Pedagogia Freinet: Teoria e Prática [3 ed.] 8530804066, 9788530804060

Esta coletânea aborda grandes temas que orientam a Pedagogia Freinet: a livre expressão, a vida cooperativa, a afetivida

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Portuguese Brazilian Pages 207 [203] Year 2002

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Pedagogia Freinet: Teoria e Prática [3 ed.]
 8530804066, 9788530804060

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PEDAGOGIA FREINET: TEORIA E PRÁTICA

COLEÇÃO PRÁXIS

A intenção desta coleção é ser uma contribuição para o avanço do conhecimento, do ponto de vista crítico, apresentando novas pistas a serem exploradas. Trata das implicações práticas do conhecimento, alicer­ çadas teoricamente. A coleção apresenta três tipos de práticas: • Práticas efetivas • Práticas de pesquisa • Práticas deformação

Cada obra será uma referência significativa, à qual todo leitor preocu­ pado com uma determinada problemática poderá recorrer. Serão garantidas, também, a unicidade das partes, a lógica da argumentação, a pertinência e a recentidade das referências, bem como qualidade de método e estilo.

O discurso descritivo e normativo será superado. O tema será tratado sob uma perspectiva contextualizada, reflexiva e crítica. Não fará panegírico de uma ou mais concepção ou estratégia — estará alicerçado em fatos nos quais se assegurem as concepções teóricas apresentadas. Cada obra desenvol­ verá uma argumentação crítica, apresentará resultados e análises solidamente pesquisados. Ivani Catarina Arantes Fazenda Coordenadora

MARISA DEL CIOPPO ELIAS (ORG.)

PEDAGOGIA FREINET: TEORIA E PRÁTICA

Capa: Fernando Cornacchia Foto: Rennato Testa Copidesque: Cristiane Rufeisen Scanavini Revisão: Liliane Moreira Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pedagogia Freinet: Teoria e prática / Marisa Del Cioppo Elias (org.). - Campinas, SP: Papirus, 1996. (Coleção Práxis)

Vários autores Bibliografia. ISBN 85-308-0406-6 1. Freinet, Célestin, 1896-1966 2. Pedagogia 3. Psicologia educacional I. Elias, Marisa Del Cioppo. II. Série.

CDD-370.15

96-1063

Índices para catálogo sistemático: 1. Freinet: Psicopedagogia 2. Psicologia educacional 3. Psicopedagogia

370.15 370.15 370.15

3a Edição 2002

Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDfí).

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © M.R. Comacchia Livraria e Editora Ltda. - Papirus Editora Fone/fax: (19) 3272-4500 - Campinas - São Paulo - Brasil. E-mail: [email protected] - www.papirus.com.br

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

1. PEDAGOGIA FREINET: SEUS PRINCÍPIOS E PRÁTICAS Yolanda Moreira S. Paiva

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2. A FORMAÇÃO DO EDUCADOR E OS PRINCÍPIOS APONTADOS PELA PEDAGOGIA FREINET Marisa Del Cioppo Elias

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3. A VIDA NA SALA DE AULA FREINETIANA Maria Lúcia dos Santos

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4. RETROSPECTIVA DE UMA CAMINHADA Maria Celita de Andrade Osório

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5. PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: ALGUMAS IDÉIAS EM PIAGET, VYGOTSKY E FREINET Waldília Neiva de M.S. Cordeiro e Maria Luiza L. do Vale

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6. A ATUALIDADE DA PROPOSTA FREINET: INTERDISCIPLINARIDADE E ALFABETIZAÇÃO Marisa Del Cioppo Elias

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7. ALFABETIZAÇÃO: DESAFIO E RUPTURA Neuza Helena P. Mansani

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8. ALFABETIZAÇÃO Waldília Neiva de M. S. Cordeiro e Maria Luiza Lima do Vale

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9. O TATEAMENTO EXPERIMENTAL NUMA CONCEPÇÃO MATEMÁTICA Nilce Fátima Scheffer

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10. A AFETIVIDADE NA APRENDIZAGEM: UMA BREVE INTRODUÇÃO AO TEMA Yolanda Moreira S. Paiva

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11. A AFETIVIDADE Flaviana M. Granzotto

99

12. FREINET E A PÓS-MODERNID ADE Glória Kirinus

119

13. MUDAR A ESCOLA... AMANHÃ? Andréa Warmling e Jean Astier

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14. O PAPEL DA ESCOLA NA FORMAÇÃO DA CIDADANIA Maria de Fátima Morais

137

15. EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CIDADANIA Maria de Fátima M. Brayner

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16. EDUCAÇÃO AMBIENTAL COM ENFOQUE PARA RESÍDUOS SÓLIDOS — A EXPERIÊNCIA DA ESCOLA RECANTO/RECIFE-PE Fábio Atanásio de Morais

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17. TEXTO LIVRE: EXPRESSÃO VIVA NUM SISTEMA INTERATIVO Maria Lúcia dos Santos

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18. LIVRE EXPRESSÃO E CIDADANIA Gláucia de Melo Ferreira

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19. A AULA-PASSEIO TRANSFORMANDO-SE EM AULA DE DESCOBERTAS Rosa Maria Whitaker F. Sampaio

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20. FREINET: CONFRONTO COM O PODER DISCIPLINAR Reinaldo Matias Fleuri

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APRESENTAÇÃO

O objetivo desta coletânea é o de auxiliar a todos aqueles que, embora novos no Movimento Freinet, acompanham nossas palestras e reuniões, no sentido de uma atualização sobre a teoria e a prática dessa proposta pedagógica. Os trabalhos apresentados retratam principalmente o espírito dentro do qual trabalhamos. A maioria deles se refere às práticas concretas de professores dos diferentes núcleos Freinet, de norte a sul do Brasil e da França.

A coletânea somente tomou-se possível porque muitos de seus autores, praticantes e coordenadores de núcleos regionais, estiveram presentes no III Seminário Nacional promovido pelo Movimento Nacio­ nal de Educadores Freinet, de Erechim. Durante o seminário tivemos a oportunidade de conhecer e compartilhar informações com os colegas do Movimento sobre os trabalhos que desenvolviam. As bases doutri­ nárias dessa pedagogia são transmitidas mais pelo contato direto de práticas autênticas daqueles que militam no Movimento. Isto acontece porque a cooperação mútua é o próprio espírito da Pedagogia Freinet, que destaca, dentre seus objetivos, a importância de todos chegarem o mais longe possível, seja em nível teórico ou prático.

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A prática, objeto de constantes debates e atualização, é sustentada por um corpo de conceitos próprios que lhe dão suporte e significação global. Utilizando-se de técnicas variadas ela é, por assim dizer, o centro da Pegagogia Freinet; uma abertura da escola à vida...

Cada um dos textos mostrará ao leitor que uma classe Freinet é um lugar de trabalho, uma pequena sociedade onde se propicia a liberdade de expressão e a vida; mostrará que todo educador Freinet é um pesquisador prático dedicado ao seu trabalho. Ele está protegido da solidão e do aventurismo pedagógico porque pesquisa, troca informa­ ções com o grupo e/ou núcleo ao qual pertence. Enfim, o livro mostrará os grandes temas que orientam a Pedago­ gia Freinet, tais como a livre expressão, o tateamento experimental, a vida cooperativa, a afetividade, o trabalho, a correspondência... Sendo uma pedagogia por essência internacional (seus educadores fazem par­ te da Fimem — Federação Internacional dos Movimentos da Escola Moderna), ensina-nos a realidade escolar voltada para o desenvolvi­ mento democrático nos aspectos lingüísticos, científicos, informáticos, corporais, de ciências humanas, de comunicação não-verbal, didática, de imprensa e correspondência, de inserção e anti-seleção, de educação para a paz etc. Por meio do contato com correspondentes nacionais e estrangei­ ros, pela correspondência e pelos encontros, temos a possibilidade de conhecer, respeitar e apreciar, com simplicidade, a história e o valor de outros povos e suas culturas. E é nosso dever, como educadores, levar nossas crianças a tomarem consciência da existência real dos outros.

Marisa Del Cioppo Elias

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1 PEDAGOGIA FREINET: SEUS PRINCÍPIOS E PRÁTICAS

Yolanda Moreira S. Paiva1 Célestin Freinet, um dos mais importantes educadores da atuali­ dade, nasceu em Gars, um vilarejo ao sul da França, em 15 de outubro de 1896. Professor primário desde os 24 anos, iniciou sua vida pedagógica na pequena aldeia de Bar-sur-Loup (Alpes Marítimos) numa pequena escola rural. Além de pioneiro por abrir caminho para a modernização da escola (foi o criador do Movimento da Escola Moderna), Freinet foi o fundador, o realizador e o animador da Cooperativa do Ensino Laico (CEL), do Instituto Cooperativo da Escola Moderna (Icem) e da Federa­ ção Internacional do Movimento da Escola Moderna (Fimem).

Milhares de educadores, na França e em mais de 43 países do mundo, experimentam hoje seus trabalhos, prosseguindo a obra por ele começada e que tem inspirado numerosas reformas na esfera da educação.

Quem foi e o que fez esse pedagogo que tão fortemente influen­ ciou a realidade escolar em nível nacional e internacional? 1.

Mestre em educação. Coordenadora do Núcleo de Estudos Pedagógicos Célestin Freinet. Professora do Departamento de Educação da URI — Campos de Erechim/RS.

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A crítica do mestre francês Freinet fez de sua vida um esforço incessante pela transformação da escola de seu tempo, que percebeu burocratizada, distante da família, teórica e dogmática. Em seu projeto global de educação contesta, ener­ gicamente, a escola tradicional no tocante a certos aspectos como passi­ vidade do aluno, intelectualismo excessivo e caráter desumano da esco­ la. Volta-se, também, contra o fato de que, nas condições em que são colocados os alunos em termos de encontro com a vida, não conseguem desenvolver habilidades de análise crítica, de julgamento pessoal, de expressão livre de seus próprios pensamentos e opiniões, de apresenta­ ção de propostas novas, de exercício da cooperação, da criatividade, da responsabilidade e da afetividade. Freinet censurou veementemente o autoritarismo, manifesto não só no caráter repressivo das normas de organização do trabalho, mas também na arbitrariedade dos conteúdos estanques, defasados em rela­ ção à realidade social e ao progresso científico, fossilizados em manuais superados. Sua crítica voltou-se, ainda, contra o caráter artificial e a ineficácia dos métodos empregados que contrariavam o curso natural da vida, impedindo o interesse, a descoberta e o próprio prazer infantil. Todos estes obstáculos já entendia como os que abriam espaços para o insucesso e a reprovação — fatores determinantes da evasão, da repe­ tência e dos sentimentos de frustração das crianças.

Os prédios escolares, assim como os manuais e as práticas escola­ res, são denunciados por Freinet como causadores de enfermidades sérias como dislexias, anorexia e outras. As propostas escolanovistas, em especial as de Decroly e Montessori, são, também, alvo de comentá­ rios críticos, por preverem local, materiais e condições específicas para a execução da prática pedagógica.

Princípios da Pedagogia Freinet As dimensões pedagógica, política e social são elementos inte­ grantes da vida e da obra de Freinet. A esse respeito, ele próprio salienta que a defesa de sua técnica pressupõe dois sentidos simultâneos: o sentido pedagógico e escolar e o sentido político e social. Freinet enten­

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de que a sociedade está permeada de contradições que, por sua vez, expressam os interesses antagônicos das diferentes classes sociais, inva­ dindo todos os espaços da vida social, incluindo-se nesses a escola. Ao defender a integração trabalho e educação, Freinet afirma que a relação direta do homem com o mundo físico e social realiza-se por meio do trabalho. Na sua visão, a técnica essencial da educação consiste em proporcionar ao aluno a possibilidade de realizar um trabalho real, prático, concreto, socialmente produtivo. Além de um meio educacional de alto significado, vê no trabalho uma atividade fundamental do ho­ mem, base e motor de uma educação popular, recurso capaz de gerar a fraternidade entre os homens.

Eu digo educação pelo trabalho. Que não se entenda imediata­ mente pelo trabalho manual, como se devesse designar exclusi­ vamente manual. Ela é, na verdade, isso, na origem, mas em que essa atividade seja alguma vez arbitrariamente separada de uma alta espiritualidade que a ilumina, isolada do processo vital de que ela é um elemento, do mesmo modo que do processo social que a condiciona. (Freinet 1974)

Preocupado em transformar a sociedade para melhorá-la, em preparar a emancipação do indivíduo segundo um ideal de fraternidade e justiça compartilhadas, Freinet pretende liberar o homem de dogmatismos, fazendo-o artesão de sua própria educação, sujeito capaz de participar, de forma crítica e criativa, da construção de uma nova socie­ dade que lhe garanta um desenvolvimento integral, o mais humano e harmonioso possível. A luta pelo advento dessa sociedade é um dos deveres pedagógicos prioritários. A escola, na sua concepção, deve ser ativa, dinâmica, aberta para o encontro com a vida, participante e integrada à família e à comunidade — contextualizada, enfim, em termos culturais. Nessa escola, a aquisi­ ção do conhecimento deve processar-se de maneira significativa e praze­ rosa, em harmonia com uma nova orientação pedagógica e social em que a disciplina é uma expressão natural, conseqüência da organização funcional das atividades e da racionalização humana da vida escolar. A proposta pedagógica elaborada por Freinet revolucionou, já na época, a dinâmica da sala de aula, determinando mudanças profundas

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no relacionamento professor-aluno, escola e saber. Animado pelo desejo de proporcionar ao educando um papel ativo no plano escolar, Freinet realizou uma ação educativa na qual teoria e prática não se opõem; ao contrário, nenhuma das duas pode desenvolver-se sem a outra. Partindo da observação atenta da criança, analisando seus inte­ resses e necessidades mais profundos, bem como a maneira como ela constrói seu conhecimento, Freinet propõe uma pedagogia natural, "nova e popular" que enseja ao aluno não apenas o acesso à informação, mas também a apropriação do saber; uma pedagogia que, avessa ao imobilismo e à abstração, insere a alegria e o prazer no processo ensinoaprendizagem.

Essa pedagogia — também entendida como Pedagogia do Bom Senso e Pedagogia do Sucesso — está alicerçada, principalmente, nos seguintes princípios: Confiança e respeito ao ser humano e seus direitos:

Todos querem ser bem-sucedidos. O fracasso inibe, destrói o ânimo e o entusiasmo. (Freinet 1969, p. 182)

Freinet dá um destaque especial ao êxito na aprendizagem, bus­ cando, por intermédio dele, estimular a criança e torná-la confiante. Para tanto, atribui ao professor o dever de estar sempre disponível e receptivo, de colocar-se no nível da criança, de ouvi-la e aceitar o que vem dela. Sua pedagogia busca promover uma idéia específica de educação que envolve não apenas os direitos da criança, mas também os dos adultos. Uma das principais condições de renovação da escola é o respeito à criança e, por sua vez, a criança ter respeito aos seus professores; só assim é possível educar dentro da dignidade. (Freinet 1969, p. 203) Para o educador e humanista francês, o respeito ao ser humano, expresso pelo respeito à criança, é condição imprescindível para que a mesma possa viver e desenvolver-se plenamente como criança e, no futuro, defender os direitos dos outros, seus concidadãos.

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Abertura da escola para a vida e para o futuro

São palavras de Freinet: A escola tem de se modernizar. (...) A escola tem de reencontrar a vida, mobilizá-la e servi-la, dar-lhe um objetivo. E para isto deve abandonar as velhas práticas, mesmo que elas tenham tido a sua majestade, e adaptar-se ao mundo do presente e do futuro. (...) É necessário, sobretudo, que os pais e os educadores tomem consciên­ cia do fato evidente de que a vida mudou, as necessidades das crianças e do meio já não são as mesmas, e que, em virtude disto, as respostas de ontem já não são forçosamente válidas e é necessário a todo custo reconsiderar os problemas. (...) Nós somos educadores que tentamos, dentro de nossas próprias aulas, fazer passar para a prática, as idéias e os sonhos dos teóricos, que devemos assegurar a permanência das nossas funções, aplicando-nos a tomá-las mais eficientes. Temos de fazer nascer o futuro no seio do presente e do passado, o que implica não num espetacular apelo à novidade, mas prudência, método e uma grande humanidade. (1977, pp. 10-17)

Tateamento experimental Não são a observação, a aplicação e a demonstração dos proces­ sos essenciais da escola — as únicas vias normais de aquisição de conhecimento, mas a experiência tateante que é uma conduta natural e universal. (Freinet 1969, p. 185)

A criança tem a necessidade e o direito de buscar sozinha, de descobrir e se alegrar com suas descobertas, de encontrar seu lugar no mundo, de analisar este mesmo mundo, de dominar física e mentalmen­ te seu ambiente e inserir-se nele. Contudo, para que essa inserção seja eficaz, a criança deve apren­ der a realidade com um certo rigor de pensamento. Deve-se, então, fornecer-lhe meios necessários a sua formação científica ao longo do desenvolvimento de sua personalidade, considerada globalmente e di­ retamente ligada à sua vivência cotidiana.

O método natural integra a vivência coletiva e individual da criança. Baseado na expressão livre e no tateamento experimental, é um meio notável de aprendizagem que, atingindo bases profundas da vida, favorece 13

a aquisição dos saberes numa linha de unidade permanente e de inte­ gração (não fragmentação ou dispersão) dos conhecimentos científicos. Toda aprendizagem natural está subordinada ao tateamento ex­ perimental — trabalho de pesquisa reflexiva sobre os mais diversos materiais físicos ou mentais, aptidão para observar, manipular, relacio­ nar, emitir hipóteses, verificá-las, aplicar leis e códigos, compreender informações cada vez mais complexas. É caminhando que a criança aprende a caminhar; é escrevendo que ela aprende a escrever; é expressando-se que ela aprende a dominar sua linguagem, a conhecer-se e a conhecer os outros. Por meio de tateios, a criança realiza uma trajetória científica, criando regras de vida baseadas na experiência e na vida, segundo seu ritmo próprio.

O tateamento experimental, como importante processo de inves­ tigação e conhecimento científico, deve ser desenvolvido paulatinamente, atendendo ao ritmo de aprendizagem dele decorrente. Desta manei­ ra, os conhecimentos adquiridos pela criança vão se enraizando em profundidade, permanecendo, porém, relativos e passíveis de revisão quando novos fatos aparecem ou quando são feitas novas experiências.

Para Freinet, "os únicos conhecimentos que podem influenciar o comportamento de um indivíduo são aqueles que ele descobre sozinho e dos quais ele se apropria" (1969, p. 185). Em resumo, vale acentuar que é a partir de suas próprias experiên­ cias no confronto dialético com o mundo que o educando construirá sua própria personalidade e proverá os elementos de sua própria cultura.

Expressão livre A livre expressão é a própria manifestação da vida. Praticar a expressão livre é dar a palavra à criança, é dar-lhe meios de se exprimir e de se comunicar. O centro da escola não é mais o professor, mas a criança, a vida da criança; suas necessidades, suas possibilidades constituem a base de nosso método de edu­ cação popular. (Freinet 1979, p. 12) A livre expressão ocupa o centro da obra pedagógica de Freinet. Ao destacá-la nas suas múltiplas formas de manifestação (oral, escrita, artísti­ ca, musical, expressiva...) o educador francês abala os valores pedagógicos

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de seu tempo, definindo uma nova postura que transforma a escola num espaço aberto aos processos de vida, de trabalho e de aprendiza­ gem da democracia por intermédio da participação cooperativa.

A base da educação não é mais buscada nos manuais, que estimu­ lam principalmente a submissão da criança ao adulto e, mais especifica­ mente, à classe. Por meio do texto livre, do desenho livre, da palavra, do canto, da dança, do teatro..., a criança se revela, cria, inventa, exprime, enfim, suas vivências, sua vida afetiva, seus sentimentos, seus conheci­ mentos anteriores — todos estes elementos naturais de sua vida e que a caracterizam como um ser único e rico.

Mas, para que a expressão seja verdadeiramente livre, é preciso que o educador ajude o educando a servir-se de suas potencialidades, criando um novo clima da classe. Um clima de confiança, de aceitação, de alegria, de cooperação, de afetividade; um clima em que a criança exercite a liberdade acompanhada da responsabilidade, isto é, assumin­ do tudo o que a liberdade pressupõe: limitações, frustrações, necessida­ de de organização para que o trabalho possa ser bem desenvolvido. Com o auxílio do adulto, a criança pode tornar-se "mestre" de sua atividade, autogerindo-a. Organização cooperativa da classe

É a essência da proposta pedagógica de Freinet. Todas as ativida­ des, as conferências, os textos livres, as correspondências interescolares, o jornal escolar, os planos de trabalho... são desenvolvidos dentro de uma linha de cooperação, adquirindo, assim, um sentido novo e profun­ do. A criança, vista não como um indivíduo isolado, mas como parte de uma comunidade a que serve e que a serve assume a organização da vida de sua classe. Pouco a pouco vai, então, aprendendo a assumir respon­ sabilidades, a cumprir seus compromissos, a tornar-se livre e autônoma.

Educação pelo trabalho O trabalho será o grande princípio, o motor e a filosofia da pedagogia popular; atividade de onde advirão todas as aqui­ sições. (Freinet 1969, p. 27) 15

É no trabalho que a educação encontrará seu motor essencial, sua técnica primordial. Nesta perspectiva, fala-se de um trabalho concebido como uma atividade livre, definido a partir de um plano de atividades elaborado pela própria criança, no contexto da comunidade/classe. Como centro da educação e da vida, trata-se de um trabalho motivado pelo desejo do aluno de fazer e conhecer, pela vida do grupo/classe e pela consciência das aquisições desejadas. Individualização do trabalho

A criança não gosta de se sujeitar a um trabalho de rebanho. Ela prefere o trabalho individual ou de equipe numa comunidade coopera­ tiva. (Freinet 1969, p. 196)

A individualização do ensino apóia-se no princípio de atendi­ mento das diferenças individuais, isto é, no respeito às possibilidades e peculiaridades da criança para aprender. (...) as crianças nunca têm as mesmas necessidades e aptidões, sendo profundamente irracional pretender que todas avancem no mesmo ritmo. Umas enervam-se porque têm de marcar passo, enquanto desejariam e poderiam andar mais depressa. Outras desanimam porque são incapazes de continuar sem auxílio. Só uma pequena maioria aproveita o trabalho assim organizado. (Freinet 1978, p. 276)

O atendimento às diferenças individuais no contexto de uma comunidade cooperativa reveste-se da maior importância, quer do pon­ to de vista pedagógico, quer do ponto de vista humano. Por intermédio de recursos apropriados como fichários, planos de trabalho, cadernos autocorretivos e novas tecnologias, cada criança pode progredir no seu próprio ritmo e segundo suas necessidades e aptidões.

A prática Freinet sempre buscou uma escola ativa e uma educação plena de vida. Assim, não se limitou a construir uma pedagogia nova e popular, mas também a praticou.

Para a realização dos princípios anteriormente citados, criou e experienciou meios ou técnicas atualmente conhecidos e aplicados no mundo 16

inteiro. O texto livre, a imprensa, o jornal escolar (impresso e de parede), a correspondência interescolar, o dicionário dos pequenos, o caderno circular para os professores, o Livro da Vida, os planos de trabalho e outras... são técnicas que, quando utilizadas, funcionam como instru­ mentos de liberação do indivíduo e de desenvolvimento do método natural em linguagem, matemática, ciências naturais e ciências sociais.

Resultantes do trabalho coletivo em dezenas de milhares de esco­ las em todo o mundo, desenvolvidas como apoio na experimentação e na documentação, essas técnicas pretendem ser uma solução pedagógi­ ca e social, possível e prática na construção de uma escola que busque realizar o encontro com a mobilidade e com a vida. Acentuando o caráter não-estático dessas técnicas, disse Freinet (1978), que estes ins­ trumentos de ensino:

(...) não são atualmente (1964) o que eram em 1940, pois novos meios e novas técnicas vieram enriquecer e, da mesma maneira, facilitar nosso trabalho. Igualmente, não serão em 1980, o que são hoje, se formos capazes de fomentar, juntos, os progressos técni­ cos indispensáveis.

A propósito, é necessário que se acentue que a prática na concep­ ção de Freinet não se restringe ao emprego de técnicas educativas, à experiência do trabalho com os alunos, à prática pedagógica em si. O mestre francês vai além, integrando, também, neste contexto, a prática da escrita e a prática poética.

É importante, ainda, que se perceba o posicionamento desse pedagogo diante do seu próprio trabalho. Ele não o entendia intocável, nem completo, mas aberto a novas idéias e experiências, surgidas no percurso do tempo, desde que capazes de enriquecer e facilitar a ação do educador e de permitir o espírito de libertação e de formação do aluno.

Essa abertura a todas as experiências pode ser constatada ao longo de toda a história do movimento Freinet. Dizendo não "ao méto­ do fixo e definitivo", ele revela seu posicionamento dialético expressan­ do-se nos seguintes termos: 17

No ponto em que se encontram atualmente os conhecimentos psico­ lógicos e pedagógicos, faríamos figura de pretensiosos se apresen­ tássemos um método fixo e definitivo que se dissesse válido para todas as regiões da França, para as diversas escolas e para todas as crianças. (...) Não vos apresentamos um método. A técnica Freinet é de tal maneira elástica, que cada um pode adaptá-la às suas possibi­ lidades e às suas necessidades. (Freinet 1968, p. 418)

A intertextualidade em Freinet Estudando os movimentos da educação nova que se desenvolviam no âmbito da pedagogia internacional, Freinet visitou Monteigne, Rousseau, Pestalozzi, Decroly, Cousinet, Montessori, Dewey, Makarenko, Korczak, Ferrière, Piaget... buscando contribuições, criticando e desprezando tudo que contrariasse sua idéia específica sobre a educação da criança. Entre os pedagogos citados, foi influenciado, particularmente, por Rousseau, Pestalozzi e Ferrière. No confronto Freinet-Rousseau, entre os muitos pontos de conta­ to, é interessante destacar: o respeito pela criança para cujas necessida­ des e interesses deve estar voltada toda ação educativa; a confiança na natureza sem exclusão da consciência de necessidade do artificial; a valorização da sensibilidade sem desprezo pela razão e pela inteligên­ cia; as características do homem como indivíduo (vida, liberdade, felici­ dade, um ser moral e social); o relacionamento explícito entre a preocu­ pação pedagógica e as preocupações políticas e sociais. A afinidade entre Freinet e Paulo Freire pode ser notada, entre outros aspectos, no que diz respeito à crença na capacidade do aluno em organizar sua própria aprendizagem, à utilização do método global e à preocupação com a educação das classes populares.

Cabe ainda referência à aproximação entre as teses piagetianas e as técnicas Freinet. Nas práticas educativas de Freinet estão implícitas as etapas da seqüência necessária ao desenvolvimento cognitivo, conce­ bidas por Piaget: da ação à operação, finalizando na comunicação. Embora voltados para fins distintos — Freinet para as questões sociais e Piaget para as questões epistemológicas —, as convergências de ambos acontecem na descoberta do que é natural no ser humano. 18

Para concluir, vale ressaltar que o trabalho de Freinet "não é uma receita de pedagogia ou de didática" (Balallai 1984, p. 6); não é um método estático, intocável pela reinvenção, pela renovação. Alicerçado em idéias-forças como o método natural, o tateamento experimental e a educação pelo trabalho, Freinet propõe um movimento pedagógico que constitui uma verdadeira reflexão permanente sobre os objetivos e a práxis educacional (...) outra práxis mais coerente, no âmago da qual está a liberdade de ação do aluno e do professor e que se baseia num processo eminentemente dialético. (Balallai 1984, p. 6)

Este movimento prossegue graças aos esforços de seus colabora­ dores e seguidores. Numa abrangência que vai da pré-escola à universidade, educa­ dores do mundo inteiro colocam-se à disposição de crianças e jovens, procurando proporcionar-lhes um clima novo de trabalho. Nesse con­ texto, a escola ocupa o centro da vida e o respeito ao ser humano, na pessoa da criança, do adulto, de todos nós; é uma esperança na constru­ ção de uma sociedade mais justa e de uma educação mais moderna, solidária e libertadora.

Bibliografia

Freinet: Uma leitura crítica de "Pour l'Ecole du People". Blume­ nau, Furb, (21): 29-53, mar. 1984.

BALALLAI, R.

De Rousseau a Freinet ou da teoria à prática: Uma nova pedago­ gia. São Paulo, Hemus, 1978.

CABRAL, M.I.C.

FREINET, C.

Para uma escola do povo. Lisboa, Presença, 1969.

. A educação pelo trabalho. Lisboa, Presença, 1974,2 vols. O método natural I. Lisboa, Estampa, 1977. FREINET e SALENGROS, R. FREINET, E.

Modernizar a escola. Lisboa, Dinalivro, 1977.

Nascimento de uma pedagogia popular. Lisboa, Estampa,

1978. 19

. O itinerário de Célestin Freinet: A livre expressão da Pedagogia Freinet. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1979. GAL, J. L.

"La libre expressión". S.d., mimeo.

Compreendendo a deficiência mental: Novos caminhos educa­ cionais. São Paulo, Scipione, 1989.

MANTOAN, M.T.E.

Freinet, evolução histórica e atualidades. São Paulo, Sci­ pione, 1989.

SAMPAIO, R.M.W.

"Le mouvement de 1'ecole modeme; Pedagogia Freinet". S.d., mimeo.

THOMAS, E.

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2 A FORMAÇÃO DO EDUCADOR E OS PRINCÍPIOS APONTADOS PELA PEDAGOGIA FREINET

Marisa Del Cioppo Elias^

Uma crença da mitologia grega relata o destino que tomam as almas ao abandonarem o corpo, no momento da morte. Diz assim: (...) depois de perambular, a alma chega às margens de um rio. Ali se encontra um barqueiro, psicólogo e condutor de almas. Este a trans­ porta remando até um ponto do rio onde lhe entrega os remos para que, com sua própria maneira de remar, alcance a outra margem, a margem onde se acha o equilíbrio, a união dos opostos. Estamos aqui para conversar sobre um pouco da nossa experiência com a formação de professores, na qual temos utilizado princípios da Pedagogia Freinet. Certamente não comunicaremos tudo, mesmo porque em metodologia não existem receitas prontas. O que pretendemos, no entanto, é trazer-lhes algumas orientações gerais para que vocês possam vir a remar com suas próprias forças, com sua maneira própria de construir seu saber-fazer, de resolver os problemas educativos concretos. 1.

Doutora em educação. Professora da PUC/SP. Membro do Núcleo Freinet — São Paulo/SP.

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Para Freinet educação é ação e intervenção. Abordar a educação e a formação do educador segundo seus princípios implica, antes de tudo, não separar a ação pedagógica da vida. É preciso reconhecer que a educação é um processo intencional que deve ter objetivos claros, ou seja, saber onde se quer ou pretende chegar. Freinet dizia que não há educação não-diretiva, pois toda educação dirige. Segundo ele, o impor­ tante é uma direção que permita a construção, que estimule a reflexão, que forneça meios de um pensamento autônomo e dinâmicas de autoformação participada. A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimento ou de técnicas), mas sim por meio de um trabalho de reflexão crítica sobre a própria prática, um trabalho que possibilite a reconstrução permanente da identidade pessoal.

Trabalhando com metodologia, prática de ensino e estágio super­ visionado no curso de pedagogia há mais de 15 anos e tendo trabalhado, igualmente, por 27 anos na rede oficial de ensino do Estado de São Paulo, é certo que enfrentamos muitas dificuldades, convivemos com períodos de incertezas e participamos de muitas reformas que acontece­ ram no sistema de ensino. A última começou na década de 1980 e foi uma reforma com dupla perspectiva: organizacional e curricular. A orientação da Secretaria de Educação em nível central pressu­ punha, então, uma nova concepção de ensino-aprendizagem, segundo a qual o professor passou a ser considerado (e não poderia ser de outro modo) o elemento-chave da reforma. Criaram-se programas de treina­ mento em serviço. Um deles chamou-se Projeto IPÊ (Programa de Ins­ trução a Professores e Especialistas). Esse programa, quando se iniciou, utilizava como recursos a televisão, o rádio e o texto. Os professores deveríam fazer uma leitura individual do texto e, depois, reunir-se com seus pares na escola. Juntos com um monitor, assistiam ao programa de TV (que ia ao ar pelo Canal 2) — no qual o assunto era debatido, geralmente com a presença de especialistas na área —, discutiam, levan­ tavam questões e encaminhavam dúvidas para os mesmos especialistas que tinham debatido o assunto, por meio do rádio. Aos poucos esses programas foram sendo reestruturados. O im­ portante é que as Secretarias Estadual e Municipal de Educação de São Paulo, desde então, vêm investindo maciçamente em programas de aperfeiçoamento e atualização docente. Esses programas pressupõem,

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no que diz respeito aos alunos, uma aprendizagem construtivista, ativa, participativa e, sobretudo, investigativa; no que diz respeito ao trabalho dos professores com seus pares, o programa tem contemporizado o estudo das novas concepções de educação e de ensino, dando realce às práticas bem-sucedidas e orientadas para a investigação.

Cumpre-nos destacar que os técnicos de ambas as Secretarias advo­ gam a necessidade de se conceber a formação dos professores como um contínuum, não no sentido de justaposição entre formação inicial e aperfei­ çoamento, mas no sentido de evolução e de continuidade. Na época, como dito anteriormente, trabalhava em dupla jornada: na universidade e no curso de pedagogia, com a formação de educadores para atuarem como docentes no lº e/ou 2º graus ou como especialistas de educação, e num órgão central da Secretaria de Educação do Estado, justamente o órgão de estudos e normas pedagógicas,2 ou seja, aquele que dava orientação e propunha treinamentos para toda a rede de ensino. Durante dez anos participei desse trabalho ora planejando, ora acompanhando, ora avaliando esses treinamentos. O contato perma­ nente com os professores da rede estadual de ensino deu-me um perfil muito claro desses educadores. Passei a conhecer de perto suas necessidades, angústias, expectativas, saber de seu compromisso (ou descompromisso) com a educação, do quanto estavam impregnados das idéias de ensino ativo, trazidas pelos escolanovistas, e como mesclavam essas idéias com as do ensino tradicional pelo qual a maioria foi formada. O conceito de aprender significava, para muitos desses educadores, exprimir com as próprias palavras aquilo que haviam ensinado ou transmitido ou o que o aluno havia captado a partir da leitura de um livro-texto.

Comprovei que alguns desses professores já haviam avançado mais nas atitudes e na ação: utilizavam o diálogo com freqüência, respeitavam o ritmo do aluno... Mas, no fundo, a situação ensino-aprendizagem era a mesma de quando esses professores haviam sido forma­ dos, ou seja, transmitiam conteúdos fragmentados e os alunos memorizavam-nos e obedeciam passivamente a eles.

2.

Cenp — Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas —, Órgão Técnico da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

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Que fazer frente a esse quadro? Se era formadora do professor que iria atuar nas séries iniciais do 1º grau, dos futuros coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais, supervisores de ensino, direto­ res de escola, que contribuição poderia dar para que sua própria forma­ ção deixasse de ser linear e mecânica? Como concorrer para a transfor­ mação do ensino?

Essas e muitas outras questões preocupavam-me, como: Existem diferentes tipos ou níveis de conhecimento pedagógico que os professo­ res devem adquirir? Qual é o conhecimento que os professores têm dos conteúdos de ensino e onde e quando o adquiriram? Ou, ainda, como o utilizam em sala de aula? Se meu saber-fazer foi se estruturando na medida em que colocava em prática uma didática que buscava o equilí­ brio necessário e dialético entre teoria e prática, considerava a realidade das escolas, registrava tudo para só depois de muito analisar e refletir poder definir estratégias possíveis de intervenção pedagógica, por que não fazer esse mesmo percurso com os alunos?

O primeiro passo não seria o de analisar os diferentes tipos de conhecimento para, juntos, definirmos qual iríamos privilegiar em sala de aula? Como que por intuição recuei no tempo, nos séculos XVIII e XIX, ousando inverter o processo. Fui buscar, no passado da pedagogia, respostas para essa prática atual; ver nele quanto os educadores já haviam desafiado a epistemologia ao buscar explicações sobre a nature­ za do conhecimento.

Estudei num crescendo, começando pela teoria mais simples, a inatista ou nativista, que afirma ser o conhecimento pré-formado, uma dádiva ou conquista que se dá por revelação e quem a recebe deve passar para os outros. Passei, depois, para duas outras teorias que rejeitavam essa concepção: a dos empiristas e a dos construtivistas. A primeira, admitindo que o conhecimento tem origem e evolui a partir das experiências acumu­ ladas pelo sujeito e não está no sujeito, mas no objeto a ser conhecido, daí que precise ser transmitida, e a segunda, o construtivismo (hoje bastante divulgada por meio dos estudos de Emília Ferreiro, discípula de Piaget e dos estudos de Wallon, Vygotsky, Lúria, Leontiev etc.), que ultrapassa a teoria anterior em relação ao conceito de experiência. Tudo o que foi estudado confirmou que o conhecimento é resultado de um processo de elaboração e construções autênticas, derivado de nossas 24

experiências — do que lemos, vemos, ouvimos, tocamos etc. —, mas provo­ cado também pela exigência da sociedade, sempre com vistas a novas possi­ bilidades. O sujeito, aquele que conhece, interage com o objeto, algo que é conhecido, procura analisá-lo, entendê-lo, reconstruí-lo. Conhecia os princípios apontados pela Pedagogia Freinet, mas, até então, não tinha tido oportunidade de vivenciá-los. Foi quando decidi fazê-lo com alunos do 3º grau e assumir dois grandes desafios. Primeiro, o de vivenciar uma prática de ensino que fosse ao mesmo tempo globalizante (pois a realidade é globalizante) e coletiva e teorizar sobre essa prática e, segundo, o de registrar uma nova prática, uma prática desejada, possível e interdisciplinar, construída coletivamente a partir da realidade das escolas e da realidade social. Freinet deu-nos um exemplo notável de sabedoria e humildade quando do início de sua carreira docente. Ele não tinha experiência pedagógica porque não havia terminado o curso normal por causa da guerra, mas sabia que queria ser professor. Recomeçou, então, a estudar, sozinho, lendo as obras dos grandes mestres do passado, os mesmos clássicos que também influenciaram nossa formação. As observações e os registros que fazia da prática de sala de aula também eram revisitados, diariamente, avivando sua curiosidade e seu desejo de saber mais sobre educação, inspirando-o a conceber e publicar, anos mais tarde, seus princípios denominados de invariantes (que não variam) pedagógicas.

Como para ele, a sala de aula também foi o ponto de partida para eu iniciar um processo consciente e uma verdadeira transformação metodológica. Recapitulemos esses passos metodológicos: comecei tateando, pes­ quisando a prática dos professores, refletindo sobre ela, analisando-a, cuidadosamente, sugerindo correções e seu aperfeiçoamento, não lendo nelas mais do que têm de aceitável e vantajoso. Colocando entre parênteses as teorizações já feitas, construía meu próprio conhecimento, um conhecimento teórico-prático voltado para a libertação e a autonomia possíveis. O saber, segundo Freinet, não é estático e unilateral; ganha vida e movimento por intermédio das expe­ riências e do fazer. Não foi justamente o que esse mestre fez ao ajudar seu aluno a compreender, articular seus interesses com os dos domina­ dos, ao criar na França uma escola popular? E por que é importante

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retroceder no passado e buscar, na minha experiência como professora dos vários níveis e graus de ensino, e na experiência dos alunos e dos professores que eles observam, os dados que comprovassem como acontece a estruturação e organização da prática? É um exercício que nos leva à origem do conhecimento; rever a influência dos nossos primeiros teóricos, os mesmos que nos ajudaram a construir nosso modelo atual de homem, de mundo, de conhecimento, de educação e de ensino-aprendizagem. Essa foi a forma que encontrei para descobrir como e o que devemos trabalhar. Qual proposta pode ser mais significa­ tiva para transformar o percurso que deveríamos fazer com nossos educandos, futuros docentes?

Ano a ano tenho repetido esse exercício com os alunos, procuran­ do cruzar as informações que se ligam tanto à sua formação e prática docente como à perspectiva psicogenética de aprendizagem da leitura e da escrita, atualmente o tema central de meus estudos, pois trabalho a metodologia e a prática da língua portuguesa — alfabetização.

Ela possibilita a compreensão do por que o professor hoje não pode mais ser visto como o único que ensina, que é necessário parar e questionar sobre o tipo de conhecimento que se transmite atualmente nas escolas de 1º e/ou 2º graus e, por que não, de 3º grau. Seguindo os passos do mestre Freinet, sabemos que é importante pesquisar, encontrar uma maneira própria de ensinar e de aprender. Para nós, buscar no passado o que alguns educadores já haviam advertido pode significar cumprir o que até agora ainda não foi cumprido, como, por exemplo, a necessidade de ajudar a criança a observar melhor, valorizar seus conhecimentos e experiências, trazer vida para a escola. É preciso mostrar aos nossos alunos toda a perplexidade que se sente quando se relê um Decroly ou um Freinet e se verifica que eles já apontavam para a necessidade de trocar os métodos tradicionais usados para o ensino da leitura e da escrita por métodos naturais que ajudassem a criança a avançar cognitivamente.

Vale a pena fazer esse percurso pois ele é gratificante. No retrocesso que fazemos juntos, descobrimos novas facetas dos ensinamentos desses grandes mestres do passado. E por onde começamos? Começamos sempre por Rousseau, pois consideramos que, por intermédio de Emílio—roman­ ce pedagógico que teve a vanguarda histórica de combater as teorias e práticas pedagógicas tradicionais — Rousseau tentou esclarecer equívocos

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da relação educador-educando, mostrando que o ensino deve conside­ rar sempre a totalidade do conhecimento, em estreita correspondência com as necessidades básicas da sociedade. Talvez o leitor prefira partir de outro educador ou outra época ou ficar apenas no presente. O que quis trazer para essa discussão é que se pode inovar também por intermédio do velho, mesmo porque não há doutrina ou tendência pedagógica3 totalmente original. De alguma forma, todas proclamam que a missão do homem consiste em realizar sua essência. No entanto, todas surgiram na história em momentos que se preparavam transfor­ mações profundas no conceito de homem.

O certo é que todo profissional da educação precisa se apropriar dos conhecimentos relativos ao seu campo específico de trabalho. Sem esse conhecimento, nem sempre é possível compreender a razão de nossas ações e mudá-las, conscientemente, quando necessário. Também é certo que não podemos acreditar em todas as novidades em matéria de educação e aceitá-las. Há a necessidade de que as informações e opiniões dos autores sejam filtradas por nós, uma vez que muitas de suas adver­ tências influenciaram educadores dos séculos seguintes, passando por Freinet e chegando até nossos dias. Entre elas podemos destacar: a importância da observação, do tateio experimental, do interesse e, em particular, das relações com o homem. O revisitá-los pode representar um recomeçar a educação, um rever o passado com as teorizações adquiridas nesse passado, porém, revisitadas com os olhos do presente. Partir do princípio de que na natureza pode-se descobrir as leis ou os princípios em que se baseia a educação, não é justamente recupe­ rar o que um Herbart ou um Frõebel já haviam feito ao sustentarem que a criança deve primeiro adquirir a idéia da forma e compreender a palavra por meio do objeto ou o objeto antes da palavra? E, essa afirma­ ção que hoje fazemos, como possivelmente o fizeram Herbart e Frõebel, não constitui uma revolução na teoria e, na medida em que se realiza (e se realizou), também na prática?

Nosso objetivo ao fazer a inversão do processo também com os alunos é mostrar que, para quem ousa inovar, o processo do conhecimento

3.

Usamos o termo doutrina como modo de pensar, de proceder, e tendência como a atitude de o homem apropriar-se de um pensamento ou comportamento.

