Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. O Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751

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Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. O Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751

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e o fim do século Xv e o lo xvi. a inonarqma portuguesa carta vez mais com d burocracia trahzor o poder p.ocesso esse quarf £ raneo - e de a! H uma forma prODUÍsor expansão ultramarina Esse es cão de urna burocracia regia acabou*p colónias a herança de uma estruturaád tiva bem clestm ok ida t de uma samente legalista d«. t-ovemo e da vida. fíinwraáii t >ouuladt no Jlmsil tolo/uai, publicado originalmentt nos anus 1970f agora em nova tradução — com apêndice dorumcnlal inédito e nova introdução do autor —, foi estudo pioneiro da burocracia colonial na América portuguesaf tanto pelo enfoque, a justiça, como pela abordagem, que privilegiou as teias h u m a n a s que formavam a burocracia.

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Slaar^-l: Schwartz COM PA N H IA DAS LETRAS

STUART B. SCHWARTZ

Burocracia e sociedade no Brasil colonial O Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751

Tradução Berilo Vargas

UERN/FAFIC/DHi

Grupo de Pesquisa História do Nordeste: Socl*dada • Cultura

PIBIC 2014/2015 Chamada Unlvertal CNPq 2014 A captura do olhar dooufro... FSC MISTO

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COMPANHIA DAS LETRAS

Copyright © 2011 by Stuart B. Schwartz

Sumário

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que eniroti em vigor no Rrasil em 2009. Título original Sovereignty and society in colonial Brazil: The High Court of Bahia and its judges, 1009-1751 Capa Mayumi Okuyama, sobre detalhe de Coimbra no século xvm (GeorgBreun, Cívitates Orbis Terrarura, 1610) Preparação Ária Cecília Água de Melo índice remissivo Luciano Marchiori Revisão Valquíria Delia Pozza Hueiidel Viana

Prefácio à nova edição

-?

Prefácio

15

Abreviaturas

23

PRIMEIRA PARTE: JUSTIÇA E BUROCRACIA

11-05834

1. A Justiça do rei: Portugal, África e Ásia

27

2. Justiça e juizes no Brasil, 1500-80

41

3. A reforma espanhola e o Tribunal Superior brasileiro

56

4. Os magistrados

74

índice para catálogo sistemático; t. Portugal : Burocracia e sociedade ; Brasil colonial i Administração pública : História 35J.150946909BI

SEGUNDA PARTE: A RELAÇÃO NO BRASIL, 1609-26 5. Bahia: o meio social Todos os direitos desta edição reservados à. EDITORA SCHWAKCZ LTJJA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002—São Paulo — SP Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasktras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

93

6. Juizes, jesuítas e índios

112

7. Procedimentos e funções

125

8. Magistratura e sociedade

147

9.0 Tribunal Superior em conflito

162

10. A supressão da Relação

181

TERCEIRA PARTE: A RELAÇÃO RENASCIDA, 1652-1751

Prefácio à nova edição

11. Problemas de justiça 12. Magistratura e burocracia 13.0 abrasileiramento da burocracia 14. Conclusão

^7 227 253 287

Notas Agradecimentos

297

,

349

MATERIAL DE REFERÊNCIA

Apêndice i. Governantes de Portugal e do Brasil Apêndice n. Casamentos de desembargadores no Brasil, 1609-1758 ... Apêndice m. Desembargadores da Relação da Bahia, 1609-1758 Apêndice rv. Razões que deram os moradores da Bahia para se não extinguir a Relação

353 357 362

Bibliografia índice remissivo

385 407

379 Um livro é sempre produto de certo momento histórico, tanto para o autor como para seus leitores. Quando me vi diante da oportunidade de publicar uma nova edição de Burocracia e sociedade no Brasil colonial, lançado em inglês em 1973 e depois em uma tradução para o português da Editora Perspectiva, em 1978, meu primeiro impulso foi acrescentar novo material coletado por mim ao longo dos anos, em fontes como Livros de correspondência do Desembargo do Paço (1614-38), na Torre do Tombo de Lisboa, e incorporar os trabalhos de pesquisadores que abriram muitas novas janelas sobre aspectos da história, que estavam fechadas, ou apenas parcialmente abertas, quando fiz minha pesquisa. Depois de hesitar um pouco, resisti à tentação, porque se cedesse a ela o resultado seria um livro bem diferente. Mas tentarei, neste prefácio, situar o livro no contexto dos debates historiográficos atuais. Acredito que suas contribuições ainda são válidas e úteis, e, em certo sentido, agora têm alguma relevância para as discussões históricas mais recentes sobre a natureza do governo e do Estado no Brasil e no Império português. Com poucas exceções, devidamente indicadas nas notas de rodapé, e o acréscimo de um novo apêndice documental, o conteúdo do livro continua sendo o da publicação original, embora esta tradução seja totalmente nova.

Um autor que hoje mergulhasse no estudo da Relação da Bahia e seus desembargadores teria perguntas diferentes a fazer sobre a burocracia, seguiria uma orientação teórica bem diversa da análise essencialmente weberiana que adotei, e tiraria bom proveito dos consideráveis avanços na matéria registrados nos últimos trinta anos. Quando iniciei a pesquisa para este livro, no apagar das luzes do regime salazarista, em meados da década de 1960, a história administrativa de Portugal e seu império não estava bem desenvolvida. Bascei-me essencialmente, àquela época, num clássico trabalho em múltiplos volumes de autoria de Henrique Gama Barros sobre as instituições do Portugal medieval, como meu principal guia para o estudo do sistema e dos cargos do judiciário português no Brasil, e achei-o mais informativo que algumas das histórias administrativas então disponíveis. Mas desde a publicação de Burocracia e sociedade houve considerável desenvolvimento na literatura sobre direito, justiça e administração em Portugal. Especialistas agora podem acessar o site lus Lusitaniae, e consultar toda a legislação portuguesa do início da era moderna.1 O historiador português António Manuel Hespanha tem muitas publicações sobre direito e governo, e escreveu numerosos manuais sobre a história política e institucional de Portugal, que facilitam enormemente a iniciação do pesquisador desses temas.2 Há também um minucioso estudo do crime e do direito nos últimos tempos do Portugal medieval, de autoria de Luís Miguel Duarte, que examina não apenas esses temas, mas os cargos e a estrutura da Justiça quando Portugal iniciou a colonização do Brasil.3 O papei do direito e dos juizes no início do Portugal moderno foi explorado com minuciosa erudição por António Barbas Homem em Judex Perfectus, cuidadosa análise dos principais manuais, guias e textos teóricos usados para o treinamento da burocracia judiciária.4 Estudos de desenvolvimentos paralelos na Espanha e no Império espanhol também oferecem agora melhor oportunidade para fazer comparações, e toda a questão do império da lei na construção de impérios em geral também se tornou tema importante de história comparativa.5 Outro avanço significativo ocorreu na história das instituições básicas de governo em Portugal, especialmente aquelas que tiveram influência direta na criação e aplicação da lei e da política na colónia, e cujos cargos por vezes eram providos por homens que tinham servido no Brasil. O estudo de José Subtil sobre o Desembargo do Paço, o tribunal e conselho supremo em questões judiciais» é uma importante contribuição à história administrativa de Portugal e seu

império, muito embora, pelo fato de cobrir apenas o fim do século xvm, sua utilidade direta para a minha obra tenha sido limitada/ Apesar disso, agora é leitura essencial para qualquer pessoa interessada na organização e nas funções do judiciário. Infelizmente, a Casa da Suplicação ou a Relação do Porto ainda não encontraram seus historiadores. Ainda assim, houve avanços em outras áreas de administração imperial. Por exemplo, quando fiz a pesquisa para este livro, a única obra disponível sobre o Conselho Ultramarino era um breve estudo de Marcelo Caetano. A situação melhorou muito, graças a dois estudiosos: Edval de Souza Barros, em Negócios de tanta importância (2008), examinou a política e o papel do Conselho Ultramarino durante o século xvn, do Oceano Índico ao Oceano Atlântico; Eryk Myrup, em "Governar a distância" examinou não apenas as decisões e as políticas do conselho e seus efeitos em Goiás, distante fronteira do império, mas também as relações sociais e as carreiras de seus membros num minucioso estudo prosopográfico.7 Talvez tenha sido a análise prosopogrãfica ou biográfica coletiva dos 168 desembargadores que serviram na Mação da Bahia de 1608 a 1751 a maior contribuição de Burocracia e sociedade, mas foi difícil situar os resultados dessa análise num contexto geral, porque pouco se sabia, na época, sobre as origens c carreiras dos juizes em outros pontos de Portugal e seu império, ou sobre a biografia coletiva de outras categorias sociais. Nessa área é que se verificaram os avanços mais importantes na historiografia do império português nas últimas três décadas. Os trabalhos resultantes de uni abrangente projeto patrocinado pelo Instituto de Ciências Sociais de Lisboa examinaram a biografia coletiva de governadores e capitães-mores, de comerciantes de elite, de bispos e da alta nobreza.8 As obras de Muno Monteiro alteraram completa mente nosso entendimento da composição e das funções da alta nobreza, o mesmo que fez Fernando Olival com as ordens militares.9 Em 1973 era impossível comparar os padrões de origem social e de carreira dos desembargadores da Bahia com o dos juizes que serviram em Portugal ou em outras partes do império, mas essa deficiência foi sanada pela obra de estudiosos portugueses. Nuno Camaririas produziu extensa análise prosopogrãfica de todos os magistrados civis portugueses nos séculos xvii e xvni.10Seu estudo confirma que os padrões de origens geográficas e sociais e os padrões de carreira dos juizes baianos que descrevi neste livro eram, em geral, semelhantes aos de toda a classe judicial.11 A mesma metodologia foi aplicada por José Subtil num estudo sintético dos juizes de Portugal de 1640 a 1834.

Esse projeto resultou num minucioso dicionário de todos os desembargadores portugueses, que servirá de ponto de partida para futuras pesquisas.12 A história do direito e do judiciário no Brasil também se desenvolveu muito nos últimos trinta anos. Por exemplo, estudos importantes foram realizados por Linda Lewín sobre direito e práticas sucessórias, e por Muriel Nazarri sobre a evolução do uso do dote, fazendo convergir a teoria e a história jurídicas.13 Manuais como Fiscais e meirinhos agora oferecem aos pesquisadores descrições concisas dos vários cargos de governo.14 Mas o mais importante talvez tenha sido o excelente estudo da Relação do Rio de Janeiro, de autoria de Arno e Maria José Wehling.15 Este livro, em certo sentido, seguiu os passos de Burocracia e sociedade, na atenção à biografia coletiva dos 87 juizes que serviram no tribunal do Rio, e na análise do papel histórico do próprio Tribunal Superior, mas foi bem mais longe na investigação da natureza da lei portuguesa e sua aplicação no Brasil. Tal fato, e a atenção que dedica aos conceitos de direito em processo de transformação no período pombalino, faz dessa obra leitura essencial para os interessados na história da Justiça e do governo no Brasil colonial do século xviii.

GOVERNO E SOCIEDADE

Quando Burocracia e sociedade foi publicado, numerosos comentaristas acharam minha abordagem — uma história social da administração da lei no Brasil — inovadora. Àquela altura, o começo dos anos 1970, a história social estava na moda, e nos Estados Unidos havia estudiosos que se pudessem ignorariam o contexto do Estado e das instituições para se concentrar apenas nos agrupamentos e nas interações sociais. Com isso, alguns leitores viram meu livro somente como um ensaio de verdadeira história social. Mas, nas décadas seguintes, o reconhecimento do papel central das instituições e do governo resultou num apelo para que os historiadores "voltassem a incluir o Estado". Acho que essas reivindicações mostraram que minha tendência a dar importância às estruturas e ao funcionamento do governo, assirn como à vida social de seus membros e à sociedade, foi uma boa estratégia. Era preciso que o Estado e suas instituições estivessem presentes e, nessa abordagem, eu na verdade seguia uma longa tradição na historiografia do Brasil, na qual as relações entre 10

Estado e sociedade eram, havia muito, ponto focal de discussão e debate. Diferentemente dos argumentos apresentados em Os donos do poder, o influente livro de Raymundo Faoro (1958) que via a história do Brasil como produto da luta entre, de um lado, a sociedade e, de outro, o Estado e seus funcionários indiferentes e exploradores, este livro ressalta, como seu argumento central, a maneira pela qual o Estado representava ou favorecia determinados grupos sociais, ou as estratégias adotados por grupos para tentar tirar vantagem do Estado, ou, ainda, no caso específico aqui analisado, do sistema de Justiça, incorporando os juizes, ou casando-se com eles e influenciando-os de outras formas.16 Aqui tratei os desembargadores não apenas como burocratas ou funcionários do Estado, mas também como ativos participantes do sistema de relações sociais e como membros de uma classe burocrática com características, aspirações e objetivos próprios. A preocupação com o Estado continua a influenciar, em novas formas, as discussões sobre a história do Brasil. Com a paixão dos anos 1980 e 1990 por história cultural, micro-história, demografia e história económica quantitativa, pouca gente teria previsto o surgimento de um novo e vigoroso debate sobre a natureza do Império colonial português, ou sobre o governo português no Brasil, mas foi exatamente o que aconteceu. Burocracia e sociedade foi um dos numerosos estudos anglo-americanos no anos 1970 que buscaram mostrar que poderes ou instituições locais e regionais, como câmaras ou misericórdias, tentavam subverter, limitar ou amenizar o controle imperial.17 Todos esses livros tiveram impacto no Brasil, mas em certa medida a nova preocupação com a natureza do governo no Império português, e com o contínuo poder de autoridades ou grupos não ligados à realeza deve muito ao trabalho do historiador do direito António Manuel Hespanha. Sua obra, baseada numa curiosa fusão de história jurídica alemã, história política e filosofia italiana, e exaustiva análise quantitativa, examinou a natureza da autoridade em Portugal no século xvii. Deu ênfase às limitações do poder e dos recursos reais e à contínua autoridade da nobreza, dos conselhos municipais e das autoridades eclesiásticas.18 Tratava-se de um compartilhamento de poder, que obrigava a Coroa a governar por intermédio de um sistema de recompensas e incentivos, uma economia de agrados, e não do exercício da força e da autoridade. Tal interpretação implicava uma extensão do Estado patrimonial até uma fase adiantada do século xviii, e sublinhava o contínuo vigor da estrutura"feudal-corporativa" de recom11

pensa e serviço ao Estado. Essa ideia, desenvolvida primeiro em relação à história interna de Portugal, foi aplicada à situação colonial em Macau pelo próprio Hespanha, e depois ao Brasil por João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa e outros académicos do Rio de Janeiro. Seu volume coletivo, O antigo regime nos trópicos, trouxe à luz uma série de estudos que incorporavam a posição de Hespanha, mas a ampliavam e adaptavam à situação colonial, enfatizando o raio de ação e poder das elites locais e sugerindo que a estrutura imperial portuguesa no Brasil foi, realmente, produto de uma negociação de poder entre o governo central e grupos locais. Essa interpretação também se baseou na obra de Joaquim Romero Magalhães, John Russell-Wood e em estudos mais antigos de Charles Boxer, que davam ênfase aos centros locais de poder, e teve como efeito pôr em dúvida o papel predominante da Coroa e de um sistema colonial em que os interesses da metrópole necessariamente ordenavam o sistema político. Saber se a ênfase deveria ser dada a um sistema político pluralista e descentralizado, ou ao controle do centro, provocou considerável discussão, dando origem a novo e saudável interesse no papel do direito, das instituições e de modelos políticos.19 Os recentes debates sobre essas questões me levam a acreditar que Burocracia e sociedade é um estudo que mostra como os interesses do governo imperial e das elites locais foram, de fato, solucionados mediante variados mecanismos sociais e institucionais. Olhando para trás, dou-me conta de que minha pesquisa original para este livro foi realizada de 1965 a 1973 no Portugal de Salazar e no Brasil dos primeiros anos do regime militar, e o fato de residir em Portugal e no Brasil durante esse período de Estado forte e centralizado sem dúvida nenhuma influenciou minha percepção do passado e meu entendimento da história do poder de Estado. Mas, apesar de achar que Hespanha possa ter razão ao afirmar que o modelo corporativo e patrimonial perdurou por muito mais tempo do que se suspeitava, ainda acredito que as ambições da Coroa apontavam para a centralização, e que nesse sentido a burocracia judicial, c especialmente os desembargadores, com os requisitos profissionais para o serviço, os muitos regulamentos destinados a limitar os vínculos com a sociedade local, os interesses familiares, ou outras fontes de influência, e as tentativas da Coroa de assegurar o apoio deles concedendo avanços na carreira, eram a medula espinhal em que se baseavam as aspirações reais a um forte Estado central. O fato de os letrados também se desenvolverem como classe separada,

dependente da força e da expansão do governo, mas cujos interesses nem sempre coincidiam com os do Estado, também complica o debate entre os proponentes do forte controle metropolitano e os aderentes da ideia de fontes locais de poder e autoridade. Nesse sentido, acho que Burocracia e sociedade pode ser relido com proveito, e contribuir para essas novas discussões sobre império, governo e sociedade. Sou grato, portanto, à Companhia das Letras pela oportunidade de levar este livro mais uma vez ao público brasileiro, e a todos aqueles que se interessam pela história do direito, do governo e do Estado no Brasil e no Império marítimo português. StuartB. Schwartz Universidade Yale, março de 2011

Prefácio



Três dedos com uma pena na mão é o oficio mais arriscado que tem o governo humano. Quantos delitos se enfeitam com uma penada? Quantos merecimentos se apagam com uma risca? Quantas famas se escurecem com um borrão? Padre António Vieira

Vasco da Gama no cais de Calecute, Hernán Cortês contemplando os esplendores de Tenochtitlán, Francis Drake na costa da América espanhola. Essas e outras imagens de soldados fanfarrões e marinheiros audaciosos destacam-se tradicionalmente na história da expansão europeia. Mas na esteira desses aventureiros vieram outros tipos mais mundanos — comerciantes, parteiras, padres, criadas e burocratas. Nas regiões da América colonizadas por esses homens e essas mulheres, surgiu uma sociedade complexa, que mesclou os elementos raciais e culturais da Europa, da África e da América, mas sempre conservando um forte sabor europeu no governo e na organização social de suas elites. A criação de impérios ultramarinos foi, sem dúvida, um dos processos mais significativos da história europeia e mundial no período posterior a 1450, e seus efeitos ainda hoje se fazem sentir. Mais ou menos na época em que teve início a expansão ultramarina, outro

processo histórico começou a influenciar as sociedades da Europa Ocidental: Estados fortemente centralizados surgiram, sob a égide da autoridade real. Os monarcas, buscando estabelecer sua autoridade e diminuir os poderes de vários grupos, corporações e estamentos, dependiam cada vez mais dos serviços de uma burocracia profissional, cujos interesses se tornavam intimamente ligados aos da Coroa. As "Novas Monarquias'' se viram diante da tarefa de cobrar tributos, manter a força militar e aplicar a lei. Os diversos ramos da administração (aos quais, em alguns casos, acrescentava-se a hierarquia da Igreja) representavam o esforço do Estado para fazer frente ao desafio de governar. Talvez seja um exagero falar em "revolução administrativa", como o fez G. R. Elton a propósito da Inglaterra do período tudoriano, pois grande parte do novo estilo de governo tinha precedentes medievais, e as mudanças não seguiam sempre o rumo da centralização crescente; mas houve mudança, sem dúvida. A Prússia, a Escandinávia, a França» a Inglaterra c a península Ibérica passaram por esse processo nos séculos xvi e xvn e, apesar de o ritmo e o estilo diferirem de um país para outro, havia um movimento geral. Em meados do século xvn, burocracia e Estado já se haviam tornado sinónimos, e a máquina governamental atingira enormes dimensão e complexidade.1 A península Ibérica é um caso especial. Em Castela, Fernando e Isabel criaram um Estado renascentista destruindo o poder dos fidalgos, lançando as cidades contra a nobreza e desenvolvendo uma burocracia profissional para controlar tanto as primeiras quanto a segunda. 2 Em Portugal, a Casa de Avis dependia do apoio das classes mercantil e inferior em sua luta para estabelecer uma monarquia centralizada, mas, como Castela, também recorreu à administração burocrática para formalizar sua conquista. Tsso não significa que a nobreza tenha se retirado do governo. Os dois reinos reservavam lugares de distinção e serviço para os nobres titulados, desde que eles vinculassem sua sorte à estrela ascendente da Coroa. Os condes e marqueses que serviam em conselhos reais, representavam o rei em cortes estrangeiras, ou governavam como vice-reis comprovam a contínua participação da nobreza no governo. Mas tanto na Espanha como em Portugal os burocratas profissionais, esse quase-estado constituído de empregados e servidores reais, eram geralmente advogados ou juizes não nobres, cuja experiência nos procedimentos legais e na tradição do direito romano, assim como a ênfase que lhes davam e o respeito que por eles tinham, acabou se difundindo por toda a sociedade. 16

A precoce expansão ultramarina de Portugal e Espanha estava, de algum modo, relacionada à ascensão do poder monárquico. Em ambos os casos, e especialmente em Portugal, o investimento e o patrocínio reais tiveram papel significativo na descoberta e na exploração de novas fontes de riqueza que, por sua vez, puderam ser usadas para dar suporte às crescentes responsabilidade administrativas e militares do Estado. Os processos mais ou menos contemporâneos de expansão ultramarina e burocratização estatal imprimiram nas colónias americanas a marca de uma estrutura administrativa bem desenvolvida e de uma concepção curiosamente legalista do governo c da vida. A tradição do direito romano imbuída em juizes, amanuenses, tabeliães e na própria lei foi transferida para o Novo Mundo. A principal responsabilidade do rei para com os súditos, fossem coloniais, fossem metropolitanos, estava na justa aplicação da lei. Determinadas leis podiam ser injustas, advogados podiam ser desonestos e tribunais podiam ser corruptos, mas a lei, alicerce da sociedade, era, por definição, um bem incontestável. Ainda hoje os brasileiros dizem "É legal" quando se referem a qualquer coisa que seja muito boa. Os brasileiros modernos também conservam outra tradição do passado colonial, bem ilustrada pela seguinte anedota sobre um incidente que foi o estímulo inicial para o presente estudo. Quando eu estudava português na Universidade Columbia, no verão de 1963, nossa classe foi solicitada a decorar alguns diálogos que rcfletiam situações da vida diária no Brasil. Uni deles era mais ou menos assim — João: "Pedro, eu soube que você arranjou emprego no Ministério da Fazenda". Pedro: "É verdade, meu cunhado agora é subsecretário". Essa franca admissão de nepotismo provocou gargalhadas entre os alunos americanos, mas a excelente professora brasileira do curso não via nada de engraçado naquilo. De que outra maneira se poderia conseguir emprego no Ministério da Fazenda? Esse incidente me fé/ pensar numa questão crucial: como o Império português, sistema altamente racional de organização burocrática, conciliou as relações pessoais de parentesco, amizade e interesse que sempre caracterizaram a sociedade ibérica? A resposta a essa pergunta permite não apenas uma compreensão mais profunda do legado social e político recebido pelo Brasil, mas também uma tentativa de explicação para o seu desenvolvimento histórico, num período de mais de trezentos anos, como colónia de um país muito inferior em tamanho, população c riqueza. Minha premissa básica em todo este estudo é a de que o governo e a socie-

dade no Brasil colonial estruturavam-s e em torno de dois sistemas de organização interligados. Num nível, uma administração controlada e dirigida pela metrópole, caracterizada por normas burocráticas e relações impessoais, vinculava indivíduos e grupos às instituições políticas do governo formal. Em paralelo, havia uma rede de relações primárias interpessoais, baseada em interesses, parentescos e objetivos comuns, a qual, embora não menos formal em certo sentido, não contava com o reconhecimento oficial. Este livro é uma tentativa de examinar a relação dinâmica entre esses dois sistemas de organização humana no contexto de 250 anos de história brasileira, o período da fundação e consolidação da principal colónia ultramarina de Portugal. Os homens que ocupavam cargos na administração do Império português tinham variados antecedentes sociais e profissionais. Nobres titulados, homens da Igreja e contadores detinham posições administrativas e podiam ser chamados de burocratas com razoável exatidão, mas é preciso lembrar que a Coroa ancorava sua soberania no papel de guardiã da justiça. Apesar de suas responsabilidades militares, fiscais e administrativas, a burocracia do Império português tinha como centro vital uma organização judiciária formada por magistrados - ' profissionais cuja vida, posição social e perspectivas estavam inextricavelmente ligadas ao governo. Concentrando-me no desenvolvimento e na operação do Tribunal Superior (Relação) da Bahia, instituição judiciária e administrativa estabelecida no Brasil em 1609, situei esses magistrados no âmago do meu estudo. Como a Relação era o principal vínculo entre os desejos da população . colonial e os ditames do governo real, dei destaque especial às funções administrativas do Tribunal Superior e à natureza e ao desempenho de seu pessoal, mais do que propriamente ao seu papel como órgão da Justiça. Minha intenção ao longo deste estudo foi destacar a natureza humana da burocracia e examinar as dimensões históricas que uma abordagem do governo feita com base nas relações humanas é capaz de oferecer. Tabelas formais de organização não foram ignoradas, e o leitor encontrará muitas referências a conflitos institucionais, como tradicionalmente ocorre nas histórias administrativas; mas para compreender a operação do governo e da sociedade no Brasil colonial precisamos olhar para além, para a complexa rede de outras relações sociais e económicas que constituíam a essência da vida colonial. É nessa área, acredito, que este estudo tem algo de novo a oferecer. O livro está dividido em três partes. A primeira examina a natureza da

burocracia portuguesa e o surgimento dos magistrados como poder político tanto em Portugal como em suas colónias — em 1580, a união da Espanha e de Portugal resultou numa reforma geral da estrutura judiciária portuguesa, período no qual nasceu a Relação da Bahia — e termina com um exame da magistratura portuguesa e a descrição minuciosa da vida pessoal e profissional dos dez primeiros magistrados (desembargadores) do Tribunal Superior da Bahia. Na segunda parte, usei a primeira Relação da Bahia (1609-26) como veículo para o exame da estrutura, das funções, dos procedimentos e das ações dessa corte. Essa seção analisa o meio social da Bahia, a sede da Relação, e procura mostrar o impacto desta nas condições locais. Os conflitos de jurisdição e de interesses que surgiram entre a Relação e outras instituições são mostrados contra o pano de fundo de questões mais amplas, como a natureza e a eficácia do governo colonial. Em seguida, revelando as várias ligações entre família, amizade e interesses comerciais, tentei uma análise da burocracia no contexto da sociedade colonial. Finalmente, o capítulo 9 demonstra como medidas tomadas e pressões exercidas em tempos de guerra levaram à abolição temporária da Relação. Na terceira parte analisam-se as razões do renascimento da Relação e esboça-se sua história até 1751. Partindo das biografias de todos os 168 magistrados da Relação da Bahia (1609-1759), tentei uma análise geral da magistratura no Brasil colonial, com ênfase nas relações primárias estabelecidas entre os juizes e a sociedade colonial. Apesar de discorrer sobre a natureza tanto da burocracia como da sociedade no Brasil colonial, este volume não pretende ser um estudo exaustivo nem de uma nem de outra. É, principalmente, um estudo das elites: de um lado, o mais alto nível da burocracia profissional, os desembargadores; do outro, os senhores de engenho e criadores de gado que dominavam as instituições coloniais e costumavam monopolizar os recursos sociais e económicos disponíveis. A ênfase nas camadas mais altas do governo e da sociedade coloniais não reflete um desinteresse pela ampla maioria da população. Na verdade, este livro reconhece que as instituições sociais e políticas do Brasil colonial geralmente funcionavam em detrimento dessa maioria, tenta explicar como surgiu esse sistema e, mais importante, como e por que ele se perpetuou. Ao preparar este livro, recorri a muitas obras sobre a história portuguesa e brasileira, mas muito poucas diretamente ligadas ao meu assunto. Como resultado, este estudo baseia-se primariamente em documentos impressos e não

publicados provenientes de uma variedade de fontes, pequenos pedaços que tentei juntar. Os magistrados profissionais do Império português não formam um grupo de trato muito fácil para o historiador. Os portugueses raramente sentiram a necessidade de perpetuar sua memória em prosa ou em retratos. O diário não é um género português, e, numa época em que todo burguês holandês posava para um artista, a iconografia portuguesa limitava-se, essencialmente, a reis e clérigos. Ao cabo de cinco anos de pesquisa, en não havia encontrado nenhum documento pessoal ou correspondência particular dos magistrados. Assim, muitos aspectos da vida privada deles, que teriam sido valiosos para este estudo, continuam desconhecidos. O leitor pode lamentar meu fracasso nesta área, mas eu lhe garanto que a ausência desse tipo de informação não se deve a desinteresse ou descuido. Enquanto estudos sobre a magistratura portuguesa são praticamente inexistentes, a literatura sobre a burocracia em geral é vasta. Excelentes estudos históricos seguiram o rastro do desenvolvimento das burocracias estatais em muitos países, e um grande volume de obras de ciência política e sociologia surgiu em torno de temas como administração pública, teoria da organização e burocracia. 3 Li muito, mas nem de longe exaustivamente, essa literatura, e, embora este estudo não reivindique um lugar no campo da sociologia, aprendi algumas lições e tomei emprestados vários conceitos dessa disciplina. Mesmo evitando o rótulo de "funcionalista", minha abordagem se enquadraria basicamente em um modelo de relações humanas, pós-weberiano. 4 Sem dúvida, os clássicos estudos de Max Weber sobre a burocracia serviram de ponto de partida para a moderna análise histórica e sociológica do fenómeno.'' Estudiosos como John l,. Phelan demonstraram a utilidade duradoura do modelo de desenvolvimento burocrático de Weber, e sua aplicabilidade no contexto de um império colonial.5 Há, enfim, muita coisa na abordagem de Weber que me pareceu útil, mas evitei seu modelo por duas razões básicas. A primeira é que Weber estava preocupado, fundamentalmente, com estágios do desenvolvimento administrativo. Seus estágios ideais de autoridade patriarcal, patrimonial e burocrática são particularmente inadequados para uma análise do Império português, que se desenvolveu num período histórico de transição e, portanto, continha elementos de pelo menos dois estágios weberianos, não se encaixando em nenhum deles confortavelmente. Weber, é claro,

percebeu que se tratava de "tipos ideais" que careciam de descrição, a n a h w c refinamento históricos, mas o problema de passar de um tipo para o próximo o o ponto mais fraco do seu modelo. Esse processo de mudança é que é difícil do conciliar na teoria de Weber, e este livro deixa claro que a administração do Brasil colonial se caracterizava por mudanças constantes e urandc flexibilid-idiAlém disso, formas patrimoniais e burocráticas de organização não n iroceni ter sido estágios mutuamente excludentes no caso brasileiro, mas tipos \a n tes que poderiam existir simultaneamente dentro da mesma organização \a razão é qu — as características projetadas para a realização direta de tarefas administrativas— perde em utilidade numa análise que ressalta as relações não caiegóncus e pessoais dos burocratas, em oposição às relações categóricas e impessoais da burocracia. Apesar de ter evitado o modelo de Weber, incorporei alguns conceitos por ele desenvolvidos, especialmente o conceito de controle patrimonial, segundo o qual o governante incorporava legitimidade e autoridade e distribuía cargos com base em critérios particularistas, não no mérito. Em tal sistema, os interesses privados do funcionário e os interesses públicos do cargo geralmente ficavam indistintos, e os cargos eram, comumente, propriedade de seus ocupantes.7 Muitos elementos dessa forma de controle continuaram caracterizando os níveis inferiores da burocracia portuguesa muito tempo depois da adoção de mudanças destinadas a estabelecer a hierarquia, a especialização e a objetividade da administração burocrática "racional". O fato de os desembargadores, o elemento mais profissional da burocracia, terem continuado a adotar valores c perseguir objetivos contrários aos da administração racional mostra a dificuldade de aplicar o modelo de Weber. Além disso, está implícita em todo o livro minha crença de que o comportamento não burocrático se tornava mais frequente à medida que se desciam os escalões administrativos. Dessa maneira, sejam quais forem as evidências desse comportamento não racional entre os desembargadores, elas serão várias vezes maiores entre os pequenos funcionários locais. Apesar de ter deliberadamente me concentrado em um único setor da burocracia, acredito que boa parte de minha análise seja aplicável aos outros níveis. A obra de S. N. Eiscnstadt foi-me especialmente útil para definir elementos do processo histórico de formação burocrática e para ver esse processo como uma mudança constante.8 Seguindo seus passos, tentei diferenciar os objetivos

e valores da burocracia (tais como definidos pela Coroa) daqueles dos burocratas, tanto pessoais como profissionais. Minha abordagem básica consistiu em ver a burocracia como um sistema social e como uma forma de administração, e examinar as relações entre ela e a sociedade em geral. Ê no padrão dinâmico dessas relações que se encontra a história da burocracia colonial.

Abreviaturas

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Academia de Ciências de Lisboa Arquivo da Câmara Municipal da Bahia Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa Archivo General de índias (Sevilha) Archivo General de Simancas Arquivo Histórico do í tâmara ty Archivo Histórico Nacional Madrid Arquivo Histórico Nacional do Rio de Janeiro Arquivo Histórico Ultramarino Arquivo Municipal de Coimbra Arquivo Nacional da Torre do lombo (Lisboa) Arquivo Público do Estado da Bahia Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia Arquivo da Universidade de Coimbra Biblioteca da Ajuda (Lisboa) Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra Britísh Museum (Londres) Biblioteca Nacional de Lisboa Biblioteca Nacional de Madrid Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Biblioteca Pública de Évora

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PRIMEIRA PARTE: JUSTIÇA E BUROCRACIA

i. A Justiça do rei: Portugal, África e Ásia

Um só mau oficial que há em uma cidade destroi a comunidade; Vede bem se farão mal, muitos desta qualidade; Deus e el rei não são servidos, os povos são destruídos, a policia danada, a republica roubada, e os pobres oprimidos. Garcia de Resende, Miscelania (c. 1534)

O pelourinho, símbolo de justiça e autoridade real, ficava no coração da maioria das cidades portuguesas do século xvi. À sua sombra, autoridades civis liam proclamações e castigavam criminosos. Sua localização no centro da comunidade refletia a crença ibérica de que a administração da justiça era o mais importante atributo do governo. Os portugueses e espanhóis dos séculos xvi e xvn achavam que a aplicação imparcial da lei e o honesto desempenho dos deveres públicos garantiam o benvestar e o progresso do reino; no sentido contrário, a adulteração da justiça por funcionários gananciosos ou por grupos

e indivíduos fortes provocava a ruína e o castigo divino. Em Portugal, a preocupação dos reis com a justiça atingiu um apogeu draconiano durante o reinado de d. Pedro i (1357-97), para o qual a distribuição de justiça aos bem-nascidos e humildes se tornou uma fixação psicótica.l Vezes sem conta, tratados eruditos e as próprias leis mencionavam a justiça como a primeira responsabilidade do rei. Do século xm ao xvn, os portugueses viam uma estreita relação entre o rei e a sua lei,2 No ultramar, os rebentos coloniais de Espanha e Portugal não eram menos ciosos do valor da justiça e da lei. Frei Vicente do Salvador, nascido no Brasil e um de seus primeiros historiadores, contou em sua História do Brasil um caso ilustrativo. Um terremoto na índia portuguesa tinha destruído toda a cidade de Bassein, menos o pelourinho e um muro onde os azorragues da punição judicial ficavam pendurados. Frei Vicente extraiu desse incidente a conclusão moral de que Deus preferia a perda de cidades e pessoas à suspensão de castigos para crimes.3 A administração da justiça, portanto, é uma chave para o entendimento dos Impérios de Espanha e Portugal nos séculos xvi e xvn. O Império marítimo português, do qual o Brasil era apenas uma parte, já foi chamado de "talassocracia" e de império comercial num molde militar e religioso.4 Era um Estado organizado para o qual fora desenvolvida uma complexa maquinaria de controle. Os modelos de governo e instituições oficiais do Brasil baseavam-se nas formas originadas em Portugal ou nas áreas do Atlântico, da África e da Ásia para onde os portugueses se expandiram. O desenvolvimento brasileiro antes e depois de 1580 foi com frequência precedido — ou ocorreu a par — de desenvolvimentos em Portugal ou em outros lugares do Império. Por isso é preciso entender a organização da estruLura judicial portuguesa em 1580 se quisermos compreender o período subsequente. Além disso, como veremos, a estrutura judicial tornou-se o modelo do arcabouço da burocracia colonial. A unidade básica da estrutura administrativa e judicial portuguesa era o Conselho. Cada Conselho mantinha um determinado número de funcionários que exerciam as funções administrativas e judiciais necessárias à vida urbana. Esses servidores incluíam o almotacel, o alcaide, o meirinho e o tabelião, mas o mais importante funcionário judiciário local era o juiz ordinário, às vezes chamado de juiz da terra.5 Cada Conselho incluía dois desses magistrados municipais eleitos. Nem sempre formados em direito, eram cidadãos comuns desejo-

sós de servir à comunidade pelo período de um ano/ Um bastão vermelho simbolizava a autoridade do magistrado municipal. Ele era responsável pela manutenção da lei e da ordem no município, rnas geralmente encontrava obstáculos na realização desse objetivo; como funcionário eíeito L- membro da comunidade, o juiz ordinário e sua família ficavam expostos às ameaças e pressões dos fidalgos e de outros indivíduos e grupos poderosos. Em contrapartida, o magistrado municipal podia abusar da autoridade para favorecer amicos e parentes. Essas falhas levaram a Coroa a criar, já em 1352, o cargo de juiz de fora (literalmente, juiz que vinha de fora) para substituir o juiz municipal em certas comunidades.7 Nomeados pelo rei, os juizes de fora eram, teoricamente, menos sujeitos a pressões locais. Além disso, a política da Coroa era garantir que esses magistrados não tivessem ligações pessoais nas áreas de sua jurisdição, Como os juizes municipais, os magistrados reais podiam ouvir casos civis e criminais em primeira instância, cxceto aqueles que envolvessem prerrogativas reais. Em 1580 a autoridade real e central — simbolizada pelo cetro branco do juiz de fora — já tinha suplantado o controle judiciário municipal em mais de cinquenta cidades de Portugal.8 Logo abaixo, na estrutura administrativa, estavam as Comarcas ou Correições, em número de 21, divididas entre as seis províncias portuguesas de Beira, Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Alentejo, Estremadura e Algarve. Para cada Correição era designado um corregedor (magistrado superior da Coroa), cujas funções eram, basicamente, de natureza investigatória e apelatória. Além disso, o corregedor, cujo título significa exatamente o que corrige, tinha o dever de processar criminosos, supervisionar obras públicas, fiscalizar eleições municipais, aplicar ordenações reais e salvaguardar prerrogativas reais. Ao longo do ano, esperava-se que o corregedor visitasse todas as cidades e aldeias sob sua jurisdição para certificar-se do estado da justiça, vistoriar o procedimento de magistrados subalternos e ouvir aqueles casos em que esses magistrados estivessem implicados ou fossem suspeitos. Fazer essa jornada era fazer correição; daí o título de corregedor.9 A presença do juiz de fora e do corregedor nas cidades e aldeias de Portugal refletia uma tentativa da monarquia de limitar o controle de elementos locais de poder. Um observador contemporâneo de Portugal comentou que também era obrigação do corregedor "apaziguar facções e discórdias e restringir a

influência da província".10 Tanto o corregedor como o juiz de fora eram pilares do governo real em nível local. No sistema judicial e administrativo português questões relativas a órfãos, instituições de caridade e validação de testamentos eram atribuídas a outro grupo de funcionários. No nível municipal, havia um juiz de órfãos, cujas obrigações se limitavam à guarda de órfãos e de sua herança.11 Seu superior imediato no nível da Comarca era o provedor, encarregado de órfãos, hospitais, irmandades laicas e questões de testamento, assim como da supervisão da coleta de certos tributos e rendas. Pelo fim do século xvi, o juiz de fora e o corregedor tinham assumido esses cargos em muitos lugares, o que resultou na concentração de poder nas mãos dos magistrados reais, num nível que excedia as suas atribuições. Havia muitas exceções ao padrão geral esboçado acima. A maioria delas tinha sua origem em concessões e privilégios medievais, feitos por monarcas portugueses a grupos, instituições e indivíduos. As áreas pertencentes às ordens militares-religiosas de Cristo, Avis e Santiago não estavam submetidas ao sistema regular de administração, e nelas a lei era aplicada por um ouvidor, e não por um corregedor. Os poderes de um ouvidor equivaliam, mais ou menos, aos dos magistrados superiores da Coroa, mas ele era indicado pela ordem militar, e não pela Coroa. A Universidade de Coimbra também desfrutava de posição distinta, uma vez que nela a justiça era administrada por um conservador da justiça, que tinha, sobre professores e estudantes, dentro e fora do campus, a mesma jurisdição que o corregedor normalmente exercia numa Comarca.12 O arcebispo de Braga — primaz das Espanhas — exercia controle temporal, além de eclesiástico, sobre grande território. Além disso, terras pertencentes a certos magnatas, como o prior do Crato, o duque de Bragança, o duque de Aveiro e o marquês de Vila Real, estavam isentas das visitas dos corregedores e eram sujeitas apenas a limitado controle real em questões relativas à administração da justiça.13 Os Tribunais Superiores de Apelação eram o nível seguinte da estrutura judiciária. O Tribunal Superior era conhecido, no mundo português, como Relação, às vezes Casa da Relação. Em 1580, havia três Tribunais Superiores em operação no Império português: dois tribunais subordinados, a Casa do Cível em Lisboa e a Relação da índia, em Goa, e a superior Casa da Suplicação, que devia sua posição à proximidade da pessoa do rei.

