, posso prever um fato futuro, imaginando um aci­ dente. Mas, já que posso perceber o real, a imagem desse acidente que não ocorreu conserva seu caráter inofensivo de simples possibilidade. Agora, se a consciência privou-se da percepção, no caso da esquizofrenia, toda previsão adquire caráter de fatalismo e inevitabilidade.' E o que acontece no sonho. Quando sonho que dirijo meu carro e prevejo um acidente, o acidente ocorre instantaneamente. No imaginário não há espera para a ocorrência de uma previsão. Daí por que, no sonho ou na alucinação, quando estamos impossi­ bilitados de refletir sobre a natureza real ou irreal dos nossos pensamentos, esse imediatismo pode ter a força de nos sobressaltar. Porém, dir-se-á, em alguns casos tanto o homem que sonha quanto o alucinado pensam que suas imagens são de fato verdadeiras. Sem dúvida, mas isso somente se verifica no plano da memória, quando já essas imagens caí­ ram no passado. A consciência do alucinado só pode refletir sobre a alucina­ ção se já estiver fora da alucinação, da mesma maneira como só podemos re­ fletir sobre um sonho estando já acordados. É comum ao alucinado experi­ mentar lampejos de reflexão, e, nesses casos, ao aparecer a consciência refle­ xiva, ela já não encontra imagens, mas apenas a lembrança dessas imagens, aparecidas em um passado imediato. Sabemos que, na memória, uma imagem pode passar por objeto real. O alucinado, assim, está sujeito a iludir-se. O mesmo transcorre no sonho. Por vezes, quando sonhamos, pensamos que re­ almente “estamos sonhando”: houve então aquele lampejo de despertar que possibilita uma reflexão, ainda que breve. __________________________ _________________ Outras vezes, durante o sono, pensamos: “Isso não é um sonho, é real”. Aqui, contudo, deu-se apenas uma falsa reflexão, um ato reflexivo imaginário, já que a verdadeira reflexão não poderia confundir imagens com percepções.

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d) Uma Pobreza Essencial Falta entender, por fim, por que o mundo imaginário procurado pelo es­ quizofrênico redunda em angústia e insatisfação. O recurso ao imaginário não obtém o êxito esperado, e isso porque o esquizofrênico quer possuir as pesso­ as e os objetos imaginários enquanto irreais, mas conservando a riquez.a que apresentam no mundo real. Tal não acontece, porque, ao oposto do que se costuma pensar, a imaginação não é mais rica do que a realidade. É, antes, de uma pobreza essencial. Os objetos reais sempre permitem inesgotáveis descobertas e pontos-devista a seu respeito, e estão sempre revelando o que não sabemos. Já as ima­ gens, pelo fenômeno da quase-observação, nada nos revelam ou ensinam. Se imagino as páginas de um livro, nada posso 1er. E, se porventura leio o que ali está escrito, nada apreendo de novo, porque sei exatamente o que vou 1er. Através das imagens só conseguimos nos apossar de pálidos esboços, de uma descolorida réplica do original, ou de um objeto fluido e evasivo. Na imagem, as qualidades sensíveis do objeto (cor, forma, volume) têm caráter vago, con­ fuso, e são visadas de maneira genérica. Posso imaginar o Panteão grego, mas, por mais que me esforce, não posso contar na imagem o número de suas colu­ nas. Posso imaginar o rosto de Pedro, mas não posso ver os poros de sua pele. Conclusão: para o esquizofrênico, nenhuma alternativa é viável. Se es­ colhe o mundo real, com a sua riqueza e complexidade, encara a (para ele) intolerável facticidade de uma situação concreta. Se prefere o imaginário, que lhe é favorável em princípio, depara afinal com um mundo morto e crepuscu­ lar. De qualquer modo, conserva-se aqui o postulado da liberdade: “escolhese” a alucinação, elegendo a total impotência da consciência reflexiva.

Proposta por Sartre em 1943, a psicanálise existencial viria a ter influência no movimenta antipsiquiátrico dos anos 60 e 70, sobretudo nos trabalhos dos psiquiatras ingleses R.D.Laing e Da­ vid Cooper. Reconhecendo o papel da teoria sartriana (que já na década de 40 alertava sobre a repressão psiquiátrica), Cooper escreveu: “Temos uma grande dívida pessoal e teórica para com Sartre”. 135

Capítulo 5 O OUTRO

A existência do Outro* a) O Para-Si-Para-Outro Até esse ponto, o exame da realidade humana está longe de ser suficien­ te. Estudamos a consciencia isolada, mas, embora pudéssemos imaginar uma consciencia sozinha no mundo, isso não acontece: cada homem existe no mundo com outros homens. Há uma multiplicidade de consciências como ne­ cessidade de fato. Husserl dizia que o “nosso mundo” é constituído pela sub­ jetividade de todos - uma “inter-subjetividade”.“ Segundo Emmanuel Mounier (1905-1950) “o problema do Outro é uma das grandes conquis­ tas da filosofia existencial”, já que “a filosofia clássica o havia deixado em estranho abandono: tratou de passar em revista os problemas mais importantes - o conhecimento, o mundo exterior o Eu, a alma e o corpo, a matéria, o espírito, Deus, a vida futura etc. - mas não colocou no mesmo plano nossa relação com os outros”. Assim, o existencialismo “elevou a questão do Ou­ tro a uma posição central”. No caso de Sartre, como se verá, esse problema é abordado de modo totalmente novo. Antes dele, todas as correntes filosóficas se limitavam a tratar da nossa manei­ ra de estar presente ao Outro, da nossa maneira de fazer o Outro estar presente em nossa subje­ tividade (por exemplo, ficarmos “abertos a ele”, ignorá-lo o máximo possível etc.) Sartre inver­ teu a perspectiva da experiência do “encontro com o Outro”: não basta pensar o Outro como aquele que e visto por mim”, mas devemos pensá-lo também ou sobretudo como “aquele que me vê , aquele que invade a minha subjetividade. Somente assim será possível provar a exis­ tência concreta do Outro enquanto tal, sem cairmos na dúvida solipcista: o Outro não seria apenas uma representação” ou um “estado” da nossa consciência? Citando a teoria de Sartre sobre as relações entre o indivíduo e o Outro, disse o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981) em seu Seminário: “Não posso deixar de me referir ao autor que 136

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Eu simplesmente sei que existem no mundo outras consciências c afir­ mo isso com absoluta certeza, prescindindo de qualquer prova. A convicção na existência do Outro é um dado imediato na minha vida: apenas sei, sem a menor dúvida, que esses corpos alheios que se movem não são meros objetos, robôs ou imagens irreais criadas por mim. É tão absoluta essa certeza quanto a certeza que possuo da minha própria exisjência. Mas como posso estar tão convencido disso? Para as doutrinas tradicionais, como para o senso comum, a resposta pa­ rece simples: sei da existência do Outro pelo conhecimento, a experiência que tenho dele. Mas isso nada prova. Toda relação de conhecimento se estabelece entre um sujeito conhecedor e um objeto conhecido. Assim, no plano do co­ nhecimento, apenas posso ter certeza do Outro enquanto objeto, simples cor­ po dotado de determinada constituição orgânica, de um tipo de pele,1perten­ cente a certa classe social, etc. No entanto, minha certeza vai além: reconheço o Outro como consciência, como sujeito, como Para-Si igual a mim, portador do mesmo poder de nadificação e da mesma intencionalidade, a agrupar as coisas à sua volta e, através do “Circuito da ipseidade”, a fazer do mundo o lugar dos seus projetos. Capto no Outro um sistema de experiências, senti­ mentos, vontades e idéias que não é o meu, um projeto e uma organização do mundo que não são os meus. Não vejo o Outro como um corpo dotado de dois olhos: capto um olhar. Não vejo o rubor da face, mas a vergonha. Transcendo o dado que me aparece e apreendo algo ausente, capto uma transcendência igual à minha, algo ¡material e evanescente que ultrapassa o corpo que vejo. Ora, de modo algum esse “sujeito que não sou” poderia ser “objeto” de meu conhecimento. Para conhecer de fato o Outro enquanto subjetividade eu teria de ser, eu mesmo, “sujeito da consciência dele”, isto é, transformar-me na consciência alheia. Isso eliminaria já qualquer alteridade (do latim “alter”: outro), termo que designa justamente a multiplicidade de consciências, o cará­ ter daquilo que é Outro. Eu e o Outro seríamos o “mesmo”, o que é absurdo. Portanto, o simples conhecimento do Outro não me dá condições de apreen­ dê-lo enquanto sujeito, mas apenas como objeto. Na verdade, esse “sujeito descreveu o jogo da inter-subjetividade da maneira mais magistral, Jean-Paul Sartre. (...) Toda a fenomenologia da vergonha, do pudor, do prestígio, do medo particular engendrado peio olhar, está em Sartre admiravelmente descrita, e eu os aconselho a se reportar a isso em sua obra. E uma leitura essencial para um analista. (...) Sartre (dá) da fenomenologia da relação amorosa uma estruturação que me parece irrefutável. (...) É preciso que vocês façam um pouco de esfor­ ço, e se reportem a O Ser e o Nuda". 137

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que não sou” é, por princípio, incognoscível para mim, escapa-me totalmeftte, é impenetrável, está fora do meu alcance - uma vez que a consciência alheia não pode existir para mim da mesma maneira como minha consciência existe para mim. Se não posso contar com á experiência que tenho de conhecer o Outro e, no entanto, estou certo de que existem consciências alheias, só resta uma hi­ pótese: antes mesmo de qualquer encontro com o Outro, eu já tenho de ser consciente dele de algum modo. Isto é: minha relação com a consciência do Outro deve anteceder à primeira aparição mesma do corpo do Outro frente a mim. O Outro deve fazer parte da minha consciência desde o nascimento, como parte constituinte do meu Ser. Há uma predisposição ontològica do Para-Si para reconhecer o Outro enquanto sujeito. Assim, o Outro, primeira­ mente, existe para mim como estrutura do Para-Si que sou. Seu corpo aparece depois, quando o encontro. É, então, na consciência que devemos buscar a existência do Outro, e não fora dela. “No cogito descobrimos não só a nós, mas aos outros”. Sendo o Outro um fato que me alcança no meu âmago, isso significa que a consciên­ cia, além de Para-Si, deve ser também, desde a origem, Para-Outro. “O ho­ mem é um Ser que implica o Ser do Outro em seu Ser”. A realidade humana é sempre Para-Si-Para-Outro. b) Condições a priori de Reconhecimento De que modo o Outro existe em mim originariamente? Em primeiro lu­ gar, é preciso que, já ao surgir no mundo, minha consciência seja a seguinte negação interna: “O Outro é a consciência que eu não sou”. Não fosse essa negação originária, eu jamais poderia me certificar, através do conhecimento que viesse a ter do Outro, que este é um sujeito e não um objeto. Na verdade, aquilo que torna possível qualquer experiência com o Outro é essa certeza originária que a precede. Da mesma maneira que tenho de ser, em mim mes­ mo, negação do meu Ser e do mundo para ter consciência deles, é necessário que eu seja essa negação do Outro em mim para ter consciência dele. Em segundo lugar, aquela negação originária abriga uma disposição natu­ ral do meu Ser: a disposição de ser visto pelo Outro. Ou seja: se tenho em mim o Ressalte-se, para evitar equívocos idealistas, que essa conclusão não afirma que o Outro não tenha Ser próprio e seja meramente uma estrutura do meu Ser. O que aqui se demonstra é que meu Ser precisa ter o Outro presente em si mesmo para que possa saber com certeza que ele existe enquanto consciência alheia. 138

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Outro como uma “consciência que não sou”, obviamente tenho-o como um lipi> de Ser igual a mim. Logo, como um Ser para quem eu é quem sou “o Outro” Um Ser para quem eu é quem sou “uma consciência que ele não é”. Um Ser no qual eu estou embutido desde a origem, caracterizado como “Outro”. Portanto, o Outro é um Ser que me vê, assim como eu o vejo. Essa di­ mensão de “ser visto” condiciona mesmo a existência do Outro em mim: só posso negar ser o Outro porque me sei visto por ele. Esse saber acha-se na origem da minha consciência e antecede a aparição do Outro. Sofremos a ex­ periência perpétua de “ser objeto de olhar” porque faz parte do nosso modo de ser original a dimensão de “existir sob o olhar”. É por saber-me, a priori, “visto pelo Outro” que posso, ao encontrá-lo pela primeira vez, reconhecê-lo como consciência alheia, cuja existência real não ponho em dúvida.* c) A Humanidade do Outro Preenchidos esses requisitos originários, posso reconhecer o Outro como consciência, liberdade, projeto. Se observo um homem empenhado em uma atividade qualquer, compreendo-o enquanto “projeto-para-fins-que-lhesão-próprios” . Cada um de seus gestos revela-me a busca por um fim, uma “arrancada em direção a...”. Quando dois homens estranhos se encontram pela primeira vez, não importa o que os separe (classe social, interesses, etc.), am­ bos se reconhecem reciprocamente como homens, tal como se a relação entre eles houvesse existido sempre (e existe, posto que somos desde o nascimento Para-Si-Para-Outro). Cada homem reconhece o caráter humano do Outro, e tem sua própria humanidade reconhecida pelo Outro. Trata-se, como vimos, de uma relação interna, de consciência para consciência: existe um “relação humana” originária, pela qual ocorre o reco­ nhecimento, por todos os homens, da humanidade de todos os outros. Há um Pode-se objetar que o “ser visto” não prova a existência do Outro, pois às vezes apenas supo­ mos que alguém nos olha e descobrimos que, na verdade, estamos a sós - o que seria um “ser visto por nada”. Mas o que se põe em dúvida aqui não é a existência do Outro, e sim somente a sua localização e sua distância com relação a mim, a sua proximidade física. A rigor, nunca es­ tamos a sós: trancado no meu quarto, estou em relação com o Outro - seja por uma carta sobre a escrivaninha, o livro que leio, a lâmpada que foi feita por alguém, o quadro que alguém pintou, a música que ouço, etc. Além disso, uma ausência já indica existência concreta: Pedro está au­ sente desta sala, logo, Pedro está presente em outro lugar. Lógico que só posso reconhecer os fins do Outro como diferentes dos meus porque, antes, já os reconheci como “fins de um projeto”, já compreendi esse Outro como consciência livre, totalização-em-curso, etc. 139

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laço interno de reciprocidade humana fundamental como realidade de fato mesmo entre indivíduos de classes sociais e regimes diferentes, pertencentes a regiões distantes e que não se conhecem pessoalmente. Se há uma “relação humana”, possível entre os indivíduos, deve-se a vínculos interiores. Mas essa predisposição ontològica é apenas um ponto de partida. O re­ conhecimento da humanidade do Outro não é um mero laço abstrato que me liga ao Outro: irá manifestar-se, ao longo da nossa vida, como uma relação concreta de homens que vivem entre homens no mesmo mundo, ou seja, no interior de uma residência material comum a todos - o campo material onde todos realizam suas ações práticas. Resta saber como se dá essa compreensão do Outro enquanto projeto. d) O Método Progressivo-Regressivo É um reconhecimento progressivo-regressivo. Progressivo, porque avanço aos fins buscados pelo projeto alheio. Regressivo, porque retrocede à condição originária que deu partida ao projeto. Eis um exemplo simples: estou em uma sala conversando com amigos, as janelas estão fechadas, faz calor. Nosso campo material comum é a sala, com seus móveis e utensílios, as janelas, o calor. Nele, acham-se objetos-signos: cadeiras para sentar, luz para iluminar o ambiente, ja­ nelas para abrir ou fechar, etc. Os signos, já sabemos, remetem a algo que está ausente. A persiana é um signo: expressa um ato ainda não realizado (abrir ou fechar a janela). Todos esses elementos materiais significantes indicam possibi­ lidades permanentes à espera de uma ação minha e de meus amigos. Caso um de meus amigos tome a iniciativa de refrescar a sala, levantan­ do-se para ir abrir a janela, compreendo de imediato a condição humana de sua ação. E o faço do modo progressivo-regressivo. Sua ação é o ultrapassar de um dado presente (o calor da sala) para outro dado futuro (a sala arejada). Progressivamente, capto essa ação enquanto projeto porque, mesmo sem mo­ ver um dedo, vou também, subjetivamente, junto com meu amigo, a um resul­ tado futuro pretendido. Perfaço mentalmente o mesmo movimento projetivo, sinto a sala como “ambiente mal refrigerado” e supero esse dado. Regressi­ vamente, retroajo a cada etapa da marcha para esse fim, compreendendo en­ tão os seus motivos originais. Se, porventura, alguém entra na sala, sente o calor como “carência de ar a suprimir” e vê o nosso empenho na conversação, descobrirá nos objetos-signos da sala um ato que não foi feito (a janela está fechada). Essa pessoa compreenderá nosso projeto (o empenho na conversação) de 140

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Ao acompanhar o projeto do Outro, reconheço-o também como "mU> sendo o meu projeto”. Quer dizer: sei que o Outro é um Ser igual a mim, mas enquanto “Outro”, aquele que não sou. Verifico que o seu projeto é único, próprio, singular, insubstituível, e realiza-se em uma ação prática igualmente única. Meu amigo levanta-se lenta e gravemente, com ordem, e não, como eu o faria, subitamente, de um salto; afasta um móvel no caminho; pede licença a um terceiro para passar; usa os objetos-signos de um modo exclusivamente seu (abre as persianas usando o mecanismo de certa maneira, com mais jeito do que eu). Compreendo que cada execução de um projeto possui uma orde­ nação particular, movimentos próprios que vencem, a seu modo, os obstácu­ los existentes. Essa compreensão imediata da singularidade de cada ação hu­ mana revela-me a liberdade do homem.

visto” a) A objetivação do meu Ser A já referida disposição natural do meu Ser de ser visto pelo Outro ante­ cede, como sabemos, o nosso primeiro contato com o Outro. Quando esse contato se verifica, o fenômeno de “ser visto pelo Outro” assume uma impor­ tância capital na constituição do que somos. Quando o olhar do Outro me fixa, ocorre uma espécie de “hemorragia” na minha consciência: o meu Ser se* modo apenas regressivo, isto é, baseando-se somente na condição material: perceberá fins que não foram projetados por nós (arejar o ambiente) para então descobrir os fins que projetamos (manter a conversação). * O exemplo citado mostra que meu amigo inventa a sua ação de modo livre. A sala onde esta­ mos, o campo material, é comum a todos nós, e seus objetos-signos indicam possíveis igualmen­ te para todos. Mas tais possíveis não nos constrangem. Já sabemos que a matéria (puro passado com relação ao Para-Si) não tem força para nos motivar a uma ação. O calor, a janela fechada, não são “estímulos” capazes de desencadear uma reação em cadeia nos presentes. Não é o “calor insuportável” da sala que provoca o gesto do meu amigo: ao contrário, esse gesto é que designa a temperatura como “insuportável” para ele. Se não nos movemos da mesa onde conversamos é porque a temperatura nos parece tolerável. Os utensílios estão à nossa volta, com seus signos intrínsecos a indicar possibilidades de ação (como as persianas da janela). No entanto, tais pos­ síveis simplesmente não são usados, porque estamos tão absortos na conversação que nossa es­ colha livre é levá-la adiante, e nem sentimos o calor. Em um determinado campo material de possibilidades de ação, cada homem escolhe livremente esta ação e não outra, toma livremente este impulso e não outro, decide por este possível e não outro. 141

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esvai, é absorvido para fora, e posso sentir esse escapamento. O mundo que organizo à minha volta e do qual sou sujeito absoluto sofre uma desintegração para reintegrar-se lá adiante, ao redor do Outro. O Outro “rouba-me” o mun­ do, por assim dizer. E nesse mundo, do qual já não sou o centro, o Outro me capta como objeto entre objetas. Na verdade, a aparição do Outro e a consciência de “ser visto” provo­ cam uma brusca modificação no Para-Si. Como que “arrancado” para fora, o Para-Si adquire uma dimensão de exterioridade e passa a situar-se no mundo. Tomemos um exemplo esclarecedor. Estou sozinho, espiando por um buraco de fechadura. Minha consciência percebe apenas o orifício e a cena por trás da porta. Nesse momento, sou todo subjetividade. De súbito, um ruído de pas­ sos no corredor leva-me à sensação de que “estou sendo visto”. O que aconte­ ce então? Abruptamente, tomo com relação a mim mesmo a visão que o Ou­ tro tem de mim: já não me limito a ver uma cena pela fechadura, mas como que “vejo” também um homem (eu mesmo) espiando uma cena por um bura­ co de fechadura. Quer dizer: de repente, ao ser visto, experimento a objetivação do meu Ser. O Para-Si que sou como que “foge” para fora. Eu, que era pura subjetividade, sei-me agora também uma objetividade, ou seja, um ho­ mem que existe em uma realidade objetiva global, ocupando determinado lu­ gar, aparecendo de determinada maneira, etc. Por isso, Hegel disse que nada somos sem o Outro. Se eu nunca me sou­ besse visto pelo Outro, jamais me sentina objetivado, melhor, jamais me saberia situado em um determinado espaço, entre as coisas do mundo, existindo concretamente, como corpo físico. Podemos dizer: “Sou visto, logo existo”. b) O saber que vem do Outro Com efeito, para obter qualquer verdade objetiva a meu respeito, de­ pendo do Outro. Ele é indispensável ao conhecimento que tenho de “mim mesmo” como um Ser que existe objetivamente no mundo real. O Outro é a condição necessária para que eu possa me conhecer de uma maneira que, sem o olhar dele, eu sequer seria capaz de imaginar que fosse possível. Se o Outro não existisse, eu não poderia saber-me visto objetivamente, porque eu mesmo, sozinho, não teria como fazer essa representação de mim, ainda que imagi­ nando a existência de um Outro irreal. Entenda-se: também como objeto. Pelo que inferimos dos parágrafos anteriores, o Outro me vê enquanto sujeito. Mas, como veremos a seguir, sou também um objeto para o Outro: sou uma “coisa consciente”. 142

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Voltando ao exemplo acima: quando o Outro me vê espiando por um buraco de fechadura, sinto vergonha. Quer dizer: sinto vergonha tal como apareço ao Outro. Ora, sem o Outro, meu “Ser vergonhoso” não poderia existir, porque a vergonha é justamente a apreensão de mim, por mim mesmo, através do juízo do Outro. Assim, só estou capacitado a formular sobre mim um juízo objetivo, sa­ ber-me de determinado modo (vergonhoso, covarde, feliz, generoso, colérico, alto, gordo, feio, etc.), porque esse tipo de auto-conhecimento passa pelo Ou­ tro. Para obter um pensamento objetivo sobre mim, preciso da mediação do Outro. Ele é o intermediário indispensável que remete de mim a mim mesmo. Se eu estivesse sozinho no mundo, jamais teria como me atribuir qualidades. Eu me conheço objetivamente pelos conceitos que o Outro formula sobre mim. Aquilo que sei sobre mim (meu caráter, meu corpo) provém do modo como o Outro me vê. No que concerne ao meu corpo, por exemplo, tudo o que sei sobre ele deriva do Outro. O Outro me capta como “corpo no mundo”, quer dizer, atra­ vés dele eu me sei situado objetivamente como corpo propriamente dito (objeto que se movimenta, coisa do mundo exterior, “órgão fisiológico” em funcionamento, instrumento que o Outro pode utilizar para os seus desígnios, etc.). Por mim mesmo, eu não poderia me conhecer assim. Não posso usar meu corpo como se fosse algo que está fora de mim, como se fosse um ins­ trumento, pois o corpo sou eu. Eu o existo. Por exemplo: enquanto escrevo, não conheço minha mão no ato de escrever. Só conheço a escrita, porque eu sou a minha mão. A mão como que se desvanece. Ao 1er um livro, não conhe­ ço o movimento dos meus olhos, algo que só o Outro pode captar. Se meus olhos doem quando leio, não os apreendo “no espaço”, tal qual um objeto exte­ rior (os “olhos doloridos”), mas existo essa dor sob o modo de “consciência dolorosa” (ou seja, existo enquanto projeto, já que a “consciência dolorosa” é um projeto: só sinto dor porque minha consciência se transcende nãoposicionalmente para a “não-dor”, um arrancamento para o futuro). No Capítulo 1, vimos que Sartre suprimiu a distinção entre a consciência e o corpo: existimos em consciência da mesma maneira como existimos corporalmente. Somos nosso corpo, existi­ mos enquanto corpo: essa é a maneira originária de “Ser corpo”. Cientistas e psicólogos, porém, costumam considerar o nosso corpo do modo como ele é visto objetivamente pelo Outro: o mé­ dico capta os meus órgãos fisiológicos como tais (coração, sistema vascular, vesícula biliar, apa­ relho digestivo, etc.),mas eu não os vivo dessa forma. Meu corpo, que é meu ponto-de-vista so­ bre o mundo, para ser vivido por mim “fisiologicamente”, exigida que eu assumisse o ponto-dcvista do Outro sobre mim, o que é - como veremos - impossível. Pode-se afirmar então que o corpo é meu ponto-de-vista sobre o qual não tenho ponto-de-vista.

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P a u l o P e r d i o Ao No entanto, essa “objetividade” do meu Ser me é revelada pelo olhar do Outro de forma fugaz. “Pressinto” que o Outro me vê da mesma maneira que posso vê-lo. Mas não sou capaz de apreender efetivamente essa visão que ele tem de mim. O Outro me vê de fora, de um modo como nunca poderei, a ri­ gor, me ver. Não posso captar-me tal como apareço ao Outro. c) O “Ser Acabado” que somos para o Outro Em que consiste essa “visão objetivada” que o Outro tem de mim? Sa­ bemos que o Para-Si nunca é algo acabado, mas está sempre se fazendo, em projeto, totalização-em-curso. Sabemos também que reconhecemos a huma­ nidade do Outro fazendo uso de um método progressivo-regressivo que nos permite identificar na ação do Outro um “partir em direção a...”. Mas não vemos o Outro apenas enquanto sujeito (projeto), e sim também enquanto objeto. No momento em que vejo o Outro, apreendo-o também como algo que é, como totalidade já acabada, perpetuando, por assim dizer, esse momen­ to da sua evolução. E essa é igualmente a visão que o Outro possui de mim. Quando ele me vê, reconhece-me como “sujeito projetado para minhas pos­ sibilidades”, e ao mesmo tempo me encara como objeto inanimado, desprovi­ do de um projeto livre. E como se visse a projeção de um filme no qual apa­ reço caminhando rumo a uma meta e, de súbito, o aparelho projetor deixasse de funcionar. O olhar do Outro limita assim os meus possíveis, faz de mim algo dado e finito, transformando minha liberdade em fixidez. Para ele, sou “covarde”, “feliz”, “bondoso”, etc., tal como uma pedra é uma pedra. Por me captar não só como sujeito, mas também como totalidade acabada, o Outro me designa dessa ou daquela maneira, suprimindo os meus possíveis (que, para mim, acham-se sempre em aberto, por se fazer). O olhar do Outro repre­ senta uma encarnação do mito da Medusa: ele petrifica o meu Ser. É uma forma de opressão: o sentido profundo da subjetividade alheia é existir como negação objetivadora da minha subjetividade. Ao me objetivar, o Outro me faz coisa entre coisas, ou seja, atribui a mim a categoria de Em-Si, um Ser compacto. Isso significa que o Outro cum­ pre por mim uma função de que sou incapaz: ver-me como sou enquanto coi­ sa. Esse “eu-objeto” que me foi roubado pertence exclusivamente ao Outro. Não posso ser sujeito de mim mesmo e, simultaneamente, objeto para mim Em sua última entrevista, disse Sartre: “Não sinto minha velhice. A velhice é uma realidade minha que os outros sentem. Os outros é que são a minha velhice”. 144

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mesmo, porque o objeto (como vimos ao tratar do conhecimento) &por nutu reza aquilo que não sou. Por mais que me tente ver como objeto ainda sou, como consciência, aquele sujeito que me vê. Logo, só poderia captar me como objeto caso passasse pela subjetividade do Outro que me ve - mas o mundo do Outro, no qual figuro, é sempre interdito para mim, é incognoscível, só posso contemplar de fora. Sinto então que o Outro possui algo que reconheço como meu - meu “Ser objetivo” - e que, entretanto, não posso recuperar. Sei que sou um obje­ to, mas somente tal como apareço ao Outro. “Estou infestado por esse Ser que tento encontrar um dia em uma curva do caminho, que me é tão estranho, que é, sem embargo, o meu Ser, sabendo também que, apesar de meus esforços, não me encontrarei com ele jamais”. Que se conclui das considerações acima? Descobrimos que o ideal do Em-Si-Para-Si (nosso projeto essencial de totalizar nosso Ser inacabado e fa­ zê-lo capaz de dar fundamento a si) também se encontra no olhar do Outro e que, mais uma vez, não podemos realizá-lo. Para o Outro, eu sou um Em-SiPara-Si. Mas a minha identidade objetiva, meu Ser Em-Si, depende de outra consciência que não a minha. O Outro, que me constitui como sujeito-objeto, possui aquilo que me falta para totalizar o meu Ser. Se eu pudesse existir do modo como sou visto, conseguiría fazer coincidir o Para-Si que sou com o Em-Si que só o Outro me faz ser (mas apenas para ele próprio). Diz Sartre: “Eu tenho o meu fundamento fora de mim”. Por conseguinte, a multiplicidade das consciências (alteridade) represen­ ta o inacabamento da realidade humana: a minha totalização como Em-SiPara-Si encontra-se à distância, inatingível, na subjetividade do Outro.

Sartre diz que todos os gestos que praticamos á fim de sermos de fato, para nós próprios, aquilo que os outros vêem em nós, são condenados à frustração e não passam de simples mími­ ca. O escritor Jean Gênet (1911-1976), julgado pelos outros como malfeitor, ladrão e homosse­ xual, viveu na vã tentativa de se constituir, para si mesmo, o Mal que era para os outros. Em vão o Para-Si tenta realizar esse “Ser pleno e objetivo” que é para o Outro: por mais que ms empe­ nhe, jamais conseguirei ser um “vulgar absolutamente vulgar”, um “culpado absolutamcnle cui pado”, um “virtuoso absolutamente virtuoso”, à maneira de como posso ser visto pelo Outro.

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O conflito de liberdades a) “O Inferno são os Outros" Necessário para mim, o Outro é também um mal - um mal necessário. Diante do Outro, já não somos “donos da situação”. Não estamos seguros frente à liberdade alheia, que faz de mim o que quer. “Sabe-se lá o que o Ou­ tro me faz ser. Sabe-se lá o que sou para ele”. Minha liberdade é ameaçada pela liberdade alheia. Não podemos constranger o Outro a pensar de nós o que queremos: se o olhar do Outro me censura, torno-me objeto de reprova­ ção; se me admira, torno-me objeto de admiração. Também não podemos fa­ zer o Outro agir como desejamos. Estamos em constante perigo, à mercê de projetos alheios que me escapam e cujos fins ignoro. O Outro faz de mim mero instrumento de seus possíveis, se assim o desejar. O Outro, se o quiser, nega os meus possíveis e faz de mim um simples meio para realizar os fins que pretender. Se alguém me surpreende espiando por um buraco de fechadu­ ra e tento escapar à vergonha, escondendo-me em um canto escuro, o Outro pode adiantar-se a mim e iluminar o local com a sua lanterna. O Outro me faz um Ser indefeso perante uma consciência que me julga. A transcendência alheia supera a minha transcendência. Diante do Outro, sou uma “transcendencia-transcendida”. De certo modo, somos escravos do Ou­ tro, que é nosso juiz e nosso senhor. Não temos para onde fugir. Para onde quer que vá, o que quer que faça, o Outro estará presente, mesmo em meu quarto fechado, porque o Outro está encravado no meu próprio miolo (sou um “Ser Para-Outro”). Sartre diz que o verdadeiro “pecado original” consiste no meu surgimento em um mundo onde há o Outro. Esse o sentido da famosa frase: “O inferno são os outros”. Na realidade humana tal qual se apresenta nas sociedades existentes, nossas relações com o Outro se baseiam no conflito. Qualquer que seja a Minha própria linguagem fica entregue, indefesa, à subjetividade do Outro. Deixamos de tratar aqui desse particular para abordá-lo no anexo final sobre as relações de Sartre com o estruturalismo. O estudo das relações humanas de antagonismo é, neste capítulo, bastante incompleto. Na II Parte, iremos ampliar a questão para o campo das relações de trabalho, luta de classes, etc. 146

Existência e L iberdade nossa atitude com relação ao Outro - mesmo a total indiferença ou um projeto de respeitar a liberdade alheia - cada atitude que tomamos constitui uma vio lentação da liberdade que pretendemos respeitar: desde que existo, já estube leço um limite à liberdade alheia (como sabemos, só a liberdade pode limitai a liberdade). “O respeito à liberdade alheia é uma palavra vã”. Somos, eu e o Outro, duas liberdades que se afrontam e tentam mutuamente paralisar-se pelo olhar. Dois homens juntos são dois seres que se espreitam para escravizar a fim de não serem escravizados. “Enquanto tento livrar-me das garras do Ou­ tro, ele tenta livrar-se das minhas; enquanto busco escravizá-lo, o Outro tenta me escravizar”. As relações humanas, em um nível ontològico originário, são as tentativas feitas por um indivíduo para possuir a liberdade do Outro. E isso não depende da nossa vontade, mas do simples fato de existirmos como limite à liberdade alheia. No cotidiano, nossas relações com o Outro são feitas de pequenos ardis com os quais buscamos neutralizar a liberdade alheia. Tal qual o jogador de xadrez que prevê a tática de seu adversário a fim de transformar o lance pre­ parado contra ele em uma armadilha, faço servir o projeto do Outro para os meus fins, assim como o Outro faz os meus projetos servirem aos fins dele. Assim, o conflito é o sentido originário do Ser Para-Outro. b) Duas Condutas de Posse Nessas condições, só dispomos de duas atitudes a adotar com relação ao Outro - e ambas têm por fim nos apoderarmos da liberdade alheia. Aparen­ temente, porém, tratam-se de duas condutas opostas, que se excluem mutua­ mente, e das quais não podemos fugir, remetidos que somos de uma a outra, sem escapatória, em um círculo vicioso. Vamos examiná-las separadamente: 1. Projeto de nos apoderarmos da liberdade do Outro tratando-o como sujeito que nos transcende. Vimos que a consciência alheia é que fundamenta o meu Ser Em-Si e guarda o segredo do que sou objetivamente. Já que cobiço recuperar essa ob­ jetividade que me tornaria um Em-Si-Para-Si, uma atitude a adotar é tratar de conseguir assimilar essa visão que o Outro possui de mim. Evidentemente, quero roubar a consciência alheia enquanto consciência livre. Quero reduzi-la à condição de liberdade submetida à minha, mas sem perdê-la como consci ência, ou seja, sem transformá-la em coisa. Apenas almejamos ser o Outro para nós mesmos: queremos ter de nós essa visão exterior que só o Outro 147

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pode ter. Quero adotar sobre mim o ponto-de-vista do Outro, conservando o Outro como tal, sem extinguir a alteridade. Para conseguir isso, recorremos a um artifício: escondemo-nos o rñais possível como liberdade, para escravizar a do Outro. Em outros termos, ten­ tamos nos fazer “do modo como somos vistos pelo Outro”, procuramos nos identificar com nossa qualidade de “ser visto”, visamos nos captar objetiva­ mente, tal qual “o objeto que somos para o próximo”. Assim, esforçamo-nos para ser o mais possível corpo, o menos possível liberdade, o mais possível “objeto-visto-pelo-Outro”, o menos possível “sujeito-de-nós-mesmos”. Essa conduta transparece mais claramente no caso das pessoas que dão importância à opinião dos outros e se preocupam com a imagem que oferecem às demais : elas cobiçam ver-se pelos olhos alheios, sentir-se petrificadas, como algo dado, que não se pode mudar, mirando-se no espelho da consciência do Outro. Com essa atitude, não pretendo ser apenas cúmplice do olhar alheio a fim de me ver como sou visto. O sentido profundo da conduta é o seguinte: quero, na verdade, fazer-me eu próprio o responsável pelo Ser Em-Si que o Outro fundamenta. Assim, quero mostrar-me frente ao Outro como se eu mesmo me tivesse feito desse modo. Quero ser eu mesmo responsável pelo que o Outro faz de mim. Com isso, suponho recuperar de fato o meu aspecto objetivo, como se tal objetividade fosse criada por mim mesmo. Com isso, penso encontrar o ideal do Em-Si-Para-Si. Somos “feios”, “covardes”, “pequenos”, ou “corajosos” porque assim nós mesmos o determinamos, e não mais ficamos na dependência do Outro para fundamentar o nosso Ser. Sobre­ tudo, podemos nos tranquilizar, uma vez que, supostamente, reavemos o nos­ so Ser, e assim estamos em segurança, não mais à mercê do que o Outro possa pensar de nós. Mas, na verdade, caímos em uma contradição: quero, por um lado, aparecer ao Outro enquanto único fundador do meu Ser objetivo; toda­ via, por outro lado, quero me afirmar desse modo frente ao Outro sem deixar de reconhecê-lo como consciência, logo, como aquele que fundamenta a mi­ nha objetividade. Exemplo desse projeto é a relação amorosa. Quando quero ser amado por alguém, quero apossar-me, pela sedução, de uma liberdade que, sem perder-se como tal, aceite perder-se, consinta em fazer de mim um centro de re­ ferência absoluto, em torno do qual se ordenam todas as coisas do mundo. Quero “ser amado”, ou seja, quero ser o fundamento de todos os valores do Outro (por isso é comum que o amante exija do amado que sacrifique a moral tradicional, indagando se seria capaz de matar e roubar por ele, etc.). Contu­ 148