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nem sempre é linear. Exige períodos de organização para os quais muitas vezes há momentos contraditórios e conflitantes, o que justifica ir às origens das propostas pedagógicas, não só as dos grandes mestres mas as dos nossos professores que hoje estão em sala de aula. Descobrir as intenções com que foram formuladas, localizá-las no contexto e no tempo para, então, com um profundo conhecimento da teoria e dos alunos com os quais vamos trabalhar, definir uma metodologia possí­ vel de ensino.

Em nossa sala de aula os alunos são considerados sujeito do próprio conhecimento. Por meio de sínteses contínuas da prática obser­ vada, define-se a teoria que precisa ser aprofundada em função das indagações que os alunos vêem, ouvem e registram durante os está­ gios, como o comportamento de cada criança perante as situações novas, seus sucessos, problemas, interesses, dificuldades etc. Muitas dessas questões investigadas não encontram respostas nem nas recen­ tes pesquisas da psicologia, psicolingüística, lingüística, sociolingüística etc., e o grupo procura explicitar sua compreensão, ampliando, assim, seu repertório de possibilidades de uma prática comprometida e criticamente refletida. Acredito estar formando professores competentes para o Magistério. Entendo por competente o profissional que, mesmo com fragmentos de condições (materiais, humana etc.), conhece a si próprio e suas possibilidades, e tem a humildade suficiente para solicitar ajuda (dos teóricos, dos parceiros) sempre que necessite. É aquele que se supera e se transforma num verdadeiro educador, um educador com uma visão globalizante dos fenômenos educa­ tivos, um educador comprometido social e politicamente. Buscar uma visão globalizante e interdisciplinar de educação é necessário, porque íntegro e unitário é o homem; não há dimensão desvinculada senão múltiplas manifestações de entidade pessoal. Nossa proposta é a de levar aos alunos o conteúdo de uma aprendizagem que não está feita, acabada, pois, como dissemos no início, em metodologias não há receitas. Tudo está por ser construído e reconstruído em conjunto.

Os princípios da Pedagogia Freinet que sustentaram esse novo fazer pedagógico estão descritos no quadro a seguir.

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Princípios da Pedagogia Freinet

Participação



Cooperação

Individualização —

Socialização

Criatividade



Atividade

Crítica



Valorização

Autonomia



Responsabilidade

Unidade



Integração e Interdisciplinaridade

Eles contribuem para que cada aula represente um turbilhão de possibilidades, sem comparação possível com a organização de uma sala de aula tradicional. O contrato que se estabelece por meio da cooperação é mais exigente. Os alunos já não se contentam em fazer simplesmente o trabalho. Procuram ser mais ativos, inventivos, críticos; tomam iniciativas, assumem responsabilidades e, ao mesmo tempo em que são autônomos, no grupo, negociam a divisão de trabalho.

Estamos conscientes de permitir que cada aluno seja protagonis­ ta de sua própria aprendizagem, um aprender-fazendo de forma coparticipativa, livre, responsável e prazerosa. A vida é um contínuo aprender. Mas, de que serve os saberes se não se aprende a pensar, a ter iniciativas, a meditar sobre os achados, as ações, as possibilidades concretas? Uma atitude construtivista, uma predisposição positiva não anulam as dificuldades, porém é um excelente começo para um traba­ lho enriquecedor. Terminamos apresentando os princípios que adotamos por con­ siderá-los importante para um trabalho de sucesso. São eles:

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ação

prazer

atividade conjunta onde crescem tanto professores como alunos durante o processo da ação, não somente diante do produto, quando se apresentam os resultados

convicção

realiza o trabalho com responsabilidade e respeito ao outro

cooperação

autogestão participativa, amadurecimento pessoal e grupai, construído na ação

orientação

o professor é orientador e facilitador, cordial, democrático, idoneamente preparado

flexibilidade

clima afetuoso, incentivador, de trocas

integração e integridade

atividades ricas, variadas, interessadas, com trocas constantes e conteúdos globalizantes /interdisciplinares

motivação

envolvimento dos integrantes do grupo com o trabalho/pesquisa

liberdade

respeito à liberdade de cada um, fundamentada na responsabilidade

democracia

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aprender fazendo e compartilhar responsa­ bilidades democraticamente. O professor aprende também com o grupo, favorece o crescimento do grupo

Bibliografia "De Emílio a Emília: Contribuições para as questões do ensinar e do aprender". Tese de doutorado, São Paulo, Feusp, 1993.

ELIAS, M.D.C.

." As idéias construtivistas mudam os caminhos da prática da alfabe­ tização". In: Revista Ande (18): 49-56, ano II, São Paulo, Cortez, 1992. . et alii. A melhoria do ensino nas primeiras séries do 1º grau: Enfren­ tando o desafio. São Paulo, EPU/Educ, 1987.

Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro. São Paulo, Loyola, 1979.

FAZENDA, I.C.A.

Para uma escola do povo: Guia prático para a organização material, técnica e pedagógica da escola popular. Lisboa, Estampa, 1975.

FREINET, C.

. Ensaio de psicologia sensível I e II. Lisboa, Presença, 1976. . Pedagogia do bom senso. São Paulo, Martins Fontes, 1985.

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3 A VIDA NA SALA DE AULA FREINETIANA

Maria Lúcia dos Santos1

Cultivaremos antes de tudo este desejo inato na criança de se comunicar com outras crianças, de jazer conhecer ao redor de si seus pensamentos, seus sentimentos, seus sonhos e suas esperanças. Assim, aprender a ler, a escre­ ver, a se familiarizar com o essencial daquilo que chama­ mos de cultura será para ela função tão natural quanto a de aprender a andar. Célestin Freinet

Um novo olhar para a criança

Em seu texto, Freinet, filósofo da infância (1991), Éric Debarbieux, chama-nos atenção para o predomínio, ao longo dos sécu­ los, na filosofia da educação, da concepção da criança como um pequeno animal, como um ser inacabado, selvagem. Exemplifican­ 1.

Diretora da EEPG Faria Lima. Membro do Núcleo Freinet — São Paulo/SP.

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do cita Platão: "Entre todos os animais, a criança é o mais difícil de manejar"; Erasmo: "Os homens não nascem homens, formam-se como homens pela educação"; Kant: "A criança chega ao mundo no estado selvagem". Ressalta também Debarbieux que conduta semelhante é observa­ da na visão jurídica, esclarecendo que tanto no direito grego quanto no direito romano ou no direito canônico, por ser a criança privada de razão, sua palavra não tem valor juridicamente reconhecido. Cita ainda a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em que as crianças integram o grupo dos cidadãos passivos, ou seja, daqueles que não têm direito a voto e à palavra. A essa visão tradicionalmente predominante, contrapõe-se a con­ cepção de Célestin Freinet, idealizador da Pedagogia Freinet e fundador do Movimento da Escola Moderna:

A criança é da mesma natureza que o adulto. Ela é como uma árvore que ainda não terminou seu crescimento, mas que se alimenta, cresce e se defende exatamente como a árvore adulta. Para Freinet, a criança é um ser afetivo, um ser inteligente e um ser social como o adulto. Ao formular este invariante, identificando-o como "invariante nº 1", no Código Pedagógico que publicou, na década de 1950, Freinet (apud Sampaio 1989, p. 91) inova profunda e corajosamente. A criança, que ocupa o centro das preocupações de sua proposta pedagógica, é redefi­ nida como um ser totalmente provido de humanidade: que fala, que sente, que pensa, que age, que busca, que cria, que constrói, que se defende, que interage na sociedade em que vive.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em julho de 1990, ao reconhecerem para a criança os direitos de expressão, de opinião e de associação, dão, muitas décadas depois, razão a Freinet. Ao concederem à criança direitos semelhantes aos da pessoa humana adulta, passam a vê-la como um cidadão.

No entanto, nas nossas escolas ainda predomina o ensino basea­ do no modelo do professor que fala, decide, determina e no do aluno

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que ouve, obedece e executa, ou seja, permanece ainda generalizada a metáfora de que a criança é um recipiente a ser preenchido com o saber transmitido pelo professor...

Também na sala de aula as necessidades e os direitos das crianças precisam ser de fato reconhecidos e respeitados. A construção e a atua­ lização permanente da Pedagogia Freinet decorrem dessa preocupação.

Um exercício de cidadania...

Apesar de inovadora, a Pedagogia Freinet não é nova. Suas bases foram lançadas na década de 1920 e, há mais de 70 anos, vem demonstran­ do sua eficiência nas mais diferentes realidades onde tem sido praticada, seja em classes de educação infantil ou em cursos de pós-graduação. Embora não sendo nova, é uma proposta que a cada dia se renova. Sua atualização permanente se dá por intermédio das diferentes ações desenvolvidas pelo Movimento da Escola Moderna de diferentes países e pela Federação Internacional dos Movimentos da Escola Mo­ derna — Fimem. A grande originalidade da proposta freinetiana encontra-se no fato de atribuir às atividades escolares as características de um verda­ deiro trabalho e de colocar à disposição das crianças meios para que elas possam divulgar suas realizações a um público maior do que o grupoclasse. Foi com esse intuito que Freinet, em 1927, introduziu a impresso­ ra em sua sala de aula. Posteriormente, também com o mesmo propósito, seus seguido­ res foram introduzindo o gravador, o rádio, a televisão, o vídeo, o microcomputador, o fax. Dois pressupostos básicos deram origem a esse procedimento:

• a aprendizagem é uma atividade construtiva da criança; • o trabalho criativo é o motor da ação educativa.

Numa classe freinetiana a criança não faz lição para receber uma nota do professor, mas realiza um trabalho criativo e recebe dos destina­ tários de suas produções comentários críticos, sugestões, solicitações e outras produções. A expressão livre — nas suas mais diferentes formas:

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verbal, gráfica, plástica, corporal, musical, escrita — é sempre o ponto de partida para a ação educativa. Ela é estimulada e acolhida como elemento propulsor de todas as atividades.

A expressão infantil circula por meio de circuitos sistemáticos de comunicação instituídos na sala de aula e fora dela, por intermédio de técnicas educativas tais como o texto livre, o jornal escolar, a correspon­ dência interescolar, o álbum, o livro da vida. Em virtude dessa nova concepção da atividade escolar, a sala de aula freinetiana perde a configuração de auditório e adquire as caracte­ rísticas de uma oficina de trabalho, um local de produção decidida e realizada cooperativamente pelas crianças que, evidentemente, contam com a assessoria técnica do professor. Tal produção apresenta-se sob a forma de criações, de pesquisas, de aprendizagens realizadas.

A disposição material da classe Freinet é por si só um convite à comunicação e ao trabalho. A sala é dividida em cantos, cada um correspondendo a um atelier de trabalho. Tais cantos são definidos em função dos objetivos e dos conteúdos fixados para o curso. Possuem número limitado de vagas (quatro ou cinco) e funcionam simultanea­ mente, num determinado período do dia. É a criança que escolhe o cantinho em que vai trabalhar: desenho, escrita, modelagem, pintura, recorte-colagem, jogos de construção, biblioteca, água, matemática etc. Em cada canto o material necessário para a realização de atividades encontra-se disposto de forma que a criança possa utilizá-lo e guardá-lo sem necessitar da ajuda do professor. Para tanto, as crianças precisam conhecer o lugar de cada material. Caixinhas de papelão etiquetadas (com desenho e escrita) auxiliam na memorização do local, como tam­ bém favorecem o contato da criança com a escrita funcional. Tal organização didática, ao propor num mesmo momento um leque de atividades, possibilita o respeito aos interesses e ritmos de cada criança, o contato com os mais diversos materiais e ao mesmo tempo lhe oferece a oportunidade de, ao escolher a atividade que deseja fazer, exercer sua autonomia. Por outro lado, cria as condições necessárias para a troca de experiências entre as crianças. Esgotado o tempo destinado para o trabalho em atelier, as crianças reúnem-se e cada uma comunica para o grupo suas realizações e descober­ tas. No decorrer da apresentação para os colegas, alguns elementos do

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trabalho ou da experiência são melhor precisados e aparecem numero­ sas noções: número, cores, estruturação espacial. O grupo reage, pede esclarecimentos, faz comentários, emite sua opinião. Acontece, então, o intercâmbio de idéias, de experiências vividas, de sugestões paratateios em novas direções. Nessa relação dialética (indivíduo x grupo), a criança, além de exercitar a linguagem, relatanto e explicando o que fez, toma consciência do efeito provocado pelo resultado de seu trabalho: desenho, pintura, pulseira de papel, o avião montado com peças de plástico, a descoberta de que dois copinhos aparentemente de tamanhos diferentes comportam a mesma quantidade de água... Essa avaliação direta torna-se uma ajuda positiva para o aprimoramento de trabalhos e investigações futuras. Durante o trabalho em atelier, a professora circula pelos diversos cantos, atendendo as crianças que necessitam de sua ajuda. No momen­ to da apresentação, ela coordena a atividade: organiza a troca de expe­ riências e intervém, sempre que necessário, para auxiliar e permitir que as crianças tornem mais precisos seus pensamentos.

Na classe freinetiana, os exercícios convencionais cedem lugar à edição de jornais, álbuns, revistas, livros; à realização de enquetes, exposições, projetos, dramatizações; ao trabalho personalizado (com o uso de fichas); à organização de visitas a outras classes e a instituições da comunidade; à prática da correspondência interescolar. Turmas de educação infantil enviam e recebem de crianças de outras escolas cartas coletivas, desenhos, pinturas, gravuras, colagens, jornais, álbuns, grava­ ções em fita cassete e de vídeo. Assim, amplia-se o horizonte da classe e propicia-se às crianças contatos com outras realidades, outros costumes, outras culturas.

Além dos cantos de trabalho, na sala de aula freinetiana também se prevê um local para exposição das produções infantis e um espaço para reunir todas as crianças nos momentos coletivos: • momento de conversa: no qual as crianças, porque são ouvidas e valorizadas, sentem-se à vontade para falar de suas alegrias, de suas tristezas, de seus medos, de sua realidade, de suas fanta­ sias. Os diferentes temas abordados trazem a vida da criança para a sala de aula. Alguns são registrados no livro da vida, outros são enriquecidos nos ateliers, outros geram sugestões e questões que, muitas vezes, dão origem a projetos coletivos;

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• momento de planejamento do dia: no qual as atividades em atelier, as atividades na classe e fora da classe são distribuí­ das nos diferentes momentos do dia; • momento de comunicação do trabalho realizado em atelier: no qual, como já foi dito, cada criança mostra para o grupo sua produ­ ção ou fala sobre as descobertas que fez; • momento de atividades coletivas diversas: narração ou leitura de histórias, dramatizações, canto, preparação de uma visita ou um passeio, redação coletiva da carta para os corresponden­ tes; • momento de avaliação: no qual diferentes aspectos da vida da classe são tratados.

Outros momentos são passados ao ar livre, onde as crianças jogam bola, pulam corda, brincam na areia, participam de jogos em grupo, de rodas cantadas e inventam as mais diferentes brincadeiras.

O Plano de Trabalho Coletivo elaborado diariamente com as crianças (onde se registra o que se pretende fazer, como, onde, em que momento e por quem será feito) e o Plano de Trabalho Individual, onde todos os dias cada criança assinala as atividades que fez, são instru­ mentos que possibilitam a cada criança, ao grupo e ao professor acom­ panhar e avaliar o desenvolvimento conquistado na evolução dos trabalhos da classe. A diversidade das situações e das atividades educativas propicia­ das pela Pedagogia Freinet assegura às crianças a oportunidade de vivenciarem alternadamente diferentes papéis: o do responsável, o do que sabe e ajuda, o do que solicita auxílio, o do que recebe e passa informações, o do que reclama, o do que recebe críticas, o do que propõe e realiza. Os problemas e conflitos que inevitavelmente surgem no decorrer do trabalho vão sendo administrados por intermédio da nego­ ciação coletiva. Nessas ocasiões, normas para o convívio mais harmo­ nioso vão sendo elaboradas, codificadas e estabelecidas pelo grupo.

Na proposta freinetiana, o professor coloca-se ao lado da criança, ajudando-a a tomar consciência de suas possibilidades. Atua no grupo como colaborador mais experiente e auxilia a criança a elaborar, a realizar e a concluir seus projetos. Seu papel é o de coordenador das 38

atividades, o de criar condições para que, durante o trabalho escolar, a criança se expresse e seja ouvida, para que ela aja para aprender e para que, por meio da vida cooperativa, exerça sua cidadania. Sua responsa­ bilidade é a de assegurar as condições técnicas e materiais para que, na sala de aula, torne-se possível a realização de um trabalho vivo, que dê sentido social imediato às aprendizagens realizadas pelas crianças. Seu compromisso: impulsionar a criança a se expressar, a decidir, a realizar, a pesquisar, a interagir, enfim... a avançar o máximo possível na constru­ ção de seu saber e a construir-se como indivíduo e cidadão autônomo, responsável e capaz de cooperar com seus semelhantes. Finalizando, passamos a palavra a Freinet(1985):

As crianças precisam de pão e de rosas. O pão do corpo, que mantém o indivíduo em boa saúde fisiológica. O pão do espírito, a que chamas instrução, conhecimentos, con­ quistas técnicas, esse mínimo sem o qual se corre o risco de não conseguirmos a desejável saúde intelectual. E as rosas também—não por luxo, mas por necessidade vital. (...) As crianças têm necessidade de pão, do pão do corpo e do pão do espírito, mas necessitam ainda mais do teu olhar, da tua voz, do teu pensamento e da tua promessa. Precisam sentir que encontra­ ram, em ti e na tua escola, a ressonância de falar a alguém que escute, de escrever a alguém que as leia ou as compreenda, de produzir alguma coisa de útil e de belo que é a expressão de tudo o que nelas trazem de generoso e de superior.

Bibliografia

Éric. "Fragmentos de uma filosofia da infância", trad. de Ruth Joffily, Nouvel Educateur, nº 25, jan./91. (Suplemento Série Document).

DEBARBIEUX,

FREINET, C. Pedagogia

do bom senso. São Paulo, Martins Fontes, 1985, p. 104.

Rosa Maria W.F. Evolução histórica: Atualidades. São Paulo, Scipione, 1989.

SAMPAIO,

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4 RETROSPECTIVA DE UMA CAMINHADA

Maria Celita de Andrade Osório1

Passou-se uma década de caminhada na Educação Pré-escolar e nem senti. Tantas maravilhas rolaram... muitas crianças passaram por minhas mãos e, como conseqüência, outros tantos contatos com as famílias!... É contagiante envolver-se na alegria do imprevisto, do novo!

Custei a engrenar, a descobrir um bom ritmo de caminhada. Contudo, a busca perseverante, o estímulo corajoso e firme nas diferen­ tes situações, conduziram-me até aqui. Isto me impulsionou a atitudes de bom senso... o professor deu-se conta que não é "o dono do saber", portanto, não era justo induzir, manipular a vontade, a criatividade, a expressão livre do aluno, colocando tudo a perder. Com muito carinho e empatia, diálogo e sugestões, tentei fazê-lo compreender o gosto da descoberta, do tateamento feito por seu aluno. Constatei que o bom exemplo do professor vale mais do que qualquer palavra, porque a aprendizagem começa onde a criança está e não onde o professor encontra-se. 1.

Orientadora pedagógica do Pré-Escolar Educandário "Imaculada Conceição" — Florianópolis/SC.

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A pressa não leva a nada... O aprendizado acontece não só deva­ gar mas é gradual, contínuo e progressivo. Hoje já não concebo mais uma educação cujas estratégias conduzem ao tédio, ao aborrecimento da rotina cansativa... injusta, deprimente, sistemática. Penso, hoje, em criar clima na sala de aula para motivar a criança, pois o respeito pelo outro faz bem, proporciona um aprendizado real e não puro adestramento; uma educação seqüencial, com liberdade, mas com organização; um conteúdo sério, mas favorecendo a autonomia, onde cada criança possa ser ela mesma, onde cada idade possa ocupar seu lugar e que em cada fase se reconheça a capacidade e as limitações próprias.

Senti que cada passo é importante para o passo seguinte, num caminhar amoroso, cheio de afetividade... Sonho?!... As perspectivas para um ano escolar poderão ser um sonho ou tornar-se realidade... depende do empenho de cada um. A caminhada no processo educativo foi lenta, todavia, progressiva. Dentro do contex­ to, tive que procurar outras alternativas, outros caminhos. Para ale­ gria de muitos, a diretora apresentou a Pedagogia Freinet, com múl­ tiplas alternativas de caminhada, vindo ao encontro de grande ansie­ dade dos professores. Um desafio, mas "como nada acontece ao acaso" precisávamos iniciar... (diga-se de passagem, a diretora foi convidando para a mudança durante dois anos e depois... foi muito democrática e desafiou: "Agora eu quero"... Esta foi a alavanca final para deslanchar).

Sabíamos que, usando a criatividade e tateando com coragem e bom senso, faríamos uma grande caminhada, abrindo para a criança chance de descobrir, aprender, viver e crescer na convivência (socioemocional), na psicomotricidade, na aprendizagem.

Redimensionamos as estratégias de trabalho didático-pedagógico à inspiração da Pedagogia Freinet e ao método natural. Cada coisa foi tomando seu devido lugar. Brincando, a criança experiencia para aprender com profundida­ de. Aprende de dentro para fora, como a própria natureza das plantas, dos animais. Recebe a informação, confronta com o que sabe e tira suas conclusões, construindo seu saber, o amor pelo estudo, a autodisciplina. 42

• Afetividade! Os desenhos, as palavras, as frases são car­ regados de afetividade! Alegria, dos 3 aos 6 anos, no livro da vida! • Promove a sociabilidade. Sente-se bem na escola. Em geral, as exposições de atividades, a visita dos pais à escola e as festas são fortes incentivos que encorajam a criança a conti­ nuar seu tateamento... • Atende a individualidade de cada um. • Destaca a dignidade da criança. • Faz crescer a auto-estima. • Reconhece os próprios limites. • Compromete e responsabiliza por meio da valorização e do elogio. • Desde cedo a criança aprende a assumir pequenas respon­ sabilidades. • Estimula a curiosidade que leva à iniciação do conhecimen­ to científico. • Proporciona riqueza de experiências no e ao grande grupo, e na troca por intermédio da correspondência interescolar. • Viabiliza pluralidade no caminho pedagógico: A criança aprende uma coisa de várias maneiras e níveis, democrati­ zando um ensino de qualidade. • Aumenta a destreza na coordenação motora, na orientação espaço-temporal, na percepção visual com suas diferenças e semelhanças, na criatividade, na análise e síntese. • Desperta o interesse pelo mundo das letras e dos números. • Seleciona critérios na escolha democrática. • Salienta-se na vivência, na experiência. • Cultiva a habilidade e desenvoltura na expressão corporal, desenvolve ao máximo as potencialidades. • Ajuda o professor a avaliar para redimensionar cada vez melhor suas metas, a ficar atento para atender os diversos aspectos da personalidade infantil. Assim organizada, vamos repensando os problemas da educação no Brasil.

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Dificuldades aparecem, quase sempre relacionadas com o socioemodonal da criança (convivência social na família), com a falta de estímu­ los (o como fazemos), ausênda de afetividade no dia-a-dia da criança. O importante é fazer as coisas certas nas horas certas, recomeçando a cada instante... fazendo o caminho com bom senso, com a inspiração na pedagogia do pastor.

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5 PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: ALGUMAS IDÉIAS EM PIAGET, VYGOTSKY E FREINET

Waldília Neiva Cordeiro Maria Luiza Lima do Vale1 A preocupação com o repasse, às vezes desvirtuado e/ou limitado, de que a obra de Freinet resume-se a um conjunto de arranjos técnicos externo ao sujeito da aprendizagem, e com o interesse acentuado, hoje, de educadores pelos estudos socioconstrutivistas, levou-nos a uma releitura de idéias de Piaget, de estudos recentes de seus seguidores e de repre­ sentantes da psicologia soviética, principalmente Vygotsky, na tentativa de identificar parâmetros de aproximação ou distanciamento entre os estudos desses educadores e explicitar passos da caminhada de Célestin Freinet na sua dimensão consciente de compreendedor do processo de construção cooperativa (coletiva, partilhada) da aprendizagem.

Freinet pensou o processo de ensino-aprendizagem na pers­ pectiva dos que aprendem, participantes que são da construção de seu conhecimento, valorizando a capacidade cognocitiva individual e coletiva. 1.

Membros do Movimento da Escola Moderna do Nordeste e professoras da Universidade Federal do Piauí.

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É preciso percorrer o caminho seguido por ele para compreender a dimensão da compreensão que ele teve sobre o processo de construção do conhecimento.

Na psicologia do desenvolvimento, por vezes, o conceito de de­ senvolvimento está bastante associado ao de maturação, de tal modo que processos de desenvolvimento acabam por equiparar-se tão-so­ mente a processos maturacionais. Nesse sentido, a educação é encarada como um processo que se baseia na maturação — ou no nível de desenvolvimento alcançado pela criança —, uma vez que é ele que cria condições para uma efetiva aprendizagem. Freqüentemente passou-se a descrever o desenvolvimento da criança como de suas funções intelectuais; toda criança passou a se apresentar como um ser caracterizado pelo nível de desenvolvimento intelectual superior ou inferior, que se desloca de um estágio para outro. Tais estudos, apesar das críticas relacionadas ao processo de construção do conhecimento numa ótica individual, unilateral por­ tanto, têm reflexos profundos na condução do processo de ensinoaprendizagem. Quanto à aprendizagem da língua, por exemplo, antes, a maior parte das preocupações relacionava-se com exercícios, treinos mecâni­ cos que determinavam a prontidão à leitura, e com a eficiência de métodos de alfabetização.

Destacam-se, como grande contribuição, os estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) e de outros colaboradores que mos­ tram a mudança de foco do como ensinar para o como a criança aprende. Tratam da psicogênese da escrita na criança. Para esses pesquisado­ res, o processo de alfabetização nada tem de mecânico do ponto de vista de quem aprende. A escrita é uma representação gráfica da linguagem ou código de transcrição gráfica das unidades sonoras que constituem a palavra. Baseia-se numa análise abstrata das unida­ des de som que formam a palavra. A criança não compreende esse sistema, de imediato. Com base nos estudos do desenvolvimento da inteligência em Piaget e em suas pesquisas sobre a produção da escrita, Emília Ferreiro (1985) detectou três estágios no processo de aquisição da linguagem escrita.

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No primeiro estágio há crianças que não diferenciam a escrita do desenho, do significado, não vêem a palavra e o objeto como duas realidades distintas. O tamanho da palavra depende do tamanho do objeto. É o nível primeiro do processo.

Outras crianças elaboram uma hipótese silábica de escrita. Fazem letras correspondendo a sílabas. É o segundo estágio. Outras, ainda, superam o realismo nominal e adquirem a capaci­ dade de empregar a representação alfabética da escrita. Aprenderam a correspondência entre som e letra. Mais recentemente, conceitos funda­ mentais da psicologia do desenvolvimento têm passado por grande reflexão, em grande parte em razão do acesso às obras de psicólogos soviéticos, como Vygotsky (1988, 1989), Leotiev (1988), Luria (1988) e Rubinstein (1973). Para Vygotsky, o ser humano não se encontra limitado à sua própria experiência pessoal e/ou a suas próprias reflexões, mas expande-se e apro­ funda-se, em especial, graças à apropriação da experiência social que é veiculada pela linguagem. Essa apropriação dá-se no seio das relações interpessoais que prevalecem na sociedade à qual a criança pertence.

O processo de amadurecimento, na visão dos psicólogos soviéticos, não é anterior ao ensino ou à educação. A criança amadurece à medida que, sob a orientação de adultos ou companheiros mais experientes, apropria-se da cultura elaborada pela humanidade. A maturação, de um lado, e a educação e o ensino, de outro, constituem uma unidade indissociável, preservando, ao mesmo tempo, a identidade de cada processo. Vygotsky foi um dos primeiros psicólogos soviéticos a afirmar este princípio (Davis et alii, 1989). Partindo da constatação de que as possibilidades do ensino não deveríam ser definidas a partir das condi­ ções de aprendizagem apresentadas pelas crianças, ou seja, do nível de desenvolvimento maturacional já alcançado pelas mesmas e determina­ do com base naquilo que são capazes de realizar sozinhas, estipula a necessidade de se considerar um outro nível de desenvolvimento: aque­ le que se refere ao que pode ser realizado com a ajuda de adultos ou companheiros mais experientes. Este último nível, a que Vygotsky (1984) dá o nome de desenvolvimento potencial, pode ser identificado quando, ao receber pistas, informações e orientações, a criança acaba por solucio­ nar, na cooperação conjunta, uma dada tarefa que, de outro modo, não

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resolvería. Este nível de desenvolvimento é mais indicativo dos processos cognitivos da criança, uma vez que, segundo o autor, é possível se ter uma idéia mais clara das funções psicológicas que ainda não amadureceram, encontrando-se em estado embrionário, ou seja, em processo de maturação. Sem penetrar nos pormenores psicológicos que explicam dialeticamente as bases científicas da teoria de Freinet, o tateio experimental é a base do método natural, que é a própria manifestação dos processos de vida. Pode-se afirmar que tudo se passa como se

todo o ato conseguido cavasse um sinal no comportamento e que, desde esse dia, as relações que se seguem a este primeiro ato têm tendências para pedir de empréstimo este sinal que se torna linha de êxito. (Freinet 1977a) Para Freinet, as crianças resolvem os problemas integrados nos processos da vida pelos seus próprios meios ou com a ajuda de compa­ nheiros e adultos. O essencial é que elas triunfem sabendo que este triunfo não é mais que um patamar que lhes permitirá ir mais longe quando o aprendido tiver sido incorporado.

Com simplicidade e impulso revolucionário, Freinet (1975) pôs em prática técnicas aparentemente diversas, convergindo para uma unidade fundamental: somente os indivíduos, democrática e cooperativamente, realizam e avaliam o êxito ou o fracasso de um ato. Freinet não ignorou que tudo aquilo que é movido para a ação é fundamental para a criança.

Uma característica singular e marcante da prática de Freinet foi recusar à palavra o monopólio sobre a transmissão do humano (Costa 1990). Essa dimensão freinetiana coloca-o como um dos raros educado­ res a preocupar-se não apenas com o nível das estruturas ideológicas, mas com a infra-estrutura do sistema. Sua vida, seu trabalho e sua luta foram uma crítica àqueles que pensavam que apenas as idéias, tomadas em si mesmas, produzem mudanças na educação. Freinet trabalhou com a essência e com a forma. Em Ensaio da psicologia sensível II, Freinet (1978) desenvolve a idéia de aprendizagem como resultado das tentativas experimentais empreen­ didas pelas crianças. Partindo daí, expõe concepções pedagógicas e pre­ coniza o método natural. Elimina o manual de leitura e qualquer idéia de

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progressão programática. Crianças vivas e ativas produzem textos que testemunham suas experiências e servem de apoio à aprendizagem (Cohen e Gilabert 1992). Esses textos socializados, pendurados na sala, impressos em jornais enviados aos correspondentes, organizados em pastas acessíveis (livro da vida) constituem o referencial comum do grupo num determinado momento histórico. Constituem, também, o material vivo para análise, estabelecendo, conjuntamente, comparações, enfatizando semelhanças e diferenças; descobrindo o código lingüístico. Mas, Freinet assegura que, mesmo antes de dominar o código, as crianças já sabem ler, pois compreendem o sentido dos textos; eles são delas.

A produção das crianças é também a matéria-prima dos estudos por parte de Freinet. Nos gestos, nos jogos, nas experiências, nos proje­ tos, no trabalho e nos textos das crianças ele descobriu seus alcances epistemológicos, as questões gerais de formação de noções ou de análise das operações intelectuais. Suas constatações estão descritas em sua obra, principalmente em O método natural I: A aprendizagem da língua (1977a); O método natural II: A aprendizagem do desenho (1977b) e O método natural III: A aprendizagem da escrita (1977c).

São necessários diversos estudos aprofundados da Pedagogia Freinet sob o ângulo epistemológico. Uma epistemologia científica não poderia proceder senão passo a passo graças à acumulação de estudos parciais (Piaget 1991). "De modo algum existe oposição entre os méto­ dos científicos e a tentativa experimental" (Freinet 1977a). Uma série de estudos devem surgir em busca de aproximações e generalizações. Senão, a obra de Freinet se isolará e se fechará em si mesma.

Bibliografia

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COHEN, R. e GILABERT, H.

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COSTA, A.C.G.

e ESPOSITO, Y. "Papel e valor das interações sociais em sala de aula". Cadernos de Pesquisa. São Paulo (71): 49-54, nov. 1989.

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e TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1985.

FERREIRO, E.

FREINET, C. As

técnicas Freinet da escola moderna. Lisboa, Estampa, 1975.

. O método natural I: A aprendizagem da língua. Lisboa, Estampa, 1977a. . O método natural II: A aprendizagem do desenho. Lisboa, Estampa, 1977b. . O método natural III: A aprendizagem da escrita. Lisboa, Estampa, 1977c. . Ensaio da psicologia sensível II. Lisboa, Estampa, 1978.

Psicologia e epistemologia — Para uma teoria do conhecimento. Lisboa, Dom Quixote, 1991.

PIAGET, J.

RUBINSTEIN, S. L.

Princípios de psicologia geral. Lisboa, Estampa, 1973.

A Formação social da mente. 3ê ed., São Paulo, Martins Fontes, 1989.

VYGOTSKY, L. S.

Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo, ícone: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

VYGOTSKY, L.S.; LURIA, A.R. e LEONTIEV, A.N.

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6 A ATUALIDADE DA PROPOSTA FREINET: INTERDISCIPLINARIDADE E ALFABETIZAÇÃO

Marisa Del Cioppo Elias1

Seja como for, temos de esquecer a nossa formação escolar onde a objetividade pretendia explicar tudo e onde as nossas obrigações estritamente pedagógicas se identificavam com a mania de ensinar; à nossa frente, sem nos pedir licença, a criança envereda por outros caminhos, os que lhe são pró­ prios, e por processos de tentativas, essencialmente instin­ tivas, deslocando-se para aonde quer, certa do concurso dos seus poderes como o caracol segregando a concha. Há que entrar resolutamente no reino da infância. Célestin Freinet Realmente, como educadores, precisamos repensar nossa forma­ ção, pois "à nossa frente, sem nos pedir licença" está a criança, com seu modo particular de pensar, de ver o mundo. Precisamos adentrar seu "mundinho" para poder orientá-la, ajudá-la a avançar. Precisamos recu­ perar a vida e a obra de educadores que, como Freinet, embora distantes 1.

Doutora em educação. Professora da PUC/SP. Membro do Núcleo Freinet — São Paulo/SP.

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no tempo — a carreira pedagógica de Freinet começou em 1920 — lutaram pela transformação da escola considerada desligada da vida, distante da família, teórica e dogmática. Por isso mesmo seus ensinamen­ tos não se tomaram obsoletos; continuam tão atuais como naquela época, uma vez que a escola não mudou ou o fez com raríssimas exceções. Ao pesquisar alternativas para as questões do ensinar e do apren­ der, Freinet estava priorizando o trabalho como meio e a busca do conhecimento integral e interdisciplinar como fim. Ainterdisciplinaridade é uma exigência natural e interna das ciências e Freinet dela se utiliza para melhor compreender a realidade da criança e para poder relacionar os conhecimentos trazidos por ela. As trocas e a cooperação mútua são como pilares da construção de sua escola, uma escola viva e moderna.

Para ele, a solução da questão metodológica é de exclusiva res­ ponsabilidade do professor que, com suficiente intuição e sensibilidade, com equilíbrio, domínio e autoridade, poderá, até sem preparação espe­ cial, sem técnica e sem material, conseguir resultados bastante satisfató­ rios. Basta que tenha um comprometimento com a totalidade.

Essa compreensão da realidade na busca de um fazer interdisci­ plinar foi a marca de sua trajetória pedagógica. Daí incentivar a desco­ berta e aguçar a curiosidade infantil. O emprego do método pessoal ou da postura de quem quer aprender — sobre o mundo, sobre os alunos, sobre si mesmo, rever a própria formação que possivelmente tenha sido escolástica e autoritária — foi uma grande lição que Freinet deixou-nos e por intermédio da qual podemos considerá-lo como interdisciplinar. Ela orienta a formação do professor alfabetizador no sentido da mudan­ ça. Na classe, junto aos alunos, o professor deverá buscar e encontrar as soluções certas para um bom trabalho; seguir o empenho dos alunos e transformá-los pela livre expressão, por uma vivência coletiva permea­ da pelo meio ambiente, pela ação. Freinet pode ser considerado o primeiro educador a fixar as bases para o desenvolvimento de uma psicologia da ação, pois, para transfor­ mar uma situação social que não aprovava e para obter um conhecimen­ to dialético e mais humano do pensamento infantil e suas possibilida­ des, a tudo recorre procurando fazer da escola um centro de atividades. Para ele, uma criança, que a cada instante dá provas de suas aptidões criadoras, que incessantemente imagina, inventa e cria, só

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poderia ser compreendida e orientada por meio de uma pedagogia e uma psicologia da construção e do movimento. Em tudo e por tudo Freinet é filho de sua época. Para ajudar a criança a avançar em suas dificuldades procurou conhecê-la o melhor possível, acompanhando e registrando cada um de seus avanços. Seus escritos são um registro vivo do trabalho e das pesquisas que fazia; documentam uma concepção antropológica de educação de caráter bastante inovador, uma vez que se constitui a partir de uma vivência histórico-social situada e num pensar interdisciplinar que valoriza o homem, o coletivo, o homem de periferia e das classes trabalhadoras.

Ao propor uma metodologia da ação, a bem dizer, uma Pedago­ gia Experimental, Freinet estava definindo uma nova concepção, total­ mente original, de se trabalhar o meio educativo, ao qual dedicou o melhor de seu tempo inventando e reinventando, técnicas e atividades nunca antes trabalhadas. Assim, para fazer aparecer os dados intelec­ tuais de uma teoria que brotasse da ação, nunca descuidou ou separou a educação da vida; nunca isolou a escola dos fatos sociais e políticos que a determinavam e a condicionavam.

Não foi pesquisando e testando novas técnicas de ensino com seus alunos que descobriu a imprensa na escola? Ao invés de tirar patente ou guardar segredo dessa descoberta, material que estaria na base de um novo método — o método natural —, Freinet lançou-se deliberadamente ao crisol da cooperação. Seu problema não era se isolar mas, ao contrário, queria achar uma forma de trabalhar melhor com os demais professores. Dizia que, embora no processo de construção da cultura o homem tenha trilhado caminhos diferentes em virtude de circunstâncias históricas próprias de cada povo, sempre percorrera as mesmas etapas na elaboração e aquisição de conhecimentos. Por inter­ médio do fazer, do tateamento, da satisfação das necessidades e dos interesses, o homem construiu sua cultura. E Freinet comparava a cons­ trução de uma cultura à de um edifício, pois, sem alicerces, sem andai­ mes, sem quedas ou erros a humanidade não teria chegado ao avanço já atingido, nem continuaria a ampliá-la com novas conquistas. Para ele, o homem só ousa lançar-se à frente quando se sente apoiado em um patamar razoavelmente firme. Depois volta a pesquisar, experimentar, a reerguer um novo plano cultural, pois não pára nunca.

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O mesmo processo propôs para a aprendizagem da leitura e da escrita no início da alfabetização, ou seja, um método natural, que valorizasse também as diferenças dialetais da criança. Ao invés de eliminar essa marca de origem, seu método procura partir dela, valori­ zá-la e respeitá-la naquilo que tem de criativo e expressivo. Isso não significa que ele mantivesse a criança nessa forma de linguagem, pois tinha claro para si que, embora a língua esteja ligada ao lugar e ao grupo étnico e social a que o indivíduo pertence, as diferenças linguísticas são apenas diferenças, sobretudo, decorrentes dele. Sabia que precisava levar a criança a adquirir e praticar a modalidade culta e formal, não somente porque ela seria socialmente avaliada, mas porque teria acesso à tradição cultural escrita. O respeito à variedade lingüística do aluno para Freinet tinha um papel importantíssimo no processo de comunica­ ção e no exercício da livre expressão. Por considerar a linguagem um trabalho coletivo, histórico, no qual se constrói o sistema lingüístico de uma comunidade, afirmava que uma pessoa só aprende e incorpora em definitivo técnicas e conheci­ mentos quando pergunta, pesquisa ou percorre todas as fases do pro­ cesso. O homem atua sobre os outros (atividade comunicativa) e sobre o mundo (atividade representativa e cognitiva) e a própria linguagem pode ser objeto sobre o qual opera, seja de forma consciente, transfor­ mando expressões, seja através de processos cognitivos e descritivos, desvendando sua estrutura. Daí afirmar (1977a, p. 14) que:

(...) nenhuma, absolutamente nenhuma, das grandes aquisições vitais se faz por processos aparentemente científicos. É a cami­ nhar que a criança aprende a andar; e é a falar que aprende a falar; é a desenhar que aprende a desenhar.

Isto justifica a predominância das atividades de linguagem na prática Freinet — conversas, diálogos, relatos de vivências e experiên­ cias, textos livres, correspondências. Nelas encontramos o exercício constante de construção e interpretação conjunta, partilhada, como a linguagem é e deve ser: uma atividade social. Seu método natural já considerava a linguagem como um sistema de representação, no qual a aprendizagem da escrita é considerada como apropriação de um novo objeto de conhecimento. 54

O método natural do ensino da leitura e da escrita não é uma fórmula mágica para alfabetizar melhor. Experimentar, observar melhor, perguntar e aprender são tarefas que também se impõem ao professor alfabetizador. Foi esse exercício que permitiu que Freinet erigisse as bases de um movimento que é hoje conhecido internacionalmente. Quarenta e três países estão ligados à Fimem (Federação Internacional dos Movimen­ tos da Escola Moderna), sediada em Bruxelas, desenvolvendo a cooperação internacional e a troca da prática pedagógica em todos os continentes. É sabido que, como associação, a Fimem facilita os contatos e auxilia a pesquisa, a divulgação de experimentos, a organização de estágios, encon­ tros, seminários, a troca de materiais didáticos e de inovações cooperativas. É uma pedagogia que facilita a abertura e reciprocidade para o diálogo e as trocas com colegas, reafirmando a questão da interdisciplinaridade. A cooperação e a comunicação são pressupostos básicos de sua pedagogia. Desde a descoberta da imprensa escolar, Freinet procurou formas de traba­ lhar sem se isolar de seus colegas. Em 1927 já organizava uma primeira cooperativa para divulgar experiências, a CEL (Cooperativa de Ensino Leigo), cujo objetivo era amparar publicações, fabricação e difusão de novos instrumentos pedagógicos. Começaria, então, um intenso intercâm­ bio de circulares, boletins, revistas entre pessoas de todos os continentes, rompendo-se o círculo do individualismo com que vivia o professor e que lhe gerava insegurança. Lançavam-se as bases de um movimento pedagó­ gico fortalecido e integrado, muito espontâneo, do qual muitos educadores hoje participam, contribuindo, de alguma forma, para a produção de um conhecimento gerado a partir da experiência.

O centro do próprio conhecimento e das técnicas de vida foram revividos por Freinet no exercício da correspondência entre os educado­ res e entre crianças. Como dissemos, o método que propôs não necessita de nenhuma fórmula pronta para aplicar com os alunos: prática e teoricamente, é o professor que vai traçando as próprias trilhas pedagó­ gicas, aprofundando alguns conceitos, descobrindo e redescobrindo técnicas capazes de lhe facilitar a tarefa de orientar a aprendizagem dos alunos. A confiança na criança e a fé na vida são essenciais para a criação de uma escola do trabalho, uma escola onde as crianças realizam-se ao mesmo tempo em que priorizam o meio natural e a atividade construti­ va: uma escola viva, feliz, onde se trabalha e se constrói.

