Nascimento de uma Pedagogia Popular - Métodos Freinet

Este livro contém a história dos factos, dos actos autênticos realizados por uma equipa de professores primários, da bas

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Nascimento de uma Pedagogia Popular - Métodos Freinet

Table of contents :
Destino da pedagogia Freinet..................................................... 11
Cap. I — Bar-sur-Loup (1920-1928) ......................................... 15
Uma classe como tantas outras.............................................18
Cap. II—Um instrumento que apoia a pedagogia: a empresa ............................................................................. 37
Nascimento de uma técnica pedagógica ... 44
O pequeno discípulo ............................................................ 50
Material escolar .................................................................. 55
Viagem à URSS .................................................................. 57
Novos adeptos ..................................................................... 59
Na escola de Gutenberg ...................................................... 61
A união com os adeptos ...................................................... 66
Finalmente uma visita há muito esperada ........................... 69
O espírito de equipa.............................................................. 72
O primeiro Congresso. Tours (1927)................................... 80
Intercâmbio escolar (França) .............................................. 81
O segundo Congresso da Tipografia na Escola (Paris) ................................................................................ 88
Cap. III — Saint-Paul (1928-1929) ........................................... 91
Dificuldades escolares ........................................................ 91
Alarga-se o horizonte .......................................................... 98
Um instrumento decisivo: a imprensa .............................. 112
Pedagogia cooperativa ...................................................... 116
Nascimento do ficheiro escolar ........................................ 122
O Congresso de Besançon (1929) ..................................... 128
Cap. IV — Saint-Paul (1929-1930) ........................................... 131
Congresso de Marselha (1930) ........................................... 160
Cap. V — Saint-Paul (1930-1931) ............................................ 163
Congresso de Limoges (1931) ............................................ 180
Cap. VI — Saint-Paul (1931-1938) ........................................... 181
O Congresso internacional da Educação Nova de Nice ..........................213
Mais uma noite .................................................................. 225
Chega a Páscoa .................................................................. 248
Uma patética reunião com os pais dos alunos.................... 249
Cap. VII — 1933-1934.............................................................. 265
No estrangeiro ................................................................... 268
Mais uma vez, tudo a postos!............................................ 269
Em busca da verdade pedagógica ..................................... 270
A acção junto dos pais........................................................ 280
Pedagogia cooperativa........................................................ 282
«L'Educateur Prolétarien» ................................................. 287
Congresso de Montpellier (1934) ..................................... 292
Cap. vni — Vence (1934-1935) ................................................ 295
Articular a escola com o meio ........................................... 295
Pedagogia cooperativa........................................................ 301
Cap. IX — Vence (1985-1936-1937) ....................................... 309
A Frente da Infância .......................................................... 309
A Educação Nova deve ser um movimento de massas ........................................................................ 320
As relações da CEL com os sindicatos.............................. 320
União da CEL com o mundo do trabalho........................ 330
Relações da CEL com o Grupo Francês da Educação Nova.................................................................... 335
Por um novo plano de estudo francês ............................... 339
Resumo à reforma do ensino.............................................. 349
Por um novo CEP............................................................... 352
A influência da CEL no estrangeiro................................... 359
Cap. X — Rumo a um novo plano de estudos francês ............. 365
A extensão do movimento CEL......................................... 375
Primeiros delegados departamentais ................................. 379
Mais projectos ................................................................... 379
Livre expressão da criança ................................................ 402
Cap. XI — Congresso de Grenoble (Abril de 1939) ............... 409
O dicionário CEL .............................................................. 418
Pedagogia e psicologia....................................................... 422
Freinet-Decroly ................................................................. 429
A escola ao serviço do ideal democrático....................... 439
Cap. XII — A provação da guerra (1939-1945)...................... 445
O campo de concentração.................................................. 449
A guerra.............................................................................. 452
A redução da actividade da CEL ...................................... 454
O amadurecimento pedagógico ........................................ 455
Durante a libertação .......................................................... 460
Recomeçam as dificuldades .............................................. 463
Um grande movimento de massas .................................... 465
A Escola Moderna Francesa.............................................. 468
Os pioneiros continuam..................................................... 471

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NASCIMENTO DE UMA PEDAGOGIA POPULAR

BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS PEDAGÓGICAS DIRIGIDA POR SÉRGIO NIZA Técnico do Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógica

ÉLISE FREINET

NASCIMENTO DE UMA PEDAGOGIA POPULAR MÉTODOS FREINET

Editorial Estampa

Título do original Naissance d’une Pédagogie Populaire (Méthodes Freinet)

Tradução de Rosália Cruz Capa de Soares Rocha

© Librairie François Maspero, 1969 Todos os direitos reservados: École Moderne Française — Cannes Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1978 para a língua portuguesa

ÍNDICE

Destino da pedagogia Freinet..................................................... 11 Cap. I — Bar-sur-Loup (1920-1928) ......................................... 15 Uma classe como tantas outras............................................. 18 Cap. II—Um instrumento que apoia a pedagogia: a empresa .............................................................................37 Nascimento de uma técnica pedagógica ... 44 O pequeno discípulo ............................................................ 50 Material escolar ................................................................. 55 Viagem à URSS .................................................................. 57 Novos adeptos ..................................................................... 59 Na escola de Gutenberg ...................................................... 61 A união com os adeptos ...................................................... 66 Finalmente uma visita há muito esperada ........................... 69 O espírito de equipa.............................................................. 72 O primeiro Congresso. Tours (1927)................................... 80 Intercâmbio escolar (França) .............................................. 81 O segundo Congresso da Tipografia na Escola (Paris) ................................................................................ 88 Cap. III — Saint-Paul (1928-1929) ........................................... 91 Dificuldades escolares ........................................................ 91 Alarga-se o horizonte .......................................................... 98 Um instrumento decisivo: a imprensa .............................. 112 Pedagogia cooperativa ...................................................... 116 Nascimento do ficheiro escolar ........................................ 122 O Congresso de Besançon (1929) ..................................... 128 Cap. IV — Saint-Paul (1929-1930) ........................................... 131 Congresso de Marselha (1930) ........................................... 160 Cap. V — Saint-Paul (1930-1931) ............................................ 163 Congresso de Limoges (1931) ............................................ 180 Cap. VI — Saint-Paul (1931-1938) ........................................... 181 O Congresso internacional da Educação Nova de Nice ..............................................................................213

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Mais uma noite .................................................................. 225 Chega a Páscoa .................................................................. 248 Uma patética reunião com os pais dos alunos.................... 249 Cap. VII — 1933-1934.............................................................. 265 No estrangeiro ................................................................... 268 Mais uma vez, tudo a postos!............................................ 269 Em busca da verdade pedagógica ..................................... 270 A acção junto dos pais........................................................ 280 Pedagogia cooperativa........................................................ 282 «L'Educateur Prolétarien» ................................................. 287 Congresso de Montpellier (1934) ..................................... 292 Cap. vni — Vence (1934-1935) ................................................ 295 Articular a escola com o meio ........................................... 295 Pedagogia cooperativa........................................................ 301 Cap. IX — Vence (1985-1936-1937) ....................................... 309 A Frente da Infância .......................................................... 309 A Educação Nova deve ser um movimento de massas ....................................................................... 320 As relações da CEL com os sindicatos.............................. 320 União da CEL com o mundo do trabalho........................ 330 Relações da CEL com o Grupo Francês da Educa­ ção Nova.................................................................... 335 Por um novo plano de estudo francês ............................... 339 Resumo à reforma do ensino.............................................. 349 Por um novo CEP............................................................... 352 A influência da CEL no estrangeiro................................... 359 Cap. X — Rumo a um novo plano de estudos francês ............. 365 A extensão do movimento CEL......................................... 375 Primeiros delegados departamentais ................................. 379 Mais projectos ................................................................... 379 Livre expressão da criança ................................................ 402 Cap. XI — Congresso de Grenoble (Abril de 1939) ............... 409 O dicionário CEL .............................................................. 418 Pedagogia e psicologia....................................................... 422 Freinet-Decroly ................................................................. 429 A escola ao serviço do ideal democrático....................... 439 Cap. XII — A provação da guerra (1939-1945)...................... O campo de concentração.................................................. A guerra.............................................................................. A redução da actividade da CEL ...................................... O amadurecimento pedagógico ........................................ Durante a libertação .......................................................... Recomeçam as dificuldades .............................................. Um grande movimento de massas .................................... A Escola Moderna Francesa.............................................. Os pioneiros continuam.....................................................

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Este livro contém a história dos factos, dos actos autênticos realizados por uma equipa de professores primá­ rios, da base, organizados à laia de franco-atiradores, à margem da ortodoxia do ensino, e trabalhando contra a corrente, muitas vezes na clandestinidade, pela renovação da escola do povo. No meio das duras realidades das desigualdades sociais e das incompreensões, todos os resultados foram alcançados à custa de uma luta tenaz que passou por todos os riscos e perigos por que passam todos os inovadores. Aparentemente, trata-se apenas de promover uma peda­ gogia elementar destinada às classes elementares de uma escola inexoravelmente votada ao seu destino primário. Mas, reparando melhor, verificaremos que este termo ele­ mentar já contém a solidez dos elementos primordiais, a que poderemos chamar acontecimentos, matéria-prima das construções do futuro. Quando se chega sem desfalecimentos ao fim de uma longa caminhada de perto de meio século, é normal que o primeiro da fila tome a palavra pela última vez para fazer o ponto da grande aventura. E isto para delinear o rumo do passado e tentar prever a trajectória que lhe está reser­ vada no futuro, no complexo da história do povo, para reafirmar a necessidade de se tomar seriamente em consi­ deração os trabalhos dos investigadores que estendem as suas pesquisas a domínios ainda só parcialmente explorados.

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Numa altura em que nenhum espirito enciclopédico conse­ guiría abranger a totalidade das ciências, os práticos podem abrir, no amontoado das ideias, os caminhos para novas ciências, as quais, na medida em que ensinam a pensar livremente, encerram em si mesmas as promessas de uma revolução filosófica. É esse o significado das poucas páginas que Freinet escreveu à maneira de um testamento espiritual, pouco antes de passar o facho àqueles que são dignos de o em­ punhar. Élise FREINET.

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DESTINO DA PEDAGOGIA FREINET

É óbvio que é um destino fora de série. Pela primeira vez na história da pedagogia foram os seus próprios utentes, neste caso os professores primários, que tomaram em mãos o melhoramento das suas condições de trabalho e que, em consequência disso, à luz da sua própria experiência, tiveram a ousadia de reconsiderar os seus métodos e as suas técnicas educativas. Daí resultaram iniciativas que revolucionaram as concepções correntes da pedagogia e da psicologia. E é isso que os que ficaram para trás não conseguem conceber. Depois de um longo amadurecimento, fruto de mais de quarenta anos de experiências, hoje em dia as nossas técnicas são evocadas sempre que se encara objectivamente a situação problemática em que se encontra a pedagogia contemporânea e a necessidade urgente de se recuperar um atraso que ameaça comprometer para sempre a educação democrática. A nossa obstinação em defender o espírito libertador das nossas técnicas e em condenar ao mesmo tempo o embrutecimento da escolástica já conseguiu fazer com que hoje se abrisse uma brecha. Oficiosamente, fora da escola, e mesmo oficialmente, ao nível dos responsáveis pelos pro­ blemas pedagógicos, levanta-se a questão do predomínio das aquisições técnicas sobre os elementos culturais.

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Ora estas idéias não nasceram —nem podiam nascer — de especulações teóricas sobre os dados estéreis de um passado condenado. Tomaram vulto, porque pela primeira vez na pedagogia mundial nós fornecemos os utensílios e as técnicas que possibilitam novas formas de trabalho, melhor adaptadas ao meio em que vivemos: actualmente é possível um progresso técnico em todas as escolas. Infelizmente não somos muito apoiados no desenvolvi­ mento do nosso trabalho. Por razões diversas, que talvez valesse a pena analisar, a nossa experiência decorre num período de surpreendente vazio pedagógico nacional e internacional. Há trinta anos apenas, a nossa pedagogia, se ela já tivesse tomado forma., ter-se-ia confrontado com uma quinzena de grandes psicó­ logos e pedagogos que eram a honra e a promessa de uma época. Decroly e os seus centros de interesse, Maria Montessori e as suas inovações relativas à primeira infância, Cousinet e o seu trabalho de grupo, Ferrière e a sua Escola Activa, Pierre Bovet, Claparède e Dottrens da Escola de Genebra, Miss Pankurst e Washburne nos EUA, não esquecendo John Dewey, o teorizador de uma nova concepção da escola, Wallon, Piaget, Dalcroze, Freud, Paul Gheel, com o prodigioso cortejo dos grandes pensadores que nessa época seguiam de perto os nossos preparativos para a arrancada: Romain Rolland, Barbusse, Jean-Richard Bloch, Gandhi, Gorki, Tagore... Como e par que razão se apagou subitamente o fogo devorador que nos encorajava e nos alimentava? E porque se reduziu a inspiração desses prestigiosos investigadores da teoria psicológica e pedagógica? Teremos talvez de procurar uma explicação no facto de as novas gerações se terem dado conta que era inútil seguir os rumos do passado numa altura em que nem havia sequer uma idéia sobre os rumos do futuro? Ou seria por ter abarcado o problema educativo no seu conjunto e por um novo ângulo, segundo dados insuspeitados, que só a Pedagogia Freinet, nas perspectivas actuais, comporia esperanças de renovação? É incontestavelmente pelo facto de termos partido da base e de termos tropeçado em todos os obstáculos de uma

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prática escolar rude e laboriosa que agora nos podemos encaminhar para uma nova pedagogia de massas, apresen­ tando uma nova maneira de a abordar. Nenhum dos nossos pioneiros partiu de início, com uma classe bem equipada, empenhando-se embora em respeitar o novo processo e opondo-se absolutamente ao que até então tínhamos condenado. Não arrancámos com a própria miséria das nossas turmas, com directores e colegas que nos olhavam como se fôssemos uns loucos ou uns iluminados ao verem-nos queimar ostensivamente todos os seus ídolos, com inspectores que se perguntavam sempre — reconheçamos que com uma certa razão— se tinham o direito de nos deixar fazer «as nossas loucuras» as nossas turmas públicas, com pais que nem sequer imaginavam que a escola pudesse ser criticada ou melhorada e que desconfiavam de todas as nossas ino­ vações. Isto é o mesmo que dizer que, pela força dos factos, só prudente e progressivamente conseguimos introduzir as nossas criações na escola, compensando os possíveis perigos através de um contributo pessoal suplementar, o que constitui o aspecto verdadeiramente heróico deste empreendimento. Partíamos baseados em ideias simples e contavamos com uma aparelhagem ainda rudimentar: uma imprensa que atribuía o lugar de honra ao texto livre, que de início nada mais era que um texto livre, uma correspondência que logo adquiriu novas dimensões ao ser aprovada por todos, fichei­ ros autocorrrectivos feitos por nós, desenhos livres em bo­ cados de papel, gravura em cartão molhado... Foi assim que por meio de um lento ensaio experimental, que nunca comprometeu a escola nem o êxito dos exames, conseguimos construir o complexo edifício que existe hoje e que repre­ senta de facto a própria materialização de uma renovação do ensino. Mas a renovação escolar pressupõe uma reconsideração a fundo da pedagogia, uma mudança radical das técnicas de trabalho e de vida, enfim, uma reciclagem, para em­ pregarmos um termo muito na moda, sem a qual a reforma da escola continuará a ser uma veleidade e uma ilusão. Com efeito, não era de uma simples reciclagem técnica que se tratava. Se bastasse mudar de manual ou de repensar

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a forma das lições, a oposição dos professores só poderia ser formal e passageira. Mas é todo o conceito de aprendizagem que se tem de alterar. Tem de se reconsiderar tudo. Idéias muito antigas e solidamente assentes na tradição e nos livros autorizados estão desacreditadas a partir de agora. No nosso esforço iconoclasta, o exemplo audacioso das ma­ temáticas modernas deve constituir para nós uma fonte de coragem. Mas isso exige obreiros com um espirito livre, capazes de provocar o aparecimento daquilo que deve seguirse e que de facto se há-de seguir. Esses espíritos livres, havemos de os encontrar neste mundo de trabalho em que mergulha a nossa escola oficial, entre os intelectuais, os artistas, os técnicos das empresas. Para as justificações que se impõem, precisamos de ter ao nosso lado psicólogos, professores de todos os graus, prontos a estudarem do ponto de vista psicológico e pedagógico os novos problemas levantados pelas nossas técnicas: o da criação em todos os domínios, o da permanente descoberta e, por conseguinte, o da exaltação da imaginação, o dos processos de aprendizagem, em relação aos quais apresenta­ mos a nossa teoria do Ensaio experimental; os que dizem respeito ao lugar da criança e do adolescente na nova socie­ dade e, portanto, na escola; o do possível papel das técnicas audiovisuais no âmbito de uma pedagogia eficiente, o da incidência dos filmes, da TV, de todas as manifestações da arte. Temos a vantagem de apresentar uma teoria psicológica e pedagógica coerente, fundada numa experiência concludente. É necessário que os educadores, os estudantes e os pais mais perspicazes se compenetrem do impasse em que a escola agoniza e da possibilidade de o ultrapassar mediante uma acção que esteja à medida da nossa época dinâmica. É for­ çoso, custe o que custar, romper a barreira de silêncio que a imprensa, as revistas e os livros erguem aos problemas da educação, no entanto tão vitais. O que há de valor mais precioso do que o futuro da criança? Célestin FREINET.

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CAPÍTULO I

BAR-SURLOUP (1920-1928)

A 1 de Janeiro de 1920, Freinet era nomeado professor adjunto para uma escola de duas classes em Bar-sur-Loup (Alpes-Marítimos). Mais do que qualquer outro, ele era um humilde prin­ cipiante na carreira docente; acompanhava-o na sua bagagem a maleta de oficial da guerra de 14-18, bem como uma certa lassidão desiludida, peculiar aos gravemente feridos na guerra e que se sabem destinados ao repouso e à morte lenta. Arrastara-se durante quatro anos pelos hospitais numa demorada convalescença. — Só lhe podemos receitar uma coisa, meu jovem, uma cadeira de repouso à beira dos pinheiros! Foi contra essa sentença irremediável que ele, num as­ somo de energia, se insurgiu: escapar à imobilidade, ao desespero, à solidão! Trabalhar! Ser o artífice da profissão que escolhera: professor primário. Vinha pôr-se à prova em Bar-sur-Loup.

★ A sala de aula em que Freinet entra pela primera vez é uma sala de aula tradicional nas escolas oficiais: carteiras, dispostas em filas, estrado para o professor, cabides pregados na parede, quadro preto num cavalete... As janelas dão

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para a praça rústica do velho castelo, junto do qual há uma fonte rumorejante, à sombra de um grande plátano, e são tão altas que desafiam a curiosidade das crianças. A todo o comprimento das paredes cinzentas, alguns mapas de França, quadros murais com o sistema métrico, exercícios de leitura e, a um canto, um ábaco já sem cor, única atracção deste mobiliário poeirento e tradicional. O que mais impressiona Freinet é a presença efectiva das crianças, miúdos de cinco a oito anos, simultaneamente diferentes e parecidos, formando um bloco, como se fossem um rebanho dócil agitado por remoinhos, logo se desinte­ grando, disperso através de misteriosos individualismos. Sente uma espécie de receio pudico de se aproximar deles, porque até agora nunca teve contacto com uma turma. Arrancado à Escola Normal já depois de ter concluído o segundo ano, pela ordem de mobilização, não recebeu a iniciação peda­ gógica na Escola anexa ou nas turmas da cidade, que cos­ tuma ser dada aos professores-alunos do terceiro ano. Na falta da experiência e da teoria pedagógica, traz apenas um profundo respeito pela criança e também o faro do pastor, o instinto que avalia e calcula as cabeças e o rebanho. É uma recordação longínqua, que vem dos seus tempos de pastor, na Provença. É só com estas riquezas que ele terá de se tomar num educador, tendo ainda de contar com a sua falta de saúde, para enfrentar os riscos de inevitáveis fracassos. Felizmente, o Director compreende imediatamente as suas apreensões e o seu acanhamento. Com toda a esponta­ neidade, vai-lhe prestando diariamente o apoio da sua experiência amiga e da sua colaboração paternal. Muito bom homem, de resto, este Director era do género do professor-camponês de antigamente, repartido igualmente pelos seus campos e pela sua escola, tão preocupado com o rendimento de uns como da outra. Logo que ouvia o aviso do relógio do campanário da vila, largava o alvião, ou o burro, tirava do bolso, precipitadamente, o colarinho postiço e a gravata, que ajustava conscienciosamente, como sinais essenciais da sua majestade educativa. Vinha dar a sua apitadela, muito grave, e punha os alunos das duas classes na forma e assim começavam as aulas, de uma maneira

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ordenada, silenciosa, militarista mas não ao extremo, apenas o indispensável, para transmitir a impressão da indispensável autoridade do Mestre. Para cumprir o melhor possível as suas funções de professor primário, não tinha este homem honesto e des­ pretensioso nenhum grave problema quanto a técnica ou a métodos. Tinha os seus métodos ou, melhor, os processos correntes, que lhe permitiam conduzir com êxito a maioria dos alunos ao diploma e, para ele, essa era a prova mais evidente da eficiência do seu ensino. Conhecia, aliás, e sentia-se na obrigação de os ensinar a Freinet, todos os truques, os mais variados, relativos à disciplina e ao tra­ balho, os quais, juntamente com os pais, são os agentes da segurança e da tranquilidade na escola. Também sabia, muito embora sem servilismo, lisonjear o Inspecter, respei­ tar-lhe os hábitos, alimentar-lhe um tudo-nada as manias e ter com ele umas relações marcadas de correcção e de deferência, sem cair em excessos de subserviência. Nas horas de recreio, enquanto passeavam para cá e para lá, no meio da torrente barulhenta das crianças à solta, achava-se no dever de falar ao novo adjunto sobre a sua expe­ riência, pensando que desse modo facilitava o trabalho do jovem principiante, além do mais doente, cuja boa vontade estava constantemente a ser posta em causa pelas suas limi­ tadíssimas resistências físicas. Então, para o encorajar huma­ namente, com aquela sua típica necessidade de meridional de transformar o riso no melhor argumento das demons­ trações, contava-lhe com imensa graça as múltiplas ocor­ rências da sua já longa carreira. — Oh! Sabe, não devemos pensar que os Inspectores se dão sempre conta do nível dos nossos alunos e dos nossos próprios esforços. Recordo-me de uma inspecção que me impressionou de uma maneira muito especial. Para dizer a verdade, até me teria desencorajado, se, por outro lado, não me tivesse dado oportunidade de me divertir: tinha mais ou menos a sua idade e estava na sua aula, onde, tal como você, fazia o que podia... Um dia, chega o Inspecter: preparava-me eu para dar uma lição sobre o papel... Não paro um instante, faço-os tocar em papel, em cartão, amar­ roto-o, deito-lhe fogo..., enfim, sei lá, saio-me lindamente

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e os alunos bebiam-me as palavras. Mas quando acabei a explicação, o Inspecter repara em dois alunos. O seu olhar vago diz bem que a lição é uma das suas menores preo­ cupações: — Tu, aí, diz lá: o papel é pesado? —. Ah! ah! ah!.— responde o interrogado a rir, com um ar manhoso. Tinha logo ido acertar no Joseph, o idiota da aldeia. — Olha, tu, aí, que estás a armar em esperto! Diz lá, o papel arde? — A grande campana faz bum! (o grande sino faz bum!) Quem tinha a palavra, desta vez, era um pateta, o tocador de sinos. E aqui tem como o Inspector, avaliando a turma pelos disparates destes dois pobres de espírito, conclui pela minha incompetência pedagógica... Mas isto, é claro, é uma história de inspectores de há mais de cinquenta anos...

Uma classe como tantas outras...

— Uuuu! Olhem para o professor, que branquinho! Um doente pulmonar não se adapta muito bem ao ar viciado de uma classe de trinta e cinco alunos, com os seus indefiníveis cheiros a mofo, o veneno lento das nossas escolas proletárias, nem ao pó fino e denso que se levanta da poeira dos sapatos enlameados, do soalho mal varrido, com o vento que redemoinha no corredor da escola. Exte­ nuava-o falar durante uns minutos nesta atmosfera viciada; a curto prazo, havia a ameaça de paralisia torácica e da síncope. Quisesse ou não, lá tinha de ir bater à porta da frente, com o sinal combinado, que dava a entender ao Director que o seu adjunto era obrigado a suspender as aulas para tomar fôlego. Depois era a imobilidade de morte no divã e o quotidiano desespero de um jovem ser desejoso de viver... — Não seja tão teimoso — dizia o bondoso médico da aldeia. — Pegue em si e volte para a sua aldeia, para des­ cansar tranquilamente em paz e sossego. Sabe perfeitamente

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que não se vai aguentar muito tempo nesta sagrada pro­ fissão... Pois ele teimou. E como não podia gozar nenhuma das alegrias da vigorosa juventude, esforçou-se por achar dentro de si próprio razões para viver: não se deixou dispersar numa compreensão superficial das coisas—foi muito mais longe. A imobilidade a que estava condenado ensinou-lhe uma certa maneira de pensar, uma maneira exigente de se apoderar da realidade, de a dissociar e de a reconstruir sob o ângulo do seu saudável bom senso aldeão, que até agora constituía a sua única riqueza intelectual. A sua dis­ posição de espírito orientou-o muito naturalmente para o modo de pensar marxista: leu Marx, Lénine, e, dominado pelo dinamismo de um pensamento em movimento, irá acordando nele lentamente um tremendo poder de iniciativa, que mais tarde irá suscitar tantos entusiasmos e também tantas desconfianças. Mas é o que acontece a todos os inovadores. A criança que está diante do jovem professor primário não é apenas o aluno que ele tem de ensinar a 1er; é o filho do camponês e da lavadeira, é o filho dos campos e do ribeiro, a planta bravia da quinta longínqua, a criança misto de poeta e de pensador, que apenas em seus isola­ mentos se recria. E é porque, por detrás de cada rosto, o educador que se desconhece distingue uma alma e um cenário, que ele é capaz de atribuir o verdadeiro valor à personalidade infantil e torná-la objecto das suas preocupa­ ções de ordem intelectual e do seu afecto... Era esse o caminho para o êxito, a tábua de salvação, que ia trans­ formar a provação de Bar-sur-Loup num êxito, apesar da doença e da ignorância pedagógica do professor. No seu livro de notas, que veio substituir o diário de guerra, Freinet anota todos os dias as observações originais dos seus miúdos, os termos infantis plenos de poesia, os gestos expressivos, os actos espontâneos, enfim, tudo o que no comportamento de uma criança tem o valor instintivo dos mecanismos adaptados. Na página da frente estão transcritas as observações que traduzem as falhas, os insucessos, as quebras de equilíbrio, todas as discordâncias manifestadas através do nervosismo da criança. Assim, nesta alternância

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do positivo e do negativo, consegue obter uma noção bas­ tante exacta da personalidade de cada uma das crianças. Num plano mais sensível e literário, Freinet compraz-se em desenhar os perfis dos alunos. Se folharmos hoje o caderno amarelecido em que cada aluno tinha a sua página, é-nos fácil ter uma imagem precisa da turma que lhe estava confiada. Nessa turma há alguns alunos-modelo, asseados, orde­ nados, atentos e aplicados, que constituem um elemento de ordem e de equilíbrio da comunidade escolar. Curiosos e ávidos de tudo o que seja novidade, compreendem as explicações antes de se ter chegado ao fim e a sua mente regista todos os conhecimentos que passam ao seu alcance, displicentemente e sem esforços. Na sua grande maioria, a turma é constituída pela média anônima e estável das crianças que estão a meio caminho da inteligência e da preguiça mental. Rostos parados ou instáveis, cabelos desordenados, roupas variadas que não dão umas com as outras, e acima dessa turbulência de vestuário e de palavras, espíritos, ora esquivos, ora curiosos, sempre à procura de questões e de brigas. Resta a parte mais desanimadora: os deficientes mentais e os anormais. São uns cinco ou seis e todos os dias põem problemas insolúveis à turma. Evoquemo-los também através dos retratos que o professor deles traçou, porque mais do que todos os outros alunos, eles serão objecto dos cuidados atentos do educador e estarão, portanto, na origem da renovação pedagógica que se irá instalando pouco a pouco na modesta escola de Bar-sur-Loup. Joseph, o amigo dos bichos, o refractário incorrigível àquele mínimo de cultura em que o querem iniciar, vive só com os seus gatos, com os seus cães, ou, conforme as estações, com os besouros, os caracóis e as cigarras que lhe enchem os bolsos. Vestindo uma camisa velha, umas calças disformes atadas na cintura com um cordel, de pés descalços no Verão e com uns sapatos velhos apanhados algures no Inverno, este Murillo em miniatura domina a classe com um prestígio todo ele espontâneo e natural. Quando se põe a olhar com aqueles seus olhos em brasa, a sua verdade é

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de tal maneira persuasiva que ele se impõe logo à primeira, como um pequeno Drac lançando os seus sortilégios. Honoré, o liliputiano, chega devagar de manhã, arras­ tando os sapatos pesados e mal apertados, enfiado num sobretudo que lhe chega até às orelhas, com umas mangas imensas que lhe tapam as pontas dos deditos. Nunca chega a desembaraçar-se desse montão de pano que envolve o seu corpo frágil e lhe dá um andar meio divertido de ma­ caquinho de feira. Nunca se chegará a saber se essa apatia que o domina e que o faz chegar sempre atrasado, que o amarra ao banco quando os outros se lançam para a saída, é um sinal manifesto de uma deficiência do seu pequeno organismo necessitado ou se é simplesmente o estorvo per­ manente do seu incrível casaco. Faroppa, com um olhar alucinante num rosto transtor­ nado, chega da sua aldeia longínqua, de manhã, já aterrori­ zado com a ideia de que vai chegar atrasado. A pergunta mais insignificante põe-no numa agitação tal, que entra num gaguejar sem nexo e não consegue articular meia dúzia de palavras compreensíveis. Os dois pequenos estanhadores, com a cara e as roupas todas negros, envoltos numa camada de carvão tão espessa, que não se lhes consegue ver o rosto, formam um par inseparável. De mãos dadas, ombro com ombro, submetem-se em bloco às ordens da escola, de tal modo que, se nos dirigimos a um, logo vemos o outro reagir de acordo com um pensamento comum. Só uma coisa os domina: o desejo de grandes viagens pelas estradas, na «roulotte», ao passo da mula. Estão cá só para marcar presença; e sempre que a sua inteligência desperta, isso deve-se a uma simples associação de ideias, que já os terá projectado, em pensa­ mento, para a bela aventura ambulante do estanhador. E será no meio desse sonho, de que eles necessitam como de um alimento, que irá nascer alguns anos mais tarde um dos primeiros números das nossas «Enfantines»: «Os dois pequenos estanhadores». A mais digna de lástima de todas estas crianças levemente anormais é seguramente Mansuy, o solitário. Dominado pela sua instabilidade agitada e susceptível, prejudicado por uma miopia de toupeira, tem sempre a sensação de

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estar rodeado de má vontade e de provocações, e por tudo e por nada se atira para a frente, de unhas em riste, carregando sobre o adversário. Chega todos os dias, com um cestinho na mão, em que baloiçam um naco de pão com péssimo aspecto, um punhado de azeitonas e um talo de cebola para a refeição do meio-dia. — Mangia cebo! (papa-cebola!) —gritam-lhe os implicativos— o que é que tu comeste hoje? Ele, louco de raiva, precipita-se para os insultadores da sua miséria, de garras encurvadas, dentes cerrados, pronto a morder... Mas, às vezes, milagre! o cestinho pen­ durado lá no seu prego enche-se de riquezas sozinho... E ao meio-dia, aos olhos de todos, Mansuy desdobra com deli­ cadeza e aparato o chocolate recheado, a bolacha folhada ou o naco de queijo, que estavam enrolados num lindo papel de prata, que ele desdobra, alisa com todo o cuidado, fazendo desaparecer as pregas, e guarda, como se fosse uma relíquia, nos seus livros todos estragados que ostentam umas capas imundas. Era por serem assim tão humanas, atraentes até nas suas fraquezas, que as crianças de Bar-sur-Loup punham ao professor escrupuloso, unicamente pela sua presença, o grave problema do seu presente e do seu futuro. Com o contacto com elas, afirmam-se as pungentes condições da pobreza proletária, assim como as primeiras responsabili­ dades de um educador do povo. Todos os problemas dessa pequena turma de aldeia são iguais aos que se põem hoje aos nossos jovens professores primários, na maioria das escolas francesas, e eles condi­ cionam em grande parte toda a pedagogia das escolas públicas. Talvez Freinet tivesse suportado melhor a acção deplorável da defeituosa instalação escolar e da pobreza, talvez se tivesse adaptado menos mal aos processos tradicio­ nais que o Director tanto elogiava, se não tivesse existido o grave problema de uma saúde comprometida. Sentia uma imperiosa necessidade de procurar outras soluções, válidas para o seu caso e para as personalidades cujas respectivas particularidades ia aprendendo a conhecer. Muito natural­ mente, sem ambição nem preconceitos, tentou adaptar um ensino livre de formalismos às suas possibilidades

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físicas limitadas e às reacções dos seus pequenos alunos. Dia a dia, foi improvisando, comparando o seu comportamento com o dos alunos. Viu logo sem dificuldade que, por exemplo, as lições tradicionais que, por impossibilidade respiratória, não podia dar convenientemente, eram tão cansativas para os alunos como para ele próprio. Quando dispunha na secretária o material que tinha preparado para uma lição qualquer sobre objectes, as crianças ficavam atentas, cheias de curio­ sidade, na expectativa de uma espécie de exibição de prestidigitador. Mas, logo que começava a explicação e que era preciso impor o silêncio para dar a lição e ao mesmo tempo manter a disciplina, o esforço era de tal ordem, que 0 professor tinha de se dar por vencido e o mesmo acontecia à curiosidade insatisfeita dos seus alunos decepcionados. Mas que fazer então numa aula, se se está impossibili­ tado de dar as lições? Não se pode passar o dia inteiro a ler a cartilha, a fazer cópia e a escrever algarismos no caderno. Aliás, as crianças são rebeldes a estas actividades que envolvem uma imobilidade física e mental. Elas acabam por se enervar e o professor por se impacientar. Todos os dias a experiência conduz Freinet à mesma conclusão: o ensino ministrado à maneira tradicional, que exige da criança uma atitude passiva e amorfa, não tem o menor resultado. É claro que Freinet explica esse malogro pelas suas insuficiências como educador. Sabe perfeitamente que, se tivesse uma voz forte e bem timbrada, um olhar firme, uma presença física imponente, haveria a hipótese de o dinamismo próprio de um ser saudável dominar a situação. Mas dominar a situação não é resolver o problema educativo. Ali bem perto, na sala em frente, o director enfrenta a indocilidade das crianças com berros, reguadas na mesa, linhas para escrever, verbos para copiar e, por vezes, com a expulsão violenta de algum indesejável para o meio do corredor... Mas nem assim é bem sucedido. Pôr o problema, reconhecer as suas dificuldades, aperceber-se dos dados que o tomam assim tão complicado, não é obrigatoriamente arranjar-lhe uma solução ideal. O papel de camarada-educador que Freinet escolheu nem sempre se concilia com as exigências dos programas e o rigor dos

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horários. Depois dos momentos de relaxamento amigável, é preciso retomar uma atitude rígida, dominar o rebanho e regressar aos deveres escolares sempre decepcionantes para todos. Esgotadíssimo fisicamente e face às dificuldades pratica­ mente insuportáveis que surgem quotidianamente, Freinet decide preparar-se para concorrer ao lugar de inspecter primário. Passará assim a ter o espírito mais ocupado e poderá levar uma vida menos sedentária vivendo junto das crianças de quem já aprendeu a gostar. Informa-se do programa e contacta pela primeira vez com o pensamento dos homens que ao longo dos séculos dominaram a peda­ gogia. Até agora, tinha apenas uma vaga ideia sobre Rabelais, Montaigne, Pestalozzi, Rousseau, dos quais não se tinha podido abeirar por ter saído precipitadamente da Escola Normal. Descobre nesses pioneiros uma segurança e um vigor que contrastam estranhamente com a psicologia intelectualista e abstracta dos autores incluídos no programa do concurso para inspectores. Decide-se a tragar a purga dos tratados de Spencer, William James, Wundt, Ribot, mas é com verdadeiro prazer que se detém na companhia de Gargantua e Pantagruel e sobretudo na companhia desse admirável homem que é Pestalozzi, cujas temeridades o dominam por completo. O que vai melhorando são as suas relações com os alunos a nível escolar. Como sabe que um dia irá deixar a sua turma, parece apegar-se ainda mais aos alunos, abeirando-se deles para os ver viver, esforçando-se por ser indulgente, por estar atento aos desejos expressos por cada um deles, procurando antes de mais compreender, ajudar, Essa atitude espontânea traz-lhe todos os dias algumas alegrias, que tomam mais suportável a sua vida de enfermo e o levam cada vez mais à compreensão profunda da criança. Também tem menos escrúpulos com o cumpri­ mento do horário, com a obediência ao programa e, pouco a pouco, fora dos caminhos usuais, vai adoptando um novo comportamento face aos problemas pedagógicos da vida habitual da turma.

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É Joseph, o amigo dos bichos, quem conduz resolutamente Freinet a uma reconsideração permanente do problema pedagógico. Acabado o recreio, com a apitadela do director, as duas turmas formam para regressar às aulas; e, enquanto a coluna se põe em marcha, Joseph, que vinha atrás, sai a correr da forma e vai ajoelhar-se diante de um muro. Esquadrinha as velhas pedras com o olhar ávido. O director já desapareceu no corredor. Intrigado, Freinet observa Joseph que, com gestos de votos, eleva os braços para a parede, à altura dos olhos. —Joseph! Não dá resposta. O nosso noviço está na celebração da missa... — Joseph! Então o pequeno volta para o professor o seu rosto preocupado e faz um gesto apressado, que é simultaneamente uma ordem imperiosa para que ele se cale e espere; — Chiu! Vou já, vou já! Entra, já vou ter contigo. A tensão interior do miúdo é tão forte que Freinet com­ preende a linguagem da mãozita impaciente logo à primeira vista, e, sem se voltar, entra na aula. —Sr. professor, falta o Joseph. — Sr. professor, ele fugiu. Antigamente estava sempre a fugir. Mas a porta abriu-se e Joseph apareceu radiante, so­ prando como se tivesse acabado de ganhar uma luta. — Sr. professor, é que ali no buraco há uma lagarta com penas... pequenininha, assim (indica o tamanho com o dedo), é azul, Sr. professor... Dei-lhe comida... A lição de leitura começa. Enquanto o ponteiro do mestre vai designando as sílabas no quadro mural, Joseph, de olhos voltados para a janela, continua a velar pela sua lagartinha que tem penas e que é de um azul tão lindo... A lagarta do Joseph é um caso entre centenas deles, que demonstram a Freinet a necessidade de ter em conta o interesse da criança e de integrar esse interesse no ensino, para evitar continuamente a desintegração do pensamento infantil, flagelo da escola tradicional. Daqui em diante,

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Freinet vai passar a analisar todos os acontecimentos em que transparecem essas falhas de uma pedagogia desprovida de bases psicológicas. Fá-lo com os meios ao seu alcance, tentando evitar na medida do possível os choques violentos entre o aluno e o professor. Uma vez lançado nesta via de pesquisa e de crítica, começa a reparar nas taras e nos malefícios das técnicas de autoridade e adopta, de uma vez por todas, uma atitude de dúvida construtiva, cuja lenta evolução vamos ver em seguida. A distribuição do tempo previa a eterna lição de moral no início da aula. Freinet apercebeu-se da inutilidade das prédicas que até aos alunos mais dóceis custavam a suportar, por causa da sua garganta doente e da sua falta de habili­ dade oratória. Acabou com as lições de moral. Mas de manhã examinava as crianças com mais cuidado, à medida que iam chegando; a meio da manhã apercebia-se nitida­ mente das perturbações originadas pelo comportamento irracional dos nervosos, dos instáveis, dos desmazelados, dos coléricos, dos ladrões e dos egoístas, e acabou por substituir a lição de moral pela simples fórmula sugestiva, cujas vir­ tudes prováveis lhe tinham sido reveladas por estarem1 então em voga as experiências de Coué. Durante uma semana inteira era escrita no quadro uma frase sugestiva, suceptível de influenciar o comportamento das crianças: Sou obediente e respeitador para com os meus pais. Sou sempre atencioso com os meus colegas. Empresto as minhas coisas de boa vontade. Na rua cumprimento toda a gente. Etc... Cada um dos alunos lia a frase em voz alta e os que sabiam escrever registavam-na no caderno. Para a aritmética que vinha a seguir à lição de moral, Freinet experimentou efectivamente todos os processos con­ cretos, já antigos, e que dependem mais do exercício dos sentidos do que de uma iniciação ao sentido dos números. Mas deu-se conta de como esses processos, embora estivessem ao alcance das crianças, continuavam a estar isolados da vida. Foi só acidentalmente, digamos, que ele começou a ligar verdadeiramente as noções de aritmética ao interesse

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vivo dos alunos — na altura em que começou com os «passeios».

Com a desenvoltura própria dos audaciosos, Freinet tinha decidido levar todas as tardes os seus miúdos a passear para terem contacto com a natureza. Passado o primeiro momento de surpresa, o director lá se adaptou ao facto, assim como os pais, que contudo não perderam a ideia preconcebida de que aquilo não passava de uma maneira esquisita de perder tempo e, mais, de habituar as crianças à preguiça. Felizmente nada disso se passava. O passeio era o momento que as crianças mais desejavam. Era realizado à tarde, quando o esforço da manhã já tinha gasto a resistência do professor e dos alunos mais irrequietos. Cada criança pegava no seu lápis, na sua ardósia, e o pequeno bando largava para as imediações da escola pelo carreiro que serpenteava por debaixo das oliveiras, na direcção do sossego do cemitério, para a colina ou lá para cima, para o cabeço florido que dominava a aldeia. Freinet estava atento a todas as observações que as crianças faziam, mais por curiosidade humana do que por preocupação pedagógica; e, afinal de contas, era fácil ver que toda a gente colhia dessa saída ao ar livre, debaixo do céu sereno do Sul, uma sensação de euforia que predispunha à confiança e que facilitava a compreensão. — Sr. professor — dizia o Lulu — estou a ver a minha mãe ali em baixo no meu campo! — Onde? Onde? — Ali em baixo! Não estás a ver, ali em baixo! — Explica isso como deve ser, Lulu —-dizia o pro­ fessor —, explica para nós também a podermos ver. — Olha ali em baixo: não estás a ver a estrada? Não estás a ver o contorno da ponte? Então olha, trepa por aquele carreiro: estás a ver o carvalho grande? Está um bocado mais afastada, aqui para este lado. Que lições de dicção valeria mais que este exercício, pro­ duzido espontaneamente no seio da própria aventura interior de uma criança que olha para a sua casa? — Sr. professor, isto aqui é bem alto! — Mais alto que o castelo ?

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E das comparações resultaram avaliações de distâncias, de medidas, noções de comprimento, e aqui temos o ponto de partida de uma excelente lição de aritmética dada simul­ taneamente com a vida. Porém, isto ainda não passava de uma obscura intuição que por enquanto era incapaz de alcançar um campo claro da compreensão e de, com base nessa compreensão, suscitar uma mudança radical na prática do ensino. Quando regres­ sava à sala de aula tinha, quisesse ou não, de encarar outra vez as filas de bancos que mantinham as crianças prisioneiras e as imobilizavam física e mentalmente. E tinha de encarar, à mesma hora, a lição de leitura, tão maçadora para o professor como para os alunos. Pendurados nas paredes, havia alguns quadros graduados, do método Boscher, de que ainda devem restar alguns fósseis em muitas salas de aula actuais. Primeiro em grupo e depois indivi­ dualmente, as crianças vinham 1er o pedaço de lição que se seguia ao da véspera. Embora já estivesse provada a falta de interesse de um processo tão arcaico como este, era forçoso utilizar o material já existente, por não se conhecer outro. O grupinho de bons alunos saía-se sempre bem da prova, seguindo o ponteiro sem falhas de atenção e arrastando atrás de si, na leitura colectiva, a massa amorfa dos indecisos, que só eram capazes de acertar as suas vozes pelas sílabas que se iam pronunciando e de pro­ longar a sua sonoridade de maneira a deixarem dúvidas sobre a sua sabedoria, e nada mais. Felizmente havia o Lulu e o Pierrot para ajudarem, com uma perseverança digna de louvor, os ignorantes inveterados que se resignavam de antemão ao insucesso durante os controles que o professor fazia por descargo de consciência. Os nossos dois estamas (¹) apoiavam-se fraternalmente um no outro, com um daqueles movimentos de balanço que se fazem quando se transpõe contra a corrente a parte mais difícil de um vau. Mansuy abria desmesuradamente os olhos de toupeira, sem que alguma vez se chegasse a saber qual das duas era mais fraca, a vista ou a atenção. Quanto a Joseph, esse lia de

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Estanhadores.

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mãos nos bolsos, com um ar ausente, com a rica desenvoltura de uma pessoa que não estivesse ali ou que não tivesse de dar contas a ninguém. — Joseph! vamos, olha para aqui: o papá riu. Tatá ratou o assado. Era nos bolsos de Joseph que se desenrolava a grande aventura. Sentia os insectos, de que se tinha abastecido durante o passeio, passearem-lhe por entre os dedos, e o método Boscher bem podia ostentar as suas inúteis tentações no cartão amarelecido dos seus quadros, que o melhor era confessar-se de antemão vencido pelas cócegas das patinhas dos besouros e das joaninhas. Quanto a Clémenti, esse tinha arranjado maneira de passar o tempo com umas intervenções bruscas que lhe da­ vam a impressão de que estava com atenção, mas que amea­ çavam precisamente o contrário: — De bi ca o ga lo o ... Sr. professor, o que é que quer dizer debicógalu? Por fim, até o professor se deixava apanhar por aqueles infernais quadros Boscher e tinha de confessar de antemão que era incapaz de atribuir um sentido a frases estúpidas das quais as crianças nunca percebiam nada, a não ser as sílabas musicais que elas cantavam como se fossem ladainhas. Para os maiores, que já sabiam 1er, o exercício de leitura não requeria uma tensão intelectual menor. Os bons alunos abriam os livros na página que se seguia imediatamente após a última lição, diziam qual era o número da página, ajudavam um camarada inexperiente e, quando estavam todos preparados, a uma ordem do mestre, a orquestra ata­ cava, num uníssono a várias vozes, mais do que relativo, sem respeitar as pausas dos pontos e das vírgulas, indiferente tanto ao sentido das frases como ao das palavras mais correntes, que já nem se percebiam... Para o caso da leitura individual, uma vez que a maioria dos alunos tinha de seguir palavra por palavra, o leitor mais brilhante, que acabava de ser designado, o controle era verdadeiramente extenuante. A todo o momento era necessário chamar à ordem os mais indisciplinados que com a maior das facilidades se deixavam escorregar pela porta aberta da evasão.

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— Continua, Albert! Jeannot, olha para o livro! Louison, continua... Passava um cavalo na rua, agitava os guizos, e Georges seguia-o em pensamento. A mãe do Honoré discutia em voz alta na fonte enquanto o balde se enchia. O tabemeiro martelava nos tonéis... A turma virava-se para o cavalo que se afastava, para a água que gorgolejava, para o tabemeiro que estava a arranjar o seu vasilhame. Desam­ parado e impotente, consumindo-se numa tensão nervosa contínua, Freinet sentia nitidamente a necessidade de en­ contrar uma técnica nova de aprendizagem da leitura, que estivesse mais próxima do interesse vital das crianças. E mais do que nunca, ele estava lançado no caminho da investigação.

★ Que fazer? Voltar-se para o passado, procurar no antigo o que existe de progressivo e de positivo, reconstituir a corrente das grandes ideias que, ao longo das diversas épocas da História, os inovadores projectaram para o futuro. Lê e relê, tomando notas, Rabelais, Montaigne, Rousseau, que lhe provocaram uma espécie de vertigem perante o permanente desnível monstruoso entre a teoria ideal e a prática concreta de um pobre professor de uma escola desprivilegiada. Pestalozzi restitui-lhe a confiança. Também ele se engalfinhava contra a realidade e a sua vida de lutador apaixonado, assim como a sua dedicação à criança pobre, constituía um exemplo apaixonante para um jovem solitário preso ao horizonte estreito da sua sala de aula, e, assim, pela primeira vez, Freinet estava a aperceber-se de toda a amplitude dessa bela palavra educação, a qual, ultrapassando a escolástica, se defronta com o problema pedagógico em toda a sua complexidade pedagógica, material, filosófica, social e política. É neste momento, em que se afirma já o seu gosto pela profissão de ensinar, que Freinet se põe a 1er os modernos pedagogas do Instituto J.J. Rousseau, de Genebra, que constam do seu programa de exame. Há uma personalidade que vai ter uma influência decisiva na sua orientação pedagógica — a de Ferrière.

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Esse belo livro de Ferrière que é L'École active, hoje muito pouco lido embora ainda não ultrapassado, deter­ minava por assim dizer as coordenadas daquilo que então se começava a chamar «a educação nova». Independentemente da sua enorme riqueza pedagógica, este livro novo orientava o leitor para obras de consulta que lhe facultariam um aprofundamento dos diversos ramos de actividades, desen­ rolando assim perante Freinet, novato nestas coisas, todo um vasto horizonte a explorar. Através das páginas de L’École active, o humilde pro­ fessor, até então desamparado, sentia viver as suas próprias intuições; vislumbrava práticas inéditas possíveis de lhe facilitarem a sua tarefa. A sua amarga solidão estava subita­ mente iluminada por um clarão de esperança. Como recor­ dação deste apoio moral, Freinet nunca deixará, ao longo da sua carreira, de prestar homenagem ao genial inidador que foi, neste período agitado da sua vida, um pai espiritual, um guia. Em 1923, Freinet foi convidado por um dos seus corres­ pondentes a ir a Altona, perto de Hamburgo, Aproveitou a ocasião para contactar com os aspectos essenciais da peda­ gogia alemã e para visitar algumas célebres escolas de Hamburgo, onde, no fim da guerra de 14-18, se tinha experimentado pôr em prática o mito da escola anarquista, integral, sem a autoridade do professor, sem regras e sem castigos. Essas escolas, embora montadas com todo o con­ forto, não trouxeram nada de positivo, que ajudasse o nosso jovem professor a resolver os problemas que a sua modesta escola de aldeia lhe punha, assim como os que, para além dela, punha a escola oficial. O exame de professor de letras valeu-lhe no recomeço das aulas em Outubro a sua transferência para professor da Escola Superior de Brignoles. Foi a Brignoles, falou com o director do estabelecimento e apanhou nessa mesma noite o comboio para Bar-sur-Loup. Voltou a encontrar-se com a sua turma, com os seus pe­ quenos alunos, com a atmosfera acolhedora dessa simpática aldeia que se tomou a sua aldeia. Através do contacto com as crianças, das relações de franca e simples camaradagem que mantinha com elas,

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tinha compreendido definitivamente que precisava de colher na própria vida das crianças os novos elementos para o seu trabalho pedagógico e apoiar-se nos seus interesses mais profundos para satisfazer aquela sua necessidade de actividade, cuja novidade Ferrière revelara tão magistralmente em L'École active. Começou por ir buscar à vida da aldeia, às cercanias da escola, os elementos de base dessa nossa educação. Levou os alunos à oficina do tecelão que, muito obsequiosamente, pôs todo o seu saber à disposição do bando juvenil e curioso. Para manter o interesse que a visita tinha suscitado, tentou fazer na aula um pequeno tear, muito rudimentar, que as crianças adoraram. Até se teceu um cinto para os «estamas», que nem assim deixaram de ter o ar de andar sempre a perder os calções, e as crianças sentiram o horizonte da sua escola se alargava. Para rematar esta vitória, Freinet fez uma poesia infantil sobre o tecelão e leu-a aos garotos: No seu tear, o tecelão urdiu os fios com toda a paciência... Foi um êxito total e a partir desse dia os alunos com­ preenderam finalmente a utilidade dos poemas e decidiram aprender alguns. E assim se arranjou um círculo completo de profissões que foram transpostas para poemas no regresso de cada uma das visitas aos artífices da aldeia. Foram à oficina do marceneiro, do ferreiro, à padaria, à olaria, à perfumaria e, na parte da tarde, à hora a que o professor e os alunos se deixavam invadir pela moleza e pelo tédio, Freinet abalava com os miúdos pelos carreiros espalhados à volta da velha aldeia. No próprio seio da natureza, sob os horizontes que constantemente se alteravam, dava a mais animada das lições de geografia, aritmética ou de botânica. A Escola tinha-se aberto para a Vida. Hoje, numa altura em que as investigações escolares se tornaram numa realidade corrente, é difícil avaliar todo o fermento revolucionário que caracterizava as inovações do humilde professor de Bar-sur-Loup. Posto ao corrente do que se passava, o Inspector primário a princípio deixou correr sem aprovar abertamente. Porém, no momento em

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que começava a ficar um tanto ou quanto inquieto com as práticas sistemáticas do seu subordinado, as instruções ministeriais de 1823, decididamente orientadas por L’École active, vieram dar razão ao audacioso professor de Bar-sur-Loup. Quando regressava dos passeios, Freinet escrevia no quadro um pequeno resumo, muito simples, da saída. As crianças liam-no, copiavam-no para o caderno, ilustravam-no e era manifesto que esses trabalhos os apaixonavam; por conseguinte, a escrita, a leitura, assim como a disciplina e a atmosfera da aula, só ficavam a ganhar. Qual o acolhimento reservado a estas práticas fora da aula? Não há dúvida que, de todos, o mais admirado era o director, que via generalizarem-se e ampliarem-se técnicas que não se quadravam absolutamente nada com o teor das suas aulas. Aconselhou o adjunto a ter prudência, receando as reacções que podiam vir a surgir na aldeia. No entanto, os pais dos alunos aceitaram muito bem estas inovações, porque interrogavam frequentemente o professor sobre o assunto e tranquilizavam-se com bastante facilidade com as suas explicações. Também é preciso dizer que Freinet se integrou pouco a pouco no ambiente da aldeia. Estabeleceu relações com os pais dos alunos e, durante as excursões da turma, contactou com os diversos artesãos e com os produtores. Será com um profundo interesse que irá estudar por si próprio os condicionalismos económicos da vida social provençal. Com a colaboração de um amigo faz um estudo aprofundado sobre a indústria floral da região de Grasse, que saiu na Clarté, a jovem revista de vanguarda de Barbusse. Escreveu só para si um longo estudo sobre a permanência das técnicas medievais num regime capitalista neste canto da Provença. Com base nessas contradições e desnivelamentos econômicos, o anacronismo da sua modesta escola toma-se-lhe bastante claro. A partir deste momento, as suas actividades assumem um duplo aspecto: inventar na aula formas modernas de ensino e suscitar no meio local os novos aspectos da coope­ ração com o apoio dos dados económicos. Encontrou um grupo de pessoas dedicadas a ponto de se ocuparem com a criação de uma grande cooperativa de

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consumo e de venda de produtos locais, da qual foi o ani­ mador e o tesoureiro. A sede da cooperativa era na enorme praça da aldeia e Freinet repartia assim o tempo pela escola e por esta obra comum que ia adquirindo um desenvolvi­ mento extraordinário. Esse êxito rendeu-lhe a simpatia das pessoas mais humildes e a consideração de toda a população desta aldeia da Provença, que o guardará na memória, e lhe provará o seu reconhecimento quando a incompreensão e a má vontade se unirem contra ele. A grande preocupação de Freinet continuava evidente­ mente a ser a sua turma. É certo que os métodos activos que tinham conduzido às saídas diárias para o campo e para a aldeia davam os seus frutos, mas criava-se também uma espécie de desnível progressivo entre as aulas extraídas da vida e as que, excessivamente formais, se davam na aula, pela imposição inevitável dos programas. Era no capítulo da leitura que mais se notava o desequilíbrio entre o interesse que as crianças votavam aos textos que elas próprias tinham vivido e criado e a indiferença provocada pelos quadros Boscher e pelo livro de leitura. O texto do quadro falava no lagarto que Georges corajosamente acabara de agarrar com o boné e que já estava em cima da secretária dentro de um frasco. O quadro Boscher referia-se a frases incompreensíveis e, na página daquele dia, o livro apresentava o enigma de uma história qualquer, que, mesmo pertencendo a um grande escritor, não era imediatamente compreendida por aqueles semianalfabetos que a liam a titubear. Não, o problema da leitura não estava resolvido; a esse respeito o professor já tinha em mente algo de que as experiências diárias não davam sequer uma ideia. No fim do ano lectivo (1924) realizou-se em Montreux um dos primeiros Congressos da Liga Internacional para a Educação Nova. Freinet prepara-se para juntar o dinheiro necessário para a viagem e para uma curta estada na Suíça. Dirige-se a Montreux e já se sente feliz só de pensar que vai ouvir Ferrière, Claparède e Bovet. Interessa-se apaixonadamente por tudo o que lhe é dado ver e ouvir. Penetra melhor o princípio da educação nova, que consiste em atribuir à criança um papel activo na sua própria educação. Mas face às afirmações e perspectivas patentes nas intervenções

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das pedagogos de Genebra, sente-se desanimado. Dá-se conta de que existe uma educação nova relativamente fácil, aplicável por escolas que estejam na posse de um material educativo e de uma instalação escolar que permitam a actividade da criança e a individualização do ensino. Mas o problema que se põe à escola de Bar-sur-Loup é com­ pletamente diferente. A imagem da sua aula modesta, vazia e cheia de pó impõe-se-lhe e oprime-o. É no Congresso de Montreux que Freinet se encontra com Cousinet, que tinha vindo apresentar as suas primeiras tentativas de trabalho em equipa. Freinet já tinha tido, em Bar-sur-Loup, a ideia de entregar a alguns alunos pequenos trabalhos manuais colectivos, e, embora a iniciativa de Cousinet lhe pareça um pouco sistematizada demais, pensa aplicá-la e sobretudo utilizá-la como argumento válido para atenuar os excessivos receios do director. Uma outra vantagem da sua ida à Suíça residiu no contacto vivifie ante com a forte personalidade de Coué, o vulgarizador da sugestão prática como cura física e moral. É um prático tão persuasivo e tão simples, que, a partir desse momento, Freinet adopta uma atitude nova face à doença; tenta afirmar a sua saúde de uma forma mais posi­ tiva e isso ajuda-o a trepar a ladeira e a dedicar-se sem preconceitos a essa paixão pelo trabalho que se tomara no refúgio de uma juventude marcada prematuramente. A sua tristeza e a solidão que sente no meio desse Con­ gresso, em que grandes educadores confirmam já tantas vitórias face às suas hesitações, têm quanto mais não seja o mérito de o atirar ferozmente para esse mesmo materialismo escolar, que continua a ser a sua maior preocupação, e de o orientar definitivamente no sentido da investigação de técnicas educativas — que são o programa da nossa actual CEL (Cooperativa do Ensino Leigo). Toma maior consdência da dependência que existe entre a escola e o meio e da maneira como a sociedade condiciona a escola e o ensino. Não há pedagogia sem que se preencham as condições económicas favoráveis à experiência e à investigação. Não há uma educação ideal mas sim diversos tipos de educação consoante as classes.

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CAPÍTULO II

UM INSTRUMENTO QUE APOIA A PEDAGOGIA: A EMPRESA

Em Outubro, no recomeço das aulas, depois do repouso e da reflexão de férias, Freinet retoma a orientação da turma com verdadeiro entusiasmo. As crianças lá estão, afectuosas e espontâneas, ansiosas por prosseguir com a bela aventura escolar que as projecta para uma constante novidade. — Sr. professor —diz-lhe o Lulu—quando o senhor não «tava» cá, a gente «imaginava» em si... E, da maneira mais ingênua, era este o melhor elogio que qualquer aluno podia dirigir ao professor para lhe mostrar a necessidade de uma presença que apoiasse a inteligência e o coração. A classe recupera logo a sua animação, e Freinet, com o máximo de atenção, lentamente procura confrontar aquilo a que com uma certa pretensão se poderia chamar a peda­ gogia de Bar-sur-Loup com a pedagogia de Genebra... De uma à outra vai uma distância considerável! Para explicar esse afastamento, têm de entrar em linha de conta as insu­ ficiências próprias de um professor inexperiente, com uma cultura pedagógica bastante escassa; mas a principal res­ ponsabilidade cabe às profundas diferenças sociais e huma­ nas que existem entre o meio pobre e o meio abastado. E, bem vistas as coisas, no fundo Freinet não encara esse afastamento como sendo uma nítida inferioridade inerente à sua reduzida turma de aldeia e ao seu professor. Se é verdade que se apercebe das carências do meio escolar de Bar-sur-Loup, também não esquece os riscos que correm

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as experiências de Genebra, feitas, tal como o são, num plano um tanto intelectual, de vanguarda, em clima de laboratório, com o perigo permanente de se alhearem do ambiente social. O que ele pretende realmente é permanecer nesse meio social, formando corpo com a aldeia, os camponeses, com toda a classe trabalhadora, à qual a escola oficial uniu o seu destino. Então, resolutamente, continuará a ser o «pro­ fessor primário» no verdadeiro sentido da palavra; continuará a ser obreiro das fundações mais profundas, sobre as quais se irão erguer as construções do futuro. E é devido a essa fidelidade ao «professor primário», devido à sua recusa instintiva de um intelectualismo autocrático, alheio à reali­ dade, que Freinet se manterá para sempre a este nível de «professor primário médio», que se identifica com todas as suas preocupações, que é a própria expressão das massas, com as quais, quer se queira quer não, se joga a partida. Daqui em diante, é na posse destas noções mais ou menos preconcebidas de «média» e de «massa» que Freinet irá abordar o problema da classe. Em vez de consagrar o melhor dos seus cuidados a essa planta rara que é a criança dotada, para, através dela, exaltar a manifestação do prodígio, passará a prestar uma atenção praticamente global a todos os alunos, sem excepções, sem diferenças de inteligência, de carácter ou de meio. Esforçar-se-á por encontrar, por mais difícil que seja, técnicas pedagógicas válidas para todos, in­ dependentemente das diferenças individuais de rendimento. Estas técnicas válidas terão de assentar infalivelmente numa linha que esteja de acordo com os interesses gerais da classe. Lança-se resolutamente à procura dessa linha de interesses, rumo à vida.

★ As crianças num grupo compacto, com as cabeças juntas, debruçam-se com atenção e entusiasmo sobre a canteira do Joseph. Que se passa? Cheio de curiosidade, o professor aproxima-se, Joseph encara-o com uma expressão confiante:

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— Sr. Professor, olhe os meus bichos! E ele olha. Depara com um espectáculo inesperado: uma corrida de caracóis! Dispuseram os concorrentes na ponta da carteira e agora fazem apostas: — En aposto no cinzento! —Eu aposto no castanho! — É o verde acinzentado que vai ganhar, vais ver! — Olha, olha, é mas é o cinzento escuro! Segue-se uma espera silenciosa, desvios dos concorrentes em lentos e caprichosos ziguezagues, e finalmente... o triunfo do verde acinzentado. — Aí está! Foi o verde acinzentado que ganhou! Foi o verde acinzentado! Toda a turma vibra de entusiasmo, há mãos que se estendem, que querem agarrar os animais... Mas Joseph, todo ciumento, pega na sua colecção e mete-a numa caixa. O professor já está no quadro. — Ora muito bem. Vamos escrever a corrida dos caracóis no quadro. Animação geral: — Oh! Sr. professor, que lindo! Parece uma poesia! As crianças lêem o texto, copiam-no, mas mesmo assim tudo isto não passa de um instante fugaz, no meio da aula: apagado o quadro, voltada a página do caderno, nem um só sinal palpável restará de um acontecimento vivido, que tão profundamente ficou gravado na alma da criança. É preciso descobrir um processo que, sem recorrer a qualquer solução de continuidade, ligue o pensamento da criança ao texto definitivo. Freinet procura, revolve todos os conceitos já adquiridos, volta a embrenhar-se na vida da turma e pressente, muito próximo de si, algo de novo... Bruscamente, vem-lhe a ideia da folha impressa. Eis a solução: a folha impecável, clara, encerrando perenidade e majestade. Dirige-se a Grasse, às oficinas de impressão, contacta com os tipógrafos. Examina de perto a composição tipo­ gráfica, onde as letras, que se manuseiam uma a uma, lhe abrem vastos horizontes... Não há dúvida, é ali que está a solução. 39

Os tipógrafos sorriem: — Não, não, com esse miúdos é que o senhor nunca há-de poder fazer seja o que for! Vão perder-lhe as letras todas, empalmar-lhas... O senhor só vai é perder o seu dinheiro. O acaso às vezes faz das suas: ao folhear uma revista, Freinet depara com um anúncio da máquina de imprimir Cinup: escreve aos agentes e descobre então o utensílio em que se irá basear a «pedagogia de Bar-sur-Loup» e que, para além disso, irá provocar, de ano para ano, todo um movimento pedagógico popular. Passam-se alguns dias em que o nosso inovador vive numa ânsia à espera do caixote da Cinup. E finalmente lá chegou! A máquina de imprimir! Componedores! Uma colecção de caracteres em miniatura! O pasmo das crianças adivinha-se! — Oh! Letras! — Olha, olha, «O»s e «A»s... —Oh! «P»s! — Olha o 3, o 4, o 5... Arrumam-se os caracteres na caixa e faz-se logo a seguir a composição do primeiro texto. É claro que nem tudo corre bem. As mãos do professor pouco mais hábeis são que as dos alunos... Os caracteres escapam-se por entre os dedos, os componedores viram-se... Mas, à força de boa vontade, põe-se o bloco no prelo... Dá-se tinta aos rolos de impressão, faz-se a impressão... e eis a primeira folha impressa! Circula religiosamente de mão em mão. Com os olhos marejados de lágrimas, o professor examina-a durante muito tempo. Verdade se diga que os primeiros impressos nem por isso estavam famosos. Só se podiam compor quatro ou cinco linhas e a impressão mantinha-se bastante incerta. Apesar da indulgência com que encaravam as suas próprias obras, os directores de tipografia feitos à pressa tinham de se render à evidência: nunca tinham pensado que o primeiro impresso fosse só aquilo! Quanto às crianças, essas não exigiam mais: — Oh! Sr. professor, veja como ficou bem! Lê-se tudo! Freinet sabia, aliás, qual era a causa dos defeitos da impressão. O que ali faltava era papel de boa qualidade

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que teria realçado a letra. Mas como já tinha esgotado todos os meios materiais e já se tinha comprometido com as remessas futuras, nem valia a pena sonhar em comprar outro papel. Quanto a pedi-lo à Câmara, isso nem pensar: o presidente até era simpático, humano, devotado à causa dos leigos; mas já tinha feito um esforço para instalar estantes, utensílios para trabalhos manuais e claro que não ia levar o desperdício de fundos ao ponto de alimentar até às suas últimas consequências as fantasias de um visio­ nário. .. Já se tinham arrancado as folhas boas dos cadernos usados. Os rascunhos de preparação para o exame também já tinham ido... Estava-se mesmo em crise. Posto ocasionalmente ao corrente, o secretário da Câmara teve uma ideia genial: — E os boletins de voto não darão? Tenho um «stock» inteirinho deles, das últimas eleições legislativas... Toca a aceitar os boletins de voto! Assim o papel até já vinha todo cortado. Imprimia-se na parte de trás... Quando recebiam o impresso, as crianças iam logo ver do outro lado: — Sr. professor, eu cá não quero o nome «di» esse, o meu pai não votou nele! Quando os boletins de voto se esgotaram, voltaram-se para os livros de contas usados da Cooperativa de Bar. O papel era pardacento e os algarismos e anotações de compra viam-se à transparência. — Oh! Eu cá hoje comprei chocolate e queijo. Vou-me regalar... A vida entrava em borbotões na pequena classe, com a emoção das crianças, os boletins de voto, a evocação tenta­ dora das colunas bem guarnecidas da Cooperativa e o sonho inesgotável próprio da criança insaciada. Quando ocasionalmente o director vinha saber novidades e se punha a olhar com uma leve careta de comiseração para os impressos que estavam a secar num velho banco, toda a turma sentia uma espécie de mal-estar. — Parece que isto não está a sair bem — dizia ele. —Hoje não —respondia um dos mais espertalhões—, mas ontem, sim, é que ficou bonito!

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Infelizmente o ontem foi semelhante ao hoje durante muito tempo; mas pouco a pouco, calculando minuciosamente todos os dados em jogo —a reunião regular dos caracteres, a importância da pressão e da distribuição da tinta, o papel, apesar de ser de má qualidade, dignou-se cumprir a sua obrigação — obtiveram-se impressos legíveis e às vezes até bastante bons. De uma vez em que estava para ir a Nice para uma reunião sindical, Freinet escolheu as páginas mais perfeitas e levou-as no bolso, como um camponês levaria os primeiros frutos de uma árvore nova, que plantara cheio de esperança. Ainda hoje se recorda daquela sala interior contígua à loja em que alguns dos camaradas se tinham reunido, ao sair do comboio, para tomar qualquer coisa quente pouco antes da reunião. Freinet achou que a ocasião era favorável à apre­ sentação das suas provas. Eram uns companheiros sim­ páticos, não eram muitos e não tinham ideias preconce­ bidas... Seria uma boa oportunidade de evitar a grande assembleia que se ia seguir e de não se arriscar a uma crítica irônica nem à acusação de fazer perder tempo com futilidades. Tirou timidamente as suas obras-primas, tentou explicar a sua existência concreta e o seu valor pedagógico. Mas, entretanto, havia já quem tivesse voltado a página e foi sobre os boletins de voto que incidiram as piadas e os trocadilhos. Generosamente, uma professora fingiu que estava a 1er os textozinhos com toda a atenção e logo, levantando os olhos com uma expressão de pena, se saiu com esta: — Meu pobre Freinet, você nunca há-de fazer nada de prático! Quanto aos outros, esses já estavam a saborear o café...

★ Mas houve uma pessoa que compreendeu Freinet: Barbusse, nobre figura de militante e de artista, que, com o seu prestígio, dominou todo este pós-guerra de 14-18. Já na sua revista Clarté tinha acolhido artigos pedagógicos e sociais de Freinet e marcou-lhe então, sem a mais leve

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sombra de hesitação, uma entrevista na sua casa de campo do Trayas. Por essa altura acabava o grande escritor de lançar, em dois volumes, o prestigioso fresco da humanidade que são Les Enchainements. É fácil calcular a apreensão com que o professor, cons­ ciente da pequenez da sua bagagem elementar, ia tomar contacto com o grande artista. Barbusse escutou-o com a concentração que lhe era peculiar. Folheou demoradamente o modesto livrinho im­ presso pelos pequeninos alunos de Bar-sur-Loup. — Sim, agora tudo deve partir de baixo... E sem hesitar, pôs mais uma vez as colunas da Clarté à disposição de Freinet, Em breve nos referiremos ao constituiu um poderoso encorajamento para o humilde pedagogo pioneiro. Mais do que nunca a experiência de Bar-sur-Loup processar-se-á com método e perspicácia, porque mais do que nunca Freinet está convencido de que, segundo as próprias palavras de Barbusse, a verdadeira pedagogia po­ pular e a verdadeira psicologia «devem partir de baixo». E para ficar completamente ao nível da criança, para viver o seu pensamento e vibrar com a sua própria emoção, Freinet realiza um acto simbólico: tira o estrado, que lhe dava um prestígio inútil, e coloca a secretária directamente no chão, virada para as carteiras dos garotos. — Sr. professor — diz-lhe o Pierrot — agora o senhor é um professor em ponto pequeno ! —Não —diz Freinet— sou apenas um aluno como vocês. As economias feitas durante as férias dão a Freinet a possibilidade de comprar numa pequena tipografia de Grasse um «stock» de papel formato 10,5 X 13,5. Um verdadeiro achado! Ele, que normalmente nem pode com um embrulho, arranja forças para levar as suas preciosidades até à estação do comboio e deposita triunfantemente a sua valiosa carga em cima da secretária. Alegria deliciante das crianças! Daqui em diante os impressos ficam melhores. O papel branco dá mais resultado. Mais algumas pesquisas até chegar

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à ideia do perfurador que permitirá a reunião das folhas com um cordão. Mais apalpadelas para se chegar à enca­ dernação com a ajuda de dois parafusos com passadores e assim se obtém o «Livro da Vida», a que muito a propósito as crianças chamarão «livro de parafusos»... Comove folheá-lo, a esse livrinho de Bar-sur-Loup, que já contém em embrião o maior movimento pedagógico de todos os tempos, saído da grande massa dos trabalhadores leigos. Citemos alguns textos ao acaso: «O Honoré tem um lindo gatinho cinzento e branco. Deita-o a seu lado na cama. De manhã o gatinho acorda-o lambendo-lhe o rosto. O professor disse: — Esta tarde vão ter um feriado que se prolongará até ao próximo ano e o Roger pôs-se a soluçar. — Roger, porque é que estás a chorar? — Sr. professor — diz o Jeannot — é porque ele queria que a escola nunca acabasse. Tem medo que depois não haja mais. — A mim — diz o Lulu — o pai Natal vai trazer-me uma caixa de aguarelas; ao Clementi uma espingarda; ao Georges, um par de sapatos. O Joseph, esse diz que isso do pai Natal são petas...»

Nascimento de uma técnica pedagógica

Antes de prosseguir com o desenrolar dos acontecimentos cronológicos, que progressivamente afirmaram e instalaram o movimento pedagógico com base na Imprensa Escolar, parece-nos necessário determo-nos mais demoradamente sobre o espírito e o alcance deste princípio de experiência realizado na escola de Bar-sur-Loup. A originalidade de Freinet não residia apenas no facto de conferir à criança o seu papel activo na aula, de a fazer tomar-se num elemento activo na aquisição das técnicas escolares; antes dele, outros o tinham afirmado,

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e os «novos métodos» considerados na Inglaterra e em Genebra já tinham confirmado essa necessidade da Escola activa, cujo valor Ferrière demonstrara tão magistralmente. Tendo partido sozinho em busca de um método capaz de permitir ao doente que era de dar as suas aulas sem prejuízo nem para os alunos nem para si próprio, Freinet fora naturalmente desembocar no contacto com a vida, na descoberta da Escola activa. Não uma escola activa mais ou menos mística, em que o papel da criança «activa» aparecesse como um dogma e pudesse justificar todas as ideologias, incluindo as mais reaccionárias, mas simples­ mente uma escola viva, prolongamento natural da vida em família, da aldeia, do meio. Freinet apercebe-se intuitiva­ mente de todas as vantagens da situação de eleição da sua escola de Bar-sur-Loup. Aderindo embora às experiências de Genebra enquanto técnicas, não deixa, no entanto, de as encarar com uma certa desconfiança intelectual e são elas que o conduzem inevitavelmente a uma espécie de rectificação do problema da educação. E porquê? Porque a simples descoberta de uma nova técnica, a Imprensa Escolar, modificou de repente o sentido e o alcance da pedagogia da sua classe... A imprensa não foi somente um processo de tornar a criança activa no sentido muscular e intelectual do termo, por oposição à imobilidade estática imposta pela escola tradicional; também não foi uma simples ocasião para o reavivar do interesse escolar das crianças por esta ou aquela disciplina do programa. Foi muito mais do que isso: revelou a Freinet a personalidade psicológica e humana da criança no seu movimento constante e em permanente ligação com o meio. A partir desse momento, Freinet voltou costas resolutamente a toda a psicologia tradicional, artificial e espiritualista, apoiada nessas entidades imagi­ nárias, as faculdades da alma, e orientou-se para a con­ cepção de uma pedagogia de unidade e do dinamismo, que ligasse a criança ao meio social. O texto livre não é um simples documento sintáctico: é sobretudo uma espécie de texto psicológico e social; através dele conhece-se a

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acção do meio sobre a criança e, reciprocamente, a acção desta sobre o meio. Se o meio é desfavorável, exerce efeitos nocivos sobre o ser e constitui uma ameaça à sua eficiência. Nada de profundo, de definitivo, será feito pela educação, enquanto a sociedade for e continuar a ser uma madrasta para a maioria dos seus filhos. Daqui em diante Freinet assume decididamente, na sua actividade, as suas responsabilidades sociais e pedagógicas, que, tanto uma como outra, mais não são que dois aspectos do mesmo problema: o da renovação da sociedade. Em Bar-sur-Loup, ele leva a cabo o movimento coope­ rativo que leva à instalação de uma mercearia, de um talho, de uma padaria, e na sua aldeia natal orienta os habitantes para uma modernização mais vasta, visando facilitar todos os factores econômicos numa perspectiva cooperativista: transacções diversas, construção de estradas, electrificação, tempos livres — faz toda uma série de pro­ jectos em que trabalha no decorrer de todas as suas visitas durante as férias. Do ponto de vista sindical torna-se secretário pedagógico do sindicato e a nível nacional estimula uma vasta campanha em prol da renovação escolar. Na classe dá especial importância ao materialismo escolar, preocupação que será uma constante ao longo de toda a sua vida. É certo que não pode mudar as deploráveis con­ dições materiais da aula de um dia para o outro: é pobre; a verba concedida às caixas escolares é insignificante; mas pelo menos não partirá às cegas, no ar, cheio de um idea­ lismo platônico, que se deixa abater diante de dificuldades insuperáveis. Parte daquilo que já existe. E o que existe é a riqueza da alma infantil, repleta de alegria e de entu­ siasmos. O que existe é a pobreza do meio escolar e social. E é também o espírito retrógrado que transforma a escola do povo numa instituição medieval. No actual estado de coisas, o esforço pedagógico do professor deve tender na medida do possível a subtrair a criança ao domínio de um dogmatismo escolar já ultrapassado, tomá-la consciente da sua própria força e por conseguinte transformá-la na obreira do seu próprio destino no seio da vasta acção do grupo. Desenvolve a vida da criança por meio de técnicas que conferem à personalidade infantil uma sensação de força

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e sempre que pode convoca em seu auxílio as potencialidades positivas do meio: uma natureza generosa, o artesanato, a influência daqueles que tinham mais simpatias. E já pres­ sente, no contacto com os factos concretos, a sobreposição de forças que se encontram no ponto de junção do individual com o social, matéria dos livros A Educação pelo Trabalho e Ensaio de Psicologia Sensível escritos vinte anos depois. Devido a estar profundamente enraizada no meio social, a escola delimita muito naturalmente com o auxílio do texto livre os seus centros de interesse e forja para si mesma um programa correspondente ao da própria vida dos tra­ balhadores. É isto que Freinet vai precisar nos seus primeiros artigos saídos na Clarté, de que vamos citar algumas pas­ sagens : «Essa técnica renovada ainda está totalmente por des­ cobrir. Mas há-de ser o triunfo da escola activa e feita por medida, cuja realização nas classes da escola primária pareceu tão utópica durante tanto tempo, Mas, poder-se-á ainda objectar, haverá alguma hipótese de essa vida fornecer à criança o que se espera que a escola lhe dê? E se a vida —a vida no seu conjunto, como é sabido, e não a vida limitada e fechada da escola actual — se a vida, dizia eu, não está apta a fornecer a educação e a instrução, de que processos sofisticados teremos de nos utilizar para as obter de um modo apropriado? Além disso, houve ainda um outro facto que me chamou a atenção. Ao percorrer a série de títulos das duzentas páginas do nosso "Livro da Vida' (dos dois primeiros tri­ mestres), verifico que a distribuição dos assuntos é mais ou menos aquela que os adeptos dos centros de interesse recomendam. Eis o Outono com as suas frutas, os seus cogumelos, o seu vento e os seus recrutas A seguir, vem o Inverno, e com ele o estudo dos vários processos de nos protegermos do frio... E a Primavera, tão pródiga em emoções, com as suas grandes chuvadas, o seu granizo, os seus desmoronamentos, mas também com as suas primeiras flores, as batalhas de flores, os circos magnificamente enfei­ tados e ainda com o seu cortejo de gripes que, infelizmente, vem com regularidade esvaziar-nos as aulas quase por com­ pleto.

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E verifico com satisfação e humildade, que estas distri­ buições feitas de acordo com os interesses primordiais das crianças, distribuições essas que não exigiram menos que o génio de um Decroly, se fizeram com toda a naturalidade na minha aula viva, onde não impus nenhum assunto e me contentei em ouvir, em dirigir a conversações, em sintetizar, ordenar e pôr em francês correcto as ideias dos meus alunos. Não vou ter a pretensão de dizer que, com essa técnica da imprensa, me acerquei de Decroly. Foi ele quem, através de um longo desvio, reconduziu a ciência pedagógica ao seu ponto de partida: o bom senso e a vida.» Perante a eloquência de factos que apontam com uma tal nitidez para a importância do pensamento infantil na sua condição de elemento de formação da personalidade, Freinet põe os professores primários de sobreaviso contra os efeitos nocivos de um pensamento adulto imposto de fora, dominando a criança arbitrariamente. Resume o seu pensa­ mento numa fórmula que muitas críticas e sarcasmos lhe custou: ACABEMOS COM OS MANUAIS ESCOLARES, cujo conteúdo expõe num artigo da Clarté, que até merecia ser transcrito todo, de tal modo permanece actual: «Os manuais são um meio de embrutecimento. Servem, e por vezes grosseiramente, os programas oficiais. Alguns chegam a agravá-los, devido à mania injustificada de os atafulhar. Mas os manuais quase nunca são feitos para a criança. Declaram que facilitam e ordenam o trabalho do professor: orgulham-se de seguir passo a passo os... programas, o que havia de ser? E a criança que os siga se puder. Não foi dela que se ocuparam. Ë por isso que os manuais fomentam quase sempre a sujeição da criança ao adulto e muito particularmente à classe que, por meio dos programas e do seu próprio pres­ tigio, dispõe do ensino. Há bastantes pedagogos ingénuos que se baseiam, pelo contrário, nos desejos e necessidades da criança para daí extraírem uma concepção do ensino menos ortodoxo. Porém, os manuais que elaboram são mal tolerados. Seja como for, as casas editoras bem pensantes não desdenham encarregar-se

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deles e assim só os manuais mais prejudiciais obtêm tiragens elevadas. Mesmo que os manuais fossem bons, havia o máximo interesse em lhes reduzir o emprego, porque o manual, sobretudo se utilizado desde a infância, contribui para inculcar o culto da letra impressa. O livro torna-se logo num mundo à parte, em algo de divino, e há sempre uma certa hesitação em contestar as suas afirmações "Vem no livro..." Ao passo que o que seria de desejar era que justamente se ensinasse que o livro não é mais do que a exposição de um pensamento sujeito a erro, passível de se contradizer, da mesma maneira que a alguém que diga qualquer coisa. Deste modo, os manuais destroem todo o sentido crítico; e é provavelmente a eles que se devem essas gerações de semianalfabetos, que acreditam em tudo o que diz o jornal. E se é isso que se passa, é realmente necessária uma guerra aos manuais. Mas os manuais submetem também os professores. Habituam-nos a distribuir uniformemente, durante anos seguidos, a matéria que lá vem, sem se preocuparem em saber se a criança consegue assimilá-la. A nefasta rotina apodera-se do educador. Que importam todas as aspirações infantis se nessas centenas de páginas de texto compacto está tudo aquilo que se pretende, a matéria suficiente para passar nos exames? É absolutamente necessário que os educadores se liber­ tem dessa distribuição mecânica para poderem dedicar-se de um modo muito particular à educação da criança...» Freinet dedica especial atenção a mostrar o que o contém de nocivo o primeiro manual escolar, a cartilha, o qual, pela fragmentação artificial da forma, destrói a capacidade de raciocínio e desintegra a unidade da personalidade. Os artigos que saíram na École Emancipée já contêm em embrião toda a concepção pedagógica de «unidade» que Freinet desenvolveu depois com apoio no «texto livre», a leitura global ideal. Para Freinet esta unidade do pensamento da criança é a base de toda a educação. Ao observar a criança na sua condição de indivíduo activo, chega à demonstração de que,

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tal como o organismo, a personalidade psicológica defende a sua integridade custe o que custar; daí a necessidade de descobrir os interesses profundos de todos os indivíduos e de agir em conformidade com eles, de os alimentar com o fito de lhes manter o apetite e o vigor e de os orientar no sentido de se tornarem benéficos, tal como o é para a árvore o ramo principal de que um jardineiro prudente cuidou melhor. Progressivamente, pelo contacto com a experiência quotidiana, Freinet transforma o simples bom senso no auxiliar mais precioso do pedagogo e lança-se sozinho numa direcção oposta à da pedagogia empírica e à não menos empírica psicologia dirigidas a partir do alto, oriundas das sumidades intelectuais da classe detentora do poder.

O primeiro discípulo

No fim do ano de 1924, Freinet participou os resultados da sua experiência na École Emancipée, que era nessa altura uma revista de carácter não oficial pertencente à intrépida Federação do Ensino. Alguns colegas interessados solicitam uma consulta aos jornais escolares de Bar-sur-Loup. Devolvem-nos com pena e a sua resposta pode resumir-se nesta meia dúzia de linhas escritas por um deles: «Nunca as minhas crianças estiveram tão interessadas numa leitura... estavam deliciadas. Também eu quero fugir à rotina e ter o meu “Livro da Vida".» Entre estes camaradas acha-se o nosso amigo Daniel então professor em Trégunc (Finistère). Escreveu a Freinet participando-lhe o seu desejo de comprar material de impressão e de trabalhar com as suas crianças tal como se trabalha em Bar-sur-Loup. Com a alegria que todos podem calcular, Freinet faz tudo o que é necessário para que Daniel possa receber o mais cedo possível e nas melhores condições um material de impressão mínimo e algum papel, de modo a que a primeira permuta interescolar por meio da Imprensa na Escola possa iniciar-se logo em Outubro.