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do, ao contrário do que sucede na relação entre amo e escravo, o animile rei vindica mesmo a liberdade do amado. O amante quer ser um limite padecido e livremente consentido pelo Outro, quer ser eleito naturalmente “o intrans cendível”. O amante quer apropriar-se do Outro enquanto sujeito livre, não como objeto. O sonho do amante se resume na frase: “Que o Outro seja eu, sem deixar de ser o Outro”. Para isso, o amante faz-se o mais possível objeto para o amado. Mas ele almeja uma objetividade especial: não quer que o amado o tenha escolhido por “objeto amoroso” como poderia ter escolhido outrem, na dependência de um conhecimento fortuito. O amante não deseja admitir a possibilidade de que, se não houvesse ido a determinado lugar, a certa hora, e não houvesse conhecido o amado, este não o teria escolhido. Não: o amante prefere dizer “nascemos um para o outro”. Esse, inclusive, é um ardil que empregamos para nos convencer de que nossa existência individual não é gratuita, contin­ gente, mas algo necessário: sou amado, logo, minha existência é querida e justificada (ninguém poderia ocupar o meu lugar, ninguém poderia existir por mim, etc.). Além disso, o amante quer ser o mundo todo para o amado. É por isso que, em cada um de seus atos, ele procura manifestar a maior “espessura de mundo” possível aos olhos do amado, dizendo-se relacionado às mais vastas regiões, ao maior número de pessoas, possuidor dos maiores recursos (dinheiro, prestígio, poder), etc. No amor, as coisas correm como se tentássemos concretizar a unidade “Eu-Outro”. Já que a nossa liberdade é constantemente ameaçada pela liber­ dade do Outro, que ao menos com relação a alguém - a pessoa amada - nós possamos conjugar as nossas subjetividades, sem qualquer conflito. Mas esse fim não é logrado. Quero que a minha amada se conserve como consciência e me faço o mais possível coisa para capturar a visão que ela tem de mim. Acontece que a minha amada também quer “ser amada” e age exatamente como eu. Ou seja, ela quer apossar-se de mim como sujeito que sou, conservando-me como consciência, e ser o mais possível objeto para mim. Que acontece então? Não quero que minha amada seja uma coisa, e acabo encontrando alguém que se esforça para ser exatamente isso. Quero que minha amada me veja como objeto e fundamente o meu Ser, mas encontro al­ guém que me vê como sujeito e exige que eu fundamente o seu Ser. Dessa forma, a relação amorosa perde-se em um impasse sem solução. Tentei apropriar-me da liberdade alheia pelo amor e, ao fazê-lo, ela se desvaneceu. O projeto falha, pois já não encontro, no amor, uma subjetivida149

P aulo P erdigão de livre à quai quero me integrar, e sim, também uma consciência que qúer perder-se como tal para integrar-se à minha. Há um conflito de projetos. Esse impasse pode conduzir o amante a um recurso desesperado - a atitude masoquista. Abandono o mais possível a minha subjetividade para perder-me na subjetividade da-amada. Aqui, já nem cogito mais de apossarme, pela sedução, da liberdade alheia, mas pretendo mantê-la intata na sua in­ dependência: quero ser somente um objeto, consinto na minha alienação abso­ luta. No masoquismo, o amante sabe que a sua subjetividade é um obstáculo e busca fazer-se apenas um objeto para que o Outro consiga possuí-lo integral­ mente. Ou seja: deixa livre a subjetividade do amado, tentando exterminar a sua própria. Mas isso é impossível, porque somente pelo Outro o amante será visto como objeto. Tudo o que possa fazer para ser uma coisa inerte - e assim tirar o prazer de sentir-se todo objetividade - não impedirá o amante de ser sujeito de si mesmo, consciência livre em projeto. Portanto, malogrou nossa tentativa de nos apropriarmos da subjetividade alheia. Queremos possuir uma outra liberdade e, ao fazê-lo, essa liberdade nos escapa. No amor, podemos agarrar, sacudir, escravizar o amado - mas é como se quiséssemos nos apoderar de um Ser que deixou apenas a sua capa em nos­ sas mãos. O que possuímos é o seu corpo, o seu despojo. No fundo, cada amante permanece trancado na sua subjetividade, sem comunhão possível com o parceiro. A subjetividade alheia é uma esfera da existência da qual es­ tou excluído por princípio. 2. Projeto de nos apoderarmos da liberdade do Outro tratando-o como objeto que transcendemos. Como fracassei ao tentar assimilar a consciência alheia, conservando-a como liberdade, vejo-me em perigo diante do olhar do Outro. Então, adoto a segunda atitude: contra-ataco o olhar do Outro, reenviando-lhe o meu olhar. Afronto a sua liberdade, lançando o meu olhar àquele que me olha, de modo a transformar a consciência alheia em objeto. Procuro ver apenas olhos, um corpo, um Outro objetivado. Quero assim esvaziar o Outro de todo, julgamento sobre mim, fazendo sua subjetividade perder a eficácia, já que não posso suprimi-la. Se vestimos o nosso corpo é para evitar a vergonha e dissimular frente ao Outro a revelação do meu Ser como coisa indefesa ante o juízo alheio. Vestimos o nosso corpo para reclamar o direito de sermos “sujeito sem ser visto”. Se por vezes tentamos nos refugiar na indiferença, imaginando que estamos sozinhos no mundo, permanecendo cegos diante das outras liberda150

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des, também estamos exigindo esse direito. Mas, como sabemos, continuamos sendo objeto para o Outro, ainda que pretendamos ignorar o fato. Nessa segunda atitude, o que visamos é possuir a liberdade do Outro poi meio de novo ardil. Já que só podemos captar o Outro enquanto objeto , en tão almejamos identificar esse objeto com a própria liberdade alheia que nos escapa. Daí o sentido do desejo sexual, que é uma tentativa de roubarmos a liberdade alheia pela objetividade. Queremos que a liberdade do amado esteja inscrita em seu próprio corpo, em toda a extensão dele, de modo que, ao tocálo no ato sexual, eu como que “toque a sua liberdade”, toque a sua “consciência de ser possuído”. No ato sexual, viso possuir o corpo da amada não como “objeto fisiológico”, mas como corpo dotado de liberdade, identifi­ cando “corpo alheio” com “consciência alheia”. A carícia é a expressão de to­ car a liberdade corporificada do Outro. A liberdade do Outro penetra em todo o seu corpo, de tal maneira que me sinto como se tivesse me apoderando dela. Quando acaricio o corpo alheio, modelando-o com os meus dedos, façoo pura carne. Com isso, desejo me sentir possuidor da liberdade que habita essa carne. No ato sexual, a minha própria consciência é toda ela “desejante”: faço-me carne à medida que sou acariciado. Do mesmo modo, a consciência da amada é esse desejo de ser carne, que se intensifica à medida que a acari­ cio. Ocorre uma “encarnação” recíproca. Possuindo a carne da amada, possuo a sua “consciência encarnada”. Possuindo a minha carne, a amada possui a minha “consciência encarnada”. Portanto, o corpo da amada é um meio que uso para me descobrir com Em-Si, pura carne - ou seja: o corpo da amada é um meio que utilizo para captar-me da maneira como a amada pode me cap­ tar, quer dizer, enquanto pura objetividade. Busco no corpo da amada a sua “consciência-que-se-fez-carne” para, então, apossar-me dela. Por isso, a carí­ cia sexual visa sobretudo as massas de carne mais grosseiramente enervadas, menos dotadas de movimentos voluntários, mais próximas da facticidade pura, mais perto da coisa (seios, nádegas, ventre, etc.). No entanto, também o desejo sexual como modalidade de buscarmos a liberdade do Outro se destina ao fracasso. A realização do desejo - o prazer sexual, que é pura consciência de si - faz desaparecer o desejo de possuirmos a consciência encarnada do Outrot pois, ao passarmos da penetração ao orTambém reconhecemos o Outro como sujeito, é claro, mas o que se quer dizer aqui é que o Outro enquanto Ser objetivado depende exclusivamente de mim: eu fundamento o Outro-objeto com meu olhar. A subjetividade do Outro não é fundamentada por mim, foge ao meu alcance. 151

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gasmo, a consciência se volta para o seu próprio gozo, e a consciência alheia se desvanece, é excluída. Assim, o que meu desejo obtém é somente a posse da minha própria subjetividade: A realização do desejo, pelo prazer, decreta a sua morte: após o orgasmo, suprime-se o desejo. A pretendida apropriação da consciência alheia através da carne não foi conseguida. A liberdade do Outro continuou intocável. Na área sexual, contudo, resta outra alternativa: o sadismo. O sádico quer possuir a liberdade do Outro feita carne, mas nega a sua própria encarna­ ção e, assim, pretende a não-reciprocidade na relação sexual. Submete o Ou­ tro e, para sentir que capturou a liberdade dele, obriga-o a humilhar-se, a pe­ dir perdão, a sofrer, a sucumbir à carne torturada (já sabemos que livremente a vítima decide o momento em que a dor torna-se insuportável). Todavia, faça o que fizer, o sádico jamais logrará constituir no Outro uma plena “consciência possuída”, nada mais que isso, porque a liberdade alheia é, por princípio, um campo fora de alcance. c) A Morte do Outro Frustrados ambos os projetos de possuir a liberdade do Outro, sobra uma tentativa de realizarmos um mundo onde não haja o Outro: eliminarmos o Outro para que ele não guarde o segredo do que somos objetivamente. E a consciência odiosa. Mas também esta redunda em fracasso, porque não pode­ riamos evitar que o Outro que eliminamos houvesse existido ou tivesse levado consigo, para o túmulo, algo que jamais poderei conhecer sobre mim. Se o Outro está vivo, posso sempre mudar a imagem que ele tem de mim. Mas, se Devemos evitar a suposição, comum entre psicólogos e cientistas, de que o desejo sexual é uma contingência da nossa natureza fisiológica, como se nossa sexualidade existisse porque possuímos órgãos sexuais. Se o desejo é um acidente fisiológico, seria o mesmo que dizer: a ereção do pênis ou a lubrificação das paredes vaginais é que provocam o desejo sexual (sic). Seria admitirmos, então, que a Vaso-constrição e a dilatação pupilar é que provocam o medo (sic). Mas sabe-se que nem os castrados nem as mulheres depois da menopausa deixam de sentir desejo sexual. Na verdade, só existe uma contingência na área sexual: a diferença masculinofeminino (sou homem e não mulher por mera facticidade). De resto, o desejo sexual é uma in­ tenção da consciência, uma estrutura do Para-Si, um modo de ser da subjetividade: a consciência elege-se “desejante”, sofre uma modificação radical, passa a existir de outro modo - tal como ocorre com a consciência emocionada. Ao contrário do que se supõe, não é o corpo que faz existir o desejo: a consciência desejante é que faz o corpo existir de maneira especial (ereção, aceleração do ritmo cardíaco, etc.). O homem que deseja existe o seu corpo de certa maneira. Pode-se dizer que o desejo sexual é uma maneira de a consciência fazer-se corpo. 152

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o aniquilo, o que fui para ele está petrificado, irremediavelmente fixado em uma essência eterna. A morte do Outro me constitui em determinado objeto irremediável. Em um nível ontologico originário, chegamos aqui a duas conclusões: (a) o conflito é o fundamento das relações humanas; (b) a consciência do Ou­ tro mantém-se inexpugnável. O Outro possui o segredo daquilo que sou en­ quanto “objeto no mundo” e nada podemos fazer para impedir que ele roube, assim, o nosso Ser. Se tento capturar a sua consciência, o Outro me escapa. E, se tento livrar-me de sua visão sobre mim, o Outro sempre me alcança, até em meu quarto trancado. Assim, diz Sartre: “O Outro me foge quando o busco, e me possui quando dele fujo”. Sem dúvida, objetar-se-á, existem experiências concretas nas quais nos descobrimos, não em conflito, mas em relação de fraternidade com os outros. E o que ocorre nas ações de grupo, nos movimentos de massa. Por isso, ainda nesse nível ontologico originário, Sartre não exclui “a possibilidade de uma moral de libertação e de salvação”. Isso, porém, só se pode alcançar “ao tér­ mino de uma conversão radical” da realidade humana. Tal “conversão” será um dos pontos abordados na Parte II desta exposição da filosofia sartriana. #*# Em conclusão a esta Parte I, eis-nos frente ao que poderiamos denomi­ nar a grande “tragédia ontologica” da realidade humana. Resumindo: 1. O Ser objetivo (Em-Si), não tendo consciência, não pode fundamen­ tar o que é, responsabilizar-se por sua criação. Assim, como se almejasse reaA morte do Outro sempre empobrece o que sou objetivamente. Por exemplo, a qualidade ob­ jetiva de “ser um bom filho’' existe enquanto assim sou visto pelo olhar de meu pai. O mesmo se dá com a qualidade de “ser um paciente nervoso” em relação a um médico, ou “ser um atleta exemplar” em relação ao treinador. A medida que os Outros morrem, morre com eles um pouco mais daquilo que sou objetivamente no mundo. Claro que, se, por hipótese, eu existisse sozinho, como Robinson Crusoé, não poderia reconhecer em mim nenhuma qualidade objetiva. A esta altura, cabe aludir às críticas que o marxismo ortodoxo endereçou ao existencialismo de Sartre no pós-guerra. Estão bem resumidas no ensaio Existencialismo ou Marxismo (1948), onde o filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971) diz que Sartre “afasta-se voluntariamente dos problemas econômicos, das questões sociais, da vida política”, trata apenas do “sujeito pen­ sante”, com uma “noção de liberdade completamente abstrata” e com “um pessimismo e um niilismo radicais”. Embora reconhecendo Sartre como “um pensador autêntico e de grande cate­ goria”, afirma que “a sua filosofia serve aos interesses da burguesia e do capitalismo”. 153

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lizar essa tarefa, dilui-se em Nada, transforma-se em consciência ou subjetivi­ dade (Para-Si). 2. No entanto, quando o Para-Si emerge, já o Ser a fundamentar acha-se à distância. O Para-Si empreende então, do nascimento à morte, uma batalha sem tréguas para recuperar o seu Ser. Mas este Ser de onde provém o Para-Si encontra-se sempre para além do que pode alcançar. É o sonho irrealizável do Em-Si-Para-Si, “uma consciência com a solidez e perenidade da coisa”, seme­ lhante a Deus. 3. Essa “nostalgia” do Ser perdido percorre toda a existência do Para-Si. Este é uma constante totalização-em-curso, uma busca eterna pela complementação de seu Ser que se reflete em todas as manifestações da realidade humana: - seja através da temporalidade (arremesso ao futuro para conquistar o que lhe falta); - da consciência reflexiva (que capta o Para-Si como psique, isto é, coi­ sa objetiva, pura totalidade já feita); - das ações de ter isso ou aquilo, fazer alguma coisa, ser isso ou aquilo, realizando no mundo totalidades (a execução de um possível, um trabalho, etc.) que de imediato caem no passado e abrem campo a novas totalidades a realizar; - das nossas relações com os outros (a tentativa de nos apoderarmos da consciência alheia, que possui o segredo do nosso Ser objetivo, da totalidade Em-Si-Para-Si que nos falta). Essa “paixão inútil” que mobiliza a existência humana possui, é certo, uma absurdidade fundamental: trata-se de algo contingente, não necessário, que poderia ser de outro modo. Mas esse puro fato nos faz revelar a liberda­ de humana na medida em que o homem é, basicamente, um “partir em dire­ ção a...”, uma superação incessante de tudo o que existe como Em-Si (objetos mundanos, o corpo, a psique, etc.), um projeto que vive no futuro e com rela­ ção ao qual nada existe que não seja passado sem poder de ação, dado petrifi­ cado em inércia, totalidade já concluída, puro e inanimado Em-Si. O Para-Si apresenta-se, pois, como (1) negação do Ser, (2) revelação do Ser, (3) relação do Ser, (4) escolha do Ser e (5) desejo do Ser. Em A Náusea, escreve Sartre que “todas as coisas que existem surgem sem razão, vivem fra­ gilmente e morrem por acidente”.

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PARTE II A S ociabilidade

“Lutarei por dois princípios conjuntos: primeiro, ninguém pode ser livre se todo inundo não o for; segundo, lutarei pelo melhoramento do nível de vida e das condições de trabalho. A liberdade —não metafísica, mas prática —é condicionada pelas proteínas. A vida será humana a partir do dia em que todo mundo puder saciar sua fome e todo homem puder exercer um trabalho nas condições que lhe convém. Lutarei não apenas por um nível de vida melhor, mas também por condições de vida democráticas para todos, pela libertação de todos os explorados, de todos os oprimidos ”, J.P. Sartre



Introdução SARTRE E 0 MARXISMO

Antes de prosseguir a descrição da realidade humana, agora no campo social, são necessárias as seguintes considerações teóricas sobre as relações entre o existencialismo sartriano e o marxismo.

O método dialético a) O conceito clássico de Dialética A dialética constitui a base filosófica do marxismo. Empregado em grande número de sentidos , o termo veio a ser utilizado já pelos filósofos gregos (Heráclito, Aristóteles) para indicar a lei do desenvolvimento das coi­ sas: nada existe em repouso e fixidez eterna, nada permanece como é, dado de uma vez por todas na natureza; tudo flui e muda constantemente, e o mundo acha-se em um só processo de movimento, desenvolvimento e transformação contínuos. Sempre e em toda parte o que é velho morre e surge o novo, em um movimento universal. De acordo com a dialética clássica, nenhum aspecto da realidade pode ser considerado isoladamente: cada fenômeno encontra-se relacionado aos Na antiguidade grega, dialética indicava a arte de se descobrir uma verdade através do diálo­ go: duas opiniões contrárias se antagonizam e, desse confronto, brota um conhecimento verda­ deiro. A certeza de uma opinião, integrada ao reconhecimento da validade da opinião contrária, resulta na conjugação de duas opiniões para o estabelecimento de uma verdade total. 157

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outros em um movimento comum. Claro, podemos isolar um fato, mas com isso o estamos privando de sentido. Por exemplo: um pai é algo em si mesmo, um “homem indiferenciado”, mas, para ser “pai”, é necessária sua relação com um filho. Do mesmo modo, acima ou direita são “lugares em geral”, mas, para serem “acima” e “direita”, é preciso que se relacionem com um abaixo e uma esquerda. As partes da realidade são pedaços de um todo e estão interligadas: há um agrupamento de coisas em que o sentido de cada parte só aparece por inteiro quando ela é vista em relação às outras partes e ao todo. Essa premissa conduz a outra: “Tudo é contraditório”. O continente e o mar, o rio e o vale, não podem ser compreendidos uns sem os outros, cada um tem o seu contrário. A contradição dos termos encerra, pois, uma unidade: não há rio sem vale, e vice-versa. Em outras palavras: cada um dos contrários contém ele mesmo o outro como uma negação. Toda determinação (um rio, por exemplo) é a negação de seu contrário (o vale, aquilo que o rio não é). A contradição constitui então a origem, a raiz de todo movimento. O mais simples movimento - o deslocamento de um corpo no espaço - já con­ tém uma contradição: em um determinado instante, o corpo que se move está e não está em um certo ponto de sua trajetória. A contradição mostra-se como a força propulsora de toda evolução e mudança. O movimento das coisas segundo essa concepção da dialética - faz-se por contradições que lutam entre si e se desenvolvem por esse conflito de opostos. Por exemplo, a luta inces­ sante entre o mar e o continente - o primeiro corroendo, o segundo resistindo - determina o traçado das margens e da costa. O processo dialético é exatamente esse embate de forças contrárias. Verifica-se do seguinte modo: um fenômeno ou afirmação (tese) suscita seu oposto ou negação (antítese); o confronto desses contrários resulta na síntese. Ou seja, as duas realidades anteriores formam uma terceira que as supera. Ocorre a negação da negação: a tese é negada pela antítese, e ambas são ne­ gadas pela síntese. Nessa superação, o que é superado não desaparece de todo, mas se con­ serva em parte, já agora em nível superior. A síntese supera, mas incorporan­ do o superado: o novo estado que surge abriga elementos do estado antigo. Por exemplo: a criança continua no adulto, não enquanto “criança”, mas pros­ segue na memória e nas condutas do adulto enquanto “criança que foi supera­ da”. Esse movimento dialético do mundo material não é aceito por Sartre, como veremos adiante. 158

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Por sua vez, essa síntese será a tese de um novo ciclo dialético a iniciar se. Ocorre como que uma volta ao ponto de partida, mas em nível mais eleva do. É uma linha em espiral. Por exemplo: o criador de gado aperfeiçoa uma raça. Cada geração possui características herdadas de seus genitores c mais qualidades novas adquiridas. O rebento (a síntese) assim aperfeiçoado consis­ te no ponto de partida para um novo ciclo. A progressão dialética segue assim uma trajetória ascendente, do inferior ao superior, do simples ao complexo, à medida que novas contradições vão-se formando. b) A Dialética em Hegel e Marx Foi Hegel quem primeiro sistematizou o processo dialético (“Só o vir-aser é real”), mas aplicou-o apenas ao mundo espiritual. Nessas condições, sua dialética seria tão-somente uma lei do pensamento e das idéias (“Todo pen­ samento - escreveu - avança graças às contradições que contém, examina e supera”). Karl Marx (1818-1883), aceitando o método de Hegel, concluiu, no entanto, que a dialética assim concebida estava “de cabeça para baixo” e que era necessário “colocá-la de pé”. Todo o esforço primeiro de Marx foi comba­ ter o idealismo: para ele, o mundo exterior tem uma realidade concreta e in­ dependente, e portanto é preciso ver na vida objetiva - e não no mundo das idéias abstratas - a morada do processo dialético. Ao oposto de Hegel, Marx empregou a dialética para explicar o desenvolvimento da História, a ação dos homens reais e as condições objetivas e práticas da sua existência. A História evolui conforme certo movimento determinado pela lei das contradições. Para dar um exemplo banal, a comuna primitiva provocou a aparição de seu rever­ so, a escravatura. Por sua vez, a escravidão, baseada no culto da força, susci­ tou o cristianismo, seu oposto, a religião da caridade e do espírito. O máximo de capitalismo (tese) suscitaria então sua própria ruína pela crise social e eco­ nômica (antítese), daí surgindo o socialismo (síntese). Mas - importante - em Marx a dialética se desenvolve ao nível da His­ tória humana em comunhão com a História natural. Para Marx, a História da natureza e a História humana não se separam e se condicionam reciprocamen­ te. Sem dúvida, a natureza existia antes da aparição do homem na Terra, mas essa natureza virgem já quase não existe em parte alguma, porque o mundo que nos rodeia é trabalhado pelo homem, um produto das ações humanas, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, que transformaram a natureza, imprimindo-lhe uma marca humana. Portanto, basicamente, Marx 159

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aplica a dialética ao mundo real, não ao puro pensamento, mas restringe', o método à esfera das ações práticas do homem - já que não concebe uma natu­ reza sem o homem. Por essa razão foi dada à doutrina de Marx a designação de Materialismo Histórico. c) Dialética da Natureza Já o colaborador de Marx, Friedrich Engels (1820-1895), encarregou-se de elaborar um sistema filosófico que viria a ficar consagrado como Materia­ lismo Dialético. Nele, a dialética aplica-se à natureza pura, à parte de qual­ quer presença ou intervenção humana. Impressionado por então recentes des­ cobertas científicas, como a teoria da evolução das espécies do inglês Charles Darwin (1809-1882), vislumbrou Engels a possibilidade de encerrar-se na natureza inanimada um dinamismo dialético autônomo: a matéria inorgânica se desenvolvería dialeticamente, em contradições internas, segundo movimen­ tos auto-produzidos, em um processo análogo àquele do qual Hegel fizera a lei do pensamento e Marx a lei da História. Ou seja: de acordo com o Materialismo Dialético (ou Dialética da Natu­ reza), as leis dialéticas seriam aplicáveis às mudanças da vida inorgânica, es­ tariam no coração mesmo das coisas. Tal hipótese (ao que consta admitida pelo próprio Marx, que chegou a apoiar as pesquisas de Engels nesse campo) acabou sendo acatada pelos teóricos marxistas como dogma, de Lênin (18701924) a Stálin (1879-1953) e a um contemporâneo de Sartre, Henri Lefebvre (1901-1991), para quem “a contradição é a lei da natureza”. O mundo material teria assim um auto-desenvolvimento dialético: a realidade velha, por suas contradições internas, cria nela mesma condições para sua destruição, fazendo nascer uma realidade nova, sua negação, que conserva aspectos da realidade anterior, mas elevando-os a um grau mais alto. Em outros termos: cada fase nega a que caducou, e seus componentes têm es­ trutura mais complexa. O desenvolvimento não cessa aí: o novo, por sua vez, amadurece, e nele volta a se manifestar a negação. Portanto, verifica-se uma sequência de negações ao infinito, em um desdobrar progressivo e ascenden­ te: passa-se do velho ao novo, do inferior ao superior. Por exemplo: o que desenvolve os organismos, conforme tal concepção da dialética, é uma luta interna entre caracteres hereditários e sua negação, ou seja, sua mutabilidade para adaptar-se às alterações do meio ambiente. Esse movimento dialético produz, primeiro, um aumento quantitativo da realidade: 160

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o grão de cevada, ao negar-se, transforma-se no pé de cevada, no qual o pino reaparecerá, não mais enquanto um, mas como centenas. Depois, a modifica ção quantitativa leva, enfim, a uma transformação de qualidade, processada abruptamente, em um salto: certa quantidade de água, submetida a certa quantidade de calor, converte-se em nova qualidade - a água passa a vapor d’água.

A dialética em Sartre a) Condições da Verdadeira Dialética Conforme a ontologia sartriana, é questionável a Dialética da Natureza. Os exemplos mencionados para mostrar que a dialética “é a lei do movimento das coisas” - o caso do continente, que “contém o mar como sua negação” -, as contradições apontadas nos objetos, as transformações de realidades velhas em realidades novas, as relações das partes com o todo, nada disso, enfim, pode ser aplicado ao mundo do Em-Si, que desconhece o que seja negação, relação, progresso, etc. Por isso Sartre nega legitimidade ao Materialismo Dialético, porque não se pode compreender a dialética se deixarmos de lado conceitos como temporalidade, projeto, totalização-em-curso, negatividade, etc., que só existem na esfera do Para-Si. Afirmando que “somente a História humana é dialética”, Sartre conclui: “É a inteligibilidade mesma da dialética que desaparece quando se pretende transportá-la para a natureza”. Se não, vejamos. Um movimento dialético significa que um estado A, em oposição a um estado contrário B, gerou uma síntese C, e que tal síntese serve de ponto de partida para novo ciclo ascendente, e assim por diante. Pois bem: só pode ha­ ver essa progressão, esse movimento orientado, no interior de um processo temporal comandado pelo futuro. Cada ciclo só resulta em novo ciclo dentro de uma totalização-em-curso: cada momento da atividade dialética é o mo­ mento não concluído da realização de uma totalidade futura. Uma vez atingi­ da a totalidade em formação (ou seja, a síntese), abre-se automaticamente um novo fim futuro a alcançar. A totalidade não se completa nunca, está sempre por se fazer, em processo de ser constituída. Assim, para que haja dialética, a totalidade futura deve estar a cada momento exercendo sua força de atração, impelindo para adiante cada oposi­ 161

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ção de contrários. Sem esse todo futuro, cada oposição de contrários não re­ sulta em evolução, cada negação de negação nada traz de positivo: apenas se aniquila por si mesma, morre em si própria. A falta de um devir, cada con­ tradição dialética não redunda em progresso, já que, alheia ao que seria uma totalização-em-curso, alheia a uma “totalidade futura a alcançar”, limita-se a ser um momento estanque, logo, algo dado e acabado, petrificado em passado inerte. Cada contradição dialética extingue-se aí: não há enriquecimento por sínteses sucessivas. Aliás, sequer se pode falar mesmo em “contradição dialética” ou em “negação de negação”. Na matéria positiva ou inorgânica não há temporalidade nem possibilidade de negações, exigidas pela contradição dialética. Um estado A só pode ser negação do estado B se, de algum modo, puder contê-lo em si mesmo como “não sendo A”. E uma síntese C só pode resultar em nova síntese D se, de alguma forma, esta síntese D puder reter temporalmente a síntese C enquanto “algo que passou” e puder compará-la com o novo estado emergente e, assim, negar C como existente (“a síntese C não existe mais”). b) A Dialética vem ao mundo pelo Para-Si É evidente que se torna necessária uma testemunha temporal - o Para-Si - para determinar a existência de um movimento dialético na natureza. Só as­ sim o estado A aparecerá como negação do estado B e, tal contradição, como propendendo a uma síntese C ainda futura e inexistente. Foi o que estudamos no capítulo sobre a temporalidade: a consciência pode conhecer um movimen­ to dialético porque foi, no passado, testemunha dos sucessivos instantes da espiral (logo, capaz de retê-los como “estados que passaram”) e é, enquanto projeto, compreensão do movimento como “orientação no sentido de...”. A meia-lua no céu é apenas o que é. Nossa consciência futura é que concebe o inexistente (a lua cheia) para designar a meia-lua como “lua crescente”, ou seja, para determinar na realidade objetiva um impulso dialético. Assim como o Nada, o futuro, a espacialidade, também a dialética chega ao mundo pelo Para-Si. Não que não existam no mundo do Em-Si antagonis­ mos e sínteses: a consciência humana não cria o vale e o rio, não faz a água, sob efeito do calor, transformar-se em vapor d’água. Mas é ela que “descobre” na realidade objetiva contradições dialéticas, pois o Para-Si é rela­ ção, nadificação, temporalidade, enquanto o Em-Si, submetido às leis do de­ terminismo, intemporal, ignorando-se a si mesmo, é incapaz de negações, desconhece qualquer transformação, qualquer contradição, qualquer movi162

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mento. Na natureza não há totalização-em-curso, mas totalidades acabildas com a estrutura e a inércia do Em-Si. Qualquer movimento é ignorado pela matéria. Até o mais simples des locamento de um corpo no espaço: cabe à consciência nadificar um objeto em um ponto X para situá-lo em um ponto Y e, desta forma, “descobrir” a exis tência de algo que chamamos trajetória. Os objetos do mundo, já sabemos, são incapazes de relacionar-se com o que quer que seja: apenas mantêm iner­ tes relações de exterioridade uns com os outros. Um corpo à direita de outro ocupa apenas “um lugar no espaço”. Compete à consciência, e só a ela, rela­ cioná-lo com o corpo à esquerda para designá-lo enquanto “corpo à direita”. O mesmo se aplica ao tempo: a consciência é que determina a primeira e a se­ gunda badaladas de um relógio como sendo sucessivas. Enfim, só a consci­ ência está apta a estabelecer a existência de contradições e sínteses, fixando relações entre parcelas que se ignoram mutuamente: o ciclo dialético teseantítese-síntese de objetos materiais não é reconhecido como tal pelo próprio ciclo, nem é uma propriedade contida intrinsecamente em cada parcela, mas apreendido pelo Para-Si enquanto totalização-em-curso. Em nenhum caso a matéria (Em-Si) dá a impressão de realizar uma ação - seja uma atividade de negação, ou de relação, ou de progresso, ou ainda re­ volta, submissão, resistência. Citamos o exemplo de um conflito de opostos: o mar e o continente. Teríamos aí um resumo das contradições que lutam entre si, ou seja, a própria “lei do movimento das coisas”: o mar corrói a terra, o continente resiste, daí surgindo o traçado das margens e da costa. Sem dúvida, isso acontece. Mas a matéria, sendo apenas o que é, comporta-se tão somente pelas calmas leis da mecânica. Para dar conta da matéria como algo “resistente”, por exemplo, é preciso que essa resistência seja vivida por uma subjetividade que tenta vencê-la - e o mar “ignora” que o continente resiste. Dizer que, no caso, há “resistência”, é transferir para o Em-Si um modelo de pensamento dialético que pertence unicamente ao Para-Si. Sem o homem, a natureza é neutra, surdo-muda, e só na esfera da intervenção humana a maté­ ria pode adquirir características dialéticas. A Dialética da Natureza seria en-* Pilheirando, diz Sartre: “Que o objeto tenha ura relógio no interior de si mesmo, tanto faz: de qualquer modo, não é ele que vê as horas”. ** O biólogo soviético Ivan Michurin (1855-1935) procurou mostrar a evolução dialética das plantas: a modificação de um meio ambiente provoca uma mudança no metabolismo das plantas e verifica-se uma seleção natural (apenas as que se adaptam ao novo meio se preservam). Mas as plantas não “sabem” disso, e a agricultura russa, formulando essas relações dialéticas, precisou intervir para criar modalidades novas de plantas, transformando, por exemplo, trigos de inverno em trigos de primavera. 163

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tão a projeção no mundo objetivo de modelos válidos somente no interior da história humana. Não há práxis nem totalização histórica na natureza (só por analogia pode-se falar em “história de um planeta” ou “história de um sistema micro-fisico”), pois “não há lei caída do céu dizendo que há na natureza uma tese, uma antítese e uma síntese-”; c) A Dialética na História humana Mas cabe sublinhar que nem por isso, para Sartre, a dialética seja apenas um “movimento do espírito”, como em Hegel, pois a realidade humana, como expusemos na Parte I, não é uma idéia apartada do mundo, mas relacionada a ele, dependente dele, e o conceito de Para-Si envolve ação prática, projeto li­ vre em uma situação concreta, etc. A dialética é um modo de ser do Para-Si e o modo como a realidade humana transforma o mundo material e o mundo histórico. Não se trata, pois, de uma recaída no idealismo ou de um retorno a Hegel. Admitamos, por hipótese, que a dialética não fosse totalização-emcurso. Mesmo assim, considerá-la “propriedade da matéria” seria imprudente, no estágio atual dos conhecimentos científicos. Por conseguinte, segundo Sartre, será sempre temerário partir-se do incerto, em vez de se partir daquilo que se dá como evidente - a dialética da História humana. Admitir uma dia­ lética da natureza é substituir uma dialética racional, inteligível e translúcida por uma dialética que não é outra coisa senão um determinismo cego, é trocar o claro pelo obscuro, o evidente pela conjetura, a verdade pela ficçãocientífica. Devemos captar a dialética onde ela se deixe ver, onde ela estiver, e não sonhá-la onde ainda não temos meios de apreendê-la e onde sua existên­ cia parece mesmo inconcebível. Sartre afirmou que Engels “matou a dialéti­ ca” ao transferi-la para a natureza. Assim, o setor que devemos investigar para provar a realidade da dialé­ tica é o interior da História humana. Sartre aceita o Materialismo Histórico que Marx sistematizou antes de seu “nefasto encontro” com Engels. Mas es­ tudar a História humana não basta, não é ir ao fundo da questão. O próprio Marx não passou desses limites. Sartre quis encontrar a dialética em sua ori­ gem mais remota, em seu fundamento mais irredutível. A dialética histórica,* *

Certas teorias científicas, inclusive, contradizem as exigências de uma dialética que deve se enriquecer a cada passo: por exemplo, o fenômeno termodinâmico da entropia, segundo o qual verifica-se uma constante degradação da energia universal. 164

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afinal, não se mostra de forma tão clara a ponto de ser reconhecida inqurstio navelmente ao primeiro exame - prova disso é que muitos historiadores reeu sam o método. Ora, conforme Sartre, a dialética jamais será algo que possa mos “contemplar” ou “conhecer”, como se existisse fora de nós. d) A Dialética que somos Se posso compreender uma dialética na História é porque tenho em mim, no meu Ser, uma inteligibilidade do que seja a dialética. E isso acontece porque sou dialético: o Para-Si é o setor do Ser em que a totalização-em-curso é o seu modo mesmo de existir. Se nós, homens, não fôssemos atividade to­ talizadora (projeto), jamais poderiamos sequer conceber o que seria algo como uma dialética. Voltamos ao ponto de partida da nossa exposição: o obje­ to da nossa investigação (a dialética) pode ser interrogado no próprio investi­ gador, porque a dialética que investigamos é a dialética que somos. Mais uma vez temos o privilégio de verificar de perto aquilo que se acha mais ¡media­ tamente acessível ao nosso pensamento: a experiência interior da totalizaçãoem-curso. Portanto, o método dialético, o único capaz de tornar inteligível a História humana, exige que o investigador se situe em interioridade, ou seja, que ele viva a sua própria investigação. Ao fazermos uma reflexão crítica sobre a nossa vida de todos os dias apreendemos de imediato o fato de que somos uma totalização-em-curso: pela falta que há em nosso Ser, em nossas ações práticas executamos tarefas, pre­ enchemos vazios, realizamos possíveis. Como já sabemos, somos projetos que se projetam sem cessar, totalizações que se totalizam sem cessar. Executamos Sartre diz que “qualquer ato que fazemos é dialético” e mostra que “a operação é a mais sim­ ples do mundo”. Na conferência realizada em Araraquara, São Paulo, em 1960, houve um ins­ tante em que Sartre interrompeu a fala para acender um cigarro. Por segundos, ante as vistas da platéia, fica embaraçado com um isqueiro emprestado que tem dificuldades em acender. Há aqui tensão, crise. Em seguida, Sartre nega a presença da platéia e concentra-se no mecanismo do is­ queiro. Ao fazer saltar a chama, ele volta a reencontrar a audiência. Assim, através de um siste­ ma de oposição e luta, ele alcança uma síntese, uma totalidade, passando de um estado a outro agora há a platéia e o cigarro aceso. Heidegger diz que o fato de o homem ser histórico em seu Ser é que possibilita algo que chamamos História (sucessão de ocorrências). O homem não se encontra “lançado” em uma História, mas essa História mesma exige a temporalidade do Para-Si. Se suprimíssemos o.s ho­ mens que viveram e vivem a História, já nada restaria da História (passado, sucessão de aconte­ cimentos), pois a natureza, sem a presença do homem, não é temporal nem consciente, ignora-se a si mesma. 165