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Toda tentativa da criança, dizia Freinet, tem um objetivo, uma finalidade — imediata ou não — que precisa ser iluminada por ativida­ des construtivas. É o indivíduo que deve construir as bases profundas de seu conhecimento, pois só assim chegará a obter a unidade do saber. Seus métodos naturais para o ensino da leitura e da escrita, segundo ele (1979, pp. 141-143):

(...) são os únicos que corrigem a fragmentação e a dispersão dos conhecimentos científicos (...). É preciso mudar a técnica de aprendi­ zagem, conceber ou encontrar outra mais viva e decisiva. Considerava que a escola deve ser tecnicamente preparada para ajudar a criança a construir, edificar, não só pelo estudo, mas pelo trabalho único, criador, todo seu saber, pois só assim ela se torna sujeito, e o professor, aquele que orienta, estimula e facilita a aquisi­ ção dos conhecimentos. A intervenção, neste caso, limita-se a dar a palavra à criança e proporcionar os meios para que ela possa manifestar-se de forma consciente. Ao permitir que use as próprias vivên­ cias, sentimentos, conhecimentos, a criança vai querer expressar-se, pois o trabalho colabora para o desenvolvimento total e afetivo do homem e não se lhe retira o encanto de construir.

Como o trabalho, outro conceito-chave da Pedagogia Freinet é o da livre expressão. Não se percebe nela a preocupação com a quantidade de conhecimentos, mas com o processo. Praticar a livre expressão signi­ fica inverter o método que a escola vem utilizando para produzir a aprendizagem, para ensinar. E essa inversão começa quando a escola passa a ver a criança não mais como um ser que não tem conhecimentos e para o qual o professor tudo precisa ensinar. Para desvincular a livre expressão de seu significado parcial e escolar e devolver-lhe o verdadei­ ro sentido e amplitude, Freinet propõe um único e universal processo: pesquisar. A experimentação é o eixo em torno do qual giram todas as aquisições infantis que mais tarde transformam-se em regras de vida. No entanto, a escola e o educador muitas vezes excluem a criança por subestimarem seus gestos construtivos, por considerarem (1976, p. 211) que:

(...) na vida existem dois andares: o da experiência tateada, empí­ rica, mais ou menos eficiente — mas que não deixa de formar 56

todo o substrato vital, quer queira, quer não — e o andar do conhecimento formal, com os seus objetivos especiais, raramente adaptados à vida.

Novinha, dinâmica, a criança chega a um mundo em que tudo é mistério para ela e onde tudo está para ser explorado. Seu campo de experimentação é infinito, se o homem não limitá-lo arbitrariamente. Realmente, se pararmos para observar, veremos que a criança participa maravilhosamente da vida na natureza quando isto lhe é permitido. Enquanto manipula e explora os objetos e descobre suas propriedades ela está fazendo uma verdadeira leitura. Da mesma forma, reproduz o que vê, o que sente, o que experimenta e conhece. Mas será necessário, para tanto, fornecer-lhe um ambiente propício para construir as opera­ ções mentais necessárias ao ato de ler, no sentido de decodificar os símbolos gráficos. Enchem-se cadernos, impõe-se a memorização num trabalho que é só de superfície. Ao propor a metodologia da expressão livre, Freinet não quer sugerir uma simples fórmula que o educador limita-se a observar e deixar seguir, mas uma pedagogia ousadamente centrada na pesquisa e no trabalho interdisciplinar. Assim, não se pode falar de uma proposta que parta do que a criança sabe, que vá do conhecido ao desconhecido, da construção à produção da criança, ao saber formal; não é possível ignorar a contribuição de Freinet em relação ao processo de aquisição da língua escrita. Hoje fala-se muito em construtivismo, em resgatar o saber produzido pelo aluno e se esquece quanto isso já era valorizado por Freinet, cujos registros deixados são de grande impor­ tância pedagógica. Estudando, pesquisando, trocando experiências com colegas, utilizando instrumentos (como a imprensa), Freinet estava de­ lineando uma nova prática integrada com a vida comunitária, social e viva da criança. O método natural e a pesquisa experimental eram, pois, considerados como que prolongamento da própria experiência pessoal das crianças e, conseqüentemente, favoreciam suas aprendizagens. É necessário deixar a criança falar e escrever livremente e à sua maneira as palavras de seu vocabulário, sem deixar de motivá-la a buscar o próprio aperfeiçoamento, pois, desde muito cedo a criança tenta compreender que espécie de sinais são aqueles que se utilizam para ler e escrever e o que eles significam para a construção de sua vida. 57

Em seus registros, percebemos a definição de cinco fases da escrita. A primeira chamou de fase do grafismo simples ou não diferen­ ciado, constituída quase que exclusivamente de tentativas para exercitar a mão. Ele não considera essa fase como uma escrita propriamente dita, mas como um processo de criação como muitos outros, constituído de grafias curvas, quebradas, irregulares. Algumas são semelhantes aos sinais convencionais da escrita. Nesse momento a leitura é global.

Segundo os princípios defendidos por Freinet, a criança natural­ mente evolui dos rabiscos ao desenho; depois, à imitação dos sinais gráficos de letras e de palavras, ascendendo de uma fase a outra sempre que um novo elemento intervenha, pois, sem ele não há razão de ser da escrita. Daí destacar a importância dos estímulos, do acompanhamento do processo, das formas técnicas de auxílio e da paciência da espera para que a criança caminhe sozinha no seu próprio ritmo. Afirma que a criança que obteve êxito no seu primeiro grafismo, ao perceber a reper­ cussão no ambiente vai querer repeti-lo. Repete grafismos, diferencian­ do-os em muitos outros elementos, justapondo-os. É o início da segunda fase da escrita ou fase do grafismo, na qual a criança lê as palavras que escreve, uma vez que só escreve aquilo que compreende. Já familiarizada com o valor, o sentido e a figura psíquica das palavras passa a utilizar-se das letras convencionais. É a terceira fase, na qual procura dar um valor sonoro a cada uma das grafias que compõem a escrita. Na leitura tenta passar da correspondência global para a correspondência termo a termo, isto é, do todo para as partes da expres­ são oral. Já não há mistura entre o desenho e a escrita que Freinet considera como o alvorecer da verdadeira escrita: a criança passa a perceber que há certas regras e formas fixas a imitar; daí utilizar certa disposição sintética do texto, como título e assinatura (sublinhados).

A partir daí, inicia uma quarta fase e é somente nela, diz Freinet, que a criança vai se interessar verdadeiramente pelo texto redigido em comum na sala de aula e tentar reproduzi-lo. Os sinais, longe de serem rígidos e quebrados como numa escrita de base analítica, são ágeis e ligados de forma harmônica. A criança que já havia percebido que as letras e as sílabas são sinais, grafias de sons que ela pronuncia ao falar, percebe agora que, associados ou combinados, eles permitem traduzir graficamente, escrever as suas palavras e suas frases.

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Durante muito tempo, a criança utiliza essa conquista para pôr o novo instrumento adquirido para funcionar, nomeando desenhos, es­ crevendo os nomes que lhe são familiares: papai, mamãe, vovô, Dedé... Essas palavras conhecidas são como que o eixo para todos os grafismos. Começam os pedidos de referências à professora e sua utilização em palavras e expressões. Aos poucos, abandonam as referências substituindo-as por um maior domínio da língua escrita e o sentido do sinal passa a se revelar na identificação do objeto histórico com a expressão escrita (sentido do texto). Finalmente, na quinta fase, Freinet propõe explorar totalmente a livre expressão da criança e desenvolver um trabalho ortográfico. Aper­ feiçoará, cada vez mais, sua escrita, não copiará, mas exprimir-se-á de forma satisfatória para sua idade.

Como Freinet, não vemos como dar receitas ou modelos; a reali­ dade desafia-nos a cada momento e devemos responder a esses desafios de forma original, se quisermos modificá-la. A elaboração e o desenvol­ vimento do conhecimento estão ligados ao processo de conscientização que condiciona pensamento e ação. Portanto, ao educador cabe fornecer condições de trabalho e ação; aproximar a criança da realidade para que possa desvelá-la e criticá-la para poder reconstrui-la e reinventá-la transcendendo, assim, a simples esfera da apreensão. Para Freinet, a criança possui os germes do próprio desenvolvimento e realização. Quando motivada e bem orientada, vai querer criar, agir, realizar; quan­ do interessada, disciplina-se sozinha. Relembra que cada criança tem seu próprio tempo: umas conseguem mais rapidamente apoderar-se de uma experiência e automatizá-la; outras demoram mais. O importante é o educador saber que todas chegam lá. Bibliografia "De Emílio a Emília: Contribuições para as questões do ensinar e do aprender". Tese de doutoramento. São Paulo, USP, 1993.

ELIAS, M.D.C.

Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro. São Paulo, Loyola, 1979.

FAZENDA, I.C.A.

. Interdisciplinaridade: Um projeto em parceria. São Paulo, Loyola, 1991.

59

FREINET, C. As

técnicas Freinet na escola moderna. Lisboa, Estampa, 1975.

. Ensaio de psicologia sensível. Lisboa, Estampa, 1976a e b, vols. I e II.

. O método natural I: A aprendizagem da língua. Lisboa, Estampa, 1977a. . O método natural II: A aprendizagem do desenho. Lisboa, Estampa, 1977b. . O método natural III: A aprendizagem da escrita. Lisboa, Estampa, 1977c. O itinerário de Célestin Freinet: A livre expressão da Pedagogia Freinet. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1979.

FREINET, E.

60

7 ALFABETIZAÇÃO: DESAFIO E RUPTURA

Neuza Helena Postiglione Mansani1

Introdução

O trabalho apresenta recortes de uma experiência em classes de alfabetização, objetivando a análise de momentos que se revestem de singularidade por caracterizarem a ruptura com a cotidianidade da escola, a possível superação e o desafio para tomar a alfabetização da criança real e efetiva, bem como fazer da escola um lugar de satisfação cultural. Recortes de uma experiência em classes de alfabetização

Desafio

No momento em que a problematização e a crítica da prática tradicional de alfabetização faziam-se presentes, nos centros de estudos

1.

Diretora da Escola Desafio e professora da Universidade de Ponta Grossa (PR).

61

e pesquisas do país, desafio-me a construir uma prática de alfabetização coerente com os avanços teóricos da área e inicio um trabalho teóricometodológico com as classes de alfabetização. Chamo classes de alfabetização às classes de pré, lª e 2ª séries, tomadas como um único bloco, onde o interesse pela leitura e escrita e pela socialização do pensamento é manifestado nas crianças.

Não há referência de terminalidade em cada série, mas um processo contínuo de satisfação dos interesses, dos desejos e das neces­ sidades das crianças, descobrindo caminhos a partir de suas trocas livres, no prazer de executar juntos, alunos e professores, com seus direitos garantidos. Na tentativa de superação da "mesmice da escola", apodero-me do provérbio inglês "o objetivo é ser feliz; o momento para ser feliz é agora; o lugar para ser feliz é aqui", e questiono as atividades rotineiras usuais do nosso sistema escolar, as aulas "dadas" pelo professor de forma compartimentalizada: gramática, matemática, ciências etc., os manuais escolares, as cartilhas e suas tarefas, as sanções escolares espe­ cíficas, a nota, a competição, o controle disciplinar... Entendo a mesmice como o homogêneo, o repetitivo, o fragmen­ tário da vida cotidiana, a instalação da cotidianidade como a cristalização do cotidiano.2 Segundo Penin (1989, p. 120):

(...) o poder do cotidiano na orientação de transformações sociais depende da conquista da sua situação de cotidianidade ou pro­ gramação pelos sujeitos que o vivenciam e, sobretudo, da vonta­ de desses sujeitos em transformá-lo. Vários são os fatores que intervêm no cotidiano e estão presentes no cotidiano escolar, impedindo a transformação, levando-o para a cotidianidade, como a lei e a ordem estabelecida, a lógica que se preten­ de unitária e se aplica a todos os domínios, o tempo do relógio decom2.

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Vida cotidiana, como um nível da realidade social a partir da qual se cumprem as verdadeiras "criações", aquelas que produzem os homens no curso de sua humanização: as "obras" construídas e transformadas pela ação dos sujeitos presentes. (Penin 1989)

posto repetitivamente, a busca da coerência e coesão dos comportamen­ tos e a formação desses comportamentos sob o tipo de reflexo condicio­ nado, as tarefas repetidas linearmente, os ritmos impostos pelo sistema e pela própria escola, baseando-se em princípios racionais.

Para a superação da mesmice escolar tenho buscado práticas que representam oposição à homogeneidade de práticas institucionalizadas e fetichizadas, à fragmentação do tempo e de atividades escolares na busca do tempo natural de aprendizagem dos alunos.

Nosso cotidiano escolar é um espaço surpreendente, rico de ex­ periências, de novos conhecimentos e de expectativas; ano a ano as extrapolações vêm enriquecer o currículo, lembrando Freinet (apud Frei­ net 1978, p. 131) e seu otimismo em Saint Paul: As diversas investigações tecnológicas que levamos a cabo são, no momento presente, realmente apaixonantes. A cada passo, nos des­ vendam perspectivas de trabalho tão originais e férteis em ensina­ mentos [sem grifo no original], que a atividade de nosso grupo decuplica de ano para ano, justificando a temeridade—que, contu­ do, é consciente — das nossas mais audaciosas iniciativas.

Substituindo o tradicional período preparatório pelo brincar de descobrir relações; relações que estruturam o modo de agir da criança pela linguagem e pela lógica; relações de tempo e espaço na descoberta das possibilidades do corpo e da forma relevante; as relações socioafetivas, pois é com o outro que a nossa criança vai construindo o conheci­ mento em atividades que chamamos de vivência humanística. É no jogo coletivo das vivências que a criança registra sua histó­ ria, constrói a história de vida da classe, caminha na formação de conceitos, como sujeito interativo e criativo, quando tem a possibilidade de observar, intuir e refletir sobre os fatos de seu cotidiano pela leitura, escrita, reescrita significativa de seu mundo, em um dos momentos importantes da classe — a memória coletiva. História de vida da classe é uma das formas alternativas de registro que denominamos retrospecto — uma questão de existência histórica; é o sujeito que constrói sua história no coletivo.3 3.

...os conceitos históricos só podem começar a se desenvolver quando o conceito cotidiano que a criança tem de passado estiver suficientemente diferenciado —

63

O processo de aquisição da leitura e da escrita e de construção do conhecimento matemático permeia todos os momentos de nossa classe que supõe sempre a interação entre os sujeitos sob a forma de questionamento, desequilíbrio, conflito, confronto, ensejando a ruptu­ ra diante dos quais o professor como partícipe destes momentos de interlocução e interação desencadeia a busca de informações e refor­ mulações das hipóteses.

Lendo e escrevendo suas histórias, registrando suas experiências nossa criança vai, progressivamente, incorporando escrita à sua ativida­ de cotidiana como um exercício potencial interativo, dinâmico, coope­ rativo, de ação e criação. Toda atividade de leitura e de escrita está integrada às demais atividades desenvolvidas cotidianamente em nossas classes de alfabe­ tização.

As experiências, que a criança realiza individualmente, vividas coletivamente pelo grupo, configuram-se em momentos de produção de conhecimento e prazer.4

Durante o dia-a-dia das classes é na organização do trabalho livre, nas assembléias, nas propostas de trabalho, nos planos cooperativos de trabalho, nas investigações que surgem as idéias motivantes dos alunos; é na interação e no confronto das opiniões que nossa criança é encoraja­ da a fazer escolhas, tomar decisões por si própria, a iniciar a construção de sua autonomia. O trabalho cooperativo e documental que desenvolvemos foi embasado, inicialmente, nos eixos da Pedagogia Freinet: afetividade, cooperação, comunicação e documentação, reforçado por Piaget, quan­ do afirma que a cooperação favorece o desenvolvimento do sentido moral da criança, mas é em Vygotsky (1988, p. 114) que vamos encontrar explicações à nossa proposta do trabalho coletivo:

4.

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quando sua própria vida e a vida dos que a cercam puder adaptar-se à generalização elementar "no passado e agora"; seus conceitos geográficos e sociológicos devem se desenvolver a partir de esquemas simples "aqui e em outro lugar". (Estes conceitos encontram-se amplamente desenvolvidos em Vygotsky, 1987, p. 93) Para um melhor entendimento confira Maria Teresa Esteban. In: Garcia, 1992, pp. 66-67.

(...) a capacidade da criança para controlar o seu próprio compor­ tamento surge antes de tudo no jogo coletivo [sem grifo no origi­ nal] e que só depois se desenvolve como força interna o controle voluntário do comportamento. Para estes momentos temos criado formas de utilização dos diferen­ tes registros das produções como: painel de crescimento, painel "Você sabia que...", painel da comunicação livre, fichários documentais; as pastas de documentações, as transparências, os álbuns, os leporelos, os quadros-sínteses, os quadros sinópticos, os gráficos. Estes são instrumentos que têm oportunizado um clima de trabalho, prazer e de grande alcance educativo.

A clareza nas proposições, a disposição dos materiais e o registro são uma preocupação da prática pedagógica, repensada dos nossos professores. Esta preocupação permanente de organização e funciona­ mento das nossas classes expõe-nos a uma nova concepção da discipli­ na, pois a prática que serve aos interesses profundos da criança dá um novo sentido à disciplina. Este nosso pensamento encontra respaldo teórico em Célestin Freinet quando enfatiza que (1979, p. 10):

A preocupação com a disciplina está na razão inversa de per­ feição na organização do trabalho, do interesse dinâmico e ativo dos alunos.

Acreditamos que nossa escola, hoje, é a escola do futuro prevista por Freinet; não é uma escola anárquica na qual o professor nem sempre consegue manter sua necessária autoridade, mas é uma escola onde a disciplina é a expressão natural e a resultante da organização funcional da atividade e da vida da comunidade escolar. Temos criado, também, diferentes formas de registro das obser­ vações e acompanhamento do desempenho do aluno, considerados como fonte de informações determinantes na definição de propostas e atividades pedagógicas. Visto que o acompanhamento à criança é de respeito aos avanços e retrocessos à sua forma única de conhecer e que acontece durante a construção do conhecimento, na interação entre sujeitos sócio-históricos, quando vamos observando, analisan­ do e diagnosticando, não só seu desenvolvimento real, mas também seu desenvolvimento potencial.

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Segundo Vygotsky (1988), o estado de desenvolvimento mental de uma criança só pode ser determinado se forem revelados seus dois níveis: o nível de desenvolvimento real e a zona de desenvolvimento proximal.

O nível de desenvolvimento real é o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabelecem como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados. Define funções que já amadurecem, produtos finais de desenvolvimento. A Zona de Desenvolvimento Proximal — ZDP — é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar, por intermédio da solução independente de problemas, e o nível de desen­ volvimento potencial, determinado por meio da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. Define funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário.

O processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendi­ zagem. Esta o segue e cria a área de desenvolvimento potencial. Portan­ to, o aprendizado desperta vários processos internos do desenvolvi­ mento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento da criança. Com base nestas afirmativas de Vygotsky, rompemos com os testes formais que atestam os progressos escolares, pois refletem apenas o curso real do desenvolvimento da criança. Hoje, nossa preocupação metodológica está em criar ZDP e em considerar a afirmação de Vygots­ ky de que a criança fará amanhã sozinha, o que faz hoje com cooperação. E, assim, dar ênfase à pedagogia do êxito em substituição à pedagogia da desconfiança que permeia, ainda hoje, a escola e a sociedade.

Ruptura e superação Na totalidade de nossa experiência, as singularidades configuram-se como momentos de ruptura e superação na busca da significância na escola, como espaço de desafios.

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A que ruptura nos referimos?

Ruptura no sentido de (...) conquistar os meios de passar pelo crivo de questionar um conjunto de influências e de hábitos que tendem a impor-se como naturais porque constituem o meio no qual está mergulhado há muito tempo; conquistar a força para conseguir sair daí. (Snyders 1988, pp. 91-92)

De onde partimos? Da ruptura com alguns termos utilizados no interior da escola, como palavras carregadas de um significado contraditório à proposta teórica que pretendemos. Consideramos esta ruptura não como uma questão de sim­ ples troca de palavras, mas como um posicionamento teórico.

Assim, rompemos com o termo tia — a tia da escola. "Professor não é parente postiço" (Novaes 1982, pp. 60-62), a professora da escola de 1º grau precisa reconquistar sua identidade, seu espaço como profis­ sional competente e compromissado com a transformação social. Rompemos com o termo tarefa5 na tentativa de superar o autori­ tarismo da escola pela consciência do trabalho escolar; passamos a denominar compromisso6 escolar, com a preocupação de formar os alu­ nos por um lado para a comunicação, para o diálogo e por outro para a reflexão sobre o porquê das atividades propostas pela escola e pelo grupo. Rompemos com o termo correção — como ato de corrigir, extirpar os erros, os defeitos, os vícios. Se considerarmos o "erro" (entre aspas) como hipóteses do sujeito em face de sua experiência e indicador de avanço na construção do pensamento, precisamos fazer ajustes na nossa linguagem. Como corrigir o que não consideramos erro?

Assim, temos substituído o termo correção por verificação — que verifica, investiga a verdade, processo de intensa capacidade cognitiva. 5. 6.

"Trabalho que se deve concluir em determinado prazo e, algumas vezes, por castigo." Novo Dicionário Aurélio, p. 1.651. "Obrigação ou promessa mais ou menos solene." Id., p. 442.

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Rompemos com o termo recuperação, introduzido pela Lei Federal 5692/71. A recuperação faz parte do processo e não existe como tal: o que ainda não foi construído não pode ser recuperado. Recupera-se um motor avariado, um objeto quebrado, uma jóia roubada, mas uma criança que está na escola para um processo de aprendizagem e desen­ volvimento requer, sim, ser acompanhada e orientada num ambiente necessário e alfabetizador para que prossiga no caminho da construção. Assim, na nossa proposta, a análise dos diferentes registros efe­ tuados permite ao professor diagnosticar a aprendizagem de cada aluno e da classe como um todo, em relação aos avanços, retrocessos, dificul­ dades e lacunas ocorridos, analisar as variáveis sociais e psicológicas intervenientes e interferir imediatamente no processo através do que denominamos estudos complementares. Rompemos com a competitividade: desaparece a nota, a qualifica­ ção, os prêmios, os castigos, tudo aquilo que pode reproduzir a divisão entre alguns alunos envaidecidos pela obtenção de graus máximos e outros tristes e humilhados por não terem obtido mais que um aprovado.

O sucesso não tem necessidade de uma nota imposta pelo professor; ele é atestado pelos próprios fatos e pelo julgamento dos participantes. (Snyders 1988, p. 258) Buscar rever cada palavra na minha história pedagógica tem sido uma constante. Daí a ressignificação das palavras cristalizadas pela escola na cotidianidade (Mediano 1992, p. 32):

(...) na atividade humana não ocorre apenas o cotidiano mas também momento de "ruptura" com o cotidiano (...) momentos (...) significativos, pois supõem uma explicação a nível de cons­ ciência reflexiva e crítica; supõem uma nova e mais aprofundada consciência crítica que, ao ser incorporada no cotidiano, cria uma nova qualidade nessa realidade. É na busca dessa qualidade que temos inovado pedagogicamente em relação à vida da classe, onde os alunos têm oportunidade de decidir sobre as modalidades de ação, organização da classe, os temas para investigação e debate, de dispor de meios de controle em relação ao que lhes perguntamos.

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É nesse contexto que fizemos recortes para retratar singularidades como momentos de significância tal qual os exemplos seguem. Exemplo 1 — História de vida da classe — No primeiro momento do dia da classe que chamamos de assembléia inicial, alunos e professo­ res de forma cooperativa falam de si, do que os alegra ou preocupa, falam de seu viver; a seguir levantam as propostas de trabalho (diárias, semanais ou quinzenais), realizam as diferentes leituras sobre o tempo: fases da lua, previsão do tempo, temperatura, pluviômetro, e fazem o levantamento das lideranças necessárias à organização dos diferentes trabalhos, entre as quais destacamos a memória da classe, responsável pelo registro das leituras e da história de vida da classe.

Ao término de cada trabalho eleito como significativo pela classe, a memória do grupo registra de variadas formas o que e como foi realizado pelo grupo, quando no coletivo, por grupos diversificados ou individualmente.

Cada registro é cuidadosamente realizado, obedecendo o layout,7 moldura, identificação e data e colocado na linha do tempo sob o respectivo dia e na seqüência vertical. São indicados por cartões os períodos de tempo: presente; passa­ do e futuro, sendo que sobre os registros do cotidiano, as crianças colocam o cartão indicativo do presente; do lado esquerdo da linha da história vamos colocando os cartões indicativos dos meses já vividos, caracterizando o passado e, do lado direito, encontram-se os cartões registrando os meses subseqüentes, caracterizando o futuro. Ao término de cada mês, os alunos retiram os registros da linha e relembram criticamente as atividades realizadas, transpondo para um texto coletivo que, após limografado, mimeografado ou xerografado pelas lideranças responsáveis, é arquivado nas pastas de documentação, organizadas por cada um dos alunos. A seguir, os registros, em seqüên­ cia lógica, são colocados em embalagens transparentes, que passam para a linha do passado.

Este momento importante das classes de alfabetização denomina­ mos de retrospecto — é o sujeito construindo sua história no coletivo. 7.

Distribuição dos elementos no espaço físico.

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Juntos, alunos e professores, conversamos sobre a importância de cada ação no aqui e agora que, mesmo deixando de ser presente para ser passado, não perde seu significado, mas, ao contrário, passa a ser histó­ ria e projeta-nos para o futuro.

E as crianças vão construindo os conceitos históricos no cotidia­ no e no coletivo.

Da mesma forma, temos registrado, professores e alunos, a leitura da temperatura em determinados períodos do dia. A memória da classe faz o registro da observação do termômetro em forma de desenho e fixa na linha do tempo. Ao final do mês, novo retrospecto, desta vez em forma de gráficos, os quais são analisados de forma comparativa duran­ te os meses do ano e chegando às diferentes conclusões, às situações de relação homem-natureza.

Utilizando o bloco milimetrado, a escrita e leitura de gráficos têm oportunizado às nossas crianças o desenvolvimento da linguagem grá­ fica nas classes de alfabetização, extrapolando assim os limites do óbvio que se pretende ensinar na escola, pois temos adotado a nova fórmula proposta por Vygotsky: "O bom aprendizado" é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento. Exemplo 2 — Painel de crescimento — Denominamos painel de crescimento a elaboração coletiva (professor, alunos e pais) de um grande painel que se constrói durante um período longo de tempo até que se esgotem os interesses pelo assunto motivador do trabalho. A parceria com os pais nas investigações realizadas extra-classes, como nas produções elaboradas no interior da escola, tanto em relação ao layout do painel, como na elaboração das miniproduções que formam o todo do grande painel, justifica-se pela própria proposta de um traba­ lho cooperativo que entendemos realizado por todos os elementos da relação, ou seja, família e escola. E, também, porque acreditamos que a transformação social que queremos passa pela educação das crianças, dos jovens e na reeducação dos adultos. Muitos dos pais de nossos alunos têm testemunhado sua satisfação na releitura do mundo que fazem juntos com seus filhos.

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A realização desta forma de registro tem garantido a ruptura com a compartimentalização do conhecimento e a continuidade pela interdisciplinaridade,8 justificando-se, assim, sua denominação — painel de crescimento. Os assuntos que oportunizam esta produção surgem do próprio currículo, como também dos interesses e das necessidades dos alunos, como por exemplo: Nossas origens, Ponta Grossa: Ontem e hoje. As idéias e as produções das crianças vão crescendo e, como efeito cascata, vão se configurando como uma obra de arte. O gosto pelo estético aliado à satisfação pela cultura são elementos responsá­ veis pela leitura significativa do mundo e pela inserção dos alunos no real concreto.

Inicialmente, as crianças não compreendiam o valor desse traba­ lho, as dificuldades eram decorrentes da falta da autonomia, de iniciati­ va e de compromisso na participação dos painéis. Hoje, ultrapassados estes obstáculos, elas se envolvem totalmente na produção; encontram espaços para o trabalho, para as diferentes leituras, buscando o sentido nas palavras — é o começo da escritura.

Esta experiência vivida coletivamente pelo grupo transforma a sala de aula num momento de produção de conhecimento e de prazer, onde as crianças vão construindo seu saber-fazer. A aprendizagem da leitura e da escrita por meio deste que fazer de ensino constitui-se em aventura na busca de conhecimento, compreen­ são e comunicação com o mundo. Exemplo 3 — As investigações — A ruptura com o sustemido silabar da cartilha como castradora dos sentidos que estão a despontar para modos de ver, mais interpretativos e inquiridores da globalidade e das singularidades do real, sobre perspectivas para a retomada do livro. Como diz Antonio Torrado (1988, p. 37):

(...) tomar o livro como companheiro da fala, como um brinquedo ou um jogo, (...) é dar oportunidade ao gradual enriquecimento 8.

Algo que se vive, atitude feita de curiosidade, de abertura, de sentido de aventura, de intuição das relações existentes entre as coisas e que escapam à observação comum (Japiassu 1981, p. 81).

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do vocabulário infantil, onde o livro, como um entre outros temas de diálogo adulto/criança, surja naturalmente, tão naturalmente como um passeio pela mão, uma história contada, um espetáculo em comum. A superação materializa-se no aprender a ler pela investigação, sem temores, sem fronteiras, sem carimbos. A investigação é o eixo de nossa proposta nas classes de alfabe­ tização. Temos despertado o gosto pela investigação pessoal. Cada aluno tem à sua disposição diferentes livros e se enriquece com a colaboração de todos.

Professora e alunos vivem juntos situações de procura e de des­ cobertas. A professora exercendo seu papel de adulto como reguladora9 na relação com a criança, chegando com eles a uma síntese acrescentada de seu ponto de vista. Nos momentos de investigação, enquanto as crianças não têm autonomia na leitura, a professora faz a leitura dos diferentes dados coletados pelos alunos, sempre uma sistemática de complementaridade que tem levado à cooperação na elaboração do texto. A discussão das idéias levantadas sobre o tema de interesse é muito rica, oportunizando conceitos múltiplos, extrapolações, tais como brainstorming10 que suge­ rem novas investigações.

Após a elaboração do texto-síntese — o registro como um dos momentos no processo de alfabetização —, a proposta é de leitura, estudo para debate. Nos debates de classe, o professor intervém a fim de que todos os alunos exprimam-se, ousem exprimir-se, convence-os de que eles têm algo a dizer e incita-os a dizê-lo, dá a palavra àqueles que não a pedem e garante um lugar aos mais retraídos — abre espaço para o aluno ser falante. Quando a criança fala, pergunta ou escreve, é ela quem aponta para a professora seu modo de perceber e relacionar o mundo e, nessa relação, o conhecimento se constrói. 9. 10.

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Termo utilizado por Ana Luiza B. Smolka, 1988, p. 58. Leia-se: explosão de idéias.

O confronto de idéias no debate, além de criar ZDP,*11 tem garan­ tido aos nossos alunos a compreensão, o discernimento e a criticidade. Encontramos, também, respaldo teórico em Freinet quando indi­ ca (1979, p. 40):

(...) explorar, para nossos fins educativos, a necessidade de curio­ sidade e de atividade que existe em todo ser vivo; trazer à luz os pensamentos íntimos de nossos alunos, exprimi-los, classificá-los para o trabalho escolar. Estaremos certos então de que nosso ensino será marcante, pois todo o indivíduo procurará esse obje­ tivo: exprimir-se, ler a expressão impressa e desenvolver-se.

Estes aspectos apresentados que se caracterizam como a ruptura com o cotidiano das classes de alfabetização e sua superação, como singularidades de uma experiência particular, levam-nos a acreditar, como Mediano (1992), que essa experiência transcende sua própria singularidade e aponta ao genérico, apesar das contradições localizadas.

Bibliografia e TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1985.

FERREIRO, E.

FREINET, C. O método natural 1: A aprendizagem da língua. Lisboa, Estampa, 1977.

. O método natural 11: A aprendizagem do desenho. Lisboa, Estampa, 1977. FREINET, E. Nascimento de uma pedagogia popular:

Os métodos Freinet. Lisboa,

Estampa, 1978. . O itinerário de Célestin Freinet: A livre expressão na pedagogia Freinet. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1979. A alfabetização dos alunos das classes populares. São Paulo, Cortez, 1992.

GARCIA, R.L.

JAPIASSU, H.

11.

Questões epistemológicas. Rio de Janeiro, Imago, 1981.

Cf. Vygotsky 1988, p. 94.

73

MEDIANO, Z.D. As rupturas com o cotidiano na escola de 1º segmento do 1º grau.

Tecnologia Educacional, 21 (104): 32-38, jan./fev. 1992.

NOVAES, M.E. "Professor não é parente postiço". Revista Ande, 1 (4): 60-62, 1982. PENIN, S.

Cotidiano e escola: A obra em construção. São Paulo, Cortez, 1989.

Freinet: Evolução histórica e atualidades. São Paulo, Scipione, 1989.

SAMPAIO, R. M. W. F.

SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: A alfabetização como processo

discursivo. São Paulo, Cortez, 1988.

na escola. Trad. B.H. Guzovitz e M.C. Caponero. São Paulo, Manole, 1988.

SNYDERS, G. A alegria

Da escola sem sentido à escola dos sentidos. Portugal, Afrontamento, 1988.

TORRADO, A.

A formação social da mente. 2ª ed., trad. José Cipolla Neto e outros. São Paulo, Martins Fontes, 1988.

VYGOTSKY, L.S.

. Pensamento e linguagem. Trad. Jeferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1987. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Trad. Maria da Penha Villalobos. São Paulo, ícone, 1988.

VYGOTSKY, L.S.; LURIA, A.R. e LEONTIEV, A. N.

74

8 ALFABETIZAÇÃO1

Waldília Neiva de M.S. Cordeiro 2 Maria Luiza Lima do Vale Alfabetização no Brasil é um tema que atrai milhões de educado­ res. De norte a sul, todos param, refletem, pesquisam em busca de uma ou várias soluções para o país dos analfabetos. Ano a ano, o índice de não alfabetizados, no Brasil, aumenta assustadoramente.

No III Seminário Nacional de Educadores Freinet do Brasil surge o tema e cabe-nos a responsabilidade de tratá-lo seriamente.

Alfabetização tem sido conceituada de diversas maneiras, confor­ me o ângulo de análise e o suporte teórico-metodológico utilizado por quem a conceitua. Para Luiz Carlos Cagliari (1992) "a alfabetização é, primordial­ mente, a aprendizagem da escrita e da leitura". 1. 2.

Tema da Mesa-redonda do III Seminário Nacional de Educadores Freinet do Brasil, em Erechim — RS, de 14 a 18/7/93. Membros do Movimento da Escola Moderna do Nordeste; professoras da Universidade Federal do Piauí/Centro de Ciências da Educação/Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino.

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Ezequiel Theodoro da Silva (1991, pp. 63-64) diz que:

Alfabetização não é mera decifração de sílabas, palavras e/ou frases bem à moda da decodificação funcionalista e mecânica, mas sim a aquisição de instrumentos (ler/escrever) que permitam às crianças a participação nas dinâmicas do mundo da escrita, o aumento do alcance dos seus atos de comunicação, o acesso à história documen­ tada, o diálogo à distância e com diferentes etapas históricas e, decorrente de tudo isso, a descoberta e o exercício dos seus direitos como cidadãs vivendo numa sociedade letrada.

Magda Soares (1989) defende que é fundamental que a escola e os professores compreendam que o processo de apropriação da língua (oral e escrita) e, principalmente, os usos e significados sociais diversos da língua são tarefas não só técnicas mas, também, políticas. Alfabetizar é propiciar condições para que o indivíduo — criança ou adulto — tenha acesso ao mundo da escrita, tomando-se capaz não só de ler e escrever, enquanto habilidades de codificação e decodificação do sistema de escrita mas, e sobretudo, de fazer uso real e adequado da escrita com todas as funções que ela tem em nossa sociedade e também como instrumento na luta pela conquista da cidadania plena. Para Paulo Freire (1990),

o conceito de alfabetização deve ser tomado como transcendendo seu conteúdo etimológico. A alfabetização não deve ser reduzida a experiências apenas um pouco criativas, que tratam dos funda­ mentos das letras e das palavras como uma esfera puramente mecânica. A alfabetização deve ser entendida como a relação entre os educandos e o mundo, que ocorre exatamente no meio social mais geral em que os educandos transitam, e mediada, também, pelo discurso oral que diz respeito a essa prática transformadora. Esse modo de compreender a alfabetização leva à idéia de uma alfabeti­ zação abrangente que é necessariamente política. Não podemos tomá-la como a deflagadora de transformação social; é apenas parte do mecanismo deflagador. A leitura da palavra é precedida da reescrita da sociedade.

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Embora considerando esse sentido abrangente, é preciso perceber a diferença entre o processo de aquisição da língua e seu processo de desen­ volvimento. O processo de desenvolvimento da língua é que é abrangente, nunca se interrompe; enquanto, etimologicamente, o termo alfabetização não ultrapassa o significado de levar à aquisição do alfabeto, ou seja, ensinar o código da língua escrita, ensinar as habilidades de ler e escrever. Não podemos negar essa especificidade do processo de alfabetização. Tomando como referência esse momento específico do processo de alfabetização — aquisição do código escrito, das habilidades de leitura e de escrita — há necessidade de que ao analisar a complexidade do processo fundamente-se em diferentes áreas do conhecimento para que não se tenha uma visão fragmentada e até distorcida do objeto do estudo.

Na alfabetização, diversos fatores interagem — sociais, psíquicos, lingüísticos e pedagógicos — favorecendo a consecução de seus objetivos.

Além dos estudos relacionados à neurologia, história, antropolo­ gia da escrita, sociologia da escrita, psicologia, dentre outros, as contri­ buições da lingüística, da psicolingüística, da sociolingüística e da peda­ gogia estão diretamente relacionadas à prática do alfabetizador. Mais do que os vários tipos de professores, os alfabetizadores precisam de uma formação especial, dada a importância e a complexi­ dade de seu trabalho.

O professor que alfabetiza é um professor que ensina uma língua. Deve, portanto, conhecer a língua que ensina. Não é para transmitir tudo o que sabe, nem tem necessidade de ser um lingüista, mas é de grande importância para que entenda o que ensina e compreenda o que ocorre com o alfabetizando.

O português, que língua é essa ?

Para caracterizá-la é preciso que seja compreendida no nível fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático e textual. Diversas seriam as descobertas:

1. O ensino da alfabetização tradicionalmente tem como unidade básica a sílaba. Esse processo é praticamente razoável para uma

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língua de ritmo silábico, mas parece ter muitos inconvenientes para uma língua de ritmo acentual. Uma língua de ritmo acentual se caracteriza pelo fato de suas sílabas apresentarem durações variáveis, que se ajustam em suas durações reais, segundo os contextos em que ocorrem para fazer com que os intervalos entre uma sílaba tônica e outra sejam mantidos relativamente constan­ tes, independentemente do número de sílabas átonas entre uma outra sílaba tônica. O português é uma língua de ritmo acentual. (Cagliari 1992, pp. 71-72) 2. A escrita não tem sílaba tônica, nem átona. Isso só acontece na fala e depende de como as pessoas falam. O acento em palavras isoladas é diferente do acento que essas palavras podem ter em enunciados como frase. (Cagliari 1992, p. 74) 3. O sistema de escrita do português usa vários tipos de alfabeto; mas não é totalmente alfabético, usa, além de letras, outros carac­ teres de natureza ideográfica, como os sinais de pontuação e os números. (Cagliari 1992, pp. 114-120) As constatações, por exemplo, têm efeitos variados na condução do processo de alfabetização.

A prática de pedir às crianças que separem sílabas na escrita pode ser mais complicada do que se imagina. A criança usa como referencial para fazer esse exercício, o modo como pronuncia a palavra e não regras gramaticais. Mas a pronúncia é variável, dando margem a dúvidas quanto ao número de sílabas, por exemplo: (pi-si-na), (psi-na) piscina. (Cagliari 1992, p. 119) Portanto, o conhecimento da estrutura e funcionamento da lín­ gua empregada na alfabetização é fundamental para o alfabetizador.

Além disso, os usos da língua, explicados na perspectiva sociolingüística, uma linha de pesquisa em desenvolvimento no Brasil, apresentam como questão fundamental as diferenças dialetais, deter­ minadas pela classe social do falante. Essas diferenças repercutem sobre o processo de alfabetização e apontam caminhos para o trabalho do professor que implicam uma nova visão de sua tarefa em relação ao uso da língua na escola e, conseqüentemente, em relação às variedades dialetais. Enfim, as contribuições da sociolingüística permitem refletir sobre as características do falante e seu contexto, reconhecendo a dis­

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tância entre a linguagem dos indivíduos de classes privilegiadas, que possuem uma convivência mais próxima de seu dialeto oral com a língua escrita (norma padrão), em relação aos que pertencem às classes populares, que assumem um dialeto particular mais distante da língua escrita convencional.

A língua portuguesa, como qualquer língua, tem o certo e o errado somente em relação à sua estrutura. Com relação a seu uso pelas comunidades falantes, não existe o certo e o errado lingüisticamente, mas o diferente (Cagliari 1992, p. 35).

E a sociolingüística vai mostrar os problemas da variação lingüística e da norma culta. Para os alunos que já falam o dialeto de prestígio, aprendê-lo se constitui numa tarefa relativamente simples mas, para quem fala alguma variedade estigmatizada do português, será um trabalho tão grande quanto aprender uma nova língua! (Cagliari 1992, p. 48) Os sociolingüistas mostram que cientificamente todas as línguas são válidas, sistemáticas, sistemas normatizados e que a distinção infe­ rioridade/ superioridade constitui um fenômeno social.

No Brasil há o tipo de linguagem falada pela classe dominante e outros tipos falados pelos operários, camponeses e grupos semelhantes. É importante conhecer essas diferentes variedades de linguagem. Elas impli­ cam gramáticas diversas e representações sintáticas e semânticas diversas, condicionadas e explicadas pelas pessoas em posições diferenciadas em relação às forças de produção. Perceber a realidade lingüística da criança e considerar os usos sociais que ela faz da linguagem não é mais importante que descobrir como foi adquirido esse modo de se expressar. A linguagem existe porque houve a união entre um pensamento e uma forma de expressão, que exigiu um processo mental e físico mais complexo do que simples­ mente escrever ou aprender os modismos de um determinado dialeto. Para esclarecer os processos mentais relacionados com a produção da linguagem, verificando as relações entre linguagem e pensamento, bem como o comportamento humano envolvido no uso da linguagem, mos­

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trando a importância dos processos interacionais na sua construção e no seu uso, o professor alfabetizador deve valer-se dos resultados de estu­ dos da psicolingüística. Cordeiro e Vale (1992) destacam a grande contribuição de Ferrei­ ro e Teberosky e de outros colaboradores que mostram a mudança de foco de "como ensinar a ler e escrever" para "o como a criança aprende a ler e escrever".

A escrita é uma representação gráfica da linguagem ou código de transcrição gráfico das unidades sonoras que constituem a pala­ vra. Baseia-se numa análise abstrata das unidades de som que formam a palavra. A criança não compreende esse sistema, de imediato. Com base nos estudos do desenvolvimento da inteli­ gência e em suas pesquisas sobre a produção da escrita, Ferreiro (1988, p. 3) detectou três estágios no processo de aquisição da linguagem escrita.

