O Escravismo Colonial

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A B REV IA TU R A S........................................................................... REFLEXÕES METODOLÓGICAS ........................................... 1. Implicações metodológicas do enfoque no modo de produção 2. Modo de produção e formação social................................. 3. Modo de produção e h is tó ria ............................................... 4. Lógico e histórico..................................................................... 5. Epistemologia das Ciências S o ciais...................................... 6. Teoria geral, modelos e tipos ideais.....................................

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PRIMEIRA PARTE CATEGORIAS F U N D A M E N T A IS................ , . , 0

C a p ít u l o i

ESCRAVISMO COLONIAL - M ODO DE PRODUÇÃO HISTORICAMENTE NOVO

O primeiro problema, que se apresenta ao estudioso do escra­ vismo colonial, é, decerto, o confronto entre os portugueses, che­ gados no século XVI ao território hoje conhecido como Brasil, e as tribos indígenas habitantes deste mesmo território desde tempos indefinidos. Com o descobrimento no ano de 1500 e a subseqüente colonização, puseram-se, uma diante da outra, duas formações sociais heterogêneas: a dos conquistadores europeus e a das tribos autóctones. Os primeiros procediam da sociedade feudal ibero-lusitana, pioneira do mercantilismo e uma das mais avançadas do Ocidente europeu na época. Ao passo que os ocupantes presentes no território a ser conquistado constituíam uma sociedade tribal e comunista primitiva, com um modo de vida nômade, inferior aos adventícios no que se refere ao estádio do desenvolvimento das forças produtivas. ^ c\^ Acredito estéril a posição dos que sacralizam cada ponto e cada vírgula saídos da pena dos clássicos do marxismo, o que obriga a rejeitar sequer a possibilidade de contradições entre uma e outra passagem de escritos de períodos diferentes, como se os clássicos também não devessem percorrer os caminhos penosos da elabora­ ção teórica, em cujo curso a hipótese e o erro fazem parte do pro­ cesso de conquista da verdade. Considero correta, a propósito, a advertência de Gramsci de que se devem distinguir entre as obras publicadas sob direta responsabilidade do autor e as outras, que representam material preparatório sem finalidade de publicação ou ’ M a r x , K . El Capital. Libro I — Capitulo VI (Inédito). V eintiuno A rgentina E d., 1974.

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ed. Buenos Aires, Siglo

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que só postumamente vieram à luz. 6 Em caso de contradição tex­ tual, é evidente que o requisito de autenticidade, do ponto de vista do pensamento conclusivo do autor, pertence ao texto publicado sob sua inequívoca responsabilidade. Faço, contudo, a ressalva de que, do nosso ponto de vista de leitores, os textos valem pelo que são, importando menos se se destinaram ou não à publicação. A riqueza dos Grundrisse não se invalida nem diminui pela sua n a tu ­ reza de rascunho para uso exclusivo do autor. Considero legítima, em conseqüência, a preferência por uma form ulação dos Grundrisse ao invés de outra de O Capital, sabido, ademais, que porções im por­ tantíssimas do material preparatório não chegaram a receber ela­ boração definitiva na obra de Marx publicada em vida. E strita­ mente pelo que diz e pelo critério científico em si mesmo, sem su­ bordinação a argumentos de autoridade ou de autenticidade filoló­ gica, é que, na questão do escravismo americano, considero ina­ ceitável a tese do caráter capitalista, anômalo ou não. T anto mais, adiciono a título de reforço, que o próprio M arx se encarregou de demonstrar essa inaceitabilidade COrti o que s^bíè o assunto escre­ veu em sua obra principal. Enquanto não nos ertipenharmoü » fundo na economia política do modo de produção escravista colonial, seremos sempre tentados pelos raciocínios operantes com as analogias entre características comuns a fenômenos históricos distintos. As analogias podem ser úteis e justificáveis, mas exigem sempre o máximo de cautela, so­ bretudo quando se apresentam como recurso fácil que poupa o pros­ seguimento da análise e do trabalho discursivo. É tentador equiparar 0 escravismo colonial ao capitalismo e isto nos conduz a um beco 6 Cf. G r a m s c i , A n to n io . II M a te ria lism o S torigp. Ú p. c it., p . 7 6 - 7 9 . 1 Deste ponto de vista, percebe-se a natureza das dificuldades de argumentação de Ernesto Laclau em sua polêmica com Gunder Frank. Este último se apegou a uma citação da H istó ria d a s D outrinas E co n ô m ica s a fim de apoiar em Marx a tese sobre o caráter capitalista da escravidão americana. Laclau empenha-se numa refutação a partir da aceitação literal do mesmo texto, sem submetê-lo à devida crítica. Ao meu ver, a citação exibida por Gunder Frank apresenta as oscilações características de um pensamento que ainda não atingiu suficiente profundidade discursiva. Laclau poderia abandonar esta citação — em si mesma, pouco probatória — e recorrer ao pensamento íntegro de Marx contido em O C a p ita l V. L a c l a u , Ernesto. “Feudalismo y Capitalismo en América Latina.” In: M o d o s de P roducción en A m é ric a L a tin a . O p. c it., p. 31.