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totalidades que nunca são o fim do nosso caminho, mas portas abertas para novas totalidades a cumprir, já que o futuro é um perpétuo chamamento. Cada totalidade a realizar - seja a construção de uma casa, a reparação de uma má­ quina - é uma fase provisória a superar dentro da ininterrupta totalização-emcurso: construída a casa, reparada a máquina, temos de realizar outra totalida­ de (habitar ou negociar a casa, utilizar a máquina para certo fim, etc.). Portanto, se a dialética existe, devemos sofrer em nós mesmos a experi­ ência dela, encontrar em nós mesmos, perfeitamente clara, a evidência da dia­ lética, a partir do simples fato de que somos ação prática, atividade totalizado­ ra. Por isso, antes de ser estudada na História, como fez Marx, a dialética deve ser pesquisada na razão humana. A crítica da razão dialética deve preceder a própria compreensão da dialética histórica: temos de descobrir e fundar a ra­ zão dialética para provar a realidade da própria dialética. Esta se mostra pri­ meiro na célula básica da subjetividade de cada indivíduo: é unicamente aí que ela se manifesta com total evidência. E isso ocorre, repetimos, porque a realidade humana é a única esfera do Ser em que a dialética constitui a forma mesmo de sua existência. Longe de ser uma lei universal, a dialética é uma realidade vivida por nós, e só se revela, translúcida, para o homem porque é vivida por ele como tal, descoberta na própria vivência de cada um. O investigador deve começar a sua pesquisa compreendendo a sua pró­ pria vida como movimento dialético - esse o único meio de provar a existên­ cia da dialética. Toda a dialética histórica, assim, tem seu ponto de partida na subjetividade individual (não uma subjetividade abstrata, mas aquela que Sartre definiu como Para-Si, sempre ligada ao Em-Si, ao mundo objetivo). Se a subjetividade constitui a origem primeira da dialética, isso quer dizer que o movimento histórico provém, em última análise, dos indivíduos. e) A Práxis Desse modo, é a práxis do indivíduo, ou seja, a empresa de cada ho­ mem de produzir a sua vida, que fundamenta a História humana, o fator básiA noção de práxis (em grego: “ação”) é presença constante no marxismo e indica a preocupa­ ção dessa doutrina em escapar à contemplação teórica e ser predominantemente prática (Marx: “Os filósofos têm-se limitado a interpretar o mundo de diversas maneiras: trata-se agora de transformá-lo”). Em sentido geral, a práxis se identifica com a vida humana mesmo: agimos pelo simples fato de participarmos da vida prática da sociedade, de termos um emprego, de con­ sumirmos, de constituirmos família, etc. Até a recusa da ação é práxis: contribuímos, pela inér­ cia, para manter o estado de coisas como está. Em Marx, até o processo de conhecimento é prá166

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co capaz de determinar as ações dos grupos humanos. “O único lundaini ulo concreto da dialética histórica é a estrutura dialética da ação individual I ni outras palavras: a dialética como totalização-em-curso não é outra coisa scnao a práxis humana, e a práxis individual é a experiência original de toda dialeii ca possível. Devemos encontrar a verdadeira dialética no movimento mesmo da atividade prática de cada homem, porque toda dialética histórica repousa sobre a práxis individual enquanto essa já é dialética. Afirmando que a origem viva da dialética é a práxis individual, Sartre diz: “E preciso reintegrar o cogito na dialética”, porque “nenhuma dialética é possível se não parte do projeto”. O conceito marxista de práxis deve ser reformulado de acordo com as noções de projeto, temporalidade, totalização-em-curso, nas quais predomi­ nam os fins futuros visados pelo homem (ao reparar uma máquina, o técnico está indo ao futuro: à máquina já reparada). A práxis, então, significa o se­ guinte: o homem executa uma ação que altera o estado de mundo atual, su­ pera uma situação objetiva dada (por exemplo, a exploração capitalista, a es­ cassez de bens para todos, etc.), visando uma nova condição objetiva ideali­ zada no futuro, ou seja, um “outro estado de mundo” a ser realizado pela ação. O projeto da práxis revolucionária (a transformação da vida social, po­ lítica e econômica pela classe dominada), como todo projeto, tem por fim saltar adiante da situação existente. A práxis desemboca em um “ainda não existente” (armadilhas já evitadas, opressões já vencidas, poderes agora exer­ cidos) que se quer totalizar. E como isso ocorre? Pela subjetividade: é projetando subjetivamente um “futuro a realizar” que o homem inicia sua ação. O subjetivo - já o vimos aparece como intermediário necessário entre duas situações objetivas: a atual (material, concreta) e a futura (ideal, abstrata). Estabelecendo um futuro ideal, o projeto subjetivo é que permite a um operário compreender a sua situação de certa maneira. Reencontramos aqui o “Circuito de ipseidade”. O fim futuro visado (no caso, uma condição social mais justa para todos) é que, em retro­ cesso, atribui à situação objetiva atual do trabalhador oprimido o seu sentido de “estado-insuportável-a-suprimir”. Para que um operário se rebele, é neces­ sário que ele primeiro supere subjetivamente o meio presente, rompa com o passado e vá adiante da situação, ao futuro, idealizando tudo de outro modo, xis: o antigo sentido de contemplação passiva é uma abstração, porque é a ação prática que leva o homem a lidar com os objetos do mundo e faz com que esses objetos se tornem conhecidos. No sentido marxista, a práxis é a ação do homem, o trabalho do homem para produzir suas con­ dições de vida, interferindo na natureza, modificando as condições sociais, etc. 167

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não se fixando no que lhe aparece e projetando mudar a situação, considerándo-a sob o prisma desse “não-ser-ainda”.* Mesmo quando o trabalhador se acomoda a um salário de fome, ele visa um fim além da situação presente: o risco de morrer de inanição pelo desem­ prego e a falta de recursos. Quanto aos capitalistas que detêm o poder, eles se adaptam à sociedade injusta que os favorece porque projetam também um futuro - aquele futuro em que tudo seja igual ao passado, no qual nada tenha se alterado e eles continuem a desfrutar os privilégios de hoje. Para o revolucionário, o estado atual do mundo é julgado à luz do futu­ ro. “Sem a iluminação que o fim futuro dispensa à situação presente - diz Sartre - não poderia haver revolução”. O futuro penetra no coração de cada um como a motivação real de suas condutas, está no interior da práxis como “aquilo que falta ser realizado” e que ilumina a realidade atual com a sua au­ sência. Pode-se dizer até que a classe operária é puro futuro: ela vive para além do sistema atual que a explora. E projeta o ultrapassamento do capita­ lismo através de uma ação negadora: uma ação que nega o futuro como repe­ tição do passado, como um destino ou fatalidade que lhe seria imposta. A partir do momento em que compreende o papel do projeto individual na constituição da práxis, e compreende a estrutura dialética de seu próprio Ser, o investigador deve buscar a compreensão da dialética na aventura hu­ mana inteira, indo do particular para o geral, saltando de sua vida singular para a História, e entendendo que sua ação totalizadora é apenas parte de uma multiplicidade de ações totalizadoras. O pesquisador encontrará assim a identidade entre uma vida singular e a História humana em geral. O exame da nossa ação prática deve revelar a plu­ ralidade da ação prática de todos os homens. Em outros termos: ao descobrir que sou uma liberdade em ação, verifico depois que os homens todos são os únicos autores de suas ações e que, portanto, somos nós, homens, que faze­ mos a História (“Sem homens vivos não há História”, disse Sartre). Essa exNote-se que toda ação, por colocar um fim a ser realizado, implica uma característica essenci­ al: a esperança. “Não posso empreender uma ação sem contar que vou realizá-la”. Isso não sig­ nifica que o fim se realize necessariamente, mas que - mesmo não sendo atingido esse fim —a esperança existe como parte da ação, já que esta não pode ficar, por princípio, destinada ao ma­ logro certo. Esperança, aqui, nada tem de “ilusão lírica”, mas é componente da natureza da ação. J'* Em vez de partir da ação do indivíduo para nela encontrar os laços com os outros e a História, os marxistas fazem o contrário: vão do geral ao particular, das relações de produção aos grupos e, se estritamente necessário, aos indivíduos. 168

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periência nos revelará que só o homem inventa o seu campo de ação, serve de ponto de partida para a dialética histórica, e que o homem faz essa História todos os dias, por suas próprias mãos. É superando perpetuamente a sua con­ dição pelo projeto, ultrapassando o dado para o campo dos possíveis, vendo a sociedade sempre pela perspectiva do futuro, visando um “mundo a realizar”, que o indivíduo age, determina o rumo das coisas e faz a História. Em sua Crítica da Razão Dialética, Sartre mostra que é a práxis individual que consti­ tui toda ação de grupo, descrevendo as relações dialéticas do homem com a matéria e dos homens entre si, sem nunca perder de vista o projeto individual, • . • a totalização-em-curso, como mola propulsora do movimento histórico. *

Razão analítica e razao dialética Para Sartre, a razão dialética, ou seja, o modo de raciocinarmos dialeticamente, é o único meio certo de se compreender a realidade humana (como intencionalidade, projeto, totalização-em-curso) e também a única maneira de se fazer inteligível o processo histórico. “Sem a razão dialética - escreve afirmo que nada, absolutamente nada, nem a Leste, nem a Oeste, se escreve ou se diz uma palavra a respeito de nós e nossos semelhantes que não seja um erro grosseiro”. A falha principal das ciências humanas (incluindo o próprio marxismo, que se pretende científico) é que não adotam a razão dialética. Ao contrário, estudam o seu objeto, o homem, do mesmo modo como as ciências naturais (matemática, astronomia, física, geologia, zoologia, botânica, etc.) tratam os objetos de seu campo de análise, objetos esses submetidos às leis da inércia e do determinismo, próprias do mundo exterior. Ou seja, todos partem do que t *■ * Sartre chama de razão analítica. Suas características, totalmente opostas ao método dialético, são as se­ guintes: (a) o observador se situa no exterior do objeto considerado, contemplando-o de fora para analisá-lo; (b) a análise é processada tomando-se isola­ damente os elementos que se organizam em um todo, imobilizando-os e sem Mais adiante expomos outras críticas de Sartre à Dialética da Natureza. ** . . . . Na Parte I vimos como a psicologia costuma tratar o homem enquanto psique, organismo lisiológico, totalidade já constituída, etc. 169

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determinar as relações entre eles e seu movimento comum, ou seja, sem uníficá-los; (c) o objeto da análise surge como algo completamente passivo, em repouso, já feito de uma vez por todas, isto é, como puro passado, Em-Si, to­ talidade dada e finita. Sem dúvida, esse método analítico serve para certos níveis de investiga­ ção - ou seja, aplica-se corretamente ao Em-Si, seja para as pesquisas da ma­ téria inorgânica, seja para fatos humanos já passados e passivos, como, por exemplo, as origens históricas do capitalismo, a evolução do trabalho, a maisvalia, as relações de produção, etc. O marxismo só se preocupou em exami­ nar, pela razão analítica, os dados históricos passados, debruçando-se sobre aquilo que já aconteceu. Mas, como estamos no terreno da realidade humana, isso não basta. A razão analítica se adapta ao conhecimento do Em-Si, a razão dialética serve à compreensão do Para-Si. Os marxistas restringem-se a se colocar frente ao sistema de análise como um observador à parte, não com­ prometido, que testemunhasse a conduta de objetos materiais e estáticos, simples inércias. A sociedade é captada como “objeto exterior”, a História como totalidade já constituída, os homens como coisas iguais umas às outras, justapostas, como “ervilhas em lata”. Não se leva em conta a razão dialética, que atenta para a ação projetiva e totalizadora do homem. E assim os marxistas tentam explicar os indivíduos pelos processos so­ ciais, sem que esses processos sejam inteligíveis através dos indivíduos mes­ mos. Mas conceber a sociedade sem o indivíduo é uma abstração, do mesmo modo como seria parcial elaborar-se uma teoria da mente sem o corpo. A dia­ lética histórica não pode ser descoberta por uma razão analítica contemplati­ va, mas deve ser vivida em interioridade, pois a dialética existe na própria ação de cada indivíduo. Os marxistas dizem que “a História é dialética”, po­ rém de nada vale essa afirmação se a submetemos a uma lógica analítica. Em conseqüência, o passado predomina na análise marxista, em todos os sentidos. Não que os marxistas não julguem pensar no futuro (visam a constituição de uma nova sociedade), mas vêem a História como totalidade já acabada. Os efeitos desse procedimento são estudados nos pontos que se se­ guem: Argumentam os marxistas que um processo social constituído no passado governa no presente um grupo de homens, mas não explicam como isso é possível. Para que tal aconteça é necessário atentar para a ação projetiva do homem: a praxis da classe no poder visou um fim “dominador”, e a classe dominada projetou esse domínio como um futuro “insuperável”. Por isso a classe dominada se deixa governar por processos sociais passados. 170

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(A) Para o marxismo analítico, o futuro de um processo social é algo objetivo que, de certo modo, já está contido nos fatos passados. Repete-se aqui o procedimento já observado na psicologia. O futuro possui um caráter de passado: fatos do passado são utilizados para classificar acontecimentos do porvir, como se o futuro fosse uma repetição do que pas­ sou, um “passado que se verificará”, uma fatalidade temporal. Com a razão analítica, o marxismo formou conceitos imutáveis e eternos, com base em um passado rígido, e em verdades preconcebidas que tenta adequar à realidade futura. Mas a História não se ajusta a moldes predeterminados, não é uma to­ talidade, e sim totalização-em-curso, em constante porvir e formação, logo, algo imprevisível, como* imprevisível é o homem. A temporalidade não é ob­ jetiva, mas subjetiva, e é a estrutura básica da práxis: logo, o futuro humano não pode estar prefixado; ao contrário, o futuro predeterminado é exatamente o que o homem quer negar, recusando a sua condição atual, opondo-lhe, pela práxis, a construção de um “outro futuro”. (B) Para o marxismo analítico, a práxis não é um projeto, e o homem age motivado apenas por causas que o oprimem (sejam as condições precári­ as de vida, sejam os sistemas sociais já constituídos). De acordo com Sartre, nenhuma dialética viva, nenhuma práxis teria cabimento se a ação humana fosse determinada dessa maneira. Assim como existe uma lógica humana, intencional, projetiva - e não apenas uma lógica econômica - nas estruturas que sustentam o capitalismo (ou seja, a manuten­ ção, no futuro, da situação já existente), há também intenção, projeto, na ação revolucionária. Por si mesma, a situação mais miserável não poderia engendrar um ideal revolucionário. A condição objetiva, em sua indiferença, não é motivo para que um operário conceba “um outro estado de mundo”. Pelo contrário, é a partir do momento em que, pelo projeto, o operário pode conceber esse “outro estado de mundo” que uma luz nova incide sobre o seu sofrimento e ele o pa­ dece como “insuportável”. O estado material enquanto “motivo” não é o que determina uma práxis - pois o motivo (a qualidade “intolerável” da situação) só aparece depois de já projetada a ação, desponta no seio mesmo do projeto, pelo “Circuito da ipseidade”. Os processos sociais já consolidados também não têm peso para deter­ minar uma práxis. Se assim fosse, a práxis seria mero efeito predeterminado 171

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de causas anteriores. Mas isso não acontece: cada práxis é esta e não outra, possui singularidade própria, é original, independente, nova e faz-se a si mesma (por exemplo, cada grupo humano, ao agir, trata de saber que próximo passo deve alcançar, em um certo campo social, agindo dessa maneira e não de outra, ultrapassando estes obstáculos e não outros, tomando certas estraté­ gias e não outras, etc.). Claro que a condição material (situação) circunscreve de algum modo a ação humana, pois a liberdade é sempre liberdade situada. As condições ma­ teriais (sociais, psicológicas, históricas, fisiológicas, etc.) se impõem como necessidade de fato. Por exemplo: não há carvão na Itália, e assim toda a evolução industrial desse país nos séculos XIX e XX dependeu desse dado ir­ redutível. Mas é preciso ver que há várias maneiras de se viver essa condição material: ela é vivida de modos diversos por cada pessoa ou grupo, o qual se situa em vários níveis com relação a esse dado. Para Sartre, se o homem estivesse submetido à ação de uma realidade dada e passada, se o trabalhador fosse um simples objeto fisiológico mecani­ camente determinado por dados exteriores, não teria como agir visando um novo conjunto social. (C ) Para o marxismo analítico, o homem resulta em um produto passi­ vo, inteiramente controlado por circunstâncias passadas e exteriores (sobretudo as econômicas) e constituindo-se não mais do que em um feixe de reflexos condicionados por estímulos sempre já dados anteriormente. Assim como os psicólogos acreditam que a psique já constituída (passado) atua de forma mecanicista sobre a consciência, Marx foi levado a crer que o homem está determinado pelas condições sócio-econômicas já con­ solidadas (passado), do modo como uma causa governa seus efeitos. Escre­ veu, por exemplo: “Os homens fazem a sua própria História, mas não do Quando estudamos o projeto, ficou claro que toda realidade material a superar já contém ou impõe certo conteúdo de futuro a atingir, favorecendo certas chances e restringindo outras, etc. Esse raciocínio volta a aparecer aqui. Embora desprezando o valor do projeto, os marxistas não confiam tanto quanto parece no po­ der da ação do dado objetivo. Prova é que militam para suscitar nas massas a “consciência de um porvir”. Sem o esclarecimento político das massas, a situação mais miserável pode gerar, ao contrário da revolução, o conformismo - pois o operário projeta um futuro ameaçador (desemprego, penúria, morte por inanição) e, para proteger-se, agarra-se ao pouco que tem. Além disso, os próprios militantes devem fazer uso de sua consciência, indo ao futuro, para compreender a situação em que se acham as massas e projetar uma práxis. 172

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modo como a querem (...) e sim sob as circunstâncias (...) transmitidas pelo passado”. Os marxistas vieram então a encarar um ser humano como produto passivo das circunstâncias exteriores e anteriores, um objeto inerte feito por uma força onipresente chamada História. Sabe-se dos esforços de Marx para evitar as armadilhas do materialismo mecanicista, que tudo reduz à objetividade, tirando do homem qualquer poder de iniciativa. Em suas Teses Contra Feuerbach, lamenta que o materialismo tenha se limitado a captar a realidade sem se importar com a atividade huma­ na concreta, sem atentar para a subjetividade. Mas, a despeito de seus cuidados, manteve-se Marx em posição ambígua. Se às vezes defendia o papel do subjeti­ vo, em outras suprimiu toda participação do sujeito no processo histórico. Por um lado, Marx disse: “A História não faz nada. Quem faz tudo, in­ clusive a História, é o homem vivo e real”. Ou ainda: “A História nada mais é do que a atividade do homem na busca de seus próprios fins”. Não lhe faltou sequer uma intuição do projeto como mola propulsora da práxis. Mas, por outro lado, Marx também afirmou: “Não é a consciência dos homens que de­ termina o seu Ser, mas, ao contrário, é o seu Ser social que determina sua consciência”; “É preciso explicar a consciência a partir das contradições da vida material”; “O movimento dialético do pensamento é o reflexo do mundo real”. Em outras palavras: Marx freqüentemente estabelecia o primado da matéria sobre a consciência. Marx não evitou o materialismo mecanicista que tanto criticou em Lu­ dwig Feuerbach (1804-1872). Em sua época ainda não haviam aparecido o método fenomenologico de Husserl e as investigações de Heidegger no cam­ po da temporalidade (entre outras luzes projetadas neste século sobre a subje­ tividade), e os psicólogos materialistas do século XIX, longe de ajudá-lo, er­ gueram-lhe barreiras. O russo Ivan Sechenov (1829-1905) afirmava que “a vida psíquica é produto de um órgão material, o cérebro, que funciona graças Em O Capital Marx escreveu: “Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquite­ to da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em reali­ dade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes, idealmente, na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele impri­ me no material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar, e ao qual ele tem de subordinar a sua vontade”. Lê-se ainda, em Contri­ buição à Crítica da Economia Política-, “É por isso que a humanidade só se propõe a tarefas que pode resolver, pois (...) a tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução (...) são captadas no processo de seu porvir”. (Os grifos são nossos) 173

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à ação exercida pelo mundo exterior sobre os órgãos dos sentidos”. E ainda: “A causa primeira de toda ação é sempre a excitação externa dos sentidos, pois sem ela não é possível nenhum pensamento”. Discípulo de Sechenov, Pavlov desenvolveu a teoria da consciência como reflexo do mundo exterior, considerando o pensamento como proprie­ dade da matéria e escrevendo que “a atividade psíquica é o resultado da ativi­ dade fisiológica de uma massa determinada da substância cerebral”. Os mar­ xistas ficaram apenas com essa teoria pavloviana, sem dúvida grosseira, pois faz do homem uma elementar máquina de reflexos condicionados. Lênin, por exemplo, deduziu que “os conceitos são os mais elevados produtos do cére­ bro, que é, ele próprio, o mais elevado produto da matéria”. Ainda se podiam encontrar essas concepções fisiológicas da consciência no Dicionário Filosó­ fico Abreviado, de M. Rosental e P. Iudin, publicado e aceito oficialmente na União Soviética em 1955, no qual se lê que “a consciência é o reflexo da ma­ téria” e o pensamento “um produto da matéria altamente qualificada”. Da teoria do reflexo resultou uma interpretação vaga sobre o papel do homem no processo histórico. Engels, contraditoriamente, disse que “os ho­ mens fazem a História por si mesmos, em um meio que os condiciona”. E então? O homem faz a História, ou é a História que faz o homem? Assim, o homem, para o marxismo, aparece no mais das vezes como uma soma de re­ flexos condicionados, um objeto inerte que, apesar de tudo isso, ainda conse­ gue mudar a sociedade e o mundo - mas o faz, segundo esses marxistas, do mesmo modo que uma bomba, sem deixar de obedecer ao princípio da inér­ cia, pode destruir um edifício.* *

Como veremos, não há dúvida de que os homens fazem a História com base nas condições anteriores da realidade (caráter, distorções pelo tipo de trabalho, alienação, etc.), mas são eles que fazem a História (pelo projeto: realização do que ainda não é ), e não as condições anteriores. Marx deixou muitas de suas afirmações destituídas da necessária clareza. Exemplos: “A con­ cepção materialista do mundo significa simplesmente a concepção da natureza tal qual é, sem nenhuma adição estranha” ( Ou seja, sem intervenção da subjetividade, o que supõe um olhar não situado, uma natureza captada por um ponto-de-vista que não está em parte alguma, o que é inconcebível ); “Minha consciência é a minha relação com o que me rodeia” (Mas não se expli­ ca em que consiste essa relação, pois isso exigiría noções de intencionalidade, distância ao Ser, etc., só mais tarde estudadas pela fenomenologia e por Sartre); “Até agora, os homens sempre formaram idéias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser (...) Esses produ­ tos de seus cérebros acabaram por dominá-los. (...) Revoltemo-nos contra o império dessas idéi­ as. Se a expressão consciente das condições de vida reais desses indivíduos é imaginária (...) esse fenômeno é ainda conseqüência do seu modo de atividade material" (Restam aqui sem compreensão as “idéias falsas”, o “cérebro a produzir suas idéias” e as “idéias imaginárias”, já 174

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Portanto, se não queremos tomar a História humana como “coisa incili já constituída”, mas sim como de fato é - uma atividade viva c cm andamento - devemos usar o pensamento dialético que somos. Já que a razão humana e dialética, podemos conhecer dialeticamente as ações humanas, bem como aplicar relações dialéticas onde elas não existem, ou seja, no mundo objetivo. A razão analítica trata apenas de elementos inertes e isolados, sem unifi­ cá-los ou relacioná-los no todo em que se organizam, sem incorporá-los ao movimento comum que engendram. E um tipo de pensamento parcial, uma forma de conhecimento retalhado em verdades partidas em pedaços. A razão dialética vai mais além: não considera isoladamente qualquer aspecto de uma realidade examinada, mas relaciona-o sempre a outros aspectos e ao conjunto total, de uma maneira tão interligada que, como vimos, o sentido de cada parte só aparece quando vista em relação ao todo, e o sentido desse todo surge quando visto em relação a cada parte. Não que a razão dialética seja o contrário da razão analítica, como supôs o antropólogo Claude Lévi-Strauss (em O Pensamento Selvagem), que criti­ cou Sartre, dizendo que este, para fundamentar um pensamento dialético, precisou recorrer à própria razão analítica que combatia: em sua Crítica da Razão Dialética, Sartre se detém freqüentemente na análise isolada de ele­ mentos ou partes de um todo. Sartre reconhece que é verdade, e nem poderia ser de outro modo. O pensamento dialético não é o oposto do analítico, pois necessariamente encerra, em seu desenrolar, diversos momentos analíticos: na descrição dialética de uma realidade é preciso, primeiro, isolar cada elemento e analisá-lo, para depois relacioná-lo aos outros (por sua vez também analisa­ dos isoladamente) e relacionar todas as partes consideradas ao conjunto a que pertencem. Mal comparando, podemos citar um texto escrito ou uma partitura musical. Uma coisa (razão analítica) é considerar apenas uma palavra (sem a frase), uma frase (destacada do resto do discurso), um nota musical (isolada da pauta), etc. Outra coisa é apreender o sentido total da frase ou do discurso, a sonoridade de um trecho musical, etc., passando, necessariamente, por cada palavra, cada nota, etc. E o que faz a razão dialética: trata-se, tão-somente, de um modo de usar o pensamento analítico. Melhor: é o controle da análise em nome de um todo a considerar, fazendo assim uma síntese da série de pensa­ mentos analíticos. que uma idéia - conforme a teoria fisiológica da época - seria um reflexo do objeto exterior, um produto da realidade verdadeira, logo, incapaz de erro ou de abstração). (Os grifos são nossos) 175

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Em qualquer fenômeno estudado, o pensamento, sendo dialético, é ca­ paz de captar relações e negações das partes entre si, de cada parte em face do todo, do todo em face de cada parte. Nossa consciência apreende uma intrin­ cada rede de afirmações e negações: vê cada parte e o todo de um ponto-devista positivo (a parte é isto, integra e depende de um todo, compreende em si mesma esse todo; o todo é isto, conserva a parte dentro de si) e também de um ângulo negativo (a parte não é o todo, o todo não é a parte). Assim, captamos as relações positivas e negativas de cada parte com as outras partes e com o todo, assimilamos cada parte na medida em que ela conserva e nega as demais e o todo, na medida em que é conservada e negada pelas demais e o todo. Compreendemos desse modo, em seu bojo, o desenrolar de um movimento dialético.

Considerações finais a) O universal e o singular Sartre “existencializou” o marxismo, no sentido de que seu existencialismo foi um complemento à doutrina de Marx, adicionando-lhe mais profun­ da compreensão ontologica da realidade humana. Reatando o histórico ao in­ dividual, a fim de ajudar a filosofia marxista a superar a sua provisória inca­ pacidade de desenvolver as suas potencialidades, Sartre contestou o marxismo “tal qual é” em nome de um marxismo “tal como deveria ser”. “O marxismo absorve o homem dentro de uma idéia global, enquanto o existencialismo o procura em todo lugar onde ele está, no trabalho, em casa, nas ruas”, disse Sartre. Assim, o existencialismo atentou para a singularida­ de de cada pessoa, considerou a especificidade de cada existente, a vivência de cada subjetividade. O marxismo, ao contrário, não se importou com esses A complexidade de tão abrangente raciocínio impõe, é claro, um tipo de linguagem igualmen­ te complexo. Sartre escreveu a Crítica da Razão Dialética com frases de 15 ou 20 linhas, muitas vezes, pois não era possível de outro modo expressar esse emaranhado de relações. A curiosa identificação que o leitor de Sartre faz consigo mesmo foi bem observada pelo tea­ trólogo Georges Michel: “Antes de conhecer Sartre pessoalmente, tinha a impressão de que ele escrevia para mim frases sob medida.(„.) O que ele descrevia no plano filosófico eu senti na mi­ nha vida de todos os dias”. 176

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“conteúdos particulares”, e ateve-se a um sistema objetivo generalizante, que tudo reduz a conceitos abstratos, tratando apenas de dados eternos c vagos, usando de uma única interpretação que serve para qualquer coisa c para todos. Por exemplo, falam os marxistas de um certo “imperialismo mundial” que nada mais é do que uma força inesgotável e sem rosto cuja essência não varia, seja qual for o sistema cultural ou social onde incide. Os fatos são iso­ lados de seu contexto histórico específico, e as determinações concretas da vida humana pouco levadas em conta. Assim, os marxistas acreditam que os processos objetivos da evolução social se impõem a todos os homens, sem distinção. Nessas condições, por exemplo, o processo de produção capitalista provocaria uma crise capaz de açambarcar todo e qualquer indivíduo em um único destino de sofrimento e penúria, ao contrário do que se verifica na prática. Como vimos, os conceitos desses marxistas não se deduzem dos casos estudados, mas já estão formados a priori: basta apenas depositar os aconte­ cimentos e as pessoas nos moldes pré-fabricados. Grupos reais e bem defini­ dos são substituídos por coletividades indeterminadas. O particular cede lugar ao universal. Se, porventura, algum fato não corresponde à idéia preconcebi­ da, alegam os marxistas que foi mero acaso. Engels chegou a afirmar que, se Napoleão não houvesse existido, e se outro ocupasse o seu lugar, o final da revolução francesa não teria sido outro. Isso é verdade, mas, em compensa­ ção, a vida inteira de um homem singular, Napoleão, foi reduzida à categoria do azar e a ela não se dá a menor importância, já que se trata de uma simples “singularidade” que deve ser suprimida da doutrina. Ora, não podemos con­ ceber outro Napoleão distinto do que conhecemos. Os marxistas crêem mesmo perder seu tempo se precisam entender, di­ gamos, um pensamento burguês na sua originalidade. Ao estudar a vida de Paul Valéry (1871-1945), escritor pequeno-burguês da França da virada do século, limitam-se a examinar as categorias econômicas, as condições da vida social da época, etc. Seu trabalho termina aí. Quanto à pessoa singular e única de Paul Valéry, evaporou-se. Ora, Paul Valéry é sem dúvida um intelectual pequeno-burguês, mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Paul Valéry. Devemos decifrar esse homem em sua particularidade, a partir do grupo con­ creto do qual surgiu. Se o problema é estudar a literatura de Gustav Flaubert (1821-1880), os marxistas consideram-na mera conseqüência da situação da pequena-burguesia francesa do IIo Império, assim como a psicologia analítica diria que razões universais e abstratas (“ambição”, “tenacidade”, etc.) fizeram de Flaubert um escritor. Ou seja, por causa do estado social da época, Flaubert 177

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tinha de viver como viveu, tinha de escrever o que escreveu. Assim, não fi­ camos sabendo por que Flaubert preferiu a literatura a qualquer outra ativida­ de, nem por que escreveu tais e quais livros, e não outros, etc. Igualmente, os marxistas preferem permanecer em um nível de relações econômicas, explicando tudo pór esse prisma. Assim, definem um homem alienado como uma presa passiva do processo capitalista que o explora. Mas não é verdade: um homem alienado não deixa de ser um homem, e é preciso saber como ele vive a sua alienação. Com diz Sartre: “a diminuição do poder aquisitivo não provocaria jamais uma ação reivindicatoría se os trabalhadores não a sentissem na carne, sob a forma de carência ou de medo fundado em cruéis experiências”. E acrescenta: “Há uma noção capital que a dialética marxista não elucidou de modo suficiente. A saber: não há alienação a não ser a de um homem livre”. Sem dúvida: se o homem não fosse livre, como se po­ dería aliená-lo ou escravizá-lo? Não se aliena nem escraviza uma pedra. Em suma, não se trata de abordar uma abstrata “essência humana” que nunca existiu, mas ações concretas de homens concretos. O marxismo, nesse sentido, não pode dispensar a contribuição de disciplinas como o existencialismo, a psicanálise e a sociologia, que lhe fornecerão instrumentos para pas­ sar das determinações genéricas ao indivíduo singular. Sartre propõe um mé­ todo progressivo-regressivo. Regressivo, porque regride à existência particu­ lar de um indivíduo, uma época, um grupo, um sistema cultural e social es­ pecífico. Progressivo, porque recoloca o indivíduo ou o grupo no impulso do movimento histórico globalizante. Reconhece-se desse modo a originalidade irredutível de cada pessoa ou grupo e de cada fato histórico. “Nada poderá ser descoberto se, de saída, não chegarmos tão longe quanto possível na singula­ ridade histórica do objeto. É preciso ir mais longe e considerar, em cada caso, o papel do indivíduo no acontecimento histórico”. Por exemplo: o estudo de Flaubert criança “enriquece o estudo da pequena-burguesia de 1830”. b) O Objetivo e o Subjetivo Por outro lado, Sartre acrescentou ao marxismo uma visão filosófica não idealista da liberdade humana. O marxista supõe que a liberdade é um estado Já vimos que nosso reconhecimento da ação projetiva do Outro é também progressivoregressivo: já que não se pode compreender o menor dos gestos humanos sem explicá-lo pelo futuro, para captar uma praxis como tal progredimos ao fim futuro que ela visa e regredimos à condição originária em que se acha o agente ao iniciá-la. 178

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que emergirá no momento em que não mais existir coação exterior sobre nós “Mas isso não é liberdade”, diz Sartre: “A liberdade é a capacidade tic fazei escolhas e aceitar as responsabilidades decorrentes”. Se, porventura, os mar­ xistas objetam que, se o homem fosse livre, não mais haveria necessidade dc revolução, pois ele já possui a sua liberdade (embora tal “liberdade interior e potencial” a que se referem nada tenha a ver com a liberdade sartriana), cabe responder: bem, mas se o homem não é livre, não se pode compreender cm que consistiría a sua “libertação”, porquanto não se pode libertar aquilo que nunca foi livre. Sartre chega a indagar como alguém pode aderir com a liberdade de seu pensamento a uma doutrina que destrói esse pensamento livre. Como uma doutrina que nega a liberdade do homem pode ser instrumento de sua liberta­ ção? Uma revolução feita para um Ser sem liberdade daria como único resul­ tado possível, digamos, uma organização mais racional da sociedade, mas que valor teda essa organização se ela não pudesse ser sentida como tal por uma subjetividade livre, capaz de designá-la, justamente, como “mais racional”? Os marxistas que falam em libertação descrevem o homem como de­ terminado pelas circunstâncias e levando o mesmo tipo de existência coagu­ lada de um objeto. Inúmeros reparos se deve fazer - em nome do marxismo mesmo - a essa redução do espírito à matéria, do homem à condição de “coisa” sujeita ao determinismo universal. Foi por isso que, enquanto Marx partiu da objetividade, explicando os indivíduos pela História, Sartre percor­ reu o caminho inverso, partiu da subjetividade, explicando a História pela ação dos indivíduos, até chegar à síntese das duas. Para Sartre, o materialismo radical “não passa de um mito revolucioná­ rio”, pois, como vimos, a realidade não é apenas objetiva, mas também com­ porta a subjetividade, que faz parte do homem junto com a objetividade: o subjetivo aparece como momento necessário do processo objetivo. Sozinho, o objetivo não pode explicar o processo histórico, visto que este abrange não só a luta de classes (aspecto objetivo) como também a luta do homem contra a alienação e a afirmação da sua liberdade (aspecto subjetivo). A pesquisa marxista “deve envolver tanto os atos, as paixões e o trabalho individual quanto as categorias econômicas”. c) Contradições do Marxismo Analítico Eliminando a subjetividade, o marxismo sofre diversas contradições dc base: 179

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(a) Destina-se a um humanismo (a sociedade futura, a libertação da ex­ ploração capitalista) que o próprio materialismo faz inconcebível, uma vez que esse estado de “felicidade futura” terá de ser sentido, experimentado, vi­ vido pelo trabalhador (e isso não é subjetividade?). (b) Quando o marxista diz que o homem é uma entidade passiva, reconhece-se obviamente ele próprio como tal, mas então de que maneira a sua razão, prisioneira de forças cegas, seria capaz de determinar tal verdade (“o homem é um produto da matéria”), descobrir as estruturas do mundo, formu­ lar leis sobre a natureza da realidade e da História? Em outras palavras: de­ pois de enterrar a subjetividade, o marxista a exuma, fazendo dela a analista da História. (c) Os marxistas julgam suprimir a subjetividade, dizendo que contem­ plam o mundo tal qual é, “sem adição estranha”, mas, na mesma operação em que se eliminam como sujeito, pretendem “observar” a natureza, e passam ao terreno da subjetividade (porque, sem a consciência, como sabemos, o mundo objetivo sequer seria trazido à luz, logo, não existiría como campo de obser­ vação). (d) Desconhecendo a liberdade do projeto humano e atribuindo ao ho­ mem um determinismo que é apenas a lei do mundo material, os marxistas deixam sem inteligibilidade a noção da práxis e outros conceitos básicos da doutrina. Por exemplo: o conceito de alienação, que já não teria razão de ser, porque, sem liberdade, o homem já seria desde sempre uma coisa alienada, títere de forças que o dominam e irão dominá-lo até o final dos tempos. (e) Ainda que julgue ter abolido toda subjetividade, e por mais que tente ser objetivo, o marxista termina quase sempre oferecendo sua própria concep­ ção subjetiva da realidade. Ao classificar Paul Valéry de pequeno-burguês, quis ver e encontrar no homem Valéry o que nele sua mente colocou, dado que já sabia de antemão o que tinha de descobrir. d) O Mal da Dialética da Natureza Essa supressão do subjetivo começou com Marx ainda em vida, quando Engels lançou as bases da Dialética da Natureza, tão criticada por Sartre, como já vimos. A História humana surge aí no interior de um movimento mais amplo, o da própria natureza dialética, e os homens aparecem como que governados por leis universais do mundo material e da natureza inorgânica. A 180