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Tinha a sensação de que vastas perspectivas lhe iam ser abertas e esperava impacientemente o recomeço das aulas. Não havia dúvida de que Daniel era a pessoa melhor escolhida para correspondente dos primeiros tempos, e logo a sua intuição pedagógica, a espontaneidade da sua maneira de ser, a sua serena simplicidade, fizeram com que a escola de Trégunc entrasse no jogo com toda a naturalidade. Cada aluno de Bar-sur-Loup possui um correspondente em Trégunc. De dois em dois dias, os alunos de Bar-sur-Loup enviam aos seus correspondentes de Trégunc, impressos de ambos os lados da folha, os dois textos livres e vice-versa. Nos correios, onde nunca tinham visto uma correspondência deste género, deixam passar as remessas com a tarifa dos impressos e no fim do ano as despesas com as trocas elevam-se a nada mais nada menos do que... três francos! É certo que ainda se estava no tempo em que as pessoas poupadas e os humildes professores primários pobres sabiam que «é com vinte soldos que se faz um franco»! Que contêm esses impressos dirigidos à outra ponta da França? Numa coisa se pode desde já reparar: a preocupação de informar os correspondentes entra como elemento da maior importância na vida da classe: — Temos de lhes dizer o que é que se come em Bar-sur-Loup! — ...como é que se trabalha nos campos. —... o que se apanha, o que se fabrica. — ...que árvores, que flores há. — ...quais os animais que cá vivem. — ...como é que as pessoas se divertem, as festas, os costumes. E é toda a Provença exprimindo-se nestes minúsculos impressos de meia dúzia de linhas, a Provença, com as suas paisagens de oliveiras e laranjeiras, os seus jardins em socalcos, o seu céu azul, a sua vegetação exuberante, o seu sol, os seus zumbidos de cigarras e aquele seu cheiro característico a tomilho e a alho que nunca falta nos aspectos gastronómicos ou campestres tradicionais. Mas nos

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pormenores geográficos e históricos vivos exprime-se e imprime-se também a alma dos pequeninos provençais, porque cada personalidade imprime a sua marca no do­ cumento que transmite. A vida da turma, a aventura pessoal, não perdem os seus direitos e, ao folhear o livro de Bar-sur-Loup escrito durante este primeiro ano de trocas interescolares, encontra-se em todos os textos um certo cunho individual que lhe confere todo o seu valor. Na folha de 22 de Novembro de 1925, por exemplo, fala-se aos correspondentes sobre a apanha da azeitona: «O Georges ajudou os pais a apanhar as azeitonas. O pai estava empoleirado na oliveira e varejava as azei­ tonas. A mãe e ele escolhiam as que caíam no pano. Havia lá muitas das boas. O Georges pegava nelas para as ir pôr eu salmoura com tomilho num pote.» Mas no verso da folha da vida da criança retoma os seus direitos e vive a sua própria aventura: «Ontem à tarde, às quatro e meia, fizemos um circo muito bonito. O Joseph tinha encontrado um gatinho aban­ donado. Então obrigámo-lo a fazer ginástica em cima de uns caniços. Demos-lhe um bocado de pão com um pedaço de pele de chouriço como recompensa.» E como a vida pessoal tem as suas exigências e o desejo de conhecer é inesgotável na criança, encontramos espalhadas aqui e além as perguntas rudimentares sobre a evolução das coisas. «O Lulu observa os girinos que estão no frasco e diz: —-Senhor professor, não sei lá muito bem se os girinos têm ou não unhas nos pés... Pegamos na lupa e observamos os girinos: alguns nem sequer têm patas nem pés; outros têm patas, mas não têm unhas nas extremidades dos deditos. — Porque é que os girinos não têm unhas? E mais: porque é que as rãs não têm cauda?» Os textos de Trégunc abrem realmente novos horizontes. A aldeiazinha de pescadores leva as crianças a familiariza­ rem-se com o mar. De Bar-sur-Loup vê-se o mar ao longe mas sempre como uma grande extensão plana, uma toalha

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azul onde deslizam barcos minúsculos de tamanho de brinquedos; em Trégunc, o Oceano, centro da vida, é evocado quase todos os dias; todos se familiarizam com os barcos, os veleiros, as barcas; iniciam-se na pesca dos diversos peixes, do sargaço, das algas, e deixam-se envolver por essa atmosfera de combate e de angustiante incerteza que lá ao longe domina todas as famílias de marinheiros:

A GAIVOTA

«Eu estava na praia com o Henri. Andava uma gaivota a caçar. De repente, bateu na água, veloz que nem uma pedra. Mergulhou. Recomeçou a voar. Trazia um peixe no bico. Mas deixou cair o peixe no mar. O Doeuf tentou apanhá-lo outra vez, mas ele já tinha ido para o fundo.»

★ «Hoje de manhã dizia o meu pai: — Não vou encontrar as minhas armadilhas para as lagostas. Esta noite houve vento. O meu pai tinha colocado as armadilhas na margem, as vagas tinham-nas arrancado e arrastado.»

★ «Quando andava na praia a apanhar sargaço, o Le Gall encontrou um boné. No boné lê-se “Prett Guivarch-Pont Labbé”. Jâ perdeu a cor; cheira a mar. Mas mesmo assim o Le Gall gosta imenso do seu boné.» Os miúdos de Bar-sur-Loup vivem todas estas apaixonantes realidades, ao mesmo tempo poéticas e amargas, e deste modo ainda se toma mais enternecedora a afeição que lhes é votada pelos seus correspondentes da Bretanha. É de tal maneira que muito naturalmente se mandam cartas

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junto com os impressos e que a troca de encomendas se processa também com toda a naturalidade, encantando cada vez mais tanto os alunos de Bar-sur-Loup como os de Trégunc. Da Provença são enviadas flores, frutas, flores de laranjeira, perfumes, folhas de arbustos, fósseis, postais, «fogaça», «pissaladière*» e não há nenhum garoto que não traga uma porção dessas ninharias, dessas a que a criança costuma dar tanto valor: fotografias, velhos recortes de catálogos, fitas, rendas, terrinas pequenas, velhos brin­ quedos de que a custo se separam, De Trégunc vêm amostras de plantas, fotografias de barcos; aprendem-se os nomes dos barcos à vela: «Andarilho», «Vem comigo», «Santa Ana», «Gaivota», «Rainha dos Anjos», «Coragem», e ainda: «Dendei» (Vamos), «Ober mad a losked Avared», (Faz o bem e não te preocupes com a opinião dos outros), «Kenavo» (Adeus), nomes que os garotos pronunciam com um fervor solene. Chegam de tempos a tempos uns crepes enormes, del­ gados, diáfanos, que são cuidadosamente desenrolados como se fossem rendas. Repartem-se meticulosamente por todos, que os comem como se de pão bento se tratasse. Chega a haver quem leve bocadinhos minúsculos para um irmão ou uma irmã mais novos, para a mamã ou para a vovó. Em Trégunc, à chegada das encomendas de Bar-sur-Loup, é igual o recolhimento, e as «fougassettes» e a «pissaladière» típicas do Sul são saboreadas com devoção, Junto com os embrulhos vêm inúmeras cartas pessoais, onde se fala de Young e Pen-Coât como se fossem amigos de longa data. Hoje que toda a gente reivindica como sua a ideia da correspondência interescolar, seria bastante proveitoso que se publicasse o livrinho que Freinet tinha projectado escrever nos começos desta importante iniciativa. Era preciso poder reafirmar por escrito a alegria louca manifestada pelos miúdos da escola de Bar-sur-Loup quando receberam a sua primeira encomenda! Tratava-se de um autêntico aconte­ cimento, quase sobrenatural, suscitando um tal transporte

* É uma especialidade de Nice. — (N. do T.)

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de entusiasmo, uma actividade tão intensa, que contagiava até o próprio professor. E trinta anos depois, ao evocar estas horas decisivas, compreende-se a emoção contida nesta simples frase escrita sem comentários numa página do diário: «28 de Outubro de 24: agora já não estamos sós!»

Materialismo escolar

Uma escola em que a criança precisa de evoluir livre­ mente deve preencher certas condições exigidas por uma instalação prática que evitem a desordem e a dispersão. Freinet sonha (sonhar não custa...) com mesas móveis, cadeiras desdobráveis, bibliotecas infantis, mostruários, aquários, tear, oficinas em ponto pequeno dando para uma sala comum, sem portas, onde os alunos se poderiam ins­ talar onde muito bem lhes apetecesse. Mas o sonho está longe da realidade; assim, muito simplesmente, dispõe o melhor que pode as velhas mesas-carteiras, arranja bancos velhos, coloca algumas prateleiras, moderniza o antigo armário de parede; só não pode, com grande pena sua, baixar o nível das janelas altas, de prisão, para as colocar à altura da criança. Nesta nova arrumação da escola, os mais pequeninos parecem ficar um pouco prejudicados. De jardim infantil a escola nada tem e o prelo, que tem uma composição em corpo 12, nem por isso está à medida deles. Tal como são feitos em Bar-sur-Loup e em Trégunc, os impressos em corpo doze são demasiado compactos e não evidenciam a palavra e a letra de modo satisfatório. É indispensável que se descubram caracteres maiores, mais pesados e mais fáceis de manusear que interessem simultaneamente a mão e o pensamento da criança e que permitam uma composição sem hesitações nem erros. É então que Freinet se lembra dos grandes alfabetos de madeira do material Montessori; trata-se, no entanto, de um material que, por ser predomi­ nantemente sensorial, não pode convir à impressão das tais frases curtas, infantis. Procura, informa-se junto de tipógrafos locais e finalmente insiste com a Cinup, que lhe descobre uma colecção de caracteres de corpo 36, que lhe

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agrada. Os componedores de corpo 36 têm um fabrico especial; na altura são bastante caros e comprá-los é uma autêntica loucura, mas que importa? No fim do mês logo se verá... É grande a alegria dos mais pequenos ao receber a nova colecção, esplêndida, cujos caracteres são uns cubinhos brilhantes, manuseáveis, com que se pode brincar sem correr o risco de os deixar cair nas fisgas do soalho. Mas como é que se há-de imprimir? O prelo Cinup é demasiado frágil para que se consiga adaptar ao tabuleiro o bloco dos caracteres grandes. Freinet leva muito tempo a procurar a solução do problema e acaba por achá-lo final­ mente. Embora não estivesse muito habituado a estes trabalhos de carpintaria caseira, fez planos, pegou no serrote, no machado e em meia dúzia de pregos e montou uma espécie de suporte com o auxílio de dois tacos entre os quais alinhou os componedores separados uns dos outros e seguros por um sistema muito simples de tacos oblíquos. E agora para imprimir? Arranjou um enorme cilindro de gelatina do tamanho necessário e, passando o rolo na folha previamente colocada sobre os componedores embe­ bidos em tinta, com uma simples pressão obteve uma impressão quase perfeita. Portanto, na classe de Bar-sur-Loup, passou a haver todos os dias dois impressos: um, em corpo 12, para os alunos dos 7 aos 9 anos; outro em corpo 36, para os alunos dos 5 aos 7 anos. Freinet dedicou-se especialmente à experiência da im­ pressão com os mais novos. Nas suas notas pessoais faz logo um apanhado das vantagens de uma técnica como aquela que leva à aprendizagem da leitura por um processo natural, que não requer esforço, com recurso ao próprio pensamento da criança. É sabido que já no ano anterior tinha denunciado a cartilha e afirmado a influência desagregadora que esta exerce no espírito da criança; mas neste caso em que o pensamento infantil se limitava a uma frase curta impressa todos os dias, pôde verificar com muito mais nitidez até que ponto as suas pesquisas intuitivas tinham fundamento.

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Dispunha os impressos ilustrados pelas crianças, em friso, ao longo das paredes da aula e punha os seus tipografozitos a lê-los. Os caracteres de corpo 36 tinham sido introduzidos na vida da classe em Janeiro e, no fim de Julho, a maioria dos alunos lia globalmente todos os textos que tinham im­ primido; e três ou quatro também os conseguiram ler analiticamente. É evidente que estas conclusões pediam uma reconsideração mais profunda da aprendizagem da leitura, e serão precisos ainda dois anos para que Freinet se sinta apto a publicar uma síntese da sua técnica da «Tipografia na Escola», contendo o essencial deste novo aspecto da leitura global pelo método natural. Falta ali, nessa modesta sala de aula mergulhada constantemente num zunzum de actividade, um pormenor ar­ tístico, que seja capaz de completar a atmosfera poética sugerida aqui e acolá pelo espectáculo das maravilhosas paisagens que o professor submete à apreciação dos alunos c pelos poemas que improvisa para eles. Põe-se então a pensar na hipótese de organizar saraus recreativos susceptí­ veis de falar à imaginação das crianças de uma maneira mais especial. Quanto a teatros escolares nem pensar; sem propensão para a música, com uma péssima voz, demasiado cansado para ser capaz de ensaiar peças infantis, Freinet volta-se para o passatempo do cinema. A Câmara concede crédito para a compra de uma Pathé-Baby e um fotógrafo de Grasse dispõe-se a alugar filmes recreativos e educativos. Desde então, e consciente­ mente, o trabalho escolar passa a ser interrompido por breves momentos de descanso, que tornam mais leve a tarefa do professor enfermo, dando à criança simultaneamente ocasião para ultrapassar por algum tempo o real e dar largas à sua fantasia. Viagem à URSS

No fim do ano escolar de 1925, integrado numa viagem de estudos pedagógicos, Freinet vai à URSS, acom­ panhando a primeira delegação do Ocidente a ser con­ vidada pelos sindicatos do país da Revolução Socialista.

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Embora bastante cansado fisicamente e apesar dos con­ selhos alarmantes do médico, ele decide-se a partir. Sente que tem de se apoiar em qualquer coisa de novo, de inédito e de voltar costas definitivamente à pedagogia estática que em França defende com tanto afinco os seus privilégios. Antes, porém, assiste a um Congresso Nacional dos Profes­ sores Primários em Paris, no qual não lhe é dada evidente­ mente nenhuma oportunidade de falar em público sobre as suas experiências. Dá uma escapadela a Bruxelas, onde decorre um Congresso da Internacional do Ensino, e, apesar das aflições que ainda lhe advêm devido a problemas de saúde, decide-se a fazer a longa viagem ao Leste. Constituem a delegação alguns franceses, um luxemburguês, um belga, uma italiana, um português e alguns alemães. Viagem de comboio até Stettin, depois de barco, e o mar bravo, as doenças e o esgotamento... Mas, em contrapartida, em Leninegrado há o acolhimento entusiástico dos sindicatos russos, as visitas programadas pela delegação de maneira a poder adquirir-se uma visão de conjunto da pedagogia russa, Freinet vai a Moscovo e de Moscovo dirige-se a Saratov e a Estalinegrado. Naquele ambiente de penúria dos primeiros anos de construção, no meio de toda aquela pobreza que lhe recorda de uma forma tão pungente a sua pobreza de Bar-sur-Loup, volta a encontrar-se. Este entusiasmo que tão profundamente anima os pedagogos soviéticos constitui a sua própria razão de viver, toda a sua riqueza. É um prazer poder conversar longamente sobre a sua técnica da Tipografia na Escola e das perspectivas que esta encerra. Krupskaïa, então Ministro da Educação Nacional, recebe a sua delegação no Kremlin, e, numa entrevista que se processou num clima da mais franca cordialidade enquanto iam comendo maçãs oferecidas com toda a simplicidade, os delegados ouviram da própria Krupskaïa a descrição das realizações pedagó­ gicas do momento e futuras. O que mais impressiona na fala do ministro, tão modesta perante a imensidade da tarefa, ao mesmo tempo, os alunos mantenham individualmente a qual a figura do educador sofre um esbatimento, é a ambição de abrir novas perspectivas às suas iniciativas.

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Numa brochura intitulada Um mês com as Crianças Russas, Freinet relatará mais tarde as suas impressões sobre as escolas soviéticas que visitou e os contactos que teve com os pedagogos russos. Precipitadamente, regressa a França, à sua aldeia, para ver em que estado se encontra a instalação eléctrica que tinha sido montada há poucos meses. Tinha criado aí um sindicato comunal em que colaboravam pedreiros, electricistas e camponeses; drenou-se a nascente que descia em direcção ao moinho; embora pequena, a central eléctrica surgiu e em breve todos os lares terão luz eléctrica... Esta sólida aliança dos trabalhadores em, torno de uma obra comum reconforta-o. E é com uma grande impaciência pela reabertura das aulas que regressa a Bar-sur-Loup.

Novos adeptos

Juntou-se aos dois primeiros tipógrafos um novo adepto: Primas, de Villeurbanne; Freinet faz agora com que a turma se corresponda com a de Primas permitindo, porém, que ao mesmo tempo, os alunos mantenham individualmente a correspondência com os amigos de Trégunc. Aliás ainda faz uma troca mensal com Daniel. Na realidade, a correspondência com Villeurbanne não provoca o entusiasmo e a animação do intercâmbio com Trégunc. As escolas da cidade possuem uma atmosfera diferente das escolas da aldeia. Uma classe como aquela, integrada num conjunto de outras classes, tudo isto num mesmo local-caserna e por vezes sob a autoridade um tanto sombria de um director não tem a espontaneidade da escola aberta livremente à intimidade de uma aldeia. Os alunos parecem mais impessoais, dominados já por todas essas evasões como são o cinema, as saídas e as ocorrências da rua. Contudo, a curiosidade das crianças é despeitada tanto de um lado como do outro. Os alunos de Villeurbanne ficam maravilhados com a vida de aldeia e vice-versa. Em L’École Emancipée, de Julho de 1926, Freinet expõe-se as vantagens deste intercâmbio e diz a concluir:

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«Este ano, nos nossos dois livros de Vida (Villeurbanne — — Bar-sur-Loup) obtivemos três mil linhas de têxto, o que equivale a um bom livro de leitura com mais ou menos duzentos páginas. Com isto o que estou a analisar é a quantidade; quanto à qualidade dos textos, e sobretudo do trabalho, essa é e será incomparável, porque os nossos impressos foram vividos e sentidos, logo, completamente compreendidos.» Ao mesmo tempo Freinet sente que tem de aperfeiçoai o seu material. O prelo Cinup não é suficientemente prático. Seria preciso colocar os componedores num galeão e não num tabuleiro de imprensa. Por outro lado, a pressão do tabuleiro não é uniforme e é impossível evitar que as suas imperfeições não se notem na página impressa. Só numa ofi­ cina de marcenaria é que Freinet consegue explicar os de­ feitos do prelo Cinup e os melhoramentos que pretende acrescentar ao seu novo prelo. Contudo, a máquina de imprimir não avança e não há maneira de conseguir que o rabote, a cavilha ou o buril cumpram a sua obrigação. Freinet agarra de novo no seu prelo, vai para casa retocá-lo, volta à oficina, toma a ex­ plicar, e nestas múltiplas idas e vindas surge uma nova máquina de imprimir... A Cinup é posta de parte. Desta vez as crianças já podem imprimir sozinhas com toda a facilidade; instala-se o prelo Freinet n.° 2 num velho banco, à espera de que também ele revele as suas deficiências de fabrico. Entretanto são os caracteres de corpo 36 que passam a precisar de uma arrumação mais racional, para que os alunos mais pequenos possam compor com mais comodidade. A intuição do professor é mais uma vez, secundada pela boa vontade do velho marceneiro: é altura de fazer a caixa para as letras de corpo 36. Instalam-na em cima de um banco-carteira, calçado com um sólido taco, ao pé do banco das máquinas de imprimir e assim, com um pouco de imaginação, consegue-se que este cantinho lembre uma oficina de tipografia.... Pouco a pouco a ideia da tipografia na escola vai avan­ çando. Há cada vez mais colegas a escrever a Freinet

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pedindo-lhe informações. Em Bras (Var), Alziary está cheio de curiosidade, mas com uma bolsa tão pouco recheada como a dele... terá de esperar, Van Meer, director de uma escola em Bruxelas, decide-se. A partir de então, o jornal escolar de Bar-sur-Loup ultra­ passa a fronteira e os jovens tipógrafos, só de imaginarem essa viagem internacional, sentem um certo orgulho que Pierrot exprime assim: Nós até vamos à Bélgica.

Na escola de Gutenberg

Vim trabalhar com Freinet em Bar-sur-Loup em Março de 1926. Estávamos na Primavera. Como num cortiço, vai pela turma, um zunzum de actividade. Na secretária, nas mesas desocupadas e até no chão, nos recantos mais ou menos protegidos, está instalado às três pancadas um autên­ tico laboratório de Biologia: girinos, caracóis, lesmas, imensos insectos, lagartas e borboletas, todos eles estão dispostos a levar uma vida bastante precária sob as ordens supremas do Joseph. Ele abastece como pode este minúsculo Jardim Botânico cujos prisioneiros não têm outro remédio senão o de comer o que a intuição do guarda propõe : pétalas de rosa e de flores de laranjeira, corolas silvestres que com toda a sensatez foram escolhidas no local onde o insecto andava a esvoaçar, legumes frescos dos canteiros, água do regato ou mesmo — cúmulo da atenção! — gotas de orvalho tra­ zidas com mil cuidados no interior inviolado de uma folha. A secção dos cesteiros ocupa um sector bastante hirsuto, onde com a desordenada cabeleira da ráfia se misturam hastes de vime e de junco e onde os escabelos de palha, os cestos e as esteiras entrelaçadas se entrechocam numa barafunda tal, que ninguém está livre de perder a fibra ou a haste com que está a trabalhar... A biblioteca tem tendências nitidamente ambulantes e para poderem estar ao alcance de todos, os livros descem das prateleiras e instalam-se conforme a vontade dos garotos numa carteira, num banco, numa cadeira e na maior parte

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dos casos na secretária do professor, esse mago da cultura que é capaz de realizar sozinho o prodígio de ouvir cinco perguntas ao mesmo tempo e de a todas responder... Quanto aos velhos quadros Boscher, esses coitados estão um tanto maltratados no meio de tudo aquilo, e o facto de estarem para ali empilhados a um canto já é bem significativo do desprezo que neste momento todos lhes votam... Em contrapartida, a secção de tipografia tem o lugar de honra: rolos, máquinas de imprimir, caixas, papéis, tudo isso ocupa enormes bancos e espalha-se até pelo chão, embora dentro de limites bem precisos, marcados a giz... Aqui se ergue o altar... Para falar verdade, todas estas riquezas têm um certo aspecto de ferro velho; mas para lá desta fantástica desordem, reina um entusiasmo inesgotável... Embora desorientada a princípio, sinto-me invadida pouco a pouco por uma grande humildade perante esta embriaguez de actividade a que toda a decoração é indiferente, e tão quente, tão ardente, que chega a atingir uma espécie de grandiosidade virginal. Com gestos cautelosos evoluciono no meio daquelas autênticas preciosidades, empenhada em lhes respeitar o instintivo magnetismo. Só muito mais tarde é que consegui, por meio de sucessivas mas tímidas aproximações, pôr um mínimo de ordem e de harmonia em toda aquela magnífica confusão, sem que o professor e os alunos dessem por isso. As crianças entusiasmaram-se a seguir com o desenho ampliado. Até então só desenhavam em papel com formato de meia-fixa, o único de que dispunham. Quando tiveram à sua disposição Canson que não era muito caro na altura, lápis de cera baratos, aguarelas, foi uma autêntica revelação! Mas infelizmente devido à nossa falta de recursos houve que estabelecer limites a esse delírio pelo desenho. Por falta de dinheiro, tivemos de voltar aos papéis de ocasião, às folhas de jornal cedidas pelos tipógrafos de Grasse. Os resultados nem sempre eram dos melhores mas, enfim, não sabemos nós que a parte que cabe ao pobre é constituída mais pelo sonho que felizmente domina as decepções do que por outra coisa? Não se sabe bem como, mas a verdade é que a expe­ riência de Bar-sur-Loup começava lentamente a tornar-se

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conhecida aqui e acolá. Os visitantes que por lá passavam vinham bater à porta da nossa classe e informar-se sobre a novidade de um método que se apresentava cheio de promessas. E de tal maneira que um belo dia, saiu na primeira página de Le Temps, o importantíssimo jornal da alta burguesia (número de 4 de Julho de 1926), um artigo, aliás compreensível. Creio que valerá a pena reproduzi-lo parcialmente :

NA ESCOLA DE GUTENBERG «Enquanto os especialistas de pedagogia dissertam sobre os melhores métodos de ensino a aplicar à escola moderna, um modesto professor primário de aldeia, o Sr. Freinet, que neste momento difunde pelas crianças de um lugarejo dos Alpes-Marítimos os benefícios da ciência, acaba de tomar uma iniciativa pessoal cujos resultados nos parecem bas­ tante positivos. O seu novo método não pode deixar indife­ rente o mundo do jornalismo visto que consagra oficialmente a nobreza e eloquência da nossa técnica quotidiana. De facto, este psicólogo notou que a criança experimenta uma im­ pressão intensa e duradoura ao ver o seu pensamento impresso. Com isso realizam-se transmutações de valor e digamos uma transfiguração bem conhecida dos escritores e que permite perfeitamente a um professor inteligente uma acção extremamente enérgica sobre a vontade da criança. Este professor primário comprou uma máquina de im­ primir manual o que não representa uma despesa considerá­ vel. As únicas despesas com que tem ainda que contar são as que dizem respeito à tinta, ao papel e à refundição anual dos caracteres. Convida os alunos a falar e a escrever sobre aquilo que lhes interessa. Em seguida, depois de reunidas as melhores dessas narrativas, são-lhes prestadas honras de “composição" e de impressão. As páginas assim obtidas são lidas com uma extraordinária avidez por toda a turma e muito especialmente pelos que nelas colaboraram. Esta verificação é perfeitamente correcta. A imprensa confere à palavra uma dignidade cujo prestígio as crianças

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irão sentir profundamente. Verter no metal o seu próprio pensamento é assegurar-lhe uma aparência lisonjeira de solidez e de perenidade, Este gesto possui uma beleza semelhante ao do escultor ou ao do gravador de medalhas. Cada um dos caracteres moveis é um pequeno pedestal que suporta a estátua de uma letra. O que no componedor se forja é a glorificação de uma palavra e a apoteose de uma frase. ...O trabalho em prol da imprensa constitui uma ope­ ração da inteligência totalmente diferente da que consiste em cobrir de tinta um caderno escolar. É com cuidado e respeito infinitamente maiores que se escolhem as palavras se se sabe que elas vão ter honras de composição, que vão envergar o uniforme dos regimentos de Gutenberg e desfilar em parada, numa ordem impecável, perante os olhares atentos e extasiados da multidão dos leitores. Aliás, do ponto de vista pedagógico, o método parece-nos excelente. Formar as palavras "mexendo nas letras” é um processo objectivo de aprender ortografia, processo cuja eficácia parece não deixar dúvidas... ...O professor dos Alpes-Marítimos soube utilizar-se com muita habilidade de todas estas disposições secretas do nosso instinto. Consta que obtém excelentes resultados práticos e que recolhe todos os anos das mãos dos seus jovens tipógrafos um "livro da vida” com imenso interesse. Troca o livro por um trabalho análogo executado em iguais circunstâncias por alunos do Ródano, tendo em vista o alargamento da sua acção. Qual o jornalista que ia deixar de saudar com simpatia uma iniciativa que presta home­ nagem ao que de mais misterioso, mais inquiétante e mais intenso há na sua técnica quotidiana, que utiliza para saturar o ar que respiramos de partículas de sensibilidade e de inteligência?» O jornal reaccionário da região, L'Eclaireur de Nice, não querendo ficar atrás depois da saída do artigo do Temps, enviou um jornalista a Bar-sur-Loup para se informar daquilo que se passava. No número de 6 de Julho de 1926, o jornal traz uma grande reportagem com uma fotografia. A título de indicação, vamos citar também as últimas

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linhas do jornalista G. Davin de Champclos, na conclusão do artigo. Isto tem uma certa importância porque alguns anos mais tarde, no caso de Saint-Paul, encontraremos nesse mesmo L'Eclaireur de Nice artigos diários sobre Freinet mas desta vez exclusivamente dedicados a difamá-lo e a caluniá-lo da maneira mais vil. «... Despeço-me deste homem de iniciativa e de coragem, a quem Le Temps consagrou recentemente uma elogiosa crônica. L'Éclaireur achava que, por sua vez, tinha o dever de dar a conhecer esse filho dos Alpes-Marítimos que teve uma belíssima ideia e que tão corajosamente a pôs em prática...» Estava dada a primeira deixa no seio da imprensa. Atrás uns dos outros, os diversos jornais franceses põem-se então a dar informações mais ou menos fantasistas sobre a introdução da Imprensa escolar no novo processo da Escola francesa. Até na Itália, o Corriere della Sera argumenta a respeito das iniciativas do humilde professor de Bar-sur­ -Loup. Todos estes factos contribuem para dar uma ideia da fantástica influência dos jornais de grande tiragem como Le Temps assim como da aptidão que tem a maioria dos nossos jornais diários para andar a reboque. Neste caso, o Petit Niçois é uma excepção à regra dos elogios e reagindo ao rival, L’Éclaireur de Nice, ataca Freinet abertamente. A título de curiosidade, atentemos nesta significativa pas­ sagem: «...O ensino e arte são duas coisas perfeitamente dis­ tintas, que raramente andam juntas. Enquanto as crianças estiveram afastadas da arte contentaram-se com a escola, mas, quando souberem que fechando a cartilha têm o direito de largar a gramática e mesmo assim de conquistar a imor­ talidade, porão de parte os programas, os horários e o tra­ balho e só cuidarão da sua plantazinha da vaidade: e quem a semeou foi o Senhor, Sr. Freinet. Quantos remorsos não há-de sentir!» Foi uma ocasião magnífica de o humilde professor travar as suas primeiras polémicas com a gente do jornalismo:

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«Eu pretendia acima de tudo contribuir para um maior desenvolvimento do bom senso dos filhos dos trabalhadores. Espero que quando crescerem os meus alunos se venham a lembrar daquilo que são verdadeiramente as folhas im­ pressas: vulgares pensamentos humanos que estão infeliz­ mente bastante sujeitos a erro. E do mesmo modo que hoje criticam os seus modestos impressos, assim espero que mais tarde saibam 1er e criticar os jornais que lhes forem apresentados.» E nada disto impedirá que o próprio Le Petit Niçois, no caso de Saint-Paul, venha a defender Freinet calorosa­ mente...

A união com os adeptos

Durante a Primavera de 1926, Freinet fez uma relação dos seus dois anos de experiências num livrinho intitulado A Tipografia na Escola, Quanto mais não seja, a minha presença tem a vantagem de suscitar criticas, de ajudar a definir ideias e de aliviar a pesadíssima tarefa de Freinet. Contando que o seu modesto vencimento, único rendi­ mento que temos para manter o lar, lhe dê a possibilidade de fazer algumas economias para a edição deste primeiro livro, faz circular o manuscrito pelos seus adeptos. É que ele agora já tem adeptos e já vamos dizer quem. Trabalha incansavelmente por essa grande ideia que o anima, escre­ vendo todos os dias longas cartas a todos aqueles que o con­ sultam, firmando-lhes o interesse e isto apesar da pobreza da documentação que possui, porque nessa altura os textos que há para mostrar são curtos e muitas vezes bastante imperfeitos, apenas capazes de seduzir pela sua linguagem. Pela noite dentro redige circulares para os colegas com o fito de criar uma união permanente dos artífices de uma mesma obra. Algumas das circulares são escritas à máquina, outras são policopiadas. Parece-nos que a leitura de uma dessas circulares de Freinet poderá ser significativa, porque já testemunha o

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seu constante cuidado em estabelecer técnicas baseadas nas realidades do meio e capazes de orientar a pedagogia, através de processos práticos, no sentido de uma com­ preensão social e psicológica da criança.

PRIMEIRA CIRCULAR 27 de Julho de 192ó

«O número de escolas que trabalham com a imprensa está constantemente a aumentar. No ano passado éramos só dois. No proximo mes de Outubro seremos seis. É absolutamente indispensável uma colaboração cons­ tante de todos, quando se começa a aplicar uma técnica. Pomos em comum as nossas objecções, os nossos achados e também os nossos dissabores e os nossos erros a fim de nos ajudarmos mutuamente. Peço-lhe que me escreva com fre­ quência tanto para pedir como para dar informações. Farei os possíveis por conseguir que estas trocas de correspondência aproveitem a todos. A organização do intercâmbio de impressos entre escolas deve ser a nossa primeira preocupação. Previmos o seguinte: 1º) Uma permuta diária entre duas escolas de nível mais ou menos idêntico. 2º) Uma permuta mensal, automática, entre todas as escolas que trabalham com a imprensa. Permuta diária entre duas escolas é a mais delicada. Tanto quanto possível, é necessário que as duas classes se compreendam perfeitamente e se completem. É por essa razão que não posso decretar arbitrariamente que uma deter­ minada escola deverá trocar os seus impressos com uma outra. No intuito de estabelecer estas comunicações dentro das melhores condições possíveis, solicito-lhe que me envie sem falta e de um modo tão completo quanto possível as seguintes informações:

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— Qual o nível da sua classe? CP e E, CE, CM, CS, etc... especificando caso seja necessário. — Qual a composição da turma? Em quantas classes se divide? Quais as classes mais interessadas em imprimir? — Descrição resumida do meio —cidade ou aldeia, camponês ou operário— indústrias locais, etc... — Entre as escolas que mencionamos em baixo diga as que pretende escolher para correspondentes. A permuta diária só pode ser feita em França; custo: 0,20 fr. As remessas para o estrangeiro custam 0,25 fr. ¹. Tem de ficar tudo pronto até Outubro. Conto com a sua resposta. P.S. Numa próxima carta dar-lhe-ei indicações sobre a escolha e o fornecimento de papel e sobre um processo prático de reunião das folhas impressas. Acabo de concluir um relatório geral sobre a nossa experiência com a Tipografia na Escola. Enquanto espero pela edição do livro vou enviar uma cópia desse trabalho aos nossos colaboradores. Peço-lhe que não o retenha por muito tempo para que a circulação possa ser bastante rápida (cinco ou seis dias devem bastar)2. Peço aos colegas o favor de enviarem, se possível, a morada de férias ao colega que lhes enviar o manuscrito.»

(1) A lista das escalas que já tinham material de impressão era a seguinte: Freinet, Bar-sur-Loup (A.-M.).— Men. Ripert, Beni-Saf (Orão). — Van Meer, Bruxelas. — Bordes, Saint-Aubin-de-Lanquais (Dordogne).— Daniel, Trégunc (Finisterra).— Primas, Villeur­ banne (Ródano) às quais se associarão, antes de Outubro: Alquier, Vias (Hérault). — Alziary, Bras (Var).— Sr. Ad. Fer­ rière, Genebra e outras. (2) Circulou com esta ordem: Sr. René Daniel, em Trégunc (Finisterra). — Sr. Primas, 124, curso E. Zola, Villeurbanne (Ró­ dano).—>Sr.ª H. Alquier, em Vias (Hérault). — Sr. P. Bordes, em Saint-Aubin-de-Lanquais (Dordogne). — Men. Ripert, em Beni-Saf (Orão).— Sr. Alziary, em Bras (Var). — Sr. R. Van Meer, Director da Escola média, rue de la Prospérité, em Bruxelas. — Sr. Ad. Ferrière, Director do Secretariado Internacional das Escolas Novas, n.° 10, Chemin Peschier, Champel, Genebra. — C. Freinet, Bar-sur-Loup.

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Finalmente uma visita há muito esperada

Foi no fim desse ano que a escola de Bar-sur-Loup recebeu os seus primeiros visitantes trazidos por uma efectiva curiosidade de conhecer a experiência que se estava a realizar na nossa classe. Numa tarde de Primavera, Freinet dirige-se ao apeadeiro de Pré-du-Lac para esperar Alziary e Pascal que vêm fazer passar as técnicas da Imprensa Escolar pelo crivo do seu espírito crítico. Discute-se imenso na expectativa da hora H do recomeço das aulas, no dia seguinte... Inútil dizer que a atmosfera da escola desorienta um pouco os nossos visitantes, formados como foram dentro dos métodos tradicionais e habituados como estão a controlar a aquisição de conhecimentos pela criança. As idas e vindas dos alunos pela sala fora, a maneira espontânea como falam, perguntam, criticam, e a aparente barafunda, que ainda não havia desaparecido por completo, surpreende-os profundamente e deixa-os derrotados. Alziary, que é bastante novo e que está ainda muito próximo da es­ pontaneidade infantil, vai-se deixando conquistar; apercebe-se da naturalidade e da riqueza de todas aquelas actividades infantis, que, por si sós, levam directamente à compreensão e à descoberta. E declara-se rendido. Mas Pascal, não se deixa levar. E então a lição de gramática, muito breve, feita através de uma meia dúzia de observações sobre o texto do dia, acaba por o deixar completamente desiludido. Na sua própria classe havia ele elaborado um sistema com­ pleto de ensino didáctico da gramática, formado por figuras geométricas de cartolina colorida que correspondiam aos substantivos, aos verbos, aos complementos e até aos mais ínfimos dos elementos do discurso, desempenhando todos eles um papel específico... Qualquer aluno da sua escola, dele, Pascal, podia ser um erudito ao pé de... Freinet, sendo evidente que se sente incomodado com o desembaraço com que este, em breves minutos, conduz uma caça às palavras, maneja uma conjugação ou faz alguma observação sobre ortografia. Tudo isto, para ele, constitui uma decepção, que não consegue ultrapassar, embora se veja obrigado a

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reconhecer que, por outro lado, na origem da atitude nova das crianças e da sua inesgotável sede de saber está uma nova orientação da pedagogia, por vias mais racionais e mais humanas. E, enquanto que Alziary já dá tratos à cabeça para descobrir o processo mais rápido de equipar a sua classezinha de Bras, Pascal confessa-se incapaz de se decidir assim com tanta facilidade a abandonar as delícias da aprendizagem da gramática, que tantas discretas alegrias e êxitos lhe traz. No princípio do novo ano escolar há mais três novos adeptos a acrescentar à lista dos tipógrafos, tal como vem indicado no n.° 2 do Boletim de Novembro de 1926, boletim esse que foi, como sempre, dactilografado numa «Mignon»³. Começam as permutas interescolares. A contabilidade dá conta deste facto inédito, as nossas posses elevam-se a 34 X 2 = 68 francos. Para encorajar os timoratos, uma resposta sedutora: À medida que os fundos o forem permitindo, será atri­ buída a cada sócio uma acção de 25 fr. Os novos compra­ dores do prelo beneficiarão desta mesma acção. Os colegas que quiserem aderir à nossa Cooperativa sem comprar o prelo terão de depositar a soma de 25 fr. Inúmeras circulares dactilografadas vão ligar Freinet aos colaboradores; são elas que incansavelmente trazem os pormenores de ordem prática, as considerações técnicas, os avisos de caracter administrativo (as notas sobre jornais escolares, portes postais, etc...) e que dão especial destaque às iniciativas de cada um. Este reduzido mas valoroso grupo de professores primários, apesar de condicionado pela pobreza de meios e pelo isolamento, lá vai progredindo meticulosa e pacientemente no seu trabalho de formigas. E tudo converge no formigueiro. Bordas (Saint-Aubin de Lanquais) propõe-se editar alguns livrinhos ilustrados. Jayot (Sailly , Ardennes) anuncia uma colectânea de poesias.

(3) Regard, em Champagnole (Jura). — Bouchard, em Lion (6.*). — Jayot, em Sailly (Arderías).

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Freinet lançou um conto ilustrado (circular de Novembro de 1926) cuja propaganda foi tão bem conduzida que em Janeiro de 1927 havia já mais sete sócios4. Em Março aparecem mais dois5. O Boletim de 2 de Janeiro de 1927 aponta triunfal­ mente: x A nossa Cooperativa tem neste momento 150 fr. O Sr. Pathé (intelectual com muitas simpatias no nosso movi­ mento) prometeu-me quatro acções, ou seja, 100 fr. Foi ainda em Janeiro que saiu L’Imprimerie à l'École, que o Sr. Ferrary insistiu em editar por sua própria conta e risco. De frisar a dedicação votada por este humilde artesão à causa Freinet desde o princípio da experiência da Tipo­ grafia na Escola. Fora por mero acaso que vendera o seu prelo Cinup a Freinet, mas logo se apercebera do interesse profundo de uma iniciativa como aquela, não por razões comerciais, porque estava a par da pobreza dos clientes, mas porque pressentia realmente o valor da experiência e o desinteresse profundo do modesto professor, seu ani­ mador. Deste modo, aceitou sem hesitar o risco da edição do primeiro livro de Freinet. Tinha razão, pois não demora muito a que os ecos do livro ressoem um pouco por todo o lado. Escreve Freinet na circular de Fevereiro de 1927: «Neste momento há mais de cem camaradas, franceses e do estrangeiro, a pedir-me informações. Parece, pois, que o meu livro obteria um certo êxito de venda. Peço-lhes que contribuam com tudo o que puderem, porque: 1.º) É necessário restituir o dinheiro ao Sr. Ferrary, que não hesitou em custear a edição de um livro recusado pelas editoras; 2.º) Servirá de propaganda do nosso movimento; 3.º) Pode tornar-se numa fonte de receita para a nossa Cooperativa. Com efeito, o Sr. Ferrary concederá uma (4) Alziary, Bras (Var). — Sr.ª Lagier-Bruno, Saint-Martin-de-Queyrières (H.-A.).— Wullens, Lourches (Norte). — Regad, Pontarlier (Jura). — Hoffmann, Bouxières-sous-Froidmont (M.-et-M.),— Leroux, La Neuvillette (Sarthe), — Sr.ª Audureau, Pellegrue, (Gironde). — Ferrière, Genebra. (5) Ballon, em Pont-de-Ruan (I.et-L.). — Brel, em Menton (A.-M.).

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percentagem de 40% aos depositantes, portanto, 2,80 fr. por cada exemplar. De acordo com isto, creio que cada um de vós ainda ganhará se entregar 20% por exemplar à Cooperativa. Quanto a mim, pretendo incluir o desconto dos livros que vender, por inteiro, na conta comum. Os sindicatos, livreiros e organizações diversas terão o mesmo desconto. Solicito-lhes, portanto, que encomendem sem demora um certo número de exemplares em depósito (pagáveis só depois de vendidos e neste caso o desconto é só de 33 %) e que façam alguma propaganda a esta venda nos vossos boletins sindicais. (É favor enviar recortes.) Dar ao Sr. Ferrary moradas de depositantes. Continuem a fazer passar as encomendas de material de imprensa pela Coop.» Cálculos de pobre, em que se contam todos os tostões e que dominarão toda a obra da CEL... a CEL foi sem­ pre, ao longo da nossa vida familiar, uma espécie de génio exigente, presença obcecante na nossa mente e na nossa casa, apoderando-se insidiosamente do melhor dos nossos carinhos e dos nossos pensamentos, conduzindo-nos inexoravelmente às zonas inexploradas que Freinet, com o seu espírito de iniciativa, se via na obrigação de desbravar, a grandes pazadas, numa espécie de exaltação que nos domi­ nava corpo e alma.

O espírito de equipa

O que mais impressiona na leitura de todas essas cir­ culares escalonadas ao longo do ano escolar de 1926-1927 é o fantástico dinamismo do reduzido grupo de educadores de vanguarda, que nunca deixaram de pôr em comum todos os seus esforços, de repartir tarefas, de procurar à sua volta novas oportunidades de exaltação do seu entu­ siasmo, da sua fé: Bordas aprende a gravar chumbo para poder fazer chapas de ilustração; Leroux inventa chapas de cartão coladas em tacos de madeira e carpinteira como pode de modo a dar aos camaradas habilidosos possibilidade de fabricarem eles próprios parte do material; Bouchard estuda

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o problema dos caracteres e dos rolos de tamanho variável e descobre uma duplicadora barata, Alziary toma a seu cargo a tarefa das correspondências interescolares, que ficará a ser a sua especialidade, ao longo de quase toda a história da CEL. Freinet dedica-se sobretudo a assentar a actividade pedagógica sobre todo este materialismo escolar, que está a arrancar de uma maneira bastante favorável. Verifica constantemente em que ponto se está, prestando a maior atenção às críticas dos camaradas; e é assim que, na circular de 15 de Março de 1927, escreve sobre o inter­ câmbio: «O número de escolas que estão a trabalhar com a imprensa cresce de mês para mês6. Por momentos cheguei a pensar que poderiamos continuar com o actual sistema de intercâmbio de todos os nossos impressos até Agosto. Alziary chamou-me a atenção para os inconvenientes deste sistema. Neste momento estou de acordo com ele. Temos de descobrir uma organização suficiente­ mente maleável, capaz de proteger ao mesmo tempo os interesses de todas as classes, a estabilidade da nossa cola­ boração e as necessidades do grupo.» Segue-se uma reorganização das trocas que viria a per­ mitir uma mais estreita relação entre as escolas, segundo afinidades ditas económicas e sociais. As escolas de Bar-sur-Loup e de Trégunc trocam nova­ mente os seus impressos. O ano de 1925-1926 tinha esta­ belecido sólidas amizades. O ano de 1926-1927 estreitá-las-á ainda mais; e mais uma vez se enviarão para a Bretanha os impressos, as cartas e as encomendas. Assim que nos surgiu a ideia de fazer uma revista com a participação de crianças, La Gerbe, pusemo-la em prática. Enviam-se logo ordens aos camaradas e a nossa revista infantil começa a estar no espírito de todos. «La Gerbe! Será este o nosso título. Nas várias sugestões dos camaradas transpareciam todas estas ideias: cooperação, união, utilidade pedagógica. Parece-nos que La Gerbe reúne (6) Temos de acrescentar à lista Femand Cattier, Dir. do EN de Mirecourt (Vosgos).— Subra, em Antras (Ariège). Spinelli, em Menton (A.-M.).

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tudo... até hoje recebi sete colaborações, todas bastante válidas. Claro que cometemos erros. Nós próprios quisemos inserir em duas páginas um texto demasiado longo, o que prejudica bastante a apresentação. Será preferível tomar os textos mais leves, mediante a introdução de desenhos variados. (Circular de 12 de Março.)» Uma outra circular, de 15 de Março, que contém as mesmas apreensões de ordem prática e pedagógica, conclui com estas linhas animadoras: «Neste momento, é muito intensa a vida do grupo. Em breve espero ter em meu poder um Duplic com o qual organizarei o contacto de um modo mais regular e mais apropriado. E isto porque em Outubro necessitamos de uma sólida organização. Nessa altura, todos terão de con­ tribuir para a obra comum com um pouco do seu sacrifício. Somos pobres. Mas, com o nosso entusiasmo, poderemos passar sem a solicitude dos grandes.» Nesta frase há uma alusão a certas propostas que uma editora de material escolar fizera a Freinet mais ou menos indirectamente. Mas, em vez de optar pelo caminho mais fácil, que conduz às honrarias e à fortuna, Freinet preferiu rodear-se de preocupações financeiras, que nunca o largaram. Não beber, não fumar, não sair, não se preocupar com «toilettes», ficar alheio às tentações de belas mobílias e de objectos caros, eis óptimas maneiras de economizar. E tão bem ou tão mal se empenhou em fazê-lo que a verdade é que, em meia dúzia de meses e de uma só vez, podíamos pagar o grande prelo Duplic e adquirir ainda por cima urna câmara Pathé-Baby, que trocamos pela nossa belíssima máquina fotográfica, acrescentada de um suplemento em dinheiro ao alcance da nossa magra bolsa. Fazíamos várias vezes caminhadas a pé de Bar-sur­ -Loup até Grasse pelo prazer de andar e de ir discutindo e fazendo planos, felizes por termos uma maneira de eco­ nomizar uns francos que depois desapareciam na compra de ninharias úteis nas livrarias e lojas de Grasse. Foi assim que conseguimos adquirir uma colecção de material próprio para pequenos trabalhos manuais, que iria ajudar a aper­ feiçoar a nossa instalação escolar e a admirável perfuradora de correeiro, os cordões de couro, os rebites, que nos

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serviram para reunir, com uma certa originalidade, os primeiros números da nossa Gerbe. Para ser franca, esta primeira Gerbe f que deixou Freinet plenamente satisfeito, ainda me desiludiu: se é certo que manejávamos a perfuradora com calor, que batíamos ale­ gremente na bigorna própria para enterrarmos os rebites, acabavamos por nos cansar e cada vez era mais profunda a decepção, por não termos conseguido realizar a bela brochura que tínhamos imaginado. Freinet, esse, como sempre, saltava por cima dos pormenores imperfeitos, e, ao participar no Boletim de 4 de Abril de 1927f este êxito «relativo», fazia-o com o seu habitual entusiasmo... «Apesar das rudimentares condições de elaboração que presidiram à confecção deste primeiro número, La Gerbe foi um êxito. O papel era mau, com forma e consistência das mais diversas. Teve de ser todo acertado, Mas o entu­ siasmo e a habilidade dos colaboradores compensam todas as imperfeições. Este primeiro número foi tão bem recebido pelos alunos, que se tivéssemos feito uma segunda tiragem poucos exemplares ficariam por distribuir.» A seguir debruça-se demoradamente sobre as vantagens incontestáveis de La Gerbe, utensílio de aperfeiçoamento pedagógico, laço de união entre os impressores, valioso órgão de propaganda. E, de facto, a partir dos números posteriores, La Gerbe tomou-se naquilo que ainda era pas­ sados trinta anos: o jornal infantil mais esperado, mais lido e melhor compreendido pelos jovens leitores das nossas classes. A aparição do livro A Tipografia na Escola suscitou na altura um redobrado interesse pelas técnicas Freinet. Causa surpresa a leitura, nesse mesmo Boletim (4 de Abril de 1927), da lista impressionante de jornais pedagógicos, sociais ou políticos que mencionaram as experiências deste pequeno grupo de professores primários7. (7) Progrès civique (Paul Allard), L’Imparcial Français, L’École émancipée n.° 24, Pour l'Ere Nouvelle, Março (A. Ferrière) La Révo­ lution Prolétarienne (B. Giauffret), L’Oeuvre Sociale, Besançon (Hérard), Revue de l'Enseignement, l"Enseignement Public — Nou­ velle Éducation, Abril (Srª Guéritte), Le Petit Niçois (Issautier),

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Como os tempos mudaram! Agora que as técnicas Freinet animam muitos milhares de escolas, a conspiração do silêncio das revistas pedagógicas tenta lançar no vazio realizações que são o orgulho da escola francesa. Em Maio de 1927 há novas adesões, francesas e inter­ nacionais8. Chegam a Tonkim: a Courtoux, inspecter das escolas de Thai-Nguyen (Tonkim). A situação financeira parece estar a melhorar visto que feito um balanço minucioso, há ainda no activo 291,65 fr.! Qual a proveniência deste dinheiro em caixa? Primeiro, das larguezas da Cinup que dá 10% de des­ conto a qualquer comprador de material filiado na CEL Este, generosamente, fez reverter espontaneamente o lucro obtido graças ao trabalho comum em favor da CEL. E isso que permite que, frequentemente, se leia nos balanços da tesouraria indicações deste género: Jayot: 28,30 fr. — Regad: 34,05 fr. — Hoffmann: 39 fr. — Barel, 34,90 fr., etc... Que belo exemplo, a merecer a atenção dos nossos sócios actuais, tanto mais exigentes quanto mais tarde se juntaram a nós e beneficiam ao máximo da obra paciente dos antigos, edificada, muito antes deles, à custa de dedicação e de convicção! A Gerbe tem uma contabilidade particular. Cada cola­ borador recebe dois exemplares. Os outros são entregues a 0,50 fr. Logo a seguir vem a pormenorização das despesas, Les Humbles, Janeiro (Wullens), L’idée Libre, Abril, i(Lorulot), L’Étoile Belge, 19.º Bol. pedag. da cir. de Corté (Vidal J.), Bulletins Syndicaux, Finisterra (Daniel), Action Syndicaliste P.O. (Combeau), L'action corporative du S. O. (Bordes), Bulletin du S. N. de M. et M. (Hoffmann), Notre Arme, (A. M.) (Aicard), Bureau Interna­ tional Éducation (Genebra), La voie d'Éducation, Karkov, n.os de Nov. e Dez., Feuilles d’Avis, de Neuchâtel (A. Ferrière), El Magistère Taraconense (Espanha) (H. Cassasses), El Ideal de Granada (G. Martin.), El electricitas (M. Cleut), El Magistério Espagnol, n.os de 4, 13 e 25 de Janeiro (Cluet). (8) Voirin, em Chémery-sur-Bar (Ardennes). — Lallemand, em Linchamps (Ardenas).—Guillou, em Saint-Hilaire la Gravelle (L.-et-G.) — Manuel Cluet, em Madrid (Espanha). — Berberat, em Bienne (Suíça). — Meyhoffer, em Genebra (Suíça).

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das subscrições, das receitas da venda e como sempre a conclusão é optimista: «Constata-se, pois, que a nossa revista é per feitamente, viável. Portanto, a partir de hoje, deixo a contabilidade. A cooperativa escolar de Sailly (Ardennes) encarregar-se-á da tesouraria.» Todo este final de 1927 constitui um prodígio de actividade em prol da Imprensa Escolar. As tarefas são distri­ buídas pelos mais dedicados. Leroux fica com o fornecimento de papel, tanto para os jornais escolares como para a Gerbe, e ainda por cima é ele que faz as circulares no duplicador porque «com o uso» o Duplic revela-se incapaz de cumprir as suas funções, o que faz com que a composição seja muito demorada e a impressão bastante caprichosa. Fazem-se contas rigorosas, com aproximação até aos cêntimos, para o envio das circulares suplementares dos Boletins ou dos jornais escolares: Daniel fica com a tesou­ raria. Dejon encarrega-se dos componedores. Bordas, dos rolos e, mais tarde, dos prelos. Coutelle, da ferramenta dos trabalhos manuais. S. Garmy, das encadernações e, na circular n.° 6, Leroux fornece um esquema para a cons­ trução de um pequeno duplicador com uma moldura de ardósia, bastante barato e muito eficiente. Freinet continua a arranjar os seus prelos. Com o uso o prelo Freinet n.° 2 manifestou as suas falhas, é tempo de passar ao n.° 3... De novo as idas e vindas à carpintaria e finalmente, uma vez mais, o hino da vitória: «O meu novo prelo está pronto: agrada-me totalmente. Uma criança de sete anos pôde imprimir com a página inteira do sumário de La Gerbe. Preparo neste momento as instruções, que comunicarei em breve. O prelo fica-me por 10 francos... Vou publicar um opúsculo de quatro páginas em que explicarei o modo como se constrói.» Mas havia ainda um assunto bastante sério por resolver: depois de três anos de actividade, a Cooperativa ainda não estava legalizada... À medida que o número de sócios ia aumentando, era urgentemente necessária a legalização. Infelizmente, as formalidades para o efeito requerem fundos e é essa a causa deste lamentável atraso, que ameaça sair ainda mais caro. Lê-se na circular n.° 6:

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«Apesar de tudo, era necessário pensarmos na legalização da nossa Cooperativa. É um assunto muito delicado. Sinto -me hesitar, por causa dos 800 ou 900 francos que essa legalização nos há-de custar.» A quantidade requer também a organização material; temos de contar de antemão com o armazenamento de material fundamental: prelos, rolos, componedores, papel, e isto para só nos referirmos ao que é indispensável, principal inquietação daquele que tiver de assegurar, sem quaisquer adiantamentos de fundos, uma responsabilidade comercial desta ordem... «... É por este motivo que vos convoco a todos para cola­ borar num grande inquérito, cujos resultados tentarei pu­ blicar. Mas é preciso que todos respondam. Para o efeito apresento um questionário que não é de modo nenhum limitativo. Compete-vos a vós dizer tudo o que acharem que seja útil. A. — A organização técnica da imprensa na vossa classe: como dispôs o material? Qual a hora que os seus alunos preferem para compor? (Marca um tempo determinado para esse efeito?) Quando é que imprimem? Quando é que coloca os caracteres? Quantos colaboram na impressão? Como organizou esse trabalho? Utiliza o prelo Cinup? Em que sentido alterou o emprego do prelo (ver modo de emprego na minha brochura). Que melhoramentos lhe parecem mais urgentes? Quais os prin­ cipais contratempos que teve com este material? Como acha que se poderiam remediar? (Não indicar os do começo, devidos à inexperiência do professor.) Qual foi este ano a despesa aproximada e quanto pensa gastar no próximo? B. — Espessura dos caracteres: Qual o tipo de letra que lhe parece mais adequado para a sua classe? Corpo 12, 9 ou intermédio 10? Que inconvenientes e vantagens nota no corpo que está presentemente a utilizar? Acha que dois jogos de caracteres lhe trariam alguma utilidade? C. A imprensa nas suas relações com o trabalho es­ colar: a) Segue apenas o interesse preponderante da classe, de acordo com o trabalho e as estações, ou adopta centros

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de interesse estabelecidos logo de início? Como proceder? Que resultados pensa ter obtido? b) Como relacionar o ensino com a imprensa? Nomeada­ mente: que partido tirar dos impressos diários ou bimensais recebidos por troca? Que fazer com eles depois de lidos? Que possibilidades lhes acha? Podem suprimir-se os manuais? Quais? Como? c) Como reunir os impressos? Qual é o formato mais funcional? d) Qual foi a apreciação do seu I. P., do seu director, da população? D. — Vantagens e desvantagens da imprensa escolar: a sua opinião, as suas sugestões sobre La Gerbe e o nosso Boletim.» (Circular de Maio de 1927.) A circular número 8 já é um pouco mais alarmante a respeito das apreensões monetárias. É mesmo preciso que as coisas estejam a correr bastante mal para que Freinet faça um apelo tão directo: «Todas as encomendas por atacado, ou seja, os abaste­ cimentos de material de que vos falei, necessitam de adian­ tamentos. Prometeram com todo o entusiasmo enviá-los. Lançamo-nos decididamente para a frente, convencidos de que dariam o vosso contributo ao nosso primeiro apelo...» A circular número 9 prova que os seus receios ainda não se dissiparam por completo: «Esperamos que todos tenham saldado as dívidas a Jayot. Peço-lhes sinceramente, não sobrecarreguem a nossa tesouraria, que luta com tantas dificuldades neste período inicial...» Caberia aos acontecimentos a demonstração de que os anos vindouros seriam, no aspecto econômico, declaradamente semelhantes aos primeiros e levar-nos à seguinte con­ clusão: em sistema capitalista, qualquer organização que não se submeta às exigências de uma mais-valia excessiva não consegue obter viabilidade comercial sem a dedicação finan­ ceira e moral dos que a animam. São estas realidades eco­ nômicas, tão duras, que derramam sobre a nossa obra uma nódoa que nunca chegará a dissipar-se.

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As dívidas iam-se acumulando no nosso orçamento e o meu pedido de emprego nos Alpes-Marítimos permanecia sem resposta. Felizmente arrancaria o primeiro prémio Gus­ tave Doret em Maio de 1927. Alargam-se, mais uma vez, as nossas perspectivas... Para cúmulo de sorte, um camponês benevolente colocou à nossa disposição a sua propriedade meio abandonada em que abundavam frutas, que se iam sucedendo agradavelmente ao longo do Verão. Ali fizemos a nossa melhor cura de frutas; à noite jantávamos debaixo das árvores carregadas de cerejas, nêsperas, peras e figos. Depois desta experiência enveredaríamos pelo caminho da reforma alimentar que iria restituir a saúde a um doente como Freinet, que já fora dado como perdido.

O primeiro Congresso Tours (1927)

No fim do ano saiu o nosso primeiro excerto de La Gerbe: «Um rapazinho na montanha». Foi para nós uma imensa alegria. Levámos connosco um «stock» inteirinho desses excertos para o nosso primeiro Congresso da Tipo­ grafia na Escola, que se realizava em Tours nos primeiros dias de Agosto, ao mesmo tempo que o Congresso anual da Federação do Ensino em que Freinet participava como secre­ tário sindical pelos Alpes-Marítimos. Assistia também Manuel Cluet, vindo de Madrid com a expressa autorização de Primo de Rivera. Para o movimento da Tipografia na Escola, este primeiro Congresso revestiu-se de facto de uma im­ portância considerável. Tratava-se mesmo da primeira vez em que Freinet mantinha com os seus aderentes um contacto tão vasto e tão profundo, visto que, na sua grande maioria, só os conhecia por carta. Foram minuciosamente abordadas as questões relativas ao material (prelos, componedores, letras, papéis, enca­ dernação e ilustrações de vária ordem). Mas, mais do que tudo isso, pôde Freinet ter a satisfação de lhe ser dada a oportunidade de precisar e de salientar o espírito com que as técnicas da Tipografia na Escola deveríam ser utili­ zadas. Preveniu os camaradas contra o emprego demasiado

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formal da imprensa, o que voltará a fazer em todos os Con­ gressos. A Tipografia na Escola não deve servir o antigo método através da impressão de textos de adultos, de resu­ mos escolares; é um instrumento de libertação do pensamento infantil; Freinet estava já a expor, assim, as exigências do texto livre. Adverte especialmente os educadores dos cursos superiores, das escolas profissionais e dos EPS so­ bre os perigos do uso da Imprensa ao serviço de um regime escolar retrógrado, incapaz de renovar o espírito da classe. «Esperamos que a via apontada pelas nossas escolas primárias que vivem, escrevem e lêem com alegria venha um dia a influenciar as escolas formalistas e a ajudá-las a fazer triunfar a vida, sem o que nunca existirá uma educação verdadeira.» Por esta razão dedica-se ainda mais a fundo a facilitar as trocas interescolares. Em Tours, na noite de 7 de Agosto de 1927, Freinet apresentou aos impressores um filme muito curto represen­ tando os alunos de Bar-sur-Loup em pleno trabalho. Tudo isso despertou nos seus camaradas um extraordinário in­ teresse. Ficou decidido que se desse a possibilidade a todos os camaradas de fazerem filmes como este e que Boyau, encarregado da «Cinemateca Cooperativa» (que de facto nasceu neste primeiro Congresso), tentaria reproduzi-los.

Intercâmbio escolar (França)

Já nessa altura a lista dos aderentes de Tipografia na Escola era de certa maneira imponente 9. (9) França: Freinet, em Bar-sur-Loup (A.-M.).—Primas, n.° 124, curso E.-Zola, Villeurbanne (Ródano).— R. Daniel, em Saint-Philibert-de-Trégunc (Finisterra). — Bordes, Saint-Aubin-de-Lanquais i(Dordogne). — Alziary, Bras (Var). — Srª Lagier-Bruno, Saint-Martm-de-Queyrières (H.-A). — Jayot, Sailly-par-Carignan (Ardenas).—Bouchard, rua Bossuet, n.° 83, Lião.—Hoffmann, em Bouxières-sur-Froidmond, par Pont-à-Mousson (Mosela).—M. Wullcns, em Somain (Norte). — Leroux, em Neuvillette-en-Chamie (Sarthe). — Ballon, em Pont-de-Ruan, (Indre-et-Loire). — Barel, rua Longue, Menton (A.-M.). — Claudin, dir. da escola anexa à

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«A correspondência escolar» preocupava bastante Freinet, porque verificava que em grande parte a coesão do movi­ mento dependia das relações entre as classes. Quando duas classes correspondentes se ligavam uma à outra, mediante trocas regulares, bem estabelecidas, provocando entusiasmo, é evidente que se registava um enriquecimento. Este faoto é que explica que tenhamos encontrado nos nossos arquivos um grande número de cartas escritas especialmente a pares de escolas atraídas à permuta de correspondência10. Citemos uma passagem dirigida ao primeiro adepto: «'Terá em Daniel um correspondente de grande valor, Sr.a Faure. Por mim, tê-lo-ia reservado egoistamente para a minha classe ainda durante este ano. Daniel sabe que nos separámos tendo em vista os interesses do movimento... pode considerá-lo como um orientador permanente... Se os meus alunos e eu abandonámos Trégunc foi com profundo desgosto que o fizemos. E a tarde do primeiro dia de aulas

EN, Mirecourt (Vosgos). — Spinelli, Escola da Condamine, Menton (A.-M.).— Subra, em Antras, por Sentein (Ariège).— Voirin, em Chémery-sur-Bar i( Ardenas).— R. Lallemand, em Linchamps, por Les Hautes-Rivières (Ardenas).— Aicard, Le Cannet-Four em Chaux (A.-M.). — Coutelle, Cheminée-en-Chamie (Sarthe). — Bru­ net, em Suris (Charente). — Delanoue, em Châteaurenault (Indre-et-Loirc).— R, Boyau, em Camblan.es (Gironde). — Paul George, Les Charbonniers, por Saint-Maurice-sous-Moselle (Vosgos). — Chéry, em Désertines (Allier). — Pichot, em Lutz-en Lunoispor Châteaudun (E.-et-L.),—Sr? Pichot, em Lutz-en-Dunois, por Châteaudun (E.-et-L.).— M. Noé, em Pollestres (Pirenéus-Orientais).— — Chochon, Domaine de l’Étoile, Nice (A.-M.).— Faure, em Corbelin (Isère). — Sr? Faure, em Corbelin (Isère). — Sr.“ Garmy, em Sentenac, por Vicdessos (Ariège). — Dunand, em Praz-sur-Arly (Haute-Savoie).— Le Treis, em Daoulas (Finisterra). — Sr.ª Audureau, em Pellegrue (Gironde). Bélgica: R. Van Meer, dir. de uma escola, rua Prospérité, Bruxelas. — Havaux, professor do 4º grau, Pâturages (Hainaut). — Wouters, avenida dos cedros, n? 40, Anvers. Espanha: Manuel J. Cluet, Apartado 961, Madrid. Suíça: Alb. Berberat, stand 76, em Brienne. Tunísia: Magnan, Praça da Gare, Sousse (Tunísia). (10) R. Lallemand, em Linchamps (Ardenas) e Sr? Lagíer-Bruno, Saint-Marguerite (Altos-Alpes); Delanoue, em Châteaure­ nault (Indre-et-Loire) e Paul Georges, Les Charbonniers (Vosgos); Boyau, em Camblanes (Gironde) e Wullens, em Somain (Norte); Daniel, em Trégunc (Finisterra), e Srª Faure, em Corbelin (Isère).

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foi dedicada à correspondência com os nossos amigos da Bretanha. Sinto remorsos por ter cortado assim com estas amizades nascentes... Quanto a ti, Daniel, conheces bem os Faure... e sabes que aqui não vos esquecemos...» Lendo estas linhas, sente-se perfeitamente até que ponto Freinet considerava esta correspondência interescolar, já no seu segundo ano de experiência, e que simbolizava, toda a sua obra, na sua espontaneidade e na confiança ideal, que já tinham unido definitivamente os primeiros colabora­ dores. Antes de partir para férias, a circular de encerramento do ano lectivo pedia aos aderentes que fizessem o resumo da sua experiência, que apontassem os êxitos, os fracassos, que precisassem bem os inconvenientes do material, formu­ lassem sempre críticas capazes de acelerar o desenvolvi­ mento das diversas técnicas. Todos os camaradas responde­ ram a esta circular e no boletim impresso desta vez pela imprensa rudimentar de Foiano, em Grasse, Freinet refere que: «Os contactos são de tal modo interessantes, que neces­ sário seria mencioná-los a todos, e demoradamente. Mas só podemos resumi-los no essencial. Solicitamos também aos camaradas que condensem em artigos para o boletim as observações que têm feito, as suas descobertas originais, exemplos de como empregam a imprensa na classe. Comecem já a enviar artigos destes.» Deste modo se aborda resolutamente a autêntica cola­ boração pedagógica que iria conferir ao nosso movimento a amplitude e eficiência que o caracterizam. Até agora tínhamo-nos ocupado sobretudo com as questões mais imperiosas: materialismo escolar, fabrico dos utensílios, sua realização. Agora, perante as novas perspectivas trazidas pela utili­ zação de técnicas seguras, podíamos sondar a experiências, extrair-lhe o sentido e o valor psicológico e social. Desse primeiro boletim, que teve a preocupação de ser um verdadeiro boletim pedagógico, vamos citar uma passa­ gem do resumo do nosso fiel Alziary, um dos mais ardentes e mais compreensivos pioneiros do nosso movimento: «...Nas classes com menor número de alunos, estes textos compostos em comum deviam ser os mais numerosos.

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Acontece frequentemente que várias crianças falam ao mesmo tempo. Antes que o dedo se levante, o grito parte — é que dão mesmo gritos quando descobrem alguma coisa que fique bem! Não ligo importância ao silêncio e então trabalho a sério. Tento manejar a composição do texto, interesso-me, porque os meus ouvintes se atiram todos de uma vez, num primeiro impulso. Em seguida, e sempre no meio deles, apuro a expressão. Enquanto escrevo, a conversação continua. Contudo, em certos momentos arrefece. As minhas per­ guntas reanimam-na. Faço-as com uma intenção determi­ nada, que acabo quase sempre por abandonar para poder acompanhar o pensamento infantil. À medida que vou escrevendo, vou lendo em voz alta, para vermos se soa bem. E alguns dos alunos mais sensíveis â harmonia propõem alterações. Voltamos a 1er tudo desde o princípio e damos-lhe ainda mais uns retoques. É o mais belo momento do meu dia de aulas,..» A partir de Outubro de 1927, os boletins mensais dactilografados feitos no policopiador ou no Duplic são substi­ tuídos definitivamente por um boletim impresso em Grasse e intitulado: A Tipografia na Escola, boletim mensal da Cooperativa de Auxílio Mútuo, A Tipografia na Escola. Efectivamente, este título continha tudo o que Freinet nela incluíra de dedicação, de trabalho e de convicção. Nesta revistazinha de oito páginas, cuja maior parte é incansavelmente votada ao aperfeiçoamento das técnicas, Freinet empenha-se constantemente em manter o espírito do movimento, inseparável da sua adaptação incessante ao meio. Modernizar e «motivar» o nosso ensino. «A vantagem essencial da Tipografia na Escola não reside como alguns poderiam pensar na originalidade do trabalho manual que requer: a composição, o espalhar da tinta, a impressão, a limpeza, a própria arrumação dos caracteres, tarefas que todos pedem como um favor; nem sequer são as imensas qualidades de ordem, aplicação, lim­ peza que ela exige dos alunos, qualidades essas de que volta­ remos a falar. As consequências verdadeiramente consi­ deráveis da nossa técnica, para a pedagogia, consistem na

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possibilidade de modernizarmos o nosso ensino, utilizando na escola os meios de comunicação entre indivíduos que a civilização coloca hoje ao nosso dispor, É preciso suprimir tudo o que existe de convencional, de morto, no actual trabalho escolar e preparar os cidadãos da nova sociedade.» Freinet teme o isolamento do movimento da Tipografia na Escola, que começa por ser um movimento provinciano, que Paris terá sempre tendência a subestimar. Faz o que pode para conseguir integrar o melhor possível a CEL no sindicalismo — esta será uma das suas principais preo­ cupações durante a sua longa experiência. Na qualidade de secretário sindical dos Alpes-Marítimos, anima os seus camaradas a travarem uma luta para que sempre, no seio dos sindicatos, as reivindicações da escola do povo se façam em conexão com as do professor do povo. Num ponto de vista estritamente pedagógico, associa a CEL ao movimento pela Educação Nova; leva-a a aderir ao Grupo Francês, de que é um dos animadores desde o Congresso de Montreux. Em 27, em Paris, realiza-se um Congresso internacional: Freinet vai lá expor o seu material, os jornais escolares, La Gerbe; convida os seus adeptos a participarem, para que seja levantado o problema da renovação da escola leiga. Sérios esforços, sacrifícios pecuniários, são feitos para manter o coesão do movimento, por intermédio de La Gerbe. Nos boletins mensais aparecem regularmente conselho e directivas respeitantes à saída e difusão da revista. De Abril a Dezembro de 27, o êxito é de tal ordem que se começa a ter de encarar a publicação de duas séries, a primeira editada por Daniel e a segunda por Alziary, dando o boletim de Dezembro de 27 conta disso: «La Gerbe é obra e pertença das escolas que, trabalhando na imprensa, nela colaboram livremente gerindo-as sozinhas, em seu único beneficio, e se responsabilizam por iodas as tarefas de composição, impressão, ilustração, encadernação, propaganda e venda. Para se obter um formato rigorosa­ mente uniforme, a administração da revista fornece gratuitamente o papel necessário.» E assim, numas condições financeiras que se adivinham bastante precárias, é tão natural o gesto da entreajuda, que

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é lançada uma subscrição para a compra de material de imprensa para os órgãos de operários do Avenir Social; que Jeanne Fannonel dirige com tanta dedicação. Alongámo-nos um pouco sobre estes primeiros anos da criação da Cooperativa do Ensino Leigo para vincar os factos autênticos que presidiram à sua formação e ao mesmo tempo para ressaltar o seu espírito de profunda colaboração, de mútua dedicação à nobre causa da educação popular. O ano escolar de 27-28, último que passámos em Bar-su-Loup, foi realmente um ano decisivo para a formação da CEL e a sua centralização em Bar-sur-Loup. A princípio, Freinet sonhara com uma partilha das responsabilidades entre camaradas, de tal modo que cada um pudesse ocupar-se de um aspecto bem definido e de criar simultaneamente depósitos regionais que teriam facilitado o fornecimento da propaganda. Estes projectos revelaram-se infelizmente irrealizáveis na prática. Na realidade, o fornecimento dos diversos artigos requeria fundos num montante deveras impressio­ nante. Ora, fundos de maneio não havia, e os lucros, míni­ mos, eram absorvidos pelo andamento constante das transacções e pelas edições. Além disso, as condições do forne­ cimento local nem sempre eram favoráveis. Se Leroux tinha podido fornecer o papel a todos os adeptos nas melhores condições, Bordas não tinha obtido preços suficientemente baixos para o prelo, o tal prelo de madeira que Freinet fizera por 10 francos com o auxílio do marceneiro: «Depois de uma fase difícil durante a qual Bordas (Saint-Aubin) não olhou a despesas, presentemente os nossos prelos estão a ser fabricados por um excelente marceneiro que nos entrega o material perfeito. Infelizmente a maquina fica-nos por 50 fr., sem incluir o rolo de pressão. Calculei uma soma de 75 fr. para o prelo completo, soma que não vem acrescentar em nada os fundos da nossa Cooperativa...» Onde ir buscar o atrevimento de pedir aos camaradas que se arrisquem a endossar dívidas todos os meses depois de terem passado todo o tempo ao serviço da Cooperativa? O processo mais simples era o de atribuir os maiores riscos àquele a quem coubesse a responsabilidade do lançamento da iniciativa. De resto, quatro anos de experiência já tinham familiarizado Freinet com toda a espécie de dívidas e o

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desejo de criar levava-o a minimizar encargos que a outrem se afiguravam pesadíssimos. Foi assim que tudo veio parar a Bar-sur-Loup: prelos, componedorcs, rolos, etc., e que eu não tive outro remédio senão o de aprender a profissão de vendedora. A Câmara de Bar-sur-Loup tinha posto à nossa disposição uma sala bem iluminada que deveria servir-me de oficina. No entanto, o cavalete foi-se confinando a pouco e pouco ao espaço exacto de que precisava, empurrado pelo material CEL, que se espalhou à sua vontade, impondo as suas exigências. Pela Páscoa de 1928, Freinet foi designado pela Inter­ nacional do Ensino para delegado ao Congresso Pedagógico Internacional de Leipzig. Como a viagem era oferecida, decidimo-nos a ir os dois. Por circular, Freinet animara os adeptos a enviar documentos para a exposição e assim par­ timos carregadíssimos de prelos, componedores, rolos, edi­ ções diversas, jornais escolares e lindos desenhos infantis. Esmagado pelo importante material alemão fabricado pelos «trusts» especializados em material escolar —lápis, tintas, canetas, etc., — o nosso «stand» ocupava apenas um cantinho insignificante. Mas foi justamente pela sua mediocri­ dade que despertou a curiosidade dos visitantes e, embora os prelos de Bar-sur-Loup não tivessem um grande aspecto, houve muita gente que desejou tê-los; vimo-nos obrigados a cedê-los na Alemanha a camaradas que tinham ficado en­ cantados com as nossas técnicas. Assim surgiram os nossos primeiros aderentes alemães. A revista La Gerbe, única, tomou-se logo mais volumosa; foi preciso fazer duas Gerbes, depois três, e no fim do mês, com o contributo de tudo quanto se fizera durante o ano de 1927-28, obteve-se realmente um apanhado de textos infantis notáveis. Ao primeiro excerto de La Gerbe: Um rapazinho na montanha suceder-se-á: Os dois pequeninos latoeiros. No regresso de uma caminhada que os fizera sonhar, os nossos «estamas» tinham improvisado, na fronteira do real com o fantástico, essa narrativa que tinha interessado a classe de uma maneira prodigiosa. No fim do ano escolar nasceu por sua vez a Récréation, excerto de La Gerbe, n.° 3; a literatura infantil, suscitada pelas técnicas da Tipografia na Escola, a partir dessa altura,

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pôde alimentar por lapsos de tempo ainda incertos, temos de o confessar, a conhecida edição, de todas a mais original, a que demos o nome de «Enfantines». O segundo Congresso de Tipografia na Escola (Paris)

O segundo congresso da Tipografia na Escola realizou-se em Paris a 4 de Agosto de 1928, em Bellevilloise, na rua Boyer. A ordem de trabalhos era a seguinte: — Relatório dos trabalhos feitos durante o ano (Freinet). — Relatório de contas (Daniel). — Relatório de contas de La Gerbe (Jayot). — Fusão com a Cooperativa de Cinema. — Demonstração prática com o material de impressão. — O intercâmbio escolar. — O boletim. — Assuntos vários. Durante o Congresso do Ensino houve uma exposição permanente de trabalhos e de material e demonstrações práticas. Tomaram parte no Congresso de Paris uns trinta cama­ radas. No meio da atmosfera entusiástica característica dos nossos Congressos, tomam-se decisões importantíssimas, que colocarão a partir de então a Cooperativa perante pesadas responsabilidades : 1. — Depois de feito um exame aprofundado do material (prelos, rolos, caracteres, papel, etc.), decide-se que os diversos aparelhos serão colocados num depósito único en­ quanto não surgir a possibilidade de fazer depósitos regio­ nais. O responsável será Freinet. 2. — A Cinemateca, a Rádio e a Imprensa fundem-se numa Cooperativa única, por razões de economia, propa­ ganda e unidade pedagógica. 3. — A propaganda será assegurada por um boletim mensal de 32 páginas, que reunirá críticas e conselhos, versará, de uma maneira actualizada, tanto o material como as técnicas e estudará os diversos conceitos pedagógicos suge­ ridos pelas diferentes técnicas. O título será: A Tipografia na Escola, o Cinema, a Rádio e as novas técnicas de educa88

ção popular (revista pedotécnica mensal, órgão da Coopera­ tiva do Ensino Laico). 4. — A revista La Gerbe é reorganizada: formam-se seis equipas que, trabalhando simultaneamente, garantem cada uma um número. Os aderentes podem participar em várias equipas. Os textos de La Gerbe devem ser inéditos. 5. — Sairá todos os meses um excerto de La Gerbe. 6. — Está em vista uma nova regulamentação do inter­ câmbio escolar relacionada com a revista La Gerbe. 7. — A Cooperativa do Ensino Leigo trabalha em conexão permanente com os sindicatos do ensino em que está inte­ grada. E assim, no ambiente de fraternal entusiasmo da última sessão, chegou a altura de cada um dos aderentes se com­ prometer a dar o máximo para que vivesse, crescesse e se enriquecesse a obra comum, cuja amplitude que ia tornando de mês para mês numa realidade concreta. Assim terminaria o último ano escolar de Freinet em Bar-sur-Loup. Tinham passado sete anos desde que chegara à aldeola na qual, na maior das desorientações físicas e morais, tinha tomado contacto com a pesada tarefa de educa­ dor primário. Tinham passado cinco anos sobre o crescimento da Im­ prensa, que, dia após dia, o tinha conduzido à radiosa descoberta da criança, descoberta que iluminará toda a sua vida. Chegara só, sem apoio; diante de si, o horizonte estrei­ tava-se. Agora podia escrever no último boletim de Julho dirigido aos camaradas: «Em Outubro ultrapassaremos a centena de aderentes.» Mas essa centena de aderentes, prova de uma vitória sobre si mesmo, sobre o conformismo e a passividade, impunha-lhe a obrigação de deixar Bar-sur-Loup. Para enfrentar as necessidades financeiras que daí adviriam, era indispensável que eu retomasse o meu lugar de professora primária que a princípio pensara em abandonar. Em Bar­ -sur-Loup não havia sequer uma hipótese de vaga. Tinha de partir para um local onde pudesse ganhar a vida, contri-

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buindo ao mesmo tempo como educadora para a obra comum. Chegou então a hora da partida, do adeus às crianças, à humilde escola, àquelas paragens familiares, tão cheias de recordações...

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CAPÍTULO III

SAINT-PAUL (1928-1929)

Dificuldades escolares

Quando tínhamos vindo a Saint-Paul, pouco antes de Freinet fazer o seu pedido de transferência para este lugar, tínhamos ficado logo encantados com a originalidade desta aldeia de aspecto medieval, cercada de muralhas, domi­ nando do cimo da sua colina as encostas cobertas de vinhas, os campos de rosas, as laranjeiras, as oliveiras prateadas e com o mar lá ao longe adoçando-lhe os contornos. A intimi­ dade das velhas pedras, as ruelas vetustas, os chafarizes antigos, obstinam-se em permanecer como cenário fiel das velhas camponesas provençais que, de amplas saias e chapéus de palha, evoluem silenciosas e graves sobre o duro entran­ çado das suas alpercatas. A escola era uma antiga construção encaixada no aglo­ merado das casas que se incrustavam como argamassa em redor da igreja altaneira. Um patiozinho minúsculo, abrigado no Verão pela sombra generosa de uma latada, uma sala com duas janelas para a ruela, um telheiro pequeníssimo, eram estes os futuros domínios da Tipografia na Escola. Mal tínhamos descarregado as nossas modestas mobílias e já Freinet tinha entrado na aula. Diante da sua desoladora pobreza, meditava com ar melancólico: velhas mesas desconjuntadas, um soalho desnivelado em que faltavam al­ gumas ripas, uma velha secretária em cima de um estrado, uma biblioteca toda comida pelos bichos,—de imediato

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é este o saldo de tudo o que a Câmara de Saint-Paul tem para oferecer aos novos professores... Mas há pior. Sob o telheiro, por debaixo de uma porta, escorre uma humidade duvidosa, que lança um cheiro suficientemente característico para que ainda possam restar dúvidas sobre a sua origem... mesmo no fim das férias não tinham sido esvaziados os WC... — Não se pode dizer que seja muito animador —diz Freinet — mas vou ver se falo com o Presidente da Câmara. É preciso andar um bom bocado para encontrar o Sr. Presidente, cuja «villa» bebe a seu bel-prazer o sol e o ar puro na Saint-Paul dos ricos. — A aula em mau estado? - diz ele. — Mas, meu caro senhor, todas as escolas são assim nas nossas humildes aldeias! Caiar? Isso queria eu. Pôr as vigas que faltam no soalho? Ainda vai ser mais difícil! As casas de banho? Isso é uma grande história! A fossa é pequena demais e nem sequer se pode tapar. Que quer o senhor que eu faça? Pensa que é cómodo, não? Prateleiras? Mas o senhor quer pra­ teleiras? Não está bom da cabeça. Somos pobres, homem, muito pobres! Não temos verba! Uma mesa para o material de imprensa? O que diz: uma mesa? Oh, francamente, isso é demais!... Meu caro senhor, não sou professor primário, mas vou dar-lhe a minha opinião: ora repare, aqui o senhor só tem filhos de pobres diabos, na sua grande maioria filhos de rendeiros e que não precisam nem de cartas nem de as imprimir. Ler, escrever, contar, isso já lhe vai dar muito, mas muito que fazer. Aqui para nós, o seu ante­ cessor não lhes ligou importância nenhuma e o senhor sabe de que é que precisa?: de energia! Não se ponha com tantas complicações! Não vai levar muito tempo a perceber que o que eles são é uns autênticos vadios. Aguente-se bem, melhor serviço que esse não lhes pode prestar! Com efeito, os vadios não ficam muito além do julga­ mento do Sr. Presidente. Para começar, é preciso uma boa dose de astúcia e de teimosia para os conseguir levar a participar na primeira instalação da sala de aula, mal caiada e muito mal limpa. Logo a seguir vêm as disputas, as coto­ veladas, as ameaças, que criam uma atmosfera de desordem em que é evidente que o raciocínio sensato não tem sequer

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a menor oportunidade de se introduzir. Inquieto-me pela garganta delicada de Freinet que ainda vai ter muito que se cansar até conseguir restabelecer a ordem e que suportar a nuvem de poeira que constantemente se levanta do soalho, incerto, impossível de varrer devidamente. Mas o que vale é que a alma da criança nunca tem só aspectos negativos e, tal como sucede em todas as classes, em breve se distinguem os elementos dóceis, profundamente curiosos, como o Lulu, o Eugène Ruiz, o Audoly, o André; os turbulentos fáceis de dominar, como o Jeannot, o Thomas, o Pellegrin, o Bechetti; e os desordeiros inveterados, com um barulhento protótipo na pessoa do Lagorio. Quem foi o autor daquela mancha de tinta, ali naquela parede, que a pintura de cal não conseguiu tapar por completo? Foi o Lagorio, de uma vez que jurou que ia cometer uma façanha e que, por pura gabarolice, fez o tinteiro voar por cima da cabeça do professor. Os entalhes nos bancos, os azulejos partidos, a velha cadeira bamboleante, o que são senão provas dos tumultos permanentes que bastavam para jus­ tificar que o velho professor primário tivesse o cuidado excessivo de fechar a porta da aula à chave, assim como a porta principal, nos intervalos entre as aulas? Mas Freinet empenha-se imediatamente em fazer desa­ parecer as marcas sugestivas daquele recente passado, tão recente a ponto de ameaçar invadir o presente e mesmo dominá-lo. Para lisonjear o Lagorio, desenhei um esboço da sua cara boémia em meia dúzia de rabiscos e escolhi-o para me ajudar a pregar na parede, precisamente no sítio da mancha, esse mesmo desenho que tanto agradou ao seu amor-próprio. Lá arranjámos a cadeira e as mesas o melhor que pudemos, trabalho que apaixona todas as crianças, por ser tão diferente dos trabalhos escolares habituais. A maior alegria que têm é a da confecção de uma mesa para a im­ prensa. Mandámos aplainar quatro sólidos pés de carvalho ao carpinteiro da aldeia e com o auxílio de uns pregos com­ pridos fixámo-los ao encaixe do estrado com grandes e sonoras marteladas. Que rica mesa! Até dá à vontade para uma pessoa se sentar nela ou para dar espectáculo fazendo o pino em cima dela andando com os pés para o ar...