No primeiro estágio ou pré-silábico, as crianças não vêem a pala­ vra e o objeto como duas realidades distintas. Depois, escrevem letras correspondendo a sílabas e, por último, adquirem a capacidade de empregar a representação alfabética da escrita. A obra de Ferreiro pode ser considerada como continuadora dos estudos de Piaget na área de construção da linguagem escrita, tema praticamente por ele não pesquisado.

Críticas são levantadas por pesquisadores de diversas áreas, tan­ to à teoria de Piaget quanto às implicações pedagógicas dela decorren­ tes. Apontam a priorização ao pensamento lógico-matemático (ociden­ tal), desconsiderando outras lógicas construídas em outros contextos socioculturais. Questionam o caráter universal de suas descobertas, na medida em que a teoria não leva em consideração as interferências de classe social, cultura e sexo. Destacam a preponderância dos processos cognitivos sobre os socioafetivos na determinação do desenvolvimento infantil. Mencionam a ênfase dada, na prática pedagógica, aos aspectos cognitivos em detrimento dos domínios social, afetivo e lingüístico (Kramer 1992).

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O acesso às obras de estudiosos da escola soviética (Vygotsky, Leontiev, Luria) tem contribuído primordialmente para uma reflexão a respeito de conceitos fundamentais da psicologia do desenvolvimento. Para Vygotsky, o ser humano não se encontra limitado à sua própria experiência pessoal e/ou a suas próprias reflexões, mas expande-se e aprofunda-se em especial graças à aproximação da experiência social que é veiculada pela linguagem. Esta apropria­ ção se dá no seio das relações interpessoais que prevalecem na sociedade à qual a criança pertence. (Cordeiro e Vale 1992, p. 3)

E sobre a prática pedagógica, o que dizer? Uma prática consistente de alfabetização deverá, portanto, incluir a abordagem mecânica do ler/escrever, o enfoque da língua escrita como um meio de expressão/compreensão, a especificidade e a autonomia da língua oral e, ainda, os determinantes sociais das funções e dos fins da aprendizagem da língua.

A Pedagogia Freinet responde às necessidades de uma prática que atende às múltiplas dimensões do processo de alfabetização na perspectiva interdisciplinar dos estudos apresentados, desde a sua es­ pecificidade, como aquisição do código lingüístico, até a visão mais abrangente, de desenvolvimento de linguagem, de forma contextualizada social e culturalmente, num projeto político de transformação social. Para Freinet, as crianças resolvem os problemas integrados no processo de vida, pelos seus próprios meios ou com a ajuda de companheiros e adultos. O essencial é que elas triunfem sabendo que este triunfo não é mais que um patamar que lhes permitirá ir mais longe quando o aprendido tiver sido incorporado. (Cordeiro e Vale 1992, p. 4) Pode-se afirmar que tudo se passa

como se todo o ato conseguido cavasse um sinal no comporta­ mento e que, desde esse dia, as reações que se seguem a este primeiro ato têm tendências para pedir de empréstimo este sinal que se torna linha de êxito. (Freinet 1977)

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O tateio experimental é a base do método natural que é a própria manifestação dos processos de vida. É muito mais uma pedagogia da pergunta do que uma pedagogia da resposta. Quanto mais inquieta for, mais crítica ela se tornará.

Bibliografia CAGLIARI, L. C. Alfabetização e

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TARALLO, F.

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9 O TATEAMENTO EXPERIMENTAL NUMA CONCEPÇÃO MATEMÁTICA

Nilce Fátima Scheffer1

Freinet propõe a educação pelo trabalho, que não significa educação pelo trabalho manual e sim a união entre intelectualidade e manipulação, pensamento e ação; o desenvolvimento do pensamento até o lógico e inteligente ocorre a partir de ocupações materiais. E, para chegar ao valor educativo do trabalho, propõe inicialmente a observação, em segui­ da a expressão, depois a experimentação; o valor educativo destas opera­ ções está no resultado da união das três. Portanto, Freinet ressalta a necessidade de ligar o estudo a uma constante experiência tateada, relacionada o mais possível à vida. O prazer pelo trabalho leva à harmonia, à eficiência e à felicidade. Referese ao trabalho-jogo como uma alternativa para mudar a atmosfera da sala de aula, envolvendo o aluno como um todo na atividade, tornandose possível uma classe disciplinada, envolvida pela ordem, harmonia e sinceridade ao serviço do poder vital.2 1.

2.

Professora do Departamento de Ciências Exatas e Informática da URI — Campus de Erechim — RS; mestre em educação matemática. Poder vital — poder de vida, a vida nascendo e formando um ser.

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Destaca como fontes de interesse: a referência ao real e aos ele­ mentos da vida, a liberdade no quadro de uma organização cooperativa, a iniciação e criação, e o clima de colaboração. Coloca a experimentação pessoal como base principal da aquisição do conhecimento matemático. A aritmética e a geometria são o campo por excelência da expe­ riência tateada. (Freinet 1978 p. 86)

A aritmética com lições deverá ser substituída pela aritmética corren­ te que está presente na vida familiar e social. Inicialmente as crianças resolvem problemas da vida para, posteriormente, passarem a trabalhar problemas similares. As informações para a elaboração dos problemas deverão ser trazi­ das pelas crianças, que desenvolverão a capacidade de questionar os pais e a comunidade para levar dados à escola. Estes dados serão problematizados e resolvidos, e a criança irá compreendendo as bases sociais da aritmética escolar e interpretando, por meio de problemas, a realidade. O caminho é partir da prática, por intermédio das experiências próprias da vida e do meio da criança, propiciando assim a chegada à lei, à teoria, portanto, à ciência. A educação viva é a única que importa, o exemplo vivo é que marcará; a função de controle do professor é substituída por uma função de ajuda; o educador estabelece um clima de confiança, segurança, doação recíproca; assim está assegurada a atmosfera Freinet na escola.

Considerando a educação nessa abordagem, a escola, ao lado da família, passa a ser espaço importante para educar o indivíduo, permi­ tindo seu desenvolvimento total como um ser afetivo, social e histórico, crítico e participativo. Freinet considera que, para chegar ao pleno desabrochar como indivíduo, como um ser social responsável, co-detentor e co-edificador de uma cultura, é necessário desenvolver o senso de responsabilidade, o senso cooperativo, a sociabilidade, o julgamento pessoal, a reflexão individual e coletiva, a criatividade, a expressão, a comunicação, o saber-fazer, os conhecimentos úteis e a capacidade de reduzir os pontos de desigualdades socioculturais. O grande objetivo da Pedagogia Freinet é promover uma idéia específica de educação que abrange os direitos dos adultos e também os das crianças. É uma tomada de consciência dos educadores quanto à sua

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responsabilidade, aliada à sua capacidade de autonomia frente aos poderes políticos e aos problemas sociais. Coloca como base da educa­ ção a vida da criança, suas necessidades e possibilidades.

Estabelece também relações entre o conteúdo a ser estudado na escola e as condições ambientais reais do aluno, levando ao seu desenvol­ vimento e à sua transformação que, por sua vez, transformarão o meio; pressupõe a escola da vida; esta deverá estar centrada no trabalho. Tendo em vista que a educação deve considerar e formar o indivíduo como um todo, desenvolvendo sua personalidade, atendendo às necessidades do aluno de acordo com a realidade em que vive, de forma que haja harmonia e equilíbrio em sua afetividade, sociabilidade, poder de criação, de com­ preensão e transformação do mundo por sua ação, a escola deverá estar centrada no trabalho e em tudo o que o aluno traz de humano e social.

Para a Pedagogia Freinet a escola não pode ser dissociada da sociedade ou, melhor, do contexto em que está inserida, partindo da compreensão da realidade, prática cooperativa e democrática, pois de­ fende uma educação que tenha sentido para a vida da criança, dentro de uma participação ativa e dinâmica. Coloca o trabalho como centro de toda atividade escolar, considerando que o trabalho é a força que move o ser humano; portanto, a atividade pedagógica terá mais sentido se estiver baseada nesse princípio da natureza humana, com objetivo de ação transformadora, na base de uma aprendizagem significativa.

A aprendizagem significativa garante-se pela possibilidade de articulação e apropriação dos conhecimentos, pela sua manipulação (concreta e abstrata) e elaboração. Essa aprendizagem significativa rela­ ciona-se intimamente com o sentido, a afetividade e a vivência do aluno; a mesma observação vale para a matemática, que não é senão a noção, estabelecida pela medida e pelas relações entre os objetos, pois a apren­ dizagem só ocorre quando algo tem significado. Portanto, enquanto a criança não tiver compreendido a situaçãoproblema, com todo o seu ser, percebemos no seu comportamento uma indecisão; quando, porém, ela é tomada de curiosidade, sentimos nela uma força que se liberta, e as noções encontram uma base definitiva e, dia após dia, de maneira natural, as crianças sentem-se alegres, buscan­ do e oferecendo aos seus companheiros suas produções, seus procedi­ mentos de solução, perguntas e críticas, as quais cada um compartilha,

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facilitando assim seus tateios, permitindo adquirir um estilo pessoal; assim os alunos penetram no terreno da invenção matemática. E o método natural proporciona, a princípio, a vida. Freinet destaca a experiência tateada, a experiência ajudada e orien­ tada, o trabalho, que é sua forma social, como base da formação matemáti­ ca, salientando que "o essencial é que tenham construído sobre bases sólidas, por um processo lógico e harmonioso, sua própria personalidade" (1978, p. 202). E a escola deverá empenhar-se para entrar em contato com o desejo de conhecer, experimentar e criar que os alunos têm.

Freinet apóia sua proposta pedagógica numa estrutura coerente com a visão de educação e no processo de aprendizagem que a seguir transcrevemos (1975, p. 172): 1- A experimentação, sempre que isso seja possível, experimenta­ ção que pode ser tanto observação, comparação, verificação, como prova, através do material escolar, dos problemas que o espírito levanta e das leis que ele supõe ou imagina. 2- A criação que, partindo do real, dos conhecimentos instintivos ou formais nascidos da experimentação consciente ou inconscien­ te, eleva-se, com a ajuda da imaginação, a uma concepção ideal do devir humano ao qual serve. 3- Enfim, complementando-as, apoiando-as, estimulando-as, a documentação que é como que a tomada de consciência da expe­ riência realizada, no tempo ou no espaço, por outros homens, outras raças, outras gerações.

Logo, a experimentação, depois a criação, que teve origem na própria experimentação, e finalmente o registro, documentação e socia­ lização do feito, eis o processo de tateamento experimental, fundamental à aprendizagem proposta por Freinet. O tateamento experimental reforça o processo de modelagem matemática (estratégia de ação para o ensino da matemática) porque considera também o aluno como parte integrante da realidade, com toda sua expressão de manifestação oral e escrita, tendo uma passagem mais detalhada e demorada da situação-problema até a abstração, pois envolve observação, investigação e reflexão que são aspectos que abran­ gem um pensar sobre, mais refletido, mais experienciado, partindo primeiramente do trabalho pessoal, passando pelo trabalho coletivo de 86

confrontação das diferentes soluções com explicações, críticas e eleições, proporcionando um amadurecimento maior dos aspectos refletidos para chegar à abstração. Portanto, podemos considerar o tateamento experimental como um trabalho de pesquisa reflexiva no ritmo próprio de cada aluno, quando suas descobertas individuais são as mais importantes, e o pensamen­ to é produzido nas práticas, repleto de significado e emoções.

O tateamento experimental, servindo para descrição de livres pesquisas vividas na classe, visa demonstrar que, a partir da contribui­ ção dos alunos, de suas atitudes criativas, podemos construir uma matemática em que os conceitos atingidos são todos da matemática atualmente ensinada. Os alunos verão que se trata de coisas da vida corrente. Basta abrir os olhos para ver; esta é a principal característica da Pedagogia Freinet na matemática. A aproximação do tateamento experimental e da modelagem mate­ mática é clara no momento em que o diálogo, a pesquisa e o trabalho de grupos cooperativos assumem um papel importante na vida escolar, deter­ minando uma mudança das pessoas que participam da ação educativa. Buscamos, por intermédio do esquema abaixo, criado a partir do esquema da modelagem matemática que vem sendo proposto em pes­ quisas de educação matemática, representar o tateamento experimental.

Realidade — Contexto histórico e social, contexto escolar e todo o meio sensível com os dados, a matemática, o homem, suas atividades, suas curiosidades e seus anseios. Situação real — Situação-problema presente na realidade. 87

Observação — Primeiro contato com a realidade, que se dá por intuição empírica ou racional, obtendo as relações científicas entre os objetos e entre os elementos da ação. Investigação — Pesquisa, buscas pessoais de elementos para jus­ tificar, clarear e comprovar as relações estabelecidas na observação. Reflexão — Pensar sobre o investigado, sobre aquilo que se procu­ ra, como se procede buscando elementos para sua representação, toma­ da de decisão, esta é indispensável para articular suas contribuições. Relacionando com a modelagem matemática, verificamos que os três últimos aspectos estão implícitos na experimentação e formulação do problema, pois ocorre a experimentação na passagem da situaçãoproblema à formulação do problema. Abstração — Compreensão do problema, interpretação, processo que leva à formulação em linguagem natural do problema ou da situa­ ção real; momento de transferência para a representação matemática. Generalização — Conclusão lógica da experiência tateada, tomando comum, desenvolvendo, difundindo, estendendo e aproximando a solução encontrada a outras situações semelhantes. Segundo Freinet (1979, p. 27):

No cálculo, o mesmo que na leitura e em ciências, haverá compa­ rações e analogias enquanto a criança não tenha efetuado um número suficiente de experiências.

É fundamental para nós educadores não termos pressa e preocu­ pação com economia de tempo, e darmos tempo para que tudo trans­ corra naturalmente até chegar à síntese. Validação — Tornar válido o observado, investigado, refletido, abstraído e generalizado. Legitimação de todo o processo de tateamento experimental. Retorno à situação-problema para confrontação e com­ provação dos resultados obtidos durante toda a caminhada, para verifi­ car sua validade ou não. Expressão oral e escrita — É a forma de externar algo na identifica­ ção da situação-problema, na observação, na investigação, na reflexão, na abstração e na validação, de maneira oral, pela fala, ou de maneira escrita, pelo modelo que achar mais conveniente. A expressão é algo que envolve todo o aluno nas manifestações externadas de satisfação, con­ flito, aprendizagem, prazer, alegria, descontentamento e emoção pre­ sentes em todos os momentos do tateamento experimental.

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Por conseguinte, podemos observar que há uma forte relação entre modelagem matemática e tateamento experimental, por seguirem ambos um caminho muito semelhante, sendo o indivíduo quem coleta informações sobre algo, participa e busca, por meio da produção de novas idéias, exercer uma ação sobre a realidade.

A experiência tateada é considerada absolutamente indispensá­ vel à vida, sendo que em nenhum momento a explicação verbal deve substituir a experimentação. Com o tatear, o aluno tende a impregnar e enriquecer com a expe­ riência dos outros a sua própria existência. (Freinet 1978, p. 68)

O debate, a troca de informações, o confronto no grupo, a busca de soluções para os problemas que surgem só serão possíveis por meio de questionamentos, de perguntas, de observações e de reflexões que darão abertura para que o tateamento experimental sirva de ponto de partida ao diálogo que leva à reconstrução de conceitos matemáticos e ao desenvolvi­ mento de atitudes, de questionamento e investigação frente às informações apropriadas na realidade geofísica do meio ambiente em que vive. O tateamento toma possível a construção e a reciclagem de modelos, desenvolvendo a capacidade exploratória inata e de investigação do meio ambiente, responsáveis pelo domínio de todo e qualquer conhecimento. A postura de educador de Célestin Freinet é bastante coerente e corajosa para a época em que ele viveu, pois deu uma virada no comportamentalismo presente, manifestando repúdio ao sistema de ensino vigente, buscando propor novas técnicas de trabalho em sala de aula, que respeitassem o ser do aluno, suas necessidades e curiosidades, tendo em vista o contexto em que a escola ou, melhor, a comunidade escolar estivesse inserida. Portanto, a educação será móvel e flexível em sua forma, pois só assim dará abertura para que o professor tome novas iniciativas em sala de aula, proporcionando aos seus alunos oportunidades alegres para cresce­ rem como seres humanos na escola. É indispensável que nossa escola seja a escola do êxito e não do fracasso; local onde eliminem tensões, onde saibamos aproveitar o entusiasmo dos alunos, liberando a mente de preo­ cupações e temores relativos à avaliação, colegas e professores.

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Finalmente, o tateamento experimental, aliado à modelagem ma­ temática, recupera vantagens pedagógicas e sociais, consideradas inter­ dependentes numa postura educacional global, que trata os conteúdos de maneira articulada, valorizando o afeto e a emoção, trabalho que torna os alunos felizes e realizados na sua aprendizagem, pois o desejo da criança torna-se o ponto central, sendo o que fundamenta o método natural de Freinet, que tem por base a criação-expressão.

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10 A AFETIVIDADE NA APRENDIZAGEM: UMA BREVE INTRODUÇÃO AO TEMA

Yolanda Moreira S. Paiva1 As crianças têm necessidade do pão: do pão do corpo e do pão do espírito. Mas necessitam, ainda mais, do teu olhar, da tua voz, do teu pensamento e da tua promessa.

Célestin Freinet Questão central na formação do homem, parte do processo mais amplo da educação e um dos temas de maior significado e abrangência da psicologia contemporânea, a aprendizagem pressupõe uma busca apaixonada e permanente do saber, oriunda da premência de obter conhecimentos, vencer obstáculos, expressar e satisfazer desejos. Preocupados sempre mais com a eficácia de nosso fazer pedagó­ gico, talvez nem sempre tenhamos presente a idéia de que a aprendiza­ gem, para ocorrer, exige uma disposição afetiva, um querer, um sentir necessidade de satisfazer motivos. 1.

Mestre em educação. Coordenadora do Núcleo de Estudos Pedagógicos Célestin Freinet. Professora do Departamento de Educação da URI — Campos de Erechim/RS.

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Surge daí, como relevante, a motivação para o conhecimento em sala de aula, processo constante, infinito e complexo, ligado às necessidades, aos interesses, aos desejos, à ideologia e à afetividade do aluno. Entre outros aspectos, envolvidos no desenvolvimento do processo motivacional, estão as relações interpessoais. No âmbito dessas relações, sujeitos (professoraluno), objetos de conhecimento (temas, assuntos, objetos) e o contexto em que se inserem (sala de aula, escola, comunidade, realidade em geral) cumprem todo um processo interativo no qual a afetividade é o componen­ te básico de mobilização, direcionamento e intensidade das ações. Ao se aproximarem para a vivência de intercâmbios e construção de vínculos especiais, no espaço da sala de aula, educando e educador promo­ vem o entrelaçamento entre o cognitivo, o afetivo, o social e o psicomotor.

Passando desta visão contextualizada para um enfoque mais específico, que enfatiza o humano na relação pedagógica, importa acen­ tuar que o conhecimento chega ao aluno pela via da afetividade, seu verdadeiro alicerce. Afetividade não confundida com banho de mel, enjoativo e artificial, mas interpretada como conjunto de manifestações psíqui­ cas representadas pelas emoções, sentimentos, inclinações e paixões; como capacidade de sentir, de experimentar estados afetivos e de agir e reagir efetivamente. Traduzindo o papel do afetivo na aprendizagem, assim se expres­ sa Snyders (1993, p. 92): O aluno aprende realmente bem o que o cativa, numa atmosfera de aula que lhe pareça segura, com um professor que sabe criar afinidades. Eis porque a escola, ao mesmo tempo, tem de conciliar o intelectual e o afetivo e constitui um lugar privilegiado para operar essa conciliação. A alegria na escola só é possível na medida em que o intelectual e o afetivo conseguem não se opor.

Nessa perspectiva não dicotômica entre afeto e discernimento racional, o processo de conhecimento passa a ser percebido como um momento de apreensão amorosa, criativa, prazerosa e alegre, propician­ do àquele que aprende uma vida de grande sensibilidade, que, aprimo­ rada no tempo e no espaço do convívio, implicará o desenvolvimento global de sua personalidade. 92

Como educadores sabemos que, para aprender a viver e a convi­ ver com aprendizagens tão complexas e particulares, a criança precisa de um mundo personalizado que a receba respeitosamente e a acolha num clima de confiança, segurança e serenidade, onde ela encontre apoios para superar a dependência, definir os limites de sua própria identida­ de, vivenciando o esforço/prazer do aprender e o assombro diante de suas descobertas e possibilidades. Entretanto, é imperiosa a denúncia de que as condições contextuais de vida e a educação agem, muitas vezes, em sentido contrário às necessidades, aos desejos e às expectativas da criança e do jovem. Na esfera da aprendizagem escolar, o relacionamento professoraluno pode dar origem a climas afetivos diferenciados, segundo o sen­ tido harmonioso, cooperativo, integrador, ou conflitivo competitivo e desintegrador que o caracterizam. Na dimensão socioafetiva, a análise e a interpretação de fatores de influência no comportamento infantil, já ao ingressar na escola, revestem-se de grande significado, pelas indicações que pode oferecer para a orientação da prática pedagógica. A vivência do cotidiano da sala de aula, acrescida da contribui­ ção de pesquisas nesta área, revela que, ao ingressar na escola, a criança mostra-se profundamente impressionada pelo afastamento de seu estilo de vida anterior. Para alguns alunos, esse é o momento há muito desejado que se concretiza; para outros, é um momento de forte tensão. Algumas crianças trazem consigo um misto de medo e expectativa, acompanhado de sentimentos conflitantes de orgulho e ansiedade: o orgulho explica-se por já estarem em idade escolar, e a ansiedade, por não se considerarem ainda aptas a realizar o que delas se espera e por não sentirem a escola como um lugar que lhes perten­ ce (Jersild 1973).

Muitos alunos já chegam tatuados pela falta de afeição na família, revelando sintomas de uma atitude de rejeição em face de outras pes­ soas e outros comportamentos suscetíveis, às vezes, de produzirem efeitos dramáticos na disposição de aprender. Ao chegar à escola, a criança defronta-se com um mundo estra­ nho e diferente do seu, freqüentemente enraizado em práticas que a

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impedem de construir ela própria sua aprendizagem, de percorrer o caminho científico para a apropriação do saber, de expressar-se livre­ mente, de ser bem-sucedida, de conhecer o prazer e o êxito. A realidade aí encontrada pelo aluno é a de um mundo à parte, fechado e protegido, separado da vida; um mundo de ritos imutáveis, de silêncio e imobilidade, onde só é permitido falar bem, e quando solicitado; um mundo onde só é permitido o que não é proibido; um mundo no qual a punição e o castigo manifestam-se nas repreensões, na competição por meio das notas, nas ameaças; um mundo no qual o aluno deve escutar, obedecer e calar, enquanto o professor ordena, julga e decide (Harper 1982). Num ambiente com tais características, a dialética entre o cogni­ tivo e o afetivo não se realiza. Efeitos dessa realidade refletem-se, então, na aprendizagem e na criança que, agredida, pode apresentar reações de medo, ansiedade, insegurança, tristeza, revolta, indiferença, prejuízo da auto-estima. Essas respostas significam a morte do desejo, da alegria, do prazer de aprender, podendo constituir-se, entre outras causas determi­ nantes do fracasso escolar, nas suas conhecidas manifestações de repro­ vação, repetência, evasão e abandono definitivo da escola.

Ao nos referirmos ao fracasso escolar, queremos ressaltar que, no plano socioafetivo, ele se configura como uma percepção desvalorizante, cujo significado é o desprazer do aluno. Em estado de desprazer, esse aluno carrega consigo o sentimento de ser diferente e menor relativa­ mente aos companheiros bem-sucedidos. Perturba-o, também, o sofri­ mento por não ter atingido o objetivo prefixado, não corresponder às expectativas do professor e dos pais e não ter conseguido satisfazer seu próprio desejo. A intensidade de seu sofrimento cresce quando o insu­ cesso é utilizado para fins seletivos ou interpretado como sinônimo de incapacidade intelectual (Gilbert 1992). Lembrando nosso papel como mediadores da relação educandoobjeto de conhecimento, compreendemos a necessidade vital de estar­ mos conscientes de que o prazer de aprender é o elo de aproximação entre professor e aluno; de que para realizar seu projeto de humanização, o aluno necessita instrumentalizar-se por intermédio de uma peda­ gogia fundamentada no respeito, na solidariedade e na afetividade; de que professores e alunos ensinam, aprendem e sentem.

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De acordo com Marchesi (1993), os educadores reconhecem a im­ portância do domínio afetivo, responsável por aqueles comportamentos que inserem o homem no universo das relações psicossociais. O reconhe­ cimento do valor do domínio afetivo na aprendizagem está expresso no conteúdo dos currículos escolares. Neles encontramos propósitos de modificar atitudes, de cultivar valores, de desenvolver interesses e agir sobre comportamentos envolvidos na dimensão emocional. Entretanto, na prática, o que se observa é a existência de grande dificuldade em conseguir o que está explícito e aceito nos documentos curriculares. A propósito da valorização do sentir e do afetivo na aprendiza­ gem, estudos feitos revelam que a literatura acadêmica parece descurar a dimensão afetiva do processo educacional, dando ênfase ao racional, separando o emocional do cognitivo, o afetivo do intelectual, o sentir do pensar (Abramowicz 1992). E isso está ocorrendo num momento em que a psicologia nos diz que: As emoções e o pensamento se entrelaçam de tal maneira que discuti-los, separadamente, se afigura a uma falsa dicotomia. (Berman 1975, p. 63)

Professores e intelectuais parecem demonstrar que buscam "co­ nhecer a dialética do conhecimento, mas não conseguem integrá-la na totalidade dialética do indivíduo" (Gadotti 1986). Promover abertura de espaços de liberdade para que o aluno se expresse como pessoa, reve­ lando suas condições existenciais, parece implicar uma dimensão de subjetividade que intimida de certo modo os pesquisadores preocupa­ dos com a cientificidade.

Enfim, a questão está aberta

Para concluir, gostaríamos de destacar que as idéias aqui levanta­ das, pela complexidade do processo de aprendizagem em sala de aula, representam uma aproximação preliminar do tema gerador deste texto. Por isso, propomos uma reflexão com base nas indagações a seguir, que pressupomos pertinentes e incitadoras da busca de maiores elucidações e de novas abordagens. 95

Perguntamos, então: Como está a inserção do professor na espe­ cificidade do processo de aprendizagem quanto ao saber a ser ensina­ do, ao valor dos saberes cotidianos para o aprendizado e às peculiari­ dades das relações interpessoais interiores a esse processo? O professor está consciente da função vital do afeto na aprendizagem e no projeto educativo como um todo, particularmente neste tempo de violência e conflito que marca as vésperas de nova década? Ele sabe que afeto e respeito não se misturam de maneira anárquica? Como está a qualida­ de de vida do professor no contexto das crises intelectuais, éticas, espirituais e afetivas da época? E sua sensibilidade diante da situação crítica da educação? O que pensa e o que sente o professor, hoje, apontado que é como um dos mais sofridos, desrespeitados e desvalo­ rizados profissionais? Isto pode afetar sua capacidade de responder afetivamente aos desafios sociais, econômicos e políticos que lhe são propostos no dia-a-dia de seu fazer pedagógico? E se tal acontecer, como ficam as condições existenciais de seus alunos, tão "precisados" de um educador sensível e talentoso, que ouse recuperar o humano, resgatando a paixão de aprender a aprender e fortalecendo laços afeti­ vos no âmago da prática educativa? Para esse educador uma resposta que gratifica pode ser a certeza de estar re-significando essa mesma prática, reencantando o pequenogrande mundo de sua sala de aula e tornando os alunos felizes.

Uma situação oposta a essa e a tudo que foi dito sobre as implicações da afetividade e da não-afetividade é a da coerção, do medo, da humilha­ ção. Esse é o outro lado da relação pedagógica. E o outro lado é o lado cruel.

Conclusão

O texto faz uma abordagem introdutória ao estudo da afetividade na aprendizagem, com a intenção mais circunscrita de colocar em des­ taque alguns elementos fundamentais para reflexão e incitar a busca de maiores elucidações e análise de novos enfoques.

No contexto da sala de aula, no qual educador e educando de­ frontam-se para a vivência de intercâmbios e vínculos especiais, o cog­ nitivo e o afetivo entrelaçam-se intimamente. 96

Como mediadores da relação educando/objeto de conhecimento enfatizamos a importância vital de estarmos conscientes quanto ao valor de um clima socioafetivo, para que a aprendizagem, na sua indis­ cutível complexidade, possa acontecer como um empreendimento agra­ dável, prazeroso e dinâmico.

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11 A AFETIVIDADE

Flaviana M. Granzotto1 É por intermédio das modificações comportamentais da área afetiva que a escola pode contribuir para a fixação dos valores e dos ideais que a justificam como instituição social. Os educadores reconhe­ cem a importância do domínio afetivo, responsável pelos comporta­ mentos que integram o homem no universo das relações psicossociais. É desejo da escola atuar e verifica-se este interesse pesquisando o con­ teúdo dos currículos. Neles encontramos os propósitos de modificar atitudes e valores, desenvolver interesses e agir sobre comportamentos envolvidos em dimensão emocional.

Na prática, constata-se a existência de grande dificuldade em obter o que é desejo explícito e aceito. Atribui-se isto à falta de estraté­ gias utilizáveis na escola relacionadas com os objetivos afetivos, ao ambiente escolar com condições pouco favoráveis, às limitações de instrumentos e outros mais...

Para Freinet essas limitações não existiram. Ele estabeleceu, des­ de o início de suas atividades como mestre, dominância absoluta do 1.

Coordenadora do Núcleo Freinet da Furb — Blumenau, SC.

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afetivo sobre o cognitivo com notável vantagem para a aprendizagem. Pela prática de modo claro e objetivo evidenciou que é acessível a todo mestre criar em sua classe ambientes, técnicas e estratégias favorecendo o surgir de um clima que oportuniza as desejadas modificações comportamentais. Sua proposta tem ação terapêutica2 e integradora. Aos feitos e fatos decorrentes de seu trabalho renovador, relatados, inicialmente, por ele próprio e por sua esposa Elise, seguiram-se inúmeras documen­ tações tal como de boa sementeira desabrocha deslumbrante florada. A proposta amorosa e genial espalhou-se em tantos países que temos, hoje, uma série de livros, textos, revistas, artigos que nos estimu­ lam, com exemplos bem-sucedidos, a seguir novos caminhos. Estou convencida de que a prática fala mais alto que a teoria; por isso selecio­ nei alguns exemplos de escritos de crianças de outros países — França, Bélgica, Itália, Portugal, além do nosso —, para animar o texto. Amei o que li e quero compartilhar com vocês meu sentimento. É natural sentir desejo de dividir com os outros nossas emoções e, freqüentemente, dirigirmo-nos aos que nos estão próximos: colegas, fami­ liares, amigos... Em breve pensamos nos que estão mais longe e também com eles queremos compartilhar nossas boas novas ou nossas preocu­ pações. Daí a escrever é só um passo... Sem perceber, seguimos esponta­ neamente o caminho proposto pelo mestre: comunicar, documentar, afetivamente, juntos.

Os escritos de Freinet foram destinados inicialmente a uma popu­ lação rural já que ele construiu sua escola na Provence denominando-a Escola do Trabalho. Queria atingir os pais, a comunidade modesta e não poderia recorrer à linguagem da escola intelectualizante. Seu estilo simples e acessível, impregnado de metáforas, muitas vezes em tom bíblico, sensibiliza o leitor, persuade, encanta, pois tem uma dimensão afetiva profunda. Reproduzimos um trecho de seu livro O texto livre:

A criança chega-nos, nova e confiante, habituada à expressão livre da família e da rua... Com os primeiros exercícios, os primei­ 2.

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Ver: "Aspects thérapeutiques de la pédagogie Freinet", Collection Documents ns 5 de la Bibliothèque de L'Ecole Moderne.

ros livros, a criança deixava o seu mundo para entrar prematura e perigosamente no mundo dos adultos, através da leitura e da cópia que só muito excepcionalmente encontravam eco na própria vida. Daqui resultava uma ruptura... Nós restabelecemos a unidade da vida da criança. Esta não deixará uma parte de si mesma, e a mais íntima ao entrar na escola, para vestir uma bata que mesmo embele­ zada e modernizada, não deixa de ser uma etiqueta de aluno...

"Nascem as fiares Voltam os passarinhos E cantam os passarinhos E as pessoas Eicam caladas Para os ouvir cantar." (Miguel, 6 anos)

"As pessoas pobres vivem Em barracas. Eu vi barracas em algés Um dia de noite estava A chover, vi uma barraca De madeira a cair. Parecia que a barraca se ia Desmanchar toda. (Pedro, 8 anos)

As primeiras conquistas

Importância primordial da afetividade para um método natural da leitura e da escrita. Algumas palavras têm para as crianças uma grande ressonância afetiva: mamãe, papai, o nome próprio..., por isso são facilmente identi­ 3.

In: Freinet, 1976.

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ficadas e reconhecidas já nos primeiros dias de aula. Existem outras palavras que fazem parte da vivência individual, diferentes para cada criança e que da mesma forma são logo aprendidas. Exemplos: • carro: para Marcos que anda sempre com um carrinho no bolso; • a letra V: para Davi porque faz parte de seu nome; • ovo: para Maria que todo dia traz um para o lanche.

Cada criança atribui maior importância a algumas palavras por­ que fazem parte do seu dia-a-dia. Desta maneira, se o livro-texto traz a seguinte frase: "Mamãe fez um lindo bolo de aniversário", nem todas as crianças estão interessadas nesse bolo. Mas se uma coleguinha faz anos e sua mãe traz o bolo na hora do lanche o interesse é imediato. Come-se o bolo e segue-se a elaboração de um texto que no caso ficaria assim:

Mamãe fez um bolo para meu aniversário. Era um grande bolo. Coberto de creme. Com 7 velas. Quando apaguei as velas comemos o bolo inteirinho e eu me lambusei toda de creme. Lambi os dedos.

Desta forma, a afetividade tem papel preponderante na constru­ ção do texto, na leitura, na aprendizagem enfim. Trata-se de uma relação muito superior à motivação. Os textos que relatam um acontecimento vivenciado com intensi­ dade pela classe são memorizados facilmente, mesmo sendo longos. Progressivamente esses textos, cujo sentido todas as crianças conhecem, vão sendo objeto de trabalho. Depois de ilustrados pelo autor, são fixados na parede, o que, além de os valorizar, vai permitindo à classe ficar, pouco a pouco, mergulhada em um banho de leitura, importante para todos, mas especialmente para os autores.

A classe mantém correspondência regular com outra turma de mesma escolaridade. A correspondência também é afixada às pare­ des. Os livros de leitura são construídos pelos alunos a partir de seus textos.

Todo esse material está profundamente ancorado na vida das crianças.

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"O coelho Papai olha o coelho. Papai mata o coelho branco. Papai assa o coelho. Papai come o coelho." (Alsir — ls série)

Tenho um Zé em minha sala de aula Tinha acabado de fazer 6 anos. Chamava-se Zé Antonio. Nem quero me lembrar dos problemas que tive com ele nos primeiros tempos em que foi meu aluno! Nunca estava quieto, nem atento. Mal começava uma atividade, logo dizia; "Professora, já acabei!" E entregava um papelito ou o material que servia de suporte terrivelmente rabiscado ou incompleto.

Enquanto eu procurava uma nova coisa que o mantivesse calmo mais cinco ou dez minutos, ele já empurrava os outros, tirava-lhes coisas, chamava-lhes nomes. Eu tinha de intervir, fazer parar tudo, discutir o que se passava, mas o bom do Zé parecia de fato não perceber nada do que eu ou os outros dizíamos. Eu devia ter vergonha de confessar, mas a verdade é que vivia na secreta esperança e no desejo de por uma razão qualquer ele tivesse que faltar uns dias e eu pudesse trabalhar em paz... Mas o Zé era dos que não constipa nunca; uma resistência de ferro e, mal eu chegava, ele já estava à porta, pronto a entrar de rompante, a atirar com a mala para cima da mesa preparando-se para os maiores disparates.

Uma vez que já confessei que vivia na secreta esperança de que ele faltasse, sentimento que na minha profissão é uma espécie de sacrilégio, confesso agora, também (para me redimir), que, ou pela culpa que isso me causava ou por simples zelo profissional, eu ia cada vez mais me esmerando no que preparava para ele em casa e na escola. Desencantava exercícios corporais de relaxamento, fichas interessantíssimas, jogos dos mais curiosos, enfim... posso dizer que toda a planificação do trabalho de classe já tinha mesmo o Zé como centro. Mas nada resultava. 103

Falava com a mãe, falava com o pai, esperava ansiosamente a vinda à escola da equipe de saúde escolar, pensava numa lista imensa de psicólo­ gos a quem pedir conselho e saía todas as manhãs de casa com uma angústia enorme a apertar-me o estômago. Claro que essa angústia tirava-me muito da energia que eu preci­ sava, mas apesar disso eu ia procurando pouco a pouco organizar a classe, equipar a sala com os materiais que me pareciam adequados às necessidades de todos.

A última coisa foi o canto de carpintaria. Tínhamos um banco lindíssimo, sem qualquer risco ou beliscadura (nunca fora estreado) com tomo, espaço para arrumação, impecável.

Era a primeira vez que eu estava numa escola com possibilidades de nela se fazerem facilmente trabalhos em madeira e, apesar de não saber pregar um prego, sabia que as crianças chegariam aonde eu não era capaz e decidi encomendar os instrumentos minimamente necessários. Uma bela manhã, no meio da aula, chegou o caixote. Combina­ mos que, acabado o trabalho que tínhamos em mão, iríamos abri-lo.

Assim foi. Sentamo-nos à volta dele e o Zé também aproximou-se para uma espreitadela. Desinteressado sim, mas não ao ponto de não sentir a curiosidade de saber o que estava lá dentro (alguma prenda?). Eu pensava que, aberta a tampa, ele diria: "Oh! Grande coisa! Martelos..." e, como de costume, desataria às corridas pela sala, aos empurrões...

Mas nada disso. Milagre! O Zé ficara ali quietíssimo! E, com os olhos esbugalhados, ia dizendo o nome de cada coisa: martelo, formão, serrote e por fim: "Professora, deixe-me ser eu a arrumar..."

Ora, então não havia de deixar? Se era a primeira vez que ele manifestava um desejo de fazer qualquer coisa, a meus olhos, positiva? Sossegadíssimo, arrumou tudo, por uma ordem que me pareceu muito lógica. Depois começou a trabalhar.

Durante o resto da manhã não o ouvimos. Eu via-o muito entretido de costas para o resto do grupo, a serrar, a martelar. Que faria? Melhor deixá-lo estar e nem saber... Nós estivemos em paz e isso já era tão bom!... 104

Só ao fim de muito tempo é que cheguei junto dele.

Concentradíssimo, acabava um grande avião com asas, hélice, cauda, tudo muito perfeito e bem proporcionado. Mas, como tinha sido possível? Já alguma vez mexera naqueles materiais? Quem o ensinara? E o Zé, logo a explicar que aprendera com o pai, carpinteiro de profissão, trabalhando numa empresa e que nas horas vagas fazia consertos e arranjos que lhe encomendavam numa oficinazinha pequena que tem no quintalzinho de casa...

Ora, já passava mais de um mês de as aulas terem começado, eu já falara várias vezes com os pais dele, por que seria tão desinquieto e nunca me lembrara de procurar saber que coisas eram no fundo seus interesses, suas artes, seus hábitos de vida... Claro que o comportamento dele não mudou logo de um dia para o outro. Mas a banca de carpinteiro foi o primeiro lugar onde conseguiu passar muitas horas, onde construiu montes de coisas bonitas, e onde teve ocasião de, em vez de beliscar ou empurrar os colegas, ensinar-lhes a melhor maneira de serrar ou de pregar um prego. Posso dizer que foi o lugar onde aprendeu a gostar da escola. O resto, quero dizer, o gosto pelas outras atividades veio a seguir, pouco a pouco. Ao fim de algum tempo, já podíamos vê-lo sentado e calmo. É evidente que, de vez em quando, ia se levantando para dar um beliscãozinho a quem lhe aparecia. Mas o fundamental é que já era possível entendermo-nos numa conversa sobre isso e negociarmos os dois sobre o que havia de fazer.

A tão desejada (e inconfessável) ausência do Zé para podermos trabalhar em paz não fora afinal necessária.

Bem pelo contrário: fora ali que com ele e todos nós se havia descoberto o processo de nos entendermos e podermos avançar. Bastara ao fim e ao cabo uns preguitos e um pedaço de madeira para porventura fazer-se a ponte entre sua casa e a escola e, assim, ele ficar conciliado conosco. E eu andara tanto tempo invocando os deuses e com uma angústia na boca do estômago quando de manhãzinha saía de casa todos os dias!

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O fio de Ariadne A Pedagogia Freinet propõe-se, entre outras coisas, a encontrar técnicas que permitam descobrir como reage a criança às mudanças do meio interior (fisiológicas) e exterior (sociais), a fim de restabelecer seu indispensável equilíbrio.

No mundo moderno, o equilíbrio da criança é fortemente com­ prometido por um conjunto de condições contraditórias e de interdições que pesam sobre ela. O número de crianças desajustadas porque seu equilíbrio foi prejudicado pelas mais variadas causas aumenta continua­ mente. As condições da vida moderna são, às vezes, inaceitáveis e de tal forma cruéis que repercutem no psiquismo da criança.

A insegurança criada desencadeia reações de instabilidade, de agressividade que a criança direciona ou contra a sociedade ou contra si própria. Torna-se, então, nervosa ou apática, excitável e, sobretudo, inadaptada à vida familiar e escolar. Algumas vezes cria-se até uma perigosa inibição de suas faculdades intelectuais. A primeira missão da escola, neste mundo onde não foi possível resguardar o lugar da criança, é a de tentar recuperar e devolver-lhe o equilíbrio e isto não será possível sem a ajuda do fio de Ariadne.

Ouçamos Freinet: É o fio de Ariadne que nos permite, em qualquer circunstância, compreender melhor o comportamento das crianças e dos ho­ mens, de reagir de forma mais sadia, evitando os erros que entravam o crescimento do ser.

Na Pedagogia Freinet, o fio de Ariadne é a expressão livre, pedra angular da afetividade. A criança em geral ignora as causas de sua pertur­ bação. Somente a expressão livre permitirá à criança libertar, espontanea­ mente, suas tendências ante o educador que terá, desta forma, a possibili­ dade de conhecer cada indivíduo em sua plenitude e seus dramas. 4.

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Fio de Ariadne: expressão usada na literatura como metáfora. Inspirada na lenda de Ariadne, filha de Minos, rei da Greta. Designa uma coisa que serve de guia a uma pessoa perdida entre dificuldades. Ariadne, presa em um labirinto, encontrou a saída, guiando-se por um fio que desenrolava à medida que entrava no labirinto.

Freinet encontrou, nesse fio de Ariadne, sua concepção de escola como comunidade, baseada no trabalho, tecnicamente organizado, per­ mitindo à criança um tateio experimental constante, em um clima que favoreça a criatividade e a expressão espontânea. A criança expressa-se diante de seus colegas, sem competição ou concorrência; o mestre também é companheiro e amigo, e, assim, nor­ malizam-se as relações de confiança necessárias ao desenvolvimento humano e a seu condicionamento social. Isto supõe uma organização escolar com novas práticas pedagógicas, a supressão de disciplina auto­ ritária e de uma figura de mestre de ameaças e castigos, mas revestida de compreensão, iluminada pelo amor. Coração de cartolina Não tem água canalizada nem casa de banho. Ao todo são três assoalhadas pequenas. A que faz de sala e quarto ao mesmo tempo é um quadradinho exíguo onde se amontoam cadeiras, uma mesa, um divã e um móvel baixo, comprido, cheio de roupas por cima.