A Casa do Cível estava estabelecida em Lisboa desde 1434. Todos os casos cíveis em Portugal, com direito a recurso, eram ouvidos por esse tribunal, que exercia jurisdição final em disputas que envolvessem pequenas somas. Ações em que estavam em jogo somas maiores poderiam recorrer à Casa da Suplicação. A Casa do Cível também tinha jurisdição em todos os casos criminais da província de Estremadura e da cidade de Lisboa, sem recurso de apelação de suas decisões. A Casa do Cível tinha a reputação de excesso de trabalho acumulado e de extrema lentidão na solução de litígios. A Casa da Suplicação também era um Tribunal Superior de Apelação, mas estava acima das outras cortes. Tinha começado como tribunal para o séquito do rei e, originariamente, funcionara nas instalações da Casa do Cível, mas em 1392 foi separada em caráter permanente.14 Depois dessa data, a Casa da Suplicação passou a acompanhar o monarca e, por isso, costumava instalar-se no Alentejo, na Estremadura e na cidade de Lisboa. Casos criminais originados fora da província de Estremadura, e que tivessem direito a apelação, eram ouvidos pela Casa da Suplicação, assim como os casos civis fora da jurisdição da Casa do Cível. Recursos de decisões judiciais nas colónias eram também ouvidos pela Casa da Suplicação. Como tribunal para a corte do rei, ela mantinha ainda dois magistrados (corregedores de corte) para julgar os processos de cortesãos e da casa real. A organização e os procedimentos internos da Casa da Suplicação serviam de modelo para todos os outros tribunais do Império português. Cada posição dentro da estrutura do tribunal trazia, com suas funções, vantagens e prestígio que os magistrados ansiavam por adquirir. O principal órgão do tribunal era composto de desembargadores, divididos em desembargadores extravagantes e desembargadores dos agravos. Os primeiros eram membros menos graduados, geralmente homens mais jovens e inexperientes, designados, conforme a necessidade, para os casos presididos pelos desembargadores dos agravos. Em 1580 havia mais de vinte magistrados autorizados a servir na Casa da Suplicação.15 Os desembargadores eram distribuídos em duas câmaras (mesas), uma para casos civis e outra para casos criminais, cada qual dirigida por um desembargador dos agravos, que usava o título de corregedor.16 Uma sessão plenária, a mesa grande, era convocada apenas para questões de grande importância. Como em todos os tribunais superiores portugueses, o mais alto funcionário era geralmente um grande nobre, hierarca da Igreja ou, nas colónias, o

governador residente ou vice-rei. Sua posição e linhagem conferiam prestígio ao tribunal e, pelo menos em tese, colocavam-no acima das querelas de seus membros.17 Na Casa da Suplicação, como na Casa do Cível e nos tribunais posteriores do Império, o papel do presidente (regidor, governador) era mais honorário que funcional, e a verdadeira liderança cabia ao chanceler, que era de fato o juiz supremo. Experiência e uma eminente carreira legal preparavam o magistrado para a posição de chanceler, de grande responsabilidade. Os deveres do chanceler incluíam designar juizes para julgar litígios, emitir sentenças, rever decisões para evitar conflitos com as leis existentes e afixar o selo do tribunal. Em Lisboa, Goa, Bahia e Porto, as sedes de tribunais superiores do Império, a personalidade e o desempenho do chanceler geralmente determinavam o andamento e o estilo de cada tribunal. Apesar de não ser geralmente considerada parte do aparelho administrativo colonial, a Casa da Suplicação exercia alguma influência ao Brasil. Não só porque sua estrutura serviu de modelo para tribunais brasileiros posteriores, mas também porque, sendo o rnais alto tribunal de apelação, ela às vezes julgava recursos apresentados nas colónias. Por isso, algumas das mais importantes decisões para a vida dos colonos eram tomadas nas câmaras da Casa da Suplicação. Infelizmente, quase nada se sabe da possível influência política desse tribunal sobre o processo decisório da Coroa. No ápice do sistema judiciário ficava o Desembargo do Paço, órgão que, tendo principiado como urna assembleia consultiva de d. João n (1481-95), passara a uma instância governamental plenamente institucionalizada pelas Ordenações Manuelinas de 1514. Embora casos de mérito especial pudessem recorrer a esse órgão depois de esgotar todos os outros meios de conciliação, sua função básica não era a de tribunal, mas a de conselho e assembleia consultiva em todas as questões de justiça e administração judiciária. Com o passar do tempo, o Desembargo do Paço tornou-se o órgão central da estrutura burocrática do Império português. Era costume do Desembargo do Paço acompanhar o rei e reunir-se com ele todas as tardes de sexta-feira para discutir a formulação e a emenda de leis, a nomeação de magistrados e as condições políticas e legais do país em geral.18 O Desembargo do Paço nomeava magistrados reais, promovia-os e avaliava seu desempenho por meio da residência (investigação) realizada no fim de seu tempo de serviço. Se fosse o caso, o Desembargo do Paço também realizava

investigações especiais (devassas) ou inspeções, e às vezes resolvia conflitos de competência entre tribunais ou magistrados subordinados. Os vários graus da magistratura real, do mais jovem juiz de fora ao mais experiente magistrado do reino, eram submetidos a escrutínio, inspecão e inquirições do Desembargo do Paço, Isso se aplicava tanto às colónias quanto à metrópole; e, diferentemente do Império espanhol, no qual o Conselho das índias nomeava magistrados reais para as colónias, essa função permaneceu unificada sob o controle do Desembargo do Paço.19 A composição do Desembargo do Paço não era fixa, embora o costume tenha mantido o número de magistrados em torno de seis. Na altura de 1580 havia treze desembargadores do Paço servindo ou autorizados a servir. Havia entre os membros um sacerdote especializado em direito canónico, para que os direitos e privilégios da Igreja fossem preservados. Tornar-se membro do Desembargo do Paço representava o pináculo da promoção no sistema judiciário, e todos os magistrados aspiravam ao prestígio, à influência e ao alto salário dessa posição.211 Um sistema de tribunais e funcionários eclesiásticos que aplicava a lei canónica existia paralelamente à organização judicial esboçada acima. Clérigos tinham direito a julgamento nos tribunais religiosos, os quais, via de regra, eram lenientes e aplicavam penas leves.21 Um tribunal especial, a Inquisição, ou Santo Ofício, mantinha sua própria organização e exercia jurisdição sobre o laicato e o clero em questões de moralidade, heresia e desvio sexual. A Inquisição em Portugal operava a partir das cidades de Lisboa, Coimbra e Évora. Havia uma comissão análoga ao Desembargo do Paço criada por d. João m em 1532 para aconselhá-lo em questões pertinentes à Igreja c à moralidade no reino (consciência real). Essa Mesa da Consciência e Ordens era composta de homens da Igreja e advogados laicos, que aconselhavam a Coroa em assuntos relativos à igreja, às ordens militares e à Universidade de Coimbra. Era também responsabilidade da Mesa da Consciência prover todos os benefícios eclesiásticos e das dioceses, resgatar cativos, administrar a propriedade de pessoas que morriam sem deixar testamento e zelar de modo geral pela moralidade no reino. A Mesa da Consciência nomeava, ainda, os "provedores dos defuntos e resíduos" e coletava o dízimo no Brasil e outros domínios mediante urn sistema delegado de cobrança. Como o Desembargo do Paço, a Mesa da Consciência também exercia

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certas funções judiciais. Membros das ordens militares eram isentos da jurisdição civil e tinham direito de ser julgados por um juiz especial que sempre pertencia a uma das ordens. Esse juiz dos cavaleiros tomava conhecimento de todos os casos que envolvessem cavaleiros das ordens militares, e de suas decisões só cabiam recursos à Mesa da Consciência. Da mesma forma, das decisões do conservador da Universidade de Coimbra só cabia recurso à Mesa. Mais importante, porém, era que a Mesa da Consciência debatia e resolvia os problemas morais do domínio português no Brasil: a posição e a natureza dos índios, a legalidade e a moralidade do comércio de escravos africanos e indígenas e o problema da "guerra justa". Essas questões morais e sua solução exerceram considerável influência na formação da sociedade e da mentalidade do Brasil colonial.22 O sistema de tribunais reais e eclesiásticos era, ao que tudo indica, um mecanismo altamente racionalizado de administração judicial, um sistema baseado no conceito de que a obrigação de fornecer os meios legais para corrigir erros constituía a essência da autoridade do rei. Mas o observador se impressiona, especialmente ante a organização judicial real, com as múltiplas responsabilidades dos magistrados e sua tendência a assumir funções extrajudiciais. No processo de centralização, a Coroa portuguesa encontrara, no sistema judiciário, uma ferramenta conveniente e eficaz para a ampliação do poder real, e, no corpo de magistrados profissionais do sistema, a Coroa não apenas encontrou, mas forjou um aliado competente. Os letrados, ou pessoas com grau universitário, elevaram-se a posição de destaque no século xiv, depois das Cortes de Coimbra de 1385. Em meados do século xv, sua posição era a de quase igualdade com a classe dos cavaleiros e fidalgos, embora os fidalgos se recusassem a reconhecer esse fato.23 Em meados do século seguinte, os letrados começaram a assumir aspecto de casta, como grupo que se perpetuava por meio de casamentos e relações de família, ocupando a maioria dos cargos judiciais e muitos cargos administrativos do governo. Os filhos dos letrados seguiam os passos dos pais, saindo de um curso de direito canónico ou de direito civil (geralmente na Universidade de Coimbra, mas às vezes em Salamanca) para ingressar no serviço real. Depois disso, a promoção dependia não apenas de antiguidade, diploma universitário e desempenho, mas também do fato de o pai ter ou não igualmente servido.24 Embora a classe dos letrados tenha vindo de origens humildes no século xiv, trezentos anos depois sua importância e seu prestígio estavam instituciona34

lizados mediante a concessão de títulos de nobreza e o ingresso nas ordens militares. Dessa maneira os magistrados começaram a adotar as atitudes e os atributos da aristocracia militar. Mas, enquanto os fidalgos e a nobreza militar inferior foram obrigados a lutar contra a violação de suas imunidades e seus privilégios tradicionais, a qual era inerente à centralização real, os letrados deviam sua existência à expansão do poder real. Em Portugal e na Espanha, os letrados formavam um grupo estreitamente ligado à Coroa, profundamente respeitoso da lei e da ordem e ansioso por encontrar soluções legais para os problemas práticos do governo.25 Os juizes da Coroa aspiravam à promoção na hierarquia judicial, de juiz de fora ou juiz dos órfãos a corregedor ou provedor, e assim sucessivamente, galgando posições dentro dos tribunais superiores. Posteriormente, os letrados mais capazes, ou mais bem relacionados, seriam designados para ugj~dos conselhos reais, como o Desembargo do Paço, ou, ocasionalmente, para um dos órgãos consultivos que cuidavam de questões coloniais e financeiras. Cada promoção trazia mais prestígio, mais privilégios e maiores salários. O bem-estar dos letrados de nível universitário dependia em grande parte dos favores reais.26 Na luta dos reis portugueses para impor uma monarquia centralizada, os letrados se tornaram aliados naturais. Quando a administração do Império ultramarino transformou-se em preocupação permanente, a Coroa voltou-se novamente para a classe dos magistrados. Quem haveria de melhor que os sóbrios magistrados reais para controlar as forças centrífugas do Império geradas pelos senhores de engenho brasileiros e pelos mercenários em Goa? E quem teria mais a ganhar do que eles obedecendo à vontade e protegendo os interesses do rei? Em tese, os magistrados representavam a Coroa e mereciam confiança devido aos controles burocráticos e ao desejo profissional de atingir objetivos carreiristas. As possessões ultramarinas de Portugal, apesar de distintas pelas condições peculiares e pela localização geográfica, eram subordinadas ao sistema judiciário da metrópole. A lei portuguesa tornou-se a lei dos territórios que acabavam de ser incluídos em seus domínios, e ministros da Justiça semelhantes aos de Portugal assumiram cargos nas colónias para aplicar a lei. As condições locais e as relações particulares da colónia com a Coroa, entretanto, determinavam, em certa medida, a natureza da administração judicial. Os postos avançados do norte da África — Ceuta, Tânger, Mazagão e Arzila — foram primeiramente estabelecimentos militares cujos capitães esta35

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P.AC/Í/CO

vam investidos de poderes judiciais sumários. Em casos de traição, deserção, roubo, pirataria e sodomia, e em todos os casos que não envolvessem morte ou esquartejamento como castigo, os capitães tinham jurisdição final.27 Nos outros casos, cabiam recursos a Portugal. Nos Açores, como no Brasil, os capitães tinham permissão para designar um ouvidor, mas a Coroa, periodicamente, enviava um corregedor para inspecionar a administração de justiça. O interesse do rei no controle judicial também era demonstrado pela presença de um juiz de fora na cidade de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel. Na ilha da Madeira, onde o sistema de capitanias foi inaugurado, o capitão-mor tinha o direito de designar um ouvidor para administrar justiça. A Coroa, no entanto, reservava-se o direito de nomear o provedor dos órfãos.28 Em sua conquista ao longo da costa oeste da África, os portugueses não tinham desenvolvido uma fórmula para a administração da justiça. Em Angola, o problema foi tratado pela primeira vez com a doação feita a Paulo Dias de Novais em 1571. Dias de Novais foi tornado capitão e donatário de Angola, com poderes judiciais equivalentes aos anteriormente concedidos aos donatários brasileiros no começo dos anos de 1530.29 Ele tinha licença para designar ouvidores e rever e confirmar nomeações para cargos judiciários feitas por funcionários municipais.30 Nas ilhas de São Tomé e Cabo Verde e nas ilhas da costa da Guiné, os proprietários receberam jurisdição de natureza final, exceto nos casos envolvendo pena de morte ou perda de membros.31 Descobriu-se, porém, que esses amplos poderes privados eram prejudiciais aos interesses do rei e em 1516 corregedores foram designados para investigar a atuação dos ouvidores que representavam os capitães.32 Os proprietários, portanto, continuaram a nomear juizes, mas a Coroa usava seus corregedores para efetuar a supervisão destes e das Câmaras municipais locais.33 No oceano Índico, Portugal começara a criar um império marítimo nas rotas de comércio da China para Malacca e Goa. Soldados portugueses brigões, prelados arrogantes e funcionários gananciosos mesclavam-se aos moradores locais, criando graves problemas administrativos e judiciais. Em nenhum lugar isso era mais visível do que na "Dourada Goa" sede do poder português na Ásia, onde a luxúria, o concubinato e a má conduta floresciam. Administrar a justiça adequadamente além do Cabo da Boa Esperança era, talvez, tarefa impossível, devido à natureza da região e aos problemas apresentados pela geografia.

Em primeiro lugar, as partes componentes do Estado da índia iam de Macau a Moçambique, e eram separadas pela vastidão do oceano Índico.34 Além disso, a diversidade de instituições locais dificultava as coisas. Cidades como Goa e Macau tinham Câmaras municipais eleitas, com os costumeiros juizes locais, ao passo que nos estabelecimentos militares, nas fortalezas da índia, o capitão da guarnição designava o ouvidor e seus meirinhos. D. Francisco de Almeida, o primeiro vice-rei da índia, recebera alguns poderes judiciais em suas instruções de 1505, mas na maior parte dos casos a autoridade judicial era atribuída a um juiz superior, ou ouvidor-geral, frequentemente membro da magistratura real. Os poderes desse cargo foram um tanto ampliados nas ordens dadas a João de Osório, que viajou em companhia de Vasco da Gama em 1524, e a partir de então o ouvidor-geral manteve jurisdição de apelação sobre os magistrados subordinados em todo o Estado da índia.35 Como funcionário designado pelo rei, sua ampla jurisdição e seu grande poder geralmente punham o ouvidor-geral em conflito com o vice-rei e os moradores locais.36 O volume de litígios e a dificuldade imposta pela distância geográfica já bastavam para reduzir a eficácia do ouvidor-geral e finalmente levaram à criação, em 1544, do Tribunal Superior de Apelação em Goa, com base no modelo da Casa do Cível e da Casa da Suplicação.37 A Relação da índia, criada em 1544, foi o primeiro dos tribunais superiores de apelação a ser estabelecido fora das fronteiras de Portugal continental. Apesar de criada para reduzir o volume de litígios e mediar disputas, ela se envolveu constantemente em conflitos internos e choques ostensivos com outras fontes de autoridade. Três anos depois de estabelecida, havia queixas contra a ganância e a incompetência dos magistrados da Relação. Da índia, Simão Botelho escreveu em 1547 que, desde o estabelecimento da Relação, "agora pior despacho que dantes: já pode ser por tudo ir em crescimento e as demandas mais que tudo".38 Essas acusações de ineficácia, preguiça e incompetência caracterizaram a história do tribunal de Goa desde a criação até sua breve abolição pelo marquês de Pombal em 1774.39 Vários projetos de reforma foram incapazes de dar resultados, e, a acreditarmos em Diogo de Couto e outras testemunhas oculares, a magistratura no Estado da índia pouco mais fez do que forrar os bolsos dos magistrados. Certamente, as fluidas condições sociais e económicas da índia portuguesa contribuíram para essa situação, mas a similaridade das queixas registradas contra magistrados em Lisboa, índia e 39

Brasil indica um padrão geral — se não de abusos judiciais, pelo menos da percepção que a sociedade tinha da magistratura.

2. Justiça e juizes no Brasil, 1500-80

Soldados, comerciantes, clérigos e plebeus portugueses viarn na administração da justiça o cerne do governo real e a principal justificativa do poder do soberano. Por isso, esperavam os mais altos níveis de desempenho dos magistrados que aplicavam a justiça em nome do rei, e, quando um juiz deixava de corresponder a essas expectativas, as reclamações costumavam ser ruidosas e insistentes. O que a maioria das pessoas não via, no entanto, era que a organização judiciária se tornara o plano estrutural do império. Racionalizada e sistematizada desde o século xiv, ela oferecia à Coroa um meio burocrático de controle, e quase imperceptivclmente a magistratura real se estendera às colónias. Como e por que a situação colonial transformava juizes em burocratas pode ser visto com plena clareza nos primórdios da história do Brasil.

Não há paz, mas tudo ódio, murmurações e detraçocs, roubos e rapinas, enganos e mentiras; não há obediência nem se guarda um só mandamento de Deus, e muito menos os da Igreja. Padre Manoel da Nóbrega (Bahia, 5 de julho cie 1549)

Terra de pau-brasil, de índios nus e de papagaios, havia pouco mais no Brasil capa/, de preocupar o rei ou de atrair muitos colonos portugueses nos trinta anos que se seguiram à descoberta da colónia, em 1500. Os raros e minúsculos povoados e entrepostos comerciais na costa brasileira eram muito diferentes da dourada Goa, e o controle real, como tudo o mais nesse remanso colonial, desenvolveu-se lentamente. Até os anos de 1530 não houve nenhuma tentativa de legislar para a nova terra de forma sistemática. Capitães de navios e chefes de expedições militares e exploratórias exerciam suas prerrogativas tradicionais, como árbitros de disputas a bordo. Para os poucos europeus que permaneciam por algum período nessa costa inóspita, a justiça era do tipo de fronteira, dispensada pessoalmente, por estocada de espada ou tiro de mosquete. Nos primeiros anos da história do Brasif, a colónia era vista principalmente como empresa comercial, e sua integração à estrutura colonial existente se dava por meio dos órgãos de comércio marítimo do governo. Por isso o

abastecimento do Brasil e dos navios que ali faziam comércio e a solução de disputas oriundas da atividade comercial e de navegação eram da alçada da Casa da Guiné, Minas e índia e do juiz da Guiné e da índia.1 Como havia poucos europeus permanentemente radicados no Brasil, não houve tentativa, nem era preciso que houvesse, de estabelecer um sistema regular de administração judicial na colónia. A expedição de Martim Afonso de Sousa, que partiu de Lisboa em 1530, marcou importante transição da descuidada administração da justiça imposta pela necessidade militar para uma forma mais concreta, baseada no estabelecimento de uma colonização permanente e no reconhecimento da necessidade de normatização da sociedade. Temendo avanços franceses na região, d. João ni patrocinou essa expedição a fim de garantir a nova colónia para Portugal, Para tanto, Martim Afonso de Sousa foi instruído a realizar ações militares contra quaisquer estrangeiros intrometidos encontrados na costa, e a fazer uma investigação preliminar do litoral com vistas à exploração terrestre. Ao mesmo tempo, entretanto, ele levava homens e material suficientes para uma povoação permanente. Os amplos poderes judiciais de Martim Afonso de Sousa, como capitão-mor da frota, refletiam a natureza transacional e os duplos objetivos de sua expedição. Como comandante militar, foi-lhe concedida plena autoridade legal em todos os casos civis e criminais, e, fidalgos à parte, suas decisões não comportavam nenhum tipo de recurso. Seu poder judicial estendia-se aos demais membros da expedição e a todas as pessoas no Brasil. Esses amplos poderes inseriam-se na tradição da autoridade militar concedida a um comandante supremo; mas, em reconhecimento dos objetivos colonizadores da expedição, foi emitido um alvará separado que autorizava Martim Afonso a criar os cargos judiciários e de governo necessários à administração adequada da nova colónia.2 A nova fórmula reconhecia os poderes sumários de um comandante militar e os poderes de nomeação de um governador como os dois aspectos fundamentais da administração judicial. Dentro de cinco anos, e mesmo antes da volta de Martim Afonso para Portugal, a Coroa aplicou essa fórmula em sua tentativa seguinte de garantir uma indiscutível posse portuguesa do Brasil. Convencido de que a povoação permanente era a única maneira de garantir a posse do Brasil contra rivais estrangeiros, d. João m dividiu sua nova conquista

em quinze pedaços, e entre 1533 e 1535 doou-os a doze fidalgos portugueses. Foi uma tentativa de usar o sistema de donatários de Açores e Madeira para distribuir o fardo da colonização entre um determinado número de indivíduos e assim aliviar as obrigações reais.3 As concessões eram feitas por intermédio de dois instrumentos, a carta de doação, que delineava os poderes e os privilégios do receptor, e o foral, que declarava as obrigações dos donatários para com a Coroa e os habitantes do território. Os poderes judiciais concedidos aos donatários enfatizavam os objetivos colonizadores. A Coroa reconhecia que a distribuição de terras em sesmarias, ou doações de terra, e o estabelecimento de cidades dentro da tradição portuguesa exigiam uma estrutura judiciária. A jurisdição dos proprietários correspondia quase exatamente à de Martim Afonso de Sousa. A carta de doação dava ao proprietário ampla jurisdição civil e criminal, a ser exercida por pessoas que ele nomeasse: um magistrado superior (ouvidor) e outros funcionários da justiça: escrivães, tabeliães e meirinhos. Um segundo ouvidor poderia ser nomeado quando o crescimento da população justificasse tal medida. Ao magistrado superior cabia julgar casos em primeira instância, oriundos de um raio de dez léguas da sua moradia, e todos os recursos de juizes inferiores. O donatário e o ouvidor tinham jurisdição em casos civis que não ultrapassassem 100 mil-réis, sem recurso, e em casos criminais que envolvessem a pena de morte. Como no caso de Martim Afonso de Sousa, sua jurisdição sobre os fidalgos era mais limitada. Os fidalgos poderiam ser julgados sem direito de recurso em casos civis que envolvessem menos que cem cruzados e, em casos criminais, poderiam ser condenados a até dez anos de exílio.4 Em casos de blasfémia, heresia, sodomia e falsificação, nem mesmo os fidalgos poderiam recorrer da pena de morte. Tendo permissão para examinar a lista de cidadãos considerados aptos para servir na Câmara municipal, o donatário e o ouvidor exerciam considerável controle sobre a seleção e a confirmação de funcionários municipais. Como o juiz ordinário era normalmente um desses funcionários, o senhor proprietário controlava a justiça de alto a baixo. Isso é evidenciado pelo fato de que o donatário também estava isento das visitas de qualquer magistrado superior da Coroa (corregedor) em sua capitania, mesmo que fosse acusado de um crime.5 A Coroa esperava, entretanto, que, em vez de tentar inovações legais radicais, os proprietários obedecessem às leis de Portugal e aplicassem as leis subsequentes não codificadas que fossem introduzidas pela metrópole (leis extravagantes).6 43

Os privilégios e isenções judiciais estendidos aos proprietários lembram aqueles que em Portugal tinham sido estendidos a dignitários como o duque de Aveiro e o prior do Grato. Certas terras pertencentes a esses grandes senhores gozavam de isenção das investigações dos corregedores, e os proprietários podiam nomear magistrados. O título de ouvidor, escolhido para os representantes judiciais especiais, estava mais estreitamente ligado em Portugal às áreas sob controle das ordens militares e aos territórios de grandes senhores — áreas essas normalmente fora da jurisdição dos magistrados reais. Assim, os poderes judiciais concedidos aos proprietários representavam uma volta a antigas concessões reais a certos nobres, e iam de encontro à então dominante preocupação real com a centralização. Apesar de os poderes judiciais concedidos aos donatários não serem, propriamente, feudais, eram sem dúvida retrógrados, e não contribuíam para o crescimento do poder real. O deslize da Coroa, entretanto, durou pouco, e, apesar de capitanias terem sido concedidas no Brasil ainda em 1685, a Coroa nunca mais entregou poderes judiciais com a liberalidade com que o fizera nas doações originais aos primeiros proprietários. Em geral, o sistema de donatários no Brasil mostrou-se tão ineficiente na administração da justiça como na promoção da colonização. Geralmente, os donatários ou seus representantes assumiam pessoalmente os poderes do ouvidor, além das suas funções de capitão-rnor e governador. Por serem membros da pequena nobreza com experiência apenas em questões militares, a maioria cios proprietários não tinha treinamento nem vocação para desempenhar suas obrigações judiciais. Os resultados foram claramente desastrosos. Apesar de terem sobrevivido poucas informações relativas ao período anterior a 1550, relatórios retrospectivos indicam abusos generalizados e frouxidão universal na aplicação da lei. Perturbado por essas condições, pelos fracassos dos proprietários e pela constante pressão de estrangeiros intrusos, d. João m resolveu centralizar o governo do Brasil na figura do governador-gera! e prover essa nova forma de governo dos funcionários de justiça apropriados. Essa decisão alterou o sistema de capitanias, mas não o aboliu. Tomé de Souza, o primeiro governado r-gê r ai, foi mandado para a Bahia à frente de uma grande expedição, com instruções específicas para colonizar e estabelecer um governo central na colónia. Acompanhavam-no muitos homens designados para várias posições administrativas, como capitão da guarda costeira, provedor-mor e, mais importante,

MAPA 2

BRASIL C O L O N I A L

BRASIL COLONIAL

ouvidor-geral (magistrado superior da Coroa). Pelos sessenta anos seguintes, a justiça no Brasil seria administrada pelo ouvidor-geral e seus subordinados, c, nos problemas que esses homens enfrentaram, podemos ver não apenas as dificuldades da administração da justiça, mas também como e por que funcionários judiciários haveriam de assumir poderes administrativos e bu rocráticos. A chegada de Pêro Borges como ouvidor-geral em 1549 assinalou um significativo afastamento em relação à estrutura do judiciário brasileiro anterior a

essa data.7 No entanto,foi uma mudança em inteira conformidade com as novas diretrizes da política real para o Brasil. Em vez de simplesmente abolir toda a estrutura fundiária e administrativa prévia e criar uma administração real totalmente centralizada, o ouvidor-geral sobrepôs-se à estrutura existente de magistrados e ouvidores nomeados pelos donatários. O resultado foi um sistema confuso e às vezes inoperante de controle exercido pelo rei e pelo donatário. Embora as instruções dadas a Pêro Borges não tenham sido descobertas, material suplementar indica que lhe foi concedida ampla jurisdição apelativa, assim como funções e obrigações investigativas.8 Borges deveria julgar recursos de sentenças dos ouvidores nomeados pelos donatários e servir, ele próprio, como magistrado local da capitania da Bahia. Aiém disso, deveria visitar as capitanias para examinar o estado da justiça de cada uma. Esse dever confíitava com a isenção de revista real anteriormente concedida aos donatários, e a visita do ouvidor-geral agora estendia o poder da Coroa às diversas capitanias. A estrutura judiciária anterior tornou-se, dessa maneira, subordinada ao magistrado da Corte, que fazia as vezes de intermediário entre os ouvidores e a Casa da Suplicação em Lisboa. Era uma estrutura semelhante à que se desenvolvera na índia portuguesa antes de 1544. As condições que Pêro Borges encontrou no Brasil nos anos de 1550 podem ser vistas como próprias de todo o período a partir de 1535, e mostram claramente que para um funcionário real consciente de suas obrigações o Brasil não era um mar de rosas. Abundavam casos de abuso de poder e incompetência. Por exemplo, na ausência do donatário de Ilhéus, um castelhano chamado Francisco Romero servia como capitão-mor e ouvidor. Apesar de bom homem e soldado tarimbado, Romero não estava preparado para atuar como juiz, pois era "ignorante e muito pobre, o que muitas vezes faz fazer aos homens o que não devem".9 Borges insistiu com a Coroa para que obrigasse os donatários a escolherem seus ouvidores entre homens com pelo menos algum conhecimento de direito. Lembrou que em Lisboa um magistrado altamente treinado e experiente do Tribunal Superior julgava apenas alguns casos, enquanto no Brasil um analfabeto distribuía numerosas sentenças em total desacordo com os princípios legais.10 O relatório de Borges também assinalava que a proliferação de empregados do governo, fenómeno característico da administração ibérica, já tinha começado nos anos de 1550. Ele declarou que, devido ao fato de quase todos os

homens habilitados a ocupar cargos públicos já terem conseguido algum emprego no serviço real, os cargos municipais eram ocupados por degredados supostamente ineptos — alguns dos quais tinham perdido as orelhas em Portugal, como castigo.11 Outros serviam como tabeliães e amanuenses, sem darem a menor atenção aos regulamentos que prescreviam suas tarefas. As observações de Borges sobre essa questão são confirmadas pelo jesuíta padre Manoel da Nóbrega, agudo observador das coisas, que aconselhou a Coroa a mandar fazendeiros para o Brasil, no lugar de "oficiais, tantos e de tantos ordenados, os quais não querem mais que acabar seu tempo e ganhar seus ordenados [...] e como este é seu fim principal, não querem bem à terra, pois têm sua afeição em Portugal".12 Nóbrega falava das condições da recém-fundada cidade de Salvador, mas seus comentários também poderiam se aplicar a outras áreas de povoação. A inaptidão judiciária contribuía para criar condições de turbulência no Brasil, mas na raiz desse estado de coisas estavam as muitas oportunidades de desvios e excessos. O braço da lei não alcançava as regiões remotas, e a esparsa povoação não contava, assim, com pressões comunitárias em apoio da moralidade consagrada e do respeito à lei. A blasfémia era comum entre os bem-nascidos e os de condição inferior e motivo de preocupação tanto das autoridades civis como das eclesiásticas.13 O grande número de mulheres indígenas, cujo conceito de moralidade sexual divergia consideravelmente das normas portuguesas, constituía compreensível motivo de atração para os primeiros colonos. Mais que qualquer outro fator, a falta de mulheres europeias atirava os colonos nos braços das índias. O escandaloso desregramento sexual dos primeiros colonos era motivo de constante condenação sacerdotal. Os padres jesuítas que chegaram na expedição de Tomé de Souza em 1549 produziam grande e constante fluxo de críticas e sugestões para remediar a situação moral dos colonos. O padre Manoel da Nóbrega e outros achavam que a melhor solução seria despachar mais moças portuguesas para a colónia, onde poderiam encontrar bons maridos.14 Apesar de tais medidas e dos infrequentes casamentos entre colonos portugueses e mulheres indígenas, a concubinagem era a regra e o range-range da rede era um ruído comum na terra. Essa lassidão dos costumes, entretanto, preocupava mais o clero que os magistrados civis. Deve-se ter em mente que as leis portuguesas no Brasil se aplicavam quase exclusivamente aos europeus. A população indígena permanecia geralmente 47

fora do alcance do governo civil e consequentemente não tinha acesso aos canais judiciários normais. Mesmo as leis projetadas especificamente para regular as relações entre portugueses e índios raramente eram cumpridas. O padre Manoel da Nóbrega nos oferece um exemplo de como os portugueses administravam justiça à população indígena. Um índio que tinha matado um português foi detido e, por ordem do governador, posto na boca de um canhão e literalmente feito em pedaços.15 Não há dúvida de que a execução teve o efeito desejado de amedrontar os índios. Outro jesuíta, o padre Fernão Cardim, escreveu sarcasticamente a respeito do abuso da autoridade judicial contra os índios, advertindo sobre o castigo divino: Houve sempre uma justiça rigorosa contra os índios. Já foram enforcados, cortados aos pedaços, esquartejados, já lhes foram decepadas as mãos, já foram queimados com tenazes quentes e colocados nas bocas dos canhões por terem matado [...] portugueses {que porventura o tenham merecido). Mas havendo pessoas, e não são poucas no Brasil, como sempre houve, e ainda há, notoriamente infames por saquearem, roubarem, marcarem a ferro quente, venderem e matarem muitos índios, até hoje nunca houve demonstração de castigo, e é para se temer que, já que ele falta na Terra, caia do Céu sobre todos os habitantes do Brasil.16

Esses índios que buscavam a proteção de funcionários judiciários sentiam que as balanças da justiça pesavam contra eles. O testemunho de um português, por exemplo, valia pelo de três ou quatro índios.17 Os colonos, de sua parte, não precisavam temer represália judicial quando abusavam dos índios ou cometiam crimes contra eles. Os índios que viviam em aldeias controladas pelos jesuítas, entretanto, contavam com alguma proteção contra maus-tratos dos colonos. Os jesuítas ofereciam um sistema legal paternalista, no qual os castigos não eram severos, e meirinhos indígenas tinham permissão para deter e castigar por delitos menores. Esses meirinhos eram especialmente antipatizados pelos colonos. Depois de 1580, os colonos fizeram várias tentativas de tirar a administração de justiça nas aldeias das mãos dos jesuítas e seus auxiliares indígenas, mas isso era parte da questão maior do controle da mão de obra indígena.18 Obviamente, as condições que predominavam na colónia e a existência de tantos abusos e injustiças representaram para Pêro Borges e seus sucessores uma tarefa hercúlea. O fracasso desses homens na tarefa de aperfeiçoar a lei e a

ordem vinha não apenas das condições de vida na fronteira, mas também do acúmulo de responsabilidades adicionais do cargo de ouvidor-geral. É preciso lembrar que a introdução do ouvidor-geral no Brasil refletiu não apenas o desejo da Coroa de melhorar a situação da justiça, mas também o seu desejo de aumentar o controle real centralizado. Depois de 1550, o interesse da Coroa nessa região aumentou solidamente e o ouvidor-geral, como funcionário real de confiança, cada vez mais assumiu novas funções e responsabilidades em nome dos interesses reais. A Figura l demonstra o lugar do Brasil no contexto da estrutura judicial imperial. Com base talvez em precedentes romanos, a prática judicial portuguesa na Idade Média mantivera uma divisão entre os ramos fiscal e judicial da burocracia.19 Como vimos, entretanto, as linhas divisórias foram consideravelmente borradas nos séculos xvi e xvn, quando os magistrados reais cm Portugal começaram a assumir responsabilidades fiscais. Fenómeno similar ocorreu no Brasil. Em 1554, além dos seus deveres de ouvidor-geral, Pêro Borges acumulou os de provedor-mor da Fazenda (superintendente do Tesouro). Esse era um dos três cargos mais importantes da colónia, ao lado dos de ouvidor-geral e governado r-geral, e o exercício de dois desses cargos dava a Borges amplos poderes.20 Posteriormente, ouvidores-gerais também assumiram essas responsabilidades fiscais, sobretudo em caráter interino. A distinção teórica entre os dois braços da burocracia foi mantida, mas, nas regiões mais pobres e fronteiriças, os magistrados reais geralmente exerciam as funções de funcionários do Tesouro. Durante o mandado de Borges, apareceram outros problemas que mais tarde afligiriam a magistratura real no Brasil. O poder irradiado pelos magistrados provocava conflitos com outras fontes de autoridade. Enquanto ocupava o cargo, Borges apoiou Duarte da Costa, o segundo e altamente impopular governador-geral, contra o bispo do Brasil, d. Pedro Sardinha.21 Foi provavelmente mais por sua ligação com o odiado governador-geral do que por qualquer pecado que ele mesmo tenha cometido que Borges recebeu críticas Lao severas dos vereadores de Salvador em 1556. Eles alegaram que; não há pessoa que para descanso de sua vida e seguridade de sua honra antes não escolhera ser cativo do xerife que cidadão nem morador desta cidade em quanto for governada por d. Duarte e seu fiího e regida por Pêro Borges, os quais são tão 49

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Diferentemente dos antecessores, ele era, era nas fileiras do serviço real até obter um era o título honorífico de conselheiro do

l

imento aos seus talentos nesseDO campo que ILHAS ATLÂNTICO estões jurídicas especificamente ampliaos. O privilégio de isenção Madeira da visitação de s donatários foi explicitamente revogado. f Ouvidor ) nova, pois o cio de uma etapa totalmente nspecionar o estado da justiça nas capitaa competência do governador para visitar ão da Coroa de ampliar o controle real.25 res ainda maiores, porque, como disse ao

BRASIL

malfeitores muitos dos quais mereciam a a ocupação tramar coisas más".26 OTribunais gover-de Primeira Instância

para punir e perdoar, pois desconfiava da Tribunais de Segunda e Terceira Instâncias

s poderes do governador, reduzindo-os.

