O quinto "evangelho" de Nietzsche 8528201252

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O quinto "evangelho" de Nietzsche
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PETER SLOTERDIJK

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minista, reproduz um costume do século XVIII, que consistia em iluminar os autores a partir do seu meio. Quando o autor é imortal, também os seus tiques o serão. Quando l.aratustra entra em cena utilizando sua linguagem de afirmação do si mesmo e do mundo, ele tem que transmitir a força da provocação através de uma forma radicalmente auto-elogiosa e desavergonhada. Assim, também o choque através das setas, provérbios e ditados nietzscheanos transforma-se numa ofensa terapêutica para o leitor que se deixa provocar, a qual inicia uma reação imunológica. Temos aqui um processo de imunização no nível moral. Quem já desempenhou a função de patrocinador talvez argumente que o mecenato também funciona sem Nietzsche. Porém, quem ainda não foi doador, poderia experimentar, comó Nietzsche, o contagio no momento em que o confronta com a lembrança da possibilidade da generosidade - uma lembrança à qual o receptor não poderá fugir, na medida em que estiver disposto a entrar no espaço de ressonância da nobreza e for capaz deste ato. O fato de os não-receptores seguirem outros caminhos, buscando outros negócios, não deve estranhar, pois isto ~ normal em outro nível. O motivo "virtude doadora" abre uma fonte do pluralismo capaz de superar todas as expectativas singulares. A generosidade provocadora não pode ficar •Sozinha. Ela não pretende ficar sozinha. Além disso, a

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generosidade do patrocinador, por si mesma, está orientada para a produção de dissenso, ou seja, de concorrência. Ele se consideraria um fracassado, caso obtivesse um monopólio. Ou seja, para o patrocínio ser o que pretende ser, tem que haver concorrência. Ele está mais disposto a enfrentar a rejeição do que imitações baratas. E com isso, os generosos colocam-se em contradição com os bons, os quais são qualificados por Nietzsche - e com razão - como os décadents, porque eles perseguem o sonho do monopólio da boa consciência, como nos ensina a Genealogia da moral. Para eles, tudo que exige deles a prova de que são bons, é tido como mau; tudo que sobrecarrega o seu consenso e abandona o seu círculo de extorsão é diabólico. Em Nietzsche, a decadência tem a ver com condições que fornecem constantemente condições ideais de fala ao ressentimento. Na formulação dele, a decadência aparece em condições nas quais "o hipócrita é elogiado". Destarte, os bons somente são bons na falta de algo melhor (faute de mieux). O ideal da decadência só se mantém no poder porque e durante o tempo em que" não houver concorrente" .35 Por isso, todo aquele que, em questões de evangelho, pretende confrontar o bom com o melhor, tem que decidir-se a contar até cinco.

35 Friedrich Nietzsche. Ecce homo. (KSA), 6, 353. 78

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IV SOBRE SÓIS E HOMENS

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Senhoras e senhores, ao lançarmos os olhos sobre este autor, que é autor para autores e não-autores, tentando entender o modo como se relacionou com seu tempo, tomamos consciência de que ele, apesar de todas as suas pretensões de originalidade e de seu orgulho em ser primeiro nas coisas mais essenciais em muitos aspectos foi apenas um canal privilegiado para tendências que iriam acabar impondo-se, mesmo que ele não tivesse existido. Sua contribuição específica, no entanto, consistiu em saber transformar o acaso chamado "Friedrich Nietzsche" num evento "Friedrich Nietzsche", pressupondo-se que um evento seja aquilo que potencializa o casual, transformando-o num elemento do destino. Podemos falar num destino, quando aquilo que iria acontecer de qualquer modo é ·apreendido por um configurador, levado adiante e cunhado com seu nome. Neste sentido, Nietzsche constitui um destino ou, como se diria hoje em dia, um designer de tendências. E a tendência que

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ele incorporou e formou pode ser caracterizada como a onda individualista que atravessou e atravessa incessantemente a sociedade civil, desde a época da Revolução Industrial e das projeções culturais do romantismo. Para nós, o individualismo não constitui a corrente de uma mentalidade histórica casual ou desnecessária. Ele configura, ao invés disso, uin corte antropológico, segundo o qual, para poder surgir tal tipo de homem, ele tinha que estar rodeado de muitos meios e de instrumentos de descarga, a ponto de poder individualizar-se em relação aos seus "pressupostos sociais". Além disso, no individualismo, articula-se um terceiro insulamento do "homem", a saber, o pós-histórico. O primeiro, pré-histórico, tinha levado à sua emancipação em relação à natureza e o segundo, histórico, tinha-o conduzido à "dominação do homem sobre o homem" .36 O individualismo não cessa de fazer alianças com tudo que tem a ver com o mundo moderno: com o progresso e com a reação a ele, com programas políticos de direita e de esquerda, com motivos nacionais e transnacionais,

36 Sobre o conceito do insulamento enquanto mecanismo antropológico cf. Dieter Claessens. Das Konkrete und das Abstrakte. Soziologische Skizzen zur Anthropologie (O concreto e o abstrato. Esboços sociológicos sobre a antropologia). Frankfurt/M., 1980, 60-92.

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com projetos feministas, masculinistas e infantilistas, com modos de pensar e de sentir tecnófilos e tecnófobos, com morais ascéticas e hedonistas, com conceitos de arte conservadores e vanguardistas, com terapias analíticas e catárticas, com estilos de vida esportivos e não-esportivos, com a disposição para realizar coisas e com a disposição de nada realizar, com a fé no sucesso e com a descrença nele, com formas de vida cristãs e não-cristãs, com aberturas ecumênicas e com isolamentos locais, com éticas humanistas e pós-humanistas, com o Eu que tem que estar em condições de acompanhar todas as minhas representações e com o" si mesmo" diluído, o qual continua existindo apenas corno uma sala de espelhos de suas máscaras. O individualismo tem condições de fazer alianças em todas as direções e Nietzsche é o seu profeta e seu designer. A pretensão de Nietzsche em ser um artista, ou melhor, muito mais do que um artista, encontra a sua razão de ser em seu conceito radicalmente moderno de sucesso: ele não pretende apenas lançar obras no mercado hodierno, mas criar a própria onda do mercado, a qual provoca postumamente o sucesso da obra. Ele antecipa, deste modo, a estratégia da vanguarda, descrita por Boris Groys no seu livro clássico A obra de arte total intitulada Stalin. Quem pretende tornar-se líder, do mercado tem que exercer antes o papel de criador do

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