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— Não, calma, não íamos agora ter um trabalho destes para vos dar oportunidade de brincar aos saltimbancos. Façam o pino lá fora; a mesa é para pormos o material de impressão. — O material de impressão?... Toda a classe está sufocada. Comprimem-se em volta do professor que está a desembalar a sua «mercadoria» com todos os cuidados... -Olha... Olha... Letras... Oh! m!..., tá lá um o! tá lá um i... — Para que é que isto serve, senhor professor? — É para a classe toda. É de cada um de vocês; do Jeannot, do Castelli, do Pellegrin, do Lagorio, e também me pertence a mim, que trabalho com vocês. A aparição de um material escolar novo e posto daquela maneira tão decidida à responsabilidade das crianças des­ concerta-as por momentos, mas logo lhes lisonjeia o orgulho. Pouco a pouco desperta nelas uma certa prudência em relação à sua utilização e logo um certo respeito os começa a invadir. Ao contrário do que eu a princípio tanto receava, não se verifica a desaparição dos caracteres de imprensa para dentro dos bolsos dos ladrões inveterados ou o seu envio pela janela fora, às mãos cheias, num acesso de raiva, nas alturas em que a composição se tomava demasiado difícil. Não, pelo contrário, ao varrerem a aula, abaixam-se para apanhar as letras que caíram e ouve-se da boca do próprio Lagorio: — Quem foi o bruto que deixou cair um M maiúsculo? Francamente! O primeiro texto impresso é bastante explícito sobre a inexperiência das crianças em se exprimir, em conseguir que a impressão participe da sua personalidade interior.

A NOSSA ALDEIA

«A aldeia de Saint-Paul está situada entre Cagnes e Vence. Em linha recta está a três quilómetros do mar e indo

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pela estrada está a oito quilômetros. O carro-eléctrico passa em Saint-Paul. Há um autocarro que faz o caminho Saint-Paul— Nice duas vezes por dia. Leva uma hora a chegar a Nice. Todos.» Mas a correspondência interescolar, que foi logo esti­ mulada, constitui uma motivação para o texto livre e situou a imprensa no próprio coração da vida da classe, que se foi desenrolando pouco a pouco dentro de uma certa ordem, que por vezes se aproximava ligeiramente da harmonia. Contudo, não se tinha atingido o ponto ideal. Sejamos francos e confessemos que foram necessárias várias semanas para ir conseguindo criar, em cada dia, mercê de uma vigilância permanente, uma atmosfera de calma e de confiança, indispensável ao bom prosseguimento de uma escola centrada na própria vida da criança, Embora frequentemente penosas devido ao hábito de dispersão dos espíritos, as horas de aula cedo se tornaram realmente encorajadoras e até em certos dias, quando todas as atenções se deixavam hipnotizar por um interesse mais intenso, pudemo-nos abandonar a um sentimento de êxito quase total. Contra o que era de esperar, o que infelizmente veio complicar a situação foram os períodos entre as aulas. Para demonstrar a sua confiança nas crianças, Freinet deixara a escola e o portal abertos. Os rendeiros humildes que viviam longe da aldeia e traziam a sua refeição podiam assim ins­ talar-se comodamente no recanto abrigado que fazia de pátio, para comer o seu magro jantar a uma mesa comprida, improvisada. Os alunos da aldeia podiam até entrar livre­ mente antes das aulas começarem c vir para a aula acabar um trabalho ou dar o último retoque num pormenor qual­ quer que lhes tivesse prendido a atenção. Ao princípio todos se comprometiam a cumprir com um mínimo de moderação e de disciplina, necessário para evitar «histórias». Mas o pior é que, para lá da promessa, estavam os instintos violentos desses garotos turbulentos, sempre prontos a in­ juriar, a enfurecer-se, a assanhar-se em cóleras já legen­ dárias. Quando regressávamos do nosso passeio quotidiano, à uma hora, havia sempre socos, batalhas, acabando em

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ferimentos e galos, dentes partidos e a até orelhas arranca­ das... Fechar as portas, pôr as crianças na rua, não era solução, e de nada serviam os sermões. Não é com palavras que se resolvem diferendos nos quais as crianças põem todo o ardor dos seus instintos combativos. Logo a seguir e com os meios disponíveis tentavamos resolver rapidamente os casos violentos e de novo empenhar as crianças num ponto de interesse colectivo, num trabalho comum cujo êxito seria inevitavelmente um meio de criar a solidariedade indis­ pensável à vida em comunidade. Quanto maiores eram as vitórias obtidas por um ensino humano que conferia ao indivíduo o seu papel de generosi­ dade, na medida em que o incorporava na comunidade, tanto mais facilmente se resolviam os choques entre rendeiros e citadinos, franceses e italianos, ricos e pobres — porque na realidade os conflitos derivavam das violentas oposições sociais. Só mesmo toda a intuição do professor e uma meti­ culosa observação das mínimas ocorrências da vida da escola é que conseguiríam levar à constituição de equipas de trabalho em que se juntavam elementos rivais. Conse­ guindo-o, a vitória pertenceu à escola, que se tomou pro­ gressivamente num lugar vivo de reunião, num centro indissolúvel de vida, mas que estava para ser posto à prova de uma maneira tão trágica. De um modo geral, estes começos em Saint-Paul foram particularmente penosos. Nunca mais acabavam de nos caiar a casa; uma vez que não podíamos desembalar o material cooperativo, tínhamos imensas dificuldades em enviar as numerosas encomendas solicitadas cada vez com maior urgência. Ao longo de várias semanas, a CEL não passou de uma série de caixas abertas, colocadas sobre as escadas, uma em cada degrau, em equilíbrio mais ou menos instável. Vasculhava ora numa ora noutra, levando os diversos artigos para cima da mesa da cozinha, onde eu própria fazia as encomendas. As direcções de L’Éducateur, de La Gerbe, das Enfantines, a colocação das cintas nas re­ vistas iam-me roubando o tempo todo. Quanto a Freinet, esse como de costume tinha a cabeça cheia de projectos, A sua espantosa capacidade de trabalho permitia-lhe o prolonga­ mento do dia de trabalho de acordo com as necessidades

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do momento. Já a pé às quatro da manhã (o que passará a constituir um hábito), deitando-se às onze da noite, enfren­ tava sem jamais desfalecer tudo o que na véspera a sua vontade férrea lhe propusera. Pouco se importava com a precaridade destes tempos de transição, adaptando-se à desordem, radiante com o seu fim de dia, pronto para o ataque no dia seguinte. A sua saúde? Nem sequer pensava nela; por vezes subia as escadas como um velho, apoiando o peso todo do corpo ao corrimão, mas quando se sentava à secretária arrancava com um entusiasmo capaz de deitar a baixo qualquer tarefa... Acabámos por instalar ao fundo do corredor, numa divisão independente, o seu autêntico escritório ideal, com prateleiras vergando ao peso das pape­ ladas, com os vários arquivos a acotovelar-se em cima de uma prancha larga que corria ao longo das paredes, e entregava-se a fundo ao prazer de matraquear na «Underwood», sobre a sua secretária desengonçada, calçada às três pancadas, onde se espalhavam cartas e circulares junta­ mente com os embrulhos feitos por mim, constituindo um correio já bastante volumoso para a altura. Todos os dias faltava o dinheiro necessário para os portes do correio. No princípio desse ano escolar, a caixa da cooperativa estava vazia. O dinheiro que podíamos ter eco­ nomizado durante as férias levara-o a mudança. Contraria­ mente à nossa esperança de eu ficar finalmente nomeada para a escola feminina, a velha professora enferma não se reformou, o que não impediu que se tornasse numa amiga agradável e dedicada que não deixaria de o ser mesmo nos momentos mais difíceis da nossa permanência em Saint-Paul. Seja como for, a verdade é que, apesar das compli­ cações destes primeiros tempos o primeiro ano passado em Saint-Paul foi um ano magnífico para os destinos da Coope­ rativa. O Congresso de Paris, com a sua atmosfera fraterna e entusiástica, tinha dado um novo ânimo aos aderentes que tinham participado nele. Regressados às respectivas escolas, tomaram a peito a decisão de prestar à obra comum uma colaboração mais fiel, mais generosa. Segundo parece, se­ guiram mais a fundo e com uma atenção mais aturada à própria vida da sua classe, pondo além disso toda a sua

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habilidade ao serviço do aperfeiçoamento das técnicas, tanto no que se referia ao seu rendimento como ao espírito que as animava. Testemunham-no os boletins da Tipografia na Escola desse ano. E assim, ao fim de alguns meses de cola­ boração intensa, Freinet previa com uma certa razão um enriquecimento progressivo da revista, na qual todos teriam algo a dizer: «É sobretudo pelo facto de esta experiência, que é a Tipografia na Escola, não poder ser obra de um só, de esta só se poder afirmar com entreajuda e cooperação, que este boletim será a alma das nossas técnicas, factor essencial do seu melhoramento e do seu êxito.» No fim do ano de 1928 saiu o livro Acabemos com os manuais. Nele Freinet precisava a sua técnica de trabalho, praticada sem manuais escolares e através de uma adaptação do ensino à natureza da criança. Todos estes princípios, formulados em Acabemos com os manuais, retomou-os e desenvolveu-os Freinet nos livros posteriores.

Alarga-se o horizonte

O Congresso de Parts, de que já falámos, tinha lançado um programa audacioso que já continha todas as futuras actividades da CEL e que, no espírito de Freinet, ultra­ passava a simples concepção de técnicas. Desde o princípio, tivemos a ocasião de o verificar, Freinet tinha pressentido o valor privilegiado da Tipografia na Escola, o maravilhoso utensílio de libertação do pensa­ mento infantil e de ligação permanente da criança com o meio. Mas agora que esse extraordinário utensílio está em poder dos práticos, como irão estes empregá-lo? O utensílio, tal como a máquina, vale conforme o emprego que dele se fizer. Do mesmo modo que o capitalista se serve da máquina para oprimir as massas, assim uma pedagogia de vistas curtas só pode levar a Imprensa a perpetrar práticas obscurantistas, a tornar-se num elemento da perpetuação de tudo o que é antigo e da limitação de tudo o que é novo. Isso leva-o logo a precisar o valor relativo do utensílio e a prevenir os seus adeptos contra o risco de se tornarem simples mecâ­

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nicos de uma máquina, que no entanto é apresentada, como sendo a ideal. No número de Outubro de 1928 de L'Imprimerie à l'École começa por insistir na determinação das diferenças essenciais que existem entre as «técnicas» e o «método» : as «técnicas» constituem a base da aquisição, os processos mais eficientes de apreensão do mundo; o «método» é a arte de as utilizar com vista a uma maior libertação do homem, no sentido de uma ciência completa do mundo. Consciente de que a insu­ ficiência da nossa formação de professores «primários» limita o acesso ao método e ao traçado das perspectivas da «ciên­ cia», Freinet, já em Paris, tinha, digamos, delimitado o raio de acção da Cooperativa do Ensino Leigo. Da prática nascerá uma compreensão mais vasta do método. Assim, neste primeiro número de Outubro de 1928, especificava que: «Ao afirmar que a nossa revista será pedotécnica, fixamo-nos uma tarefa muito concreta, cuja importância não deve passar despercebida a ninguém. No que respeita à Tipografia na Escola, pesquisa de material adequado para os diversos anos, conselhos técnicos sobre o trabalho de impressão, directivas para a utilização desta técnica nas classes; organização do intercâmbio escolar, edição de livros de trabalho para professores e alunos, etc... Se por momentos e apenas dentro deste campo especifico ultrapassarmos os limites tecnológicos que estabelecemos para abordagem do esboço de um método, fá-lo-emos unicamente na convicção de que as revistas pedagógicas já existentes, convencidas do valor da nossa técnica, empreendam essa pesquisa que aliás lhes compete a elas... Quanto ao cinema, o nosso programa surge por si: for­ necer uma documentação vasta e precisa sobre os aparelhos de projecção; publicar todas as informações técnicas suscep­ tíveis de auxiliar os educadores a adquirir os aparelhos mais recomendáveis; exercer uma selecção pedagógica severa sobre os filmes e, se possível, favorecer a realização de bons filmes educativos; estabelecer os mínimos pormenores das modalidades de utilização do cinema em educação, estudar os problemas administrativos que se levantam com a evo­

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lução desta técnica; lançar investigações semelhantes sobre a rádio, ainda tão pouco utilizada nas nossas escolas, para auxiliar os professores inovadores. AS TÉCNICAS EDUCATIVAS: Não podíamos restringir a nossa actividade ao estudo destas três técnicas. Contri­ buiremos com uma documentação tão completa quanto pos­ sível sobre as variadas técnicas educativas modernas. Escusado será dizer que o nosso trabalho terá decidi­ damente uma feição internacional. De hoje em diante, a pedagogia actual não pode conhecer fronteiras e empenhar-nos-emos em derrubar os obstáculos erguidos pelas dife­ renças de idioma entre os educadores do povo...» Opondo, de uma maneira um tanto arbitrária talvez, estas noções de «técnicas» e de «métodos», que ainda só tinha em mente a um nível intuitivo, Freinet contava pro­ vocar um efeito idêntico ao que se observa quando se atira uma pedra a um charco e suscitar no mundo pedagógico uma espécie de discussão geral, o que teria levado a CEL a situar-se publicamente não só no plano intelectual como no social. Mas o charco permaneceu imóvel e indiferente como dantes... Então Freinet volta à carga. Sente que se vai iniciar algo. Ele próprio, fez sozinho, uma experiência concludente no plano pedagógico e social, cujo vigor e «unidade» quer, conservar a todo o custo. Está ciente do imenso valor da «técnica», mas também reconhece a necessidade imperiosa de dar uma nova orientação a essa técnica no sentido do grande movimento social nascente, da eficiência, da ciência, da Arte — tudo isto constitui o método. Vamos citar quase todo o texto desta tomada de posição, que a partir deste momento nos parece essencial, visto que constitui a própria inspiração da pedagogia de Freinet. Saiu no número de 1928 de L’Imprimerie à l'École com o título: «Para um método de educação nova nas escolas populares»: «Esta grandiosa palavra ''método" foi tão aviltada pelos autores de manuais de todos os gêneros que hoje nos é difícil atribuir-lhe o sentido preciso e completo que dese­ jaríamos que tivesse em educação. Quem diz método diz sistema de educação baseado em elementos sólidos e cientificamente provocados e coordenados de um modo perfeita-

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mente lógico. Ora o que acontece é que a ciência pedagógica está ainda nos seus primeiros balbuciamentos e entre os métodos actualmente existentes não há nenhum que se possa arrogar a tal. Só a Igreja, que despreza a ciência e se apoia solida­ mente — pensa ela — na revelação e na fé, tem o seu método próprio, garantido por séculos de emprego, com os seus processos, as suas técnicas quase imutáveis, apesar de tudo o que tem sido descoberto: métodos que, aliás, não buscam a libertação do indivíduo, mas apenas a sua submissão à ordem estabelecida, a sua cada vez maior sujeição aos mestres. À parte este ensaio relativamente lógico, ainda não se criou um verdadeiro método de educação ajustado à peda­ gogia popular. Desde o princípio que a nossa escola nacional leiga idola­ trou a Instrução; julgou que ensinando os primeiros rudi­ mentos de leitura, de ortografia e de ciências contribuía para a elevação máxima dos cidadãos. Não falava Condorcet em quadros sinópticos através dos quais os alunos poderiam manusear uma verdadeira enciclopédia e estar preparados para falar fosse lá como fosse e para escrever um artigo do jornal ou um discurso para o Parlamento versando assuntos que mal conheciam? «Hoje em diaf tal como no tempo de Fontenelle, a socie«dade dominante exige que a iniciem numa ciência completa «do mundo, que lhe permita 1er uma opinião sobre qualquer «coisa, sem necessitar de passar por uma instrução especial... «Inspirar-se na filosofia do século XVIII, formar espíritos «esclarecidos, já nós sabemos o que significa: é vulgarizar «os conhecimentos de maneira a tornar os jovens republi«canos aptos a preencher um cargo honroso numa sociedade «constituída conforme as concepções do Antigo Regime: «é pretender que a democracia se modele pela nobreza «desaparecida: é colocar os novos mestres no lugar mundano «que os seus predecessores ocupavam. (G. Sorel: Les illusions «du Progrès.) «Mas, acrescenta Sorel, processar-se-á no mundo uma «grande transformação no dia em que o proletariado, tal «como a burguesia de depois da Revolução tiver adquirido

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«o sentimento de que é capaz de pensar partindo das suas

«próprias condições de vida.» A vulgarização científica, a Ilustração, estão ainda na base do nosso sistema educativo. A educação é relegada para segundo plano e só a muito custo dele conseguirá sair. (Em conformidade com este modo de encarar o papel da escola, aplicámo-nos em criar métodos de instrução; métodos de aprendizagem da língua, da redacção, da aritmética, da ortografia, etc... Cada disciplina tinha o seu método. Mas não será que esta palavra método foi usurpada e será que se tinha o direito de chamar métodos e processos a quantos deles que não se apoiavam sobre algum dado certo, e que aliás eram todos os anos destronados e ridiculari­ zados, por vezes, por outros processos? Não que acreditemos na impossibilidade de criar um método cientifico por exem­ plo, para a leitura. Mas tudo isto pertence ainda a um futuro muito longínquo, quando a pedagogia tiver revelado todos os segredos do dinamismo infantil. Todas as tentativas realizadas até hoje, mesmo as mais audaciosas, se tomaram caducas. Mais, podem tornar-se nocivas se, tal como muitas vezes se fez, processos baseados numa falsa ciência só con­ tribuem para estupidificar a criança em vez de contribuir para a sua verdadeira educação. Estes factos demonstram-nos a necessidade da existência de um plano geral, de um método de educação que indicará o caminho a seguir pelos diversos processos de instrução e de educação a que erradamente chamavam métodos e aos quais daremos o nome de técnicas, e isto se quisermos deixar de desperdiçar os nossos esforços. Portanto, a nossa única preocupação não consiste apenas na instrução do povo. Esta demonstrou com bastante aparato que na maior parte das vezes não passa de destruição da alma. Não tornou o homem melhor e privou-nos frequen­ temente de tesouros de bom senso e de originalidade que os povos ignorantes nos revelaram. «A escola, afirma F. V. no número de Novembro do Enseignement public, tem mais e melhor a fazer que trans­ mitir o saber. Aquilo que é vasto também não é o saber; nem sequer a descoberta: é a investigação. O espírito não ê um sótão que tem de se encher, mas uma chama que tem

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de se alimentar; não é o conhecimento adquirido, a ciência aprendida e assimilada, mas sim uma actividade vigilante, colocando sem descanso novos problemas, inventando com­ binando, organizando os factos segundo relações ainda por perceber.» O bom senso de pessoas como Rabelais, Montaigne, Rousseau, Pestalozzi, está em vias de reconquistar os seus direitos. Para que uma criança se eduque, não precisa de engolir todas as matérias que lhe são apresentadas de uma forma mais ou menos atraente: precisa é de agir por si mesma; precisa de criar. Além disso, e sobretudo, é preciso que ela viva num ambiente normal e não que cabeceie nas nossos modernas «prisões da juventude». Viver, viver o mais intensamente possível, não é esse o objectivo último de todos os nossos esforços? E não devia a escola ter como principal tarefa o desenvolvimento máximo das possibili­ dades de alcançarmos? A noção de escola activa entusiasticamente criada pelo senhor Ad. Ferrière, já não nos satisfaz completamente. Bem sei que Ferrière entende a palavra na sua total acepção de educação nova. Mas para que as posições fiquem claras, é necessário que precisemos bem os termos que empregamos. A noção de actividade pode condicionar as nossas técnicas. Mesmo entendida no seu sentido mais lato não implica a mudança de orientação da escola tal como nós a preconiza­ mos. Aliás, a palavra Educação parece-nos suficiente. Com efeito, na antiga escola, às vezes o professor pri­ mário instruído tem a pretensão de educar os seus alunos. A isto respondemos que é a própria criança que se deve educar, construir, com a ajuda dos adultos. Nós deslocamos o eixo educativo: o centro da escola já não é o professor mas a criança. Não temos de procurar aquilo que favoreça a comodidade do professor nem tão-pouco as suas preferências: a vida da criança, as suas necessidades, as suas possibili­ dades, eis o que está na base do nosso método de educação popular. Chamar a isso um método? É sim uma simples orientação ideológica! Não pretendemos estar aptos a estabelecer desde já aquilo que mais tarde virá a ser o método. Mas apoiando-nos nos ensinamentos que recolhemos nos nossos melhores

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pedagogos podemos afirmar pelo menos: eis os fundamentos correctos de uma educação que liberte a classe trabalhadora. Como haveremos de conseguir a observância desta linha metódica com o máximo de proveito? Aí se acha a base do problema realista que nos propomos estudar em toda a sua complexidade: organização material e social da escola» ritmo do trabalho escolar, modalidades do desenvolvimento integral das crianças etc... A esse respeito não vamos de modo nenhum falar de métodos mas somente de técnicas educa­ tivas. O que pretendemos com esta nova denominação é mostrar, primeiro, que as diversas soluções que apresentamos para estes problemas nada são em si mesmas sem o espírito do método ao serviço do qual têm obrigação de se colocar; segundo, esses processos, por muito recentes e bem estudados que sejam, são feitos à nossa medida, isto é, estão sujeitos a frequentes modificações, a constantes aperfeiçoamentos, a fim de assegurarem o avanço para um ideal educativo...» Deste modo, pelo facto de ter alargado horizontes no sentido de uma renovação, que para alguns foi feita de maneira um pouco imprudente, Freinet torna-se de novo no prático, abarca a realidade de perto, acerca-se dessa escola do povo que é o nosso laboratório vivo, o nosso campo de trabalho. «... Antes de mais, o nosso grupo é um grupo cooperativo de professores primários. Não que nos julguemos presumidamente os únicos capazes de realizar na prática algo de útil para a escola popular mas pensamos, e muitas vezes a experiência no-lo demonstrou, que só os professores que estão dentro do processo, que lutam todos os dias, a todos os minutos, com a angustiante realidade, é que estão aptos para distinguir quais são os esforços educativos que lhes convêm. A libertação da escola popular começará por-surgir da acção inteligente e vigorosa dos próprios professores primários do povo. Não queremos de modo nenhum ofender os inspecterez do ensino primário, os professores do ensino método e superior que seguem com simpatia o nosso esforço. Reconhe­ cerão por si mesmos que quase sempre cada degrau que sobem na hierarquia os afasta profissionalmente da escola do povo e que por vezes lhes é difícil, para não dizer im­

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possível, saber quais são as melhorias concretas que as suas generosas ideias nos trazem. Forçosamente, idêntico cepticismo preside ao modo como os professores primários observam as realizações levadas a cabo pelos pioneiros da educação nova contemporânea nas escolas especiais cujas condições de favor e de excepção não poderão tão cedo ser postas em prática no nosso meio. Isto não significa que desprezemos as investigações dos filósofos, dos psicólogos, dos pedagogos, que numa outra esfera social trabalham lealmente pelo progresso educativo. Não ignoramos o muito que lhes devemos e não teremos dúvidas em apelar para a sua competência. Mas a escola popular precisa muito de manifestar as suas esperanças e de à luz dos acontecimentos passados tentar instaurar para si própria um modo de vida saudável e natural, mesmo cor­ rendo o risco de escandalizar os pedagogos profissionais que estejam a soldo dos defensores do obscurantismo ou de todos os negociantes, que enriquecem injuriosamente à custa das aspirações do povo. Actualmente há duas concepções opostas do problema educativo, que partilham entre si o domínio da actividade escolar e pedagógica. Enquanto que os inovadores — como Ferrière, Tabler, Gheeb e um grande numero de pedagogos suíços ou alemães— tentam levar por diante a realização da escola ideal, no seio da sociedade actual, abstraindo do mundo de cuja influência destrutiva se apercebem, os di­ versos representantes da educação oficial, pelo contrário orgulham-se em permanecer de acordo com a prosaica realidade. Para eles, a vida social, o regime escolar, etc... são limites dentro dos quais temos de nos resignar a acomodar o nosso ensino. Defendem a opinião de que os educadores devem limitar-se ao trabalho escolar. Efectivamente, a maior parte dos nossos jornais pedagógicos empenha-se apenas nessa tarefa sem ideal: levar a exame a classe que lhe é confiada, abstendo-se de tudo o que possa manchar a neutra­ lidade ou fazer sombra ao poder. No entanto, existe entre estas duas concepções uma posição possível, clara, leal, definida, que como já sabemos não terá os elogios dos nossos mestres, mas que entendemos ser a única digna dos educadores que se prezam:

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Vislumbramos a escola ideal, é certo; sabemos nomeada­ mente que uma educação libertadora deve ser antes do mais uma ascensão livre e criadora. Mas, trabalhamos principal­ mente em contacto com a mais dura das realidades: estamos em presença de crianças que muitas vezes precisam mais de pão ou de roupas do que de serem empanturradas com conhecimentos; as condições materiais são quase sempre deploráveis; enfim, a vida anormal e imoral que nos rodeia há-de fatalmente contrariar os nossos esforços. Temos, portanto, o dever de mostrar, de provar, de gritar que a educação que desejaríamos ministrar, tal como a definem os nossos melhores pedagogos, pressupõe a realização de certas condições materiais e sociais sem as quais o nosso esforço está votado ao malogro. Ë por esse motivo que nos encontramos na necessidade de situar na vida social todos os problemas pedagógicos que verificamos e estudar, ao mesmo tempo que as realizações pedagógicas, os problemas materiais e sociais que condi­ cionam estas realizações...» Facilmente se compreende que uma tão vasta visão do complexo Educação abrange as simples técnicas pedagógicas que uns quinze anos mais tarde iriam ser concretizadas por movimentos dos «métodos activos», demasiado tardios, escolasticamente especializados. E ainda, quando depois da Libertação Freinet tentar com uma certa violência reagir a estas estreitezas de ordem pedagógica, só será compreendido pelos seus velhos camaradas, os Alziary, os Faure, os Lagier-Bruno, Pichot, Boyau, Lallemand... que constituem a velha guarda dos pioneiros, os lançadores da primeira pedra do edifício CEL... Mas esta interação interna das «técnicas» e dos «métodos» acabou por abalar o mundo pedagógico e suscitar reacções que cremos ser útil especificar. Primeiro temos o Sr. Duthil, professor da Escola Normal, em Nancy, dando a sua adesão moral ao grupo da Tipografia na Escola. Num edi­ torial (Fevereiro, 1929) Freinet publica a longa carta que Duthil lhe endereçou, carta essa que é uma espécie de reconsideração dos valores da pedagogia enquanto ciência e no plano internacional. Podemos aperceber-nos da probidade intelectual do Sr. Duthil por este começo de carta:

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«Não quis responder à sua carta sem reler a Tipografia na Escola, sem 1er Acabemos com os manuais e sem ter passado de novo uma vista de olhos pela colecção da sua revista. Neste momento suponho que compreendí bem as suas intenções e apresso-me a acrescentar que sou um dos seus. Eis a razão: para mim é o seguinte o axioma que domina toda a pedagogia: é necessário partir da criança e basear toda a nossa pedagogia nas suas necessidades e a sua mentali­ dade. Trata-se de uma louvável inversão de valores e você aceita-a sem preconceitos. Daqui resulta que seguir a via inversa, ou seja, tomar como ponto de partida as nossas ideias de adultos para no fim fazer a criança à nossa imagem é um contra-senso psico­ lógico que terá forçosamente de conduzir à estupidíficação da criança e mesmo a um desequilíbrio mental provocado por uma opressão excessiva e por um abuso de exercícios quase todos eles exclusivamente intelectuais. Ainda neste ponto identifico-me consigo. Bem entendido, outros educadores, ao que parece, com­ preenderam estas verdades e a escola activa, as escolas novas, são o produto desta revolução — a palavra não é tão forte como pode parecer. Somente, com mais frequência do que seria de desejar, acontece que estas tentativas se imobilizam a meio do cami­ nho, porque carecem destas duas bases sólidas: o conheci­ mento da criança e a criação de técnicas. Ainda neste ponto estamos completamente de acordo: você baseia todo o seu ensino nas necessidades da criança e elaborou uma técnica notável: A Tipografia na Escola. Contudo, diga-se em abono da verdade que, quando fala das necessidades da criança, você se vê forçado a recorrer a processos empíricos ou então a ir buscar ao método Decroly os seus centros de interesse. Porquê? Porque ainda conhece muito mal a mentalidade da criança e porque só muito recentemente é que os trabalhos de Piaget começaram a desbravar este terreno. Para este ponto indico-lhe como absolutamente excepcional o livro de Vermeylen Psichologie de l’enfant et de l'adolescent. Tomando-o como guia e con­ sultando excelentes monografias sobre os instintos, ser-nos-á

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possível basear o nosso ensino nas necessidades reais das crianças de diversas idades. Satisfazer as suas necessidades, educá-las, esta é a tarefa da escola. Diz você e muito bem: «Tomar os alunos aptos a satisfazer as suas necessidades, fornecendo-lhes todos os elementos que venham a contribuir para a sua instrução e o seu desenvolvimento.» É neste momento que surge a necessidade de inventar técnicas apropriadas. A distinção que você faz entre técnica e método parece-me essencial. As técnicas são processos que foram descobertos para satisfazer as múltiplas necessidades da criança: há, portanto, um grande número de técnicas possíveis; é também por essa razão que se usa esse termo para designar a ortografia, a aritmética, que são autênticas técnicas permitindo à criança exprimir-se e comunicar o seu pensamento. Quanto aos métodos, devemos entendê-los como a rea­ lização óptima das técnicas descobertas. Se continuamos de acordo conseguimos desbravar sin­ gularmente o terreno. Resumindo: Como base: o conhecimento da criança; Como objective: a satisfação e a educação das necessi­ dades da criança; Como meio: técnicas harmoniosamente enquadradas no conjunto dos métodos...» «E quanto ao método? Está agora a elaborá-lo e o seu livro Acabemos com os manuais dá testemunho disso.» E então aquele que viria a ser o primeiro intelectual a integrar-se espontaneamente na CEL terminava com esitas palavras solícitas: ... Quanto a mim ofereço-me para lhe fornecer documen­ tação e até para colaborar consigo caso mo solicite. Com esta comprida carta pretendia somente levá-lo a aperceber-se de quão longa é a via em que se lançou, ao longo da qual há trabalho bastante para todas as boas vontades.» Menos favoráveis às ideias de Freinet serão talvez os autores de manuais e aqueles que pontificam nas revistas pedagógicas; hostilizam ligeiramente os neófitos, aqui e acolá, e pregam a «simplicidade pedagógica» (P. Gay, Manuel

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Général) ou exaltam «o valor do mestre, a fé» (Besseiges, Collaboration Pedagogique). Dentro do movimento atrasado da educação nova, os inventores de métodos, por sua vez, defendem-se. O Sr. Cousinet defende o seu método com um certo azedume. Voltaremos a falar da retomada de posições ampla e humana desse grande educador que foi Decroly. E, porque os mal­ dosos e os incompreensivos tinham de certa maneira subesti­ mado um pouco por toda a parte a tipografia, rebaixando-a ao nível de um simples meio escolástico, Freinet pugna pelos seus valores com o entusiasmo que se pode imaginar. As suas respostas aos críticos revestem-se de uma tal actualidade, que vamos sublinhar as suas passagens essenciais:

O SIGNIFICADO NOVO DAS NOSSAS PESQUISAS

Supúnhamos que tínhamos definido suficientemente nas nossas publicações a nova via em que nos lançámos. Mas será que algum dia poderemos ser entendidos pelos oposito­ res obcecados pela sua falsa ciência, eles que se esmeram em demonstrar, com grande apoio de afirmações teóricas, que a nossa experiência, cujo interesse já ninguém pode negar, não está à medida das nossas escolas públicas; que as nossas soluções derivam do idealismo — ou do erro — mas que de modo nenhum podem aplicar-se à generalidade das nossas classes? Como se a utilização que todos os dias se faz da Imprensa em cem escolas e os resultados obtidos não fossem mais concludentes do que as argúcias de críticos mal infor­ mados. Com o risco de nos repetirmos, vamos tentar de novo precisar a nossa concepção e situar a nossa realização no âmbito do movimento pedagógico actual. Quando lançámos a ideia da Tipografia na Escola íamos sendo arrastados por duas correntes contrárias. Na extrema esquerda do movimento pedagógico, os adeptos de uma teoria anárquica da educação acreditaram na possibilidade de chegar através da nossa técnica â escola

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dos seus sonhos, em que os alunos, libertos de toda a opressão, negligenciando tudo o que tinham adquirido ante­ riormente, compondo e imprimindo sozinhos os seus livros sem o controle dos adultos, realizariam a verdadeira educação livre e pessoal. É certo que reconhecemos que o espectáculo de crianças autoeducando-se fora de todo o constrangimento não deixaria de nos fornecer indicações psicológicas e peda­ gógicas preciosas. Poderiamos encarar isso como uma expe­ riência pedagógica que talvez tivesse alguma utilidade, Mas consideraríamos essa tendência contrária às necessidades actuais da pedagogia popular. Se condenámos o isolamento da escola foi para irmos agora à procura de uma organização quimérica, mais alheia ainda ao mundo e à civilização. Sejam quais forem os entraves que a sociedade capita­ lista interponha às tentativas de renovação da educação popular, dedicar-nos-emos a fundir mais do que nunca a escola com o povo a fim de desembaraçar a educação de tudo aquilo que até hoje conteve de misticamente aristocrá­ tico para a tornar numa poderosa preparação para a vida proletária. Para tal não desprezaremos nada daquilo que a civili­ zação pôs ao nosso alcance materialmente falando. Mas reservar-nos-emos o direito de dar ao material e aos livros escolares o emprego mais conforme aos princípios de educa­ ção de libertação e de vida que achamos deverem estar na base das nossas pesquisas. Pelo contrário, os pedagogos profissionais tinham pre­ ferido vermos dar à imprensa um emprego sensatamente escolástico que não teria abalado nem as tradições nem os métodos costumeiros. Fazer com que se imprimam os resumos de lições, os quadros sinópticos, os elementos fundamentais de preenchi­ mento inútil dos espíritos, seria, na sua opinião, a utilização óptima a conferir à Tipografia na Escola. Os mais auda­ ciosos teriam pretendido fazer com que os alunos imprimis­ sem uma selecção de textos (adultos) destinados a leitura e a trabalho, realizando por si o manual escolar quase ideal. Sempre repudiámos tais técnicas de trabalho. Nós que condenamos a excessiva acumulação de conhecimentos, não íamos agora fornecer mais um meio de sujeição à escola.

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Por esse motivo, muitas vezes acautelámos os nossos corres­ pondentes contra um emprego Normalista e morto da Im­ prensa Escolar. Aconselham-nos ainda alguns críticos, que desprezam completamente os princípios de vida do nosso trabalho: Porquê fazer com que se imprimam textos de crianças sem haver uma ordem ou um método? Os resultados seriam muito mais apreciáveis se fizessem as crianças imprimir palavras-tipo, frases escolhidas, textos modelos... Evidentemente que o podíamos fazer. Antes de nós, outros —Paul Robin já o salientara - - notaram que a combinação tipográfica é um excelente exercício manual, que auxilia consideravelmente na prática da ortografia, apura o gosto, etc... Tudo considerações especificamente escolares, susceptíveis quando muito de surpreender os pedagogos, mas que deixam os nossos alunos indiferentes. Para estes, um trabalho da imprensa que tivesse em vista a compo­ sição de palavras ou de textos que não tinham conseguido atingi-los permanecería, tal como todo o trabalho escolar, uma ocupação cuja novidade atrai durante uns momentos, que em seguida agrada pela actividade que exige, mas que não tarda a revestir-se, da mesma maneira que as outras ocupações escolares, de um carácter de obrigação inútil, absolutamente contrário aos nossos princípios educativos. A experiência demonstrou-o: os alunos cansam-se muito mais depressa com a impressão dos textos que não os atingem profundamente. Quem prosseguisse nesta via amesquinharia consideravelmente o alcance educativo e humano da nossa experiência e rebaixaria o nosso material ao nível de todas as invenções que os pedagogos congeminaram para «esca­ motear» o interesse e o trabalho da criança. E nessa via o educador só depararia com desenganos e desilusões. A Tipografia na Escola possui um fundamento psico­ lógico e pedagógico, que, inversamente, é permanente e seguro: a expressão e a vida infantis. Será que uma criança se cansa por exteriorizar através da linguagem tudo o que lhe vai na alma? Será que se cansa mais por se exprimir através do desenho quando o pode fazer livremente?

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O mesmo se passa com a expressão escrita. Mas não pode existir expressão sem que haja interlocutores mais ou menos imaginários. Precisamente por na escola antiga a redacção se destinar apenas a ser corrigida ou censurada pelo professor, por continuar a ser um dever escolar, não podia ser um meio de expressão. Agora a criança escreve para ser lida —pelo educador e pelos camaradas— enfim, para que o seu texto seja im­ presso e assim, na medida em que se torna perene, seja sentido também pelos correspondentes próximos e afastados que o hão-de ler. De facto, nós obtivemos a mesma espon­ taneidade, o mesmo transbordar de vida que se patenteiam nas actividades infantis livres. Outros indícios absolutamente seguros nos mostram que levámos de uma só vez a escola a penetrar no âmbito da vida da criança, na medida em que alargamos e aprofundamos essa mesma vida e trazemos para a educação, espontânea e individual, familiar e escolar, uma unidade harmoniosa, unidade essa que se alcançou com o ardor no trabalho, a actividade, a curiosidade, o desejo de enriquecimento e de valorização, que verificámos nas nossas escolas. Neste momento é-nos possível atingir a alma da criança na escola: temos em nosso poder a poderosa alavanca que nos permitirá experimentar e precisar um método de edu­ cação activo e vivo. Compreender-se-á que, na medida em que procuramos as técnicas adequadas, evitemos energi­ camente voltar a cair no formalismo escolar, para que não esmoreça o vigoroso entusiasmo dos professores e alunos que se lançaram na conquista de uma nova via.» Um instrumento decisivo: a imprensa

Em Maio de 1929, a fim de consolidar esta permanente união entre a nova teoria e a prática escolar, união que permanecerá a sua grande preocupação, Freinet desenvolve o seguinte conceito: um só instrumento pode bastar para conduzir à reconsideração de toda a ciência pedagógica; a imprensa está na base de um novo comportamento e de uma nova orientação da criança e do educador e, por conseguinte, de toda a pedagogia. 112

UMA NOVA TÉCNICA DE TRABALHO ESCOLAR

«É certo que a Tipografia na Escola constitui um grande progresso, disseram-nos ainda, mas não podemos considerá-la como uma panaceia universal. Não há dúvidas de que os educadores que formulam esta critica inconsistente têm a desculpa de não terem estudado os nossos trabalhos de bastante perto: teriam reparado que nós insistimos muitas vezes na necessidade de não se con­ siderar a Imprensa na Escola com um método, mas de ver nela uma técnica de trabalho livre e criador ao serviço de uma educação verdadeiramente proletária. Contudo, esta inovação acarreta consigo possibilidades novas específicas, que a levarão sem dúvida alguma a in­ fluenciar a pedagogia. Os melhores educadores contemporâ­ neos elogiavam-nos a livre actividade infantil e a expressão mais íntima da personalidade; as descrições de experiências nas quais se havia depositado a maior confiança na criança não deixavam de ser entusiasmantes. Infelizmente, por múl­ tiplas razões, materiais, individuais e sociais, as nossas classes populares pobres, superlotadas, paralisadas pela obsessão dos programas e dos exames, não tinham a menor possibili­ dade de se lançar na nova via, A Tipografia na Escola fez com que a expressão livre e a actividade criadora dos nossos alunos passasse para o domínio da prática quotidiana. Atra­ vés da experiência, mais eficaz do que todos os raciocínios pretensamente científicos juntos, abriu novos horizontes a uma pedagogia baseada no interesse autêntico, fonte de vida e de trabalho. Restabeleceu de uma assentada a unidade do pensamento, da actividade e da vida infantis, como assinalávamos no nosso ultimo artigo; integrou a escola no processo normal de evolução individual e social dos alunos. Estas considerações têm para nós um aspecto essencial e fundamental. A criança, que se apercebe de que o seu trabalho tem um objectiva e que pode abandonar-se completamente a uma actividade não já escolar mas simplesmente social e humana, sente-se invadida por uma forte necessidade de agir, de procurar, de criar. Verificámos maravilhados que os 113

nossos alunos, fortalecidos e renovados, desenvolviam livre­ mente um trabalho bem superior, qualitativa e quantitativa­ mente, àquele que os antigos métodos opressivos lhe exi­ giam, E todas as classes em que se introduziu a Imprensa na Escola experimentaram esse persistente entusiasmo por parte dos alunos, não só pelas disciplinas motivadas directamente pela imprensa, mas também por toda a actividade escolar em geral. Normalmente objectava-se aos iniciadores, que davam conta de experiências concludentes, que uma tal paixão pelo estudo só se devia ao encanto pessoal do educador. Ora, a verdade é que os resultados que referimos foram obtidos igualmente em todas as escolas que trabalhavam com a imprensa, fossem quais fossem as qualidades pessoais do professor. Bastou que este tivesse humildade e humani­ dade suficientes para «descer do seu púlpito, abandonar o alto nível do seu estilo papagueado e erudito...» e de se pôr totalmente ao serviço das crianças. Se, como temos dados para o provar, o aluno que pode enfim trabalhar de acordo com a sua personalidade não volta a ter de ser repreendido nem estimulado para apresentar um trabalho consciencioso, então estamos perante a derrocada de todas as velhas concepções da escola. Parecia que a criança era por natureza mandriona, ve­ lhaca, mentirosa, hostil a qualquer esforço. Para alcançar os fins educativos exigidos pelos regulamentos era preciso umas vezes obrigar, outras recompensar, castigar, atrair através do jogo, da novidade de enganadoras imagens — pro­ cessos que patenteavam todos eles a sua incapacidade por resolver definitivamente os problemas complexos do inte­ resse escolar. Estamos na Primavera: a criança está sedenta de vida e de actividade. Utilizamos este desejo colocando à sua disposição os «instrumentos» de instrução e de educação que nos parecem úteis à sua valorização e trabalhando para a realização das condições materiais e sociais que a tornarão possível. Sem dúvida que esta concepção do meio educativo como sendo uma técnica de trabalho totalmente diferente dos processos usados actualmente, técnica que não seria capaz

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de se adaptar a instrumentos de trabalho ultrapassados, e nomeadamente aos manuais escolares, símbolo da pedagogia opressiva, é uma concepção original. Retomaremos mais adiante o estudo da concepção ma­ terial e social do novo meio escolar. Hoje vamos dar apenas um resumo da nossa técnica de trabalho numa escola sem manual escolar. Já não vamos procurar nos livros nem nos programas a base essencial do nosso esforço educativo. Toda a peda­ gogia é falseada desde que não se apoie em primeiro lugar no educando, nas suas necessidades, sentimentos e aspirações mais íntimos. Perscrutaremos a alma da criança; para tal possuímos uma técnica que já se revelou suficientemente opérante: a redacção livre, a Imprensa Escolar e a corres­ pondência interescolar. Esta expressão espontânea consti­ tuirá ao mesmo tempo um desabrochar das personalidades e uma ocasião de se adquirirem, ampliarem e precisarem as diversas aquisições: língua, gramática, vocabulário, ciên­ cias, história, geografia, moral, introduzindo logicamente, de acordo com o interesse infantil assim exteriorizado, as disciplinas previstas no programa. Aqui, a nova orientação da nossa pedagogia manifesta-se sem rodeios: com o manual escolar, é o livro que cria sempre artificialmente o interesse. Quanto a nós, trata-se de um erro bastante grave: na escola, o livro só deve servir para satisfazer e aprofundar o interesse da criança. Nós permitimos que esse interesse se manifestasse intei­ ramente; como explorá-lo agora com vista aos nossos fins educativos? É preciso que os diversos estudos que se empreenderam correspondam e se adaptem à actividade infantil em vez de pretenderem que esta se vergue à ordem escolar. Ora hoje em dia não há nada que disponha de tais possibilidades: saber encontrar espontaneamente no material escolar leituras espe­ ciais, guias para a actividade intelectual e manual, que permitam à criança desabrochar livremente ao longo do dia de acordo com as suas necessidades. Bem nos temos esfor­ çado por reunir na nossa biblioteca os livros de trabalho que conseguimos arranjar. Infelizmente, no momento pre­ sente os manuais escolares são os únicos que estão ao nosso

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alcance, mas ao menos perderam o seu caracter específico de manuais e, para nós, só têm o defeito de lhes faltar a suficiente flexibilidade do ponto de vista técnico e de não corresponderem completamente às nossas exigências. Será necessário estimular a edição —ou fazê-la nós próprios— de elementos de trabalho adaptáveis às nossas necessidades. O ficheiro escolar, cuja ideia lançámos e que talvez ten­ temos pôr em prática, será o nosso principal auxiliar: moderno, ampliável e aperfeiçoável, caso se deseje, dar-nos-á a possibilidade de pôr nas mãos dos alunos na altura própria os mais diversos documentos —literatura, ciências, geografia, história, etc...— correspondendo ao interesse dominante. Este ficheiro terá de ser completado com uma biblioteca de trabalho composto por livros diversos, que serão conce­ bidos segundo um novo ângulo e que por enquanto ainda estão todos por realizar. Apesar desta inexistência quase total de material escolar adaptando à nossa nova técnica, há já quatro anos que obtemos em classes difíceis — mas sem manual — resultados francamente encorajadores. A experiência que este ano levámos a cabo numa classe de três cursos, destinada ao CEP e na qual só por inter­ médio do desejo de actividade que provocámos conseguimos levar em alguns meses apenas 35 alunos escandalosamente atrasados a alcançar um nível normal, demonstra-nos firme­ mente a superioridade técnica do nosso conceito de escola. Mas também sabemos que a maioria dos professores primários só enveredará pelo novo caminho que lhe apon­ tamos no dia em que o material educativo estiver definitiva­ mente adaptado. É por esse motivo que, sem descurarmos a direcção pedagógica e ideológica do nosso movimento, nos dedicamos muito especialmente às realizações materiais que o condicionam.» Pedagogia cooperativa

Reina nesta CEL, que já se afirma com tanta autori­ dade no inundo pedagógico, uma actividade colectiva fra-

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temal, que semana a semana vai aumentando o bem comum1. Gostaríamos de ter mais espaço para falarmos do modo como todos os aderentes dispersos pelas aldeias da França e lá longe pelo estrangeiro se esforçam por contribuir para o edifício comum com o seu óbulo. Primeiro entra-se no aperfeiçoamento contínuo dos instrumentos básicos: na se­ quência de pesquisas pacientes, que como devem calcular são feitas por aproximações constantes e exigem despesas inevitáveis e perdas de tempo, surgem dois novos prelos, prelos «automáticos» se lhes quiserem chamar, com um óptimo aspecto: o prelo Dunand e o prelo Pagès; saudemo-los, pelo menos para já, porque, como acontece aliás a todo o material da CEL, serão revistos por sua vez... Bordas (Lot-et-Garonne) ocupa-se dos rolos de tinta e asse­ gura o seu fabrico. Rivière (Viena) especializa-se no forne(1) A lista dos aderentes que trabalhavam com a imprensa era a seguinte a 1 de Outubro de 28: Allier: Sr. Chéry, em Désertines. Sr. Virmaux, em Châtillon, por Noyant-d'-Allier. — Alpes-Marítimas: Sr. C. Freinet, em Saint-Paul. Sr. Aicard, Le Canne-Fourem Chaux. Sr.a Aicard, Le Cannet-Four, cm Chaux. Sr. Spinelli, Men­ ton. Sr. Barel, Menton. Men. Monnod, nas Courmettes, por Tourrettes-sur-Loup. — Ardenas: Sr. Jayot, em Sailly, por Carignan. Sr. Voirin, em Chèmery-sur-Bar. — Ariège: Sr. Subra, em Antras, por Sentein. Sr.ª Garmy, em Suc, por Vicdessos.— Baixos-Alpes: Sr. Meurel, em Valensole. Sr.ª Burle, em Alemanha. Baixos-Pirenéus: Sr. Director da Escola Normal de Lescar. Sr. Roger Lallemand, Casa dos Pequeninos, em Lescar. — Cantal: Sr.ª Lavergne, Le Claux. — Charente: Sr. Brunet, em Suris. — Charente-Inférieure: Sr. Bernard, Saint-Savinien. Sr. Girard, preb. de Lannelongue, por Saint-Trojan-les-Bains. Sr. Fragnaud, em Saint-Mandé, por Aulnay-de-Samtonge.— Dordogne: Sr. Delbos, em Lembras. Sr. Lavaud, em Saint-André-le-Double, por Saint-Vicent-de-Cubzac. Sr.ª Baylet, em Marsaneix, por Saint-Pierre-de-Chignac.— Eure-et-Loir: Sr. Pichot, em Lutz-en-Dunois, Sr.ª Pichot, em Lutz-en-Dunois. — Frnisterra: Sr. Daniel, em Trégunc. Sr. Le Treis, em Daoulas. Sr. Caruel, em Landrévarsec, por Briec, Sr. L’Haridon, em BeuzecConq. — Gard: Sr. Rousson, em Masdieu-Lavel, por la Grand Comb. — Gironde: Sr. Boyau, em Camblanes. Sr.ª Boyau, em Camblenes. Sr. Carayon, em Saint-Jean-d'Illac. Sr. Boussimot, em Auros. Sr. Lavit, em Mios-Lilet. Men. Bouscarrut, em Saint-Aubin-de-Médoc. Sr. Gorce, em Margaux-Médoc. Sr.ª Audureau, em Pellegrue.— Altos-Alpes: Sr.ª Lagier-Bruno, em Prelles. Sr.ª Lagier-Bruno, em Saint-Martin-de-Queyrières. — Haute-Savoie: Sr. Baritel,

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cimento dos caixotins, Pichot (Eure-et-Loir) estuda numa série de artigos o mobiliário escolar e os mais engenhosos vão propondo aos camaradas ao longo do ano pequenos truques e trabalhos manuais de vária ordem. Os processos de ilustração são da competência de Roulin (Sarthe), Bouscarrut (Gironde), Gourdin (Ardenas) : Como fazer impressos sem manchas? Como controlar os componedores no espelho? etc... No entanto, o que tem de se levar em conta para lá deste materialismo manual é a incessante contribuição de todos para o aperfeiçoamento das técnicas de ensino e o ter-se aberto uma porta para o horizonte intelectual da pedagogia. A Sr.ª Lagier-Bruno (Altos-Alpes), numa série de artigos, expõe a sua experiência de aprendizagem da

em Scionzier. Sr. Dunand, em Pratz-sur-Arly.— Indre-et-Loire: Sr. Ballon, em Pont-de-Ruan. Sr. Delanoue, em Ballan-Miré. Sr, Bieret, em Beaumont-la-Ronce. — Isère: Sr. Faune, em Corbeline. Sr.ª Faure, em Corbelin, Sr. H. Guillard, em Satola$-et-Bonce, por La Verpillère.— Loire-Inferior: Sr. Guilloux, director da escola ao ar livre de Château-d’Aux, por La Montagne. — Loiret: Sr. Gauthier, em Sólterre. — Lot-et-Garonne: Sr. Bordes, em Ségalas, por Lauzun. — Mame: Sr. S chou 1er, Petit Bétheny, Reims.—Meurthe-et-Moselle: Sr. Hoffmann, em Bouxières-sous-Froidmond, por Pont-à-Mousson.— Norte: Sr. Wullens, em Somain. — Oise: Men. Venit-Guinet, em Lormeteaux. — Pirenéus-Orientais: Sr. Michel Noé, em Pollestres. Sr. Pagès, em Prats-de-Mollo.— Rôdana: Sr. Bouchard, Lião. Sr.ª Forest, Grandis. Men. Mathieu, Grandis. Sr.ª Bouchard, Liâo, (3.°). Sr.ª Jeanne Ballanche, Francheville-le-Haut Sr. Rochat, Vénissieux. —. Sarthe: Sr. Leroux, Neuvillette-en-Chamie. Sr. Roulin, Chevillé. — Sena-Inferior: Sr. Vittecoq, Bourville. Sr. Briard, Saint-Léger-du-Bourg-Denis. Sr. Leroux, Le Havre. — Seine-et-Oise: Sr. J. J. Fannonnel, La Villette-aux-Aulnes. Sr. Philipson, em Dampierre. — Var: Sr. Alziary, em Bras. Viena: Sr. Ravière, Ouzüly. — — Vosgos: Sr. Director Escola anexa Escola normal, Mirecourt. Sr. P. Georges, Les Charbonniers.— ESTRANGEIRO: Inglaterra: Sr. H. Satay, Bournemouth, Hants. — Bélgica: Sr. Van Derveken, Bruxelas. Sr. Havaux, Pâturages (Hainaut). Sr. A. Wouters, Anvers. Sr. Lebbe, em Souture-Saint-Germain (Brabant). Sr.ª Hamaïde, Escola Decroly, Uccle—Bruxelas.—Espanha: Sr. M. Cluet, Madrid. Sr. Jésus Sanz Poch, Professor, Escuela Normal de Maestros, Lérida. Sr. Antonio Garcia-Martin, Chito Granada. — Marrocos: Sr. Perron, Escola profissional de Tanger. —Polonia: Sr. Jerzy Woznidu, Forez. Odolany. — República da Argentina: Men. Champeau, Men­ doza.— Tunísia: Sr. Magnan, Sousse. Sr. Meunier, Escola Casquet, Sfax. 118

leitura através da imprensa e completa, por um prisma enternecedor, de vida sensível e subtil, os dados recolhidos por Freinet em Bar-sur-Loup. Para os camaradas observadores, o «texto livre» é tido como o gerador permanente dos centros de interesse escalo­ nados ao longo das estações, tão ricos e completos, que ultrapassam os programas e conduzem a uma visão de con­ junto de todos os conhecimentos que serão colocados à disposição da criança. É o que A. e R. Faure (Isère) indicam depois de um ano de experiências com a imprensa. Até agora tinham trabalhado com os centros de interesse de Decroly. Na «École Vivante», saída na «École émancipée», tinham apresentado uma adaptação do método de Decroly às classes da primária. O texto livre sem alterar as suas concepções: o professor que deve «saber tudo» tem de estar na posse de uma classificação, de um ordenamento dos conhecimentos, e a isto aplica-se o método de Decroly. Mas na criança nada existe de preconcebido: «Na vida não há classificações rigo­ rosas.» Graças ao texto livre, que não impõe nada, o educa­ dor alarga o horizonte da criança assim como a correspon­ dência interescolar. No entanto, houve, camaradas que bastante irreflectidamente partiram desta noção de centros de interesse estran­ gulando a vida da criança e trabalhando, digamos assim, à força. É o caso de Caruel (Finisterra) que pretendeu impor centros de interesse demasiado sistemáticos a La Gerbe, Dauthier (Loiret) critica-o: «O encanto de La Gerbe não residirá todo ele precisamente nessa liberdade de inspiração, nessa espontaneidade, que não podemos subordinar seja a que tema for?» Esta grave questão de La Gerbe está muitas vezes na ordem do dia. Há neste momento doze equipas, colaborando aos pares. Todos os meses Freinet publica as necessárias instruções relativas à colaboração, à tiragem e à encader­ nação. Para além de La Gerbe, os Extraits de La Gerbe começam deste modo a tomar-se pouco a pouco estranhos a La Gerbe, para passarem a exprimir aspirações mais pro­ fundas, mais centradas numa única inspiração. Freinet dedica o melhor dos seus cuidados ao inter­ câmbio escolar. Para já, compete-lhe a ele a organização

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das equipas, uma vez que está a par das características das diversas escolas melhor do que ninguém. Em Novembro de 1928 já tem catorze equipas de oito correspondentes cada. O conhecimento pessoal da criança, para além do aspecto subjectivo que o texto livre reflecte, é também um novo elemento a incorporar numa nova pedagogia. É isso que leva o Sr. Duthil a abordar a questão dos testes, expondo-a com uma clareza e simplicidade tais, que não deixam margem para a menor confusão: «O que é um teste? É uma prova objectiva, que deve ter como resultado o destaque de uma aptidão ou de um nível de instrução, tomando os termos no sentido mais lato. O que caracteriza estas provas é a maneira como são ela­ boradas, aplicadas, corrigidas e utilizadas.» De facto, o teste, controle objectivo que permite — pelo menos de acordo com as exposições dos seus apologistas — destacar os «conhecimentos» e as «aptidões» da criança, não obtém o menor êxito entre os nossos camaradas. Não se nota nenhuma reacção profunda, nenhum desejo de trilhar a via que, contudo, segundo Duthil, deve conduzir a uma «individualização» do ensino e não ao pólo oposto, a «standardização». Porquê esta indiferença? Porque os testes, creio eu, mesmo os mais naturais, os mais dirigidos à actividade infantil, não adquiriram ainda, a subtileza que lhes permitiría tomar-se num factor integrante da personalidade. Quem diz «testes» diz «controle»; ora o controle constitui uma barreira que se opõe à passagem de corrente. O teste ideal deve deixar passar a corrente, deve ligar-se ao factor essencial «tempo», testemunhando simultaneamente um ins­ tante da personalidade, com as suas características de «dinamismo» e «unidade». É indispensável que os nossos educadores entrem em contacto com os grandes movimentos pedagógicos da França e do estrangeiro; essa a razão de Freinet ter feito sempre os possíveis para que o grupo da Tipografia na Escola colaborasse com as revistas dos sindicatos e com o movimento pela educação nova; adere ao grupo francês desde os seus primeiros tempos de Bar-sur-Loup e participa em todos os Congressos; em 29, são Pichot e Leroux que, por sua vez,

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representam a CEL no Congresso de Paris. «Dias favoráveis à Imprensa», dizem os nossos camaradas. «O nosso stand estava bem situado e a afluência era constante. Os visitantes davam mostras de uma grande admiração e muitas vezes de uma grande incompreensão. Numerosos directores de Escolas Normais, inspectores e professores primários mostraram-se particularmente interes­ sados e prometeram arranjar também, em breve, a sua imprensa própria. Os directores da Nouvelle Éducation são aliás muito simpáticos ao nosso movimento e o Sr. Cousinet lançava uma rápida vista de olhos pelos nossos trabalhos, dizendo com orgulho ao Sr. Jnspector do Alto-Reno: «Estão muito bem feitos. Só na minha circunscrição tenho três...» Em todos os números de L’Imprimerie à l'École, na rubrica «Os jornais e as revistas», Freinet e alguns camaradas dão uma rápida perspectiva dos acontecimentos pedagógicos nacionais e a da «Documentação internacional», tendo por intérprete o espéranto, dá a Boubou a possibilidade de co­ nhecer a pedagogia estrangeira, suas inovações e particula­ ridades e de a comparar com a nossa pedagogia popular. Nas grandes cidades francesas, os nossos aderentes orga­ nizam exposições de material, o que mais uma vez origina numerosas adesões entre as quais as de Poujet (Mame), Pichon (Finisterra), Gourdin (Ardenas), Masson (Loire-Inferior), Lallement (Mame). Duas novas rubricas recebem abundante colaboração em todos os números de L'Imprimerie à l'École. São elas: «cinema» e «rádio», técnicas novas na altura e que suscitam nas escolas rurais um enorme interesse. Os animadores da cinemateca, criada em Angers, serão durante muito tempo O. e R. Boyau. Expõem constantemente os pormenores técnicos do cinema na escola e para lá disso as vantagens e as riquezas do cinema educativo. Organizam catálogos bastante completos de filmes de aluguer. Promovem saraus recreativos com todos os cuidados; e sobretudo organizam por toda a França um sistema de aluguer de filmes à semana, que redunda num êxito. Quanto tempo nos levam essas bobines tão pequenas, que hão-de transportar um instante de distracção e de alegria até às escolas rurais mais afastadas! O mesmo acontece com a secção da Rádio orientada por

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Lavit e Maradène (Gironde) alternadamente; com uma pa­ ciência infinita aprendem a montar postos e vão-se aperce­ bendo lentamente de uma nova e ousada concepção da rádio escolar.

Nascimento do ficheiro escolar

Cremos que, uma vez terminado este primeiro ano em Saint-Paul, haverá toda a utilidade de fazer o ponto da experiência que Freinet realizou com esta classe, em que, dadas as novas condições, estão a levantar-se bruscamente novos problemas. A escola de Bar-sur-Loup era homogênea. Tinha disciplinas idênticas para a maior parte dos alunos. Nesta, os alunos pertencem a vários graus de ensino: uns, mal saídos da pré-primária, soletrando ainda a cartilha; outros, escalonando-se até chegarem ao curso secundário, onde se prepara o CEP. Estas realidades levantam bastantes dificuldades ao doente e ao professor. Quando, ao começar a sua experiência, lançara reagindo à velha pedagogia opressiva esta espécie de anátema, que foi Acabemos com os manuais, Freinet ainda só encarava a questão pelo lado teórico. Agora foi encostado à parede... e vê-se obrigado a enfrentar a prática. Os manuais das crianças de Saint-Paul pareciam ser dos piores: o saber que continham era estreito, dogmático, parcial, apresentado como o era, na forma mais escolástica que se podia imaginar. Tinham decerto, sem que o velho professor desse por isso, contribuído para agravar a atmos­ fera insustentável daquela escola de «desordeiros». Inútil conservá-los como livros individuais; alguns exemplares alinhados numa prateleira serão mais que suficientes para tirar de apuros nos casos difíceis tanto os alunos como o professor. E isto porque, confessemo-lo, esse professor que encetou a batalha contra o passado está muito longe de ser um erudito. Os escassíssimos conhecimentos que conseguiu adquirir tanto no CC como durante os dois anos de Escola Normal quase não dão para nada e, para cúmulo, ainda foram dispersos pelas profundas meditações provo­

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cadas pelos sofrimentos da guerra e pela heróica edificação de uma personalidade que hoje está totalmente dirigida para a acção. O que nos vale é que a vida é um campo fértil donde estão sempre a brotar riquezas e ensinamentos. O que é preciso é não os deixar escapar. O texto livre constitui uma notável ocasião para o fazermos. Só por si, destaca os centros de interesse mais eloquentes e vai direito ao conhe­ cimento do meio, que será completado pelas investigações feitas no próprio local e que constituem a base, o funda­ mento, do saber da criança social. Mas, para lá desse saber o integrando-se nele, impõe-se a soma de conhecimentos a propor à criança, na altura própria, de modo a encami­ nhá-la sem esforço do saber restrito do meio a um saber intelectual mais geral. Esta necessidade traz consigo certas exigências: 1.° É necessário que se coloque constantemente à dis­ posição das crianças um conjunto de elementos de estudo que lhe permita recolhê-los na altura propícia; 2.° É necessário que esses elementos de estudo sejam suficientemente maleáveis a fim de permitirem um ensino individualizado, posto que é inevitável que os alunos tenham diversos interesses a explorar. Durante os nossos passeios, reflectimos longamente nes­ tes dois aspectos do problema e, não tendo conseguido resolvê-lo, organizamos a biblioteca da escola o melhor que podemos, destinando duas filas exclusivamente para os livros, manuais e revistas de estudo. Mas acontece que o livro não é um instrumento ideal para a criança: é demasiado rico, demasiado complexo, difícil de compulsât, difícil de compreender; faz perder tempo e desorienta a criança. É preciso encontrar um elemento de estudo «simples», «funcional». Nasce então a ficha de estudo e surge o ficheiro escolar. O primeiro artigo de Freinet, «O ficheiro escolar cooperativo», aparece em Fevereiro de 29, depois de vários meses de ensaios. «Para novas técnicas de trabalho, novos instrumentos. E, sem instrumentos adaptados aos seus fins, não há nova técnica que consiga introduzir-se nas escolas do povo.

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Da mesma maneira que só depois de a nossa cooperativa ter fabricado e vendido um material apropriado é que a Imprensa Escolar obteve uma expansão efectiva nas classes pobres; da mesma maneira que a vulgarização do cinema enquanto instrumento de ensino está subordinada à produção de aparelhos de projecção e de filmes bem adaptados às nossas necessidades, assim o trabalho livre dos alunos numa escola sem manuais só será generalizado no dia em que tivermos posto à disposição dos educadores um material de estudo e de trabalho que satisfaça as actuais necessidades da actividade escolar. Quem é que ao examinar os numerosos artigos espalhados pelos livros e pelas revistas pedagógicas não sonhou: «Ah! Se pudéssemos ter à mão uma importante selecção desses artigos no momento em que precisássemos deles e em que os alunos os haviam de 1er com o máximo de aproveitamento, como seriam consideravelmente melhoradas as nossas condições de trabalho!» Hoje podemos transformar esse sonho em realidade. Os artigos recolhidos e escolhidos em conjunto seriam impressos apenas no verso das folhas (formato 13,5 X 19, evidentemente) em caracteres bem legíveis, se possível ilus­ tradas e prontas a ser coladas em cartão duro que forne­ ceriamos a baixo preço. Cada uma das páginas assim obtidas constituiría uma ficha de trabalho que classificaría­ mos mediante um sistema prático, que se estudará depois. Com efeito, não são os próprios professores conscien­ ciosos que tentam elaborar colectâneas de textos, artigos, ditados e problemas? Tal como nós, alguns camaradas terão até realizado um ficheiro improvisado com recortes tirados daqui e dali. Oferecemos-lhe um ficheiro metódico, perfeito, que poderão colocar à disposição dos alunos ou guardar para a sua própria preparação da aula, instrumento extraordina­ riamente fácil de manejar, permanente, com múltiplas utili­ zações. Estamos nós à altura de realizar esse ficheiro? Pedagogicamente, não há dúvida que sim. O interesse que suscitaram os trabalhos publicados por vários dos nossos camaradas constitui para nós uma garantia de que obteremos

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para uma das melhores e mais ricas selecções já feitas em França. Comercialmente, tudo indica que também será êxito. Numa primeira estimativa, chegara-se â conclusão de que podíamos fazer as fichas a 0,05 Fr. no máximo. (Escusado será dizer que, sendo esta edição da autoria da Cooperativa, os subscritores iriam, como tal, beneficiar das melhores condições que conseguíssemos obter.) Hoje pomos à vossa disposição as primeiras 500 fichas, a 25 Fr., que devem ser distribuídas a um ritmo que será decidido em comum, mas que em todo o caso abrangerá todo o ano que vem.» Chegam a Freinet, vindos do «Palácio Mundial» de Bruxelas, os primeiros ecos do seu artigo: é Paul Otlet, uma das sumidades que presidem à escolha do material didáctico internacional, que leva o nosso inovador a aper­ ceber-se da amplidão das riquezas do Palácio Mundial de Bruxelas. Levaria muito tempo (embora tivesse bastante interesse) citar aqui todos os pormenores dados por P. Otlet a respeito da documentação internacional. Esta, através da Biblioteca, do Museu, da Enciclopédia Documental, do Atlas, do Filme, do Catálogo, faculta a consulta das maiores riquezas do mundo por intermédio da classificação decimal universal. A ideia do «Ficheiro escolar», que Freinet lançara, entu­ siasma P. Otlet. «É uma ideia magnífica a desse ficheiro e reveste-se de uma utilidade considerável. Devia ter a possibilidade de se integrar no sistema que acaba de ser descrito. Este sistema precisa de contribuições tais como a do ficheiro e este extrairía uma força considerável do facto de, por sua vez, estar integrado nesse sistema. Bastaria para tal, que todos os elementos de estudo desse ficheiro correspondessem a uma ficha automática e obedecessem a estas três condições: formato de 21 X 27, data, autor, numeração, menção das fontes de origem... ...O ficheiro escolar cooperativo adoptarâ essa orientação. No seu conjunto satisfaz estas três necessidades: de completar o material escolar limitado por uma documentação colectiva limitada; de possibilitar a individualização do ensino pelo

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recurso à elaboração de um material autoeducativo que se destine a todas as matérias de ensino; de fornecer a todo o educador um meio cooperativo de prestar a sua contribuição para a obra comum sem precisar de recorrer à impressão dos livros, por demais onerosa.» Serão precisos vários anos de tentativas, discussões, de incessantes actualizações, para que o «Ficheiro Escolar Cooperativo» se transforme reaknente na obra comum, obra a que se vão associar os nomes de Faure, Gauthier, Guet e sobretudo o de Lallemand, seu verdadeiro animador.

RUMO A UMA NOVA ETAPA «Tecnologicamente, franqueámos hoje a primeira etapa. Queiram ou não queiram, a imprensa, ao penetrar na classe, regenera e altera as nossas práticas educativas. É por esse motivo que o estudo sobre a adaptação pedagógica da nossa técnica deve ser, mais ainda do que no passado, associado a todo o problema da organização do trabalho escolar, problema para o qual ao longo do ano apontámos algumas soluções possíveis. Este estudo pressupõe, pois, um alargamento e um aprofundamento das nossas experiências e da nossa documen­ tação. Já não se trata, quanto a nós, de ponderar o auxilio que por exemplo a imprensa pode prestar ao ensino do francês. As nossas experiências anteriores apontaram-nos a necessidade de não dissociarmos a introdução da imprensa da investigação de novas técnicas de trabalho que estivessem de acordo com as nossas actuais possibilidades. No n.° 18 deixámos bem expressa a renovada importância que atribuímos às técnicas. Na nossa opinião, a educação deve contribuir para o desenvolvimento do indivíduo e deve recorrer ao apoio do meio ambiente e do adulto. O nosso papel limita-se ao de procurar e de colocar ao alcance da criança os instrumentos de trabalho indispensáveis. Essa é a tarefa a que devemos consagrar-nos principalmente. 126

1) Como é que a criança deve ser educada, vestida, alojada, alimentada, etc... de modo a poder desenvolver-se harmoniosa e integralmente? Trata-se do grande problema da base social da educação, que está intimamente ligado aos problemas econômicos, políticos e sindicais, a que não podemos ser indiferentes. 2) Como se processa a instalação da classe? Problema premente este, tão descurado na imprensa pedagógica, que Píchot ventilou no nosso boletim e para o qual ainda havemos de compilar uma importante documen­ tação. Como fazer para pôr ao alcance dos alunos utensílios de trabalho adequados ao: a) Trabalho manual; b) Trabalho intelectual e social; c) Trabalho artístico.» No fim do ano enviou-se aos aderentes um questionário longo elaborado na base da sua própria prática da ideologia proletária e humana. Sem conseguir conter a alegria, escrevia Freinet em Julho de 29:

«Há um ano éramos uns cinquenta, hoje somos 150 e contámos com tantas adesões pelo fim do ano, que talvez já sejamos uns 200 quando estas linhas saírem.» Mas que os camaradas, tão espontaneamente reunidos em torno de Freinet, não tenham ideias preconcebidas a respeito da orientação da CEL:

«Alguns dos nossos camaradas manifestam a sua admi­ ração por não encontrarem no nosso boletim a expressão de uma ideologia social ou sindicalista. De facto, o nosso silêncio a esse respeito poderia parecer-se bastante com a preocupação de neutralidade que censuramos na Nouvelle Education e na Liga Internacional da Educação Nova.

Ora nós não tivemos nem temos a intenção de trans­ formar a nossa cooperativa ou o nosso grupo numa nova associação, com os seus destinos próprios, com objectivos e meios de actuação específicos. Convencidos que estamos de que a educação nada pode sem o vigoroso apoio das organizações sindicais e operárias

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nacionais ou internacionais, declarámos que nos consideramos apenas um organismo de estudos pedagógicos e que deixa­ ríamos aos nossos sindicatos, às nossas federações e às nossas diversas associações de defesa corporativa e ideológica o cuidado de fazer com que as nossas reivindicações fossem concretizadas na prática. Nesta revista não hesitaremos em investigar as verda­ deiras causas da miséria da escola popular em regime capita­ lista e apontaremos as vias prováveis da libertação escolar. Cabe aos nossos aderentes continuar a luta como melhor o entenderem, tanto no plano político como dentro dos grupos a que pertencem, para que os sonhos generosos dos peda­ gogos possam algum dia realizar-se.» Esta situação da CEL ainda hoje se mantém.

O Congresso de Besançon (1929)

O Congresso anual da CEL efectuou-se em Besançon a 3 e a 4 de Agosto de 1929. O Conselho de Administração (Boyau, Gorce, Caps, Bouscarrut, Freinet) ocupa-se, como de costume, da expo­ sição dos aspectos morais, dos relatórios de contas, da gestão das revistas, do relatório da Comissão de controle, etc. Como é de calcular, o assunto que mais discussões le­ vantou foi o que dizia respeito às dificuldades financeiras de uma empresa como aquela, sem movimento de fundos e incapaz de fazer face à subida em flecha dos seus efectivos. Falou-se muito sobre a hipótese da filiação da CEL na Federação das Cooperativas, com vista à abertura de um crédito no Banco das Cooperativas. Mas isso é o «leit-motiv» de todos os congressos. Durante os debates põem-se à dis­ cussão rubricas como: a Imprensa, o Material, La Gerbe, os Excertos de La Gerbe, o Papel, a Rádio, o Cinema. Surge um novo tema: o «Ficheiro». Apaixona todos os aderentes que já meditaram seriamente nele. Veremos mais adiante as condições que este novo instrumento de trabalho impõe aos nossos camaradas. Separamo-nos no meio do maior

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entusiasmo. Novas perspectivas de trabalho se abrem a todos nós. Como fecho deste novo ano de trabalho, que significou para todos tanto esforço e tanta confiança no futuro e que inseriu a CEL, definitivamente, no mundo pedagógico, Freinet gostava imenso de citar as belas palavras do Sr. Rosset, director do Ensino Primário: «O papel que vos cabe, a vós, jovens educadores, é o de desimpedir os caminhos e de indicar ao ensino oficial qual a via a seguir. Queremos depositar confiança naqueles que se esforçam por renovar os nossos antigos métodos, porque eles hão-de vencer. Aliás, mesmo que não conseguissem levar a cabo uma transformação completa, obrigar-nos-iam a progredir mesmo sem o querermos e a alterar o próprio espirito do nosso ensino.»

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CAPÍTULO IV

SAINT-PAUL (1929-1930)

Para Freinet, o começo de um novo ano é sempre uma ocasião de regozijo. Os meses que se desenrolam à sua frente surgem repletos de promessas, de experiências e de ensina­ mentos; e as primeiras palavras do seu editorial de 1 de Outubro de 1929 trazem o cunho do seu costumado optimismo: «As diversas investigações tecnológicas que levámos a cabo são, no momento presente, realmente apaixonantes. A cada passo nos desvendam perspectivas de trabalho tão originais e tão férteis em ensinamentos, que a actividade do nosso grupo decuplica de ano para ano, justificando a temeridade —que, contudo, é consciente— das nossas mais audaciosas iniciativas.» Freinet só tem dificuldade em escolher, no momento próprio, os problemas essenciais do dia a dia das nossas escolas oficiais. Fora isso, tenta, através da experiência, arranjar-lhes uma solução, solução essa que terá infelizmente de ser relativa devido às condições econômicas e sociais, Se alguém ainda tem ilusões sobre o alcance de uma pedagogia «pura» e «ideal», de certeza que não é ele, que, lançado para o próprio coração da sua Saint-Paul dos pobres, na sua escola-pardieiro, tem de manter uma luta sem quartel com os desencorajadores aspectos materiais da escola do povo.

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«.Ontem tinha eu 45 alunos, amontoados numa aula que foi construída para 27 e que só tem 41 lugares; como não se pode de modo nenhum pôr mais um banco, quatro dos meus alunos tiveram de andar a passear pela aula apinhada e com uma atmosfera perfeitamente irrespirável, Como estava a chover e o pátio ainda é mais pequeno que a aula, nem tínhamos podido descontrair-nos um pouco du­ rante os recreios. A nossa situação, infelizmente, não tem nada de excep­ cional! Não se julgue agora que, nestas condições, somos capazes de apresentar aos visitantes, ou descrever aos leitores, a aula ideal, renovada pelas técnicas que recomendamos. Estamos dominados por um regime econômico que nos despreza e nos esmaga. Somente podemos indicar aos nossos camaradas o modo como conduzimos a nossa actividade para obtermos, com o nosso trabalho, um rendimento mais con­ forme aos interesses dos jovens, simultaneamente com os fundamentos essenciais da nova orientação pedagógica, Actividade motivada, dizemos nós: acabemos com as sanções escolares específicas. Não nos arriscaríamos a recomendar estas práticas se não as viéssemos a aplicar com êxito há já mais de um ano. Sabemos que vão causar surpresa a muita gente; que tanto pedagogos como inspectons irão descobrir as mais variadas razões para condenar uma técnica tão contrária aos pro­ cessos habituais de verbalisme e de acumulação intensiva. Aliás, nós saberemos responder na altura própria às suas objecções, de tal modo estamos convencidos de que somos secundados por todos os professores primários que, na sua classe, procuram uma solução para os múltiplos problemas relativamente à organização e ao trabalho escolar. Actualmente, e excepto durante os períodos de revisão, em que o professor se limita a indicar os textos que devem ser revistos e os resumos que devem ser decorados, as horas de classe são quase exclusivamente preenchidas com a reci­ tação das lições anteriores e a apresentação das lições do dia: lição de moral ou de formação cívica, lição de aritmética, lição de gramática, lição de vocabulário, lição de ciências, lição de desenho, lição de história e geografia, etc...

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E os inconvenientes? São bem conhecidos de todos os professores; além desta ininterrupta sucessão de lições exigir aos professores um desgaste físico que lhes é muitas vezes fetal, o aproveitamento dos alunos está muito longe de ser satisfatório: com efeito, eles são mais activos que receptivos; educam-se mil vezes melhor — e com muito mais garantias, de uma forma muito mais duradoura— quando são eles próprios a procurar, a manusear, a construir e a reflectir! Bem sabemos que se costuma recomendar que as lições puramente verbais se reduzam ao mínimo indispensável e que nos orientemos para um ensino mais à base de imagens e mais activo. Mas, na prática, admitindo-se que os progra­ mas são muito enciclopédicos e que são concebidos na sua maior parte sobre os princípios da escola antiga, admitindo-se também a miséria material das nossas escolas e a super­ lotação das aulas, é muitas vezes impossível fazer algo de sério sem recorrer ao ensino verbal. ...Suprimamos as aulas dadas pelo professor, não obri­ guemos a decorar lições nem resumos e encontraremos outros fedores que gerem esforço e actividade. Tornaremos de uma assentada mais saudável e moralizadora a escola e, em suma, aproximaremos os alunos dos educadores para realizarem a única tarefa realmente desejável que é a da educação...» Acabemos com os manuais! Acabemos com as lições! Eis na verdade, (matéria suficiente para assustar a sério aqueles que não podem passar sem barreiras nem encostos em que se apoiar. A prática irá tranquilizá-los. É que Freinet não perde tempo a convidá-los, através dos exemplos das diversas disciplinas, a acompanhá-lo no salutar contacto com a vida. Acabemos com as lições de moral! Em vez delas, criemos a forma sugestiva, exijamos um comportamento social que, esse sim, necessita do dom de si mesmo e de todas essas virtudes que florescem no seio de qualquer comunidade inteligente e harmoniosa. Acabemos com as lições de gramática e substituamo-las pela prática esclarecida, viva, do texto livre, pela gramá­ tica vivida, integrada na sintaxe viva que é o pensamento da criança.

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Acabemos com as lições de aritmética e substituamo-las pela aritmética corrente, a da vida social e familiar. Acabemos com as lições de ciências e substituamo-las pela observação, pela medição dos fenômenos da natureza em toda a sua amplitude. E assim, progressivamente, todos os esforços da CEL visarão a chegada a estas grandes simplificações de um ensino que, na medida em que forja as técnicas libertadoras, subtrai a criança à opressão de uma pedagogia que é, toda ela, arbitrariamente autoritária. Esta nova maneira de encarar o problema educativo vai reflectir-se inevitavelmente no comportamento do aluno e no do professor, e a nova organização da classe traz consigo uma nova disciplina a que podemos chamar orgânica. «Antes de mais é preciso, pensamos nós, atribuir à pala­ vra "disciplina" um novo significado. Ou melhor, na sua acepção corrente, esta palavra devia desaparecer do nosso vocabulário pedagógico. Com efeito, a criança, a quem são proporcionadas actividades que correspondem às suas necessidades físicas e psí­ quicas, é sempre disciplinada, isto é, não precisa nem de regras nem de obrigações impostas de fora para trabalhar ou para se vergar à lei do esforço colectivo. Podemos afirmar que, se estivéssemos à altura de dar aos nossos alunos a possibilidade de trabalhar de acordo com as suas necessidades e com os seus gostos, podíamos ter de intervir para organizar o trabalho e a actividade da nossa comunidade, mas deste modo todos os problemas comuns de disciplina escolar deixa­ riam de ter razão de existir. A introdução da imprensa nas nossas classes consente-nos uma previsão de tudo o que poderia fazer-se nesse sentido. A disciplina tradicional precisava de controle estrito dos "deveres”. E eis que conseguimos motivar o nosso ensino a um ponto tal que, espontaneamente, os nossos alunos redi­ gem com uma inacreditável aplicação, muito mais redacções do que as que vêm nos programas... Os manuais indicavam pormenorizadamente os meios de captar a atenção das crian­ ças durante a leitura, e os nossos alunos lêem os livros dos correspondentes com ponderação e curiosidade... Tam­ bém se fazia questão de ensinar as formas áridas de uma gramática sem vida, quando afinal tudo isso se torna mais

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fácil desde que se faça de acordo com a necessidade escolar e social, Se na própria base de toda a organização da classe não existe uma actividade livre, então é necessária uma disciplina especial, quer para coagir a criança a fazer os trabalhos que não deseja, quer para reprimir a sua actividade poten­ cial, que procura a iodo o custo realizar-se. E é falsa a suposição de que essa disciplina pode ser liberal ou consen­ tida. Mesmo quando, por sugestão dos adultos, esta é esta­ belecida pelos próprios alunos, nem por isso deixa de ser uma disciplina opressiva, nascida da acção recíproca dos educadores sobre os educandos. Parece-nos que o problema da disciplina pode ser for­ mulado nos seguintes termos: a criança que participa numa actividade que a apaixona disciplina-se automaticamente. O nosso primeiro trabalho consiste em permitir aos nossos alunos o acesso a todas as actividades educativas que se adaptam à sua personalidade, estudar atentamente a técnica que permita essas actividades, a qual implica uma disciplina motivada pelo fim a atingir. O único critério passará a ser então, não o de perguntar: estas crianças são ajuizadas, obedientes, sossegadas, mas sim: porventura trabalham com entusiasmo e ardor? Infelizmente, esta actividade livre só é possível em pre­ sença de certas condições favoráveis relativas à instalação e à organização. As classes demasiado numerosas, distribuídas por edifícios escolares demasiado exíguos, não podem de modo nenhum ser adaptadas às novas técnicas de trabalho, É pena, mas as classes populares são, pela sua própria concepção e constituição, escolas fixas, em que cada aluno tem o seu lugar fixo, onde os grupos não podem circular sob pena de fazerem ruído e de se tornarem perigosamente prejudiciais ao conjunto da classe. Foi por isso que colocámos o materialismo escolar na base das reivindicações da escola popular. Outra coisa que é preciso ter em conta, que necessita quase sempre do estabelecimento de uma severa disciplina, é a obrigação que temos de ensinar aos nossos alunos, nas nossas classes, elementos de conhecimento que nada tem a ver com o espírito da criança e neste momento estou a pensar

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designadamente na aritmética comercial e na historia oficial. Enquanto não se transformar a própria natureza dos exames, a escola não terá outro remédio senão o de ensinar palavras em lugar de formar e de desenvolver os espíritos. Apesar destas dificuldades, o que é que fomos capazes de pôr em prática na nossa classe que estivesse de acordo com a via que acabamos de definir? Que compromissos descobrimos para estimular, num regime que se preocupa tão pouco com a educação do povo como este nosso, reali­ zações que não teriam podido existir nas nossas escolas sem serem amparadas por um considerável apoio pecuniário? Até onde é que os «ossos colegas nos podem acompanhar?» É evidente que todas estas realidades exigem do mestre uma nova compreensão, indispensável à eclosão da atmos­ fera favorável, que conduz à expansão da confiança e do entusiasmo. Sejamos humildes: «Não devemos ter o receio de confessar a nossa igno­ rância e atribuir a nossa superioridade menos ao bom apetrechamento da nossa memória do que à nossa capa­ cidade de utilizar todos os meios de que dispomos para nos aperfeiçoarmos. Daremos assim, aos nossos alunos, a noção de uma educação não mais estática, escolástica e morta, mas laboriosa e activa, tendendo, com o concurso dos nossos incessantes esforços, para a libertação física, intelectual e moral dos indivíduos. Nada receiem pela vossa verdadeira autoridade. O que pode acontecer é que na vossa classe passe a existir menos submissão aparente, menos docilmente passiva. Mas sentir-se-ão rodeados por um ambiente totalmente novo, um entusiasmo natural e encorajador, que lhes trarão grande reconforta e que talvez os reconciliem com a actividade escolar.

SEJAMOS HUMANOS

...Quantas vezes o nosso procedimento, dentro da aula, se caracteriza por uma revoltante desumanidade!

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Você encoleriza-se porque um aluno, ao levantar-se, fez demasiado barulho e, no entanto, esquece-se. que, sempre que empurra a cadeira para descer do trono, faz uma barulheira enorme! Mas se você é que é o mestre! De tempos a tempos, lá vai deitando uma olhadela para o exterior e chega a debruçar-se para falar a uma pessoa que vá passar por ali; porque não? Mas se uma criança sobe a um banco para fazer o mesmo, não lhe perdoa. E já pensou na injustiça, todavia bastante frequente, da atitude do professor que censura ao aluno a sua péssima letra e que rabisca no caderno deste umas apreciações ile­ gíveis? Sabemos perfeitamente que a pedagogia exige um porte impecável ao professor. Mas também não é verdade que ela codificou, praticamente, todos os meios desumanos de que dispõe o professor primário para garantir a sua ciosa auto­ ridade? Não vamos discutir aqui o paradoxo de Rousseau sobre a bondade natural dos homens. Contudo, uma coisa me parece certa: as crianças não são, de modo nenhum, piores que os adultos. Em todo o caso, guardam ainda intactos o seu ardor criador, o seu entusiasmo e a sua confiança na vida, alavancas poderosas nas quais pode —e deve — apoiar-se a nossa acção educativa, caso se pretenda torná-la proveitosa. Não, as crianças não são piores que os seus professores. Se às vezes nos parecem trocistas, cruéis, insensíveis, é também porque a situação de inferioridade, a que as vota a nossa autoridade, as leva a adoptar uma atitude de defesa. Portanto, as suas atitudes reprováveis são muitas vezes obra nossa. Acabemos com a opressão, Se não conseguimos fazer melhor, que ao menos procedamos em relação às crianças tal como com os adultos: tratemo-las com o mesmo respeito e a mesma indulgência. Se pudermos, vamos ainda mais longe: usemos com os nossos alunos de uma confiança extrema e de uma humani­ dade justa. Não atribuamos nunca as suas falhas ou as suas fraquezas a uma perversa malignidade, mas antes à

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r natureza humana ou à influência social e familiar que muitas vezes se fazem sentir. Façamos, com frequência, a nossa mea culpa: procedendo assim, alcançaremos uma série de vantagens tanto no plano pessoal como pedagógico.