ÍNDIA

ÁFRICA

São Tomé

Cabo Verde

Ouvidor na capitania

Ouvidor na capitania

Angola

Norte da África

A queixa tinha fundamento, porque os processos, os litígios e os crimes começaram a aumentar depois da chegada de Brás Fragoso.27 O governo de Mem de Sá, de 1557 a 1572, foi um período importante para o desenvolvimento da administração judicial brasileira. Quando não estava ocupado com questões militares, o governado r-gê r ai dedicava tempo e energia à supressão do vício, da usura, do descumprimento do dever e da administração incompetente. Seu êxito deve ser atribuído não apenas aos talentos particulares e à sua personalidade, mas também ao fato de que ele era capaz de trabalhar eficientemente com os subordinados. Além disso, contou com apoio considerável dos jesuítas, que se tornavam força dominante na vida espiritual e sociopolítica da colónia. Sua aliança com a Ordern de Jesus para proteger a população indígena dos ataques predatórios dos colonos era necessária para a preservação da lei e da ordem, pelo menos no seu modo de entender. Depois de 1560, a política pró-indígena do governador passou a ser apoiada por um novo funcionário, o mamposteiro, civil designado em cada capitania para proteger a liberdade dos índios. A nomeação dos mamposteiros no Brasil foi unia das primeiras tentativas de submeter a questão indígena a controle secular, e refletiu o crescente desejo da Coroa de proteger os índios.28 A eficiência de Mem de Sá foi prejudicada em seus últimos anos pela doença, e, antes disso, por inquietações militares. Brás Fragoso, cuja principal preocupação era judicial, descobriu que outras obrigações comprometiam sua eficácia. Ele foi convocado para chefiar uma expedição punitiva contra os belicosos índios aimorés em Porto Seguro, e, como seu antecessor, também acumulou as tarefas de provedor-mor. Essas novas obrigações dificultaram-lhe o desempenho dos deveres judiciais. 2y Em 1562, tornou-se claro, pelo menos para seus subordinados no Tesouro, que os deveres de ouvidor-geral e de provedor-mor eram incompatíveis. Os funcionários subalternos reclamavam de que ambos os cargos exigiam talentos especiais e a atenção total de administradores separados. Além disso, e aqui parece estar o principal motivo da sua queixa, o ouvidor-geral precisava visitar as capitanias todos os anos, e sua ausência da Bahia condenava o Tesouro ao abandono. Sem a assinatura e a aprovação do ouvidor-geral, os subordinados eram incapazes de desempenhar suas funções.30 Apesar desses comentários, a Coroa não se convenceu, e os dois cargos permaneceram unidos até o século xvn. Crescentes responsabilidades burocráticas, fiscais e militares se acumula-

ram sobre os ombros dos homens que serviram como ouvidores-gerais e n t r e \9 c ÍÓ09.31 A administração judicial sem dúvida era afetada por essas distrações. O movimento é fácil de explicar. Como o mais alto funcionário do Brasil depois do govcrnador-geral, o ouvidor-geral parecia oferecer suas capacidades e sua devoção à Coroa numa região onde pessoas alfabetizadas e leais eram r a r i dade. A tendência metropolitana a fazer da hierarquia judicial uma bmocracu administrativa intensificou-se no permissivo clima de fronteiro da colónia. As já citadas atividades não judiciais dos magistrados poderia m ser grandemente ampliadas. Pêro Borges, Brás Fragoso e Fernão da Silva (que sucedeu a Fra°oso em 1566) foram todos convocados para servir como provedores -mores. Fernão da Silva c seu sucessor, Cosme Rangel, também serviram con 10 governadores interinos. E havia as obrigações militares. Fragoso e Silva capitanearam expedições punitivas contra índios hostis, e Cosmc Rangel chefiou tropas contra bandos saqueadores de escravos fugitivos. Posteriormente, c laívez isso seja o mais notável, Martim Leitão capitaneou a conquista da Paraíba, e, apesar de suas façanhas o terem transformado em tema de poesia encomiástica, a administração de justiça nada ganhou com suas tarefas militares. 3 ' Em aeral, as responsabilidades militares e fiscais dos magistrados da Coroa, embora com frequência benéfica para a colónia, os distraíam do desempenho de sua função básica de juizes. Parte do fracasso da administração judicial no Brasil resultou desse constante uso dos magistrados para tarefas diversas. Outro obstáculo, esse talvez inerente à natureza do governo colonial português, embora certamente exacerbado pelas personalidades envolvidas, era a constante disputa jurisdicional. Não há dúvida de que os magistrados da Coroa mergulhavam na voragem das brigas e rivalidades coloniais, nas quais a poderosa posição que ocupavam fazia deles valiosos aliados ou odiados adversários. Os jesuítas em disputa com os governadores Luís de Brito de Almeida (1573-8) e Manuel Telíes Barreto (1583-7) foram acusados de buscar os favores e o apoio do ouvidor-geral, acusação que nunca negaram." Tais conflitos enfraqueciam a dignidade e a autoridade do ouvidor-geral. Os colonos perdiam o respeito por um juiz da Coroa quando, como nos casos de Ternão da Silva, Martim Leitão e Cosme Rangel, ele era mandado algemado para julgamento em Portugal. Saber se as rixas entre magistrados e outros funcionários resultavam de jurisdições mal definidas, intencionalmente encorajadas pela Coroa para impedir o excesso de autonomia, ou se eram falhas acidentais do sistema de admims-

tração, é questão ainda sujeita a debates. Fossem quais fossem as causas, esses conflitos às vezes degeneravam em batalhas pessoais e institucionais. Nas disputas administrativas, os governadores geralmente tomavam o partido dos juizes da Coroa, mas quando não era esse o caso o conflito podia atingir extremos de virulência. A carreira do ouvidor-geral Fernão da Silva oferece excelente exemplo. Ele galgara os escalões da magistratura profissional em Portugal antes de ser nomeado ouvidor-geral e provedor-mor do Brasil em 1566.34 Com a morte de Mem de Sá, também assumiu interinamente as funções de governado r-geral, mas a chegada do novo governador, Luís de Brito de Almeida, fez eclodir uma disputa. A causa do conflito está aberta a conjeturas. Embora o historiador Gabriel Soares de Sousa achasse que o governador agiu ilegalmente contra Silva, há uma forte possibilidade de que a medíocre expedição de Silva contra os hostis índios potiguares em Pernambuco esteja por trás de suas divergências. Seja como for, o governador apreendeu os bens de Silva e o mandou de volta para Portugal. Graças à intercessão dos jesuítas, entretanto, Silva foi absolvido pelo Desembargo do Paço, e retornou ao Brasil para recuperar suas propriedades, submeter-se a uma "residência11 e reunir a família para a viagem de volta a Portugal. Seu navio afundou na barra da Bahia, e Silva, a mulher, quatro filhas, um filho e três netos perderam-se no mar. Apenas um filho, Roque da Silva, sobreviveu ao desastre, levando adiante a rixa com os descendentes de Luís de Brito. Esses ódios custavam a morrer no Brasil antigo.35 Mais corriqueiras, mas não menos intensas, eram as disputas entre os magistrados e outras fontes de autoridade, como as Câmaras municipais e o clero. Martim Leitão, mesmo sendo capaz de produzir um certificado de autoria de Cristóvão de Gouvea, o conhecido supervisor jesuíta, declarando que ele era um dos melhores funcionários da justiça que jamais haviam servido na colónia, entrou em choque com o bispo d. António Barreiros. Os pontos específicos do conflito continuam obscuros, mas Leitão acabou preso e suspenso de todos os cargos.36 A história de Cosme Rangel é outra que mostra como a vida privada e os anseios individuais costumavam imiscuir-se em questões políticas. Rangel chegou ao Brasil em companhia do governador Lourenço da Veiga em 1578. Quando Veiga morreu, em 1581, Rangel, o bispo e a Câmara de Salvador funcionaram como junta governante até que um novo governador pudesse ser mandado de Portugal. Rangel logo se revelou um funcionário ambicioso e 54

sedento de poder, usurpando o completo controle do governo. A Câmara recusou-se a legalizar a posição de Rangel, e tanto a Câmara tomo o bispo deixaram a cidade, em protesto contra as ações do ouvido r-gê r aí. Rangel imediata mente aproveitou-se dessa ausência para transformar seus apaniguados cm vereadores e criar novos cargos na Câmara para os artesãos que o apoiavam. O aovernador seguinte, Manuel Telles Barreto, depôs e prendeu Rangel em 1583.Em 1580 o Brasil já tinha passado de uma frouxa administração indiciai de ouvidores nomeados privadamente para um sistema mais centralizado, cuia base era o ouvidor-geral. Essa mudança ressaltava o crescente controle real da colónia que marcou o período a partir de 1549. Essas mudanças administrativas, entretanto, revelam apenas parcialmente outras modificações mais importantes na vida da colónia. A indústria açucareira começara a florescer nas áreas litorâneas de Pernambuco e Bahia durante os anos de 1570. Ã medida que os verdes canaviais se espalhavam pela costa nordestina, o tamanho da população e o número de litígios cresciam rapidamente. No começo dos anos de 1580, ficou claro que um único ouvidor-geral seria incapaz de prover uma administração de justiça adequada e correta. Mas o pulso político e administrativo do Brasil, uma colónia, não era inteiramente determinado por suas próprias necessidades. O ano de 1580 trouxe uma crise dinástica em Portugal e o pretendente que emergiu vitorioso foi Filipe n, rei da Espanha." Filipe n via as deficiências judiciais do Brasil como parte de um colapso geral da lei no Império português, e foi exatamente para esse problema que ele voltou sua atenção cm i 581.

Filipe i de Portugal, como ocasionalmente aparece nos documentos citados neste livro. (N. E.)

3. A reforma espanhola e o Tribunal Superior brasileiro

La Ciência de Ias leyes es comofuente dejusticia y aprovéchase de ella dei mundo más que de otra ciência... Lãs Siete Partidas

Filipe n, rei da Espanha, era um burocrata; um monarca com bom olho para detalhes f uma queda para sutilezas burocráticas e um profundo senso de responsabilidade administrativa. Herdara o sistema burocrático espanhol de Fernando e Isabel e do pai, Carlos v, mas demonstrava um interesse pessoal pela expansão da burocracia e pelo aperfeiçoamento do sistema judicial do Império. Os anos de 1580 trouxeram importantes mudanças administrativas e burocráticas para Castela. A principal delas foi a criação, em 1588, da Câmara de Castilla, órgão de certa forma análogo ao Desembargo do Paço, que exercia amplos poderes sobre o recrutamento e o controle da burocracia profissional espanhola. Foi com o mesmo interesse que, durante esse período, Filipe 11 se voltou para sua recém-adquirida herança portuguesa.' A Coroa de Portugal, e com ela o vasto e remoto Império português, tornou-se possessão dos Habsburgo depois de um curioso e turbulento período de dois anos.2 Em 1578, d. Sebastião, o jovem e imprudente rei de Portugal, chefiou uma cruzada no Marrocos, foi um desastre. Diante dos muros de Alcácer-

-Quibir, d. Sebastião e a ílor das armas de Portuga! sucumbiram aos mouros. Muitos sobreviventes foram mantidos como reféns, de modo que numa única batalha Portugal perdeu seu rei e a maioria de seus nobres. O cardeal Henrique, tio-avô de d. Sebastião, assumiu o controle do reino como regente, mas era um homem de idade avançada, sem talento, e logo ficou claro que a dinastia de Avis já não podia controlar o trono português. De 1578 a 1580, pretendentes começaram a aparecer para reclamar o título. Apesar de d. António, o prior do Crato, filho ilegítimo do rei Manoel i, contar com o apoio de grande parte da população, as reivindicações de Filipe n, cuja mãe era filha legítima de Manoel, eram mais fortes. Além disso, ele tinha o Exército espanhol a seu dispor. Consta que f ilipe n justificou seu direito à Coroa portuguesa declarando: "Eu a comprei, eu a herdei, eu a conquistei". Na realização da primeira parte dessa fórmula, Filipe convocou um grande número de simpatizantes e sicofantas portugueses para enfiar prata espanhola nas mãos do alto clero c da nobreza de Portugal, entre cujos membros havia alguns que desejavam usar o dinheiro para pagar o resgate de seus parentes em poder dos infiéis no Marrocos. Ao mesmo tempo, ele pôs os juristas espanhóis (e alguns portugueses) para trabalhar nas defesas legais da reivindicação dos Habsburgo. Quando, depois da morte do cardeal Henrique em 1580, d. António, apoiado pelas classes inferiores de Portugal, tentou apoderar-se do trono, Filipe mandou o duque de Alba e seus soldados a Lisboa para resolver a questão.3 Pelos sessenta anos seguintes, os governantes Habsburgo da Espanha também portaram a coroa de Portugal, mas os dois países e seus respectivos Impérios nunca se uniram. Em vez disso, surgiu uma solução liberal, pela qual o rei governava as duas terras, mas cada uma mantinha seus costumes, suas leis, sua administração e sua integridade nacional. Essa solução, formalizada por Filipe ti e pelos estados portugueses nas Cortes de Tomar (abril de 1581), continuou sendo o conjunto de princípios orientadores durante todo o período em que os Habsburgo espanhóis governaram Portugal. Apesar de o acordo ter sofrido violações desde o início, Filipe n, de modo geral, aderiu a ele, e só no reino de Filipe iv foi ele seriamente ameaçado. Criou-se um Conselho de Portugal para aconselhar o rei em questões portuguesas, e um vice-rei governava em Lisboa em nome do rei. Com essas mudanças, Portugal e seu Império passaram às mãos dos Habsburgo espanhóis. Apesar de ambições geopolíticas e imperiais estarem por trás do desejo de Filipe n de portar a coroa portuguesa, é curioso notar que mesmo antes de 1580 57

Filipe já planejava uma reforma judicial e administrativa em Portugal. Para ajudá-lo nessa questão, foi criada uma pequena junta que incluía o duque de Alba, o melhor soldado de Filipe, e d. João da Silva, nobre espanhol ligado, por sangue e casamento, à nobreza portuguesa, e que usava o título espanhol de conde de Salinas e o português de conde de Portalegre. D. João da Silva tinha servido como embaixador de Filipe na corte portuguesa no reino de d. Sebastião, e acompanhara o infeliz monarca em sua cruzada infrutífera. Devido a suas relações de família, experiência e conhecimentos, tornou-se, ao lado de Cristóvão de Moura, o especialista de Filipe em assuntos portugueses.4 O homem escolhido para informar a junta sobre a estrutura judicial e administrativa de Portugal foi Rodrigo Vásquez de Arce, conhecido jurista espanhol e firme defensor das pretensões de Filipe n,5 Vásquez foi enviado para conquistar adesões à causa dos Habsburgo, mas também recebeu instruções para realizar um exame exaustivo do sistema legal português e relatar suas descobertas à junta. Ele revelou-se um observador astuto, e de seus relatos constavam descrições minuciosas da organização administrativa portuguesa, dos procedimentos legais e das infrações comuns, além de sugestões de melhorias. Ele concluiu, com franqueza: "Que há falta de justiça neste reino e necessidade de remediá-lo o confessam todos".6 O primeiro problema era o da codificação legal. O corpus da lei portuguesa era complexo. Desenvolvera-se a partir dos códigos romanos e visigóticos, enriquecendo-se e complicando-se com concessões reais e com um caráter predominante de lei consuetudinária. A codificação tinha começado no século xv com as Ordenações Afonsinas (1446), revisadas no século xvi por d. Manoel em suas Ordenações Manuelinas (1514, 1521).7 Desde então, entretanto, um considerável corpo normativo subsequente foi produzido. E o costume local e o uso às vezes diferiam das formas legais prescritas. Vásquez notou que algumas leis eram antiquadas ou injustas, ao passo que outras eram boas, mas ignoradas na prática. No entanto, afirmou Vásquez, "a verdade é que a falta não está nas leis, mas na pouca força que aqui têm, e na pouca inclinação dos juizes para aplicá-las com integridade".8 Ele ainda acrescentou que os letrados e os magistrados reais eram mal treinados, mal pagos e mal dispostos com relação ao cumprimento do dever. Em muitos casos, indivíduos poderosos agiam com impunidade em face da leniência judicial e da impotência da lei. Aproveitando-se da riqueza, da

MAPA 3

PORTUGAL NOS SÉCULOS XVI A XVIII

Valenç Caminha Viana do Castelo

y Freixo de Espada à Cinta Castelo Rodrigo • Almeida

•Castelo de Vide Grato-

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Estremoz

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Montemor-o-Novo Olivença

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posição social e dos privilégios, os fidalgos geralmente colocavam seus empregados em cargos judiciais e administrativos, onde funcionavam como advogados dos patrões. O remédio sugerido por Vásquez era a indicação de juizes corn base estritamente no mérito, e a aplicação equânime da lei. Altos dignitários eclesiásticos e fidalgos gozavam de privilegiada isenção de buscas em suas casas e propriedades por funcionários da justiça. Vásquez considerava que, sem se revogar essa isenção, "não seria possível sequer pensar em reforma". 9 Outras propostas de reforma foram apresentadas. A grande demora no exame dos recursos, causada pela submissão de tais casos à Casa do Cível e à Casa da Suplicação em Lisboa, congestionava os canais da justiça. Rodrigo Vásquez sugeriu que se concedesse jurisdição mais ampla ao juiz de fora e ao corregedor nas províncias, a fim de diminuir a necessidade de entrar com recursos era Lisboa. Vásquez, na verdade, via com ceticismo os tribunais superiores de Portugal. Ele notou — com algum exagero — que os dois tribunais superiores de Lisboa tinham mais de setenta magistrados, e que o grande número de juizes, amanuenses, advogados e parasitas nesses tribunais aumentava o volume dos litígios e provocava apelações e contestações desnecessários, o que o levou a sugerir que a Casa do Cível fosse abolida. Essas sugestões e as outras acima mencionadas indicam claramente que Rodrigo Vásquez deve ser considerado o arquitero da reforma judicial e administrativa realizada pelos Habsburgo em Portugal nos anos de 1580. Filipe n e seus conselheiros espanhóis, no entanto, não podem receber todo o crédito por tais reformas. 113 Durante os séculos xv e xvi, houve considerável pressão em Portugal para que fosse feita uma reforma judicial. Nas Cortes de Tomar (abril de 1581), os três estados — mas especialmente o terceiro estado — tinham pedido reforma nos procedimentos, seleção de juizes, redução do número de desembargadores e aumento de salários no judiciário. Este último pedido foi apresentado na esperança de que um salário adequado evitasse que os magistrados caíssem na tentação do suborno. Filipe n estava disposto a aquiescer nessa questão, mas tinha de agir com cautela. O acordo entre as Cortes portuguesas e Filipe, como dito, bascava-se numa solução liberal, segundo a qual o rei espanhol renunciava a qualquer interferência nas normas c nos costumes de Portugal, ou à introdução de quaisquer leis ou ministros estrangeiros, especialmente castelhanos. Mas, apesar de Filipe n ter agido cautelosamente, nem ele nem seus conselheiros poderiam deixar de lado a herança das leis e tradições de Castela, e assim 6o

demonstraram uma tendência natural a adotar formas castelhanas em Portuga!. O rei pensou em introduzir a herrnandad para "a boa execução da justiça c punição de delinquentes".11 Rodrigo Vásquez achava que, em vista da natureza mercantil de Portugal, um código de lei comercial como o de Burgos deveria ser instituído.12 A voz da moderação do conde de Portalegre, no entanto, o conselheiro pró-portugueses de Filipe, levantou-se para pedir cuidado: Qualquer mudança no governo deve ser íeita com a maior atenção cm estados recém-adquiridos [...] pois cada província tem um estilo próprio que n experiência introduziu e estabeleceu, e que, embora pareça inconveniente para os estrangeiros, esses devem proceder com prudência, pois isso vem do fato de cies estarem acostumados a outras usanças [...]. Os Estados de Vossa Majestade oferecem meihores provas do que os de qualquer outro Príncipe [...] pois na Espanha já existem muitos costumes diferentes, porque houve muitos governantes, e cm vossas outras possessões os costumes são também muito diferentes dos da Espanha, mas isso não quer dizer que as contradições do uso se oponham diretamente à administração de justiça. 13

Esse conselho moderado e a tendência de Filipe n a cumprir o acordo de Tomar resultaram numa abordagem cautelosa e basicamente portuguesa da reforma da justiça. Formas e usos portugueses foram empregados, e especialistas locais em direito realizaram a revisão necessária da lei escrita. Filipe estabeleceu uma comissão em Portugal formada por destacados advogados e presidida por Damião de Aguiar, jurista português e leal defensor da causa dos Habsburgo. Em outras palavras, apesar de mostrar disposição para permitir aos portugueses certa autonomia em sua reforma judicial, Filipe n não quis correr o risco de qualquer autonomia ou violação de sua prerrogativa real. Damião de Aguiar seria a garantia de Filipe contra tal risco. A comissão concluiu a revisão das Ordenações Manuelinas em 1595, acrescentando, revogando e emendando onde julgou necessário. A publicação do novo código, as Ordenações Filipinas, foi adiada até 1603, mas nesse ínterim a Coroa instituiu muitas das reformas projetadas. O período de 1581 a 1590 foi de intensa atividade na reformulação da estrutura judiciária e administrativa de Portugal.14 Essas reformas teriam importantes efeitos não apenas em Portugal, mas também nas colónias. ói

A Lei de Reformulação da Justiça de 27 de julho de 1582 aboliu a Casa do Cível e estabeleceu a Casa da Suplicação permanentemente em Lisboa. Um novo tribunal superior foi estabelecido no Porto para servir como corte de apelação das províncias do Norte e reduzir a quantidade de casos da Casa da Suplicação em Lisboa. As antigas dificuldades de comunicação entre o norte de Portugal e Lisboa foram assim eliminadas. Em 27 de julho de 1582, tanto a Casa da Suplicação como a recém-criada Relação do Porto receberam seus regimentos.15 As ideias semeadas por Rodrigo Vásquez tinham dado seu primeiro fruto. O novo Tribunal Superior do Porto, a Relação da Casa do Porto, servia como tribunal de apelação das províncias de Trás-os-Montes, Entre Douro e Minho e Beira, regiões nas quais, por causa da distância, era penoso ter de recorrer a Lisboa. A Relação do Porto era uma grande corporação de mais de vinte magistrados e funcionários subalternos. Os magistrados para lá designados tinham preferência nas promoções para a Casa da Suplicação e, assim, a Relação do Porto se tornou um importante degrau na escada das promoções da magistratura profissional.16 Depois das primeiras iniciativas de 1582, a Coroa insistiu em mais reformas. Em 1585, uma investigação do Desembargo do Paço e da Casa da Suplicação eliminou os magistrados que não haviam cumprido suas obrigações ou que haviam abusado de sua autoridade. No mesmo período, a reforma começou a alcançar as colónias. Na África, mudanças e reformas foram tentadas em Angola e na Guiné. Entre 1583 e 1584, uma inspeção geral do estado da justiça e do judiciário foi realizada em Angola, enquanto em 1587 magistrados reais na Guiné receberam novas instruções, que ampliavam seu poder e sua jurisdição.17 As condições além do Cabo da Boa Esperança também pediam reforma. Nas fortalezas da índia, capitães obstruíam os ouvidores, impedindo que desempenhassem com êxito suas tarefas. Em resposta a essa situação, a Coroa emitiu, em fevereiro de 1586, um novo regimento para os ouvidores, destinado a aumentar seu poder em face dos capitães. Nesse período, o Desembargo do Paço também esboçou novas instruções para o Tribunal Superior em Goa, a fim de adequar os procedimentos e a organização daquele tribunal aos recém-reformados tribunais metropolitanos.18 Enquanto juristas discutiam as reformas e aplicavam novos remédios em Portugal e em suas colónias asiáticas e africanas, o problema da justiça no Brasil 62

também exigia atenção. Em vista da tendência de reforma judicial em Portugal, representada pela reorganização dos tribunais da metrópole e de Goa, não é de surpreender que os conselheiros agora pensassem na criação de um tribunal superior para o Brasil. Apesar de poucos documentos terem sobrevivido, no que diz respeito às deliberações e decisões dos conselhos de governo sobre a criação de um tribunal brasileiro, aparentemente em setembro de 1586 Filipe n estava decidido a examinar essa possibilidade.19 O rei mandou o Desembargo do Paço apresentar sugestões e solicitou a opinião de Brás Fragoso e Cosme Rangel, que tinham experiência de primeira mão como antigos magistrados no Brasil. De modo geral, eles responderam favoravelmente e a maioria achava, como o vice-rei de Portugal, que um tribunal superior administraria justiça com mais equanimidade do que fora possível sob a autoridade do ouvido r-geral.20 No Brasil, as condições legais não tinham melhorado. Os sucessores de Mem de Sá não reproduziram suas realizações administrativas. Por ora parecia que o êxito do terceiro governado r-geral, um letrado, tinha estimulado a Coroa a buscar nesse grupo os governadores da colónia. Desse modo, Luís de Brito de Almeida e António de Salema eram ambos letrados, mais do que nobres importantes ou soldados experientes. Essa tendência, no entanto, durou pouco.21 Enquanto isso, o crescimento da população e do comércio e o aumento concomitante dos litígios ressaltavam a necessidade de reforma. A tarefa ficou simplesmente grande demais para um homem só, e, como vimos, o ouvidor-geral era incapaz de dedicar toda a sua atenção às questões de justiça, por causa das outras responsabilidades burocráticas e militares. A Coroa também nem sempre tinha facilidade para preencher cargos no Brasil com letrados talentosos e bem-dispostos. Foi por essa época, aliás, que Diogo Dias Cardoso eximiu-se de servir como ouvidor-geral no Brasil, alegando que sua mulher em Portugal estava "doida varrida" e que ele não poderia, em sã consciência, abandoná-la.22 Letrados indispostos a aceitar o emprego às vezes alcançavam grandes alturas imaginativas em suas desculpas. Embora alguns conselheiros reais achassem que a seleção de magistrados mais experientes contribuiria para melhorar as notórias condições no Brasil, a maioria geralmente concordava que o próprio sistema necessitava de mudanças estruturais. A reforma da estrutura judiciária projetada entre 1586 e 1588 refletia a já descrita situação no Brasil e o padrão geral de reforma decretado por Filipe n em Portugal. A maioria dos autores que se ocuparam do desenvolvimento das ;

instituições brasileiras no período colonial tem visto a criação do Tribunal Superior do Brasil como resultado de fatores puramente brasileiros. Essa interpretação não leva em conta a posição do Brasil como apenas uma das muitas áreas coloniais sob controle português, e certamente não a mais importante delas nesse período. O fato de que o novo tribunal foi criado de acordo com modelos portugueses não deve encobrir a presença da iniciativa espanhola na reforma original, ainda que o respeito de Filipe n pelo acordo de Tomar obrigasse essa influência a recuar para o fundo do quadro.23 Atualmente, nacionalistas portugueses querem nos fazer acreditar que as reformas espanholas foram mínimas, em suas conquistas e em seus resultados, mas o uso contínuo das Ordenações Filipinas depois que Portugal se separou da Espanha em 1640 e a persistência da Relação do Porto até hoje atestam a durabilidade e a eficácia das reformas judiciais e administrativas fílipinas dos anos de 1580. Em contrapartida, é justo observar que muitas das reformas sugeridas pelos conselheiros de Filipe u já tinham sido tentadas pelos próprios portugueses, tanto em Portugal como nas colónias. Tsso talvez explique a pronta aceitação das mudanças. A Relação do Porto, por exemplo, foi recebida por muitos como uma reforma que já veio tarde.24 No Brasil, já ern 1562 funcionários subalternos do Tesouro tinham proposto que a administração da justiça fosse feita por uma comissão de magistrados, e não por um ouvidor-gcral. 25 A sugestão com toda a certeza pressagiou a criação de um tribunal superior brasileiro de apelação. Mas, fossem quais fossem as razões, esses antigos desejos portugueses receberam pouca atenção, até que um Habsburgo espanhol se sentou no trono de Portugal. Reformas idealizadas em Portugal nern sempre coincidiam com a realidade brasileira. Uma coisa era emitir um regimento para um novo tribunal brasileiro e selecionar dez magistrados para ocupá-lo, outra, bem diferente, era estabelecer esse órgão na colónia. A Relação da Bahia, criada em 1588 como parte da ampla reforma administrativa e judicial, nunca chegou à colónia. Porém, foram os ventos e as rnarés, mais do que qualquer conflito político ou administrativo, que provocaram o fracasso do tribunal. A história é simples. A maioria dos dez magistrados escolhidos para servir na Relação da Bahia embarcou em 1588, em companhia do recém-nomeado governador Francisco Giraldes.26 Seu navio, o galeão São Lucas, lutou contra ventos c correntes, sem conseguir atravessar o Equador, e finalmente foi obrigado a aportar em Santo

Domingo, no Caribe. Giraldes e seus companheiros, incapazes de velejar para o sul ao longo da costa, devido às correntes contrárias daquela época do ano, reembarcaram rumo a Portugal. Quatro desembargadores conseguiram, de um jeito ou de outro, chegar ao Brasil, onde ocuparam vários cargos, mas n Tribunal Superior não foi instituído.27 A tentativa não deixou de ter algum resultado. O regimento divulgado em 1588 não foi destruído, apenas engavetado. Esse conjunto de leis f sei itas, que esquematizava as funções do tribunal e especificava os deveres dos magistrados e funcionários, indicava claramente que a recém-reformada Casa da Suplicação deveria servir de modelo para a organização e o procedimento do Tribunal Superior. Quando começou a funcionar, em 1609, a Relação do Brasil empregou o mesmo regimento, com pequenos acréscimos.28 Dois anos após o fracasso de 1588, o Desembargo do Paço voltou a atacar o problema da administração judicial no Brasil. 29 O estado da justiça — ou antes a falta dela — era um problema crónico e as condições que encorajaram a tentativa de estabelecer um Tribunal Superior em 1588 persistiam em 1590. De fato, o número de recursos das decisões dos ouvidores aumentou de forrna constante, e os órgãos metropolitanos eram incapazes de cuidar efetivamente deles.30 Para a Coroa parecia haver três alternativas: ( l ) o estabelecimento de um tribunal superior de acordo com o plano original de 1588; (2) a continuação do sistema existente, baseado no cargo de ouvidor-geral; (3) a instituição de uma nova organização judiciária que não fosse um tribunal superior. O Desembargo do Paço discutiu esse problema e relatou suas conclusões à Coroa. Embora um de seus membros fosse favorável ao status quú judicial no Brasil, a maioria sentia necessidade de mudança. Os juizes não acreditavam que o regimento de 1588 fosse adequado às condições brasileiras, já que ele exigia a presença de dez magistrados reais, cuja residência na colónia resultaria num aumento dos processos, das disputas, da dissensão e do caos. Os conselheiros declararam "não ser a terra capaz de tantos letrados".31 Ali estava a causa subjacente de boa parte da resistência à instalação de um tribunal superior no Brasil. Como na índia, muitos observadores temiam que o estabelecimento de uma corte com dez juizes estimulasse um influxo de litígios desnecessários, advogados e chicaneiros, levando a solução de conflitos à paralisia. É tentador aceitar pelo valor de face essa crítica tantas vezes feita contra o

Tribunal Superior de Goa e as audiências hispano-americanas, especialmente quando se leva em conta que a acusação vinha do experiente Desembargo do Paço. Esse conselho e seus contemporâneos fecharam os olhos, entretanto, para as múltiplas funções da magistratura e as obrigações extras atribuídas aos juizes coloniais. A presença de um tribunal de recursos no Brasil talvez estimulasse os litígios, mas um aumento no número de magistrados poderia também permitir um julgamento pronto e adequado das disputas. O Desembargo do Paço tentou um caminho intermediário. Em vez de instituir o tribunal pleno, decidiu despachar cinco letrados com a obrigação de viajar para presidir audiências em outros lugares.32 O vice-rei de Portugal, cardeal Alberto, submeteu um plano alternativo, sugerindo a nomeação de três magistrados da Coroa para o Brasil: um ouvidor-geral na Bahia e ouvidores nomeados pela Coroa em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Percebendo que a indicação, pela Coroa, de ouvidores nessas capitanias violava as cartas de doação originais, o vice-rei sugeriu que os novos funcionários fossem chamados de provedores, e procedessem como seus homólogos em Portugal. A recomendação do vice-rei era, obviamente, uma tentativa de ampliar o poder real à custa dos donatários e, na verdade, essa tentativa era tão grosseira que ele se sentiu obrigado a disfarçá-la com o emprego de complexa terminologia. O interesse dos governantes Habsburgo de Portugal em prosseguir no rumo da centralização iniciada pela Casa de Avis já era evidente, apesar de não ter se tornado preocupação dominante até o reinado de Filipe iv. Nesse contexto, entretanto, a decisão final do Desembargo do Paço é mais compreensível. Uma facção do Desembargo do Paço aprovou a expansão do controle real, mas julgava os poderes dos provedores de Portugal insuficientes para lidar com a situação existente no Brasil. Propôs, assim, uma expansão da jurisdição desses provedores, para permitir que julgassem recursos das decisões dos julgadores nomeados pelos donatários. Isso criaria, tanto no Rio de Janeiro como em Pernambuco, o equivalente do ouvidor-geral. A facção oposta baseava sua opinião contrária em três argumentos. Primeiro, um provedor no modelo português, limitado a questões de sucessão, não conseguiria muita coisa e seria inútil no Brasil. Segundo, a criação de um ouvidor-geral de facto traria grandes dificuldades, especialmente pelas jurisdições conflitantes. Terceiro, todo o plano era contrário aos privilégios assegurados aos donatários. Em vez disso, a facção 66

oposta sugeriu que cinco letrados fossem enviados como um tribunal e, se isso não pudesse ser feito, que o assunto fosse encerrado. As opiniões conflitantes puseram a Coroa numa enrascada, pois, como o principal objetivo da criação do Tribunal Superior em 1588 tinha sido eliminar a grande quantidade de recursos a Portugal, agora parecia estranho que com o aumento dos litígios o número original de magistrados nomeados para esse tribunal fosse considerado excessivo. Se um Tribunal Superior com dez juizes era um fardo pesado demais para o Brasil, então a Coroa não julgava necessário alterar o sistema existente. Tal decisão foi formalizada numa carta ao Desembargo do Paço, datada de 26 de novembro de 1590.33 Mas durante quinze anos a questão permanecera em suspenso, muito embora as condições na colónia cada vez mais justificassem modificações no sistema existente. A enxurrada de interesses em 1590, entretanto, indicava não apenas as grandes dificuldades funcionais e administrativas envolvidas numa reorganização do sistema judicial brasileiro, mas também o implícito desejo real de submeter essa colónia, que crescia em tamanho e importância, ao controle da burocracia real. Além disso, as ideias apresentadas em 1590 não foram completarnente estéreis: quando em 1609 o Tribunal Superior começou a funcionar no Brasil, manteve-se a figura do ouvidor-geral no Rio de Janeiro, como sugerido pelo vice-rei de Portugal, cardeal Alberto. Filipe n morreu em 1598. Coube a seu jovem filho, Filipe m, o património dos Habsburgo espanhóis, um legado que incluía Portugal e seu Império. Mas da herança também faziam parte a guerra em fogo brando nos Países Baixos, um problema de segurança interna nas regiões apenas parcialmente hispanizadas e acima de tudo um orçamento que cada vez mais entrava no vermelho. Filipe in, fraco, irresoluto e facilmente influenciável pelos conselheiros, simplesmente carecia do interesse do pai por questões de administração e justiça, e encontrou nos urgentes problemas políticos e financeiros de sua época motivos mais do que suficientes para ocupar suas limitadas capacidades pessoais. Apesar disso, durante esse período o Tribunal Superior foi finalmente estabelecido no Brasil, provavelmente como resultado de condições locais. Já em janeiro de 1605, Filipe ni ordenou ao então recém-criado conselho colonial português, o Conselho da índia, que examinasse a questão.34 As considerações principais do rei, ou pelo menos aquelas que ele manifestou explicitamente, baseavam-se em seu interesse pela administração efetiva e

pelo estado do Tesouro real na colónia. Há fortes indícios, en tretanto, de que outras considerações existiam. Por exemplo, uma carta da Câmara da Bahia ao rei (de 27 de janeiro de 1610) observava que antes de 1609 o governador e o ouvidor-geral tinham juntado forças para eliminar seus adversários políticos da Câmara municipal. 35 Era a mesma denúncia de conluio que Pêro Borges registrará contra os donatários e seus ouvidores.36 Além disso, nos últimos anos do século xvi, os ouvidores e o ouvidor-geral estavam deixando de cumprir seus deveres e abusando de sua autoridade. Domingos de Abreu e Brito, investigador real que visitou o Brasil em 1591, informou que os funcionários da justiça eram facilmente corrompidos pelos fazendeiros e' comerciantes. Afirmo u ele que desde a época de Cosme Rangel faltava justiça na colónia.37 Muito embora tais condições possam ter despertado novo interesse pela reforma, o conflito entre instituições coloniais também era um forte motivo para a reorganização. As tradicionais rusgas entre funcionários seculares e eclesiásticos no Brasil provocaram um apelo dos primeiros, que pediram à Coroa que mandasse um juiz especial para julgar tais disputas na colónia. O pedido, feito em fevereiro cie 1604, obteve resposta negativa da Coroa, mas os conflitos não diminuíram, e quando o Tribunal Superior foi instalado no Brasil ern 1609 um juiz foi designado especialmente para julgar esses litígios.38 Quaisquer que tenham sido os motivos subjacentes que levaram a Coroa a agir em 1605, a causa declarada da criação da Relação do Brasil foi o crescimento em tamanho e importância da América Portuguesa. A colónia desabrochava e tornava-se importante estrategicamente, como linha de defesa militar, e economicamente, como fonte de açúcar. Em 1605, o Conselho da índia foi favorável ao estabelecimento de um tribunal permanente no Brasil, c dentro de um ano a Coroa ordenou a d. Pedro de Castilho, vice-rei de Portugal, que tomasse providências para esse fim. A ordem dizia: Por razão do descobrimento e conquista de novas terras e aumento do comércio com que se tem dilatado muito aquele F.stado assirn em número de vassalos, como em grande quantidade de fazendas por cujo respeito cresceram as dúvidas c demandas que cada dia se movem, em que se não pode administrar inteiramente justiça na forma que convém, pelo ouvidor-geral [...]. Hei por bem de ordenar a dita Relação [..J.39

Depois que a Coroa resolveu reviver o Tribunal Superior do Rra,sii, as primeiras tarefas a serem enfrentadas eram a seleção de um grupo apropriado de letrados bem treinados e o rascunho de um regimento revisado. O primeiro problema era de extrema importância. Magistrados mal treinados c inexperientes, numa situação difícil como a representada pelas condições de fronteira do Brasil e pelo espírito combativo de seus habitantes, p o d e r i a m perturbar LI comunidade e criar mais dificuldades do que resolve-las. Desse modo, a Coroa desejava que fossem selecionados homens capazes e experiente^ 0 Originariamente, o Conselho da índia assumiu a tarefa de nomear homens para cardos no Tribunal Superior, mas o conselho que os Habsburgo espanhóis mantinham na Espanha como o mais alto órgão consultivo sobre questões portuguesas, o Conselho de Portugal, dcu-sc conta de que problemas técnicos de direito e do judiciário pertenciam ao Desembargo do Paço. Por sugestão do Conselho de Portugal, o rei enviou o regimento de 1588 e as nomeações feitas pelo Conselho da índia para o vice-rei de Portugal, instruindo-o a reunir-se com o Desembargo do Paço e, "no maior segredo" designar candidatos para o cargo e tomar nota das emendas necessárias no regimento.'51 Por isso, três conjuntos de documentos serviram de base para a decisão final do Conselho de Portugal: a opinião e as nomeações do Desembargo do Paço, os comentários do vice-rei e o regimento e as nomeações do Conselho da índia.42 Todos os funcionários e instituições na estrutura administrativa portuguesa obedeciam a um conjunto específico de normas escritas. Essa instrução, ou regimento, pode ser vista como aquilo que a Coroa considerava a conduta ideal de burocratas ou instituições burocráticas. A conduta real, entretanto, geralmente desviava-se bastante do ideal burocrático expresso no regimento. Não obstante, essas instruções apresentavam as bases teóricas do desempenho do tribunal e os padrões de comportamento que a Coroa esperava. Uma análise do regimento parece, portanto, a maneira apropriada de concluir esta discussão. O novo Tribunal Superior brasileiro estava subordinado à Casa da Suplicação, instituição na qual foi modelado. Seus membros tinham os mesmos direitos e privilégios dos desembargadores dos outros tribunais superiores e os salários deveriam ser iguais aos dos membros da Relação do Porto.41 Os atos de votar e sentar-se no tribunal observavam estrita hierarquia. Para representar a dignidade do cargo, os desembargadores usavam togas escuras tanto no tribunal como na cidade, e estavam proibidos de vestir roupas afetadas. Difcren-

temente dos magistrados do Porto, entretanto, a lei não exigia que deixassem crescer longas barbas para representar a autoridade de senadores romanos.44 O regimento também estabelecia que os desembargadores deveriam ser abrigados e mantidos com o menor custo e a menor inconveniência possíveis para os habitantes da Bahia e do resto da colónia.45 Era uma tentativa de reduzir atritos entre o tribunal e os colonos. As despesas seriam pagas com o dinheiro das multas financeiras aplicadas pelo tribunal, e essa fonte de renda também deveria prover os salários de um capelão e de um médico, que cuidariam das necessidades espirituais e físicas dos magistrados. Diferentemente da Casa da Suplicação, o Tribunal Superior não tinha um regedor designado para presidi-lo; em vez disso, o governador-geral do Brasil recebeu ordens para servir nessa posição. A fórmula tinha sido desenvolvida na índia, onde o vice-rei desempenhava tais funções. As relações entre o governador-geral do Brasil e a Relação assemelhavam-se às do vice-rei do Peru com a Audiência em Lima. Como presidente da Relação, o governador podia assistir às sessões do tribunal quando quisesse, mas sem ter o direito de votar ou emitir sentenças. Um dos deveres do governador era zelar para que os magistrados do tribunal recebessem prontamente o salário e, apesar de lhe ser vetado fazer nomeações permanentes, ele podia designar membros ad hoc. A cada três anos o governador devia nomear um desembargador para fazer uma viagem de serviço pelas outras capitanias, a fim de conduzir "residência" (investigação) de seus capitães e dos ouvidores. Se descobrisse infrações, deveria submeter o assunto ao procurador da Coroa, para a instauração de processo. Uma investigação similar, mas separada, seria realizada a cada três anos na Bahia.46 Como suprema autoridade civil do Brasil, o governador tinha de preservar as prerrogativas reais de justiça, se houvesse intromissão eclesiástica. Nesse assunto, o governador deveria proceder de acordo com o regimento da Relação da índia.47 Como em outros tribunais superiores portugueses, o chanceler era o magistrado-chefe. Era seu dever registrar as leis e ordenações emitidas pelo governador, e regulamentá-las ou emendá-las quando necessário. Como seus equivalentes em Goa, em Lisboa e no Porto, o chanceler revia decretos e sentenças para assegurar-se de que não eram contrários às leis existentes. Como o mais alto magistrado do tribunal, ele também tinha jurisdição em queixas e acusações contra o governador-geral. Durante o julgamento dessas acusações, o governador não tinha permissão para aparecer no tribunal. Os outros magis70

trados do Tribunal Superior e os funcionários subalternos, quando acusados de crime, ficavam sob jurisdição do chanceler, que servia também como juiz dos cavaleiros no Brasil, sendo portanto superior imediato das ordens militares em questões legais. Esse dever tornava necessário que ele pertencesse a uma ordem militar. O chanceler era, de fato, o segundo mais alto funcionário da administração civil do Brasil, o que tinha reflexo em seu salário, assim como em seu poder e prestígio. Em caso de ausência do governador, o chanceler servia como chefe do governo, e entre 1609 e 1625 os governadores frequentemente estavam ausentes da Bahia, de modo que o chanceler do Tribunal Superior do Brasil constantemente governava a capital da colónia.48 O Tribunal Superior brasileiro tinha três desembargadores dos agravos que julgavam ações civis envolvendo valores de até 2 mil-réis em bens imóveis e 3 mil-réis em propriedade pessoal. Nos casos que envolvessem grandes valores, cabiam recursos à Casa da Suplicação. No Brasil, os desembargadores julgavam recursos das decisões de funcionários de justiça menos graduados, como os ouvidores das capitanias, bem como os recursos que emanavam de decisões do ouvidor-geral e do provedor-mor dos defuntos. Todas as ações civis eram despachadas por tenções, segundo o costume da lei portuguesa. Na Casa da Suplicação três votos iguais decidiam um caso envolvendo 10 mil-réis ou mais, porém a distância da colónia e as dificuldades de apelação tornaram necessária uma mudança de procedimento. Dessa forma, no Brasil dois votos bastavam para resolver disputas envolvendo valores de até 20 mil-réis, e três votos para valores mais altos. O voto da maioria dos desembargadores na Mesa Grande, a sessão plenária, dava ou negava permissão para recorrer à Casa da Suplicação. O cargo de ouvidor-geral não foi abolido com a criação do novo tribunal, mas incorporado à sua estrutura. As funções do ouvidor-geral como membro do Tribunal Superior do Brasil lembravam as do corregedor da corte da Casa da Suplicação.49 Três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas, o ouvidor-geral sentava-se para ouvir casos civis e criminais. Nas disputas civis, ele podia ouvir ações em primeira instância e julgá-las sem apelação em valores até 15 mil-réis em imóveis e 20 mil-réis em propriedade pessoal. Nas ações criminais, tinha jurisdição original na capitania da Bahia, ou no lugar de sua residência temporária, se assim o desejasse, e jurisdição em segunda instância sobre o resto do Brasil. Ao ouvidor-geral também era atribuída jurisdição legal sobre

ações civis e criminais envolvendo destacamentos de tropas e soldados e oficiais das guarnições. Disputas que afetassem diretamente os interesses da Coroa eram de atribuição do juiz da Coroa, ou juiz dos feitos da Coroa e Fazenda. Ele julgava casos em primeira instância, quando originados na capitania da Bahia, e em apelação quando vinham de outra capitania. Como o tesouro real também era de sua alçada, ele julgava recursos das decisões dos provedores das capitanias onde houvesse uma parte ofendida, se estivesse mais perto da cena da disputa do que o provedor-mor. Além disso, nos casos que envolvessem valores além da jurisdição do provedor-mor, cabia recurso ao juiz dos feitos da Coroa.50 O procurador da Coroa representava orei nos casos julgados pelo juiz dos feitos da Coroa e também servia como promotor em casos criminais. Como o governador, o procurador da Coroa guardava as prerrogativas do rei, especialmente contra usurpação pela Igreja. Essa posição geralmente era ocupada por um dos homens mais jovens do tribunal. O provedor dos defuntos e resíduos encarregava-se dos espólios e cios órfãos. Geralmente procedia como os provedores de Portugal. Nos casos em que o falecido tinha deixado testamento e nomeado executor do espólio, o provedor não tinha poder para interferir. Mas, quando os herdeiros estavam ausentes ou eram desconhecidos, o provedor ficava encarregado de homologar e pôr em ordem o espólio. Diferentemente dos provedores de Portugal, o provedor dos defuntos não podia julgar recursos das decisões dos juizes dos órfãos, e no Brasil esses recursos iam para os desembargadores dos agravos. Além dos cargos enumerados pelo regimento, havia também dois desembargadores extravagantes selecionados para ajudar no trabalho do tribunal, geralmente juntando-se a outros magistrados nos casos que requeriam decisão de mais de um juiz. O regimento também estipulava determinado número de funcionários subalternos. Eles incluíam seis secretários: dois para os recursos, dois para o ouvidor-geral, um para o juiz da Coroa e outro para o chanceler. Esses amanuenses preparavam as provas para apresentação, anotavam depoimentos e interrogatórios, redigiam acusações e registravam leis. A Relação também mantinha médico e capelão próprios para cuidar de suas necessidades físicas e morais e assim tornar os juizes menos dependentes da comunidade. No palácio de justiça um meirinho e um guarda-mor também coletavam as multas aplicadas pelo Tribunal Superior.