Ao todo, vivem nesta casa oito pessoas. Sem espaço e sem arru­ mos, é natural que não haja lugar certo para as coisas e que nunca ninguém saiba onde guardou o quê.

Chegam os rapazes do trabalho ou da escola e para ali cada um se põe a remexer. A procura de comida uns, à procura de roupa para mudar ou dos livros para a escola da noite outros. As vezes tudo se passa como se fosse natural a gente ter de esforçar-se muito até encontrar o que precisa (como é natural ter de se moirejar um dia inteiro para alcançar o direito à barriga mal cheia). Outras vezes há berros, zangas, aflições: Vanessa, onde metestes tu o boletim de saúde da tua irmã? Valhame Deus! Já é a segunda vez que mo mandaram pedir! Agora bem eu sei que vacinas é que ela não fez! Valha-me Deus! Que hão de dizer as enfermeiras? Levava-nos lá o Jorge... Que se passava que há tanto tempo não aparecia no apoio nem nos chegava qualquer notícia dele?

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Uma longa conversa explicativa de uma ida à terra para ajudar a avó que estava com um problema qualquer, que enfim a situação se normalizaria dentro de pouco tempo e logo a seguir um enumerar de considerações sobre a escolaridade dele: muito mandrião, a memória não o ajudava; ler, parece que nunca lá haveria de chegar. O que tinha, isso ninguém podia negar, era uma grande habilidade naquelas mãos. Tudo quanto fazia era perfeito. Ali na malinha debaixo do móvel, e já lhe sacudia a poeira e a abria, guardava ela todos os trabalhos manuais que ele fizera na escola desde a primeira classe.

Lá dentro, flores de papel, anjinhos prateados, desenhos vários, uma bolsinha de lã, um bloco para receitas de culinária, oferta do Dia das Mães, uma caixa de fósforos forrada a veludo e um marcador para livros, ofertas do Dia dos pais. Esquecidas são as travessuras e mandriices do Jorge. "Tem muito jeito, este rapaz!..."

E com os olhos, afaga um coração de cartolina vermelha que cuidadosamente volta a arrumar agora no canto da malinha.

Um facho de luz

Como deve ser a escola para o encontro consigo mesma e com os outros?

Na escola tradicional, os alunos passam a maior parte do tempo uns ao lado dos outros ouvindo as explicações dos mestres, mas não se encontram de maneira autêntica. Para que esta situação modifique-se é necessário elaborar estratégias que respondam às exigências do en­ contro pessoal e estas são as estratégias pregadas e praticadas na Pedagogia Freinet. Os encontros que a escola freinetiana propicia são regidos pelo princípio do amor. Segundo esse princípio, ninguém deve dominar o outro, nem mesmo submeter-se ao outro. Os seres humanos grandes e pequenos devem relacionar-se uns com os outros, conservando a pró­ pria integridade pessoal, respeitando-se, no relacionamento afetivo, a originalidade individual.

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O respeito não é temor nem submissão; é a capacidade de ver o outro como um ser diferente. Quando falta o respeito, o amor degenera em dominação; para respeitar é necessário conhecer o outro, para poder vê-lo como é na realidade, sem que nossos temores ou simpatias o deformem.

Resumindo: dar afetividade, dar amor na escola não significa um sentimento inefável, mas o cumprimento de tarefas de dar, cuidar, respeitar, conhecer. Todas essas atividades constituem uma faísca que deve aumentar a fraternidade entre os membros da comunidade escolar. De faísca em faísca, chega-se a um facho de luz! A relação fraternal constrói-se com os outros ao longo de uma tarefa cooperativa. O esforço empregado na realização inibe, mesmo que seja momentaneamente, os aspectos destrutivos dos seres humanos para dar lugar às forças criativas. Por exemplo, se os alunos de uma classe organizam um campeonato ou uma aula-passeio, ou se vêem obrigados à solidariedade para conseguir o fim que desejam, as antipatias ou pequenas divergências são postas de lado e acontece uma aproximação.

O trabalho em equipe, os campeonatos esportivos, as saídas cul­ turais, as representações teatrais, corais, conjuntos musicais, trabalhos na comunidade são algumas das técnicas que propiciam o desenvolvi­ mento de um clima afetivo integrador.

O trabalhador do futuro

Na proposta freinetiana, a base da educação não deve ser funda­ mentalmente o cultivo da inteligência, mas deve ter como prioridade a formação de indivíduos com uma escala de valores éticos e morais que redundam em uma cosmovisão que enfoca seu ser (eu) maior. O código moral exige que todos os seres humanos reconheçam-se mutuamente como pessoas e que formem uma comunidade, unindo os que estão separados. O amor é a faísca que deve guiar estas ações; é o poder que mantém a integridade da vida. A escola é uma das instituições criadas pelo amor para favorecer a humanização e, por isso, tem grande responsa­ bilidade na educação moral das novas gerações.

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O lema ser urna pessoa dentro de uma comunidade de pessoas implica várias conseqüências. A escola tem adotado diferentes posturas: o naturalismo liberal que respeita a liberdade e não dá nenhuma orientação moral; a pedago­ gia dos valores absolutos e a tradicional que negam aos alunos o direito de serem pessoas e de fazerem suas próprias escolhas. Somente reconhecendo, educadores e alunos, o direito do diá­ logo participativo, pode-se superar os antigos erros. É claro que a escola não pode dar soluções para os conflitos que separam os ho­ mens, pois esta é uma tarefa para a sociedade global. A escola pode contribuir para o processo de humanização, desmascarando teorias elitistas, filosofias que levam a conflitos raciais, concepções ingênuas de bondade inata dos homens. Isto realizado em trabalho diário, paciente, cooperativo, que leve a modificações progressivas e conscientes acompanhando a criança, traba­ lhador do futuro, em seu desenvolvimento e evolução como indivíduo.

Textos livres: Manifestações da alma "A rã Uma rã passeava. Seu pai lhe disse: "Tu deve fazer alguns filhos". Ela se esforçou bastante e os filhotes saíram. Eles procuraram logo a sua mamãe rã. A mãe também procurou os seus filhotes e os pegou rapida­ mente." (Jean, 10 anos)5

Em verdade, Jean arrependeu-se do texto e rasurou a frase: "Ela se esforçou bastante e os filhotes saíram". Mas sem aquela frase o texto tornava-se incompreensível. Ele a substituiu pela frase: "As rãzinhas foram ao mercado e compraram ovos." Quando ele apresentou o texto na discussão cooperativa, a versão da ida ao mercado foi contestada e surgiu rápida discussão sobre a reprodução das rãs. 5.

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Jean: órfão de pai, disléxico.

O grupo chegou a essa conclusão: "Se temos o direito de contar uma história falsa, temos também o direito de contar a verdade tal como ela existe." Três dias mais tarde, Jean quis escrever um texto. Tentou, tentou, mas não conseguiu. Quebrou o lápis, agitou a classe. Durante o recreio, propus que ele ditasse para mim o texto que ele queria fazer. Eis o texto: "O bebê Uma vez um bebê tocava a sua gaitinha e ele fazia uma canção um pouco falsa. Ele não estava contente porque os outros da casa diziam que a canção não era bonita, então ele surrou o gato que não tinha feito nada de mal. O gato arranhou o bebê. O bebê chorou. A mãe botou o gato fora de casa. O gatinho arranhava a porta e estragou todo o verniz. A mãe jogou um cesto sobre o gato. O gatinho chorou, pulou a janela, bebeu o leite sem que a mãe visse. A mãe quis dar leite pro bebê e não tinha mais leite.

O bebê chorava. A mãe correu ao mercado. O chão estava molhado e ela escorregou até o final da rua; comprou o leite. O bebê bebeu o leite." Neste texto, Jean grita com toda sua força seu ciúme do irmãozinho que ele sente em si próprio sem perceber. É possível que sem o texto precedente com enfoque sexual, este nunca tivesse sido feito.

Como vemos, a criança que, graças à atitude acolhedora e estimu­ lante do mestre, chega a expressar-se mais profundamente, permite ao mesmo tempo ao adulto melhor compreendê-lo e melhor auxiliá-lo, mesmo que o ciclo da angústia seja invertido. "A criança macaco Era uma vez uma família onde uma criança queria transformar-se em macaco e ele fez (a criança) um laboratório embaixo da terra, onde ele ia todas as noites à meia-noite. Um dia ele mexeu na chave geral e aumentou a corrente até 500 (W) e ele se transformou em macaco. Quando voltou para casa e ele viu a sua mãe ele gritou: "Agora eu sou o mais forte, agora eu vou mandar!". Mas o seu pai havia escutado a mãe derrubar uma panela e desceu do quarto e gritou: "Agora eu vou fazer uma caçada!". Ele pegou o rolo de macarrão e quis bater no macaco mas o macaco esquivou-se e o pai atingiu o gatinho. Sobrou só o pai e o macaco e eles disseram: "Agora

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vamos para uma luta legal!". E o macaco estrangulou o pai que morreu. A mãe ficou desmaiada. A criança continuou macaco, ele não podia mais voltar a ser um menino. Ele estava contente de ser macaco para trepar nas árvores mas a mãe gostaria mais de ter um menino". (Patric, 13 anos)6

Textos livres

"A brincadeira

Um dia eu fui brincar de pegar. Veio uma mulher e falou: — O seu avô faleceu. Eu não sabia o que era isso e continuei a brincar. Eu brinquei até de noite e depois fui para casa. De manhã eu vi que não havia ninguém em casa. Lavei o rosto e fui tomar café. E mais tarde o meu irmão veio falar-me que o nosso avô tinha morrido. Eu calcei o tênis efui lá na casa da avó e ela me falou a mesma coisa. E eu perguntei: — O que éfalecido? E ela me respondeu: — É o mesmo que estar morto. Entendi, com isso, que não iria mais vê-lo e chorei. Eu me arrumei para ir ao enterro dele." (Cleverson Brunner, 9 anos)

6.

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Patric: filho de alcoólatra, último de quatro irmãos. Os mais velhos, por trabalharem fora, escapam do deprimente ambiente familiar.

A enchente de Blumenau

A enchente causou vários prejuízos, não só para a nossa família como para muitas outras. Durante a enchente arrombaram o X Salada de meu pai e roubaram: comida, bebida, dinheiro, talão de cheque, toca-fita etc. Meu pai falou que se fosse só comida ele não se importava, mas como roubaram outras coisas de valor, que não precisavam se estivessem passando fome, meu pai disse: — Quem roubou, roubou de sem-vergonha que é!" (Nara A. Quintino, 4ª série)

Quando um texto é realmente livre, acontecem coisas assim: Um texto sem assunto

"Hoje, vinte e oito de junho, a professora de português Dona Irene, nos pediu que fizéssemos um texto com assunto a escolher, mas como eu não tinha um tema, resolvi fazer este texto, um texto sem assunto. Quando bateu o sino da aula de português eu fui ao recreio. Nele fiquei pensando sobre o que faria o texto, pensei sobre indícios de uma

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nova guerra, a baleia que encalhou na praia de Balneário Camboriú, na Ilha de Cabras (situada em Balneário Camboriú), as festas Juninas, e em muitas outras coisas mas, então, resolvi relatar esta busca de idéias. Esta busca de idéias pode ser muito produtiva pois não tem assunto e limites próprios e nos faz pensar sobre várias coisas ao mesmo tempo." (Fabrício, 12 anos, 5ª série)

Sobre os passos de Freinet Toda classe de crianças é sempre única, como é única a personalidade de cada educador.

Sur les pas de Freinet é o título de um livro que relata as experiên­ cias de uma mestra de escola maternal. Ela é Madaleine Porquet, fran­ cesa de Finistère, autora de vários livros, alguns em co-autoria com Elise Freinet e Paul le Bohec. De norte ao sul e de leste a oeste de Finistère vivem classes de maternal muito numerosas e cada uma tem suas qualidades e o defeito de seu torrão, o vulto de suas crianças, a sensibi­ lidade de seus educadores. O livro apresenta-nos retratos tão vivos que aprendemos a amar as crianças, a mestra, o mar, a região. É dedicado aos "maternais", os mestres da escola maternal que desejam viver diferente com suas crianças. Consiste no relato de vivências de crianças em sua caminhada até a conquista da 1ª série. A autora descreve essa caminhada como "conquista intelectual e afetiva" feita ao ritmo de cada um e favorecida pela cooperação de todos. Os projetos e as descobertas são apoiados pela professora, perce­ bida e aceita como condutora do jogo.

Este papel da professora, ao mesmo tempo companheira das crianças, mediadora entre elas e o mundo, reveladora de seus poderes e guardiã de sua alegria de viver, torna-se para cada mestre a fonte mais fecunda de sua própria felicidade de ser e de viver entre eles. A afetividade campeia soberana da primeira à última página. Vejam o título: O tempo de viver juntos e, na contracapa, "Viver juntos uma vida mais leve. Os amamos, dançamos com vocês". A avaliação completa do desenvolvimento da criança ao final do ano é feita por meio de um parecer e não por notas.

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A avaliação de Alan:

"Guardei de Alan esta imagem, um líder de jogos, alegre, vivaz, jovial, com múltiplas possibilidades criadoras que foram evidenciadas e desenvolvidas na prática de uma pedagogia aberta e cooperativa. Alan conseguiu apropriar-se das técnicas da aprendizagem e da felicidade: a capacidade de adaptação, o desejo de desenvolver plenamente suas possibilidades, o gosto do jogo, a necessidade de modificar as coisas e ajudar os outros. Ele teve a chance de viver um ano de experiências compartilhadas." Texto de um grupo de maternal — Finistère:

Escutai os pequenos de Roscoffe podereis ver o dia nascer sobre a velha cidade de granito.

O sol desce sobre a bruma A bruma se recolhe Nasce o dia: Um pouco de branco, um pouco de azul E um pouquinho de cor de rosa. O sol pousa sobre as calçadas Sobre o telhado das casas Sobre os barcos, sobre o mar, Tudo é lindo...

Carta coletiva ilustrada pelas crianças

Até a vista caros amigos É o fim da escola Nós vamos para uma escola nova É a primeira série.

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Será que vamos ver vocês quando seremos grandes? Alguns pensam que sim outros pensam que não Nós vamos aprender a ler livros e escrever grudado Na primeira série não teremos areia para brincar nem jogos nem pneus Mas poderemos jogar futebol porque tem uma quadra Faltam poucos dias para as grandes férias Poderemos tomar banho todos os dias Nós vos abraçamos todos, bem forte e vos dizemos: Boas férias!

Última carta coletiva ilustrada Bom dia caros amigos logo chegam as férias — Sebastiano Eu irei até a lapônia de trailer com a madrinha — Ana clara Eu andarei de bicicleta — Beatriz Eu irei para a Trinidade — Eaura Eu dançarei com a minha gata — Carolina Eu farei meu aniversário — Sofia Eu brincarei de bola com meu pai e Henrique no camping — Arnaldo Eu irei brincar no porão e algumas vezes irei ver Júlio e Mariana — Michel Eu irei com papai e mamãe em férias no camping — Dominique Mamãe me levará no trailer até man. com Tontom (gatinho) — Carolina Eu irei com papai à Guerzit passar as férias

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na casa de mamãe — Estefânia Durante as férias irei a Carantec visitar a vovó — Jean Durante as férias irei para uma colônia de férias com meu irmão — Estéfano Uma chupeta, um bombom e um cobertor Um domingo à tarde em uma estação ferroviária.

Entro na sala de espera da segunda classe. Há poucas cadeiras livres. Muitas caras resignadas. Os ouvidos trabalham possivelmente mais que os olhares: espera-se... Cada um de nós espera o disparar da sineta e a voz nasalada que anuncia a entrada do trem na estação. Meu olhar é atraído por uma menininha de 3 ou 4 anos, de cachinhos loiros que chora, grita, encurralada entre três malas e as pernas dos pais. Está sentada no chão de lajotas frias, não muito limpo. A mãe procura na bolsa uma chupeta e um bombom consolador. O pai lê uma revista e de tanto em tanto dá uma olhada irritada que se torna apreensiva quando olha para a sala. Instalo-me em uma cadeira que ficou livre e percebo um casal de argelianos, frente a frente, com um garotinho que tem a mesma idade da menininha. É tão moreno e crespo quanto ela é loira. Um cobertor amarelado que demonstra já ter viajado um bocado foi transformado em rede pelo homem e pela mulher que embalam levemente sua criança, falando baixinho entre si, mas calando-se freqüentemente para contem­ plar seu pequeno adormecido. Meu trem está chegando e me dirijo aos trilhos após um último olhar para as duas crianças. Os gritos da menininha param, mas logo retornam com maior intensidade. Um papel de bombom arrasta-se por perto. A este ponto percebo que uma chupeta não dá felicidade; que às vezes é difícil abandonar seu jornal ou suas preocupações de adulto para pensar nas crianças e quem sabe corresponder às suas verdadeiras necessidades, pois neste caso é evidente que um velho cobertor vale bem mais que uma chupeta e um bombom — e muito.

O que é mesmo afetividade? 117

Como descrever em poucas palavras o mundo de emoções que se agita dentro de mim frente às palavras mágicas: escola, Freinet, apren­ dizagem, crianças, afetividade? São sentimentos, experiências, fotos e jeitos que em turbilhão se sucedem na imaginação, me empolgam, vibram... Como resumir? Re­ corro à ciência, lanço mão da enciclopédia que reduz emoções, senti­ mentos, fatos e feitos a uma sabedoria plana, linear, compreensível.

Leio: "Afeição, afeto, afetividade igual à ternura, dedicação, ape­ go, gosto especial por alguma coisa, sentimento de amor...". É isto, sim é mesmo tudo isso!...

Bibliografia BALESSE, L.

Freinet en Belgique. Bruxelas, Éducátion Populaire, 1980.

Uma leitura crítica de "Pour L'Ecole Du People". Blume­ nau, Furb-SC, 1984.

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1982.

12 FREINET E A PÓS-MODERNIDADE

Glória Kirinus1 O binômio cartesianismo-positivismo, filosofia que primou du­ rante a Modernidade, não apenas conviveu com a divisão do homem em curiosas dicotomias — corpo/alma, imaginário/racional, caos/or­ dem, produto/arte —, mas também presenciou a sua compartimentalização. Assim, entre comportas, o homem da Modernidade divide-se e subdivide-se nas diferentes áreas do saber, do sentir, do crer e do ser.

Philippe Ariès, no seu livro História social da criança e da família, opina que essas separações iniciais, que mais tarde originariam outras subdivisões,

(...) foram as manifestações de uma tendência geral ao enclausuramento, que levava a distinguir o que estava confundido e a separar o que estava apenas distinguido: uma tendência que não era estranha à revolução cartesiana das idéias claras, e que resul­ tou nas sociedades igualitárias modernas, em que uma compartimentação geográfica rigorosa substituiu as promiscuidades das antigas hierarquias.1 2 1.

2.

Escritora. Doutoranda da USP. Professora de teoria literária e literatura infanto-juvenil PUC/PR. Philippe Ariès. História social da criança e dafamília, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1978, p. 183.

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É dessa forma que na área escolar o antigo professor dos conheci­ mentos gerais, assim como aconteceu no campo da medicina, com o clínico geral, viraria o especialista disciplinar de seu saber. O conhecimento divide-se em disciplinas e estas agrupam os alunos em compartimentos fecha­ dos, segundo idade, sexo, conduta ou grau de aprendizagem.

Nessas circunstâncias, o professor da modernidade, ampara­ do pelo livro didático e pelo programa a ser seguido, torna-se um informante frio, distante, auscultador e limitador. O conhecimento dividido rigorosamente em disciplinas, e estas em horários rígidos, desencadeia até a compartimentalização das curiosidades, das in­ dagações e das perguntas dos alunos. É conhecido de todos o famoso pingue-pongue, na escola, quando o professor, ao ser indagado a respeito de uma informação, manda o aluno fazer a pergunta ao professor da disciplina pertinente. E o profes­ sor da disciplina pertinente, por sua vez, retoma-a ou até envia-a a outro professor com o conhecido clichê usado à maneira de escudo: "Cada macaco no seu galho."

A obediência exagerada a horários e à distribuição disciplinar, em vez de ir ao encontro do interesse e curiosidade do aluno indagador, reprime-o e afasta-o de sua natureza pesquisadora. Afetando, assim, profundamente, as leis universais da construção do conhecimento glo­ bal pelo indivíduo.

O reconhecimento da identidade naturalmente holística e global da criança, diante de seu aprendizado de vida, significa uma ameaça para o professor tradicional. A criança percebe a realidade de maneira analógica, sincrética, imaginativa e afetiva. Este potencial poético, por­ que global, é ignorado pela velha escolástica ordeira e fragmentária que chegou a uma extrema desintegração da natureza do ser humano, divi­ dindo-o em corpo, alma e mente.

Célestin Freinet sabiamente preconiza a compreensão do edu­ cando de maneira global. Ele compreende o lado afetivo, cognitivo e imaginário do aprendiz e se revolta diante da educação oferecida em migalhas, "migalhas de pão espremidas e enroladas". Ele denun­ cia a escola decorrente do pensamento racionalista, que divide, sub­ divide, agrupa, reagrupa, fragmenta, ausculta, analisa, pesa, mede e 120

avalia. Diante desse quadro, Freinet, o pedagogo do bom senso, enumera, magistralmente, as migalhas que mais o incomodam:

Migalhas de leitura, caídas de uma obra que ignoramos e que têm gosto de pão que ficou ressecando nas gavetas e nos sacos. Migalhas de história, umas bolorentas, outras mal cozidas, e cujo amálgama é um problema insolúvel. Migalhas de matemática e migalhas de ciências, como peças de máquinas, sinais e números que uma explosão tivesse dispersado e que nos esforçamos para montar, como um quebra-cabeça. Migalhas de moral, como gavetas que mudamos de lugar, no complexo de uma vida de infinitas combinações. Migalhas de arte... Migalhas de aula, migalhas de horas de trabalho, migalhas de pátio de recreio... Migalhas de homens!"3 A vida é capaz de nos oferecer infinitas combinações, infinitos mistérios, infinitos conhecimentos, infinitas emoções e afetos. Como, então, não considerar todo esse complexo entrecruzamento de infinitos e passar a dividi-la, balizá-la, fragmentá-la e rotulá-la? Onde ficam as pontes, os trampolins e os mergulhos lógicos, ilógicos e analógicos que a criança naturalmente sabe fazer?

Separar, ordenar e rotular são atos atribuídos ao campo concreto e material, supondo-se que o conhecimento somente obedeça às leis mensuráveis e às leis de causa e efeito. Mas, como desconsiderar o imaginário, o sonho, a poesia? Como colocar ordem no caos pré e pró-criativo do saber invisível, intocável, intuitivo? A Modernidade privilegiou as leis da razão e dos dados contáveis, que prevalecem drasticamente na catalogação e avaliação do saber e, prindpalmente, do rendimento escolar. O peso da nota de 0 a 10, ou de 0 a 20, ou ainda de 10 a 100 determina o conceito da série, da turma, do indivíduo ou até da fila de alunos na respectiva sala escolar. Era assim na Modernidade que insiste em alastrar-se até nossos dias com todo o seu peso compartimentalizador. Sente-se, ainda, muita 3.

Célestin Freinet. Pedagogia do bom senso. Lisboa, Morais, 1967, p. 31.

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falta do professor que saiba observar, como a criança, a dança dos macacos em estranho ritual, pulando de galho em galho, de maneira dinâmica, centrípeta e cêntupla. Assim como exige a visão de menino, a visão do poeta, a visão da sabedoria do bom senso de Freinet. Ainda perdura, de maneira acentuada—"(...) A noção de fraqueza da infância e o sentimento de responsabilidade moral dos mestres (...)"4—idéias que se firmaram no século XV e que iriam delinear o perfil do professor detentor e depositário do saber. Essa atitude do professor redundaria na atitude do aluno que recebe, passivamente, as informações. Portanto, temos aí um aluno sujeito à formação de seu saber por meio do conhecimento, da disciplina e dos valores morais e religiosos dos mestres.

A informação, por melhor intencionada que seja, torna-se obsole­ ta se o aluno não faz parte do processo de aprendizagem, se o aluno não entra em sintonia com o conteúdo do programa de uma maneira afetiva e global. É preciso considerar o aluno como parte importante do proces­ so de aprendizagem, saber de sua sede, de sua fome de conhecimento.

É preciso lembrar com Freinet a história do cavalo que não tem sede5 para poder compreender, sabiamente, a natureza da psiquê huma­ na e, em especial, a natureza da psiquê infantil. O contrário, a insistência em informar alunos sem sede, sem fome de tal ou qual conhecimento, significa defrontar-se com o triste resultado do fracasso nas avaliações escolares. Se o aluno não bebeu, não interiorizou, não incorporou o conhecimento, o aprendizado, ou melhor, a informação depositada será totalmente ilusória e artificial. Enquanto a herança da ideologia cartesiano-positivista da Mo­ dernidade prevalecer, reduzindo espaços, lugares, horários de recreio e, principalmente, reduzindo e compartimentalizando o conhecimen­ to, a visão singularmente sincrética e globalizante da criança será prejudicada.

Essa herança da ideologia cartesiano-positivista, apreciadora de toda ordem e conseqüente progresso, formou, com lições e textos centrí­ fugos, o professor que, por sua vez, também centrifuga, retira do centro 4. 5.

122

Philippe Ariès. História social da criança e da família, Rio de janeiro, Ed. Guanabara, 1978,p. 108. Célestin Freinet. Pedagogia do bom senso. Lisboa, Morais, 1967, p. 14.

de seu aluno, nas palavras de Drummond, o "núcleo poético infantil". Isto, se entendemos o poético como sinônimo de global, de analógico. Qualidades que fazem parte da identidade natural da criança.

Não pretendemos fazer, aqui, a apologia da desordem e da indis­ ciplina. Mas por que não compreender também a desordem geral como parte prévia e necessária a toda nova ordem? Como conviver com o novo sem o perigo da experimentação? Sem a pseudo-segurança do compartimento e da divisão préestabelecida? É necessário que o apren­ diz vivencie a passagem que se instaura entre o caos inicial e a constru­ ção do próprio cosmo, do próprio mundo cognitivo, para afinar-se com a conduta pós-moderna da Pedagogia Freinet. A atitude de ordenar, de separar, de engavetar e de rotular eter­ namente as idéias, os afetos e os sonhos, apenas para nos manter com aparente segurança e domínio da realidade, não leva a nenhum cresci­ mento porque impede ao ser humano sua natural abertura em relação ao surgimento do novo. Assim, com essa escola, o ser capaz de alterar a ordem da vida, dos objetos, da gramática, da autoridade vê reduzido seu potencial criativo.

A pedagogia extremamente ordeira impede a irreverência da linguagem e do pensamento analógico que, por si, é conciliador dos opostos. O pensamento analógico relaciona o conhecido com o desco­ nhecido; o distante com o próximo e vale-se do insight, do sentido intuitivo, para aproximar os objetos. A idéia de sentir, com Freinet, a poesia como sendo um canal "para continuar na escuta misteriosa da vida" não faz sentido para a escola que subestima o lado intuitivo do aluno. Esse sentido intuitivo não tem senão um inconveniente para os pedagogos da Modernidade, "o de não ser mensurável com o padrão material, indigente e falso da escola",6 como bem diz Freinet quando fala sobre a aprendizagem da linguagem.

Viver entre opções, assim como o homem da Modernidade, sem saber procurar seus pedaços divididos e espalhados, conforme os câno­ nes mecanicistas e reducionistas da corrente positivista-racionalista, constitui uma falha antinatural. 6.

Célestin Freinet. O método natural I: A aprendizagem da língua. Lisboa, Estampa, 1977,p. 280.

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O homem que se sujeita à fragmentação, à divisão e subdivisão é o tal macaco petrificado nos seus correspondentes galhos e, portanto, petrificado nos vícios da Modernidade. Esse ser que se anulou pela metade, por desprezar, desconhecer ou ignorar a quintessência de sua humanidade, não comunga da poeticidade de sua ambiência.7 Falta-lhe a outra parte, falta-lhe compor-se nos seus despedaços. Falta-lhe ir ao encontro de sua natureza globalizante, analógica e articulatória. Mas acima da tensão entre os opostos amplamente conhecidos — corpo/alma, imaginário/racional, caos/ordem, produto/arte —, nos séculos herdeiros da mentalidade racionalista-positivista, e acima de todas as divisões e subdivisões estabelecidas no campo especial da educação infantil, presentifica-se a sabedoria de Célestin Freinet. Sua voz ainda perpassa o ser mito poético que circulariza o universo. Suas lições ainda afetam o homem complexo, pluralista e confundidor de tantas divisões e subdivisões. Ainda as reflexões de Célestin Freinet permanecem densas e parecem-nos ousadas e originais por considera­ rem a globalidade do homem na sua latente natureza poética.

APós-modemidade chega após a saturação e comprovada ineficácia da filosofia positivista e cartesiana. Ela opta por unir, por juntar os opostos, em vez de dividi-los, e se opõe às antigas dicotomias. A Pós-modemidade preocupa-se em preservar a unicidade dentro da diversidade; a Pós-modemidade anuncia-se plural, eclética, ecológica, analógica, religante e recitante porque, segundo Michel Maffesoli, retoma o passado mítico. Dessa maneira, as antigas dicotomias prezadas pela Modernida­ de, na atual Pós-modernidade são religadas. O corpo é valorizado em relação íntima com a alma e o lado racional do ser é considerado de maneira conjunta com a imaginação. Na Pós- modernidade toda con­ fluência é estimulada. Assim, o homem que sente, pensa e sonha é compreendido dentro de sua totalidade dinâmica e tem mais a ver com aquele homem humano do qual tão bem fala Guimarães Rosa.

Naturalmente que o homem sempre sentiu, pensou e sonhou, porque isto faz parte de sua globalidade humana. Mas é necessário lembrar que o sonho, fonte do imaginário, não teve o mínimo prestígio durante a Modernidade. Assim, "a louca da casa", como era chamado o imaginário, foi obrigada a ser ignorada. 7.

124

Termo muito usado por Michel Maffesoli.

Cada vez mais, neste percurso pós-moderno, o novo profissional precisará de muito estudo, preparo teórico-prático e grande competên­ cia, porque considerar o homem na sua totalidade exige um saber interdisciplinar, exige um conhecimento muito amplo nas diversas áreas do saber. E como as informações são inúmeras e simultâneas, ele preci­ sará mais do que nunca ser capaz de criar conhecimento; ele precisará tornar-se cada vez mais crítico-criativo. Mas para compreender a Pós-modernidade não é suficiente opôla à Modernidade e perceber que ela é extremamente religante. Também será necessário fazer a leitura do cotidiano e observar que atualmente existe uma atitude recitante. Ela quer reconsiderar e retomar o passado. Não o passado recente da Modernidade, mas o passado ainda anterior, o passado das leis míticas. É por isso que, por intermédio da arte, ela insiste em reatar-se ao tempo inaugural dos primeiros relatos míticos. É por isso que reconta a história.

Surge uma nova narrativa que conta com a força da intertextualidade, com o sabor da analogia pura, e com fortes apelos sinestésicos, como são a visualidade e o jogo das imagens. Isto é, surge uma nova postura multimídia nas artes, na publicidade, na sociedade.

Nesse sentido, os professores herdeiros da sabedoria que sobre­ vive a todos os tempos — a sabedoria do bom senso de Freinet — ainda se reúnem em grandes Congressos Internacionais de Educadores Frei­ net, como são os encontros Ridef que acontecem regularmente em diferentes partes do mundo. Essas reuniões desdobram-se em grupos permanentes de estudo em nível nacional, regional ou estadual, como acontece no Brasil, que conta com grandes pólos irradiadores: São Pau­ lo, Pernambuco — Recife — e Santa Catarina. Célestin Freinet comove pela sua atual presença. Quando o peda­ gogo do bom senso afastou-se do olhar que relaciona homem e univer­ so? Quando suas ilustrações esclarecedoras deixaram de olhar a relação que existe entre homem e natureza? Quando guardou para si suas palavras analógicas e metafóricas, suas histórias em tom de parábolas bíblicas, tal qual a linguagem mítica dos primeiros homens?

Ele sabia, deduzia com sua lógica do bom senso, com sua lógica poeticamente analógica, que as leis da vida são gerais, naturais e válidas para todos os seres. E aprendeu sua filosofia com os homens 125

simples, com as crianças, com os animais, com o pano de fundo da natureza, para colocá-la tão sabiamente na sala de aula dos educadores deste século.

Um dos princípios que fundamentam a Pedagogia Freinet e ga­ rantem a permanência de sua presença através e apesar do tempo é a pedagogia do bom senso. O bom senso da Pedagogia Freinet é muito semelhante ao chamado "senso comum" da antropologia de Michel Maffesoli,8 pensador atual, pen­ sador francês, pensador que, adentrando-se no percurso denso do mito, faz uma leitura do atual e do cotidiano dentro de uma visão pós-modema. Tanto o bom senso da Pedagogia Freinet quanto o senso comum da antropologia e sociologia de Michel Maffesoli constituem o ponto convergen­ te mais significativo entre o pedagogo do século que termina e o antro­ pólogo do século que virá. Ambos, ao longo das respectivas obras, expõem suas filosofias partindo da observação direta das coisas, como o faria a criança, ou o camponês que retoma seu saber do homem primordial, aquele da linguagem original. Ambos percebem o óbvio e valorizam essa percepção. Enquanto um tece suas reflexões na atmosfe­ ra social, no atual e no cotidiano, o outro debruça-se na atmosfera rural e escolar, extensiva à vida.

Na Pedagogia Freinet existe uma prioridade do global. Michel Maf­ fesoli considera a Pós-modemidade como o tempo da volta das conjunções. Isto é, da re-união dos opostos, do que ele chama de Ou isto ou Aquilo, conservando suas características contraditórias. Os opostos e as dicotomias tão duramente marcados durante a Modernidade, virarão, na Pós-modernidade, conjunções completamente integradas numa unicidade, na qual o homem e o mundo entrelaçam-se na harmonia dos contrários.

Esse é o mundo imaginal de Maffesoli, mundo afastado do pen­ samento racionalista dicotômico e monocausal da Modernidade, que, como Freinet, põe em evidência o pensamento religante que integra tudo no pluricausalismo primordial. A leitura da sociedade atual permite observar que, de uma ou de outra forma, ela está se preparando para aceitar a contradição, a plura­ 8.

126

Michel Maffesoli. O conhecimento comum, São Paulo, Brasiliense, 1988.

lidade, a indeterminação, a união dos opostos, a recuperação do passado mítico, mostrando sinais, na sua efervescência vital, dessas mudanças.

Freinet, o filósofo da pedagogia, encontra eco nessa percepção globalizante do ser humano e nessa leitura da sociedade. Seus textos priorizam totalidades, conjunções e não separações. Ele oferece ao pro­ fessor da Pós-modernidade toda a riqueza de seus textos fartos de metáforas ilustrativas. Para ratificar, com as próprias palavras de Freinet, esta assertiva, quero citar sua concepção de educação religante e recitante onde clara­ mente transparece sua preocupação com a criança como ser completo, integrado:

(...) As crianças têm necessidade de pão, do pão do corpo e do pão do espírito, mas necessitam ainda mais do seu olhar, da sua voz, do seu pensamento e da sua promessa. Precisam sentir que en­ contraram, em você e na sua escola, a ressonância de falar com alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou as compreenda, de produzir alguma coisa de útil e belo que é a expressão de tudo o que trazem nelas de generoso e superior".9

As idéias dos grandes homens sábios, assim como as grandes obras de arte permanecem novas e continuarão encantando e surpreen­ dendo a humanidade. A Pedagogia Freinet está aí, mostrando para o educador da Pós-modemidade a riqueza da conjunção que existe entre o pão e as rosas; entre o belo e o útil; entre o alimento da alma e o alimento do corpo.

É tempo de apelar à sabedoria de Freinet e de acolher a invisível rede de sua pedagogia religante, capaz de recolher e unir os despedaços desintegrados do ensino na fase escolar. É tempo de incluir no ensino de 3º grau e em nível de cursos de extensão e pós-graduação, em especial nas áreas de pedagogia e educa­ ção, a disciplina Pedagogia Freinet, Pedagogia da Pós-modernidade. 9.

Célestin Freinet. Pedagogia do bom senso. Lisboa, Morais, 1967,p. 104.

127

13 MUDAR A ESCOLA... AMANHÃ?

Andréa Warmling Jean Astier1 A aula expositiva, em sua neutralidade republicana, ignora que ela seleciona entre aqueles que são capazes de recebê-la; neste sentido é uma verdadeira ilusão preten­ der defendê-la como garantia do acesso de todos à uni­ versalidade da cultura.

A utilização de um manual escolar único, por matéria, representa uma falta à democracia. Os princípios de base da democracia repousam sobre a diversidade das fontes de informação e sua livre circulação. As crianças, como os adultos, deveriam ter esse direito. Desde cedo apren­ deríam um de seus papéis como cidadãos: informar-se livremente. Ora, manuais escolares e fichas fotocopiadas são os suportes pedagógicos mais difundidos nas escolas primárias. O tempo escolar é ritmado pela passagem de uma matéria a outra, de um manual a outro. O professor aborda uma noção, escreve no quadro a lição, dá exemplos, completa suas explicações com a leitura do manual. Depois vêm os exercícios, as correções, enfim, no dia seguinte ou no fim da semana as tarefas são 1.

Professores praticantes da Pedagogia Freinet na escola pública francesa.

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avaliadas. Esta nota tem por objetivo apreciar a assimilação do conteú­ do. A nota determina a posição da criança na classe e influencia seu futuro escolar. Geralmente os professores seguem um manual escolar cronologi­ camente. Algumas vezes, o professor completa sua aula pela utilização de outras referências: outros manuais e documentos. Apesar de recorrer, esporadicamente, a uma quantidade de técnicas variadas (intervenção de pessoas exteriores à escola, saídas educativas, trabalhos em ateliers...), a aula expositiva, o manual e os exercícios continuam sendo os pilares da escola. Este é o método de ensino predominante nas escolas públicas francesas, desde sua origem. O método de ensino tradicional não se viu ameaçado, nem pelo desenvolvimento da tecnologia e pela entrada dos computadores e audiovisual na escola, nem pelas múltiplas propostas feitas por professores de vanguarda. Esse método parece agradar tanto pais como professores: os pais encontram ali as referências de sua própria escolarização; os professores sentem-se seguros, pois podem seguir escrupulosamente um programa. Quanto à criança, quando não tem muitas dificuldades sociais ou psico­ lógicas... quando sua cultura familiar se assemelha à da escola, como a de seus pais e professores, ela também consegue seguir docilmente o programa. As outras crianças fracassam. Ficam fora da escola e mais tarde correm o risco da exclusão social. Esse dado é novo porque até uma época recente os maus alunos podiam aspirar a uma profissão manual. Hoje, o desaparecimento dos setores de produção primário e secundário leva os jovens sem qualificações à marginalidade. O índice de desemprego, de empobrecimento e de pessoas que moram nas ruas tem aumentado assustadoramente na Europa. Seria bom para as crian­ ças com dificuldades que a escola modificasse seus métodos. Mas, globalmente, para o bem-estar geral e o futuro do conjunto dos estudan­ tes, a educação pública deveria sair de sua pré-história, colocando em funcionamento um sistema escolar que não seja mais um instrumento de reprodução da ordem social vigente. Mas, para isso, seria preciso que os poderes públicos, os pais e os professores tomassem consciência do aspecto nefasto das práticas pedagógicas utilizadas há um século.

Quisemos acreditar que a escola, sob o pretexto de ser pública, gratuita e obrigatória era uma escola republicana, dando chances iguais a todos. Mas seria passar por cima das injustiças, desigualdades e ineficiências, inerentes ao método expositivo: do exercício, do manual... 130

isto tudo que Freinet chamou escolástica. O principal defeito desse método de ensino tradicional é o de estar distante da realidade das crianças. Por exemplo, crianças de origem estrangeira encontram-se em dificuldades escolares pelo simples fato de trazerem uma cultura fami­ liar diferente da cultura escolar. Muitas vezes, ao chegar à escola desco­ brem uma nova linguagem, outros costumes, outros hábitos. A escola não espera sua adaptação; as aulas seguem em frente. É preciso terminar o programa. No entanto, como seus colegas, essas crianças trazem em si riquezas culturais e individuais que a escola poderia acolher a fim de tirar proveito, beneficiando toda a classe. Outras crianças, mesmo sendo francesas, também sofrem da imensa diferença cultural que existe entre seu meio familiar e o universo escolar, não encontrando seu espaço na escola. O discurso e os valores escolares lhes são bem estrangeiros. Um verdadeiro abismo separa esses dois mundos: o mundo da escola e o mundo da família. De origem modesta ou estrangeira, a criança encontra-se rapidamente em fracasso escolar. E a multiplicação desses fracassos acaba por convencê-la de sua incapacidade em ter sucesso na escola, a tal ponto que ela renunciará ao mínimo esforço e aceitará passivamente essa imagem negativa de si mesma. No entanto, o método de ensino tradicional continua sendo a prática pedagógica dominante na França. Porém, a escola não permane­ ceu completamente impermeável às inovações pedagógicas; ao contrá­ rio, ela sempre nutriu-se das modas lançadas do alto da hierarquia: moda das matemáticas modernas, moda da lingüística, moda da infor­ mática... O professor gosta de parecer um homem de seu tempo. Ele se orgulha de utilizar tecnologias modernas, mas o essencial de sua prática continua mesmo a aula expositiva. A escola é uma grande consumidora de técnicas, táticas e instrumentos..., sem colocar em questão sua orga­ nização e seus objetivos. As práticas da escola moderna são recuperadas, na maioria das vezes, esvaziadas de seu conteúdo filosófico. Da mesma forma, as melhores reformas propostas pelo Ministé­ rio da Educação Nacional caem no vazio. Na aplicação da lei de orien­ tação de julho de 1989, as interpretações dadas pelos inspetores eram bastante contraditórias. Alguns viam nessa reforma um projeto de coo­ peração que permitiría a cada criança desenvolver-se de acordo com seu próprio ritmo, enquanto outros receberam a lei como um incentivo ao "neoliberalismo" na escola, uma sociedade competitiva em que alguns vencem e outros não. A lei concede uma hora de tempo para organiza-

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ção do trabalho de equipe na escola aos professores, auxiliares, direto­ res.... Em troca, solicitou-se a construção de um projeto em comum: pediu-se aos professores para pensarem em termos de ciclo e não em termos de classes isoladas.

Os professores cumprem suas obrigações, mas em profundidade nada mudou. Depois dessas, virão outras reformas que os professores seguem, seguirão... Mas ninguém é bobo. Nos pátios de recreação, os professores orgulham-se de não terem aplicado a última reforma, sabendo que outras virão... Eles sabem que não têm nada a temer; basta seguir o programa ao pé da letra. Pais, colegas e administradores ficarão satisfeitos. Então, de tempos em tempos permite-se uma extravagância, uma ativida­ de que sai da rotina, freqüentemente apresentada às crianças como uma recompensa: uma saída ao círculo, um mímico, um artista que venha fazer um trabalho na escola... Assim, dá-se uma ilusão de autonomia, distribuin­ do tarefas materiais às crianças. Não! Isto não se trata de uma caricatura, mas é a realidade de uma grande maioria de escolas.

O sistema educativo teria necessidade de uma grande corrente inovadora, que trouxesse organização, métodos e técnicas possíveis de: • combater o insucesso escolar que tem como conseqüência a exclusão social; • formar trabalhadores para o século XXI, pessoas que saibam inventar, criar, adaptar-se, tirando o prazer das atividades; • permitir aos estudantes tornarem-se cidadãos envolvidos com o devenir de uma sociedade democrática.