ABAIXO A HIPOCRISIA A confiança gera confiança e sinceridade. O estado de inferioridade e de subordinação, a que, pelo contrário, a escola reduz a criança, impele-a, como não podia deixar de ser, a defender os seus direitos, a sua actividade e a sua vida e a recorrer, para tanto, à desobediência, à astúcia e à hipocrisia, Nem todas as lições de moral do mundo, juntas, conse­ guiríam alterar este estado de coisas. É humano que a criança, para quem brincar e correr são necessidades orgâ­ nicas, recorra a toda a espécie de manhas — até à mentira — para escapar ao castigo que a ameaça. É daí que derivam todas as formas centenárias de entreajuda escolar clandes­ tina: cópia de deveres, auxílio por gestos, lições «assopradas>, etc... e também o hábito, tão deplorável, de ver no trabalho escolar ou extraescolar não o esforço de enrique­ cimento e de libertação dos indivíduos, mas unicamente a dose mínima de esforço capaz de evitar o castigo ao aluno ou de o fazer triunfar segundo os ditames da lei da escola, caracterizada por uma realidade imoral. Só há um remédio: cortar o mal pela raiz, suprimir as causas dessa imoralidade e dessa hipocrisia, alterar a própria natureza da escola!

RUMO À ESCOLA MORAL DO TRABALHO Totalmente preenchida pelas tarefas de vigilância e de controle, de distribuição de deveres e de marcação de lições, recitação de outras lições, correcção de inúmeros exercícios para os quais não se logrou motivar lodo o interesse e apli­ cação espontâneos dos alunos, a escola não tem tempo para

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as tarefas vivas e criadoras, que deviam constituir a sua própria razão de ser. Empenhar-nos-emos mais em organizar o trabalho activo dos alunos, na classe, do que propriamente magicar um controle desconfiado e injusto. Em todo o caso, este controle passará para segundo plano, nas nossas apreensões, visto que o que para nós é essencial é a organização do trabalho e do esforço. A necessidade que os alunos têm de trabalho, o seu desejo inato de valorização, que soubemos manejar e utilizar, afiguram-se-nos, em quase todos os casos, suficientes para a preparação de uma disciplina nova, humana e moral.» É o mesmo que repetir, que, afirmar que o problema actual mais premente é o do aperfeiçoamento das nossas diversas técnicas para ajudarmos os educadores a interessar-se pelo seu trabalho e para simultaneamente contribuirmos para firmar a peda­ gogia popular sobre alicerces mais sólidos, mais vastos. Para tal, devíamos fazer em mil pedaços o horizonte estreito de uma pedagogia tímida, que teme, por si mesma e pelo regime que sustenta, todas as manifestações de vida.

Durante o ano em curso, todos os aderentes da CEL se dedicam a esta imensa tarefa assim como todas as boas vontades daqueles que nesse princípio de Outubro se dei­ xaram conquistar pela bela causa da educação popular1. (1) São as seguintes as novas adesões: Jean Mons, professor em Saint-Aulaire (Corrèze). — Roger, em Wattignies-L’Arbrisseau (Norte).— Servière, em Marval (Haute-Vienne). —Bertoix, em Saint-Gérand-de-Vaux (Allier). — Estorges, em Sidi-Mabrouk,Constantine (Argélia). — Rosay, director escola masculina, em Thonon-les-Bains (Haute-Savoie). — AUouis, Le Puiset, por Janville (E.-et-L.). L’Anthoën, Saint-Pierre-de-Plesguen (I. et-V.). Sr? Crapet, directora, Ostricourt (Norte). Men. Bradai, em Gras '(Ardèche).— — Combot, em Lannéanou (Finisterra). — Louis Charra, Le Prat (Haute-Loire). — Desmaris, Comaranche-en-Bugey (Ain).—Delhermet, S a int-Eugénie-de-Villeneuve (Haute-Loire). — Lagier-Bruno, Saint-Martin-de-Queyrières (Altos-Alpes).

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O «Ficheiro Escolar Cooperativo» é, digamos, o fruto mais recente deste ano de 1929-1930, Debruçam-se sobre ele, de uma maneira muito especial, tanto os espíritos mais audaciosos como as melhores boas vontades, porque se trata de um trabalho que leva um certo tempo. Antes do Congresso de Besançon, numa altura em que estava ainda mais ou menos entregue às suas próprias iniciativas, Freinet manifestava uma espécie de expectativa. Decerto que ambos tínhamos a certeza, sobretudo depois da comprida carta de Paul Otlet, de que esse era um dos aspectos mais necessários da escola sem manuais, Mas faltava ainda a prática a reforçar a unidade indiscutível da técnica. «Talvez se admirem, escrevia Freinet em Julho, que não nos dediquemos mais pormenorizadamenie à definição dos possíveis empregos do ficheiro. É que com este instrumento passa-se exactamente o mesmo que se passou com a im­ prensa: é perigoso definir previamente o seu emprego. Só a experiência, com os seus erros e os seus êxitos, nos há-de indicar o verdadeiro caminho. Todavia, achamos que o ficheiro começa por ser um instrumento de trabalho em comum: colocadas em classificadores especiais, as fichas vão sendo utilizadas pelos alunos à medida que eles vão precisando delas, e tão livremente quanto possível. Destina-se a conferir uma maior amplitude aos trabalhos que nascem espontaneamente do interesse vivo das crianças. Eis nomeadamente o uso que pretendia dar-lhes na minha classe (35 alunos dos 7 aos 14 anos): O texto que se escolheu e imprimiu esta manhã foi A cobra. Apaixona os alunos que sentem necessidade de se informar sobre este tema, de se instruir. Mas não temos tempo para responder a todas as perguntas nem memória nem competência bastantes para o fazer como deve ser. Então recorremos ao ficheiro e, graças a uma classificação prática, separamos imediatamente 10, 20, 30 textos com referências às cobras; literatura: um punhado de páginas admiráveis de um grande escritor; ciências: descrição, com o auxílio de gravuras, de várias variedades de cobras; geo­ grafia: as cobras nas diferentes regiões do mundo; história:

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mezinhas que se aplicavam antigamente nas mordeduras de cobras, etc,,. Posso ler à classe, que me escuta com atenção, um ou dois desses textos escolhidos entre os mais apaixonantes. Durante o trabalho livre ou durante os deveres feitos em conjunto, os alunos lêem as fichas que lhes interessam e tomam nota do resultado da sua leitura no caderno de observações. Até talvez possamos pôr à disposição dos alunos mais velhos fichas a um soldo cada, que irão enriquecer o caderno de observações, adquirindo este a dimensão de um ficheiro pessoal. Para os mais novos, o trabalho de recolha de elementos de estudo deve ser feito, de preferência, em grupo. Imaginem-se as fantásticas possibilidades de trabalho que a realização de um projecto como este nos podería acarretar. Acusa-se geralmente a escola nova de sacrificar demasiado a instrução à educação, o que de fado constitui um perigo a evitar. A utilização do ficheiro traria de certeza às nossas turmas —sobretudo as que incluem várias clas­ ses — elementos de estudo directamente utilizáveis e de uma riqueza incalculável... ... Vejam neste número dois modelos de fichas, um de papel vulgar, outro de cartão grosso. Foi pena terem de ser dobradas por causa do envio pelo correio. Escusado será dizer que, de futuro, as fichas editadas serão expedidas com mais cuidados, Há exemplares gratuitos de fichas para as camadas que tencionem obter encomendas.» Portanto, no Congresso de Besançon, os camaradas tive­ ram uma ideia muito precisa do que haviam de ser as fichas e de qual seria a função do ficheiro, Da discussão, do pro­ veitoso confronto entre as mais variadas ideias, das críticas, das objecções, iria nascer imediatamente um trabalho posi­ tivo, que é formulado neste artigo de Freinet, de Outubro de 1929: «Desde o aparecimento dos nossos primeiros artigos, a ideia do ficheiro entusiasmou os nossos camaradas. Embora sem a menor propaganda especial, para além da que é feita pelo boletim, chegaram-nos numerosas encomendas e ofertas de colaboração também. dezenas de cartas recebidas

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forneceram imensos dados aos debates do Congresso de Besançon, autorizando-o assim a tomar as decisões que se impunham. Depois do exame atento das diversas soluções apontadas, o Congresso decidiu: que as fichas teriam exclusivamente formato semicormercial; que faríamos uma tiragem em papel vulgar e outra em papel grosso, conforme os modelos enviados junto com o nosso boletim de Julho; que os preços seriam os que se tinham estabelecido ante­ riormente: 25 francos a série de papel e 50 francos a série de cartão; que em 1929-1930 editaríamos uma primeira série de 500 fichas e prepararíamos entretanto várias séries para os anos seguintes; que abordaríamos frontalmente as diversas actividades escolares para demonstrar que mais não fazemos do que lançar as bases de uma grandiosa obra que irá progredindo constantemente. Face a diversos projectos de classificação das fichas, rejeitando a simples classificação por disciplinas nucleares, tida como caduca, o Congresso decidiu agrupar as fichas nestas 4 rubricas: 1.º) A actividade infantil: a criança mais pequenina, os jogos, a efectividade, a doença, os irmãos, as viagens, a infância infeliz, o trabalho infantil, etc... 2.°) A natureza, os fenômenos físicos e naturais, o ho­ mem, os animais, as plantas; 3°) Gente de outras paragens, de outros tempos: Histó­ ria, Geografia física, políticat econômica, etc... 4.º) Documentos destinados a acompanhar as projecções de cinema, audições de fonógrafos, etc... É nossa intenção acrescentar depois de um capítulo espe­ cialmente dedicado às reproduções de desenhos ou de figuras diversas, que possam vir a ser utilizadas nas nossas aulas (Ciências, História, Geografia, etc...). Que não se inquietem os nossos camaradas que acham que esta classificação está incompleta, Nada tem de defi­ nitivo e começa por ser uma classificação destinada à pre-

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par ação das séries e da edição. Os números correspondentes virão indicados nas fichas no canto superior esquerdo. O canto direito ficará livre para a numeração especial que também se pode fazer com borrachinhas coloridas, nume­ ração essa que pode variar segundo as classes ou segundo os grupos e que é permitida pela extrema elasticidade do ficheiro. Nos próximos artigos estudaremos uma classificação racional e prática para o nosso ficheiro. Para já, recomen­ damos que se deixe o canto direito em branco com vista à classificação especial que por enquanto ainda não é muito necessária. Para cada uma das rubricas atrás mencionadas, o Congresso designou equipas de coleccionadores de textos, cuja constituição é a seguinte: I. — Men. Ballanche, em Francheville-le-Haut (Ródano). A. e R. Faure, em Corbelin (Isère); II. — Sr.a Boyau, em Camblanes (Gironde); Cazanave, em Chazel-les-sur-Lavieu (Loire); III. — Alziary, em Tourves (Var); Jacquet, em Tabanac (Gironde); IV. —Gauthier, em Solterre (Loiret); Sr.a e Sr, Pichot, em Lutz-en-Dunois (E.-e-L.). Ainda temos de formar equipas em redor destes coleccionadores responsáveis. Equipas de colaboradores sólidas e numerosas que façam as investigações necessárias, que revejam os textos escolhidos pelos coleccionadores e que participem em todo o trabalho do qual a edição definitiva é apenas o último passo. Sabemos perfeitamente que as equipas terão uma certa dificuldade em se reunir. Mas metemos ombros a uma obra de grande fôlego, para a qual já contamos com muitos meses de preparação. Parte da tarefa poderá ser feita por cartas e circulares. Solicitamos, pois, a todos os camaradas que estejam interessados neste trabalho nos comuniquem as equipas em que podem colaborar (podem inclusive pôr-se em contacto directo com essas equipas). Procurem textos para as fichas, colem-nos numa folha de caderno, escrevendo apenas na parte de trás, e enviem-nas directamente aos coleccionadores designados, indicando o vosso nome e morada no verso das

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fichas, Caso não sejam utilizadas ser-vos-ão novamente enviadas. Depois havemos de estudar a organização das equipas de controle. De acordo com as decisões do Congresso, empreenderemos este ano a publicação de uma primeira série de 500 fichas, que serão entregues todos os meses em séries de 50 f com 10 fichas para cada um dos capítulos mencionados. Posterior­ mente, os coleccionadores publicarão o plano da edição das primeiras 100 fichas que lhes cabem. Não há dúvida de que essas 500 fichas não hão-de bastar para prestar este ano os serviços que todos nós espe­ ramos do ficheiro rico e variado que havemos de fazer para o ano. Contudo, estamos certos de que as possibilidades e dificuldades das nossas iniciativas se apreciam melhor no principio. Mesmo que cometamos alguns erros, teremos dado o primeiro passo. Temos a certeza de que centenas de cama­ radas hão-de juntar-se a nós. Intensifiquem a propaganda ao ficheiro! Peçam-nos modelos e arranjem encomendas. Nós faremos o resto.» Estas linhas ajudam a compreender o significado colectivo daquela imensa obra, que se foi enriquecendo e alterando o seu espírito e a sua forma, e que é um dos aspectos da mais generosa e intelectual das colaborações. Cabe a Rousson (Masdieu-Laval, Gard) a responsabili­ dade global da realização do ficheiro. É ele que recebe todos os textos propostos e que em seguida os distribui pelos coleccionadores. Numa série de artigos, Freinet explica pormenorizadamente a classificação decimal universal, que na sua opinião será a que melhor se adapta às necessidades actuais da documentação. «A principal tarefa consiste na escolha dos documentos para o nosso ficheiro, na sua edição e na sua distribuição pelas nossas turmas. Disto ninguém duvida, Ficaria, no entanto, incompleta se não nos servíssemos de uma classifi­ cação simples e metódica, que permitisse a professores e a alunos encontrar instantaneamente e de forma segura as fichas desejadas entre os milhares de elementos do fi­ cheiro...»

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Recorrendo a exemplos, Freinet tenta explicar o conteúdo essencial do que hoje se exprime na «Brochura de Educação popular» Pour tout classer que Lallemand elaboraria meticulosamente com a sua característica solicitude, paciente, beneditina. No entanto, a princípio, Lallemand não se mos­ trou muito entusiasmado com a classificação decimal. Propõe antes uma classificação com borrachinhas coloridas, mais atraente para as crianças. Esta ideia de Lallemand é reto­ mada por Klaas Storm, um jovem holandês que viera a Saint-Paul com o fito de estudar as técnicas CEL. A primeira série de cinquenta fichas sai no princípio do ano. O acolhimento é excelente, não contando com meia dúzia de críticas dispersas, sem grande gravidade, dirigidas sobretudo à impressão demasiado compacta de certos textos. Há quem peça ilustrações. Todavia, do ponto de vista comercial, surgem as primeiras apreensões, que Freinet exprime em Janeiro de 1930 e que podemos resumir como se segue: «O que é mais oneroso é a composição e a paginação dos textos. Se a tiragem é considerável, as fichas ficam menos caras, mas corre-se o risco de ficar com as fichas em "stock”, o que se torna perigoso no caso de a produção ser insufi­ ciente. Se se faz uma tiragem reduzida, é evidente que isso encarece as fichas e que o "stock” se declara insuficiente. A sua feitura aumenta consideravelmente o preço de custo porque a classificação requer um trabalho muito demo­ rado...» O Ficheiro Escolar nunca foi de facto um grande negócio. A sua edição iria constituir inevitavelmente um inconveniente para a situação comercial da CEL ao longo dos anos futuros. Era tal, no entanto, o futuro pedagógico deste empreen­ dimento, que nunca ninguém se prendeu demasiado com os graves riscos da sua rentabilidade. Freinet nunca hesitava em arcar com pesadas responsabilidades monetárias, que tanto nos vieram complicar a vida. A classificação decimal, depois de comprovada a sua eficiência, é de longe a que mais o entusiasma, porque, além de ser a mais prática, tem ainda a vantagem de associar o FEC a toda vastíssima documentação inter­ nacional.

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Um dos inconvenientes do Ficheiro é o de acumular elementos, sendo uns mais autênticos e significativos do que outros. Torna-se, pois, indispensável conhecer a opinião de individualidades competentes, já com uma prática e uma documentação relativamente consideráveis, para que possam ajudar os coleccionadores a fazer uma escolha judiciosa. É assim que Freinet entra em contacto com Carlier, que vai prestar uma ajuda providencial e cuja vastíssima documen­ tação nos irá colocar ao abrigo dos erros de história e nos impedirá de fazer escolhas incorrectas de documentos. Carlier é o fundador do «Serviço de Documentação Histórica e Arqueológica» que na altura contava com 80 000 documentos especialmente consagrados à História, tomada na sua acep­ ção mais lata (arqueologia, folclore, geografia humana, história da arte, das letras, das ciências, da indústria, das ideologias, das religiões, etc... Infelizmente a propaganda ao FEC foi sempre decla­ radamente insuficiente: a maioria dos professores primários ainda não foi capaz de modernizar convenientemente a sua classe e de se integrar no espírito de mobilidade e de universalidade que ele encerra para compreender que a ficha é o elemento ideal de uma documentação ligada ao enorme saber mundial. Quando se começou a lançar o Ficheiro, as encomendas foram chegando com uma lentidão exaspérante, e, devido à falta de fundos, só se puderam editar 112 fichas, soma muito reduzida para uma realização que se considerava necessária. Contudo, que incríveis complicações esta edição tão reduzida não havería de trazer à nossa existência na velha escola de Saint-Paul! A edição das fichas fez-se nos Altos-Alpes. Todos os meses chegavam à pequena estação das automotoras em­ brulhos volumosos. Èra preciso arranjar uma pequena car­ roça para transportar a mercadoria. Os garotos penduravam-se nela todos satisfeitos e puxavam-na com quantas forças tinham ao longo das ruelas, ameaçando a todo o momento provocar um desastre. Claro está que Freinet tinha de estar sempre presente nos transportes, puxar, por sua vez, os varais ou ajudar a segurada quando ela ameaçava despenhar-se por ali abaixo. Mais complicado ainda era o desem-

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pacotamento da preciosa mercadoria: a nossa mansarda estava a abarrotar com o material em depósito e tivemos de nos contentar com as escadas que eram felizmente bas­ tante largas e conduziam ao sótão, iluminado pelas tra­ vessas do telhado. Estava nessa altura a viver connosco uma prima nossa que tinha vindo ajudar ao trabalho da casa e a cuidar do nosso bebé. De tempos a tempos, dava-me uma ajuda nas encomendas e lá nos arranjávamos como podíamos para termos sempre em dia o trabalho da cooperativa. Terrível trabalho o da classificação das fichas! Durante horas e horas, uma pessoa tem de andar à roda de uma mesa, tirando rapidamente, ao passar, com um gesto preciso e automático, uma ficha para cada pacote, até formar, com uma ficha de cada vez, as. séries; e empilham-se à nossa volta os diversos pacotinhos que terão de ser reunidos um a um numa mesma família decimal... A sala de jantar, os corredores, as escadas, lembravam uma papelaria em vésperas de mudança. Em Dezembro, as cinquenta primeiras fichas foram classificadas, empacotadas, enviadas; só pensávamos aterrorizados nas cinquenta que estavam para chegar a qualquer momento e que viriam agravar de um modo inquiétante a vida nos nossos exíguos alojamentos... «Estamos cheios de entusiasmo, e certos de que conse­ guiremos — dizia Freinet — o Ficheiro Escolar Cooperativo serã obra vossa, uma obra fantástica.» Para nós significava a encarnação de um espírito maligno exigente, que em cada dia que passava ameaçava devorar a nossa boa vontade. Nos fins de Janeiro, quando as fichas já se iam a espa­ lhar pela varanda fora, vimo-nos forçados a pensar em arranjar um local onde as arrumar. Desencantámos uma casa abandonada na ruela da escola, que nos foi alugada por uma ninharia e que Klaas Storm resolveu arranjar para o efeito. Pode mesmo dizer-se que foi graças a Klaas que a CEL conseguiu enfrentar este enorme empreendimento que foi o ficheiro e continuar na sua progressiva ascensão, que se ia acentuando à medida que os meses passavam. O próprio Klaas instalou uma quantidade de prateleiras, onde as séries iam obedecendo a uma arrumação metódica.

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Pouco a pouco, a casa readquiriu o seu «espaço vital» e uma atmosfera suportável. Limitávamo-nos a ir dar uma boa ajuda na altura da classificação, que se tomara menos penosa agora, com a melhor organização. No entanto, ao longo de vários anos, tive de me considerar responsável por esse exercício de classificação, ao qual agregámos todas as boas vontades disponíveis, inclusive a das nossas crianças da escola Freinet, acabando por enfastiá-las a todas, uma a uma... Por mim, mantive-me fiel ao Ficheiro mas apenas por um dever corneliano... Klaas conseguiu arranjar uma nova distracção para a CEL: a Ronéo. A princípio, deixou-se encantar pela es­ plêndida máquina, novinha em folha, que nos permitia obter finalmente uma circular para os aderentes em con­ dições. Mas depois, quantas dificuldades para regular o papel, com as molas, os parafusos, em suma, com tudo o que aquela máquina tem de negativo! Realmente é necessário ter passado pela prova do uso diário do ingrato material de base da CEL, de uma ins­ talação que nunca deixou de ser precária, para com­ preender quantos gestos de silencioso heroísmo são precisos para levar para a frente um empreendimento que não possua equipamento apropriado. A história da CEL também contém este aspecto decepcionante, que quebra os ânimos e destrói a confiança dos humildes operários da manutenção. Como sempre, continuava-se, ao longo do ano de 1929-1930, a aperfeiçoar as técnicas educativas. Uma boa parte das rubricas é preenchida com os edifícios e material esco­ lares. O Congresso de Besançon, aliás, decidira que a questão fosse melhor estudada durante o ano e fora estabelecido um questionário nos seguintes termos:

OS EDIFÍCIOS ESCOLARES «Qual a opinião que aí têm sobre os edifícios escolares, tanto os da cidade como os do campo, para as classes da pré-primária e do jardim infantil e para as classes elemen­ tares (até aos 14 anos)?

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Arquitectura, iluminação, arejamento. Instalações sanitárias e de limpeza. Dependências: oficinas de trabalho manual, salão de festas, etc... Os jardins, o pátio, os campos de jogos.

livre,

de

trabalho

O MATERIAL ESCOLAR Carteiras e bancos: como estão ou devem estar dispostos, de modo a satisfazer os seguintes requisitos da educação nova: conforto, adaptação à altura dos alunos e aos diversos trabalhos escolares (ortografia, trabalho manual, trabalho em grupo, trabalho livre, etc...), leveza, maleabilidade, preços reduzidos. Carteiras e bancos transportáveis para aulas ao ar livre. Material para exposição e classificação de trabalhos. Concepção e disposição de estantes, armários, bibliotecas, quadros negros, etc... (Se possível, enviar planos, fotografias, prospectas 'de fabricantes, preços, etc...) Agradecemos-lhe que assinale iniciativas das casas edi­ toras especializadas no fabrico do novo material. Transmitir-nos igualmente as opiniões de pedagogos, médicos, escritores. (Dar referências.)» No entanto, este apelo não obteve grande resposta. O novo aderente repara em primeiro lugar no espírito, no aspecto essencialmente pedagógico da renovação escolar. Só a prática é que o levará a aperceber-se da necessidade de uma base técnica evoluída. R. Lallemand é o primeiro a valorizar o problema. Num artigo intitulado «Técnicas, material didáctico e utensílios manuais», explica ele as motivações suscitadas por estes três aspectos do material escolar e define o espírito que as integra: «A técnica afirma ele, é sempre a melhor das "ferra­ mentas” do ensino; de facto, constitui uma ferramenta de trabalho através da qual a criança se entrega a uma activi­ dade completa com um objective palpável, imediato; o inte­ resse confunde-se com a própria actividade...»

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«...O material didáctico rudimentar não visa mais do que um conhecimento de cada vez; o seu único fim: apren­ der... Os utensílios manuais autorizam a confecção de objec­ tes que são favoráveis ao desenvolvimento da vida social.» (30 de Junho.) Mais uma vez, o «prelo» estimula o espírito inventivo dos camaradas: na pessoa de Billon, mecânico de Corbelin, pai de um aluno, deparou Faure com uma compreensão realmente espantosa das exigências de um prelo escolar como deve ser. Surge o primeiro prelo automático Billon, que é lançado no mercado. Por seu turno, Alziary e Plan alcançam fama de excelentes carpinteiros por terem conse­ guido aperfeiçoar o prelo Freinet, adaptando-lhe um sistema de pressão e distribuem esboços e pormenores do mesmo. Mencionemos de passagem as técnicas correntes, de menor importância: fabrico de chapas de metal (Plan, Var-Benoît, Lozère), encadernações, etc... e detenhamo-nos em duas novas técnicas: o «Nardigraphe» e os discos. Durante algum tempo, Plan e Alziary tinham sido res­ ponsáveis pelas capas de La Gerbe. Por isso tinham pro­ curado arranjar embelezamentos, processos de reprodução para grandes tiragens, e, como era de esperar, tinham tomado conhecimento do «Nardigraphe», que é um aparelho de reprodução, feita através da sensibilização de uma placa de vidro, fabricado por Nardi, em Toulon. Plan descreve pormenorizadamente a maneira de trabalhar com ele, assinala as suas vantagens num artigo a que chamou «Ao lado do prelo», o que leva, a partir de então, à venda desse novo aparelho, menos caro que o prelo e que pode ser comprado pelas escolas pobres, as quais deste modo se vão integrando pouco a pouco no movimento, enquanto não podem comprar o aparelho ideal: o prelo. Freinet, que é uma nulidade em música e que não é capaz de cantar, sempre lastimou essa falha, que o coloca na impossibilidade de provocar nos seus alunos as alegrias da música e do canto, que são, no homem, tão espontâneas e tão naturais como as palavras e os gestos. Acha que as audições da TSF são, tanto para si como para as crianças,

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muito complicadas, muito densas. Acima de tudo não se adaptam ao ensino nem aos programas, além de ser impossível retê-las para, através da repetição, se aprenderem canções interessantes. «... O disco, pelo contrário, é paciente; o mesmo pedaço, a mesma passagem, podem ser repetidos, explicados e anali­ sados vezes sem conta. Aliás, já existe na Alemanha uma considerável selecção de discos destinados ao ensino. Os mais recentes foram gravados automaticamente e são quase perfeitos. Aqui não há nem interferências nem interrupções intempestivas: melhor amestrado e mais complacente, o fonógrafo presta-se a muitíssimas mais aplicações que o posto da TSF.» Por intermédio de um amigo, Freinet arranja em SaintPaul uma quantidade dos tais discozinhos baratos, gravados em escolas alemãs. Embora as crianças não os compreendam, eles enchem-nas de alegria... Compra então um fonógrafo e escreve a Henri Poulaille, conhecimento que já vem dos tempos de Bar-sur-Loup. Solícito, Poulaille põe-se à sua disposição e redige um longo artigo para a revista :

O DISCO NA ESCOLA «Raros são os professores primários que já se aperce­ beram do maravilhoso instrumento de trabalho que teriam no fonógrafo, caso se decidissem a introduzi-lo na escola. Mais do que o Pathé-Baby, o Pathé-Rural ou que a Photoscope, o fonógrafo não passaria de um brinquedo nas mãos do professor e o aluno aprenderia que o disco não é (como acontece frequentemente) um pretexto para não estar quieto. Compreendería que se trata de uma janela aberta para o mundo, de um meio de conhecimento, de um guia. Graças à presença do fonógrafo na aula, quantas das lições tão cansativas para o professor e para os garotos que ele tem de educar se tornariam menos maçadoras e mais proveitosas porque recreativas! Lições de ciências naturais (cantos de aves, gritos de animais, ruídos do vento, da chuva e da tempestade, etc...); lições de Geografia; documentação atra­ vés do disco (música chinesa, canto russo, crioulo, maoris,

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árabe, suíço, alemão, etc...); lições de musica (estudos sobre temas musicais, exemplos de obras, etc...). Quanto ao canto ainda está tudo por fazer visto que, exceptuando algumas canções de roda infantis ao alcance da criança, a maior parte das canções que poderiam servir são tão mal cantadas que é impossível aceitá-las — discos de dicção para as lições de leitura e recitação, etc...» Logo a seguir lança-se a discoteca, para a qual Poulaille elabora um catálogo inicial, compreendendo discos de ruídos, da atmosfera, de cantos de aves, de ginástica, de histórias, de dicção, de cantigas, de canções antigas, de ensino... Tudo escolhido por Poulaille. A «Discoteca», apenas pensada, viría a ser concretizada nos meses seguintes.

Dissera Freinet: uma única técnica pode bastar para transformar repentinamente toda a concepção pedagógica assim como a sua orientação. A Imprensa é uma dessas técnicas. Por ele, estava perfeitamente seguro da veracidade desta afirmação, mas já o mesmo não acontecia com os seus aderentes. Quase todos eles tentavam não romper com as práticas escolares que tinham usado até então; assim, muitas vezes era o «antigo» que dominava o «novo» em certas escolas, o que, diga-se de passagem, não passava de uma atitude inicial, porque, pouco a pouco, iam-se deixando arrastar pelo dinamismo que os novos instrumentos impu­ nham à classe. A novidade, essa surgia só por si. Durante o ano de 29-30, este estado de coisas manifesta-se especialmente em relação ao ensino da Geografia. Granier (Isère), Rossat-Mignot (Haute-Savoie) e Guillard (Isère) fazem uma série de relatórios bastante interessantes do ponto de vista do ensino da geografia. Sobretudo Granier, através de conferências pedagógicas em que o problema é focado, expõe detalhadamente o seu ponto de vista e perspectiva a sua técnica pessoal: «Baseio-me decididamente na geografia local. Os nossos correspondentes tinham escrito no seu jornal que gostavam de conhecer a nossa região. Então fomos estudá-la para melhor a podermos retratar.

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...Para além do orgulho (muito natural) de estudar o seu pais, para poder depois apresentá-lo a estrangeiros, há a acrescentar a atracção dos passeios. Trepamos as encostas, percorremos o campo, conversa­ mos sobre assuntos que temos debaixo dos olhos e sobre os quais temas todos qualquer coisa a dizer. Que alegria para todos nós! Tiramos notas e, regressados à aula, compõe-se livre­ mente o resumo do passeio, individualmente ou em grupo. O resumo: para o professor é o apanhado da lição; mas, para os alunos, é uma «carta» a camaradas distantes. É assim, sem coacção e mesmo por vontade de todos, que estudamos a geografia local e as noções de geografia geral.» Eis as grandes classificações que surgiram da livre obser­ vação, da observação progressiva, feita -de acordo com os interesses das crianças: 1. - O relevo local (como se formou; influência do relevo sobre a fauna, a flora, a vida humana). 2. —Hidrografia local (o trabalho das águas; a água na natureza). 3. — O plano cadastral, o levantamento do terreno (sim­ ples esboços de terrenos; leitura do levantamento do terreno; mapas murais; globo terrestre). 4. — A erosão (glaciar, fluvial; nivelamento; cobertura vegetal). 5. — O solo local (terrenos; rochas; influência do solo e do subsolo sobre as plantas). 6. — Movimentos aparentes do sol e dos astros (movi­ mentos da -terra; dia, noite, anos, estações; exposição, etc. ). 7. — O clima local (obs. meteorológicas; clima e latitude, longitude, mar, altitude, exposição; influência do clima sobre a vida vegetal, animal, humana). 8. —As riquezas do país (suas relações com as condições geográficas locais). Graças à correspondência escolar, faz-se ao mesmo tempo e sob todos os aspectos o estudo da Haute-Provence, cujos elementos básicos são fornecidos pela escola de Valensole (Basses-Alpes). Ao longo de várias páginas, precisa Granier

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ós pormenores e as características daquilo que ele acha que deve ser um ensino realmente entusiasmante da geografia, sem esquecer o contributo do filme geográfico, da fotoscopia e, claro, dos elementos do Ficheiro escolar, os mais impor­ tantes. É fácil perceber até que ponto têm interesse especifi­ cações deste teor para os camaradas como problemas idên­ ticos; também é fácil perceber porque é que se esboçam logo grupos de trabalho especializados para várias disciplinas de ensino. Deste modo, uns dedicam-se à história, ao cálculo, à gramática, outros ao conhecimento da criança. A. e R. Faure pertencem a estes últimos. O texto livre desvenda-Ihes realmente a alma dos seus alunos e faz eco das con­ dições familiares e sociais. Dedicam-se a estudar certos casos, longamente, com toda a paciência, e obtêm deste modo toda uma série de documentos de incalculável valor humano. Esta preocupação de fazer uma investigação de ordem geral, de conhecimento dos alunos, de estabelecimento de um clima humano e inteligente, resume-os Freinet numa forma de bom senso e de humanidade exigente, que expres­ sam um racionalismo que lhe é muito característico. Creio que vale a pena citar todo o seu editorial de Junho de 1930, porque contém a génese de todo o seu pensamento pedagó­ gico, que será vertido nas suas obras, Educação do Trabalho e Ensaio de Psicologia Sensível: «Este ano aplicámo-nos de tal maneira ao aperfeiçoa­ mento material e pedagógico da nossa técnica, que quase descurámos os aspectos, digamos} psicológico e filosófico da Tipografia na Escola. Por nossa vontade, teríamos iniciado um exame sério e metódico das centenas de jornais escolares que fomos rece­ bendo e que hoje constituem documentos únicos na peda­ gogia mundial. As dificuldades materiais não no-lo permi­ tiram. Optámos então por nos dedicarmos às tarefas que consideramos essenciais: a elaboração do material de do­ cumentação e o aperfeiçoamento pedagógico da nossa técnica. Apenas queríamos assinalar aqui que não perdemos de vista a importância psicológica e pedagógica da nossa nova actividade, nem as vastas perspectivas que se abrem à nossa frente.

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Não insistiremos nas vantagens escolares que contudo não são de desprezar—da Tipografia na Escola: ardor no trabalho, actividade física e intelectual, aquisição de uma boa ortografia, aprendizagem não já teórica mas prática da redacção e da leitora, exercício do gosto, despertar de uma curiosidade saudável e útil, etc. Queríamos ir mais longe, ao elemento psíquico e psicológico, que conseguimos realizar e que influencia de verdade e por vezes de modo decisivo a educação dos nossos filhos.

HARMONIA DA VIDA, UNIDADE E LÓGICA DO TRABALHO

A nossa civilização, que tragicamente só serve para des­ truir a personalidade de cada um, exerce sobre os indivíduos uma acção desintegradora constante. Raramente consegue harmonizar a actividade individual e social com as capaci­ dades dos trabalhadores. Não se conjugam esforços pela criação das condições favoráveis ao trabalho e à vida inte­ lectual e moral do homem. Pelo contrário, a acção das forças sociais sobrepõe-se aos indivíduos de fora sem nunca os fazer vibrar profundamente. O rumo mercantilista tomado pela literatura e pelo cinema demonstra, nomeadamente, como se cava cada vez mais, diariamente, o fosso, por um lado, entre a actividade individual e os rudimentos de educação ministrados aos trabalhadores e, por outro, entre o trabalho e as diversas forças, que deveríam ensinar a viver e a pensar e que em breve só servirão para distrair, ou seja, para isolar os espíritos de toda a acção fecunda. Em relação à educação e à vida das crianças em regime capitalista, as coisas ainda estão piores. Na imensa maioria dos casos, a criança é obrigada a ter duas vidas, se não forem mesmo três: a vida verdadeira, completa, na rua e nos campos, no próprio contacto com a natureza, que é a melhor e a primeira educadora; a vida em família, na qual a auto­ ridade do pai condena frequentemente e refreia em excesso

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toda a manifestação da actividade; e, finalmente, a vida na escola. Não estamos a exagerar: se não houvesse recreios, se mesmo com a autoridade dos mestres mais ciosos do seu domínio, não houvesse a possibilidade de escapar aos pre­ ceitos de uma pedagogia ridiculamente pretensiosa, o divórcio entre a Escola e a Vida seria completo. Que não me venham dizer que a pedagogia, os manuais e os livros fizeram grandes progressos ao longo deste século. Sim, realmente é verdade que os educadores, os métodos e os manuais tentam ir buscar à vida das crianças temas de interesse que não passam de iscos para os levar a realizar trabalhos fastidiosos, aos quais a escola acha que é necessário amarrar a criança durante o dia inteiro. Pensou-se que era possível e fácil escamotear a atenção da criança satisfazendo momentaneamente os seus desejos e estabelecendo uma ponte efêmera entre a Escola e a Vida. Mas só se conseguiu captar a atenção da segunda zona, como diz Dewey, e nunca se resolva a questão essencial da harmo­ nização da vida com a educação. A Escola não tem de ir buscar à vida a sua justificação: fazendo-o, reafirma o seu defeito de nascença, que consiste em impedir que a criança viva e se desenvolva no seu seio. Ela deve aceitar as crianças tal como são, basear-se nas suas necessidades, nos seus verdadeiros interesses — mesmo que estes estejam por vezes em contradição com os hábitos sociais ou com as ideias dos educadores—, colocar à sua disposição técnicas apropriadas e os utensílios adaptados a essas técnicas a fim de deixar que a vida se amplie, se desenvolva, se precise e se aprofunde livremente, ao máximo, dentro de toda a sua originalidade. A experiência deixou-nos absolutamente convencidos de que uma tal pedagogia é possível e realizável na prática. Se, ao longo do ano, não conseguimos desenvolver com precisão suficiente as novas possibilidades de trabalho, ao menos podemos regozijar-nos por vermos que há cada vez mais camaradas a aliarem-se a nós e a voltarem a sua activi­ dade para o lado desta educação libertadora, que aliás só será efectiva no dia em que, dentro de uma sociedade liber­ tadora, tivermos elaborado o material de trabalho necessário.

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Achamos que uma prova gritante e mais que suficiente da ineficácia da pedagogia actual se encontra precisamente na importância que é atribuída ao jogo. Decerto que agora não vamos insurgir-nos contra o jogo, que é uma necessidade orgânica das crianças; no entanto, achamos que, ao resolver-se empregar o jogo na escola como processo pedagógico de aquisição de conhecimentos, se está pura e simplesmente a afirmar que não se foi capaz de conferir ao trabalho alegre e desejado o lugar que ele merece. Quando o trabalho deixa de ser uma obrigação servil para se transformar numa libertação, não cansa psiquicamente e querer substituí-lo por um jogo é ir contra as próprias leis da natureza... Daqui para o futuro as crianças que educamos sentem que existe na sua vida uma implacável unidade. A rua e o campo ficarão à porta da escola e esta prosseguirá a educação que a natureza tão admiravelmente iniciou. Mais, na medida em que enriquece o indivíduo e lhe fornece novas possibili­ dades de acção, a escola embelezará e engrandecerá a vida dos campos, da fábrica e da rua. Haverá simultaneamente uma integração preciosa e a garantia de que a escola passará a estar definitivamente assente sobre algo de indes­ trutível.

UNIDADE E HARMONIA TAMBÉM NO TRABALHO A escola substituía a actividade livre e empiricamente motivada, própria da criança que não estivesse submetida a educadores, por uma ginástica especial, toda ela cerebral, que, diga-se de passagem, era imposta por um aparelho de opressão implacável e autoritário. Fosse como fosse, já não era só a vida mas também as técnicas de trabalho escolar que se opunham constantemente ao jogo e à actividade familiar. Ora não há ninguém que não tenha experimentado o cansaço inútil provocado pela obrigação de realizar um trabalho que vai contra os nossos hábitos, segundo ritmos e processos diferentes. Wells diz que «o divórcio entre o trabalho e a vida dos homens é um dos grandes dramas da

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nossa época». Este divórcio constituía, certamente, uma das causas dominantes da ineficácia da escola tradicional. Obtivemos em grande parte a unidade desejável. A criança escreve tal e qual como se contasse uma história a um camarada, tal como canta o pastor para juntar as suas reses, ao crepúsculo. Aprende a 1er da mesma maneira que aprende a falar, porque nós transformámos esse trabalho numa necessidade orgânica da nossa actividade escolar. próprias disciplinas de estudo, uma vez desembaraçadas de toda a coerção, também se processam muito simplesmente, com toda a naturalidade, através da satisfação da saudável curiosidade que soubemos manejar, através da necessidade inata da criança de conhecer, de ver, de procurar, para enriquecer sem cessar a sua personalidade. Uma tal harmonização do trabalho com a vida devia assumir uma importância considerável no desenvolvimento psicológico e psíquico das crianças. Efectivamente, todos os professores que empregaram a nossa técnica notaram um precioso desabrochar da vida na sua classe, que é acompanhado pelo desenvolvimento do sentido social e moral, em suma, pela verdadeira educação. Não passaremos em claro os inúmeros benefícios que esta regeneração pode trazer ao educador. Deixa de ser um funcionário, confinado a uma tarefa específica de acumu­ lação exaustiva de conhecimentos, para se tornar ao mesmo tempo na pessoa que desencadeia e que regula a vida. Caminha no meio dos seus amigos, as crianças, falando e rindo como elas. Para além da nossa própria experiência, dispomos de centenas de provas capazes de atestar até que ponto o trabalho com a imprensa constitui uma ocasião de revivificação para o educador. Gostaríamos de reafirmar, e de redefinir, a ajuda que nos prestou a nossa técnica no que respeita ao conhecimento dos alunos —tema várias vezes abordado nesta revista — e que merecia algo mais do que uns meros artigos. Aliás, basta folhear os nossos jornais escolares — dos quais já possuímos hoje uma colecção importante de mais de duzentos títulos — para compreendermos que entrámos numa nova era. Não se traia já de prosa oficial, adulta, pedagógica, é a alma da criança, é todo um encanto novo, confiante e intrépido que

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nos invade. Finalmente, os educadores aprendem a falar, a compreender e a amar a linguagem da criança. Para nós é o melhor sinal de que estamos no limiar de uma nova peda­ gogia, da única que é digna desse nome, da pedagogia liber­ tadora.» Um exemplo magnífico desta compreensão sensível da criança, que só se consegue alcançar graças à humildade do adulto, foi-nos dado por uma professora primária, Marie-Louise Lagier-Bruno, minha irmã, que dava aulas em Prelles (Altos-Alpes). Na sua aula, qualquer frase que uma criança pronuncie, qualquer esboço de gesto, são um começo. Com toda a naturalidade, os seres e as coisas sofrem uma transposição para o domínio das imagens defini­ tivas; foi assim que nasceram as pequenas obras-primas: «Um rapazinho na montanha», «O pastorinho François», o «Tienne» e o «O gatinho que não queria morrer», que são a glória das nossas Enfantines. O pobre gatinho, que uma mão brutal atirara ao ribeiro, simboliza, através de cada um dos quadros em que nos é apresentado, toda a riqueza natural de toda a compaixão do mundo. Não cessa de nos sensibilizar esta identificação do pensamento da professora com o do aluno. Notamos a sua presença, sempre pronta a agarrar o verdadeiro sentido daquilo que se diz, a pequenez do pormenor ou a vastidão do sonho. E porque as crianças estão tão desprendidas e tão livres, só por isso, fazem com que ela se torne impessoal e simples, totalmente entregue à doce tarefa de servir o seu rebanho. 0 que ela nos legou foi um alternar de momentos luminosos, em que irradia a sua própria personalidade, e de momentos de sombra, enquanto se mantém na expectativa. Depois dela, do lado de cá do pano que a Morte estendeu sobre a imensidão do vaizo, seremos nós a procurar o que pertence ao mestre e o que pertence à criança.

★ Em Dezembro de 1929 realiza-se uma exposição inter­ nacional em Liège. Por circular, o ministro da Educação Nacional solicita aos inspectores da academia que recolham dados referentes às iniciativas e às realizações das escolas públicas para defesa do bom nome da pedagogia francesa.

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Freinet tem oferecido regularmente aos seus chefes hierár­ quicos exemplares das suas revistas e do seu jornal escolar. Mas de certeza que a Academia desconhece a existência de Saint-Paul. Freinet, que é secretário do sindicato, só toma conhecimento da circular ministerial quando o congresso de Liège está para terminar. Então, tanto no boletim sindical como em L'Imprimerie à l'École, protesta com a energia im­ paciente própria de quem vive na expectativa de oferecer ao mundo as suas riquezas. Os contratempos desagradáveis não impedem que o movi­ mento da Tipografia na Escola continue a desenvolver-se: começa a invadir algumas Escolas Normais (Allier, Pirenéus-Orientais, Vosges) e o estrangeiro, depois da Bélgica, da Suíça e da Alemanha; em Portugal, funda-se um grupo sob a vigilância de Lemos, que tinha acabado de traduzir A Tipografia na Escola, Em França, os nossos aderentes começam a fazer de­ monstrações aqui e acolá: ora em Perpignon, ora em Prats-de-Mollo; Combot organiza um colóquio com a ajuda do grupo da Nouvelle Éducation, subordinado ao tema: «Apren­ dizagem da leitura pelo método da Tipografia na Escola», que alcança um verdadeiro êxito. Na Páscoa, por altura da assembleia geral dos Sindicatos do Ensino de Drôme-Ardèche, Boissel também faz uma exposição em La Voulte; em Nîmes, cabe a Rousson a vez de falar e de expor o mesmo tema. Fazem-se outras demonstrações em Allier, Loire, Isère, nos Vosgos. Pichot assiste ao Congresso da Educação Nova em Pau; no seu relatório transparecem as diferenças de classe que separam a escola pública das escolas experi­ mentais com maior apoio financeiro.

Congresso de Marselha (1930)

O Congresso da Tipografia na Escola efectua-se em Marselha a 2 e 3 de Agosto de 1930. Assemelha-se a todos os Congressos CEL: o entusiasmo não falta, o trabalho é apaixonante, mas a edição do Ficheiro levanta um grave problema monetário. As encomendas não foram suficientes: só chegam aos 15000 francos e precisamos de 40000 para

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custear a edição prevista... Nós próprios, apesar de estarmos numa péssima situação, assumíramos o risco de dívidas que nos traziam bastante apreensivos. Neste segundo ano, eu voltara a não ser nomeada para Saint-Paul e também me tinham sido recusados os lugares vizinhos. «Comecem a pensar em renovar as vossas assinaturas antes de Outubro», escrevia Freinet no fim de Julho, «bem sabem como a arrancada é sempre tão penosa e eu pessoalmente não posso fazer mais sacrifícios do que os que tenho feito até agora.»

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CAPÍTULO V

SAINT-PAUL (1930-1931)

Com um timoneiro que no alto-mar calcula a situação do seu navio, assim nós vamos tentar situar a pedagogia da CEL no meio do mar agitado das realidades sociais destes sete anos de trabalho. Freinet descobriu na Imprensa um utensílio do maior valor, que lhe deu a possibilidade de revolucionar toda a sua prática escolar, de rejeitar as velhas fórmulas opressivas e de se dedicar aos aspectos inéditos decorrentes da prática do «Texto livre». Estes aspectos inéditos resumiu-os ele em frases lapidares e sugestivas: Acabemos com os manuais escolares! Acabemos com as lições! que se concretizaram experimentalmente no «Ficheiro escolar cooperativo». Trata-se, no seu conjunto, de uma nova técnica de trabalho escolar que se processa através da «Tipografia na Escola». Mas, com a sua utilização, com a prática quotidiana da classe, vão surgindo, ao lado destes factos, outros que levam a um «complexo educacional» constituído pela mistura das realidades psicológicas, educativas e sociais, do qual o educador deve tirar partido a fim de conseguir obter o desen­ volvimento máximo da personalidade infantil. Este desen­

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volvimento máximo da personalidade é alcançado graças à «técnica» educativa, ou seja, ao emprego dos utensílios educativos mais apropriados. O problema mais urgente que se levanta ao educador é, por conseguinte, o de procurar, juntamente com os outros educadores, os melhores instru­ mentos educativos de que a criança se possa servir para se forjar um futuro melhor e de os utilizar de acordo com uma técnica de trabalho libertadora. Esse deve ser o esforço essencial de toda a CEL. Com o fito de atribuir ao «técnico» iniciado a primazia sobre o «pedagogo» imbuído de precon­ ceitos de superioridade intelectual, Freinet volta a fazer a discriminação, que considera essencial, entre a «técnica» (prática) e o «método» (ideal) que já tinha preparado dois anos antes: ...Até hoje bastava que um educador enxergasse um novo processo útil à condução da sua classe para que este apelidasse a sua experiência de método, mesmo quando a sua investigação nada tinha de metódico. Não falamos do método Montessori nem do método Decroly, aos quais os seus autores quiseram conferir uma base científica embora pouco a pouco se esteja a descobrir falhas e erros que lhes retirariam todo o direito ao título de métodos. Mas qualificar de métodos o Plano Dalton, o trabalho livre de Cousinet, etc... é atribuir a um simples momento de pesquisa pedagó­ gica qualidades de permanência e de solidez a que as ditas realizações, por muito interessantes que fossem, não podiam arrogar-se. Qualquer investigação, seja ela pedagógica, industrial ou comercial, parte da Ciência para a Arte, que constitui a organização mais perfeita da harmonia humana. É certo que por vezes acontece que indivíduos geniais conseguem vencer as etapas e atingir a Arte sem subir os degraus ainda irregulares da Ciência. Em pedagogia, provavelmente ainda mais do que nos outros domínios, passa-se a mesma coisa. Mas estes artistas só poderão servir de guias; se não conse­ guirem talhar e alisar os degraus que irão permitir que os trabalhadores comuns os alcancem, nunca conseguirão esta­ belecer um método. Esta tarefa de preparação do caminho que, a partir da investigação científica, conduz à experiência, ao método e

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à Arte, pertence ao domínio da técnica — no que respeita a nós, da técnica pedagógica... Que não tentem protestar dizendo que o educador é mais um artista de que um técnico, Pode haver educadores artis­ tas — e são raros— mas uma coisa é certa: o estado em que se encontra a educação de qualquer país depende quase exclusivamente do avanço da sua técnica pedagógica. Mas também não vamos encarar essa denominação menos pretensiosa como uma restrição arbitrária do domínio peda­ gógico. Pelo contrário, a técnica pedagógica —e nisto é que reside a sua superioridade sobre os métodos — engloba obrigatoriamente todas as investigações, todas as realizações que concorram para tornar possível e eficaz o trabalho do educador popular. Já o dissemos milhares de vezes: o poder capitalista não consentiria que os educadores — funcionários seus— fossem colher as causas do malogro da escola à própria organização social; por isso faz os impossíveis para perpetuar o divórcio entre a escola e a vida, assim como o isolamento pedagógico dos professores primários. E se fôssemos a acreditar no que dizem as nossas boas revistas profissionais, julgaríamos que os destinos da escola depen­ diam da dedicação do pessoal docente e da habilidade peda­ gógica. Se rejeitamos a palavra método, impropriamente utili­ zada, e falamos quase exclusivamente de técnica pedagógica, é na intenção de atribuir ao nosso trabalho o seu verdadeiro lugar e o seu verdadeiro significado. A técnica pedagógica não consiste apenas nesta pre­ paração atabalhoada que atafulha as revistas pedagógicas e que reprovamos totalmente. Nem consiste no estudo dos segredos e dos processos diversos susceptíveis de surpreender por um instante que seja o interesse e a actividade da criança. Abrange um domínio muito vasto e gostaríamos bastante de dar uma achega à sua delimitação e à sua especificação. Para começar, há uma técnica inicial que diz respeito à preparação óptima dos elementos que permitirão uma edu­ cação mais adequada: estudo dos edifícios escolares, do ma­ terial escolar e da sua adaptação ao trabalho pedagógico, assunto este que já abordámos no ano passado, quanto

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mais não fosse com o fito de averiguar o estado precário em que a França se encontra nesse domínio, e que vamos prosseguir este ano, mostrando o que se tem feito no estran­ geiro e o que se poderia fazer numa sociedade educativa. Com isso atingimos directamente a realidade social e polí­ tica, mas não poderiamos deixar de o fazer, se não quisés­ semos arriscar-nos a diminuir o alcance dos nossos esforços. A técnica da preparação fisiológica, moral e afectiva das crianças também é essencial. Com efeito, o que pode a mais bem organizada das acções educativas em presença de crianças minadas pela doença, enfraquecidas, atrasadas e humilhadas pela miséria? É nosso dever mostrar insistentemente que o problema social e humano da saúde física das crianças é um problema pedagógico porque condiciona o êxito da educação popular. E se desagrada a uma sociedade mercantilista a denúncia das suas falhas criminosas, isso dámos a nós, educadores, o direito de descuidar este ponto fundamental da nossa técnica pedagógica e de ignorar um mal que corrói as raizes da escola e de que somos os primeiros a ser vítimas? A criança em idade escolar está-nos legalmente confiada. Somos nós que temos a obrigação de utilizar na aula os processos mais susceptíveis de desenvolver a criança e de a educar como deve ser: é aí que se insere a técnica do trabalho escolar à qual chamam muitas vezes erradamente método: que ainda não é um método, mas apenas um conjunto de tentativas e que se identifica o mais possível com a ideia central de toda a pedagogia nova. Nesta técnica do trabalho escolar distinguiremos dois ramos que são muitas vezes confundidos: l.°) Adaptação às necessidades pedagógicas —decor­ rentes do novo conhecimento da criança e das investigações no campo psicológico e pedagógico — do material de ensino utilizável com o maior proveito e da elaboração técnica deste material — está quase tudo por fazer neste domínio. E por­ quê? Porque o mercantilismo pedagógico não impõe a utili­ zação de produtos que muitas vezes não têm a menor garan­ tia. Neste capítulo, encetámos um trabalho bastante útil, que começa a dar os seus frutos; seleccionámos realmente o material de ensino, na medida em que nos abstemos de

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recomendar, seja por que pretexto for, todas as realizações que não nos parecem cuidadosamente estudadas, criando nós próprios o máximo de material adequado às nossas necessidades, mas nunca permitindo que o interesse comer­ cial se sobreponha ao interesse pedagógico — é isso que nos dá a força. 2.°) Técnica da condução da classe, da organização pedagógica, com o objectiva de permitir aos alunos que trabalhem, de modo proveitoso, da maneira que preferirem. Esta questão não foi tão negligenciada como as outras, mas também não recebeu toda a atenção que requeria. A prova está em que, até hoje, os manuais sempre impuseram uma técnica sua a cada uma das disciplinas. Método Montessori, método Decroly, plano Dalton, método dos Projectos, mé­ todo dos Complexos — são todos eles exemplos de técnicas de trabalho a adaptar e a completar. Esperamos que não fique ninguém melindrado por cha­ marmos técnicas a estes métodos consagrados. Acaso a diversidade e a caducidade que os caracterizam não são suficientes para demonstrar que não passam de processos mais ou menos engenhosos, mais ou menos científicos, mas sempre sujeitos a revisões e a aperfeiçoamentos? Pode haver algo mais ridículo do que um pedagogo que tenha a pre­ tensão de estabelecer qualquer coisa de definitivo, num do­ mínio ainda inexplorado, no qual a ciência ainda não con­ seguiu articular mais que meia dúzia de noções? Estas palavras não são palavras de desdém nem de ingratidão dirigidas a estudiosos a quem a educação tanto deve. Só queríamos assinalar que apenas uma ínfima parcela dos seus sistemas é definitiva: cabe-nos agora a nós, técnicos, a tarefa de irmos buscar a uns e outros os elementos que nos permitirão trilhar com maior segurança a via que sabe­ mos ser a via correcta. Quando a ciência pedagógica tiver progredido conside­ ravelmente, no dia em que os pedagogos tiverem finalmente conhecido e compreendido a criança e em que, por outro lado, se tiverem cumprido as condições sociais ideais de educação, então sim, poderemos falar de um método defini­ tivo, estruturado cientificamente, que exprimirá o restât ado dos esforços e das tentativas dos técnicos.

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A nossa pedagogia, baseada no estudo e na elaboração ' destas técnicas, não é uma pedagogia estagnada e morta, como são a maioria dos «métodos» actuais. É essencialmente dinâmica, não receia derrubar pelo caminho os ídolos caducos, esforça-se por construir e mesmo por criar, se preciso for, por trabalhar, sempre, com precisão e entusiasmo, sem esperanças vãs e, muito pelo contrário, com uma nítida consciência dos fins a atingir e dos obstáculos a evitar ou a vencer.» Como reagem as autoridades pedagógicas a esta cate­ górica tomada de posição de Freinet? Numa carta que lhe dirigiu, o doutor Decroly precisa o seu modo de pensar: «Estou perfeitamente de acordo consigo. Como já rea­ firmei durante as conferências de Elseneur, actualmente nenhum método deve ter a pretensão de apresentar uma solução definitiva de todos os problemas da educação e do ensino. Há na pedagogia zonas totalmente inexploradas. Aquilo a que chamaram «método Decroly» (é o próprio doutor Decroly que sublinha este erro pedagógico) não tem realmente o mesmo carácter dos métodos de que normal­ mente se fala; não se limita apenas a um aspecto do pro­ blema educativo ou instrutivo; nem sequer tem um carácter absoluto ou exclusivo, e nisto opõe-se aos restantes, irredutivelmente; não pretende impor nenhum código de dogmas imutáveis e definitivos. Muito pelo contrário, procura abarcar todas as forças da educação e do ensino; foge a tomar-se fixo e acabado, mas pretende ser bastante elástico e aberto a qualquer alte­ ração que o possa vir a aperfeiçoar; vai buscar aos outros métodos certos fins, certos meios que se lhe afiguram úteis; inspira-se nas regras que presidem a todos os ramos das ciências, sem por isso se esquivar a recorrer a hipóteses de trabalho.» Todavia, o «complexo da educação» terá inevitavelmente de englobar considerações de ordem «social». O professor primário oficial pode prová-lo através da sua experiência quotidiana; e Freinet, o inovador, que vive bem no meio de toda a pobreza da sua escola proletária, apercebe-se,

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melhor do que ninguém, da existência do drama social, que é capaz de paralisar toda a intervenção e até a simples experiência. «Já várias vezes tivemos oportunidade de precisar o modo como perspectivamos a nova pedagogia, desde que seja praticada em regime capitalista. Não será inútil voltar hoje ao assunto, para firmarmos solidamente a nossa po­ sição face a grupos que poderão estar a realizar um trabalho pedagógico útil, mas que, quanto a nós, têm o grave incon­ veniente de se recusarem a encarar o problema educativo em toda a sua complexidade e de, assim, alimentarem no espirito das pessoas ilusões que só prejudicam tanto a boa marcha da evolução pedagógica, como a saúde física e moral dos educadores do povo. Não é altura de temermos enfrentar as realidade, sejam elas reaccionárias ou revolucionárias, nem de calar as con­ sequências imparciais do nosso exame. Antes do mais, uma pedagogia sã pressupõe a existência de um edifício escolar higiênico, adaptado aos novos pro­ cessos de trabalho, construído de acordo com as regras pedagógicas, que hoje são do conhecimento de. todos. O actual regime, baseado no lucro e na exploração, só seria capaz de realizar este esforço inicial desde que se destinasse as escolas secundárias, que são a própria expressão do regime. Contudo, não ignoramos que em certos países os estabelecimentos escolares estão bastante longe do escan­ daloso estado de abandono a que a República Francesa os vota, mas, mesmo nesses países, a educação popular não regista progressos decisivos. A realização dessa escola popular requer também a introdução de novas técnicas de trabalho, a orientação para a criança do interesse educativo e a prática corrente de uma actividade social motivada. É necessário criar novos ins­ trumentos de investigação e de estudo: material de impressão, livros especiais, rádio, discos, cinema, oficina, fábrica, etc... e abandonar, de uma vez por todas, as actuais formas de aquisição e de acumulação de conhecimentos. ... Não basta construir belas escolas, arranjar material científico adaptado às necessidades pedagógicas. É preciso

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ainda que os filhos dos proletários possam usufruí-los em condições normais. Ora isso é que é impossível... ...Só uma pessoa que ignore completamente as verda­ deiras condições que oferece a escola do povo poderá acusar-nos de estarmos a exagerar. Infelizmente todos os nossos camaradas estão aptos a mostrar como, na realidade, a maioria dos alunos das nossas classes populares, mais ou menos marcadas pela miséria social, não pode aproveitar, em circunstâncias normais, de um ensino por muito perfeito que ele seja. Enquanto as causas que estão na base da inferioridade de uma classe não tiverem desaparecido — e num regime capi­ talista não podem nem desaparecer nem atenuar-se— por muitas que sejam as iniciativas humanitárias tendentes a remediá-lo — a escola nova popular será sempre impossível... Nesse caso, dir-nos-ão, se estão persuadidos de que, no regime actual, a educação não pode libertar o proletariado, o que é que pretendem com a vossa acção pedagógica? É certo que nós, tal como os outros pedagogos, traba­ lhamos para melhorar as nossas técnicas, inspirando-nos ao máximo nos conhecimentos psicológicos e nas necessidades proletárias. Mas as nossas experiências são sempre orientadas em função dessas necessidades. Também é verdade que já perdemos as ilusões intelectualistas que trazem ao educador um poder ilimitado para criar forças novas e libertadoras. Sabemos perfeitamente que mesmo dentro da nossa esfera reduzida, por muito desinteressados e metódicos que sejam os nossos esforços para transformar as nossas escolas novas proletárias, não o con­ seguiremos. Mesmo os casos excepcionais de inspectores que simpatizam com as nossas ideias e que dão aos nossos camaradas inteira liberdade de actuação, tanto no que diz respeito a programas como no que diz respeito a horários e a métodos, não nos dão ainda grande motivo para nos rego­ zijarmos. Até avisamos esses camaradas do perigo que existe de uma pessoa se consumir a tentar pôr em prática sonhos de escolas novas que são incompatíveis com as reais con­ dições da vida do proletariado, em tentar materializar espe­ ranças que serão sempre goradas, em contribuir para manter

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nos educadores a ilusão reformista da escola como instru­ mento soberano e pacífico da evolução social. Todavia, denunciar uma tal ilusão não equivale a acon­ selhar aos educadores a prática retardatária de um imobi­ lismo pedagógico, que só aproveitaria a quem nos domina. É nosso dever tentarmos arrancar os educadores do povo à sua ortodoxia servil; devemos ajudá-los a desembaraçar-se do autoritarismo capitalista, que se traduz, na escola, numa pedagogia falsamente liberal e ciosa do seu domínio; devemos mostrar a necessidade de os educadores se porem ao serviço das crianças do povo; este será o primeiro passo, aquele que os levará, na sua maior parte, a porem-se ao serviço do povo. E a razão de ser das nossas investigações pedagógicas é: libertar ao máximo as crianças da autoridade irracional do adulto, indicar-lhes os caminhos do desabrochar indi­ vidual e social, associar todas as questões pedagógicas aos grandes problemas do homem e atribuir de novo à nossa acção social e política um lugar de primeiro plano nas preo­ cupações educativas. Provavelmente, alguns camaradas queixar-se-ão de que, assim, lhes estamos a destruir a sua fé pedagógica. Muito pelo contrário, pensamos ser esta uma maneira de a conso­ lidar. Quem estraga a nossa fé são os nossos dirigentes, que tentam alimentá-la com exemplos inacessíveis, que nos con­ duzem, irresponsavelmente, a um caminho no qual, logo desde os primeiros passos não fazemos outra coisa senão tropeçar, acabando por nos resolvermos a sentar-nos à beira da estrada, a ver ironicamente partir os jovens, com o mesmo arrebatamento, rumo às mesmas desilusões... Não se trata aqui de nos deleitarmos com sonoras pala­ vras, nem de dissimularmos uma realidade que está mais que à vista com realizações inadequadas. O nosso esforço é modesto, tal como têm de ser todos os esforços de liber­ tação num regime de opressão. Teremos, no entanto, reali­ zado o nosso papel se tivermos ajudado os educadores a apreciar mais judiciosamente os factos pedagógicos...; se lhes tivermos incutido o desejo de se libertarem de uma rotina débilitante, se lhes tivermos inspirado o amor e o respeito pelas crianças do povo que assim, ao menos, experimentarão um pouco de simpatia e de alegria, enquanto não entram

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— e fazem-no bem cedo, infelizmente! — na luta que lhes é imposta.» Em Abril de 1931, Washbume, o pedagogo de Winetka (EUA) lança na Europa um vasto inquérito pedagógico subordinado ao tema: Pedagogia e Meio, Indivíduo e Socie­ dade. Para Freinet é a ocasião de precisar claramente os «fins e os meios da Educação Popular». Aliás, era este o título do seu editorial de Janeiro de 1931: «Pretender definir antecipadamente a sociedade que dese­ jaríamos para os nossos alunos é um disparate pedagógico e histórico, tão importantes e determinados são os múltiplos elementos de apreciação e de acção que escapam aos peda­ gogos e que nem os sociólogos mais acautelados conseguiríam, a não ser por fatuidade, prever e precisar. Decerto que podemos —e devemos— ter um ideal pedagógico, um ideal humano. E todos os homens sinceros deviam estar de acordo sobre esse ideal, sem precisar para isso de imaginar a concretização próxima de um sonho velho de milênios. O único objectiva dos nossos esforços só pode ser uma sociedade... em que toda e qualquer forma de exploração do homem pelo homem tenha sido abolida... ... Não se infere daqui que devamos preparar as crianças directamente para uma tal sociedade. É mais sobre a direcção a seguir que temos de nos pôr de acordo, importando menos, agora, o objectivo a alcançar do que propriamente o rumo a seguir, assim como a orientação que damos às jovens perso­ nalidades encorajadas e robustecidas. Finalmente, temos de procurar os princípios de acção que nos hão-de guiar. Sobre este ponto as opiniões dos pe­ dagogos divergem. Até ao último século, o progresso social era considerado como uma obra esencialmente individual e moral e continha muitas vezes uma inspiração religiosa. Tinha como conse­ quências educativas o esforço individual para um aperfei­ çoamento moral, a punição, o sermão, que eram as traves mestras de todos os programas educativos, paralelamente à procura exagerada e sistemática da aquisição... ... A moral do homem não é uma entidade intelectual ou verbal, mas, pelo contrário, está muito condicionada pela evolução económica e social; mais do que um problema indi­

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vidual, é um problema social, cuja evolução e cuja solução não pertencem já, felizmente, ao domínio exclusivo da espe­ culação escolástica, podendo até ser determinadas material­ mente, na prática, pelo estudo imparcial do fenômeno humano e social...

INDIVÍDUO E SOCIEDADE

Direito da criança a viver plenamente a sua vida de criança, aquisição de capacidades, formação integral da personalidade, certamente que sim, Mas, para o pedagogo, estas preocupações não deviam dissociar-se da ampla fina­ lidade social e humana. Só à educação burguesa, excessivamente individualista, é que se podem pôr problemas desta ordem, que são função da exploração e da sujeição sociais. Achamos que, em vez de uma formação integral da personalidade, que autoriza muitas vezes as piores anomalias, devemos visar a realização da harmonia individual no seio da harmonia social. Se nos referimos especialmente ao ensino do primeiro grau, que constitui o nosso verdadeiro campo de acção — as questões complicam-se excessivamente, aliás, no segundo e terceiro graus, devido às necessidades sociais que conduzem à especialização rápida, mesmo no domínio filosófico—, podemos afirmar que o conhecimento dos factos, a aquisição de capacidades ou de aptidões específicas e até a formação das opiniões — ainda tão inseguras nesta idade — são preo­ cupações de menor ordem da nossa pedagogia. Neste primeiro grau, o ensino é somente uma iniciação, um ponto de partida, a justificação e o robustecimento de um entusiasmo. O nosso principal cuidado devia consistir em conservar iodo o seu entusiasmo individual e social, ga­ rantia das realizações futuras. Não devemos sacrificar mais nada a um regime de explo­ ração, para o qual o ensino do primeiro grau é apenas uma pré-aprendizagem das formas modernas de trabalho capita­ lista, regime que, diga-se de passagem, nem sequer é capaz

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de prever e de coordenar as grandes forças educativas que, durante a adolescência e pela vida fora, deveríam fazer desabrochar individualidades, cujas primeiras manifestações havíamos de ter apreciado e encorajado. Reprovamos desde já, neste grau, toda e qualquer forma de ensino sistemático que tenha por principal preocupação a aquisição que anula as forças vitais. Isto não significa de modo nenhum que desprezemos a aquisição ou o ensino, que são as consequências naturais de toda a actividade livre; mas primeiro procuramos reforçar nos alunos os elementos de vida, certos desde jã de que a educação popular, naquilo que possui de são, saberá ex­ trair dessa vida um proveito novo tanto do ponto de vista intelectual e moral —individual— como social...

OS NOSSOS MEIOS Na nossa opinião, a vida das crianças no meio dos seus companheiros com a ajuda bondosa dos educadores, coorde­ nando-se esta, por sua vez, com o apoio dos pais, da socie­ dade e de todas as maravilhas que a ciência podia e devia colocar hoje à nossa disposição, seria mais do que suficiente para ministrar, sem aulas especiais, sem dogmatismo, sem artifícios, a educação e instrução que se podem exigir a uma criança de 13-14 anos, sem precisar de recalcar e refrear as forças vivas e criadoras. Mas para tanto é preciso — já várias vezes o dissemos — uma sociedade em que a acção educativa possa tornar-se decididamente eficaz. Essa a razão de quase todos os nossos aderentes serem militantes sindicalistas e políticos. Em se­ guida, é preciso colocar à disposição da criança os materiais e as técnicas que lhe permitirão viver na escola e educar-se vivendo. Empenhámo-nos nessa tarefa com a ajuda das nossas realizações, a Tipografia na Escola e a correspon­ dência interescolar, o ficheiro escolar cooperativo, o iniciador matemático, etc... Enquanto não podemos contar com o apoio de uma nova organização social, não deixamos de ser educadores oficiais,

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submetidos a programas, a horários et em parte, a uma ideologia. Vemo-nos, por conseguinte, obrigados a contar com as nossas obrigações de carácter administrativo: daí as nossas investigações visando uma autoinstrução (fichas de cálculo, por exemplo), a que atribuímos um lugar perfeitamente acessório no nosso pensamento e que se tornariam inúteis no dia em que desaparecessem as causas que as motivaram, O próprio facto de duzentas e cinquenta escolas terem introduzido a Tipografia na Escola como nós aconselhámos, isto é, com a utilização racional do intercâmbio, que centenas de outras classes tenham montado o ficheiro, cujos elementos fundamentais são distribuídos por nós, demonstra que este compromisso é realizável na prática e prepara, em certa medida, a escola nova libertada. Estamos longe de ter al­ cançado os nossos objectivas. Mas ao menos basta-nos pensar e sentir que estamos no bom caminho.» O espaço é pouco para podermos abordar aqui o aspecto «psicológico» (que é talvez o mais aliciante para nós, educa­ dores) de uma pedagogia unitária. Em vários dos seus editoriais. Freinet examina este aspecto psicológico pelo ângulo da «Tipografia na Escola, libertadora do psiquismo». Mostra a maneira como a criança que se exprime com espon­ taneidade, que consegue viver intensamente sem precisar de se subordinar aos riscos da «autoridade», alcança muito naturalmente essa «unidade» da personalidade, que aparece anormalmente dissociada nas tentativas da psicanálise mítica. Voltaremos a encontrar estes problemas apaixonantes em artigos que Freinet mais tarde irá escrever1 para melhor os situar e para preparar o aparecimento das obras pedagógicas e psicológicas com que culminarão. Mas passemos da teoria à prática. Ai verifica-se a grande fraternidade no trabalho, que une todos os camaradas. No início de cada ano escolar Freinet traça o programa de actividades (Outubro de 1930) : «O ano que começa é extraordinariamente encorajador.

(1) L’expérience tatonnée e Essai de psychologie sensible.

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Depois de longas e penosas tentativas no que respeita à organização comercial da cooperativa, podemos conside­ rar-nos hoje solidamente assentes: formamos um grupo já considerável de aderentes fiéis (250 só na imprensa); pos­ suímos um depósito bem fornecido de todos os artigos neces­ sários às nossas classes e que serão enviados regularmente por uma empregada; produzimos um material de primeira qualidade, que permite um trabalho excelente, trabalho esse que podemos agora expor aos olhares curiosos dos cépticos. É com satisfação e alívio que podemos agora medir o caminho que percorremos neste domínio. As diversas tarefas cooperativas estão repartidas pelos aderentes e é com prazer que referimos uma vez mais o modo espontâneo e dedicado em extremo como os nossos camaradas se colocam ao serviço da cooperativa. Acabamos de ter novos testemunhos tocantes desse facto. É propositadamente que insistimos em começar por fazer esta relação do aspecto técnico e material, porque, fiéis ao princípio que nos orienta, pensamos sempre que, para as nossas escolas populares, a concretização dos instrumentos necessários ao trabalho escolar e o aperfeiçoamento das nossas técnicas são mais úteis que todos os palavreados pe­ dagógicos. A nosso pedagogia nada tem de pretensiosa. Existe em função das nossas possibilidades. Como emprega esta lin­ guagem nova, desencadeia actividades e suscita entusiasmos que fazem do nosso grupo um dos mais firmes elementos actuais do progresso pedagógico do velho mundo... ...A nossa experiência colectiva aí está. Todos juntos devemos erguer este ano a nova técnica de trabalho. Alguns camaradas que estejam a trabalhar com o método Decroly dos centros de interesse dir-nos-ão se, depois de submetida à experiência, a nova actividade das nossas classes é compatível com a regulação do trabalho escolar, feita por esse método, que costuma ser bastante arbitrária. Também depois de a experimentarmos, constataremos aquilo que podemos esperar da prática do trabalho livre em grupo (método Cousinet) e como o devemos adaptar às nossas classes.

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Temos muito que aprender com os camaradas russos — teremos de voltar a esse assunto— porque a imprensa e as trocas interescolares obrigam-nos, tal como eles, a acer­ car-nos da vida em sociedade para dela retirarmos os ele­ mentos essenciais do nosso trabalho escolar. Também não hesitaremos em penetrar na escola dos pedagogos americanos para “taylorizar' em larga escala o material de trabalho que condiciona as nossas novas actividades: imprensa escolar, trocas interescolares, ficheiro, biblio­ teca de trabalho. Repetimos uma vez mais que não corremos atrás da novidade escolar nem da originalidade forçosamente (embora não as receemos). Vamos buscar a qualquer lado aquilo que nos interessa: adaptamos o melhor que podemos ao nosso trabalho as técnicas já existentes. Desejamos apenas obter, ao mesmo tempo, o material que corresponda às nossas necessidades e as técnicas de trabalho que permitam a melhor exploração educativa das faculdades criadoras dos nossos alunos. Da colaboração de todos os nossos camaradas e dos rela­ tórios pormenorizados das suas experiências é que extraire­ mos aquilo que em breve constituirá a nova técnica de trabalho escolar com a Tipografia na Escola.» Vejamos agora qual o proveito que os nossos aderentes extraem destas directivas. Pichot experimenta na sua classe o trabalho «em grupo»: «O trabalho em grupo ou em equipa constitui uma convergência dos esforços para um fim único, para uma realização colectiva. Importa praticar o trabalho de equipa nas escolas por razões sociais da maior importância. É extremamente pro­ veitoso que os componentes de um mesmo grupo se aper­ cebam dos seus interesses essenciais, instruam uma disciplina comum e se submetam a ela, não porque é disciplina, mas porque tem uma justificação e é exigida pelo próprio instinto do grupo...» Relata a sua experiência ao longo de uma série de artigos e sob um ângulo prático, interessantissimo:

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«Inspiramo-nos nas directivas do Sr. Cousinet. Se, num grupo, ninguém tem temas de estudo a propor, é o próprio professor que propõe um único tema ou vários. Entre as nossas realizações que se devem ao trabalho de grupo, refiramos: o trabalho de impressão, com as suas trocas de jornais escolares, os acordos que permitiram que a nossa Cooperativa comprasse uma Pathé-Baby, um arre­ medo de cinema que alcança imenso êxito. O trabalho de todos facilitou as experiências agrícolas de campo sob a direcção da Secção de Agricultura.» Guillard (Isère), que já se tinha interessado pela geo­ grafia, lança a ideia da correspondência intergeográfica. Gauthier (Loiret) solicita uma permuta de documentos his­ tóricos e eu própria elaboro uma série de artigos sobre o «desenho livre», o seu significado psicológico e o seu destino artístico. A um nível mais prático e mais materialista, outros ocupam-se do aperfeiçoamento do material de fotografia (Beau-Isère), dos discos (Pagès). O Camescasse, iniciador matemático, torna-se num novo instrumento da CEL. Contudo, é o «Ficheiro escolar» que açambarca mais espaço; em todas as revistas quinzenais da Tipografia na Escola, Freinet dá os últimos retoques na «classificação decimal», mas nem todos os camaradas a aceitam; surge uma nova ideia: Delhermet sugere que se faça uma edição de brochuras análogas ao Excertos de La Gerbe, mas escritas por adultos. Desta proposta, Freinet tira a ideia da Biblio­ teca de Trabalho: «Há um grande número de elementos de estudo de todos os gêneros — literários, científicos, históricos, etc. — que não podem ser distribuídos pelas fichas. Até agora, temos tido de procurar esses elementos de estudo nos manuais escolares por onde estão muitas vezes espalhados, sendo sempre apresentados de uma forma pouco prática para o tipo de trabalho que preconizamos. Podíamos distribuir esses documentos sob a forma de opúsculos, comparáveis aos nossos Excertos de La Gerbe, talvez mais volumosos (24 páginas, por exemplo), apre­ sentados de uma forma atraente, bem ilustrados, com capas um pouco mais duras que as dos nossos Excertos.

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Que representariam tais brochuras âo ponto de vista pe­ dagógico? Mais uma vez, o princípio que presidiria a esta edição seria o mesmo que adoptâmes para a realização do nosso ficheiro: o nosso principal objectivo não seria o de publicar coisas inéditas, mas sim o de apresentar, sob uma nova forma, útil e crítica, todos os elementos de estudo que achás­ semos úteis para as nossas classes, quer fossem inéditos quer tivessem sido já publicados várias vezes. Quanto à es­ colha, procederiamos como para o ficheiro: haveria colectores encarregados da reunião dos elementos, que, antes de serem editados, seriam submetidos à apreciação dos vários cama­ radas encarregados do controle.» A adesão dos nossos camaradas não se faz esperar. Falta agora pôr a ideia em prática. Uma rubrica que na revista se está a tornar cada vez mais interessante e mais extensa é a que diz respeito à ar­ ticulação da CEL com o estrangeiro: correspondência internacional em Espéranto (Boubou, Bourguignon) e do­ cumentação internacional. Deste modo, a CEL entra em contacto com as mais recentes realizações mundiais e, o que é mais importante, pode situar-se em relação a essas realizações. Já então os pedagogos americanos e russos constituem os dois aspectos bastante significativos de duas concepções humanas com as quais interessa tomar contacto. Já há muito que a pedagogia americana evidencia a ten­ dência de afirmar que no seu «novo» país tudo é «novo» e «prático». Em L'Imprimerie à l'École de Junho, Freinet analisa o «Dalton Plan» para a individualização do ensino. Sem entrar em pormenores, vamos citar algumas passagens desse artigo, suficientes para delimitar a posição de Freinet: «...Se o Plano Dalton pode ser aplicado com êxito e proveito nas escolas de segundo e terceiro graus, nas quais o ensino passa para primeiro plano, em relação às escolas primárias deve ser considerado como uma heresia peda­ gógica... ... Era lógico que o país, que “taylorizou” e racionalizou a industria e que inventou o trabalho em série, fosse também o primeiro a tentar “taylorizar" o ensino. Produzir com me-

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nos esforço, aumentar o autodomínio individual, que aparen­ temente liberta o operário ou o professor, é, reconheçamo-lo, uma tendência louvável do ponto de vista humano. O mal — bastante grave — está em o aluno atafulhar conscienciosa­ mente a sua memória em detrimento do seu desenvolvimento intelectual, moral e social.» No decurso do ano de 1930-1931, R. Lallemand expõe, numa série de artigos, o método do doutor Bates, especialista de oftalmologia, de cura das doenças da vista sem remédios; livro extremamente interessante, que volta, felizmente, a estar em voga. O princípio que guia Bates ét digamos, pe­ dagógico: condena a educação baseada na violência: na violência à memória e à imaginação, cujo produto, o jogo livre, se encontra indissoluvelmente associado ao bom estado da vista.

Congresso de Limoges (1931)

Concluímos este ano escolar sob os auspícios do Conresso de Limoges, que decorreu a 2 e a 3 de Agosto de 1931. Tal como os outros, é um Congresso de trabalho, de fraternidade, de entusiasmo, com uma única apreensão: a que respeita à situação financeira, que não está a corres­ ponder às exigências de novos efectivos: a CEL conta presentemente com o peso dos seus quinhentos membros2.

(2) A partir de agora ser-nos-á impossível dtar todos, dar-lhes as boas-vindas a esta grande casa, mas podemos indicar Bourguignon (Var), de quem se pode dizer que foi um dos animadores da CEL, Houssin (Mancha). F. Derouret-Serret (Ardèche), Sr.ª Foustier (Gironde), Jutier (Allier), Men. Brizon (Mame), Camonade (Haute-Geronne), Coudert (Cantal), Paul Georges (Vosges), que serão dos mais assíduos colaboradores na nossa obra comum.

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CAPÍTULO VI

SAINT-PAUL (1931-1932)

Agora que já estamos a par do sentido profundo da «pedagogia popular», que Freinet iniciou e que depois con­ duziu pelos caminhos da vida, agora que todos nós conhe­ cemos o espírito que a anima, a sua complexidade e as suas dificuldades de ordem prática, detenhamo-nos por breves instantes a presenciar a sua azáfama e o amplo entusiasmo colectivo que anima. Neste princípio de Outubro de 1931, eis como Freinet, o optimismo, traça aos seus aderentes as perspectivas que se apresentam à boa vontade de todos: «Não temos o costume de nos alongarmos sobre as mani­ festações passadas, tão urgente é a nossa tarefa de criação e tão premente é o apelo da vida que vai impulsionando o nosso organismo, que conta hoje com meio milhar de ener­ gias jovens e conscientes. Porém, temos de mencionar aqui a entusiástica consta­ tação de todos os nossos aderentes presentes no nosso Con­ gresso de Limoges: «Quando uma pessoa escrevia-nos o nosso amigo Roger (norte) — está no seu departamento, isolada, escarnecida muitas vezes, invejada algumas, e cai assim no meio de um grupo reconfortante de camaradas que têm as mesmas aspirações, as mesmas apreensões, que falam a mesma linguagem, ê tão fantástico e tão agradável que se julga estar a sonhar!»