Com pequenas modificações, a estrutu rã da Relação descrita acima continuou sendo a forma básica dos tribunais superiores brasileiros pelos duzento-, an os seguintes. Como instituição, a Relação mudou pouco nesses dois séculos. O que mudava constantemente, entretanto, eram seus membros, os magistrados que ocupavam os assentos no tribunal. Os homens, e não as leis, fi/eram da Relação uma instituição dinâmica.

4. Os magistrados

Escolha ministros de boa opinião não só na literatura mas na limpeza de mãos que este requisito último mais serve para os que vão administrar justiça nos lugares ultramarinos. Consulta do Conselho Ultramarino (9 de julho de 1725)

A criação de um Tribunal Superior brasileiro assinalou importante momento na história administrativa e social da colónia. Antes de 1609, as obrigações extrajudiciais dos ouvidores-gerais comprometiam o seu êxito como juizes, e sua posição na colónia como únicos representantes da magistratura profissional reduzia o impacto e a amplitude de suas relações pessoais. Depois de 1609, a presença de dez desembargadores no Brasil não só aumentou a probabilidade de um melhor desempenho judicial, mas também multiplicou as oportunidades de contatos sociais. Os juizes que formavam o primeiro tribunal brasileiro eram, em muitos sentidos, representantes típicos de sua profissão. O grau de continuidade entre eles e seus sucessores, em termos de origem social, padrão de carreira, nível de instrução e experiência, é notável. A chegada dos primeiros desembargadores pode ser vista como o começo do governo magistrático no Brasil, a completa extensão da burocracia real para a colónia numa época em que ela entrava num período de prosperidade económica trazido 74

pelo rápido crescimento do comércio da cana-de-açúcar. Para chegar a uma visão integral da operação do governo real no Brasil, é preciso compreender tanto a burocracia como os burocratas. Uma tabela de organização nos dirá muita coisa, mas como expressão da realidade não faz sentido se não for complementada por algum conhecimento das qualidades humanas dos homens que ocupavam seus diversos cargos. Deve ficar bem claro que os burocratas magistráticos constituíam um pequeno grupo de especialistas. Dos milhares de cargos burocráticos maiores e menores, talvez apenas quatrocentos fossem reservados para a burocracia letrada durante a maior parte do período coberto pelos séculos xvi e xvn. Havia três tipos de cargos burocráticos, cada um deles preenchido, até certo ponto, por um grupo distinto. No topo, a velha aristocracia militar e latifundiária continuava a servir a Coroa em várias posições, geralmente de natureza executiva ou conselherial. Seus membros serviam como vice-reis na índia, governadores no Brasil e embaixadores nas cortes da Europa. Esses nobres tradicionais tinham muito orgulho de sua linhagem, julgavam-se nascidos para comandar e nunca deixavam de participar do governo. A Coroa esperava usar o prestígio desses homens para reforçar sua própria autoridade e aumentar-lhes a eficácia como seus representantes. Da nobreza vinham também muitos dos conselheiros reais que compunham e chefiavam os diversos órgãos de governo descritos no capítulo 1. Afinal, em certo sentido, a nobreza titulada era formada por parentes e equivalentes sociais do rei, e seu legado de comando e amplas perspectivas os qualificava como conselheiros reais. Os vários conselhos reais não eram, no entanto, domínio exclusivo da nobreza tradicional. Ao longo do século xvi a Coroa passou a requisitar, de forma crescente, a burocracia letrada para esses órgãos. As opiniões divergem sobre a eficácia desses dois tipos de homens como conselheiros do rei. Um observador do século xvn declarou que uma mistura de letrados e nobres titulados produziria as melhores decisões conselheriais. Ele achava que os letrados sabiam demais e intelectualizavam as coisas até o ponto de impossibilitar a ação; os aristocratas, ou "idiotas", eram capazes de agir com rapidez, mas geralmente sem sabedoria. Portanto, a melhor solução era misturar os dois. A Coroa, aparentemente, concordava com essa interpretação, de rnodo que uma combinação de burocratas profissionais e nobres titulados continuou a ocupar assento nos conselhos do rei.1

Como vimos, os magistrados eram burocratas profissionais cuja existência como grupo estava inextricaveímente ligada à extensão da autoridade real à custa das várias entidades corporativas. Todo acréscimo ao poder real criava novas obrigações e novos poderes para a magistratura, cujos deveres permaneceram judiciais apenas no sentido mais amplo do termo, uma vez que a justiça do rei podia ser equiparada ao bem-estar geral do reino. A magistratura se tornara a espinha dorsal do governo real, tanto nas colónias como na metrópole, e nessa condição ela c o tema deste estudo. Nem todos os níveis da burocracia eram ocupados por profissionais de formação universitária, entretanto, e antes de prosseguir nossa análise da magistratura é preciso descrever o grande número de cargos burocráticos inferiores. Abaixo da magistratura havia uma terceira camada de burocracia, um vasto conjunto de cargos menores, de tabeliães e amanuenses a inspetores portuários e tesoureiros. Havia literalmente centenas desses cargos e sua presença na folha de pagamento real indicava sua posição dentro do serviço real.2 Alguns desses empregos não exigiam qualificação ou experiência alguma, ou, se exigiam, os critérios costumavam ser ignorados na hora da designação. Muitos cargos na burocracia não profissional podiam ser comprados ou recebidos da Coroa como recompensa. A expressão "algum emprego na justiça ou no Tesouro" geralmente era a resposta da Coroa a um peticionário que citasse seus serviços meritórios ou suas façanhas militares como razões para uma recompensa. Esses cargos não eram só concedidos pessoalmente a possíveis candidatos, mas também, muitas vezes, eram dados a viúvas ou meninas órfãs, como dotes. Obviamente, os cargos inferiores constituíam património real, um recurso que permitia à Coroa conquistar lealdades e recompensar serviços. Sua função, portanto, não era puramente burocrática. Nesse nível de administração, o pluralismo (a ocupação de mais de um cargo) era comum, e o uso de substitutos, uma prática corriqueira. Havia distinções entre os cargos inferiores, que exigiam pouca ou nenhuma capacitação, e os que requeriam pelo menos alguma qualificação. Tabelionatos eram os mais importantes da última categoria. Cargos de amanuense requeriam pelo menos algum nível de alfabetização, e geralmente o prémio de um tabelionato incluía uma cláusula exigindo prova de aptidão. As qualificações notariais, entretanto, pareciam diminuir na ra/ão direta da distância do trono, de modo que, se os documentos existentes podem ser usados como índice, os melhores

tabeliães estavam na corte em Lisboa e os piores rabiscavam u n i português de semianalrabcto nas pobres cidades coloniais. Geralmente, os letrados recusavam-se a servir como tabeliães, de modo que esses empregos eram dados a homens de instrução não mais do que rudimentar. No século xvi, portugueses continentais ocupavam a maioria dos cardos na pequena burocracia do Brasil. No período dos Habsburgo, contudo, o.s moradores da colónia já tinham conquistado muitas dessas posições o compc tiam, ansiosamente, para se tornarem "filhos da folha". Cargos burocráticos inferiores, com suas gratificações, comissões e salários, pareciam caídos do céu para fidalgos empobrecidos, combatentes de índios em situação de indigência e viúvas geriátricas. O interesse geral por tornar-se funcionário do governo dava à Coroa considerável eficácia política, pois a concessão ou a recusa desses postos constituía um meio para o controle real de um importante "recurso f l u tuante" para usar a expressão de Eisenstadt. 3 Nesse nível de emprego, havia oportunidades tanto para nobres como para plebeus. A presença de pessoas bem-nascidas e pessoas de origem humilde nos cargos da burocracia indicava o desejo da Coroa cie mobilizar fontes de poder opostas e equilibrá-las em vantagem própria. Entre o segundo e o terceiro estados, entretanto, algum grupo neutro tinha de servir como mediador de poder e guardião do sistema. Foi esse o papel que a Coroa previu para a magistratura. No fim do século xvi, a magistratura já se tornara urna classe semiautônoma, que de certa forma se perpetuava, com gerações se sucedendo no serviço real. Pessoas de outras camadas sociais, entretanto, continuaram a ingressar nas fileiras dos letrados, e, embora filhos de magistrados tenham servido no primeiro tribunal brasileiro, juizes de origem fidalga também o fizeram. Os requisitos para matrícula na universidade e para ingresso no serviço real operavam para excluir homens com certos antecedentes familiares. Em ambos os casos "cristãos-novos" (eufemismo para designar criptojudeus) eram barrados, numa tentativa de garantir para a Coroa funcionários racialmente "puros", religiosamente ortodoxos e politicamente leais. Era impossível fazer, com rigor, essa seleção em todos os casos, mas um magistrado com a "mácula' de antecedentes "novo-cristãos" provavelmente sofreria limitações na carreira. Com esse único fator de limitação, as origens sociais dos magistrados pareciam bastante diversificadas, e a magistratura incluía fidalgos e proprietários, mas também, e sobretudo, aristocratas sem título e burocratas. Não há como determinar, no

atual estágio das pesquisas, até que ponto os filhos mais jovens dos proprietários de terras buscavam seu meio de subsistência na burocracia magistrática, como alternativa para a Igreja ou o Exército, mas essa possibilidade certamente existia. A chave para uma carreira no serviço real estava num curso universitário de direito. As origens sociais ou o lugar de nascimento podiam variar consideravelmente, mas quase sem exceção os magistrados tinham passado pela experiência comum de cursar as faculdades de direito canónico ou civil na Universidade de Coimbra. O estudo do direito vinha ganhando importância desde que d. João m estabelecera permanentemente a universidade em Coimbra. O direito canónico era um dos favoritos, porque preparava os alunos tanto para a burocracia civil como para a eclesiástica. Tanto no direito civil como no canónico, entretanto, o estudo se baseava num determinado número de cursos que enfatizavam o corpus dos direitos romano e eclesiástico, os glosadores medievais e os comentários de juristas, como o altamente apreciado Bártolo de Sassoferrato.4 Como na maioria das universidades europeias daquela época, os professores davam grande valor à decoreba e à capacidade que o estudante demonstrasse de salpicar as margens de seu argumento ou tratado com citações eruditas ou referências clássicas. Apesar disso, a julgar pelos poucos argumentos escritos de advogados do Brasil e outros lugares que ainda sobrevivem, é claro que sólidos raciocínios e precedentes legais também tinham seu peso nas decisões judiciais. Havia três títulos académicos em direito civil (Leis) ou canónico (Cânones). O bacharelado era, de longe, o mais comum, e se tornou quase sinónimo de magistratura. Até o século xvn o bacharelado era mais valorizado que a licenciatura, título que exigia quatro anos adicionais de estudos. Depois da reforma de Coimbra em 1612, a licenciatura perdeu importância, e tornou-se complemento do título de bacharel.5 O doutorado era um título honorífico, que na realidade não indicava qualidades ou instrução superiores, e era buscado principalmente por homens que ingressavam no corpo docente da universidade. Esses homens podiam, no entanto, ingressar no serviço real depois de uma carreira universitária, e encontravam-se antigos professores universitários nos cargos mais altos da burocracia profissional. Títulos universitários serviam como marcas de distinção e status, mas nunca tiveram a importância que tinham na Espanha e na América Espanhola,

onde os títulos de licenciado e ííocforeram orgulhosamente exibidos e zelosamente preservados.6 Os magistrados portugueses, diferentemente de seus equivalentes espanhóis, preferiam o título funcional (como o de desembargador) ao título universitário, como forma de classificação social. Curiosamente, apesar do pouco valor intelectual atribuído ao doutorado, os magistrados que obtinham esse título geralmente insistiam em usá-lo. As exigências do governo e os objetivos particulares e políticos da Coroa influenciavam a natureza e o conteúdo da educação universitária em Portugal. O estudo do direito fazia mais do que preparar o aluno para a prática da advocacia e o ingresso no serviço real num sentido técnico; também inculcava nele um complexo modelo de padrões e ações aceitáveis. O estudo de direito em Coimbra era um processo de socialização que tinha como cerne a criação de um senso de lealdade e obediência ao rei. É significativo que, ao longo dos trezentos anos da era colonial no Brasil, a única faculdade de direito no Império português tenha sido a de Coimbra. Todo magistrado nesse Império, tivesse nascido na colónia ou no continente, passava pelo currículo daquela escola e bebia seus conhecimentos de direito e estadística naquela fonte. Em certo sentido, esse processo atava a elite intelectual da colónia à metrópole de modo totalmente diverso da América Espanhola, onde universidades locais serviam à .elite colonial. Havia magistrados nascidos no Peru e educados no Peru que nunca tinham estado na Espanha, mas nenhum magistrado nascido em colónia do Império português deixara de estudar na metrópole. Do século xvi em diante Coimbra se tornou campo de treinamento do clero e da magistratura portugueses. Em seus saiões eles aprendiam a profissão e à sombra de seu campanário assimilavam a filosofia dominante da época. Este não é o lugar apropriado para discutir em detalhes os grandes princípios do pensamento político daquela época, uma vez que outros já desempenharam a tarefa de modo admirável, mas pejo menos um ponto deve ficar claro. Na Renascença portuguesa as relações do rei com o povo e a lei constituíam o âmago do pensamento político.7 Vários autores haviam desenvolvido teorias subordinando o rei à lei e reconhecendo o direito do povo a resistir ao tirano; mas poucos, se é que houve algum, declararam que a magistratura partilhava o direito do povo de resistir a um mau governante. Em Coimbra, os jesuítas, que por intermédio do seu Colégio de São Paulo chegaram a dominar a cena intelectual, enfatizavam que a magistratura era uma criação real e, por79

tanto, subserviente à Coroa. Magistrados eram servidores reais, e não servidores civis. Essa doutrina encontrava considerável amparo no pensamento jurídico estrangeiro. Ideias políticas italianas e espanholas não eram alheias a Coimbra, especialmente durante a era dos Habsburgo. Naquele período, as doutrinas de pensadores espanhóis como Francisco Suárez e Juan de Mariana eram amplamente lidas e debatidas. O jesuíta Suárez é muito importante nesse sentido, pois, tendo lecionado em Coimbra na segunda década do século-xvn, seu impacto foi direto.8 Mais conhecido, talvez, como expoente da vontade popular contra a tirania, Suárez concebia a magistratura, no entanto, como submetida à Coroa, não ao povo. Essa posição, obviamente, representava um sólido alicerce teórico para a subserviência da burocracia ao rei, posição que o monarca, fosse ele um Avis, um Habsburgo ou um Bragança, não poderia deixar de apoiar. 9 Nem todos os estudantes matriculados em Coimbra ingressavam no serviço real depois de formados, mas aqueles que se decidiam por uma carreira burocrática geralmente começavam a se preparar para o exame de admissão no último ano da universidade. Para entrar na magistratura, o candidato fazia uma petição ao Desembargo do Paço, que então realizava uma investigação pessoal e académica para determinar se ele preenchia os requisitos. Dos muitos documentos relativos à burocracia portuguesa, nenhum é mais revelador dos processos de recrutamento, dos critérios de seleção e das origens sociais dos magistrados que os exames de admissão aplicados pelo Desembargo do Paço.10 Eram requisitos para a admissão que os candidatos fossem formados cm direito em Coimbra e tivessem praticado a advocacia por pelo menos dois anos. Os estatutos do Desembargo do Paço também exigiam que o candidato tivesse pelo menos 28 anos na data da nomeação. A maioria dos estudantes de Coimbra se formava entre os 26 e os 33 anos, dependendo do título obtido, de modo que a exigência de idade não era um obstáculo sério. Ao receber um pedido, o Desembargo do Paço distribuía um questionário para o juiz real na cidade ou distrito natal dos pais e avós do candidato. O juiz, por sua vez, convocava uma série de testemunhas, que atestavam os antecedentes familiares, as atividades e a reputação do candidato e de sua família. Especificamente, o questionário buscava estabelecer a "pureza de sangue" do candidato, certificando-se de que nem ele nem seus antepassados eram maculados com sangue "moro, mulato, judeu ou outra raça infecta" Além disso, as origens e a ocupação social da família também eram importantes, pois teoricamente só os homens cujos pais e

avós viviam sem recorrer ao trabalho manual, ao oficio de artesão ou ao comércio varejista podiam ingressar na magistratura. Excecões eram fritas se o pai ou avô do candidato tivessem sido membros de um senado da Câmara ou da Casa de Vinte-quatro, o órgão representativo das associações de artesãos, pois os membros dessas instituições gozavam de privilégio especial, que permitia a seus filhos ingressar no serviço real. Todos os testemunhos relevantes eram então encaminhados a Lisboa, onde, junto com um certificado de boa conduta de Coimbra, eram depositados na pasta do candidato. Se todos os depoimentos fossem favoráveis, o candidato era convocado para "ier" diante do Desembarco do Paço, ou, em outras palavras, para ser examinado em sua competência em direito. Um desempenho positivo completava o processo de admissão e, se fosse aprovado pelo Desembargo do Paço, o nome do candidato entrava numa lista de magistrados à espera de nomeação. O processo de investigação e exames, conhecido como "Leitura dos bacharéis" supostamente assegurava à Coroa magistrados profissionais competentes, cujas origens sociais eram relativamente homogéneas e em cuja ortodoxia religiosa e política se podia confiar. Como qualquer processo do género, este nunca alcançava plenamente seus objetivos. A magistratura nunca esteve livre de incompetentes e ladrões. O autor da Arte de furtar, em geral muito brando corn a magistratura, afirmava que a leninência educacional em Coimbra levava a ridículos desempenhos judiciais. Dizia ele que havia juizes tão ignorantes que "não sabem qual é a sua mão direita, mas [quando se tratava de] embolsarem com ela espórtulas e ordenados, como se fossem Bartholos e Cova-Rubias" sabiam distingui-la." De outro lado, o processo de recrutamento tinha relativo sucesso em assegurar que pelo menos um nível mínimo de competência fosse mantido. Muito embora a Coroa não vendesse abertamente cargos de magistrado, apadrinhamento e compra sem dúvida existiam clandestinamente na burocracia profissional. No entanto, o fato de que o recrutamento e a promoção dependiam, em última análise, de votação majoritária no Desembargo do Paço garantia certo grau de competência e autonomia profissional. Fossem quais fossem os desvios individuais, nem os reis nem os cortesãos jamais transformaram a magistratura portuguesa num bando de sicofantas apadrinhados. A questão da autonomia burocrática é crucial em nossa análise, pois, embora a Coroa previsse um corpo de funcionários dependente e submisso, o treinamento e as práticas operacionais da magistratura produziam acõcs c ati-

tudes independentes dos desejos reais, e por vezes contrárias a eles. Os tempos de estudante em Coimbra, onde era tão normal beber e brigar como decorar leis, costumavam resultar em coesão grupai e estreitas ligações pessoais, tanto quanto na aceitação da lealdade à Coroa. As experiências partilhadas nos tempos universitários, bem como antigas ligações de escola, reforçavam a inclinação da magistratura à autonomia, tendência essa que o Desembargo do Paço, como conselho semi-independeu te e totalmente profissional, também estimulava. Aqui, portanto, verificava-se um problema enfrentado por todos os impérios burocráticos. A burocracia, criada pela Coroa para alcançar objetívos reais, acabava adquirindo autonomia e poder para buscar a realização de seus próprios fins. Deixava de ser simples instrumento da Coroa. A magistratura, assim, dispunha de opções: podia perseguir os objetivos do rei e atuar como agente real, ou buscar seus próprios objetivos. Além disso, os magistrados também podiam servir de mediadores entre grupos conflitantes ou outras fontes de poder e, assim fazendo, formar uma grande variedade de alianças temporárias. Esse padrão se complica ainda mais, porque os magistrados, individualmente, podiam seguir, e de fato seguiam, programas de ação puramente pessoais. Nenhuma opção excluía as outras, e a magistratura podia, ocasionalmente, desempenhar dois ou mais papéis ao mesmo tempo, o que dava ao governo magistrático um caráter altamente complexo. A burocracia não existe sem burocratas. Para compreender as ações da magistratura precisamos compreender não apenas sua estrutura institucional e sua história coletiva, mas também os homens que nela serviam — como eram selecionados, e a natureza de sua história pessoal e profissional. Este tema será tratado com alguma profundidade, numa forma mais quantitativa, no capítulo 11, mas voltemo-nos, agora, para os homens que chegaram à Bahia em 1609, como magistrados do primeiro tribunal brasileiro. A nomeação dos dez primeiros magistrados lança alguma luz sobre o processo de seleção. De modo geral, o Desembargo do Paço e o Conselho da índia estavam de acordo quanto aos nomeados para os principais cargos do novo tribunal, mas, nos casos em que as opiniões divergiram, o Desembargo do Paço exerceu mais influência. Quando, por exemplo, o vice-rei de Portugal d. Pedro de Castilho patrocinou candidaturas ao tribunal, esses nomes quase não foram levados em conta, embora tivessem as qualificações necessárias. As indicações do vice-rei são interessantes por dois motivos. Primeiro, porque seu 82

fracasso em colocar favoritos no novo Tribunal Superior indica que o apadrinhamento, por si, era insuficiente para derrubar as decisões do Desembargo do Paço. Segundo, porque para apoiar seus candidatos o vice-rei enfatizara que eles eram solteiros e que esse era o estado civil preferido para os juizes do ultramar.12 O Conselho de Portugal sugeriu que dois cargos do Tribunal Superior fossem ocupados por homens que já serviam no Brasil. Filipe m aceitou a sugestão e designou Ambrósio de Siqueira e Francisco Sutil para o tribunal, como recompensa por serviços prestados e porque a "notícia que têm dos negócios daquelas partes a poderão dá-la aos outros que vão de novo".13 Os outros oito letrados selecionados em 1606 eram o dr. Gaspar da Costa (chanceler), Gaspar Pegado (juiz da Coroa e Fazenda), Afonso Garcia Tinoco (procurador da Coroa), Álvaro Pessoa, Manoel Pinto da Rocha, Sebastião Pinto Lobo (desembargadores extravagantes), Antão de Mesquita de Oliveira e Francisco da Fonseca (Leitão) (desembargadores dos agravos). Nem todos eles, todavia, chegaram ao Brasil.14 Juntos, esses homens constituíam um grupo competente, ainda que não particularmente notável, de advogados com formação universitária. Nove dos primeiros dez magistrados tinham experiência judicial anterior, e alguns voltariam do Brasil, posteriormente, para ocupar posições de considerável importância em conselhos metropolitanos. Seus antecedentes individuais e a história de sua nomeação oferecem um vislumbre revelador da magistratura portuguesa. Os conselhos e indivíduos encarregados da seleção dos magistrados tinham aprovado por unanimidade Gaspar da Costa como chanceler do Tribunal Superior, uma vez que ele se distinguira anteriormente em serviço. Costa servira como desembargador dos agravos no Tribunal Superior do Porto e na Casa da Suplicação. Obviamente, a Coroa escolhera um juiz experiente e respeitado para presidir o novo tribunal.15 Um homem com os talentos e as possibilidades de Gaspar da Costa não estava ansioso para deixar família, amigos e unia confortável posição em Lisboa pelas incertezas da vida colonial.16 A relutância dos magistrados da Coroa em servir nas colónias não era, entretanto, fenómeno novo, e a Coroa tinha desenvolvido uma política de recompensas e seduções para conseguir funcionários que quisessem trabalhar além-mar. Fazia parte dessa política prometer benefícios financeiros, honrarias e futuras promoções, como meio de convencer homens a servir na colónia. Como disse o rei no caso de Costa, os favores pro-

metidos eram "para torná-lo mais disposto a servir-me".17 Assim, Costa recebeu uma concessão de fidalguia, a dignidade de cavaleiro da Ordem de Cristo, o título honorário de conselheiro do rei e benefícios financeiros no total de 300 mil-réis.ls Como a Coroa suspeitara, a perspectiva de servir no Brasil não seduzia muito o experiente magistrado, mas ele já estava fazia tempo suficiente no judiciário para perceber os riscos de provocar o desagrado do rei. Portanto, em vez de recusar o emprego, tentou obter mais concessões, pedindo um seguro de vida de 80 mil-réis para a família e solicitando permissão para que o irmão assumisse o cargo de abade da vila das Chãs de Tavares, perto de Viseu.11* Esses favores adicionais lhe foram negados, embora alguns arranjos tenham sido feitos para sua família, e Costa não voltou a fazer pedidos, ante a declaração irritada do Conselho de Portugal de que "com isso e as mais mercês que se lhe tem feito se deve contentar e não fazer mais réplicas".20 Apesar de isso ter sido comunicado a Costa em julho de 1606 e de ele ter sido instado a partir com os primeiros ventos favoráveis, ele e os colegas só chegaram três anos depois.2'1 Esses atrasos eram comuns entre os recém-designados ministros de além-mar, que tentavam isentar-se do serviço colonial. Gaspar da Costa serviu apenas dois anos no Brasil, e por isso sua influência no novo tribunal foi limitada. Durante seu curto tempo de serviço, ele se tornou um magistrado altamente respeitado e considerado. Em 7 de março de 1610, a Câmara da Bahia escreveu ao rei dizendo que os êxitos do Tribunal Superior dependiam de Costa, "de cujo zelo, inteire/a e diligência pende por a maior parte o remédio de tudo e reputação da própria casa".22 O trabalho de Costa, entretanto, foi cedo interrompido por sua morte, em 1611.23 Afonso Garcia Tinoco representava os interesses da Coroa como procurador da Coroa e Fazenda.21 Nascido cm 1556, estudou na Universidade de Coimbra e recebeu o título de licenciado em 1585.25 Em 1606, então juiz de fora de Tomar, Tinoco aguardava confiantemente a promoção para o Tribunal Superior do Porto, quando chegou a amarga notícia da sua designação para o tribunal brasileiro. Como a maioria dos colegas, Afonso Garcia Tinoco não tinha o mínimo interesse no exílio cultural e profissional que o serviço brasileiro representava. Por isso, numa tentativa de escapar, submeteu uma petição informativa, e um tanto diverticla, resumindo seus dezoito anos a serviço do rei.26 Ressaltou que

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esses serviços nunca tinham sido recompensados, e que havia boas razões para que ele fosse dispensado. Primeiro, a viagem seria muito perigosa para a sua saúde, uma vez que era "muito doente do estômago" e inclinado a enjoar no mar. Além disso, tinha cinquenta anos e ainda era um homem solteiro à procura de uma esposa. A viagem compulsória acabaria com suas possibilidades matrimoniais em Portugal, e magistrados geralmente eram proibidos de casar-se no brasil. 27 Dezoito anos de serviço lhe tinham ensinado a explorar toda,s as possibilidades, e por isso na mesma petição cie requereu que, caso não fos>c dispensado, alguns privilégios c recompensas lhe fossem garantidos. Os favores solicitados por Afonso Garcia eram mais ou menos os que tinham sido concedidos a Gaspar da Costa. Na realidade, parte da relutância de Afonso Garcia em servir era provocada por inveja, pois ele estava havia mais tempo que Costa no serviço real e se sentia preterido. Esse ciúme e essa hostilidade profissionais eram comuns. Afonso Garcia também pediu à Coroa que permitisse seu retorno para Portugal depois de três ou quatro anos no Brasil, sem a necessidade de autorização adicional. Mais importante, pediu para servir como desembargador dos agravos, a exemplo do procurador da Coroa do Tribunal Superior do Porto. Com a estipulação de que serviria seis anos, a Coroa concedeu as duas últimas solicitações, mas deixou claro que não queria saber de mais escusas de Afonso Garcia, ou de qualquer um dos demais.28 Afonso Garcia Tinoco revelou-se um dos mais capazes e conscienciosos membros do Tribunal Superior brasileiro, muito embora achasse tempo para dcdicar-se a outros interesses, como o comércio de escravos. Em vez de seis, ficou catorze anos no Brasil, antes cie retornar a Portugal. Um voto unânime do Conselho de Portugal o elegeu para a Casa da Suplicação em 12 de agosto de 1623.29 Manoel Pinto da Rocha e Sebastião Pinto Lobo foram nomeados desembargadores dos agravos. Ambos se formaram em direito canónico na Universidade de Coimbra, Pinto Lobo em 1584 e Pinto da Rocha em 1589.30 As informações sobre a carreira de Sebastião Pinto Lobo antes de servir no Brasil são escassas, muito embora se possa afirmar que ele era juiz dos órfãos no Porto na época da sua nomeação para a Relação do Brasil. Seu serviço no Brasil não foi especialmente notável. Ao voltar para Portugal, serviu como provedor do Viseu, antes de tornar-se desembargador extravagante da Relação do Porto.11 Retirou-se da vida pública em abril de 1636.32

A carreira profissional de Manoel Pinto da Rocha é bem documentada. Foi um competente magistrado da Coroa que ascendera pelos canais normais da hierarquia judicial portuguesa. Começando como juiz de fora em Montemor-o-Novo em 1592, ele ocupou sucessivamente os cargos de corregedor de Almada, ouvidor de Setúbal e corregedor de Viana.33 Originariamente indicado para desembargador dos agravos, a Coroa o nomeou ouvidor-geral, e ele serviu nesse posto até 1620, quando se tornou chanceler do Tribunal Superior do Brasil. Manoel Pinto da Rocha morreu no cargo em 1621.34 Seguir a trajetória da vida pública de Antão de Mesquita de Oliveira é tarefa complicada, pela simples razão de que um contemporâneo seu tinha exatamente o mesmo nome, e era também advogado.35 Não obstante, pode-se afirmar que o Antão de Mesquita que trabalhou no Brasil era natural de Guarda, e se formou em direito canónico em Coimbra em 1601.36 Ao ser admitido no serviço real, tentou emprego no Tribunal Superior em Goa, apresentando sua petição pessoalmente na corte em Valladolid. Naquela época, não havia vaga na índia, mas o rei estava disposto a conceder ao jovem advogado um emprego no ultramar.37 Por isso, Antão de Mesquita figurou desde o início entre as nomeações para o Tribunal Superior do Brasil, e, diferentemente dos colegas, não tentou escusar-se, embora a Bahia não fosse, certamente, sua preferência. Foi nomeado desembargador dos agravos em 26 de novembro de 1609.38 No Brasil, Antão de Mesquita foi um dos mais zelosos membros do Tribunal Superior, e dos que mais mereceram a confiança da Coroa. Sua severidade era famosa, e não passou despercebida em Portugal.39 O bem-sucedido cumprimento de numerosas missões especiais resultou, em abril de 1622, em sua promoção para o cargo de ouvidor-geral, na vaga surgida quando Manoel Pinto da Rocha assumiu seus deveres de chanceler.40 Com a morte de Manoel Pinto da Rocha no ano seguinte, Antão de Mesquita foi promovido à cadeira de chanceler, e servia nessa posição quando os holandeses tomaram a cidade de Salvador em I624.41 Imediatamente depois da retomada da cidade, Antão de Mesquita envolveu-se numa disputa com d. Fradique de Toledo, general da armada luso-espanhola, sobre a jurisdição no inquérito judicial a respeito da queda da cidade. A Coroa ordenou a Antão de Mesquita que conduzisse as investigações, e considerava sua presença no Brasil tão necessária que ele foi dispensado de uma missão especial em Angola.42 Assim, de 1626 a 1630 ele permaneceu no Brasil como 86

ouvidor-geral. A Coroa, agradecida, recompensou seus vinte anos de serviço na colónia com um cargo na Casa da Suplicação em 17 de outubro de 1630.43 Ele morreu enquanto servia nesse cargo, no fim de 1636, ou começo de 1637.44 Francisco da Fonseca (Leitão), apesar de nomeado desembargador extravagante, assumiu como desembargador dos agravos em 1609. Nascido em 1572, Fonseca era de família nobre e tinha estudado direito em Coimbra. 45 Serviu como juiz de fora de Vouzela e no conselho de Lafões de 1600 a 1604 e foi submetido a uma residência sem nenhum dano à sua reputação.46 Em seguida serviu como juiz de fora de Miranda e estava empregado ali quando veio sua nomeação para o Tribunal Superior brasileiro. Ele também quis ser dispensado e alegou que sua má saúde — confirmada por atestado médico — e seu recente casamento fariam do serviço no Brasil um grande sofrimento. Fonseca, entretanto, não desejava dar a impressão de ser avesso a promoções, e com certa malícia sugeriu servir na Relação do Porto em vez de servir na Relação do Brasil.47 Sua petição recebeu a recusa de praxe. Nomeado para o Tribunal Superior brasileiro em 7 de março de 1609, acabaria voltando para Portugal, onde serviu no Porto e, depois de 1629, na Casa da Suplicação.48 Como dois dos nomeados originais nunca chegaram ao Brasil, e o plano de fazer dois magistrados que já se encontravam na colónia servirem no tribunal não pôde ser posto em prática, quatro homens que não figuravam nas discussões iniciais foram designados para o Tribunal Superior. Três deles — Rui Mendes de Abreu, Pêro de Cascais (de Abreu) e António das Póvoas — assumiram ativas funções no Tribunal Superior e se envolveram na maioria das disputas resultantes das atividades do tribunal. O quarto homem, Manoel Jácome Bravo, não se distinguiu no Brasil, mas tornou-se importante funcionário ao voltar para Portugal. Bravo era natural de Viana do Castelo. Obteve o título de bacharel em Coimbra em 1598 e ingressou no serviço real como juiz de fora de Monção, em 1600.49 Serviu por seis anos no Brasil como desembargador extravagante e voltou a Portugal em 1617, onde serviu primeiro no Tribunal Superior do Porto, e depois na Casa da Suplicação.50 Em 1628 Bravo já tinha provado o seu valor nesses cargos e em muitas tarefas especiais de natureza judicial, razão pela qual a Coroa o colocou na Câmara de Lisboa como vereador em 7 de junho de 1628.51 Em 1632, Manoel Jácome Bravo foi recompensado com um benefício na Ordem de Cristo, e

nomeado, no mesmo ano, guarda-mor da Torre do Tombo,52 Os conselheiros de Filipe iv o incluíram no relatório secreto preparado no fim dos anos de 1630 para a vice-rainha de Portugal, dona Margarida, mas naquela altura ele estava muito doente. Era considerado confiável pela facção espanhola em Portugal." .Por ter Gaspar Pegado sido incapaz de assumir o cargo no Brasil, outro magistrado de igual estatura foi designado para as importantes funções de juiz da Coroa. O homem escolhido foi Rui Mendes de Abreu, filho de um desembargador da Casa da Suplicação, que tinha apoiado Filipe n durante a crise de 1580.54 Ruí-Mendes servira como juiz de fora em Campo Maior, Portalegre, Coimbra e Mcrtola.55 Sua indicação para o Tribunal Superior do Brasil foi acompanhada de um hábito da Ordem de Cristo, a promessa de um posto na Casa da Suplicação e garantias de que, em caso de vaga na posição de chanceler, ele seria nomeado. Isso ocorreu em 16.11, com a morte de Gaspar cia Costa.56 Ao retornar para Portugal cm 1620, Rui Mendes dedicou grande parte do seu tempo à tentativa de obter privilégios que julgava lhe serem devidos por serviços prestados e por sua linhagem. Apesar de ter sido feito fidalgo da casa em 1626, a maioria das outras reivindicações permaneceu inatendida. 57 António das Póvoas e Pêro de Cascais, membros mais jovens do Tribunal Superior, serviram como extravagantes. O primeiro acabaria galgando grandes alturas na burocracia administrativa portuguesa, enquanto o último desapareceu no esquecimento oficial. Nascido em Midões, moço fidalgo de família ilustre, António das Póvoas ingressou no serviço real depois de sua graduação em Coimbra em 1608.58 Ã época da sua nomeação para o Tribunal Superior do Brasil, a Coroa lhe prometeu um cargo no Tribunal Superior do Porto quando voltasse. No Brasil, Póvoas demonstrou particular talento cm questões relacionadas ao Tesouro, e depois de sete anos de serviço voltou para a metrópole, onde, em 1621, se tornou membro da Casa da Suplicação. Foi feito membro do Conselho da Fazenda — o Conselho Colonial — cm l637.59Em 12 de dezembro de 1640, assumiu também as funções de provedor da Alfândega de Lisboa, em nome do sobrinho menor de idade.60 Depois da revolta de 1640, d. João iv reconfirmou Póvoas nos cargos e ele ajudou a financiar as primeiras campanhas no Alentejo contra os espanhóis. Apesar de ter conquistado posições importantes em Portugal e ser um reconhecido especialista em matérias fazendárias, no Brasil ele fora um magistrado particularmente irascível e inconstante, que se metia em altercações com pro-

prietários de terra, com a Igreja e até com outros membros do tribunal, especialmente o colega Pêro de Cascais.61 Pêro de Cascais, natural de Olivença, recebera o título de bacharel em Coimbra em 1596. Como dito, há poucas informações disponíveis sobre ele, em especial sobre o início da sua carreira. Nomeado para .servir no Brasil em 161)9, ele acabou desempenhando não apenas a Função de desembargador extravagante como a de ou v ido r-geral. Em dado momento, também atuou como provedor-mor interino da Fazenda. Pêro de Cascais assumiu um cargo no Tribunal Superior do Porto depois de retornar para Portugal, mas não parece ter ido muito longe naquele tribunal. Aposentou-se com uma pensão em Ió26.!'2 É provável que Pêro Cascais não tenha conseguido avançar no serviço real em razão da natureza controvertida de suas ações no Brasil e de seu notório gosto pela contenda. Os homens selecionados para servir no primeiro tribunal brasileiro e os que lhes sucederam representavam a classe dos letrados. Pelo menos nove dos dez primeiros tinham diploma em direito canónico ou civil obtido em Coimbra, e a maioria tinha pais, filhos ou outros parentes na profissão legal. Só o tempo e o curso dos acontecimentos diriam se a instrução e a experiência universitárias haviam podido dotá-los de esprit de corps e de uma visão ideológica comum. Uma coisa era certa: eles formavam uma raça distinta da dos réprobos "cristãos-novos", dos mestiços de fronteira e dos arrogantes senhores de engenho que povoavam o Brasil colonial. Apesar de os historiadores, favorecidos pela perspectiva da distância, serem capazes de ver nítidas distinções entre os letrados e os outros grupos da sociedade, as atitudes e aspirações dos magistrados reais geralmente assemelhavam-se às da velha aristocracia militar. Alguns desembargadores, como António das Póvoas e Francisco da Fonseca, alegavam descender de nobre estirpe, enquanto outros, como Rui Mendes de Abreu e Gaspar da Costa, ostentavam a cobiçada cruz da Ordem de Cristo. Mas, como letrados e magistrados reais, seus interesses nunca foram, simplesmente, os da velha aristocracia. Em muitos sentidos, permaneceram inextricavelmente ligados à Coroa e à manutenção da autoridade real. Razões de princípios e interesses de classe diferenciavam os letrados de outras elites da sociedade. A Coroa escolhia para o serviço brasileiro homens de talento comprovado. As biografias desses homens os apresentam como cristãos-velhos, advogados

de meia-idade, ascendendo na profissão, respeitáveis mas não eminentes. A maioria tinha medo de que a nomeação para o Brasil os privasse de melhores e mais prestigiosos cargos continentais, e esse temor talvez também estivesse por trás de algumas de suas ações subsequentes no Brasil. Os magistrados do primeiro Tribunal Superior e muitos de seus sucessores demonstravam profundo apego por privilégios de precedência e formalidades no trato, o que reflete a importância por eles atribuída à hierarquia profissional. Sua insistência constante em receber demonstrações de respeito e deferência de outros e seu comportamento insolente irritavam os menos refinados mas não menos sensíveis habitantes da colónia. Apesar dessas diferenças, o poder e o prestígio dos magistrados e o favoritismo que lhes demonstrava a Coroa tornaram a aliança com a magistratura particularmente atraente para os senhores de engenho coloniais, que buscavam fortalecer sua posição de preponderância económica com o status social c a legitimidade da magistratura, A força do Tribunal Superior, a influência e as ações de seus membros e os esforços feitos por outros grupos e instituições para incorporar essa nova fonte de poder aos padrões sociopolíticos existentes constituem importante parte da história do Brasil nas primeiras décadas do século xvn. Os padrões estabelecidos entre a magistratura e a sociedade no período de 1609 a 1625 prolongaram-se pelo século xvra e tipificaram a natureza dessas relações.