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dialética ganha dimensões de lei celestial, de força metafísica que abarca pes soas e coisas e aciona toda a realidade, inclusive a História humana. Quanto ao homem - inerte, arrastado qual uma folha em um fluxo d’água - resta-lhe ser controlado do exterior por essa dialética cósmica, esse movimento prees­ tablecido que se impõe às ações humanas. Segundo Sartre (para quem essa teoria é um dos principais entraves à evolução do marxismo), a Dialética da Natureza constitui uma onipotente energia que engendra por si mesma o pro­ cesso histórico, sem qualquer iniciativa humana, exatamente como uma von­ tade divina: os marxistas criaram uma nova teologia, pois substituíram Deus pelo Materialismo Dialético. Além disso, a Dialética da Natureza é inteiramente descartável, sendo desnecessária para a História humana, a qual se desdobra à custa de seus pró­ prios esforços (a práxis individual, a ação dos grupos, etc.). Admitir tal dialé­ tica significa suprimir toda razão de ser à ação humana. Não há mais por que abrirmos nossos próprios caminhos. Não existe mais História a fazer, porque, sendo a dialética uma “fatalidade divina” que produz o processo histórico por si mesma, basta-nos cruzar os braços, permanecer absortos contemplando o movimento universal, e esperar por um futuro já de antemão inscrito nas coi­ sas. A História não passaria, assim, de um encadeamento de fatos já escritos para toda a eternidade: basta-nos conhecê-los, como espectadores, dado que todos os rumos estão traçados. Deparamos com uma lei irracional e contin­ gente que nos conduz, um fatalismo do qual apenas podemos dizer: “É assim, e está acabado”. O futuro do homem lhe viria de fora, e não de si mesmo. Passaríamos a sofrer do exterior o condicionamento de algo inteiramente ab­ surdo. “Os marxistas - diz Sartre - não têm desculpas por se deixarem enga­ nar pelo materialismo mecanicista”. A confiança dos marxistas ortodoxos na Dialética da Natureza denota uma conduta já examinada: o medo de reconhecermos nossa própria liberdade de ser e agir. Se há dialética universal, tudo está seguro, os resultados são por antecipação garantidos em qualquer ato revolucionário, não há por que nos preocuparmos. Mas esse determinismo é uma ilusão, porque o futuro é uma possibilidade, e não uma certeza a priori. Confiar no futuro da dialética sem participação humana é o mesmo que acreditar que meu amigo Pedro irá che­ gar à estação ferroviária no trem noturno, sem nenhuma chance de que haja um descarrilamento no trajeto. Decerto, foi por vontade de unificar tudo e ampliar ao máximo a sua doutrina que os marxistas estenderam o movimento da História humana à 181

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História natural. Porém, com isso recaíram no idealismo que Marx tanto cen­ surou em Hegel. No mesmo incidiu Engels, que, paradoxalmente, acusava Hegel de querer impingir as leis do pensamento à matéria. Ora, dizer que a dialética é uma estrutura do universo, uma lei necessária da matéria em mo­ vimento, é transpor para a matéria o modo de desenvolvimento que só perten­ ce à subjetividade e à ação humanas. Afirmar que “a natureza, opaca e inerte, progride dialeticamente”, é fazer da matéria uma “idéia” que só existe na mente do pensador , é extrapolar para a objetividade o que pertence à subje­ tividade, do mesmo modo como os marxistas extrapolam a temporalidade do Para-Si, atribuindo-a ao mundo do Em-Si. Simplesmente, projeta-se na natu­ reza um modelo válido apenas para a História humana. E a natureza torna-se então aquilo que os marxistas querem que ela seja. Na natureza encontram a dialética que nela colocaram. Os fatos se submetem às idéias preconcebidas, em um caso típico de idealismo dogmático. e) Entre o Idealismo e o Materialismo A teoria da consciência ficou assim como o ponto frágil do marxismo. Dispondo apenas da teoria do reflexo e receando acatar os conceitos idealistas sobre a subjetividade que prevaleciam em sua época (isto é, um “mundo inte­ rior”, fechado em si e criador da realidade objetiva), o próprio Marx terminou pendendo para um materialismo mecanicista que não ousava dizer o seu nome. Em seu tempo, não havia conciliação possível entre o subjetivo e o objetivo, entre o idealismo e o materialismo. Vindo depois de Husserl e Heidegger, Sartre pôde empreender uma terceira via filosófica, conciliando duas linhas até então incompatíveis. A filosofia de Sartre não é idealista nem materialista, mas ambas as coisas: abarca tanto a realidade objetiva dada (o reino do materialismo, que se debruça sobre objetividades já consolidadas, logo, já puro passado) quanto a realidade objetiva a alcançar pelo projeto huÉ também um retorno ao animismo, primitiva crença de que a natureza é dotada de alma, es­ pírito, consciência, projetos, etc. Mátyás Rákosi (1892-1971), primeiro-ministro da Hungria em 1952-1953, queria construir um metrô em Budapeste. A existência do metrô era uma realidade na sua mente. Mas o tipo de subsolo da cidade não permitiu a construção do metrô. Então, Rákosi concluiu que o subsolo de Budapeste era “contra-revolucionário”, pois “se opunha” ao programa do regime comunista no poder. ** Vê-se, portanto, que há duas maneiras de se cair no idealismo: uma, a de Hegel, é dissolver a realidade na mente; outra, a de Engels, é negar toda subjetividade em benefício de uma suposta “objetividade absoluta”. 182

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mano (o reino do idealismo, que se consagra ao mundo das idéias ainda não concretizadas, logo, ainda puro futuro). Com isso, Sartre desorientou os que pensam conservar, a todo custo, uma alternativa inevitável entre idealismo e materialismo. Por um lado, em vão os idealistas tentam classificá-lo como materialista. Se é certo que Sartre recusa a subjetividade abstrata, à parte do real, e não se preocupa com a exis­ tência de Deus e dos valores sobrenaturais, ele nem por isso é materialista, porque nega igualmente a hegemonia da matéria (para Sartre, a consciência não tem o mesmo tipo de existência do objeto, e é mesmo radicalmente con­ trária à realidade do Ser objetivo). Por outro lado, também em vão os mate­ rialistas procuram acusá-lo de idealista. Se de fato a subjetividade de Sartre não é material, não existe do mesmo modo que o resto da natureza, mas como uma espontaneidade sem subtância, uma translucidez carente de Ser, ele nem por isso é idealista, porque tal subjetividade não é um “mundo interior”, e sim uma relação com a matéria, um ponto de partida para a ação prática (a liber­ dade da consciência só existe como liberdade para algo concreto, define-se no uso prático que dela se faz, aparece apenas enquanto manifestação em ato, nas escolhas e compromissos que assumimos). Sartre mostrou que sermos homens é sermos livres em situação - seja para nos abandonarmos à inércia e depor as armas, seja para nos escolhermos revolucionários.

Não procede também o rótulo de “individualismo” aplicado muito comumente a Sartre: já vi­ mos que não se trata de uma filosofia do sujeito, porque exclui toda possibilidade de um Eu central na consciência. 183

Capítulo 1 O HOMEM E A MATÉRIA

Necessidade e trabalho a) A Fome No plano ontològico, como ficou exposto, o Para-Si, Ser inacabado, ao qual sempre falta algo para se completar, necessita do Em-Si, do qual se ori­ ginou, para preencher o seu vazio. Esse apelo ao Ser concreto se reflete em todas as manifestações humanas, do nascimento à morte. Sabemos também que o Para-Si não é uma abstração, mas corpo situado em um mundo objeti­ vo: esse Ser orgânico já surge circunscrito pela matéria inorgânica.* Tudo ocorre então como se o Para-Si, para rechear-se de Ser, fizesse uma perpétua invocação à materialidade do Em-Si. Seu organismo necessita da solidez do Ser inorgânico, depende do mundo material e maciço que está fora de si, no meio exterior. O Para-Si exige o Em-Si para existir. Ou seja: o organismo exige a ma­ téria inorgânica para sobreviver. Literalmente, o homem precisa devorar a corporeidade do mundo, precisa “encher-se de Ser”, alimentando-se da maté­ ria e fazendo, assim, o seu corpo. O organismo busca o seu Ser completo e sempre inatingível fora de si, no mundo inorgânico circundante. Sartre usa o termo orgânico para designar a constituição do Ser humano e aplica o vocábulo inorgânico ao Em-Si em geral (incluindo outros seres vivos portadores de órgãos, como ani­ mais). 184

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Portanto, a primeira e mais rudimentar relação do homem com o mundo é uma necessidade: a necessidade de satisfazer, através da natureza exterior, a carência que habita o organismo (equivalência, no plano prático, da necessi­ dade que, no plano ontològico, liga o Para-Si ao Em-Si). A falta do necessário ao corpo - ou seja, a fome - só pode ser saciada pela apropriação dos objetos da natureza, indispensáveis à conservação do organismo. b) O Trabalho Até no mais simples gesto nesse sentido - por exemplo, colher o fruto de uma árvore - a satisfação da necessidade exige trabalho, quer dizer, pra­ xis. Entenda-se aqui “trabalho” não como ofício ou profissão, serviço remu­ nerado ou assalariado, mas no sentido fundamental de aplicação de uma ativi­ dade coordenada necessária ao cumprimento de uma tarefa, à obtenção de um fim. Em suas origens, o trabalho nasce, pois, da necessidade, que é o estímulo originário de toda ação humana. Já nesse nível mais elementar revela-se o caráter dialético da ação práti­ ca individual. A primeira relação do homem com o mundo - o trabalho para satisfazer a necessidade básica da alimentação —é, de fato, uma totalização-emcurso (projeto): o homem, agente prático, supera o estado atual (o organismo ca­ rente e ameaçado) e visa um fim futuro a realizar (a supressão da carência, a restauração do organismo). O organismo vive no futuro, como um possível que lhe é próprio, e seus movimentos determinam-se em função desse futuro. Sem a totalidade futura a alcançar não poderia haver trabalho, já que o sentido desse trabalho é dado pelo fim futuro (sem o qual teríamos não uma atividade dirigida, mas uma conduta humana desvairada e desconexa, seme­ lhante à dos animais quando saciam a sua fome). No trabalho para mitigar a necessidade verifica-se genuinamente um processo dialético, uma negação de negação: (a) O homem é a negação (carência) que habita seu organismo; (b) O homem nega essa negação pelo trabalho, cuja meta é suprimir a carência. Eis aqui, em nossa ação mais elementar, a primeira experiência in­ teligível da dialética.* * Eis aqui outro argumento contra a Dialética da Natureza. Não sendo dialética, a matéria inor­ gânica desconhece a necessidade e o trabalho, já que carece de futuro. Toda negação de um es­ tado implica a afirmação de um estado oposto ainda inexistente, a afirmação de um futuro. A negação só se concebe no interior de uma totalização-em-curso e, portanto, só aparece no ho185

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O trabalho, que representa a primeira negação de uma negação, é uma interferência do homem na matéria circundante com o fito de dela arrancar os objetos indispensáveis à conservação do corpo ou de produzir meios para sa­ tisfazer as necessidades da vida humana. O homem, sendo inacabamento, pas­ sa a sua existência a tentar conquistar uma totalidade que lhe falta, negando as condições negativas que experimenta. Para isso, no ato do trabalho, o homem se reduz à condição de corpo (matéria) para atuar materialmente sobre a ma­ téria, usa o seu corpo para agir sobre o meio inorgânico. O trabalho (práxis) verifica-se, então, por um duplo movimento que Sartre define como interiorização do exterior e exteriorização do interior, (a) Interiorização do exterior: tomamos consciência de uma realidade material circundante que, pelo fato de sentirmos necessidade, projetamos como “campo de trabalho”, repleto de tarefas a executar, coisas que não possuímos, objetos a conquistar, possibilidades a saciar, etc.; (b) Exteriorização do interi­ or: agimos então sobre a matéria inerte, transformando-a em matéria trabalha­ da, produzindo o objeto apto a nos satisfazer, segundo (isso é importante) nossos projetos próprios e singulares. c) A objetivação do Homem Enquanto - como disse Marx - os animais se limitam a arrancar da na­ tureza o que precisam para sua subsistência, o homem faz mais do que isso: humaniza a natureza. Ao trabalhar a matéria, o homem comunica algo de si àquilo que produz. A práxis humana acarreta uma modificação na matéria, imprime-lhe algo de novo. Através desse empenho do homem em intervir nas coisas da natureza para que sirvam aos fins de seu projeto (a satisfação da fome é o exemplo mais primário), a matéria é trabalhada e se humaniza. mem: ao negar a fome, afirmo simultaneamente um futuro ainda não existente (a fome saciada). Ao contrário, uma crisálida ou uma meia-lua são apenas o que são, nada lhes falta, não negam o que são em nome de um devir a realizar (a borboleta, a lua cheia). Sem negações não há neces­ sidade, pois toda necessidade encerra a negação de um estado com vistas a um estado futuro. A consciência humana realiza a unificação do campo de ação prática graças ao projeto, que junta os dados com vistas a um porvir. Sartre designa pelo verbo totalizar a faculdade da consciência de unir pelo olhar os objetos do campo prático, unificando a situação em'funçâo de um futuro. A necessidade, que faz gerar o trabalho, não é um constrangimento exterior e violento à nossa liberdade. Em toda situação concreta de necessidade, a práxis individual inventa livremente as medidas a tomar. Mesmo que só exista um caminho possível, é ainda a práxis que decide vivê-lo dessa ou daquela maneira, com essa ou aquela ação. Aliás, sem a liberdade do Para-Si já não havería sequer “possíveis”, porque, como sabemos, é o Para-Si que engendra os possíveis. 186

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Isso significa que, na matéria trabalhada, encontram-se gravados fins

  • nar como um super-organismo vivo, maior e mais poderoso que o organi;.mu individual. Por exemplo: um soberano usa os membros de seu grupo (a guai da pessoal) para obter fins que requerem mais esforço do que ele sozinho po deria despender. No entanto, o grupo jamais alcança o status de um Ser obje tivo: sua constituição só se pode explicar pela incessante atividade de uma multiplicidade de práxis unidas para fins comuns pela constelação de mcm bros unificadores-unificados e pela tensão imanência-transcendência. b) À Procura do Ser Acabado O eterno drama do grupo, com efeito, é atingir esse estado de Ser con­ creto. Assim como o Para-Si vive buscando a plenitude do Em-Si, mas sem querer perder-se como Para-Si, o grupo procura a solidez e a permanência de um super-organismo. Eis aqui novamente o medo à liberdade: já que o grupo não tem meios de agir senão pela livre práxis de seus membros e já que são as livres relações práticas dos indivíduos que o detonam e o sustentam, existe o contínuo risco de dissolução, porque essa liberdade agrupada não possui um esqueleto concreto que estabeleça o grupo em bases definitivas de existência. Por essa razão, o grupo não quer ser apenas o que na verdade é - uma totalização-em-curso, uma práxis em constante desenvolvimento. O grupo almeja a condição de totalidade-já-feita, mas nunca será capaz de atingir essa opacidade de Ser para sempre constituído. Jamais se pode dizer: “Este é um grupo, em sua totalidade, de uma vez por todas”. Da mesma forma como não se pode dizer: “Este é um homem”. O grupo não é: ele se totaliza sem cessar. Ressalte-se que, embora não exista o grupo como Ser, “todo constituí­ do”, “super-organismo” (o “grupo em pessoa”), ele é captado como se assim fosse pela consciência individual do terceiro excluído. Este pode ser tanto o não-agrupado, que apreende o grupo de fora como uma totalidade passiva e acabada, quanto o próprio membro do grupo, na medida em que este, em um certo sentido, também faz o papel de terceiro excluído, ao unificar os demais, na pura transcendência de sua subjetividade, operando a “interiorização da 219

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    multiplicidade”, captando a unidade de todos, possuindo em si a compreensão do grupo como um “todo”. Porém, assim como a consciência individual é vista pelo Outro como Ser completo e totalizado - sem que ela própria o seja - , o grupo existe como Ser na esfera da subjetividade de cada terceiro excluído, embora ele mesmo nunca se constitua em um Ser plenamente feito, algo objetivo e concreto. Tal qual o Para-Si, a práxis comum está sempre inacabada, “por se fazer”, é uma liberdade em aberto, atividade jamais concluída, projeção para o futuro, totalização-em-curso que só se torna totalidade finita se, porventura, morre, deixa de existir, cai no puro passado, exatamente como ocorre com o indivíduo.

    Vimos atrás que o membro não é, a rigor, um terceiro excluído, porque é unificado aos demais por outro terceiro, logo, está incluído no grupo e já não pode contemplá-lo de fora como objeto, mas o vive enquanto práxis. O verdadeiro terceiro excluído é o não-agrupado. Pois bem: já sa­ bemos que só um Outro excluído da humanidade (Deus) podería captá-la como totalidade. O mesmo se aplica ao grupo: se todos os homens formassem um único grupo, esse grupo já não seria visto como “todo” objetivo por ninguém, já que todos estariam incluídos nele, enquanto unificadores-unificados.

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    Capítulo 3 A CONSOLIDAÇÃO DO GRUPO

    Ameaça de dissolução do grupo a) No calor da luta Ao reunir-se no élan inicial para levar a cabo a obtenção do fim imedia­ to, o grupo-em-fusão, sob a pressão das circunstâncias de pânico e perigo - e só enquanto estas perduram - possui uma unidade inquebrantável. Os mem­ bros unem-se espontaneamente, e inventam espontaneamente os seus atos. Todos são terceiros mediadores, as ordens e contra-ordens circulam (“Avançar!”, “Recuar!”), todos dão as ordens ou se reconhecem nelas e as acatam. Há uma liberdade geral. Nada é imposto a ninguém. As pessoas cum­ prem as tarefas que a própria matéria circundante indica: por exemplo, na Pa­ ris de 1789, alguns combatentes escalam um muro para baixar a ponte levadi­ ça da Bastilha, outros invadem o depósito de armas, etc. Nessa atividade efervescente, ninguém tem função organizada: cada um apenas se alia a todos na subordinação consentida livremente a um objetivo comum. Ainda que surjam desvios, conflitos, ações imprevistas, não cumpri­ mento de ordens, tratam-se de simples acidentes que não afetam a unidade do grupo, pois prevalece a tensão imanência-transcendência fundindo a práxis de todos. No calor da batalha, sob a pressão inimiga, gastando energia e trabalho, o grupo-em-fusão atua irreflexivamente: visa um objetivo exterior, intenciona apenas alcançar o resultado imediato. O grupo, aqui, é um meio para se obter um fim. E a sua unidade não é questionada por ninguém: as pessoas pensam

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    somente na experiência em andamento, sem fazer qualquer reflexão sobre si mesmas enquanto agentes de uma ação comum. b) A Desintegração em Curso Mas, uma vez conquistado o fim imediato (a Bastilha foi tomada), pro­ visoriamente afrouxados a pressão e o pânico, o perigo já não sendo iminente ou intolerável (o inimigo recuou), o grupo-em-fusão ameaça estagnar-se, degradar-se, começa a correr o risco de deterioração interna. O grupo tende a dissolver-se na série contra a qual se rebelou. A desintegração em curso pode levar os membros a recair na passividade e na alteridade e fazer desaparecer o interesse comum, impondo, ao contrário, os antagonismos e a impotência se­ rial. Na verdade, o grupo já não é o mesmo. Para começar, os membros passam a encarar a sua vitória como coisa passada (vê-se a Bastilha conquistada). O projeto realizou-se - ou seja, a pra­ xis comum, a luta, o “Ser-no-grupo” foi superado, está reduzido a algo defi­ nitivamente concretizado. Agora, há somente contemplação do obtido. De al­ gum modo, essa vitória alcançada ainda une os membros, mas já não há mais o que fazer, em termos de ação unificada. A tensão imanência-transcendência, que incandescia no calor da luta, não tem mais eficácia prática. No entanto, os membros sentem a ameaça da dissolução e a necessidade de resistir à atração da série. Ficam inquietos, uns frente aos outros, cada um pensando que não se deve abandonar a práxis comum pela práxis individual. Mas é preciso fazer alguma coisa: agora, ninguém mais experimenta bastante medo, alguns estão esgotados, outros feridos. Se o inimigo reaparecer, nada afiança que o contra-ataque devolva ao grupo seu estatuto inicial: é bem pos­ sível que as pessoas se isolem, ao contrário do que sucedeu antes (agora, tal­ vez a urgência de escapar à morte e à tortura anule o interesse comum de ne­ gar a série). Pela primeira vez, o grupo já não atua irreflexivamente: passa à refle­ xão, ou seja, põe-se em questão a si mesmo, visa agora um objetivo interior, toma consciência de si como “práxis comum a consolidar”, já que ameaçada São raros os casos em que a passividade desaparece de todo e para sempre, após a constituição do grupo. Exemplo disso são as forças armadas, cujos membros agem sem tréguas e sem se se­ parar jamais. Contudo, o comum é o retrocesso ao estado serial, como ocorreu em Budapeste: antes da revolta húngara, em 1956, o Partido Social-Democrata, que quase não tinha mais afilia­ dos, conservava oficialmente a sua sede social, seu imóvel, seu emblema e seu título, mas já não existia enquanto ação comum de grupo.

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    de extermínio. Antes, o grupo era um meio para um fim; agora, é um fim em si, pois projeta a própria conservação. Ao refletirem, os membros do grupo agem sobre o próprio grupo, efetu­ am uma certa arrumação interna: enquanto aguardam o retorno do inimigo, por exemplo, os insurretos que tomaram a Bastilha buscam posições, divi­ dem-se para guarnecê-las, repartem as armas, alguns recebem a missão de patrulhar os arredores, outros a de ficar de sentinela à noite, etc. Mas é evi­ dente que a permanência do grupo encontra-se por um fio. Já não basta a livre práxis de cada um querendo espontaneamente fazer-se práxis comum, porque faltam agora um objetivo a alcançar e um perigo a combater. Na verdade, não há mais qualquer práxis comum: na defesa, na vigilância, todos estão à espe­ ra, passivos, separados, alguns até solitários (o caso dos sentinelas). Nessas condições, torna-se difícil, se não impossível, fazer com que cada um ainda se sinta “integrado em um todo” e que as ações separadas continuem sendo efe­ tivamente comuns. c) O contato com os Não-Agrupados O mais provável é que, haja ou não contra-ataque inimigo, os membros venham pouco a pouco a se dispersar, já que o fim foi alcançado e não parece imperativa a necessidade de se ir mais longe. Distanciados uns dos outros, os membros acabam se misturando à “selva humana” dos não-agrupados. A par­ tir desse contato com os de fora, a dissolução do grupo torna-se inevitável. Como isso acontece? Já sabemos que o grupo como Ser objetivo constitui-se somente aos olhos do terceiro excluído. Eis o exemplo de um grupo não-revolucionário: o Serviço de Correios. O usuário encara como totalidade o grupo formado pelos empregados do serviço postal. Assim, o indivíduo do grupo deixa de existir para o não-agrupado. Se, por acaso, o usuário tem algo a reclamar, trata o empregado sem levar em conta a sua pessoa singular, mas o identifica total­ mente com o grupo, faz dele um representante de todos, um “geral” que, a seu ver, apenas executa uma operação preliminarmente ditada por esse “superorganismo” todo-poderoso que é o grupo. Quando terroristas lincham um co­ munista, não consideram sua a identidade própria, mas querem alcançar o Partido Comunista como totalidade encarnada nesse homem. O não-agrupado não vê cada membro (a parte) dc grupo (o todo), mas dissolve a parte no todo. Ou seja: em um membro do grupo vê o grupo intei223

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    ro. Pouco importa que o membro do grupo seja ruivo, forte ou inteligente: éle aparece aos não-agrupados como estes o designam - a encarnação nãoespecificada de um grupo. Para os de fora, confunde-se a práxis de cada in­ divíduo com a práxis do grupo. Em decorrência disso, o membro do grupo, pelo contato com os nãoagrupados, tende a captar-se a si mesmo do modo como aqueles o vêem, ou seja, mera expressão de uma totalidade, uma molécula qualquer, nãoessencial, substituível por qualquer outra. Ele é tratado então sem considera­ ção às suas qualidades pessoais: longe de ser visto como indivíduo, é encara­ do como “membro”. Inclina-se assim o agrupado a deixar de se sentir como de fato é (práxis viva que busca um fim comum, parte essencial de uma totalização-em-curso) para passar a compreender a sua própria práxis enquanto mero “produto de grupo”, algo inerte e já totalizado. Chega ao membro do grupo a impressão, cada vez mais forte, de que o grupo é mesmo uma totali­ dade inerte, que existe sem ele, a impressão de que a sua própria práxis é nãoessencial e substituível. Com o distanciamento dos membros e o contato com os de fora (executada a missão comum, o indivíduo volta para casa, ou faz qualquer ou­ tra atividade particular), cada agrupado propende a se serializar novamente. Agora, volta a sentir-se sobretudo enquanto práxis individual, sendo-lhe mesmo impossível viver da maneira como os não-agrupados o qualificam (não sou um “qualquer” condicionado por um grupo, mas existo na minha individualidade). Portanto, a essa altura, a recaída no Pràtico-Inerte já é quase fato consumado. A falta de um Ser concreto que unifique os membros para sempre, o grupo-em-fusão não tem base duradoura: tende a desaparecer ao atingir o fim de seu projeto ( ao contrário do indivíduo, que sobrevive após realizar um objetivo e se mantém em perpétua atividade projetiva). Para conservar-se vivo e não perecer, o grupo deve conduzir-se como o próprio indivíduo que o constitui e lhe serve de modelo: precisa superar o fim obtido e lançar-se a no­ vos projetos, descobrindo novos objetivos futuros a alcançar, tarefas a cum­ prir, assegurando assim a continuidade da ação comum. Sendo impraticável reproduzir as circunstâncias que deram origem à práxis comum, há que substi­ tuí-las por um truque, um invento que sirva de “cimento” para conservar os membros unidos.

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    0 juramento A passagem do grupo-em-fusão para outra forma de grupo, mais per­ manente, exige uma reflexão do grupo sobre si. O grupo deve parar para pen­ sar-se a si enquanto “fim a realizar”, garantindo-se contra um regresso à série. A liberdade de cada um já não basta, como vimos: ao contrário, o fato mesmo de todos serem livres é que acarreta a desintegração do grupo, pois até aqui o grupo era apenas união espontânea de práxis individuais em uma práxis co­ mum, logo, algo evanescente, impalpável, sem base concreta, suscetível de evaporar-se facilmente, assim que as pessoas se separavam, deixando de estar em presença umas das outras, agrupadas para um fim (no início, todos agiam juntos, e as relações de reciprocidade positiva eram laços vivos e visíveis). Aparece então a primeira invenção prática dos membros do grupo: o ju ­ ramento. Todos juram “não infringir o juramento”, “não mudar”, “não excluir-se do grupo”, “não trair os companheiros”, “não desviar-se da linha traça­ da”, etc. Todos, livremente, dão a sua palavra de que irão respeitar a perma­ nência do grupo, prevendo que, qualquer que venha a ser o desenvolvimento da práxis comum no futuro, a unidade do grupo não deve ser afetada. O jura­ mento é uma precaução que todos tomam contra o futuro, um laço insuperá­ vel que surge e se conservará como uma perseverança contra as ameaças de extermínio do grupo. O juramento existe para que os membros - liberdades em ação, logo imprevisíveis - não esqueçam nunca o seu voto de fidelidade eterna. O juramento confere à revolta inicial a garantia da durabilidade. Seu papel é o de sustentar o elo grupai quando os membros já não estão mais pre­ sentes uns aos outros, mas distanciados, talvez solitários. Trata-se de criar uma unidade na separação, um laço de ausência. O juramento, contudo, tem de ser prestado por todos, sem exceção. E preciso evitar que a alteridade ressurja no grupo, pois há o risco de que cada um venha a trair o grupo por medo, deserção, etc. Se somente eu jurasse não me excluir do grupo, correria o risco de ficar só, porque a qualquer momento os demais poderiam dissolver o grupo, alijar-me, fazendo de mim um “radicalmente Outro” para eles. Além disso, se a permanência do grupo de­ pendesse só do meu juramento, já não haveria qualquer garantia de perma­ nência para o grupo, pois a minha liberdade poderia decidir de uma hora para 225

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    outra suprimir o grupo. O mesmo acontece na hipótese contrária: todos os demais juram não se excluir do grupo, menos eu. Nesse caso, eu também cor­ reria o risco de ficar só, porque, um dia, poderia querer afastar-me do grupo, tornando-me a mim mesmo “radicalmente Outro”. Se todos juram, há a garantia de que essas duas hipóteses não ocorrerão. Se os demais juram comigo, fico seguro de que eles não irão se excluir e deixar-me só, garanto-me de que a alteridade não me atingirá de fora. E, se eu juro com os demais, garanto-lhes que a alteridade não chegará ao grupo por mim. O juramento é um meio pelo qual eu me protejo de mim mesmo (contra o medo, a traição, etc.), garantindo os demais contra a minha possível mudan­ ça posterior; é um meio pelo qual eu me protejo dos demais, recebendo deles a garantia de sua permanência no grupo; é, enfim, um meio pelo qual eu e os demais nos protegemos mutuamente. Para ser eficaz, o juramento tem de ser realmente uma conduta mantida por todos enquanto terceiros mediadores. Minha consciência é livre projeto, meu futuro é imprevisível, mas o ju­ ramento exige que esse futuro seja previsível; ao prestar juramento, coloco no futuro a impossibilidade de certas condutas, suprimo certos possíveis (não re­ negar o juramento, não fugir ao compromisso, não desertar, etc.). O juramen­ to limita parte da liberdade individual. Mas, por si só, a liberdade individual não pode assumir esse limite, não pode produzir uma “insuperabilidade futu­ ra”, um “impossível” como determinação eterna e inerte no horizonte de seus possíveis. A eficácia do meu juramento vai então depender do Outro, enquan­ to terceiro mediador que jura comigo. O Outro, que me vê de fora, objetivado, afeta de permanência o meu juramento. E vice-versa: o Outro encontra em mim o fundamento objetivo de seu juramento de “não mudar”. Cabe notar aqui o aparecimento de novo tipo de alienação e alteridade. Ao jurar, assumo livremente um limite à minha liberdade, assumo esse “Ser imutável” que me é dado pelo Outro. Logo, faço-me, de certo modo, esse “Outro-distinto-de-mim” que o Outro me faz ser. Mas não se trata de uma volta à alienação e à alteridade da série, porque esse “Ser-Outro” me é dado, não por um Outro, mas por um terceiro mediador, integrado no grupo, que re­ conheço como “o mesmo que eu”. Enquanto, na série, sou “Outro” porque estou alienado, aqui não acontece isso, já que não atuo conforme fins fixados *

    Cada um só pode jurar que “não será Outro” se, antes, tiver a certeza de que os demais já não o fazem “Outro”. Cada um só pode jurar fidelidade à permanência de um grupo se os demais que formam esse grupo já lhe asseguraram, jurando juntos, que “o grupo é permanente”. Não haveria sentido em jurar fidelidade a algo que não existe. 226

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    na matéria Pràtico-Inerte, mas sou apenas um “Ser-Outro-comum”, nao alu­ nado, que visa objetivos comuns livremente escolhidos por mim e por todos. A eficácia do juramento depende também de razões práticas no relució namento entre os terceiros mediadores. Quem presta juramento em um grupo juramentado - e o faz livremente, sem coação - não apenas aceita a mutila­ ção de sua liberdade como também assume todos os riscos decorrentes da própria liberdade de mudar. Ao jurar, o indivíduo implicitamente jura que pa­ gará o preço de sua eventual traição: dá aos demais o direito de puni-lo se faltar ao compromisso assumido. Jurar é dizer: “Quero que me punam, se me excluir do grupo”. Cada um, livremente, protege-se contra a sua própria mu­ dança futura reclamando a violência dos demais contra si, outorgando-lhes um poder jurídico sobre a sua liberdade. A todos consinto o direito de me castigar e, assim, passo a ter medo de mudar de idéia, pelo perigo que isso re­ presenta. Meio que o grupo utiliza para perpetrar a sua unidade, o juramento re­ presenta duas medidas práticas fundamentais: 1. A inércia da série é substituída por uma inércia no grupo. O campo Pràtico-Inerte continha fins inertes, em repouso, que unifica­ vam os indivíduos em um trabalho alienado (todos obedeciam projetos alhei­ os fixados nas coisas). O grupo-em-fusão suprimiu isso, mas, sendo pura práxis livre em ação, ficou sem uma base de inércia concreta, capaz de asse­ gurar a sua continuidade. Tal elemento de inércia é agora obtido pelo jura­ mento. Fica estabelecido um resíduo de inércia no futuro (“não mudar”), dife­ rente da inércia serial (não mais se trata de um destino imposto por práxis anteriores, mas de um devir desejado por todos: uma vida humana livre e condigna, em lugar da escravatura). O juramento é uma espécie de “consciência coletiva” superior a todos, dada e definida de uma vez para sem­ pre, espécie de fictícia totalidade, algo como uma integração permanente, cri­ ada para compensar justamente a impossibilidade para o grupo de deixar de ser práxis comum e tornar-se um “todo acabado”. Todo grupo juramentado possui esse esqueleto de inércia e, ao nascer nele, o indivíduo já encontra (à maneira do Pràtico-Inerte) um esquema de vida elaborado por seus antecessores. Cerimônias como batismos e ritos de iniciação visam criar um vínculo interior do membro com o grupo. Mas cabe­ rá a cada um, ao tornar-se adulto, decidir aceitar ou negar o juramento que fi­ zeram em seu nome, escolher permanecer ou afastar-se do grupo. O católico 227

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    ou o ateu de nascença devem “fazer-se católico ou ateu”, interiorizando ou não a resolução que seus pais tomaram sobre o seu futuro. Em um pelotão do exército em luta, existe uma base de inércia: a obrigação de executar uma or­ dem sob pena de corte marcial. A práxis livre, contudo, não se suprime: o soldado pode desobedecer a ordem. Em razão disso, para assegurar maior poder ao juramento e em conseqüência garantir a continuidade do grupo, a liberdade de cada um deve sofrer um constrangimento que dificulte a sua eventual decisão de mudar. Daí a se­ gunda conduta conseqüente do ato de jurar: 2. O perigo exterior é substituído por um perigo interior ao grupo. Ao abrandar-se ou mesmo extinguir-se a ameaça exterior contra a qual se formou o grupo-em-fusão, a práxis comum dispersou-se. O juramento vem a substituir o perigo de fora por uma ameaça interior ao próprio grupo, como se este empregasse a sua força comum, até então arremessada contra um ad­ versário, para dentro de si mesmo, de forma a constranger os membros a se conservarem unidos. Surge o medo, a coação, livremente desejado pelo grupo e sem o qual ele não pode efetivamente sobreviver: ao jurar, como vimos, fico em perigo em face de uma possível traição ou mudança e o castigo dela de­ corrente. O terror e a violência são aceitos pelos membros como forma de preservar o grupo e evitar a recaída na sub-humanidade do Pràtico-Inerte. O juramento faz nascer o que Sartre denomina fraternidade-terror - um terror que não separa, mas une. Pelo juramento, nós, membros de um grupo, passamos a nos reconhecer uns aos outros como irmãos, “indivíduos comuns” (iguais uns aos outros), responsáveis que somos pelo surgimento dessa irmandade: fundamos uma es­ pécie singular, o grupo juramentado, no qual nos reconhecemos mutuamente como cúmplices necessários à ação, visando os mesmos fins. O juramento fixa a “ditadura do Mesmo”: todos somos “os mesmos”, por livre escolha. Cada um passa a refletir sobre si como “Ser comum”: pelo modo de pensar e agir, o membro tem sempre em mente a idéia do grupo (um marxista, um ca­ tólico, vê as coisas de certo modo, em virtude de seu marxismo, seu catoli­ cismo). Para sobreviver, o grupo só pode agir coercitivamente sobre seus inte­ grantes: o juramento confere a cada um certo poder jurídico sobre os demais, colocando a certeza de que a fraternidade de todos deverá impor-se, se preci­ so for, pela violência. O terror persiste, subjacente, pois há um direito velado 228

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    de cada um sobre todos e vice-versa. “Sou irmão de violência para meus vizi­ nhos”. E assim, por exemplo, a execução de um traidor, um sacrifício san­ grento, não é uma aberração na fraternidade-terror, mas uma retomada brutal do juramento, do reconhecimento explícito do direito coercitivo de todos so­ bre cada um. A violência integra os laços de fraternidade, e a possibilidade de que haja o linchamento de um irmão traidor está implícita na fonte mesma do juramento que nos tornou irmãos.