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Um bom trabalho não se pode fazer sem boas ferra­ mentas. A boa ferramenta só dá rendimento se estiver inte­ grada numa boa técnica. E a técnica deve trazer a solução dos problemas que a vida nos levanta. Nestes três aspectos contidos nas exigências de uma pedagogia racional concretiza-se toda a actividade da CEL. Antes de mais, os instrumentos: O mais prático de todos, a Imprensa, continua a ser objecte de cuidados atentos. Mas voltemos aos instrumentos principais, que sustem a pedagogia sem manuais escolares: o Ficheiro, a Biblioteca de Trabalho. O «Ficheiro Escolar Cooperativo», que vimos nascer sob uma forma, digamos, literária, que visava sobretudo com­ pletar e enriquecer o «texto livre» e, pouco depois, foi abar­ cando a documentação de ordem geral, revestiu-se nestes últimos meses de um novo aspecto: o «Ficheiro de Aritmé­ tica». Freinet tinha tido a necessidade de descobrir, na sua classe, um processo rápido de estimular individualmente os alunos atrasados em aritmética e, para isso, tinha elabo­ rado fichas autocorrectivas. Expusera detalhadamente, na revista, o modo como procedia na escola em relação aos diversos cursos e concluía assim o seu resumo, repleto de pormenores práticos: «Este trabalho autocorrector pode ser, aliás, continuado a outras horas do dia. É bastante elástico, visto que a criança pode avançar à velocidade que lhe convém. Basta que se estabeleça uma gradação que lhes dê a possibilidade de vencer sem grande esforço as dificuldades. Os professores e os alunos mais adiantados podem até, caso se tome neces­ sário, ir dando, de tempos a tempos, algumas explicações úteis... » O «Ficheiro de Aritmética» fora praticamente consagrado pelo Congresso de Limoges, que decidira editá-lo. Tinham-se levantado no Congresso, todavia, profundas discussões a esse respeito. Analisando de perto a questão, no intuito de destacar os seus diversos aspectos, a maioria dos camaradas tinha tido conhecimento dos livrinhos de Washbume sobre o ensino da aritmética. Alziaiy, Cazanave, Murat, Delaunay, Freinet, dirigiam graves críticas aos livrinhos de Washbume,

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que formulam num longo artigo do qual vamos extrair uma passagem essencial: «Acabemos com a acumulação intensiva. É através de um trabalho funcionalmente motivado, decorrente de inte­ resses vitais, que a criança irá apoderar-se das diversas técnicas; não é a aquisição de tais técnicas que tem de preceder e autorizar o trabalho vivo... ...O espírito americano afirma-se em toda a sua creduli­ dade: despachar-se, economizar tempo, “laylorizar", mesmo que isso afecte gravemente o espírito, e tudo na esperança de que o indivíduo, na posse, o mais cedo possível, de instrumentos de trabalho, possa depois educar-se livre­ mente. Desaprovamos inteiramente este divórcio entre a vida e as técnicas de trabalho, persuadidos que estamos de que a actividade funcional nos há-de trazer melhores resultados. Talvez não tão depressa, mas com maior segurança. Quanto a nós, a técnica de Winnetka é uma das últimas e mais perfeitas realizações da pedagogia capitalista, que visa aumentar o rendimento, acumular os conhecimentos, sem se preocupar de modo preciso com a utilização humana que receberão... ...Os livrinhos de Washbume são secos, rígidos e desu­ manos como o trabalho em série. Os algarismos, os números, as operações, sucedem-se sem uma única linha de intervalo. Nem lhes faliam os quadros de controle. Não há sequer indícios de aplicação prática desses cál­ culos. Contudo, no fim dos livrinhos, quando todo o meca­ nismo já estiver adquirido, surgem alguns problemas tradi­ cionais e, também eles, secos, apesar da sua aparente preocupação em se adaptarem à vida... Como não trabalhamos numa esfera ideal, como subme­ temos sempre a teoria à prática, temos de reconhecer que é muito difícil realizar assim, na sua totalidade, na maioria das nossas classes, um ensino racional da aritmética adap­ tado às necessidades expressas nos programas. Tropeçamos, sobretudo, em dois obstáculos principais: 1.°) O ensino da aritmética, nas nossas escolas, não está de modo nenhum adaptado às necessidades correntes da vida, é um ensino de comerciantes, de especuladores, de pequeno-

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-burgueses, de amanuenses, facto que não nos devia sur­ preender numa sociedade de comerciantes e de especula­ dores. Os problemas de ganho, de perda, de venda, de compra, de interesse, de economia, etc... beneficiam de um lugar preponderante, enquanto que os nossos alunos —salvo os que são filhos de comerciante, o que é raro— nunca têm semelhantes problemas, enquanto que as questões vitais, que dizem respeito à compra de viveres, a melhores condições de associação, de rendimento, de exploração e de miséria, nem sequer podem ser afloradas impunemente. Daqui resulta que, se quisermos seguir os programas, o nosso ensino da aritmética, desde o CE, nada terá que ver com os interesses mais imediatos dos filhos dos trabalha­ dores e que, nessa altura, teremos bastante dificuldade em tratar essas questões de acordo com os princípios da peda­ gogia correcta. 2.°) A falta de material, de espaço e de tempo. A aprendizagem racional da aritmética —aliás, como qualquer outra — não pode adaptar-se à miséria material de um grande número de escolas populares. Como fazer a síntese dessas necessidades? Como orientar os educadores na nova via sem os conduzir a uma acumula­ ção de conhecimentos estéril e morta? Como associar a nossa teoria pedagógica às necessidades escolares? Na base de todo o nosso trabalho matemático, man­ teremos a actividade viva proveniente da vida e da classe. Dedicar-nos-emos incessantemente a indicar, na nova rubrica que hoje inauguramos: Pedagogia Cooperativa, quais as técnicas de trabalho que nos permitirão operar essa ligação. Repetimos: em condições normais; essas actividades bastariam para a aquisição de uma cultura matemática elementar. Mas, para iniciar os nossos alunos em formas anormais de cálculo, num meio que, muitas vezes, também é anormal, parece-nos haver uma certa utilidade em recorrer a uma técnica complementar: as fichas. Que fichas serão essas? Qual será a técnica de as preparar e de as utilizar?...» Acabamos de levantar um grave problema (que virá de facto a ser discutido ao longo dos próximos anos). Referi­

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remos as opiniões de três camaradas, que provarão aos actuais aderentes, que hesitam ainda em se comprometer, como o trabalho que é feito dentro da CEL é profundo e com quanta probidade intelectual e moral se forjam os seus instrumentos. Maysonnave (Gironde) expõe o problema da sua própria classe. Depois de explicar o modo como pratica a aritmética viva, motivada pela vida, aborda as dificuldades de síntese. «Uma vez adquiridas as noções fundamentais, seriam precisas fichas para facilitarem a resolução dos problemas. Parece ser ponto assente que os alunos deveríam ser levados primeiro a fazer numerosos problemas com uma só operação, e pensei em servir-me dos melhores manuais de aritmética, em ler todos os problemas que lá viessem, a fim de descobrir o maior número possível de casos de emprego de cada uma das operações. Depois, ir complicando sucessivamente os enunciados até chegar ao nível do CEP, visto que, apesar de tudo e de todos, apesar dos programas e da pe­ dagogia, é o CEP que regula o nível dos «estudos». Mas se o conseguíssemos, sem custo, sem desvirtuar os mais modernos princípios pedagógicos, teríamos um óptimo resul­ tado! Enfim, se o CEP é um papão, isso não se deverá ao facto de nos prepararmos demasiado para ele? E teríamos nós alguma maneira de o alcançar, sem forçar nem sobre­ carregar ninguém, «nas calmas», como dizem os desportistas? Talvez as fichas façam esse milagre. Mas como fazer para classificar os problemas? Como dar conta da sua progressiva dificuldade? Os pedagogos que se debruçaram bastante sobre o pro­ blema talvez possam dar-nos uma resposta e talvez o trabalho de Washburne nos traga a solução que procuramos. difi­ culdades dos problemas podem surgir de dois lados: a) Uma questão de dados (compreensão dos dados do enunciado, descrição dos dados conhecidos e do dado que se desconhece ); b) Uma questão de raciocínio, de mecanismo psicológico (modo de conduzir os cálculos). Se se conhecem bem os dados, uma leitura inteligente (o armário de problemas de J. Gal, as equações de Graas e de Péju) conduz com bastante facilidade à sucessão das

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operações. Eis, por conseguinte, um método: A —a dificul­ dade está na compreensão dos jactos, a sucessão de um dado e de vários outros revela, à pessoa que procura um problema, a sucessão dos números que os traduzem; logo, a preparação de um problema é uma lição de coisas; e assim somos levados a considerar séries de problemas como os de: «con­ teúdo de um vaso cheio de água», «produção de leite, nata e manteiga», «problemas sobre os danos das mercadorias», etc... Há um outro método: B — conduzir paralelamente a dificuldade psicológica e a dificuldade de facto; depois de fazer um problema muito fácil, acrescentar-lhe um novo dado (e, por conseguinte, um número novo também) e levantar, em relação ao segundo, a mesma questão do pri­ meiro. Exemplo de dois problemas sucessivos para este caso: 1.° Um comerciante compra algumas cadeiras à fábrica por 374 francos. Antes de se ir embora, pede mais uma. Paga então 408 francos em vez de 374. Quanto custou a cadeira ? 2.° O mesmo problema com duas cadeiras e 396 francos em vez de 374. Sim, mas nesse momento nós adivinhamos o cálculo que o comerciante fez. Seria certamente preferível mandar fazer primeiro o cálculo do fabricante (preço de uma cadeira X número de cadeiras) e só depois o cálculo do preço de cada unidade; e eis-nos quase regressados ao método A. Em suma, e até que esteja melhor documentado, o melhor método, quanto a mim, é o que consiste no seguinte: 1. Estudo do emprego de cada uma das operações aritméticas e, ao mesmo tempo, estudo concreto da prática das operações (disposição dos números, a própria termino­ logia). 2. Complicar progressivamente os dados e os números, efectuando, para cada problema directo, todos os problemas inversos recíprocos (problema simples: compra + venda = — lucro; 2 problemas derivados: V — A=BeV — B — A). 3. Num problema complexo, reconhecer os problemas simples já estudados que o compõem.

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Perante tantas dificuldades a resolver, tenho a plena consciência da escassez do meu esforço individual; penso que haverá outras pessoas com um ideal idêntico ao meu; alegrar-me-ia se pudesse contribuir com a minha quota-parte de trabalho para a obra comum; reconheço a dificuldade que haverá em organizar a cooperação metodicamente; por isso aceito desde já a tarefa que me couber, mesmo a mais modesta, mesmo que tenha de ficar eu a manejar a cola e as tesouras.» R. Lallemand vê o problema com maior nitidez: «Correndo o risco de repisar um assunto já muito batido, recordarei que a qualidade essencial do ficheiro é a da sua elasticidade... Mas o ficheiro só será aquilo que deve ser, só apresentará a sua notável elasticidade, quando for capaz de apresentar, em meia dúzia de segundos, problemas que correspondam a um interesse vivido, quando se destinar a alimentar a vida escolar tal como ela se vai desenrolando, sem se submeter a nenhuma ordem previamente estabele­ cida...» Será com prazer que as crianças vão efectuar os proble­ mas que a vida lhes põe e depois os problemas «supostos», mas semelhantes aos da vida. pode acontecer que os peçam no caso de já se terem habituado ao nosso ficheiro. Mas ainda é preciso que os problemas sejam classificados segundo as noções que supõem. Podemos passar então do problema vivido para as noções que o integram, numa sequência natural. Estuda-se porque se sente a necessidade de o fazer. Depois das noções passamos para as hipóteses de problemas, experimentando alegre­ mente as nossas novas aquisições, os nossos "novos poderes". Há um processo muito simples de achar rapidamente os problemas que combinam as noções que desejamos apro­ fundar. Estabelecemos, de uma vez por todas, uma classifi­ cação por noções simples... Diante de cada noção fizemos a lista dos problemas que a aplicam. Podemos sublinhar o número do problema quando este contém uma dificuldade maior do que aquela diante da qual está apontado: superfície do cilindro, 210 (não pode ser distribuído aos que só sabem achar a superfície do cilindro; refere-se ao volume do cilin­ dro).

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Uma vez estabelecido o plano, a classificação é muito mais rápida, tanto mais que a dificuldade essencial já vem indicada na página explicativa do actual ficheiro. Não contamos restituir aos alunos desprovidos de inteli­ gência ou de sentido matemático uma aptidão que a natureza lhes recusa. Não esquecemos que a educação se limita a desenvolver ao máximo as tendências naturais. Mas a clas­ sificação dá ao ficheiro a possibilidade de nos apresentar o trabalho que desejamos na ocasião propicia, vantagem imensa, que está na base do êxito de todas as nossas técnicas. E creio que já disse o bastante.» É a seguinte a opinião de F. Lagier-Bruno (Altos-Alpes) : «Não negando embora as vantagens deste ficheiro do ponto de vista, digamos assim, mecânico, se ele familiariza o aluno com o estudo dos números das diversas operações, também é verdade que a operação de aritmética deve estar intimamente associada aos centros de interesse, o que nos levou a verificar que, para mantermos a atenção dos nossos alunos e a actividade nas nossas classes, podíamos resta­ belecer dois tipos de problemas: 1.°) Problemas intimamente associados aos centros de interesse; 2. °) Problemas complementares fornecidos pelo ficheiro. Logo à primeira vista surge uma dificuldade. Na escola activa, onde o ensino está à mercê da inspiração da criança e do interesse motivado por uma observação ou uma reflexão inesperada, o professor ver-se-á sempre atrapalhado para arranjar enunciados de problemas adequados à actividade da classe naquele próprio momento. Por outro lado, não nos devemos esquecer de que o ensino da aritmética deve ser bem coordenado, de que os problemas devem ser escalo­ nados e, finalmente, de que existem certos problemas-tipo que os alunos não devem desconhecer. Como proceder para conservar toda a actividade da nossa classe, para ministrar, tanto no que respeita à aritmética como às outras disciplinas, um ensino ao mesmo tempo vivo e racional? É extremamente difícil formular uma regra geral; pode­ mos adiantar que o professor deve manter-se em íntimo contacto com os seus alunos e com iodos aqueles que tràba-

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lham a seu lado. Deverá perguntar ao camponês o preço do seu trigo, das suas batatas, a extensão de campo que ceifa por dia; ao pedreiro, o valor dos materiais que utiliza, em que proporções mistura a cal e a areia para fazer a arga­ massa, etc... Mas são principalmente os alunos que nos poderão fornecer preciosas informações; se os acostumamos a interrogar os pais e as pessoas que os rodeiam, acharão nisso um meio de satisfazer a sua curiosidade e terão uma oportunidade de realizar um bom trabalho fora da escola...» Mas a questão assume maiores proporções; ao longo do ano, uma dezena de camaradas enviam os seus depoimentos. Freinet envia-lhes uma circular policopiada, que será forçado a publicar logo em Outubro no boletim, tantos são os cama­ radas que se apaixonam pelo Ficheiro de Aritmética. De certo modo, esta circular é uma «obra colectiva». O prólogo, que passamos a transcrever, define bem o espírito de estreita colaboração que reina na CEL: «A falta de espaço no Boletim não permitiu que impul­ sionássemos o estudo do ficheiro tal como gostaríamos. Contudo, a questão apaixonou um grande número de ca­ maradas. Eu próprio reflecti nisso durante o ano, auxiliado pelas cartas ou pelos artigos de diversos camaradas. Vou expor-lhes aquilo que hoje me parece ser a técnica possível de um ensino da aritmética adaptado às nossas necessidades; analisaremos em seguida os meios de o pormos em prática e o trabalho que podemos iniciar imediatamente. Recordo que a técnica assim definida é já uma obra colectiva, visto que este projecto foi traçado depois de di­ versas comunicações de camaradas, publicadas ou não. Como sempre, peço que não vejam nisto uma manifestação de amor-próprio de autor. É antes um relatório provisório, que peço insistentemente que estudem e critiquem, a fim de todos juntos podermos lançar o mais cedo possível as sólidas bases da nova técnica.» Para pouparmos tempo, resumamos os dados essenciais expressos por Freinet: l.° Na base, a investigação, efectuada pelas próprias crianças, dos vários problemas que a vida lhes põe. «Esta preparação dos problemas vividos pode necessitar de averiguações e de investigações fora da escola, que as

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crianças irão realizar livremente antes de elaborarem os dados definitivos do problema.» Vem em seguida a «preparação técnica» para o problema, que também se deve adaptar aos interesses do momento e satisfazer, simultaneamente, certas necessidades pedagógicas (problemas, dificuldades de matemática, etc...) Esta prepa­ ração é mais delicada. Devemos torná-la fácil e prática através de um material adequado. Proponho —e, repito, faço-o depois de ter examinado os diversos documentos que recebi (ver nomeadamente artigos de R. Lallemand e de Lagier-Bruno) — que se prepare a edição de fichas especiais, contendo aquilo a que chamaremos problemas-tipo. Estas fichas, a que Lagier-Bruno chama «fichas-matriz», consti­ tuirão ao mesmo tempo fichas de referência: «Se, a meio do trabalho posterior, tivermos a impressão de que uma dada noção não é muito familiar ao aluno ou ao grupo de alunos, bastar-nos-á fornecer-lhes os números de referência, em que poderão encontrar as informações pre­ cisas respeitantes à solução desses problemas, tal como os números dos respectivos problemas, que haverá todo o inte­ resse em repetir. Deste modo, o ficheiro é simultaneamente um ficheiro de estudo e de documentação, servindo para os alunos ela­ borarem problemas vivos, directamente relacionados com o centro de interesse e com a revisão de certas noções mal assimiladas... espécie de ponte entre o interesse inicial e as necessidades escolares. O trabalho normal, que acabamos de definir, tem como principal objectivo fornecer às crianças o sentido matemático, levá-las a compreender as bases sociais da aritmética escolar, ensiná-las a distinguir, por trás dos dados mais abstractos e convencionais dos problemas vulgares, a viva realidade. Obtemos assim uma normalização do ensino da aritmética, tal como fizemos para o ensino da língua.» Mas há uma espécie de terceiro aspecto do problema: «Os programas e os exames obrigam-nos a ensinar aos nossos alunos noções que não podem ser incluídas na sua vida de um modo normal e nas quais temos, todavia, de pensar, na tentativa de neutralizar ao máximo as lamen-

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laveis consequências da irracional acumulação de conheci­ mentos oficial. Essa a razão pela qual acrescentaremos às nossas fichas-matriz de estudo e de documentação um ficheiro de exercí­ cios; sera constituído por problemas adaptados aos programas e aos exames, classificados de acordo com tipos que corres­ ponderão às nossas fichas-matriz, que já têm um modelo bastante imperfeito, diga-se de passagem, nas 200 fichas publicadas até agora. As nossas fichas-matriz serão feitas em formato de ficha: as perguntas e respostas virão nessa mesma ficha. As fichas de exercícios terão o formato de 10,5 X 13,5 e incluirão uma ficha-pergunta e uma ficha-resposta.» Depois de analisar os diversos aspectos do problema e de o resumir em directivas simples, acessíveis a qualquer um, Freinet conclui: «É evidente que não devemos ocultar a importância e as dificuldades desta tarefa, mas o nosso grupo tem de chegar a um resultado prático. Gostava bastante que escolhessem desde já um trabalho que se enquadrasse neste plano de conjunto: que dissessem por exemplo: posso procurar pro­ blemas-tipo para o CP; ou então apresentar problemas de dificuldade gradual para esse mesmo curso, etc... Nomearemos em seguida um camarada para assegurar o bom funcionamento de cada secção e encetaremos a publi­ cação logo que nos for possível.» Temos insistido em fornecer longos excertos dos artigos que constituem as contribuições individuais para um trabalho que é comum, para expressar claramente a estreita colabora­ ção de cada um na obra de todos e até que ponto a crítica permanente é condição de aperfeiçoamento e de progresso. O utensílio, forjado pela intuição e pela lógica dos camara­ das, modificado, submetido à experiência, tem todas as pos­ sibilidades de satisfazer finalmente todos os requisitos. Assim se conciliam a teoria e a prática numa síntese eficiente. Um exemplo ainda mais eloquente do trabalho colectivo é o que nos dá a «construção», se assim lhe podemos chamar, de um outro utensílio cooperativo: o «Dicionário». A ideia, lançada por Poujet, agarrada por Freinet, estimulada por Lallemand, vai alastrando pouco a pouco e dá azo a uma

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discussão no Congresso de Bordeaux. Nas semanas seguintes, Freinet vai estabelecer, sem partidarismo, as vantagens que um dicionário, especialmente concebido para a criança, pode trazer à classe. Começa por lançar um inquérito aos camaradas pedindo-lhes que especifiquem: qual o emprego que dão ao dicionário na sua classe, defeitos e qualidades desse instrumento indispensável e quais as vantagens que os professores encontram num verdadeiro dicionário para crian­ ças. As respostas são extremamente interessantes, sendo umas favoráveis ao novo dicionário, outras contrárias, mas contendo todas elas uma visão pormenorizada da classe e demonstrando o valor incalculável da organização do tra­ balho escolar em todas as escolas públicas, que constituem autênticas escolas experimentais em que se elabora a peda­ gogia popular. Não podemos demorar-nos neste assunto, que será reto­ mado várias vezes ao longo dos próximos anos e que é mais um exemplo. Só queremos fazer uma breve alusão à arrancada rápida da Biblioteca de Trabalho, outro instru­ mento indispensável na aula sem manuais. O primeiro número, Diligences et malles-postes, realizado por Carlier, sai em Novembro de 1931. Este êxito entusiasma os cama­ radas, que se lançam imediatamente à procura dos assuntos a tratar. Ruch, Domfessel (Bas-Rhin), merece uma refe­ rência especial pelo vasto trabalho que desenvolveu de procura de brochuras internacionais susceptíveis de utilização nas nossas classes; estuda especialmente os documentos ale­ mães, visito que é responsável pelo grupo de estudo do movimento pedagógico alemão. O seu trabalho é profundo, metódico, e engloba todos os aspectos do conhecimento e da cultura. Em face da seriedade de investigações deste género, que, infelizmente, não chegaram a concretizar-se por falta de dinheiro, só temos que lamentar a pobreza que aniquilou sempre os mais entusiasmantes dos nossos projectos. Ainda para a edição das BT, Gauthier conduz uma prospecção no domínio das ciências naturais (flora, fauna, rochas) e estabelece uma comprida lista de temas que pode considerar-se como um reservatório quase inesgotável, no qual ainda hoje se podem obter elementos. Ainda neste ano de 1931-1932, há que saudar o emprego

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de um dos melhores utensílios da CEL: o «Camescasse». É o próprio Camescasse que apresenta a sua realização em L'Imprimerie à l'École de Outubro de 1931. Através do seu Iniciador Matemático, ele pretendeu concretizar a Aritmética que vinha exposta, tão objectivamente, em L’Aritméthique de Grand-Papa, de Jean Macé, e ainda concretizar a tábua de Pitágoras e com ela todas as matemáticas elementares. Numa série de artigos, Freinet apresenta este material, ex­ plica o modo de o utilizar, os vários usos que pode ter e a sua concepção genial. Será mais um complemento a acres­ centar às virtudes do «Ficheiro de Aritmética», assim como um jogo didáctico, um jogo de construções, para ser entregue tanto aos alunos novos como aos mais velhos. Detenhamo-nos a analisar a «técnica pedagógica». Pichot (E.-et-L.) conta aos camaradas como decorre um dia na sua classe. Vamos mencionar uma passagem sobre o texto livre: «Chega finalmente o momento de escolhermos o texto: cada grupo tem o seu dia. Os textos são votados, embora o professor tenha preferência pelas poesias, quando estas se podem passar, e pelos textos transmitidos oralmente ou que contenham características históricas (recordações dos avós). Uma vez por mês relatam-se as notícias mais importantes. Se se apercebe de um ostracismo no boicote aos bons textos de um camarada impopular, o professor intervém. Final­ mente, por meio das redacções colectivas, o professor con­ segue que eles se encarreguem do trabalho de ordenação das ideias e de apuramento do estilo...» Rousson (Gard) deu ao trabalho de equipa um novo aspecto, criando o «trabalho em elos»: «Dividi a minha classe em três elos. Cada elo elegia o seu chefe (revogável). Cada elo tem uma tarefa de limpeza, uma tarefa de disci­ plina e uma tarefa cultural. Encaro esta última tarefa, do seguinte modo: a) Os alunos não têm nenhum livro de ciências; b) Amanhã, sábado, vou falar-lhes de alavancas e de balanças. c) Preparo a minha aula;

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d) O elo número 1 (oito alunos) prepara também a sua; O chefe de elo distribui a cada um dos outros membros da equipa um livro de ciências, nunca dois livros do mesmo autor, e os elementos de estudo que temos sobre balanças e alavancas. Amanhã a aula processar-se-á deste modo: os alunos da equipa número 1 terão feito no quadro os desenhos relacio­ nados com a matéria da lição e reunido o material necessário para a demonstração. Debaixo da minha orientação, expli­ carão aos outros aquilo que sabem; eu completarei ou corri­ girei conforme os casos. Assim, todas as crianças ficarão a conhecer o essencial das explicações dos vários livros. A equipa número 3 fica encarregada de 1er 8 livros de história diferentes sobre Joana d'Arc. Cada um dos alunos retransmitirá o que mais lhe agradou na leitura e eu tirarei conclusões e darei a aula com base nesses dados. A equipa número 2 ocupa-se da Geografia. Na próxima semana, a equipa número 1 ficará com a História; a equipa número 2 com as Ciências; a equipa número 3 com a Geografia, e assim por diante.» No número de Novembro, publica-se uma série de tra­ balhos bastante sérios de Ruch sobre a aprendizagem da escrita. Daí nasce uma troca de impressões bastante interes­ santes a respeito da letra cursiva e de imprensa, em que participam todas as competências reconhecidas nesta questão da caligrafia, que é ainda das mais actuais e das mais im­ portantes: Dottrens, Zimiermann, Legrün, Soennecken, Me­ nina Poignon, Kuhl. A aprendizagem da leitura, tal como a da escrita, constitui uma das principais preocupações dos nossos professores, porque a prática está constantemente a desvendar novos aspectos, que alteram, a própria estrutura de uma disciplina que já de si está sujeita a ser revista. Criti­ cando o livro de Dottrens e de E. Margairaz, L’apprentissage de la lecture par la méthode globale, Freinet conclui: «Só a imprensa pode trazer a solução ideal sem subor­ dinar a expressão infantil a dificuldades exteriores muitas vezes insuperáveis, ris educadoras adquirirão uma técnica mais elástica; aproximar-se-ão mais ainda da criança e as derradeiras sobrevivências escolásticas de que ainda se notam

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alguns indícios no trabalho da Menina Margairaz desapare­ cerão por completo. Já uma vez o dissemos: na nossa opinião, no centro das classes superiores da escola maternal e do jardim infantil deve estar a redacção e a composição comum diária de um texto que apaixone as crianças mesmo que não saibam 1er. É esse facto que constitui o elemento essencial em torno do qual se poderão organizar as diversas actividades da classe; o traço de união entre as crianças e a vida, entre as crianças e o educador. Estamos convencidos de que este trabalho cen­ tral bastaria, só por si, como exercício de francês que é, para promover a aprendizagem normal —não dizemos rápida — da leitura... É, portanto, por esta mesma razão de vida que não sepa­ ramos tão intransigentemente, como a Menina Margairaz, a fonética da leitura. Nas nossas classes, o texto é pensado normalmente, depois expresso, escrito, composto e ilustrado. Este é o curso normal, o que não nos impede de condenar radicalmente toda e qualquer lição de leitura. É óbvio que não preconizamos a Imprensa Escolar unicamente como pro­ cesso técnico de impressão de textos úteis à leitura global. O que nós pretendemos é que a vida das crianças passe real­ mente para o centro da aula através da Imprensa Escolar e que se abandonem definitivamente todos os exercícios escolásticos novos ou antigos, que serão proveitosamente substi­ tuídos pela actividade alegre e livre.» Um dos aspectos mais significativos da personalidade infantil é o desenho, e nos mais novos situa-se ao mesmo nível que a escrita, embora se revista de uma espontaneidade ainda maior. Durante este ano de 1931-1932, eu continuo uma série de artigos sobre a evolução do desenho infantil, que é um teste global sobre a personalidade infantil, aos quais Ruch acrescenta o seu ponto de vista mais clássico, críticas a livros sobre o desenho infantil, de modo a tratar esta impor­ tantíssima questão, que envolve um dos mais atraentes aspectos da actividade espontânea da criança, nos seus as­ pectos mais essenciais. Dirige-os aos camaradas para que compreendam os grafismos infantis e enveredem por este caminho que nos desvendará incalculáveis riquezas.

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Nesta mesma ordem de ideias referiremos os notáveis artigos de L. Darche (Isère), nos quais tal como numa fita

de cinema desfilam todas as características do pensamento infantil e que constituem de facto um curso vivo e espon­ tâneo sobre a psicologia humana e sensível. Eis a título de exemplo um aspecto da liberdade da criança tal como Lina Darche o vê: «Exige-se à criança um esforço cujo alcance ela não pode compreender; um esforço que para ela não só não faz sentido como é ainda um insulto perpétuo à natureza e à vida... "Aprender a esforçar-se" é exigir da criança que ela lute - pobre dela!— contra o pulsar da vida que lhe foi trans­ mitida; é retirar-lhe tudo o que o sangue reclama; é ani­ quilar os seus dons mais maravilhosos à força da inanição; é abordar a vontade para continuar a mandar; é favorecer a dissimulação... Em suma, "Aprender a esforçar-se" é o mesmo que pre­ tender preparar para a vida sem a vida. Ora os resultados são os que se vêem. A escola tradicional vai nitidamente contra o seu próprio objectivo, só produz gerações propensas ao menor esforço. Preparar para a vida? Com certeza! Mas pela vida, pela liberdade. Porventura um aprendiz se exercita na sua profissão sem tocar nas suas ferramentas? Ora a criança ainda é melhor que o aprendiz, porque é mais engenhosa que o seu pro­ fessor. É preciso contemplar uma criança agindo em plena liberdade numa classe para se poder avaliar até que ponto ela é mal conhecida e para descobrir tudo o que os métodos tradicionais possuem de bárbaro. Acaso a incessante necessidade de actividade que ela manifesta não constitui a fonte das energias que se hão-de fortalecer no contacto com a vida? E a avidez de construir, de fazer, de criar, de se aplicar em algo de útil, não é já o despertar do esforço reflectido, que é o objectivo da edu­ cação? Falávamos de liberdade. A liberdade!... Na escola como na vida, quando se tem os braços amarrados pela indigência, ela não passa de algo bastante relativo, de uma palavra

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sem sentido. A liberdade, dizemos nós, num meio organi­ zado segundo as necessidades de todos e de cada um, eis o segredo da educação. A criança não precisa de aprender seja o que for; temos nós a aprender mais com ela do que ela connosco. Nos vários estádios da sua evolução, o seu instinto dita-lhe aquilo que ela precisa de conhecer, no meio que a rodeia, e forja uma técnica de trabalho à sua medida. Não se dá com os pro­ cessos do adulto, que a ultrapassam. Basta que nos tornemos espectadores afáveis, discretos, vigilantes, prontos a prover às necessidades do momento.» Através desta liberdade profunda da criança, Lina Darche obtém na sua classe infantil êxitos sucessivos; todos os nossos antigos camaradas hão-de recordar-se da exposição que ela realizou no nosso Congresso da Educação Nova e da admiração que suscitaram as suas obras-primas — que o eram — que os seus garotos faziam com toda a naturali­ dade, como se estivessem a brincar. Eis o segredo dessas obras-primas: «Uma das melhores surpresas que eu tive foi a de ver que os meus alunos não davam importância às minhas sugestões e exigiam abertamente uma liberdade real. A sua liberdade! Foram eles próprios que a conquistaram, os meus miúdos, é magnífico! Longe de me sentir humi­ lhada, sinto-me profundamente satisfeita, porque não é de um dia para o outro que uma pessoa se liberta das marcas tradicionais. Foi dito e redito, de diversas maneiras, que é preciso saber esperar; ainda não é tudo, eu acrescento: é preciso lutar contra a necessidade de obter resultados imediatos e tangíveis, que só traduz uma tendência egoísta. Antes de encetar o novo caminho, o educador deve re­ nunciar à sua velha mentalidade, deve refazer a sua própria educação e encarar a criança por um prisma diferente. Não é de modo nenhum impossível. Poderá contar com a ajuda da própria criança, porque agora a sua vida terá de se regular pelas próprias reacções da criança. Enfim, passada esta fase de apalpadelas, a tarefa torna-se muito mais simples, visto que encetamos uma nova via, que nos evita o permanente antagonismo, latente ou declarado,

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que existe nos métodos tradicionais entre o educador e a criança. No novo caminho, essa luta é substituída por um alegre entusiasmo repartido pela criança e pelo professor. Esperar... Necessidade que se evidenciou particularmente durante as experiências de desenho e de pintura que realizei. Esperar... e acreditar na criança... Para reforçar esta minha fé na criança basta-me dar uma vista de olhos pela primeiras tentativas dos meus alunos e de seguir os trabalhos que efectuaram ao longo dos meses. Ainda não há muito tempo, voltei a fazer uma dessas peregrinações para me impregnar de uma sábia paciência, freio da exigência excessiva. Em cada folha anotamos o nome da criança e a data. Isso permite uma classificação interessantíssima por razões várias. Quando as experiências são com o primeiro ano, temos por vezes períodos de desencorajamento. Mas passam de­ pressa. Pode dar-se uma paragem brusca nos progressos, mesmo um retrocesso. Tem-se então a impressão de que a criança já deu tudo o que tinha a dar. Mas logo surge uma nova explosão, um novo passo em frente, que nos deixam ficar estupefactos e maravilhados. A paragem correspondia, muito simplesmente, a um período de incubação. Daí a necessidade de esperar para se respeitar a evolução latente das faculdades criadoras da criança. O desenho e a pintura estabelecem as condições de a criança realizar a síntese deste trabalho latente; são o canal aonde vêm desaguar caminhos obscuros; são o mar calmo e regular, embora despontem à sua superfície pequenos re­ moinhos, alimentados por fontes ainda desconhecidas, que brotam das profundezas e que procuram um caminho, o seu, por entre os obstáculos do caos. É o curso natural de uma vida em gestação, a vida do pensamento, cuja própria expressão é a condição do desenvolvimento e do enriqueci­ mento, vida que busca o seu equilíbrio e o seu ritmo e que se vai construindo lentamente, mais ou menos harmoniosa­ mente, consoante o meio em que germina, em que cresce...

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Vêm-me à memória duas fórmulas de Claparède. A sua concisão traz uma maior clareza aos meus raciocínios: O exercício de uma função é a condição do seu desen­ volvimento. O exercício de uma função é a condição da eclosão de outras funções decorrentes dessa. Assim, pois, enquanto se travar a necessidade de expres­ são da criança e enquanto não se satisfazer a sua paixão pelo desenho e pela pintura, não se terá feito educação, no sentido mais profundo do termo.» Passemos da expressão gráfica à literatura, ou melhor, ao eufemismo que é o texto livre. No âmbito desse mesmo texto livre, alonguemo-nos um pouco sobre a gramática, alvo de uma permanente preocupação por parte do professor. É Freinet quem diz que se escreve mesmo sem conhecer a sintaxe, do mesmo modo que se fala sem conhecer as regras da eloquência. Se se pode escrever sem conhecer a sintaxe, porquê atribuir a esta última o papel mais importante? Tro­ quemos os termos: atribuamos o lugar de honra, amplo e exigente, ao texto livre; e retenhamos, da gramática, apenas o mínimo indispensável para não sermos considerados uns analfabetos: com base nesta consideração lógica, baseada na prática da escrita, Freinet realiza a Gramática de quatro páginas: «Isto não é nenhuma aposta; não nos comprometemos a condensar em quatro páginas — até podia ser em três! — o conteúdo de todos os compêndios de gramática. A nossa iniciativa tem um alcance pedagógico diverso, posto que visa uma simplificação autêntica do nosso ensino prático da língua através das novas técnicas que introduzimos nas classes. Pessoalmente, não sou um gramático, longe disso! Con­ fesso até que quando, terminada a guerra, ainda convales­ cente, eu peguei numa classe preparatória, verifiquei com uma certa surpresa que já me tinha esquecido de quase todas as regras de gramática. Em matéria de tempos, já mal disiinguia meia dúzia de formas simples: o presente do indicativo, o imperfeito, o futuro, o condicional. Já não me lembrava se o pretérito perfeito simples devia ou não chamar-se pretérito definido — ainda hoje, ao escrever estas

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linhas, faço essa pergunta— e só muito a custo me lem­ brava da série: bijou, caillou, chou*... Não falando já da multidão de pronomes, adjectivos, advérbios, preposições, etc..., que eu sabia empregar, mas não distinguir com precisão. E, contudo, acabava de escrever um livrinho a que não faltava emoção e sabia utilizar-me vivamente da caneta para defender os meus direitos — por­ que nessa altura ainda nós julgávamos que tínhamos direitos. Desde então, os nossos chefes, hierárquicos ou não, aplicamse diariamente a demonstrar-nos que se alterou completa­ mente o sentido desse termo com a actual evolução... demo­ crática. Não me inquietei. Sabia escrever razoavelmente: aperce­ bia-me de que isso era o essencial, de que tudo o mais, todas essas chinesices gramaticais eram mais umas invenções da escolástica do que outra coisa e que se eu, que, até aos meus dezoito anos andara com a cabeça atafulhada de compêndios e de professores, podia esquecer sem grandes prejuízos nove décimos da gramática que aprendera, era porque esta, tal como ma tinham ensinado, não era nem vital nem indispensável. E mais, que o caminho que se tinha seguido até então não correspondia às necessidades dos alunos que na vida não precisam da teminologia para nada. Desde então nunca me esforcei sequer por reaprender a gramática dos compêndios. E apresso-me a condensar aqui, antes que seja demasiado tarde, aquilo que me parece suficiente e proveitoso para a nossa escola primária. Porque é um facto que a deformação profissional nos marca perigo­ samente: à força de tanto revermos, todos os anos, os mesmos princípios, as mesmas regras, acabaremos por inte­ grá-los na nossa função e na nossa vida, a ponto de já não sermos capazes de compreender que esses mesmos que acham que a sua profissão não é a de repisar estes elementos possam com tanta desenvoltura desprezar totalmente o seu contestável valor.

* Pertencem à série de substantivos franceses que fazem o plural acrescentando um s. — (N. do T.)

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Estou com todos estes cuidados para prevenir os cama­ radas — assim como os especialistas que nos hão-de ler — de que não tenho pretensões de erudito em gramática. Posso cometer esquecimentos que precisem de ser corrigidos e rectificarei com prazer os meus erros. Até me regozijaria por estas linhas suscitarem de novo uma proveitosa colabo­ ração entre os nossos camaradas.» É este o espírito da grande simplificação que Freinet realizou. É claro que este «simplisme» não é bem recebido pelos gramáticos, mas A. Fontaine não escreveu que: «O melhor gramático não é o que sabe muitas regras, mas o que se orienta melhor no meio do labirinto do em­ prego das formas, o que melhor compreende e explica as suas relações com o fluxo e não com o objecto do pensamento?» É neste sentido que é preciso reforçar. O gramático do ensino primário, na pessoa de Pascal, de Pourcieux (Var), é menos transigente porque a sua erudição lhe dá o direito de controlar as arrojadas críticas do iconoclasta: «De Outubro a Fevereiro, em cinco artigos, Freinet des­ creveu-nos aqui, para nosso prazer e proveito, a sua expe­ riência pessoal daquilo a que ele chama "a clarificação prática do estudo da gramática na escola primária”. Trabalho louvável, muito propício a subtrair a tempo os jovens, da "canga gramatical” que os editores de manuais não afrou­ xam. Mas eu gostaria que esses interessantes artigos tivessem uma conclusão, que Freinet tivesse enfrentado a prova tremenda de redigir, não mais comentários para uso dos professores, mas uma "Gramática francesa de quatro pági­ nas” ad usum delphini, que constituísse um viático neces­ sário e suficiente para o frequentador da escola primária. Com quatro páginas? Realmente! Que rica aposta! Per­ mitam-me supor que "quatro” significa pelo menos vinte ou vinte e cinco, um número indeterminado, no sentido em que o empregava La Fontaine: "A nossa lebre só tinha de dar quatro passos/’ ou Sévigné: "Escrevo quatro palavras a M.me de la Fayette..." "Por quatro dias de vida..." ou Corneille:

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“A quatro passos daqui to hei-de explicar!” Espero que Freinet não me atire este último verso como resposta. Se quisesse responder ao meu desafio e escrever em quatro páginas — literalmente — as observações grama­ ticais que uma criança é levada a fazer para escrever a sua língua e compreender o seu mecanismo sumário, regozijar-me-ia, porque assim passaríamos a ter um texto de base para uma discussão bem precisa. Esse texto de uma gramática infantil, de uma gramática mínima, quer fosse concebido em forma de fichas de his­ tória, à maneira de Gauthier (do Loiret), ou em forma de uma brochura de 24 páginas, como as da Biblioteca de Trabalho há pouco inaugurada, parece-me de uma utilidade prática difícil de contestar... Faz-se gramática como se faria um herbário; Freinet manifesta-o claramente no seu estudo. Mas, só por ódio ao compêndio, não vejo razão para rebaixar quem quisesse recorrer ao reduzido memento, no qual estariam apontadas todas as aquisições feitas. "A vida ensina, o livro deter­ mina.” Mas fazer um herbário passeando através dos textos (os melhores são os textos das redacções infantis) não chega para se obter rapidamente uma boa ortografia. É preciso fazer uma análise, ou seja um exame das peças, tão poucas, desses mecanismos, que são as proposições e as frases. Aprender simplesmente a analisar as frases vulgares, a dis­ tinguir o modo como estão construídas, seria uma tarefa supérflua caso se se tratasse apenas da aprendizagem da língua falada; mas a língua escrita, que não suporta incorrecções! E a ortografia!... Freinet cita complacentemente uma fórmula do ilustre Fernand Brunot: “Não ensinar gramática nem para a análise nem pela análise” Não para a análise, diz ele? De acordo: mas passa a ser para a ortografia. Não pela análise, diz ele? Nem as 954 páginas da sua conhecida obra O Pensamento e a Linguagem, que gosto de reler de vez em quando, me convenceríam de tal coisa. O Sr. Brunot bem se esforça, servindo-se amavelmente da sua erudição, para demonstrar, a cada passo, que a língua francesa é um fenômeno com­ plexo. Mas se é impossível enumerar os matizes do nosso

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pensamento, não é com os nossos conhecimentos de gramá­ tica, mas sim com o gesto de redigir, que os concretizamos. A alma da gramática é uma lógica rudimentar; o seu corpo, um número limitado de elementos. Ainda que esse número de elementos anatômicos não exceda sequer os 20, serão precisas mais de quatro páginas para o dizer, num Memento infantil.» Lallemand também decide participar. Como de costume, tem muito que dizer porque também «sabe» bastante. «Freinet publicou a sua Gramática de quatro páginas. Hoje venho inscrever-me para bater esse "record", que queria reduzir a... zero... Mas e a ortografia, dirão? O ideal seria simplificá-la. Entretanto, temos de distinguir entre a gramática, técnica da linguagem, cujas regras estão condensadas no exercício de análise, e a ortografia, cuja dificuldade consiste em saber colocar no local certo, e automaticamente, uma quantidade de letras mudas. Cada uma tem as suas características par­ ticulares, as quais, pelo facto de existirem pontos de contacto, não devem ser esquecidas.» Lallemand aborda resolutamente o problema prático: o que é que se exige ao aluno no CEP? Ditado (ortografia de emprego e de concordância), perguntas (significado das palavras, compreensão do texto, grupos de palavras), aná­ lise (definição e relações dos elementos da frase e das pala­ vras, etc...), conjugação (concordância com o sujeito, ter­ minações) ; com o seu espírito meticuloso, Lallemand entra nos pormenores, que virão a concretizar-se em parte no «Ficheiro de Gramática», pelo qual ele se irá responsabilizar. Eis a conclusão a que chega: «As nossas quatro páginas sô conterão a análise e a ortografia da concordância. Isto é apenas um novo plano e não um método, que teria de ultrapassar os limites que nos impusemos. Não seguimos, por conseguinte, uma ordem pedagógica, porque estamos mesmo convencidos de que a gramática pode ser estudada no próprio momento em que se transmitem certas observações, vividas. As indicações meto­ dológicas eram inevitáveis. Finalmente, depois da gramática e da ortografia, veremos o que se pode alcançar com um ficheiro de gramática, con­

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jugação, vocabulário e ortografia, que permita ao mesmo tempo um trabalho gradual e individual e que contenha referências breves e claras de que nos poderemos servir quando se apresenta espontaneamente um “centro de inte­ resse gramatical” Assim nasce o «Ficheiro de Gramática». (De facto, os que hoje lêem a BENP, A gramática de quatro páginas, encontram a resposta ao desafio de Pascal.) Mas os mesmos utensílios de trabalho, se bem que nas­ cidos das mesmas necessidades, não são todos utilizados da mesma maneira. Cada professor tem o direito de decidir do seu emprego, que se regulará pelas necessidades da res­ pectiva classe, e de os manejar na ocasião própria, como achar mais proveitoso. O problema põe-se em termos de adaptação às realidades da escola, do meio e também à mentalidade do professor, que ainda não é muito elástica. Esta prudente introdução dos novos instrumentos de trabalho nas escolas públicas e o respectivo rendimento serão muito facilitadas por esse laço vivo, ligando as escolas entre si, que são as permutas interescolares. Nunca teremos palavras bastantes para dizer como essa técnica pedagógica, que con­ siste na comunhão das riquezas espirituais das escolas, fun­ ciona com um fermento activo de iniciativa e de compreen­ são. Vimos como o ensino da Geografia (Granier) e da História (Gauthier) se estendeu, se revigorou, devido às per­ mutas de elementos de estudo, de curiosidade, que uniam as classes de correspondentes. Hoje, as permutas que mais interesse suscitam são as que dizem respeito a fotografias e a filmes. No Congresso de Limoges, Bourguignon e J. Roger tomam a iniciativa de organizar uma equipa de «cineastas» regionais, o que faz logo com que as câmaras Pathé-Baby comecem a circular pelas escolas. Há êxitos assegurados: fazemos documentários em Saint-Paul: A Rosa de Maio e a Flor de Laranjeira, Saint-Paul, a classe, o passeio escolar. Nos Altos-Alpes fazem-se filmes sobre os desportos de Inverno, esqui, corridas de trenó, patinagem. E o mesmo se faz em todos os departamentos. Contudo, por haver pouco dinheiro, as inovações têm de ser prudentes. Como sempre, a pobreza é que traça os limites do êxito. A responsabilidade das permutas interescolares pertence

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aos camaradas Faure (Isère). Depois do Congresso de Limo­ ges redigem uma exposição a respeito disso, onde analisam as vantagens da correspondência interescolar durante o ano anterior. Vamos citar uma passagem dessa exposição, em que se reflectem os aspectos sociais do intercâmbio e que prova que a escola está intimamente relacionada com as condições do meio e da classe: «Este ano vimos como a crise se introduziu na escola e abrangeu toda a vida da criança. Os factos vividos, vivos, palpáveis, falam de si... Ao lado dos textos que se referem à cessação do trabalho, às misérias dos operários e campo­ neses, houve escolas que, por estarem em países mais favo­ recidos, organizaram um apoio aos camaradas cujos pais estivessem nessas condições. Em suma, parece-nos que este ano as permutas nacionais suscitaram nas nossas classes uma vivência ainda mais profunda, mais ampla e mais humana. Mais um benefício a acrescentar aos muitos que a Imprensa Escolar nos tem trazido.» Por sua vez, é Hulin quem dá uma prova desta entreajuda instrutiva que une as classes correspondentes: «"Viver através da imprensa" Realmente é graças a ela que os nossos alunos vivem a sua vida e a expressam. Realmente é graças a ela que eles veem os outros, os seus jovens correspondentes, viver e por vezes sofrer. Vivem as suas alegrias e partilham-na entre si. Temos várias provas recentes e comoventes: um dos meus alunos, cuja família está a ser particularmente atingida pela crise (inactividade, falta de aquecimento, alimentação insufi­ ciente, doença...), exprimiu a miséria da sua casa num texto patético, que La Gerbe publicou. Pouco tempo depois recebíamos de vários sítios ajudas em dinheiro, comida e roupas, que foram distribuídas para grande alegria dos pequenitos e dos pais. Todas estas remessas eram precedidas ou seguidas de cartas muitas vezes ingénuas mas sempre comoventes. Os profesores acrescentavam sempre algumas palavras suas. Para nós foi um estímulo. Conseguimos organizar um lanche no qual distribuímos uma fatia de pão com um bocado de chocolate, metade de uma maçã ou manteiga (um luxo para estes garotos).

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Como exemplo dos comoventes movimentos de solida­ riedade que esta descrição da miséria provocou, temos a narrativa ão pequenino montanhês que queria enviar-nos carvão de madeira — o pai dele é carvoeiro — e a da da garotinha que, farta de ser pobre e de não ter nada para dar, nos mandou o seu lanche: uma maçã, que foi colocada dentro de uma encomenda com roupas.» A «correspondência internacional» em Esperanto alarga os horizontes das escolas que a praticam e mesmo de toda a CEL, porque é mantida também pelos professores, que se sentem satisfeitos por poderem assim entrar em con­ tacto com os seus camaradas estrangeiros. É ela que permite que se estabeleça um intercâmbio internacional permanente entre a educação francesa e estrangeira; deste modo, obtemos um panorama da pedagogia internacional, assim como par­ ticularidades sobre as escolas que participam no intercâmbio. Impossível descrever aqui o imenso trabalho que Boubou e sobretudo Bourguignon desenvolveram neste domínio; ao mesmo tempo que ministram o seu curso de Espéranto, divulgam no estrangeiro o espírito da CEE e levam a CEL a beneficiar das iniciativas da pedagogia estran­ geira. Todos os números da revista consagram quatro ou cinco páginas à importante questão da correspondência internacional e da obtenção de elementos de estudo relativos ao estrangeiro que dela poderá resultar. Boubou estuda de perto o espírito partidário das correspondências internacionais organizadas pela «Secçâo de Correspondência do Museu Pedagógico» e pela «Cruz Vermelha Francesa», que excluem da rede das correspondências internacionais a jovem Repú­ blica Soviética; juntamente com Bourguignon, lança um enorme questionário no intento de estabelecer uma sólida organização da correspondência internacional nas cinco lín­ guas mais correntes: Espéranto, Alemão, Inglês, Espanhol, Português (1). (1) Espéranto: 1. Bourguignon. 2. Barthélémy, em Antonaves (Altos-Alpes). 3. Lallemand, avenida de Lérins, n.º 11, Cannes (A.-M.). Boubou, rua Saint-Merceau, Orléans (Loiret). Alemão: Vovelle, director, Gallardon (E.-et-L.), 2. Ruch, Domfessel (Bas-Rhin). Inglês: Sr.ª Tenaille, Bénévent-l'Abbaye (Creuse). 2. Bou­ bou. Espanhol: Men. Saint-Martin, Lavardac (L.-et-G.). Portu­ guês: Sr.ª Audureau, Pellegrue (Gironde). 206

Para se poder avaliar o imenso êxito, do ponto de vista pedagógico e humano, da correspondência internacional orga­ nizada pelos nossos camaradas, tínhamos de escrever outro livro. Escrevia Bourguignon em fins do ano lectivo de 19311932: «Desde Outubro que 100 escolas, sem contar com os numerosos camaradas que nos enviaram a sua direcção, solicitaram a sua inscrição e se serviram quase regular­ mente dos nossos serviços de tradução, O esperanto conta cada vez com mais simpatias entre os nossos camaradas, predilecção essa que se traduz nos numerosos pedidos de estudo da língua. Trata-se de uma necessidade profunda e cada vez me convenço mais de que é preciso satisfazê-la, no âmbito da nossa actividade e recorrendo apenas aos nossos próprios meios. Se tivermos em conta que todos os pedidos vindos da URSS (56), da Alemanha (50), da Espanha (6), da Holanda (3), da Suécia (2), e da Estónia (2) foram plena­ mente satisfeitos, assim como 7 da Inglaterra, perfazemos um total mínimo de 135 escolas estrangeiras correspondendose com as nossas, ou seja, no seu conjunto, um intercâmbio garantido por 250 correspondências mútuas, mantidas com regularidade e pondo em contacto 2000 jovens impressores aqui do país com 3000 camaradas estrangeiros, E estes nú­ meros não podem considerar-se definitivos porque, repito, não possuímos dados dignos de crédito sobre o que se passa à margem do controle dos nossos serviços. Portanto, trata-se pelo menos de ter posto em contacto 6000 crianças apenas em dezoito meses de trabalho e isto numa altura em que só podemos contar connosco ou, o que vai dar quase no mesmo, num momento em que temos de lutar contra a hostilidade velada de certos centros nacionais, complacentemente escorados pela grande imprensa pedagó­ gica, sempre pronta a pôr-se à sua disposição. É-nos particularmente grato sublinhar aqui energica­ mente que fomos os únicos a organizar — e com bases sóli­ das— contactos e uma colaboração cada vez mais estreita com as escolas soviéticas, que até agora têm sido sistematica­ mente riscadas do mapa dos intercâmbios pedagógicos.»

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Realiza-se em Nice, no Congresso da Educação Nova, uma exposição da correspondência internacional, salientando a faceta intelectual e humana desse intercâmbio com o estran­ geiro. A documentação pedagógica que nos chega por inter­ médio do serviço Bourguignon-Boubou é realmente impres­ sionante: assim, estamos em dia com tudo o que é divulgado sobre a pedagogia mundial, na qual se reflectem as limitações e as iniciativas condicionadas pelo regime social. Havería todo o interesse em nos alongarmos sobre as experiências de Winnetka (EUA), de Iena (Alemanha), de Viena (Áustria) e sobre a vastíssima experiência russa, centrada toda ela em tomo da «Escola Politécnica», em as comparar­ mos, tal como faz Freinet, esporadicamente, com a peda­ gogia CEL. Infelizmente, temos de nos limitar e sacrificar muitos aspectos pedagógicos. Quando tivermos falado sobre a cooperação escolar, fo­ cada através de vários artigos de Freinet, teremos fornecido uma visão de conjunto da actividade da CEL durante esse ano lectivo. Escrevia Freinet no seu editorial de L’Im­ primerie à l'École: «A escola foi duramente atingida pela crise. Apresentam-nos este paliativo: a cooperativa escolar. Este mês publicamos precisamente um Excerto de La Gerbe bem característico: "A nossa cooperativa”, que mostra as esperanças ingênuas dos alunos de Saint-Marc-du-Cor (L.-et-C.), e que são um dos múltiplos aspectos da nova vida e da nova actividade suscitadas pela organização coope­ rativa— documento redigido espontaneamente, momentos da vida de uma classe que levarão os alunos e os professores a reflectir, embora talvez os não entusiasmem... Faz-se uma tal campanha à volta da cooperação escolar, a nível oficial ou semioficial, que houve quem lamentasse esses exageros; no entanto, a ideia de tão inédita, tão original, tem tantas vantagens do ponto de vista pedagógico, que é forçoso exami­ ná-la atentamente, lealmente, com base apenas na nossa condição de pedagogos proletários. Se, teoricamente, a cooperativa for considerada como um meio prático de as crianças se organizarem livremente e de gerirem os seus próprios interesses, até mesmo de melhorarem

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as suas condições de trabalho, não será ela inteiramente re­ comendável e não deveremos nós ter a obrigação de a saudar como sendo uma tentativa de realizar na prática a auto-organização dos estudantes? Por que razão é que, se a ideia partiu deles mesmos e é motivada por necessidades vitais, não haveriam eles de ir apanhar os velhos papéis, os cobres antigos, as plantas medicinais? Por que razão não haveriam eles de se encar­ regar de agrupar todas as simpatias em torno da escola, de confundir toda a actividade escolar com a vida da aldeia? Por que razão não haveriam eles de organizar até a sua pequena sociedade sobre bases financeiras, com membros honorários? Porque não haveriam de arranjar assinaturas para o seu jornal? Não é verdade que tudo isto é altamente moral e educativo, mesmo que vá forçar os notáveis do sítio a esconder a verdadeira avareza capitalista? Todavia, pomos imediatamente uma reserva, a principal: se fundam a vossa cooperativa com o objectivo de recolher o dinheiro que o Estado ou que a Administração do concelho se recusam a conceder-vos; se, de uma maneira de certo modo hábil, impõem à criança um trabalho de finanças que lhe répugna; se exigem que ela pague quotas, que realize serviços que ultrapassam as suas forças, trabalhos que não estejam relacionados com a sua vida escolar, deixam de praticar autentica cooperação escolar: limitam-se a organizar a exploração das "possibilidades financeiras da escola”, em detrimento da pedagogia proletária e à custa dos próprios trabalhadores.» E Freinet vai contar como, na sua classe, depositou nas mãos das crianças a gestão da comunidade escolar: mobi­ liário, imprensa, serviços postais, etc... assim com a organi­ zação activa da classe com uns estatutos de cooperativa escolar próprios. A experiência, lançada com lealdade e boa vontade pelas próprias crianças, foi um fracasso. E porquê? Porque causas exteriores à escola e derivadas do regime contribuíram para isso: a pobreza dos filhos dos rendeiros, o distanciamento das habitações, que impede as crianças de fazerem à noite o trabalho suplementar e aos pais de assistirem a reuniões escolares ou recreativas, etc. Só havia uma maneira: solicitando o auxílio dos ricos do sítio. Será

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isso cooperação escolar? «Preferi — diz Freinet — empregar a minha influência na criação de uma caixa escolar, que é um apelo claro directo, e que nos auxiliou.» Na escola de Saint-Paul há tarefas demasiado pesadas para a boa-vontade das crianças: varrer a sala, ir buscar água, limpar os WC. Como o trabalho é muito, as crianças não podem entregar-se-lhe com o mesmo arrebatamento com que encaram o espírito cooperativo que, a nível intelectual, reina na classe... «Onde não pode existir uma cooperativa escolar estatutariamente organizada, o professor primário tem o dever de colocar a economia e a actividade da classe nas mãos das crianças, de as orientar para uma colaboração comunitária que esteja de acordo com as novas técnicas de trabalho que nós preconizamos, primeira etapa — vital — da cooperativa escolar que um dia se espalhará por todas as escolas libertas pela própria libertação do proletariado.» Mais pessimista ainda é Philipson (Seine-et-Oise) : «... Há mais de vinte anos que dou aulas, e em diversos sítios, e nunca aluno algum teve a menor iniciativa de uma coisa desse gênero. E dizem-me vocês, colegas da im­ prensa, que foi a vossa miudagem que tomou a resolução de criar esse organismo? Pelo contrário, é a própria adminis­ tração que recomenda ardentemente essa nova panaceia, e uma referência destas já devia chegar para nos deixar de sobreaviso. Por outro lado, defendo obstinadamente que as nossas crianças não possuem dinheiro seu e que fazê-las entregar a menor quotização que seja equivale a apelar directamente para a carteira do respectivo papá, por conseguinte, subtrair o Estado a uma obrigação essencial. Neste momento em que a paragem do trabalho e as reduções de salárrios fazem estragos em todo o lado, não será vergonhoso irmos pedir uma contribuição, por pequena que seja, a trabalhadores que, na sua maioria, já vivem na miséria? ... Quanto a varrer, limpar as sanitas, encher o lavatório, etc... é lamentável que tais tarefas ainda tenham de ser efectuadas em Saint-Paul e noutros sítios. Que todos os nossos colegas, em vez de fundarem coope­ rativas escolares, lutem sempre e sem descanso junto das municipalidades para conseguirem que essas tarefas mate­

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riais, quantas vezes superiores às forças das crianças, sejam asseguradas por mulheres de limpeza razoavelmente remune­ radas; e todos os esforços que fizerem nesse sentido trarão muito maior proveito aos estudantes proletários. Os cooperadores adultos esquecem-se frequentemente que nos anos de felicidade que eles têm são bem breves, o que se deve sobre­ tudo à sua natural insatisfação. Não os estraguemos com questões que os ultrapassam ou com tarefas que nada têm a ver com a vida escolar.» O Sr. Profit, a quem cabe a iniciativa da Cooperativa Escolar na França, toma a seu cargo a defesa da sua obra. «É óbvio que o desenvolvimento não se processa em todo o lado com a mesma facilidade. Reconheço de bom grado que, com uma população como a que refere, dispersa por quintas isoladas, afastada da aldeia, as dificuldades são maiores do que em qualquer outro lado. Até o felicito só pelo facto de ter pensado, apesar do formidável trabalho que tem de enfrentar, em conceder ainda alguns instantes à cooperativa escolar. Dá dois exemplos em que se baseia para discutir a ques­ tão que, contudo, não lhe é totalmente desagradável. Serão eles suficientes para justificar o emprego de expressões tão amargas? Refere-se à campanha oficial e semioficial: será capaz de me indicar uma única circular ministerial que recomende a cooperação aos professores? A verdade é que, com chefes ou sem eles, o êxito das inovações que lhes são apresentadas pelos seus respectivos autores, à sua própria custa, depende dos professores e pro­ fessoras primários. Tanto uns como outros podem, indivi­ dualmente, perder a partida; mas estão cientes de que tudo o que ganham se destina à escola e aos alunos, e isso basta-lhes. Quanto à cooperação, você só a vê enquanto total e decorrente do estabelecimento de uma comunidade activa e livre, orientada de acordo com as novas técnicas. Julgo que a cooperação só pode ser parcial, pelo menos na grande maioria dos casos, e — não se trata já de uma questão de principio, mas de método— que é melhor principiar pelo mais fácil, pela cooperação escolar. A cooperação passa por

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um primeiro estádio, durante o qual jazemos com que as crianças se interessem pelos melhoramentos materiais a rea­ lizar na sua escola; há um segundo estádio, o estádio educa­ tivo, ao qual só se pode chegar a pouco e pouco, no qual se procura alcançar o nosso verdadeiro objectivo (que não é o menos difícil), a formação do homem. E entregar a eco­ nomia e a actividade da classe às crianças, orientá-las para uma colaboração comunitária, é ainda, e antes de mais nada, obra da cooperação escolar. É esse o nosso objectivo; nunca disse outra coisa e repito-o com mais insistência ainda no meu último livro, A Cooperação Escolar Francesa (editor Natham): o organismo económico que lhe serve de base (e que contudo tem o seu valor, na medida em que pode ajudar as crianças a aprender como a vida é na prática) é apenas um meio. É por meio de pequenos empreendimentos como estes, de teor econômico, em que colaborará não para o seu próprio benefício, através da distribuição de dividendos ou de des­ contos reembolsáveis, mas em beneficio da comunidade es­ colar, que a criança tomará consciência do seu papel na sociedade e que se estabelecerão as condições para ela desen­ volver o seu civismo e o seu espírito de disciplina necessários em toda a acção colectiva.» Falta acrescentar ao activo da CEL uma série de actividades para podermos dar uma ideia completa do seu dinamismo. Somos obrigados a não falar de realizações comunitárias tão notáveis como são La Gerbe e os Excertos de La Gerbe, que fornecem matéria para várias rubricas. Também não podemos dedicar mais tempo a analisar o lado psicológico da obra comum, que é focado, incansavelmente, sob o título de «casos difíceis». Somos forçados a dirigir-nos ao essencial e a acompanhar velozmente o movimento ascen­ dente de efectivos, que empurram a CEL para os pro­ blemas mais vastos, que caracterizam os movimentos de massa (2). (1) Realmente ser-nos-á impossível citar todas as novas adesões. Contentar-nos-emos em mencionar os que se tomaram assíduos cola­ boradores e arcaram com uma parte das responsabilidades no seio da grande família: Sr.ª Lagier-Bruno, Yenne (Sabóia). — Paul

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Nesse ano, porém, os correios começam a levantar-nos dificuldades. No «guichet», recusam-se a receber a nossa revista L'Imprimerie à l'École, com o pretexto de que não se trata de um periódico, mas sim de uma revista comercial. Criamos então uma outra revista, L’Éducateur Prolétarien com anúncios em separado, numa capa colorida; mas voltam a recusar-se a atribuir-nos a tarifa dos periódicos. Trata-se de uma manobra que só há-de ceder quando os deputados de esquerda, alertados pelos nossos aderentes, dirigirem um protesto à Assembleia Legislativa. A partir desite incidente o nosso Éducateur Prolétarien adquire, ao que parece, uma densidade mais humana, mais de acordo com os destinos da escola do povo. O congresso de encerramento do ano lectivo efectuou-se em Bordéus (a 1, 2 e 3 de Agosto de 1932) e logo a seguir realizou-se, em Nice, o grande congresso internacional da «Educação Nova», a que se seguiu, por sua vez, o Congresso de Saint-Paul.

O Congresso internacional da Educação Nova de Nice

Ao convidar os aderentes da CEL a assistirem ao Congresso da Educação Nova, Freinet apresentava-o desta maneira: «...É uma associação bastante heteróclita, em que se destaca o elemento anglo-saxão, adepto de uma vaga ideolo­ gia liberal e pacífica que não nos deve agradar muito. Esse facto não impede que os congressos deste género constituam uma das mais importantes manifestações da peda­ gogia mundial. Em Nice depararemos com todos aqueles que, na esfera da pedagogia, são inovadores entusiastas e devo-

Georges, Les Charbonniers (Vosgos).— Men. Darche, Saint-Jean.-de-Boumay (Isère). Sr.a Maisonneuve, Bamas (Gard). — Lalle­ mand, Les Eglises-d’Argenteuil (Charente-Maritime). — Sarro chi, Ajaccio (Córsega). — Dottrens, director (Troinex-Genebra). — Sr.ª e Sr. Tessier, Port-Boulet (Indre-et-Loire). Sr.* Lacroix, Mirébel (Jura). — Mawet, Bélgica.—Parsuire, Thuir (Pirenéus-Orientais) — Sr.ª Soubeyran, Dieulefit (Drôme).

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tados, incluindo provavelmente alguns russos, caso o go­ verno francês o autorize. Julgamos, por conseguinte, que convém que nos pre­ paremos para participar neste congresso, particularmente através de uma exposição impressionante, do nosso material e das nossas realizações.» O tema do Congresso era «A educação nas suas relações com a evolução social». O congresso de Nice foi totalmente dominado pelo pres­ tígio de Maria Montessori. O seu material viera num comboio especial; tinham sido reservadas numerosas salas do imenso Palácio do Mediterrâneo. Crianças ideais, ajuizadas e lindas, embora parecessem de uma outra época, com todos os seus penduricalhos rococo, moviam-se por entre o material lu­ xuoso que as atraía visivelmente. Era com uma espécie de admiração que as víamos manusear em silêncio, com des­ treza, as superfícies e os cubos e todos aqueles objectos que, no meio da maior imobilidade, levam às vezes a virtuosismos de raízes quadradas ou cúbicas e que nos mergulha­ vam numa atmosfera de macaquinhos de feira... Pensávamos nos nossos alunos, desgrenhados e mal vestidos, tão espon­ tâneos nos seus gestos e nos seus impulsos, e a recordação das nossas classes barulhentas invadia-nos e impedia-nos de compreender o que podería existir de verdadeiro por trás dos gestos dos pequeninos prestidigitadores montessorianos. O que foi o Congresso da Educação Nova de Nice? O próprio Freinet nos pode dar uma ideia dos seus aspectos essenciais através do seu editorial de Outubro de 1932: «O congresso de Nice, promovido pela Liga Internacional da Educação Nova, trouxe-nos a revelação do prestigio que nos mereceu o trabalho metódico e audacioso destes últimos anos, mau grado o unânime silêncio dos órgãos da imprensa. Quando terminou o ano lectivo, emitimos aqui a nossa opinião sobre a Liga e sobre o seu congresso, com o fito de auxiliarmos os nossos camaradas a desfazerem-se das viseiras pacifistas, que ainda podiam levá-los a acreditar nas possibilidades pacíficas da educação num regime capitalista. Provou-se infelizmente que ainda hã muitos pedagogos agarrados, embora de boa fé, a uma concepção progressista, que no entanto é irredutivelmente abalada pelos aconteci­

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mentos quotidianos. As suas conferências reflectiram estas convicções e foi salutar, para todos os que os escutaram e para a pedagogia em geral, que os nossos camaradas tives­ sem podido intervir para frisar as contradições provenientes desta incompreensão social das possibilidades pedagógicas. Incompreensão essa que, diga-se de passagem, se mostrou muito menos generalizada do que supúnhamos — e a cam­ panha que nós já conduzimos há vários anos neste sentido mostrou que não foi inútil. Estavam presentes no congresso, numa proporção bastante considerável, camaradas que, em contacto directo nas suas escolas com a miséria proletária, não se resignavam a ver tratar, com uma tal indiferença científica, hipocritamente burguesa, o próprio tema do congresso: a educação nas suas relações com a evolução social.» Então, para dar uma possibilidade aos camaradas de se consciencializarem da complexidade dos problemas educa­ tivos que se põem ao professor, ao educador da escola ofi­ cial, decide convidá-los a passarem um dia em Saint-Paul. «O congresso pedagógico de Saint-Paul deu azo justa­ mente a que essas críticas surgissem, se concretizassem e logo se afirmassem ao longo das diversas reuniões do congresso. É preciso ter conhecido a caótica organização do con­ gresso, a multiplicidade de conferências, cursos, visitas, dis­ cussões, que se impunham aos educadores, para conseguir avaliar as dificuldades com que íamos deparar para conduzir, durante um dia inteiro, grupos de camaradas a Saint-Paul. E contudo, na manhã de 7 de Agosto, autocarros especiais deixavam na praça da aldeia uma centena de camaradas ade­ rentes ou simpatizantes, entre os quais se encontravam Roger Cousinet, Guéritte, Délaunay, F. Dubois, Lucien Walens, Lebbe, Jadoulle, representantes da Bélgica, Rubakine da URSS, Oito Müller-Main da Alemanha, (R. Dottrens — Suíça que tinha tido de partir de Nice alguns dias antes, enviou um telegrama ao congresso, de simpático encoraja­ mento). E ao meio-dia um almoço amigável — extraordina­ riamente animado de facto —, reuniu uns sessenta camaradas felizes por se acharem assim em intimidade, numa atmosfera familiar, que estava demasiado ausente de Nice.

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É certo que, durante esse dia demasiado curto para aquilo que se pretendia e que ainda foi interrompido por uma visita demorada e atenta à exposição pedagógica de Saint-Paul, não conseguimos lançar uma interessante dis­ cussão técnica tal como nós tínhamos proposto. Tentámos dar a este congresso pedagógico de Saint-Paul um sentido preciso: educadores proletários que éramos, so­ frendo todos nós, diariamente, os efeitos da miséria material, intelectual e moral que oprime o povo, não podíamos decidir-nos pela prática de uma pedagogia puramente idealista que não estivesse solidamente assente na vida das crianças, A nossa técnica, ao normalizar em larga escala a actividade escolar, foi o arauto da educação nova popular correcta. Julgámos nessa altura que tínhamos o dever de exprimir o pensamento de inúmeros camaradas, de denunciar a timi­ dez e por vezes mesmo a cumplicidade dos congressistas de Nice, que nunca se atreviam a abordar abertamente o ver­ dadeiro tema do congresso. Recordámos através de exemplos — infelizmente demasiado precisos, visto que os visitantes iam poder verificá-los no próprio local — até que ponto a escola popular era oprimida material, administrativa e social­ mente pelo regime; afirmámos a incapacidade das teorias e das exortações perante um estado de coisas muito concreto, proveniente, como é lógico, do capitalismo. A aprovação entusiástica de todos os educadores presentes deu-nos a garantia de que aquelas palavras vigorosas e justas tinham de ser ditas, facto de que resultou um novo clima, ao longo do dia, porque tínhamos exteriorizado o sólido laço proletário que une os nossos esforços e motiva a nossa actividade pedagógica. Depois de uma demorada e apaixonante visita à expo­ sição de Saint-Paul, retomou-se a discussão, que, apesar do nosso desejo de a consagrarmos ao estudo das questões cooperativas, foi preenchida pelos grandes problemas sociopedagógicos evocados de manhã. Numa atmosfera de perfeita cordialidade, Roger Cousinet expôs-nos os fundamentos do seu método e F. Dubois, já várias vezes citado nestas páginas, falou-nos sobre o método Decroly e respondeu às nossas críticas. Otto Müller-Main fez compreender a todos nós a necessidade de uma acção

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pedagógica sistematicamente internacional e, finalmente, Rubakine falou sobre a educação na URSS. Aproxima-se o momento do regresso; os curiosos da al­ deia tinham invadido pouco a pouco a vasta sala onde Rubakine evocava os grandes problemas da reconstrução soviética. A ávida atenção de todos era como que uma silenciosa home­ nagem ao esforço revolucionário. Apesar de termos disposto de um tão curto lapso de tempo para este congresso de Saint-Paul, ele serviu-nos de valiosa consolação. Uma espécie de corrente ideológica uniu uma centena de bons camaradas, que desde então se aperce­ beram das fraquezas e contradições do congresso de Nice; uma espécie de “espírito do congresso de Saint-Paul“ impegnou o congresso internacional e permitiu aos nossos cama­ radas que regressassem aos respectivos postos com a cons­ ciência de terem feito em Nice pelo menos um trabalho de clarificação pedagógica sem precedentes. É neste sentido que a nossa reunião de Saint-Paul foi mais do que uma assembleia de camaradas; foi um acto, uma conclusão natural do nosso esforço passado e do vigor da nossa acção: um acto que alcançou uma ascendência tal sobre o congresso de Nice, que não o podemos menos­ prezar. » No encerramento do congresso, o grupo CEL apre­ sentou ao Professor Langevin as seguintes propostas: «O VI Congresso da Educação nova, depois de ter es­ cutado as diversas intervenções e comunicações reflectindo as tendências gerais da educação nova; Constatando que este congresso foi dominado pelos pro­ blemas que o malogro do actual regime econômico levanta aos educadores; Decide consagrar o estudo do VII Congresso ao estudo aprofundado das seguintes questões: 1) Em que medida e por que meios se pode realizar uma educação nova nos meios sociais que se baseiam na con­ corrência e na competição armada? 2) Em que medida e por que meios, métodos e técnicas pode a educação nova acelerar a criação de um mundo novo no qual a organização social corresponda ao máximo às ne­ cessidades pedagógicas da totalidade das crianças?

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Neste período de acentuada crise de trabalho, enquanto a própria vida de milhares e mesmo de milhões de crianças está a ser gravemente atingida, é impossível discutir as relações entre a educação e a evolução social sem ter em conta a crise que aniquila parcial ou completamente os esforços dos educadores. Solicitamos ao congresso que demonstre de modo tangível que não pode alhear-se destas graves considerações sociais e propomos: 1) Que o eventual produto deste congresso seja entregue às organizações operárias internacionais com vista a auxiliar os filhos dos trabalhadores inactivos dos diversos países. 2) Que todos os congressistas, à saída da sessão, con­ tribuam com dez francos pelo menos para essas mesmas orga­ nizações operárias internacionais.» Infelizmente estas propostas não chegaram a ser lidas e a Congresso desfez-se.

★ Que se passava em Saint-Paul enquanto Freinet conduzia a investigação de uma pedagogia popular e a renovação da sua mísera escola de aldeia? As crianças estão já habituadas a trabalhar de acordo com as novas técnicas. Apaixonam-se pelos trabalhos em curso, sem que o seu entusiasmo, por vezes um pouco turbulento, suscite na aldeia qualquer reacção menos cortês. Parece perfeitamente natural que daí em diante equipas de alunos empunhando papel e lápis vão entrevistar os artesãos nas respectivas, oficinas, os vendedores no respectivo balcão ou os abastados hóspedes dos hotéis. Já ninguém se admira ao vê-los examinar as esculturas das portas antigas, as ins­ crições latinas das velhas pedras ou por irem pedir ao pároco informações sobre a sua igreja, bem linda e rica. Pensando bem, o pároco até é um vizinho bastante simpático; por vezes até vem ao nosso pátio buscar os grevistas do cate­ cismo; «Mande-mos, Sr. Freinet! —-Ah! Sr. Padre, também o Sr, terá de mudar de méto­ dos um dia!

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— Não digo que não... É que realmentc consegue entu­ siasmá-los e eu é que perco com isso...». De facto, esta escola de Saint-Paul não é igual às outras; a sua fama estende-se aos arredores, de tal maneira que há alunos que vêm de fora para a tal escola onde se trabalha brincando. Não que ela seja atraente. Está cada vez mais incômoda, mais exígua, mais superpovoada. As condições higiênicas são cada vez piores. Freinet já lá está há mais de quatro anos e tem protestado sempre com o presidente da câmara e com o inspector primário. Conseguiu associar as queixas das duas professoras da escola feminina às suas. Depois de repe­ tidas visitas, conseguiram arrancar-se alguns melhoramentos à inércia municipal. Foi aceite a caixa escolar, criada por Freinet. Foram concertadas as velhas mesas, e o próprio muni­ cípio pagou algumas mesas que haviam sido encomendadas ao marceneiro. Mas depois destas loucas despesas o presidente da câmara agarra-se à sua pobreza: «Que é que quer que eu lhe faça, não há dinheiro!» Contudo, em Saint-Paul, a câmara tinha excelentes opor­ tunidades de obter algum dinheiro sem precisar de se dar a grandes incômodos: centenas de carros de luxo estacio­ navam todos os dias diante dos hotéis. À frente da escola havia um desfile contínuo de visitantes que vinham admirar as obras-primas da igreja. O que impede que se imponha uma taxa local a todos esses ricaços ociosos que largam somas fabulosas nos hotéis e na mão estendida do pároco? Se esta proposta que Freinet fez ao presidente da Câmara tivesse sido aceite iria facilitar rapidamente os melhoramentos da escola miserável, que não havia maneira de pormos num estado decente. «Ora aí está um assunto —diz o presidente da câmara — aparentemente sedutor, mas que na realidade é muitíssimo complicado...» De facto, nunca mais se voltará a falar nele; por falta de actos eficazes fizeram-se projectos de criação de uma cantina para as duas escalas, de reconstrução dos WC, de limpeza das salas e, para cúmulo da solicitude,

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estudou-se um projecto de construção de um complexo es­ colar. .. Enquanto estes sonhos maravilhosos não se tomam rea­ lidade, a habilidade do professor e dos alunos conjuga-se para remediar como pode as carências municipais e acadê­ micas. Colocam-se prateleiras na aula; instala-se uma tábua comprida ao longo de uma parede a servir de mesa para o material de experiências. Estes arranjos indispensáveis são pagos pelo professor. Coloca um reservatório de água ao fundo do corredor dos WC. Todas as manhãs, uma equipa de alunos vai encher um recipiente de água e trá-lo em se­ guida numa carreta. À beira do pátio dispõe-se minúsculos canteiros onde crescem flores maravilhosas; nas horas de recreio a jardinagem torna-se num dos maiores divertimentos destes garotos impossibilitados de organizar os seus jogos num espaço tão reduzido. Mas, bruscamente, sem razão aparente, o presidente da câmara recusa-se a mandar esvaziar os WC, que já deitam por fora. As crianças não podem satisfazer as suas «neces­ sidades» mais urgentes sem que um riacho de urina escorra pelo pátio empestando a aula e as suas imediações. As quei­ xas insistentes dirigidas tanto à câmara como à Academia não obtêm resposta. Freinet exige então uma inspecção do médico e do delegado de saúde local, que não tem outro remédio senão concluir pela necessidade urgente de cumprir algumas regras de higiene, que são muito imperiosas: os WC são esvaziados, as imundícies levadas pelo guarda rural e o abastecimento de água passa a ser feito pela câmara. Triunfo da escola? Talvez; mas seguramente impopula­ ridade do professor no seio dos vereadores e dos seus supe­ riores administrativos, que acabam de apanhar uma lição desagradável. De resto, manifestava-se já há algum tempo, sem que nós déssemos por isso, uma agitação dissimulada, insidiosa, na Saint-Paul dos ricos, através dos ditos malé­ volos dirigidos a este professor que não cessa de exigir bene­ fícios para a sua escola miserável. Aqueles garotos, que chegam de manhã das aldeias vi­ zinhas e que a automotora deposita no bairro dos abastados, indispõem as pessoas que não têm filhos e particularmente o antiquário, que se sente importunado com o espectáculo

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desta petizada estranha à terra. Detesta crianças, sobretudo as mais rudes: — É uma vergonha, isto estraga o bairro inteiro; andam por todo o lado, parecem piolhos... E quando os alunos passam, desembaraçados e afoitos, de caderno de apontamentos na mão, em busca do saber, os ociosos enervam-se: — Olhem-me para estes mandriões! Não passa um dia em que não façam gazeta! Isso dá-lhes um destes descara­ mentos! — Calculem que outro dia fizeram parar um hóspede da Colombe d’Or para lhe perguntarem: «Quanto é que paga por dia? Porque é que veio a Saint-Paul?» — É verdade! Até lhe disseram: «Ao lado da igreja tem uma outra curiosidade para visitar: a escola...» — Se os visse à porta do Sr. Lauthier! Queriam arrancar-lhe o trinco. Copiaram todos os desenhos que ela lá tem... — E um dia, na fonte, durante todo o tempo em que eu estive em casa da Sr.a X... andaram à volta da torneira, com medidas e mais medidas, a sujar a água, a fazer tolices... — É mesmo! Até disseram ao adjunto: «Ora diga-nos, o senhor não podia conduzir toda aquela água que se está a perder para a escola?» — Esses maltrapilhos desses piemonteses! Até trepam para os carros que estão estacionados na praça! Um dia destes, um deles tinha-se sentado ao lado de um ricaço inglês e estava calmamente a falar com ele como a um companheiro... — Tenho uma melhor: mediram o campo de B... com uma cadeia métrica; foram à câmara ver o plano e, não querem lá ver? Vieram dizer a B...: «O senhor pode re­ cuperar 4 metros quadrados ao terreno comunal, no seu campo da Sine!» — Outra ainda mais forte: o antiquário tinha comprado um cadeirão à Tia Miou e eles disseram-lhe que não o ven­ desse porque era um cadeirão de um Conde da Provençal Um cadeirão desconjuntado que nem se aguentava de pé! E cancelaram o negócio mesmo ali, nas barbas do anti­ quário!

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— Eh! Digam-me cá, vocês sabem o que é que ele faz de todos aqueles embrulhos que envia e recebe? E aquelas cartas lacradas? — Espionagem a soldo dos russos... — E vocês sabem quanto é que ganham as empregadas dele? Três francos por hora!... Dinheiro de Moscovo... O antiquário e quem alimenta este clima de maledicência e de calúnia. Não perdoa a perda do cadeirão Luís XIII, tão prejudicial à sua bolsa e à sua soberba. De café em café, de porta em porta, à socapa vai instilando o insidioso veneno que pouco a pouco vai mobilizar contra a escola toda a burguesia da vila, com excepção de algumas pessoas rectas e inteligentes que não se deixam levar na onda. Um facto vem agravar a hostilidade crescente: o congresso de Saint-Paul. A boa sociedade não consegue deixar de se admirar com a centena de visitantes que vieram ver a pobre escola como se se tratasse de uma curiosidade. Que haverá para admirar naquele pardieiro? Como é que se explica que aquele pobre professor primário, sem distinção, sem relações, possa revestir-se de uma importância de vedeta junto de estrangeiros vindos propositadamente para o ver e ouvir? Os ouvintes da Saint-Paul dos ricos que tinham vindo ao hotel Issert para ouvir os discursos dos pedagogos só guar­ dam, da torrente de palavras, a lembrança dos termos Rússia e Revolução. A partir daí, está dado o impulso decisivo ao caso Saint-Paul, debaixo das ordens do antiquário monár­ quico, que foi logo designado para defender os interesses da escola leiga contra os malefícios de um professor que ele tinha como indesejável... Soubemos mais tarde que depois do caso do cadeirão Luís XIII ele começara a seguir de perto o ensino de Freinet. Comprara a colecção do jornal escolar Les Remparts e, graças à cumplicidade dos correios, desviara todas as nossas edições, revistas e circulares para os aderentes, pondo-se à espera de uma ocasião favorável. O congresso de Saint-Paul seria essa ocasião. Desde então, em pleno café, vai ser capaz de lançar este desafio ao pai de um aluno que depois se tornará o nosso mais ardente defensor:

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— Aposto uma garrafa de champagne em como Freinet será posto daqui para fora em Outubro. Eu me encarregarei disso! — Pois eu aposto que em Outubro Freinet retomará tranquilamente a sua classe — responde o Sr. Wuffray. Foi por causa desta aposta que ele transformou numa questão de honra e que se tomou no fulcro dos seus ressen­ timentos de burguês, que o antiquário sem escrúpulos con­ duziu contra Freinet uma luta vil, servindo-se de todos os meios, sobretudo os mais imorais.

★ No meio de todos estes acontecimentos pedagógicos e municipais, qual era a minha situação como professora primária? Vinda para Saint-Paul com a promessa de que me dariam um lugar em Outubro, só fui nomeada dois anos mais tarde. Os lugares das vizinhanças foram-me recusados assim como o lugar de adjunto de Freinet que acabava de ser criado... Daí nasceram progressivos atritos entre o Sin­ dicato dos Professores Primários, que me defendia, e o ins­ pecter da Academia que defendia o seu prestígio. Um dia chegou a estar nos escritórios acadêmicos um protesto meu um tanto ou quanto turbulento, em que eu assumia franca­ mente as minhas responsabilidades perante a lei e perante um homem que, a falar verdade, ainda não era meu chefe. Em Outubro de 1930 fui nomeada para a segunda classe da escola feminina. Era uma capela velha e sombria, sem sol, sem material, abafada atrás das muralhas, recebendo toda a poeira que o vento, soprando da parte de fora das muralhas, projectava através dos interstícios das portas e das janelas. Material, nenhum: mesas velhas e bamboleantes, sem biblioteca e sobretudo sem lugar para instalar o meu material de impressão. Desde então o meu protesto arrastou o da minha directora que partilhava das mesmas alegrias de uma escola-pardieiro e juntou-se ao de Freinet para formar o coro das lamentações...

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Mas o que a municipalidade reaccionária fez foi ainda mais do que desconhecer a escola leiga: às escondidas da administração resolve instalar os correios e os aposentos do cobrador nos sítios que estavam provisoriamente desocupados pela escola feminina. Uma reclamação assinada por Freinet e por mim e dirigida à Academia faz com que o projecto vá por água abaixo, A única razão do caso Saint-Paul será esta dedicação obstinada de um professor primário à escola leiga. Na Páscoa, o município não se lembrou de nada melhor do que deitar no espaço confinado entre as muralhas, que nos servia de pátio, restos de caliça das demolições, donde se elevavam continuamente nuvens de poeira de caliça. O pe­ ríodo de vento agravou este triste estado de coisas: na nossa classe do rés-do-chão, a atmosfera era irrespirável; ardiam-nos os olhos e a garganta... Silêncio da câmara, silêncio da administração; uma total indiferença pelos nossos protestos. Adoeci e fui obrigada a aceitar uma licença de seis meses... Este ano em Saint-Paul tinha-nos custado mais a passar do que qualquer outro. Para além das dificuldades escolares e do enorme trabalho que a CEL nos exigia, fomos atingidos por uma série de desgraças, umas atrás das outras, que nos mantiveram afastados do mundo por uns tempos. Embrenhávamo-nos no trabalho ainda com mais ardor para esquecermos as durezas da vida, através do contacto com as crianças e com o pensamento colectivo dos nossos cama­ radas. A ligação com os pais dos alunos ressentiu-se com tudo isto. Freinet apercebia-se perfeitamente dos inconve­ nientes deste isolamento do meio social, imposto pela força das circunstâncias. Em Bar-sur-Loup, a escola e o seu pro­ fessor eram o centro da aldeia, um elemento de educação permanente; aqui estavam como que à margem da vida da aldeia e eram incapazes de penetrar nela. Como não? Todos os rendeiros que constituíam a grande maioria dos pais dos alunos estavam dispersos por quintas distantes. Perder-se-ia imenso tempo a visitá-los. Não era a Freinet que cabia a resolução de problemas insolúveis; tinha forçosamente de assumir esses riscos e pre­ parar-se para os enfrentar o melhor que pudesse.

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Veio Outubro. A reabertura das aulas foi igual a todas as reaberturas das classes que empregam as nossas técnicas: verdadeira alegria por retomar o trabalho, por tornar a ver as crianças, por partir rumo à pesquisa e ao saber, de ma­ neiras sempre novas e entusiasmantes. Além do mais, o arranque da CEL ocupa-nos imenso tempo. Como todos os anos, é necessário fazer face às novas exigências de efectivos, que já estão a ser demasiados para os nossos recursos financeiros. Absorvidos por um labor constante, somos com­ pletamente alheios à malquerença gratuita que está a unir-se e a alastrar lentamente à nossa volta. Nesta época de uvas, de figos e de peras chegam-nos constantemente ofertas, sob a forma de lindos cestos artis­ ticamente decorados, trazidos pelas crianças ou colocados discretamente na ombreira da porta. São para nós o sím­ bolo da simpatia reconhecida desta Saint-Paul que amamos e no meio da qual queremos viver.

Mas uma noite...