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SEGUNDA PARTE: A RELAÇÃO NO BRASIL, 1609-26

5. Bahia: o meio social

Todos, os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da Bahia. Gregório de Matos (c. 1670) Aqueles do Rio de Janeiro e das capitanias do norte não são nem de. perto tão efeminados e corruptos quanto os da Bahia de Todos-os-Santos, que estando num clima favorável à indolência e libertinagem, a capital, um dos povoados mais antigos, é, sob todos os aspectos, pior do que todos os outros.

EdmundBurke(1758) Durante o primeiro século de existência do Brasil como colónia europeia, vários grupos e instituições estabeleceram padrões de controle sobre os fatores sociais, políticos e económicos da vida brasileira. Era de esperar que a intrusão de uma nova força, um poderoso órgão judicial e administrativo, desestabilizasse alguns desses padrões e provocasse a oposição de quem sentisse seus interesses contrariados. Surpreendentemente, porém, houve fraca oposição colonial à criação do Tribunal Superior em Í609. Na verdade, a Relação parece ter sido bem recebida pela maioria dos elementos da população.

As razoes dessa atitude eram complexas. Certamente, o antigo desejo colonial de melhorar a qualidade da justiça não pode ser ignorado. Como vimos, sugestões para o estabelecimento de um tribunal brasileiro tinham sido apresentadas já em 1562, mas os acidentes e a inércia administrativa asfixiaram o projeto. Moradores da colónia, entretanto, nunca desistiram da ideia, e depois de 1580 descobriram na União Ibérica novas maneiras de justificar suas reivindicações. Após o reconhecimento formal pelo Brasil da soberania dos Habsburgo, proclamada pela Câmara municipal de Salvador no Dia da Assunção (19 de maio) de 1582, brasileiros experientes adotaram a comparação como tática persuasiva.1 A América Espanhola oferecia excelente contraste, e os colonos brasileiros citavam as audiências do Peru e da Nova Espanha como modelo a ser seguido pelo Brasil.2 É impossível dizer se tal estratégia surtiu efeito, mas em junho de 1609 os primeiros magistrados da Relação da Bahia desembarcaram no cais de Salvador. O governo magistrático chegara ao Brasil. O mundo em que os magistrados pisavam era o mundo excitante e por vezes anárquico de uma colónia europeia em formação. Muitos dos problemas enfrentados pela burocracia magístrática no Brasil eram de natureza especificamente brasileira, de maneira que, para compreender as ações subsequentes da Relação e seus juizes, precisamos primeiro examinar o tecido da sociedade na qual eles operavam. Se o Império colonial português contribuiu de alguma forma para o interesse de Filipe n na conquista do trono de Portugal, foi a índia, e certamente não o Brasil, que estimulou seu empenho. Embora mostrasse sinais de crescente importância económica, especialmente após 1570, o Brasil, oitenta anos depois de descoberto, continuava sendo os fundos do Império. Sua escassa população europeia espalhava-se pelo litoral ou concentrava-se em torno de poucos nódulos urbanos, vulneráveis a ataques de índios hostis e de invejosos rivais europeus. Diferentemente dos vizinhos da América Espanhola, o Brasil não podia se gabar de universidades ou de imprensa e tinha poucos edifícios nobres e quase nenhuma riqueza mineral visível. Era uma dependência colonial no sentido clássico, fonte de matérias-primas e de produtos agrícolas tropicais. De início, o pau-brasil, usado para tingir tecidos, fora o maior produto de exportação, mas, embora em algumas regiões, como Pernambuco, a exportação dessa madeira continuasse sendo uma importante atividade económica ao longo do século xvni, o comércio de pau-brasil não podia, por si só, sustentar a colónia. O 94

Brasil representou, até o fim do século xvi, déficit para o Tesouro real, consumindo mais em salários e em gastos com defesa do que rendia em tributos.3 As relações comerciais dentro do Brasil baseavam-se no escambo, não apenas entre brancos e índios, mas entre os portugueses também.4 Foi, na verdade, a união com a Espanha que trouxe moedas peruanas para o Brasil, depois de 1585, e a dependência dessa fonte de dinheiro ficou clara quando, em 1640, a união luso-espanhola chegou ao fim e os portugueses no Brasil foram novamente reduzidos à prática do escambo.5 As sementes do futuro, entretanto, já estavam lançadas na forma da cana-de-açúcar importada de São Tomé no começo do século xvi. Nas terras férteis da costa brasileira, especialmente na região de Pernambuco e no preto massapé do Recôncavo Baiano, a cana-de-açúcar começou a prosperar. O aperfeiçoamento das técnicas de produção, a legislação favorável e o crescente mercado europeu ajudaram a desenvolver a agroindústria brasileira do açúcar. Pela altura de 1570 os verdes canaviais tinham transformado a costa nordestina do Brasil na terra do açúcar. O predomínio dessa cultura e a natureza de sua produção exerceram considerável influência na formação da sociedade, nos padrões de vida e na administração do governo no Brasil colonial. A produção do açúcar estimulou uma ampla variedade de atividades e serviços. A cana-de-açúcar era uma cultura de plantation, que crescia em grandes fazendas e era processada em engenhos pertencentes a grandes proprietários de terra. A força de trabalho usada na maior parte dessas fazendas era suprida por escravos, inicialmente pela população indígena e depois por africanos trazidos da costa da África Ocidental e de Angola. A necessidade de escravos e de suprimentos da Europa fomentou um ativo comércio marítimo e navios voltavam para a Europa carregados de pau-brasil e de produtos agrícolas da colónia. Mais do que qualquer outra mercadoria, entretanto, o açúcar constituía o cerne económico do Brasil. A maior parte das receitas da colónia vinha dos tributos impostos ao comércio de açúcar e de escravos, fonte de renda que financiava a estrutura administrativa da colónia. O açúcar influenciou até a localização das cidades do Brasil, em certa medida. Recife, Salvador da Bahia e Rio de Janeiro eram portos, centros urbanos situados em baía ou enseada para facilitar a chegada de navios trazendo colonos, escravos e mercadorias europeus, e o fretamento desses mesmos navios com o açúcar da terra. Era nessas cidades que artesãos, comerciantes,

médicos, advogados e funcionários do governo ofereciam seus serviços à população, de modo que era natural que o Tribunal Superior se estabelecesse numa delas. Pois o Brasil do século xvn, como sociedade agrícola e rural, dependia inteiramente de seus portos costeiros. No fim do século xvi o complexo escravos^cana-de-açúcar tornara-se a força motriz das colónias portuguesas no Atlântico Sul e, suplementado pelo necessário comércio de artigos europeus, fazia do Brasil uma região atraente para as transações legais e ilegais. Navios de carga portugueses, pequenas caravelas superlotadas, transportavam açúcar brasileiro para Lisboa, o Porto e outros portos portugueses, geralmente ao norte do rio Tejo. Lisboa, já um importante entreposto europeu, tornou-se o centro dos produtos brasileiros, adquiridos por comerciantes ingleses, alemães ou italianos e despachados para seus respectivos países. Um navio como o inglês Sea Flower, que partia de Lisboa para Londres em 1608, levava não apenas cortiça e madeira de Portugal e especiarias da índia, mas também 29 "cargas" de pau-brasil e 36 caixotes de açúcar do Brasil.5 Do mesmo modo, o comércio direto com o Brasil não se limitava a cascos portugueses. O livro de contabilidade de Miguel Dias de Santiago, comerciante que despachou açúcar na Bahia de 1596 a 1598, relacionava navios provenientes de Ragusa, Copenhague e Maímo transportando açúcar do Brasil. 7 Navios holandeses, ingleses e hanseáticos navegavam cm nome de comerciantes portugueses, para transportar produtos brasileiros. Em 1621, havia de dez a quinze navios dos Países Baixos Unidos exclusivamente dedicados ao comércio com o Brasil e 29 refinarias de açúcar na Holanda. Naquela época, cascos holandeses transportavam de metade a um terço do comércio com o Brasil.8 Embora as autoridades em Portugal lutassem para manter o comércio brasileiro sob controle metropolitano, exigindo que todos os navios pagassem taxas em Lisboa, havia, entretanto, comércio direto com outros países europeus.9 Comerciantes ingleses especializados em comércio ibérico buscavam estabelecer padrões diretos de tráfego marítimo com o Brasil. A presença do Minion em Santos em 1580 ou do MerchantRoyalcm Olinda em 1583 testemunhava esse desejo.10 A relutância dos moradores locais em negociar com estrangeiros e a flutuação das relações internacionais, entretanto, tornavam o comércio direto com o Brasil praticamente impossível para não ibéricos. Mas aquilo que não poderia ser obtido por métodos pacíficos às vezes era obtido à força. 96

Desde o começo dos anos de 1580, corsários ingleses, franceses e holandeses navegando com a bandeira de d. António, o pretendente português, saqueavam navios ibéricos. Depois de 1585, os ataques se intensificaram, com os ingleses usando o pretexto de capturas espanholas de produtos ingleses para suas depredações marítimas. Entre 1580 e 1600, o Bra.sil exportava cerca de 6400 toneladas de açúcar por ano, e os navios envolvidos nesse comércio eram uma presa fácil e atraente para os inimigos da Espanha. 11 Esses navios de carga brasileiros eram os trofeus capturados com mais frequência peios ingleses, qut, entre 1588 e 1591, tomaram 34 deles.12 Mas os navios carregados de açúcar não eram o único alvo. Navios espanhóis, portugueses e italiano:, transportando mercadorias europeias e escravos africanos também eram objeto de ataques. Por exemplo, o Ponte, um cargueiro veneziano, caiu nas mãos dos ingleses com uma carga de vinho e azeite a caminho do Brasil13 Na segunda década do século xvn, as perdas foram espantosas. Entre 1624 e 1626, os portugueses perderam ] 20 navios, com 60 mil caixas de açúcar e outros produtos — cerca de um terço do seu comércio com o Brasil.14 Essas dificuldades no comércio atingiam a infraestrutura colonial, e as incertezas do negócio fizeram desabai o preço do açúcar, obrigando fazendeiros a abandonar seus engenhos. Os comerciantes brasileiros, em face do perigo das perdas marítimas, tentaram proteger sua posição, comprando açúcar ao preço mais baixo possível ou investindo também nas diversas fases de produção dessa mercadoria. Os rivais europeus de Espanha e Portugal não se contentavam com a captura dos transportadores de mercadorias, e corsários constantementc ameaçavam a costa do Brasil. Piratas como James Lancaster, que tomou Pernambuco por um mês em 1585, e Paul Van Caarden, que atacou a Bahia em 1604, tornavam a vida e o comércio incertos para os portugueses no Brasil. Por isso são temas constantes na documentação desse período a manutenção da milícia, u construção de fortificações e o suprimento de armas, especialmente canhões para a defesa. Os ataques e o medo dos ataques determinaram boa parte das atividades dos brasileiros no século xvn, e se tornaram objeto de preocupação de órgãos administrativos, como a Relação. Além disso, a questão da defesa, corno um todo, passou a ser cada vez mais motivo de disputas entre moradores do Brasil e o governo metropolitano, assim como entre os espanhóis, que pensavam em termos estratégicos e imperiais, e os portugueses, cujos horizontes eram menos amplos e mais mercantilistas.15

A cidade de Salvador da Bahia de To dos-o s-Santos, capital do Brasil, era o mais importante terminal do comércio transatlântico e alvo comum dos açanv barcadores europeus. Ao mesmo tempo, a Bahia era um entreposto essencial do comércio costeiro. O açúcar da periférica Ilhéus geralmente chegava à Bahia, de onde era exportado para a Europa, enquanto a mandioca e alimentos do Rio de Janeiro também eram artigos comuns nos embarcadouros de Salvador.16 Miguel Dias de Santiago tomou nota de remessas de tecido, ferro e outras mercadorias europeias da Bahia para o Rio de Janeiro e o Espírito Santo.17 Salvador ficava efetivamente no eixo das rotas horizontais transatlânticas de comércio e do padrão vertical do intercâmbio comercial costeiro. Parte desse padrão comercial costeiro ligava a Bahia com a colónia espanhola no rio da Prata. A União Ibérica criou novas oportunidades de negócio entre o Brasil e as colónias hispano-americanas, e pela altura de 1584 navios portugueses frequentavam Buenos Aires. A capacidade dos portugueses de fornecer escravos negros representava irresistível atração para os habitantes das colónias espanholas, que esperavam assegurar a mão de obra necessária para as minas de Potosí e até manifestavam o desejo de dispensar a população indígena desse trabalho.18 Empreiteiros portugueses tomaram a si a responsabilidade de suprir as necessidades de mão de obra dos hispano-americanos. Buenos Aires deu permissão para um limitado volume de comércio com o Brasil, mas, embora esse comércio legal fosse estritamente controlado, as possibilidades de comércio ilegal continuavam a existir. Entre 1606 e 1626, verificou-se um próspero contrabando entre o Brasil e Buenos Aires, que conduzia escravos negros para o porto espanhol, enquanto a prata peruana encontrava meios de chegar ao Brasil.19 O comércio de contrabando evitava taxas e impostos nas duas pontas, fraudando o Tesouro de ambas as Coroas. Os governantes Habsburgo de Espanha e Portugal tinham evidentemente enorme interesse em conter esse intercâmbio ilegal, no qual funcionários alfandegários e do Fisco estavam frequentemente envolvidos. A supressão do comércio ilegal entre o Brasil e Buenos Aires e de outras irregularidades contra o Tesouro foi, na verdade, uma das tarefas que a Relação assumiu durante sua existência na Bahia. No Tribunal Superior, um membro, o juiz da Coroa e Fazenda, era especificamente designado para combater tais infrações. A comunidade mercantil do Brasil, concentrada nos portos do Recife, Rio de Janeiro e especialmente Salvador, ainda não era a poderosa força política em

que se transformaria no século xvni, mas pela altura de 1600 suas lojas e seus armazéns formavam parte essencial da vida brasileira, de importância óbvia numa colónia tão orientada para a exportação de produtos agrícolas. Não está claro se a comunidade mercantil tinha uma identidade coletiva naquele período, ou se desejava alcançar objetivos comuns. Certamente existiam distinções entre varejistas e os agentes de grandes firmas de importação-exportação, mas devia haver uma comunidade de interesses capaz de permitir algum grau de cooperação entre esses elementos sociais díspares.20 As funções económicas e os laços com grupos comerciais na metrópole faziam dos comerciantes brasileiros uma fonte potencial de conflito para a Relação, mas a oposição mercantil . ao tribunal permaneceu muda. Primeiro porque, apesar de muitos comerciantes não simpatizarem com a interferência judicial em suas lucrativas atividades de contrabando, reclamações estridentes serviriam apenas para chamar atenção para o comércio clandestino. E era fato que a Relação representava uma extensão do poder real, e talvez um aumento da proteção real da costa e do comércio da colónia. Tal posição beneficiaria os setores comerciais da colónia. Os comerciantes, portanto, tinham algo a ganhar e algo a perder com a chegada da Relação, e não podiam se queixar abertamente das possíveis perdas. Salvador não só abrigava uma ativa comunidade mercantil, mas também era o centro nervoso da administração do Brasil e a mais importante área urbana da jovem colónia. Como sede do governo, do bispado e, com o tempo, da Relação, a cidade merecia o título de "cabeça do Brasil". A escolha de Salvador como capital da colónia não tinha sido aleatória. Embora um cronista achasse que d. João m, o rei português, tinha escolhido a Bahia por causa da "fertilidade da terra, bons ares, maravilhosas águas e da bondade dos mantimentos dela", houve outras considerações.21 O proprietário original da capitania, Francisco Pereira Coutinho, fora incapaz de lidar com os abusos dos colonos contra os índios tupinambás ou com os ataques retaliatórios decorrentes. Apesar de uma pequena povoação ter sido construída em Vila Velha, com dois engenhos, a pressão da hostilidade dos índios e as disputas de facções obrigaram Pereira Coutinho a buscar refugio em Ilhéus. Enquanto tentavam voltar para a Bahia, Pereira Coutinho e seus companheiros naufragaram e foram devorados pelos índios. Assim, depois do pagamento aos herdeiros de Pereira Coutinho, a capitania voltou a pertencer à Coroa.22 Enquanto em Pernambuco os Albuquerque Coelho exerciam amplos

poderes como proprietários e no Rio de Janeiro o clã dos Correia de Sá reinava, a Bahia, livre de proprietário, apresentava menos dificuldades de jurisdição para a Coroa. Por isso, Tomé de Souza chegou em 1549 com instruções explícitas para o estabelecimento de uma cidade na baía de Todos-os-Santos.23 Uma pomba da paz foi escolhida como símbolo da cidade — escolha por demais imprópria, uma vez que a história da cidade se caracterizaria por dissensões internas e ataques estrangeiros. As opiniões contemporâneas sobre os méritos da localização da cidade divergiam, pois Tomé de Souza estabeleceu a nova povoação não em Vila Velha, a antiga colónia de Pereira Coutinho ; mas num lugar no topo de uma ladeira íngreme corn vista para a baía de Todos-os-Santos.24 A nova cidade, como suas equivalentes portuguesas e brasileiras, era medieval na aparência. As ruas tortas, os becos estreitos e as muralhas de proteção lembravam as cidades-fortaíezas de Portugal e, apesar de um rudimentar plano geométrico ter sido imposto, o terreno irregular criou seu próprio desenho. No fim do século xvi, a praça central continha os prédios do governo civil, o palácio do governador, a prefeitura e a cadeia, a alfândega e um armazém real. Os baianos coloniais tinham reputação de piedosos e igrejas e outros edifícios religiosos pontilhavam a cidade. Além da catedral, a Sé do Bispo do Brasil, a cidade também abrigava mosteiros de carmelitas, beneditinos, capuchinhos da Província de Santo António e a igreja e o hospital da Misericórdia, a irmandade laica mais impor-. tante do Brasil Os jesuítas também estavam presentes. A maior parte dos seus esforços se concentrava, nessa época, na conversão dos índios, mas seu colégio (escola secundária) na Bahia era, sem dúvida, a melhor instituição de ensino da colónia. As ordens religiosas mantinham seus estabelecimentos com canaviais, fazendas e rebanhos nas áreas circunvizinhas. 25 v O comércio, e não a religião, dominava a cidade baixa. As docas de Salvador, que ficavam no sopé do penhasco, eram o centro da vida marítima da capitania. A zona portuária era dominada por marinheiros, escravos e estivadores c a área provavelmente fervilhava com a rnesrna atividade que existe hoje. Por volta de 1609, Salvador ainda não era a grande e opulenta cidade que viria a ser no século xvm, mas destacava-se como o centro administrativo e o entreposto marítimo da colónia.2* H difícil estimar o tamanho da população da capitania da Bahia nos primeiros anos do século xvu. Gabriel Soares de Sousa, o melhor cronista contem-

porâneo, calculava que havia oitocentas famílias só na cidade, o que, mult ipiicado por cinco, daria uma população urbana de 4 mil brancos. O padre Cardim estimava em 2 mil o número de famílias da capitania, ou cerca de 10 mil brancos. O número de escravos e negros libertos ainda é impossível de avaliar, mas àquela altura eles já pareciam ser um elemento numeroso e desordeiro da sociedade. 27 A função de Salvador como.centro administrativo e religioso, entretanto, resultava numa maior proporção de brancos relativamente as outras áreas da capitania ou da colónia. Além disso, os membros da aristocracia açucareira dos distritos próximos geralmente mantinham, residências na cidade. Tratava-se de um hábito ditado pela necessidade de administrar as remessas de navios e os arranjos comerciais e pelos costumes sociais. Como a ostentação de riqueza era aceitável para os ricos, aparecer na cidade para mui>trar jóias, cavalos, escravos e roupas finas desempenhava uma função social. A falta de fontes demográficas adequadas torna qualquer análise da composição populacional baiana muito frágil. Estudos baseados nos registros da Inquisição de 1591 -3 indicam que o maior grupo de imigrantes portugueses no Brasil vinha do norte de Portugal, e que Lisboa e a província do Alentejo também forneciam números consideráveis.2* isso era também verdade para a Bahia, onde no entanto havia um grande contingente das ilhas atlânticas e uma porcentagem maior de brasileiros nativos que em Pernambuco. 24 Na Bahia, a predominância das citadas regiões era reforçada pela grande intensidade cio tráfego mercantil entre a Bahia» Lisboa, Porto e Viana do Castelo. Os portos do Algarve — Faro, Tavira, Lagos — aparecem raramente nos livros de contabilidade contemporâneos. 30 A prevalência demográfica de homens na população portuguesa era especialmente marcante na Bahia, e muitos dos que se casavam em Portugal vinham desacompanhados de suas mulheres. 31 O número de órfãs enviadas pela Coroa para corrigir a situação era mínimo, muito embora algumas das moças e prostitutas destinadas à índia fossem desviadas para o Brasil.32 Muitos colonos, tanto homens como mulheres, eram degredados ou exilados que, por diversas razões, tinham sido mandados para o Brasil. Apesar de muitos desses exilados serem judeus convertidos que tinham voltado a adotar a antiga fé, nem todos os degredados eram semitas errantes, e o Brasil continuou a ser, durante o século xvm, lugar de despejo de homens como Francisco Pereira, o chantre de uma igreja em Valença que as cortes exilaram no Brasil durante cinco anos por certa "desordem ocorrida num convénio de freiras".33

É correto dizer que os colonos portugueses provinham das duas pontas do espectro social, e vinham, predominantemente, das regiões de Portugal que sempre forneceram o maior contingente de imigrantes: Minho, Trás-os-Montes, Estremadura e Alentejo.34 Como o pequeno número de europeus de outros países também presentes na população, a maioria dos imigrantes portugueses no Brasil esperava encontrar oportunidades de avanço económico e ascensão social. Essa sociedade coalhada de oportunistas apresentava consideráveis problemas para as instituições da lei e da ordem. Um elemento da população merece atenção especial, pois, apesar de português, constituía um grupo distinto — mas nem sempre fácil de distinguir — na ' comunidade. A conversão forçada de todos os judeus que viviam em Portugal em 1497 tinha produzido número considerável de "cristãos-novos", muitos dos quais não eram propriamente ardorosos em sua fé recém-adotada.35 Embora a Coroa de vez em quando tentasse limitar a emigração de cristãos-novos para o Brasil e outros territórios ultramarinos, havia pouco entusiasmo nessas tentativas. O Brasil, na verdade, tornou-se lugar favorito para o desterro dos apóstatas cristãos-novos.36 A conexão com a Espanha depois de 1580 aumentou o número de imigrantes cristãos-novos no Brasil, mas, depois da primeira visita do Santo Ofício à colónia, em 1591-3, muitos desses judeus secretos fugiram para Buenos Aires, e de lá para o Peru.37 Grande parte do comércio de contrabando entre o Brasil e o rio da Prata estava nas mãos de cristãos-novos portugueses. Na Bahia, os cristãos-novos viviam bem integrados à população e à vida económica da capitania, onde participavam não apenas dos aspectos comerciais, mas também dos aspectos agrícolas da produção de açúcar. A política portuguesa era discriminatória. Reservava o ingresso nas ordens militares, a concessão de fidalguia e a maior parte dos cargos no governo para cristãos-velhos, não maculados com "a raça de judeu, mouro ou mulato".33 Esses mesmos preconceitos vigiam no Brasil; por exemplo, Francisco Lopes, candidato ao cargo de ouvidor da Paraíba, foi pretendo por ser cristão-novo e a Câmara do Rio de Janeiro ilegalmente destituiu um ouvidor pela mesma razão.39 Exceções a essa regra geral podiam ser abertas, porém, e não eram incomuns. A mácula dos antecedentes judaicos podia ser ignorada em troca de serviços prestados, especialmente aqueles de natureza financeira ou militar. Um bom exemplo baiano de como o "defeito" podia ser ignorado é o caso de Manuel Serrão Botelho, filho de Lope Botelho, cristão-novo que servira com d. Sebastião

na África. Ele requereu um cargo na Bahia e foi atendido, porque, "embora fosse UIn cristão-novo, havia se casado com uma cristã de velha cepa e demonstrara desejo de ser assim considerado. Tanto ele quanto seu pai não mais se davam com cristãos-novos e ambos eram homens muito honrados".40 A população em eeral, entretanto, desprezava os cristãos-novos e olhava com desconfiança as honras que lhes eram concedidas. Um observador espanhol comentou que "fidalguia é uma nobreza que em Portugal se estima muito quando cai sobre sangue limpo, mas pouco para essa gente".41 O antissemitismo no Brasil, especialmente em tempos de adversidade, poderia atingir extremos particularmente virulentos, mas, para crédito de Portugal, numa época de intolerância religiosa, havia sempre aqueles para quem os pecados dos pais não deveriam recair sobre os filhos.42 Geralmente, os cristãos-novos eram, em termos oficiais, cidadãos de segunda classe, que inspiravam antipatia e desconfiança, e eram discriminados por seus compatriotas. Na Bahia, entretanto, constituíam importante elemento da sociedade, integrados na população e exercendo uma influência relativamente grande em certos setores da economia. Os cristãos-novos estavam ligados à agroindústria canavieira, e registros da Inquisição revelam ainda sua participação como proprietários de engenho, agricultores arrendatários e comerciantes. Bem relacionados com seus correligionários em Portugal, Holanda e nas cidades hanseáticas, os cristãos-novos brasileiros que eram criptojudeus participavam ativamente do comércio e da produção do açúcar. A sinagoga clandestina na Bahia estava situada, de fato, não na cidade de Salvador, mas no distrito canavieiro de Matoim.43 Para os cristãos-novos na Bahia, e sobretudo para o grande setor mercantil desse grupo, o estabelecimento da Relação deve ter sido pouco auspicioso. Certamente, o controle do contrabando com Buenos Aires, que a Relação poderia pôr em execução, contava como desvantagem. Além disso, os magistrados da Relação eram cristãos-velhos de antecedentes imaculados e nenhum vestígio de escândalo fazia supor que qualquer dos desembargadores pudesse ser judeu. Com efeito, em 1623, pensou-se em fazer da Relação, por causa do seu prestígio e da sua pureza religiosa, um possível conselho permanente da Inquisição.44 Esses representantes magistráticos de uma política real discriminatória, portanto, significavam, para os cristãos-novos da Bahia, controles mais estritos e condições mais difíceis. O papel da Relação no exame da coleta dos tributos 103

MAPA 4

A BAÍA DE TODOS-OS-SANTOS E SEU RECÔNCAVO

s* Cachoeira

3? Fises trabalhadores livres — alguns eram claramente mestiços ou mulatos serviam como tanoeiros, calafates, engradadores, vaqueiros e pescadores, além cie mecânicos e capatazes. Um capataz podia ganhar até 50 mil-rcis por .mo, na época um valor substancial.00 O mestre de açúcar, empregado encarregado dn dircção do plantio e do processamento, tinha tanta importância que eiVrnuito mimado" pelo senhor de engenho e podia ganhar até 100 mil-réis por ano, mais alojamento e comida.67 Diferentemente dos lavradores, os assalariados pareciam ter poucas oportunidades de conquistar um cargo público. Dentro da estrutura socioeconômica básica de senhores e escravos, portanto, existiam outros elementos importantes da sociedade que procuravam melhorar sua posição por intermédio dos canais judiciais e políticos do governo. Determinar ate que ponto a Relação era receptiva aos desejos desses vários grupos é uma forma de avaliar seu impacto no Brasil. A aristocracia do açúcar era, sern dúvida, o elemento mais importante da sociedade, por isso estava em posição de sofrer grandes perdas com a perturbação nos padrões sociopolíticos que a Relação causava. Antes, a distância e as dificuldades de recorrer a Portugal punham os ricos do Brasil em situação privilegiada. Laços de sangue e amizade mantinham muitos casos fora dos tribunais, e aqueles que recorriam a Portugal geralmente acompanhavam seus apelos de um engradado de açúcar, para acelerar as rodas da justiça e adoçar a disposição de magistrados venais. Quem não tivesse açúcar para mandar, ou parentes bem situados em Portugal para defender seus interesses, achava a justiça lenta e cara.68 A presença do Tribunal Superior na Bahia, portanto, representava para os habitantes mais pobres da colónia oportunidades de reparações judiciais que antes lhes eram vedadas. Ao mesmo tempo, a Relação significava uma ameaça à posição dominante da aristocracia açucareira. Apesar disso, foram os fazendeiros e os meeiros os que mais ficaram satisíeitos com a chegada da Relação à Bahia. Sua posição, como expressa pela Câmara municipal de Salvador, era a de elogiar o Tribunal Superior como protetor da "vida, fazenda, honra e liberdade", contra as espoliações de governa

dores venais e magistrados vigaristas, que tinham conspirado para subverter a justiça. A Câmara, na realidade, desejava "beijar as reais mãos", pelo favor único de estabelecer a Relação na Bahia. O elogio dos vereadores tornou-se hiperbólico quando eles aplaudiram a Relação como obra de Deus, que dava ao rei, como conservador do Brasil, glória igual à que dera a seus ancestrais como fundadores da colónia.69 Embora a proteção contra excessos administrativos tenha contribuído para a recepção favorável do Recôncavo à Relação, parece ter havido outros motivos relacionados à natureza comercial do Brasil colonial. O nexo das relações entre comerciantes e fazendeiros estava na natureza e nas exigências da produção do açúcar — e também a causa dos conflitos entre eles. A dependência do trabalho escravo impunha um extraordinário fardo financeiro ao setor açucareiro. Tanto os donos de engenho como os meeiros dependiam, cada vez mais, da constante importação de escravos africanos para o extenuante trabalho do cultivo. Como já observado, a importação de escravos africanos implicava consideráveis despesas. As condições de trabalho e a suscetibilidade dos africanos a doenças no novo ambiente de enfermidades constantemente desfalcavam a força de trabalho e criavam uma perene necessidade de mais escravos da África. Importação, doenças, excesso de trabalho e mais importação constituíam o círculo fechado da escravidão brasileira. Além disso, enquanto se expandia, no começo do século xvn, a produção de açúcar gerava uma necessidade cada vez maior de mão de obra. Para fazer as reposições necessárias, os senhores de engenho e os meeiros procuravam as casas comerciais de Salvador em busca de empréstimos ou de crédito.70 Os comerciantes forneciam escravos ou outros artigos, contra a garantia das colheitas vindouras da cana-de-açúcar. Os comerciantes estavam, então — pelo menos segundo os fazendeiros —, lucrando "cruelmente" com os empréstimos e hipotecas e forçando o pagamento a taxas exorbitantes. Diante dessa situação, o setor açucareiro tinha implorado à Coroa uma moratória de três anos para pagamento das dívidas e a criação de um sistema regulado de pagamento, com valor fixo sobre o preço do açúcar, a fim de que os comerciantes deixassem de manipular o mercado e receber o açúcar a preços reduzidos. Os fazendeiros e seus dependentes tinham pedido a intercessão real em seu benefício, e para eles a Relação era a resposta da Coroa às suas dificuldades. Por conseguinte, estavam curiosamente dispostos, e até ansiosos, a apoiar uma instituição que tinha o potencial de enfraquecer seu domínio social e no

político. Talvez a elite canavieira esperasse que certos mecanismos sociais funcionassem como limitadores da independência dos magistrados e tornassem a Relação receptiva aos interesses específicos do setor açucareiro. Foi o que veio de fato a ocorrer no fim do século xvii, mas, antes que tais mecanismos pudessem operar plenamente, uma crise iria expor uma falha nos cálculos dos fazendeiros. Os barões do açúcar tinham ignorado o fato de que a Relação representava os interesses da Coroa, e não os da aristocracia local; apesar de o tribunal poder apoiar os fazendeiros contra os comerciantes, não havia motivos para acreditar que, num conflito entre os primeiros e a Coroa, a Relação hesitasse em apoiar a Coroa. Esse conflito se apresentou na forma da controvérsia sobre a escravização dos índios, imediatamente depois da chegada da Relação. Dentro de pouco tempo seria pequeno o número de fazendeiros que ainda queriam "beijar as mãos do rei" por ele ter mandado a Relação para o Brasil.

6. Juizes, jesuítas e índios

Hei por bem e mando que todos sejam postos em sua liberdade; e que se tirem logo do poder de quaisquer pessoas em cujo poder estiverem. Lei de 30 de julho de 1609

Um ano depois da chegada da Relação ao Brasil, surgiu uma situação que ameaçava a posição dos magistrados e a autoridade da Coroa. A crise girava cm torno da complexa questão da escravidão indígena, um problema que envolvia os interesses dos colonos, o impulso missionário dos jesuítas e as bases morais ou teológicas do domínio português. Os índios e suas relações com o Estado e a sociedade coloniais eram um problema persistente no Brasil, e em 1609 conflitos ligados à escravidão indígena expuseram a inter-relação entre o litoral e o interior, os colonos e a Coroa, a mão de obra e a riqueza mineral. Parece evidente que a chegada da Relação estava intimamente ligada à política indigenista dos Habsburgo. O Brasil representava para os governantes Habsburgo de Espanha e Portugal a dificuldade de conciliar dois objetivos potencialmente conflitantes. De um lado, desde meados do século xvi os reis de Espanha tinham tentado limitar o uso e o abuso, por parte dos colonos, da população indígena da América,., Com esse fim, leis que proibiam expressamente a escravização de

índios, exccto em certas circunstâncias, tinham sido promulgada* ia cm l S I 2. Talvez uma política ainda mais consistente dos monarcas Habsburgo tosse a constante busca de metais preciosos, fator quintessencial de uma abordagem bulionista da economia nacional. As condições no Brasil faziam da busca d u novas fontes de riqueza mineral e da manutenção da liberdade indígena objetivos contraditórios, mas a primeira década do século XVH testemunhou considerável atividade em ambas as esferas. Talvez não Lenha sido por ac.iso oiu- a chegada da Relação em 1609 coincidiu com essa atividade. Boa parte do cenário do conflito estava além das povoações costeii.is. Estendendo-se para o oeste, rumo ao desconhecido interior do continente, o sertão, como os portugueses sempre chamaram essa região, era ainda uma terra de índios selvagens e de infundados rumores sobre minas de ouro e montanhas de esmeralda. O exemplo do Peru espanhol, onde a montanha de prata de Potosí tinha sido descoberta em 1545, não passara despercebido pelos portugueses, que estavam convencidos cie que riqueza similar poderia ser encontrada em sua metade do continente. A lendária riqueza do sertão arrastava homens aventureiros para o interior. Com os exemplos de Potosí e das minas leste-africanas de Monomotapa em mente, expedições portuguesas penetraram o continente desconhecido. Colonos na Bahia, no Espírito Santo e especialmente em São Paulo, onde a proximidade do Peru representava um impulso adicional, começaram em meados do século xvi sua procura por riqueza no imcrior.1 Ato o fim do século xvn, a busca foi inútil, mas durante o período de 1580 a 1640 o movimento para dentro do sertão adquiriu nova importância. A conexão espanhola criou novas oportunidades. Colonos no Brasil esperavam lucrar com o interesse da Coroa pela descoberta de novas minas. A história de Gabriel Soares de Sousa é um bom exemplo. Ele passara devêsseis anos no Brasil, tornando-se um rico senhor de engenho baiano. Fascinado com as histórias sobre as fabulosas riquezas cio sertão, foi diretamente a Madri pleitear privilégios e direitos sobre as minas que "estava prestes a descobrir". Enquanto Lentava induzir o bom encaminhamento dos próprios interesses, Soares de Sousa redigiu o Tratado como peça promocional destinada a conquistar o apoio real para sua expedição ao sertão do rio São Francisco. Pela riqueza de detalhes e precisão, essa obra é amplamente considerada como a mais valiosa descrição do Brasil do século xvi. Em 1591, a Coroa finalmente concedeu amplos poderes a Sousa, fazendo-o governador e capitão-

-geral das Minas do São Francisco, com autoridade para designar funcionários, usar a mão de obra de presos e tomar índios das aldeias jesuíticas para utilizar nas minas. A expedição foi um fracasso total. Gabriel Soares morreu no sertão e seus ossos foram finalmente sepultados em Salvador, sob uma lápide que dizia simplesmente: "Aqui jaz um pecador".2 Apesar de o empreendimento de Soares de Sousa ter fracassado, nem a Coroa nem os portugueses desistiram de buscar as minas. O exemplo dele tinha mostrado que amplas concessões poderiam ser obtidas da Coroa com a simples promessa de descobrir minas. Outros não tardaram a seguir seus passos. Luís Mendes de Vasconcellos, governador de Angola, queria abrir minas em sua colónia e requereu à Coroa os mesmos privilégios concedidos a Gabriel Soares de Sousa, "natural do Brasil e pessoa de qualidade bem diferente [inferior] "3 Mais importante, entretanto, era que o governador do Brasil ficara muito interessado na expedição de Soares de Sousa e na exploração das riquezas minerais da colónia. Em 1598, Francisco de Sousa partiu da Bahia e seguiu rumo ao sul, de navio, acompanhado de dois especialistas alemães em mineração. Apesar de ter parado no Espírito Santo para lançar Diogo Martins Cão à busca de pedras preciosas, seus verdadeiros interesses estavam mais ao sul, nas possibilidades da mineração perto de São Paulo. Em 1602, enquanto ainda inspecionava a região ao redor da vila, Francisco de Sousa recebeu a notícia de sua substituição pelo novo governador, Diogo Botelho. Voltando a Portugal, Francisco de Sousa tentou obter privilégios que lhe permitissem explorar as minas do sul do Brasil. Ao mesmo tempo, outros no Brasil tentavam extrair benefícios dessas minas de pequena importância.4 Em março de 1607, os conselhos de governo se dispuseram a ouvir os planos de Francisco de Sousa para as minas do sul da colónia.5 Seu êxito em conseguir apoio real refletia não apenas o interesse espanhol nas novas fontes de riqueza mineral, mas também a quantidade de poderes administrativos e judiciais que a Coroa estava disposta a ceder para assegurá-las. Essa disposição teve impactos nas atribuições da Relação na Bahia, e o plano de Francisco de Sousa acabou por resultar numa divisão administrativa do Brasil. Como o governador de Angola, Francisco de Sousa solicitou os privilégios que tinham sido concedidos a Gabriel Soares de Sousa. Além disso, para evitar um conflito jurisdicional e administrativo, sugeriu que ele fosse designado governador das capitanias meridionais de Espírito Santo, Rio de Janeiro e São 114