Para que isso aconteça, é preciso que as determinantes sejam expostas claramente. Nenhuma modificação de métodos acontecerá sem uma profunda reflexão sobre as finalidades da educação. Uma filosofia da infância e um projeto de sociedade devem servir de sujeito a esse debate, de tal forma que se esclareçam os objetivos do sistema educativo em função das aspirações da sociedade: • Aliás, que sociedade queremos para o futuro? • Que relações desejamos ver estabelecerem-se entre os indi­ víduos, entre as nações? • Que relação com o meio ambiente? • Que tipo de produção econômica?

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• Que relação com a cultura? • Etc...

Mesmo se a maior parte das pessoas ignora, a escola atual perma­ nece uma instituição que pratica uma segregação social selvagem. Os métodos que a escola emprega servem a uma sociedade de desigualda­ des: uma sociedade competitiva produz uma escola competitiva. As práticas em uso não têm por prioridade o bem-estar de cada um, nem a cooperação entre os indivíduos. Elas se limitam em transmitir um míni­ mo de conhecimentos a um maior número de alunos.

Agir através da organização A organização do mobiliário, as lições não favorecem a autono­ mia dos estudantes, nem as trocas horizontais no grupo. Tanto os espa­ ços interiores como exteriores deveríam ser concebidos com o objetivo de melhor servir às necessidades físicas e intelectuais das crianças. O terreno, a construção, o mobiliário e o material deveriam ser instalados visando à segurança e autonomia das crianças em suas experimentações, nas mais variadas direções e num espírito de abertura. O que observamos é que, na maioria dos casos, as salas são preparadas para acolher as crianças, mas deixando muito pouco espaço à imaginação e apropriação desse espaço pelas crianças. Pois o modelo, o padrão estético do mobi­ liário e sua organização induzem a criança a uma adaptação mas, por outro lado, deixam muito pouco espaço para qualquer modificação. A criança é incentivada a consumir o espaço e não apropriar-se dele por meio de sua construção, como numa pequena "disneylândia"... De norte a sul, todas as escolas se parecem, assim como todos os parquinhos, com o cimento cobrindo o terreno e o playground típico. Raras são as escolas concebidas para verdadeiras atividades plás­ ticas. Quando esses espaços existem, freqüentemente são mal utiliza­ dos. No entanto, os investimentos necessários estão à disposição da maioria das escolas francesas.

E, por outro lado, a aquisição de um painel vertical, pincéis largos e redondos, rolinhos, um pouco de guache, anelina, lápis coloridos, carvão e algumas folhas de papel é possível desde já. O atelier poderia facilmente contar com materiais de sucatas, os quais poderiam, inclusi­

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ve, ser utilizados para atividades científicas. Apesar das ameaças e punições do sistema de notas, a aula expositiva e os resumos não são suficientes para a construção do conhecimento. Os alunos necessitam de um centro de documentação organizado e de fácil acesso. Como complemento à documentação e local apropriado à experimentação, os alunos poderiam dispor, a baixo custo, de um museu, reunindo objetos e vestígios que permitiríam compreender me­ lhor: história, geografia, ciências... Não deveríam mais existir escolas sem uma biblioteca digna desse nome. Em muitas salas de aula a biblioteca resume-se em algumas estantes com velhos livros empoeirados e desin­ teressantes, que parecem ter por missão tirar o gosto pela leitura. Existem inúmeras outras propostas para modificações de ordem material. Mas nos parece que essas modificações são, antes de tudo, conseqüência da evolução da reflexão pedagógica do professor. A orga­ nização material é a imagem da teoria educativa.

Será que a escola deseja realmente autonomia e cooperação? Autonomia e cooperação

É primordial que os alunos conheçam o modo de organização de sua escola, para que se sintam implicados e autônomos: • Conscientes, eles participam ativamente da manutenção e dos cuidados com o material. • Informados, eles encontram e organizam facilmente esse material.

Da mesma forma, é importante que as crianças participem da elabo­ ração de um plano de trabalho contratual. Técnicas para a gestão cooperativa do tempo e da vida em coletividade existem e deram provas de eficiência.

Assim, a vida na escola desenrola-se num espaço adequado, com­ posto de ateliês. Assim, as crianças têm a possibilidade de evoluir livremen­ te e em função de regras estabelecidas coletivamente. Então a escola tomase um centro de produção de cultura e não mais um lugar no qual a cultura é assimilada de forma passiva. Nessa escola o conhecimento é o resultado de uma conquista. O indivíduo sabe onde encontrar as informações neces­ sárias à construção de sua própria pessoa. Os alunos estão livres para poder 134

aprofundar sua pesquisa pessoal. O contato com o saber e a cultura é encarado de uma forma dinâmica, contando com a participação ativa de todos os indivíduos. Os professores não serão mais os únicos detentores da informação. Saber e poder não estarão mais concentrados sempre nas mãos das mesmas pessoas. A dicotomia entre a cultura familiar e escolar será diminuída. Nessa perspectiva democrática do saber, não deveria­ mos mais considerar a criança como um ser desprovido de conhecimen­ to e que apenas absorve o conhecimento que lhe damos. Pelo contrário, o aluno é uma pessoa; deveríamos considerá-lo em sua complexidade e globalidade. Ele é portador de uma experiência, uma cultura, de conheci­ mentos... Convidamos essa criança a enriquecer o grupo com sua diferença, sua originalidade, suas motivações, seu conhecimento, sua criatividade e todas as potencialidades latentes com as quais ela vai nos surpreender.

Um verdadeiro trabalho

Nosso sistema educativo está impregnado por uma tradição an­ cestral de transmissão do conhecimento: aquela que manipula a cenoura e o chicote diante dos burros. Esse sistema é perverso porque distancia as crianças das virtudes do trabalho, propondo recompensas e punições exteriores ao próprio trabalho. No entanto, é no próprio trabalho e no prazer de desenvolver-se que o aluno deve encontrar recompensa. A escola deveria ter por missão responsabilizar as crianças ante o trabalho, trabalho como fonte de bem-estar de cada um e coesão do grupo.

Desde seu nascimento, a criança não se cansou de descobrir o mundo, de interessar-se pelos outros e de adquirir conhecimentos. Por que a escola não tira proveito desse potencial inerente à natureza huma­ na? Por que o trabalho na escola deve estar marcado pelo pecado original e ser considerado como um esforço penoso ao qual alunos e professores devem se submeter? Por que o trabalho é desnaturado e não vivido como uma capacidade humana libertária? Aprender a ler, escre­ ver, contar, desenhar... engrandece-nos, liberta-nos do obscurantismo. Não existem razões objetivas para que alguém nos obrigue a trabalhar. Basta recolher as motivações individuais, colocar em funcionamento um sistema de organização cooperativa do grupo, um sistema que favoreça a troca, a comunicação. A educação alimenta-se dessas trocas, de ajuda mútua. O professor deve suscitar, estimular, encorajar, agir como um verdadeiro catalisador do grupo. 135

Precisamos de professores que teorizem sua prática Para desenvolver novas técnicas pedagógicas, o professor deve passar por uma reflexão de sua prática pessoal. Em sua maioria, os professores são aplicadores de práticas e conteúdos ditados pelo alto das hierarquias. Mesmo que se reconheça a existência e amplitude do insucesso escolar, tem-se pouca possibilidade para inverter o quadro. Sem um verdadeiro espaço para exprimir suas inquietudes e dificulda­ des, para trocar experiências com outros práticos de educação, a fim de encontrar respostas comuns, por falta de hábito e motivação, os profes­ sores continuam isolados em suas salas de aula. A modificação dessa situação passaria, também, por uma mudança radical do comportamento administrativo, para que, enfim, o estatismo pedagógico não seja melhor recompensado que a inovação. Promover as iniciativas positivas já seria um pequeno passo em direção à modernização do ensino. É possível iniciar a teorização por parte dos professores, sem que isto impEque em aumento de custos para a educação nacional. Talvez bastaria que os inspetores departamentais organizassem reuniões de trocas de experiências práticas e desenvolvessem a comuni­ cação entre os educadores. E, ainda, que os cursos de formação contínua não consistissem mais unicamente na transmissão de informações téc­ nicas. Da mesma forma como a criança, que constrói seu conhecimento por intemédio da confrontação de suas hipóteses pessoais com a de seus colegas, o professor constrói sua teoria com base na sua própria expe­ riência e no confronto com outros pontos de vista.

Assistimos a uma perigosa separação entre prática e teorias peda­ gógicas, encontrando-se, muitas vezes, prática e teoria em desacordo. Há professores que justificam o fracasso escolar e maus resultados por hipotéticas desigualdades naturais das crianças ante o conhecimento. Enquanto isso, cientistas da área humana aprofundam seu conhecimen­ to nos laboratórios universitários, confirmando regularmente a necessi­ dade de perceber a criança em sua globalidade e complexidade. A valorização da função do educador depende do reconhecimen­ to e da formação do status de pesquisador a todos aqueles que traba­ lham com a educação.

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14 O PAPEL DA ESCOLA NA FORMAÇÃO DA CIDADANIA

Maria de Fátima Morais1

Introdução A conquista da cidadania é uma construção coletiva. Ninguém é cidadão sozinho ou isoladamente. Poderiamos dizer que a questão da cidadania apresenta-se, hoje, como um ponto definitivo da evolução histórica dos direitos do homem e do regime democrático. Em outros termos, depois dos 200 anos da Revolução Francesa, estaríamos dizendo que cidadania é o novo nome da democracia. Esta conquista política de direitos, porém, é uma luta permanen­ te. A participação nesta luta supõe orientação, formação e exercitação. A orientação é a direção que se toma em um processo de conscientização da realidade social e do desenvolvimento histórico de um povo. A formação é a própria preparação do homem para sua participação na construção da história. A exercitação é a prática da vida dos homens, de seus grupos e de suas comunidades. Não há formação sem exercitação. Não há formação sem orientação. 1.

Pedagoga, especialista em Pedagogia Freinet em cursos de especialização em Portugal, na Bélgica e na França.

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Todos acham que a instituição escolar tem grande responsabilida­ de na formação da cidadania, como na sua negação. Neste trabalho, pretendo visualizar a escola como locus de orientação, de formação e de exercício da cidadania individual e coletiva. Vejo a escola como uma situação plural, onde se conjugam o presente do indicativo e o futuro do subjuntivo. Não me prendo, porém, aqui ao rigor de uma elaboração teórica. Como educadora prefiro concentrar-me numa reflexão crítica de minha própria experiência pessoal e profissional.

Orientação para a cidadania

Hoje, estou convencida de que a primeira lição que a história de 20 anos de repressão deixou-nos foi o respeito pela norma, pela regra, pela lei estabelecida para a convivência civilizada dos cidadãos entre si e destes com o Estado. Esta é a salvaguarda dos direitos individuais, dos direitos políticos, dos direitos sociais. É a condição da garantia e da segurança do estado de direito, sobre o estado de exceção. Falo, porém, como pedagoga, e não como jurista. Como educa­ dora percebi o papel da lei como estruturante de comportamentos e atitudes profundas. Mais do que uma norma externa, ela se torna uma postura interior em torno da qual se articula o universo do indivíduo. Quando transgredida, rompe-se a referência que o homem tem nela e cai por terra um universo simbólico de categorias e de valores.

Tocamos, aqui, o cerne do processo educativo. Não se trata de levar a cumprir uma lei. Trata-se, contudo, de perceber seu significado e seu sentido profundo, para estabelecer a coerência dos comportamen­ tos com a profundidade das atitudes. Educar é formar esta coerência. Do contrário, tornamo-nos homens amorais, sem ética, sem pudor.

O arbítrio criou uma estranha cultura de desconsideração da legitimidade e da validade da regulação do comportamento social, por normas objetivas, assumidas pelo homem, como parâmetros de sua prática social, política e econômica. A cultura brasileira está, hoje, como diz Jurandir Freire, caracterizada pelo cinismo, pela delinqüência, pela violência e pelo narcisismo. Isto porque, "em vez de indignação dos cidadãos, o Brasil foi tomado por um discurso desmoralizante, segundo o qual toda lei é conservadorismo".

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Orientar para a democracia é formar para o respeito à justiça e ao direito individual e coletivo do outro. Se houver limite para a liberdade, será o limite imposto pelo direito do próximo. Formação para a cidadania Educar é formar para o futuro. A formação para a cidadania é um desafio. Vivemos em um país onde a atividade política é, hoje, identifi­ cada como delinquência. O que antes era uma suspeita generalizada que pairava sobre a chamada classe política, agora passa a ser uma acusação. Gerou-se uma descrença generalizada naqueles que deveriam conduzir os negócios da sociedade. Produziu-se uma desesperança que leva as pessoas à derrubada de valores e leis e a criarem uma cultura cínica. Ninguém confia em ninguém. Ora, a cidadania é um pacto de confiança e de participação. Repartem-se as responsabilidades assumidas, os direitos e os deveres. Trata-se de regular a igualdade e a liberdade das pessoas e dos grupos, entre si, e diante do Estado e seu aparelho administrativo-burocrático e normativo-coator.

E como ficamos nós, diante desta realidade caótica de tanta incre­ dibilidade institucional, de tanta descrença pessoal e de tanta anomalia? Cruzam-se os braços ou luta-se pela reconstrução da cidadania perdida? Perdida? Será que se perde o que não se teve? Estaríamos nos perdendo no caos, ou estaríamos correndo em busca do tempo perdido, com a esperança e a crença na educação como um ato político, libertador, capaz de produzir mudanças, como, sabidamente, o diz Paulo Freire?

A sociedade vibrou com a participação juvenil nos episódios do impeachment do presidente. Hoje, nós nos perguntamos, o que será destes jovens, os ingênuos caras-pintadas, diante das ambigüidades e desesperanças das gerações adultas e das omissões de suas escolas?

O que são os caras-pintadas'? Havería consciência na sua ação política ou se deixariam eles caracterizar como massa de manobra? Não é que me ponha contra a manifestação juvenil, carnavalesca ou teatral que significaram os movimentos de ruas, no fenômeno dos caras-pintadas. Não defendo uma cidadania sisuda, sem espaço para a expressão alegre e descontraída de uma juventude. Apenas, como educadora, quero ser mais exigente com os jovens por ser exigente com nós mesmos, que somos seus educadores. 139

Foi aquela festa um exercício consciente e livre da cidadania? O som daqueles trios elétricos associou-se, realmente, a um coro de vozes políticas, numa proposta de mudança? Quem foi que pintou a "carapintada"? O que significa este gesto? Dir-se-ia que ele teria sido inspira­ do no ritual guerreiro dos índios. A tribo prepara-se para a luta. Dir-se-ia que ele se teria inspirado nas máscaras carnavalescas e teatrais. O que se esconde, então, por trás das máscaras?

Como educadores temos de estar atentos ao sentido e ao significado desta manifestação que a mídia tanto difundiu, como uma grande festa juvenil. Juvenil rima com Brasil, até no hino. Mas o que nos perguntamos é até que ponto esta festa revela uma consciência política e crítica das novas gerações? Até que ponto as escolas têm se preocupado com isto? Pensemos a cidadania como ato de coragem, consciência e com­ promisso social com a verdade e a justiça. Pensemo-la como uma busca de competência e o exercício da criatividade em consonância com a nossa realidade sociopolítico-econômica. O exercício da cidadania Por outro lado, temos que olhar a crise em que estamos mergulha­ dos com a sabedoria e a experiência de quem sabe que é da crise que surge o novo, a reconstrução, para que se construa na nossa sociedade um novo conceito de ética, de política, de solidariedade, de direitos e deveres de todos, ou seja, o real conceito da democracia, com seu nome de cidadania.

A idéia de crise sugere a lembrança daquela imagem da metamor­ fose ambulante de que falava Raul Seixas, saudoso e famoso roqueiro da minha geração. O importante é a consciência deste construir sem medo de errar, mas com a coragem de rever e de voltar atrás, sem esquecer a necessi­ dade da tolerância e da amorosidade imprescindíveis ao educador, como diz nosso querido mestre Paulo Freire. É, mais ainda, não se sentir um demitido da vida. A cidadania não se experimenta conceitualmente. Ela é uma práxis. Como poderíamos saber o que é cidadania, se não a vivemos, ou se ficarmos, apenas, teorizando a respeito e tentando construir um conceito? E como falar em cidadania, quando no quadro político preva­

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lecem corporativismos e partidarismos, regionalismos e localismos de interesses setoriais hegemônicos e prevalecentes sobre os interesses maiores da totalidade social? As grandes questões nacionais submetemse à mediocridade das disputas menores. A educação escolar é um momento de exercitação psicossocial da cidadania e do exercício político dos mecanismos e dos instrumentos de sua afirmação. Na sociedade contemporânea, nas culturas grafológicas de um universo de produção industrial, a escolaridade tomou-se, histo­ ricamente, uma das portas principais da entrada da cidadania. O acesso universal à escola já foi superado na evolução das sociedades modernas. Não se trata mais, apenas, de assegurar a educação para todos, mas de garantir as mesmas condições de qualidade, no acesso e na permanência produtiva dos alunos na escola. A educação de qualidade traduz-se como um direito de todos, expressão concreta da democratização e da conquista coletiva da cidadania.

Quando refletimos sobre o papel da escola neste contexto, constata­ mos quanto estamos, no cotidiano, distantes dos conceitos acima expres­ sos. O processo de alienação dos jovens, na prática educativa, é uma realidade chocante. Existem escolas (particulares e públicas) onde ainda não se entende a dimensão política como inerente ao ato educativo. Não se discute política. Isto se proíbe, como uma perda de tempo diante de tantos conteúdos do programa curricular a cumprir. É a escola distante da vida, sem vínculo com a realidade, a que se opõe e rejeita o pensamento freinetiano. No exercício concreto de uma cidadania criticamente assumida, quantos conteúdos importantes de ética, de política, de justiça, de direi­ tos, de deveres e responsabilidades estão presentes, neste momento histórico da sociedade brasileira, com uma rede de relações e referências interdisciplinares a serem exploradas, em cada sala de aula! Aí se teria um exercício específico da democracia, da cidadania e da participação na competência de um processo ensino-aprendizagem.

Observamos, porém, a escola pública ideologizada, ao sabor da variação musical dos partidos políticos que governam ou dos grupos hegemônicos de cada situação. Observamos a escola particular, em sua maioria, reproduzindo os valores esclerosados das classes dominantes e das igrejas conservadoras sem olhar o que se passa fora de seus muros, e até mesmo dentro deles. 141

Conclusão

Não se educa sem o exemplo, dizia Célestin Freinet. O exemplo vai além do discurso. É ele que caracteriza a verdade do discurso. Não adianta falar e não dizer. É preciso que o educador mereça das novas gerações o falou e disse. Esta integração de coerência entre discurso e prática é o que define a unidade interna de nossa proposta educacional, de nosso projeto de vida e de nossa mensagem política. E nós, pais, educadores e políticos, que exemplo temos dado aos jovens? Só teremos o direito de lhes falar, se tivermos tido a coragem de lhes dizer, isto é, de nos comunicarmos na profundidade de uma relação pessoal. A cidadania é, no fundo, um exercício de comunicação e de transmissão interpessoal, intergrupal e interinstitucional. A construção da cidadania só existe, também, com o progresso, com o desenvolvi­ mento. No processo escolar, isto se concretiza no crescimento de uma competência, de uma formação. É por isso que uma sociedade deve investir maciçamente em sua educação. O recurso humano — o homem — passaria a ser o maior bem da sociedade.

Assim, a instituição escola, historicamente reacionária e autoritária, tem de se contemporaneizar, para não perder o trem da história. Ela não pode continuar alienada da sociedade que caminha na direção da constru­ ção coletiva de uma cidadania, numa frágil democracia política. Ela não pode se omitir diante das mudanças sociais e políticas profundas, nas quais a juventude que ela abriga terá um papel histórico relevante. A escola precisa de direção ou de orientação democrática para a cidadania. É urgente que ela se recicle para acompanhar o processo histórico das mudanças sociais e políticas, formando e exercitando para a ética e para a justiça, preparando, efetivamente, a juventude para uma cidadania consciente.

Esta é nossa utopia. Este é nosso sonho. Sonho que cultivamos como educadores e que devemos procurar realizar na prática pedagógica do cotidiano. Sonho que supera limitações e estreitezas, ampliando-se, para se concretizar em uma proposta integral de educação para a cidadania.

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15 EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CIDADANIA

Maria de Fátima M. Brayner1

Na história da humanidade, as relações homem/hatureza passam por um constante modificar. No passado, o tempo era o fator determinante para a agricultura, e o espaço definia as possibilidades dos contatos huma­ nos. A natureza parecia infinita e inesgotável. A humanidade, finita. Com o avanço do conhecimento científico e a descoberta de novos materiais é que a humanidade percebe que dispõe de um poder capaz de alterar radicalmente as condições do meio ambiente, seja construin­ do-o ou destruindo-o em sua globalidade. Nesse momento a relação homem/hatureza inverte-se, passando o homem a julgar-se superior, senhor dos céus, das águas e do ar.

O processo de industrialização e de produção em massa, a incor­ poração do conhecimento científico e tecnológico ao processo produti­ vo, somados aos processos de internacionalização e globalização da economia, trazem no seu bojo o paradoxo produção-destruição. 1.

Mestre em engenharia ambiental—Alemanha, doutoranda em engenharia ambiental — Unicamp.

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O crescimento produzia, junto com o atendimento da necessida­ de de milhares, a miséria e a pobreza de milhões. Mais que isso, produ­ zia a possibilidade de seu próprio fim. O conhecimento humano deixa de ter uma visão integrada (no passado os sábios entendiam de astronomia à medicina) e passa a ser um conhecimento compartimentalizado. Assim é que os especialistas vão dominar, com sua visão segmentada do mundo: na engenharia, por exemplo, tem-se o mecânico, o civil, o eletrônico, o químico. A perda dessa visão global leva o homem a um distanciamento cada vez maior em relação à natureza. Nesse contexto, a humanidade passa a trabalhar com universos como aquele que a professora Maria Adélia, da USP, nomeia de dois sistemas: o sistema Mundo e o sistema Terra. No primei­ ro estarão inseridas as relações sociais e no segundo, a natureza. Esses dois sistemas passam, então, a conviver em oposição.

Nessa ótica de desenvolvimento, a lógica do crescer traz embutida a lógica da degradação do meio ambiente. Cabe enfatizar que no processo de desenvolvimento não se faz necessário que árvores sejam derrubadas, nem que rios sejam poluídos, porque as indústrias devem ser necessariamente construídas às suas margens. Se assim ocorre é porque esse processo é resultante de relações sociais estabelecidas que são sempre de dominação, de utilitarismo. Tomando emprestado as palavras do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho2, no que se refere à natureza, o capitalismo e o socialismo acabaram por produzir o mesmo resultado: ameaçam destruir a todos ao procurar garantir somente uma das partes da equação, sem levar em conta a outra. Na seqüência das hegemonias de modos dominantes de pensar, que denominamos teologia, filosofia, política, economia e ciência e tecnologia, estamos vivendo o tempo da Ecologia, que pretende globalizar e ressocializar as visões que, separadas, não dão conta da tarefa de pensar a humanidade. A tese da superioridade absoluta do homem sobre a natureza traz 2.

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"O papel das ONGs e da sociedade civil em relação ao meio ambiente", In: Planejamento e políticas públicas, nº 7, IPEA, jul./92, pp. 39-56.

implícita a teoria da desimportância total da natureza e da onipo­ tência total dos seres humanos. Somente o pensamento democrático será capaz de dar conta dessas questões, não somente quando aplica às relações humanas os seus princípios (igualdade, liberdade, solidariedade, diversi­ dade e participação), mas quando busca elaborar princípios espe­ cíficos reguladores da relação humanidade e natureza, capazes de superar a ética dominante, essencialmente utilitária e totalitária.

Historicamente, o crescimento econômico no Brasil tem se dado às custas da utilização indiscriminada dos recursos naturais. No Brasil, mais do que, talvez, em outros países periféricos, o estilo de desenvolvimento adotado tem sido "ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto" (Tânia Munhoz, idem., 1992, pp. 1-4). Essa afirmação encontra sua concretização, de um lado, nas con­ dições de degradação do meio ambiente, que de modo sistemático vêm sendo divulgadas, principalmente pelas Organizações Não-Governamentais (ONGs) ambientais; de outro lado, na subordinação de parcelas importantes da população brasileira a condições de indigência e pobre­ za absolutas. Ambos os processos constituem-se nas faces da mesma moeda, de um mesmo estilo de desenvolvimento excludente e concentrador e da ausênda de democracia nas relações sociais que permeiam a socieda­ de brasileira.

Na década de 1970, no período do autoritarismo militar, com a ausência completa de quaisquer relações democráticas, esse padrão de desenvolvimento atinge seu auge. Com o impedimento dos atores sodais de se manifestarem contra esse modelo de desenvolvimento, projetos de grande porte foram financiados e estimulados pelas agências internacionais — particularmente o Banco Mundial. São deste período projetos como o nuclear, as grandes usinas hidrelétricas (Sobradinho, Itaipu), o Projeto Carajás, a Ferrovia do Aço, a Transamazônica, os projetos agropecuários na Amazônia, os chamados pólos (Petroquímico, Cloroquímico), dentre outros.

Na década de 1980, com a abertura democrática, começou a despontar, entre outras preocupações, aquela com a questão ambiental. Ao mesmo tempo observou-se o surgimento de grupos e associações independentes do governo ligados à defesa do meio ambiente. 145

Em nível mundial o que se vê são grandes empresas e agências internacionais financiadoras, como o Banco Mundial, que foram as grandes responsáveis pela poluição e degradação do meio ambiente, ao financia­ rem megaprojetos sem nenhuma preocupação com a questão ambiental, apresentarem-se hoje como as grandes defensoras da ecologia. Parece, como bem colocou Betinho, que o que ganharam em cons­ ciência perderam em memória ou, melhor dizendo, sofrem de amnésia. Observando de outra forma, essa atitude pode fazer parte de uma nova estratégia de dominação, que não caberia a mim discutir, em primeiro lugar por não ser aqui o fórum ideal e, depois, porque não disponho de formação para esse tipo de debate. Talvez esse tema mere­ cesse uma discussão mais cuidadosa dos cientistas sociais.

O discurso dessas empresas e agências internacionais não remete para a visão globalizada e integralizada homem/hatureza, mas perma­ nece nos limites da natureza vista como santuário, natureza intocável. É sabido que para a Europa desenvolver-se e acumular suas riquezas lançou mão de todo seu potencial natural. Talvez caiba a discussão das possibilidades de intervenção na natureza sem degradála, atuando de forma equilibrada e utilizando as tecnologias disponíveis (como é o caso da biotecnologia) para intervir de forma produtiva na natureza (este é o cerne da proposta do desenvolvimento sustentável). É interessante fazer uma pequena observação sobre a atuação de uma sociedade indígena na natureza. Embora os índios tenham uma relação de respeito com a natureza, não a tratam como algo intocável. Por exemplo, os estudos realizados pelo Museu Goeldi-Pará sobre os índios Kayapós demonstram que eles utilizam a natureza de forma equilibrada, permitindo a sobrevivência dos membros da tribo, mas preservando a biodiversidade da floresta.

Se pensarmos que hoje dispomos de tecnologias tão eficazes na destruição, por que não tomá-las eficazes na criação e no aprimoramen­ to da relação homem Natureza?

Nesse sentido, é fundamental que ocorram mudanças no modo de pensar o desenvolvimento. Esse repensar o desenvolvimento só poderá ocorrer em sociedades onde as relações sociais sejam permeadas pela democracia, no contínuo processo de construir o cidadão. 146

Nesse sentido, quando falamos no repensar o desenvolvimento, necessariamente remetemos essa questão para a escola. Pois será a escola o espaço onde deverá ocorrer o repensar, essa forma de se relacio­ nar com o mundo. Claro que esse processo na escola será extremamente difícil, até porque os educadores, que não vieram de uma nave espacial, são produto das escolas tradicionais reprodutoras da lógica da oposição homem e natureza. Coloca-se, então, a questão: Como arrebentar o imaginário desses educadores; como provocar a transformação das relações sociais que o produziram?

É dentro desse contexto que surge a discussão da educação ambien­ tal. E vamos começar explicitando uma postura existente com relação ao assunto que reduz a questão à criação de uma disciplina. Aliás, isto ocorreu há três anos, quando a Fundação Guararapes da Prefeitura da Cidade do Recife introduziu a disciplina educação ambiental. Embora até a ONU considere que esse conteúdo deva ser tratado de forma multidisciplinar, entendeu a prefeitura que somente introduzindo a disciplina no currículo escolar conseguiría dar ênfase às questões ambientais. Esse fato ocorreu e ocorrerá sempre que a sociedade seja permea­ da por relações democráticas muito frágeis e fragmentadas.

É numa perspectiva de reconceituação do desenvolvimento e de construção da cidadania que entendemos a educação ambiental.

Na escola, a educação ambiental representa um enorme potencial de sensibilização e irradiação de conceitos e procedimentos, que não poderão ficar limitados à visão de multidisciplinaridade, mas devem se interligar com a comunidade da qual fazem parte. A visão multidisciplinar da educação ambiental rompe com a visão compartimentalizada do mundo. Assim, numa sala de matemáti­ ca é possível, no momento de se ensinar a somar, em vez de utilizar-se o exemplo de uma soma de uvas, trabalhar-se com o número de árvores que são cortadas para que se produza uma folha de papel ou, ainda, em estudos sociais pode-se discutir como ocorreu, num determinado mo­ mento histórico, a ocupação de uma área. Tem-se como exemplo especí­ fico em Pernambuco o cultivo da cana-de-açúcar, que hoje ocupa toda uma área que originalmente era ocupada pela Mata Atlântica.

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Acreditamos que todo esse processo está no início da formação do indivíduo, ou seja, na pré-escola, onde se dariam os primeiros passos na construção da cidadania. Com base nessa visão de educação ambiental e considerando as dificuldades (afinal, os educadores não são extraterrestres), cabe a pergunta: Como estamos exercitando essa prática dentro da Escola Recanto?

Em primeiro lugar, estamos iniciando uma discussão com os professores, verificando como é possível introduzir nos conteúdos das diferentes disciplinas a questão ambiental, tentando introduzir essa perspectiva de forma globalizada sem compartimentalizar o conheci­ mento. Além disso, discutimos, também, como utilizar os meios de que já dispomos, como a oficina de reciclagem de papel, a horta e o coletor de vidro, de maneira que possamos trabalhar dentro de uma visão integrada.

Por exemplo, no caso da horta estamos discutindo com as professo­ ras do 1º grau menor qual a forma de, além de estudarmos os vegetais em si, introduzirmos as questões relativas à manipulação do solo de forma a não exauri-lo, bem como o que fazer com o produto desse trabalho. No nosso caso específico resolvemos doar tudo o que for produzido pela horta ao Núcleo de Assistência à Criança com Câncer—Nacc. Cremos que esse seja um bom exemplo de início de construção da cidadania, onde são considerados os diferentes aspectos da relação do homem com a natureza e com o próprio homem. No caso da oficina de reciclagem não se quer apenas que as crianças aprendam a reciclar por reciclar, mas que utilizem essa aprendizagem. Um outro projeto para o próximo semestre é a realização de uma semana comemorativa para o cientista Josué de Castro. Com isso, po­ dem ser discutidos dois aspectos na construção da cidadania: a fome e o meio ambiente. Quanto à fome, creio que não seja necessário tecer nenhum comentário sobre ela até porque Betinho e Dom Hélder Câma­ ra já o vêm fazendo de forma bastante esclarecedora, por meio do Movimento da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Com relação à questão ambiental, será discutida sob a ótica da produção de alimentos. Lamentavelmente, a questão dos alimentos vem

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associada ao uso inadequado do solo, provocando problemas de desmatamento, erosão, contaminação do solo, do ar e dos recursos hídricos pelo uso de defensivos agrícolas, dentre outros problemas.

Destacamos, ainda, o projeto que a escola vem desenvolvendo sobre o Rio Capibaribe. Esse rio é um dos mais importantes do Estado de Pernambuco, nascendo no agreste, atravessando a Zona da Mata até sua foz, na cidade do Recife. Nesse projeto, onde vem sendo desenvol­ vida uma pesquisa com quatro alunos da 7ª série, o rio não é visto somente sob o aspecto geográfico e de sua contaminação, mas funda­ mentalmente de uma forma integrada com os aspectos históricos e socioambientais. Dessa forma, utilizamos os próprios alunos-pesquisadores para discutir esses diferentes aspectos do rio. Por intermédio de slides, mapas e fotos, eles apresentam o perfil socio-histórico e socioambiental do rio.

Além disso, discutimos o envolvimento dos professores no pro­ cesso, com o objetivo de permitir essa visão integrada. Por exemplo, sugerimos ao professor de português a leitura do livro de João Cabral de Melo Neto, Cão sem pluma, que trata justamente dessa relação huma­ no/Rio Capibaribe. Para finalizar, diria que todas as reflexões feitas aqui são, no meu entender, apenas o início de uma ampla discussão que, necessariamente, terá de ocorrer na medida em que os educadores comprometem-se com o pensar a nova relação entre o humano e o natural.

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16 EDUCAÇÃO AMBIENTAL COM ENFOQUE PARA RESÍDUOS SÓLIDOS — A EXPERIÊNCIA DA ESCOLA RECANTO /RECIFE-PE

Fábio Atanásio de Morais1 Educação ambiental: "(...) processo que visa formar uma população mundial consciente e preocupada com o am­ biente e com os problemas que lhe dizem respeito, uma população que tenha os conhecimentos, as competências, o estado de espírito, as motivações e o sentido de partici­ pação e engajamento que lhe permitam trabalhar indivi­ dualmente e coletivamente para resolver os problemas atuais e impedir que se repitam ".2

O meio ambiente, hoje, é assunto de interesse universal. Entrementes, as diversidades sociopolítico-econômicas e culturais de cada país resultam em níveis diferenciados de consciência para a preserva­ ção ambiental. No Brasil, dadas as condições peculiares a um país de Terceiro Mundo, as tentativas para a promoção de uma postura responsável do 1. 2.

Engenheiro químico. Consultor de meio ambiente do Unicef. Congresso de Belgrado —1972 — Unesco.

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homem para com o meio ambiente são, muitas vezes, improfícuas, em razão da problemática da sobrevivência existente para a maior parte da população.

O entendimento das questões ambientais necessita de um pro­ cesso de aprendizagem contínuo, fundamentado no respeito a todas as formas de vida, visando valores e ações que orientem a transformação humana, objetivando a preservação racional dos recursos naturais. Esse entendimento encoraja a formação de uma sociedade justa e ecologicamente equilibrada, mantendo relação de interdependência e diversidade, requerendo responsabilidade individual e coletiva em níveis local e global. A relação dinâmica existente entre os ecossistemas naturais e os sistemas sociais propicia ações que norteiam:

a. o gerenciamento racional dos recursos naturais b. o destino das gerações vindouras c. a sobrevivência da espécie humana. A falta de participação nas decisões por parte dos interessados — população — e o descaso das autoridades influem sobremaneira para que haja uma má utilização dos recursos naturais, bem como na escolha da forma de desenvolvimento e de tecnologia adequadas à nossa reali­ dade, o que propicia o mau gerenciamento ambiental e o desenvolvi­ mento inadequado, comprometendo a qualidade de vida, levando-nos a um completo ambiente de pobreza. A discussão do desenvolvimento tecnológico deve ser contextualizada à luz da solução do problema ambiental, entendendo-se que a decisão acertada não está na negação do desenvolvimento nas relações do homem com a natureza, mas no entendimento da existência de um limite na disponibilidade dos recursos naturais, que deve orientar a opção tecnológica, propiciando um modelo de desenvolvimento que compatibilize crescimento econômico com qualidade de vida.

Como solução para esse quadro, entendemos que apenas uma iniciativa orientada para a educação de base assumirá o papel multipli­ cador, que, a longo prazo, propiciará à comunidade como um todo, uma consciência analítica, imprescindível à resolução dos problemas concer­ nentes à ação do homem no meio ambiente. 152

Consideramos as crianças como o grupo populacional mais ameaçado pela degradação ambiental em curso e pelos frustrantes es­ forços de desenvolvimento. Coloca-se a infância no núcleo da discussão sobre meio ambiente /desenvolvimento Educação, já que ela representa o modo pelo qual o homem poderá atingir, no futuro, um melhor desenvolvimento, seja como indivíduo, seja como sociedade.

Dessa forma, a mobilização em tomo da questão ambiental, obje­ tivando a melhoria das condições de vida e conquista social, não apenas discute o equacionamento tecnológico de questões específicas, mas tam­ bém questiona os aspectos educacionais e sociais decorrentes de geren­ ciamento inadequado, de forma que a contextualização das questões ambientais contemple os direitos e deveres do cidadão. A inserção da discussão da conquista da cidadania, à luz do entendimento dos direitos, por meio do acesso a serviços básicos que proporcionem condições ambientais favoráveis, possibilita o entendi­ mento de questões correlacionadas, porém, normalmente abordadas independentemente. Em outra instância, o universo das agressões ambientais, com base em uma análise estatística, é, além de extenso, extremamente grave. As informações obtidas, por meio de trabalhos realizados sobre degradação ambiental, demonstram que muitos desses devem-se à destinação final dos resíduos sólidos.

Nessa perspectiva buscou-se uma forma nova de interação na abordagem das questões relativas à limpeza urbana, fomentando a necessidade de ações educativas, de forma a propiciar um conhecimen­ to coletivo, construído progressivamente, no entendimento e na busca de soluções para problemas de saúde e meio ambiente, fortalecendo a idéia de que lutar por condições ambientais favoráveis significa con­ quistar direitos e entender deveres, ou seja, ser cidadão. Assim, para uma proposta realista, procuramos delimitar nesse universo a questão dos resíduos sólidos, diante da complexidade destes e da problemática vivenciada principalmente pela sua destinação final. Considerando, ainda, o descompromisso da população que, não supon­ do os efeitos nocivos do sistema para sua saúde e de seus descendentes, agrava ainda mais o quadro de degradação ambiental, por meio de sua conduta diária. 153

Esses fatores, portanto, possibilitaram a formulação e implanta­ ção de um projeto de educação ambiental construído participativamen­ te, e que encontrou, nos resíduos sólidos, uma referência ambiental comum, dentro da problemática do ecossistema urbano.

A partir das considerações acima, empreenderam-se esforços no sentido de discutir o meio ambiente urbano enfocando os resíduos sólidos como fator de comprometimento da qualidade de vida em razão da degradação ambiental provocada por eles. Por meio do conhecimento do ambiente escolar correlacionado com as agressões sofridas pelo descarte indevido dos resíduos sólidos (lixo), estimulou-se o aluno a intervir nesse processo depredatório, reci­ clando os diversos resíduos de forma racional e sistemática.

A experiência vivenciada pela escola subsidia o processo de dis­ cussão e encaminhamento de soluções para além da sala de aula, propi­ ciando instrumentos que questionam o proceder do administrador pú­ blico, ratificando-se a palavra pelo exemplo.

O Programa de Educação Ambiental com Enfoque para Resíduos Sólidos da Escola Recanto iniciou-se com a realização de um treinamento no qual foram capacitados professores, coordenadores e equipe técnica. Esse treinamento tratou da abordagem conceitual e prática da educação ambiental, bem como das rotinas do serviço de limpeza urba­ na, custos desse serviço e viabilidade da reciclagem dentro da perspec­ tiva custo-benefício, com detalhamento de técnicas de reciclagem.

Por intermédio de treinamentos detalhou-se o programa, definin­ do-se a estratégia de abordagem, as etapas de implantação de cada módulo, o nível de envolvimento de cada segmento escolar, bem como as etapas seqüenciais.

O desencadeamento do programa contemplou além da aborda­ gem teórico-conceitual das questões ambientais, confinamento seletivo de papel e vidro para reciclagem artesanal e industrial respectivamente e suas rotinas de controle, manutenção e técnicas, com inserção de novas experiências sobre o tema e aprofundamento de conteúdos. Operacionalizou-se a proposta de ação, entendendo que é por meio da educação e do acesso do conhecimento que o ser humano repensará sua relação com o meio ambiente e com seus semelhantes, construindo novas fórmulas de interagir como ser social.

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Acreditando, assim, que é em um ambiente de formação, apesar das deficiências existentes, que poderemos plantar sementes capazes de propiciar, mesmo que a longo prazo, a construção de uma nova realida­ de da relação homem x meio ambiente, propiciando à criança e ao adolescente uma consciência crítica nessa relação. Dentro deste projeto procuramos: 1. Desenvolver uma consciência crítica e ação participativa para os problemas dos resíduos sólidos. 2. Fazer compreender que a utilização racional dos resíduos sólidos é uma atividade economicamente viável e um meio de solucionar a problemática da degradação ambiental decor­ rente de métodos usuais impróprios. 3. Propiciar condições para instalação de oficinas de reciclagem, demonstrando que a reutilização e reciclagem racional dos resíduos sólidos é, pari passu, uma atividade rentável e ade­ quada à preservação ambiental.

A melhoria do planejamento e gerenciamento dos Serviços de Limpeza Pública, considerando os recursos oriundos dos resíduos sóli­ dos urbanos com o uso de técnicas de reciclagem, insere estes em atividades produtivas e auto-sustentáveis, proporcionando eficaz ins­ trumento de mobilização, na construção das diretrizes municipais para o setor, a partir do encaminhamento de soluções pertinentes com os objetivos perseguidos.

Como eixo norteador dessas ações buscamos no desenvolvi­ mento sustentável, definido pela comissão Brundtland como "o de­ senvolvimento que dá respostas às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de responder às suas próprias necessidades", a ênfase operacional da proposta, asse­ gurando a discussão em torno do concreto, vivenciado coletivamen­ te, conhecendo e discutindo os problemas que fazem parte do cotidia­ no do aluno. Não obstante a necessidade do entendimento da ques­ tão global, a construção desse entendimento dá-se a partir do ecossistema em que está inserido o aluno. Dessa forma, a Escola Recanto vem desenvolvendo ações de educação ambiental buscando, dentro de uma perspectiva realista, en­

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corajar e subsidiar seu corpo escolar no processo de discussão da qualida­ de do ambiente em que estamos inseridos, isto desprovido de uma conotação romântica, mas, sobretudo, de uma perspectiva de mudança, clarividenciando que o agente de transformação é o mesmo, necessitan­ do apenas do adequado entendimento para que essa transformação seja ambiental e socialmente correta. A proteção do meio ambiente deve ser iniciada com a proteção do elemento mais vulnerável do meio humano, a criança, considerando a estreita ligação das questões relativas aos resíduos sólidos com a quali­ dade de vida que se proporciona aos seres humanos e entendendo que somente com a adoção de medidas compartilhadas, associando o conhe­ cimento técnico com a experiência adquirida com o convívio daqueles que vivenciam os efeitos benéficos ou não de soluções adotadas, é que acreditamos na efetiva validade deste trabalho.

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17 TEXTO LIVRE: EXPRESSÃO VIVA NUM SISTEMA INTERATIVO

Maria Lúcia dos Santos1

O grande problema, ou melhor, o único verdadeiro é o cultivo da língua materna como meio de expressão do pensamento. A primeira preocupação da escola deve ser a de concentrar esforços no desenvolvimento do pensa­ mento e na sua expressão por meio da língua. Ensinar a criança a expressar livre e corretamente idéias claras e pessoais, este é o objetivo. (...) A linguagem é eminentemente social. É uma verdadeira necessidade social que impulsiona a criança a falar e a desenvolver seu vocabulário. É preciso, pois, que a escola não somen­ te possibilite relações de sociabilidade entre os educandos, mas também favoreça o intercâmbio de idéias. As crianças devem aprender a socializar seu pensamento. Célestin Freinet É incontestável a atualidade do enfoque dado ao ensino da língua materna por Freinet, nesse texto escrito há mais de meio século. 1.