Na noite de 1 para 2 de Dezembro, pela uma da ma­ drugada, ouvimos, vinda do pátio, uma voz discreta a chamar: — Sr. Freinet, pode abrir? Queríamos falar consigo. Abrimos a porta e apareceu-nos a Titine, a nossa em­ pregada, com o irmão, Tounin, e um rapaz amigo, segurando montes de cartazes mais ou menos amarrotados. — Sr. Freinet, repare neste anúncios. Vieram dois jovens, num carro, colocá-los em toda a Saint-Paul. Seguimo-los e arrancámos tudo. Não ficou nenhum por tirar em toda a aldeia. Vamos agora ver a praça e as imediações. Grande foi o nosso espanto ao vermos os dois grandes cartazes, um vermelho e outro verde, que nos dão repentina­ mente o pressentimento da vasta campanha que se está a tramar contra Freinet. Era como se uma bomba nos tivesse explodido debaixo dos pés. Não podíamos acreditar no que víamos. O anúncio vermelho reproduzia um texto infantil que tinha sido impresso há quase um ano, em 1932; o segundo

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era um apelo à revolta dos pais; eram tanto um como o outro altamente difamatórios. O texto infantil impresso em letras garrafais no anúncio vermelho era o seguinte: «Sonhei que a classe inteira se tinha revoltado contra o presidente da câmara de Saint-Paul, que não nos queria dar mobílias de graça... Atiro-me a ele, os outros ficam com medo. O presidente da câmara tira a navalha e golpeia-me na coxa. De raiva, pego na minha navalha e mato-o. O senhor Freinet fez de presidente da câmara... Eu fui para o hospital. Quando saí deram-me mil francos.» Este texto era da autoria de um garoto espanhol, que vinha todos os dias de Vence. Era uma criança instável, anormal em muitos aspectos, e nos seus escritos falava sempre de batalhas, de assassínios, de acontecimentos san­ grentos... Por ser um sonho, porque correspondia a uma indivi­ dualidade infantil e se integrava na atmosfera moral e hu­ mana da classe, este texto não suscitou nenhuma observação ou censura da parte do professor... Trata-se de um do­ cumento psicológico como tantos outros, pedagogicamente interessante, como tudo o que brota espontaneamente da alma da criança. Bruscamente, a má vontade acaba de o tornar num símbolo de imoralidade e de crime... «Eis, dizia o segundo anúncio, os ditados que um profes­ sor primário sem escrúpulos impõe aos seus alunos. Erguemo-nos contra o ensino deplorável deste mau educador da juventude e queremos frisar que não compreendemos que a sociedade e o Estado lhe paguem para desempenhar uma tarefa destas. Assinado: Os pais dos alunos.» Não conseguimos compreender quem tinha provocado este escândalo que subitamente, veio chocar com a nossa incansável dedicação à escola, porque o estilo grandiloquente não era certamente da autoria da gente do povo. Primeiro é preciso entrar em contacto com os pais dos alunos. O que pensam eles de tudo isto? Desde a manhã de 2 de Dezembro, que foi para Freinet como que uma espécie de golpe de Estado, dirigimo-nos a casa dos pais dos alunos, Freinet, antes de começar a aula,

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visita as quatro ou cinco famílias que residem na cidade. Eu parto para as quintarolas semeadas ao longo da vastidão dos campos, que se estendem até ao mar. Levamos ambos um caderno, uma caneta e dizemos muito simplesmente: — Esta noite colocaram cartazes contra Freinet. A assi­ natura que trazem é: «Os Pais dos Alunos». Queríamos saber exactamente quais são as vossas razões de queixa contra o ensino que Freinet ministra aos vossos filhos. — Mas nós nada temos a censurar ao Sr. Freinet — diziam os pais invariavelmente. —Não sabemos nada do que se está a passar! Não temos nada a ver com isso! É um escân­ dalo que reprovamos! Anotávamos fielmente o depoimento e relíamo-lo em voz alta: —Foi isto mesmo o que o Sr. disse? — Foi. — Então quer asinar? — Com muito gosto. E assinavam. Em Saint-Paul só houve dois pais que não quiseram assinar, embora tivessem reconhecido que estavam comple­ tamente satisfeitos com o ensino de Freinet: um era empre­ gado de café e outro, cabeleireiro, devendo ambos contar com uma clientela burguesa... Nas quintas a adesão foi geral: — Ora essa, porque é que não havíamos de estar satis­ feitos? Os nossos filhos comem bem, num sítio abrigado; na aula trabalham como deve ser; andam tão contentes! Pois com certeza, queremos que o Sr. Freinet continue a fazê-los trabalhar assim! Seria uma tristeza os nossos filhos ficarem sem o professor! Ao fim do dia tínhamos adquirido esta certeza recon­ fortante: os pais nada tinham a ver com esta estranha aven­ tura. Freinet põe imediatamente a sua administração ao cor­ rente dos factos e pede ao Inspecter que abra um inquérito pedagógico para dar parecer do valor do seu ensino e um inquérito na vila para verificar a falsidade dos factos desta­ cados nos cartazes e a simpatia que os pais lhes votam .

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Passam-se os dias. Nenhuma resposta da Academia. Nenhuns incidentes na aldeia. Por trás das muralhas, a po­ pulação, calma, serena, parece ter esquecido o incidente... E as aulas prosseguiram sem que se notasse entre os alunos, a menor má vontade, a menor hipocrisia. O ardor pelo trabalho continuou como dantes, falou-se em cartazes fantasmas que o diabo coloca à noite e que o bom Deus arranca de manhã. Como isso constitui o centro de interesse dos primeiros dias até se fizeram problemas: «Calculem quantos livros podíamos ter comprado para a biblioteca com o dinheiro destes cartazes.» Passadas as primeiras ondas, nunca mais ninguém se lembrou na classe dos cartazes clandestinos, postos e logo arrancados, absorvidos como estávamos nos trabalhos em curso e nos projectos para o futuro. Subitamente, surge na primeira página de L'Action Française, com a assinatura de Maurras, um artigo dirigido ao professor primário de Saint-Paul : apresenta Freinet como um maníaco irresponsável, brandindo a bandeira vermelha, sonhando apenas com feridas e galos e apologistas da vio­ lência e dos assassínios, pondo em perigo a saúde moral das crianças... Todos os dias, Maurras, o douto metafísico da autoridade, lança a sua copia, que é retomada em coro por todas as Croix de França e de Navarra, e pela imprensa reaccionária nacional e regional; sob o nosso impulso, a imprensa da esquerda reage rapidamente, corrige os factos e situa-os no campo da defesa do ensino leigo. L'Humanité, L'Oeuvre, Le Rappel, Marianne, etc., conduzem esponta­ neamente uma esplêndida campanha a favor de Freinet e os jornais de província, informados pelos nossos aderentes, tomam a defesa de um ensino que já nessa época é apresen­ tado como a honra da pedagogia francesa. Os jornais locais, L'Éclaireur de Nice (reaccionário) e Le Petit Niçois (repu­ blicano) agridem-se mutuamente em querelas diárias. Tudo isto passa-se durante longos meses, numa atmosfera trágica e alucinante de factos que nos ultrapassam, crescem, são levados até ao estrangeiro, e cujos ecos o Argus da imprensa se encarrega de nos trazer sem descanso. Em Saint-Paul reina a maior das calmas. Durante várias noites, os cartazes continuam a ser arrancados pelos nossos

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amigos, mas um belo dia é o próprio guarda rural que se encarrega de os afixar. Ficamos então a saber que o acon­ tecimento gravita em tomo do presidente da câmara e que se situa infalivelmente do outro lado das muralhas. Pouco a pouco, começamos finalmente a distinguir o verdadeiro rosto dos nossos inimigos, que são comandados pelo antiquário. Freinet acha indispensável contactar-se com os pais para lhes explicar, o que provavelmente exigirá várias prelecções, o sentido da sua pedagogia, e estabelecer, é certo que um pouco tardiamente, o laço entre a escola e o meio, o que até agora ainda não tinha conseguido. Um sábado, durante a aula, compõe-se uma carta a convidar os pais para uma reunião no dia seguinte às quatro da tarde. As crianças levam o papel para casa radiantes. —Sr. professor, nós podemos vir? Havemos de «lhes» mostrar como é que se imprime! — Se quiserem podem. Também hão-de explicar aos vossos pais aquilo que fazem. — Ah! Que bom! Separamo-nos na expectativa de uma festa... Mas no dia seguinte, às três horas, quando volto de um passeio com a minha pequerrucha, esbarro com uma mul­ tidão de burgueses da cidade, que me medem de alto a baixo com um ar de irônica arrogância que me surpreende... É a mobilização geral da Saint-Paul dos ricos à qual se associou o mundo suspeito dos que vivem de expedientes vulgares. . A massa lança-se atrás de mim, com o presidente da câmara à cabeça... Ainda julgo que se trata de uma ceri­ mônia na igreja. Mas, mal franqueio a soleira da porta e subo as escadas para avisar Freinet, já o murmúrio da multidão se ergue do pátio. Descemos precipitadamente: — Sr. Presidente, com que direito viola o meu domicílio na companhia de pessoas estranhas à escola? — Ele está em casa sua — replica o antiquário. — E o Senhor também está cm sua casa? Intervenho áspera: —-Está em cuidado pela sua prole, é? Compreende a alusão, cora confundindo e só consegue berrar: 229

— Vão para Moscovo! Vão para Moscovo! (Único argu mento desta injustificada multidão: Vão para Moscovo! Vão para Moscovo!) Mas há uma senhora que se desgarra da multidão dos manifestantes. É a Sr.a Lafitte, filha de um engenheiro, pessoa inteligente e compreensiva. Tem os seus dois filhos na escola de Freinet. Afasta-se resolutamente daqueles que até então tinham sido seus amigos: — Estão a proceder muito mal! Voltem para casa! Dirige-se a nós, estende-nos a mão e subimos de novo. Na rua, os manifestantes vão desaparecendo e disper­ sando as crianças e os pais que tinham vindo à reunião: — Vão-se embora! Já não há reunião. Freinet foi-se embora. Dias depois, num domingo, o presidente da câmara acha-se no direito de pressionar os pais numa reunião pública através de insultos dirigidos a Freinet: — Se eu tivesse filhos recusava-me a confiá-los a um professor como aquele, que fará deles uns assassinos! Freinet leva o presidente da câmara a tribunal, E o incidente agita a aldeia, mas por pouco tempo. Evidente­ mente que o presidente não é condenado. Nem outra coisa seria de esperar. Processos destes, que se servem da mentira e da calúnia como armas correntes, não influenciam os plácidos campo­ neses, devido ao seu inquebrantável bom senso. Mais do que nunca, manifestam-nos a sua simpatia. Numa reacção de classe, enfrentam os provocadores. Nesta história de Saint-Paul, com efeito, nunca haverá senão dois blocos frente a frente: os trabalhadores e os burgueses. É entre ambos que a luta se trava. É entre ambos que haverá os choques violentos, a oposição de interesses, as divergências ideológicas. A nível nacional, os acontecimentos de Saint-Paul susci­ tam uma vasta agitação. A reacção faz todo o barulho que pode. Como é de calcular, os nossos aderentes entregam-se com uma incansável dedicação à tarefa de nos defenderem através da imprensa e da acção sindicalista; os sindicatos lançam uma esplêndida campanha local e nacional; escritores

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de esquerda manifestam-nos a sua simpatia; Romain Rolland escreve-nos especialmente para o efeito. Fazem-se interven­ ções a nível da Educação nacional. Demonstrações de sim­ patia e mesmo — porque escondê-lo — de franca admiração são dirigidas a Freinet e à Educação nacional por todos os educadores da educação nova: Duthil, Beaucomont, Perron, Menina Flayol, H. Walon, e, no estrangeiro, pelos pedagogos progressistas: Claparède, Dubois, etc... Entre esses inúmeros testemunhos podemos citar o de Pierre Deffontaine, professor da Faculdade Católica de Lille: «Sem tomar partido no caso Saint-Paul por estar pouco documentado sobre o que se tem passado, quero teste­ munhar-lhe a minha simpatia pelos imensos esforços que tem envidado a favor de uma educação que faz, muito justa­ mente, apelo a tudo o que na criança existe de espontâneo e, portanto, de criativo.» ...e o de Ferrière, tão elogioso que, ao que parece, faz o próprio ministro hesitar: «C. Freinet está em vias de elevar Saint-Paul à condição de uma das capitais pedagógicas da Europa. A França pode orgulhar-se de um homem que, como os antigos Romanos, alia num grau tão elevado a simplicidade, a franqueza e a delicadeza de sentimentos a um espírito decidido e intransigente para com as injustiças, que concor­ rem para atrasar a progressão do homem no sentido de um Estado social mais conforme à razão, melhor organizado e mais justo para todos.» Tão grande é a simpatia nos meios intelectuais, que a Sr.a Lahy-Hollebecque e o Sr. Lahy empreendem a viagem de Paris a Saint-Paul para nos trazerem o seu apoio. Esta vasta acção da França republicana está na origem de um acontecimento: a destituição do Inspector da Academia! Porquê esta irregularidade? Porque é o Inspecter da Academia que é afastado? Neste momento torna-se necessário abordar um segundo aspecto do caso Saint-Paul, o aspecto pedagógico e adminitrativo, que é decisivamente determinado pelo princípio da autoridade. De facto, sempre houve, no plano pedagógico, uma opo­ sição entre a educação de liberdade implantada por Freinet

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e o velho ensino tradicionalista preconizado pelos seus supe­ riores. Não restam dúvidas de que a oposição subsiste mesmo quando o Inspecter da Academia número 2 vem substituir b Inspecter da Academia número 1. Entendamo-nos: Freinet nunca pensou subtrair-se aos regulamentos que o colocavam numa situação de subalterno e o faziam depender administrativamente de um superior hierárquico. Manteve sempre os inspectores a par das suas inovações oferecendo-lhes o seu jornal escolar, as suas re­ vistas, as suas edições. Logo nos pincípios da imprensa, sem dúvida influenciado pelos artigos do Temps e de L'Éclair reur, o Inspecter da Academia tinha felicitado Freinet, mas, à medida que os artigos do inovador de Bar-sur-Loup iam aparecendo nas revistas sindicais ou pedagógicas, à medida que iam surgindo aderentes e que tomava vulto um movi­ mento de inspiração nova e ousada, a velha pedagogia alar­ mava-se. Escrevia Freinet que a pedagogia devia partir de baixo, do interesse inicial da criança, para subir a formas superiores. O professor é o grande camarada, o ajudante compreensivo, que facilita a ascensão até ao saber; é a criança que decide qual deve ser o ritmo da corrida e sua duração; é ela que constrói o seu futuro. O Sr. Inspecter não percebe esta lin­ guagem. Não percebe por que razão, para ele, a criança é um ser inferior, como inferior é aos seus olhos o subalterno, que está apenas no primeiro degrau da cultura. Para ele a cultura é uma espécie de hierarquia que reforça a hierarquia social. É uma progressão do concreto para o abstracto, do simples para o complexo e é o professor que previamente a determina. Tudo vem de cima, do sítio onde se encontra o reservatório da ciência, a soma dos valores, e o que está em baixo é a ignorância, a cabeça vazia, que se deve ir enchendo progressivamente com o auxílio da memória e da compreensão. Fora destas vias tradicionais tudo é risco, tudo é aventura. Como não pode proibir as inovações de um subalterno obstinado, o Sr. Inspector fecha os olhos, ignora tudo o que diga respeito a Saint-Paul e ao seu apóstolo; deixá-lo-á à margem do controle da escola, abstendo-se de o inspeccionar, de o aconselhar, deixando-o sozinho na ba­ talha, na esperança de um dia o ver vencido.

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Será este o melhor processo de salvaguardar o princípio da autoridade administrativa e intelectual? Talvez não. Os acontecimentos encarregar-se-iam de o provar. O rebentar da questão de Saint-Paul não surpreende a Academia. Recebeu sem se mexer uns vinte pedidos de auxílio de um subalterno que queria a escola limpa exigida por lei. Estava a par, assim como a Prefeitura, das faltas graves da municipalidade. No plano pedagógico não contava com nenhum meio de controle. Acabava de recusar o inqué­ rito solicitado por Freinet no dia seguinte ao da colocação dos cartazes; e já há quatro anos que não lhe fazia uma visita de inspecção. Estes factos, expostos à Assembleia Legislativa pelo Sr. Plache (socialista), originam algumas ondas. E como nessa altura a balança pendia para as esquerdas, o Ministro assesta o golpe de autoridade precisamente a meio da escola hierárquica: o Sr. Brunet, Inspecter da Academia, é recon­ duzido a Oran, seu posto inicial. M’as a reacção não desarma: esse professorzeco, todo convencido, por se encontrar ainda na sua classe poeirenta há-de ser sepultado nas ruínas da sua pedagogia. Como preâmbulo, um bom inquérito pedagógico! Por ordem do Ministro, o Inspecter Primário, depois de um eclipse de quatro anos, irrompe pela classe de Saint-Paul e, em com­ pensação, passa lá desta vez três dias inteiros, sem recreios, sem a menor folga, examinando todos os pormenores, sus­ peitando de todos os textos impressos, pondo todo o seu engenho em fazer de um facto insignificante um pretexto legal para rachar de alto a baixo uma pedagogia, que já considera, antecipadamente, subversiva. Dirige-se um vasto inquérito aos nossos aderentes, a nível nacional, com o único fito de limitar os estragos de uma pedagogia crítica que já espalhou aos quatro ventos os male­ fícios de uma liberdade que já é tempo de refrear. Para que as coisas andem depressa, é aplicada a pena de «censura» a Freinet sem que haja inspecção prévia, sem que ele próprio tenha tomado conhecimento do seu processo. Era tal a in­ dignação do relator deste caso lamentável, o Sr. Richard, que viera alguns dias mais cedo para conduzir o inquérito, que só falava em ir a Paris encontrar-se com de Monzie que

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conhecia muito bem... Vítima do princípio de autoridade, também a sua consciência teria de se calar sob a toga de juiz. Mas nessa memorável sessão foi-lhe enviado um tele­ grama que dizia: «Maioria pais de alunos classe Freinet Saint-Paul quer testemunhar ao Senhor Freinet todo o seu contentamento pelo ensino ministrado aos seus filhos. Protestamos contra perseguições conduzidas para satisfazer clique reaccionária inimiga escola leiga. Assinatura dos delegados: Wuffray, Roux, Lafitte.» Mas regressemos ao grande inquérito pedagógico que o Inspecter Primário realizou na classe de Saint-Paul. Nos números de Fevereiro e de Março de L'Educateur Prolétarien, Freinet refuta o relatório que até devia ser citado na totalidade, dado que é de facto o relatório de toda a organização da sua classe e da sua técnica pedagógica: «Não vamos agora, escreve Freinet à laia de preâmbulo, supor e afirmar que a condução da nossa classe não suporta criticas e que nenhum educador pode fazer mais do que nós. Pelo contrário, pensamos que, como diz o Sr. Rosset, os investigadores, mesmo quando não são bem sucedidos logo à primeira, necessitam de uma grande indulgência e, simultaneamente, de uma simpática compreensão para pros­ seguirem a sua difícil mas necessária luta contra a rotina e a tradição. Por último, não queríamos que vislumbrassem nestas páginas um ataque pessoal ao nosso inspector. Não se trata aqui da personalidade de Freinet ou da do Inspector Pri­ mário. Se pretendesse uma boa informação na inspecção, se pretendesse a sua própria paz e a tranquilidade burguesa, Freinet só precisava de se encaminhar para a via que lhe é constantemente apontada por administradores e políticos como sendo a única susceptível de solucionar o conflito: calar-se! O alcance do problema é bem maior e não consentiremos que o restrinjam intencionalmente: educadores do ensino pú­ blico que somos, ao tentarmos introduzir a educação nova nas nossas escolas populares, vendo-nos obrigados, devido à nossa condição de funcionários públicos, a trabalhar dentro

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dos limites estabelecidos pelas regras, pelos programas e Jazemos da nossa luta um constante compromisso. Este compromisso, queremos nós declará-lo às claras, com toda a lealdade, porque não queremos construir nada na base do "bluff" e da restrição mental. Eis o que Freinet realizou na sua classe, no seu estábulo para crianças — há 20 dias por varrer! — apesar da difa­ mação, das calúnias, das ameaças de greve, sim, porque nas semanas seguintes como haveremos de ver, organizou-se uma greve escolar. Eis a apreciação do Inspector Primário. Eis a minha resposta às suas críticas.» Citemos algumas passagens: «Como já tive ocasião de precisar, trata-se de duas concepções pedagógicas antagônicas. Precisamos de saber se a nossa tem, mesmo assim, direito a afirmar-se e a provar a incontestável superioridade que lhe reconhecem todos os educadores contemporâneos... ... E quando, no Palácio do Mediterrâneo, em Nice, o professor Langevin me apresentou ao congresso e ao Ministro da Educação Nacional como sendo um dos bons obreiros que honram a educação nova em França, nem me passava pela cabeça que seis meses depois um inspector que, tendo rece­ bido as minhas diversas publicações, não entendendo nem o seu espírito nem o seu alcance, me iria acusar de incom­ petência pedagógica. Este ataque pedagógico excede em muito a minha pessoa, da mesma maneira que o ataque político foi muito além do professor primário de Saint-Paul. É todo o nosso grupo, são todos os nossos educadores, adeptos do progresso pedagó­ gico, que estão em perigo com tal julgamento, que não visa senão condenar a pedagogia nova em nome das práticas convencionais, condenar o futuro em nome do passado. Não o permitirão os verdadeiros educadores. ... Que não seja essa a dúvida! Vamos publicar tanto o relatório do Inspector como o meu, que achei necessário para se poder julgar com toda a imparcialidade o que se passou. Os amigos da educação nova verão se devem apoiar o iniciador da tipografia escolar ou enfileirar ao lado dos seus censores.

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Aguardamos o seu julgamento com seriedade... Eis algumas passagens do referido relatório: ... Estado do edifício escolar: sofrível, nota o Inspecter, agora que a minha classe deixou de ser varrida, agora que o lixo se empilha no pátio, que as retretes deitam por fora... Uma autêntica cavalariça! — Disciplina! — diz o Inspecter, — As crianças dispõem~se na classe como lhes apetece... Amontoam-se em torno de um único trabalho.... Até há um que assobia... — Decerto — responde Freinet — a classe não é nenhum exercício militar. O nosso trabalho é individual e social. Mas com certeza, os alunos dispõem-se como querem, desde que se respeitem certas necessidades: a) Os alunos do msmo grupo devem ficar na mesma fila; b) Uma mudança de lugar só pode ser efectuada se os alunos interessados estiverem de acordo, de modo a que não provoque discussões; c) Estas mudanças não devem ser feitas enquanto se está a trabalhar. A ordem para nós não é escolástica nem fria; decorre das necessidades existentes e da harmonia entre os membros do grupo. É esta ordem que procuramos atingir e que eu próprio já atingi, visto que você mesmo, Sr. Ins­ pecter, já verificou que as crianças, como estão ocupadíssimas, nem sequer ouviram o seu toque para o recreio! — Na lição de Geografia, o professor não interrogou os alunos. Como é que então controla o saber deles? Além disso nem sequer têm manual para aprenderem a lição. O professor limita-se a dar algumas pistas, o que é insufi­ ciente. — O Sr. Inspecter nem sequer se apercebeu de que havia uma série de leitores ocupados em reunir uma impor­ tante colecção de elementos de estudo, que o aluno respon­ sável tinha tirado do ficheiro. Os alunos pegaram igual­ mente em vários livros de geografia. Se tivesse tido um mínimo de curiosidade, o Sr. Inspecter ter-se-ia dado conta de que na prateleira de Geografia se tinha colocado toda uma série de álbuns contendo centros de interesse geográficos das terras dos nossos correspondentes. “Os nossos alunos palmilham todas as regiões de França, colando as paisagens características de várias regiões, estudando, com activa

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colaboração dos seus correspondentes, a economia das diver­ sas zonas." — De que vale —diz o Inspector— ter tantos corres­ pondentes? — Não vale? Pois então repare: quando se falou no estuário do Sena e do canal de Tancarville, o Sr. mesmo afirmou que os alunos sabiam coisas demais, que não eram do programa. Mas o grande motivo de queixa que o Sr. Inspector furio­ samente acentuou foi o das crianças não terem livros!... — Não há livros!... Nem com duas páginas de texto se conseguirá levar o Sr. Inspector a compreender as riquezas intelectuais que a criança da modesta escola de Saint-Paul tem ao seu alcance. E chegou o momento do implacável controle! Durante uma hora bem contada, o Sr. Inspector interrogou a classe sobre datas e as guerras, desde o ano 50 Antes de Cristo até à Revolução Francesa. “Um aluno, que para o fim já estava extenuado, respondeu a todas as perguntas..." Interrogar os alunos durante cinquenta minutos sobre essa caricatura de História à base de datas e de guerras, isso sim, é que é pedagógico e científico! Não se informar sequer sobre se eu iniciei os meus alunos em filosofia da História, que foi aquilo que eu fiz, não será porventura uma prova irrefutável de um lamentável partidarismo que compete aos educadores condenar um dia mais tarde? “Aqueles que o admiram — virá o Inspecter a concluir — nunca vieram à sua classe", dando a entender a manifesta incompetência do educador que ele recebeu ordens de in~ culpar por motivos profissionais. — Porque é que não menciona que em quatro anos seis dos meus alunos obtiveram o CEP, que dois entraram para a Escola Hoteleira e que este ano tenho quatro candi­ datos bem preparados ao CEP, um candidate às bolsas de primeira série e dois candidates às bolsas de segunda série?... Se me inculpam por não ter fixado o emprego do tempo e a distribuição das matérias e se andam a preparar-se para justificar uma nova sanção a estas faltas benéficas, então eu pergunte que medidas é que o governo republicano terá de tomar contra os administradores que permitem:

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— Que a minha escola não seja varrida há vinte dias; — Que há seis dias as retretes transbordem, empestando toda a escola e pondo em perigo a saúde dos alunos e do professor; — Que o lixo esteja há três meses a empilhar-se no pátio; — Que não haja água na escola; — Que o guarda rural utilize a sua autoridade para jazer com que os alunos que vêm para a escola voltem para trás; — Que o presidente da câmara reaccionário exerça sobre os pais uma pressão delituosa contra a qual temos requerido sanções, há já três meses!» Ao fim da tarde, depois de os alunos se terem ido embora, o Sr. Inspector ironiza: — Inovar! Inovar! Mas o que é que o senhor faz aos regulamentos? O artigo da lei número tal estabelece que... Com um gesto violento, Freinet pega no seu superior pela manga do casaco e arrasta-o para os WC: — Ora diga-me uma coisa, não haverá por acaso um regulamento que preveja que as retretes sejam esvaziadas? Venha cá ver as larvas de moscas... E o Sr. Inspector, mau grado seu, patinha no charco dos WC. Perdeu uma grande parte da dogmática segu­ rança com que se movia no charco pedagógico dos regula­ mentos vetustos. Depois de três dias de inspecção, foi esse o único gesto de impaciência de Freinet, ao longo de todo aquele ano de luta incessante, a nível local, administrativo, intelectual e social. De resto, nunca ninguém o referiu... No entanto, como é de calcular, a visita do Inspector Primário não traz a mínima alteração ao estado de coisas em Saint-Paul. Pode mesmo afirmar-se que foi desvanta­ josa para Freinet, visto que o relatório de inspecção foi redigido com partidarismo, com o único fito de minar a autoridade pedagógica de Freinet e de justificar a atitude malevolente da municipalidade e dos pais de alunos que eram hostis (ou pretensamente hostis) a Freinet. O Inspector Primário, que durante três dias passou o tempo a sacudir das mangas a poeira acumulada sobre as mesas e prateleiras, que pisou os papéis e a lama que juncam

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o soalho de uma sala de aula que está por varrer há 20 dias e que viu o monte de lixo acumulado no pátio, esse mesmo Inspector que chapinhou sobre as imundícies do WC, será que diligenciou junto do presidente da câmara no sen­ tido de os regulamentos de higiene previstos pela lei serem aplicados à escola de Saint-Paul? Mistério! Passa-se uma semana sem que se faça o menor gesto para impedir este escândalo de sujidade e de desmazelo numa escola pública que se vota ao naufrágio, conscientemente, deliberadamente. Por várias vezes, Freinet telegrafa ao Ministro da Edu­ cação Nacional nos seguintes termos: «Estado sanitário escola Saint-Paul: não é varrida há 20 dias —pátio invadido pelo lixo—, WC a transbordar, empestando toda a escola — não há abastecimento de água —. solicito Sr. Ministro faça respeitar lei. Assinado: Freinet.» Finalmente, chega o Inspecter da Academia! Temos de reconhecer que fica um pouco impresisonado ao ver esta escola-estrebaria. Vai imediatamente falar com o presidente da câmara, regressa e anuncia: — Vamos mandar esvaziar os WC, mas o senhor tem de assegurar a limpeza do chão e o serviço do lixo. — Visto que assim o ordena, fá-lo-ei —diz Freinet—, mas recordo-lhe que isso é contrário à lei e que o senhor está, desse modo, a tomar uma decisão que vai contra o interesse da escola, que tem obrigação de defender. Depois de reflectir no caso, o Inspector volta brusca­ mente a encontrar-se com o presidente da câmara. A dis­ cussão é demorada. Volta a aparecer: — A partir de amanhã a municipalidade garantirá a limpeza do chão, o serviço do lixo, mas exige que as crianças se retirem nos intervalos das aulas! Vitória momentânea, com a qual nos temos de regozijar; porém, a autoridade prepara-se para recuperar os seus di­ reitos no plano pedagógico. O Inspector de Academia lança-se imediatamente à procura de documentos sensacionais durante uma boa hora. Ao folhear atentamente os quatro Livros da Vida da escola de Saint-Paul, que contêm mais de 1000 textos, o

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Inspector obteve um documento que considera um atentado à moral e à religião. Ei-lo: A PRIMEIRA COMUNHÃO «O Domingo, dia 19 de Junho, foi o dia da primeira comunhão, em Saint-Paul, de 19 rapazes e 16 raparigas e de mais 12 que faziam a comunhão solene. O pároco deu um brioche a cada um. Fomos a cantar para a igreja. Andámos na pândega. O Castelli apanhou uma bebedeira. Também havia alguns homens hébrios. Em casa comemos bolos deli­ ciosos e saborosos coscorões. Os três alunos presentes: Cordara, Castelli e Janinet.» «Lamentável, esta confusão entre a festa religiosa e a festa profana.» É muito possível, mas temos de reconhecer que a Igreja é bastante tolerante no que toca aos excessos da festa profana e que quem pregou a necessidade da comu­ nhão em Saint-Paul foi o pároco, que Freinet já conhecia de Bar-sur-Loup — e que era o mesmo que confessara de uma vez em que tinha vindo muito amistosamente até ao pátio conversar connosco: — O que é que o Sr. quer! Temos de fechar os olhos a estas festas de comunhão! A primeira comunhão representa um lindo vestido para as mamãs dos meninos, uma boa pândega para os homens e quanto aos garotos, esses, coita­ dos, ainda não percebem nada disto! Aliás, não faltam no Livro da Vida de Saint-Paul textos que falam da missa, do pároco, de retiros, de peregrinações, que são a prova da completa imparciabilidade do professor. Mas tão exigente é a susceptibilidade destes clericalistas (que é mesmo o que eles são, neste caso), que acham suspeito um texto como este:

O JOGO DO BERLINDE «Ontem — diz o Eugène — jogamos ao berlinde com o Sr. padre.

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O Baptistin e o Vassalo foram parceiros do Sr. padre, O Marcel e o Marius ficaram comigo. Começamos: o Baptistin faz a pontaria e atira; a seguir atira o Marcel e ganha. O Baptistin atira de novo e por ai fora. Ganhámos nós a partida.» Talvez seja mais fácil dar a entender que Freinet, na sua classe, não destaca convenientemente na sua classe a vida social e política do seu ensino. Eis um documento bem eloquente:

O NOSSO INQUÉRITO «.Nós não gostavamos nada de ter de ir para a guerra. Contudo, houve quatro alunos que disseram que não se importavam de ir. Perguntamo-nos se não estarão a ser insensatos: são o Alphonse, o Baptistin e o Eugène, cujo pai é mutilado, e o Louis.» «Falar sobre a paz não é escandaloso», é o que vai dizer o Inspector, «mas na condição de se estabelecer a distinção, importantíssima, que existe entre a guerra ofensiva e a guerra defensiva!» Estava-se, contudo, em pleno reinado da Socie­ dade das Nações e de A. Briand! «Haverá — escreve o Sindicato Nacional dos Professores Primários dos Alpes Marítimos, que fez uma campanha magnífica a favor de Freinet— uma sanção especial para Freinet, quando todos os manuais escolares estão autorizados a fazer declarações bem mais audaciosas?» «As guerras tomam-se cada vez mais raras, os próprios govemos pregam a paz e apreciam-na ou pelo menos é o que parece.» (E. Lavisse: «Discours aux enfants». Choix de lectures, Mironneau. C. M.).

★ Entretanto, enquanto a Administração da Academia e da Prefeitura, graças a um concurso de circunstâncias um tanto inquiétante, fazia tudo por provar a veracidade das acusações feitas a Freinet, que se passava em Saint-Paul?

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De dia para dia, toda a vila se sentia envolver por uma atmosfera dramática, que se ia adensando e que nos exigia, cada vez com mais acuidade, uma grande lucidez e uma grande prudência. Logo ao princípio apercebemo-nos de uma violenta oposição entre a Saint-Paul dos ricos e a Saint-Paul dos pobres: era um confronto entre as duas classes o que transparecia na atitude face a Freinet. Mas, perante o malogro dos cartazes, perante o malogro da invasão da escola, e sobretudo perante a dedicação da totalidade dos pais a Freinet, os provocadores tentaram um grande golpe. Nos fins de Dezembro realizou-se um grande jantar na casa da Castelã. O pároco foi convidado e a certa altura falou-se do «caso», da possibilidade da criação de uma escola livre, e da greve escolar, porque o Sr. Pároco, quando chega aos licores, considera-se Bretão... No dia seguinte foi de porta em porta espalhar a boa-nova: deixai vir a mim as criancinhas! Foi muito mal recebido: os pais insurgiam-se contra a ingerência de um padre no ensino ministrado às crianças. O malogro foi total: apenas dois ficaram em casa. Então os grandes proprietários mobilizaram-se para pressionar os seus rendeiros: — Se mandas os miúdos ao Freinet, tens de ir arranjar trabalho para outro lado, em Saint-Michel, mas aqui é que não ficas! — Tens de pagar essa dívida, meu caro, se o teu rapaz lá volta a pôr os pés! — A tua mulher está no hospital? Pois então bem podes esperar pela assistência médica! A chantagem teve efeitos desastrosos. O guarda rural, a soldo dos outros, vai esperar os garotos ao caminho e fá-los voltar para trás. O próprio adjunto e os conselheiros municipais põem-se a barrar a passagem aos pequenos ren­ deiros: — Voltem para casa, o Freinet vai-se embora, já está a fazer as malas. As crianças fazem longos desvios para evitarem os 'ba­ tedores.

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Um a um, os filhos dos caseiros foram saindo da escola. Os nossos maiores sacrifícios tanto do ponto de vista humano como escolar era a eles que se deviam. Restavam-nos três. Há tanto que os pais deles eram caseiros da terra, que parecia que ela lhes pertencia. Haviam respondido com toda a calma: — Pois sim! Logo se vê em Saint-Michel como isso é. Se for preciso ir-nos-emos embora. A terra pertence-lhes, mas o meu miúdo, esse é meu, vá à m..! Os alunos grevistas estavam desamparados. Deambula­ vam pela aldeia desocupados. Ã saída das aulas vinham espreitar os camaradas: — O meu correspondente escreveu? És capaz de me trazer a carta dele? — Vi o carteiro trazer uma encomenda: o que é que lá vinha? — Já acabaram o vosso trabalho sobre as azeitonas? O antiquário, esse repete tonitruante a aposta: — No Natal o Freinet vai para a rua! — No Natal ainda há-de estar em Saint-Paul! E, de facto, depois do Natal, as aulas reabrem sem inci­ dentes. A partir de então o nosso serviço de informação funciona em pleno; na aldeia temos pais de alunos, um sem números de amigos, entre os quais Lucien Jacques, que nos foi tão dedicado e, sem fazermos nada para isso, há entre os habitantes da casa da castelã, do antiquário, do presidente da câmara, algumas pesoas que nos informam através de intermediários. Não é de todo inútil porque o drama con­ tinua a agravar-se. Há choques violentos entre os pais de alunos grevistas e não grevistas. Rebentam discórdias no seio das famílias, eclodem disputas, o padre prega a revolta, os católicos organizam a greve à igreja e até durante o catecismo são dirigidas ameaças aos pais que nos perma­ necem fiéis. Temos de nos manter calmos, de dominar a situação sem fanfarronice embora com firmeza. Sobretudo é preciso pregar a serenidade e a paciência aos nossos amigos que já começam a dar mostras de enervamento com tanta injustiça e tanta desonestidade. Alguns dos caseiros pobres, que tão espontaneamente tinham assinado a nosso favor, que tan-

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tas vezes tinham expresso a sua gratidão pelo auxílio que prestavamos aos seus filhos, eram forçados a retirar os garotos da escola e a assinar a favor dos nossos inimigos. Todavia, depois desta perseguição vergonhosa ainda nos restam catorze alunos. Doze abstêm-se. Na pousada, que serve de quartel general aos nossos adversários, funcionam pequenos comités quotidianos — sa­ bê-lo-emos pouco depois. Precisamos de convocar os nossos partidários amiúde, de aplacar as reacções mais violentas, de ordenar, de corrigir os seus protestos e de manter constante­ mente em dia a lista das infracções à lei. Todas as noites são de vigília e precedem uma luta que sabemos ter de ga­ nhar a todo o custo. Além disso, o trabalho escolar tem de render o máximo. E a CEL não pode parar. Não podemos descurar os fins do mês: uma falência seria o fim de tudo! Não sei quantas horas Freinet trabalhava por dia, mas sei que foi a partir dessa altura que ele aprendeu a dormir numa cadeira ou ao canto de uma mesa como se da sua cama se tratasse. A nossa paixão pela luta era tal e a nossa verdade estava tão profundamente gravada nos nossos espíritos, que já nem sentíamos o cansaço. Passámos noites inteiras a dactilografar circulares, a redigir protestos para todos os jornais franceses que nos eram simpáticos. Durante o dia havia as descrições mais ou menos apaixonadas dos amigos, em que era preciso destacar aquilo que nos parecia mais verdadeiro. As coisas complicavam-se. Uma noite o adjunto mandou chamar um empreiteiro italiano: — Se não tiras os teus miúdos da escola, perdes o em­ prego. A câmara tira-te a empreitada e a tua parede pode cair: nem um milímetro de terreno comunal te hão-de dar. O regateio prolongou-se pela noite fora. De madrugada o pobre homem assinou. Voltou para casa: — Eles ganharam... Tive de assinar... Houve uma cena terrível entre a mulher e o marido. Esta chegou a nossa casa desvairada e deixou-se cair no divã. Por momentos julgámos que se tratava de um drama e tivemos de a acalmar, fazê-la compreender que tinha de perdoar o marido e proteger a tranquilidade do lar. Nessa mesma noite o empreiteiro foi ter com o adjunto para riscar a assinatura:

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— A ter de escolher entre a empreitada e Biribi, escolho Biribi. Mas vocês é que não hão-de ter por onde escolher! Como um rastilho de pólvora, um dia espalha-se a no­ tícia: — Eles querem levar a miúda do Freinet, raptá-la, como ao filho do Lindberg. Vigiem-na por amor de Deus! Vigiem-na bem! E de todas as vezes que a Pouponne passava o portão, a boa da vizinha pegava nela, fechava-a em sua casa ou trazia-no-la... Um dia, porém, a Pouponne desapareceu de casa! Fora de mim, corro a casa da vizinha: — Tem-na cá? — Não! Nem na mercearia... nem em casa da Titine... ninguém a viu... Fica tudo doido. Correm-se as ruas. Enfim, a velha professora vem com ela pela mão, lá do fundo da ruela das muralhas... Nunca mais me esquecerei desta doce visão. Anotamos meticulosamente todos os dias as infracções à lei. Resumi-las todas tomar-se-ia demasiado extenso, o que é uma pena, porque daria uma ideia da relatividade dos magníficos princípios dos Direitos do Homem e do Cidadão... Freinet é tido frequentemente por um iluminado, alheio às realidades concretas, vogando nas brumas de uma pedagogia ideal. Durante os acontecimentos de Saint-Paul, verificámos uma vez mais o inquebrantável senso prático de Freinet, que se ajustava à realidade de modo a captar e a coordenar as forças efectivas do momento. Foi agindo como agimos, com objectividade, embora estivéssemos a braços com dificul­ dades permanentes e complexas, sem falhas nem manobras em falso, que nunca demos oportunidade nem aos adversários nem à administração de nos apanharem em falta. É certo que tínhamos sofrido com as injustiças e os erros, mas estávamos no nosso direito ao demonstrar que isso não pas­ sava de moeda corrente da mentira e da calúnia. Assim, apesar da amplidão da luta a nível nacional, nunca deixá­ mos de proceder com lealdade, com lucidez e com coragem. Tínhamos a simpatia de todos, até a dos Dominicanos e Dominicanas que se insurgiram contra as atitudes daquele padre que era obrigado a cumprir as ordens de uma bur­ guesia pretensiosa: o reverendo padre Bernard, ao pregar

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na Páscoa, em Saint-Paul, o fez sentir abertamente. Amigos eram também os numerosos intelectuais e artistas hospedados nos hotéis da terra. Lucien Jacques, André Viollis, René-Schwob, vinham visitar-nos amiúde e encorajar-nos a pros­ seguir na luta. A vida «é uma comédia em vários actos»; em Saint-Paul, aldeia vibrante e tensa ao extremo, o drama e o melodrama tomavam-se característicos. Bruscamente, o cómico, próprio do espírito provençal, todo ele feito de riso e de alegria, entrou em cena. Entre os nossos aderentes contávamos com dois pais de antigos alunos que manejavam a nosso favor as armas subtis da zombaria. Sem se darem ares de tal, com os seus lances espirituosos, aplicavam-se a confundir as individuali­ dades mais destacadas da tal pequena burguesia desdenhosa e arrogante e comseguiam assim semear entre a população um certo descrédito que, embora sem maldade, progredia e dava imenso efeito. Assim, os nossos homens lançam-se um dia a caminho da Saint-Paul dos ricos e vão muito inocente­ mente sentar-se no muro fronteiro à janela da solteirona nariguda que, no seu posto do costume, por trás das persia­ nas, dando fé de tudo o que se passa, aguça o ouvido para as conversas dos passageiros que esperam pela camioneta: — Vai dar no mesmo —diz Arnaud— esta noite eles vão a ser apanhados de surpresa, quando todos esses comu­ nistas chegarem! — Pois — diz o outro — hão-de encher pelo menos uns dois autocarros! — Três autocarros — replica o outro —; assim mesmo é que é... E lá se põem a falar em segredo como grandes conspira­ dores. .. O alerta espalha-se logo pelo campo dos nossos adver­ sários. Empoleirados atrás das muralhas, os nossos rufiões observam a agitação que vai pelo sector do pacífico burguês, que naquele momento estava a ser bruscamente envolvido por uma mobilização geral: chegam carros de todos os lados. O presidente da câmara sai precipitadamente da sua vivenda, a castelã aparece como se viesse a comandar um batalhão de cavalaria, o antiquário adquire a imponência

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militar de um chefe de estado-maior... Por trás das muralhas também se junta gente, mas é um ajuntamento jovial, se­ meado de sorrisos e de motejos, é o ajuntamento das tropas que vão assistir à grande comédia da noite... Cai a noite sobre a aldeia, que a esta hora crepuscular se apresta para ser espectadora da grande estreia da maior e da mais divertida das comédias, extraída da própria vida. À meia-noite, ouve-se o ruído de botas e nota-se grande movimentação militar em todos os quartéis da polícia de Vence, da Colle, de Cagnes, do Saint-Jeanet... Montam-se potentes barreiras nas estradas que conduzem a Saint-Paul. Postam-se sentinelas à porta dos hotéis... De repente ouve-se o ronco dos motores... São as carreiras de desdobramento que chegam de Nice... As sentinelas vão e vêm: — Tudo em ordem na estrada dé Cagnes... — Tudo em ordem na de Colle... — Tudo em ordem na de Vence... — A expectativa é densa, como a que antecede os grandes acontecimentos, mas pouco a pouco começa a surgir a dúvida. Depois dos primeiros clarões da aurora, as pessoas começam a perceber: — Meu capitão, parece que nos pregaram a partida... É então que por trás das muralhas rebenta um riso irreprimível, forte, imenso, irresistível... É o riso generoso da Saint-Paul dos tantas vezes pobres, achincalhada, des­ prezada, que acaba agora de se desforrar da Saint-Paul do egoísmo e da insolência, com a mais subtil de todas as armas... Quando me contaram o sucedido, elaborei no dia seguinte uma espécie de panfleto literário, que saiu no Petit Niçois com o título de «Como no tempo da Maurin des Maures». Calculam-se as ressonâncias que o incidente obteve na aldeia e nos arredores e todas as vantagens que dele advieram para os nossos amigos.

★ Já há mais de quatro meses que os alunos grevistas an­ davam por fora. Os pais estavam exasperados, provável -

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mente mais com o antiquário e com o presidente da câmara do que com Freinet e os seus métodos, que já tinham podido julgar. A aventura nocturna suscitara uma hostilidade aberta contra os dois primeiros. Ameaçavam-nos nestes termos: — Uma vez que afinal o vosso poder não passa disso, voltaremos a enviar os nossos miúdos para a escola! No plano local, e por muito limitadas que tivessem sido as nossas intervenções junto dos pais, que estavam fartos e azedados com tudo aquilo, teríamos ganho a partida facil­ mente. Pormenor significativo: apesar das pressões e das intimidações de todo o género a que já aludimos, nem uma única queixa «assinada» foi enviada pelos pais à Inspecção da Academia. Freinet tinha agora catorze alunos. Os gre­ vistas iam em doze. Era perfeitamente possível recuperar ainda dois ou três elementos. Mas tínhamo-nos abstido deci­ didamente, tal como os nossos adeptos, a quem tínhamos dado ordens nesse sentido, de evitar qualquer espécie de diligências junto das famílias, deixando-as à vontade para escolherem o seu destino, a que poderiamos chamar social. Nesse momento, houve uma ocorrência que nos veio des­ favorecer: um acidente de trabalho, do qual resultou um caso de hospitalização urgente, que levou a família, que era muito pobre, a ir «bater» à porta da câmara... Assim, Freinet perdeu dois alunos de uma vez... Passávamos a estar agora em igualdade numérica com os nossos «adver­ sários». Para manter este quorum, Wuffray, que tinha tido de se instalar em Cagnes, fez o sacrifício de enviar o seu garoto a Freinet, todos os dias, arcando com as despesas da automotora e com as complicações das viagens, que só vinham aumentar as despesas de um lar com seis crianças!

Chega a Páscoa...

As férias passam-se sem incidentes. Dedicamo-nos muito especialmente à CEL e o nosso passeio diário prova-nos que não existe contra nós uma hostilidade aberta, Um dia, na mercearia, encontrei a mãe de um aluno grevista, que me disse: — Sr.a Freinet, olhe que deixou cair qualquer coisa.

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Prontamente, baixa-se e entrega-me um papel que me tinha caído da pasta. Este gesto tão simples comoveu-me profundamente. E como, quando me ia embora, a cumpri­ mentei com o olhar, ela desviou os olhos, que estavam marejados de lágrimas. Antigamente, os filhos dela vinham muitas vezes buscar a minha pequerrucha ou brincar com ela... Sabíamos de fonte segura que estas férias constituíam o derradeiro limite consentido pelos grevistas aos seus tiranos. Esperamos de um momento para o outro uma decisão arbi­ trária da Academia. Mas vivemos numa República(?). É preciso pelo menos que haja um pretexto que justifique uma decisão que, a ser tomada, o será à escala nacional. Além do mais, corre-se o risco de cometer uma ilegalidade que vai dar demasiado nas vistas. Naquele domingo que precedia o recomeço das aulas, à tarde, recebemos três visitas significativas: É Titine que nos vem avisar: — Sei de fonte segura que amanhã de manhã vão fazer uma grande manifestação às 8 horas para impedir que as aulas recomecem. O tumulto vai ser chefiado pelo anti­ quário, pelo presidente da câmara e pela castelã. Depois foi o hóspede da pousada que apanhou qualquer coisa: — Veja se toma cuidado, amanhã! Vai ser um caso sério! À noite, o pai de um aluno, aquele que já apostou uma série de vezes com o antiquário, pergunta: — Tem um revólver, Sr. Freinet? — Não. — Aqui tem o meu. Está carregado. — Não, não quero de modo nenhum. Não vou precisar dele. O senhor bem sabe que é preciso evitar tumultos a todo o custo. — Guarde-o consigo! É o conselho que lhes dou.

Uma patética reunião com os pais dos alunos

Convocam-se os nossos adeptos num abrir e fechar de olhos. Aqui os temos connosco, prontos a lutar como sempre.

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— Eu cá — diz Castelli — encarrego-me de quatro! — Não, não é de vitórias dessas que aqui se está a falar. Temos de alcançar uma vitória, sim, mas será a vitória da prudência e da calma. Têm de compreender que a nossa luta ultrapassa Saint-Paul. Neste momento eu sou um sím­ bolo para todos os professores primários da França c vocês um símbolo para todos os republicanos deste país. O dia de amanhã traz-nos uma enorme responsabilidade. É por esse motivo que, com toda a lealdade, lhes vou fazer duas per­ guntas muito precisas. Conforme as vossas respostas se verá o que temos a fazer. — Estão decididos a enviar os vossos filhos para as aulas amanhã? É bastante grave, como sabem. Um «sim» pode originar-lhes incidentes imprevistos. — Mandamos os nossos filhos, decerto. — Estão decididos a acompanhar os vossos filhos na manhã da reabertura das aulas e a ficar de guarda ao portão enquanto entramos na aula? Têm esse direito como pais de família que são. — Viremos, sim senhor, todos nós. —-Agora vão prometer-me duas coisas. Virão com as mãos e os bolsos vazios, sem armas, sem nada de suspeito. Abrirei o portão às 8 menos 5, Farão as crianças entrar e eu fecharei depois a grade. Evitarão falar com quem quer que seja, para não terem oportunidade de responder com insultos ou ameaças às provocações. — Prometemos. — Então agora vão escrever ao Comissário da Polícia de Vence, pedindo-lhe insistentemente que mande proteger o regresso dos vossos filhos à escola. Assinarão todos. Pela parte que me cabe, vou solicitar à polícia, como professor primário que sou, que faça respeitar a lei que obriga a auto­ ridade a proteger um funcionário no exercício das suas funções. Assim, voltamos a nosso favor todas as oportuni­ dades que a lei nos concede; até agora não nos podem atri­ buir o menor delito de ordem jurídica. Mantenhamos a calma, com dignidade, que tudo se há-de resolver... Uma última recomendação, a ti, oh Castelli, domina-te! Na segunda-feira de manhã levantamo-nos cedo e, do alto do terraço, perscutamos os horizontes.

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A aldeia está calma, não se vê vivalma na rua. Espero ansiosamente pela chegada dos polícias encarregados de pro­ teger a reabertura das aulas. 7 e meia: não se vê ninguém na estrada. 8 menos 20: os polícias aparecem ao longe, numa esquina. 8 menos um quarto: chegam os pais dos alunos endomingados como para uma cerimônia. Alinha-se ao longo da grade e esperam que as aulas recomecem. 8 menos 5 : Freinet vem abrir a porta principal. As crian­ ças entram sem incidentes. 8 horas: os polícias ainda não chegaram. Os pais alinham-se ao longo da grade e esperam. Estou na varanda, domi­ nando-os de uma altura de 2 a 3 metros, de braços cruzados. Estou incumbida de representar aquele que não está à vista e de dar à multidão a imagem da sua calma, da sua dignidade e da sua consciência. Subitamente, vindo de trás da igreja, desemboca um numeroso grupo de crianças e de mulheres, batendo em tachos e panelas, conduzido pela castelã que, por força das circunstâncias, se rebaixou ao ingrato papel de apresentadora de um espectáculo de variedades. O espectáculo é de tal modo grotesco, que os nossos adeptos não conseguem conter o riso. Elevam-se alguns gritos, em que reconhecemos as vozes límpidas daquelas mesmas crianças que, ao longo destes quatro anos, tinham vivido tão próximas de nós: — Abaixo Freinet! Abaixo! Hou- ouhou... Morra! Vociferam durante uns cinco minutos; um punhado de personagens grosseiras, que se lhes tinham juntado, faz-me caretas; e parece que a turba já deu o que tinha a dar. Mas aparecem alguns homens. — Que é feito do antiquário? — Então ele abandona-nos? Vamos rebentar mas é com ele! Vão procurá-lo! — Que é feito do presidente da câmara? — Não o encontrámos... — Vão procurá-lo! Vê-se bem que os nossos adversários, que lutam por uma causa errada, estão a ter dificuldade de reunião...

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Finalmentc chegam o antiquário, o presidente da câ­ mara, por acréscimo, a polícia. — Sr. Presidente! —grita alguém.— Entre! — Ah! Isso não! —diz Castelli. — Quem está de guarda à porta somos nós! — Ele é o presidente da câmara, chefe da comuna! — Nós somos os pais e as mães das crianças que estão nas aulas. O Sr. Presidente que se deixe estar desse lado, que eu fico deste. A multidão toma a pusilanimidade do presidente da câmara como uma espécie de traição; os homens proferem insultos, as mulheres batem nos tachos, as crianças berram. Deitam-me a língua de fora, ameaçam-me, insultam-me. De braços cruzados, impassível, domino este lamentável espectáculo. A multidão está fora de si. Alguém grita: — Arrombem as janelas! Aparecem logo algumas mãos a agarrar-se às persianas. Sacodem-nas violentamente arrancam-lhes o fecho. Um azu­ lejo voa, feito em pedaços. Castelli adianta-se. Fita-me. — Chut! Bruscamente, Freinet irrompe pelo pátio. Com voz de trovão, grita: — Tenho ali catorze crianças à minha guarda! Defendê-las-ei custe o que custar! Se alguém entrar! Aqui tem! E aponta o revólver para a multidão. Regressa à aula só a tempo de ver os vidros das janelas voarem em estilhaços. As crianças, desnorteadas, precipitam-se para Freinet, que as sossega. E a Sr.a C..., que não tem filhos, tenta meter a cabeça para abrir a porta. Uma força descomunal puxa-a para trás: é a mãe de um dos nossos alunos que cumpre o seu dever. Arrepelam-se. A luta acende-se. Consternada, vejo Castelli erguer uma barra de ferro que tinha ali ao pé, do lado de lá da grade... — Castelli! Chut! Freinet subiu para as nossas instalações para pôr os alunos em segurança. A minha pequerrucha entra numa crise nervosa.

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— Anda para dentro!—grita Freinet. — Não, não posso! — Anda para dentro, olha que ela pode morrer! Pego precipitadamente na pequenina, aperto-a contra mim e volto para o meu posto. Nesse preciso momento, Castelli pega na barra... olha para mim... — Chut! E ele, lívido, larga a barra. Tudo se passa num abrir e fechar de olhos. Acalmo a minha filha: — Olha! É Carnaval! Ê Carnaval! Ela descontrai-se ligeiramente. Começamos a acalmar-nos. O pior já se passou. Entretanto, Wuffray tinha partido para Nice. Dirige-se à academia para tentar que o Inspecter parta imediatamente para assumir as suas responsabilidades. Chega o momento do recreio. Freinet sai para o pátio com os alunos. Passeia calmamente para cá e para lá. Os alunos fingem que estão a brincar. Intensifica-se o vociferar: — Hou! Hou! Morra! Agarrem-no! Agarrem-no! Para a coisa tomar um aspecto mais moderno, o Sr. An­ tiquário ensina a multidão a vaiar Freinet compassadamente: —-Vaiem Freinet! Vaiem Freinet, vaiem! Mas não consegue. Os seus partidários querem actos, não canções. Freinet volta para a aula com os alunos. Tentam de novo trepar pela janela da cozinha, mas não passa tudo de uma tentativa de me afastarem do !meu posto. Permaneço calma, indiferente aos gritos e às ameaças. Chegam reforços de Nice. Estão presentes todos os polí­ cias de todos os quartéis dos arredores... Chegam depois as patrulhas móveis. Os urros da multidão chegam até mim. Atiram-me um ou dois projécteis. Alguns revólveres são-me apontados. Um chefe de polícia vira-se para mim e faz-me sinal para me meter em casa. Não arredo pé. Pede para entrar. Freinet vai abrir-lhe a porta. Sobe.

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— Minha senhora, tem de sair daí. Está a excitar a multidão. — Lamento, Estou em minha casa. Estou a defender a minha própria segurança e a da minha família. É a si que compete dispersar essa multidão que me ameaça e me coloca na mira dos seus revólveres. O senhor mesmo reparou que há pessoas armadas e não mexe um dedo! Chegam agora polícias à paisana. — Sr. Freinet, não teime. É uma loucura. Conhecemos melhor que o senhor o perigo que está a correr! Já estive­ mos a falar com os seus inimigos. — E a lei?... Que lhe faz? Sou um funcionário e estou no exercício legal das minhas funções! Faça aplicar a lei! Agora dirigem-se a mim: — Sr.a Freinet, a sua vida está em perigo. Veja se con­ vence o seu marido! É uma insensatez! Esta tarde correrá muito sangue em Saint-Paul! — Os senhores são agentes da ordem ou da desordem?... Onze horas. Hora da saída. Freinet vem abrir a porta principal debaixo de apupos. Mas, apesar das ameaças proferidas ao longo da manhã, não fazem um único gesto contra ele. Os pais levam os filhos. Freinet volta a fechar a porta. As forças policiais montam guarda à entrada. Voltamos para casa para anotarmos as graves infracções à lei, tanto por parte dos nossos inimigos como por parte da polícia. Durante o lapso de tempo que medeia entre o primeiro e o segundo período de aulas, o pároco levou os manifes­ tantes para a sua cave. Quando as aulas recomeçam, temos diante de nós pessoas excitadas, urrando, vociferando, amea­ çando com armas que a polícia nem pensa em confiscar. Aparece o Inspecter da Academia. Lá de fora espera-se pelo seu veredicto. Quer-se, exige-se, a partida imediata de Freinet. — Havemos de o pôr na rua! Morto ou vivo! Havemos de o pôr na rua! Lá dentro, Freinet discute acaloradamente. O que ele receia acima de tudo é que o seu insucesso sirva de pretexto para lançarem a interdição sobre a Tipo­ grafia na Escola.

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A pequena impressora que ali vemos, a caixa, meticulosamente arrumada por mãozitas conscienciosas, simbolizam toda a sua vida. Não cede uma polegada, lança argumentos contra argumentos; tão valorosa é a sua obstinação em defender os seus bens, que o superior se lhe dirige como a um amigo: — Acabo de perder o meu filho. Sei quanto custa a morte. Por si, pela sua esposa, peço-lhe que não se arrisque. Estou pronto a prometer-lhe tudo o que quiser pela con­ tinuação da sua obra. Suba e vá ter com a sua mulher. Discutimos por entre os urros da multidão excitada. Neste momento as pessoas transformaram-se em feras e o pior é que estão armadas. Frente a elas, os nossos adeptos estão de mãos vazias. Vimos até à varanda para os vermos, para nos inspirarmos neles: surgem-nos de repente tão mag­ níficos, tão puros, na sua resistência, que não hesitamos na escolha. Capitular é desiludi-los. Lutar talvez seja expô-los à morte... Só muito depois é que Freinet dita a sua decisão: 1 — O Sr. Inspector da Academia garantirá formalmente que a tipografia escolar não será minimamente afectada com este gesto de apaziguamento. 2 — Freinet aceita uma licença de três meses que lhe foi proposta «oralmente». 3 — Só se compromete a fazer um pedido de transfe­ rência «por escrito» quando o Ministro tiver dado o máximo de garantias à tipografia na escola. O Inspecter da Academia retira-se. Lá fora, precipitam-se para ele: — Ele vai-se embora? — Ele sai de cá? — Calem-se — diz ele. — Respeitem um homem digno. Os punhos erguem-se, as mãos agarram-no e a polícia tem de intervir para o proteger. Os urros continuam por muito tempo ainda. Haviam prometido a estes manifestantes, na sua maioria alheios à escola, que à tarde Freinet seria obrigado a abandonar a escola. «É preciso, escrevia-se na véspera em Le Journal de l'Evéché, apanhar o fétido animal pelo pescoço e arrancá-lo do seu covil...»

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Assim terminou este dia penoso... Noite alta chegam alguns autocarros. Espalha-se pelas ruas uma multidão que força a barreira da polícia e invade a escola: são professores de todos os graus, que nos vêm dar o apoio da sua presença e da sua amizade. Os nossos adeptos entram ao mesmo tempo que eles, abraçamo-nos e choramos de alegria e de decepção ao mesmo tempo. A vaga de visitas retira-se. Tounin e um amigo dele per­ manecem connosco e velam pela nossa segurança. Lá fora os polícias montam guarda à porta principal. Ainda há alguns arrebatados tardios que gesticulam, que proferem ameaças no vazio. Cai a noite sobre estes derradeiros sobres­ saltos de um ódio inutilmente atiçado.

★ Passamos a noite a dactilografar circulares, a dirigir aos nossos superiores hierárquicos cs nossos protestos, ampla­ mente justificados por um dia como foi este; depois apla­ cada a tensão nervosa, com o bairro novamente silencioso, invade-nos uma irreprimível necessidade da presença dos nossos camaradas. Imaginamo-los na sua escola modesta, apaixonados pela sua nobre tarefa, ávidos de futuro... A nossa porta principal não se abrirá esta manhã... Todavia, Freinet acalentava a esperança de ainda poder um dia reconstituir a unidade da sua classe em tomo de si... Teria falado aos seus alunos com simplicidade, com humani­ dade, de todas as verdades de que a criança se apercebe tão bem e que mais tarde, já adulta, esquece... Teria apa­ gado a recordação daquele dia de Saint-Paul... Durante o dia tivemos o interminável desfile dos jorna­ listas que nos vinham entrevistar para os vários jornais franceses. Com receio de que se introduzisse algum provocador ao mesmo tempo que eles, eu recebia-os ao pé da escada... As dez horas uma mão nervosa agita o batente da enorme porta. Desço precipitadamente e encaro com um desconhecido de chapéu amarrotado na cabeça, emocionado e impaciente. — Onde está Freinet? — Não está! — E empurro a porta.

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Volta a bater com violência. Por instantes suponho que a nossa vida está em perigo... — Freinet! Onde é que ele está? Sou Chiarelli de Toulon! Um camarada! Vindo de tão longe para nos trazer a amizade de todos! — Venho apenas —diz ele com toda a simplicidade — pôr ao vosso dispor a minha experiência de professor primário em terras corsas... Sei o que isso é! Lutei sozinho contra as cabalas e ganhei sempre! Vejo-vos decididos, prontos para o ataque! Pois bem! Vamos dar um golpe audacioso! E leva logo Freinet ao próprio ventre do grande quartel general dos nossos inimigos, a Pousada. Que surpresa pro­ voca a entrada de Freinet num café! André Viollis e Marcel Ebrard estão lá e correm para Freinet. Confundido, o em­ pregado do café, que ainda ontem jurava arrancar Freinet do seu posto, vem servi-los... A polícia que montava guarda à porta principal retira-se. Chiarelli sai a fazer a sua ronda, fareja o ar, assesta sobre o Antiquário o seu olhar flamejante de «bandido corso» ... Já corre por todo o lado o rumor de que um agente especial vindo de Paris guarda Freinet... É engraçado ver até que ponto o mesmo princípio de autoridade que consagra as hierarquias e se opõe a todas as alterações subversivas consegue de facto modificar de um dia para o outro a mentalidade de certas pessoas impor­ tantes, que o defendem... O Sr. Oneto, Inspector da Academia, que vivera em toda a sua intensidade aquela tarde em Saint-Paul, na qual pairavam ameaças de morte, na vozearia dos manifes­ tantes, ele que, humanamente, de homem para homem, se inclinara a favor daquele seu subalterno, que quase se havia tomado em herói, ele que, na classe poeirenta, sím­ bolo da miséria e da luta, assumira compromissos formais, será o mesmo que irá renegar, sem o menor remorso, as mais patéticas das suas promessas. Vergado ao implacável princípio da obediência, renegar-se-á a si mesmo, apagando a bela recordação da sua persuasiva bondade, que foi como que um momento de apaziguamento no meio do pior dia da luta.

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Retirará a promessa que fizera aos pais de autorizar Freinet a ocupar-se da preparação para os exames. Recusar-se-á a assumir quaisquer responsabilidades a respeito da Imprensa Escolar. E vai ao ponto de intimar Freinet a fazer «por escrito» o seu pedido de licença dentro de três dias. Caso contrário, tomará, do acordo com o Pre­ feito, «todas as medidas que forem necessárias». Freinet mantém a sua decisão irrevogável: «Se não querem conceder-me a licença dentro das condições que foram estabelecidas, declaro-me pronto a retomar a minha classe amanhã mesmo; e então tomaremos as nossas provi­ dências e bater-nos-emos se preciso for.» Mas passemos para o topo da escada hierárquica e aproximemo-nos da pessoa que está a manejar o princípio da autoridade com tanta desenvoltura: o Sr. Ministro de Monzie. Uma delegação formada por aderentes nossos, pari­ sienses, e encabeçada por G. Péri tinha solicitado uma audiência ao ministro logo após os acontecimentos da Páscoa. Eis o relato da entrevista feito por Wullens: «Depois de apresentados em bloco por Péri, sentamo-nos e, a convite do Sr. de Monzie, Barne começa por dizer: — Sr. Ministro, primeiro queríamos pô-lo ao corrente do caso Freinet... Ao ouvir esse nome, o interpelado dá um salto na cadeira, ergue os braços e vocifera: — Ah! Não! Não me vão voltar a ch... com essa m...! E vendo que nós o fitamos com um ar escandalizado prossegue: — Uma m..., sim, uma pura m...; repito-o e provo-o. Nem sequer vale pela novidade, esse método; já Rolin o referia nas suas obras. Releiam-nas e depois digam-me se não encontram lá isso da imprensa escolar... E lã continua a sua diatribe desenfreada, bastante incoe­ rente, contra Freinet, aquele meio louco, aquele maníaco, adulado por um punhado de estouvados como ele... — E ainda não vos disse tudo: tenho o meu processo e hei-de apresentá-lo à Assembleia Legislativa quando me interpelar, Sr. Péri. Devo dizer-lhe, aliás, que me felicito por ser o Sr. a interpelar-me sobre esse assunto. Sim, é raro,

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e regozijo-me por o poder afirmar diante dos seus camaradas, é raro encontrar na extrema-esquerda um homem tão edu­ cado e tão distinto como o senhor! E lá continuou, a perder de vista —e de ouvido— a falar sobre Freinet, esse meio louco que, ... o qual ... de quem ... e depois, de repente extasia-se com a Sr.a Freinet, artista de valor, mas que se julga na obrigação de seguir o estouvado do marido... etc... Quando lhe falamos do presi­ dente da câmara de Saint-Paul, fascista, oculta-se corajosa­ mente atrás do seu colega do Interior para finalmente nos clamar que não pode fazer nada; já esgotou toda a sua paciência, toda sua indulgência; deixa que as autoridades dos Alpes-Márítimos façam o que bem entenderem...» Sente-se um certo mal-estar ao 1er documentos co-mo este! Na base da escada representa-se um drama, no topo uma comédia da pior qualidade. A pedido dos camaradas e das secções sindicais, Freinet dá início a uma série de conferências. Para ele é mais uma provação, à qual se submete única e simplesmente por dever moral. Não é um bom orador; o seu pensamento, mais propriamente interior, ignora o que seja a perífrase e a sua voz monótona não o ajuda em nada. Além do mais, está fisicamente esgotado. Cada deslocação é o suficiente para o deitar abaixo por alguns dias. Fala em Paris, em Perpignan, em Marselha, em Dijon, em Tours, em Lille, em quase todas as grandes cidades e por todo o lado lhe é manifestada a mais calorosa das simpatias. Nos Alpes-Marítimos, logo após os acontecimentos da Páscoa, realizara-se um grande comício organizado pelo Sindicato dos Professores Primários, com a participação de Francis Jourdain e de Gabriel Péri. Péri contribuiu realmente para a nossa defesa com uma compreensão e uma generosidade dignas do seu grande coração. Freinet espera para muito breve a recusa de recondução ao seu lugar. Num apelo patético que saiu em L'Éducateur Prolétarien, de Maio, apela para os seus camaradas no sentido de que: «Defendam a Imprensa Escolar e as conquistas prole­ tárias! Impeçam por todos os meios que eu seja afastado deste lugar; através de comícios , de ordens de trabalho, de inter­ 259

venções junto dos deputados, de uma campanha na im­ prensa, de petições: é urgente fazê-lo!» Enviam-se então para todos os pontos da França inú­ meras circulares; há páginas e páginas para escrever e dactilografar, direcções para passar durante horas e horas, porque nunca quisemos recorrer ao auxílio de terceiros para dividirmos as responsabilidades do que quer que fosse. Hoje, passados dezassete anos, quando folheamos o «stock» que ainda nos resta dos diversos comunicados escritos no calor da luta, sentimo-nos empolgados pela atmosfera desses tempos de combate. Revivemos as nossas longas vigílias que fazíamos com gravidade, lucidez e combatividade. As nossas duas máquinas tiquetaqueavam pela noite fora e de manhã recomeçava a lide do dia, pleno de acontecimentos, de apreensões e de ameaças. Por algum tempo, a questão de Saint-Paul parece read­ quirir graves proporções. Os adeptos de Freinet, desiludidos com a fraqueza do Inspector da Academia, avisam-no de que começarão por sua vez a fazer uma semana de greve. De vinte e oito inscritos apenas treze frequentam a escola... Cria-se um comité de acção nacional a favor de Freinet. Circulam por todos os departamentos listas de petições. Alziary, Bourguignon, Roger Duthil, Daniel, Leroux, Ruch, que pertencem ao Secretariado do Comité, desfazem-se em trabalho; enviam-se milhares de protestos ao ministro. Ainda possuímos nos nossos arquivos centenas de listas assinadas que os nossos camaradas nos enviaram, que são o comovente testemunho da sua dedicação à sua obra e ao seu iniciador. Ao evocarmos o lento -trabalho de conversas, todo ele feito de persuasão, que precede o dom de uma assinatura, não podemos deixar de nos comover com este silencioso caminho aberto pela convicção e pela amizade. Nomes de trabalhadores de todas as profissões e de campo­ neses figuram ao lado dos nomes de funcionários, de profes­ sores, de altas personalidades do mundo artístico e intelec­ tual. Os mais comoventes são provavelmente os encoraja­ mentos colectivos dos jovens professores-alunos da província, muitos e fervorosos. Os alunos da Escola normal da rua de Ulm, alguns estudantes da Sorbonne, da Escola de Aitos-Estudos, de toda a França trabalhadora intelectual, todos

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se apaixonavam pela nossa aventura e nos acompanhavam. Isso servia-nos de apoio moral e decuplicava as nossas forças. Mas era preciso pôr termo à agitação nacional e à cres­ cente simpatia por Freinet. Caso contrário, ficaria seria­ mente ameaçado o prestígio dos superiores do humilde pro­ fessor primário de Saint-Paul. A 21 de Junho de 1933 Freinet é exonerado por ordem da prefeitura, «no próprio interesse da escola leiga, diz o aviso, que as suas acções estão em vias de comprometer...» Por carta Freinet refuta uma a uma todas as acusações de que é alvo e demonstra até nos mais ínfimos pormenores que todas as graves infracções à lei são imputáveis a uma autoridade administrativa partidária e reaccionária. «O Sr. Prefeito pode aplicar as sanções que tem em vista. Não posso consentir nem tão-pouco deixar de protestar calorosamente contra o facto de o senhor pretender justificar pelo próprio interesse da escola leiga uma medida que a reacção irá acolher com gritos de triunfo, mas que será tida por todos os homens livres como um dos mais graves insultos à escola leiga e republicana.» Mas para onde irá Freinet? Tanto as municipalidades da direita como as da esquerda têm medo de acolher um pro­ fessor primário que, simpático ou não, pode suscitar novos incidentes. Felizmente, em Bar-sur-Loup lembram-se de Frei­ net. O conselho municipal emite uma deliberação especial reclamando Freinet. Para ele é como se lhe tirassem um peso de cima dos ombros. Foi este lugar que viu nascer uma peda­ gogia a qual nem os esforços conjugados da reacção nacional conseguiram dominar. É por esse motivo que Freinet, com uma espécie de orgulho contido, no meio de tantas decepções, escreve L'Éducateur Prolétarien de Junho: «Alguns anos atrás, um ataque destes podia ter-nos sido fatal. Hoje temos a nossa técnica praticamente elaborada e a nossa Cooperativa organizada e consolidada. Deste modo, quando se julgava que se punha apenas em causa um professor primário e algumas tentativas mais ou menos concludentes de educação nova, ergue-se perante os agres­ sores uma hidra de sete cabeças: os nossos aderentes formam frentes em todos os departamentos; as mais altas personali­ dades pedagógicas, artísticas e literárias tomam a defesa das

nossas realizações; as cartas dos educadores estrangeiros apoiam os esforços de franceses que na própria França são desprezados e ignorados.» E o último artigo do ano, «Apesar de toda a esperança», integra-se uma vez mais numa linha de confiança, de tra­ balho e de optimismo: «Durante sete anos trabalhámos humilde e paciente­ mente no aperfeiçoamento das nossas técnicas, na adaptação destas às necessidades escolares e sociais acluais. Nunca esperámos por milagres. Nunca tivemos a pre­ tensão de apresentar a Imprensa Escolar ou qualquer outra técnica como se fossem uma varinha mágica que iria trans­ formar a escola e a sociedade. Por vezes até incorremos no erro oposto: o de conferir uma importância primordial ao meio econômico e social, que actua constantemente como um perigoso obstáculo à reali­ zação dos nossos projectos pedagógicos. Tanto os nossos camaradas como nós não fazíamos mais qua falar sobre o entusiasmo das nossas crianças pelo novo trabalho; mostrávamos os resultados alcançados por uma técnica que finalmente consegue interessá-la e fortalecê-la. Que tenhamos conseguido, sem recorrer a propaganda especial, apenas pelo simples desejo comunicativo de fugir­ mos à rotina e de nos entregarmos generosamente a uma causa, reunir várias centenas de camaradas entusiasmados, constitui uma das mais reconfortantes das nossas vitórias sobre a cobardia e a tradição. O simples facto de lermos presenciado o modo como este grupo unido e compacto se ergueu espontaneamente em defesa da sua obra durante os últimos acontecimentos conso­ la-nos de todas as traições e de todas as capitulações a que tivemos a infelicidade de assistir. Há coisas inevitáveis e salutares. Que importam as vicis­ situdes do momento presente? O essencial é que a ideia avance e que contribuamos com o nosso modesto esforço para a luta decisiva que a história impõe às nossas gerações.» A 28 de Julho Freinet apanhava o autocarro para Bar-sur-Loup. Na praça esperava-o o seu antigo director e os seus antigos alunos. Emocionado, dirigiu-se à modesta sala

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de aula onde a sua ideia tinha nascido e amadurecido. As crianças arrastavam-no e já empurravam a porta... No meio da aula, no velho banco, está instalada a velha impressora poeirenta que tinham tirado de um armário da parede. Caracteres esparsos estão dispostos em montinhos... — Sr. Freinet, repare, estivemos a arrumá-los. Podemos imprimir, vai ver... Ainda há tinta que não secou com­ pletamente. .. À tarde, os alunos de Bar-sur-Loup já anunciavam o seu impresso daquele dia pelas ruas da velha aldeia: — O Sr. Freinet voltou! Viva o Sr. Freinet! Apaziguante reparação da injustiça dos homens...

★ Mas Freinet não podia voltar para Bar-sur-Loup, porque isso poderia significar que aceitava um retrocesso por razões de incompetência profissional. Todos os camaradas eram da mesma opinião. Lallemand lançou a ideia de uma escola nova em Saint-Paul, que seria a escola experimental da CEL. Estava criada a Escola Freinet. Preocupámo-nos apenas em relatar os aspectos essenciais do caso de Saint-Paul que poderá parecer a alguns um pouco despropositado. Na realidade, todos os acontecimentos de Saint-Paul (e não os mencionamos na íntegra porque dariam para encher um volume) foram a prova social imposta à nossa pedagogia da escola popular. Que teria sido de Freinet sem essa obra imponente que pesou no prato de uma balança que estava a ser falseada por um regime essencialmente reaccionário? Freinet não passava de um modesto professor primário de aldeia à mercê de um superior despótico ou de um ministro arrivista e, no entanto, manteve-se no seu posto durante um ano inteiro. É certo que o deveu ao facto de ser um jogador hábil, que sabia utilizar-se dos erros do seu adversário e virá-los contra ele, mas há no ensino público imensos professores que são esmagados irremediavel­ mente, sejam quais forem os seus direitos ou a sua habili­ dade. Freinet aguentou-se, porque contava com a força colectiva dos seus camaradas, aumentada pela sua dedicação à

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escola leiga, pela sua fé num futuro melhor, futuro esse que será preparado pelos nossos filhos, a quem teremos aberto novos horizontes. A questão de Saint-Paul foi a primeira provação que a nossa obra comum sofreu e um sinal da sua perenidade...

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CAPÍTULO VII

1933-1934

Em que ponto se encontra a questão de Freinet no começo deste ano lectivo? Aparentemente está resolvida a nível local, visto que Freinet, de licença tal como eu, não recebeu a mesma classe. Nomearam para Saint-Paul um casal de professores pri­ mários de fora, que obtiveram a autorização de transfe­ rência sem a menor dificuldade, como é de calcular. Instalamo-nos perto da escola, em casa de uma vizinha, e continuamos a viver a vida de Saint-Paul, demorando-nos a conversar com os vizinhos, reconquistando pouco a pouco a simpatia geral, mostrando que estávamos prontos a es­ quecer os acontecimentos passados e dedicando o melhor do nosso tempo ao trabalho na CEL, ainda com mais ardor, visto que ela era agora mais do que nunca a nossa razão de viver. A solução da licença não resolvia completamente a si­ tuação de Freinet em relação à questão de Saint-Paul. É certo que os pais dos alunos não se importavam em retomar uma luta cujas principais vítimas haviam sido os seus pró­ prios filhos, mas o Sr. Antiquário andava exasperado por nos saber ali «pagos para não fazerem nada.» Daí que os deputados reaccionários apelassem logo para o ministro da Educação Nacional; e acenam-nos com a ameaça de exo­ neração...

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A nível nacional prossegue o amplo inquérito à Imprensa Escolar, que de Monzie pedira. Todos os Inspectores que tenham subalternos a trabalhar com a Imprensa na sua circunscrição vão inteirar-se sobre o rendimento das técnicas CEL. Se há alguns, poucos, que deturpam os factos por apego à velha pedagogia ou por servilismo, a verdade é que a grande maioria se mostra declaradamente favorável à Imprensa Escolar. Assumem resolutamente as suas res­ ponsabilidades; poderíamos mencionar alguns relatórios que só abonam em favor da honestidade intelectual dos nossos Inspectores Primários. Ao presenciarem os valorosos esforços dos educadores, que se entusiasmam com as novas tarefas e que se impressionam com os resultados irrefutáveis das nossas técnicas, apoiaram e chegaram mesmo a encorajar os nossos camaradas inovadores. Todavia, a repercussão dos primeiros acontecimentos de Saint-Paul, que foram explorados da maneira que sabemos pela imprensa reaccionária, já tinham produzido os seus ve­ nenosos frutos. Logo a seguir ao caso Freinet rebenta o caso Boyau. Já se andava a preparar há alguns meses. As causas que o provocaram decorrem da pobreza da escola pública: falta de higiene, instalações insuficientes e, sobre­ tudo, falta de água: uma única torneira para três classes! Favorecida por uma série de incidentes entre colegas, em torno dessa torneira única, rebenta uma campanha de calúnia contra os novos métodos e de difamação dos pro­ fessores que os utilizam. Infelizmente, uma colega e o marido ajudam a atiçar os rancores... Enquanto que Freinet, adiantando-se no ataque, levou o seu presidente da câmara ao tribunal correccional, em Camblanes, Boyau, vítima de insultos e de vias de facto, após o arrombamento da classe, foi ele próprio levado a esse mesmo tribunal. À saída da missa distribuem La Liberte du Sud-Ouest, onde os nossos camaradas são grosseiramente insultados. Tal como em Saint-Paul, vão de casa em casa para organizar a greve e, tal como em Saint-Paul, é notória a cumplicidade da Admi­ nistração, que nomeia Boyau e a mulher para outro lugarí Mas em Camblanes a coisa não se passa já com ren­ deiros italianos! A grande maioria das famílias permanece

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fiel a Boyau. As forças de esquerda reagem violentamente, os Sindicatos realizam um comício em Camblanes. É impor­ tante referir ainda que o Inspecter primário toma corajosa­ mente a defesa dos seus subordinados. Estes factos ajudam-nos a compreender o clima de tensão e de luta estabelecido, a nível nacional, pela questão Freinet e assim como o permanente perigo e os escândalos a que estavam sujeitos os nossos camaradas durante estes anos de escalada do fascismo. Nessa altura, não era só a questão dos métodos pedagógicos que era levantada, mas já toda a legalidade republicana a ser posta em perigo naqueles dias de Fevereiro de 1934. A reacção popular e a grande onda republicana que se lhe seguiu provocaram um período de afrouxamento e foi então que Freinet conseguiu impedir que o demitissem e que os Boyau acabaram por ficar em Camblanes. Depois de Boyau, foi a vez de J. Roger e a sua com­ panheira se confrontarem com o arrebatamento reaccionário. De nada lhes serviu terem lutado, nem a simpatia geral das famílias, nem uma imponente manifestação popular de todas as forças de esquerda do cantão, pois tiveram mesmo de abandonar o seu lugar, em Camphin. Lagier-Bruno (Altos-Alpes) é também alvo de uma campanha de calúnias lançada pelo presidente da câmara, senhor todo-poderoso da aldeia: insultos, vias de facto, ameaças de tribunal correccional, a que o nosso camarada consegue furtar-se por pouco, enviando o caso para os tribu­ nais criminais! Aqui e ali, há camaradas que são criticados, transferidos, vistos com maus olhos por uma administração que, com demasiada frequência, se põe às ordens do governo; mas, em todo o lado, respondemos com a perseverança no esforço e a fidelidade aos métodos pedagógicos, que se tranformaram quase numa necessidade, numa parte integrante do pro­ fessor. E foi assim que, com o concurso da coragem e da tenacidade de todos, a Imprensa alcançou o seu direito de cidadania e que a CEL se impôs na França e no estran­ geiro.

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No estrangeiro

É que, de facto, as nossas técnicas, com o auxílio dos acontecimentos de Saint-Paul, enraizaram-se em quase todas as nações e conheceram um novo incremento nos locais onde já eram utilizadas. Durante o ano de 1933-1934, a CEL conta com aderentes na Noruega, onde um jovem pro­ fessor, Storstein, as adapta ao ensino secundário; na URSS, para onde Tchatzki, que tinha vindo ao congresso de Reims, levara o nosso material; na Romênia, onde Biecielescu aplica as nossas técnicas às escolas de adolescentes; na Checoslováquia, em Praga, onde se estabeleceu um núcleo de impressores, e na América do Sul, onde temos, na pessoa da Sr.a Champeau, professora primária, uma activa defen­ sora das nossas práticas educativas. Mas há dois países que merecem uma menção especial: a Espanha e a Bélgica. Com o impulso entusiástico de Manuel Cluet em Madrid e de Almendros em Barcelona, a Tipografia na Escola espalha-se como uma mancha de azeite. Em 1934 Freinet é chamado a Barcelona para fazer uma conferência radiofundida, que obtém um êxito prodigioso, pelo único motivo de ser a pressão simples e autêntica de um método que representa a própria vida. A cooperativa de tipografia constitui-se sem demora em Barcelona e por toda a Cata­ lunha eclodem núcleos pedagógicos CEL: José de Tapia, que foi o principal iniciador da técnica, em Espanha; Conseil (Baleares) ; L. Bover, Anna Gavin (Barcelona) ; Vargas (Cáceres) ; S. Omella (Huesca) ; P. Redondo (Lérida) : são outros tantos nomes de apóstolos que glorificaram, através das nossas técnicas, a bela causa da criança. Por tudo isto não nos espantaremos quando, alguns anos mais tarde, en­ contrarmos na Catalunha, por ocasião das suas primeiras investidas contra o fascismo, quando ela decidiu que era chegado o momento da sua independência, os próprios prin­ cípios da CEL e virmos a Tipografia na Escola ser colo­ cada num lugar de destaque. Na Bélgica, J. e L. Mawet são fervorosos discípulos de Freinet. Conquistados definitivamente no Congresso da Edu­ cação Nova de Nice, durante o qual as nossas técnicas lhes prenderam imenso a atenção os nossos camaradas deitaram 263

imediatameme mãos à obra. Lançaram as bases de uma cooperativa semelhante à CEL, tomando-se a escola de Paudure, em que os Mawet trabalham, numa espécie de escola experimental, que recebe a visita de todas as pessoas interessadas numa pedagogia nova e dinâmica. Com o auxílio de M. Dubois, inspecter escolar, a influência da CEL vai sendo cada vez maior e virá a pesar na orientação do Plano de Estudos belga, que é um dos melhores documentos da pedagogia internacional.

Mais uma vez, tudo a postos!

Esta certeza de estar no bom caminho, de suscitar em tomo de si um movimento pedagógico que continua a inten­ sificar-se, essa satisfação por se saber compreendido, ali­ mentam quotidianamente o optimismo de Freinet. Assim, nos princípios de Outubro de 1933, quando a tormenta ainda não estava completamente serenada, já não nos admira vê-lo tão entusiasmado com o trabalho: Depois da tempestade, preparemo-nos uma vez mais para recomeçar! Tudo a postos para prosseguir a obra encetada, para a enriquecer, para a tomar mais densa de experiência, para aproveitar os ensinamentos dos recentes acontecimentos de Saint-Paul. «Pela primeira vez nos anais do ensino, um ataque vio­ lento, que se utilizou de todos os meios delituosos, no mais revoltante desprezo pelas leis logrou que se castigasse e se transferisse um professor primário acusado de não agradar à reacção e sem que tenha sido sequer esboçada a menor sanção contra os verdadeiros culpados. O exemplo é bem eloquente! Para os inimigos tradicionais da escola significa: amotinem uma parte da população contra os professores primários; obriguem, por todos os meios, os pais dos alunos a recusar-se a mandar os filhos à escola; se preciso for, organizem manifestações em que muito sangue poderá correr, e vencerão...» Com efeito, o grande jornal de Cotty, o Ami du Peuple pouco depois dos acontecimentos da Páscoa, mais precisa­ mente a 22 de Junho de 1933, lançara aos seus leitores um

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apelo no sentido destes organizarem uma «Liga para defesa dos pais de família». «Objectivo da liga: fazer recuar a ordem dos professores primários insolentes, velar pela neutralidade total e pela integridade moral do ensino primário. Instruções: ir esperar à saída da escola todos os profes­ sores primários que tenham tentado envenenar o espírito dos vossos filhos... (as restantes instruções não são mencionadas, mas calculam-se). Resultados pretendidos: é claro que o dito professor se vai queixar, mas que poderá fazer o ministro se repetirmos isto até à exaustão? Ele terá de ter em conta a reacção do povo.» Saint-Paul-de-Vence deu o exemplo. Todos o devem seguir.