Vicente, e que essas capitanias fossem separadas do resto do Brasil. Também propôs que um tribunal separado fosse estabelecido nas capitanias meridionais, com as funções de Tribunal Superior. Essa proposta, se atendida, teria tornado aqueles territórios totalmente independentes da Bahia. Os conselhos de governo, tanto na Espanha como em Portugal, rejeitaram a ideia da separação judicial das capitanias meridionais e do estabelecimento de um Tribunal Superior, mas concordaram em que a área deveria ter um ouvidor-geral separado, embora os recursos de suas decisões tivessem de ser submetidos à Relação da Bahia. Apesar de dispor de um funcionário executivo independente, o novo governo das capitanias do Sul continuava judicialmente sujeito à Relação da Bahia, que tinha o poder de fiscalizar procedimentos e o desempenho da chamada Repartição do Sul. A Relação da Bahia tornou-se, na prática, o único controle administrativo que o Estado do Brasil mantinha sobre essas capitanias, oficialmente separadas em 1608. Essa dependência do judiciário para manter as linhas de controle administrativo tornou-se característica constante do governo colonial brasileiro. Pela altura do século xvm, os vice-reis geralmente tinham pouca autoridade em áreas subordinadas, e viam sua própria liberdade de movimento circunscrita por lei.6 A magistratura real mantinha sua organização hierárquica, suas linhas de comunicação e sua autoridade e, muito embora a qualidade do sistema judicial diminuísse em áreas remotas, ela geralmente fornecia as ataduras administrativas que preservavam a estrutura imperial. Talvez parte do êxito de Francisco de Sousa em alcançar seus objetivos tenha resultado da considerável ênfase que ele deu ao uso de espanhóis, da experiência espanhola e de formas espanholas na exploração das minas brasileiras. Ele propôs que se empregassem homens das minas de ouro do Chile e das minas de prata do Peru, um especialista em pérolas da ilha de Margarita e um especialista em mineração de ferro de Vizcaya para ajudar na extração de riquezas da repartição administrativa recém-criada. Francisco de Sousa queria que as leis aplicáveis às minas em sua área fossem aquelas instituídas no Peru pelo vice-rei Francisco de Toledo (1567-81), e que a estrutura tributária fosse similar à que vigorava na Nova Espanha.7 Para a manutenção e exploração da área, o governador Sousa pediu ordem para mandar três navios por ano a Buenos Aires com a missão de buscar trigo e lhamas (carneiros de carga] "para subir as montanhas de ouro e prata".8 A petição de Francisco de Sousa revela algum 115

conhecimento das realidades hispano-americanas, e o empenho em criar situações parecidas no Brasil apelando para vários interesses dos Habsburgo. Na verdade, os portugueses no Brasil não se recusariam a atiçar esses interesses para alcançar objetivos contrários à política real já estabelecida. A política explícita dos Habsburgo espanhóis dispunha que os índios do Novo Mundo eram homens livres e não deveriam ser injustamente escravizados. O desejo de obter mão de obra indígena, entretanto, era forte entre os colonos no Brasil. Francisco de Sousa defendeu o uso da mão de obra indígena nas minas do sul do Brasil, de acordo com as leis do Peru. Mais ou menos na mesma época, dois baianos, Domingo de Araújo e Belchior Dias Moreira, soli-' citaram direitos similares para explorar minas no vale do rio São Francisco. Em resposta, o Conselho de Portugal observou que as expedições de Gabriel Soares de Sousa e outros para descobrir minas tinham resultado em nada mais que tentativas de trazer escravos índios do sertão, e que esses dois requerentes eram homem ricos, que poderiam lucrar tanto trazendo índios como descobrindo minas. Quando Francisco de Sousa submeteu pedido semelhante, Filipe m anotou, de próprio punho, à margem da Consulta: "Vai muito claro que estão excluídas toda força e violência" para trazer índios. Claramente, a Coroa tentava conciliar os dois objetivos, ou pelo menos aliviar a consciência.9 Era óbvio que alguns portugueses no Brasil esperavam que a cobiça dos Habsburgo pela riqueza mineral pudesse ser usada para contornar sua política indigenista. A busca cias minas não estava, portanto, inteiramente divorciada de outra questão muito mais complexa — a liberdade dos índios. O sertão era não apenas o reino da lenda, mas também o domínio das tribos indígenas selvagens, que continuavam a representar uma ameaça às regiões povoadas e que, ainda nos anos de 1670, atacavam as fazendas do Recôncavo.10 Na região da Bahia, as tribos estavam em processo de migração bem antes da chegada dos portugue sés, e as guerras constantes entre tribos e ramos da mesma tribo causavam contínuos deslocamentos. A chegada dos portugueses, entretanto, expulsando os tupinambás do Recôncavo para o sertão, intensificara os movimentos migratórios e militares dos índios. 11 O número e a hostilidade dos índios no mato baiano — e o mesmo se aplicava ao resto do Brasil — detiveram a expansão da área povoada e, apesar das ocasionais colunas volantes de missionários, exploradores, prospectores de metais e caçadores de escravos que se aventuravam aleita do litoral, os perigos da natureza e os índios hostis tornavam a 116

povoação permanente quase impossível no sertão. A fronteira estabelecida estava, de fato, fechada. As relações entre os portugueses e os índios ainda eram u m problema essencial, com ramificações morais, teológicas, políticas e económicas, nos primeiros anos do século xvii.12 Elas se tornaram o primeiro grande problema com o qual a Relação da Rabia teve de lidar. A escravização dos índios no Brasil viera lentamente, à medida que o sistema original de escambo se atrofiava e as necessidades de mão de obra da lavoura canavieira se intensificavam. Mas a escravização de homens livres, por mais selvagens que fossem para os padrões europeus, envolvia um problema moral, e em 1570 d. Sebastião promulgou a primeira lei portuguesa destinada a regulamentar as relações entre portugueses e índios. Essa lei proibia a captura e a escravização de índios, salvo quando tornados cm "guerra justa".13 A lei foi reforçada em 1574, quando o governador do Norte, Luís de Brito de Almeida, e o governador do Sul, António de Salema, se encontraram na Bahia e concordaram em aplicar a política indígena real.14 Os jesuítas consistentemente defenderam a causa da liberdade dos índios e se opuseram à escravização, política que lhes valeu a inimizade de muitos colonos. Membros da Companhia de Jesus formavam missões no litoral e perto de áreas povoadas, esperando, com a instrução constante e a organização comunitária, doutrinar seus protegidos. Em 1600, havia, pelos cálculos dos jesuítas, 50 mil índios reunidos em 150 aldeias, quatro delas localizadas perto da cidade da Bahia.15 Os jesuítas afirmavam que, convertendo esses pagãos ao catolicismo, seu controle sobre os índios beneficiava a consciência real, ao mesmo tempo que fortalecia a estrutura defensiva da colónia fornecendo uma força auxiliar de arqueiros indígenas, a ser usada contra invasores estrangeiros, índios hostis e escravos rebeldes. Os colonos que defendiam o controle laico dos índios falavam do efeito civilizador de forçar os selvagens a viver entre os portugueses, e também enfatizavam o argumento da utilidade defensiva, de tão forte apelo para os reis espanhóis.16 A mão de obra, no entanto, era a chave da questão. Mesmo os jesuítas, cuja preocupação básica era espiritual, ressaltavam que as aldeias forneciam reservas de trabalhadores livres, que poderiam ser usados pelos colonos "para beneficiar as fazendas e os engenhos dos portugueses".17 Os fazendeiros baianos não eram avessos ao uso da mão de obra livre dos índios contratados nas aldeias jesuítas ou em povoações indígenas não supervisionadas, porque isso não implicava

investimento de capital a longo prazo, nem os perigos e as responsabilidades da í propriedade. Alguns deles, como Gaspar da Cunha, capataz do engenho de j Sergipe do Conde, achavam que "os negros [...] não são tão necessários e proveitosos nela como os índios desta terra"; ele queria missões perto do engenho para fornecer trabalhadores e proteção.18 A localização das aldeias e missões tornou-se, portanto, outro aspecto do problema; enquanto os colonos defendiam a ideia de que elas deveriam ficar onde fossem mais convenientes, os jesuítas argumentavam contra a ruptura dos padrões existentes de assentamento indígena. Os produtores de açúcar não se puseram desde logo a eliminar as aldeias comunais na periferia de suas plantações, já que elas eram uma eventual fonte de mão de obra livre, mas posteriormente a experiência mostrou que se tratava de um arranjo indesejável, visto que, em última análise, eram os jesuítas que detinham o controle dessa mão de obra. Os fazendeiros não davam aos índios livres um tratamento muito diferente daquele dispensado aos escravos, e as crescentes objeções dos jesuítas lhes impunham maiores limitações. Os maus-tratos de índios e o uso indevido da cláusula da "guerra justa" como meio de contornar a lei para escravizá-los exigiram nova ação real contra os colonos em 1595.19 Àquela altura, o Brasil estava sob controle dos Habsburgo e Filipe ii já conhecia bem o problema das relações entre colonos e índios, porque a questão vinha sendo calorosamente debatida na América Espanhola havia quase um século. Ali, apesar de violações ocasionais, a Coroa interviera inequivocamente a favor da liberdade dos índios. Ao formular a lei de 1595, baseou-se em opiniões do padre jesuíta Gaspar Beliarte, dos antigos ouvidores-gerais Cosme Rangel e Martim Leitão e de governadores de Portugal. Suas discussões resultaram na nova lei que definia "guerra justa" como aquela que consistia apenas de ações autorizadas pela Coroa, insistia no pagamento de salários para os trabalhadores indígenas e ordenava a governadores, magistrados e capitães da colónia que aplicassem a legislação. Ao mesmo tempo, a Coroa baixou decreto que dava aos jesuítas o direito de trazer índios do sertão para aldeias sob controle dos homens de batina preta. Os colonos podiam contratar índios, mas não tinham permissão para empregá-los por mais de dois meses de cada vez, e um magistrado especial, um leigo português, julgaria todas as disputas surgidas entre índios e brancos.20 A lei de 1595 foi reforçada em 1605 com uma simples reafirmação da liberdade dos índios provocada pelo contínuo desprezo dos colonos pela legislação em vigor.21 n8

Essas leis deveriam deixar claro para os colonos brasileiros que a política dos Habsburgo relativamente à liberdade dos índios no Brasil seguiria de perto ou mesmo reproduziria as políticas aplicadas na América Espanhola. Ali, a Coroa de há muito transformara a liberdade dos índios em lei, abandonara a concessão de grupos de índios como mão de obra ou tributo a colonos individuais (sistema conhecido como encomienda) e adotara o repartimiento, um tipo de trabalho forçado mas pago. A encomienda chegara ao apogeu nos anos de 1540 e, embora prosseguisse até o século xvii (em alguns lugares por mais tempo ainda), a Coroa deixara bem claro que por razões políticas, morais e demográficas queria que essa instituição desaparecesse.22 Apesar disso, ao que tudo indica o governador Diogo Botelho tinha em mente a encomienda em 1605, quando pediu para os índios no Brasil serem controlados pelo mesmo sistema em vigor nas índias Espanholas, e que uma cópia das leis pertinentes lhe fosse enviada o mais rápido possível. A encomienda tornou-se um objetivo intensamente buscado, mas mal compreendido, pelos colonos no Brasil. Tinha ardorosos defensores em homens como Bento Maciel Parente, experimentado combatente nas lutas contra os índios e soldado no Maranhão, que escreveu algumas memórias pedindo explicitamente o estabelecimento da encomienda no Brasil.23 A ideia nunca morreu e prosperou especialmente na região amazônica, onde em certo sentido produziu amargos frutos no Sistema do Diretório, estabelecido no fim do século xvm, e em São Paulo, onde o controle laico sobre os índios foi instituído em 1696.24 Durante o período dos Habsburgo, entretanto, apelos pela adoção da encomienda caíram em terra safara, e mostraram que os colonos não percebiam as intenções reais da Coroa. Além disso, a defesa da liberdade dos índios pelos jesuítas e o controle jesuíta das aldeias não cederam, de modo que a hostilidade entre os donos de canavial e os padres continuou a crescer. Como a política real os favorecia, os jesuítas ansiavam por fortalecer a autoridade da Coroa na colónia, como forma de reforçar sua própria posição. O padre Fernão Cardim, em sua reivindicação pelo estabelecimento de um Tribunal Superior no Brasil, ressaltou o papel dessa corte no controle dos abusos contra os índios e na interpretação correta da cláusula da "guerra justa".25 O padre Cardim e seus colegas jesuítas também viam a Relação como provável aliada. Os senhores de engenho esperavam usá-la contra os comerciantes, e os jesuítas como reforço contra os senhores de engenho.

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A questão indígena transformou o Brasil num caldeirão dos interesses conflitantes da Coroa, dos jesuítas e dos colonos. A Relação chegou à Bahia em junho de 1609, e quase imediatamente o caldeirão transbordou. Os colonos portugueses compreendiam apenas superficialmente as bases morais e teológicas da política indígena dos Habsburgo e, apesar das tentativas da Coroa de limitar a encomienda e reformar o repartimiento nas índias espanholas, os senhores de engenho brasileiros ainda achavam que a encomienda-, em sua forma pura, poderia ser estabelecida no Brasil.26 Essa opinião parecia ignorar a defesa cada vez mais resoluta da liberdade indígena pela Coroa, como expressavam as leis de 1587,1595 e 1605. Em 1609, Filipe in examinou a questão indígena em seus dois Impérios. Em maio, publicou uma ordenação para controle e regulamentação do repartimiento na Nova Espanha, reconhecendo-o como um mal necessário, mas declarando que ele só deveria ser usado em atividades que contribuíssem para o bem comum. No México, a audiência cautelosamente empregou a velha e conhecida solução de aceitação sem submissão, de modo que a ordenação foi engavetada para não provocar rcação hostil dos colonos.-7 No Brasil, entretanto, a recém-chegada Relação não agiu com a mesma cautela. Em Madri, ern 30 de julho de 1609, urna nova lei foi instituída para "fechar a porta" aos excessos e abusos na escravização da população indígena do Brasil. Essa lei declarava que todos os índios, cristãos ou pagãos, eram, por natureza, homens livres, com direito a salários por seu trabalho. A lei dava aos jesuítas permissão de trazer índios da selva para áreas povoadas e mante-los em missões sob controle jesuíta. Os jesuítas, também, foram forçados a pagar salários pelo trabalho executado. Dentro de cada missão, um magistrado especial seria designado pelo governador e pelo chanceler da Relação para julgar disputas entre brancos e índios. Mais importante, a lei declarava que todos os índios capturados ilegalmente seriam libertados e todas as notas fiscais de compra ou decisões judiciais que justificassem sua escravização eram agora consideradas contrárias à lei e, portanto, nulas e sem validade legal.2" Nenhum recurso contra esse dispositivo seria aceito pela Coroa. A lei transferia boa parte do ónus de sua aplicação para a Relação, "que ora vai para o Brasil" e exigia que o chanceler garantisse obediência mediante fiscalização anual, durante a qual todos os violadores seriam rápida c sumariamente punidos. A lei rnuiro provavelmente foi formulada antes de a Relação chegar à Bahia em junho de 1609, e somos tentados a especu-

lar que a Coroa esperou que os magistrados desembarcassem no Brasil para dar publicidade à controvertida ordenação. Parece que essa não era bern uma tá tio destinada a angariar popularidade para a Relação. Mas era uma tática que já havia sido usada antes. Em mais de uma ocasião nas índias, reis espanhóis tinham combinado a publicação de leis novas e controvertidas com a chegada de altos funcionários ou com o estabelecimento de um tribunal. Tentativas reais de controlar a encomiendano México foum feitas por intermédio da Audiência que chegou à Cidade do México em 1528, u. depois do seu lúgubre fracasso, da segunda Audiência de 1530.29 As Novas Leis de 1542, que impunham severas limitações ao controle dos índios pelos colonos, exigiram medidas similares em todo o Império espanhol na América. No Peru, a promulgação das Novas Leis foi seguida pela chegada de uma Audiência e do vice-rei Biasco Nunez de Ia Vela. Tanto o tribunal como o vice-rei tinham instruções específicas para aplicar as leis. O estabelecimento da Audiência de los Confines (Guatemala) e a visita ao México de um investigador real, Francisco de Tello de Sandoval, estavam intimamente ligados à aplicação das Novas Leis.30 Dado o histórico dessa tática, a chegada da Relação cm junho e a publicação da lei em julho parecem ter sido rnais do que simples coincidência. Certamente, o texto da lei indica que a Relação deveria desempenhar papel significativo na aplicação de suas cláusulas. Depois da natimorta tentativa de 1588 e das infrutíferas discussões de 1590, a ideia de mandar um tribunal para o Brasil fora abandonada. Somos tentados a especular que a ideia foi revitalizada depois de 1605, porque Filipe ui precisava de um instrumento poderoso para fazer valer sua política indígena.3' Em vista da legislação anterior, essa nova e severa lei de 1609 não deveria causar espanto, mas, ao tomar conhecimento dela, os colonos reagiram com violência- No Rio de Janeiro, houve uma sinistra ameaça de tumultos, e na Paraíba a Câmara de Filipeia abertamente denunciou a interferência espanhola, afirmando que a lei fora "feita e consulada no reino de Castela", e que tinha pouca aplicabilidade no Brasil.32 Os colonos que tinham, rcitcradamente, citado exemplos espanhóis em suas tentativas de estabelecer a encomienda, diante de uma lei impopular viraram a casaca no primeiro momento, dizendo que os usos e precedentes espanhóis eram inaplicáveis no Brasil. A reação mais violenta teve lugar na Bahia.33 A revelação da lei à Câmara, pela Relação, precipitou uma tempestuosa reunião na tarde de 28 de janeiro de

1610. Realizou-se uma tumultuosa manifestação chefiada pelos vereadores e magistrados; o advogado da Câmara, Gaspar Gonçalves, destacou-se como agitador. Os jesuítas foram apontados como patrocinadores da nova norma, por isso a ira da turba voltou-se basicamente contra eles. Sugeriu-se que os padres fossem expulsos da cidade — tática posteriormente usada contra eles em São Paulo e no Maranhão. Enquanto a Câmara fazia um protesto oficial ao governador e a Gaspar da Costa, chanceler da Relação, a turba berrava suas objeções diante dos prédios governamentais. Seguindo dali para o colégio jesuíta, a multidão fez uma manifestação semelhante, que os jesuítas tentaram acalmar negando qualquer papel na formulação do dispositivo. No dia seguinte, um representante da Câmara, Jorge Lopes da Costa, apresentou aos jesuítas, para que fosse assinado por eles, um documento qualificando a lei de "notável desserviço de Deus e de Sua Majestade, e prejudicial a todo este Estado". Os vereadores entregaram o documento com a mal velada ameaça de que a recusa a assiná-lo provocaria uma reunião geral de todos os colonos do Recôncavo para expulsar e punir os jesuítas. Os padres da Companhia de Jesus se recusaram a assinar, mas ficaram suficientemente amedrontados para concordar em firmar um documento garantindo aos colonos que os índios legalmente capturados não seriam postos em liberdade, que os índios livres que trabalhavam nas casas não seriam tomados e que os jesuítas não tinham intenção de transferir às missões os índios usados para serviço pessoal. Até hoje não se sabe se os colonos chegaram a fazer algum progresso com a Relação, mas em Diogo Meneses, o governador, eles encontraram um generoso apoiador. Meneses escreveu à Coroa, em nome dos colonos, enfatizando a importância da mão de obra indígena e os "milhares de inconvenientes" da nova lei.34 Ressaltou que as entradas para levar índios à costa eram benéficas e que impedi-las resultaria na redução da força de trabalho, ao passo que o controle dos jesuítas sobre as aldeias só beneficiaria os interesses dos jesuítas, e não o bem comum. Esses protestos e a massa de papéis enviados à metrópole levaram à revogação da lei de 1609 e sua substituição pelo estatuto de 10 de setembro de 1611, que reiterava a liberdade dos índios, mas previa sua escravização sob certas condições. Em caso de hostilidades, uma junta seria formada, consistindo do governador, do bispo, de prelados das ordens religiosas e dos magistrados da Relação, para determinar se a guerra, no caso, seria ou não "justa". Além disso, o

governador poderia autorizar as entradas para resgatar índios cativos e usá-los como servos contratados por períodos fixos. Dentro das aldeias, capitães leigos nomeados pelo governador, com aprovação do chanceler da Relação, deveriam governar, exercendo plenos poderes judiciais sobre os índios. Recursos de suas decisões iriam para o ouvidor local ou para o provedor-mor dos defuntos da Relação, que agora assumia essas funções como um magistrado de assuntos indígenas.35 Apesar de cuidadosamente redigida e apoiada por controles legais, a lei de 1611 foi um passo para trás e um retorno ao status quo anterior a 1609. Queixas locais no Brasil tinham obrigado a Coroa a mudar de política. A Relação, a quem foi dado o papel principal na aplicação da lei de 1611, aparentemente não fez uso extensivo de seus poderes nessa esfera, com qualquer regularidade. Outra importante legislação indígena não entraria em vigor antes de 1647 e o estatuto de 1611 continuou a ser a lei da terra. Não se sabe ao certo qual foi o papel da Relação na promulgação da controvertida lei de 1609 e até que ponto os colonos responsabilizaram o Tribunal Superior. Os jesuítas tinham tentado transferir a responsabilidade pela lei e a ira da turba para a Relação. Henrique Gomes, jesuíta e grande informante dos acontecimentos de 28-29 de junho de 1610, afirmou que "a nova lei [...] veio dirigida à Relação da Cidade e nela foi registrada" sem nenhuma consulta aos jesuítas e sem notificá-los.36 É impossível determinar se a Relação ficou desacreditada por ter promulgado a lei, mas para os senhores de engenho do Recôncavo tornou-se claro que o Tribunal Superior, que eles tinham acolhido como um aliado contra a extorsão dos comerciantes, representava a política e a autoridade reais numa medida que nem o governador alcançava. O momento da crise de 1609 foi significativo, pois sua erupção logo depois da chegada dos magistrados deu aos senhores de engenho pouco tempo para deixar clara sua posição aos desembargadores ou para influenciá-los por meio de contatos pessoais. Por isso, os juizes não tiveram motivo para hesitar na aplicação da política real, e agiram em plena conformidade com as funções burocraticamente prescritas, dando pouca ou nenhuma atenção a padrões ou objetivos conflitantes. A atitude da Coroa de rescindir a lei de 1609 também merece comentário. Por que a Coroa recuou de sua posição e aquiesceu à vontade dos colonos? Nas índias espanholas os monarcas Habsburgo tinham geralmente demonstrado calculada indiferença pela posição dos colonos no que dizia respeito ao controle 123

dos índios. A resposta provavelmente está na natureza da colónia brasileira. Sem uma população indígena grande, assentada e pagadora de impostos, c com as riquezas minerais ainda a um século de distância no futuro, o alicerce económico do Brasil era o açúcar. Pelo começo do século xvn, o Nordeste do Brasil já era o maior produtor de açúcar do mundo. Essa produção dependia inteiramente dos colonos e, apesar de certos benefícios e isenções fiscais, todos 05 custos agrícolas e industriais recaíam diretamente sobre eles. O senhor de engenho fez do Brasil uma colónia valiosa, pois sem ele haveria pouca coisa para sustentar a região. Assim, em 1609-11 e, como veremos, também em 1626, a Coroa adotou uma posição mais leniente do que deveria em relação às demandas dos fazendeiros. Os acontecimentos desses anos de fato deixaram claro, entretanto, que a Relação, que fora saudada pelos fazendeiros como uma aliada contra os comerciantes, era um órgão do governo real e, portanto, uma possível ameaça à elite canavieira.

7. Procedimentos e funções

Compreende o governo civil, ou secular, a boa administração da Justiça, a arrecadação da Fazenda Real e o governo económico do povo. Luís dos Santos Vilhcna (c, 1798)

Na primavera de 1609, não havia em Salvador nenhum pelourinho representando a justiça real. O símbolo da justiça, na verdade, tinha sido removido por um antigo governador, Diogo Botelho, que fora condenado ao patíbulo aos pés de um pelourinho em Portugal, c desde então não suportava a visão de um deles.1 O símbolo ausente na capital do Brasil testemunhava a indisciplina e a desordem que continuavam a caracterizar a sociedade brasileira. Funcionários gananciosos, caçadores de fortunas, aventureiros, párias sociais e criminosos formavam a maior parte da população portuguesa e apresentavam, para o tribunal, um panorama amorfo e sem lei.2 Apenas na cidade de São Paulo, 65 dos 190 moradores eram fugitivos da Justiça, que ali tinham encontrado asilo.3 Dadas essas condições e a função tradicional dos tribunais superiores de Portugal, as atribuições básicas da Relação da Bahia se concentravam em seu papel de executora das leis e de tribunal de Justiça. Paradoxalmente, é esse o aspecto mais difícil de documentar na história do Tribunal Superior. O trabalho judicial diário da Relação, os tipos de casos ouvidos e os métodos c procedi124

mentos do tribunal ainda são, especialmente no período de 1609 a 1626, desconhecidos. Documentos se perderam ou foram destruídos e o pouco que resta deve ser usado com cautela. Embora essa deficiência não seja crucial para este estudo, que ressalta a natureza burocrática do Tribunal Superior, não deixa de ser um grande hiato na história da instituição. O que se segue, agora, é uma tentativa de juntar o pouco que existe sobre os procedimentos da Relação da Bahia no trato das questões judiciais normais. Os procedimentos rotineiros na Relação do Brasil eram semelhantes aos dos modelos metropolitanos. Os Livros i, ni e v das Ordenações Filipinas tratavam amplamente da estrutura e dos procedimentos dos tribunais. Uma leitura cuidadosa deles ainda impressiona o leitor pela complexidade do processo judicial e pela tentativa de tornar as leis compreensíveis. Não se pode determinar, entretanto, até que ponto variações locais não autorizadas se desenvolveram no Brasil, o que limita a utilidade de uma simples recontagem dos regulamentos, pois nas condições de vida da colónia legalidade e realidade muitas vezes se opunham. A descrição apresentada a seguir é mais um esboço sumário do que uma síntese completa dos procedimentos da Relação, recaindo a ênfase sobre os desdobramentos particularmente brasileiros.4 Embora o Tribunal Superior fosse um órgão colegiado, boa parte de suas tarefas era realizada por membros que agiam individualmente. O ouvidor-geral, o juiz dos órfãos e o juiz da Coroa e Fazenda tinham jurisdição originária e de apelação» e podiam julgar sem a ajuda de outros magistrados do tribunal. Quando autorizados por lei, e se os litigantes assim o desejassem, recursos da decisão do juiz poderiam ser feitos à Relação como órgão; por sua vez, recursos da decisão da Relação deveriam ser apresentados à Casa da Suplicação em Portugal. O cargo do juiz dos órfãos é um bom exemplo, e mostra como o sistema funcionava. Cabia ao desembargador que servia como juiz dos órfãos do Tribunal Superior administrar a propriedade dos que morriam sem deixar testamento ou a caminho do Brasil, e julgar as disputas que surgissem entre os herdeiros de um espólio.5 Quando os herdeiros estavam ausentes, a propriedade era vendida em hasta pública e o dinheiro era remetido para Portugal, a fim de ser distribuído entre os herdeiros legítimos, ou enviado para os cofres da Coroa, se não houvesse herdeiros. Antes de ser remetido para a metrópole por uma letra de câmbio, ou às vezes convertido em ouro, o dinheiro era mantido numa 126

caixa-forte pelo juiz. Para os pauperizados governadores do Brasil esse fundo não reivindicado era uma constante tentação.6 Muitas disputas sucessórias nasciam do costume brasileiro de fazer testamentos nuncupativos (orais), prática que não raro conduzia à fraude. 7 Em geral, os espólios, no Brasil, valiam pouco, mas os testamentos contestados de vez em quando envolviam propriedades de grande valor. Um caso famoso e ilustrativo do processo de apelação, envolveu pretendentes ao espólio dos herdeiros de Mem de Sá, que incluía o grande engenho de Sergipe do Conde. O Colégio Jesuíta da Bahia, a Misericórdia da Bahia e o Colégio Jesuíta de Santo Antão de Lisboa tinham pretensões sobre o espólio. A ação foi apresentada pela primeira vez perante o juiz dos órfãos em 1622, e a Misericórdia apelou de sua decisão. A Relação confirmou a sentença anterior em 1623, e o caso foi levado para os tribunais da metrópole, onde se arrastou até 1669, quando foi resolvido. Casos de sucessão dessa magnitude e complexidade eram, porém, incomuns.8 A maioria dos atos do tribunal e as petições a ele dirigidas se davam por escrito, mediante testemunho sob juramento ou testemunho autenticado. Os litigantes só podiam fazer sustentação oral nos casos que envolviam menos de l mil-réis, mas, como se tratava de soma insignificante, poucos casos dessa dimensão chegavam ao tribunal.9 Essa dependência de súmulas, testemunhos £ questionários escritos dava à função de escrevente do tribunal grande importância. O impulso português de legalizar todas as ações refletia-se, talvez, na importância desse cargo. Também não podemos ignorar o fato de que, como intermediários entre os magistrados e os litigantes, os escreventes geralmente exerciam funções decisórias. Eles tinham o poder de acelerar ou retardar processos e eram, portanto, muito mais do que simples tabeliães. O regimento da Relação previa o emprego de cinco escreventes destinados a auxiliar os diversos magistrados, mas parece certo que apenas quatro desses cargos foram preenchidos de início.10 Diferentemente do emprego de magistrado, o cargo de escrevente na Relação poderia ser transmitido de uma geração para outra, tal qual uma propriedade. A nomeação ou a outorga do cargo de escrevente do tribunal poderia ser feita como recompensa por um serviço prestado à Coroa, mas essas outorgas geralmente pressupunham um exame para verificar um mínimo de aptidão. A maneira como o cargo era conquistado no Brasil é bem ilustrada pelo caso de Cristóvão Vieira Ravasco, pai do grande orador e escritor jesuíta padre António 127

Vieira. Cristóvão Vieira Ravasco tinha sido soldado e escrevente judicial em Lisboa, mas seu emprego de escrevente de apelação na Relação da Bahia foi adquirido por meio de casamento. Sua esposa, Maria de Azevedo, tinha recebido em 1604 a promessa de "qualquer ofício de justiça ou fazenda" para o homem com quem viesse a se casar. Tratava-se de um método comum, que permitia à Coroa amparar viúvas e órfãos honrados — em certo sentido, era uma forma de fornecer um dote. Cristóvão Vieira Ravasco, portanto, conseguiu o cargo por meio de casamento, mas precisou demonstrar suas aptidões." Os escreventes da Relação tendiam a ser semiprofíssionais competentes. Seus salários variavam entre 20 mil-réis e 40 mil-réis por ano, mas também recebiam honorários suplementares por serviços extras. O fato de esses cargos poderem oferecer renda considerável tornava-os prebendas muito disputadas. A venda ou outorga dessas posições não era, portanto, de forma alguma atípica no quadro da maneira europeia de administrar, na qual a concessão de cargos se tornou uma forma de obter renda e fazer obséquios.12 Em Portugal e no seu império, o titular de um cargo geralmente alugava-o a um substituto, que desempenhava as tarefas por uma percentagem fixa do salário do titular. A Coroa de vez em quando tomava providências para eliminar esses substitutos (serventuários) e a Relação da Bahia examinava disputas decorrentes da aplicação dessas leis e de reivindicações conflitantes do mesmo cargo, mas a nomeação de funcionários continuou sendo atribuição do governador. As audiências do tribunal eram públicas e os litigantes ou seus advogados compareciam diante do juiz para submeter suas demandas. Havia rígidos procedimentos a observar, nos quais os deveres e o comportamento das partes, de seus advogados e do tribunal eram estipulados. Na audiência, prisioneiros, clérigos, mulheres, agricultores e aqueles que tinham vindo de longe tinham prioridade.13 Assim que o pleito era registrado, ao réu era concedido um prazo para preparar uma resposta e, se alguma acusação precisasse ser acrescentada ao pleito original, o réu ganhava mais tempo para preparar nova defesa. Isso era motivo constante de atrasos. Durante a audiência, o juiz podia fazer perguntas aos litigantes e convocar testemunhas, mas as partes interessadas, "inimigos capitais" e escravos não tinham permissão para dar testemunho.1'1 Na audiência final, o juiz emitia a sentença, decidia quem ia pagar as custas e ouvia pedidos de recurso. Se o pedido fosse aceito, o caso era submetido então a um grupo de desembargadores designados pelo chanceler. Qualquer juiz ou funcionário do 128

tribunal, entretanto, poderia ser impedido de trabalhar num caso no qual fosse litigante ou parte interessada.1'' No nível de apelação, o regulamento exigia que um número ímpar de juizes decidisse um caso, para evitar impasses no tribunal. 16 Nos casos que envolviam pena de morte, porém, designava-se um número par do juizes — «erilmente seis — e a decisão final tinha de ser tomada por uma maioria de dois votos. Em caso de empate, juizes extras eram designados, até que o n ú m e r o apropriado de votos convergentes fosse alcançado. No Brasil, esse sistema revelou-se absurdo, porque o limitado número de juizes e suas constantes ausências da Bahia, motivadas por missões especiais, geralmente provocavam intermináveis adiamentos. As deficiências do sistema não passavam despercebidas, e tornaram-se quase proverbiais. Um médico falastrão que compareceu diante da Inquisição em 1612 gabou-se, segundo consta, de que ele sozinho tinha poderes de vida e morte, enquanto a Relação precisava de quatro votos para condenar à mortef o que raramente conseguia. l7 A Coroa acabou tomando providências para corrigir essa situação, com um alvará de 1616 que reduzia para três o número de votos convergentes necessários nos casos em que estava prevista a pena de morte e para dois nos casos de crimes menos graves.18 Um atraso de três anos enquanto o preso apodrecia na cadeia de Salvador não era raro c, apesar das tentativas de reforma, as engrenagens da Justiça giravam lenta e dolorosamente no Brasil. O problema básico, como veremos, era falta, e não excesso, de desembargadores. As deliberações do tribunal eram secretas e nem mesmo os funcionários tinham permissão para entrar nas salas, a não ser quando convocados pela sineta do chanceler.19 As decisões eram tomadas seguindo-se dois métodos — conferência ou opinião. Num voto por conferência, o juiz original do caso lia os pleitos e contestações c citava os pontos da lei pertinentes. Cada juiz então votava oralmente e todos assinavam a sentença sem indicação de divergência. O outro método, por opinião (tenção), era realizado por escrito. Cada juiz examinava os documentos relevantes e redigia uma opinião cm latim, que eie então enviava, com os documentos, para o próximo membro do tribuna]. Quando esse método era adotado, a minoria contrariada não assinava a sentença, nem registrava uma divergência por escrito. Nos casos criminais, a prisão geralmente era feita pela polícia depois que um desembargador emitia um mandado.20 No Brasil, o mandado de prisão às 129

vezes era executado pessoalmente pelo ouvidor-geral. Os presos eram levados para uma cadeia em Salvador. Exceto em casos em que estava prevista a pena de morte, fidalgos, membros das ordens militares, os que tinham diploma de doutor e suas mulheres eram soltos sob juramento.21 Os acusados eram informados das acusações e tinham prazo para submeter a defesa. O queixoso ou o advogado da Coroa apresentava a resposta (tréplica). Tanto o queixoso como o réu podiam, então, apresentar provas ou declarações perante o tribunal, dando início ao inquérito. Nesse ínterim, o preso podia ser solto sob fiança ou por carta de seguro.22 As deliberações do tribunal geralmente incluíam a reunião de testemunhas sob juramento, de acordo com uma lista minuciosa ou um questionário preparado a partir das acusações e da defesa. Os testemunhos, portanto, tendiam a ser limitados e repetitivos. A tortura podia ser utilizada contra o acusado para arrancar uma confissão, muito embora os regulamentos advertissem contra essa prática. No Brasil, a tortura foi usada raras vezes — ou nunca — antes de 1652.23 A sentença era dada de acordo com a lei e o discernimento do magistrado. A lei prescrevia punição para a maioria dos crimes, mas os juizes poderiam abrir exceções em razão de idade, saúde e posição social. Embora as multas, o confisco e o banimento penal fossem as formas mais comuns de punição, a forca, as galés, o tronco e a flagelação pública também eram usados. A flagelação pública trazia considerável desgraça, mas fidalgos, cavalheiros, cidadãos de certas localidades e todos os cidadãos do Algarve tinham isenção privilegiada desse castigo. À semelhança do que ocorria antes de 1609, a justiça para negros e índios era destinada a servir de exemplo, mais do que a remediar injustiças. Dessa forma, em 1613, a Coroa aprovou a morte na forca e o esquartejamento de um índio salteador em Pernambuco, e sugeriu que os desembargadores agissem com presteza em casos semelhantes.24 Embora um indivíduo pudesse atuar como seu próprio representante legal no tribunal, a complexidade dos procedimentos e da legislação tornou necessário um corpo treinado de advogados, promotores e procuradores, que ao lado dos tabeliães se tornaram parte integrante da vida brasileira. O legalismo formalista, a constante necessidade de documentos autenticados e a onipresença do tabelião e do administrador governamental têm sido usados para caracterizar a forma atual de governo no Brasil como Estado cartorial. As raízes desse fenómeno, no entanto, remontam ao passado colonial. Advogados e tabeliães já 130

praticavam sua profissão no Brasil antes da chegada da Relação, mas a presença do tribunal criou novas oportunidades para os dois grupos. O cargo de tabelião era cedido pela Coroa e o número de vagas era limitado O desejo de formalizar e legitimar todo tipo de ação pública ou privada levava à constante demanda por escreventes legais licenciados. Com o aumento dos litígios, a necessidade de tabeliães também cresceu. Esses escreventes que recebiam honorários, alguns deles sem os conhecimentos básicos de sua profissão, constantemente eram o grande alvo das queixas da colónia. "Muitos deles", afirmou um contemporâneo, "apenas sabem fazer o seu sinal" [assinar o nome com a letra x].25 Essa incompetência não impedia que esses tabeliães cobrassem honorários exorbitantes e usassem o cargo para exercer influência nos salões do tribunal. O resultado de tal situação, ao longo do século XVH, foi a tendência dos moradores da colónia de fazer seus negócios mediante acordos verbais, ou sem a legalização de um documento autenticado.26 Isso era mais comum ainda nas áreas rurais, onde as taxas dos cartórios às vezes dobravam e triplicavam de valor. Apesar de as queixas contra tabeliães serem coisa comum, os verdadeiros vilões, do ponto de vista dos colonos, eram os advogados. Em tese, aqueles que serviam como procuradores ou advogados tinham estudado oito anos em Coimbra, ou se submetido a exames no Desembargo do Paço. Aqui, também, a situação na colónia exigia modificações dos padrões. Em áreas periféricas, a Coroa às vezes permitia que homens sem um diploma de direito em Coimbra militassem nos tribunais. 27 Na Bahia, entretanto, havia grandes advogados coloniais, como o cristão-novo Jorge Lopes da Costa, que, a julgar pela importância de seus clientes e pelo valor de seus honorários, foi o melhor advogado de sua época. Advogados vieram para o Brasil antes da chegada do Tribunal Superior, mas a presença do tribunal na colónia sem dúvida criava novas oportunidades para a profissão legal. As Ordenações Filipinas tentaram diminuir a chicanice regulamentando honorários, prescrevendo penas por má conduta ou negligência profissional e controlando, em geral, a profissão legal. Mas a prática comum das decisões interlocutórias [que não extinguiam o processo] levava a novos requerimentos e contestações, com acúmulo de litígios e honorários. O resultado eram as ações demoradas, as montanhas de papel e o processo judicial dolorosamente lento. De acordo com os regulamentos da Relação, uma lista de todos os casos 131

ouvidos por ela ao longo de um ano deveria ser submetida à metrópole. Essas listas — se de fato foram preparadas -— não sobreviveram até o presente e, por isso, pouco se sabe do funcionamento e das decisões diárias da Relação. Nas capitanias, os magistrados locais e os ouvidores continuaram a administrar justiça e ainda podiam prender, sentenciar e punir dentro da área de sua jurisdição. Apenas os casos que envolviam grandes somas, crimes sujeitos a pena de morte ou sobre os quais a Relação tinha jurisdição original eram submetidos ao devido magistrado do tribunal. Os casos apresentados à Relação eram variados e, como não há listas, a generalização é difícil e inevitavelmente baseada em inferências. Quais eram a natureza c o volume dos crimes que chegavam à Relação? Como não existe compilação de casos para o período de 1609 a 1626, só podemos especular com base ern outros períodos. Uma relação de crimes violentos cometidos em Olirida em 1671 dava conta de 206 assassinatos ou ataques criminosos naquele ano, e as expressões "morto a punhaladas", "morto a espingarda" ou "morto a estocadas" se repetem com frequência. 28 A lista de exílios penais reproduzida por Charles Boxer e uma espiada nos Livros de Fiança e Perdão da Relação para o período de 1652 a 1750 indicam o predomínio de negros e muJalos entre os réus condenados pelos tribunais coloniais. ?y Obviamente, esses homens eram socialmente marginais e forçados a ultrapassar os limites do comportamento aceitável pelas diversas formas de discriminação ou pressão social. Além disso, quase sempre os escravos eram simplesmente usados para executar as vendetas de seus senhores e, quando apanhados, ficavam com o fardo da culpa. De vez em quando, porém, os senhores, incluindo desembargadores, intercediam em favor de seus escravos; os Livros de Fiança e Perdão estão salpicados de exemplos dessa natureza. 30 A impressão geral deixada pelos registros que chegaram até nós é a de urna sociedade afligida por muita violência e um submundo de salteadores, batedores de carteira e assassinos cruéis. O volume de litígios e de processos teria sido, por si, motivo de fracasso judicial. Apesar de os registros cartonais do período da primeira Relação já não existirem, pode-se fazer ideia do número de casos a partir de um documento do fim do século xvn. Nos dezenove meses decorridos de outubro de 1690 a junho de 1692, a Relação tomou conhecimento de ou revisou decisões de tribunais inferiores relativas a 4035 casos. Desses, 41% (1645) eram contra132