    Sartre observa que o grupo revolucionário traz semelhanças com a coletividade religiosa. O ju­ ramento é algo sagrado, no mesmo sentido em que são sagrados os objetos religiosos, as ceri­ mônias, a oração e outras práticas. O crente concede a esses rituais o poder de limitação de sua liberdade, reconhece neles um poder sagrado de negar certos possíveis (obediência aos manda­ mentos divinos), assume a sua estrutura de inércia, etc. Mas a coletividade religiosa vive no Pràtico-Inerte e identifica-se com a inércia da série: nos objetos de culto há fins inscritos, não por homens que atuam como “os mesmos” mas sim por divindades, que impõem um destino predeterminado aos crentes, alienando a sua liberdade. 229

    Capítulo 4 O GRUPO ORGANIZADO

    A divisão de tarefas O grupo já não consegue mais operar como antes. No grupo-em-fusão, tudo ocorria aqui e agora, todos os membros faziam de tudo, na mais comple­ ta espontaneidade e em total homogeneidade. Mas os membros se separam, as tarefas a realizar tornam-se múltiplas, e é lógico que os integrantes do grupo não devem continuar fazendo as mesmas coisas. Assim, para atender às novas circunstâncias, o grupo precisa se estruturar, passando à fase da organização interna. Organizar é distribuir funções. Primeiro, o grupo descobre as exigências do campo material a trabalhar e, depois, reparte as diferentes tarefas entre os membros, de modo a satisfazer necessidades diversas, criando especializa­ ções, subgrupos, etc. Cada membro recebe a missão de executar uma função que servirá de modo mais eficaz à empresa comum. Nessa distribuição de ta­ refas podem predominar razões externas (é preciso repártir melhor as pessoas para enfrentar um perigo comum) ou internas (deve-se classificar os membros para melhor aproveitar certos instrumentos, certas técnicas). Há agora uma variedade de ocupações, mas todas apontam um fim que se tem de cumprir e que só pode ser realizado através mesmo dessa organiza­ ção dos membros. E como sucede com uma equipe de futebol: um fim co­ mum é dado (a vitória sobre o adversário), e, para alcançá-lo, cada jogador cumpre uma função específica no gramado. O grupo organizado atua em múltiplas práxis individuais, mas, como em um time de futebol, cada um conta com os demais e responde livremente às iniciativas dos parceiros. 230

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    Com a distribuição de tarefas, o grupo passa da homogeneidade prece dente a uma espécie de heterogeneidade calculada, em que cada um realiza um trabalho diverso. Sob certo ângulo, o grupo se organiza tomando por mo­ delo o organismo do indivíduo (cada órgão do corpo humano efetua uma fun­ ção para mantê-lo em atividade). Mais ainda: essa nova formação do grupo c uma espécie de invento humano para “melhorar” o organismo individual, “corrigindo” as deficiências da ação do homem solitário, suprimindo as limi­ tações do corpo individual (por mera facticidade, o homem possui apenas dois olhos, dois braços, duas pernas). O grupo organizado, pela divisão de tarefas, redunda em algo como uma “ampliação” fantástica da praxis de um indiví­ duo: o grupo (não por ser numeroso, mas por ser mais complexo do que qual­ quer organismo individual) obtém resultados que nenhum indivíduo poderia alcançar sozinho, ainda que multiplicando a sua força e habilidade. Por exemplo: para ser como um pelotão de guarda formado em quadro, o indiví­ duo precisaria dispor de olhos e braços às costas; para ser como um grupo de infantaria que à noite descansa e é guardado por sentinelas, o indivíduo deve­ ria ser capaz de dormir e permanecer de vigília simultaneamente, etc. E, aliás, por reconhecer esse poder do grupo que o indivíduo nele se integra. O grupo irá atuar sem cessar sobre o campo material, procurando evitar as contra­ finalidades do Pràtico-Inerte, para isso exercendo sobre si mesmo um perpé­ tuo trabalho de organização e reorganização. A divisão de tarefas acarreta uma dupla consolidação da unidade do grupo. Em primeiro lugar, aparece, depois do juramento, uma nova inércia unindo os membros: a função. Ela já me espera, já contém um esboço da mi­ nha conduta (“fazer isto e não aquilo”), representa uma negação de certos possíveis (negação essa livremente aceita por mim, o que não ocorria no meio Pratico-Inerte). Com isso, cria-se entre os membros uma nova relação interior de reciprocidade: as ações individuais ficam ligadas e são sustentadas pela inércia que assumiram (por exemplo, em uma ação de guerra, o soldado e o oficial estão unidos por uma reciprocidade inerte que determina “o mando do superior”). Mas é claro que a função, passividade morta, é incapaz de agir, e exige uma práxis humana para dar-lhe vida. Em segundo lugar, se é verdade que a inércia da função redunda em novo limite à liberdade individual, em compensação vale como fundamento de novo poder de ação. Ou seja, a ação mais concreta dos membros resulta em união prática mais consistente do grupo. A limitação da liberdade imposta pela função serve de base à eficácia mesma da práxis (em um time de futebol, 231

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    por exemplo, toda a eficiência do goleiro repousa nas proibições fixadas por sua função: não jogar na linha, permanecer guarnecendo o arco, etc). Isso porque, assumindo a função, o membro do grupo ganha certa soberania sobre o setor que lhe cabe trabalhar. Surge aqui uma espécie de poder jurídico de cada um sobre os seus pró­ prios atos: cada membro do grupo passa a ter o seu próprio direito de cumprir com o seu dever particular. Isso não acontecia antes, quando, feito o juramen­ to, era absoluta a distinção entre direitos e deveres. Após o juramento, ou os demais ficavam com o direito e eu com o dever (eles tinham o direito de exi­ gir que eu cumprisse com meu dever), ou, ao contrário, eu ficava com o direi­ to e eles com o dever (eu tinha o direito de exigir deles o cumprimento de seu dever). Agora, distribuídas as funções, direitos e deveres se confundem. Se, por acaso, sou jogador de futebol e ingresso em um time para executar certa função, posso aceitar ou não o regime alimentar em vigor. Se assumo a fun­ ção com todas as obrigações dela decorrentes (inclusive a de aceitar o regi­ me), direito e dever.passam a ser meus: eu tenho o direito de exigir dos diri­ gentes do clube que me façam cumprir com o meu dever, conservando este regime alimentar. Evidentemente, a unidade do grupo já assume dimensão mais concreta. Antes, cabia ao juramento assegurar a permanência da unidade, impondo a todos o terror da pena a ser aplicada aos que não cumprissem a sua palavra, precisamente a fim de que ela fosse cumprida. Mas tal ameaça era algo vago e remoto, pois a ação real do juramento (a punição) só se verificava se alguém do grupo se desviasse da linha traçada. Além disso, o juramento impunha apenas um limite abstrato à livre ação dos membros: a determinação negativa de “não agir de certo modo”. Em troca, o juramento não decidia a rigor o que fazer, não fixava concretamente as ações. Antes, não haviam “missões a cum­ prir”. Com a divisão de tarefas, nasce uma determinação positiva e concreta para a atividade de cada membro (“fazer isto”). A praxis do grupo fica assim fixada positivamente, a união dos membros ocorre na ação prática: já não há somente uma unidade abstrata, decorrente d(e um possível hipotético, do medo de infringir o juramento (“vamos permanecer unidos porque, senão, teremos de pagar caro a infração da palavra empenhada”); agora, há uma unidade con­ creta, objetiva, feita pelas tarefas a cumprir (“estamos unidos porque temos funções práticas e concretas a executar”). Assim, distribuídas as ocupações, os membros, ao se distanciarem uns dos outros, mantêm entre si uma fraternidade epquanto “laço de ausência” 232

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    bem mais eficaz do que antes, porque fundamentada concretamente cm “atos a realizar”. Cada um tem funções precisas e suas relações com os demais são mais específicas, segundo um novo tipo de reciprocidade surgida, mais “trabalhada” do que a fraternidade-terror do juramento: as funções se condi­ cionam mutuamente, e aquilo que o agente A executa para a práxis comum c necessário para que B possa fazer o que faz. Cada membro compreende que as tarefas dos demais são necessárias para que possa cumprir a sua, com vistas a um fim comum, compreende porque o grupo produziu diferenças de fun­ ções (deu competência a uns para agir em nível de cultura, a outros para em­ pregar força física,etc.), compreende a utilidade da conduta dos demais. Na série, nada disso acontece: as funções não são recíprocas; o indivíduo A não se faz médico para que B seja comerciário, ou vice-versa; cada pessoa não compreende a ação do vizinho porque este é “radicalmente Outro”.

    Reaparição da práxis individual Ao cumprir a sua função, o membro do grupo é feito por essa estrutura inerte: executa a sua tarefa como um “indivíduo comum”, usando instrumen­ tos e técnicas portadoras já de finalidades predeterminadas. Por exemplo, um militante, ao explicar aos operários de uma fábrica uma decisão do grupo, atua nos limites de sua tarefa, como se fosse um “comum”, mera parte de um todo (há centenas de militantes fazendo o mesmo em outros lugares), e visan­ do um objetivo comum (a união dos operários). Mas, a rigor, como sabemos, esse “Ser comum” não existe: o indivíduo é sempre outra coisa que apenas o “executor de uma função”. Assim, ser pilo­ to de avião é uma função, mas jamais alguém que execute tal tarefa, por mais que se esforce, conseguirá realizar o seu “Ser-piloto comum”, assim como não pode ser “corajoso absolutamente corajoso”, qual “uma pedra é uma pe­ dra”. Já que sou livre, não posso ser apenas um “agente funcional” exatamen­ te como a divisão de tarefas me designa. E ainda bem: a tarefa requer a ini­ ciativa singular do agente frente a urgências imprevistas, requer as suas apti­ dões pessoais para inventar livremente certa postura frente às circunstâncias (em caso de perigo, o piloto de avião improvisa uma ação singular, escolhe uma medida de emergência). 233

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    Portanto, o indivíduo já não é apenas feito pela função, mas ele se faz, livremente, a partir do que lhe cabe realizar, atua de maneira toda própria dentro desses limites da função, conservando uma margem de iniciativa cria­ dora pessoal. Com a aparição da função, ressurge o indivíduo único e singular que havia livremente se castrado, com o juramento, de modo que existisse no grupo o “indivíduo comum”. Trata-se, a rigor, de um momento passageiro: a práxis individual renasce como instante intermediário entre o “indivíduo co­ mum” (de onde emergiu) e o “fim comum a alcançar” (onde irá dissolver-se) e logo irá castrar-se em benefício desse fim comum. Ainda que efêmera, porém, tal intervenção da práxis individual é de vi­ tal importância para que, de fato, o grupo possa trabalhar. Difere da ação iso­ lada do indivíduo na sociedade serial (onde cada um age por si e para si) por­ que não só conserva os limites prescritos pelo juramento e a função, como so­ bretudo porque o fim visado é outro: a ação do indivíduo, no grupo, é apenas um meio para outro fim mais amplo, que não depende só dela, ou um momen­ to de um desenrolar temporal orientado (a totalização-em-curso do grupo), parte de uma operação global que logrará o verdadeiro fim comum, a ser ob­ tido pela integração de uma multiplicidade de práxis. As ações, aqui, são mutuamente necessárias umas às outras, e a práxis comum só pode ocorrer por causa mesmo das práxis individuais que a integram. Mesmo quando determinada ação comum não é feita por práxis indivi­ duais, mas por subgrupos, comitês, etc., o papel do indivíduo não se anula. O subgrupo - se há efetivamente práxis comum - atua como se fosse um indiví­ duo, já que seus membros são “um só” na realização de um plano. Não que não surjam discussões, divergências, mas, entre as teses em debate, o sub­ grupo adota uma solução. Não se trata de mero acordo formal entre pessoas que vivem em completo isolamento e alteridade, como acontece na série, onde uma solução adotada para todos abriga, muitas vezes, profunda desunião entre os indivíduos e é apenas uma união de exterioridade que conserva à di­ versidade de pessoas heterogêneas, impõe-se a elas de fora e não suprime a multiplicidade de projetos individuais conflitantes. No grupo, se uma solução entre outras aparece para os membros do comitê, as coisas se passam de ma­ neira oposta: isso porque, de tão integrado, não é formado por “outros”, mas pelos “mesmos”; cada um compreende a solução como “sua” na medida que é a de seu vizinho; a verdade individual e a verdade comum se igualam; cada um interioriza a multiplicidade de posições e assume o esquema a ser aplicado como se fosse de sua própria invenção; o organizador e o organizado apro234

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    vam a ordem a dar e a aceitar. Em conseqüência, a aparição de uma medida entre outras acarreta um comprometimento mais concreto de cada membro com os demais, realiza uma nova unidade de reciprocidade positiva interior, consolida mais a união do grupo. Assim, o indivíduo, com a sua práxis singular, ostenta papel essencial para dar vida ativa ao grupo. Sem ele, nenhuma práxis comum seria possível. Imagine-se um time de futebol em que todos os jogadores fossem somente “indivíduos comuns”, executando as suas funções como autômatos, incapazes de qualquer iniciativa particular: que ação comum eficaz seria realizável nesse caso, que resultado comum poderia ser alcançado ? O mesmo raciocínio pode ser aplicado a uma divisão do exército em um campo de batalha, ou a um grupo revolucionário organizado em luta contra o meio Pràtico-Inerte.

    Nova ameaça da série: a destotalização-em-curso a) A ausência de mediação direta Com a distribuição de funções, o grupo ficou mais unido. Os membros se distanciam uns dos outros e se misturam à “selva humana” dos não-

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    Nos grupos mal unidos, essa homogeneidade interior não se verifica, as contradições não se anulam, e ressurge a alteridade, com a série ameaçando reintroduzir-se no grupo. Sartre destaca aquilo que os marxistas parecem ignorar: o valor da práxis individual na constituição da práxis de grupo. Mas reconhece que um fim obtido pela ação de muitos não re­ vela por si mesmo se é resultado da operação comum de um grupo organizado ou apenas de uma atividade dispersiva e alienada do tipo serial. No meio Prático-lnerte, o objetivo final alcançado por sucessivos trabalhos isolados também contém a práxis de cada um dos trabalhadores. Por exemplo: o regime de produção criado pelo americano Frederick W. Taylor (1856-1915), que aumentou o rendimento das fábricas diminuindo o tempo de serviço. Em vez de um mesmo tra­ balhador realizar cinco operações sucessivas, Taylor fez cinco operários realizarem, cada um, cinco vezes uma de cada operação. Em vez de um só operário construir um automóvel inteiro, peça por peça, diversos trabalhadores o constroem, cada um limitando-se a trabalhar cada peça separadamente (vidros, carrocería, pintura, etc.). Assim, cada ato individual é totalmente passivo em relação ao antecedente e ao seguinte, não toma parte de um mesmo desenvolvimento tempo­ ral orientado para um fim comum. E o típico trabalho alienado e marcado pela absoluta alterida­ de do Prático-lnerte. No entanto, o objeto produzido, o automóvel, acaba retendo a práxis isola­ da de cada um. 235

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    agrupados, mas as funções estabelecidas para cada um estabelecem “laços de ausência” mais eficientes para sustentar a fraternidade entre os membros. Contudo, o contágio do meio Pràtico-Inerte vai minando pouco a pouco essa fraternidade: de tão pegajosa, a série ameaça renascer mais cedo ou mais tar­ de. Cada vez mais escassa a mediação direta entre os membros, devido às se­ parações espaciais e temporais entre eles, a unidade do grupo começa a sofrer a força dispersiva do Pràtico-Inerte. Cada um, solitário, começa a se ver do modo como é visto pelos de fora (um “geral” que encarna o grupo inteiro, mera molécula de um todo, nãoessencial e substituível) e, assim, uma vez que lhe é impossível viver como um “qualquer”, um simples “representante de todos”, passa a existir mais enquanto si mesmo e menos enquanto “indivíduo comum”. Pior ainda: enquanto os mem­ bros estavam próximos, unidos em uma ação única, a tensão imanênciatranscendência exercia um papel decisivo para a integração de todos: cada membro era unificador (dos demais) e unificado (pelos demais), havia uma “quase-soberania” unificadora (cada um era soberano da soberania dos outros). Agora, ao contrário, aquela tensão contribui para separar ainda mais os membros. Certo: o membro A continua a ver o seu companheiro B como um quase-soberano que o unifica em um “todo” aos demais. A unidade ainda não se rompe. O juramento e a função cuidam de conservá-la fragilmente. Mas é uma unidade interdita: isolados uns dos outros, os membros sentem que, ago­ ra, a ação comum do grupo é um acontecimento fugaz, parece estar sempre “em outro lugar”. Antes, o membro do grupo interiorizava as ações dos de­ mais como unidas e idênticas à sua. Agora, essa “interiorização da multiplici­ dade” se encontra fora, em outra parte. As tarefas continuam sendo executa­ das, mas os membros - ainda que se deixem arrastar, ajudando a produzir as funções e a fazer o grupo trabalhar - passam a receber a sua missão como uma ordem dada de fora, destino irreversível que lhe é imposto e que o arre­ messa a fins predeterminados. As estruturas de inércia (juramento, função), outrora assumidas livremente, começam a ser sofridas pelos membros, já que eles não mais estão em contato permanente uns com os outros, mediando-se reciprocamente. As ordens aparecem, dadas por pessoas invisíveis, e são cumpridas. Os membros já não participam das tomadas de decisões. Não se vêem, não se conhecem. b) O Exílio Em conseqüência, A não mais encara B como um irmão, membro de seu grupo, e, sim como um desconhecido, um quase-Outro, um terceiro quase236

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    excluído do grupo. Da mesma forma, A também sabe que a sua própria ação unificadora é vista como a de um quase-excluído, apreende a sua quasesoberania como um poder que o isola da integração dos demais. Já é mínima a diferença entre o ato unificador do terceiro integrado quase-soberano e a uni­ ficação operada de fora por um terceiro excluído e soberano, que capta o gru­ po como um rebanho. Passa-se aqui uma “destotalização-em-curso”. No estágio atual, o “Serno-grupo” é vivido por cada membro como uma espécie de exílio. “Ser-nogrupo”, nesse ponto, é estar ao mesmo tempo incluído e excluído, presente e ausente. Não estou totalmente fora, por causa da unificação processada pelo terceiro mediador; não estou totalmente dentro, porque, enquanto terceiro mediador, unifico os demais, porém não a mim próprio. Trata-se de um duplo fracasso sofrido por cada membro: não posso sair completamente do grupo (pois isso suprimiría o meu “Ser-no-grupo”) nem integrar-me totalmente nele (minha individualidade não pode se metamorfosear em “grupo”). Mesmo que me sinta “fazendo parte de um grupo”, nessa altura dos acontecimentos (digamos que, por acaso, estou reunido com outros em um recinto), não estou realmente no grupo, porque, embora dentro, vejo-o de fora, à distância. Como cada um é unificador e unificado, verifica-se uma sucessão giratória de exílio para cada um e para todos, uma quase-exclusão circular nessa reciprocidade de quase-soberanias. A tensão imanência-transcendência acarreta, neste ponto, uma unidade de fuga. Em tal estado de desintegração, a liberdade de cada membro assume dimensões perigosas. Durante a ação, o membro em momento algum se reco­ nhece como “coisa” manejada pelo grupo: sabe que, no passado, ao jurar fi­ delidade à práxis comum, abdicando da própria liberdade para sujeitar-se a fins comuns, ele assim agiu por decisão livre. “Fui livre ao jurar não ser completamente livre”. Sabe, em consequência, que continua sendo livre - até para não mais assumir aquele juramento. Agora que a tensão mediadora de­ gradou-se, o reconhecimento que cada um faz da própria liberdade e da liber­ dade dos demais leva à certeza de que todos continuam unidos, mas em peri­ go. Cada um começa a sentir o companheiro como um Outro que pode, a qualquer instante, dispersar-se do grupo, e começa a olhar para si mesmo como um possível agente gerador de dispersão. Esse exílio giratório sempre fez parte da estrutura originária da tensão imanênciatranscendência, mas somente agora passa a ser objeto de reflexão para os membros. 237

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    c) O fracasso do Ser Maciço Vimos que a totalização-em-curso não pode fazer-se totalidade, e qüe o grupo fracassa ao buscar a estabilidade eterna de um Ser maciço, feito de uma vez para sempre. As estruturas, inertes (juramento, fraternidade-terror, função) não bastam, por si, para unificar o grupo, atividade prática de múltiplos indiví­ duos, ação comum com vistas a um fim comum, e assim a unidade do grupo de­ pende sempre da livre individualidade de cada membro. É a liberdade individual que se limita pelo juramento, fazendo-se “comum”. É a liberdade individual que realiza as operações peculiares de uma função. É a liberdade individual que in­ venta medidas para neutralizar os riscos da dissolução do grupo. Assim, a livre práxis individual é o único meio possível para que um grupo tenha vida, continuidade de ação. Mas, também, essa mesma liberdade acaba sendo o único obstáculo capaz de impedir a unidade do grupo. Apesar dos esforços despendidos, as liberdades individuais não chegam jamais a se interpenetrarem, a multiplicidade de livres práxis não pode atingir um estado de unidade ontològica (uma “super-consciência” englobando todas). Pior: os agentes são sempre livres para dispersar-se e suprimir o grupo. O drama do grupo (a impossibilidade de alçar-se ao status de Ser) trans­ parece agora mais alarmante do que nunca. A impossibilidade ontològica faz com que a vida inteira do grupo seja uma luta infatigável contra o PràticoInerte: primeiro os indivíduos se unem em uma práxis comum para dissolver a multiplicidade passiva da série; depois, terão de corrigir perpetuamente as estruturas do grupo para negar as constantes investidas do mundo serial. As­ sim, a ação do grupo oferece dois aspectos concomitantes e dependentes: é um projeto para obter um fim comum e é um trabalho de reorganização inces­ sante da organização interna, um combate sem tréguas contra a desorganiza­ ção em curso. Distanciados os membros, degradada a tensão imanência-transcendência, amortecida a “interiorização da multiplicidade”, o grupo acha-se à beira de voltar ao ponto de partida e reencontrar a coletividade serial. Fervilha no in­ terior do grupo um crescente mal-estar, observado em condutas de desânimo, anarquia interna, desconfianças mútuas, lutas de facções opostas —e pode ocorrer até mesmo um ato contra-revolucionário. Na verdade, tal “destotalização-em-curso” é decorrente da própria organização do grupo, que levou os membros a atuarem em funções separadas. Como diz Sartre, “o gru­ po se faz para fazer, e se desfaz fazendo”. 238

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    0 grupo institucional a) O Processo Mas o projeto de consolidar-se como Ser não acabou para o grupo: quanto maior a iminência da dissolução, mais o grupo reclama um estado ontologico definitivo. As liberdades individuais e a tensão imanênciatranscendência foram incapazes de atingir esse objetivo, antes pelo contrário. Então, é preciso reagir com novas medidas, mais poderosas que o juramento, a fraternidade-terror e a função. Na proporção em que aumentam as dificul­ dades de integração, em face da expansão contínua, o grupo passa a agir sem­ pre com maior intensidade sobre si mesmo, pois só desse modo poderá resistir à alteridade e à inércia que começam a corroê-lo por toda parte. Se a práxis comum mostrou-se inoperante e perigosa (as liberdades são sempre imprevisíveis), a solução final e desesperada é recorrer às estruturas de inércia, dando-lhes força suficiente para manter a unidade ameaçada. Até aqui, a vida do grupo era uma práxis similar à de seu modelo, a ação indivi­ dual (superação projetiva do dado para um fim). Mas, daqui por diante, o que era práxis começa a se congelar naquilo que Sartre define como processo, uma nova realidade dentro do grupo. O processo é o reverso da práxis: as es­ truturas inertes assumem um poder cada vez maior, ao passo que a ação indi­ vidual dos membros, inversamente, vai-se tornando sempre mais passiva. O grupo enquanto processo assemelha-se a um enorme objeto passivo, arrastado por uma fatalidade cega, gastando suas energias na reparação de estruturas inertes, que deve manter em condições de suportar a pressão do mundo serial. Nele, o membro já não vive a sua práxis, mas sofre o movimento de uma passividade orientada para um fim inerte. A práxis comum coagulada em processo traz nítidas identidades com as ações humanas isoladas no meio Pràtico-Inerte: em ambas, as atividades par­ ticulares estão apartadas umas das outras, não se concatenam em um desen­ volvimento temporal orientado. Tomemos, por exemplo, um complexo indus­ trial sob controle de um grupo organizado cuja práxis se degradou em proces­ so - e veremos que pouco se diferencia de um regime de produção propria­ mente serial (como o método de Taylor): a matéria trabalhada passa de um 239

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    subgrupo A a outro subgrupo B, em operações sucessivas. Assim, a matéria adquire a mesma feição da matéria Pràtico-Inerte: o trabalhador do subgrupo B recebe a matéria como resultado da ação comum dos membros do sub­ grupo A, que são invisíveis e desconhecidos para ele. Cada tarefa particular se cumpre inteiramente e fica isolada das outras. O subgrupo C extrai a matèriabruta e produz o petróleo refinado.O subgrupo D recebe nos altos-fornos o ferro que chega de outros lugares, onde foi trabalhado por outros. Cada sub­ grupo trabalha uma matéria cujos fins parecem ter sido dados por “outros”, não “os mesmos”. A práxis-processo oferece esses inconvenientes, acarreta a esclerose do grupo, mas ao menos é uma saída de emergência para evitar que os membros recaiam na serialidade absoluta. Quando a práxis comum vira processo, surge o grupo como instituição. O grupo institucional ostenta o semblante de uma “coisa” estabelecida com caráter de permanência, é um sistema fechado e es­ tático, identificável pela força de seus códigos de conduta, suas leis, sua rigi­ dez mecânica, sua estrutura estabilizada, e também pela redução da práxis individual a limites severos. Mas tal institucionalização do grupo é um fenô­ meno inevitável, em face da invasão da alteridade serial. A partir daqui, a unidade do grupo já não será uma práxis, mas sim pro­ cesso, simples inércia passiva (“todos estaremos unidos pelo juramento que outrora prestamos reciprocamente”). O membro do grupo sente a necessidade de, através de uma Convenção, reforçar o estado inerte de terror, para supri­ mir qualquer fator de dispersão emergente, seja no Outro, seja em si mesmo. Assim, o terror (punição dos infratores) não surge de uma minoria que almeja impor a sua vontade, mas da necessidade que todos sentem de consolidar o grupo. O terror é o preço necessário para fazer ressurgir, à força, a coesão do grupo - mas uma coesão como “objeto exterior”, que nega a união subjetiva, interior, entre os membros. Na ânsia de ganhar a rigidez e permanência de um Ser, o grupo engendra uma espécie de “Ser-da-instituição”: surgem sub­ grupos armados, forças que impõem a ordem pela violência, sustentando a instituição através de vigilância, controle policial, ameaças, prisões. Esse apa­ rato servirá de laço entre os membros. Cria-se uma “unidade de alteridade por* *

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    Sociólogos em geral vêem o grupo apenas como processo, quando este é apenas a aparência enganosa de um momento da evolução do grupo. Na verdade, o grupo nunca se torna mera es­ trutura esclerosada e inerte: continua sendo práxis, só que agora a sua estrutura de inércia ga­ nhou tal relevância que passou a ser a única condição para que a práxis comum se mantenha. Foi o ocorrido na extinta União Soviética. 240

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    meio da auto-domesticação sistemática do homem pelo homem”. b) Abdicação da liberdade individual Cada membro procura agora consolidar em si mesmo a estrutura de inércia do grupo, voltando ao juramento original como pedra fundamental de uma unidade passiva que se tem de obedecer. O membro do grupo não quer admitir que a sua liberdade e o seu papel de terceiro mediador na tensão imanência-transcendência foram os únicos responsáveis pela união de todos. Ao contrário, cada um esconde a sua liberdade. No grupo institucional, todos se esquivam a fazer qualquer proposta de determinada ação ou mudança de pla­ nos, porque - como estamos corroídos pela alteridade, já não somos “os mesmos” - caso alguém se atreva a isso corre o risco de que a sua proposição apareça de modo totalmente deturpado aos olhos dos demais, venha a prejudi­ car a ação do grupo, ou a provocar o próprio descrédito pessoal. Se a liberda­ de de um membro aparece demais, ele se torna “suspeito de divisionismo”. Como todos vivem em mútua desconfiança, qualquer agrupamento que se formar no ventre do grupo institucional não será um subgrupo, mas um grupo apartado, logo exposto às leis do terror. A fim de se precaver contra o terror, cada membro busca transferir a li­ berdade para um suposto Ser uno e totalizado que seria o grupo, agora visto como “sujeito-livre-comum-superior”. Cada um tenta identificar-se somente como mero agente passivo manipulado por uma “livre práxis comum trans­ cendente”, de modo que os demais o encarem dessa forma e não o coloquem como liberdade passível de suspeita e punição. Assim, cada um renega a pró­ pria liberdade para realizar a unidade em perigo do grupo, mas como se o grupo fosse um Ser objetivo. E uma unidade na qual os membros vivem entre si querendo ser apenas partículas coladas a outras partículas por uma espécie de selo. c) A volta à passividade Em conseqüência, o membro do grupo já não é mais essencial, insubsti­ tuível, porque, ao negar a própria liberdade de iniciativa e ação, torna-se um Não importa que exista ou não um órgão que governe por aparatos de repressão. De qualquer modo, tal órgão, se existir, só aparecerá depois de já estabelecido o terror pela Convenção. 241

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    “qualquer” executando uma função, perpetua algo inerte. Outro poderia ocu­ par o seu lugar. O funcionário já não se exprime a si mesmo, não realiza o que é seu. Surge uma práxis estereotipada. Diz Sartre que “a função tem de ser executa­ da por um homem”, mas que, a essa altura, “a função deve valer mais do que o homem”. Além disso, existe em todos, agora, a convicção de que o grupo, idealizado como Ser, é imutável, e de que nada se pode fazer para interferir no seu curso. Surge um estado de impotência similar ao da coletividade serial. Se, por acaso, o membro do grupo não está de acordo com a práxis institucio­ nalizada, resta-lhe dar de ombros e deixar ficar tudo como está, já que se julga impotente para qualquer mudança no estado de estabilidade e rigidez mecâni­ ca a que chegou o grupo. O grupo institucional configura-se um meio-termo entre o grupo organi­ zado e o Pràtico-Inerte. Conserva características do grupo organizado (realiza-se pela distribuição de tarefas para um fim comum), mas difere deste porque se baseia na inércia, na passividade. Também se assemelha ao PràticoInerte* , mas com uma diferença: embora afetado de inércia em suas relações internas, continua sendo uma ação comum empreendida em função de um objetivo futuro e conserva a eficácia de uma práxis de grupo (tanto para a fac­ ção dominante quanto para todos os membros). O grupo institucional é a pas­ sagem da inércia assumida do grupo organizado para a passividade impotente da coletividade serial. Começa então o processo de burocratização. A burocracia é um com­ plexo sistema hierárquico no qual o nível inferior é um instrumento inerte manipulado pelo ¡mediatamente superior. Cada funcionário é, para seu supe­ rior, uma coisa passiva que deve “obedecer ordens”. Se toma iniciativa pes­ soal em seu nível hierárquico, dando ordens próprias aos subordinados, tornase suspeito. Sartre cita a Rússia stalinista como exemplo do grau a que pode *** chegar a burocracia institucional em um grupo revolucionário. É uma conduta de má-fé, porque, como vimos, ninguém pode existir como um “qualquer”. A liberdade individual de ação não se extingue, e o máximo que se pode fazer, diz Sartre, é repre­ sentar uma farsa. Tal como no Pràtico-Inerte, aquele que nasce em um grupo institucional já depara com seu devir predeterminado pela geração anterior como um destino mecânico: as “obrigações” cívicas, profissionais, militares, que é preciso cumprir; a fidelidade ao juramento que seus antecessores prestaram ao grupo, etc. Exemplo de grupo institucional não-revolucionário: as Forças Armadas. 242

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    0 soberano a) Tentativa de encarnar a práxis comum O grupo institucional negou as liberdades individuais e impôs estruturas de inércia, a práxis fez-se processo, a ação comum petrificou-se em passivi­ dade e alteridade. Mas nem mesmo tais providências extremas se prestaram para eternizar o grupo como “super-consciência” ou “super-organismo”. Ameaçados pelo terror, os membros procuraram abafar a sua liberdade e viver como partículas coladas por um selo (o grupo como Ser). Com isso, apenas se conformaram em “se deixar conduzir”. Falta porém justamente o selo para evitar que essa passividade venha a se igualar à impotência serial. Os mem­ bros do grupo, queiram ou não, continuam sendo livres, e as estruturas de inércia, por si só, são insuficientes para impedir que o contato com os nãoagrupados resulte em uma recaída na série. Então, em nova tentativa de reforçar a união do grupo sempre em vias de dispersão, instala-se a figura do soberano, o chefe supremo. Com o soberano, o grupo institucional já não é só inércia, por­ que reaparece uma práxis livre (a do soberano) que fará o grupo atuar. Até aqui não havia chefes ou autoridades: antes da burocratização, o poder passava de um a outro, todos davam ordens, conforme as exigências próprias da situação. Com o surgimento do soberano e das hierarquias, tal movimento giratório de quase-soberanias se imobiliza. É consagrado ao sobe­ rano (que tanto pode ser um indivíduo como um subgrupo) o direito de asse­ gurar a permanência do grupo, unificando a multiplicidade de agentes, im­ pondo aos demais o seu poder coercitivo, exigindo tarefas, certas formas de reciprocidade entre os membros, novas organizações internas, etc. Como foi dito, o grupo institucional levou os membros a camuflarem própria liberdade, atribuindo-a a uma “práxis comum transcendental”, para proteger-se do terror. No entanto, sabemos, essa “super-consciência” é uma abstração. O soberano surge justamente para tornar concreta tal “práxis co­ mum”: ele procura encarnar o grupo inteiro, unificando os membros na sua liberdade e no seu organismo individual. Faz-se um órgão de integração a fim de conferir unidade à práxis comum. Mas esse propósito será o derradeiro in­ sucesso do grupo em tentar adquirir status de Ser concreto. Vejamos por quê. 243

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    A posição do soberano é imprecisa. Sob certo ângulo, ele não é bem um soberano, mas um quase-soberano, já que também pertence ao grupo e achase sujeito às estruturas de inércia (prestou juramento, é recrutado e eleito con­ forme certas normas e suas qualidades para o poder, recebe certa educação profissional, seus fins estão predeterminados pela instituição à qual deve ser­ vir, obedece determinados estatutos, etc.). Porém, não se trata de um “indivíduo comum”, pois difere dos demais na medida em que é o único membro do grupo que pode unificar os demais e regulá-los, mas não pode ser unificado nem regulado. Ele é o único a efetuar atos reguladores, o único a decidir que tipos de relações de reciprocidade os membros devem manter en­ tre si (as relações diretas são cortadas entre os membros e tornam-se indiretas, passando pelo poder central do soberano). Assim, sob outro ângulo, ele é de fato todo soberano, porque age como se contemplasse o grupo de fora, mani­ pulando como partículas de um rebanho aqueles que lhe delegaram o poder. b) Nova degradação do grupo Portanto, longe de conseguir a “unificação da práxis comum”, o sobera­ no degrada ainda mais o grupo enquanto multiplicidade de ações conjugadas. Em primeiro lugar, ele acentua a passividade e a alienação que já existiam no grupo enquanto processo (aliás, o soberano só pode reinar mesmo sobre a im­ potência de todos, porque, se houvesse uma práxis comum viva, sua aparição seria impossível, e sua função inútil). Ao obedecer a vontade e as decisões de um “Outro” (o soberano), cada membro torna-se “Outro-que-não-si-mesmo”. Antes, o juramento determina­ va certa alienação da liberdade individual para que aparecesse o “indivíduo comum”, mas, no cumprimento da tarefa, a livre práxis individual ressurgia, visando um fim comum (o de todos e o da própria pessoa). Agora, com o so­ berano, a práxis individual continua existindo no momento da execução da ta­ refa (até o mais dócil e obediente soldado precisa agir a seu modo, apontando sua arma, calculando a distância do tiro, apoiando o dedo no gatilho no mo­ mento preciso, etc.). Mas, fora disso, já não há terreno para a liberdade indi­ vidual, e sim apenas para a liberdade do soberano (a ação singular do soldado apenas cumpre fins do projeto do soberano, fins estes que lhe foram impos­ tos).* Trata-se, afinal, de mera obediência a ordens, pela qual eu renego a miImpossível dizer a priori se o soberano visa um fim comum ou seu próprio fim. Tal indeterminação aparece quando o soberano diz “meu povo”: isso pode indicar tanto “o povo que me 244

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    nha liberdade para que o soberano cumpra o seu projeto em mim. De certa forma, cada um se faz, pela obediência, uma encarnação do soberano, na ten­ tativa de realizar o impossível “Ser-comum”. c) A volta à Série Em segundo lugar, o soberano, ao romper as relações diretas dc reci­ procidade positiva entre os membros, justamente no momento em que elas já estavam meio mortas, suprime ainda mais o pouco que restava da práxis co­ mum, assumindo para si aquelas reciprocidades. O soberano quer encarnar a “unidade ontologica” do grupo, mas a multiplicidade de ações conjugadas jamais pode se fundir em um só organismo individual. Então, já não há mais práxis comum. O soberano manipula os membros como objetos ou instrumentos passivos, impondo à força uma suposta unida­ de contra a série emergente, como se a multiplicidade de agentes fosse uma máquina que faz funcionar o soberano. Os membros do grupo são para ele um falso prolongamento de seus olhos, pernas e braços, e o soberano os maneja para alcançar os seus fins, fazendo-os à sua imagem e semelhança. Para isso, estabelece uma função especializada em exercer o terror: as forças de repres­ são. A soberania é, portanto, a concentração, em uma só pessoa, do terror como arma contra a série: com o seu poder, o soberano pode destruir no ato, até pela violência, qualquer manifestação suspeita de alteridade, e com isso agrava-se a mútua desconfiança de todos (por causa disso, cada membro as­ sume um poder específico sobre os demais: posso arruinar qualquer um, pos­ so denunciar o meu vizinho, etc.). O soberano se ilude ao supor que encarna uma práxis comum, quando somente ele pode e deve ser livre para dar ordens e corrigir o grupo, realizan-* pertence” como “o povo ao qual pertenço”. Mas, ainda que os fins do soberano e dos membros sejam idênticos, na verdade cada membro só tem um fim: servir ao soberano. * Não há constrangimento da liberdade. O soberano não comanda os membros como se fosse um hipnotizador. É a liberdade mesma que livremente se perde, aceitando mascarar-se para que o grupo se mantenha. O membro até pode considerar ilegítimas as ordens, mas as obedece porque se sabe impotente. Um escravo que obedece ordens de seu amo, se for resignado e considerar legítimas as ordens, é livre para escamotear a sua liberdade. Mas é também livre para esperar a hora de uma rebelião que se prepara, fingindo-se de obediente por prudência ou cinismo. ** Há, nesse detalhe, uma certa resistência à dispersão, pois cada membro, sentindo-se “Outro”, reconhece-se como igual aos companheiros, já que eles também são portadores desse “Outrocomum-a-todos”: em todos está presente “o mesmo Outro” (o soberano), enquanto esse sobera­ no for livremente obedecido.