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sem saída. Igualmente tentador é equipará-lo ao escravismo antigo. A esta última tentação cedeu Genovese quando escreveu que os sis­ temas escravistas das Américas devem ser compreendidos como um modo de produção essencialmente arcaico, donde não ser paradoxal que o historiador se refugie na idéia tão informe de “um paradoxo específico” . 8 Pela sua escala, o escravismo americano apresentou a aparência de ressurreição do escravismo mediterrâneo antigo, so­ bretudo o romano. Há em ambos, de fato, o traço comum do tra­ balho escravo como tipo dominante de exploração da mão-de-obra. Mas a estrutura e a dinâmica foram distintas em um e outro, tanto que a sociedade imperial romana se defrontou com o impasse re­ presentado pela impossibilidade de evolução do escravismo pa­ triarcal arcaico ao escravismo mercantil moderno. Limito-me, por enquanto, à referência sucinta do argumento, deixando para adiante sua exposição sistemática. Também, a título de registro para posterior desdobramento, acrescento que, no seu estudo de história comparada, precisamente por se omitir na pesquisa das leis específicas do modo de produção, Genovese se viu em dificuldade teórica para admitir a própria espe­ cificidade do escravismo colonial. Essa dificuldade foi agravada pela confusão categorial entre modo de produção e formação social, o que não lhe permitiu diferenciar entre a determinação essencial do modo de produção escravista colonial, idêntica em todas as áreas em que existiu, e a assimilação pela superestrutura das formações escravistas, em cada país, de elementos peculiares de suas respecti­ vas metrópoles. Tais elementos superestruturais são importantes para a caracterização multilateral das classes escravistas nos vários países e dos respectivos sistemas de alianças de classes nas metró­ poles. O maior mérito do estudo de Genovese consiste, por isso, na justificada ênfase com que salienta a necessidade de investigação desses elementos diferenciadores. O que não cabe é considerá-los um critério definidor do modo de produção como tal. * Como já foi dito, a presente obra pretende estudar o escravismo colonial ao nível categorial-sistemático do conhecimento histórico. 8 Cf. G e n o v e s e , Eugene D. “ T he A m erican Slave Systems in W orld Perspective.” In: The W orld the Slaveholders Made. N ova Iorque, P antheon Books, 1969. p. 22 e 26.

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A o invés de um desdobramento cronológico, teremos a análise de categorias e de relações categoriais, ou seja, a estrutura e a dinâ­ mica do sistema considerado em sua totalidade orgânica. Essa aná­ lise nos conduzirá ao modo de produção como síntese mais universal possível e, com base nela, à formação social escravista no Brasil, com o realidade histórica nacionalmente caracterizada. Se a forma­ ção social escravista teve no Brasil peculiaridades que só nele se en­ contrarão, já o modo de produção dominante, em sua concretidade conceituai, como pensamento da concretidade empírica, correspon­ deu à mesma categoria histórica que existiu em todos os países es­ cravistas do continente. E não serei demasiado pretensioso se disser que poucos países oferecem, tanto quanto o Brasil, os elementos fatuais adequados à compreensão de tal categoria, uma vez que, justam ente aqui, o escravismo colonial teve duração e" riqueza de determinações maiores do que em qualquer outra parte.

C apítulo ii A CATEGORIA ESCRAVIDÃO

1. Propriedade e sujeição pessoal A escravidão é uma categoria social que, por si mesma, não indica um modo de produção. Como escravidão doméstica — forma exclusiva sob a qual existiu em vários povos — sua função é im­ produtiva. Mesmo com função produtiva, a escravidão pode apa­ recer de maneira mais ou menos acidental e ser meramente acessória de relações de produção de tipo diferente. No entanto, desde que se manifesta como tipo fundamental e estável de relações de produ­ ção, a escravidão dá lugar não a um único, mas a dois modos de produção diferenciados: o escravismo patriarcal, caracterizado por uma economia predominantemente natural, e o escravismo colonial, que se orienta no sçntido da produção de bens comercializáveis. Observe-se, a propósito, que também a servidão e o salariado não indicam, por si mesmos, situações econômico-sociais unívocas. Focalizãda em asj^pro genéria)ç