venções ou ações cíveis ouvidas pelos juizes de primeira instância í juízo ordinário); 41% (1662) consistiam de disputas sucessórias, eiveis e questões de tesouro; e 18% (728) eram processos criminais. Considerando-se que havia apenas dez desembargadores no tribunal baiano, a carga de trabalho parece extraordinariamente pesada.31 A repressão de crimes e a abertura de ações criminais eram tarefa do ouvidor-geral, cargo não desprovido de perigo. Pêro de Cascais, que serviu como ouvidor-geral por dois anos, prendeu mais de 170 pessoiii durante esse período, e em certa ocasião escapou por pouco de morrer nas mãos de um criminoso quando tentava fazer uma prisão.32 O costume de andar armado, próprio das zonas de expansão territorial, e a natureza rebelde dos colonos complicavam os problemas da justiça. A lâmina nua geralmente resolvia as diferenças e as partes em conflito por terras preferiam incendiar as propriedades do contendor a mover uma ação.33 Crimes de paixão e violência decorrentes de afrontas à "honra" geralmente provocavam comentários de visitantes que andavam pelo Brasil nos séculos xv i e xvni. Ainda hoje, pôr "chifres" em alguém (sinal do marido de adúltera) é, no Brasil c em Portugal, um desafio à luta. Os portugueses coloniais, disse o inglês Richard Ligon, em meados do século xvn, "têm mais ciúme de suas amantes cio que os italianos de suas esposas".34 A atitude protetora dos portugueses para com suas mulheres era quase lendária, mesmo entre os outros povos mediterrâneos que compartilhavam a tradição do isolamento feminino. Não se tratava apenas de um comportamento esperado, a lei permitia o assassinato de uma mulher infiel e de seu amante pelo marido enganado.35 O francês Pyrard de Lavai, que visitou Salvador em 1610, deu notícia de um caso em que João de Meneses, filho do governador Diogo de Meneses, foi flagrado nos braços da mulher de outro homem. Tanto a mulher como o amante receberam alguns ferimentos de espada do furioso marido, muito embora, neste caso, não tenham sido fatais. Na verdade, João de Meneses e seus irmãos tinham um histórico de assediar mulheres à vontade, insultar ou ferir os maridos e depois se escudar em sua posição de privilégio para evitar punição. Em 1612, o advogado Jorge Lopes da Costa acusou João de Meneses de cometer adultério com sua mulher. 36 Essa acusação e as outras queixas sobre o comportamento dos filhos do governador levaram a uma investigação conduzida pelo desembargador Manoel Pinto da Rocha. Aparentemente, nenhuma acusação foi feita perante a Relação, mas a 133

investigação deve ter bastado para acalmar o ardor dos irmãos. Nunca mais se ouviram queixas contra eles. Outro escândalo desse tipo é muito interessante porque lança luz sobre as possibilidades de subverter a justiça. Em 1614, Pêro de Cascais, como ouvidor-geral, tinha prendido um jovem fogoso que seduzira a mulher de outro homem e a mandara a Portugal para guardá-la em lugar seguro. Era delito grave, punível com a morte, e o culpado agravara o crime resistindo à prisão. O jovem em questão, entretanto, era sobrinho de Baíthasar Ferraz, o velho desembargador que viera para o Brasil em 1588 com o malfadado primeiro tribunal. Ferraz permanecera na colónia e em 1614 era um membro influente, rico, admirado e bem relacionado da sociedade baiana — proprietário de terras e amigo íntimo de Garcia d'Ávila, um dos homens mais poderosos do Brasil.37 Baíthasar Ferraz trabalhou com tanta diligência eliminando testemunhas, preparando uma defesa e, ao que tudo indica, recorrendo a ligações profissionais no tribunal, que a Relação inocentou o culpado. A reação da comunidade foi forte e o clero trovejou do púlpito contra a decisão injusta, advertindo que Deus faria sua própria justiça. Pouco depois, um acidente no mar provocou a morte do sobrinho e do único filho de Ferraz; o velho advogado, arrasado com a perda, morreu depois de confessar no leito de morte: "Padre, Deus me castiga em querer que eu morra agora e meu sobrinho me cause a morte".38 A justiça divina, porém, não era parte regular do aparato legal: o sucesso de Ferraz em libertar o sobrinho mostrou o que um advogado bem relacionado, com amigos no tribunal, era capaz de conseguir. A natureza dramática de tais episódios não deve ocultar o fato de que a Relação gastava a maior parte do seu tempo com as complexidades das brigas por terra e de contratos de dízimos contestados. Além disso, a Coroa via, especificamente, a proteção legal dos interesses reais e a aplicação da lei como deveres básicos do Tribunal Superior. Nas questões que afetavam claramente os interesses da Coroa e em relação às quais as tarefas da Relação eram explícitas, os magistrados estavam prontos a agir com vigor e presteza. Como a avaliação do desempenho de um magistrado e o decorrente avanço na carreira se baseavam, em grande parte, em sua obediência às normas profissionais e no empenho com que protegia os interesses reais, os juizes tomavam cuidados especiais para aparecer sempre como advogados da causa do rei. Na verdade, as ações dos magistrados geralmente eram limitadas por pressão social na colónia ou 134

influenciadas por objetivos pessoais, mas eles nunca perdiam de vista a necessidade de aparecer como protetores dos assuntos do rei. Duas questões, uma delas um problema crónico e a outra um acontecimento extraordinário, podem servir de ilustração da atuação do tribunal nessa esfera. A Relação interessou-se viva e ativamente pela repressão do comércio ilegal de pau-brasil. O período de 1602 a 1610 tinha assistido não apenas a uma intensa atividade de açambarcadores estrangeiros no comércio da madeira, mas também a muitas ilegalidades no comércio autorizado. Foi por essa razão que em 1605 Sebastião de Carvalho foi enviado a Pernambuco para investigar tais irregularidades e crimes e processar os culpados.39 Excessos no corte do pau-brasil tinham, peia altura dos primeiros anos do século xvn, causado considerável desfiorestamento no litoral, de modo que em 1605 a Coroa tomou providências para conter o processo. Um novo regulamento para o corte de pau-brasil foi publicado, prevendo severas penas de morte e confisco para quem desrespeitasse a lei. Quando a Relação chegou em 1609, o corpo de leis municipais que trazia incluía uma exortação especial para manter vigilância sobre as leis contra o desfio restamento. Além disso, os acusados na investigação de Carvalho que ainda estavam no Brasil foram entregues à Relação para serem processados.40 Navios franceses, ingleses e holandeses, por vezes guiados por pilotos portugueses, e geralmente com a cumplicidade de moradores locais, continuavam a embarcar cargas de pau-brasil na costa. A Relação interessou-se viva e ativamente pela repressão desse comércio ilegal Em 1612, dois navios estrangeiros foram apreendidos — um em Ilhéus e outro em Ilha Grande, perto do Rio. Alguns prisioneiros, incluindo ingleses, escoceses e flamengos, foram mandados para a Bahia, a fim de serem processados pelo promotor da Coroa, Afonso Garcia Tinoco.41 Apesar de ter surgido uma disputa jurisdicional entre o provedor-mor e a Relação, ficou claro que o processo contra essas violações da lei era de responsabilidade da Relação. Havia àquela altura, no entanto, alguma dúvida sobre a competência da Relação para julgar estrangeiros, e a questão foi submetida a Portugal. A Coroa respondeu que em circunstância alguma presos estrangeiros deveriam ser mandados para Portugal, e que nos casos que não envolvessem pena de morte eles seriam enviados para o exílio em Angola, onde cumpririam pena de serviços forçados.42 Quatro dos prisioneiros levados para a Ilha Grande foram condenados à morte pela Relação, mas os juizes demons135

traram certa relutância em executar a sentença. A Coroa, apesar de lamentar a demora, converteu a pena em serviço perpétuo nas galés.43 Em 1616, o desembargador Manoel Jácome Bravo fez uma investigação na Paraíba e ouviu relatos de cumplicidade portuguesa no incidente de 1612 na Ilha Grande. Em 1619, Antão de Mesquita tomou depoimento de um índio sobre quatro navios franceses que foram apanhar madeira em Porto Seguro.44 O interesse da Coroa nesse assunto foi realçado pelos relatos de seus agentes na Europa, encaminhados ao Brasil, advertindo sobre recentes ou planejados embarques. Como muitas dessas empreitadas eram auxiliadas por moradores, estrangeiros no Brasil tornaram-se altamente suspeitos de cumplicidade e a' Coroa ordenou que todos fossem expulsos da colónia.'15 A ordem nunca foi plenamente cumprida, mas esses estrangeiros residentes, quando flagrados no negócio ilegal, eram processados. Rodrigo Pedro, um holandês casado com uma portuguesa c residente no Espírito Santo, por exemplo, foi preso quando guiava três navios holandeses para o Brasil. Para vexame da Relação, entretanto, os navios escaparam.'16 Depois de 1621, a ameaça dos açambarcadores estrangeiros tornou-sc ameaça de ataque militar e, mais do que de comércio clandestino e intermitente, de ocupação permanente. A supressão, ou pelo menos o controle, do corte ilegal de pau-brasil na segunda década do século xvu, porém, foi resultado, basicamente, da atividade da Relação. A aplicação das leis, a proteçào dos interesses reais e o cumprimento de instruções eram questões relativamente fáceis para os desembargadores, quando a situação ou o acontecimento eram esperados. Mas eventos extraordinários deixavam a Relação, como a maioria dos órgãos administrativos do governo colonial, temporariamente paralisada pela falta de capacidade para improvisar e pela inflexibilidade. Os governadores que tinham o poder de tomar decisões nem sempre agiam com presteza e determinação, e os colonos reagiam tirando proveito da situação ou recusando-se a enfrentá-la. Apesar de ser possível descrever as funções da Relação como judiciais e administrativas, às vezes era difícil distinguir os dois domínios. Na verdade, nenhum conceito real de divisão de poderes existia, e não era raro que os mesmos homens fossem investidos de poderes próprios a mais de um cargo ou jurisdição. Não há dúvida de que a Relação, como seus modelos europeus, deveria funcionar basicamente como um tribunal de segunda instância, mas as funções tradicionais, somadas à necessidade da Coroa de contar com funcioná136

rios leais e experientes nas colónias, ampliaram o âmbito de suas acões. Kso aeralmente cumulava os magistrados de responsabilidade^ pesadas c às vezes conflitantes. A Relação raramente exercia amplos poderes administrativos independentemente dos desejos do governado r-gê r ai. A posição de presidente' da Relação exercida pelo governador-geral punha os magistrados sob sen controle, e limitava as opções do tribunal em questões políticas. Essa situação era semelhante à ligação do vice-rei da índia com a Relação de Goa ou cio vice-iei do Peru com a Audiência de Lima. A Relação da Bahia de fato participava da administração política da colónia, uma vez que tanto a tradição como as circunstâncias permitiam esse papel, mas só em circunstâncias excepcionais esse aspecto das atribuições do Tribunal Superior se torrava importante. Entre 1604 e 1621, por exemplo, os governadores-gerais estiveram com irequência ausentes cia Bahia e cm seu lugar o chanceler do Tribunal Superior e o provedor-mor costumavam assumir a liderança administrativa. Essa situação deu à Relação um papel maior na formulação política e na administração. Mas as iunções tradicionais dos magistrados incluíam também tarefas administrativas e semiad ministrativas, que decorriam de suas responsabilidades na correcao de abusos e falhas no processo judicial. A Coroa via a Relação como leal e inteligente fonte de informações, cujas opiniões em questões locais sempre levavam em conta os interesses reais. O chanceler podia corresponder-se diretamente com o trono e assim ter papel ativo na formulação política. Os magistrados, vistos pela Coroa como funcionários leais e confiáveis, geralmente eram convocados para realizar tarefas não judiciais. No Brasil, a Relação funcionou com frequência como conselho consultivo em questões de bem-estar comum. Ao voltar para Portugal, canto os desembargadores como os governadores-gerais eram chamados para aconselhar a Coroa no que dizia respeito a problemas ou nomeações no Brasil. A Coroa reconheceu formalmente as funções consultivas da Relação em 1611, quando a legislação indígena daquele ano convocou a Relação a romnr parte em deliberações sobre a validade da guerra contra os índios. As decisões políticas tomadas pelo Tribunal Superior reunido sob a presidência do governador-geral eram chamadas acórdãos. Esse arranjo formal raramente foi u.sado, porém, no século XVTI. Km vez disso, o governador-geral ou um dos conselho;; reais simplesmente apelava para a Relação quando havia necessidade de uma

opinião. Os governadores-gerais também usavam o Tribunal Superior como fonte de informações precisas e como conselho consultivo. Em 1612, o governador Diogo de Meneses fez exatamente isso, quando estabeleceu, a conselho do Tribunal Superior, uma Câmara municipal no Rio Grande do Norte.47 Tanto a Relação como os magistrados individualmente por vezes eram usados como fontes de informação. Em 1613, o governador Gaspar de Sousa sugeriu que uma Casa da Moeda fosse estabelecida no Brasil para acabar com a crónica escassez de moeda e libertar a colónia de sua dependência da prata importada da América Espanhola. O Conselho da Fazenda resolveu cotejar o relatório do governador com outra fonte de informação, e apelou para a Relação, que foi solicitada a submeter uma opinião sobre o assunto. A Relação declarou que a cunhagem de moeda de cobre no Brasil seria muito benéfica para os colonos, uma vez que as moedas seriam usadas em todas as transações diárias e reduziriam o preço dos artigos de primeira necessidade. A proposta não foi adotada, e o Brasil continuou sem uma Casa da Moeda até 1694. Mas a Coroa emitiu 6 mil cruzados em moedas de cobre em Portugal, a serem mandadas para o Brasil a fim de amenizar a escassez. Quando certas medidas podiam ser úteis tanto ao rei como aos colonos, a Relação não hesitava em propor reformas.48 Os desembargadores também ofereciam, individualmente, conselhos à Coroa. Em 1617, Antão de Mesquita, que servia como advogado da Coroa, sugeriu o estabelecimento de um monopólio real sobre o gengibre, como medida benéfica tanto para a Coroa como para os colonos. A cultura do gengibre era bastante viável na Bahia, mas em 1577 grupos portugueses envolvidos no comércio da índia tinham convencido a Coroa a proibir a produção de gengibre no Brasil, como forma de manter o preço do produto indiano. Os colonos baianos tinham ignorado a lei, e Antão de Mesquita sugeria apenas que um monopólio real produziria receita para o Tesouro, ao mesmo tempo que permitiria aos colonos cultivar gengibre legalmente, acabando com a necessidade de vender o produto em segredo aos holandeses e aos ingleses. Cabe lembrar que Antão de Mesquita era um dos magistrados casados no Brasil e, portanto, talvez fosse mais afinado com os sentimentos coloniais do que seus colegas.49 O uso dos magistrados do Tribunal Superior para executar tarefas extrajudiciais de natureza fiscal, investigativa ou administrativa aumentava as atribuições e também os poderes dos juristas profissionais. A magistratura oferecia uma reserva de funcionários capazes, treinados e leais, onde a Coroa podia 138

buscar o pessoal de que precisava para várias missões especiais. Algumas dessas tarefas simplesmente faziam parte da administração ordinária do governo. Atribuições fiscais como a coleta de 1% do imposto sobre as vendas para a construção de igrejas (obras pias) ou a administração de fundos coletados dos cristãos-novos eram da alçada do juiz da Coroa, Afonso Garcia Tinoco.50 Desde o fim do século xvn e por todo o século xvm, o número e a diversidade dessas tarefas extras, afastando cada vez mais os juizes de suas obrigações normais, prejudicaram seriamente suas atribuições judiciais. A Coroa também apelava para os desembargadores a fim de formar e conduzir os diversos comités ad hoce investigações que se tornaram parte integrante do processo administrativo. O primeiro exemplo desse fenómeno ocorreu entre 1613 e 1615, e ilustra como os magistrados podiam ser usados pela Coroa. O comércio de contrabando, a fraude, a evasão fiscal e a especulação exigiam um remédio. Em 1612, a Coroa nomeou André Farto da Costa, primo de Jorge Lopes da Costa, secretário da Alfândega de Lisboa, e o mandou imediatamente para o Brasil a fim de encabeçar uma Junta da Fazenda especial destinada a conduzir uma devassa na colónia. A Junta era formada pelos desembargadores Francisco da Fonseca e António das Póvoas, por Farto da Costa e pelo provedor-mor Sebastião Borges. A primeira sessão da Junta realizou-se em Salvador, em 9 de fevereiro de 1613, e ela continuou a reunir-se intermitentemente até 1615.51 A Junta concentrou-se no uso impróprio e na apropriação indébita de fundos por funcionários da Alfândega e do Tesouro. Os dois desembargadores da Junta ficaram incumbidos de fazer as acusações formais, que eram encaminhadas ao advogado da Coroa na Relação. O Tribunal Superior, então, sentenciava os culpados, geralmente ordenando o reembolso dos fundos desviados. Livros de contabilidade eram examinados, impostos atrasados, recebidos e os culpados, repreendidos. Os infratores geralmente dispunham de dois a três anos para reembolsar o Tesouro real.52 Uma questão mais difícil, com implicações políticas, era a eliminação do contrabando na área do rio da Prata, na América Espanhola. A Junta não só tentou eliminar a navegação ilegal, mas também reclamou da prática de permitir que navios espanhóis autorizados embarcassem produtos no Brasil sem pagar tarifas alfandegárias. Por recomendação da Junta, o governador Luís de Sousa e a Relação ordenaram que "quaisquer bens autorizados que os castelha-

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nos embarquem neste estado para o rio da Prata têm de pagar o dízimo, pois eles não são nativos e os bens vão para um país estrangeiro'/11 As relações entre a /unta e outros órgãos do governo eram às vezes tensas. Os amplos poderes da Junta provocaram o ressentimento de funcionários reais e de Câmaras municipais. O governador Luís de Sousa queixou-se de que André Farto d,-) Costa não se dignara sequer a apresentar-lhe suas credenciais ou a revelar suas instruções, tendo se limitado a mostrar-lhe "maços cerrados". Sublinhando tal animosidade, entretanto, estava o ataque da Junta à proliferação de posições não autorizadas preenchidas pelos amigos e apaniguados do governador e pagas pelo Tesouro real Ern geral, os governadores tinham permissão para manter uma guarda pessoal de vinte homens, à custa da Coroa, rnas a Junta considerou que sinecuras tais como a de "assistente do sargento-mor de Pernambuco" eram totalmente desnecessárias. Apesar de o governador ter se queixado a Portugal da eliminação desses cargos, o Conselho da Fazenda apoiou a ação da Junta.54 As Câmaras municipais em Salvador e Pernambuco relutaram crn submeter seus livros-razão à inspeção de Farto da Costa. A Câmara da Bahia chegou a acusá-lo de retirar ilegalmente fundos dos cofres do imposto sobre o vinho e usá-los sem autorização."' Do mesmo modo, os membros da Relação não estavam satisfeitos com as ações da Junta. Os desembargadores que tinham cedido ao hábito de dar emprego a amigos e assistentes ressentiram-se da revelação dessas sinecuras. Os apelos dos culpados desembargadores, das Câmaras municipais e do governador contaram com pouca simpatia em Portugal e o Conselho da Fazenda apoiou as ações da Junta, consideradas de "muito fruto e proveito a fazenda de Vossa Majestade".5Ó As ações da Junta obviamente desagradaram a muita gente, mas em geral seus eíeitos foram benéficos para a colónia. Na conclusão do seu serviço no Brasil, em 1616, André Farto da Costa obteve cartas de recomendação da Câmara da Bahia, do desembargador Francisco da Fonseca e de Vasco de Sousa Pacheco, capitão-mor de Pernambuco, que jurou que "depois da vinda da Junta a este Fstado, questões do tesouro real [...] foram tratadas da forma apropriada, de um modo diferente do que se fazia anteriormente".57 Conflitos com as Câmaras municipais, com o governador e mesmo com a Relação foram relativamente abafados e a Junta prestou notável serviço à colónia, apesar de alguns abusos terem persistido. A Junta da Fazenda era separada da Relação, mas a 140

participação nela de membros do Tribunal Superior vinculou o o. gão ad hoc e o permanente do governo. A Relação cooperou não apenas processando .>s culpados, mas também atuando como órgão consultivo. Apesar de alguns poucos desembargadores terem sido repreendidos por distribuírem sinecuras o de a Relação e a Junta nem sempre verem toclos os problemas com os mesmos olhos, uma e outra se complementavam. De longe a tarefa mais importante desempenhada pelos desembargadores como representantes da autoridade central era a de juizes itinenmtes e investigadores especiais nas várias capitanias do Brasil. Desembargadores em missão geralmente eram instrumentos da aplicação de políticas e às vezes ate as criavam, como resultado de suas investigações. O poder magistrático de conduzir investigações periódicas ou especiais em áreas remotas de sua jurisdição ou mesmo em regiões que normalmente estariam fora do seu controle não era invenção recente. Hm Portugal, corregedores tinham, tradicionalmente, executado essa função e desembargadores eram periodicamente mandados em missões investigatórias especiais. A novidade no Brasil era o uso regular de desembargadores residentes como investigadores judiciais em áreas remotas. A geografia administrativa do Brasil no século xvji dividia a colónia em quatro grandes unidades. O Norte distante, o estado do Maranhão, era administrado diretamente de Lisboa e, depois de 1621, tinha seu próprio governador-geral. A costa do Nordeste era dominada por Pernambuco, a capital económica do Brasil. Essa capitania e a vizinha Paraíba continham mais lavoura de cana e um comercio de pau-brasil maior do que qualquer outra região do Brasil. Foi um empreendimento altamente lucrativo para o clã Albuquerque Coelho, proprietário legal da capitania. Na costa central a Bahia dominava a região e eclipsava os vizinhos Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo e Sergipe d'El Rey; a capitania de transição entre Pernambuco e Bahia. As capitanias meridionais, politicamente independentes da Bahia de 1608 a 1613, eram administradas do Rio de Janeiro, a capital do Sul, onde a família Correia de Sá dominava. Mais para o sul, a capitão ia de São Vicente continha a atípica cidade interiorana de São Paulo, centro conhecido por sua indiferença à autoridade central e pela natureza exaltada e independente de seus habitantes predominantemente mestiços. Os funcionários de cada capitania, fossem nomeados pelo rei ou pelo proprietário, eram submetidos a uma investigação no término de seu tempo de serviço. Ao fim de cada triénio, a Relação fazia um exame do desempenho do 141

funcionário que saía.58 Tais investigações ocorriam no Brasil antes da chegada da Relação, mas, logo que o estabelecimento de um Tribunal Superior para a colónia foi planejado, sua responsabilidade por essas tarefas foi autorizada pela Coroa.59 Como presidente da Relação, o governado r-gê r ai escolhia um desembargador para visitar a capitania e realizar a investigação necessária. O governador-geral — ou, em sua ausência, o chanceler — dava instruções e autorização para o inquérito e esperava-se que o magistrado nomeado tomasse conhecimento de quaisquer outras irregularidades cometidas na área. Esperava-se, também, que anunciasse a investigação num raio de seis léguas da cidade em questão e exigisse testemunhos e acusações. Os documentos pertinentes eram então encaminhados para a Relação, juntamente com a opinião do desembargador. Normalmente, o desembargador examinava o desempenho de alguns funcionários e geralmente sua viagem incluía mais de uma capitania. Manoel Pinto da Rocha foi autorizado em 1620 a fazer uma devassa do capitão-mor e de todos os funcionários judiciais e fiscais de Itamaracá, assim como do capitão-mor e do ouvidor da Paraíba.60 O desembargador viajou acompanhado de pelo menos um escrevente e um meirinho. Manoel Jácome Bravo, enviado às capitanias do Sul em 1614 para fazer uma residência do ouvidor-geral do Sul, fez-se acompanhar de um escrevente, um meirinho, uma guarda de quatro soldados e dois negros armados de piques, cada um dos quais recebia uma diária paga pelo Tesouro. Um incentivo para agir com rigor, entretanto, estava presente na estipulação de que essas diárias e o salário do desembargador seriam aumentados se pudessem recair sobre os bens dos culpados.61 Embora a Relação, como tribunal de apelação, exercesse suas tarefas nas capitanias quando convocada por uma parte ofendida, agindo, assim, de acordo com a vontade dos colonos, sua função corno instituição investigatória e semiadministrativa era motivo de animosidade e rancor regionais. Em nenhum outro lugar isso era mais evidente do que nas capitanias meridionais, onde o status judicial semi-independente e o curto histórico de separação administrativa tornavam seus habitantes muitos sensíveis ao controle ou à interferência centrais. Em 1612, 1619e 1624, um magistrado da Relação foi enviado para o Sul em missões de investigação, inspeção e revisão. Cada um deparou com a hostilidade de algum grupo ou funcionário e vez por outra o resultado foi o desafio ao desembargador visitante. Esse foi certamente o caso quando Manoel Jácome Bravo chegou ao Rio de 142

Janeiro em 1612 para fazer uma devassa do ouvidor-geral do Sul e do governador do Rio de Janeiro, Afonso de Albuquerque. Em nome do governador do Brasil, Bravo também ficou com a responsabilidade de reintegrar as capitanias meridionais ao resto do Brasil.62 A situação no Rio de Janeiro era turbulenta. Afonso de Albuquerque e seu aliado, o prelado Matius Aborim, tinham insultado a Câmara municipal a tal ponto que os vereadores abertamente fizeram pouco da autoridade do governador local. Albuquerque revidara ordenando a prisão do presidente da Câmara e, quando o ouvidor se recusou a cumprir a ordem, também foi preso. A cidade estava em pé de guerra e Bravo esperava restaurar a ordem e punir os culpados. Mas descobriu que todos os seus movimentos eram barrados pelo governador e pelo prelado; o governador prendeu a guarda do desembargador e o prelado o excomungou, impedindo, com isso, que exercesse cargo público. Os ânimos se inflamaram e, a certa altura, alguém disparou uma flecha com um recado ameaçador nos alojamentos de Bravo. A situação só foi controlada em dezembro de 1613, quando Constantino Menelau foi nomeado para substituir Afonso de Albuquerque.63 Manoel Jácome Bravo tinha recebido seu batismo de fogo, mas logo percebeu que suas tribulações não haviam acabado. Seguindo do Rio para São Paulo, ele esperava continuar sua investigação sobre o estado da justiça nas capitanias meridionais. São Paulo, interiorana e remota, não estava acostumada à supervisão regular do ouvidor-geral do Sul e os magistrados locais aplicavam leis desagradáveis com calculada negligência.64 Como a principal ocupação de muitos paulistas era caçar índios para escravizar, a lei de 1609 não fora bem recebida, e mesmo depois da lei de 1611 o tópico continuara especialmente controvertido e potencialmente explosivo. A chegada de Bravo a São Paulo foi motivo de consternação, especialmente quando ele começou a tratar de "questões do sertão".65 Os moradores da cidade responsabilizaram a Câmara por não proteger os interesses locais e o advogado da Câmara tentou dissuadir Bravo de continuar a explorar esse aspecto de sua investigação, porque, disse ele, o resultado seria a fuga dos moradores da área e o despovoamento da terra.66 Mas a resposta paulista não foi inteiramente verbal e houve atentados contra a vida de Bravo em várias ocasiões, com flechas disparadas contra sua janela. Os desembargadores enviados para manter a lei e a ordem em São Paulo achavam sua missão perigosa sempre que tocavam no nervo sensível da questão indígena. 143

A hostilidade e a oposição encontradas por Manoel Jácome Bravo talvez tenham influenciado seu sucessor, Antão de Mesquita de Oliveira, a adotar uma atitude menos ofensiva aos interesses locais. E provavelmente suas relações pessoais com a elite colonial o tornaram mais sensível a seus sentimentos. Ele chegou às capitanias do Sul em 1619, com instruções para fazer uma residência de Conslantino de Menelau, o antigo governador do Rio de Janeiro. O novo governador, Rui Vá z Pinto, acusou o desembargador de não processar Constantino de Menelau e outros culpados de corte ilegal de pau-brasil e de cooperar com eles para obstruir a justiça. Parece que Antão de Mesquita tentava não contrariar a população, ainda que isso resultasse nas acusações feitas pelo governador do Rio, Rui Vaz Pinto.67 Antão de Mesquita chegou a São Paulo em 1619. Ele regulamentou o processo eleitoral da Câmara, limitou a jurisdição original do ouvidor ao costumeiro raio de dez léguas, ordenou o fortalecimento da cadeia de Santos e instruiu a Câmara a manter a estrada de São Paulo para Santos em boas condições. Como membro da Relação, Mesquita não podia ignorar a questão da liberdade indígena. Sua abordagem mais cautelosa consistiu em eliminar o atrito causado pelo problema, em vez de atacar frontalmente os interesses especiais e as causas subjacentes. Ordenou multa pesada e prisão para qualquer um que tomasse um índio de outro homem e reiterou a lei existente contra o cultivo de terras pertencentes aos índios. Antão de Mesquita parecia mais interessado em preservar as prerrogativas da justiça real do que em enfrentar a questão indígena e ressaltou que os infratores das leis contra a escravização estavam sob autoridade civil e não eclesiástica.^ Como resultado dessa atitude, ele encontrou pouca resistência em sua viagem de inspeção. Está claro que por volta de 1619 as devassas periódicas de funcionários feitas por magistrados cia Relação estavam vinculadas a uma viagem de inspeção e correção mais geral, na qual o desembargador itinerante se responsabilizava pela revisão e pela correção das condições locais. O poder de rever as ações dos administradores locais e de aprovar ou anular seus atos era, em si, pelo menos uma função semiadministrativa. Além disso, esses magistrados por vezes desempenhavam funções administrativas, como impor ou regulamentar novos impostos, mas esse poder ainda emanava das ordens do governador. Uma vez em cena, porém, as condições locais e a necessidade de ação imediata em uma época de comunicação íenta às vezes levavam os desembar144

gadores a tomar medidas administrativas que não estavam previstas especificamente em suas instruções. Esta não era uma inovação surpreendente. Corregedores em Portugal e ouvidores no Brasil tinham exercido autoridade semelhante — fato que no último caso explica por que os proprietários no Brasil com frequência reuniam as funções de ouvidor e de capitão- mor. Para a colónia em sua totalidade, entretanto, a autoridade administrativa continuou nas mãos do governador-geral. A visita feita em 1624 às capitanias meridionais pelo desembargador João de Sousa Cardenas demonstrou suas funções de corregedor e provocou a típica resistência de grupos regionais e privados à interferência central em questões locais.69 O próprio Cardenas declarou que sua missão era conduzir uma residência dos ouvidores e dos capitães-mores das capitanias do Sul, mas o registro existente de suas ações no Rio de Janeiro informa que ele veio "em correição"."" No Espírito Santo ele ordenou o reparo de prédios públicos, fez prisões, eliminou violações em procedimentos sucessórios e instituiu um novo imposto — tudo sem encontrar dificuldade.71 No Rio, porém, suas ações provocaram furiosa resistência. Ele ordenou obediência aos regulamentos existentes e emitiu novos, muitos deles diretamente relacionados às obrigações e aos poderes da Câmara. 72 Essas medidas administrativas deixaram claro que o magistrado podia exercer poderes que normalmente eram prerrogativas de funcionários e instituições locais. Tsso não surpreende, entretanto, uma vez que a separação entre os governos local e central nunca foi claramente definida. Duas ações, mais do que quaisquer outras, porém, despertaram a contrariedade dos cidadãos e das autoridades do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, Cardcnas, por ordem do governador-geral, Diogo Mendonça Furtado, criou um novo imposto (avaria) para cobrir os custos do fortalecimento das defesas da Bahia e de Pernambuco. A ameaça de ação militar holandesa contra o Brasil era real e Filipe iv naturalmente esperava que os portugueses pagassem por sua própria defesa. Ele deixou, porém, de levar em conta o ressentimento português e os interesses locais. No Rio de Janeiro, o novo imposto foi considerado um fardo tributário que beneficiava apenas a Bahia e Pernambuco e uma multidão irada obrigou Cardenas a buscar refúgio em Água da Carioca, a meia légua da cidade.73 O infeliz desembargador também provocou forte oposição com sua reforma do processo eleitoral da Câmara. O poder de revisar as eleições m u n i -

cipais tinha sido expressamente concedido a corregedores, ouvidores e desembargadores por uma lei de 12 de novembro de 1611, publicada em Portugal e registrada no Livro de Ouro da Relação, mas Cardenas pôs a lei em vigor tirando do rol de eleitores todos aqueles que não moravam ou não mantinham ao menos uma residência na cidade.74 Moradores das áreas circunvizinhas, empregados que recebiam por seus serviços, estalajadeiros e vendedores também foram excluídos. As mudanças perturbaram os padrões de poder e influência existentes e eram, obviamente, prejudiciais a elementos importantes da sociedade. Cardenas sofreu pressões, queixas contra ele foram encaminhadas a Portugal e parece que em determinado momento ele foi preso, juntamente com o ouvidor local. Mesmo assim, suas reformas foram implantadas.75 O uso de desembargadores da Relação como juizes itinerantes nas capitanias do Brasil, somado à suas frequentes ausências da Bahia no cumprimento de seus deveres normais, teve efeito deletério no desempenho do Tribunal Superior. Levantamentos de agrimensura geralmente tiravam o magistrado do tribunal em Salvador e as tarefas de juiz dos órfãos também incluíam uma viagem anual de inspeção de questões sucessórias em outras áreas.76 A contínua ausência dos juizes de Salvador e seu uso, pela Coroa, em funções não judiciais provocavam atrasos cada vez maiores na administração de justiça na colónia. A interferência dos magistrados em questões locais durante inspeções nas capitanias era motivo de animosidade, especialmente quando os interesses do governo central iam de encontro aos interesses das elites políticas ou socioeconômicas locais.

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8. Magistratura e sociedade

Porque do casar [os desembargadores] se seguem dois danos: o primeiro aparentar-se com quase toda esta terra, de que ficam sendo suspeitos. O segundo adquirirem fazendas de patrimónios com que se seguem contendas, demandas e às vezes brigas, Gov. António Luís da Câmara Coutinho (Bahia, 25 de junho de 1691)

Os sóbrios magistrados graduados na Universidade que desembarcaram no cais de Salvador em junho de 1609 penetraram num mundo colonial, um universo social baseado em modelos portugueses tradicionais, mas moldado para acomodar e superar as peculiaridades de uma sociedade e de uma economia em formação. Os magistrados representavam poder e status para essa sociedade, não apenas coletivamente, como tribunal, mas individualmente também. Em vista disso, uma descrição das ações do Tribunal Superior não pode explicar, por si mesma, o impacto desse órgão na sociedade brasileira. Burocratas são humanos e ignorar esse truísmo é perder de vista as relações dinâmicas existentes entre burocracia e sociedade. A história do impacto da burocracia no Brasil colonial é a história dos múltiplos, e por vezes divergentes, objetivos do governo metropolitano, dos interesses coloniais e dos próprios magistrados, seja individualmente, seja em grupo. Cada fator dessa equação 147

burocrática buscava dominar os outros e apropriar-se de certos recursos ou vantagens. Os fracassos e sucessos de cada um são, em certo sentido, a história da formação social e política do Brasil colonial. A Coroa percebeu que pressões sociais e económicas poderiam ser exercidas sobre a magistratura profissional e que a formação de vínculos entre os magistrados e a sociedade poderia criar metas alternativas além daquelas sancionadas pelas normas burocráticas. Em grande medida, a legislação relativa à magistratura profissional foi projetada para organizar todos os comportamentos magistráticos de acordo com padrões que servissem às finalidades administrativas reais. A justiça real e a burocracia real baseavam-se na honestidade e na imparcialidade da magistratura e, ao mesmo tempo, em sua obediência e lealdade ao rei. Talvez o juramento que cada desembargador fazia ao assumir formalmente o cargo seja a melhor medida do que a Coroa esperava de seus juizes. Dizia o juramento: Que não dei a nenhuma pessoa, darei nem prometi dar, nem mandar, nem mandarei coisa alguma, e alguma pessoa por causa de me ser doado este ofício f...l observarei bem direita e fielmente e guardarei inteiramente o serviço de Deus e do dito Senhor (El-Rei) e o direito e justiça igualmente as partes de qualquer natureza, sorte estado preeminência e condição que seja.1

Relatórios do governador e devassas periódicas apresentam outra medida do que a Coroa considerava como comportamento magistrático aceitável. A repetição de expressões como "de bom entendimento" e "de boas letras" aparece continuamente nas avaliações laudatórias dos magistrados.2 Essas descrições indicam que a competência profissional era altamente valorizada. Além disso, esperava-se dos juizes reais queprojetassem certa imagem. A Coroa queria que a vida pessoal deles fosse caracterizada por grande sobriedade e adjetivos como "sério, grave, capaz e prudente" estavam entre os mais altos elogios que um magistrado podia receber. Acima de tudo, entretanto, a expressão que aparece como um refrão nas avaliações dos magistrados é "limpeza de mãos" Um juiz de mãos limpas era um juiz não corrompido por suborno, malfeitoria ou interesses pessoais — um homem que se mantinha totalmente afastado da influência de outros e que vivia guiado apenas pelos regulamentos de sua profissão e pelos desejos da Coroa tais como expressos em ordenações reais. Taís homens eram poucos e raros. 148

A Coroa usava dois métodos para assegurar a lealdade, a imparcialidade e a eficácia administrativa dos juizes. Primeiro, por serem os desembargadores representantes da autoridade real, todos os esforços eram empregados para elevá-los acima da sociedade e dar-lhes, por meio de prestígio, rique/a e influência social, uma posição de respeito inatacável. ,\e colonial dava grande importância ao status atribuído. Um rico proprietário de terras com veleidades de nobreza não acedia prontamente à lei aplicada por homens eme ele considerava socialmente inferiores. Como veremos, .muito poucos desembargadores provinham de famílias fidalgas e por isso lhes faltava : sigue que falta gente para labrar y cultivar Io s campos, para los ofícios mecânicos, para marineros, y sobre todo para Ia guerra y exercício de armai com Ias quales elRcyno de Portugal se ha fundado estabelecido y crescido.14

Aí estava a clássica batalha entre as armas e as letras que os ibéricos vinham discutindo desde o século xv.15 Os Impérios de Espanha e Portugal, nascidos da coragem de seus soldados, se haviam tornado grandes estruturas mercantis, construídas em torno de armações burocráticas. Com essas estruturas assediadas por dificuldades cada vez maiores, espanhóis e portugueses olhavam para trás, para os prósperos dias de Cortês e Vasco da Gama, e idealizavam uma época mais simples e heróica, povoada de bravos soldados, e não de advogados chicaneiros. De Goa à Bahia e ao Porto, as críticas à magistratura, à profissão legal e ao próprio sistema judiciário atingiam novos níveis de intensidade. Diogo cie Couto, em seus Diálogos do soldado, observou que na índia portuguesa a violação das leis e o uso de brechas legais haviam se transformado numa arte nas mãos dos advogados. 16 Suas observações foram repetidas por Francisco

Rodrigues de Silveira, outro homem que servira no Exército além do Cabo da Boa Esperança e que lamentava ver terras conquistadas com o sangue de soldados entregues a advogados venais e nobres inexperientes. Ele considerava as condições em Portugal ainda piores, com poderosos magnatas e funcionários desonestos transformando a justiça numa farsa. Os comentários de Rodrigues de Silveira sobre a Relação do Porto estão impregnados de implicações para o tribunal irmão da Bahia, pois suas queixas são também as queixas dos colonos americanos. Rodrigues de Silveira afirmava que o Tribunal Superior do Porto, criado para acelerar o processo judicial, tinha, na realidade, estimulado mais litígios, o que tornava o processo ainda mais lento. Num acesso de autocrítica, ele atribui parte da culpa à "natureza inquieta e contenciosa dos portugueses, que, em sua inclinação para processos e trapaças fabricados na oficina de sua malícia, seu ódio, sua inveja e sua má vontade, excedem todos os outros países do mundo".17 A crítica exagerada e o boato maldoso eram características nacionais que muitos autores portugueses dos séculos xvi e xvn lamentavam.18 Para alguns, o efeito mais deletério desses maus hábitos era o fato de quase sempre resultarem em litígios. No Brasil, como vimos, havia uma longa tradição de sentimentos antijudiciais. Um bom exemplo da segunda década do século xvn pode ser encontrado no Livro que dá razão do Estado do Brasil (1612), de Diogo de Campos Moreno. Como sargento-mor do Brasil, Campos Moreno manifestava a antipatia normal do soldado pelo letrado e pelos clérigos. Dizia ele que as brigas por motivos fúteis e as calúnias dos colonos tinham efeitos perniciosos porque "daí nasce tanto trocar, tanto mentir, tanta trapaça que as novas delas não fazem mais que acarretar bacharéis à pobre província". Em suas palavras, "nesta cidade [Salvador] se tem a Relação por coisa pesada".19 O clima de sentimento antijudicial em todo o Império e o crescente clamor por reformas levaram o assunto à consideração da Coroa. Os custos cada vez mais altos da burocracia e a multiplicação aparentemente infinita de funcionários, especialmente nos cargos não profissionais, eram fonte de dificuldades aparentemente intermináveis. Em 1623, as demandas dos magistrados por promoções, somadas às críticas antijudiciais, fizeram a Coroa examinar o problema em profundidade. Foi preparada uma lista de todos os magistrados reais em Portugal e, apesar de os magistrados do Tribunal Superior e os juizes coloniais não terem sido incluídos, a lista continha 214 juizes servindo ou aguardando nomeação.20 O Desembargo do Paço, como era de esperar, votou contra 186

qualquer diminuição das fileiras magistráticas, mas essa ação de 1623 e a já mencionada lei espanhola de 1624 deixam claro que o monarca Habsbureo de Espanha e Portugal estava muito preocupado com a burocratização de seus Impérios e os problemas decorrentes. Num contexto de insatisfação geral com o sistema judicial, desejo real de enxugar as fileiras da magistratura e dificuldades económicas cada vez maiores, é fácil compreender o apelo de um argumento de base fiscal em favor da abolição do Tribunal Superior do Brasil. Deve-se ter em mente, entretanto, que, apesar dos ressentimentos válidos, o ataque geral à profissão legal e à magistratura real também constituía uma tentativa, por parte da velha aristocracia militar e das novas elites coloniais, de conter a maré de centralização real; tratava-se de uma escaramuça na longa guerra entre o poder real e os interesses de corporações e de classe. Na primeira metade do século xvn, o momento era propício para essa investida. A Coroa, em face do espectro de uma guerra global, mais uma vez precisava dos seus nobres. No Brasil, surgiram condições específicas que geraram novas queixas contra o judiciário e fortaleceram a posição dos adversários da magistratura. A perturbação causada pela campanha militar de 1625-6 e a contínua presença de autoridades militares em Salvador depois de sua reconquista criaram novas condições de conflito. Ao reocupar a cidade, o comandante-chefe, d. Fradique de Toledo, ordenou que a Relação entregasse os documentos de sua investigação sobre a débâcle da cidade à maior autoridade legal da frota. Era uma questão extremamente melindrosa, uma vez que muitas pessoas importantes, incluindo o bispo, tinham agido de maneira não exatamente heróica. Além disso, muitos cristãos-novos haviam sido acusados de colaborar com os holandeses e o antissemitismo alastrava-se pela cidade.21 Circulavam boatos de que uma "punhalada pelas costas" dada pelos judeus provocara a captura da cidade e até de que os judeus tinham envenenado o bispo.22 Alguns cristãos-novos foram sumariamente condenados à morte por d. Fradique de Toledo, mas a Relação reclamou contra a interferência dele em sua jurisdição. O chanceler Antão de Mesquita queixou-se à Coroa da atitude do almirante e os prisioneiros foram libertados. É impossível determinar se os acusados eram "apadronados pela nobreza da colónia", como alegou um informante, mas o envolvimento de Antão de Mesquita, o juiz que se revelara o mais estreitamente ligado aos interesses coloniais, dá alguma credibilidade à história.23 187

A investigação sobre a queda da Bahia em 1624 foi finalmente conduzida pela Relação. O Tribunal Superior tinha conseguido manter à distância d. Fradique de Toledo e as autoridades militares, mas agora outros grupos poderosos também estavam interessados em sua abolição. Tanto os êxitos como os fracassos da Relação lhe haviam custado inimigos, alguns deles suficientemente poderosos para influenciar conselhos metropolitanos. Quem defenderia a Relação e argumentaria em favor de sua permanência? Certamente não o bispo nem o clero diocesano, que tinham lutado encarniçadamente com os magistrados e a certa altura proposto o fim do Tribunal Superior. Os barões do açúcar, menos capazes de impor sua vontade a arrendatários e trabalhadores, não desperdiçavam seu amor com a Relação, nem a Câmara de Salvador, que de modo geral representava os senhores de engenho. Os proprietários c as Câmaras de outras capitanias do Brasil, ansiosos por se livrar das visitas periódicas e das investigações dos desembargadores, certamente não intercederiam em favor da Relação. Em suma, a Relação tinha feito inimigos demais» e o maior deles era o clã dos Albuquerque Coelho de Pernambuco. Pernambuco era, por todos os cálculos, a capitania mais rica do Brasil colonial. Ainda era uma área importante de exportação do pau-brasil e abrigava mais de 150 engenhos em redor da cidade de Olinda.-"3 A partir de meados do século xvi começou a crescer por lá um ressentimento contra o domínio político baiano e o controle real.-5 Colonos pernambucanos ressentiam-se das funções investigativas e reguladoras exercidas pelos desembargadores em suas viagens pelo interior. Como vimos, essas viagens provocaram muita hostilidade em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde os colonos tinham oferecido oposição legal e física à interferência da Relação. Em Pernambuco, essa resistência à autoridade real era especialmente forte, pois a capitania nortista prosperara no sistema descentralizado dos donatários. A família Albuquerque Coelho c a oligarquia açucareira exerciam grande dose de controle político sobre os assuntos locais, e ressentiam qualquer interferência de Portugal ou de Salvador. O exercício da autoridade, por parte da Relação, naquilo que o proprietário, Duarte de Albuquerque Coelho, e seu irmão, Matias de Albuquerque, consideravam seus domínios, era motivo certo de conflito. Além disso, sua oposição era apoiada pela oligarquia açucareira da capitania nortista, que pelo início do século XVH manifestava um senso cada vê?, maior de interesse regional.