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    do a sua liberdade através das ações dos subordinados. Ao querer criar uma unidade, apenas produz um rebanho de partículas inertes que acatam ordens, apenas realiza uma absurda “unificação de alteridades”, tentando fazer uma totalização-em-curso do que já não passa de uma passividade sem progresso, buscando concretizar uma práxis comum quando só se impõe a sua práxis in­ dividual, consolidar um grupo quando o que existe agora é só uma coletivida­ de serial. d) O Estado O Estado é um exemplo de grupo institucional dotado de soberania es­ pecífica (sobre o conjunto social de uma nação). Existem grupos institucio­ nais que lutam contra grupos inimigos ou contra a coletividade serial, mas o Estado não está nesse caso; é o tipo do grupo institucional que manipula uma coletividade serial, atuando sobre a passividade c a impotência dos indivídu­ os, que não têm meios de discutir a legitimidade de seu poder, mas apenas o aceitam porque não podem fazer outra coisa. O Estado, como todo soberano, supõe realizar uma “práxis comum”, uma totalização-em-curso, quando, na verdade, como vimos, lida tão somente com indivíduos em série. Em uma sociedade de classes, o Estado pretende ser a “unidade sobera­ na” de todas as classes. Ora, o Estado é o órgão da classe dominante. Criado e mantido por esta, o Estado baseia a sua potência na impotência das classes oprimidas, e, se necessário, recorre à força para conservar essa passividade do proletariado, dando inclusive à classe dominante o direito de explorá-lo. Ale­ gando pretender a supressão dos conflitos de classe em proveito da “unidade nacional”, o que faz é agir em benefício da classe dirigente, consolidando-a, integrando-a, neutralizando problemas que possam debilitá-la frente à classe dominada, de modo a manter a situação como está, perpetuar a ordem estabe­ lecida. Pretenso intermediário entre as classes, o Estado, em caso de luta de ** classes, faz a balança pender para os opressores. O Estado, grupo institucional provido de soberania, representa bem o fi­ nal da história de todo agrupamento humano que, para enfrentar o PráticoÉ tão falsa essa “unidade” de moléculas separadas que, se porventura, a pressão do soberano se afrouxa, os indivíduos voltam ao isolamento com mais intensidade do que antes. ** E' verdade que por vezes o Estado quer ser um “objeto comum a todos”, busca uma “unidade nacional”, e chega a impor medidas que contrariam os interesses da classe dominante, mas isso só acontece em ocasiões de crise, é uma exceção dentro da regra. 246

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    Inerte, afeta-se de inércia, tende à esclerose e se burocratiza, terminando por servir de sustentáculo à própria serialidade que um dia pretendeu exterminar e hoje perpetua.

    Começo e fim do grupo Descrevemos até aqui a origem, a evolução e a petrificação do grupo, concluindo que se trata de uma experiência circular: o grupo nasce da série e à série retorna. Recapitulando: (a) O grupo se forma pela revolta das liberdades individuais contra o mundo Pràtico-Inerte e o desumano poder da matéria para manipular os ho­ mens; (b) Para conservar essa revolta, é necessário fazer reaparecer no grupo, pouco a pouco, a inércia, forjada reciprocamente (os membros se comprome­ tem pelo juramento, violentando a própria liberdade para que nasça o “indivíduo comum”); (c ) Organizando-se, os membros se separam e, para evitar a dissolução, o grupo se institucionaliza, reforçando as estruturas inertes e enfraquecendo a práxis individual (a práxis torna-se processo); (d) Como última tentativa de ganhar permanência e rigidez, o grupo concentra em um único homem (o soberano) ou em um subgrupo (o Estado) a responsabilidade pela práxis comum; (e) Assim, a revolta inicial das liberdades conduz à servidão de todos e à liberdade de um só homem, ou de uma elite. O grupo - não importa o êxito de suas ações - sempre fracassa ao bus­ car o status de um Ser acabado, de uma totalidade já feita, porque, enquanto existe, é ação em aberto, sujeita ao crescimento ou à extinção. E invariavel­ mente atinge tal petrificação que regride à condição serial que constituiu o seu ponto de partida: acaba não sendo mais do que um selo que une os indivíduos em relações de exterioridade, todos vivendo passivos, alienados e enquanto “Outros”. O grupo surge apartando-se da série e vive atuando contra ela, mas Foi o que se viu, repetimos, no fracasso do mundo comunista ao final dos anos 80. 247

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    infecta-se tanto de inércias que termina deixando de ser uma práxis comum para converter-se simplesmente em uma máquina em movimento. Ou seja, uma coletividade serial com outro nome, como sucedeu na União Soviética. O movimento do grupo na ordem exposta é dado por Sartre por questão de clareza e simplificação, uma vez que - embora a passagem do agrupamen­ to à petrificação seja inevitável - não existe obrigatoriamente esta ordem cro­ nológica. O grupo não necessita passar por todas as etapas descritas, nem a recaída na série ocorre em um momento preciso. Por exemplo: o grupo-emfusão pode não passar à fase do grupo organizado, mas logo reabsorver-se na série; o soberano pode surgir, não em um grupo institucionalizado, mas dire­ tamente de uma coletividade serial. Cabe às circunstâncias históricas decidir a vida de cada grupo singular. Deve-se notar, por último, que a vida de um grupo está sujeita também ao transcurso do tempo. E ilusão pensar que a História humana é um desenro­ lar temporal único, que começa com “os primeiros homens” e terminará com “os últimos”. A História humana não pode ser equiparada à história de um único homem. Não há esse “super-organismo temporal”, porque a humanida­ de evolui através de uma pluralidade de gerações que se sucedem, cada uma delas contendo múltiplos desenvolvimentos temporais individuais. Desse modo, a ação de todo grupo, no transcurso do tempo, pode vir a sofrer modificações, escapar ao controle dos que a detonaram e obter fins im­ previstos, autênticas contrafinalidades. O resultado desejado e obtido por uma geração, em uma certa época, torna-se algo passado e já feito, no seio da totalização-em-curso. As gerações seguintes irão encarar tal ação como coisa inerte, a partir da qual será processada uma nova práxis - e essa nova práxis pode perfeitamente desviar, deturpar, inverter ou suprimir a ação anterior. Sendo livres os homens, não se pode prever como irão agir amanhã, e o que ocorre agora pode não suceder depois. Em outros termos, o desenvolvimento dialético da atividade dos homens é imprevisível. Por exemplo, um grupo atinge um objetivo previsto: um exército ocupa um país, derrotando o inimigo. Mas as forças de ocupação não Sartre diz que se manteve sempre ao nível da teoria, “em um grau de pureza abstrata”, e não pretendeu estudar as condições concretas e singulares do funcionamento de um grupo ( para isso, teria de tomar um grupo real em uma época real e traçar a sua evolução histórica). Nota ainda que não se pode considerar o grupo como algo isolado, em “estado puro”: como veremos no capítulo seguinte, o que existe na realidade é uma interseção entre grupos e série, com in­ fluências mútuas. 248

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    podem prever se surgirão movimentos de resistência clandestinos e se, um dia, as forças que as sucederem na ocupação não irão reagir de modo diferente c deixar-se vencer. Nada impede que os filhos substituam completamente a práxis comum que os pais lhes legaram. Foi assim que os franceses venceram a I Guerra Mundial, mas a geração que se seguiu encarou a guerra como uma loucura cometida por seus pais, adotou uma postura pacifista e assim adveio uma contrafinalidade (a ocupação da França pelos inimigos anteriormente vencidos). Já os alemães perderam a I Guerra, e a geração posterior, ao con­ trário, rebelou-se contra os pais derrotados e armou-se, com o nazismo, para eliminar os vencedores.

    Capítulo 5 O CONJUNTO SOCIAL CONCRETO

    Relações entre séries e grupos A noção de “sociedade” como um todo é artificial, tende a mascarar a, realidade da vida social. Na verdade, o conjunto social é urna mistura de cole­ tividade serial e grupos contidos em um determinado espaço e que se relacio­ nam entre si. Evidentemente, a série, o grupo-em-fusão, o grupo organizado, o grupo institucional, etc., não são estados sucessivos do desenrolar histórico, mas coexistem a cada momento. Séries e grupos estão dados conjuntamente, e nunca devemos considerar uns sem os outros: não se pode entender o grupo sem a série (pois o grupo aparece para combatê-la), nem a série sem o grupo (já que toda série é passível de se converter em grupo). Todo grupo se de­ termina pela série, e toda série é manipulada por um grupo soberano. As complexas relações entre séries e grupos denotam uma influência re­ cíproca de uns sobre os outros, um duplo movimento de ação e reação mútuas. Como dissemos na Introdução, o pensamento dialético, para Sartre, deve atentar para as rela­ ções (positivas e negativas) entre as partes e o todo de determinada realidade considerada. Tal método foi aplicado às relações entre os membros e o grupo, nos capítulos anteriores, e aqui é retomado nas relações entre séries e grupos. ** Embora o grupo se forme sempre contra a série, é impossível dizer se era a série que existia antes da aparição do primeiro grupo na História, ou se o que havia antes eram grupos degradados em série. Pode-se apenas conjeturar se a História humana não é um perpétuo movimento de agrupamentos e dissoluções na série. 250

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    Tais relações giratórias entre séries que se tornam grupos e grupos que se tor­ nam séries constituem a realidade concreta da sociabilidade. A atividade de cada grupo e a passividade de cada série acarretam efeitos fora de si, no mun­ do circundante comum, onde existem outros grupos e séries: todo grupo e toda série afetam o campo social ao redor, provocando reações e mudanças. Es­ quematizando, temos um duplo jogo de influências: (a) A série influencia o grupo Foi praticamente o que vimos ocorrer em toda a evolução de um grupo. A coletividade serial jamais deixa de projetar sobre o grupo a força de sua passividade pegajosa: os membros do grupo herdam características sofridas no meio Pràtico-Inerte e são permanentemente infectados pelo contato com os não-agrupados. Pode-se dizer que todo membro de um grupo é também indi­ víduo de uma série: o militante de um grupo organizado de trabalhadores, quando não está militando, vai para casa, mistura-se à “selva humana” dos indivíduos seriais, porque também faz parte de uma família, reside em um bairro, costuma agir como todas as pessoas de uma coletividade inerte, etc. Além disso, sobretudo, é a série que sustenta o grupo: afinal, é contra ela que se luta, é ela (pelo que representa de destino negativo) que dá energia aos membros (“precisamos enfrentar o Pràtico-Inerte, devemos combater a passi­ vidade, a alteridade e a alienação desumanas”), é ela que decide o próprio fu­ turo do grupo (sua força contagiosa ameaça permanentemente o grupo, dei­ xando-o sempre em perigo de petrificação; ou, ao contrário, é essa mesma for­ ça ameaçadora que concede a um grupo degradado um súbito poder de ressur­ reição, etc.). (b) O grupo influencia a série De modo geral, a formação de um grupo acarreta uma reação nos nãoagrupados, que tomam consciência de sua situação de indivíduos em série, e refletem sobre isso. Tal reação aparece de diversos modos, dependendo do tipo de ação do grupo (há inclusive grupos que, por sua natureza excêntrica ou inofensiva, suscitam apenas reações indefinidas ou indiferentes, como é o caso, por exemplo, das associações de numismática). A reação mais simples é a que induz os não-agrupados a sentir seu esta­ do de alteridade e impotência seriais: isso ocorre, digamos, quando aparece certo número de militantes em um grupo de insurreição, e os nãocombatentes, que não participam do grupo armado, reconhecem-se passivos e isolados entre si. Outra reação é a que constrange os não-agrupados a partici251

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    parem da ação do grupo, embora sem abandonar a coletividade serial: temos exemplo disso em um grupo de utilidade pública, como o Serviço de Correi­ os, pois os usuários, ao remeter uma carta, segundo certas normas, assumem indiretamente o juramento dos agrupados, fazem-se “indivíduos comuns” por causa do aspecto comum da operação. A reação mais aguda é registrada quando um grupo provoca na coletividade serial a formação de um grupo inimigo: por exemplo, uma milícia fascista pode gerar na série uma práxis comum (agrupamentos de resistência). Nos países capitalistas, o domínio do grupo soberano (o Estado) sobre a coletividade serial é contundente: manipula-se a série de modo a fazer com que a inércia, a alienação e a alteridade de todos permaneçam como estão. Na sociedade capitalista, os indivíduos vivem no mais absoluto “inferno do Pràti­ co-Inerte”: ao atuar no mercado competitivo, ao fazer circular as mercadorias, ao acumular riquezas, etc., todos vivem enquanto “Outros-que-não-simesmos” (no mercado consumidor, por exemplo, há apenas “Outros” - os competidores - que precisam de “Outros” - os clientes). O grupo soberano nega à série manipulada uma práxis comum, já que isso significaria a consti­ tuição de um grupo, primeiro passo para uma rebelião. Assim, é preciso pro­ duzir reações seriais no campo serial, levando cada vez mais todos os cida­ dãos a agir e pensar como “Outros”, estimulando as relações de alteridade e alienação. Com esse fim, o grupo usa de todas as armadilhas da propaganda para agir à distância sobre a série e exercer sobre cada indivíduo um condiciona­ mento exterior, ou êxtero-condicionamento , que implica fascinar as pessoas com um ardil: cada um deve agir como “Outro”, pois assim está participando de uma ação comum, tal qual um grupo genuíno, e sendo mais do que nunca “si mesmo”, porque realiza livremente o seu projeto, que é o projeto comum a todos. Cria-se assim a ilusão hipnótica de que a série atua como um “todo”. Tal sedução conduz os indivíduos a fazerem o mesmo que os outros, no sonho de que, desse modo, tal como no grupo, todos compartilham de um esforço *

    “Uma sociedade de exploração”, diz Sartre, “pode empenhar-se em vencer o pensamento e os movimentos de esquerda, e mesmo, em certos períodos, reduzi-los à impotência - mas ela não os matará jamais, porque é ela mesma que os suscita”. Sartre emprega essa expressão para contrapô-la ao condicionamento interior que existe no grupo. Ambos limitam a liberdade, mas no grupo esse condicionamento (por exemplo, o respei­ to ao juramento) procede do interior de cada membro, é fruto da decisão do indivíduo, que as­ sume livremente os limites de sua liberdade em proveito da ação comum. O condicionamento exterior atinge o indivíduo de fora e é sofrido por esse indivíduo. 252

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    conjugado para obter fins comuns, igualmente desejados por cada um dos in tegrantes do corpo social. Em decorrência, o individuo serial condicionado quer ser si mesmo, sendo a expressão de todos os demais. Costuma pensar: “Se os outros fazem isso, então eu, como todos, também devo fazê-lo”. Nos Estados Unidos, por exemplo, as agências funerárias apregoam que “todo mundo deve uma consi­ deração ao ente querido: conduzi-lo de Cadillac à sua última morada”. Então, o indivíduo condicionado acredita que, se não fizer o mesmo que “todos” fa­ zem, irá desrespeitar o amado. Esse tipo de conduta transparece também em cerimônias tradicionais (casamentos, aniversários) e outras datas festivas (carnaval, semana santa, etc.). Ainda nos Estados Unidos, a indústria fono­ gráfica criou um condicionamento exterior a partir de uma lista dos “10 dis­ cos da semana”, escolhidos por um grupo de experts através do rádio. O pú­ blico serial fica persuadido de que os discos eleitos expressam “a opinião de todos”. Há também os best-sellers, outro produto da propaganda: “Todos compram estes livros”. Mas esse fascínio de um “todo” é pura ilusão. O “todos compram este disco ou este livro” não se refere, a rigor, a ninguém. Isso porque os supostos “todos” são ninguém, já que nenhum comprador é “si mesmo”, mas age como um “Outro” - um “Outro” que seria o modelo portador daquela “opinião de todos” e que não existe em parte alguma. Assim, se é verdade que os discos e livros mais vendidos da semana representam uma “preferência da maioria”, essa preferência não reflete o gosto de ninguém, só o dos “Outros”, que são “nada”. Em outros termos, a suposta “unidade de todos” (a chamada “opinião pública”) é algo fugidiço, que parece estar em todos os lugares e em lugar ne­ nhum: reside sempre “em outra parte”. Cada consumidor, se compra os 10 discos indicados, terá a “discoteca-prototipo do Outro” - quer dizer, a “discoteca de ninguém”. Nos Estados Unidos, desde criança, nas escolas, todos aprendem a res­ peitar essa falsa “unidade de todos”: procuram ser “o mais virtuoso”, “o mais hábil”, “o mais capaz”, “o mais produtivo”, etc., segundo modelos predeter­ minados de pseudos-“todos os outros”. O objetivo máximo de cada um é ser o mais perfeitamente “Outro” de todos os “Outros”, e, inclusive, muitas vezes, aquele que se mostra “o mais Outro entre Outros” conquista prêmios e incen­ tivos ( o operário-padrão, o atleta do ano, etc.). Exemplo extremo desse sis­ temático condicionamento exterior deu-se na Alemanha de Hitler: os nazistas criaram a ilusão de que “todo mundo” (que era “nada”) odiava os judeus. A 253

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    propaganda resultou no anti-semitismo generalizado: “Se todos sentem assim, então eu também devo sentir”. * Portanto, o grupo, ao manipular a série, finge lidar com a unidade de um “todo”, com uma ação comum, quando, na verdade, apenas impõe a uma passiva coletividade serial múltiplas exigências do mundo Pràtico-Inerte (dirigismo de consumo, anti-semitismo, etc.). Isso agrava ao extremo a alteridade e a alienação. As pessoas estão certas de ser “si mesmas”, quando deve­ ríam dizer: “Sou fulano em pessoa, sou ele próprio”. Os próprios membros do grupo, ao atuar sobre a coletividade serial, também contaminam-se de aliena­ ção. Por exemplo: os empregados do comércio (grupo econômico) manipu­ lam os clientes (indivíduos seriais) persuadindo-os a “comprar o que compra o Outro”, isto é, tratando-os como “Outro”. Mas, para isso, o vendedor tam­ bém tem de ser manipulado pelo grupo: sofre da parte de seus superiores hie­ rárquicos um aprendizado para tratar o cliente (se necessário, muda de humor, dá razão ao cliente,etc.). Ou seja, o membro do grupo deve conduzir-se como “Outro-que-não-si-mesmo”. Nenhum grupo soberano - nem mesmo o mais ditatorial Estado - pode criar um “grupo de indivíduos seriais”, algo inteiramente impensável. Não há ação de grupo quando os indivíduos são manipulados e vivem alienados e passivos. Como vimos, o grupo não é um “super-organismo” que abarca a to­ dos, onipotente e onipresente, mas sim uma atividade comum que, para unificar-se sem cessar, exige ser conscientizada por cada membro enquanto “multiplicidade orientada para os mesmos fins” - o que não sucede nesse caso. Todo grupo soberano que detém o poder estatal reina sempre sobre a passividade da série, e por causa dela. Nos países superdesenvolvidos, onde impera o chamado capitalismo avançado, aperfeiçoa-se cada vez mais a força hipnótica da alienação: como já estão satisfeitas as necessidades elementares da maioria da classe operária, criam-se artificialmente novas necessidades. Por exemplo: a indústria auto­ mobilística convence o operário que trabalha para produzir um carro de que está gastando suas energias para satisfazer uma falsa “necessidade” que lhe foi induzida - a de comprar o seu próprio automóvel. Assim, o sistema que explora o trabalhador lhe dá a ilusão de que está, na verdade, o satisfazendo. Acirram-se o consumismo, a necessidade de “ter o mesmo que os outros”, o *

    Dá-se aqui o já referido predomínio da função sobre o homem, no grupo institucional: a práxis comum faz-se apenas um “objeto exterior”, uma determinação inerte de “condutas a tomar” que se impõe a cada membro.

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    ímpeto de competir e “levar vantagem” sobre os demais. As técnicas dc per suasão e condicionamento, de tão requintadas e maquiavélicas , mostram como são poderosos os meios de controle do capitalismo avançado sobre as massas. O caráter intolerável do Pràtico-Inerte já não aparece, no capitalismo avançado, na simples impossibilidade de cada um de satisfazer as suas neces­ sidades primárias e realizar os seus próprios projetos. Aquelas necessidades já estão Irequerí temente saciadas, mas o grupo soberano se encarrega de manter as massas alienadas, hipnotizando-as com necessidades artificiais, que apenas servem para o lucro dos capitalistas e para preservar a exploração da classe dominada. Conclui-se, neste ponto, que duas previsões de Marx não se consuma­ ram: (a) a própria evolução do capitalismo engendraria uma crise interior no sistema e sua subsequente destruição (o desenvolvimento da produção indus­ trial criaria uma força social destinada a liquidá-la: aumentando a massa de operários explorados, estes se concentrariam em quantidade e força suficien­ tes para fazer a revolução e tomar o poder); (b) em conseqüência, instala-se a ditadura do proletariado. Como vimos, a evolução do capitalismo tende a tornar mais passivos e alienados os trabalhadores. Para se provocar um élan revolucionário, seria preciso um longo e paciente trabalho de conscientização das massas sobre a alienação, a reconstrução do indivíduo para que nem mesmo a mais refinada das técnicas alienantes pudesse afetá-lo - pois estamos frente a um poder capitalista forte e complexo, rico em capacidade de repressão e sedução, e não diante de um sistema que irá ruir por suas próprias contradições internas. Por outro lado, não há como conceber uma “comunhão autêntica” entre um grupo soberano e as ações dos indivíduos governados. O ideal marxista da ditadura do proletariado - que seria exatamente um exercício do poder repar­ tido entre um grupo soberano de operários e uma série passiva de operários não passa de “utopia”. Sartre não nutre ilusões sobre essa impossibilidade fu­ tura, que considera um “compromisso bastardo” entre um grupo e uma série. A moderna técnica de publicidade ludibria o indivíduo levando-o a crer que, se comprar de­ terminado produto, estará sendo mais do que nunca “si mesmo”. “O apartamento sob medida para você”, “o televisor que você esperava”, “este é o seu automóvel” são slogans desse falso personalismo. Na verdade, o truque esconde uma tática de sedução alienante, que pode ser re­ sumida assim: “Compre como todo o mundo, para não ser como ninguém - sequer como você mesmo”.

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    Na verdade, um grupo revolucionário só pode aparecer fora do poder estatal ou seja, libertando-se da manipulação e estabelecendo a própria indepen­ dência de ação - ou contra ele, rechaçando-o ou insurgindo-se.

    Luta de classes a) O "Ser-de-classe” Nas sociedades não-comunistas, todo homem pertence a uma classe, as­ sim como pertence a um país, uma religião, uma raça, etc. Que significa esse “Ser-de-classe”? Não se trata de algo como um “Ser comum”, próprio ao membro do grupo, porque a classe - tanto a burguesa quanto a operária - vive em um meio Pràtico-Inerte, é uma coletividade serial em que podem ou não surgir grupos. Enquanto série, a classe oferece exigências, valores, ideologias e regras que se impõem de fora a seus integrantes. Todos sofrem a inexorabilidade de um destino prefixado, a impotência e a alteridade determinadas pelo campo material Pràtico-Inerte. Cada um está alienado, faz o que os “Outros” fazem. Todos competem entre si, constrangidos a uma ação solitária. Existem, é certo, interesses e necessidades similares entre os integrantes de cada classe, e as condições materiais podem ser as mesmas, mas nada disso confere à clas­ se a condição de práxis comum de grupo, o estatuto de uma organização fra­ terna. A classe não é um grupo inteiro, não tem unidade de ação, embora pos­ sam nela aparecer eventualmente grupos. Jamais uma classe inteira até hoje se transformou em um único grupo, nem mesmo nas revoluções. A classe ope­ rária nunca poderia se exprimir como sujeito de uma ação política coletiva, em sua totalidade, porque nela permanecem zonas seriais, indivíduos alienados, etc. Portanto, “pertencer a uma classe” não significa partilhar de uma práxis comum. Lembramos que o “Ser-de-classe” nasce sob a observação de um ter­ ceiro excluído: a classe opressora é o terceiro excluído que, com o seu olhar, produz a classe oprimida, e vice-versa. Um operário sente-se “integrado em uma classe” porque é unificado a outros, de fora, pelo patrão: assim, o operá­ rio interioriza esse ponto-de-vista unificador que lançam sobre ele e vive tal condição social, assume os modos de ser e pensar do meio onde nasceu. Podese dizer que, sob certo ângulo, o operário está em uma classe na medida em que a classe “está nele”. 256

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    Mas, evidentemente, o “Ser-de-classe” não se reduz a essa experiência psicológica. Pertencer a uma classe não é o mesmo que ser judeu, por exem­ plo. E certo que tanto o operário quanto o judeu se vêem como tal porque os burgueses e os não-judeus assim os designam: nesse sentido, “ser operário” ou “ser judeu” resulta igualmente do olhar do terceiro excluído. Mas, enquan­ to o “ser judeu” depende somente dessa unificação realizada pelo terceiro (já que os judeus não repartem uma situação material comum), o “Ser-de-classe” é mais do que isso: é também uma realidade objetiva (campo comum de traba­ lho, condições similares de subsistência, etc.). Contudo, nem a igualdade ma­ terial pode unificar os integrantes de uma classe em uma práxis comum. Vista de fora, a única “unidade” que uma classe inteira pode aparentar é a de uma “coleção de homens iguais” (por exemplo: a classe dos explorados), e nem isso é correto, pois os homens não são iguais (se Pedro é operário, nem todo operário é Pedro; um operário jamais possui todas as características que atri­ buímos aos “operários em geral”). A classe mostra-se, portanto, como um resumo do conjunto social: nela encontramos as já citadas relações e influências mútuas entre a série e os gru­ pos eventuais. Há divisões (nunca unidade) em cada classe: série contra gru­ po, grupo A contra grupo B, uns e outros convivendo como estranhos, em conflito, sem união possível. Na classe burguesa formam-se grupos econô­ micos ou políticos, organizações jurídicas, culturais, mercantis, etc., mas cada um desses grupos vive apartado da série, ou separado dos demais grupos. A classe burguesa só não abriga o grupo revolucionário porque almeja preservar as coisas como estão. Já na classe operária constituem-se os grupos-em-fusão, que negam o Pràtico-Inerte, e grupos institucionais (como o Partido Comunis­ ta e os sindicatos). Cabe aqui sublinhar que nem o grupo-em-fusão nem o Partido Comunis­ ta ou os sindicatos conferem à classe operária o status de práxis comum de grupo. O grupo-em-fusão é apenas uma parcela da classe que se rebela, pois continua havendo a série restante e podem surgir à parte outros grupos-emfusão. O Partido Comunista e o sindicato operário - exemplos de grupo insti­ tucional formado por uma elite, ameaçado de petrificação e burocracia - pre­ tendem unificar a classe proletária, mas, como todo grupo soberano que maOs marxistas em geral esquecem que cada classe é uma combinação de série e grupos, não percebem as relações entre elas que existem em uma classe. Dessa forma, por exemplo, acham que a classe operária é um “todo unificado”: ou é, toda ela, grupo-em-fusão (lutando em bioco contra a exploração), ou, toda ela, série (permanecendo passiva e impotente). 257

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    nipula a série, acham-se apartados da classe mesma: os operários mantêm-se dispersos (mesmo discordando dos chefes, o operário não pode protestar, de­ vido à impotência serial). Sendo a organização política da classe operáriá, o Partido Comunista é necessário na medida em que pode suscitar o apareci­ mento de grupos-em-fusão e facilitar a comunicação entre os membros medi­ adores do grupo, impedindo que fiquem isolados e recaiam na serialidade completa. Mas, assim como o sindicato, o Partido Comunista sofre de uma contradição interna: ele nasce para libertar a classe operária da série e, no en­ tanto, é, ele mesmo, um grupo institucional, ou seja, um grupo tendendo à esclerose e à serialidade. O Partido Comunista, por isso, está sempre atrasado com relação ao grupo-em-fusão, que é pura práxis espontânea, sem estruturas inertes, e assim, muitas vezes, para se proteger, costuma se voltar contra os próprios grupos-em-fusão - ou seja, assume a mesma postura do grupo sobe­ rano frente à coletividade serial. Como vimos, por outro lado, embora a classe não possua uma práxis comum, ela adquire condição de unidade de exterioridade quando em con­ fronto com outra classe - do mesmo modo como uma coletividade serial re­ cebe a sua unidade de exterioridade dada pelo terceiro excluído (um grupo inimigo). A classe, com um “todo”, só existe enquanto unificada de fora por outra classe. Por exemplo: um grupo-em-fusão surgido na classe operária ocupa uma fábrica; a classe dos patrões encara os ocupantes como “um poder uno e soberano”, unificando em um único “todo” tanto os militantes armados quanto os demais operários não-agrupados que se conservam em série; para os patrões, é “a classe operária inteira” que ocupou a fábrica. Assim, a classe operária vencedora encontra a sua unidade na designação conferida pelos vencidos. A unidade de uma classe existe apenas na medida em que ela se põe contra outra classe. Nesse sentido, burguesia e proletariado só podem adquirir unidade de classe enquanto se colocam um contra o outro (a luta de classes). b) A práxis da luta de classes A compreensão da luta de classes não pode se restringir à hipótese ma­ terialista ou à teoria idealista, ambas produto da razão analítica, que vê a soci­ edade como uma estrutura petrificada. Por um lado, o materialismo de Engels Sartre diz que o problema do Partido Comunista e dos sindicatos é o de todo grupo institucio­ nal ameaçado de recair na série: como lutar contra a sua petrificação crescente e manter-se como mediador ativo entre os operarios, em vistas a uma unificação de práxis. 258

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    põe toda a ênfase nos fatores objetivos: a luta de classes seria decorrente das contradições econômicas do capitalismo (as estruturas de produção, a divisão de trabalho, etc.). Por outro lado, a tese idealista, ao contrário, apega-se uni­ camente à subjetividade humana (a intenção de cada integrante de uma classe de explorar ou não ser explorado). Essa segunda hipótese não leva em conta as contradições materiais (como a escassez) que engendram o conflito de classes. E a teoria de Engels não considera a intervenção humana: a luta de classes surge como um determinismo mecânico, uma espécie de processo físi­ co-químico, regido por condições objetivas concretas que comandam a ativi­ dade dos homens, reduzidos ao estado de meras moléculas passivas/ Para a plena inteligibilidade da luta de classes, a razão dialética exige tanto o aspecto objetivo quanto o subjetivo. Os fatos materiais são inegáveis: o processo da economia capitalista gera desigualdades sociais e por isso a produção não satisfaz a necessidade de todos (alguns dispõem de muito, outros de nada). Mas isso, já sabemos, não pode “estimular” a ação humana: os simples fatores econômicos não conduziriam um operário à revolta. E preciso que haja também o projeto: as condi­ ções materiais dadas são interiorizadas pelo indivíduo e exteriorizadas em uma ação projetiva que supera essas condições para um fim futuro a realizar (a classe dominante e os operários resignados visam a conservação dessa rea­ lidade objetiva; a classe operária pode, ao contrário, interiorizar o dado con­ creto como uma violência sofrida - “não somos homens para os patrões” - e insurgir-se). A luta de classes é uma ampliação das relações de reciprocidade negati­ va que se estabelecem entre os homens trabalhando em um campo material marcado pela escassez. Cada indivíduo toma consciência de uma realidade exterior - a escassez - e vê seus semelhantes como inimigos aptos a consumir o que ele necessita, sendo visto do mesmo modo pelos outros. Todos reco­ nhecem, portanto, a liberdade dos outros. Por isso, é preciso encadear essa li­ berdade, negar essa ação ameaçadora dos outros, impondo o primado da vio­ lência. Em toda Ehstória, até hoje, o homem é violento contra seu irmão, na Para Engels, o proletariado reinará um dia sobre a Terra apenas porque crises econômicas se­ guidas se encarregarão, por si mesmas, de arruinar o capitalismo. Há fatores que impedem ou retardam a revolução na classe operária, além da já citada aliena­ ção: vivendo na impotência, o trabalhador contenta-se com reformas superficiais e mudanças provisórias, pois a realidade lhe aparece como algo que não pode ser diferente do que é, como se ele fosse um eterno oprimido que “merece” essa opressão. 259

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    medida em que este tem a permanente possibilidade de se tornar um estranho que pode colocar em risco a sua sobrevivência. Assim, a luta de classes é um combate da liberdade contra a liberdade: implica o reconhecimento, por parte dos integrantes de uma classe, da livre práxis dos outros. Trata-se de uma relação de práxis que vivem em mútua de­ pendência: a ação de uma classe é uma reação à práxis da classe adversa, e vice-versa. A ação de cada classe é suscitada pela ação da outra. Por exemplo: uma classe agressora produz a práxis da classe agredida, a qual, ao sofrer a agressão, reage (a ocupação de uma fábrica pelos operários determina a ação dos patrões: ou estes aceitam a sua derrota ou revidam por uma reorganização de forças). A luta de classes pode ser comparada a uma partida de xadrez, em que cada jogador reconhece a liberdade do adversário e procura prever a sempre imprevisível ação do outro (são claras as dificuldades, porque prevêse uma liberdade que, por sua vez, também prevê essa mesma previsão e se defende contra ela). A luta de classes é um esforço recíproco de cada práxis para superar a outra práxis. A práxis de luta de cada classe se determina na medida em que prevê a práxis da classe oponente. E compreendendo a ação do Outro que antevejo o que ele irá fazer e assim fico sabendo como devo reagir. Isso acontece com um exército, quando procura fazer com que a ação do inimigo se torne meio para seu próprio fracasso (prevê o avanço do inimigo e deixa-o avançar para cortar suas linhas de retaguarda e derrotá-lo). Para prever a ação adversária, preciso, no entanto, saber o que sou para o meu oponente, compreendendo as suas ações anteriores contra mim. Essas ações me fazem tomar consciência de meu “Ser-objetivo-para-ele”: vejo-me como o Outro me vê, como algo obje­ tivado. Por exemplo: um ataque adversário me revela certo detalhe de minha objetividade-para-ele - digamos, uma fragilidade no flanco esquerdo das mi­ nhas tropas. Diante das ações do Outro contra mim, capto-me enquanto objeto (um exército toma consciência de si enquanto armamento, equipagcm, etc.). E a partir desse “Ser-objetivo-para-o-Outro” que defino a minha própria ação. Vê-se assim que não poderia haver luta de classes se as classes, como julga a razão analítica, fossem meros estratos inertes da sociedade, fatias de uma pirâmide social, à maneira de um corte geográfico. Por mais coisificadas que sejam, as relações entre as pessoas, séries e grupos são sempre de ação prática e encerram projetos humanos (sejam relações de aliança, opressão, guer­ ra). Nenhuma luta de classes poderia haver, portanto, se as classes fossem permanentemente passivas coletividades seriais, “todos” inertes e impotentes: deve haver sempre a possibilidade de que um grupo ativo se forme na série passiva de uma classe para que se instalem as relações dialéticas já descritas entre séries e grupos e eventualmente as classes entrem em conflito., 260

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    Para não ser fatalmente derrotado, a práxis de luta exige que eu saiba de an­ temão o que sou para o inimigo, através das ações precedentes dele contra mim. Só assim as minhas ações - que alcançam o mesmo campo prático fora de mim - não irão fugir ao meu controle nem atingir resultados inversos aos pretendidos. Existe, pois, uma práxis típica da luta entre os homens, que implica re­ conhecimento de projetos, previsão de ações, interiorização de dados objeti­ vos e exteriorização por uma práxis livremente executada em um campo ma­ terial de escassez. A luta de classes não se explica unicamente por contradi­ ções econômicas. O sentido da luta de classes, como motor que movimenta a sociedade, está no fato de que as relações recíprocas entre qualquer formação social (sejam séries, grupos ou classes), longe de constituir-se em cego emba­ te de fatores objetivos, são relações de práxis, que se realizam por ajuda mú­ tua, aliança, opressão, guerra, etc. Compreendemos assim por que é dialética a luta de classes, já que se trata de uma negação de negação: explorada, a classe operária capta-se a si objetivamente, tal qual é vista pela classe burgue­ sa (“Somos sub-homens que merecem esse destino”), e descobre que o seu trabalho passivo contribui para manter o estado serial dominante; então, o proletariado reconhece a necessidade de mudar a situação, recusa radicalmen­ te o seu “Ser-para-os-burgueses” e, pela revolução, nega a sua “negação da condição humana”. c) Violência e colonialismo Na estrutura antagônica elementar da luta de classes, a ação recíproca se caracteriza por um movimento circular em que, a certa altura, o agente A é sujeito (livre práxis) e o agente B é objeto, e, em outro instante, o agente A é objeto e o agente B, sujeito. Eis aqui em que consiste a ameaça profunda do homem para o homem: ele é o Ser por causa de quem o homem pode ser re­ duzido ao estado de objeto. O “escândalo do Outro” não é, como disse Hegel, a simples existência do Outro, mas o que o Outro significa como agente de uma violência ameaçadora. A violência é a arma com a qual a liberdade neutraliza ou encadeia a li­ berdade alheia. A violência predomina em um mundo de escassez, onde as* *