Em busca da verdade pedagógica

No entanto, estas palavras de ordem, repetidas por todos os jornais, da reacção, não venceram a resistência dos nossos camaradas, a quem atacavam por serem pedagogos do nosso movimento e da nossa pedagogia. Contudo, os nossos ini­ migos nunca deixaram de abanar o espantalho do bolchevismo e da nossa sujeição a princípios de destruição e de de­ sordem! Com o título de «Em busca da verdade pedagógica», Freinet escreveu o seguinte em L’Éducateur Prolétarien: «Acaso a nossa pedagogia, tal como a definimos e pra­ ticamos, é uma pedagogia revolucionária, e em que medida? Esta a pergunta que há anos acompanha o nosso esforço; uns acusam-nos de extremismo perigosof outros, pelo contrário, duvidam do alcance dos nossos trabalhos sobre os esforços de libertação proletária. Comecemos por precisar que somos pedagogos, não políticos. Nas pesquisas que fizemos nunca partimos de um ponto de vista político o que, quanto a nós, seria uma heresia. Enveredámos pelo novo caminho sem qualquer espécie de apriorismo, mas também sem considerações con­ formistas, sem darmos qualquer importância aos ídolos, aos quais nos negamos a sacrificar seja o que for, derru­

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bando sem piedade as convicções centenárias de uma peda­ gogia tradicional e rotineira, deitando por terra as barreiras que se foram constantemente erguendo entre a escola e a vida, entre a escola e o meio social. Através da Tipografia na Escola alcançámos a fonte da verdade, liberta de todos os sofismas escolásticos que a enfraquecem. Nunca nos preocupámos, em principio, em saber se essa pedagogia poderia ou não receber a etiqueta de revolucionária... Ora aconteceu que, por termos ido buscar a outras fontes os princípios da nossa pedagogia, tínhamos afirmado aquilo de que os educadores se apercebiam confusamente, mas que não se atreviam a dizer. Fazendo-o, contrariávamos certos conceitos, lesavamos certos interesses, feríamos certos amores-próprios e desprezávamos a tradição. Não temos, pois, nada que nos admirar por nos terem cercado, aplicando-nos o estigma de revolu­ cionários, o qual consideravam ignominioso... Que nos censuram afinal? 0 termos permitido que as nossas crianças dissessem que tinham fome, que os seus pais não tinham trabalho, que os ricos bebem champagne do bom — factos que, realmente, são sistematicamente igno­ rados nos manuais oficiais, em que se ostenta um amon­ toado de conhecimentos que, além de pseudomorais, são um instrumento da mística patriótica! Foi essa mesma mística que nos levou aos campos de batalha e que o nosso minis­ tério ainda hoje exalta como um dever inerente ao nosso cargo. Graças à nossa técnica, o ensino elementar deixará de se basear nessa fraseologia mais ou menos oficial e fundar-se-á no pensamento e na vida das crianças e no seu ambiente natural. Já tivemos ocasião de afirmar que uma preocupação desse tipo é, antes do mais, pedagógica, decorre directamente das nossas concepções educativas e não é ditada por ne­ nhuma ortodoxia de cariz político. Toda a nossa acção tem uma justificação pedagógica, do mesmo modo que a nossa recusa em inculcar nos alunos ideias, sentimentos ou modos de vida que se oponham às suas necessidades fundamentais, a nossa recusa em alhear a criança do seu meio, mesmo que os ensinamentos que lhes

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ministramos estejam em desacordo com as teorias sociais predominantes... ...Um dos grandes defeitos do conceito capitalista da educação popular é a de se pretender, por desejo egoísta, que a escola seja isolada de todos os factos sociais ou políticos que a condicionam ou a destroem. Ora pretendê-lo é o mesmo que contribuir para uma das mais terríveis mentiras da nossa época. Tentem convencer um pedreiro de que ele não se deve importar muito com a consistência do terreno onde vai cons­ truir, ou com a qualidade do material ou com a necessidade de cobrir o edifício para o proteger das intempéries! Esse pedreiro, que é mais lógico e mais humano que os educa­ dores, insurgir-se-ia contra uma tal concepção e uma tal orga­ nização do trabalho, que iria contra o bom senso mais ele­ mentar e contra a necessidade social de tornar eficaz esse trabalho, porque é para isso mesmo que ele se faz. Seguindo o seu exemplo, o educador deve ter presente que a escola, tal como hoje a consideram, não passa de uma peça do grande e complexo mecanismo de formação ou de deformação dos indivíduos. Devia formular sempre estas perguntas: A criança que o incumbiram de educar esta disposta a sê-lo tanto no plano fisiológico como psíquico? Dormiu bem, num quarto arejado? Está convenientemente alimen­ tada? Pode brincar fora da escola? Em casa tem um am­ biente favorável à sua evolução? Caso contrário, se todos os seus esforços educativos são infrutíferos, a quem atribuir a responsabilidade desse facto e quais os processos de obstar a esse estado de coisast de modo a conseguir que o meio infantil se torne finalmente favorável à acção dos educadores? Mal de nós! O professor primário não necessita de ne­ nhuma análise especial para concluir a quem cabe essa res­ ponsabilidade, nas nossas escolas públicas, tão evidente ela é: a falta de trabalho, os pardieiros, a subalimentação, o nervosismo, a tuberculose, as deficiências físicas e mentais, a anormalidade, é tudo fruto do nosso regime de exploração e só desaparecerá quando se instaurar a sociedade socialista.

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Levada até aos seus limites normais, a acção pedagógica transforma-se, pois, necessariamente em acção social e mesmo em acção política... Censurar-nos-ão por traduzirmos a política ou o sindi­ calismo na educação? Como se isso só dependesse de nós! Nem é muito de admirar a atitude anticientífica dos que tentam isolar de uma maneira anormal um facto social tão complexo como a educação de todas as considerações extraescolares que determinam os seus métodos e condicionam a sua evolução. Compete-nos a nós examinar com lealdade e serenidade as questões que se nos põem, abrir os olhos das pessoas, mostrar a necessidade pedagógica da acção social e política e, baseando-nos nessa realidade e nessa verdade, dar aos educadores novas possibilidades de acção, e dar-lhes tam­ bém motivos para terem esperança. Através desta acção clarificadora —e que não é nunca, mas nunca, uma acção de partidário político— aspiramos a fazer de todo o educador, que esteja certo da necessidade da luta renovadora, —sejam, aliás, quais forem as suas convicções políticas — um homem capaz de analisar correcta­ mente, numa síntese viva, os factos sociais em que está inse­ rido, de reconhecer firmemente os verdadeiros inimigos da escola proletária e da pedagogia nova, de se erguer contra o regime antieducativo a que estamos sujeitos e de se tornar, na medida das suas possibilidades, num obreiro consciente da educação proletária na futura sociedade socialista. O fascismo ascendente amordaça a pedagogia da velha Europa. As revistas progressistas anglo-saxãs “só têm de nos oferecer o espectáculo de uma penúria que ameaça aba­ ter-se sobre todos: miséria generalizada, falta de verbas...” Foram subitamente interrompidos os contactos com a Alemanha. Bourguignon e Ruch, responsáveis pelos ele­ mentos de estudo dos países de além-Reno, não têm outro remédio senão constatar o fim das experiências originais e a submissão de todas as revistas a uma censura férrea. A Áustria debate-se com a fase final da fascização — a velha fortaleza, a Viena Vermelha, acaba de capitular. Na Espanha triunfam as direitas, A pedagogia progres­ sista lançou já o alarme.

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Na Suíça, tudo leva a crer que, o malogro da Sociedade das Nações se reflecte sobre Genebra, que era o facho do movimento da Educação Nova. Na França, o Manuel Général clama contra as maciças reduções de verbas e Saint-Paul faz-nos compreender qual a sorte que um governo de capitulação reserva às inovações libertadoras (Éd. Prol, de Abril de 34). Para esconder um estado de esuírito retrógrado lançam-se, do topo da escada administrativa, palavras de ordem como estas: A educação é um apostolado! Amem as vossas crianças... sejam meigos... mas firmes... Falem pouco, mas bem... Partam do concreto.... motivem os vossos alunos.... A seu lado, a Igreja repete a sua antífona: o amor e a abnegação continuam a ser os grandes princípios educativos, fora dos quais tudo é materialismo e perdição... Não subestimamos de modo nenhum a força educativa das disposições generosas dos indivíduos: a abnegação, o altruísmo, o amor. A educação individual pressupõe o amor, a educação é amor. A elevação de um indivíduo através do contacto com outro indivíduo pressupõe a formação espontânea ou cons­ ciente de sólidos laços de simpatia, o que só se consegue à custa de um obstinado altruísmo. A isto respondemos nós: felizes os alunos que deparam pelo caminho com um educador que possua um grande coração e que seja capaz de se dar inteligentemente: privilegiados os educadores que possuem, a auxiliar e a reforçar a sua técnica, o dom de cativar, sem o qual ninguém pode considerar-se um com­ pleto educador. Mas, na prática, o mais generoso dos afectos, a mais comovente das abnegações, são incapazes de resolver o problema educativo. Infelizmente, não passam de palavras destinadas a dissimular essa mesma incapacidade, em nome de princípios que foram seguidos na íntegra por muito poucos. Amor, abnegação, sacrifícios! Estas exortações periódicas à dedicação, estes apelos filisteus ao amor pela profissão, lembram-nos os excessos senti­ mentais que, em 1914, enviaram para a carnificina tantos homens que nunca chegaram a vibrar com os apelos infla-

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mados em prol de causas patrióticas. O ímpeto generoso devia prevalecer acima de tudo o mais... Redundou num fracasso, criminoso, ao defrontar-se com a técnica alemã e, depois, já não foi com palavras nem pelo sentimento que a guerra «foi ganha». Serviram-se das palavras e dos grandes ideais patrióticos e humanos para enganar as massas, en­ quanto que a técnica —boa ou má— dominava a defesa e o ataque: canhões, metralhadoras, gás, trincheiras, bom­ bardeamentos, ardis, emboscadas, crimes... Único princípio educativo, o amor! Pois então vão ver o que faz o amor com as crianças que definham nos casebres miseráveis, reparem no que adianta ao pobre aborto que murcha no ar viciado, empanturrado com alimentos nocivos, que todavia lhe são dados à custa dos maiores sacrifícios, o amor da mãe ignorante!... Não dirão, tal como nós: arranquemos esta criança aos tugúrios, às intoxicações, aos cuidados errados; mal do amor egoísta e cego! Demos-lhe ar puro, alimentação sãt espaço para brincar, vigilantes bem preparados, e veremos como a criança se recompõe e desabrocha longe do amor familiar. Mas acontece que infelizmente há quem receie este ma­ terialismo pagão que combate e rebaixa a sua apologia do sofrimento. Invocam então os direitos sagrados dos pais, a salvação das almas, a soberania da caridade e da piedade. Outros movidos por razões muito mais mesquinhas, re­ cusam-se a fazer os sacrifícios indispensáveis pela educação da juventude. Sai muito caro criar e manter creches, associa­ ções de beneficência para crianças e adolescentes, salas de jogos, salas de leitura, e jardins infantis. Então invoca-se o dever que os pais têm de vigiar a saúde moral dos filhos. Para reduzir ainda mais as despesas, amontoam-se os alunos em aulas escuras e insalubres, votam-se os edifícios escolares ao abandono, restringe-se toda a aquisição de material. E dis­ simula-se então esta sabotagem com longos discursos sobre o amor, que transfigura a aula, sobre a palavra meiga, a calma e o autodomínio, que mantêm a disciplina e a har­ monia; dão-vos conselhos gratuitos sobre a maneira de atin­ gir a alma das crianças. E todo o educador, que não tenha ainda descoberto por trás desta verborreia sentimental a grosseira trama reaccio-

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nária, esfalfa-se a seguir uns conselhos que julga generosos e desinteressados; desencoraja-se com a sua impotência e assim se alcançam os objectivas obscurantistas dos servidores da "ordem"... Temos o dever de denunciar a burla de quem, por motivos interesseiros, pretende eternizar a ilusão e de procurar ao mesmo tempo os meios práticos de alcançarmos os principios da educação popular, que terão de ser firmes e imutáveis, para podermos edificar solidamente sobre eles. A nossa orientação já está claramente esboçada na prá­ tica. Dialecticamente, quase todas as pessoas se obstinam hoje em misturar o sentimento com as concepções técnicas predominantes. Os grandes pedagogos dos tempos modernos não recearam entrar nos pormenores práticos da organização escolar. A Sr.a Montessori não se contentou em divulgar os novos princípios da sua pedagogia: criou, montou e mandou fazer um material engenhoso ao qual dá certamente mais importância do que aos seus melhores escritos. O doutor Decroly não receou estudar até aos seus ínfimos pormenores as práticas suscep­ tíveis de permitir uma maior adaptação da escola à criança. Há já quase dez anos que nós nos obstinamos em provar, pela realização de utensílios novos que correspondam às nos­ sas necessidades, que os melhoramentos das técnicas peda­ gógicas, embora menos brilhantes que os discursos ou que os livros famosos, são o único processo de fazer realmente com que a educação popular progrida. Tentamos mesmo suprimir todo o palavreado, lançar simplesmente novas directivas, oferecer material adaptado e dar assim o nosso con­ tributo para realização daquilo que todos os discursos, por muito brilhantes que fossem nunca teriam conseguido. Trabalhamos para a massa das crianças, para a massa dos educadores. Não podemos partir, na nossa pedagogia, de aptidões subjectivas; não podemos basear o êxito da escola popular nos sentimentos místicos dos educadores. A técnica educativa obterá êxito onde se malograram as exortações morais ou moralizantes. Aconselham ao professor primário perdido no meio do seu rebanho de 60 a 80 crianças: Ame-os! Espalhe a sua bondade à sua volta e sentirá poderosamente a sua acção.

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Infelizmente você dá cabo de si a tentar o impossível, a sua dedicação continua a não obter resultados práticos. Realmente talvez o seu grande coração não baste. Nós então descemos dos píncaros místicos e, como prá­ ticos que somos, afirmamos sem peias, se na sua classe não existe um ensino racional, continuará, por muito que faça, a ser no meio do seu rebanho uma autêntica vítima das crianças; esgotar-se-á sem ter conseguido nada de útil. Bem pode apelar para os seus mais nobres sentimentos. Com o cansaço a ajudar, acabará por se encolerizar e por arranjar fortes antipatias e mesmo ódios. É inevitável, porque é humano, assim como é humano que todas essas crianças assim encerradas adquiram a deplorável e perigosa mentali­ dade de rebanho. Aja social e politicamente, não permita que continuem a levá-lo a si e aos outros, para que não se volte a adormecer o povo com essas palavras ocas que mesmo que contenham as formas divinas de bondade e de amor são na nossa socie­ dade desumana a mais cruel das mentiras. Veja se consegue que a sua classe seja desdobrada; esfor­ ce-se por instalar os seus alunos em edifícios espaçosos, are­ jados e banhados pelo sol; vigie mesmo a sua vida material e obtenha para eles, na escola e em casa, as condições físicas adequadas que condicionam a saúde do espirito. Organize o trabalho tecnicamente, nós indicamos-lhe a via a seguir. Que cada criança possa a qualquer hora do dia participar na vida colectiva através de um esforço indi­ vidual que corresponde às suas necessidades, na medida em que corresponde aos seus interesses. Que a sua disciplina e a sua organização no trabalho se harmonizem com o desejo de actividade, de vida das crianças. Não há necessidade de amor místico (é inerente ao homem a simpatia pela criança), mas sobretudo de um conhecimento metódico, de uma pes­ quisa necessária, de um esforço constante para compreender a alma infantil, sentir as suas necessidades e satisfazer os seus desejos. Isto alcança-se com um estudo objectivo e por uma via muito mais inteligente que a do amor subjectivo, que, por demais confiado no seu próprio prestígio, despreza todas estas formas latentes. São elas que, na medida em que

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provêm da própria criança e não dos educadores, levam ao desabrochar e à libertação. Realize estas condições materiais e pedagógicas; informese sobre a organização racional do trabalho e da vida das crianças. Alcançará automaticamente resultados espantosos, mesmo sem estar presente, através do esforço nascido de uma nova motivação: acabarão a irritação, o nervosismo, a fadiga, a tensão que resulta da má vontade entre crianças e educadores, o ódio. Da organização técnica da sua classe brotará uma irradiante simpatia. Nós próprios também acabamos por obedecer a essa mesma lei do amor proclamada por homens notáveis, embora por um caminho menos idealizado. Tornamo-lo no objectivo dos nossos esforços e não no meio anárquico e ilusório de conquistar um paraíso que há séculos revoluteia como uma miragem aos olhos das massas desenganadas. Ampliáamos o âmbito do problema pedagógico para o podermos integrar completamente no vasto devir do homem. Até porque esta organização técnica, fermento e meio de renovação escolar, não é exclusivamente pedagógica; antes de mais é social e, por conseguinte, política. Quando os sindicatos dos professores primários lutam por classes menos cheias, por uma melhor remuneração dos professores primários, pela garantia ãe um melhor recruta­ mento: quando paralelamente à luta dos operários, solici­ tam a criação de mais turmas e de novas escolas, estão a agir de uma maneira concreta e precisa pela organização técnica, cujo promoção é o constante objectivo do nosso grupo. Pelo contrário, qualquer agravamento da superlotação das classes, qualquer redução de verbas, qualquer baixa de nível de vida são ameaças directas às possibilidades de evolução das nossas técnicas pedagógicas. Os governos não o ignoram, mas aproveitam a ocasião para dirigir um apelo discreto a todos os que pregam o amor — e esses farão todos os pos­ síveis por esconder por trás do seu idealismo a miséria técnica, agravando-a assim irremediavelmente. Quer-nos parecer que conseguimos situar o problema pedagógico, tal como ele se põe hoje aos educadores e a todos os trabalhadores, dentro de limites bastante firmes. Não o deixemos agora, para satisfação das necessidades

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sociais da reacção capitalista, regressar aos limites senti­ mentais de um intelectualismo ultrapassado. Continuemos a encarar as realidades tal como elas são, enquanto espe­ ramos — e preparamos— o dia em que operários e campo­ neses, senhores dos seus destinos, possam finalmente conce­ der-nos os meios técnicos de realizarmos a nossa pedagogia popular. Então, na classes renovadas pela paz e pelo tra­ balho, então sim, poder-se-á efectivamente falar de amor. Enquanto esse dia não chega, desmascaremos sem dó nem piedade a mentira das palavras, esclareçamo-nos sobre a via a seguir e ajamos. Que fazer então? Perguntarão os camaradas... Para já, lembremo-nos que estamos a meio da partida. Num momento em que a classe trabalhadora reage tão vigo­ rosamente à escalada do fascismo, não devemos desesperar. Como já é nosso hábito, quisemos dar-vos a ideia exacta dos perigos que corremos, a fim de vos lançarmos e de vos prepararmos para a luta decisiva que nos espera. Temos de prosseguir intrepidamente a nossa acção pe­ dagógica, continuar apesar de tudo com as nossas difíceis experiências que vão implantando lentamente novos marcos no caminho da educação popular libertadora. Os nossos esforços não foram em vão. Contudo, é urgente restituirmos a estas preocupações de ordem pedagógica o seu verdadeiro lugar na sociedade, que seria decerto um lugar de honra dentro de um regime que servisse a criança e o povo. No nosso regime, terá de ser um lugar de combate. Dedicar-nos-emos a empenhar a criança, os pais, os educadores, numa tarefa que de cujo alcance emancipador têm de se aperceber para estarem melhor preparados para levar a cabo uma luta urgente em todos os domínios, social, sindical e político; para dar pão e cuidados aos filhos dos trabalhadores, para lhes construir habitações claras e bem arejadas, para construir escolas mo­ dernas, para as mobilar e prover do material indispensável; para exigir a preparação e a nomeação de novos quadros de professores primários assim como a redução dos efectivos escolares, para ripostarmos às influências embrutecedoras da imprensa, do cinema e da Igreja.

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Apesar de todas as forças reaccionárias e contra elas, os professores primários devem erguer o seu protesto na sua dupla condição de cidadãos e de educadores decididos a integrar completamente a sua tarefa no processo histórico da evolução social. Nesta hora em que vivemos, o nosso dever de educadores proletários não tem de ser cumprido apenas nas nossas clas­ ses ameaçadas: deve sê-lo também no seio das massas que, com o seu poderoso protesto antifascista, fazem por impedir o avanço de um regime que traria a morte da escola progres­ sista e a anulação provisória dos nossos sonhos de uma educação nova libertadora.»

A acção junto dos pais

A luz dos acontecimentos de Saint-Paul revelou-se a urgente necessidade de se aplicar a noção de educação no seu sentido lato, tal como Freinet a considerava: a causa primordial da sua derrota em Saint-Paul estivera no isola­ mento da sua classe, que se tinha visto obrigado a manter: «Até agora uma coisa nós temos descurado em demasia, e não só nós como todas as associações a que estamos liga­ dos — orgânica ou ideologicamente —, que é a acção junto dos pais. É urgente divulgarmos e precisarmos certas noções no seio dos pais proletários... ...Mostraremos como é que, com as técnicas que reco­ mendamos e mesmo neste regime, conferimos à escola e à educação um novo significado, como é que preparamos as crianças, na prática, para um esforço independente e para a luta, como é que, servindo generosamente o futuro do homem, nós pretendemos trabalhar pela acção revolucio­ nária, que é um meio para atingirmos esse fim, mantendo-nos ao mesmo tempo de acordo com a mais genuína tradição pedagógica e dentro da realidade quotidiana, a qual preten­ demos influenciar. Finalmente, temos de convencer o povo que é verdadeira a afirmação de que a função da educação não é por natureza exclusivamente escolar. A escola é apenas uma peça —de 280

somenos importância no regime capitalista — do mecanismo social e político da formação do homem. O professor primário não age na sua classe como um demiurgo; apenas pode auxiliar a vida a desabrochar e a afirmar-se. Como materialistas que somos e embora nao menosprezemos a influência pessoal do educador, temos de compreender que esta, é antes do mais determinada pela compleição física e psíquica das crianças, que é por sua vez dominada pelas condições de trabalho geradas pelo capita­ lismo. Determinantes são também as condições em que o edu­ cador é forçado a trabalhar. Devemos afirmar sempre a incapacidade em que nos encontramos de realizar um tra­ balho aceitável desde que este tenha de ser efectuado em edifícios insalubres, mal arejados, exíguos, equipados com um material rudimentar e com classes escandalosamente superlotadas. Os professores são simples operários e, tal como os nossos camaradas, são incapazes de edificar algo de sólido com um material altamente inadequado, que não nos auto­ rizem, material e pedagogicamente, a usar os nossos mate­ riais como quisermos, indo ao ponto de até nos interrom­ perem a construção sem termos sequer implantado os ali­ cerces. Somos como um camponês a quem mandaram extrair frutos de um campo pedregoso, seco e estéril, sem adubos e com sementes impróprias para aquele terreno e para aquele clima. Impossível evitar um fracasso quase total. Em que medida é que a educação periescolar auxilia a acção da escola? Há a máxima necessidade de se ter em conta a influência da família em regime capitalista, e a influência de todas as forças obscurantistas cujos esforços se conjugam no sentido da manutenção de uma ordem social única: o cinema, a rádio, a imprensa — com os seus jornais para crianças e os seus livros alienatórios para adultos—, os seus livros de cordel e as suas revistas malsãs, a igreja com todas as suas obras ditas filantrópicas que só a ela beneficiam. Como a acção da escola é restrita no meio deste complexo processo social todo ele ao serviço da exploração do homem

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pelo homem! Agora admirem-se- com o lamentável fracasso da educação popular num regime capitalista! Nesta linha de acção e de realização para a qual contri­ buiría enormemente a poderosa acção operária, haveria a possibilidade de instaurarmos uma educação nova e liberta­ dora na escola, que não mais faria das crianças do povo servos e criados. Pelo contrário, faria homens, lutadores, edificadores, capazes de marchar audaciosamente pelas estradas do futuro. Cabe-nos a nós, educadores proletários, continuar esta obra de esclarecimento para atingirmos a realização peda­ gógica dos nossos sonhos de educação nova.» Daqui em diante, Freinet toma a decisão de retomar a sua parte no trabalho no seio das massas. Continuará a acção paciente e contrutiva que iniciara em Bar-sur-Loup. Veremos as suas perspectivas e as suas repercussões sobre a educação popular.

Pedagogia cooperativa

Parece que os trágicos acontecimentos de Saínt-Paul fizeram com que os nossos aderentes se apegassem ainda mais a sua CEL. Assim, dia após dia, tanto durante as aulas como nas horas extraescolares, concluem as suas expe­ riências, cada qual dentro da sua especialidade. Folheando os arquivos enriquecidos com o belo trabalho de todos, sentimo-nos reconfortados e satisfeitos com este fantástico esforço cooperativo. Recordemos alguns aspectos deste enorme trabalho coope­ rativo, que parece ter-se multiplicado ao sentir-se ameaçado de destruição. Já falámos do Ficheiro de Aritmética mostrando como das ideias de cada um, postas em comum e submetidas à crítica, se iam conseguindo extrair as noções essenciais sobre o trabalho vivo, associado ao meio e adaptado aos programas. Em tomo desses pontos essenciais se concentrará ao longo do ano a colaboração de pessoas que se tomarão mais tarde especialistas no assunto: Lagier-Bruno, R. Lalle­ mand e Freinet aos quais se juntará J. Mawet—.encetam-se

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longas discussões sobre a adaptação do método Washbume e Winnetka às exigências CEL. Articula-se a técnica Washburne com o espírito novo CEL, e obtém-se assim uma autêntica iniciação «ideal» em aritmética. Então, para se poder coleccionar, graduar e classificar, apelou-se para todos os camaradas no sentido de se formarem numerosas equipas capazes de adaptar à prática os valores de um espírito novo. Mas há que contar com as exigências das escolas mistas, com vários cursos. Quem se irá ocupar com a iniciação dos mais novos? Será Houssin (Mancha) : «Tive a sorte de poder instalar na minha classe, que por enquanto até tem espaço a mais, um estirador com pelo menos 5 metros de comprido. Soberba mesa de trabalho esta, da qual a criança se pode aproximar à vontade, diante da qual se pode pôr em pé para manejar, quando chega a sua vez, isto é, quando o campo está livre, os elementos materiais postos à sua disposição. Primeiro para fazer uma ideia do que eles são e depois para ser capaz de deduzir por si mesma conclusões úteis e concretas. Numa escola de classe única convém que nos ocupemos antes de mais com os mais pequenos... ...Ninguém se surpreenderá com o facto de deitarmos mão dos mais simples de todos os processos, alguns dos quais estarão até mais próximos da escola infantil. O nosso objectivo é o de tentarmos incutir-lhes a noção de número. Convidamo-los a encher várias caixas ou baldezinhos com areia a um canto do pátio reservado para o efeito. Ou melhor: despejamos lá alguma areia e não preci­ saremos de convidar ninguém. A ideia de quantidade surgirá por si de exercícios como estes. Só precisamos de os vigiar, mais nada. Na aula, ponhamos à disposição dos mais novinhos, na tal mesa: uma bacia cheia de água, chávenas e colheres, uma caixa cheia de grãos, caixas de vários tamanhos, cas­ tanhas e maçãs. Que o sistema métrico se resigne a recordar-se da sua relativa novidade e que nos deixe meditar sobre a universa­ lidade muito mais profunda das diversas medidas que a humanidade empregou durante tanto tempo e de que ainda hoje se utiliza. Se o Sr. Ferrière nos convidasse a fazer num

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dos seus livros uma aproximação entre a infância e a humanidade primitiva, não acharíamos descabido aconselhar a fazer com que os mais pequenos utilizem as diversas medidas de que os nossos remotos antepassados se serviram durante tanto tempo. Contemos com os nossos miúdos em punhados, em colheradas, em pitadas, etc... e fiquemos certos de que nos estamos a colocar por este processo ao serviço do sistema métrico legal, por intermédio de uma aprendizagem das noções relativas à quantidade e à medida.» Assim, dentro de um espirito sensível, característico dos jardins infantis, Houssin vai iniciar os seus camaradas numa técnica de aritmética sensorial e sensível para a qual elaborou todo um material autoeducativo baseado nas manipulações simples que são, digamos, quotidianas, que familiarizam a criança com estas noções de quantidade e de número e já representam toda a matemática. Com o título de «Plano Mesa-Escola activa», para o ensino da aritmética, Houssin elaborou ao longo do ano uma série de artigos extraordinariamente interessantes que alcançarão um grande êxito nas escolas infantis. As professoras das classes infantis e pré-primárias são talvez as que melhor se apercebem desta unidade, a que podemos chamar orgânica, entre a prática e o pensamento. Os artigos de Lina Darche já nos tinham confirmado essa realidade; agora é Jeanne Lagier-Bruno que no-lo vai de­ monstrar numa série de artigos notáveis. Aprender a 1er, a escrever, a contar, a exprimir-se, eis os aspectos mais normais da vida escolar. Tudo isso se pode fazer vivendo e passando agradavelmente o tempo, tempo esse que nem sequer é tempo perdido, mas, que, pelo contrário, até é empregue o mais racionalmente possível. J. Lagier-Bruno demonstra-o num dos melhores artigos dessa sua série, no qual expõe, em traços gerais, um dia passado na sua classe: «... Vejamos como a classe funciona na prática, de molde a permitir que cada um faça o trabalho que escolher, sem contudo deixar de haver unidade no trabalho de conjunto. Chegamos à aula de manhã. Cumprimentamo-nos como pessoas que se alegram por voltarem a ver-se:

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— Eu tenho berlindes... — A minha maninha está doente... — A minha vaca teve um vitelo... Conversamos um pouco e depois vão todos para os seus respectivos lugares, levando consigo o trabalho. Os que têm qualquer coisa interessante para contar redigem-no, tendo em vista a impressão; podem sentar-se dois a dois, do mesmo modo que dois deles podem tratar do mesmo assunto individualmente. Muitas vezes a conversa da manhã sugeriu-lhes um assunto no qual nem sequer tinham pensado antes. Os outros vão fazer um outro trabalho, Há um que vai consultar as fichas que pus à sua disposição a um canto (gravura ou leitura sobre aquilo de que tivemos oportuni­ dade para falar na véspera). Há outro que vai buscar um livro e que lê, em silêncio, no lugar, aquilo que acha mais conveniente; se me vê desocupada, vem ler-me alto «qual­ quer coisa» e todos podem aproveitar da leitura, se quiserem. Um terceiro ilustra o seu livro da vida ou faz um desenho livre. Um quarto vem pedir-me que lhe escolha um problema ou fá-lo ele próprio. Pode acontecer que uma pequenita pegue na sua costura e cosa, enquanto escuta o que a sua companheira lhe está a ler. Posso garantir que nunca hâ uma criança inactiva, a não ser que esteja doente. A criança indecisa faz por vezes, de um modo quase maquinal, o mesmo que o vizinho, mas de repente levanta-se e, obedecendo a um desejo qualquer, começa um outro trabalho. Assim, cada um obedece a uma ordem interior infalível e o trabalho de cada um é útil a todos, porque levam muito a sério o facto de terem de ir mostrar os seus desenhos, de ler as suas redacções e de se entreajudar nos problemas. Entretanto concluem as re­ dacções; cada um vem ler em voz alta aquilo que fez. Antes do recreio fica sempre escolhido o texto que se vai imprimir e escreve-se esse texto no quadro; quem quiser copia-o, mas mudando a pessoa, o que dá ocasião às nossas primeiras lições de gramática. Por exemplo, a Madeleine escreve: «A minha Mamã está doente, tenho de lhe dar o remédio e a minha irmã Marie-Louise tem de tomar conta da minha irmãzinha mais nova.» A Madeleine copia o texto integral­ mente, mas as outras escrevem: «A mamã da Madeleine está

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doente, a Madeleine tem de...» Este trabalho também não é obrigatório, embora todos escutem as explicações. O resto da manhã passa~se com a composição, a tiragem e a ilustração do texto. Isto na turma dos mais velhos (8-9 anos).» O Ficheiro vai adquirindo progressivamente novos as­ pectos. Depois da aritmética era a vez da história passar ao plano prático; sob o impulso de Gauthier, os elementos de estudo comunicados pelos correspondentes eram muito naturalmente incorporados num ficheiro que se ia enrique­ cendo em todas as classes, paralelamente às fichas de his­ tória editadas pela CEL. Como sempre, Freinet encara os factos na sua perspectiva mais lata: esta história que Gau­ thier, como historiador escrupuloso que é, evoca através dos pormenores de ordem documental entrevê-a ele, como filósofo que é, através da grandeza das sociedades mortas e da civilização. Por esse motivo acrescenta ao ficheiro a Crónica de História da França, que publicou como n.° 5 da BT, que se destina a fornecer à criança a ideia da progressão histórica. Exprime a sua intenção num curto prefácio. As ciências também não ficarão para trás. Vovelle encar­ rega-se de recolher todas as informações práticas: «Uma vez que Freinet me pediu para trabalhar na ela­ boração de uma série de fichas de ciênciast repito uma a uma todas as experiências simples, que podem ser executa­ das por qualquer criança... Na verdade, estas experiências, particularmente as de física, até são em número bastante elevado. Logo na primeira recolha obtive um número con­ siderável, que certamente é mesmo superior ao que a Coope­ rativa tenciona editar. Mas não basta. Ainda precisamos de mais, quantas mais melhor, para podermos escolher e estabelecer uma lista — bastante reduzida — que corres­ ponda ao fim que se tem em vista.» Bertoix especializa-se no material de experiência: «No Congresso de Reims fui designado para dirigir a Comissão encarregada de escolher e de mandar fazer aparelhos destinados à educação científica dos nossos alunos mais velhos. É uma tarefa difícil; não basta ter-se jeito para trabalhos

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deste gênero para distinguir os aparelhos que podem ser mais úteis ao nosso ensino. O nosso camarada H. Martin, professor na escola pro­ fissional de Moulins, fez questão de me ajudar e elaborámos juntos uma lista que já contém bastante matéria para dis­ cussão. Este material tem de ser posto à disposição dos nossos alunos: por conseguinte, é necessário não ser muito dispen­ dioso porque as escolas são pobres! São qualidades difíceis de conciliar. E ainda é preciso contar com o material de vidro, que se parte com bastante facilidade! Os alunos partirão certa­ mente algum. Para não o partirem, era preciso que não Iho passássemos para as mãos! Também nos pareceu que no século da electricidade havia uma certa utilidade em familiarizar os nossos alunos com esta nova ciência: hoje em dia, um acumulador é um objecto vulgar. Ouvimos falar em volts, em amperes... Os nossos alunos devem saber essas coisas. É por isso que men­ cionamos os aparelhos necessários para este estudo apesar de serem relativamente caros.» Segue-se a lista de material de base indispensável. De novo as discussões com Combot (Finisterra), com Vovelle, com Martin e, para terminar, resolvemo-nos uma vez mais pelos ficheiros de experiências científicas, como queriam por força Lallemand e Freinet, os dois apadrinhadores do Ficheiro. A responsabilidade é assumida por Vovelle e por Bertoix. Não podemos insistir nestas diversas rubricas: cinema, rádio, discos, apesar de serem a expressão de aspectos bas­ tante sedutores do espírito CEL. Mencionemos, no plano internacional, a fundação, por Bourguignon, da escola esperantista de Verão e o alargamento da secção de correspon­ dência escolar internacional, que, infelizmente, irá ser tra­ vada pelo fascismo. «L’Éducateur Prolétarien»

O boletim da CEL, L'Éducateur Prolétarien, constitui um dos melhores instrumentos de trabalho cooperativo.

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Por seu intermédio, as experiências, as pesquisas, as tentativas e os êxitos iam sendo constantemente vertidos no cadinho da experiência colectiva. «Da dicussão nasce a luz» e só uma crítica que destaque as contradições que existem no interior dos sistemas pode conduzir à síntese mais per­ feita, que vai sendo, por sua vez, constantemente corrigida pela prática. Vejamos como Freinet sublinhava a originali­ dade dessa revista, única no seu géero, na qual nem sequer se punha a questão do lucro e cuja colaboração era gratuita (Éd. Prol, de 15-9-1935): «A partir de Outubro de 1934, L’Éducateur Prolétarien sai de 15 em 15 dias. Esta sua nova periodicidade veio assim acentuar as características que lhe conferem a sua originalidade e ga­ rantem o seu êxito. De facto, somos da opinião de que a teoria pedagógica não serve para nada sem a técnica. Até hoje, temos sido inundados por termos empolados e por belas teorias, mas descurou-se o aperfeiçoamento e a modernização da nossa técnica, A tarefa de L’Éducateur Prolétarien, único em toda a imprensa pedagógica, é essencialmente a de levar aos seus leitores exemplos de realizações, conselhos práticos, ele­ mentos de estudo sobre a técnica que preconizamos, e tudo isso enquadrado por um método seguro que aliás não é mais do que o apuramento prático das experiências, apreciadas por todo o mundo, de Maria Montessori, de Decroly e dos pedagogos soviéticos. De quinze em quinze dias, as nossas revistas trazem, espalhados por diversas rubricas periódicas, todos os ele­ mentos respectantes à Tipografia na Escola, aos Ficheiros, às Cooperativas escolares, à correspondência interescolar nacional e internacional, ao cinema, à rádio, aos discos, ao naturismo proletário, aos Elementos de Estudo internacio­ nais e aos Livros e Revistas. Inclui, além do mais, um anexo com 4 fichas, com a parte de trás em branco, bastando recortá-las como vem indicado para as juntar ao ficheiro.» L'Éducateur foi, no nosso grupo, o veículo de uma discussão permanente em todos os campos. Este confronto

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de ideias, leal e fraterno, cifrou-se numa adaptação cada vez mais perfeita dos nossos utensílios e das nossas técnicas às necessidades das crianças, às possibilidades dos educadores e às necessidades do meio. Não tenhamos a menor dúvida de que é isso que con­ fere às nossas realizações a sua incontestável superioridade. Lamentamos não poder citar aqui as inúmeras colaborações prestadas pelos nossos camaradas ao longo desses vinte anos. De uma maneira ou de outra, contribuíram com o seu apoio, o seu espírito e a sua experiência para a obra colectiva. O trabalho une as pessoas. L'Éducateur foi o laço fraterno que uniu a CEL. Surge uma nova crônica em L'Éducateur Prolétarien: o naturalismo. Termo que até nos trouxe bastantes dissabores e que fez com que ainda hoje pese sobre Freinet uma espécie de suspeita idealista e ingênua que o identifica com certos espiritualistas lamurientos que se entrincheiram no isola­ mento pueril do retomo à natureza. Se o naturismo é focado, decerto que não é para demonstrar que a natureza é toda bondade e perfeição, mas, pelo contrário, para nos convidar a reencontrar nesse mesmo meio indiferente as leis que pre­ sidiram ao nascimento e à evolução da vida. Se aí se fala de naturismo é porque Freinet, o ferido condenado à cadeira de repouso, se tornou num lutador e conseguiu manter a calma e o equilíbrio no meio do esgotamento e da tensão nervosa: cinco anos de boa alimentação e de higiene natural fizeram dele um homem novo, que não receava a fadiga e o nervosismo. A maior virtude do educador não é precisa­ mente a serenidade que isso lhe traz? Além do mais, quando se aborda o vastíssimo problema da educação, não devemos ter acima de tudo em conta o equilíbrio da saúde, que condiciona infalivelmente o comportamento psicológico? E, a corroborar a pedagogia de unidade e de arrebatamento de Freinet, temos Vrocho com a sua terapêutica sintética e dinâmica. A unidade orgânica e a unidade psicológica são dois aspectos da vida. Não existe fronteira entre elas e o bom funcionamento dos mecanismos vitais condiciona o dos mecanismos mentais. A simplicidade do velho humorismo hipocrático ressuscitado por Vrocho vem completar a con­ cepção de um comportamento em bases materialistas. Em-

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pirismo? Certamente que sim; não é verdade que toda a investigação passa por uma fase inicial de tentativa e de experiência? E aquilo, que pretensiosamente se denomina ciência médica, será que é muito mais do que uma pesquisa empírica? Basta que consultemos o códice... Não haverá lógica em atribuir um papel preponderante ao meio interno, formado pela alimentação — que é muitas vezes ignorado — quando se trata de fenômenos da vida condicionados por um meio? Assim como o meio social domina a pedagogia, assim o alimento domina a saúde e assim como existe um meio social ideal para a pedagogia ideal, também existe um alimento ideal para uma saúde ideal. Simplisme? Pode muito bem ser que sim, mas a qualidade essencial de uma ciência médica não será também a de ser simples, acessível a todos? E não será mais curar do que discorrer, concorrendo para a implantação do monumento à ciência médica que por si é incapaz de debelar a doença? Os factos demonstram-no: uma simples higiene pode dominar as irregularidades orgâ­ nicas e doentes condenados pelos maiores médicos podem viver ainda uma vida quase normal se voltarem a seu favor certos factores ambientais. Vinte anos de experiência hão-de acabar por convencer as pessoas de que a doença é muitas vezes curável e de que aprender a viver organicamente é o primeiro dever do educador e a base sólida sobre a qual se pode construir uma personalidade forte. Precisávamos de escrever um livro que tratasse exclusivamente deste problema da vida orgânica e inteligente, que uma ciência de vistas curtas parcelou não para melhor a conhecer, mas para demarcar a esfera de acção de todos os especialistas que par­ tilham entre si o corpo do homem. É claro que o argumento da ciência pura conta para muitos espíritos honestos, mas a ciência pura, assim como a pedagogia pura, não tem forças para barrar o passo aos que estão apostados em transformar o mundo em proveito do homem. Ao longo desse ano de 33-34, procurámos incansavel­ mente um local apropriado para instalar a nossa escola nova. Ãs vezes, durante os passeios que fazíamos ao domingo, dizíamos com uma espécie de esperança: — Olha! Calhava bem para a escola!

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Acontece que nós tínhamos imensos amigos abastados e dedicados, que nos tinham demonstrado uma profunda afeição nos momentos difíceis. Encorajavam-nos a eriar a nossa escola. Os clientes dos hotéis, que se tinham posto todos do nosso lado, mostravam-se interessados com o nosso projecto. Muitos ofereciam-se para nos ajudar monetariamente, imaginando logo, sobre a colina, o belo edifício burguês, que formaria um contraste chocante com a velha escola de Saint-Paul. Muito ingenuamente, Freinet afirmou sem rodeios: — Uma das coisas que mais prezo é a minha indepen­ dência. Não pretendo ofertas, que poderiam forçar-me a uma atitude de reconhecimento, mas sim um empréstimo, que pagarei aos poucos... Quero que a minha classe seja cons­ tituída, na sua grande maioria, por crianças do povo. Primeiro crianças pobres, depois filhos de operários e de funcionários e alguns filhos de burgueses, se lá aparecerem... As bolsas, prestes a abrir-se, fecharam-se. O bom burguês, mesmo o que tem alguns sentimentos, defende os seus privi­ légios de classe e não quer uma escola única, na qual o filho se tenha de sentar ao lado do proletário rude. A partir desse momento, os nossos olhos voltaram-se para as modestas construções provençais, as velhas «casas de campo» dos baldios, há muito abandonadas pelos homens, mas povoadas de pássaros e de liberdade. Um dia descobri­ mos, em Vence, no alto de um outeiro, o objecto dos nossos modestíssimos sonhos: uma casinha grosseira, caiada e rodeada de sebes e de arvoredos. Por todo o lado, espaço livre e o silêncio da natureza. Tínhamos por vizinhos, muito próximo dali, uns espanhóis que, fartos da fábrica, tinham vindo enfiar-se em pleno mato, cavando as terras incultas e plantando vinha e árvores de fruto. A minha mãe e os meus irmãos reuniram as suas economias para comprar o terreno e a casa. Instalámo-nos logo lá. Já tínhamos um embrião de escola, nas cinco crianças que viviam connosco, entre as quais estavam dois pequeninos judeus expulsos da Ale­ manha. Instalámos o material de impressão e o material escolar numa garagem, muito pequena, e as crianças vivem

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horas maravilhosas, distribuídas pela jardinagem, pela escola e pelos passeios. Todas as manhãs, Freinet partia de bicicleta, para Saint-Paul e dirigia-se à sede da CEL, como um operário que fosse para o trabalho, levando consigo a sua frugal refeição. Passava o dia inteiro na Coop., a tratar da contabilidade, de remessas, de transportes, realizando todos aqueles tra­ balhos sem atractivo que, pela vida fora, tantas horas maravilhosas nos roubaram. Congresso de Montpellier (1934)

O ano lectivo termina com o congresso de Montpellier, que se realizou nos dias 2, 3 e 4 de Agosto. Entre a assis­ tência estão Mawet (Bélgica) e Almendros (Espanha). Como sempre, decorre num clima de franca e leal camara­ dagem, que constitui um dos mais reconfortantes aspectos da nossa obra comum. Aproveitamos a ocasião para aperfeiçoar os utensílios educativos. Estudam-se minuciosamente, como sempre, os recentes aspectos de uma pedagogia que é sempre adaptada ao meio social. Agora mais do que nunca, o educador preocupa-se com o meio social, que sente em perigo com a ascensão do fascismo. Temos de nos situar nas condições históricas daquele ano de 1934-1935 para compreendermos as apreensões que se iam avolumando, dia após dia, entre os aderentes da CEL. No plano internacional constatamos o fim das expe­ riências de Viena, de Iéna e de Berlim e a ameaça ao centro pedagógico de Genebra; em França é a aberta hosti­ lidade à CEL, que foi sucessivamente assumindo a forma dos casos Freinet, Boyau, Roger e Lagier-Bruno, e, sobretudo, a redução das verbas para a escola pública, a interrupção da construção de escolas, a diminuição do número de pro­ fessores primários e a redução do seu vencimento base. Em oposição a tudo isto, presenciamos o reforçar das escolas confessionais e as manobras para restituir à religião o seu ascendente obscurantista sobre as multidões. Todos estes graves problemas são objecto de uma longa discussão no Congresso de Montpellier, porque realmente,

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depois do caso de Freinet e dos acontecimentos de Saint-Paul, a CEL corre perigo. Por conseguinte, não admira que, para se defender, ela decida unir o seu destino ao das grandes forças de esquerda que, nesse simbólico 12 de Fevereiro, se uniram e que, face aos acontecimentos, tome uma firme resolução de se defender na sua condição de republicana e leiga. Eis a moção aprovada no Congresso Nacional da CEL: «O Congresso de Montpellier da Cooperativa do Ensino Leigo, certo da necessidade de, a partir deste momento, se lutar contra estas formas insidiosas do fascismo escolar, solicitou-nos que: Déssemos a nossa adesão moral aos diversos movimentos antifascistas. Denunciássemos as formas atrás referidas do fascismo escolar e o agravamento da exploração capitalista. Convidássemos os animadores dos vários movimentos antifascistas a dedicarem especial atenção a estas formas do fascismo escolar. Pedíssemos muito especialmente a todos os professores primários e a todos os educadores que usam da palavra em assembléias antifascistas que não se deixem ficar por genera­ lidades vagas e que se ocupem muito especialmente do fas­ cismo escolar, denunciando as suas hipócritas e perigosas manifestações. Levássemos os pais operários e camponeses a constituir desde já associações de pais proletários, com mais amplos objectivas, de acordo com a linha que acabámos de indicar, de modo a transferirem a sua luta para um novo terreno, o da salvaguarda ideológica da juventude, que é a esperança e o futuro da vitoriosa luta do proletariado. Por os limites da nossa luta ultrapassarem as diversas tendências ideológicas, preocupando-nos apenas com o des­ tino da juventude proletária, é que a Cooperativa do Ensino Leigo soube envolver milhares de professores primários de todas as tendências na acção pedagógica e está certa de que será atendido o apelo que dirige aos núcleos antifascistas e a todas as organizações proletárias para que arranquem das garras do fascismo criminoso os filhos de operários e campo­ neses.»

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CAPÍTULO VIII

VENCE (1934-1935)

Articular a escola com o meio Durante as férias arranjamos a possibilidade de levar os materiais em depósito da CEL para Vence. Os nossos amigos de Saint-Paul dão-nos uma ajuda e assim, mais uma vez, aterramos perto da igreja e cruzamo-nos com as freiras, que se benzem, quando passa Freinet, «o anticristo»... As disputas de Saint-Paul acabam por ser esquecidas; uma nova experiência espera Freinet; o militantisme pedagógico asso­ cia-se ao militantismo social. Ao longo desse ano, que promete trazer bastantes difi­ culdades à escola leiga, Freinet vai empenhar-se em unir o destino da escola aos seus mais próximos interessados, os pais dos alunos, e em tentar erguer uma liga de pais que se mostrara muito necessária durante os acontecimentos de Saint-Paul. «... Todas as associações de pais actuais têm um espírito reaccionário e agregam uma ínfima minoria, a qual, contudo, se acha no direito de falar em nome da massa. 90% dos pais, que são proletários, não estão absolutamente nada orga­ nizados, não conseguem fazer-se ouvir e acabam por se sujeitar passivamente à lei que é ditada por um punhado de reaccionários. É absolutamente necessário acabar-se com este estado de coisas e as amplas massas de pais proletários tomarem consciência dos seus direitos e dos seus deveres. Primeiro, é preciso que o povo se interesse pela verda­ deira educação dos seus filhos, que lhe expliquem e ele próprio se aperceba do alcance e do significado da educação

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proletária que nós queremos contrapor à educação tradi­ cional e que, ao compreender os nossos princípios, se esforce por os fazer triunfar.» Reivindicações extraescolares e periescolares: ... Parece-me que facilitaremos a contribuição das Ligas de Pais se nos esforçarmos por precisar bem as razões que as motivam e os objectives que visam. É para isso que apre­ sentamos o projecto que se segue, pelo qual se poderão orientar as ligas nascentes para fortalecerem ainda mais a sua acção. ...Recordamos o nosso ponto de vista pedagógico tantas vezes repetido: a função educativa não está de modo nenhum confinada às paredes da escola; pelo contrário, é soberana­ mente condicionada pela situação social, econômica e, logo, psicológica das crianças. Os pais proletários devem dedicar o melhor da sua atenção a todas as obras que tentem restituir à criança um máximo de vitalidade, em ambiente de calma e de harmonia (campos de jogos, salas de reuniões, cantinas gratuitas, colô­ nias de férias, edifícios escolares saudáveis, limitação do número de alunos). Reivindicações escolares: Disciplina liberal, aquisição racional de conhecimentos, inimiga da acumulação tendenciosa, que é própria de uma educação falseada, educação humana associada ao esforço do homem no trabalho. Por uma educação de verdade. E, fora da escola, organização dos tempos livres em movimentos de jovens pioneiros proletários.» Todos os pais têm a obrigação e o dever de enquadrar este programa de honestidade e de libertação nas grandes organizações antifascistas, desde que estas aceitem os seus estatutos. Um bom acolhimento aguarda esta iniciativa republicana: os jornais de esquerda reproduzem-na, nomea­ damente o Populaire de 10 de Janeiro e o Humanité de 18; os boletins sindicais trazem-no em anexo. Nomes célebres do mundo intelectual prestam o seu apoio (Barbusse, Romain Rolland, J.-R. Bloch, etc.). Para facilitar a tarefa dos organizadores, Freinet dá início a uma série de Algumas palavras aos pais sobre a pedagogia nova proletária, em que mostra a oposição permanente que

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existe entre a velha pedagogia reaccionária e a pedagogia progressista que é exigida pelo futuro do povo. Depois de ter mostrado o malogro da escola tradicional, Freinet aponta o espírito da educação profunda, que é a que deve ser minis­ trada na escola pública: «Tinha prometido voltar a falar de um outro facto, o do isolamento anormal da escola. A escola é como a igreja. As pessoas vão lá para proce­ derem a uma série de práticas sacramentais que nada têm a ver com a vida exterior. Quando entram tanto numa como noutra, calam-se, tiram o chapéu ou fazem mecani­ camente um sinal da cruz, E depois, como dizia uma criança extraordinariamente espontânea, esperam pela saída. Logo que transpõem a porta da entrada, entram de novo na vida, no seu ritmo, com os seus objectivas e com a sua morali­ dade próprios. Tal como a igreja actual, a escola não é mais que um acidente na vida do homem. A criança vai à igreja até fazer a primeira comunhão e à escola até obter o diploma. Depois começa a vida. Pode-se chamar a isso educação? Pode uma escola assim entendida ter uma influência decisiva sobre o destino do homem? Não tinha a obrigação de funcionar como um mecanismo especifico da vida, de participar nessa vida, de se confundir intimamente com ela, de transpor as suas lições e os seus ensinamentos para o meio natural? Já se viu alguma vez a mãe pata ensinar a teoria da natação aos seus patinhos e um dia, quando tivessem acabado a sua aprendizagem, mergulhá-los no charco onde se iriam afogar? E por que razão a escola havia de se obstinar a ensinar mantendo-se tão afastada do meio social normal e natural, à margem do qual não existe senão palavreado e deformação? Inculcam falsos preceitos de moral nos vossos filhos, porque a verdadeira moralidade é a que decorre dos harmo­ niosos ensinamentos da vida; preparam-se para resolver pro­ blemas complicados sobre a venda ou mistura dos vinhos e, quando lhes pedem que façam uma conta simples e indis­ pensável para a vida prática, ficam mudos porque a escola não lhes ensinou; obrigam estas crianças a aprender o cate­ cismo completo e desencorajador da história tradicional:

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nomes ãe reis, datas de batalhas, declarações de guerra, tudo se confunde nos seus espíritos numa estranha mistura de. que não há-de restar nada. Mas na idade em que são lançados para a vida, os adolescentes não poderão contar nem com as directivas nem com os conselhos sobre a baixeza da política ou sobre a exploração que é feita por todos os parasitas sociais. Finalmente, os vossos filhos serão capazes de recitar de cor belas páginas musicais extraídas dos melhores autores burgueses, mas serão incapazes de com­ preender e de comentar um artigo de jornal e muito mais incapazes ainda de escrever uma carta, de redigir um rela­ tório ou de tomar a palavra numa reunião. A escola preparou alunos. Esqueceu-se de preparar ho­ mens. Não se esqueceu: é de propósito que ela não prepara homens... Obstinar-se em fazer pedagogia pura seria na actual con­ juntura um erro e um crime. A defesa das nossas técnicas faz-se simultaneamente em duas frentes. No plano peda­ gógico, escolar, é certo, onde mais do que nunca temos de ser ousados e criativos, porque o futuro imediato a tal nos obriga, e na frente política e social, pela defesa vigorosa das liberdades democráticas.» Mas se os pais têm necessidade de serem iniciados nestas verdades primordiais, será que o educador está preparado para ministrar essa iniciação? «Infelizmente há quase tanto para fazer pela renovação dos fundamentos da nossa educação no meio docente como no meio familiar. Todavia não vamos escrever Cartas aos Educadores, dado que há já dez anos que vimos desenvolvendo uma acção que visa justamente convencer os professores primários pro­ gressistas das vantagens incontestáveis das novas técnicas. Constatar o grande interesse e a grande simpatia que acom­ panham essa acção é para nós um precioso encorajamento. Lenta mas inabalavelmente, todos os educadores que acom­ panham os nossos esforços, que lêem L’Éducateur Prolé­ tarien, que conhecem os nossos jornais escolares, La Gerbe e Enfantines, que são testemunhas da actividade diferente que anima as nossas classes, todos eles acabam um dia por

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recorrer às nossas técnicas cheios de confiança e de entu­ siasmo. Neste momento, a Imprensa Escolar já é bem conhe­ cida e é quase certo que se contam por milhares os educa­ dores que pensam muito a sério em juntar-se ao nosso grupo assim que as circunstâncias materiais ou psíquicas Iho per­ mitam. Queríamos, contudo, apelar em particular para os milha­ res de professores primários que militam na vanguarda que, por falta de tempo, ou melhor, provavelmente por não se aperceberem do alcance do nosso esforço, se recusam a acompanhar-nos e continuam a praticar a perigosa acumu­ lação de conhecimentos tradicional. É absolutamente neces­ sário que eles se apercebam de quanto a sua conduta dogmática na aula, a sua disciplina autoritária e a sua inconsciente submissão aos programas e aos manuais estão em contradição com as suas ideias sociais e políticas sobre a libertação proletária. Trata-se de uma harmonização da actividade pessoal que fará ao mesmo tempo com que o rendimento pedagógico e social dos seus esforços decuplique... ... Não me venham dizer: temos de fazer urgente e ousadamente a propaganda de derrubar o regime, que é a própria negação do conceito de educação; não temos tempo para renovar a nossa classe. Não desprezamos nem o alcance nem a urgência dessa propaganda. Já nos referimos muitas vezes ao impasse que a educação burguesa atravessa e à única esperança revolu­ cionária que resta à pedagogia proletária. A tal ponto que, se tivéssemos de escolher entre o esforço educativo e o militantismo social e político, dificilmente nos pronunciaría­ mos. Mas sustentamos justamente que a renovação da classe, desde que seja feita de acordo com as nossas técnicas, auxi­ liará os nossos camaradas militantes na sua acção social proletária... ... Camaradas de vanguarda, não continuem a hesitar. Deveis ser também educadores de vanguarda, mas à imagem dos do nosso grupo, que conhecem os obstáculos, que ava­ liam com segurança o alcance dos seus esforços, que estão conscientes do aspecto social e político da educação prole­ tária e que lutam em todos os campos, sem esperanças vãs e

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portanto sem desilusões, com aquele mesmo optimismo entusiástico que há-de- transformar o mundo.» Quanto a Freinet, esse assumirá as suas totais respon­ sabilidades: Primeiro reocupou o seu lugar na luta social, militou politicamente na frente popular e sobretudo socialmente, no plano sindical. Empreendeu um profundo trabalho de orga­ nização cooperativa que partiu do cantão e foi abrangendo progressivamente todo o departamento dos Alpes-Marítimos. Foi obra sua a União Camponesa, à qual se dedicou com paixão igual à que votava ao alargamento da CEL, dado que eram dois aspectos diferentes de um mesmo problema, o problema da educação. Acercou-se dos camponeses, sobre­ tudo dos jovens, com o instinto de quem já trabalhou com a terra, a amou e não tem dificuldade de se integrar na massa de mãos calosas. Com eles e através deles previu o alargamento da sua obra pedagógica ao mesmo tempo que os organizava no plano social das reivindicações ime­ diatas. O melhoramento da escola da aldeia, da escola do povo, é uma das reivindicações do camponês e do operário idêntica às que dizem respeito ao comércio do gado, ao preço de uma hora de trabalho e à carestia da vida. E não é preciso fazer nenhuma demonstração didáctica destas realidades para que o homem do povo as compreenda intui­ tivamente, porque as vive. Quando Freinet, a seguir às questões primordiais relativas às reivindicações sociais, falava aos camponeses no caso Saint-Paul, nos seus métodos e nos horizontes que estes abrem, deparava com uma compreensão grave e com um grande entusiasmo da parte dos jovens: — Havemos de te ajudar a construir a tua escola! — di­ ziam eles. E de facto, aos domingos, grupos de camponeses e de operários jovens vinham trabalhar em equipa ajudando a construir os edifícios, limpando os terrenos para o pousio, traçando caminhos no mato e criando uma atmosfera de alegria com a sua juventude, as suas cantigas e a sua espe­ rança. Nas manhãs desses domingos, Freinet podia partir descansado para os seus deveres sociais e podia ir organizar reuniões nas aldeolas distantes, que, aqui, a sua escola ia-se fazendo.

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Pedagogia cooperativa

Não nos alongaremos desta vez a analisar o espírito dialéctico que continua a garantir o aperfeiçoamento dos uten­ sílios mais importantes, entre os quais se conta o Ficheiro Escolar e a BT, que constituem a base da escola sem ma­ nuais, Nesse ano 34-35 sente-se que o que pesa mais na actividade cooperativa é a necessidade de passar decidida­ mente à prática, de dar a conhecer a instalação técnica da escola em contacto com as realidades. Por esse motivo, os camaradas que já têm uma certa prática enviam regular­ mente para a rubrica «A nossa pedagogia cooperativa» expo­ sições precisas sobre o modo como preenchem o tempo de um dia de trabalho escolar. Guet (Allier) expõe a técnica que utiliza numa classe com três cursos (Pd. Prol. de 15 de Outubro de 1934) e, a concluir, apresenta as novas exigên­ cias do trabalho escolar através de uma série de desiderata, dos quais vamos escolher os seguintes relativos ao meio social: «Convinha que os camaradas empreendessem com os alunos estudos sobre as actividades específicas da sua região (feitura de um quadro, olaria, pedreiras de ardósia, culturas diversas, etc...). Estes estudos, do género dos que fizemos sobre o carvoeiro, o fabrico dos tamancos e a exploração de um abate na floresta, mas mais precisos ainda, com dados numéricos (pesos, medidas, tempos, valores), deveríam ser publicados fosse como fosse e seriam úteis a todos. Há um outro tipo de estudo que teria de ser realizado com a colaboração de todos: uma espécie de inquérito inter­ nacional sobre um mesmo assunto. Por exemplo: estudo de uma quinta (quinta dos Alpes, dos Landes, da Norman dia, da Provença, dos Vosgos, etc... alemã, escandinava, russa, espanhola, etc...) ou, simplesmente, da habitação. Cultura do trigo nas diversas regiões. O problema da água. O trans­ porte das coisas na aldeia, etc... Estes inquéritos apaixonam mesmo as crianças e dão origem a uma quantidade de trabalhos altamente educativos. Ainda se interessariam mais por eles se os pudessem com­ parar com trabalhos semelhantes...»

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Neveu, por seu turno, relata o modo como procede na sua escola mista, com crianças de 8 a 13 anos, em Guignonville (Loirete). Segue uma técnica elástica, evitando cingir-se demasiado aos rigores dos horários e do emprego do tempo, baseando a actividade no interesse profundo decor­ rente da própria vida das crianças e da correspondência nacional e internacional: «Pedes-me, Freinet, que assinale os logros e as desilusões. Eles existem. Há alguns pais que ainda não entendem que haja escolas onde não há professores-polícias nem lições para repetir como castigo... Mas desilusões, não temos mais do que têm os mestres que trabalham com o tempo rigorosamente marcado, amarrados aos programas e à constante obsessão do inspector. Pelo contrário, aqueles que por nada deste mundo acei­ tam a escola viva nuncam chegam a experimentar as nossas alegrias, que não são poucas! Sentimos que a criança está confiante, feliz. Já não somos propriamente mestres, mas guias e amigos. Em suma, trabalhamos sem regras fixas, procurando, todos os dias, tornar a classe mais viva e deixar a criança ter iniciativa no seu trabalho. Evitamos dar-lhe a papinha feita e encher-lhe a cabeça de coisas inúteis. A única sombra poderá, quando muito, provir do nosso receio de não cumprirmos o nosso ideal.» Lança-se uma iniciativa realmente audaciosa: a utilização da imprensa numa classe de surdos-mudos. Quem faz a ex­ periência é Hulin, que trabalha no Instituto Departamental de Surdos-Mudos de Rondin (Norte): «Em que é que a técnica da Imprensa Escolar pode auxiliar o professor de surdos-mudos? Seriam necessários vários anos de experiências para podermos responder con­ venientemente; aqui, a única coisa que podemos fazer é revelar o partido que tirámos dessa técnica tão fecunda; neste momento dirigimo-nos especialmente aos professores de sur­ dos-mudos. Parece-nos que o ensino da linguagem aos surdos-mudos sempre tomou a dianteira ao ensino normal, na medida em que utilizou sempre a via natural. Com efeito, todos os professores de surdos-mudos sabem tirar partido do ensino

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dito “ocasional", da “vida de todos os dias", no dizer dos belgas. Por força das circunstâncias, todos eles se aper­ ceberam de que não havia possibilidade de a vida penetrar na classe, se o professor não se esforçasse por o conseguir, por pouco que o fizesse. Mesmo assim poderemos sempre perguntar-nos se muitos o terão feito. Pessoalmente, sou levado a pensar que estes aconteci­ mentos, estes “retalhos de vida" como Freinet diz e muito bem, deviam estar na base de todo o nosso ensino. Por que razão não havia de ser possível a organização das nossas classes em torno dessa matéria, dessa substância, principal­ mente tão rica em interesse? Que é a única que coloca a criança mesmo no centro do ensino. Um exemplo: de manha, durante um passeio pelo enorme jardim da escola, vemos um pardal pequenino, que tinha caído do ninho, com toda a certeza, a saltitar no meio da horta. Paramos um momento a observá-lo; depois o mestre faz um gesto que quer dizer: Vamos apanhá-lo! Lançamo-nos logo numa correría louca por meio dos canteiros (o jardi­ neiro não nos viu, foi o que valeu!) apanhamos o pardal, que estremece, suplicando piedade com os olhitos brilhan­ tes... Acariciamo-lo, olhamos bem para ele... e depois restituímos-lhe a liberdade. Regressados à aula, elaboramos em conjunto o seguinte texto: “O passarinho corre pelo jardim fora. Anda no meio da horta, está cheio de medo. Está cheio de medo. O pássaro abre o bico. O pássaro voa com as suas asas. À noite o pássaro dorme no seu ninho." Só a última frase é que não contém um aspecto da cena vivida. Foi fornecida em parte por um aluno mais adian­ tado.» Deste modo, recorrendo a exemplos vividos, Hulin ex­ plica como é que conseguiu chegar com os seus pequeninos surdos-mudos a uma técnica de leitura e de escrita, como é que, graças à imprensa, modernizou um material didáctico elástico, que constantemente adapta ao pensamento da criança surdo-muda.

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No entanto, hão-de perguntar-nos, quem é que consa­ grará esses processos? É certo que ao ir contra a corrente reformista, uma pessoa se arrisca a ser criticada e difamada porque a autoridade é, em essência, conformista. Mas apesar disso há alguns superiores compreensivos que souberam emitir juízos isentos, alheios a uma certa erudição que serve muitas vezes de freio ao espírito crítico. Tal é o caso de um inspector geral que, depois de ter feito uma visita à escola dos nossos camaradas Murat (Allier), ficou de tal maneira encantado, que a descreveu na revista oficial L'Enseignement public, Eis uma passagem dessa exposição: «Quanto aos cadernos pessoais dos alunos, são muito variados: um caderno diário para a aritmética e para a moral, em que todos os termos importantes estão sublinha­ dos a lápis de cor; um caderno de francês, lindamente ilus­ trado, contendo textos livres, isto é, elaborados em casa, por cada aluno, sobre os temas que escolheu; esses textos e desenhos livres, também os fazem os alunos mais novos, Além disso, os alunos recolhem à parte as expressões ou as passagens dos seus livros de leitura ou dos jornais que lhes chamaram a atenção e sobre as quais tencionam pedir uma explicação ao professor. Num outro caderno apontam toda uma série de indicações de ordem geográfica, histórica, agrí­ cola e prática, que conseguiram obter: "Dois litros de nata dão um quilo de manteiga — dimensões do tanque de bar­ rela do Sr, Gaume— a máquina do moinho dos Dac des­ casca quatro hectolitros de trigo por hora — capacidade do reservatório de petróleo do Sr. X...— em três horas, com quatro vacas, o papá do Laurençon lavrou um campo de 2400 ms — 2500 espigas de aveia num campo de 30 ares." Estas observações e estes elementos de estudo, recolhidos pelos próprios alunos, são matéria para um bom quarto de hora de ensino colectivo quotidiano, durante o qual os alunos se exercitam a usar os seus conhecimentos. Assim, os alunos são habituados a uma perpétua atenção na escola e fora dela...» E a concluir: «Trata-se, portanto, de um ensino original e altamente educativo, que tem sempre por base o meio familiar da criança, embora não perca de vista o ensino das verdades de

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ordem geral, graças às quais se alarga o seu horizonte. O Sr. e à Sr.a X... são educadores autênticos...» Sempre no intuito de facilitar essa introdução à prática de técnicas de comprovada eficiência, Freinet determina a sua utilização nos cursos complementares e nas classes ele­ mentares dos colégios, conjugando o emprego da imprensa com o do nardigraphe. Já o nosso camarada Sorre, de Bordéus, expusera em L’Éducateur Prolétarien a sua expe­ riência com um CC. A 21 de Dezembro de 1934 transmitiu uma conversa através do posto da Rádio-Bordéus-Lafayette, do qual vamos extrair esta passagem: «... Quanto a mim, vou dizer-vos algumas palavras sobre a minha experiência. Um pouco à pressa, pelo que vos peço que me desculpem, Mas a agulha está a girar. Trata-se de uma experiência que foi realizada num curso suplementar de Bordéus, com jovens de 13 aos 17 anos aproximadamente, o qual os conduz muitas vezes ao Diploma do Ensino Complementar e ao DEPS... ... Preparamos os alunos para exames sérios, que podem vir a decidir do seu destino. Os programas são de tal modo universais e complexos, que todas as nossas horas de aula não são demais, é preciso recuperar constantemente o tempo perdido. Contudo, foi no meio de todas essas dificuldades que nós instalámos a nossa imprensa escolar, E já se pode 1er no boletim, que acabou de ser passado anteontem: ano 3, número 2. Poupo-vos à descrição das demoradas e complexas dili­ gências que tivemos de levar a cabo para obtermos os meios de que necessitávamos para arrancar e para adquirir o material. Mas logo se gerou uma colaboração entre a escola e a família. Antigos alunos, que se tinham tornado tipógrafos, o pai de um aluno — que era também tipógrafo —, vieram dar-nos as indicações fundamentais e as primeiras lições sobre composição, o modo de pôr as máquinas em anda­ mento e a tiragem. Não tenho palavras para descrever o que foi a febre dos primeiros passos, a emulação e a alegria que sentimos ao vermos os primeiros resultados!

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A partir de então, o nosso curso conta pelo menos com três coisas novas: Primeira: uma cooperativa escolar organizada e gerida pelos alunos. Segunda: consegui facilmente que os professores de outros graus de ensino viessem fazer conferências na escola. Um professor do EPS, um professor da Faculdade e três profes­ sores do Liceu consentiram em vir fazer colóquios com os nossos alunos do curso complementar. A terceira é o nosso boletim, L’Équipe, quatro números no primeiro ano e oito números no ano passado, com dois números especiais dedicados ao porto de Bordéus. A Équipe é redigida, composta, paginada e impressa pelos próprios alunos. Desde o inicio da sua publicação que se tem distri­ buído um exemplar a cada um deles, que o leva para casa. Isto pode concorrer — e de fado concorre — para a união, pelo menos moral, da família com a escola. Não podíamos fugir aos programas, mas podíamos contar com a alteração do espírito do ensino, com uma passagem do livresco para o concreto, com a abertura das janelas da escola para a vida e para as realidades do dia a dia. Os boletins não podiam conter dissertações fantasistas nem palavreados. Fora estabelecida a obrigação de basear o enisno na realidade que nos rodeava. — Bordéus e o porto. — O bairro limítrofe da Bastide e as suas fábricas. — A vida quotidiana no bairro, etc... Os deveres fazem-se com maior entusiasmo. Traduzem uma maior liberdade, uma maior expansividade e até, por vezes, uma como que alegria por poderem expressar-se e exprimir as suas ideias. Depois de corrigidos pelo professor, os melhores são reunidos por uma equipa e os próprios redactores os corrigem uma e duas vezes. Pouco a pouco vamos conseguindo, pelo menos numa classe —a melhor—, estabelecer um autêntico trabalho de equipa. É a própria equipa que procura o seu tema, o propõe, recolhe dados no próprio local, discute e trabalha em comum, formando um bloco unido. No primeiro ano é o professor que escolhe livremente os textos que serão lidos e reproduzidos. Estes são com­

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postos pela própria classe e passados e distribuídos a todos. Assim, cada aluno vai fazendo uma colecção que se enriquece constantemente e lhe parece mais pessoal. A composição e a tiragem tomam bastante tempo. classes são divididas por equipas de 4 ou 5 alunos habituados a trabalhar em comum. Quando surge uma dificuldade, resolvem-na por tentativas e só pedem conselho em último caso. A impressão do boletim levanta problemas de paginação, verdadeiros problemas de disposição. Toda a gente participa nesse trabalho, compara, dá a sua opinião. Nalguns deles desperta o gosto por uma composição clara, ordenada, por vezes mesmo elegante. Revelam-se algumas vocações para ilustradores, nos que gravam imagens e desenhos no linóleo. São estas ilustrações adaptadas ao texto que dão um cunho original a L’Équipe. Tentamos, além disso, despertar o gosto pela investigação pessoal. Cada aluno tem o seu livro, mas tem também à sua disposição na própria aula outros livros do mesmo ano ou de anos mais adiantados. Todos os dias se enriquece, com a colaboração de todos, um sistema completo de fichas. Deste modo, a criança tem ao seu alcance elementos de es­ tudo dos quais se sabe aproveitar. Tal como a descrevemos, esta tentativa é realmente bastante modesta, mas representa um esforço concreto de criação de espirito de iniciativa e de bom gosto nalguns dos nossos jovens e também uma habituação ao esforço colectivo e à observação do real. A nós trouxe-nos vários momentos de regozijo, talvez mesmo os melhores desta nossa profissão simultaneamente decepcionante e magnífica...» Finalmente, na ideia de ir ainda mais longe na genera­ lização das técnicas, Freinet estuda os aspectos de uma questão decisiva, que inibe a maioria dos professores hesi­ tantes e que é posta nestes termos: «É necessário introduzir a imprensa nas nossas classes por etapas?» «Que não nos julguem obcecados com as nossas técnicas e inflexíveis nos nossos princípios. Estamos perfeitamente cientes na necessidade de, nas aldeias, se ter o cuidado de

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não ferir as numerosas susceptibilidades e de evitar os ata­ ques hipócritas que agora são mais perigosos do que nunca. Sim, nós também recomendamos prudência. É o pro­ fessor primário que tem de sondar a população, examinar o estado da classe e tomar as medidas que se impõem. Pode tornar-se perigoso pretender revolucionar tudo de uma assentada, suprimir os manuais, deixar de marcar lições e deveres de casa. Já sabemos o que isso é. Mas é preciso evitar o excesso oposto: as nossas técnicas interessam profundamente a criança; os pais procurarão inteirar-se das razões desta renovação do interesse e apoiarão as técnicas que o suscitam. A própria imprensa é frequen­ temente bem recebida por muito pouco propicio que o meio seja por muito que o inspector não queira, durante a visita, como já muitas vezes aconteceu, felicitar o mestre que toma iniciativas tão ousadas. Parafraseando o dito de um pensador, também nós poderiamos dizer que "não é com homens ajoelhados que se ergue uma nova técnica proletária".»

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CAPÍTULO IX

VENCE (1935-1936-1937)

A Frente da infância

Em que ponto se encontra, pois, a escola de Freinet? Com a ajuda dos amigos, com os empréstimos a longo prazo e o constante apoio dos pais lá conseguimos ver, quando acabaram as férias daquele ano de 1935, a nossa escola de pé — escola proletária, como queria Freinet, frequentada por uma maioria de filhos de operários parisien­ ses, alguns casos sociais vindos da Assistência Social, alguns filhos de professores primários que tinham vindo viver connosco por razões de saúde e uns quatro ou cinco filhos de famílias abastadas que se sentiam confiantes no meio de nós. Com a inocência dos puros entregámo-nos à árdua tarefa da instalação, fortalecidos pela sensação de estarmos final­ mente em nossa casa, livres de tomarmos as iniciativas que quiséssemos, senhores do nosso destino. Longos dias leva Freinet a fazer de ajudante de pedreiro, triturando pedras, diluindo cal; para fazer as coisas andarem mais depressa, Alziary e Laurence vêm dar-nos uma ajuda durante as férias na pintura das camas e dos forros de madeira. Tudo para conseguirmos instalar-nos com o mínimo de dinheiro e o máximo de conforto... Nos começos de Setembro, Freinet faz a sua declaração de abertura da classe, que é anunciada de acordo com as normas legais. Tudo parece estar a correr bem posto que, encerrado o prazo para a afixação dos editais, não se gerou nenhum incidente administrativo. A reabertura das aulas

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é trabalhosa dado que quase só temos connosco elementos indisciplinados, instáveis, que têm de ser reeducados a fundo, um pouco todos os dias, durante os próprios inci­ dentes que vão surgindo. Os fins dos meses são difíceis, as preocupações são muitas, mas há que contar também com as grandes alegrias de uma comunidade de crianças. Subitamente, em Fevereiro, o panorama tolda-se: o tri­ bunal correccional ergue-se de novo contra nós! Razão: a abertura clandestina de uma escola! É preciso alertar uma vez mais os camaradas, lutar taco a taco contra uma admi­ nistração prefeitora hostil, mas que desta vez vai ser apa­ nhada na armadilha das suas próprias falsificações: a ordem de encerramento da escola, vinda de Paris, chegara tarde demais! Finalmente, o tribunal correccional transforma-se num simples tribunal de conselho departamental no qual, após uma sessão dramática, Freinet é condenado: não lhe dão autorização para abrir a escola. Mas lá por isso a escola Freinet não deixará de funcionar, mesmo apesar das constantes visitas de inspectores da polícia! E, em vésperas da formação da Frente Popular, o impulso democrático imporá à Educação Nacional a abertura legal da escola Freinet. Doravante, a escola Freinet estará unida ao destino da pedagogia popular, implantada pela CEL, e graças à in­ cansável dedicação de todos os seus membros. 0 trabalho de paciente organização que Freinet empreen­ dera no seio das massas camponesas abre-lhe realmente os horizontes sociais da sua pedagogia. Nas viagens que faz às aldeolas com o fito de constituir sindicatos de camponeses depara com o abandono das escolas, com o seu isolamento da vida do povo e o seu inquiétante recuo no tempo. Como as igrejas, elas são os santuários do silêncio das salmodias do passado. É preciso a todo o custo unir a sorte da escola à sorte do camponês, é necessário que as reivindicações da escola se integrem nas reivindicações das populações rurais, é preciso conferir um carácter militante à pedagogia. De facto, há milhões de camponeses, de operários e de fun­ cionários que se interessam pela sorte da escola, que vai decidir do futuro dos seus filhos. Temos de estabelecer um laço efectivo entre a escola e a actualidade reivindicativa das

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massas. Assim, as graves questões pedagógicas, que compete aos educadores definir, serão integradas na unidade de classe. Por conseguinte, a ocasião presta-se ao lançamento de um grande empreendimento em que Freinet já pensava há muito, que traduziría, na prática, o complexo pedagógico que ele já várias vezes tinha precisado teoricamente. Para tal, perspectiva com toda a clareza as formas militantes da acção: 1.° Integrar a pedagogia nova nas grandes correntes políticas e sociais, representadas pelos partidos e pelos sin­ dicatos; levá-las a encarregar-se das reivindicações da escola paralelamente às suas reivindicações de classe. Neste mo­ mento de avanço do proletariado, quem duvida ainda que a pedagogia nova seja um aspecto da maturidade dessa classe tal como o é, nos seus diversos aspectos, o sindicalismo? Quem não conseguisse compreender esta realidade estaria a incorrer num erro bastante grave e a compreender o futuro. 2.° Temos de nos aproveitar do estabelecimento de um governo popular para fazermos votar leis favoráveis a uma pedagogia popular. Para tanto temos de congregar todos os especialistas em questões pedagógicas e, juntamente com eles, determinar os projectos que favorecem o rápido arranque das técnicas libertadoras e acompanhá-los com intervenções em massa no parlamento deste país. 3.° Está visto que, para lá desse militantismo do ime­ diato, se dará continuidade a uma vasta pesquisa visando o estabelecimento de uma ciência pedagógica baseada na permanente experiência e nos dados novos dela inferidos. Esse é o trabalho permanente do pedagogo que se transfor­ mará muito naturalmente num homem social para poder levar as suas descobertas até às suas últimas consequências. Programa bem nobre e bem vasto, este! Freinet entrega-se-lhe com uma espécie de exaltação. Não passa de um humilde professor primário, cheio de limitações, sem outras armas se não as da sua coragem e da sua inesgotável boa-vontade, mas ao menos fará, ele próprio o diz, «tudo o que puder». E muito pode ele. Já vimos que foi ele quem lançou a Liga dos Pais, que alguns aderentes da CEL estão

a tentar animar. Até há a assinalar uma série de iniciativas bastante simpáticas nesse sentido. Escolhamos uma que foi particularmente audaciosa: o nosso camarada Simon, pro­ fessor primário em Frestoy-Vaux (S.-et-L.), apercebia-se de uma certa desconfiança em tomo da sua escola. Então resolveu pedir ao presidente da câmara que convocasse o Conselho Municipal. E aí, com toda a lealdade e simplici­ dade, expôs aos vereadores e aos pais presentes a prática e o espírito do seu ensino. A discussão foi longa e leal. No registo das deliberações da câmara de Frestoy-Vaux pode ler-se: «26 de Outubro de 1935, às 20 h: assunto: Métodos de ensino do Sr. Simon.» Foi publicada uma cópia deste documento em L'Éducateur Prolétarien de 1 de Novembro de 1935. A Liga dos Pais pode ser considerada a primeira etapa de um movimento mais amplo, com características militantes semelhantes às da Frente Popular, mas especificamente de defesa da criança, que é o da Frente da Infância. Com a militância na Frente Popular, Freinet apercebeu-se do avanço irresistível das massas e continua a ter presente, por trás delas, a imagem da criança, que será quem bene­ ficiará desse avanço. A Frente Popular deve ter um paralelo na Frente da infância. Refere-se a isso nas suas reuniões com os camponeses, embora sem insistir muito. Fala dela nas reuniões da Frente Popular, que é onde melhor se manifestam as neces­ sidades do povo e os seus projectos são recebidos com um certo interesse. O caso de Saint-Paul mobilizou uma série de pessoas e levou a população dos Alpes-Marítimos a aperceber-se pela primeira vez dos direitos da escola e do valor que se pode revestir um determinado ensino. Mas o maior entusiasmo pelo projecto vem da parte do Comité do amplo movimento dos intelectuais pela Paz, o movimento Amsterdão-Pleyel. É da criança que vai brotar o homem de amanhã, é dela que depende o futuro. As mais destacadas personalidades deste Comité Mundial, que representam a honra e o pensamento franceses, interessam-se pelo projecto de Freinet e apoiam-no. Mencionaremos três desses teste­ munhos, cuja responsabilidade foi totalmente assumida pelos seus autores. Em primeiro lugar, o nosso grande Romain

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Rolland, que sempre encorajou Freinet ao longo de toda a sua experiência pedagógica: «Meu caro Freinet, Alegra-me ser presidente honorário da Assembleia Cons­ titutiva da sua Frente da Infância. Só tenho pena de estar tão sobrecarregado, porque assim não lhe poderei prestar a ajuda que pretendia. Conhece a minha simpatia por si e pela sua obra.» Também Barbusse, que está na origem das inovações pedagógicas de Freinet, lhe endereça, pouco antes de morrer, palavras de apoio: «Recebi a sua carta e o seu apelo. A ideia que defende é uma grande ideia que se reveste de uma utilidade social considerável, e é claro que nem hesito em responder ao seu apelo. Além disso, transmiti-lo-ei aos meus camaradas do Comité Mundial e examinaremos em conjunto os meios de prestarmos o maior apoio efectivo à realização desta inicia­ tiva.» A terminar, a carta de J.-R. Bloch: «Se nenhuma outra causa nos movesse, bastante a neces­ sidade de salvaguarda física e moral da infância para come­ çarmos uma revolução. A nossa sociedade está organizada em função do rebai­ xamento do homem e da destruição da criança. Que os nossos contemporâneos, movidos por sentimentos de revolta e de esperança, não se rebelem contra isto, que aceitem esta quase sistemática degradação do homem de que são teste­ munhas, eis uma das mais terríveis condenações que um dia será pronunciada contra eles. Felizmente que ainda há homens como você.» No Congresso da Internacional do Ensino, realizado em Meudon (Agosto de 1935) e que decorreu num clima de grande simpatia, Freinet fez uma exposição na qual focava essencialmente as perspectivas trazidas pela Frente da In­ fância. A ordem de trabalhos apresentada foi votada por aclamação. Também o Grupo Francês da Educação Nova aplaudiu entusiasticamente esta iniciativa que vinha favorecer a educação integral. Foi constituída a seguinte comissão: Presidente honorário: Romain Rolland.

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Secretário-geral : Freinet. Secretário da propaganda: Flayol. Quanto trabalho de organização isto representou para Freinet! Ao recordá-lo, perguntamo-nos como foi possível que um projecto daqueles tivesse sido pensado e posto em prática por um só homem. Mas o entusiasmo é o pão de cada dia da CEL e os nossos aderentes, em vez de aconselharem Freinet a moderar-se, ainda o apoiavam. Para se realizar a nível nacional, este militantismo pres­ supõe a criação de organismos escalonados a partir da base para o topo. Na base estão os 1500 aderentes da CEL e a simpatia popular, mas é também a esse nível que se deve enquadrar o apoio dos sindicatos e dos partidos políticos aos quais compete expressar as verdadeiras necessidades do povo. Freinet não subestima as dificuldades, mas conta vir a ser apoiado e sustentado pelos sindicatos, organismos que considera fundamentais. Esses organismos têm os seus líderes, que estão conscientes das suas responsabilidades, mas que infelizmente também são por vezes bastante ciosos da sua autoridade. De resto, Freinet toma as suas precauções : «Falta a este país um amplo movimento de fundo que seja capaz de impor ao governo uma acção vigorosa e coor­ denada, acção que não se exercerá apenas a favor da escola, mas também a favor da infância e da juventude. O que a Frente da Infância pretende é justamente pro­ vocar esse poderoso movimento de fundo. É óbvio que a Frente da Infância não será de modo nenhum um superpartido, nem um super agrupamento. Não se arrogaria a substituir-se aos partidos proletários nem às organizações sindicais, para as quais apelará sempre. Não pretende entravar a acção específica das organizações que actualmente se ocupam da infância nem quer intro­ meter-se na actividade progressista desta ou daquela indivi­ dualidade. A sua única função é a de coordenar, congregar e apontar os objectivos a atingir, de preconizar meios de agir e de mobilizar a massa popular, caso seja possívelt em torno dessas associações e dessas individualidades para fins pre­ cisos.