Diretora da EEPG Faria Lima. Membro do Núcleo Freinet — São Paulo/SP.

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Freinet, ao longo dos 46 anos dedicados à modernização e à demo­ cratização do ensino, não se limitou a expressar verbalmente seu pensa­ mento pedagógico. Foi além. Materializou suas idéias, criando instrumen­ tos e técnicas didáticas que, por conjugarem expressão e comunicação, geram no interior do grupo-classe uma complexa rede de interações. Esse sistema interativo, alimentado constantemente pela dialética indivíduogrupo, é, sem dúvida nenhuma, o principal dinamizador das atividades da classe cooperativa (classe que pratica a Pedagogia Freinet). Ao introduzir no ambiente escolar, técnicas educativas tais como o texto livre, o jornal, a imprensa, a correspondência, o plano de traba­ lho, a biblioteca de classe, o conselho cooperativo, Freinet dotou a sala de aula de condições estruturais e funcionais para uma prática educati­ va baseada na liberdade de expressão, no intercâmbio de idéias, no tateio experimental, no trabalho criativo e na cooperação.

A organização concebida por Freinet para o trabalho educativo, por valorizar a expressão infantil e ao mesmo tempo possibilitar que ela circule dentro e fora da sala de aula, por intermédio de circuitos sistemáticos de comunicação, opera tuna verdadeira revolução na prática educativa escolar: • a sala de aula transforma-se num espaço de expressão e de produção; • as atividades escolares adquirem um novo sentido, tanto para o professor como para o aluno; • o trabalho e a vida cooperativa geram as condições necessá­ rias para que a criança atue como sujeito da aprendizagem e exerça sua cidadania.

Trabalho criativo: Motor da ação educativa A grande originalidade da proposta educativa construída por Freinet encontra-se no fato de atribuir às atividades escolares as carac­ terísticas de um verdadeiro trabalho e de colocar à disposição das crianças meios para que elas possam comunicar suas realizações, suas descobertas, suas inquietações a interlocutores próximos ou distantes (crianças de outras escolas, de outras cidades, de outros países). Com esse intuito, Freinet introduziu a impressora em sua sala de aula. Poste­ riormente, também com o mesmo propósito, seus seguidores foram introduzindo o gravador, o vídeo, o microcomputador, o fax...

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Cultivaremos antes de tudo esse desejo inato na criança de se comunicar com outras crianças, de fazer conhecer ao redor de si seus pensamentos, seus sentimentos e suas esperanças. Assim, aprender a ler, a escrever, a se familiarizar com o essencial daquilo que chamamos de cultura será para ela função tão natural quanto a de aprender a andar. (Célestin Freinet, s./d., p. 75)

Na classe cooperativa, a criança não faz lição para receber uma nota do professor, mas sim realiza um trabalho criativo e recebe dos destinatários de suas produções comentários críticos, sugestões, solici­ tações e outras produções. Os exercícios convencionais cedem lugar à edição de jornais, álbuns, revistas, livros; à realização de enquetes, pesquisas, exposições, projetos, dramatizações e visitas. Cartas coletivas e individuais, jornais, revistas, álbuns, desenhos, pinturas, gravações em fitas cassete e de vídeo dinamizam, há mais de 60 anos, a rede de intercâmbios instituída pela correspondência interescolar, entre as clas­ ses que praticam a Pedagogia Freinet. Desta forma amplia-se o horizon­ te da classe e propicia-se às crianças contatos com outras realidades, outros costumes, outras culturas. Na proposta freinetiana, a expressão livre (verbal, gráfica, plásti­ ca, corporal, musical, escrita) é estimulada e acolhida como elemento propulsor de todas as atividades.

Sala de aula: Espaço de expressão e produção Em virtude dessa nova concepção da atividade escolar, a sala de aula freinetiana perde a configuração de auditório e adquire as características de uma oficina de trabalho: local de produção idealizada e realizada coopera­ tivamente pelas crianças, com a assessoria técnica do professor.

A disposição material da classe Freinet é por si só um convite à comunicação e ao trabalho. A sala é dividida em cantos, cada um correspondendo a um atelier de trabalho. Tais cantos são definidos em função dos objetivos da ação educativa e dos projetos empreendidos pela turma. Possuem número limitado de vagas e funcionam simulta­ neamente, num determinado período do dia. É a criança que escolhe em que atelier vai trabalhar: leitura, escrita, poesia, pesquisa gramatical, ortografia, tiragem, ilustração de textos, exercícios com fichas, pintura,

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jornal falado ou impresso, correspondência, projetos. Em cada atelier o material necessário para a realização das atividades encontra-se dispos­ to de forma que a criança possa utilizá-lo e guardá-lo sem necessitar da ajuda do professor. Tal organização didática, ao propor num mesmo momento um leque de atividades, possibilita o respeito aos interesses e ritmos de cada criança e oferece-lhe a oportunidade de exercer sua autonomia. Em conseqüência, torna o professor mais disponível para atender às crian­ ças que necessitam de sua intervenção.

Além dos cantos de trabalho, na classe cooperativa também se prevê um local para exposição das produções infantis e um espaço para reunir todas as crianças nos momentos coletivos: roda da conversa, reunião do conselho cooperativo, comunicação de textos livres, de resul­ tados de pesquisas ou enquetes realizadas, aperfeiçoamento do texto livre, apresentações do jornal falado, dramatizações, elaboração do pla­ no de trabalho coletivo, explanações do professor etc. A diversidade das situações e das atividades educativas propicia­ das pela Pedagogia Freinet assegura às crianças a oportunidade de vivenciarem altemadamente diferentes papéis: o do autor, o do leitor, o do responsável, o do que sabe e ajuda, o do que solicita auxílio, o do que busca, recebe e transmite informações, o do crítico, o do que recebe críticas, o do que propõe, o do que cria, o do que realiza. Os problemas e conflitos que inevitavelmente surgem no decorrer do trabalho vão sendo administrados por meio da negociação coletiva. Nessas ocasiões, normas para o convívio mais harmonioso vão sendo elaboradas, codificadas, estabelecidas ou reelaboradas pelo grupo.

Texto livre: Expressão viva e objeto de comunicação É no contexto que acabamos de delinear que o texto livre ganha vida e força educativa, pois ele é a própria expressão da vida da classe. Praticá-lo isoladamente, retirando-o do conjunto coerente que constitui a Pedagogia Freinet, significa banalizá-lo, reduzi-lo a um simples exercício de redação com tema livre. Portanto, a prática do texto livre só se dá verdadeiramente quando a dinâmica do trabalho escolar oferece à criança a possibilidade de escrever livremente, apresentar suas produções aos colegas e difundir suas realizações a um público maior que o grupo-classe.

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Portanto, a prática do texto livre requer um ambiente de trabalho onde haja condições para que a criança se expresse por escrito e para que sua expressão escrita seja dinamizada num circuito de escuta, de leitura, de edição. Um ambiente em que a criança escreva para ser ouvida, para ser considerada ou para satisfazer uma necessidade íntima e não, unica­ mente, para cumprir uma tarefa determinada pelo professor. Um am­ biente onde, se quiser, quando quiser e sobre o que quiser, possa escre­ ver para um interlocutor real. Na dinâmica freinetiana apresentam-se como interlocutores virtuais da criança: os leitores do painel de textos da classe, os leitores do mural da escola, os correspondentes, os leitores do jornal da classe, o professor, os amigos, a família.

É a necessidade de exteriorizar algo que está fervilhando dentro de si que dá origem ao texto. A gama variada de interações que ocorrem no interior do grupo em decorrência do trabalho cooperativo e da prática interligada das técnicas Freinet atua como força mobilizadora dessa necessidade. Na classe cooperativa, as crianças expressam oral­ mente e por escrito suas alegrias, suas tristezas, seus medos, suas fanta­ sias, suas descobertas porque sua palavra é acolhida, ouvida, respeita­ da, compreendida e valorizada.

Na prática do texto livre opera-se uma inversão completa no procedimento usualmente adotado no ensino da língua materna, no qual, primeiramente, ensina-se à criança a ortografia, o vocabulário, a sintaxe para que, depois, ela possa se expressar. 161

No entender de Freinet, as aquisições não são obtidas pelo estudo de regras e leis, como às vezes se crê, mas sim pela experiência. Estudar primeiramente as regras e leis é colocar o carro à frente dos bois. (Sampaio 1989, p. 89) (...) Uma língua — observa Freinet, citando Albert Dauzat — não é feita pelos gramáticos, é obra de um povo. Uma obra coletiva, que se forma lentamente, através do decurso dos séculos e que, só a longo prazo, consegue fixar sua forma mais ou menos definitiva. É então, e só então, que os gramáticos a estudam e ditam suas regras. (Freinet 1978, p. 39) Escrita-expressão

A primeira redação do texto é a etapa inicial do trabalho. É o momento da escrita-expressão, onde se privilegia a satisfação da neces­ sidade de expressar-se. Seguem-se a ela outras etapas: a da socialização do texto, a do aperfeiçoamento ou reescrita, a do tratamento visual do texto, a da impressão, a da difusão e a dos desdobramentos que possi­ bilitam a realização de diferentes atividades educativas — dramatiza­ ção, pesquisa documental (para aprofundamento do tema nele aborda­ do), palestras (sobre o tema por ele focalizado), leitura e análise de textos de autores consagrados, exercícios de análise lingüística, sessões de estudo gramatical etc.

Socialização do texto

O momento da socialização do texto não se limita a um simples exercício de leitura oral para a classe. É um momento de prazer em que a criança procura surpreender, divertir, compartilhar emoções ou expe­ riências com seus colegas. É o momento da troca interpessoal, onde as opiniões se constroem. Os colegas questionam, fazem apreciações, apre­ sentam sugestões ("Não entendi o que aconteceu a...". "Você poderia dar mais detalhes sobre..."). No decorrer desse intercâmbio dialético que se instaura entre autor e seus interlocutores, a criança toma consciência sobre o efeito produzido pelo seu texto. As reações, os comentários, as perguntas, as críticas, as sugestões feitas pelos colegas, no decorrer dessa avaliação

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direta, fornecem-lhe referências significativas para que possa, posterior­ mente, retomar a escrita de seu texto, na tentativa de aprimorá-lo. Assim, vivenciando o papel de autor, a criança vai, pouco a pouco, construindo conhecimento e competência lingüística para, por meio da escrita, socializar seu pensamento, com maior clareza, com maior preci­ são e com maior beleza. Na dinâmica estabelecida pela prática do texto livre, a criança atua como sujeito do processo de aprendizagem, que se desenvolve por meio de inúmeros tateios, realizados sob uma gama diversificada de influências.

Aprimoramento do texto

O texto bruto, depois de apresentado para a classe, é submetido a um processo de aperfeiçoamento, por meio de sucessivos tateios. Escrevese, apaga-se, reescreve-se e assim sucessivamente, até que seja encontrada a forma mais clara, mais bonita, mais expressiva. Durante esse processo o texto é desarticulado e reconstruído coletivamente. Trata-se de um trabalho de análise, de reflexão crítica, de busca de recursos expressivos mais ade­ quados para traduzir o pensamento infantil. Esse processo coletivo de reescrita do texto, que conjuga o conhe­ cimento técnico do professor e a livre expressão infantil, possibilita a abordagem significativa de questões que se inserem no âmbito da orto­ grafia, da morfologia, da sintaxe, da semântica e da estilística. Partici­ pam desse trabalho a turma toda, um grupo ou simplesmente o autor do texto e o professor. Tratamento visual do texto Concluída a etapa da reescrita, passa-se ao trabalho de criação da imagem visual do texto. Sua forma final vai ser concebida em função do tipo de texto criado, da destinação que lhe vai ser dada e dos recursos técnicos disponíveis na classe.

Uma vez concebida sua diagramação, poderá, então, ser retranscrito à mão, datilografado, digitado, impresso pelo computador, ilustra­ do com desenhos, gravuras ou pinturas, duplicado no limógrafo, no mimeógrafo ou xerocopiado. O importante é que ele se apresente como uma bela página de vida. 163

Um texto, nos adverte Freinet (1967, p. 36), é como uma obra de arte. É preciso que o conjunto seja agradá­ vel... Esta preocupação com a diagramação do texto requer dedi­ cação e tempo. Mas é essencialmente educativa, pois desenvolve o gosto pelo trabalho bem feito.

Difusão e intercâmbio

O texto, na forma adquirida ao término desse trabalho construti­ vo, será encaminhado ao seu destino, passando a integrar uma rede de intercâmbios, que ultrapassa os limites da sala de aula. Rede esta viabi­ lizada pelos diferentes suportes de comunicação colocados à disposição da criança pela Pedagogia Freinet: jornal escolar, livro da vida, álbum, painel de textos, correspondência interescolar, coletânea de textos.

Uma relação prazerosa com o saber A prática do texto livre (expressão livre, discussão, reprodução, difusão, intercâmbio) permite que a criança vivencie situações em que a escrita responde a uma necessidade pessoal e cumpre uma função social. A criança escreve pelo prazer de comunicar seus pensamentos, seus sonhos, suas inquietações, suas aventuras aos colegas, para sentir a satisfação de ler seus textos para a classe, para ver orgulhosamente seu texto publicado no jornal, para manter contato com seu correspondente, para dar sua contribuição para que o grupo avance no processo de construção do saber, do saber fazer e do saber ser.... Ela lê textos de seus colegas, cartas de seus correspondentes, jornais elaborados por outras classes, obras de autores consagrados para satisfazer sua curiosidade e pelo prazer de descobrir, de conhecer e de se comunicar.

A oportunidade de vivenciar o papel de autor possibilita que a criança desenvolva uma estratégia de leitura crítica e minuciosa. Essa experiência vivida desperta seu interesse em ler outros autores, em observar os recursos e procedimentos expressivos empregados por ou­ tros e lhe dá condições para perceber que um texto não expressa verda­ des absolutas, mas interesses, intenções e pontos de vista de seu autor.

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TEXTO LIVRE: PERCURSO PEDAGÓGICO

Além do texto livre, muitas outras oportunidades de uso da escrita apresentam-se no cotidiano de uma classe Freinet: a criança redige cartas para seu correspondente, convites e cartazes para divulgar os eventos promovidos pela classe, formula questões para entrevistas e enquetes,

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registra as decisões da reunião do conselho cooperativo, redige relató­ rios, documenta acontecimentos importantes no livro da vida, faz apre­ ciações críticas sobre trabalhos do grupo, resume textos informativos. O uso funcional que a criança faz da escrita, o intercâmbio de idéias e experiências com os colegas-autores, o contato permanente com diferentes tipos de produção escrita e a presença mediadora do profes­ sor, criando condições técnicas e materiais para que cada um mobilize positivamente suas possibilidades latentes, são, na prática do texto livre, os principais fatores que impulsionam a criança a avançar no processo de construção de seu saber e de sua competência lingüística. Bibliografia

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18 LIVRE EXPRESSÃO E CIDADANIA..

Gláucia de Melo Ferreira

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Se você não voltar a ser como uma criança (...) não entrará no reino encantado da pedagogia (...). Ao invés de procurar esquecer a infância, acostume-se a revivê-la; reviva-a com os alunos, procurando compreender as possíveis diferenças originadas pela diversidade de meios e pelo trágico dos acontecimentos que influenciam tão cruelmente a infância contemporânea. Compreenda que essas crianças são mais ou menos o que você era há uma geração. Você não era melhor do que elas, e elas não são piores do que você; portanto se o meio escolar e social lhes fosse mais favorável poderiam fazer melhor do que você, o que seria um êxito pedagógico e uma garantia de progresso. Para isso, nenhuma técnica conseguirá prepará-lo melhor do que aquela que incita as crianças a se exprimirem pela palavra, pela escrita, pelo desenho e pela gravura. O jornal escolar contribuirá para a harmoniza1

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Texto elaborado como base para a palestra proferida no Encontro Interno ns 10 "Falar, Ler, Escrever e Pensar: A Formação do Autor/Leitor numa Prática Pedagógica Cooperativa (Pedagogia Freinet)", no 10s Cole (Congresso de Leitura). Coordenadora da Escola Curumim. Membro do Núcleo Freinet de Campinas.

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ção do meio, que permanece um fator decisivo da educação. O trabalho desejado, a que nos entregamos totalmente e que proporciona as alegrias mais exaltantes, fará o resto. E o sol brilhará...

Nesse pequeno trecho escrito por Freinet no seu admirável livro A pedagogia do bom senso, entre outras coisas, o autor chama-nos a atenção para um fato que já no seu tempo o preocupava: "O trágico dos acontecimentos que influenciam tão cruelmente a infância contemporâ­ nea". Freinet viveu sem dúvida períodos de grande comoção social — as duas grandes guerras. No entanto, se olharmos para a infância atual veremos ainda, infelizmente, quadros bem tristes. É ainda Freinet quem nos dá a pista acerca das causas de tais problemas: "Se você não voltar a ser como uma criança...". Talvez em outras profissões vejamos adultos mais dispostos a fazer este retorno. Mas, uma vez formados educadores, parece que nos distanciamos mais e mais de nossa própria infância. Uma leitura de Bruno Bettelheim em seu Psicanálise dos contos de fadas ajudaria-nos a entender os motivos inconscientes desse distanciamento adulto em relação à infância. Freinet confiou profundamente no vigor e na capacidade criado­ ra da infância da criança. Em torno dessa convicção foi que ele construiu um edifício pedagógico. Uma das bases, então, desse edifício é a livre expressão. Os outros eixos ou as outras bases são a cooperação, a autono­ mia, o trabalho. A livre expressão coloca-se para nós, educadores freinetianos, como o ponto de partida para o trabalho. Mas colocam-se logo de início duas questões. A primeira: A expressão livre é, ou deve ser, livre de quê? Estamos nos anos 90 e já assistimos e/ou participamos dos movimentos de libertação na educação. Já nos debatemos com a questão da liberdade social, da democracia. Mas pouca coisa mudou efetivamente nas nossas salas de aula, ou nem sempre mudou de maneira sólida e responsável. E a segunda questão: Esse ponto de partida parte para onde? Qual caminho queremos trilhar?

São questões fundamentais para as quais o educador responsável e consciente deve estar atento. 168

Voltando ao início das preocupações de Freinet e das nossas próprias vemos a infância atual que sofre por graves problemas: • a falta de espaço para brincar nas grandes cidades e conseqüentemente a criança impossibilitada do exercício da infância... • a incompreensão adulta que a cerca ou até mesmo a incomunicabilidade com o adulto... • a exposição excessiva aos meios de comunicação, às imagens pré-fabricadas, impedindo ou dificultando o exercício au­ têntico da imaginação... • a segregação da criança na escola, onde ela é colocada em grupos exclusivamente da mesma faixa etária, impossibi­ litada, portanto, do contato com crianças mais velhas ou mais novas. Neste mesmo livro, A pedagogia do bom senso, há uma interessante passagem intitulada "Criação moderna ou campo de concentração" em que Freinet aler­ ta-nos para os perigos da extrema racionalização científica na organização das escolas... • a condenação da infância às tarefas repetitivas e sem vida, sem significado, proporcionadas pela escola onde o traba­ lho é maçante da mesma maneira que o trabalho adulto... • a execução de trabalhos de mentirinha nos quais se finge, se forja, com o objetivo exclusivo de se transmitir os conteúdos escolásticos.

Então, olhando para esse estado de coisas, a resposta à primeira pergunta vem rápida: Livre de quê? Livre de estereótipos, de fórmulas prontas. Livre de uma imposição adulta externa e estéril. Livre da incompreensão e, portanto, uma expressão que se completa na comuni­ cação, que se torna compartilhada e que permite avançar.

Que a criança possa verdadeiramente expressar seus sentimentos e idéias. É esta a liberdade que, em nossas classes, buscamos. E o mais incrível é que quando realmente criamos na classe um ambiente no qual a criança se sente ouvida e respeitada, no qual se respira um clima de confiança, a criança mostra quanto tem a dizer. Quando temos ouvidos para ouvir e olhos para ver/ler encontramos beleza e sensibilidade nas palavras das crianças:

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Voltando ao início das preocupações de Freinet e das nossas próprias vemos a infância atual que sofre por graves problemas: • a falta de espaço para brincar nas grandes cidades e conseqüentemente a criança impossibilitada do exercício da infância... • a incompreensão adulta que a cerca ou até mesmo a incomunicabilidade com o adulto... • a exposição excessiva aos meios de comunicação, às imagens pré-fabricadas, impedindo ou dificultando o exercício au­ têntico da imaginação... • a segregação da criança na escola, onde ela é colocada em grupos exclusivamente da mesma faixa etária, impossibi­ litada, portanto, do contato com crianças mais velhas ou mais novas. Neste mesmo livro, A pedagogia do bom senso, há uma interessante passagem intitulada "Criação moderna ou campo de concentração" em que Freinet aler­ ta-nos para os perigos da extrema racionalização científica na organização das escolas... • a condenação da infância às tarefas repetitivas e sem vida, sem significado, proporcionadas pela escola onde o traba­ lho é maçante da mesma maneira que o trabalho adulto... • a execução de trabalhos de mentirinha nos quais se finge, se forja, com o objetivo exclusivo de se transmitir os conteúdos escolásticos. Então, olhando para esse estado de coisas, a resposta à primeira pergunta vem rápida: Livre de quê? Livre de estereótipos, de fórmulas prontas. Livre de uma imposição adulta externa e estéril. Livre da incompreensão e, portanto, uma expressão que se completa na comuni­ cação, que se torna compartilhada e que permite avançar. Que a criança possa verdadeiramente expressar seus sentimentos e idéias. É esta a liberdade que, em nossas classes, buscamos.

E o mais incrível é que quando realmente criamos na classe um ambiente no qual a criança se sente ouvida e respeitada, no qual se respira um clima de confiança, a criança mostra quanto tem a dizer. Quando temos ouvidos para ouvir e olhos para ver/ler encontramos beleza e sensibilidade nas palavras das crianças:

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Um mundo pequeno

Esse mundo é muito pequeno Não tem espaço Para jogar bola, pular corda. Que joga bola bate nas casas. Que pula corda atrapalha os outros andar. Ai que mundo chato Não dá para brincar. Eu queria mudar de casa. Maíra (3a série da Escola Curumim)

É a criança nos falando de seu mundo, de suas necessidades. Nesse clima de confiança ela nos fala também de sua solidão: Universo

Era uma vez um universo. Lá moravam os etês. Eles moravam no planeta Saturno. Eles eram legais e divertidos. Gostavam de brincar de pular corda com pau. Então a brincadeira lá é pular pau. Mas mora lá também uma menina que só sonhava. Ela sonhava em ser uma princesa bonita e rica. Ela só não tinha amigos. Ela era mesmo sozinha. Mariana (3a série da Escola Curumim)3

3.

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Estes textos foram escritos pelos alunos da 3a série da professora Vaniza dentro de um projeto maior do grupo de estudar os planetas, o céu, as estrelas, o universo.

E nos fala também de suas preocupações sociais... Vida Inexistente Um extraterrestre é enviado para cá com a seguinte missão: descobrir se existe ou não vida inteligente na Terra.

Ele vem disfarçado de terráqueo, sai por São Paulo e vê toda aquela poluição e barulho. Senta-se em uma cadeira de engraxate e o menino lhe diz:

— Quer que eu engraxe o sapato? O extraterrestre, nem sabendo o que era aquilo falou:

— Claro! O menino começou a fazer o seu serviço e o ET falou: Conte um pouco sobre você.

O menino falou de toda a sua vida, de seu sofrimento, de seus pais que o maltratavam, do lugar que viveu sua vida inteira.

Daí o ET paga, agradece e vai embora.

Então volta ao seu planeta com muita tristeza e lá diz: — Na Terra não há vida inteligente. Carlos (Cacá) (6ª série/1994 da Escola Curumim)4 É a criança expressando seus conflitos. Freinet abriu-nos esta porta — é preciso entrar por ela para realmente conhecer a criança. Em vários de seus trabalhos ele nos indicou a possibilidade de conhecer a criança por intermédio de sua livre expressão. Muito se diz e interpreta sobre a criança sem procurar ver o que ela mesma tem a dizer sobre si. E este é um hábito das pedagogias tradicionais. Em vários aspectos faz-se o discurso sobre a criança (em cima e acima dela). Na prática, por exemplo, da avaliação, ela não é nem mesmo informada sobre os crité­ rios pelos quais está sendo avaliada... 4. Texto extraído do livro Nas entrelinhas do mundo publicado pela 6ê série em 1994. Este é um projeto que a escola vem desenvolvendo, já há alguns anos, de publicar as produções dos alunos, promovendo no final do ano uma noite de autógrafos para o lançamento do livro.

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Se tivéssemos mais tempo poderiamos nos dedicar ao estudo de alguns textos das crianças e veriamos quanto de seus conflitos, medos e necessidades estão ali expressos à espera de que alguém os leia.

É essa expressão profunda da criança que deve ser valorizada. E valorizá-la é dar-lhe o status de palavra impressa. É colocá-la como objeto cultural do grupo. Na Escola Curumim e nas classes que praticam a Pedagogia Freinet fazemos isso publicando os textos das crianças. Tomo emprestadas aqui as citações feitas pelo professor de por­ tuguês da Curumim — Waltencir — no pequeno projeto que elaboramos para os professores de português da Rede Municipal de Campinas: "A escola deve tomar como ponto de partida alunos reais e necessidades de expressão reais" (Ilari, 1986).

E mais adiante no mesmo projeto:

É preciso que a escola — conforme nos fala Geraldi — não seja o lugar privilegiado da "mentira", ou seja, do texto "de mentiri­ nha", aquele que o aluno escreve sempre baseado em situações hipotéticas e irreais, ou "surreais" às vezes. Nas classes Freinet a palavra escrita ou falada tem a função de registro, por exemplo, no livro da vida: a vida da classe contada por todos.

A palavra tem a função de comunicação: os textos — após a escolha pelo grupo e após sua correção coletiva — são publicados em jornais, em livros e ganham assim um interlocutor de verdade: o leitor.

O erro dos métodos tradicionais éo de partir de textos de escritores para pretender ensinar a língua. No princípio são sempre necessárias a expressão e a criação pessoais. Só quando um (aluno) autor escreve um texto ou um poema que teve a honra de ser escolhido pela classe e que foi imortalizado pela impressão, quando tem que enfrentar as mesmas dificuldades defrontadas pelos escritores e poetas, quando tem a consciência das suas insuficiências e dos seus êxitos, só então é que ele aprecia verdadeiramente a obra dos outros. (Freinet 1978, p. 58) 172

Entramos agora mais a fundo no tema deste capítulo: a leitura. Se observarmos as pequenas autobiografias escritas pelos alunos da 6ª série, no livro por nós da escola editado no ano de 1994, veremos que muitos deles optaram por colocar seus hábitos prediletos e encontramos entre esses hábitos o da leitura com forte Ibope:

Olá, chamo-me Mariana Ferreira de Abreu, tenho 12 anos e há dez estudo na Curumim. Nasci em Ribeirão Preto, mas moro em Campinas desde que saí da encubadeira. Este é o meu primeiro livro — espero que de uma série. Gosto muito de ler e ver filmes. Meus autores preferidos são Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Conan Doyle. (Extraído de Nas entrelinhas do mundo).

O trabalho com a livre expressão pode e deve ser enriquecido. O repertório da criança pode e deve ser ampliado. Sua entrada no mundo letrado deve se fazer de forma significativa. Se observarmos seu modo peculiar de expressão veremos que é repleto de imagens, de imaginação (brincando um pouquinho com a palavra podemos dizer imagem e ação). Por isso, na escola, além de estimular sua livre expressão e dar a ela o valor de texto impresso, contamos muitas histórias às crianças. Entramos com ela nesse universo imaginário.

É importante dizer aqui que a livre expressão não é simplesmente deixar a criança entregue a si mesma. Devemos ter clara a necessidade que ela tem de modelos, ressaltando, entretanto, que não se trabalhará com um único modelo, e que esses modelos não serão impostos. Ler histórias ou contos de fadas — respeitando a linguagem escrita, respeitando seu estilo próprio, dando a entonação adequada — e contar histórias, levando as crianças a fecharem os olhos e acrescenta­ rem conosco os detalhes da paisagem, são duas atividades diferentes e imprescindíveis.

Ao ler histórias de autores consagrados o adulto constitui-se para a criança um modelo apreciador de leitura. Ao contar histórias e, se possível, inventá-las junto com a criança estaremos constituindo para a criança o modelo criador.

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Então, num ambiente onde as crianças são convidadas a falar, escrever, ler e pensar procuramos propiciar, incentivar a expressão criado­ ra, oferecendo à criança o direito à sua palavra. Assim: • falar na roda de conversa, • escrever no livro da vida ou no jornal de parede, • ler as obras dos colegas, ter leitores reais e vivenciar a leitura em todas as suas dimensões, • ler as obras de autores consagrados (ou não), • ampliar seu repertório colocando-a em contato com a obra criadora — na música, na pintura, na literatura, • e, principalmente, em todas estas atividades pensar, refletir, avaliar, criticar...

Estes são recursos que temos disponíveis para cultivar a forma­ ção de pessoas mais aptas a participar integralmente de seu meio social. E assim caminhamos para procurar agora a resposta à segunda pergunta: Partir para onde? Inicialmente vemos que este partir caminha para uma expressão autêntica, aprofundada, livre de estereótipos.

Além disso ou mais que isso, quando um professor opta por uma determinada organização da classe, quando ele privilegia técnicas nas quais o aluno pode ser sujeito (agente) de seu próprio processo de aprendizagem e crescimento, ele tem por trás disso uma concepção de seu próprio trabalho, uma visão de mundo, de infância e de homem.

O ponto de partida, então, para nós, aponta na direção da construção de relações sociais mais justas. A construção da cidadania. Se procuramos organizar a sala de aula de maneira que haja: • efetivamente a circulação de informações entre os alunos e o professor e dos alunos entre si; • possibilidade de comunicação real dentro da sala e fora dela; • possibilidade de crítica, de reflexão pelos alunos; • confiança mútua entre professor e alunos; • a cooperação real e não aquela dos discursos moralistas; • a autonomia; • e o clima geral de trabalho ativo e disciplinado;

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• é porque acreditamos no papel da educação como formado­ ra de uma cidadania democrática, solidária e feliz. Neste ponto de nossa conversa é preciso atentar para uma ques­ tão de extrema importância e recorro novamente a uma citação de Freinet (s./d., p. 197):

A ordem e a disciplina são necessárias na sala de aula (...) temos necessidade de uma ordem profunda, inserida no comportamen­ to e no trabalho dos alunos.

Acrescento a esta citação as palavras do mestre Paulo Freire: (...) o espontaneísmo não é o contrário positivo da manipulação e vice-versa. Se não sou, por princípio, por coerência política, manipu­ lador, não posso ter no espontaneísmo o meu caminho. Como professor, nem posso deixar os alunos entregues a eles mes­ mos, nem fazer deles meros pacientes de minha competência, não importa se trabalho com crianças ou adultos. Nem só a liberdade deles que, sem minha autoridade, vira licença, nem só a minha autoridade que, sem a liberdade deles, vira autoritarismo.5

Assim, trata-se para nós de criar na sala de aula, por meio de técnicas de trabalho, as condições para o exercício da cidadania. No programa da TV Cultura, Cidadania,6 o sociólogo Herbert de Souza (Betinho), o jornalista Fernando Gabeira e o psicanalista Francis­ co Daudt discutiam a questão da cidadania enfocando o aspecto do público e do privado e as situações cotidianas nas quais se observa a falta de consciência das pessoas sobre o que é público e como deve ser tratada a coisa pública e o que é privado. Um dos problemas sobre os quais se falava era a questão do trânsito. Gabeira propunha então a criação de cursos de trânsito nas escolas. Bem, vocês sabem da gravida­ de dos problemas de trânsito que temos no Brasil e parece que isto tem a ver com esta nossa idéia de que a rua é pública e, portanto, não merece 5 6

Trecho extraído de uma carta do professor Paulo Freire a uma das coordenadoras da Escola Curumim — Eliana Luiz dos Santos. Programa exibido em 12/7/95.

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qualquer cuidado. Nossa sociedade ainda carece demais de uma educa­ ção que leve a perceber que o que não é de ninguém, é de todos e, portanto, pertence a cada um. O psicanalista Francisco Daudt fez uma colocação interessantíssima, propondo a criação nas escolas dos Tribu­ nais de pequenas causas. Ele sugeria que houvesse o espaço para que as crianças pudessem tratar efetivamente de seus problemas e encaminhar propostas de solução. Januz Korczac, o importante educador polonês que, com profunda sensibilidade e amorosidade ouvia suas crianças, tinha em seu orfanato de crianças judias, na Varsóvia ocupada pela Alemanha nazista, o tribunal das crianças onde elas efetivamente julga­ vam e resolviam seus problemas. E na Pedagogia Freinet temos a reu­ nião de cooperativa ou a roda final para tratar com seriedade dos problemas que envolvem o dia-a-dia das crianças. Formar cidadãos envolve o cidadanear. Assim, como se aprende a ler lendo, a escrever escrevendo, cidadania se aprende cidadaneando.

Um exemplo:

Na terça-feira, dia de Educação Física, nós conversamos sobre o descuido do material de Educação Física. Na conversa nós chegamos na conclusão que devemos tomar mais cuidado com esses materiais, guardar depois de usar e não estragálos. (Texto de Christian e Thiago no livro da vida da 3ª série)

Como é que se pode aprender a cuidar da coisa pública se não for vivenciando situações nas quais efetivamente somos chamados a opinar sobre o problema e nas quais podemos participar da solução? Não nos esqueçamos, entretanto, das palavras de Paulo Freire: "O espontaneísmo não é o contrário positivo da manipulação...". É impor­ tante deixar claro que o professor participa, orienta os alunos nessa discussão. A professora Ruth Joffily numa recente palestra proferida na Escola Curumim fez uma colocação muito interessante:

Na classe Freinet as regras são tiradas e combinadas pelo grupo, mas quanto menor é a criança mais é o professor que "combina" essas regras.

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Em outras palavras é o professor quem dá os modelos de convi­ vência em sociedade, pois a criança ainda não possui estes referenciais. Ela os construirá nesse processo.

A diferença é que para nós a Pedagogia Freinet é uma pedagogia do diálogo. Reforço aqui a importância do papel do professor. Não praticamos os métodos tradicionais onde impera o monólogo do professor. Não praticamos também um método espontaneísta onde impera o mo­ nólogo do aluno abandonado a si próprio. Dialogamos com a criança, aprendemos a ouvi-la com sensibilidade e nesse processo nos educamos também, pois para nós educar é educar-se ou, como diria Paulo Freire (1982,p. 61), "ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho. Os homens se educam em comunhão".

Concluindo, gostaria de dizer que há muito a mudar na educação. Há muito trabalho por fazer e esse trabalho só pode começar por nós mesmos numa disposição séria e consciente de refletir sobre nossa própria prática, pautando-nos por princípios de autêntica cidadania e humanidade. Quem sabe assim consigamos praticar com simplicidade e sabedoria uma verdadeira pedagogia do bom senso.

Bibliografia BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos defadas. São Paulo, Paz e Terra, 1980.

FREINET, C.

Educação pelo trabalho. Lisboa, Presença, s./ d., 2 vols.

. Para uma escola do povo. Lisboa, Presença, s./d.

.O método natural I: A Aprendizagem da língua. Lisboa, Estampa, 1977. . A pedagogia do bom senso. São Paulo, Martins Fontes, 1988. FREIRE, Paulo. Educação e mudança.

Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

"O Que Significa Ensinar Língua Materna?" In: XlU Anais de Seminários do GEL, Araraquara, 1986.

ILARI, R.

RODARI, G.

Gramática da fantasia. São Paulo, Summus, 1982.

SAMPAIO, R.M.W.F. Freinet: Evolução histórica e atualidades. São Paulo, Scipione, 1989.

A expressão livre no aprendizado da língua portuguesa. São Paulo, Sdpione, 1991.

SANTOS, M.L.

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19 A AULA-PASSEIO TRANSFORMANDO-SE EM AULA DE DESCOBERTAS

Rosa Maria Whitaker F. Sampaio1 A mágica das palavras: o parque — o zoológico — o teatro — o jogo de bola — o pintor — a biblioteca — a alegria — o lanche — os amigos — a motivação — o querer ir — partir juntos — romper a rotina cotidiana na escola — ver novos horizontes — fazer novos amigos.... A prática da aula das descobertas permite à criança chegar a três objetivos importantes: • uma maior autonomia vivendo situações reais e assumindo novas responsabilidades, descobrindo suas próprias capaci­ dades em situações desconhecidas; • ampliar o campo das investigações, chegando a descobertas múltiplas, inesperadas e interessantes; • privilegiar sobretudo o encontro com o outro de maneira diferente daquela do dia-a-dia na escola. Encontro com o coleguinha que não brinca com ninguém, com a professora sempre apressada, com os acompanhantes carinhosos e os 1

Coordenadora do Núcleo Freinet — São Paulo.

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monitores atenciosos, promovendo uma troca afetiva e a tomada de consciência de valores sociais importantes para a vida de todos.

A motivação, o interesse, a curiosidade, o questionamento, a alegria criarão condições para que o meio físico e o meio humano constituam-se numa fonte de atividades e descobertas felizes. Eles também vão se integrar naturalmente na vida social, na vida afetiva e no conteúdo de todas as disciplinas do currículo escolar: matemática, ciências, estudos sociais, línguas, artes, filosofia, trabalhos manuais e educação física. A prática educativa da aula das descobertas trabalhada com serie­ dade e carinho nos seus quatro momentos — preparação, ação, prolon­ gamento e comunicação — deixará de ser uma ruptura das atividades realizadas em classe, tomando-se, ao contrário, um aprofundamento. Todas as aquisições que acontecerem durante o planejamento até a comunicação são conseqüências do desejo de conhecer alguma coisa nova, refletir sobre ela e compreendê-la. São aquisições baseadas tam­ bém na riqueza da vida, em comum com os professores, os colegas, os monitores, os acompanhantes que chegarão às crianças em situações especiais. Poderão se tornar momentos de felicidade que nunca mais serão esquecidos. Riquezas no campo social, intelectual e no afetivo. Todas com a mesma importância na vida de cada um.

Motivação

A motivação vai desencadear todo o processo. Como aparece essa motivação? Alguém de outra cidade vem visitar a escola; um filme na TV que traz curiosidade; o passeio feito nas férias por um colega ou mesmo pela própria professora; qualquer acontecimento poderá se tornar um estímulo. É preciso que estejamos atentos a comentários na roda de conversa, a fatos dos jornais e das revistas, ao caminho feito de casa até a escola, a casos que os pais contaram sobre a cidade de antigamente...

Um dia proponho: "E se nós fizéssemos um passeio...". Houve interesse? Vamos então discutir, apresentar idéias, pesar as possibilida­ 180

des reais, quais os obstáculos a transpor, decidir. Essa é a hora em que o conselho de classe tem sua atuação importante. Nós todos vamos pas­ sear. Logo, vamos preparar tudo, juntos... mãos à obra!

A preparação Uma saída, um passeio não é o mesmo que a TV que dá às crianças a ilusão de se encontrarem num novo meio, sem, no entanto, se apropriarem dele, compreendê-lo, ordenar suas impressões, dominar sua aprendizagem. São situações de descobertas a partir de uma reali­ dade vivida, autêntica.

Na fase da preparação podemos reconhecer que são cinco os planos que contribuirão para a prática educativa: • plano saúde; • plano autonomia; • plano financeiro; • plano material; • plano pedagógico. Plano saúde: • É um período de desintoxicação do audiovisual repetitivo da vida diária; • Atitudes sobre a higiene corporal (lavar as mãos, manter a roupa limpa...); • Adaptação num meio novo e a obrigação de superar as dificuldades físicas e também de obedecer regras — fazer filas, esperar a vez, permanecer quieto no ônibus ou no teatro ou durante uma entrevista. Tudo isso apela às fontes mais profundas de cada um e, por conseqüência, desenvolve suas capacidades de adaptação. • Os ritmos de vida tornam-se diferentes — a saída, o trans­ porte, a visita, o lanche...; • Levar roupas de acordo com o tempo (frio, calor...).

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Plano autonomia: • Permite à criança chegar a uma maior autonomia. Terão que tomar conta de suas coisas, resolver pequenos conflitos, cada um tem que ser responsável por si mesmo. • As regras do local a ser visitado têm que ser conhecidas e discutidas com as crianças. Quanto maior o conhecimento sobre o local, mais fácil será conhecer suas próprias respon­ sabilidades. • Num ambiente novo poderão se revelar aptidões ou habili­ dades desconhecidas, não somente por parte das crianças como também dos adultos que estão acompanhando-as. As descobertas poderão ser de todos que estiverem com espírito aberto para elas. • Tudo deverá ser feito com a ajuda e participação das crianças. Plano financeiro:

• As discussões sobre as despesas poderão ser de variadas ordens: — a alimentação — preço de uma ou mais refeições ou leva­ rem seus próprios lanches; — o preço da viagem — avião, ônibus, metrô, carros particu­ lares, o motorista, a gasolina, as passagens...; — material pedagógico — filme para fotos, vídeos, mapas, ajuda do serviço de turismo etc.; — fontes para subvenção — cartas ou ofícios para departa­ mentos, instituições, prefeituras, ONGs, pais, avós, amigos; — realização de quermesses, bingos, rifas, jogos esportivos, coleta de lixo reciclável para vender etc. Plano material:

• Estudar o local de passeio em relação à escola, caminho a percorrer, solicitação de mapas e material turístico; • Conhecer os pontos de referência, nomes de bairros e aveni­ das importantes, ou estradas; • Estudar as normas de segurança específicas que encontrarão durante o passeio; • Confecção de crachás com os nomes e as referenciais da escola.

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Tudo é essencial para que as crianças sintam-se em segurança.

Um passeio não é um presente que chega por acaso. É muito importante que as crianças participem de sua preparação material e, segundo suas idades, sejam confrontadas com as dificuldades. A preparação é uma das condições de sucesso. Sem ela, e depois sem o prolongamento e a comunicação, não haverá senão uma troca de lugares que arriscará ser mais próxima do turismo do que um empreen­ dimento educativo. Plano pedagógico:

O plano pedagógico é previsto pelos professores, alunos e moni­ tores por intermédio de entrevista, material impresso, cartas a pessoas que possam fornecer informações, pesquisas e muitas outras atividades. Alguns tipos de passeios, que se transformaram em aulas das descobertas, não necessitam de um projeto pedagógico detalhado e preciso. Vários deles podem ser elaborados à medida que os fatos forem acontecendo, as descobertas sendo feitas e os interesses e as curiosida­ des forem aparecendo. Depois do passeio, esses projetos deverão ser trabalhados coletivamente.

Um projeto de passeio pode ter um objetivo definido, mas os caminhos para chegar a ele ou até transformá-lo podem tomar direções inesperadas e maravilhosas. A abertura e a disponibilidade para essa exploração enriquecerão cada vez mais os grupos de trabalho e, por isso, não devem ser descartadas. Muitas vezes, um interesse especial por uma descoberta ocasio­ nal pode proporcionar a quatro ou cinco crianças a elaboração de um projeto paralelo. O fato de existirem dois ou três projetos numa mesma classe só pode ser construtivo, pois será uma atitude de respeito ao interesse e à curiosidade de cada grupo de crianças, que poderá trabalhar com pro­ fessores de diferentes áreas. Outras formas de aula-passeio poderão ter definidos seus proje­ tos pedagógicos, fazendo aparecer uma dominante no nível social, cul­ tural ou afetivo. 183

Alguns desses projetos podem ser desenvolvidos durante todo o ano escolar e se inscrever na vida da classe e até na vida de toda a escola, com a colaboração de professores de várias áreas e de pais envolvidos.