    Uma ação chega a tomar-se cúmplice da ação adversária quando perde a noção do projeto do inimigo: por exemplo, um regimento perdido, pressentindo o inimigo por todos os lados, deixa de ser um grupo para ser um rebanho. Só voltará à práxis comum se receber informações sobre a localização e os fins do adversário. 261

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    relações humanas são sempre violentas: o agente individual recorre à violên­ cia para que seu semelhante não usurpe o necessário à sua sobrevivência; os homens que se unem em grupo recorrem à violência, criando o juramentoterror, precisamente a fim de manter a atividade comum fraterna; as classes dominantes recorrem à violência para oprimir a classe operária, subjugando a liberdade a ponto de não lhe deixar outro recurso salvo a obediência (não in­ teressa à classe dominante suprimir o operariado, sendo este, com seu traba­ lho, quem lhe garante sua fortuna, sua vida e sua força). Exemplo clássico de opressão sobre o proletariado ocorreu na Inglaterra do século XIX, quando, descoberto o uso do carvão como combustível e surgindo demandas urgentes dessa matéria-prima, os donos das minas procuraram aumentar as suas rendas, substituindo animais de carga por bombas a vapor e reorganizando as técnicas de extração e a mão-de-obra, sem deixar de apelar para a violência de modo a sujeitar os operários ao novo ritmo de produção. O mesmo método dialético para compreender a luta de classes (escassez, práxis, violência) pode ser aplicado ao colonialismo, que é a utilização, em um país estrangeiro, da mesma violência com que a classe burguesa trata o proletariado. A luta colonial não é efeito de um processo econômico ou soci­ al, nem resultado do encontro de uma civilização desenvolvida com outra atrasada. O colonialismo foi construído por homens vivos, que executaram um projeto de oprimir o colonizado, e foi aceito por outros homens vivos, que se submeteram ao mando do colonizador. Tanto se trata de uma práxis que, para não se perder, a ação colonizadora deve ser reafirmada pelas gerações que se sucedem (os filhos devem continuar a conduta dos pais exploradores). A razão analítica omite o essencial no estudo da colonização: o projeto de explorar, por parte do colonizador. O colonialismo não é resultado de um processo mecânico ou determinista (seja ele econômico ou social), assim como a exploração da classe operária pela classe burguesa também não o é. Esse resultado, afinal, só perdura enquanto perdura aquilo que o sustenta: a práxis do colonizador e da classe exploradora. **

    Sartre não considera violência a reação da classe operária ou do povo colonizado, mas sim uma “contra-violência”, porque só há violência da parte dominante e do colonizador, que visam a opressão da liberdade, ao passo que a reação do proletariado e do colonizado quer, pelo con­ trário, restaurar a liberdade. Nesse ponto, Sartre discorda radicalmente de Marx. Em Miséria da Filosofia, Marx negava que, individualmente, do ângulo subjetivo, capitalistas e exploradores sejam necessariamente maus, pois podem tratar-se de pessoas virtuosas e de bom caráter. Procurando mostrar que não 262

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    0 sentido da História Para Sartre, encarar a luta de classes como o modo de desenvolvimento da História humana é um ponto-de-vista que deve ser adotado para que pos­ samos conferir um sentido mesmo à História, uma vez que esta, não sendo mero caos, também não apresenta uma continuidade temporal orientada. Essa continuidade só seria possível se o curso da humanidade fosse uma única e mesma temporalização, tal como a vida temporal de um único homem, pas­ sando por diversas fases de crescimento. Mas não existe tal super-organismo temporal: o que há é uma sequência de gerações e uma multiplicidade infinita de temporalizações distintas (até mesmo na história de um único grupo). Pelo exposto, resta destacar que, se a luta de classes é que dá sentido à História, isso deve ser entendido rigorosamente segundo um postulado fundamental: a única base concreta da dialética histórica é a estrutura dialética da ação in­ dividual. Não se entenderá o que possa ser a História se não a captarmos enquan­ to produto da práxis humana, atividade projetiva, totalização-em-curso. En­ contramos aí as relações entre séries e grupos e a luta de classes, ou seja, uma turbulência, uma densidade, uma riqueza transbordante de práxis de homens que se agitam no interior de determinados momentos históricos ou situações se pode transformai' o mundo pelos argumentos da moral, Marx afirma que o sentido da classe opressora deve ser detectado no aspecto objetivo, na sua função social. Sartre, ao contrário, atri­ bui a desumanidade do regime capitalista e do colonialismo ao projeto subjetivo do explorador. Ainda sobre a luta de classes, acrescente-se que, embora reconhecendo, como vimos, que o êxtero-condicionamento nas sociedades de consumo vem alienando sempre mais a classe operá­ ria, exigindo lento trabalho de conscientização das massas, Sartre discorda do filósofo Herbert Marcuse (1898-1979), para quem o proletariado, impotente, já não pode fazer uma revolução e que as forças revolucionárias só podem surgir nas camadas marginais da sociedade (os estudan­ tes, as minorias sociais e raciais, os desempregados). Ora, diz Sartre, para haver chance de uma revolução, é preciso ser-se capaz de opor ao poder estabelecido um contra-poder. E, diante do aparelho repressor das classes dominantes, do governo, das forças armadas, o único contra­ poder possível é justamente o dos trabalhadores. A arma do trabalhador (a única, mas uma arma absoluta) é a recusa de entregar a sua produção à sociedade. Todo o sistema, assim, pára de funcionar. Mas essa ruptura só pode ocorrer se o trabalhador entra na luta. “Dizer que a classe operária, a única classe produtora, é suprimida como força revolucionária nas sociedades de consumo, é dizer que não haverá jamais revolução nessas sociedades”. 263

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    sociais. A História é assim uma imensa totalização-em-curso, mas uma totalização sem totalizador, porque, repetimos, não é movida por um único homem ou um único grupo de agentes práticos, não é resultado de um projeto singu­ lar, de uma práxis individual. Em dado momento da temporalização histórica, temos, sim, uma multiplicidade de práxis humanas produzindo uma totaliza­ ção-em-curso, mas essa totalização é apenas parcial, própria de um período específico. No entanto, esses momentos de totalização parcial se interligam e se articulam a outros, de tal modo que se orientam e se fundem em uma tota­ lização histórica contínua, a qual não possui autonomia própria, como se fosse um super-organismo temporal (isso seria o mesmo que conceber uma História produzida por um agente totalizador divino). E o próprio homem que cria essa continuidade histórica, essa totalização sem totalizador, através de sua práxis constituinte. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, segundo uma ótica estruturalista , considera, ao contrário, “ilusório conceber o desenvolvimento histórico como um desenrolar contínuo” e afirma inclusive que a História não está de modo algum vinculada à práxis humana. Lévi-Strauss, negando Sartre, afirma que há apenas uma série de períodos históricos estanques, um conjunto descontí­ nuo formado por “domínios históricos”, cada qual com o seu código e a sua freqüência particulares e isoladas, e que é impossível existir qualquer Iiame unificando em um movimento dialético comum esses múltiplos e sucessivos “domínios”. Sartre reconhece, como Lévi-Strauss, que há “momentos” na História, com as suas características específicas e singulares, mas vai além: cada um desses momentos é, repetimos, totalização parcial de uma totalização contí­ nua. A História não é uma sucessão de imobilidades, mas um fluir continua­ do, fruto da práxis humana: existe a passagem de um momento a outro, existe uma evolução histórica movimentada pela multiplicidade de projetos huma­ nos. Por mais imóvel e isolado que pareça um “momento de totalização par­ cial” - por exemplo, a fase de petrificação de um grupo institucional, a per­ manência da alienação e passividade em uma série manipulada por um sobe­ rano -, mesmo a situação histórica mais mumificada e incapaz de evoluir pro­ voca efeitos fora de si, entra em relação dialética com o restante do conjunto social, suscita um avanço, um partir em certa direção. Assim, a História ultra­ passa a simples “sucessão de domínios estanques”, a série de “momentos” já Ver anexo final. 264

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    constituídos, para existir enquanto atividade em progressão, orientada pelas práxis humanas. Mesmo truncada, caótica, aos saltos, a continuidade histórica pode ser compreendida, desde que não nos atenhamos ao “já dado”, aos “domínios estanques”, e sim à práxis constituinte dos homens, que confere à História um sentido projetivo, orientado pelo futuro, não importa que a mul­ tiplicidade de projetos resulte em contra-finalidades, realidades históricas im­ previstas e indesejáveis.

    A oposição entre a teoria de Sartre e seus críticos será melhor apreciada ao abordarmos o estruturalismo - inclusive no que toca à inteligibilidade da História. 265

    Capítulo 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    “Um homem nada é se não for um contestador”, escreveu Sartre. Mes­ mo em uma leitura condensada e superficial do sistema sartriano, como esta, percebe-se a fidelidade do filósofo a esse princípio: sua recusa às chamadas verdades sagradas” dos mestres pensadores e à poeira dos conceitos esclerosados, seu questionamento das bases teóricas da ontologia, da psicologia e do marxismo, em nome de uma metodologia que buscasse, sobretudo, uma in­ vestigação e um entendimento novos da realidade humana engajada no mun­ do concreto. A grosso modo, desponta neste resumo a preocupação de Sartre em dis­ cutir e contestar doutrinas que considerem as questões humanas de pontos-devista analíticos e exteriores e contemplem o homem enquanto objeto, molécu­ la passiva, algo já feito, autômato mecanicamente comandado pela subjetivi­ dade (inconsciente, caráter hereditário, educação) ou pela objetividade (meio social, dialética cósmica), simples organismo fisiológico ou máquina orgânica placidamente montada para funcionar, pura matéria físico-química, Ser obje­ tivo condicionado pelo passado, etc. Dentro dessa visão determinista da reali­ dade humana (encarada como resultado de um mecanismo de causa e efeito), Sartre enquadra as teorias psicológicas e a psicanálise freudiana (que não atentam ao futuro, o momento ativo do “fazer”, do “constituir”, reduzindo o homem a um inerte produto constituído por fatores constituintes do passado), o marxismo analítico (que capta a História humana como povoada por ho266

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    mens-robôs, dominados por categorias objetivas onipotentes e passadas e poi uma dialética celestial a que o homem se submete cegamente), sem contar a sociologia, a antropologia e o moderno método estruturalista. As ciências humanas, em suma, mantêm-se ao nível da razão analítica: tratam o homem da mesma forma como as ciências naturais (física, matemáti­ ca, biologia) costumam enfocar os objetos da realidade exterior. O experimen­ tador situa-se fora do sistema experimental, como se ele próprio não perten­ cesse à realidade humana estudada. Assim, o homem é investigado como um micróbio ao microscópio, apreciado à distância, por um suposto “observador à parte”, situado em exterioridade. A razão analítica, desse modo, limita-se a deparar com objetos em repouso, totalidades já constituídas, submetidas às leis da inércia e do determinismo (ou seja, as mesmas que regem a natureza inorgânica). E, além disso, isola e imobiliza os elementos da realidade huma­ na, sem estabelecer entre elas relações e unificações. A crítica de Sartre se dirige a esse “erro grosseiro” que consiste em abordar o sujeito humano enquanto objeto, pelas vias do pensamento analíti­ co. Em tratados de psicologia ou em teses sociológicas, o autor parece falar de realidades sem vida, criaturas mortas, existências estáticas. Generalizando, podemos reunir as ciências humanas analíticas sob uma qualificação comum: o positivismo, vertente filosófica que se baseia estritamente na verificação experimental dos fatos objetivos e se nega a aceitar qualquer critério de ver­ dade além dos métodos científicos de observação empírica, considerando toda investigação ontològica não mais do que uma “metafísica” destituída de sen­ tido ou utilidade.* Nada do que Sartre escreveu e nada do que foi resumido nesta exposição pode ser admitido por um pensamento positivista - embora a ontologia de Sartre (nem idealista nem materialista, sempre atenta ao duo subjetividade-objetividade) de modo algum possa ser confundida com uma “metafísica abstrata” que o próprio Sartre rebatia. * O positivismo, fundado por Auguste Comte (1798-1857), na França, e John Stuart Mill (18061873), na Inglaterra, obteve no século passado vasta influência nos países de menor tradição cultural, expandindo-se na América do Sul e, sobretudo, no Brasil. Na década de 30, um grupo de lógicos alemães (o Círculo de Viena) criou o neo-positivismo (ou positivismo lógico), com base na lógica matemática de Bertrand Russell ( 1872-1970) e na física de Albert Einstein (18791955). Durante o nazismo, os membros do Círculo de Viena se exilaram nos Estados Unidos, di­ fundindo as suas teorias em um meio já dominado pelo pragmatismo e o behaviorismo e, assim, propenso a acatá-las. 1

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    Contra o positivismo da filosofía e das ciências, Sartre opôs um postula­ do categórico: a liberdade humana (Para-Si), a livre práxis individual, a ativi­ dade projetiva do homem, em contraste com a inércia, a rigidez mecânica do mundo inorgânico ou da realidade objetiva (Em-Si). Para Sartre, a razão analítica ou positivista peca por insuficiência: ela não apreende toda a reali­ dade, mas apenas parte dela (isto é, o já dado, o já constituído). A filosofia sartriana não nega a “verdade mutilada” do pensamento analítico: sem dúvida, o passado, as condições materiais da vida, a situação concreta onde o indiví­ duo nasce, os dados sociais e históricos, tudo isso exerce o seu papel na constituição da pessoa (foi o que vimos, por exemplo, ao tratar do PràticoInerte). Nesse sentido, realmente, pode-se afirmar, com a razão analítica, que as estruturas objetivas fazem o homem. Mas isso não é tudo, nem mesmo o principal. E, no entanto, a razão analítica ou positivista estaciona aí: coleta, acumula e classifica as informações sobre o homem, obtendo, no fim, o co­ nhecimento de uma realidade estática, a percepção de superfícies inertes. Adota-se um ponto-de-vista de pura exterioridade: o investigador se põe fora do sistema a que também pertence e observa o “objeto-homem” no espaço exterior. Assim, o positivismo filosófico e científico tende a “retalhar” o co­ nhecimento da realidade humana em estratos passivos e não dá conta de uma inteligibilidade global dessa realidade, não apreende o movimento projetivo da atividade humana, não revela a dinâmica social (onde o homem aparece agindo e vivo), não é capaz de acompanhar a práxis nem o desenrolar históri­ co enquanto transformação em curso. A razão analítica é insuficiente para captar o real em seu desenvolvimento ou fornecer um entendimento da efer­ vescência humana que o anima. Sartre ultrapassa essa “ciência do estático”, porque a realidade humana sempre supera esse estágio de “ser constituída por...”. Por mais poderosa que seja a pressão do meio exterior sobre um indivíduo, por maiores que sejam a impotência, a alienação, a alteridade que o paralisam, por mais constrangido que esteja a viver dentro de rígidas limitações, o homem se conserva como li­ berdade e projeto, como “superação da realidade dada”, indo sempre para além de tudo o que o condiciona. E certo que as circunstâncias materiais sem268

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    pre decidem o campo de seus possíveis - mas, por ínfimos que sejam esses possíveis, o homem é livre para escolher uma saída e realizar um possível, ostentando perpetuamente, mesmo nas situações mais difíceis e desfavoráveis, seu poder de modificar o seu campo de ação. No mundo Pràtico-Inerte, por exemplo, o indivíduo pode se resignar ao cárcere ou, caso sinta a sua aliena­ ção e miséria como “intoleráveis”, pode formar um grupo para tentar escapar ao destino que lhe impuseram. Se a sociedade capitalista veda às suas vítimas certos possíveis (um operário não tem chances de seguir, digamos, a carreira médica, cujo custo é elevado), é sempre possível a uma livre práxis enfrentar todos os impedimentos (o operário pode entrar para um sindicato, tomar uma ação de grupo para tentar alterar a situação). Não importa o êxito ou o fracas­ so da empresa, porque, como sabemos, a verdadeira liberdade é a de escolha, não a de obtenção. Indo além da “fase estática” do pensamento positivista, onde o homem surge apenas enquanto inércia, Sartre mostra que a realidade humana é uma liberdade em situação: cada indivíduo, através da escolha original e de seus projetos, é o único responsável pelo que faz de si, a partir do que foi feito dele. Mostra mesmo a impossibilidade, para o homem, de possuir a opacidade inerte de uma coisa objetiva - ainda que as ciências humanas analíticas quei­ ram que ele assim seja (prova, aliás, de que somos livres até para observar os homens dessa maneira, afirmando que “não somos livres”, estamos “condicionados mecanicamente” ou somos “organismos fisiológicos”) e mesmo que o homem viva a cobiçar o estado definitivo do Em-Si-Para-Si, acreditando-se portador de uma essência imutável. Essa impossibilidade onto­ lògica (a fusão da consciência com o Ser significaria o desaparecimento da realidade humana) torna patente que o homem só não é livre para não ser li­ vre. Do nascimento à morte, sua existência é projeto, “partir rumo a...”. O homem é um Ser inacabado, “por se fazer” - ou seja, sempre liberdade, ativi­ dade projetiva, práxis constituinte. A evolução da nossa vida resulta do traba­ lho que executamos em nós próprios. Nossas relações com os outros e com a matéria circundante são práticas, atividade de ponta a ponta - e jamais passi­ vidade mecânica, determinada por leis exteriores. As teses ontológicas de O Sartie lembra a história de um tripulante negro de uma base aérea de Londres, impedido pelo regulamento de tornar-se piloto, devido à cor da pele (ou seja: uma realidade objetiva - o racis­ mo legalizado - limitou os seus possíveis). Esse homem podería ter-se conformado, ou ficar res­ sentido, ou escrever um livro, etc. No entanto, ele superou a situação com sua práxis livre, a seu modo: roubou um avião e atravessou a Mancha, vindo a sofrer um acidente fatal na França. 269

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    Ser e o Nada encontram correspondência nas páginas da Crítica da Razão Dialética, em que Sartre demonstra de que modo os homens lutam entre si ou conjugam esforços segundo a liberdade de sua práxis, nunca por causa de es­ tímulos sociais ou econômicos auto-controlados por forças demiúrgicas. Tudo o que se passa na atividade humana encontra sua explicação na própria ativi­ dade humana. Há, portanto, um “momento analítico” - aquele em que a vida de uma pessoa é uma inércia determinada pela realidade objetiva. E há uma recupera­ ção dessa fase passiva pelo processo dialético: o homem, enquanto “Ser constituinte”, ultrapassa o seu “Ser constituído” pelo projeto subjetivo e a li­ vre práxis. Assim, a definição a ser dada à liberdade é a que considera simul­ taneamente esses dois aspectos: o momento analítico do “ser feito” e o pro­ cesso dialético do “fazer-se”. O importante não está em saber o que as estru­ turas ou a situação fazem de nós, mas sim em saber o que fazemos daquilo de que somos feitos. “A idéia que nunca cessei de desenvolver - disse Sartre - é a de que, afinal de contas, cada um é sempre responsável por aquilo que se fez dele, mesmo que não possa fazer mais do que assumir essa responsabili­ dade. Creio que um homem pode sempre fazer alguma coisa daquilo que fize­ ram dele. E a definição que daria hoje à liberdade: esse pequeno movimento que faz de um Ser social totalmente condicionado uma pessoa que não restau­ ra a totalidade daquilo que ela recebeu de seu condicionamento; o que faz de Jean Genet um poeta, por exemplo, quando ele foi rigorosamente condiciona­ do para ser um ladrão”. Se nos expressamos bem, ao longo de todo o pensamento de Sartre per­ passa a tese de que a realidade humana é sustentada por uma violenta e perpé­ tua tensão entre a atividade e a passividade. A existência do homem constitui um encarniçado embate travado pela práxis livre contra as forças de inércia que a cercam por todos os lados: o Para-Si temporaliza-se para fugir do Em-Si que ameaça petrificá-lo; nessa temporalização, o homem se situa, a cada mo­ mento, em relação ao seu passado já totalizado e ao seu futuro em curso de totalização; em sua atividade projetiva, o indivíduo se arremessa para seus possíveis sociais, a partir de uma situação de inércia pegajosa (o meio PràticoInerte), etc. Em nenhum instante de sua vida o homem derrota a inércia, mas Não esquecer aqui de outra constante na ontologia sartriana: o ideal malogrado do Em-SiPara-Si, projeto fundamental da realidade humana que se manifesta tanto no indivíduo como na práxis de grupo - a aparentemente contraditória busca eterna da estabilidade do Ser maciço e em 270

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    precisa ultrapassá-la sem tréguas. Assim, nunca o homem é pura atividade, porque a inércia está sempre presente, como certa estrutura mesma da própi ia ação: ao interiorizar as forças objetivas e exteriorizá-las em ações práticas com as quais projeta superar a situação que o condiciona e coagula sua liber dade, o indivíduo ultrapassa o inerte, mas não o suprime, porque de algum modo continua sendo “o que foi feito dele”. Sartre pode dizer assim que “o homem é uma inércia ultrapassada, mas conservada”. Em O Idiota da Famí­ lia, escreve que “Flaubert se faz, na mesma medida em que é feito pela situa­ ção e pelos acontecimentos”. Nem poderia ser diferente: como vimos, todo projeto (atividade) exige a permanência do passado (inércia), pois tudo o que muda, muda em relação a algo que se conserva o mesmo. Se ficarmos na razão analítica, prelúdio da razão dialética, conhecere­ mos do homem apenas o que ele conserva de inércia. A razão dialética é o prolongamento da razão analítica: descobre a práxis humana, a dimensão temporal, o projeto, a historicidade, tudo isso que o momento analítico supri­ me. Mas só podemos encontrar a dialética onde ela se acha: no interior do objeto considerado (o homem, a História humana). Sartre é incisivo ao afir­ mar que “a dialética só se revela a um observador situado em interioridade”. Por isso, a razão dialética significa a passagem para a interioridade da exterioridade da razão analítica, precário instrumento para a compreensão daquilo (a realidade humana) que não se encontra fora de nós, mas é vivido por nós, dialeticamente.

    A liberdade encerra inúmeros problemas. Sobretudo, devemos nos per­ guntar que uso devemos fazer de nossa “assombrosa liberdade”: assim como “toda consciência é consciência de alguma coisa”, toda liberdade de escolha é “escolha de alguma coisa”. Sartre se coloca em defesa do engajamento: de­ vemos nos entregar à ação prática para alargar o horizonte de possíveis de cada homem livre, “libertando a liberdade”, por assim dizer. Todos os problemas surgem porque o homem existe com outros ho­ mens, e esse é o seu “inferno”: minha liberdade é afrontada por outras liberrepouso, totalidade acabada, pura passividade e estabilidade, mas agora também dotado de consciência, práxis livre, pura atividade. 271

    P aulo P erdigão dades; minha consciência se projeta necessariamente como práxis em trm mundo de múltiplos indivíduos que “roubam” o sentido do meu ato, confis­ cando a minha liberdade e dando a essa liberdade a rigidez da coisa objetiva; o Outro ameaça a minha sobrevivência em um campo de escassez, e, no en­ tanto, dele necessito para me salvar (a ação comum contra o Pràtico-Inerte), assim como dele dependo para conhecer tudo a meu próprio respeito; as li­ berdades que se escravizam precisam, afinal, umas das outras - e assim por diante. É um círculo fechado, sem saídas. “O mundo parece feio, mau, e sem esperança”, chegou a lamentar Sartre em sua última entrevista, dizendo-se tentado a concluir, como um velho que já morreu por dentro, que “fazemos pequenas revoluções, mas não há um fim humano, não existe algo que inte­ resse ao homem, só há desordem (...) nesse conjunto miserável que é o nosso planeta”. Mas “a idéia de que não acabaremos jamais com isso” (o PràticoInerte, a exploração do homem pelo homem) é um niilismo que Sartre nunca admitiu. Muitos dos nossos problemas podem ser resolvidos: frente ao olhar dos infelizes e sub-humanizados tomamos consciência das injustiças sociais e buscamos realizar a humanidade de todos. Colocando-se ao lado das vítimas, Sartre reconhece que o marxismo é o apogeu da luta milenar da humanidade para descobrir as causas profundas das condições sociais negativas em que sempre viveu. Marx desgarrou-se de con­ ceitos abstratos (egoísmo, pecado original, etc.) e mostrou que o Mal não re­ side em uma suposta “essência humana corrompida”, mas que aparece no mundo pela ação dos próprios homens, que se fizeram anti-homens. Esse es­ tágio é, assim, perfeitamente superável. A evolução da História para um co­ munismo não-utópico seria a supressão da estrutura molecular do PràticoInerte e a instauração de uma socialidade na qual a única relação entre todos os homens fosse a fraternidade. Uma etapa mais alta da evolução humana, porque nela o homem reencontra o homem, e, nessa relação de reciprocidade positiva, todos se reconhecem como iguais e irmãos. Tal como Marx, Sartre

    Em uma conferência de 1972, Sartre admite uma contradição em sua vida: “Escrevo livros para a burguesia e me sinto solidário com os trabalhadores que querem derrubá-la”. Diz que “ainda que eu sempre tenha contestado a burguesia, meus livros se endereçam a ela”. Mas afir­ ma que se contesta como intelectual clássico e elitista, rejeitando a sua situação burguesa: “Dedico à burguesia um ódio que só terminará com a minha morte”. Enquanto ativista político, encontra-se “no meio de homens que lutam contra a ditadura burguesa”. Na frase final de As palavras, ele se define como “indivíduo comum”: “Todo um homem, feito de todos os homens, que os vale todos, e para quem vale não importa quem”. 272

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    vê na revolução “a supressão da sociedade presente e sua substituição por ou tra, mais justa, em que os homens poderão ter boas relações com os outros, um corpo social que seja humano e satisfatório para os homens - ou seja, uma sociedade onde as relações entre os homens serão morais”. Em entrevista de 1975, ao completar 70 anos, declarou: “Para mim, o que vicia as relações entre as pessoas é que cada um conserva, na relação com o outro, alguma coisa de oculto, de secreto. Penso que a transparência deve substituir sempre o segredo, e penso muito no dia em que dois homens não te­ rão mais segredos entre si, porque eles não mais os terão para ninguém, por­ que a vida subjetiva, assim como a vida objetiva, estará toda aberta, dada. É preciso que um homem exista sem restrições para o seu vizinho, que deve igualmente existir sem restrições para ele, para que se estabeleça uma verda­ deira harmonia social. Isso não é possível hoje, mas penso que o será quando as transformações das relações econômicas, culturais e afetivas entre os ho­ mens forem completadas. Haverá ainda, sem dúvida, antagonismos novos, que ninguém pode prever, mas que não constituirão obstáculo para uma for­ ma de sociabilidade em que cada um se dará inteiramente ao outro, que tam­ bém se dará totalmente”.

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    Anexo SARTRE E O ESTRUTURALISMO

    Conforme o exposto no texto de abertura, a filosofia de Sartre foi muito contestada a partir de 1960, quando da aparição da Critica da Razão Dialética, que coincidiu com a ascensão de uma “nova onda”, o estruturalismo. Os princi­ pais representantes dessa corrente na França (Claude Lévi-Strauss, Jacques La­ can, Michel Foucault, Louis Althusser, Roland Barthes, Jacques Derrida) não haviam esquecido Sartre: ao contrário, como diz Christian Delacampagne, os estruturalistas, abertamente, ou de maneira implícita, “construíram os seus edi­ ficios teóricos colocando-se, em grande parte, contra a filosofía sartriana”. Cabe, portanto, em conclusão a nosso estudo, esclarecer os pontos prin­ cipais desse movimento e examinar a posição do pròprio Sartre frente ao es­ truturalismo.

    A posição do estruturalism o O pensamento estruturalista estende-se por vários setores do saber con­ temporâneo (filosofia, antropologia, psicologia, lingüística, sociologia, etc.) e, Além de passagens da Critica e de O Idiota da Família, o leitor encontrará referências e críti­ cas de Sartre ao estruturalismo nas seguintes entrevistas do filòsofo: - Entrevista a “Revue d’Esthétique (julho/dezembro de 1965), por Pierre Verstiaeten. - Entrevista aos “Cahiers de Philosophie”, n° 2 (fevereiro de 1966). - Entrevista à revista “L’Arc”, n 30 (outubro de 1966), por Bernard Pingaud.

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    essencialmente, pode ser resumido na seguinte declaração de Michel Foucault (1926-1984): “Em todas as épocas, a maneira como as pessoas pensam, es­ crevem, julgam, falam, e mesmo como experimentam as coisas, como a sua sensibilidade reage, todo o seu comportamento, é dirigido por uma estrutura teórica, um sistema que muda com as épocas e as sociedades”. Mais ainda, diz Foucault: antes de toda existência e todo pensamento humanos há já um saber, um sistema anônimo, um algo indeterminado, sem sujeito e sem identi­ dade. Segundo Foucault, o estruturalismo quis “tornar inútil a própria idéia do homem”, e acrescenta: “Nossa tarefa é nos libertarmos definitivamente do hu­ manismo”, porque, para ele, é ilusão supor que as paixões humanas e as relações do homem com o homem e o mundo constituem a realidade concreta. Se Foucault afirma que “o homem está morto”, uma vez que só existem as estruturas (sociais, ideológicas, políticas, econômicas) que o comandam, Louis Althusser (1918-1990) parece contestar diretamente o marxismo de Sartre quando escreve que “a História é um processo sem sujeito”. Ou seja: não são as práxis humanas que fazem a História humana. Assim, para esses pensadores, são as estruturas secretas que regem a nossa vida, e não são os indivíduos, por si mesmos, que agem, pensam, vivem de determinada manei­ ra, falam isso ou aquilo, etc. Existe, nessa perspectiva, um horizonte estrutural, um sistema que condiciona inteiramente o homem sem que ele se dê conta dis­ so. As estruturas se revelam através da atividade humana: um indivíduo não age, não pensa, não fala, mas é agido, é pensado, é falado pelas estruturas. Antece­ dendo cada homem, colocando-se atrás dele, as estruturas o controlam e fazemno seguir leis que esse homem não inventou e não pode modificar. Em comum, os estruturalistas denotam especial apreço pela lingüística moderna, criada pelo suíço Ferdinand de Saussurre (1857-1913), que enfatiza o estudo da semiologia (ou semiótica), ciência dos signos utilizados na lin­ guagem. Essa ênfase nas “estruturas da linguagem” se deve - sobretudo no Por estrutura se entende um conjunto de elementos combinados de tal maneira que não têm um sentido isolado, mas se inter-relacionam intimamente, se organizam em um todo, de modo que qualquer modificação em um deles encerra a modificação em todos os demais. Esse concei­ to, embora sugira semelhanças com a dialética, dela difere, como veremos. Para os estruturalistas, o signo linguístico é formado por duas partes: (1) Significado - o conteúdo da palavra, o objeto designado por ela, sua representação mental, a idéia que se tem na mente sobre o sentido da palavra (é, pois, a parte escondida do signo, algo imaterial, nem visível nem audível); (2) Significante - a forma da palavra, sua expressão sonora ou escrita (portanto, a parte perceptível do signo, sua materialização, algo visível ou audível). Quando o significado ultrapassa o significante (isso é muito comum na atividade literária, em que o conteúdo é mais 275

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    campo filosófico - à aceitação por parte dos estruturalistas quanto à posição assumida por Heidegger em suas últimas obras. Tendo modificado substanci­ almente as investigações iniciadas em Ser e Tempo sobre o sentido do Ser, Heidegger voltou-se cada vez mais para a conclusão de que o Ser se revela através da linguagem. Em Sobre o Humanismo (1946), diz que “o homem não é apenas um ser vivo que, entre outras faculdades, possui também a lingua­ gem”. Muito mais do que isso: “A linguagem é a morada do Ser”. Desse modo, é como se o Ser fosse a linguagem mesma. Nessa perspectiva, a linguagem não é um “instrumento” de que cada um de nós se serve para exprimir ou objetivar as suas idéias. Isso seria admitir que o pensamento existe independentemente da linguagem, ou “sem lingua­ gem” - entendendo-se linguagem como a soma da língua com o ato de falar. Para os estruturalistas, a língua aparece primeiro, ainda enquanto abstração, e a fala aparece depois c a partir dela, fazendo-a manifestar-se concretamente, tornar-se linguagem. A língua preexiste ao ato de falar e lhe serve de funda­ mento. Por isso, não há idéias antes do aparecimento da língua: todo pensa­ mento emerge da língua e só existe enquanto linguagem. A linguagem surge assim como uma estrutura que se encontra por detrás do homem e, sendo, como diz Heidegger, a “morada do Ser”, já não há mais sentido em se dotar o indivíduo de qualquer estatuto ontològico próprio: o Ser da consciência individual não é mais do que uma estrutura lingüística geral que a governa completamente por trás. Por isso, os estruturalistas aboliram o cogito cartesiano, segundo o qual o homem pensa a partir de si mesmo. O psi­ canalista Jacques Lacan diz que “o sujeito humano se constitui pela lingua­ gem”. Logo, sendo a linguagem uma estrutura impessoal, o “Ser de todos”, o mais certo é afirmar: “Eu não falo: isso fala por mim”. De acordo com Fou­ cault, “é o sistema de linguagem que fala, não o sujeito”. Os estruturalistas aboliram o “Eu” do cogito: descentralizaram o sujeito, estilhaçando-o nas es* truturas que controlam cada indivíduo.

    rico do que a forma), o signo recebe o nome de símbolo. Adiante-se que Sartre dá a esses termos um sentido oposto. Aliás, Sartre já fizera o mesmo, três décadas antes, mas com outras consequências: o homem não possui um “Eu” interior, mas isso não o torna sem individualidade própria, não o faz co­ mandado à distância, não elimina a espontaneidade do pensamento, não suprime o projeto pes­ soal. 276

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    A posição de Sartre Sartre submete o estruturalismo às mesmas críticas feitas à razão analíti­ ca e ao positivismo. Não duvida que a realidade seja estruturada e atribui mesmo tudo o que se queira às estruturas (nossos condicionamentos, nossas condutas, etc.). Mas não se pode ficar apenas nas estruturas, se quisermos compreender a realidade humana como ela se dá. O estruturalismo limita-se a se colocar em exterioridade com relação ao homem, para vê-lo somente en­ quanto objeto determinado de fora e pelo passado. Tem acesso à realidade unicamente enquanto “algo já feito”, esquemas sociais estabilizados e plena­ mente constituídos, sistemas humanos inertes. Vimos que esse “momento analítico”, que divide a realidade em estados passivos e estruturas particulares, é tão-somente uma investigação preliminar do processo dialético. A razão analítica é a fase em que a razão dialética está “em grau zero”. Nesse nível primário, o homem aparece como produto das estruturas, passivo e condicionado por elas. A língua, um modelo de estrutura, existe antes do homem, por trás dele, esperando-o já ao nascer para tomar to­ das as iniciativas de seu pensamento. Isso é uma verdade parcial: até aqui, é lícito dizer que as estruturas fa ­ zem o homem. Mas é necessário que o processo dialético coloque em movi­ mento esses dados inertes. A razão dialética, vencida a fase estrutural, aban­ dona a inércia e passa à praxis projetiva de homens vivos e livres, revela o es­ forço humano para superar a situação dada, descobre a dimensão temporal. Agora, verificamos que o homem já não é apenas aquilo que as estruturas de­ terminam que seja. Ele também se faz, ultrapassando a inércia das circuns­ tâncias exteriores que o condicionam. Vértice de passividade e atividade, o homem é simultaneamente constituído (pelas estruturas) e, enquanto práxis livre, constituinte de si. Aliás, se eliminarmos a práxis, acabaremos mesmo achando que as pró­ prias estruturas são, como supõem os estruturalistas, essas “monstruosas Lévi-Strauss reconhece que "a razão dialética nos surge como a razão analítica em marcha”, mas nega a distinção entre ambas: “A razão dialética não é outra coisa diferente da razão analí­ tica”. Sartre replica que “um homem que escreve isso é completamente incapaz de compreender o que seja o pensamento dialético”. 277

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    construções sem autor”, que alguma divindade sobre-humana, jogando dados, se encarregasse de impor aleatoriamente aos homens (o que Sartre considera uma “teologia ridícula”). Na verdade - e isso o estruturalismo não mostra - é a práxis mesma dos homens, em sua multiplicidade, que, através da História, produz, conserva ou destrói as estruturas. A noção de estrutura já implica práxis: a estrutura é o resultado de atividades humanas já concluídas. Nesse sentido, a estrutura nada mais é do que o Pràtico-Inerte: o mundo objetivo trabalhado por projetos humanos que nos precederam no tempo e nos mantêm passivos e impotentes. É a práxis humana, e só ela, que se incumbe de criar as estruturas, manter as já existentes ou, ao contrário, suprimi-las. Como conceber “estruturas que existem sem nós”? Toda estrutura é manipulada pelo homem, no sentido de que só existe na medida em que al­ guém a assume, fazendo-a viver e funcionar. Cada geração toma certa posição com relação às estruturas dadas, e é essa posição que permite a permanência ou a mudança das próprias estruturas. Portanto, pode-se dizer que o homem faz as estruturas e é feito por elas. Escreve Sartre: “O que se fez do homem são as estruturas, os conjuntos significantes que as ciências humanas estu­ dam”, mas “o que o homem faz é a própria História, a superação real dessas estruturas por uma práxis totalizadora”. O homem acha-se sempre defasado em relação às estruturas: encontra-se na passagem entre uma situação objetiva presente e outra realidade a ser feita por ele projetada. O estruturalismo não se importa com o mais essencial: aquilo que o ho­ mem faz das estruturas. Não atenta à temporalidade, nem mesmo ao papel da História (enquanto práxis humana) na constituição e destruição das estruturas. Para o estruturalista, esses “sistemas sem sujeito” são realidades inertes que ficam detrás do homem, acionando-o por controle remoto. “Rejeito o estrutu­ ralismo na medida em que está atrás de mim: nada tenho atrás de mim”, diz Sartre. “Atrás do homem”, na verdade, estão outras ações humanas, e apenas elas: constituem o Pràtico-Inerte. O homem aparece no meio, entre as práxis humanas passadas e petrificadas na matéria circundante (as estruturas) e o futuro em curso de totalização (pelo projeto, o agente prático interioriza a es­ trutura dada e exterioriza uma ação destinada a conservá-la ou a negá-la). Para Sartre, um antropólogo como Lévi-Strauss só se ocupa do passado coagulado, das permanências, dos momentos históricos já constituídos. O exame do marxismo pelo estruturalismo (Louis Althusser) é igualmente ana­ lítico e positivista. A Historia, aqui, consiste em uma seqüência de estruturas estanques: não passa de uma soma de totalidades. Não há totalização-em278