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É notório que haverá nela lugar para todos os agrupa­ mentos e para todas as individualidades que desejam real­ mente o bem e o progresso da infância, sejam quais forem as suas tendências políticas ou religiosas, seja qual for o seu campo de acção.» Temos de unir todas essas organizações. Em Moulins, Freinet convoca uma Assembleia Constitutiva, sob a presi­ dência honorária de R. Rolland, que compreende todas as organizações de esquerda: sindicatos, partidos políticos, Liga dos Direitos do Homem, movimentos de jovens, etc... Depois de uma ampla discussão elaboraram-se os Esta­ tutos da Frente da Infância: A escola leiga é uma das grandes conquistas da República. No dia em que for liberta de todas as forças reaccionárias que a atacam, será uma fonte de progresso para o povo.» A Frente da Infância defenderá a escola leiga contra todos os seus inimigos. «2.° Os governos têm relegado sempre para último plano as preocupações relativas à infância. Ao longo destes últimos anos, a reacção não fez mais do que agravar as condições materiais da escola: cancela­ mento de verbas para a edificação de escolas, supressão de escolas, o que leva a uma superlotação anormal das classes. O fascismo não faria mais do que acelerar esta irre­ mediável decadência, que foi mesmo desejada pelas forças obscurantistas. A Frente da Infância lutará em todos os domínios pelo restabelecimento de uma situação normal, pela reabertura das escolas, pela nomeação de mais professores, pelo descongestionamento das classes, a fim de tornar possível a realização do trabalho de educação que será dirigido às crianças do povo e forjará homens, lutadores e obreiros da nova sociedade. 3.c A Frente da Infância tomará, em todas as cir­ cunstâncias, a defesa dos professores primários: material­ mente, apoiando as suas reivindicações, exigindo que lhes sejam atribuídos vencimentos honestos, que lhes permitam consagrar-se inteiramente ao seu sacerdócio; moralmente,

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levando todos a apoioar a escola sempre que o fascismo ou o cléricalismo a ameaçarem, abertamente ou não. 4.° A construção social e a defesa republicana requerem que, em todos os domínios em que se exerça, a obra da educação seja animada por um espírito novo, de livre cola­ boração. A Frente da Infância divulgará as palavras de ordem da escola nova proletária; pela actividade comunitária, por uma disciplina libertadora, por uma escola ligada à vida e aos destinos das massas populares. 5.° A Frente da Infância, consciente dos graves pe­ rigos que poderão trazer à infância e à juventude as publi­ cações para crianças e o cinema comercial, empreenderá imediatamente uma vasta campanha tendente a denunciar as empresas obscurantistas, a encorajar e a apoiar as inicia­ tivas libertadoras e, finalmente, a fazer com que sejam tomadas todas as medidas necessárias à criação de uma verdadeira imprensa infantil, assim como de teatros e de cinemas para crianças. 6.° Para o conseguir, a Frente da Infância agrupa todas as organizações escolares e pós-escolares: cooperativas escolares, organizações de beneficência, caixa escolar, orga­ nizações desportivas, organizações infantis, etc... bem como as diversas organizações de adultos que estejam em condi­ ções de apoiar diversas reivindicações da Frente da In­ fância: associações de pais, sindicatos e organizações várias. A Frente da Infância estimulará ainda a criação e o desenvolvimento de associações escolares e para-escolares nos locais onde elas ainda não existam, uma vez que está decidida, o que não implica que não aceite a adesão das mais destacadas individualidades, a ser, tanto quanto possível, uma espécie de largo traço de união entre organizações que estejam a trabalhar no seu meio específico e segundo as suas modalidades próprias, concorrendo assim para a grandiosa obra de renovação. 7.º A Frente da Infância não esquece que o desen­ volvimento, a educação e os progressos da infância são con­ dicionados, em primeiro lugar, pelo meio social e político e que uma melhoria nítida do nível de vida dos trabalha-

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dores não poderia observar-se sem que as liberdades sociais fossem encaradas numa perspectiva mais ampla. Essa a razão pela qual a Frente da Infância, sem par­ ticipar directamente nas lutas políticas, actuará em es­ treita ligação com todas as organizações que exercem uma acção contra o fascismo, pelo advento de uma sociedade melhor, que nos criará as condições para avançarmos vito­ riosamente para a conquista dos objectivas citados.» Os Estatutos, que são espalhados por toda a França sob a forma de panfletos, vão fazer os trabalhadores meditar no grave problema da criança. E, todavia, este problema, amplo e belo problema, que até interessa à grande maioria das massas da Frente Po­ pular, não pôde traduzir-se numa realização efectiva, apesar do apoio recebido por parte das forças intelectuais do país. E isto porquê? Porque nessa altura a CEE não era um movimento de massas: não conseguiu entrar nos sindicatos e nos partidos políticos, onde se reúnem as grandes forças empreendedoras. O próprio Freinet não foi bem compreendido pelos seus amigos políticos e sindicalistas. No entanto, nada se pode fazer sem que haja uma integração total nas grandes cor­ rentes sociais que acabam de se recusar a aceitar a Frente da Infância. As amplas massas são dominadas por palavras de ordem imperiosas e imediatas no plano político-social : resis­ tência ao fascismo e reivindicações sociais. Embora a neces­ sidade que dita estas palavras de ordem venha da base, elas são formuladas pelos responsáveis, a partir do topo: «Faltaram-nos as ajudas essenciais sem as quais nada podemos, uma vez que não temos meios para realizar a nossa propaganda: CGT, CGTU, Partido Comunista, Par­ tido Socialista, Municipalidades Operárias... Nenhum se mexeu. Em conformidade com as decisões do Congresso de Angers, cumprimos a nossa missão até ao fim. Lançámos a ideia e batemos a todas as portas que supúnhamos que se nos abriríam. Se a nossa ideia não fosse realizável, teríamos ao menos dado o nosso contributo para o poderoso movimento de reorganização popular. Mas ainda ninguém disse que a nossa

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iniciativa não foi levada avante, nem é impossível que um dia destes a Frente da Infância, cuja necessidade mais do que nunca se está a fazer sentir, venha a tomar corpo, mesmo que tenha de o fazer sob uma forma ligeiramente diferente.» Podemos dizer que a Frente da Infância foi um fracasso total? Não, porque iremos assistindo ao aparecimento gra­ dual de várias organizações de defesa da Infância, as quais, sob denominações diversas —Comité da Infância, Frentes Leigas, Amicais leigas, etc. — retomarão os aspectos essen­ ciais do problema e nas quais parte das responsabilidades caberá aos nossos aderentes. É certo que teria sido preferível termos tentado uma frente única em defesa da criança. As forças reaccionárias é que irão promover essa unidade à qual as esquerdas não se dispuseram: «A prova de que a nossa Frente da Infância era uma necessidade reside no facto de a reacção, depois de ter calu­ niado o nosso projecto, o copiar integralmente, lançando uma Liga da Educação Francesa, que é imediatamente apadri­ nhada por Doumergue, Pétain e Weygand, Estava prevista uma reunião constitutiva para 6 de Março, convocada pela Associação dos Pais dos Alunos do Ensino Livre (APEL).» No encerramento do ano lectivo de 36, Freinet faz no seu editorial o ponto dos diversos mal-entendidos surgidos em tomo desse militantismo pedagógico exigido pelos acon­ tecimentos: «Estamos a dar continuidade a uma tarefa ingrata de criação e de construção que requer uma grande lealdade, uma clara consciência das necessidades do momento e uma harmoniosa continuação dos nossos esforços, apesar das modas e das incompreensoes passageiras. É necessário que quem nos rodeia aprenda a julgar-nos com equidade; que os operários e camponeses, a quem pre­ tendemos unir-nos para realizarmos esta tarefa que nos impusemos, se apercebam nomeadamente do móbil real da nossa acção, apoiem as nossas palavras de ordem e divul­ guem as nossas realizações sem dar ouvidos às calúnias interesseiras que os nossos inimigos lançam e alimentam.» Porque está fora de dúvida que os nossos inimigos

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começam por ser os inimigos de uma pedagogia nova, de uma escola leiga renovada, os que se aferram aos privilégios de um passado que nunca mais volta. Freinet vai dedicar-se mais do que nunca a integrar as conquistas de uma pedagogia popular num plano prático, a dar-lhes uma base social e a uni-las aos destinos do povo. Lança imediata­ mente a seguinte palavra de ordem no número de 1 de Outubro de 1936 de L’Educateur Prolétarien: «O movimento da educação nova tem de se tomar num movimento de massas». «Na actual conjunturaf obstinando-nos a jazer pedagogia pura estaríamos a cometer um erro e um crime. A defesa das nossas técnicas, tanto na França como na Espanha, faz-se simultaneamente em duas frentes: na frente pedagó­ gica e escolar, evidentemente, na qual devemos mais do que nunca ser ousados e criativos, porque a tanto nos obriga o futuro que se avizinha, e na frente político-social, pela defesa firme das liberdades democráticas e proletárias. Mas temos de estar ao mesmo tempo nas duas frentes. No interior, a Espanha operária e camponesa constrói, enquanto os seus soldados se batem. Consideraríamos incom­ preensível que houvesse camaradas que praticassem a peda­ gogia nova e não se preocupassem com o desenrolar das partidas decisivas que se jogam mesmo â porta da escoa­ mos ainda acharíamos mais incompreensível que os educa­ dores que se apaixonam activamente ou, na maior parte dos casos, passivamente, o que é pena, pela acção militante, continuassem a ser, na sua classe, uns pacíficos conserva­ dores, receando tudo o que fosse vida e arrebatamento, temendo a desordem aparente da construção e do esforço. Quem quer que se aperceba da necessidade de alterar a fisionomia do mundo deve meter mãos à obra imediatamente; e todos os educadores devem procurar e aplicar na sua classe as técnicas construtivas e libertadoras que hao-de permitir aos adolescentes de amanhã que continuem a obra necessária, pela qual também nós hoje estamos prontos a sacrificar a nossa actividade e a nossa vida. Um grande reforço da nossa pedagogia devia corres­ ponder a este período que vivemos. Consegui-lo-emos se soubermos activar a nossa propaganda no seio da massa

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trabalhadora, e entre os educadores, sem descurarmos as nossas restantes obrigações.» A Educação Nova deve ser um movimento de massas

Para que este grande esforço da nossa pedagogia seja um facto, deve realizar-se em duas direcções. 1.° Ir ao encontro das massas sindicais e incutir nelas o espírito CEL, fazer com que os professores primários compreendam a necessidade de uma pedagogia nova; 2.° Ir ao encontro dos movimentos de Educação Nova para melhor os compreender, para os revigorar e para com a sua ajuda abrasar o mundo inteiro com a pedagogia nova. Vejamos agora como é que estas louváveis iniciativas se concretizam na prática, as suas vantagens e as suas des­ vantagens. As relações da CEL com os sindicatos

Deixemos de lado as conversações, as disputas e os atritos que opuseram, nos anos anteriores, a CEL e a Fe­ deração de Ensino, por um lado, e a CEL e o Sindicato Nacional, por outro. Aliás, quase todos estes atritos são somente uma consequência da rivalidade que existia entre os dois organismos sindicais, no meio dos quais a CEL teria de ter inevitavelmente um papel de intermediária. Estamos em 1936, ano da união dos operários. Vão fundir-se os dois sindicatos do ensino. A CEL contribuiu modestamente para esta unificação sindical e decide envidar todos os esforços para que isso traga o máximo de vantagens para a escola pública. Refere-se-lhes no número de Dezembro de L'Éducateur Prolétarien sob o título «A posição da nossa Cooperativa nos sindicatos»: De facto, trata-se da transcrição das resoluções adoptadas no Congresso de Angers. Há dois aspectos a considerar: o comercial e o pedagógico. «ASPECTO COMERCIAL: A nossa Cooperativa não é uma empresa comercial, mas um organismo de auxílio mútuo pedagógico. Não basta que nos apresentem um ne~

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gócio de material e de edições, por muito interessante que seja do ponto de vista comercial, para que o aceitemos, se não obedecer aos nossos princípios e objectives pedagógicos. Em relação às nossas edições, o nosso principio —temo-lo dito sempre — é o de só nos encarregarmos daquilo que for recusado por todas as casas editoras. Foi aliás dentro desse espirito que nos propusemos no ano passado a ceder a publicação do nosso Ficheiro Escolar Cooperativo e da Biblioteca de Trabalho à Sudel. A nosso posição em relação à Sudel não se alterou. Não só não pretendemos fazer-lhe concorrência, como até Solicitámos a sua colaboração; sempre nos dispusemos a passar-lhe para as mãos empreendimentos deste gênero, cuja divulgação ela podia perfeitamente prever. Havemos sempre de nos entender quanto aos assuntos comerciais, mas há uma coisa em que nós não transigimos: não aceitaremos que os utensílios de trabalho que criámos e aperfeiçoámos pela libertação pedagógica possam um dia vir a ser explorados com fins mercantilistas e a ser esvaziados dessa preocupação. Por outras palavras, se a Sudel quer o nosso Ficheiro, pois muito bem: nós cedemo-lo, mas com a condição de nos podermos certificar, mediante uma colaboração peda­ gógica, de que a nossa obra será continuada no sentido em que a iniciámos. Nas mesmas condições oferecemos a nossa colecção publicada ou a publicar da Biblioteca do Trabalho. Oferecemos até todo o nosso material de Imprensa Es­ colar e toda a nossa organização, que já deu bastantes boas provas do que é capaz. Mas ainda somos mais intransigentes a respeito da direcção pedagógica. 0 congresso sublinhou calorosamente o perigo que havia para a nossa evolução pedagógica no facto de uma firma editora lançar no mer­ cado centenas e milhares de imprensas escolares. Essa divul­ gação seria o triunfo comercial da nossa inovação, mas seria ao mesmo tempo o fim da nossa experiência. Não basta obter dinheiro para comprar material, é preciso ainda que se esteja decidido a utilizá-lo pela libertação pedagógica. O Congresso foi bem explícito: preferimos prosseguir a actual acção de propaganda e fazer com que o nosso grupo se desenvolva a um ritmo moderado, desde que seja mantido

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o espírito da Imprensa Escolar, verdadeira razão do nosso esforço. Estas exigências não contêm ponta de amor-próprio pessoal nem da nossa parte nem da parte da Cooperativa. Mas estamos dispostos a defender e a continuar a obra que erguemos a tanto custo. Se a Sudel nos quer auxiliar com lealdade, também nós nos pomos lealmente à sua disposição. Poderiamos também estudar dentro desse mesmo espirito a integração dos discos CEL, que têm obtido um êxito apre ciável, na firma Sudel. Trata-se, quanto a mim, de fazer propostas precisas e leais. Cabe à Sudel examiná-las e ver o que pode fazer nesse sentido. 2.° ASPECTO PEDAGÓGICO: ... Permitimo-nos apre­ sentar ainda uma sugestão que partiu dos nossos camaradas de Indre-et-Loire. A nossa Cooperativa mostrou que era praticamente o mais activo e o mais importante dos grupos de estudos e de realizações pedagógicas de França. Nos departamentos, as nossas filiais congregam todos aqueles que se interessam pela pedagogia, e raras são as regiões em que se pratique uma acção verdadeiramente eficaz dentro do campo pedagógico fora do nosso âmbito. Solicitamos aos Sindicatos unidos que reconheçam nos departamentos esta realidade e aceitem, acolham e reconhe­ çam a nossa filial da Cooperativa como o Grupo de Investi­ gação Pedagógica do Sindicato; que o Sindicato Nacional, por seu turno, reconheça a nossa Cooperativa como o seu organismo de investigação pedagógica, trabalhando livre­ mente no seu seio, no nosso campo especifico, o campo pedagógico. No que respeita às publicações, submetê-las-emos ao Sindicato Nacional o qual, depois de dar o seu parecer, con­ fiará a sua edição à Sudel, que poderá vender igualmente, sob a nossa orientação pedagógica, todo o nosso material de impressão e acessórios. Pedimos a todos os nossos aderentes dos departamentos que apresentem e se possível, façam aprovar pelo seu sindi­ cato único as bases que acabamos de enumerar de uma cola­ boração CEL-Sindicato Nacional-Sudel. Vamos solicitar

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depois aos organismos centrais que dêem também o seu parecer, que o CA examinará com mais profundo espirito de fraternidade. Faremos todos os possíveis para conseguirmos alcançar a conjugação dos nossos esforços. Mas se fracassarmos, pros­ seguiremos, como antigamente, acima das organizações sin­ dicais, a nossa acção metódica e permanente pela evolução da pedagogia nova proletária e pela melhoria técnica das nossas escolas.» Nos meios sindicais insiste-se em dizer que a CEL está animada de um espírito crítico de tal ordem, que se opõe sempre a um possível acordo. Propositadamente, teimam em afirmar que Freinet é incapaz de fazer concessões e de aceitar conciliações. Ora parecemos justamente que o facto de se aceitar antecipadamente o desaparecimento da CEL comer­ cial em proveito da Sudel, com uma única condição — a de que se mantenha o espírito novo de uma pedagogia cujos adeptos continuarão a agir como militantes pedagógicos no interior do SN —demonstra claramente um autêntico espírito de conciliação. Que acolhimento está reservado a estas respostas? A 15 de Março escrevia Pagès em L'Éducateur Prolé­ tarien: «Lamentamos que o Sindicato Nacional não tenha arran­ jado ainda tempo, desde o Natal até agora, para nos res­ ponder e para discutir as nossas propostas. Vamos, por conseguinte, chegar à Páscoa só com os nossos projectos, as nossas propostas e a opinião dos nossos aderentes, mas sem conhecermos as propostas, os projectos ou, simples­ mente, a opinião dos dirigentes da Sudel. Posto isto, vamos precisar desde já aquilo que achamos ser a nosssa actividade e a da Sudel: só vejo que estamos a fazer-nos concorrência mutuamente num ponto, o que diz respeito aos aparelhos de TSF e aos fonógrafos. À parte isto, poderiamos continuar a viver separada­ mente, sem choques, visto que as nossas actividades são bastante diferentes. Freinet já determinou imensas vezes, nas páginas de L'Éducateur Prolétarien, o que é que confere originalidade e força ao nosso movimento. Inútil estar agora a repeti-lo. A Sudel é principalmente uma casa editora de

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livros escolares, de material clássico, Nunca realiza nada de novo, de criativo. Mas nós achamos —e creio que, quanto a isto, estou a fazer minhas as opiniões de todo o CA — que tanto a Sudel como a CEL são nomes que não devem ser ignorados. Mas o que é que se pretende, afinal: colaboração ou fusão?» No grande Congresso de Moulins, que é realizado pela primeira vez na Páscoa, discutiu-se e votou-se, a 10 e a 11 de Abril a seguinte ordem do dia: «A Assembléia Geral da Cooperativa do Ensino, Desejando tornar cada vez mais amplos os esforços de todos os educadores, Solicita ao Concelho de Administração da Cooperativa que estude os termos em que se deverá efectuar a colabora­ ção comercial com a Sudel, e a troca de publicidade, tanto no seio das duas associações como nas respectivas revistas, L’École Libératrice e L’Éducateur Prolétarien.» Mas, infelizmente, um ano depois, no Congresso de Nice, vemos, através da ordem de trabalhos de 21 de Março de 1937, que estamos exactamente na mesma:

ORDEM DE TRABALHOS «1.º Os camaradas do grupo da Tipografia na Escola e da CEL sempre declararam que são antes do mais reali­ zadores pedagógicos e que só se ocuparam e ocupam com realizações quando são forçados a fazê-lo pela teimosa negli­ gência das firmas especializadas. Por conseguinte, até vêem com bons olhos a cedência a uma firma amiga, e sem intenções lucrativas, de toda a parte comercial da sua empresa, apenas guardando para si a responsabilidade das realizações pedagógicas. 2.° A firma Sudel, que foi criada pelos professores pri­ mários, é a que parece poder assegurar melhor o bom anda­ mento comercial dos seus empreendimentos. E é por esse motivo que o Congresso de Nice, Assembleia Geral da

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Cooperativa do Ensino, se declara pronto a estudar os moldes em que cederá a parte comercial à Sudel. Esclarece ainda que esse empreendimento comercial tem imensas probabilidades de êxito: tanto o Ficheiro Escolar Cooperativo, como a Biblioteca de Trabalho e o material de imprensa têm condições para agradar bastante ao pessoal docente. 3.° Mas a CEL afirma abertamente que não pode res­ tringir as suas iniciativas pedagógicas, por pouco que seja, e que as pretende manter inteiramente submetidas à sua direcção. Por conseguinte, solicita que se estabeleça um acordo entre a Sudel e a CEL, o qual, assegurando a defesa dos interesses de ambas as partes, dará à CEL toda a liberdade para agir no plano pedagógico e atribuirá a exploração comercial total e exclusiva à Sudel.» Já que essa colaboração comercial se afigura impossível, haverá ao menos qualquer possibilidade de entendimento no plano pedagógico? «No meio de toda a agitação social e política que nos rodeia, nós somos umas autênticas ilhas de construção paciente e metódica. Por um lado, agregamos todos os inves­ tigadores e, por outro, todos aqueles a quem a primavera da liberdade dá novas veleidades educativas. Símbolo da nossa obstinada luta são as nossas filiais que a partir de agora representam, de uma forma ou de outra, em numerosos departamentos, todo o movimento de investigação peda­ gógica. Estes resultados encorajam-nos a continuar.» A investigação pedagógica não deixa de modo nenhum indiferente o Sindicato dos Professores Primários. É o que provam os factos constatados na base: no Allier, no Eure-et-Loir, nos Pirenéus Orientais, nos Vosgos, etc., os nossos aderentes realizam um excelente trabalho de renovação nos sindicatos. Mas devemos lamentar que mais uma vez no topo não haja possibilidade de entendimento. L'École Libé­ ratrice agasta-se com os êxitos CEL. E tudo por causa de Freinet, como dão a entender alguns comentários indirectos, dispersos, que nos fazem supor que o SN pretende dividir-nos. Mas porquê e para quê? Analisemos o problema numa

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óptica mais vasta, como aliás devem fazer todos os respon­ sáveis pelo futuro do povo: «...Pela primeira vez em França e talvez no mundo (exceptuando a URSS), não estamos perante um movimento nem de cúpulas que o dirigem e exploram. São os próprios educadores que tomam nas mãos a readaptação da sua escola e da pedagogia às actuais necessidades, com um entusiasmo e uma consciência impressionantes. ... Constatamos que essa acção se desenvolve paralela­ mente ao movimento sindical que, por seu turno, quer e deve viver e desenvolver-se através da acção constante das amplas massas de educadores. Seria até per feitamente normal e desejável que, na falta de uma integração da nossa acção no movimento sindical, houvesse uma colaboração perma­ nente entre a nossa Cooperativa e o Sindicato Nacional. É uma coisa natural e nós desejámo-la. Falamos nisto não na mira de obtermos vantagens para nós, mas porque consideramos que a conjunção de forças paralelas é uma necessidade histórica. Podemos contribuir bastante para o movimento sindical na medida em que provocamos nos educadores, sobretudo nos mais jovens, o gosto pela acção pedagógica, o gosto pelo trabalho profissional qualificadot que é o novo e indispensável factor de consolidação dos sindi­ catos de professores primários. O sindicato também nos auxiliará, porque só através dele poderemos manter um contacto permanente com as massas de educadores, que devemos atingir. É necessário que exista uma colaboração dessas, um tra­ balho paralelo ou mesmo simultâneo. Desejamo-los e preparamo-los, sem outras intenções que não estas, com lealdade. Nenhum gesto, seja ele passado ou presente, deve provocar a menor suspeita nos nossos camaradas. Que ninguém possa vir a negar que tenhamos prestado, em todas as ocasiões e num espirito de autêntica camaradagem, a nossa colabo­ ração pedagógica absolutamente desinteressada a quantos no-la solicitaram... ...O tempo dessa incompreensão ainda não passou. Es­ peramos que ao menos depois desta breve explicação venham a aceitar a nossa colaboração permanente com a mesma lealdade com que nós a oferecemos.

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Aliás, não podemos esquecer certos precedentes. Os nossos camaradas impressores são em alguns departamentos responsáveis pela Comissão Pedagógica do Sindicato; em todos os locais em que houve conferências e exposições pro­ movidas pelos nossos grupos — com ou sem a minha parti­ cipação—, o Sindicato responsabilizou-se por elas; final­ mente, foi a própria secção dos Alpes-Marítimos que patro­ cinou oficialmente o nosso Congresso de Nice. Essa colaboração permanente deve generalizar-se. Todos os nossos aderentes, que são geralmente os educadores mais activas no plano pedagógico, devem, em todos os departa­ mentos, integrar-se nas comissões pedagógicas do Sindicato e, se possível, tornarem-se mesmo responsáveis por elas, forne­ cerem textos para preencher a secção pedagógica do Boletim e tomarem a iniciativa das manifestações pedagógicas. Assegurarão a sua colaboração, que achamos ser indispensável, no seio dos sindicatos, de uma forma indirecta, mas do modo mais eficaz e mais conveniente, através de uma acção sincera e ampla. Ainda faremos melhor: os nossos camaradas farão com que as grandes questões da actualidade, que temos de inserir na ordem do dia, como a do Novo Plano de Estudos e a do Diploma da Escola Primária, sejam postas em estudo nos sindicatos; os nossos questionários e os nossos apelos devem ser difundidos pela imprensa sindical. Os problemas que o exigirem serão mesmo submetidos ao estudo dos Congressos nacionais... E para evitar confusões enuncia logo de seguida os meios práticos de o conseguir: «Tomemos todas as medidas tendentes a tomar a nossa acção comum o mais eficiente possível. O Congresso nomeou camaradas e comissões responsáveis por algumas das nossas principais actividades. Façamos o mesmo em relação ao plano pedagógico-sindical. Nomeemos uma comissão que terá o seu responsável, escolhido de entre os camaradas que souberam praticar essa colaboração, que gostávamos de ver generalizada e harmonizada. Esta comissão receberá o encargo de se ocupar de tudo o que diz respeito às relações com os sindicatos: acção pedagógica departamental e nacional, secções pedagógicas, colaboração

oficial das nossas filiais, acção de defesa, nos sindicatos, das reivindicações formuladas nos Congressos do SN, etc,,. Camaradas secretários de departamento, camaradas da direcção do SN, estamos de acordo? Se estamos, mãos à obra. Podem contar com a nossa dedicação totalmente desin­ teressada.» No entanto, estas propostas não teriam, nos meses que se seguiram, um acolhimento melhor que as anteriores. A in­ tensa correspondência que Freinet e o CA da CEL manti­ veram com os dirigentes do SN não deu o menor resultado. Todavia, o «statu quo» não significa de modo nenhum que exista qualquer animosidade entre ambas as partes. É justamente o que Freinet faz questão de precisar num artigo que saiu em L'Éducateur Prolétarien de 15 de Feve­ reiro de 1938, com o título de «O nosso acordo tácito com a Sudel e o Sindicato Nacional»; «Apressamo-nos a dizer que nunca chegou a haver desa­ cordo profundo e que nós, membros do SN, nunca mani­ festámos a menor animosidade contra a Sudelt que até gostavamos de ver desenvolver-se a um ritmo mais acele­ rado... ...Fazemos questões de declarar que nunca houve o mínimo atrito entre a CEL e a Sudel, enquanto se processa­ ram estas tentativas de estabelecimento de negociações. Portanto, o statu quo mantém-se, A Sudel e a CEL. continuam a ser empresas amigas que se ajudam mutua­ mente sempre que possível, mas sem estarem unidas por qualquer espécie de compromisso formal. Desde então, pese embora aos que, para não nos segui­ rem, se esforçam por lançar boatos fantasistas sobre as rela­ ções entre Freinet e a Sudel e o Sindicato Nacional, posso afirmar que as coisas não estão a correr assim tão mal como isso, pelo contrário. Como é que podia, aliás, haver diferendo, se: — Os nossos melhores aderentes, nos Sindicatos, são quase sempre militantes do Sindicato Nacional; —-Muitos deles são secretários pedagógicos; — Estamos de boas relações com todos os secretários do SN, sem excepção;

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Consequentemente, Todas as nossas “tournées" e conferências, todas as nossas exposições ou demonstrações são sempre organizadas de comum acordo com o SN mesmo quando não têm o seu apoio directo e fundamental. — Por ocasião das conferências encontramo-nos sempre com os dirigentes das secções, que muitas vezes são quem preside às reuniões. —Em todas as exposições, as realizações da Sudel apa­ recem ao lado das da CEL. — Todos os boletins sindicais estão à disposição dos camaradas que desejem falar sobre as nossas técnicas.» E ainda hoje se mantém o «statu quo» exactamente como antes... Mais encorajadores foram os contactos com os Grupos de jovens, que tinham sido constituídos nos sindicatos do Ensino a fim de estudarem os seus problemas específicos. Os jovens apaixonam-se pela renovação da pedagogia. Ainda não tem um nome para defender; estão mais abertos a uma compreensão profunda dos factos. Eles próprios são uma promessa de um futuro melhor. No seu jornal Le Croquant, que é dirigido por A. Biscarlet, fala-se frequentemente na CEL e na Imprensa Escolar; cedo Biscarlet e Subils (Hé­ rault) se transformam em propagandistas das nossas técnicas. No nosso Congresso de Nice (Março de 1937) já podemos contar com cento e cinquenta jovens professores primários entusiásticos; Freinet sempre se preocupou imenso com os jovens; não lança uma nova realização sem pensar neles. Sabe que é do entusiasmo espontâneo e das forças vivas que não foram ainda utilizadas e que hão-de surgir os continu adores de uma grande ideia. Lamentará ao longo de toda a sua vida que a CEL, que esteve sempre numa situação de desfavor devido à sua precária situação financeira, não estivesse à altura do esforço generoso que lhe competia fazer pelos jovens. Como ajudá-los: «Para se estabelecer uma articulação eficaz entre a CEL e os Grupos de Jovens temos de ter em vista duas coisas: — Em primeiro lugar, verificar se a CEL pode emprestar material de impressão, particularmente prelos, se pode con-

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tribuir para a constituição de depósitos e, em suma, colocar à nossa disposição utensílios de trabalho e concordar em criar grupos em todo o lado; — Em segundo lugar, verificar os moldes em que se pro­ cessará o trabalho conjunto dos Grupos de Jovens e dos grupos regionais de EN. É inevitável que os jovens entrem em massa para os Grupos de EN. Que farão aí? Trarão já a sua boa vontade e disposição para trabalhar. Talvez seja impossível confiar-lhes logo algumas tarefas, mas hão-de ir aprendendo com os mais velhos. Nestes grupos departa­ mentais é que os jovens devem achar o auxílio de que care­ cem. Resta saber como se processará a sua entrada para estes Grupos e qual é o acolhimento que os espera...» Freinet adianta que a Cooperativa fará os possíveis por fornecer um material de impressão mínimo em condições especiais. Biscarlet, responsável pelos jovens, e os nossos cama­ radas trocam impressões. Está dado o arranque de um movi­ mento em que o CEL deposita bastantes esperanças. A CEL vai propor à Liga do Ensino esta colaboração franca e leal com todos os que trabalham pela educação do povo no seu jornal Copain-Coop. Encetaram-se negocia­ ções. A proposta é longamente discutida durante o Congresso de Nice, estabelecendo-se uma base de discussão e votando-se uma ordem do dia. Mas é uma iniciativa a juntar aos projectos vãos, que deixam ficar sempre um rasto de pesar e de incompreensão.

União da CEL com o mundo do trabalho

Antes de vermos como a CEL se vai integrar, a nível nacional, nos movimentos de Educação Nova, debrucemo-nos por momentos sobre um dos projectos mais caros a Freinet: a articulação entre a educação e o mundo do tra­ balho. O trabalho de organização dos camponeses que ele ini­ ciara nos Alpes-Marítimos tinha sido uma experiência rica

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em matéria de ensinamentos. Deparou logo com um núcleo de militantes camponeses que o ajudavam na sua propaganda inicial e que pouco a pouco deveríam arcar com toda a res­ ponsabilidade do movimento. Partia todos os domingos com Laurenti, o mais compreensivo e o mais activo dos militantes, para as aldeias dos Alpes-Marítimos. Conseguiu erguer em dois anos oitenta sindicatos de camponeses, criou diversas cooperativas (flores, legumes, leite, pão, etc...) e editou um jornal, L'Action Paysanne. Na escola Freinet organizou-se uma escola para camponeses. Alguns camponeses jovens, hortelões e produtores de flores frequentavam aí estágios de alguns dias aprendendo os dados essenciais do sindicalismo, das cooperativas e da arte de falar às massas. Quando dize­ mos «arte de falar» isso não significa que Freinet tentasse ensinar aos seus camaradas camponeses a arte da retórica — que sempre desconheceu —, mas sim que lhes ensinava a dizer muito simplesmente as coisas sensatas que decorrem da mera compreensão dos factos. Nada de mais educativo para nós do que essa escola de camponeses inserida na nossa escola Freinet da qual só muito mais tarde se veio a falar, intencionalmente, é claro! Mas é forçoso que levemos a nossa acção cada vez mais longe, é forçoso que as nossas realizações se tornem cada vez mais amplas. No Congresso de Nice, Freinet quis patentear aos seus camaradas da CEL a grandeza latente e o excepcional poder de compreensão das massas de fazendeiros. Assim, organizou uma grande reunião de camponeses à qual assistiram os delegados dos diversos sindicatos e os responsáveis do movi­ mento. Com a placidez e a seriedade características do homem que confia a semente à terra, todos, tanto o presidente como o secretário e os membros, conduziram os debates. O espec­ táculo era de tal modo comovente, que ficou gravado na memória dos nossos camaradas que, maravilhados, levaram essa recordação para as suas províncias. E pouco a pouco os professores primários CEL foram criando, por seu turno, sindicatos camponeses nalguns departamentos, nomeada­ mente no Allier, nos Altos-Alpes e no Cantel. O número de 1 de Maio de 1936 traz a descrição dessa reunião de cam­ poneses de 29 de Março, cujo significado não deve manter-se estranho à missão do educador:

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DOS

GRANDE ENCONTRO PROFESSORES PRIMÁRIOS E DOS DOS ALPES-MARÍTIMOS

CAMPONESES

«A pedido dos próprios professores primários mais novos, o nosso camarada Freinet, que, com o seu camarada cam­ ponês Laurenti, organizou o movimento de camponeses que conta hoje com 80 sindicatos no departamento, tinha con­ vocado uma assembleia de camponeses para a qual tinham sido convidados todos os congressistas, Não reproduziremos essa manhã em todos os seus porme­ nores, dado que se afasta ligeiramente do âmbito do nosso Congresso. No entanto, é do maior interesse para os nossos camaradas, na medida em que lhes mostra aquilo de que os camponeses são capazes quando resolvem tomar nas mãos os seus destinos, No fim deste encontro, o camarada Barél, deputado de Nice, convidou todos os professores e professoras primários a colocarem-se por sua vez ao serviço dos camponeses para os ajudarem a libertar-se.» Freinet vai ainda mais longe, abre as portas da sua escola aos jovens operários dinâmicos e interessados em questões de educação. Convida-os a iniciarem-se numa pedagogia natural, com origem na própria vida e que dá preferência a uma compreensão humana sobre o saber livresco, coleccionador de pregaminhos. «...Este conceito totalitário da educação tem uma im­ portância primordial. Lentamente, graças à acção perseve­ rante dos pioneiros da educação nova, começam a compe­ netrar-se disso todos aqueles a quem está confiada a in­ fância. Porque o compreenderam, os nossos camaradas adminis­ tradores das municipalidades operárias não se contentam em melhorar a qualidade das construções escolares, mas ao mesmo tempo — e por vezes antes — pensam em organizar cantinas, escolas para crianças anormais, associações de beneficência para a infância, campos de jogos e colônias de férias. O problema educativo não ultrapassou a escola por acaso. E encoraja-nos constatar que são os administradores operá­

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rios a admitir e a pôr em prática tal facto, que hoje ninguém contesta e ão qual os pedagogos de espírito acanhado assim como os exploradores conscientes ou inconscientes da escola proletária têm mesmo que ir começando a compenetrar-se... ...Para esses vamos transformar a nossa escola no INSTITUTO DOS NOVOS EDUCADORES PROLETÁ­ RIOS, no qual todos os que se interessam pela infância virão recolher directivas e conselhos. Continuaremos evidentemente a divulgar as nossas obras através das nossas publicações. Mas, para nos impregnarmos de um ideal e de uma técnica, não há nada que possa substituir a vida numa comunidade de pesquisa e de tra­ balho como a nossa, nem que seja só por umas semanas. Estamos em condições de receber na nossa Escola-Instituto todos os camaradas educadores, profissionais ou não, que queiram aperfeiçoar-se. Para além de poderem pre­ senciar o edificante espectáculo das nossas realizações, organizar-se-ão cursos teóricos que serão um complemento da lição eficaz que nos é dada pela vida e pelos factos. Quando o número de inscrições o justificar, tomaremos medidas no sentido de oferecer aos nossos alunos crescidos condições de estada que terão de ser compatíveis com as possibilidades financeiras das associações e municipalidades que desejem preparar metodicamente peritos experientes, que empregarão na realização das obras vigorosas que em­ preendem. Começando por ser um instituto de peritos proletários, a nossa escola poderá vir a tornar-se, nas mesmas condições, num instituto de pedagogia nova... ...Juntamente com os camaradas operários, poderiamos receber na nossa Escola-Instituto os educadores que se inte­ ressassem pelas nossas técnicas e que quisessem preparar-se para as aplicar nas escolas públicas ou particulares. Estamos persuadidos de que estes camaradas aprenderão mais rapi­ damente o essencial da nossa pedagogia através do contacto com a nossa comunidade e com os nossos alunos e que fi­ carão aptos a trabalhar com perseverança e êxito todos os cantos da França pela pedagogia nova, que há-de derrubar a escolástica, a factícia escolástica.

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No momento em que as nossas técnicas reclamam a atenção de todos os educadores e mesmo dos administra^ dores, convinha que os nossos camaradas, os que compreen­ dem perfeitamente o nosso pensamento e os nossos objectivos, pudessem espalhar-se pelas escolas para lançarem aí a se­ mente da verdade da qual há-de germinar a cultura proletária do futuro.» Este foi o princípio dos nossos estágios de fim de ano, os quais, iniciados em 1936, haviam de se prolongar pelos anos seguintes e conhecer um êxito crescente. Mas na se­ quência de uma incompreensão lamentável, nunca mais pudemos organizar estágios para jovens operários. Durante estes anos de intensa actividade militante no domínio social e pedagógico, Freinet dá o seu máximo. Está em todo o lado ao mesmo tmpo: na escola, nos campos, nas obras, nas reuniões de camponeses, no trabalho da Frente Popular, nas «tournées» de conferências por toda a França, na organização permanente da CEL, do Grupo Francês e da Frente da Infância. Todas estas actividades se sobrepõem umas às outras e exigem uma média de dezoito horas de trabalho por dia, horário esse que ele cumpre sem desfalecer. Depois de um dia de trabalho que totaliza mais de quinze horas de presença activa, parte à noite para as reuniões no seu velho automóvel desconjuntado, cujos faróis acendem e apagam constantemente, por um caminho cheio de buracos e de lama, aos altos e baixos como uma monta­ nha russa. Chega a altas horas da noite, sozinho com os seus projectos... Ouço os roncos do motor ao longe, mas, quando entra no longo desvio que corre ao longo da ravina e o ruído do carro começa a extinguir-se, fico cada vez mais inquieta. Passado o minuto que a curva devia levar entro em pânico: pronto, despenhou-se pela encosta abaixo! Mas escuso de me preocupar. Normalmente não passa de uma avaria nos faróis, que decidem fechar os olhos: com tantos solavancos, o contacto acabou por se desfazer. E ainda leva alguns minutos a sair do carro e a habituar-se à noite de breu até conseguir começar a orientar-se... Mas lembro-me de uma noite em que passaram cinco, dez minutos... Vesti-me à pressa e corri para o local. Mas não era nada! Lá estava o nosso homem na acidentada

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curva com o carro bloqueado.. Estava debruçado para as indóceis entranhas da velha máquina tentando reparar a avaria às apalpadelas, com aquela sua incrível boa vontade!

Relações da CEL com o Grupo Francês da Educação Nova

É óbvio que Freinet continua a preocupar-se acima de tudo com o problema pedagógico, que é o aspecto mais im­ portante de um problema muito mais vasto, o problema da educação. Tudo o que tenta fazer fora desse âmbito visa pôr à prova as técnicas que a CEL se empenha em aperfeiçoar constantemente e que ele queria que fossem introduzidas em todas as escolas públicas. Vai dedicar-se agora a reforçar a pedagogia nova por intermédio da coorde­ nação com o Grupo Francês da Educação Nova. O movimento internacional da Educação Nova, distan­ ciando-se da generosa figura de Ferrière, constituiu-se, atra­ vés dalgumas das personalidades que fazem parte dele, num movimento a que podemos chamar burguês, porque nascido nos meios abastados, onde não se põem os problemas do matérialismo escolar, o que fez com que os problemas essen­ ciais entrassem no domínio da pedagogia pura. Foi este aspecto da pedagogia pura que se manifestou no congresso internacional de Educação Nova de Nice, sob os auspícios da doutora Montessori, e contra o qual se ergueram os professores primários do povo que, na sua grande maioria, tinham pardieiros em vez de escolas e lidavam com crianças subalimentadas. Recordamo-nos de que isso suscitara uma espécie de oposição entre duas concepções educativas, opo­ sição essa que não houve maneira de conciliar apesar de toda a boa vontade do professor Langevin. Mas felizmente o Grupo Francês da Educação Nova é constituído, de um modo geral, por pedagogos que nos aceitam bastante bem. Excluindo a facção mais selecta da Educação Nova, os nossos aderentes aproximam-se com simpatia e admiração reais do professor Langevin, do Dr. Wallon, da Sr.a e Sr. Roubakine, da Sr.a Hausser e sobretudo da nossa amiga

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Surgem por vezes discordâncias e atritos entre nós, mas supomos que podemos atribuídos a divergências sociais ou intelectuais que nada têm a ver com as pessoas em si. Teremos a oportunidade de o constatar mais tarde quando surgirem alguns incidentes entre a CEL e o Grupo Francês. Por que razão não havia colaboração no topo se a havia na base, como prova a criação de grupos departa­ mentais de Educação Nova nos quais a CEL e os membros do Grupo Francês colaboraram fielmente?... Em Indre-et-Loire, Vigueur lançou as bases de uma associação que funciona perfeitamente com conferências, sessões de cinema, exposição de material, o mesmo se passando em Eure-et-Loir nos Pirenéus Orientais. O Congresso Internacional de Cheltenham (Inglaterra), realizado em Agosto de 1936, tinha, ao que parece, consis­ tido numa ocasião favorável para a aproximação entre o Grupo Francês e alguns responsáveis da CEL. Eis uma breve exposição do que se passou feita por Freinet que paten­ teia uma grande unidade de pensamento e uma preocupação em passar à unidade de acção: «Aos grandes discursos, às discussões pretensamente idea­ listas, que não são senão jogos escolásticas e filosóficos, nós contrapusemos o firme bom senso da massa proletária, que denuncia por vezes até com brutalidade certos valores duvi­ dosos, mas que sabe por instinto para onde vai e o que quer; nós fizemos com que as pessoas se apercebessem da digni­ dade e da nobreza de um novo ideal, do exemplo comovente de todos aqueles que a ele se entregaram, O ascenso popular nos regimes libertos da ditadura reaccionária levanta, talvez com brutalidade mas inevitavelmente, novos problemas, cuja solução nos compete a nós, técnicos, descobrir. A pedagogia nova internacional está numa encruzilhada. Não nos parece que tenhamos perdido o nosso tempo. Fomos auxiliados e reforçados pela autoridade calma e ousada e pela corajosa franqueza do professor Wallon, que tantas vezes soube exprimir aquilo que sentíamos ser ver­ dade. Não podemos deixar de referir também que os con­ gressistas de língua francesa se mostraram de um modo geral bastante favoráveis a esta pedagogia realista que contrastava

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ligeiramente com o puro idealismo das discussões dos in­ gleses.» Primeiro que tudo, as realizações práticas: «Intervim pessoalmente para recordar a amplitude da tarefa pedagógica que caberia ao Grupo Francês: congregar para uma acção e para fins precisos todos aqueles que na França se apercebem da necessidade de uma acção peda­ gógica nova. Mas para satisfazer essa necessidade era for­ çoso que o grupo se organizasse, era preciso agregar ao Secretariado —a cuja acção prestamos homenagem— um organismo, personalidades, actividades susceptíveis de tomar essa associação no verdadeiro motor de uma poderosa reali­ zação da pedagogia nova em França. Já não basta termos em Paris um secretariado cuja acção se reduz quase sempre ao trabalho —extenuante — de um ou dois responsáveis. É necessário: — Um Secretariado em Paris que seja capaz de tomar decisões rápidas e que se reúna sempre que seja preciso; — Um Comitê directive, compreendendo: a) Um certo número de individualidades pedagógicas que tenham possibilidade de trabalhar; b) Representantes das diversas associações que se inte­ ressem pela educação nova ou que desejem trabalhar de qualquer maneira por essa educação. O Comitê directivo reunir-se-á apenas uma vez por mês. Durante a segunda reunião foi aprovado e aceite o regu­ lamento que se segue e nomeadas as seguintes pessoas:

SECRETARIADO; Professor Langevin, Professor Wallon, Doutor Piérson, Menina Flayol, Srª Hauser e uma outra individualidade a designar.» Houlin, Pichot e Freinet são os representantes da CEL nos diversos organismos. «O Grupo Francês dedicar-se-á imediatamente a estudar as questões fundamentais da actudlidade; o Comitê elaborará a lista destas questões, nomeará relatores, dirá em que medida se pode contar, para cada uma delas, com uma

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ampla união entre todas as individualidades ou grupos que nos possam ajudar a empreender a nossa acção pedagógica. Podemos prever desde já reuniões especiais, comícios, inquéritos e o envio de artigos para revistas e jornais. Nestes estudos, que terão de ser forçosamente amplos e profundos, recolheremos elementos que abrangerão os mais diversos domínios e que serão publicados em brochuras acessíveis, cuja ampla difusão sera assegurada por todos os meios. A actividade pedagógica do grupo centrar-se-á na pre­ paração, na difusão e na ampliação da esfera de influencia das brochuras. O Grupo Francês estudará a possibilidade de dirigir e de patrocinar, com o concurso de um editor responsável, uma colecção de livros pedagógicos que serão o complemento cultural das séries de brochuras e da revista Pour FEre nou­ velle. Finalmente, o Grupo Francês estudará os meios de fazer a propaganda de apoio à educação nova, que poderá assumir o aspecto de congressos, exposições, escolas de Verão, etc... ...Mas se nos mantivermos dentro dos limites mortos de uma organização passiva, corremos o risco de anular este primeiro esforço. O Grupo Francês da Educação Nova deve transformar-se no órgão de massa de todos aqueles que se apercebem da necessidade de uma renovação pedagógica. Deve cumprir a sua tarefa de congregar e de estimular qualquer acção que seja declaramente pedagógica e em conexão com as organi­ zações profissionais de educação. Neste domínio está tudo ou quase tudo por fazer aqui em França, Esta coordenação de esforços que nós preconizamos facultar-nos-ia a realização imediata de muitas coisas bastante úteis. Todavia, nenhuma acção de massas se pode fazer sem o assomo de energia de todos os que, no seu trabalho quoti­ diano, verificam a correcção e a urgência da nossa acção. Prestamos homenagem à actividade e à dedicação incan­ sáveis da Menina Flayol. Mas não são nem um secretariado nem um comité directive, por muito activos que sejam, que vão transformar o Grupo Francês naquilo que queremos

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que ele seja. É preciso criar secções activas do Grupo Francês em todas as cidades e em todos os departamentos. Já existem várias secções departamentais, que até coincidem com filiais da nossa cooperativa: Em Eure-et-Loir, nos Pirenéus Orientais, nos Vosgos. Esse movimento tem de pro­ gredir a um ritmo acelerado. Os nossos aderentes, que são os mais conscientes da necessidade desta acção em prol da pedagogia nova, devem destacar-se neste trabalho de conjugação de esforços. Pedimo-vos a todos que organizem secções do Grupo Francês da Educação Nova nas suas aldeias, na cidade mais próxima, no departamento. Quando houver por toda a França um número considerável de secções dessas, o Grupo Francês terá assumido o seu verdadeiro aspecto e estará apto a exe­ cutar muito trabalho válido e concreto, A partir de hoje podem entrar em contacto com o Grupo Francês da Educação Nova, Museu Pedagógico, rua de Ulm, Paris (**).» Está lançado o movimento. Em que irá dar? Para já, um programa imediato: Por um novo plano de estudo francês

A Bélgica acaba de adoptar um «Plano de Estudos» de que voltaremos a falar e que representa realmente a consa­ gração de uma pedagogia popular, à qual a CEL deu o seu generoso contributo. Cabe agora à França a vez de voltar o seu Plano de Estudos: «Porém, não se trata de pedir à França que copie a Bélgica ou qualquer outro pais. O novo Plano de Estudos terá forçosamente uma feição diferente, que lhe conferem certas tradições e certas condições de vida predominante­ mente rurais. Não obstante, terá necessariamente de se identificar com as técnicas populares da educação nova, do mesmo modo que o Plano belga. É precisamente este problema específico, suscitado pelo novo Plano de Estudos francês, que gostaríamos de estudar aqui, numa linha mais propriamente prática e dinâmica do que teórica. Não é nossa intenção apresentar textos abso­

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lutamente definidos aos membros do parlamento e à admi­ nistração ministerial. Teremos alcançado o nosso objectivo se conseguirmos fazer com que os educadores, os legisladores e os adminis­ tradores estudem atentamente e sem demora este problema fundamental — e tudo isto sem nos abstrairmos dos grandes problemas da educação nova, que têm em nós, aqui em França, os seus mais ardentes defensores. A novos tempos devem corresponder novas necessidades e novas soluções. Desejavamos precisamente apontar essa necessidades e essas soluções aos que se interessam activamente pela sorte e pelo futuro da infância popular.» Depois de um preâmbulo em que define o papel da escola primária e o conteúdo construtivo dos conhecimentos que ela ministra, Freinet aborda logo de seguida o lado prático da questão: a reforma do Ensino. Se pudéssemos, transcreveriamos na íntegra o número especial de L'Éducateur Prolétarien de 15 de Outubro de 1936, que foi todo ele consagrado a essa questão e que contém o espírito da reforma do Ensino de 1945, sobre a qual a CEL, que já então tinha sido afastada da Comissão, nem sequer se pôde pronunciar. Mas voltemos à reforma CEL do Ensino e muito especialmente ao diploma de estudos primários: não podemos transpor para aqui todos os passos da longa exposição de considerações pedagógicas, que finalizava com o projecto de abolição do exame do DÊPE. «Passará a haver exames de passagem. Um pormenorizado exame de orientação profissional, que se baseará nas informações da Caderneta permanente de escolaridade, assinalará o termo da escolaridade primária aos 24 anos. Inspecção escolar — Os Inspectores primários deviam ser secundados por um técnico, que os desembaraçaria de todas as tarefas que não fossem da sua competência. Assim, em vez de se limitarem a fazer breves visitas, já podiam apoiar muito concretamente os educadores, tanto no que se refere à orientação dos estudos como no que se refere aos diversos exames previstos pela nova legislação.

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Organização material — Proposta: o número de alunos por classe nunca devera ultrapassar um determinado limite, para lá do qual não há hipótese de se fazer um trabalho pedagógico válido por causa dos problemas de disciplina. Esse limite será estabelecido conforme as diversas classes por uma comissão nacional, na qual colaborarão as associa­ ções pedagógicas. Logo que esse limite for ultrapassado criar-se-ão auto­ maticamente novas classes... ...As construções escolares deverão preencher determi­ nadas condições de higiene, de arejamento e de iluminação, condições essas que serão estabelecidas por uma comissão que trabalhará em colaboração com os educadores, que suprimirá tudo o que a actual regulamentação contém de demasiado formal e que examinará o problema ao vivo, em toda a sua complexidade. Sempre que necessário, far-se-ão melhoramentos ou consituir-se-ão novos edifícios... ...O material da escola comunitária tende a tornar-se cada vez mais impessoal: material para experiências de física e de química, ficheiros de elementos de estudo, cinema, rádio, discos, tipografia na escola. O Estado estimulará a compra, a conservação, o aper­ feiçoamento e o emprego deste material, concedendo subsí­ dios elevados que serão regulados por normas especiais. A nova obra escolar deve supor uma estreita colaboração a todos os níveis: colaboração dentro da escola, entre educadores do mesmo cantão, colaboração entre educadores e inspectores, colaboração â escala nacional entre organismos de Estado e associações de educadores. O Estado deverá recomendar essa colaboração e criar organismos que a levem à prática, a bem da escola e dos professores que nela trabalham. Convocar-se-ão reuniões pedagógicas com todo o pessoal docente para se discutirem todas as outras questões que envolvam técnicas ou métodos propostos para a escola pri­ mária. Conclusão: As propostas de lei atrás expostas não têm necessariamente um caracter definitivo. São apenas suges­ tões concretas que submetemos ao julgamento dos parlamen­

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tares da Frente Popular, das associações de professores primários e das organizações pedagógicas e que formulamos nestes termos para vincar bem que devem tornar-se reali­ dades o mais depressa possível... A Cooperativa do Ensino Leigo e o Grupo da Tipografia na Escola, que agregam um milhar de educadores dos mais activos e dedicados à obra pedagógica, fizeram questão em formular em comum estes projectos de propostas, as quais poderão servir de plataforma para uma discussão mais ampla. Apelamos para essa discussão, que devia saldar-se em medidas legais tendentes a tornar a escola primária numa autêntica força de vanguarda. Nestes tempos agitados que vivemos, é essa a sua função histórica.» Esforcemo-nos por concretizar estes projectos. Os mem­ bros da CEL vão entregar-se apaixonadamente a essa tarefa. Eis a ordem de trabalhos que surgiu imediatamente subordi­ nada ao título:

A REORGANIZAÇÃO DO GRUPO FRANCÊS DA EDUCAÇÃO NOVA SOBRE BASES ACTIVAS «Por ocasião da minha viagem a Oslo, à ida e, duas semanas depois, quando regressava, foi-me dado assistir a duas importantes reuniões do Grupo Francês da Educação Nova. A primeira tinha como finalidade solicitar ao Comité de acção que se pronunciasse sobre a nova organização pro­ posta em Cheltenham e que foi aprovada. Daqui em diante, o Grupo Francês da Educação Nova passará, pois, a ser administrado por: 1. ° Um secretariado, em Paris, encarregado da direcção; 2.° Um Comité mais amplo, do qual farão parte as individualidades pedagógicas que se interessam pela peda­ gogia nova e pelas realizações do Grupot pertencentes a diversos graus e praticando diversas modalidades de ensino. O Comité tem caracter deliberativo; 3.° Serão convidadas a assistir às reuniões do Grupo, e terão funções meramente consultivas, todas as organizações que se interessem pela educação nova.

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Encetar-se-á uma grande campanha de propaganda em prol da constituição de grupos de educação nova locais e departamentais e tendente a fazer aderir ao Grupo todos aqueles que, seja a que titulo for, se interessam pela edu­ cação nova. Essa propaganda abrangerá todo o país. A quotização é de cinco francos por ano e dará direito a um boletim mensal do Grupo, cujo primeiro número estará constantemente a ser reeditado. Na segunda reunião, a que assistiam vários amigos nossos, trabalhou-se para pôr o novo organismo a funcionar realmente. Estudou-se especialmente a possibilidade de se iniciarem logo de seguida as discussões sobre os assuntos mais apaixonantes, na altura, para os educadores: supressão do CEP, educação dos anormais, jornais infantis, coorde­ nação dos diversos graus de ensino, organização dos estudos entre os 13 e os 14 anos, as bibliotecas públicas, etc... O boletim do Grupo fornecerá a lista completa dos temas de estudo escolhidos e os nomes dos responsáveis por alguns deles. Pedirá a todos os camaradas interessados que se ofe­ reçam para orientar o estudo destes problemas essenciais. Enviaremos questionários para os jornais e para as organi­ zações e publicaremos artigos em revistas. Finalmente, o relatório geral e definitivo será publicado numa colecção de brochuras da Educação Nova e assegurada a sua ampla difusão. Contamos interessar efectivamente a grande massa dos educadores e dos pais pelos urgentes problemas da educação nova através desta acção pedagógica.» Quanto à CEL cabe-lhe mais uma vez um trabalho imenso: «Sentimos a necessidade de estabelecer uma atmosfera favorável a este trabalho pedagógico efectivo, de formar círculos de amigos, de contribuir para o movimento da educação nova, no qual formamos uma das secções mais activas. Será o Grupo de Educação Nova que estabelecerá esse clima favorável. Por esse motivo solicitamos aos nossos aderentes, de um modo muito especial, que sejam, nos seus departamentos e sempre, os melhores obreiros da nova organização do Grupo. Adiram todos, individualmente, ao Grupo Francês.

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Não será a quotização mínima que vos impedirá de o fazer. Constituam logo, na vossa cidade, na vossa circunscrição, no vosso departamento, grupos de educação nova depen­ dentes do grupo de Paris. Em breve vos serão enviadas instruções a esse respeito. Aliás, só precisam de seguir o exemplo das nossas filiais de Eure-et-Loir e dos Vosgos, a que já nos referimos; através de exposições, de demonstrações, de conferências, da organi­ zação de cinematecas e de discotecas atrairão massas cada vez maiores de educadores à causa da educação nova. E então, mesmo que as adesões à imprensa não sejam muitas, pelo menos sentir-nos-emos apoiados e rodeados de sim­ patia. Organizem conferências. Faço lembrar que me pus ao dispor de várias cidades e até de departamentos, para a rea­ lização de “tournées” de conferências todos os meses ou de dois em dois meses...» Quando se têm tantas riquezas» tanto espirituais como afectivas, tem de se vencer forçosamente, e vencer num clima de humana simplicidade, que é própria dos corações gene­ rosos. «Coragem, camaradas! Deitámos à terra uma boa se­ mente, que já começa a germinar. Vemos massas cada vez mais amplas de educadores interessarem-se pela nossa activi­ dade e compreender a urgência das nossas campanhas. Muitos Inspecterez aliam-se a nós e unem-se ostensiva e oficialmente à nossa ideia nova. Regozijamo-nos com isso e garantimos-lhes a nossa colaboração total e desinteressada. Pois não temos como objectivo em destacar indivíduos ou grupos mas sim contribuir para a regeneração da nossa escola popular e para a difusão de directrizes que só o poderiam ser se se desembaraçassem de todo o individua­ lismo e aspirassem à generalidade, à humanidade, à simpli­ cidade que as tornam capazes de transformar o mundo.» E assim, depois do inevitável êxito que o número especial de L'Éducateur Prolétarien sobre a Reforma do Ensino alcançou entre a massa dos professores primários, Freinet, mais uma vez, precisa o espírito prático da CEL e as nossas exigências :

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«Não pedimos palavras ao governo: já as há em demasia nas instruções e nos programas actuais. Para podermos aplicar à realidade do dia a dia as idéias generosas vazadas nas instruções ministeriais de 1923, precisamos de actos. Chamámos muitas vezes a atenção para alguns desses actos e pedimos aos nossos camaradas da Frente Popular que fossem os primeiros a realizá-los: eram a supressão dos manuais escolares, a abolição do CEP, a reorganização da Inspecção Primária, a nova organização da escola, mediante o desanuviamento das classes, e a criação de escolas expe­ rimentais. ...Estar na vanguarda não é marchar à frente de ban­ deira desfraldada, a gritar e a cantar, sem nos preocuparmos com os que nos seguem... ou ficam para trás. É, tal como nós o fazemos, ser-se pioneiro, preparar generosamente os caminhos e as pontes, romper ousadamente as amarras das tradições e dos egoísmos, a fim de, sem esforços heróicos mas com segurança, conseguirmos que a massa dos educa­ dores se lance finalmente numa via que saiba ser a única proveitosa, a única que conduzirá ao êxito. Há dez anos que praticamos esta tarefa de pioneiros, apesar de todos os obstáculos... e se os houve, não é verdade, camaradas? Mas agora podemos ter a satisfação de ter aberto uma via em que somos seguidos por centenas de educadores. Mas esta via é ainda estreita e árdua. Temos de a alargar e de a aplanar, para que nela se lance toda a escola francesa. Julgou-se — repetimos — que éramos partidários de uma escola em que a criança só fazia o que lhe apetecia e que não atribuíamos a menor importância a certas aquisições que a sociedade considera com razão essenciais. Pelo contrário, queremos uma escola que seja mais efi­ ciente que a escola tradicional na qual se desperdiçam tantos esforços. A Escola actual não está adaptada nem aos meios que a civilização nos oferece, nem ao estilo de vida contem­ porâneo, nem aos objectivas sociais que evoluem a um ritmo acelerado. Impõe-se que o ensino seja reorganizado em bases mais racionais. É esse o objectivo da nossa técnica.

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Antigamente a escola não era exigente: as noções a adquirir eram de pouca monta e não se corria o risco de ultrapassar a capacidade de um cérebro infantil. Nas últimas décadas acumulou-se tanta coisa, que hoje estamos no impasse a que nos referíamos num dos nossos últimos números. Temos de organizar e de racionalizar a educação e o ensino. No entanto, racionalizar a aquisição de conhecimentos não é, como querem certos charlatões da pedagogia, o mesmo que obter o melhor processo de atafulhar cada vez mais o cérebro das crianças. Se o fizéssemos, assemelhar-nos-iamos a um Estado que produzisse milhões de automó­ veis, os quais, não tendo compradores, inundariam o mer­ cado e desperdiçariam forças vivas. O problema da aquisição não pode ser dissociado do do enriquecimento e da harmoni­ zação das personalidades, que deve ser, por seu turno, o resultado de uma organização técnica adaptada às exi­ gências do momento. ... Por outras palavras, temos de preparar planos. Neste momento não possuímos um plano ãe trabalho, porque vivemos num regime em que só têm plano os que organizam a economia mundial tendo em vista o máximo de lucros ou de dividendos. Vivemos numa sociedade que produz automóveis que não poderão ser comprados pelos seus even­ tuais utentes, frutos que se têm de deitar fora, café que se. tem de queimar, trigo que se tem de deitar ao gado. Na escola actual observa-se uma idêntica actividade desordenada e inconsiderada: passam-se longas horas a ensinar história, aritmética, geografia, ciências, complicadas e Livrescas, por vezes segundo uma técnica de há mais de cem anos. E depois na prática verificamos que houve um mal-entendido, que são outras as exigências da vida e que temos ãe refazer tudo à nossa própria custa. Os governos estabeleceram rigorosos planos de actualidade para vencerem a crise. Se temos a intenção de trabalhar metódica, efectiva e produtivamente nas nossas escolas, também precisamos ãe ter o nosso próprio plano de trabalho. Mas é preciso elaborá-lo.

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Podiam objectar-nos que hoje em dia já há muitos planos de trabalho — que correspondem aos programas oficiais, que são desenvolvidos pelos livros escolares. Mas trata-se de planos de trabalho capitalistas que brotam da fantasia e do interesse dos seus autores. Nada têm a ver, tanto do ponto de vista social como humano, com os nossos planos de tra­ balho que são elaborados metodicamente. Estes planos de trabalho não podem ser feitos só por especialistas. Antes do mais, temos de estar a par das noções que aqueles a quem eles se destinam consideram necessárias à criança de diversas idades e mais especialmente â criança que deixa a escola aos 13 ou 14 anos. Temos de fazer um amplo inquérito aos nossos antigos alunos e aos pais, perguntar-lhes quais são, entre as noções que lhes ministrámos, as que eles acham serem indispensáveis e as quais de nada lhes serviram e tiveram de pôr de parte. É preciso que eles nos assinalem as falhas e as insuficiências que a experiência da vida lhes revelou. Este inquérito vai fornecer-nos dados práticos funda­ mentais, porque a escola fez-se para preparar o indivíduo social; o seu verdadeiro papel, é o de ajudar a criança a integrar-se na sociedade, para aí cumprir o seu papel, com proveito para si e para os outros. Deve subordinar-se tudo a este objectivo, que vamos tentar conhecer e precisar melhor. Seguidamente, interrogaremos os dirigentes dos grandes grupos de defesa e de trabalho, os militantes de sindicatos e de cooperativas, os humildes artesãos, assim como os directores de empresas simpatizantes, nunca esquecendo que estes apreciam a formação dos indivíduos em função das necessidades de exploração que são a sua única razão de viver. Obteremos assim o ponto de vista de uma sociedade que pretende dar ao trabalho do homem uma utilização efectiva e proveitosa. Tendo em conta estas duas séries de elementos, os espe­ cialistas, que são os professores primários e os inspectores, estabelecerão então planos de trabalho definitivos.

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Poderão eliminar tudo aquilo que o nosso ensino contém de inoperante e de inútil e tudo o que só deverá ser adqui­ rido mais tarde e que é inútil inculcar prematuramente às crianças. Haverá cortes —e consideráveis— a fazer em história, em geografia e em ciências. Passaremos a ter tempo para trabalhar na prática nas coisas essenciais; teremos tempo para fazer ginástica, para cantar, para utilizar o rádio e o fonógrafo e para nos confundirmos com a vida sem a obsessão da aquisição intensiva de conhecimentos para o exame que, como sabemos, é efêmera e nociva. Munidos com estes planos, podemos então atribuir às nossas técnicas um sentido mais amplo. Técnica de trabalho livre das crianças, dissemos nós. Mas ainda falta saber em que sentido se deve exercer essa actividade livre. É necessário que a criança, trabalhando livremente, saiba para onde vai, tenha consciência das aquisições que lhe fazem falta, se aperceba do plano do conjunto e sinta que o seu esforço se insere num plano que está ao serviço da comunidade. O ideal seria que fosse a própria criança a traçar o seu próprio plano de trabalho. Isso estimularia, re­ gularia e harmonizaria o seu esforço quotidiano. Já dissemos aqui que esse plano de trabalho existe. É o dos manuais, nos quais o esforço vai sendo debitado por fatias bem determinadas por mês ou por trimestre. Porém, para além de nada ter de racional, esse plano é imposto às crianças que têm de se resignar a assimilá-lo sem o terem vivido. A tempos novos devem corresponder técnicas novas e planos de trabalho mais eficientes. ... A experiência iniciada na nossa escola mostrou-nos que se está a iniciar uma nova actividade que bem podia tornar-se na chave das técnicas do trabalho vivo e, não obstante, ordenado e metódico. Continuamos a elaborá-las. Hoje pretendemos apenas destacar aquilo que têm de essen­ cial, para melhor dar a entender toda a importância técnica que atribuímos aos planos de estudo cuja realização concreta preconizamos. E agora, mãos à obra!

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A propósito deste plano de estudos dizemos o que dizíamos outrora a propósito do ficheiro escolar cooperativo: ou ele é uma obra colectiva ou então não se fará. Tem de ser assim! Em toda a França só nós estamos à altura de levar a bom termo essa obra colectiva, e havemos de o conseguir. Provaremos assim que não nos afastamos da nossa tradição de movimento pedagógico cooperativo capaz de entusiasmar centenas de camaradas pela abertura de novos caminhos — caminhos de que os teóricos se aperceberam de vez em quando, mas que fomos nós os primeiros a seguir.» Rumo à reforma do ensino

Mãos à obra, portanto! São imediatamente enviados projectos de questionários aos aderentes da CEL: «Temos de estabelecer quatro tipos de questionários, quatro planos de actividade: Para as crianças; Para os pais; Para os docentes e dirigentes; Para os técnicos. Publicamos em seguida projectos de questionários. Soli­ citamos aos nossos camaradas: 1.° Que critiquem profundamente estes projectos antes de projeciarmos um outro inquérito mais amplo; 2.° Que se ofereçam para colaborar na elaboração das secções do nosso plano. Quando os nossos questionários estiverem prontos — en­ viem as vossas respostas o mais rapidamente possível — faremos tiragens em separado e solicitaremos aos camaradas que os espalhem pelos sindicatos, pelas associações peda­ gógicas, pelas associações de beneficência infantil, pelos Comités da Frente Popular e pela imprensa amiga.» Vai uma grande azáfama pela CEL. Não é possível precisar nem descrever com quanta seriedade e com quanta minúcia os camaradas estudam os diversos aspectos do pro­ blema educativo para os resumirem neste questionário. 349

Lamentamos não poder transcrevê-los em pormenor. Surgem em L’Éducateur Prolétarien de Fevereiro de 1937 sob forma de fichas, trazendo uma parte em branco para as respostas. Mas vamos mencionar apenas algumas das questões dirigidas aos pais. Bastarão para dar uma ideia do conteúdo daqueles questionários: «A escola ensinou-lhe a exprimir-se como gostava de o jazer? Em público? Na vida privada? A escola ensinou-lhe a desenvencilhar-se nas várias cir­ cunstâncias da vida? É capaz de jazer uma viagem bastante longa, de telefonar, de mandar uma encomenda? Sabe cavar, trabalhar como pedreiro, marceneiro e jazer planos? É capaz de redigir correctamente um relatório, uma carta a um amigo ou a um fornecedor, etc... Caso afirmativo, foi a escola que o ajudou a consegui-lo e com que exer­ cícios? Caso negativo, quais os trabalhos escolares que entende que o teriam preparado melhor para o fazer? Lê correctamente? Que género de livros prefere? Lê os jornais? Quais os artigos que prefere? Que poderia a escola ter feito para o auxiliar a ler com mais facilidade?» Em todos os departamentos os nossos aderentes põem mãos à obra. Hulin (Norte) foi encarregado de orientar um inquérito sobre o CEP e de concluir o projecto de re­ forma. Vigueur dedica-se a estimular a formação de grupos de Educação Nova. Através de demonstrações e com a ajuda da Menina Flayol e dos inspectores primários, incen­ tiva a constituição de grupos de Educação Nova em Seine-et-Oise e no Eure. Pelaud (Saint-Jacques-de-Thouars) funda o grupo dos Deux-Sèvres-Freinet e a Menina Flayol planeiam «tournées» de conferências e vão pela França militando pela nobre causa da Educação Nova. Se houve alguém que nunca subestimou o esforço em­ preendido pela CEL e o enorme trabalho desenvolvido por Freinet em prol da Educação Nova, esse alguém foi a Menina Flayol. Em todas as suas conferências na província depara, da parte dos nossos aderentes, com todo o apoio e com o mais cordial dos acolhimentos. Nunca voltaremos a encontrar uma compreensão tão humana como a daquela directora

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de Escala Normal, que formou tantas gerações de educa­ dores e que conhece profundamente a paixão que o humilde e dedicado professor primário de aldeia tem pelo seu ideal. Abeira-se de nós de mão estendida, sem arrogância, sem falsa modéstia, apenas com esse gesto espontâneo que ultra­ passa a atitude de delicadeza, e logo se toma dos nossos, tal é o seu entusiasmo, a sua abnegação, que não sabe o que seja fadiga ou doença. Talvez que nenhuma das individualidades parisienses com quem ela trabalha se aper­ ceba, como todos nós, do valor daquela infatigável militante da Educação Nova; nenhuma será capaz de descer ao nível de simplicidade a que ela desceu e de contactar com as pessoas tendo apenas em vista as nobres causas que as ani­ mam; nenhuma sentirá como nós sentimos o vazio que essa autêntica militante deixou ao partir. A sua partida contri­ buirá para o alargamento do fosso de incompreensão que já existia entre Paris e a província. No Congresso de Nice podemos contar com a presença da Menina Flayol. Contribui para a consolidação dòs laços que devem unir a CEL ao Grupo Francês da Educação Nova. A ordem de trabalhos dá perfeitamente conta daquilo que acabamos de dizer: «O Congresso da Tipografia na Escola, Depois de ouvir a Menina Flayol, secretário-geral do Grupo Francês da Educação Nova; Certo de que há toda a vantagem em suscitar o interesse das massas de docentes e dos próprios pais pelas nossas técnicas; Em total acordo com os princípios teóricos do Grupo Francês da Educação Nova; Recomenda aos seus membros que adiram às secções do GFEN já existentes e que criem novas secções em todas as cidades e departamentos, que preparem manifestações de apoio à educação nova, conferências, exposições com demonstrações, que instalem cinematecas, discotecas, etc... para que o Grupo Francês da Educação Nova se torne aqui em França num poderoso movimento unitário de todas as pessoas que estão persuadidas de que a educação deve ser renovada e que estão prontas a trabalhar por essa reno­ vação.»

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Por um novo CEP

Segue-se uma outra ordem de trabalhos relativa ao CEP: «O Congresso de Tipografia na Escola; ...solicita que seja feito imediatamente o estudo do pro­ blema de um novo plano de estudos francês que favoreça uma educação eficiente e libertadora em todas as organi­ zações pedagógicas e sindicais; Solicita igualmente que essas organizações e a adminitração estudem uma nova concepção da técnica do certifi­ cado de Estudos, que controle não só a aquisição de conhe­ cimentos mas também o desenvolvimento intelectual e os progressos culturais, para se pôr termo à obsessão da acumu­ lação excessiva de conhecimentos, que é um dos grandes defeitos do nosso ensino; Compromete-se a prosseguir activamente o estudo destas questões com o fito de as submeter às organizações sindicais e à administração da educação nacional projectos precisos que possam servir de base para a discussão e para a reali­ zação prática.» O problema do CEP é estudado a fundo por Hulin, que ficara responsável por ele. Com os resultados do seu inqué­ rito, Hulin elaborou um relatório que representa a contri­ buição da CEL para um imenso trabalho que ficara à responsabilidade do Grupo Francês, Contamos com a colaboração do professor Wallon. O texto integral do relatório de Hulin é vertido para um número especial de L'Educateur Prolétarien, datado de 1 de Julho: «Este relatório — escreve Hulin no Prólogo — não é o fruto do trabalho de um só homem. Um trabalho deste teor só teria algum valor se fosse obra de numerosos colabora­ dores. Foi o que tentámos fazer. A pedido do Grupo Francês da Educação Nova, o Grupo dos Amigos da Escola Nova do Norte e L'Educateur Prolé­ tarien abriram um grande inquérito. Publicámos um ques­ tionário em todas as revistas pedagógicas. ... Depois de uma troca de impressões entre os principais autores desse inquérito, depois de recolhida a opinião de

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diversas individualidades do movimento pedagógico mo­ derno — o Sr. Professor Wallon, a Menina Flayol, os Srs. Verei, Freinet, Guet, Hulin e outros — pudemos finalmente elaborar o presente relatório. Trata-se de um simples projecto, que pode perfeitamente vir a ser alterado e que apresentamos aos responsáveis pela próxima reforma com vista a ajudá-los nesse trabalho.» O projecto é dirigido à Comissão de Educação Nacional, que é presidida pelo ministro Jean Zay, que acabara de anunciar uma reforma do ensino. Nos fins do ano lectivo de 1936, a CEL e o Grupo Francês efectuaram, portanto, um trabalho efectívo em con­ junto. Pelo menos nada indica que haja queixas contra o dinâmico contributo da CEL para o movimento nacional da Educação Nova. Contudo, surgirão atritos, o que aliás era inevitável. Enquanto que a CEL reúne as massas em tomo de técnicas seguras e práticas, o Grupo Francês é acima de tudo um grupo de individualidades, de educadores isolados, fechados em si mesmos, cada um com a sua experiência pessoal em escolas livres, por pais de alunos interessados pela pedagogia nova, por editores, por professores do se­ gundo ou do terceiro grau, mais propriamente intelectuais do que pedagogos; cm suma, no seu conjunto o Grupo Francês é um grupo heterogêneo e está condicionado pelas reacções individuais de cada um dos seus membros. Por con­ seguinte, é inevitável que surjam uma multiplicidade de conceitos e uma diversidade de peritos de vista desagregando o movimento da Educação Nova, A CEL contrapõe a toda esta dispersão o seu bloco monolítico, a sua coesão técnica e ideológica, que logo confere um certo peso às suas decisões, que podem assim ser executadas sem dificuldade, Numa palavra, a CEL é demasiado dinâmica para o Grupo Francês. Quando se conhece o poder de iniciativa de Freinet, com­ preende-se facilmente que as actividades dos dois organismos não consigam manter o mesmo ritmo. Mas há mais razões ainda: o Grupo parisiense do Secre­ tariado da Educação Nova é constituído na sua quase tota­ lidade por professores do ensino secundário. Assim, quando toca à solução dos problemas pedagógicos, é compreensível que se sintam mais atraídos pelas questões que lhes dizem

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respeito, como também é compreensível que os nossos cama­ radas se preocupem antes de mais nada com a resolução dos problemas específicos da escola primária. Além do mais, todos nós sabemos que nunca deixou de haver uma certa incompreensão entre Paris e a província. Só a Menina Flayol, que vivera na província, era capaz de a atenuar. Devido a estas diversas oposições, sobreveio um choque um pouco mais violento que de costume, por alturas de um grande encontro de educadores da Educação Nova, que se realizou a 1 de Agosto de 1937. Ouçamos parte do que disse Freinet a respeito dessa reunião: «Os nossos camaradas tinham ocorrido em grande número a esta reunião, porque vinham com a esperança de que se discutissem e esclarecessem a posição e a actuação do Grupo Francês da Educação Nova, ao qual tínhamos feito uma intensa propaganda durante o ano. Também nós íamos decididos a não nos darmos por satisfeitos com um encontro acadêmico e protocolar. Como proletários que somos apren­ demos a desconfiar, e é pena, dos discursos ocos e condes­ cendentes; já não nos deixamos levar por palavras bonitas; em educação, mais do que em qualquer outra coisa, que­ remos a maior clareza e uma acção vigorosa. É sô nessa condição que nos prontificamos a prestar a mais ardente e a mais completa de todas as colaborações a qualquer obra generosa. Reconhecemos que, da maneira como foi convocada, a assembléia não estava autorizada a discutir sobre a vida do Grupo. Mas que assembleia teria, neste momento, maior autoridade do que esta para falar sobre o movimento da educação nova? Estavam presentes camaradas de vários departamentos, que criaram secções do Grupo nos locais onde vivem e que precisam de agir para impedir que o seu trabalho seja inutilizado. Havia outros camaradas que se propunham criar mais grupos quando as aulas recomeçassem. Estávamos com o vento a favor, mas era preciso mostrar que estávamos mesmo decididos a actuar. Permanecer em moldes ultrapassados e inoperantes, faltar a todas as promessas que fizêramos, seria a morte definitiva do movimento de educa­ ção nova já existente.

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Recusámo-nos a isso com uma certa aspereza, que se pode justificar pelo jacto de nos sentirmos bastante respon­ sáveis pela evolução desse movimento. Levei o dia a insistir na necessidade de se transformar o Grupo Francês da Educa­ ção Nova no órgão central de toda a acção escolar e social da educação nova em França. Para tal vi-me forçado a lutar —lamento ter sido obri­ gado a fazê-la — contra toda a actual organização do Grupo Francês, que tem um aspecto excessivamente parisiense e, por conseguinte, excessivamente burocrático, além de que subestima o valor e as possibilidades de muitos camaradas da província e não fez, até hoje, nada para os pôr a traba­ lhar. Tenho-o dito sempre: ou o Grupo Francês passa a ter mais em conta estas energias entusiásticas, descentralizandose e atribuindo ã província a parte que lhe cabe na direcção e na acção, ou então os nossos camaradas acabarão por se desinteressar de um grupo que afinal não lhes diz nada, para o qual não sentem estar a trabalhar. Dessa vez o Grupo Francês não voltará a ressuscitar. Houve quem entendesse as minhas palavras como um ultimatum e certas individualidades, que sabemos serem inteiramente devotadas e a quem queremos prestar a nossa homenagem — estou a pensar nomeadamente na Menina Flayol, a alma do Grupo, e no Professor Wallon — protes­ taram contra esta maneira brutal de levantar o problema. Mas são os acontecimentos que levantam o problema e não nós; por nós, não pretendermos esquivar-nos à solução que nos é imposta. Nas nossas secções há um mal-entendido, provocado pela acção demasiado receosa da direcção pari­ siense. Nós não podemos marcar passo. Num movimento de educação nova isso é o mesmo que recuar, que soçobrar: a vanguarda deve vencer ousadamente todos os obstáculos, mesmo que para isso tenha de denunciar certos protocolos ou desligar-nos de certos elementos, quando vemos que faziam uma ideia muito diferente daquilo que deve ser um verda­ deiro movimento de educação nova. Repetimo-lo com ioda a franqueza: o Grupo Francês não deve ter apenas uma função de guarda-vento: ou organiza o movimento como esperávamos que fizesse ou

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então deixá-lo-emos extinguir-se e iremos buscar a qualquer outro lado uma nova fonte de organização nacional. Foi para que o Grupo Francês vivesse e se tornasse realmente no animador de todo o movimento da EN, aqui em França, que nós levámos para a reunião as nossas pro­ postas concretas de colaboração e de acção. Acima de tudo é preciso trabalhar, organizar o trabalho. Ai é que está o problema, porque, para o conseguirmos, precisamos, para além da tarefa, de organização, que sa­ bemos ser bastante cativante, de uma direcção constante, enérgica e por vezes até um pouco ditatorial; temos de ajudar os camaradas a trabalhar cada um naquilo para que se sente mais apto e mais inclinado; é preciso encorajar os indecisos, coordenar as veleidades, estimular as iniciativas e utilizá-las. ...Estamos prontos a dar o nosso contributo no nosso domínio específico, o da educação popular. Estamos certos de que essa colaboração também poderá estabelecer-se em relação aos outros graus de ensino. O que é paradoxal é que seja precisamente essa cola­ boração, que se sabe ser total e efectiva, o que atemoriza os dirigentes do Grupo. Não ignoramos os motivos que os levam a isso. Temos de nos render à evidência: sempre que nos depar­ tamentos se fala de educação nova popular, o único que faz alguma coisa é o grupo da Tipografia na Escola; quando é preciso organizar “tournées” de reuniões, os únicos a ofere­ cer-se são os nossos aderentes; quando se trata de realizar seja o que for, só os aderentes da CEL é que permanecem activas e incansáveis. E então o Grupo Francês receia, e com uma certa razão, recorrer com tanta insistência ao nosso auxílio. Isso poderá levar alguns dos nossos membros a pensar que, pelo menos no que toca ao primeiro grau, o Grupo está a ser animado por pessoas demasiado activas e, portanto, assustá-los. Também lamentamos sinceramente que exista essa alter­ nativa. Ou antes, pensamos que, queiramos ou não, estamos na presença de certas realidades às quais temos de reagir o melhor possível.

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É demasiado tarde para nos queixarmos da apatia dos educadores alheios ao nosso Grupo. É um grave dilema: ou o Grupo Francês vive e trabalha, mesmo com a nossa total colaboração, ou então marca passo e morre, e não estamos dispostos a acompanhá-lo no seu suicídio.» A reacção do Grupo Francês a esta clara tomada de posição — que talvez tenha sido clara demais — manifesta-se através de uma resolução que foi publicada em Pour l’Ere Nouvelle, cuja cópia Freinet publicou em L’Éducateur Pro­ létarien de 1 de Janeiro de 1938: «Longe de, como afirma Freinet, terem manifestado qualquer inquietação a respeito da sua actividade pedagó­ gica, a Menina Flayol e o Sr. Wallon até o felicitaram publi­ camente. Mas como ele invocou essa actividade para reservar exclusivamente para si e para os seus amigos do ensino primário as questões relativas à pedagogia do primeiro grau, fizemos-lhe ver que isso originaria um desmembramento e contrariaria as modernas concepções sobre a evolução da criança e sobre as necessidades do seu desenvolvimento har­ monioso, pessoal e integral... Houve outros membros do grupo que manifestaram desa­ grado com o artigo de Freinet. Depois de trocadas explica­ ções de ambas as partes, conclui-se que cada um tem a liber­ dade de combinar as suas preferências pedagógicas com determinadas outras preferências políticas, filosóficas e reli­ giosas. Mas o GFEN só se responsabiliza pelas decisões que toma oficidlmente e que são publicadas como tal no boletim do GFEN. Tudo o mais resulta da simples liberdade de se discutir o que muito bem se entender. ... A influência e autoridade de cada um dos seus mem­ bros derivam do valor do respectivo trabalho educativo e não das suas crenças ou do partido a que pertencem. É justo que se dê mais atenção e se introduzam na direcção, o que não significa que a monopolizem, os que realizam um tra­ balho mais válido.» Não vamos transcrever integralmente a resposta de Freinet a esta tomada de posição do GFEN. Freinet falou apenas para defender os inúmeros camaradas da província, que desenvolveram um esforço louvável pela criação de grupos de EN: Meurthe-et-Moselle (Phulpin), Meuse (Le-

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moine), Ródano (Menina Brizon), Isère (Faure), etc... E Freinet calcorreia a França de lés a lés em «tournées» de conferências que despertam a curiosidade e o interesse, precisamente numa altura em que as reformas sugeridas por Jean Zay atribuem um lugar de destaque ao espírito das novas técnicas. Terminamos com meia dúzia de palavras de Freinet, que são a prova do seu espírito de reconciliação: «A nossa acção dentro do Grupo foi sempre uma acção franca e leal. Reconhecemos publicamente a necessidade de o reanimar e de o desenvolver, visto que ele tem- imensas possibilidades de agregar inúmeras boas vontades de pessoas que, para já, não seriam capazes de se integrar na nossa cooperativa, que é um local ãe trabalho. Se criamos secções nos departamentos, se queremos reorganizar o Grupo Fran­ cês, não é de modo nenhum para nos intitularmos seus exclu­ sivos senhores. Pelo contrário, tentamos levar algumas pes­ soas a dedicar-se, connosco, embora num plano diferente, ao trabalho pela implantação da educação nova. Estas secções do Grupo e o próprio Grupo Francês podem fazer muito pelo alargamento e desenvolvimento da nossa acção. Continuaremos a dar-lhes a nossa total cola­ boração sem que nisso haja segundas intenções, uma vez que estamos certos de que qualquer esforço que se faça pela educação nova popular não poderá senão favorecer-nos. Dentro desse espirito solicitamos a todos os camaradas: Que animem as secções já existentes, que realizem lá dentro um trabalho efectivo e que, caso seja possível, orga­ nizem o trabalho com elementos estranhos à nossa coopera­ tiva. Que formem secções ou estimulem a sua formação em todos os locais em que ainda não existem. Os nossos cama­ radas só devem pertencer à direcção dessas secções quando não houver de facto outras possibilidades de trabalho. Para isso entrar em contacto com a Menina Flayol. É forçoso que em Agosto todos os departamentos e todas as circunscrições importantes possuam já a sua secção do GFEN e que vamos a Paris para lá erguermos definitiva­ mente a organização que fará com que a educação nova francesa dê um passo decisivo.»

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Influência da CEL no estrangeiro

Estes dois anos de 1935-36 e de 1936-37 foram efectivamente dois anos excepcionais em matéria de actividades pedagógicas e em relação à maturidade pedagógica da CEL. No contacto com os acontecimentos sociais e ao mesmo tempo que crescia a necessidade de se integrar a pedagogia popular nas forças nacionais da classe, o espírito desta péda­ gogie definia-se cada vez mais. Os projectos para o Plano de Estudos francês são como que a explicação desse espírito. Na realidade, esse Plano de Estudos francês, ainda no papel, trazia um atraso histórico. Fora precedido no estran­ geiro pelo Plano de Estudos belga que já fora promulgado e posto em vigor. Um outro se seguiria e se tornaria também realidade: «A Escola Nova Unificada da Catalunha». Afirmamos sem modéstia que