Algumas áreas poderão complementar outras quando houver um objetivo comum; comunicarão aos outros colegas e amigos, por meio de várias formas de expressão, suas descobertas. Cada classe/pro­ fessor tem uma história e o caminho que cada grupo vai trilhar propor­ cionará uma descoberta diferente e quase sempre maravilhosa.

A ação Durante a aula das descobertas surgem os momentos nos quais as crianças encontram ocasiões para se desabrocharem, construindo seu co­ nhecimento, situações autênticas nos planos social, intelectual e afetivo. Essas situações criarão oportunidade para:

• aprender a partir do mundo tal qual ele é na realidade — o encontro, as novas situações, novas relações humanas; • satisfazer sua curiosidade, aguçar sua atenção, descobrir suas aptidões, desenvolver seu espírito crítico, seu sentido lógico, sua capacidade de se adaptar às diversas situações e resolver pequenos problemas, ajudar os outros etc.; • colocar questões verdadeiras, desencadear respostas num contexto completamente novo e motivador; • nutrir seu imaginário; • deixar de serem consumidores para se tomarem construtores.

Todas as aquisições, seja qual for seu nível, permitirão uma maior compreensão do tempo em que vivem, não ficando alienados de um mundo em constante evolução e mutação, seja no plano das técnicas (que entram rapidamente na vida cotidiana), seja no plano social no qual o modo de vida muda sem cessar, ou no plano cultural no qual a mídia e o encontro das raças e das civilizações têm uma influência cada vez maior. A aula das descobertas deve ocasionar uma obra coletiva — explo­ dir em grupos heterogêneos, romper a unidade da classe como uma

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vantagem, uma necessidade, um enriquecimento. Partir para a aventura com os olhos bem abertos, os ouvidos e as narinas atentas a fim de voltar do passeio consciente de todas as sensações que teve. A parte do profes­ sor que acompanha deve ser a de registrar esses momentos: as perguntas, as exclamações, as críticas e as atitudes. Tudo deverá ser trabalhado depois, no prolongamento e, finalmente, na comunicação. Prolongamento

A comunicação imediata, no mesmo dia da visita, é sempre muito rica e deve ser registrada de alguma forma para, depois, ser explorada ao longo dos trabalhos (gravador, vídeo ou caderno de anotações).

As relações afetivas estabelecidas entre criança-criança e criançasadultos, ao longo do passeio, continuarão e esse conhecimento mais profundo e recíproco será a base de um trabalho frutífero, duradouro e prazeroso. É preciso cuidar para que a exploração e o reinvestimento de todas as múltiplas aquisições integrem-se o mais completamente possí­ vel na ação educativa.

A avaliação formativa dará subsídios para isso. Todas as áreas pedagógicas se beneficiarão do passeio realizado, se houver abertura e os educadores estiverem atentos para isso. As próprias crianças poderão dar boas sugestões, às vezes mais criativas do que as dos professores. Todos podem aprender com todos; a troca é sempre importante. O aprofundamento e a finalização dos planos feitos na fase de preparação darão coerência à atividade pedagógica. Planos novos sur­ gem em função da quarta fase e da comunicação.

Os acontecimentos e as reflexões que forem registrados pelos professores responsáveis pelo passeio poderão levar a pistas inespera­ das e abrir o coração para novos mundos de sensações. Isso pode acontecer tanto com as crianças como com os professores. Todos se enriquecerão.

Para os professores podem existir os medos: medo de reagir em função de decisões de uma equipe, de um grupo; cada um reage, em função de sua personalidade, às dificuldades nascidas na classe. Pode 185

haver defeito na harmonização dos trabalhos, dificuldade para explorar a fundo os caminhos abertos, muitas vezes desconhecidos, e por isso mesmo amedrontadores. Mas, se houver solidariedade, espírito aberto, a parceria com professores de outras áreas só poderá levar ao sucesso.

A comunicação

A comunicação poderá se desenvolver por meio de múltiplas for­ mas de expressão — palestras, jornal, álbuns, livro da vida, exposições, visitas a outras classes, entrevistas na rádio local, exposições para as famí­ lias, colegas e outras escolas, peças de teatro, músicas, festas etc.

A exploração pedagógica é colocada a serviço de uma real comu­ nicação com as outras crianças e com os adultos que as acompanharam no passeio, os monitores e os entrevistados, os escritores, os músicos e os artistas plásticos. Cada grupo decide sua forma de comunicar, de passar aos outros o conhecimento adquirido no passeio, as descobertas, e uma atividade coletiva de toda a escola seria desejável, apresentando planos para continuar alguns projetos no ano seguinte.

Cada classe é única e cada professor tem sua personalidade; e com base nessas constatações é de se prever que não poderá haver duas classes que representem projetos com resultados iguais (os projetos até podem ser os mesmos, mas o encaminhamento, as estratégias seguirão direções diferentes). Só serão iguais se não houver respeito às crianças, tornando obrigatório seguirem caminhos idênticos. Essa atitude estaria mais próxima do autoritarismo e o que queremos é que as crianças aprendam a difícil convivência democrática, para que saibam enfrentar o mundo no futuro. A melhor forma de preparar a fase da comunicação talvez seja esta: levantar junto com as crianças todas as possibilidades reais de tempo, espaço, material e disponibilidade de professores e pais envolvidos.

Os esforços para essas comunicações vão sensibilizar a todos, educadores e crianças, provando que a aula-passeio, a aula das desco­ bertas não é perda de tempo e nem atrapalha o desenvolvimento do currículo escolar; pelo contrário, apenas enriquecerá os três aspectos: social, intelectual e afetivo.

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Vivendo a experiência de transformar a aula-passeio em aula de descobertas, os professores, os acompanhantes e os monitores estarão conscientes de que participam da modificação da idéia que as gerações passadas tinham do que era uma escola (o imobilismo e a escolástica); agora, acompanhando as mutações sociais, a escola é vida, numa intera­ ção com o mundo de hoje.

Freinet — na sua pedagogia há 60 anos — desde 1920 tinha a preocupação de preparar as crianças para um mundo de solidariedade, democracia e, principalmente, para a paz. Para isso, apresenta ativida­ des, instrumentos e as práticas pedagógicas, chamadas técnicas Freinet, como um suporte que faz acontecer o aprendizado em nível cooperati­ vo, social, intelectual, manual e afetivo, acompanhando todo o desen­ volvimento tecnológico.

São, então, os educadores que têm o papel mais importante, aquele de adultos mediadores entre a criança e o mundo. Além disso, é preciso ter presente, durante a aula das descobertas, que essa geração de crianças e jovens é a primeira televisual, para quem a realidade é apresentada de forma inovadora, plana, sem limites espa­ ciais ou temporais.

A escola tem um dever que se impõe com toda força: confrontar as crianças com a realidade, usando os cinco sentidos e, a partir da realidade próxima, ampliá-la cada vez mais para que tenham uma visão crítica e a mais autêntica possível.

A aula das descobertas é um desses instrumentos num sistema interativo da Pedagogia Freinet.

Uma listagem modificadora para a aula da descoberta • A descoberta de um meio natural específico — o parque, o lago, a montanha, o rio, a praia etc., com base em um estudo prévio, uma pesquisa motivadora sobre a vida local —, a organização de uma fazenda, o trabalho no campo, as plan­ tações, as colheitas, o mercado, as feiras etc.; • A descoberta do meio em relação: — à ecologia (a cidade ou um parque);

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— à história (a cidade ou o bairro); — à vida social e humana e suas influências; — econômicas; • A influência do meio nas mudanças sociais e econômicas; • A aprendizagem das atividades relacionadas com o meio esco­ lhido: criação de animais, tratores, construções, hortas, tapeça­ ria, trabalho com vime; • A descoberta da cidade — aspectos históricos, geográficos, urbanísticos e políticos (prefeitura, câmaras regionais); • O estudo climatológico comparado: clima, poluição; • A descoberta dos sons da natureza; • A descoberta de atividades turísticas: belezas naturais, fol­ clores, tradições; • A descoberta do poder da mídia: rádio, TV, computador, fax, minitel, jornais, revistas; • A descoberta da leitura: bibliotecas, centros de divulgação, propaganda, editoras, livrarias, jornais, entrevistas com es­ critores, poetas, editores; • A descoberta dos museus, galerias de arte, exposições: orga­ nização, manutenção e restauração; • A descoberta do patrimônio: estudar a natureza e a marca dos homens sobre ela e a forma como os monumentos ou lugares históricos se integram ou são destruídos; • A realização de uma exposição: seleção, organização, apre­ sentação; • A descoberta da música: concertos, corais, bandas, dança, instrumentos, gravações, videoclipes; • A descoberta da fotografia — um passeio para fotografar e um laboratório montado pelas crianças; • A descoberta do arco-íris — um passeio que coloca a criação artística no centro das atividades: pintura, história em qua­ drinhos, visita a ateliês; • A descoberta das ciências: Planetário, Butantã, Estação Ciên­ cia, aquário, zoológico, estufas; • A descoberta do rio: suas águas e suas margens, poluição, vida dos homens e seu comércio;

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• A descoberta do meio subterrâneo: grutas, minas; • A descoberta da volta ao quarteirão: aspectos históricos, geográficos e humanos; • A descoberta das profissões: visitas a ateliês, jornais, fábri­ cas, artesanatos, escritórios, lojas, bancos, hospitais, feiras; • A descoberta do passeio por prazer: teatro, jogos de bola, piqueniques, encontro com os correspondentes, passeio na praça; • A descoberta de novos amigos: visitas a asilos de velhos, hospitais de crianças, outras escolas; começar e continuar as amizades por meio de correspondência e encontros combi­ nados; • A descoberta de sua própria escola: histórico com fotos e entrevistas com pessoas que já trabalharam na escola; • A descoberta de sua rua — do começo ao fim: aspectos geográficos, históricos e sociais; • Outras sugestões.

Ficha 1: Sugestões para o prolongamento

Num plano pedagógico não faltam pistas de trabalho para o prolon­ gamento de uma aula das descobertas. Assim, uma hipotética visita à Bienal da Criança poderá fazer com que as crianças não sejam somente consumidoras mas sim construtoras de um conhecimento. Pistas possíveis para todas as faixas etárias:

classificar informações — registro, cifras, textos etc.; aprofundar pesquisas já começadas antes da visita; análises críticas; comparar os meios e as situações; continuar as aprendizagens de leitura, matemática, ciências e outras áreas de interesse; • projetar filmes ou vídeo relativos à visita; • redigir um relatório da visita baseado nas notas feitas duran­ te o passeio pela professora responsável;

• • • • •

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• verificar as hipóteses apresentadas durante a fase de prepa­ ração do passeio e compará-las com a realidade; • efetuar pesquisas documentais que não foram feitas antes do passeio mas que despertaram o interesse das crianças; • construir uma maquete do local da exposição; • proporcionar um acesso direto às fontes da realidade que se quer explorar (entrevistas com artistas, visitas a ateliês e a bibliotecas); • começar uma correspondência com os expositores crianças ou os artistas adultos; • avaliar o conhecimento adquirido e aprofundar algumas brechas; • continuar os estudos começados na preparação da visita sobre mapas, paisagens, termos geográficos, ecológicos e científicos, as árvores, as flores, os peixes, explorando o gosto pelas ciências; • comparação e análise do uso e da conservação dos outros parques da cidade; • levantamento dos programas de arte infantil e juvenil na cidade; • analisar e catalogar as matérias que saírem sobre a Bienal da Criança para compará-las à Bienal de 1977; • outras sugestões que cada professor poderá seguir a partir das idéias das crianças e dos jovens que fizeram o passeio.

Ficha 2: Sugestões para a comunicação A exploração pedagógica é colocada a serviço de uma real comu­ nicação com as outras crianças e com os adultos que as acompanharam no passeio: os monitores e os entrevistados, outras classes, outras escolas. Essa comunicação pode desenvolver-se de múltiplas formas e servir de outros tantos suportes. Cada grupo escolhe a forma que lhe interessa mais dentro de suas possibilidades e contando com o envolvi­ mento dos professores das diferentes áreas.

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Cada classe é única e cada professor tem sua personalidade. A partir dessa constatação, é de se prever que não pode haver duas classes que apresentem resultados iguais a não ser que as crianças sejam obri­ gadas a obedecer ordens restritas e precisas. A melhor forma, talvez, seja esta: levantamento com as crianças das possibilidades de espaço, do material e a disponibilidade dos professores envolvidos. A partir desses limites pode-se realizar um mundo de atividades diferentes para comu­ nicarem aos colegas, aos pais, às outras escolas. Sugestões para todas as faixas etárias:

• confecção de cartazes e murais nos corredores relatando como foi o passeio, com pinturas, desenhos, colagens, textos etc. para toda a escola e visitas; • confecção de um álbum com fotos do passeio e texto contan­ do sobre os fatos mais engraçados, interessantes, curiosos etc., para mostrar às outras classes; • álbuns com recortes de revistas e jornais comentando a Bie­ nal da Criança — sobre os mais variados aspectos; • apresentação para outras classes de um diário de bordo elaborado durante a visita por um responsável, um profes­ sor ou um aluno; • escrever um artigo para um jornal do bairro; • fazer uma maquete com o Parque Ibirapuera com base em pesquisas; • realização e venda de um jornal sobre o passeio — jornal escrito, diagramado, impresso e fotocopiado pelas crianças; • palestras feitas pelas crianças para outras classes que não foram ao passeio ou que viram coisas diferentes; • entrevistas com artistas e expositores no seu próprio local de trabalho (ateliês, escolas); • apresentação de uma peça de teatro contando sobre as coisas que aprenderam na visita e as situações engraçadas; • entrevistas com artistas, jornalistas, escritores, atores, músi­ cos, arquitetos, paisagistas, bibliotecários, cientistas, todos aqueles que têm alguma coisa a ver com a aula das descober­ tas realizada;

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• preparação de uma exposição com fotos, desenhos, textos, pinturas; na escola, na rua, na praça, na igreja etc.; • organização de uma vernissage da exposição dos trabalhos selecionados pelas próprias crianças. Os não selecionados irão para os álbuns que ficarão à disposição dos professores, funcionários, pais e amigos que vierem ver a exposição; • apresentação de poemas, textos, cantos, música, teatro e debates durante a vernissage; • meio dia de portas abertas, cada classe organiza sua exposi­ ção — vernissage — e convida as outras classes para com­ partilhar; • participação de um grupo numa emissora de rádio local com entrevistas; • uma auto-avaliação de cada classe sobre a preparação, o passeio, o prolongamento e os planos futuros até a próxima Bienal; • outras sugestões.

Os esforços para as comunicações visam sensibilizar todos aque­ les educadores que não estão convencidos da riqueza de uma tal experiência ou que ainda hesitam em vivenciá-la por acreditar que o trabalho que vai dar é "perda de tempo", tanto para os professores quanto para os alunos.

As últimas sugestões de atividades têm a ver com as relações afetivas entre todos aqueles que participaram de um movimento de vida excepcional. Qualquer passeio poderá tornar-se excepcional se for o momento de descobertas e seu prolongamento fará renascer a alegria dos encontros com os novos amigos.

Exemplo de ficha para um passeio ao Parque Ibirapuera — São Paulo

Passos a dar: • solicitação à Secretaria de Turismo de dados sobre o parque. Mapas da cidade — qual o acesso de carro, ônibus, metrô, a pé; • vida social do parque — horários de abertura e fechamento, trânsito interno;

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• leis e regras — o que é permitido e o que é proibido quanto aos esportes, animais e cuidados com a natureza; • manutenção — quem faz, quem paga; • o parque em relação à cidade — urbanismo e ecologia; • informações sobre o paisagista e o arquiteto que criaram o parque; • levantamento de informações sobre a utilização dos pré­ dios do parque: o monumento histórico do obelisco e o museu do Soldado, museu do folclore, o prédio da Bienal, o Museu da Arte Contemporânea, o Planetário, a casa japonesa, o tanque dos peixes, os lagos, o clube dos trenzinhos elétricos; • a Assembléia Legislativa — a arquitetura e os aspectos polí­ ticos; • realizações de eventos: feiras, exposições, concertos musi­ cais, bienais; • levantamento de artigos em jornais e revistas sobre os acon­ tecimentos e a vida do parque em relação à cidade de São Paulo e seus habitantes; • outros interesses....

Pode-se ir montando fichas novas ou completando as antigas. Essas fichas devem estar ao alcance das crianças e dos jovens, assim como os álbuns com fotos e os materiais interessantes produzidos em cada passeio. Seria, então, mais uma forma de motivar as crianças e, certamen­ te, os resultados serão sempre originais.

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20 FREINET: CONFRONTO COM O PODER DISCIPLINAR1

Reinaldo Matias Fleuri2 A proposta de Freinet Célestin Freinet elaborou os traços fundamentais de sua proposta pedagógica no ambiente da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Em meio aos escombros da sociedade ocidental ansia­ va-se ardentemente pela construção de uma nova ordem mundial. Nes­ ta perspectiva, sentia-se a necessidade de se adaptar a escola para a formação de homens criativos e trabalhadores eficientes, capazes de servir à comunidade que o serve.

A escola tradicional, com seus métodos escolásticos baseados "na matéria a ensinar e nos programas que definam esta matéria, precisan­ do-a e hierarquizando-a" (Freinet 1973, p. 25), promove uma "instrução passiva e frontal" (Freinet 1973, p. 27). Tal escola já não serve ao objetivo12 1.

2.

O presente texto consiste de algumas anotações preparadas para a palestra de abertura do III Congresso Nacional de Educadores Freinet (Erechim — RS, 14 a 18/julho/93), sobre o tema "Freinet: Resgate e contemporaneidade pedagógica". Doutor em filosofia e história da educação. Professor titular em fundamentos epistemológicos da educação na Universidade Federal de Santa Catarina.

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fundamental da educação que é o de "desenvolver ao máximo a perso­ nalidade da criança, (...) enquanto membro da comunidade" (Freinet 1973, pp. 24-25).

Sentia, Freinet, a necessidade de uma verdadeira correção pedagógica racional, eficiente e hu­ mana, que deve permitir à criança enfrentar com o máximo de realização, o seu destino de homem. (Freinet 1973, p. 25)

Para isso, propõe enfatizar não mais a matéria a memorizar ou os rudimentos de ciência a estudar, mas: (a) a saúde e o interesse do indivíduo, a persistência nele das suas faculdades criativas e ativas, a possibilidade — que faz parte da sua natureza — de sempre progredir para se realizar num máximo de pujança; (b) a riqueza do meio educativo; (c) o mate­ rial e as técnicas que, neste meio, permitirão a educação natural, vivificante e completa que preconizamos. (Freinet 1973, p. 26)

O desenvolvimento pessoal, aproveitando-se a riqueza do meio, mediante técnicas pedagógicas apropriadas torna-se possível através do trabalho: O trabalho será o grande princípio, o motor e a filosofia da pedagogia popular, a atividade de onde advirão todas as organi­ zações. (Freinet 1973, p. 27) Tal orientação pedagógica e social propicia uma organização ra­ cional que, superando os formalismos estéreis, evita o caos e a desor­ dem. Pelo contrário, a escola

será a mais disciplinada, porque superiormente organizada. (...) A disciplina da escola amanhã será a expressão natural e resultan­ te da organização funcional da atividade e da vida da comunida­ de escolar. (Freinet 1973, p. 28)

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Desta maneira, a escola

deverá então adaptar não só as suas dependências, programas e horários, mas também os seus instrumentos de trabalho e técni­ cas, às conquistas essenciais do progresso na nossa época. (Freinet 1973, p. 28) Esta adaptação far-se-á sob o signo do equilíbrio, da harmonia a serviço da vida. Isso supõe uma educação mais do que nunca baseada na terra, na família, na tradição, no esforço perseverante dos homens que nos procederam construindo, em suma, o futuro no seio do presente. (Freinet 1973, pp. 29-30)

Freinet, ao propor transformações pedagógicas, é consciente de que a escola nunca está na vanguarda do progresso social (...); o seu desenvolvimento está demasiadamente condicionado pelo meio familiar, social e político para que se possa conceber para ela uma hipotética libertação autônoma. (Freinet 1973, p. 30) Além disso, as mudanças na escola vão

se esbarrar com os travões e hábitos rotineiros da escolástica; socialmente, tem contra ela todo o sistema de seleção, de compe­ tição, de exames, que continua a oferecer os melhores lugares às "cabeças cheias", em prejuízo dos "cérebros bem estruturados servidos por mãos experientes". (Freinet 1973, p. 27) A proposta de Freinet alentou um movimento pedagógico de alcance mundial, gerador de um rico manancial teórico-prático de expe­ riências educativas. Dizia, porém, Freinet, que "a experiência força-nos a uma maior humildade" (Freinet 1973, p. 30), a experiência tateante que, sendo sempre o esteio e o crivo de sua proposta, esteve aberta a ser comparada com "as visões teóricas de tantos investigadores" (Freinet 1973, p. 66).

Assim, de um lado, as análises críticas já feitas à Escola Nova podem nos permitir ver, na concepção educacional de Freinet, limites como a ênfase na metodologia de formação manual e intelectual do indivíduo, orientada por uma crença — relativamente ingênua — no

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progresso técnico como fator de garantia de uma organização social justa e segura. Com efeito, a adoção da proposta pedagógica de Freinet no âmbito de escolas de elite (e no Brasil o método Freinet conseguiu penetração quase que exclusivamente em escolas particulares) pode estar servindo prioritariamente à formação dos gestores de organizações estatais e empresariais, as quais reproduzem as relações de dominação e exploração capitalista (Fleuri 1992, pp. 52-54). Assim, o mundo construí­ do por esses agentes pode não ser "melhor do que aquele que deixamos desmoronar como um lamentável castelo de cartas" (Freinet 1973, p. 29), na última grande guerra mundial. E a ênfase na educação escolar volta­ da para o indivíduo pode não favorecer o surgimento e o incremento dos movimentos sociais capazes de promover alguma transformação efetiva na sociedade de classes.

De outro lado, as propostas construídas na prática pedagógica de Freinet confrontam-se com a estrutura escolar, reforçando elementos de uma revolução molecular na escola e na sociedade. E é o que tentaremos explicitar neste momento, à luz da teoria do poder e saber disciplinar elaborada por Michel Foucault. Concepção de saber-poder disciplinar em Michel Foucault Ao pesquisar o aparecimento histórico das ciências humanas, Foucault (em As palavras e as coisas, 1990) constata que elas são o produto de uma inter-relação de saberes,3 que revelam uma ordem interna, constitutiva do saber, a qual ele chama de épistémè.4 Para Foucault, em 3.

4.

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"Poderemos enunciar mais rigorosamente sua tese: as ciências empíricas e a filosofia podem explicar o aparecimento, na época da modernidade, desse conjunto de discursos denominado ciências humanas porque é com elas que o homem passa a desempenhar duas funções diferentes e complementares no âmbito do saber. Por um lado, é parte das coisas empíricas, na medida em que a vida, o trabalho e a linguagem são objetos — objetos das ciências empíricas — que manifestam uma atividade humana; por outro lado, o homem — na filosofia — aparece como fundamento, como aquilo que toma possível qualquer saber. O fato de o homem desempenhar duas funções no saber da modernidade, isto é, sua existência como coisa empírica e como fundamento filosófico, é chamado por Foucault de a priori histórico, e é ele que explica o aparecimento das ciências humanas, isto é, do homem, considerado não mais como objeto ou sujeito, mas como representação." (Machado 1982, pp. 124-125) "O que caracteriza a reflexão de Foucault em Les mots et les choses é especificamente

uma cultura e em dado momento só existe uma épistémè (daí seu aspecto de globalidade) e revela um a priori histórico5 (daí sua profundidade) que torna possíveis os diversos saberes e a própria ciência. Assim, a formação dos saberes e a relação entre eles devem ser buscadas não em nível dos enunciados6 que constituem um discurso.7 Ao buscar entender o porquê dos saberes, Foucault explica sua existência e suas transformações como dispositivos de relações de poder. Por intermédio de suas pesquisas sobre o nascimento da prisão e dos dispositivos de controle da sexualidade, Foucault vê delinearem-se formas locais e institucionais de exercício de poder diferentes do poder exercido pelo Estado. Trata-se de poderes moleculares e periféricos que, embora articulados com o aparelho de Estado, não foram absorvidos por este. Foucault identifica este tipo de poder como poder disciplinar?

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6.

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8.

a investigação de uma ordem interna constitutiva do saber. É então que se coloca a questão da épistémè. Épistémè não é sinônimo de saber; significa a existência necessária de uma ordem, de um princípio de ordenação histórica dos saberes anterior à ordenação do discurso estabelecida pelos critérios de cientificidade e dela dependente. A épistémè é a ordem específica do saber; é a configuração, a disposição que o saber assume em determinada época e que lhe confere uma positividade enquanto saber." (Machado 1982, pp. 148-149) "Com o termo a priori o que pretende Foucault é assinalar o elemento básico fundamental, a partir de que a épistémè é condição de possibilidade dos saberes de determinada época." (Machado 1982, p. 150) "Em suma, o enunciado é uma função que possibilita um conjunto de signos, formando unidade lógica ou gramatical, se relacionar com um domínio de objetos, receber um sujeito possível, se coordenar com outros enunciados e aparecer como um objeto, isto é, como materialidade repetível." (Machado 1982, p. 170) "Um discurso é um conjunto de enunciados que têm seus princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva. Trata-se de um conjunto finito, de um grupo limitado, circunscrito, de uma seqüência finita de signos verbais que foram efetivamente formulados. (...) O discurso é um conjunto de regras dado como sistema de relações. Essas relações constituem o discurso em seu volume próprio, em sua espessura, isto é, caracterizam-na como (...) prática discursiva." (Machado 1982, pp. 170-171) "Estes métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de 'disciplinas'. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo; nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tomaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. (...) O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tampouco a aprofundar sua sujeição, mas à

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A disciplina distribui os indivíduos no espaço, estabelece mecanis­ mos de controle da atividade, programa a evolução dos processos e articula coletivamente as atividades individuais. Utiliza recursos coercitivos como a vigilância, as sanções e os exames (cf. Foucault 1977, pp. 123-204). A distribuição dos indivíduos no espaço, mediante a cerca, o quadriculamento, a fila, forma um quadro real e ideal que permite identificar, classificar e controlar os indivíduos. O quadro é, assim, um processo de saber porque permite classificar e verificar relações. É uma técnica de poder porque permite controlar um conjunto de indivíduos.

O controle das atividades é feito mediante o horário que induz os indivíduos a se dedicarem e cumprirem fielmente o que foi predetermina­ do. Além disso, para obter maior eficácia e rapidez, a disciplina impõe uma relação entre um gesto e a atitude global do corpo, assim como entre o gesto e o objeto. Tal eficiência aumenta na medida em que tal manobra respeita e incorpora as exigências e o comportamento natural do corpo.

Além de esquadrinhar o espaço, de subdividir e recompor as atividades, a diciplina capitaliza o tempo e as energias dos indivíduos, de maneira que sejam susceptíveis de utilização e controle. E isto me­ diante processos: divisão da duração em segmentos, organização de seqüências, finalização de cada segmento por uma prova, estabelecendo-se séries temporais diferenciadas. Tais mecanismos que garantem a formação evolutiva do indivíduo constituem o exercício. As instituições disciplinares, ainda, articulam os indivíduos como um aparelho eficiente. Neste aparelho, o indivíduo torna-se um elemen­ to que se pode movimentar e articular com os outros. Da mesma forma, a série cronológica de uns deve se ajustar ao tempo dos outros, de modo que as forças individuais sejam aproveitadas ao máximo e combinadas num resultado ótimo. Por fim, esta meticulosa combinação exige um sistema preciso de comando, baseado em sinais definidos, que provo­ que imediatamente o comportamento desejado. Tais processos se reali­ zaram na tática. formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política de coerções que é um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe." (Foucault 1977, p. 126)

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A disciplina constitui-se, pois, num conjunto de mecanismos que esquadrinha o espaço, decompõe e recompõe as atividades para adequar os gestos com as atitudes e objetos, estabelece a seriação dos atos e acumu­ lação de forças, compõe as forças individuais sob comando centralizado.

O sucesso e o funcionamento do poder disciplinar devem-se ao uso de instrumentos simples como o olhar hierárquico,9 a sanção normalizadora1011 e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.11 Esses dispositivos constituem o tipo de poder disciplinar que caracteriza a estrutura e o funcionamento de instituições que tomam corpo a partir do século XVII, como a fábrica, a caserna, o hospital, o

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"O poder disciplinar (...) organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anônimo; pois se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede 'sustenta' o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade, funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um 'chefe', é o aparelho inteiro que produz 'poder' e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo." (Foulcault 1977, p. 158) "Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem à expiação, nem mesmo exatamente à repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto — que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a 'natureza' dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida 'valorizadora' a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traça o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal. A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, normaliza." (Foucault 1977, p. 163) "O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória." (Foucault 1977, p. 171)

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hospício, a prisão e, de modo particular, a escola. E, não obstante a sucessivas tentativas de reformas (seja na Revolução Francesa de 1789, seja na Revolu­ ção Comunista de 1917, ou nas inúmeras reformas políticas do pós-guerra, ou mesmo após a Revolução Cultural de 1968), essas instituições tendem a reproduzir os mesmos mecanismos que se busca superar. Recompõem relações hierárquicas e disciplinares, no jogo de forças estabelecido intra e interinstitucional, que formam indivíduos dóceis e produtivos. Todavia, as experiências de Freinet apontam, ainda que de manei­ ra limitada e focal, indivíduos de um novo tipo de organização, de caráter antidisciplinar, que propôs construir no âmbito da educação escolar.

A Pedagogia Freinet: Construção da resistência contra o poder disciplinar A proposta, elaborada por Freinet, de uma

nova orientação pedagógica e social traz em si uma harmonia nova que suscita uma ordem profunda e funcional, uma disciplina que é a própria ordem na organização da atividade e do trabalho, uma eficiência que resulta de uma racionalidade humana da vida escolar, todas as conquistas que, para além dos formalismos ultrapassados, concorrem para a formação harmoniosa dos indivíduos na renovada estrutura social. (Freinet 1973, pp. 27-28) Não se trata, pois, de rejeitar qualquer tipo de organização esco­ lar. Também não se nega a necessária autoridade do professor, ou a disci­ plina na escola.

Pelo contrário, (a escola) será a mais disciplinada, porque supe­ riormente organizada. O que terá desaparecido é efetivamente aquela disciplina formal exterior sem a qual a escola atual seria apenas caos e vazio. A disciplina da escola de amanhã será a expressão natural e a resultante da organização funcional da atividade e da vida da comunidade escolar. (Freinet 1973, p. 28)

A disciplina de que fala Freinet obviamente não se identifica — em sua formulação teórica — com a concepção explicitada por Foucault. Freinet refere-se explicitamente à disciplina formalista típica da escolás­ 202

tica, da escola tradicional, contra a qual se insurge decididamente. Todavia, na prática, defende uma nova disciplina, um novo tipo de orga­ nização, mais racional e mais humana, que efetivamente contrapõe-se aos mecanismos de poder disciplinar, identificados por Foucault.

A proposta de Freinet, que perspectiva a formação de pessoas produtivas (tal como o poder disciplinar), mas criativas (contrariamente ao poder disciplinar, que condiciona as pessoas à submissão), aponta formas de organização que rompem os mecanismos disciplinares. A organização disciplinar do espaço (mediante a cerca, o quadriculamento, a fila que transforma o coletivo num quadro vivo, totalmente observável e controlável) identifica-se ao auditorium-scriptorium da escola tradicional.12 Contra esse modelo funcional da escola, Freinet propõe que ela seja uma oficina de trabalho simultaneamente comunitário e especializa­ do, que exige uma nova estrutura arquitetural. Nesta, prioriza-se o meio natural,13 ao qual se articulam os edifícios. Na escola primária propõe-se um modelo arquitetural básico compondo uma sala comum, onde as crian­ ças poderão reunir-se para os trabalhos coletivos, com oficinas internas especializadas14 e oficinas externas especializadas (jardim, horta, pomar e a

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"A escola tradicional é um auditorium-scriptorium de que o anfiteatro das grandes escolas é apenas a forma suntuosa. Para este auditorium-scriptorium, a disposição mais favorável era uma única sala, decerto suficiente para sentar o grupo do efetivo escolar, mas não demasiado ampla para que a voz do professor não se perdesse e o seu olhar pudesse vigiar os mais afastados recantos. Não falemos do ponteiro que, outrora, devia, da secretária ao professor, chegar os cábulas lá do fundo. Esta sala não devia ser excessivamente aberta para o exterior, fato que afetaria a ressonância da voz doutoral e era susceptível de distrair os alunos — inconveniente corrigido pela elevação das janelas e opacidade dos vidros." (Freinet 1973, p. 71) "A natureza permanece sempre como o meio mais rico e aquele que se adapta às necessidades variáveis dos indivíduos. Não deve haver Escola maternal sem meio natural (...) [assim como] não poderá haver escola primária sem meio natural" (Freinet 1973, pp. 46 e 71). Para Freinet o meio natural na escola é mais importante do que os edifícios, que devem ser organizados em salas comuns, articuladas com oficinas exteriores especializadas. Por isso, os edifícios existentes devem ser remodelados, não servindo como desculpas para não fazê-lo, as dificuldades financeiras. Freinet concebe, numa escola primária, quatro oficinas para o trabalho manual de base (1. Trabalho nos campos. Criação de animais; 2. Serralheria e carpintaria; 3. Fiação, tecelagem, costura, cozinha, trabalho doméstico; 4. Construções, mecânica, comércio) e quatro oficinas de atividade socializada e intelectualizada (5. Prospecção, conhecimentos, documentação; 6. Experimentação; 7. Criação,

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criação de animais). Neste espaço escolar, o controle das atividades tende a ser assumido pelos grupos de alunos, em função de seus interesses e planos, subvertendo-se o mecanismo de vigilância hierárquica.15 Também o controle disciplinar da atividade, baseado no horário e no treinamento, é superado na medida em que se oferece

às crianças possibilidades de trabalho e não formas de domesti­ cação. Evitemos — recomenda Freinet — voltar à escolástica, trans­ formando o trabalho nestas oficinas em deveres consecutivos a certas lições metódicas, ou obrigando todas as crianças a receber altemadamente em cada uma destas oficinas uma iniciação que se julgaria indispensável. É raro que um indivíduo se interesse igualmente por diversas atividades manuais e que atinja em todas elas igual mestria. Este interesse, aliás, varia com a idade: varia essencialmente com a estação, com o tempo, com certas modas inicialmente impensáveis (...). A escola deve sentir e res­ peitar este interesse e este ritmo, mesmo quando eles não coinci­ dem com as normas pedagógicas que tínhamos previsto; devere­ mos apenas ajudá-la a ser bem-sucedida e a prosseguir resoluta­ mente em direção ao domínio de si própria e a uma superior capacidade. Estas recomendações têm mais importância do que se julga; se não forem respeitadas, estaremos apenas a realizar uma pré-aprendizagem mais ou menos prematura que poderia ter suas vantagens. Mas não realizaremos a educação pelo trabalho (Freinet 1973, p. 82) e... reforçando o disciplinamento! A superação da prática do "exercício" disciplinar (que capitaliza e classifica as energias do indivíduo de modo a se tomarem utilizáveis e

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expressão e comunicação gráficas; 8. Criação, expressão e comunicação artísticas). (Freinet 1973, pp. 84-90) "Adivinhamos a inquietação dos pedagogos: Como se fará a vigilância e que farão os alunos de uma aula quando o professor estiver na outra? O problema torna-se efetivamente insolúvel na escola tradicional onde o trabalho é função da vigilância e da autoridade. (...) As condições são felizmente outras nas escolas que trabalham segundo as nossas técnicas. É um fato atualmente indiscutível que quando os alunos se entregam a trabalhos que os interessam profundamente porque respondem às suas necessidades funcionais, a disciplina reduz-se à organização destes trabalhos e exige apenas um mínimo de vigilância que fica a cargo, na maior parte das vezes, da equipe ou do grupo. O professor deixa de ser o oficial do dia para se tomar o conselheiro e o assistente permanente." (Freinet 1973, p. 72)

controláveis), assim como da organização tática da escola como um apa­ relho (que articula as atividades individuais sob comandos padroniza­ dos), pode ser vislumbrada no trabalho pedagógico com que Freinet chama de complexos de interesses. Estes são suscitados pelos contatos diretos com o meio ambiente, por meio das oficinas na escola e do conhecimento experimental dos alunos. Entre as múltiplas motivações vitais, as crianças escolhem trabalhar alguns aspectos, de maneira arti­ culada com os colegas.

Na elaboração de um jornal (Freinet 1973, pp. 105-131), por exem­ plo, o grupo escolhe um dos textos produzidos por uma das crianças. A seguir, identifica jogos, trabalhos, conhecimentos, atividades possíveis de serem elaboradas. Cada um escolhe fazer o que mais lhe convier, traça um plano pessoal de trabalho e o articula com os dos colegas num plano geral. No desenvolvimento das atividades, cada um segue seu próprio ritmo e interage livremente com os colegas. Os trabalhos produ­ zidos são apresentados, discutidos, divulgados. As energias são, pois, capitalizadas em cada um e nos trabalhos realizados, mas não segundo um processo serial, classificatório, hierarquizante. A articulação coletiva é construída não de maneira padroniza­ da, mas integrando e valorizando criativamente as peculiaridades de cada um. Com isso, formam-se pessoas economicamente produtivas, mas, também, politicamente capazes de autonomia pessoal e coletiva.

Nesse contexto pedagógico, a vigilância panóptica (onde o vigi­ lante observa e controla a todos, sem ser controlado) é subvertida por práticas de observação e discussão participativa.16 A punição torna-se

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O jornal de parede, por exemplo, permite um "profundo exame da vida comunitária da escola durante a semana que passou. Este jornal é constituído por uma grande folha de 40 x 50 afixada na segunda-feira de manhã num canto especial da sala. O cabeçalho é ilustrado por dois alunos, designados em cada sábado. A própria folha está dividida em três grandes colunas tendo respectivamente por título: Criticamos... Felicitamos... Pedimos... Durante a semana, os alunos inscrevem neste jornal suas queixas, os erros ou as faltas que verificam, denunciam as insuficiências destes ou daqueles serviços ou organização. Inscrevem na terceira coluna as propostas ou os anseios que dizem respeito à vida da classe. Todas estas inscrições são assinadas — o anonimato seria aliás ineficaz, pois que a própria escrita era por si só reveladora. Este jornal deve sintetizar o conjunto das relações infantis em face do funcionamento sempre imperfeito do organismo Escola" (Freinet 1973, p. 94).

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geralmente inaplicável.17 E o sistema de exames tende a ser substituído por procedimentos de avaliação e auto-avaliação pelo plano de traba­ lho, onde se busca evitar a classificação, a competição e a submissão (Freinet 1973, pp. 138-141). Nas propostas pedagógicas que emergem da prática de Freinet pode­ mos identificar o confronto com os mecanismos disciplinares, na tentativa de se promover processos criativos e produtivos de educação escolar.

Todavia, elas não se reduzem a um conjunto de técnicas ou métodos pedagógicos inovadores a serem aplicados na escola. Nem se configuram como oposições aos mecanismos disciplinares, tomados um a um. Também não se configura apenas como uma proposta escolanovista, em oposição à educação tradicional (tal como o próprio Freinet, por vezes, dá a entender em seus escritos). O que Freinet apresenta como propostas de reforma da escola, entendida como adaptação às novas exigências da sociedade moderna e do desenvolvimento pessoal, pode estar revelando muito mais que um conjunto de procedimentos renovadores da escola. Talvez sejam indí­ cios de uma outra dimensão do jogo de forças que constitui a sociedade disciplinar: a da resistência ao poder disciplinar que atravessa não só a escola, mas todas as instituições sociais surgidas na sociedade industrial capitalista e burocrática.

Com efeito, a subversão dos mecanismos disciplinares de distri­ buição espacial, de controle das atividades, de programação e articula­ ção dos trabalhos, bem como as tentativas de se modificar os mecanis­ mos de vigilância, punição e exame, são expressão de uma outra corre­ lação de forças que se estabelece nos grupos e movimentos sociais, produzindo novos mecanismos que sustentem estas novas relações. Se entendermos, pois, as propostas metodológicas de Freinet como alguns mecanismos produzidos nas relações vivas que estabele17.

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"O secretariado da cooperativa propusera recentemente estabelecer um verdadeiro código prevendo, para cada grupo de delitos, uma punição correspondente. Essa tentativa revelou-se praticamente inaplicável. Na prática, como na família, não se deverá contar demasiado com as sanções para melhorar uma situação, seja ela qual for. A crítica coletiva, o reconhecimento das faltas, o sentimento comunitário, o desejo de melhorar mostram-se em geral suficientemente eficazes. A única sanção normal é geralmente reparar o mal feito...". (Freinet 1973, p. 96)

ceu com seus contemporâneos, no âmbito da prática escolar, compreen­ deremos claramente que o fundamental não está em repetir entre nós os procedimentos pedagógicos por ele desenvolvidos e sistematizados em sua época, nem acatar sua teoria como uma nova orientação ideológica. Seria ingenuidade pretender adotar a proposta pedagógica de Freinet, simplesmente mediante a construção ou adaptação dos edifícios e dos espaços escolares a estruturas de salas comuns e oficinas especia­ lizadas (interiores e exteriores), ou adaptando os horários, métodos e programas a uma dinâmica mais criativa e participativa. Pois estes mecanismos podem ser facilmente assimilados a uma estrutura discipli­ nar (que hierarquiza e submete os indivíduos), se as opções pessoais e a correlação de forças num determinado contexto favorecerem a hierar­ quização e sujeição nas relações institucionais. Da mesma forma que, numa instituição disciplinar, desenvolvem-se relações e opções de resis­ tência, que apontam uma outra forma de organização e instigam mu­ danças estruturais. O mais importante, portanto, é assumir criativamente as relações vivas, enfrentar corajosamente o jogo de forças de que participamos, criando e recriando, passo a passo, os meios que sustentem relações de autonomia e de reciprocidade e, ao mesmo tempo, neutralizando os que produzem isolamento e submissão.

Desta maneira, Freinet será para nós mais um parceiro valioso com quem podemos trocar experiências e discutir procedimentos para fazer avançar nossas lutas e concretizar nossas utopias. Bibliografia FLEURI, R.M.

Educar, para quê? 6ª ed., São Paulo, Cortez/Edufu, 1992,108 p.

FOUCAULT, M.

Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.

. As palavras e as coisas. 5ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 1990. FREINET, C.

Para uma escola do povo. Lisboa, Presença, 1973.

MACHADO, R.

Ciência e saber. Rio de Janeiro, Graal, 1982.

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PEDAGOGIA

FREINET Esta coletânea aborda grandes temas que orientam a Pedagogia Freinet: a livre expressão, a vida cooperati­ va. a afetividade, o trabalho, a correspondência... E cada um dos textos apresentados aqui mostrará ao leitor que uma classe Freinet é um lugar de trabalho, uma pequena sociedade em que se propicia a liberda­ de de expressão e a vida; mostrará, também, que todo educador Freinet é um pesquisador prático e dedicado ao seu trabalho.

Célestin Freinet, um dos mais importantes educadores da atualidade, nasceu em Gars (França), em 1896; sempre em busca de que a escola fosse ativa e a educação, plena de vida, ele não se limitou a construir uma pedagogia nova e popular, mas também a praticou.

O objetivo desta obra é auxiliar a todos aqueles que acompanham o movimento Freinet, no sentido de uma atualização sobre a teoria e a prática dessa proposta pedagógica.

P A P I R U S

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