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    curso. Por isso, Sartre diz que a antropologia não deve ser apenas estrutural (analítica), e sim também histórica (dialética): precisa dissolver-se como “ciência do estático” e consolidar-se como ciência do movimento, das totalizações-em-curso, da dinâmica social. Depois de preencher uma falha no marxismo (que nunca se preocupou em desvendar ontologicamente as noções de práxis, alienação, trabalho, exploração, etc.), Sartre mostrou que a História humana é muito mais do que julgam os estruturalistas: não uma simples série de fragmentos inertes e isolados, ela é uma batalha viva entre dados passivos e a atividade humana, fazendo-se sempre pela práxis do homem (seja como projeto, seja nas relações de reciprocidade positiva ou negativa, seja nas me­ diações entre terceiros, seja na práxis de luta e opressão, etc.). Sartre admite até que, no Pràtico-Inerte, as estruturas podem tornar impotentes os indivíduos, mas “é claro que só se escraviza o homem se ele for livre”. Em última análise, cabe sempre à práxis humana, que faz a História, preservar ou alterar as estruturas. É preciso ver que “há um trabalho da História sobre as estruturas”. No tocante à linguagem, Sartre começa concordando com os estrutura­ listas: outrora, achava-se, erradamente, que o pensamento existia antes da lin­ guagem e da expressão, independente delas, como algo inapreensível, em potencial. De fato, não existe pensamento sem linguagem. Porém, o estrutu­ ralismo comete um erro inverso: afirma que a língua existe antes do pensa­ mento, é “uma coisa que surge no mundo sem o homem”, “uma estrutura feita por ninguém”. Em primeiro lugar, a linguagem é, ela mesma, produto de uma multi­ plicidade de práxis humanas que vieram antes de nós: trata-se de uma realida­ de objetiva que está fora de nós, no mundo exterior - seja a matéria sonora (a fala, que é audível), seja a matéria escrita (que é visível) - e na qual os proje­ tos dos homens que a criaram imprimiram fins específicos (a significação das palavras, sua utilidade, seu modo de emprego). A linguagem, totalidade já constituída, é um conjunto material Pràtico-Inerte. Pelo fato de consistir em objetos-signos (as palavras ou frases presentes servem para designar objetos ausentes, tal como uma flecha na parede do metrô indica a saída), a lingua­ gem só poderia mesmo ter sido criada pelo homem, pois já sabemos que so­ mente o homem, que é projeto, “Ser significante”, pode produzir e compreen­ der os signos que ele inscreve por toda parte nas coisas. Sartre altera o conteúdo dos termos estruturalistas: para ele, o significante nao é “a fala ou palavra escrita”, mas sim o homem, aquele que cria os signos; o significado não é “a idéia que 279

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    Tal como ocorre com as técnicas, ou com as funções (no grupo organiza­ do), a língua não é auto-suficiente, não tem vida própria, não se aplica por si mesma, não preexiste ao uso que fazemos dela. Passividade morta e abstrata, a língua exige uma práxis humana para dar-lhe existência em ato, exige o “Ser que fala ou escreve”, assim como exigiu uma práxis humana para ser criada. Antes de ser falada ou escrita por alguém, a língua é uma abstração inerte. As palavras e as receitas técnicas do dialeto não têm “vida impessoal”. Quando usamos a língua, não nos limitamos a reunir palavras conforme leis gramaticais preexistentes ao nosso ato de falar, como se fôssemos um compu­ tador a fornecer dados nele programados previamente. A língua não é algo que foi falado ou algo que foi escrito, que se fala e se escreve por si mesmo. E falando ou escrevendo que fazemos com que as palavras e as leis gramaticais existam. Para haver língua é necessário o nosso falar. E o falar é um projeto. Realmente, quando falamos (ou seja, quando nos elegemos “Seres de­ signantes”), ultrapassamos as palavras que queremos designar para alcançar­ mos a própria designação, que é obtida pela oração. Uma palavra, sozinha, quase sempre, se destrói e não tem sentido. E um Em-Si, sem significação própria. Ela só adquire sentido quando colocada na unidade sintética de uma frase (o que não impede que possam haver frases limitadas a uma só palavra, como “ande” ou “cuidado”). Ao falarmos, constituímos a oração designante, que torna compreensíveis as palavras que a constituem - e essa oração é o fim do nosso projeto. Assim, a frase completa é o futuro que ilumina o passado composto pelas palavras. Compreender a frase de Pedro é aderir ao seu proje­ to, ir aos fins que ele colocou. Sem esse projeto do Para-Si que fala, a língua é uma inércia sem fundamento de existência real, porque ela não “se fala” sozi­ nha. Para existir, a língua deve ser encarnada na práxis projetiva de quem fala. Assim, a língua é ela própria projeto (“superação-em-direção-de”) criado por uma práxis e, para existir, também necessita da práxis que irá mantê-la viva. A linguagem, como toda técnica, pertence ao Pràtico-Inerte e é susten­ tada pela liberdade: interiorizamos essa matéria sonora/escrita produzida poi­ se tem em mente”, mas o próprio objeto visado. Observa-se ainda que, para Sartre, o homem jamais é “significado” por qualquer estrutura com função significante, como querem os estruturalistas. Um oficial do exército que vai à caserna de uniforme pode parecer mero “objeto signifi­ cado” por uma estrutura (o exército): seus trajes e seus gestos são os signos da função que lhe deram. Mas foram outros militares que criaram esses signos, e este homem livremente aceita entrar no seu papel, escolhe viver enquanto “significado” por sua própria práxis.

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    outras práxis e então a exteriorizamos, pelo uso prático. Não há domínio da língua sobre a minha livre práxis: transcendo-a para fins que coloco, faço-a minha, e, desse modo, dou um sentido vivo a essa técnica. Sartre concorda com a distinção feita entre língua e linguagem: a língua, o idioma, precede o uso que dela se faz, é um sistema já constituído que antecede a linguagem, ou seja, a expressão verbal ou escrita da língua. Mas a língua foi criada pelos homens. É um Pràtico-Inerte, pura passividade. Cabe à atividade projetiva dos homens, que um dia produziram a língua, recuperá-la permanentemente, conservá-la em ato, através da linguagem. Sartre também reconhece, com Heidegger, que a linguagem tem um status ontologico, próprio ao Ser do homem. No entanto, não se trata, como quer Heidegger, de um “Ser universal e sobre-humano” que encarna em cada indivíduo; não se trata de um Ser metafísico e transcendental do qual os indi­ víduos seriam simples representantes ou porta-vozes na Terra. A linguagem faz parte da constituição de cada pessoa em sua absoluta singularidade con­ creta. A linguagem é um dos modos de ser do Para-Si enquanto Para-Outro. Ou seja: quando exprimo minhas idéias pela linguagem, fico entregue, indefe­ so, à subjetividade do Outro. O sentido da minha expressão me escapa, por­ que o significado que dou às minhas palavras e aos meus gestos corporais é retomado por uma liberdade alheia que confere à minha linguagem um senti­ do que já não depende de mim. Portanto, minha expressão encerra o “roubo” do meu pensamento pelo Outro. Ao falar, minha expressão me escapa, há uma fuga para fora de mim. Enquanto linguagem, sou Para-Outro: a lingua­ gem representa a minha objetivação pelo Outro, a minha redução ao estado de sujeito objetivado.

    Foucault diz que “aquilo que nos sustenta no tempo e no espaço, o que está antes de nós é o sistema (...), algo sem identidade ou sujeito”. Afirma que “pensamos no interior de um pensamento anônimo e que nos constrange - o pensamento de uma época e de uma linguagem”. Em As Palavras e as Coisas (1966) conclui ter analisado o sistema atual em que ele, Foucault, vive. Mas Sempre sublinhando que “os mais elementares impulsos humanos se manifestam por proje­ tos”, Sartre evolui o conceito de projeto, em O Idiota da Família, atribuindo-o também a toda espécie evoluída, como os mamíferos. Recorre então à linguística para frisar que “todo animal humano” só pode viver no movimento dialético do significado (a idéia, a língua) e o significante (a linguagem), e que “toda significação nasce do projeto”. 281

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    não chega a explicar como lhe foi possível sequer pensar sobre esse sistema. Os estruturalistas suprimem a subjetividade livre, decidem que a razão huma­ na é um produto passivo das estruturas. Logo, eles próprios seriam manipula­ dos: o pensamento nada mais é do que um reflexo do sistema. Repete-se o caso dos marxistas que negàm a subjetividade e, no entanto, usam dessa mesma subjetividade para refletir e estabelecer teorias sobre a História. Se o estruturalismo está certo, então nenhum de seus pensadores teria condições para determinar verdades sobre o homem ou “descobrir” as estruturas do mundo. Volta-se aqui, com vocabulário diferente, às antigas concepções do homem como “objeto fisiológico”, máquina de estímulo-resposta, tão caras às correntes positivistas. Por essas razões, Dominique Grisoni pôde escrever que a empresa de Sartre “é um ultrapassamento radical do estruturalismo”. Embora tenha surgi­ do cronologicamente depois da filosofia de Sartre, para contestá-la, o estrutu­ ralismo registrou um retrocesso ao positivismo contra o qual o próprio Sartre havia se insurgido. Como disse Sartre, “o estruturalismo substituiu o cinema pela lanterna-màgica, o movimento por uma sucessão de imobilidades”. E, fa­ zendo perdurar o “erro grosseiro” do pensamento analítico, confundindo a realidade humana com a matéria objetiva, veio a ser o exato contrário de tudo o que Sartre escreveu em sua vida - uma filosofia passível de se resumir em uma frase de Questão de Método: “Que se pode fazer de mais exato, de mais rigoroso, quando se estuda o homem, do que reconhecer-lhe propriedades humanas?”.*

    *

    “Para pensar o sistema, eu já era compelido por um sistema detrás do sistema, que eu não co­ nheço e que recuará à medida que eu o descobrir, à medida que ele se descobrir.” 282

    Bibliografia 1. Livros de Sartre (Textos editados em volumes, por ordem cronológica de publicação) L’imagination. Paris, F.Alcan, 1936. reed. Paris, Presses Universitaires de France, 1949. (em português: A imaginação. São Paulo, Difusão Européia do Livro.) La transcendance de l’ego: esquisse d’une description phénoménologique. Paris, Recherches Philosophiques, 1937. reed. Paris, Philosophique Vrin, 1965. (Publicação em volume do ensaio escrito em 1934) La nausée. Paris, Gallimard, 1938 (março), (em português: A Náusea. Lisboa, Europa-América; São Paulo, Difusão Européia do Livro; Rio de Ja­ neiro, Nova Fronteira.) Le mur. Paris, Gallimard, 1939 (janeiro), (em português: O muro. Rio de Ja­ neiro, Civilização Brasileira; Rio de Janeiro, Nova Fronteira.) (Coletânea de contos: “Lem ur”, “La chambre”, “Erostrate”, “Intimité”, “L ’enfance d’un chef”) Esquisse d’une théorie des émotions. Paris, Flermann Collection, 1939 (dezembro), (em português: Esboco de urna teoria das emoções. Rio de Ja­ neiro, Zahar.) L’imaginaire: psychologie phénoménologique de l’imagination. Paris, Galli­ mard, 1940 (fevereiro). Les mouches. Paris, Gallimard, 1943 (abril), (em português: As moscas. Lisboa, Presença; São Paulo, Martins Fontes). L’être et le néant: essai d’ontologie phénoménologique. Paris, Gallimard, 1943 (junho). Huis clos. Paris, Gallimard, 1945 (março). L’âge de raison. Paris, Gallimard, 1945 (março), (em português: A idade da razão. São Paulo, Difusão Européia do Livro; São Paulo, Abril; Rio de Ja­ neiro, Nova Fronteira.) Primeira parte da trilogia “Les chemins de la liberté") Le sursis. Paris, Gallimard, 1945 (agosto), (em português: Sursis. São Paulo, Difusão Européia do Livro; Rio de Janeiro, Nova Fronteira.) (Segunda parte da trilogia “Les chemins de la liberté”) 283

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    L’existentialisme est un humanisme. Paris, Éditions Nagel, 1946 (março), (em português: O existencialismo é um humanismo. Lisboa, Presença; São Paulo, Martins Fontes.) ä La putain respectueuse. Paris, Éditions Nagel, 1946 (outubro), reed. Paris, Gallimard, 1947. (em português: A prostituta respeitosa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.) Morts sans sépulture. Paris, Lausanne-Marguerat, 1946 (novembro), reed. Paris, Gallimard, 1947. (em português: Mortos sem sepultura. Lisboa, Presença.) Réflexions sur la question juive. Paris, P. Morihien, 1946 (novembro), reed. Paris, Gallimard, 1954. (em português: Reflexões sobre o racismo. São Paulo, Difusão Européia do Livro.) L’homme et les choses. Paris, Seghers, 1947 (janeiro), reed. Paris, Gallimard, 1947. In: Situations I). (Ensaio sobre Francis Ponge escrito em 1944) Baudelaire. Paris, Gallimard, 1947. Théâtre. I. Paris, Gallimard, 1947 (Coletânea de peças escritas entre 1943 e 1946: “Les mouches", "Huis clos”, Morts sans sépulture”, “La putain respectueuse”) Les jeux sont faits. Paris, Éditions Nagel, 1947 (setembro), (em português: Os dados estão lançados. Lisboa, Presença.) Situations I. Paris, Gallimard, 1947 (outubro), (em português: Situações I. Lisboa, Europa-América.) (Coletânea de ensaios escritos entre 1938 e 1945 sobre Faulkner, Dos Passos, Paul Nizan, Husserl, Mauriac, Nabokov, Denis de Rougement, Giradoux, Camus, Maurice Blanchot, Georges Bataille, Brice Parain, Jules Renard, Francis Ponge e Descartes) Visages. Paris, Seghers, 1948 (janeiro). (Dois ensaios escritos em 1939) Situations IL Paris, Gallimard, 1948 (maio), (em português: Situações IL Lisboa, Europa-América.) (■Coletânea de ensaios escitos entre 1945 e 1947: “Présentation des Temps Modernes", “La nationalisation de la littérature”, “Qu’est-ce que la litté­ rature ?”) Les mains sales. Paris, Gallimard, 1948 (junho), (em português: As mãos su­ jas. Lisboa, Europa-América.) L’engrenage. Paris, Éditions Nagel, 1948 (novembro), (em português: A en­ grenagem. Lisboa, Presença.) 284

    Existência

    e

    Liberdade

    Orphée noir. Paris, Presses Universitaires de France, 1948. reed. Paris, Galli­ mard, 1949. (em português: Orfeu negro. In: Reflexões sobre o racismo. São Paulo, Difusão Européia do Livro.) Entretiens sur la politique (com ROUSSET, David & ROSENTHAL, Gérard). Paris, Gallimard, 1949 (março). Situations III. Paris, Gallimard, 1949 (junho), (em português: Situações III. Lisboa, Europa-América.) (Coletânea de ensaios escritos entre 1944 e 1946: “La république du si­ lence”, “Paris sur l ’occupation”, “Qu’est-ce qu’un collaborateur?”, “La fin de la Guerre”, “Individualisme et conformisme aux Etats-Unis”, “Villes d ’Amérique”, New York ville coloniale”, “Présentation”, “Matérialisme et révolution”, “Orphée noir”, “La recherche de l ’absolu”, “Les mobiles de Calder") La mort dand l’âme. Paris, Gallimard, 1949 (agosto), (em português: Com a morte na alma. São Paulo, Difusão Européia do Livro; Rio de Janeiro, Nova Fronteira.) (Terceira parte da trilogia “Les chemins de la liberté”) Nourritures. Paris, J. Damase, 1949 (setembro). (Fragmento de novela escrita em 1938). Le Diable et le bon Dieu. Paris, Gallimard, 1951 (outubro), (em português: O Diabo e o bom Deus. São Paulo, Difusão Européia do Livro; Rio de Janei­ ro, Nova Fronteira.) Saint Gênet comédien et martyr. Paris, Gallimard, 1952 (junho). L’affaire Henri Martin. Paris, Gallimard, 1953 (outubro). (Comentário a uma coletânea de ensaios de diversos autores) Kean. Paris, Gallimard, 1954 (fevereiro), (em português: Kean. Lisboa, Pre­ sença.) (Adaptação de peça de Alexandre Dumas) Nekrassov. Paris, Gallimard, 1956. Les séquestrés d’Altona. Paris, Gallimard, 1960. (em português: Os seqüestrados de Altona. Lisboa, Europa-América; São Paulo, Martins Fontes.) Critique de la raison dialectique - tome I: théorie des ensembles pratiques. Paris, Gallimard, 1960 (abril). Huracán sobre el azúcar. Buenos Aires, Uno, 1960. reed. Sartre on Cuba. Nova York, Ballantine Books, 1961. (em português: Furacão sobre Cuba. Rio de Janeiro, Editora do Autor.) Sartre visita a Cuba. Havana, Ediciones R., 1960 (outubro). (inclui o texto “Huracán sobre el azúcar”) 285

    P aulo

    P erdigão

    Marxisme et existentialisme - controverse sur la dialectique. Paris, Plon, 1962. (em português: Existencialismo e marxismo - controvérsia sobre a dialética. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.) {Debate com Roger Garaudy, Jean Hippolite, Jean-Pierre Vigier e Jean Orcel) Bariona ou le fils du tonnerre. Paris, Atélier Anjou-Copies, 1962. {Texto da peça escrita em 1940) Les mots. Paris, Gallimard, 1964 (janeiro), (em português: As palavras. São Paulo, Difusão Européia do Livro; Rio de Janeiro, Nova Fronteira.) Situations IV. Paris, Gallimard, 1964. (em português: Situações IV. Lisboa, Europa-América.) {Coletânea de ensaios escritos entre 1948 e 1963: “Portrait d ’un incon­ nu”, “L ’artiste et sa conscience”, “Des rats et des hommes”, “Gide vi­ vant", “Réponse à Albert Camus”, “Paul N izan”, “Merleau-Ponty”, “Le séquestré de Venise”, “Les peintures de Giacometti”, “La peintre sans privilèges”, “Masson", “Doigts et non-doigts”, “Un parterre de capuci­ nes”, “Venise, de ma fenêtre”) Situations V - colonialisme et néo-colonialisme. Paris, Gallimard, 1964. (em português: Situações Y - colonialismo e neocolonialismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.) {Coletânea de ensaios escritos entre 1954 e 1963: “D ’une Chine à l ’autre”, “Le colonialisme est un système”, “Portrait du colonisé précédé du portrait du colonisateur”, “Vous êtes formidables”, “Nous sommes tous des assassins”, “Une victoire”, “Le prétendant", “La constituition du mépris”, “Les grenouilles qui demandent un roi”, “L ’analyse du réfé­ rendum", “Les somnambules”, “Les damnés de la Terre”, “La pensée politique de Patrice Lumumba ”) Situations VI - problèmes du marxisme. Paris, Gallimard, 1964. (em portu­ guês: Situações VI - problemas do marxismo. Lisboa, Europa-América.) {Coletânea de ensaios escritos entre 1950 e 1954: “Portrait de l ’aventurier”, “Faux savants ou faux lièvres”, “Sommes-nous en démo­ cratie?”, “La fin de l’espoir”, “Les communistes et la paix”) Ou’est-ce que la littérature?. Paris, Gallimard, 1964. {Republicação em volume do ensaio escrito em 1947 e publicado em Situations ID Les trovennes. Paris, Collection du Théâtre National Populaire, 1965 (março), reed. Paris, Gallimard, 1966. (em português: As troianas. São Paulo, Di­ fusão Européia do Livro.) {Adaptação da peça de Eurípedes) 286

    Existência

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    Liberdade

    Situations VII - problèmes du marxisme IL Paris, Gallimard, 1965. (em por­ tuguês: Situações VII - problemas do marxismo. Lisboa, Europa-América; O fantasma de Stalin. Rio de Janeiro, Paz e Terra.* ) (Coletânea de ensaios escritos entre 1955 e 1962: “Réponse à Claude Lefort”, “Opération ‘Kanapa’”, “Le réformisme et les fétiches”, “Réponse à Pierre N avilie ”, “Le fantôme de Staline ”, “Quand la Police frappe les trois coups... ”, “La démilitarisation de la culture”, “Discussion sur la critique à propos de 'L’enfance d ’Ivan’”) Morale e società. Roma, Riuniti/Instituto Gramsci, 1966. (em português: Mo­ ral e sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra.) (Inclui o texto de Sartre “Determinação e liberdade ”, reunido a mais sete ensaios de pensadores que participaram de um congresso internacional organizado pelo Instituto Gramsci, em Roma, em março de 1964) Question de méthode. Paris, Gallimard, 1967. (em português: Questão de método. São Paulo, Difusão Européia do Livro.) (Republicação em volume do ensaio contido em Critique de la raison dia­ lectique e esento em 1957) Les communistes ont peur de la révolution. Paris, J.Didier, 1969. (Reúne entrevistas de 1966 a 1968) L’idiot de la famille - Gustave Flaubert de 1821 à 1857. Paris, Gallimard, 1971-72. 3v. Situations VIII - autour de 68. Paris, Gallimard, 1972. (em português: publi­ cado apenas Em defesa dos intelectuais. Rio de Janeiro, Atica.* ) (Coletânea de ensaios: “Il n ’y a plus de dialogue possible”, “Un améri­ cain écrit à Sartre”, “Sartre répond”, “Le crime”, “Lettre au président de la République et réponse”, “Sartre à de Gaulle”, “Douze hommes sans colère”, “Tribunal Russel, discours inaugural”, “De Nuremberg à Sto­ ckholm”, “Le génocide”, “L ’alibi”, “Refusons le chantage", “Achever la gauche ou la guérir”, “Le choc en retour”, “Les Bastilles de Raymond Aron”, “L ’idée neuve de mai 1968”, “Les communistes ont peur de la ré­ volution”, “Il n ’y a pas de bon gaullisme”, “‘Le mur’au lycée”, “La jeu­ nesse piégée”, “Masses, spontanéité, parti”, “Le peuple brésilien sous le feu croisé des bourgeois”, “L ’affaire Geismar”, “Le tiers monde com­ mence en banlieue”, “Toute la vérité”, “Intervention à la conférence de presse du comité, le 27 janvier 1970”, “Premier procès populaires à lens”, “Interview”, “Israël, la gauche et les arabes”, “Plaidoyer pour les intellectuels”, “L ’ami du peuple”) Ensaio publicado à parte. Tradução de “Plaidoyerpour les intellectuels”, reunindo três conferências dadas no Japão em 1966. 287

    P aulo P erdigão Situations IX - mélanges. Paris, Gallimard, 1972. (Coletânea de ensaios: “Les écrivains en personne”, “L ’écrivain et sa langue", “L ’anthropologie”, “Sartre par Sartre”, “Paimiro Togliatti”, “L ’universel singulier”, “Mallarmé (1842-1898)”, “Saint Georges et le dragon”, “Le socialisme qui venait du froid”, “Je-tu-il”, “Coexistences”, “L'homme au magnétophone”, “Dialogue psychanalytique”, “Réponse à Sartre, par J.-B. Pontalis”, “Réponse à Sartre, par Bernard Pingaud”) Un théâtre de situations. Paris, Gallimard, 1973. (Reúne ensaios e entrevistas de Sartre sobre teatro) On a raison de se révolter (Com VICTOR, Pierre [Bernard-Henry Lévy] & GAVI, Philippe). Paris, Gallimard, 1974. Situations X - politique et autobiographie. Paris, Gallimard, 1976. (■Coletânea de ensaios: “Le procès de Burgos”, “Les maos en France”, “Justice et Etat”, “Elections, piège à cons”, “Sur ‘L ’idiot de la famille’”, “Simone de Beauvoir interroge Jean-Paul Sartre”, “Autoportrait à soi­ xante-dix ans ”) Sartre. Paris, Gallimard, 1977. (Texto integral do fúme realizado em fevereiro e março de 1972 por Alexan­ dre Astrue e Michel Contât, “Sartre par lui-même”, resumindo entrevistas com Sartre)

    Obras postumas (até agosto de 1995) Les carnets de la drôle de guerre. Paris, Gallimard, 1983 (março), (em portu­ guês: Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.) (Escrito entre novembro de 1939 e março de 1940) Cahiers pour une morale. Paris, Gallimard, 1983 (março). (Escrito em 1947 e 1948) Lettres au Castor et à quelques autres. Paris, Gallimard, 1983. (Dois volumes abarcando correspondência de 1926 a 1963) Le scènario Freud. Paris, Gallimard, 1984 (abril), (em português: Freud, além da alma: roteiro para um filme. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.) (Escrito em 1959 e 1960) Critique de la raison dialectique - tome II: Pinteligibilité de Phistoire. Paris, Gallimard, 1985 (novembro). (Escrito em 1958) Sartre no Brasil: a conferência de Araraquara. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. (Edição bilingüe - português e francês - com o texto inédito da conferência de Sartre realizada na Faculdade de Filosofia de Araraquara, São Paulo, em 4 de setembro de 1960) 288

    Existência

    e

    Liberdade

    Mallarmé - la lucidité et sa face d’ombre. Paris, Gallimard, 1986. {Escrito em 1952) Vérité et existence: Paris, Gallimard, 1989. (em português: Verdade e exis­ tência. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.) (Escrito em 1948) Ecrits de jeunesse. Paris, Gallimard, 1990 (outubro). (Textos escritos entre 1922 e 1928) Les carnets de la drôle de guerre. Paris, Gallimard, 1995 (fevereiro). (Reedição do livro publicado em 1983, com acréscimo de novos diários, escritos entre setembro e outubro de 1939) Obs.: Para uma bibliografia o mais exaustiva possível até 1969 (incluindo, além dos livros, conferências, entrevistas, cartas, prefácios, etc.), consul­ tar Les écrits de Sartre, de Michel Contât e Michel Rybalka, editado pela Gallimard em 1970. Os mesmos autores lançaram Sartre: bibliographie 1980-1992 (Paris, CNRS Editions, 1993), relacionando todas as obras e artigos publicados no mundo sobre o filósofo nos doze anos seguintes à sua morte.

    2. Seleção de livros sobre Sartre escritos ou traduzidos em português a) Monografias ALBÉRÈS, René M. Jean-Paul Sartre. 1953. (Jean-Paul Sartre. Belo Horizon­ te, Itatiaia.) AUDRY, Colette. Sartre et la réalité humaine. 1966. (Sartre e a realidade hu­ mana. Lisboa, Estudios Cor.) BORNHEIN, Gerd A. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo, Pers­ pectiva, 1971. COHEN-SOLAL, Annie. Sartre: 1905-1980. 1985. (Sartre: 1905-1980. Porto Alegre, L&PM, 1986.) CRANSTON, Maurice. Sartre. 1962. (Sartre. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.) DANTO, Arthur C. Sartre. 1975. (Sartre. São Paulo, Cultrix.) GERASSI, John. Jean-Paul Sartre - hated conscience of his century. 1989. (Jean-Paul Sartre - consciência odiada de seu século. Rio de Janeiro, Zahar.) JEANSON, Francis. Sartre par lui-même. 1955. (Sartre por eie proprio. Lis­ boa, Portugália. Sartre por si mesmo. Rio de Janeiro, J. Olympio.) 289

    P aulo

    P erdigão

    JOLIVET, Régis. Sartre ou la théologie de l’absurde. 1965. (Sartre ou a teo­ logia do absurdo. São Paulo, Herder.) LAING, R.D. & COOPER, D. G. Reason and violence: a decade of Sartre’s philosophy, 1950-1960. 1964. (Razão e violência: uma década da filosofia de Sartre. 1950-1960. Petrópojis, Vozes.) LÉVY, Bernard-Henry. O testamento de Sartre. Porto Alegre, L&PM, 1980.* MACIEL, Luis Carlos. Sartre: vida e obra. Rio de Janeiro, J. Álvaro Ed., 1968. MARGARIDO, Alfredo. Jean-Paul Sartre. Lisboa. Presença. 1965. MÉSZÁROS, István. The work of Sartre: search for freedom. 1979. (A obra de Sartre: busca da liberdade. São Paulo, Ensaio.) THODY, Philip. Sartre. 1972. (Sartre. Rio de Janeiro, Bloch.) Obs.: A lista exclui os livros de Simone de Beauvoir, relacionados à página 15.

    b) Exposição ou crítica da filosofia de Sartre em obras sobre existencialismo ou marxismo em geral BEAUFRET, Jean. Introduction aux philosophies de l’existence. 1971. (Introdução às filosofias da existência. São Paulo, Duas Cidades.) BOCHENSKI, I. M. Europäische Philosophie der Gegenwart. 1951. (A filo­ sofia contemporânea ocidental. São Paulo, Herder.) BORNHEIM, Gerd A. O idiota e o espirito objetivo. Porto Alegre, Globo, 1980. CHÂTELET, François, dir. Histoire de la philosophie - idées, doctrines. 1973. V. 8. (Historia da filosofia - idéias, doutrinas. Rio de Janeiro, Zahar.) DARTIGUES, André. Ou’est-ce que la phénomélogie?. 1971. (O que é a fe­ nomenologia?. Rio de Janeiro, Eldorado.) ETCHEVERY, Auguste. Le conflit actuel des humanismes. 1958. (O conflito atual dos humanismos. Porto, Tavares Martins.) GARAUDY, Roger. Perspectives de l’homme. 1959. (Perspectivas do ho­ mem. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.) GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo, Pedagogica Universitària, 1975. GOULIANE, C.I. Problematica omului. 1966. (A problemàtica do homem. Rio de Janeiro, Paz e Terra.)

    Edição em livro da última entrevista de Sartre, concedida a Bernard-Henry Lévy e publicada originalmente pelo Le Nouvel Obseivateur em fevereiro de 1980. 290

    Existência

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    Liberdade

    HENRI-SIMON, Pierre. L’homme en procès. 1952. IO homem em processo. Porto, Portugália.) JAMESON, Frederic. Marxism and form. 1971. (Marxismo e forma. São Paulo, Hucitec.) JOLIVET, Régis. Les doctrines existentialistes: de Kierkegaad a Sartre. 1947. (As doutrinas existencialistas. Lisboa, Tavares Martins.) LUKÁCS, Georg. Existentialisme ou marxisme?. 1947. (Realismo e existencialismo. Rio de Janeiro, Duas Cidades.) OLSON, Robert G. An introduction to existentialism. 1962. (Introdução ao existencialismo. São Paulo, Brasiliense.) VEDRINE, Hélène. Les philosophies de Phistoire. 1975. (As filosofias da história. Rio de Janeiro, Zahar.) WAHL, Jean. Les philosophies de l’existence. 1954. (As filosofias da exis­ tência. Lisboa, Europa-América.)

    3. Filmes baseados em textos de Sartre LES JEUX SONT FAITS, de Jean Delannoy, 1947. LES MAINS SALES, de Fernand Rivers, 1951. LA P... RESPECTEUSE (A p... respeitosa), de Marcel Pagherò e Charles Bra­ bant, 1952. LES ORGUEILLEUX, de Yves Allégret, 1953. (Baseado em roteiro original: “Typhus”) HUIS CLOS, de Jacqueline Audry, 1954. LES SORCIÈRES DE SALEM (As feiticeiras de Salém), de Raymond Rouleau, 1957. (Roteiro de Sartre sobre a peça “The Crucible”, de Arthur Miller) KEAN, GENIO E SREGOLATEZZA (Kean), de Vittorio Gassman, 1957. NO EXIT, de Pedro Escudero e Tad Danielewsky, 1962. FREUD, THE SECRET PASSION (Freud, além da alma), de John Huston, 1962. (Roteiro original, não utilizado) LES SÉQUESTRÉS D’ALTONA (O condenado de Altona), de Vittorio de Sica, 1963. LE MUR, de Serge Roullet, 1967. Obs.: Sartre teve pequeno papel como ele mesmo em “La vie commence de­ main”, de Nicole Védrès (1950), e figurou em duas cenas de “Le désordre à vingt ans”, de Jacques Baratter (1967). Em 1972, Alexandre Astruc realizou o documentário de longa-metragem “Sartre par lui-même”, só lançado em Paris em 1977. 291

    indice Onomástico A Alain, (Émile Chartier), 56 Althusser, Louis, 274; 275; 278 Aristóteles, 36; 53; 68; 157 Aron, Raymond, 19; 31; 287

    Flaubert, Gustave, 10; 11 ; 127; 177; 178; 271; 287 Foucault, Michel, 26; 59; 131; 274-276; 281 Freud, Sigmund, 17; 122-124; 288;290

    B

    G

    Barthes, Roland, 274 Bergson, Henri, 64; 68 Berkeley, George, 60

    Genet, Jean, 270

    H

    c

    Hegel, G. W. F., 11; 17; 19; 29; 34; 68; 74; 142; 159; 160; 164; 182; 261 Heidegger, Martin, 13; 18; 21; 23; 31; 34-36; 38; 41; 44; 46; 48; 53; 68; 70; 77; 85; 95; 96; 100; 101; 103; 107; 129; 173; 182; 210; 276; 281 Heisenberg, Werner, 55 Heráclito, 157 Hume, David, 26; 64 Husserl, Edmund, 17; 21; 31 ; 32; 34; 36; 45-47; 53; 55; 56; 58; 60; 61; 65-67; 136; 173; 182; 284

    Comte, Auguste, 267 Cooper, David, 25; 135

    D Darwin, Charles, 160 De Beauvoir, Simone, 15; 31; 288; 290 Derrida, Jacques, 274 Descartes, René, 9; 19; 33; 34; 48; 55; 58; 61; 64; 69; 284

    E Einstein, Albert, 267 Engels, Friedrich, 160; 164; 174; 177; 180; 182; 258; 259

    Iudin, P., 174

    F

    J

    Feuerbach, Ludwig, 173

    James, William, 121 293

    P aulo

    P erdigão

    Mill, John Stuart, 267

    Janet, Pierre, 122

    K Kant, Immanuel, 17; 19; 36; 52; 58; 190 Kierkegaard, Sören, 34

    Pascal, Blaise, 35 Pavlov, Ivan, 23; 43; 122; 174 Platão, 35

    L

    R

    Lacan, Jacques, 59; 136; 274; 276 Laing, R. D„ 25; 135; 289 Lefebvre, Henri, 160 Leibniz, G. W., 64; 69 Lênin, Vladimir, 160; 174 Lequier, Jules, 90 Lévi-Strauss, Claude, 175; 264; 274;278 Lukács, Gyorgy, 153

    Rákosi, Matyas, 182 Rosental, M., 174 Russell, Bertrand, 267

    s Saussure, Ferdinand de, 275 Sechenov, Ivan, 173; 174 Spinoza, Baruch, 64 Stalin, Joseph, 286 Stekel, Wilhelm, 124

    M

    T

    Malraux, André, 77 Marcel, Gabriel, 20; 290 Marcuse, Herbert, 18; 263 Marx, Karl, 15; 17; 19; 23-25; 27; 159; 160; 164; 166; 172-174; 176; 179; 180; 182; 186; 188; 192; 193; 196; 206; 255; 262; 272 Merleau-Ponty, Maurice, 53; 54; 72; 285 Michel, Georges, 21; 26; 41; 59; 131; 274; 275; 287; 288

    Taylor, Frederick W„ 235; 239

    V Valéry, Paul, 177; 180

    w Watson, John B., 43; 122 Wertheimer, Max, 122

    294

    J; I< K K

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    2 2 2 2

    IV

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    Celia Ribeiro Como ser Mulher e não Morrer na Tentativa

    Carmen Rico-Godoy Memória a Duas Vozes

    Depoimento de François Mitterrand a Elie Wiesel Aventuras no Mar

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    Uma Introdução à Filosofia de Sartre

    (Trecho do Prefácio de Gerd A. Bornheim)

    Paulo Perdigão

    “Resultado de anos de demorado estudo, este ensaio já nasceu definitivo dentro da bibliografia filosófica brasileira. A pesquisa é abrangente; apresenta toda a obra filosófica de Sartre, inclusive textos desgarrados, de menor importância ou esque­ cidos pela maioria dos intérpretes; considera também todas as publicações póstumas do filósofo até agora editadas. Isso já basta para que se tome referência obrigatória para todos os que se interessem pelo mestre do existencialismo. Paulo Perdigão despreocupa-se de qualquer arroubo interpretativo. O seu escopo está principalmente em apresentar as verdadeiras dimensões da filo­ sofia sartriana. O livro se constitui, por isso mesmo, em um ro­ teiro indispensável, em que o ensejo para o conhecimento mais preciso do pensamento do mestre francês se acasala perfeitamente bem com o caráter prático do livro, para situar detalhes e dirimir dúvidas. E isso não é pouco, é mesmo o ponto de partida neces­ sário de toda e qualquer interpretação ou análise comparativa.”

    EXISTENCIA & LIBERDADE

    Existência & Liberdade

    T P aulo P erdigão

    EXISTÊNCIA A U ma introdução à filosofia de S artre