É impossível reconstruir uma lista completa das queixas OMPÍV-, -pernambucanas , t r p ^.ici uus contra a Relação e o governo central, mas dos documentos existentes um padrão claro de hostilidade c irritação com o controle baiano Os bucanos tinham obtido grandes lucros com o comércio leoal e ilegal t- a.' • r gação de André Farto da Costa em 1613, da qual a Relação participara h- •'• atingido muita gente. A Câmara de Olinda, representando interesses loc-ús tentara, com subterfúgios c táticas protelatórias, atrapalhar a investigação - r Além disso, as investigações judiciais periódicas provavelmente causaram tanta hostilidade em Pernambuco como no Rio de Janeiro. Em setembro de 1612, por exemplo, Afonso Garcia Tinoco e dois outros desembargadores receberam ordens para conduzir uma investigação de todos os funcionários em Pernambuco, ouvir todos os casos apresentados aos juizes locais e assistir na distribuição de sesmarias na capitania nortista do Rio Grande." A essa oposição regional de praxe ao controle central deve-se acrescentar o fator pessoal. Os representantes de Duarte de Albuquerque Coelho governavam a capitania de maneira bastante autoritária e aqueles que se opunham à panelinha dos Albuquerque Coelho costumavam buscar o apoio da Relação em seus litígios. Matias de Albuquerque, o representante dos interesses da família e capitão de Pernambuco a partir de 1629, mal disfarçava sua irritação com a intromissão do Tribunal Superior nos assuntos pernambucanos. Queixou-se da intervenção da Relação quando nomeou o tesoureiro da capitania e em outras ocasiões discutiu com membros do tribunal. 13 O fato de que Matias de Albuquerque jamais criticou abertamente a Relação pode indicar um saudável respeito por seu poder e a percepção de que um ataque teria de ser oblíquo. Quando o governo caiu nas mãos de Matias de Albuquerque, seu ataque ao tribunal não se fez esperar. A gota d'água parece ter sido a recusa, por parte da Relação, de suspender a justiça criminal, medida cie tempo de guerra sugerida por Matias de Albuquerque como meio de recrutar tropas contra os holandeses. Como governador, Matias de Albuquerque tinha concedido uma série de indultos c suspen dera o julgamento de certos crimes, num esforço para fortalecer as defesas da colónia. Fizera isso sem consultar a Relação. Os magistrados, vendo nessas medidas uma invasão de seus poderes, recusaram-se a obedecer às ordens do governador e voltaram a prender alguns dos indultados. Finalmente, Matias de Albuquerque apelou dirctamente à Coroa. Seu pedido obteve apoio real e em l *-

de abril de 1626 a Coroa ordenou à Relação que recuasse de sua posição. Quatro dias depois, a Relação foi abolida por ordem real.29 A conexão entre as queixas de Matias de Albuquerque e o fim da Relação é apoiada não apenas pela estreita correlação cronológica, mas também por evidências contemporâneas. O relatório não assinado de c. 1626 (Apêndice iv) submetido por colonos baianos em apoio da Relação fornece a chave.30 Dizia ele que em 1625 certo donatário, recusando-se a aceitar a interferência dos desembargadores em sua capitania, juntara-se à Câmara da cidade de Salvador para conseguir a abolição do Tribunal Superior. Um dependente do donatário foi escolhido como procurador da Câmara municipal e, ao voltar para Portugal, teria apresentado "falsas informações e papéis assinados por pessoas apaixonadas e criados de fidalgos", a fim de provocar a abolição do tribunal. O donatário em questão era quase certamente Duarte de Albuquerque Coelho, proprietário de Pernambuco, que chegara ao Brasil na armada luso-espanhola de 1625 e estava, portanto, na Bahia no período seguinte à reconquista da cidade. A acusação feita contra ele não deixa de ter fundamento. Apesar de os documentos em questão não terem sido encontrados, uma carta de Filipe iv para os governadores de Portugal mencionava os relatórios de Matias de Albuquerque, do provedor-mor e do sargento-mor Pedro Correia da Gama, relativos à guarnição; continham sugestões específicas referentes ao Tribunal Superior.31 Essas sugestões sem dúvida eram argumentos a favor da abolição da Relação e podem ser tidas como a causa que precipitou seu fim. A abolição da Relação da Bahia resultou de uma combinação de fatores, alguns acidentais e outros inerentes à história da instituição. Primeiro, as condições criadas pela reabertura da guerra nos Países Baixos e pela tomada da Bahia pelos holandeses exerceram pressão sobre a estrutura defensiva dos Impérios ibéricos, a qual impunha demandas militares cada vez maiores aos recursos fiscais da Coroa. A Coroa começou a virar-se para todos os lados à procura de dinheiro ou de maneiras de forçar certos grupos a assumir obrigações financeiras ou militares, com pequeno custo adicional para ela. A tributação era um desses métodos, e a cobrança de novos impostos para financiar a guerra contra os holandeses tornou-se grande motivo de agitação em Portugal e na própria Espanha. Tentou-se pintar a guerra como um conflito religioso, para forçar os cavaleiros das ordens militares espanholas e portuguesas a cumprir suas antigas obrigações de defensores da fé. A Coroa pôs juristas para 190

esmiuçar cláusulas nas concessões dos donatários que os obrigassem a arcar com os custos da defesa de suas capitanias.32 Obviamente, a Coroa buscava maneiras de conquistar o apoio de grupos capazes de trazer recursos militares ou financeiros para o esforço de guerra e, se necessário, certas concessões seriam feitas para assegurar esse apoio. A Relação era um alvo perfeito. Já havia uma preocupação da Coroa com o tamanho da burocracia e uma antipatia geral pela profissão legal. O Tribunal Superior da Bahia, com seus salários e despesas extras, parecia dispensável para o esforço de guerra e se, com sua abolição, os salários pudessem ser direcionados para a defesa, tanto melhor. Além disso, ao aceitar as demandas da Câmara da Bahia e do donatário de Pernambuco, a Coroa também esperava obter seu apoio total. Assim, a Relação tornou-se uma espécie de sacrifício real aos interesses coloniais. Razões de Estado e interesses privados se combinaram para fechar as portas do primeiro Tribunal Superior brasileiro. Não havia ninguém, então, que falasse em defesa do tribunal? Essas pessoas, na realidade, existiam. Seu requerimento não assinado, "Razões q. darão os moradores da Bahia para não se extinguem a Relação", defendia a permanência da Relação como o único significativo contrapeso para os excessos dos bispos, donatários e poderosos da terra, que intimidavam escreventes e capitães de navio, de modo que os pobres eram incapazes de preparar suas ações ou mesmo de transportá-las para os tribunais metropolitanos.33 Esses colonos não afirmavam que tudo tinha corrido bem enquanto a Relação estivera na Bahia; o que afirmavam é que as faltas pessoais dos magistrados não eram, necessariamente, as da instituição. Se havia faltado justiça enquanto o Tribunal Superior estivera no Brasil, sem ele a situação voltaria a ser caótica. No que dizia respeito ao dinheiro para a guarnição, diziam eles que "não há Rei tão pobre, que 4 nem 5 mil crusados mais o enriqueçam, nem empobreçam, quanto mais [...] Sua Majestade". Novamente, como no passado, eles mencionaram as cinco audiências no vice-reino do Peru e o tribunal nas espanholas Ilhas Canárias. Era justo, perguntavam, que algumas ilhas com uma pequena população tivessem um tribunal residente, e o Brasil, tão grande e tão distante da metrópole, não tivesse? A essência do seu argumento, entretanto, eram os benefícios produzidos pela presença de um grande grupo de juizes que, como um órgão, ficavam menos sujeitos às pressões dos grupos de interesse e dos funcionários venais. Fossem quais fossem os excessos e abusos cometidos pelos desembargadores, a 191

situação era bem pior antes de 1609, quando o ouvidor-geraí administrava a justiça na colónia. E por que o tribunal brasileiro fora escolhido? E se algum disser que também os desembargadores são ladrões e fazem injustiças digo que isso não procede da Relação mas de seu mau procedimento e cristandade e que isso não é causa para se extinguir a Relação: os que são maus sejam muito bem castigados para exemplo de outros c ponham-se outros em seu lugar que muitos letrados há [...]. K se por os desembargadores fazerem o que não devem fosse causa para se extinguirem as Relações [não haveria] a nenhuma, porque cm todas houve bons e maus que também na casa da Suplicação em Lisboa houve alguns que foram bem descaminhados e por isso os dcprivarão dos cargos, e não desfizeram a Casa da Suplicação.34

Sem a Relação no Brasil, alegavam eles, o passo da justiça tinha diminuído, as celas estavam cheias, os judeus não eram punidos por sua traição, os funcionários poderosos impunham sua vontade ilegal e as coisas estavam de pernas para o ar. Esse documento expõe um ponto de vista que difere muito das fontes tradicionalmente usadas para avaliar o desempenho da Relação da Bahia antes de 1626. Tal divergência de opiniões pode ser parcialmente explicada pelas origens dos autores envolvidos. Evidências internas indicam que o autor ou autores do documento não assinado "Ra/ões q. darão os moradores" representavam pessoas mais pobres, de origens católicas ortodoxas, que tinham ódio e medo dos funcionários reais, dos senhores de engenho, da Câmara local e dos cristãos-novos. Talvez estejamos lidando aqui com artesãos ou arrendatários, que achavam que o Tribunal Superior lhes havia oferecido oportunidades de justiça antes inexistentes. Nesse contexto, c importante lembrar que os autores dos três relatos tradicionais sobre a Relação representam, cada um, grupos de interesse com antigas queixas contra o Tribunal Superior. O frade franciscano Vicente do Salvador tinha se ofendido com o ataque dos magistrados à autoridade do bispo e às prerrogativas dos tribunais eclesiásticos. Sua História do Brasil (1627) expressava o que cie sentia pelo tribunal. O soldado profissional, o sargento-mor Diogo de Campos Moreno, via na Relação uma instituição desnecessária, conduzida por letrados, grupo pelo qual não tinha afeição alguma. Seu Livro que dá 192

i. Soberania e justiça: O rei como juiz supremo. (De Ordenações Manuelinas (1514); reprodução defoel Serrão (ed.), Dicionário de História de Portugal, //, Lisboa, 1965.)

2. Coimbra no século xvn. (De Georg Braun, Civitates Orbis Terrarum, 1610; Newberry Library.)

3. Magistrado português do século xvii. (Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.)

*% -v *- 5 J^fl"" e Perspectiva de Salvador, 1714. (De A. Frezier, Relation du voyage aux cotes d u Chi! - du Perou, Paris, 1716; James Ford Bell I.ibrary, Universidade de Minnesotn.}

4. Uma vista de Salvador a partir do porto, 1671. (De John Ogilby, America: Being the latest and most accurate description of the New World... Londres, 1671; James Ford Bell Library, Universidade ds Minnesota.)

6. Funcionários portugueses e jesuítas capturados pelos holandeses na queda de Salvador, 1624. (Gravura de autoria de Claes Jansz Visscher, 1624; reprodução de Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, v, Lisboa, 1945.)

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y ^ 1690'a 175Ç~mais de 43% (44 em 105) já haviam ocupado cargos no Império ultramarin^. Além disso, 23% de todos os desembargadores nomeados nesse período e mais de 50% dos que Linharn experiência colonial já haviam servido no Brasil antes de ser designados para a Relação. Muitos tinham sido ouvidores-gerais nas capitanias. A explicação para essa mudança pode estar na exclusão de brasileiros do Tribunal Superior, resultado das lutas entre a Câmara e a Relação no fim do século xvn. O conhecimento direto da vida na colónia, suprido antes pelos juizes brasileiros, era muito necessário, de modo que o Desembargo do Paço provavelmente recorreu a juizes já com experiência na colónia como solução alternativa.' 0 A Figura 4 parece apoiar esta asserção. A experiência prévia no Brasil sem dúvida preparava os juizes para o serviço na Relação e talvez os tornasse mais sensíveis aos interesses coloniais, mas não era uma vantagem tnconteste. Queixas de colonos contra magistrados inferiores no Brasil lançam sérias dúvidas sobre sua honestidade e competência para ocupar qualquer cargo, quanto mais uma posição na Relação. A promoção para o tribunal às vezes dava poderes aos homens mais estreitamente ligados a interesses particulares ou motivados por objetivos venais. Veja-se, por exemplo, o caso de João Gonçalves Pereira, bacharel em direito canónico que se tornou ouvidor-geral de Cuiabá em 1735.3' Nessa condição, ele inventou uma ameaça espanhola na fronteira de Mato Grosso para camuflar uma expedição comercial ilícita que, de acordo com algumas versões, ele mesmo organizara em colaboração com comerciantes de Cuiabá. As ações ilegais de Gonçalves Pereira na sensível fronteira entre a espanhola Chiquitos e o português Mato Grosso levaram o capitào-mor de São Paulo a comentar que Gonçalves Pereira só podia estar "demente ou cego de ambição" para tentar semelhante aventura." Essa crítica não impediu a promoção desse magistrado venal para o tribunal baiano em ."*'

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F I G U R A 4 — EXPERIÊNCIA P R E V I A DOS DESEMBARGADORES BAIANOS NO ALÉM-MAR

abril de 1747. Gonçalves Pereira certamente chegou à Relação com muita experiência, mas não exatamente aquela do tipo prescrito nos regulamentos burocráticos. Apesar da tendência real a empregar juizes com experiência colonial, apenas em dois casos magistrados que tinham servido no Estado português na índia também se desincumbiram de suas obrigações profissionais no Brasil Dos 152 juizes nomeados entre 1652 e 1758, apenas dois tinham estado na índia, e um, Jorge Seco de Macedo, foi designado chanceler rio Brasil depois de longos anos de serviço na Casa da Suplicação — prova de que sua experiência na índia contava muito pouco.33 Hm sentido inverso, homens que tinham servido nas colónias de Angola, Cabo Verde, São Tomé e Guiné na África Ocidental acabavam geralmente sendo mandados para a Relação na Bahia. De fato, havia dois ramos da magistratura colonial, um órgão do oceano Índico e um órgão do oceano Atlântico. Cada um tinha seus funcionários e canais de promoção, mas ambos estavam integrados no sistema burocrático da península. Magistrados de qualquer um dos dois ramos coloniais podiam ser promovidos para cargos

na metrópole, mas praticamente não havia contato entre os órgãos. Esse padrão de separação não existia entre executivos coloniais, pois no século xvni não era raro que homens que tinham servido como vice-reis na índia ocupassem, depois, uma posição similar no Brasil.34 O estado atual das pesquisas não nos permite avaliar a importância desses ramos da magistratura como canais de avanço na"carreira, nem fazer uma afirmação sobre seu prestígio em comparação com o serviço metropolitano em sua totalidade. Imagina-se que os magistrados que começavam servindo em Portugal mantinham melhores vínculos de patronagem do que aqueles que eram enviados para o Brasil ou para a Ásia e, assim, alcançavam rapidamente as melhores posições. O fato de apenas 7% dos magistrados que serviram na Relação da Bahia terem atingido mais tarde postos hierarquicamente acima da Casa da Suplicação indica que os mais altos cargos dos conselhos reais eram ocupados por letrados que haviam feito carreira na índia ou, mais provavelmente, que haviam adquirido toda a sua experiência em Portugal. Se os magistrados enviados para o Brasil tivessem percebido que estavam ingressando num ramo de serviço de grau ou prestígio inferior e que promoções ulteriores poderiam ser prejudicadas por esse fato, os códigos burocráticos de conduta teriam tido muito menos efeito sobre eles. A consciência de que mesmo um desempenho exemplar não garantiria recompensa profissional no futuro poderia ter levado os desembargadores a praticar atos que ofereciam suas próprias recompensas. Não há evidências, entretanto, de que magistrados brasileiros ou magistrados que serviam no Brasil se dessem conta de sua desvantagem no que se referia a promoções futuras.35 Tem-se a impressão, em vez disso, de que pelo fim do século xvn a Relação da Bahia se tornara um posto cobiçado dentro da magistratura. Enquanto quase todos os primeiros desembargadores de 1609 tinham tentado se esquivar do serviço brasileiro, no fim daquele século os letrados faziam questão de pedir tais nomeações.36 O crescimento da colónia, sua importância cada vez maior dentro da estrutura imperial e, depois da descoberta de ouro nos anos de 1690, sua legendária riqueza sem dúvida tiveram influência nessa mudança de opinião.37 Existem até referências ao tribunal baiano como mais importante do que o do Porto. No século xvni, tais afirmações talvez refletissem a situação real, mas, no que diz respeito a avanço na car242

.-í-4

reira burocrática, o Porto sempre esteve acima da Bahia. Não obstante, a nomeação para a Relação da Bahia era prémio altamente cobiçado. Tornou-se hábito do Desembargo do Paço prometer um lugar no Tribunal Superior baiano a magistrados enviados como ouvidores para as capitanias do Brasil e até a juizes mandados para a África Ocidental. João de Sá Sottomayor foi para Sergipe como ouvidor em 1704, levando não apenas a promessa de Lima vaga na Relação, mas o privilégio de usar a toga de desembargador enquanto ocupava o cargo inferior.38 Jerônimo da Cunha Pimentel recebeu a promessa de um cargo no Tribunal Superior da Bahia tão logo surgisse uma vaga.39 Nesse meio-tempo, foi mandado para Angola. Em 1705, um acúmulo de magistrados que tinham recebido a promessa de um lugar no Tribunal Superior e não podiam assumir a posição levou muitos homens a se queixarem à Coroa. O problema tornou-se ainda mais complicado quando, depois de 1718, o Desembargo do Paço tentou cumprir suas promessas fazendo nomeações supranumerárias.40 Magistrados buscavam ativamente uma posição no Tribunal Superior, mas, embora muitos cargos burocráticos não profissionais pudessem ser comprados, as vagas magistráticas aparentemente não estavam à venda — pelo menos não publicamente. Eram reservadas para burocratas profissionais designados, em tese, exclusivamente com base no mérito e na experiência. A venda de tais cargos teria sido uma aberta violação da ideologia sobre a qual se construíra o edifício do governo real. Apesar disso, nos anos de 1680 alguns j uízes na Bahia eram referidos como proprietários de seus cargos. Em outro contexto, esse termo geralmente significaria que o ocupante de um cargo poderia tratá-lo como algo seu, vendê-lo, legá-lo a um herdeiro ou desfazer-se dele. Nas cartas de nomeação desses magistrados, entretanto, não há menção a pagamento pelos direitos de propriedade, nem nenhum outro indício de que o cargo pudesse ter sido comprado. Parece que, em alguns casos, o termo "proprietário" é usado apenas como sinónimo de ocupante.41 Talvez uma explicação mais satisfatória possa ser encontrada na nomeação de Francisco de Figueiredo Vaz em 1757.42 Sua "carta de propriedade de um lugar de desembargador" lhe assegura uma posição pelo prazo normal de seis anos, mas acrescenta que ele pode ocupar o cargo por mais tempo, até que seja mandado um substituto. Neste caso, a propriedade talvez fosse um privilégio especial que permitia ao magis-

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trado ter algum controle de sua ocupação, enquanto o controle definitivo permanecia nas mãos do rei. A Coroa continuou a oferecer outros incentivos e privilégios aos homens escolhidos para servir no Tribunal Superior baiano. Os juizes costumavam receber um bónus especial para fazer face aos custos da mudança para o Brasil. Geralmente isso era acompanhado da promessa de amparar a família do magistrado, caso este sofresse algum acidente. Assim como os magistrados mandados para as capitanias do Brasil podiam receber a promessa de um lugar na Relação da Bahia, os, desembargadores da Bahia também quase invariavelmente recebiam a promessa de uma promoção para a Relação do Porto. Como privilégio, alguns juizes tinham permissão para assumir o cargo no Porto imediatamente, de modo que a antiguidade naquele tribunal começava a contar antes de concluírem suas tarefas baianas. 43 A promoção para o nível de desembargador também trazia certos benefícios e privilégios, os proes eprecalços, como a isenção de impostos.'1'1 A Coroa continuou a distribuir hábitos na Ordem de Cristo e a conceder fidalguia a magistrados, em reconhecimento de serviços passados c como forma de reforçar sua autoridade. As ordens militares tinham perdido muito do seu significado como organizações de combate pelo fim do século xvn. Os símbolos exteriores de cavalheirismo permaneceram, mas as ordens militares se tornaram clubes exclusivos, cujos postos eram preenchidos não apenas por soldados que se distinguiam, mas por pessoas que prestavam serviços ao trono/ 5 Os magistrados entravam nesta última categoria. Entre 1609 e 1759, pelo menos 22% dos desembargadores da Bahia usavam a cobiçada cruz da Ordem de Cristo brasonada na toga.46 Geralmente esses prémios eram dados a homens provenientes de famílias de artesãos ou de gente bem situada, mas sem origem nobre, homens que normalmente seriam excluídos das ordens militares por urn "defeito" em suas origens. O caso de Domingos Gonçalves Santiago é ilustrativo. Embora seu avô materno fosse artesão, Gonçalves Santiago foi admitido como membro especificamente porque tinha sido nomeado para a Relação da Bahia.47 Em outras palavras, a importância do seu cargo tinha superado um defeito de nascimento. Saber se a aquisição desses prémios por homens como Gonçalves Santiago reflele uma tentativa da Coroa de fortalecer a autoridade dos magistrados e ocultar origens medíocres, ou se foi um esforço dos próprips juizes para aplacar seu próprio senso de insegurança social, é uma 244

questão em aberto. Não obstante, está claro que em casos como os de Bento Rabello (1655), Francisco de Figueiredo (1657) e António Rodrigues Banha (1733) o ingresso na Ordem de Cristo veio pouco antes ou logo depois da nomeação para a Relação.4* Embora a magistratura tivesse se desenvolvido como um corpo de burocratas profissionais, com funções específicas dentro de uma estrutura política, ao longo dos anos os magistrados também procuraram transformar sua posição numa base de status social. Tendo surgido sob tutela real como contrapeso de grupos tradicionais, como a nobreza titulada, os juizes da Coroa começaram a exigir os privilégios, os símbolos e o reconhecimento pertinentes aos próprios grupos cujo poder tinham inibido. Portugal compartilhou esse processo histórico com outros países da Europa Ocidental e, como na Prússia e na França, os burocratas magistráticos não se tornaram inimigos implacáveis da aristocracia, buscando, cm vez disso, penetrar em suas fileiras.49 Duas tendências podem ser identificadas nesse processo. Primeira, os magistrados justificavam sua ascendência social desenvolvendo urna base teórica para a própria nobreza. Esse tema subjaz aos debates da espada contra a pena no século xvir, quando os letrados tentavam demonstrar sua utilidade para o Estado. Pelo século xvni, os juristas argumentavam que o estudo do direito por si enobrecia, literalmente, o indivíduo c que por extensão todos os juizes deveriam ser considerados à altura da nobreza proprietária e militar.-10 Enquanto justificavam sua própria posição, entretanto, os magistrados também tentavam penetrar nas fileiras da aristocracia por intermédio da aquisição das insígnias e dos privilégios tradicionalmente concedidos a ela. Esta segunda tendência era, até certo ponto, patrocinada pela Coroa, que pela concessão desses prémios conseguia manter controle sobre a atuação dos seus magistrados. O controle da Coroa tanto sobre os símbolos que legitimavam a ascensão social como sobre as recompensas internas da burocracia mantinha a magistratura vinculada aos interesses reais. A magistratura tornou-se, até certo ponto, uma classe autoperpetuadora, com tendência à hereditariedade da profissão, embora não do cargo. Seus títulos passaram a ser, com efeito, designações sociais. Uma vez que um homem ocupava o cargo de desembargador, ele invariavelmente usava o título, não importando se continuava ou não a ocupar o cargo. Mas ho Império português a magistratura não se tornou uma noblesse de Ia /-o/junina nobreza identificável com base no cargo e na função. Os magistrados,

individualmente, podiam ser — e com frequência o eram — integrados à nobreza tradicional por laços de matrimónio, assim como podiam alcançar essa posição por ato da Coroa; mas uma classe magistrática, competindo com a aristocracia proprietária e militar ou a ela adjunta, nunca se desenvolveu como entidade autónoma, com objetivos de classe independentes além daqueles prescritos pela Coroa. Uma vez designado para a Relação, um desembargador poderia demorar até dois anos para resolver seus assuntos e pôr a casa em ordem antes de partir para o Brasil. Mas o mais comum era um intervalo de quatro a seis meses entre a nomeação e a chegada à colónia. A Coroa tentava escalonar as substituições, enviando dois ou três magistrados ao mesmo tempo a fim de manter no tribunal uma combinação de juizes experientes e recém-chegados. O objetivo óbvio era a continuidade burocrática. Os seis desembargadores que assumiram o cargo em fevereiro de 1710 formaram o maior grupo de substitutos a assumir o cargo simultaneamente. Foi uma situação extraordinária, ocorrida porque quatro desembargadores, acusados numa devassa em 1709, tinham sido chamados de volta.51 Ao chegar à Bahia, cada juiz fazia o juramento de posse na presença dos colegas e do vice-rei. Com essa cerimónia, o desembargador dava início ao cumprimento de suas funções. Como a data do término do trabalho na Relação geralmente não pode ser determinada, é difícil estimar o tempo médio de serviço na Bahia. No período da primeira Relação, os juizes eram mandados para o Brasil com a promessa de promoção depois de seis anos de serviço satisfatório. Essa fórmula tornou-se padrão, mas houve muitas exceções e alguns juizes ultrapassaram duas ou três vezes o tempo-Hmite de seis anos.52 Magistrados cuja vida pessoal os mantinha estreitamente ligados à colónia tendiam a violar os seis anos regulamentares. O casamento, é claro, criava tais vínculos e o caso de Antão de Mesquita de Oliveira, que se casara no Brasil e serviu 21 anos na colónia (1609-30), ilustra essa questão. Em 1683, o Conselho Ultramarino queixou-se de que a virtual perpetuidade dos empregos no além-mar punha em risco os próprios alicerces do governo, especialmente quando muitos dos que ficavam mais de seis anos eram "naturais da terra". Queixas semelhantes foram apresentadas novamente em 1691, aparentemente com pouco resultado.53

Magistrados nascidos no Brasil com grande consistência contornavam o limite de seis anos. Cristóvão de Burgos ficou 26 anos na Relação (1654-80); • * • • ; * • . > , • . ' - "

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João de Góes e Araújo ocupou sua posição por treze anos (1667-80) e morreu no cargo. João da Rocha Pitta serviu no Tribunal Superior durante 24 anos (1678-1702) e, apesar de ter sido nomeado para cargos em Portugal, recusou-se a sair de sua Bahia natal. Laços de família, propriedade e familiaridade seguravam esses homens no Brasil e exerciam influência mais forte sobre eles do que as motivações profissionais. O comportamento desses magistrados indica claramente que os objetivos da promoção burocrática e as normas da vida burocrática nunca foram inteiramente adotados por todos os magistrados. Fontes alternativas de renda e prestígio reduziam severamente a força das motivações burocráticas e contribuíam para a conduta não profissional de muitos juizes. Os crescentes atrativos financeiros e pessoais do Brasil no século xvm fizeram aparecer outro tipo de problema. Ficou cada vez mais difícil obrigar desembargadores a voltar para Portugal quando seu tempo de serviço no Brasil expirava. Magistrados reais ainda gastavam seu tempo precioso procurando alcançar postos na colónia, mas, por volta de 1706, a Coroa também se viu diante de desembargadores que encontravam desculpas para lá permanecer depois de seis anos.54 Embora alguns governadores quisessem empregá-los em funções judiciais para aliviar o fardo dos legítimos desembargadores, a Coroa se recusava a permitir tal medida. Alguns juizes ficavam tão enamorados da colónia que simplesmente recusavam novas nomeações. Bernardo de Sousa Estrela, magistrado dos Açores que se casara no Brasil, serviu seis anos na Relação e aposentou-se em 1730 aos sessenta anos. Passou os trinta anos seguintes na Bahia, vivendo das propriedades da mulher e adquirindo reputação de piedoso. Foi sepultado no mosteiro franciscano em cerimónia solene, na qual os desembargadores da Relação ajudaram a carregar o caixão.55 Esse último fato ressalta um fenómeno interessante. O título e a dignidade de desembargador continuavam fazendo parte do homem mesmo quando ele já não ocupava o cargo. O título se tornou descrição de posição social, e não meramente de função, e a influência que um magistrado aposentado era capaz de exercer sobre seus sucessores não deve ser ignorada. Para os desembargadores que voltavam para Portugal, era normal ser promovido para o Tribunal Superior do Porto. De vez em quando, devassas ou residências poderiam impedir a promoção de alguns magistrados, mas elas tinham relativamente pouco efeito. Na realidade, um membro do Conselho Ultramarino queixou-se em 1728 de que as devassas ordinárias no Brasil eram

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inúteis, pois mesmo nos casos mais notórios ninguém se convencia a testemunhar.' 6 O emprego no Porto, portanto» era garantido. De 58% f96 em 168) dos desembargadores promovidos para outro cargo, 86% (83 em 96) iam primeiro para o Porto. Cerca de metade deles finalmente chegava à Casa da Suplicação. Muito poucos conseguiam vagas nos conselhos reais. Os canais de promoção e a mortalidade natural excluíam magistrados do serviço real e reservavam posições no ápice da burocracia para homens com o mais alto grau de competência, os melhores patronos, a maior experiência e o maior vigor. O sucesso profissional, em última análise, provavelmente dependia de uma combinação de todos esses elementos- Os degraus regulamentares da promoção também incentivavam o desempenho que fosse do agrado dos superiores e que se conformasse ao código de conduta burocrática estabelecido pelas Ordenações Filipinas. Os poucos magistrados que serviram no Brasil e depois ocuparam altos cargos em conselhos reais, como o Conselho Ultramarino ou o Desembargo do Paço, não têm, aparentemente, em sua biografia pessoal ou profissional características comuns que expliquem o seu progresso. Suas carreiras, como a de seus colegas, dependeram, em grande medida, dos princípios operacionais da burocracia imperial.5'' Quatro princípios cimentavam as diversas partes da burocracia e guiavam as decisões pessoais dentro dela. Antiguidade, mérito, precedência e nepotismo tornaram-sc os pilares sobre os quais se assentavam as promoções e recompensas. A palronagern também poderia ser acrescentada à lista, mas nesse caso há tão poucas evidências explícitas para o historiador e é tão grande a dose de inferência, que tal princípio deve continuar sendo uma característica reconhecível, mas indefinível, da magistratura. Como a patronagem, o nepotismo foi um elemento de administração patrimonial que subsistiu pelo século xvm afora, muito tempo depois de a magistratura ter se tornado, em tese, plenamente "racional" e profissional. A criação de uma classe de letrados fé/, da institucionalização do nepotismo um objctivo desejado dentro da magistratura. Ele assegurava tratamento preferencial para os parentes de magistrados e contribuía para um senso de solidariedade profissional e talvez de classe. Quando Manoel da Costa Bonicho, fiJho de um ex-desembargador da Bahia, foi nomeado para a Relação, o documento correspondente não fazia menção a serviços anteriormente prestados, de acordo com a fórmula de costume, mas afirmava que o cargo lhe fora concedido porque "ele é filho de Manoel da Costa Bonicho, desembarga-

dor de agravos na Casa da Suplicação"."8 Tais recompensas garantiam o desenvolvimento de tradições de família dentro da magistratura e fomentavam a continuidade através de gerações. O mérito era um princípio burocrático nascido cie u m a t r a d i ç ã o diferente. Em tese, quando a burocracia se tornou rrmis profissional o racional, concentrando todas as atividades na resolução de suas tarefa:, especificas, o mérito deveria ter se convertido no princípio central da promoção burocrática. Mas o mérito, nesse contexto, deve equivaler a competência, não a excelência. Esperava-se do magistrado que desempenhasse suas atribuições sem «raves desvios. Nas suas tarefas havia pouca margem para a inovação ou para a administração criativa e os exames aplicados no término do seu tunpo de serviço buscavam identificar infrações dos regulamentos, e não desempenho notável. O magistrado modelar era aquele que desempenhava suas tarefas de tal fornia que ninguém pudesse reclamar. Francisco Mendes Galvão Linha tal reputação. Nos anos de 1690, o governador António Luís Gonçalves da Câmara Coutinho derramou-se em elogios às virtudes desse desembargador, que "serve n seu lugar com tanta autoridade e justiça que lhe pode ter inveja o mais ciente senado"/9 Seis anos depois, em 1697, Câmara Coutinho disse: "Mesmo aquelas partes contra as quais ele emite sentenças, como muitas vezes ouvi falar, deixam sua casa dizendo que se Francisco Mendes Galvão não vê justiça cm seu pleito c porque não há justiça em seu pleito"/'1 A ênfase na imparcialidade e na honestidade indica as bases do mérito magistrático. O que a maioria dos juizes desejava era cumprir seu tempo de serviço sem provocar murmúrios. Na realidade, o mérito ou a excelência era um princípio negativo, na medida em que afetava a promoção burocrática mais pela ausência do que pela presença. A antiguidade, porém, era plenamente usada como um princípio de promoção na burocracia portuguesa.61 tíaseava-se na crença de que tempo e experiência de serviço naturalmente resultavam em sabedoria acumulada. Deferência à idade também estava presente no princípio de antiguidade, mas parece que n antiguidade no serviço, mais do que a simples idade, tinha mais peso. A promo cão entre posições e a precedência dentro delas dependiam, diretamcntc, de antiguidade. Os desembargadores demonstravam aguda sensibilidade para essa questão e eram extremamente zelosos na defesa de sua antiguidade na posição. Magistrados nomeados para a Relação que não podiam assumir o cargo de imediato por vezes mandavam um representante fazer o juramento de posse na 249

Bahia, para não perder tempo no cômputo de antiguidade no posto. A ideia de que, reduzindo a necessidade de competição profissional, a antiguidade pode Ler minimizado a agressão intragrupo na burocracia não tem apoio na história da Relação/2 A antiguidade pode ter aliviado a tensão e a competição em outras esferas de atividade, mas ao mesmo tempo concentrou o conflito num determinado ponto, pois cada magistrado tentava estabelecer sua antiguidade e as prerrogativas a que ela lhe dava direito. A maioria das disputas entre os magistrados surgia por questões de antiguidade e precedência nas salas do tribunal Os desembargadores tinham especial cuidado para assegurar sua precedência não apenas por razões de prestígio, mas também porque promoções e nomeações futuras poderiam depender desse critério. Geralmente a disputa dizia respeito ao estabelecimento da data em que determinado juiz tinha assumido o cargo ou, mais exatamente, se seu tempo de serviço deveria ser calculado a partir da data em que tinha feito o juramento do cargo ou do seu primeiro dia de serviço. Foi exatamente essa a questão que surgiu cm 1716, entre Tomás Feliciano de Albernás e Manoel da Costa Moreira, e que se repetiu em 1721 com outros dois juizes.63 Uma segunda causa dessas querelas era a promoção de desembargadores de um cargo para outro dentro da Relação. A antiguidade na posição versus a antiguidade na Relação eram os poios das disputas. Em 1675, Cristóvão de Burgos contestou o direito de seu colega Agostinho de Azevedo Monteiro a sentar-se imediatamente à direita do chanceler, a mais alta posição do tribunal, Azevedo Monteiro tinha ocupado aquela posição porque estava servindo como chanceler interino, rnas Burgos considerava que, por ser ele o mais antigo desembargador de agravos, a cadeira lhe pertencia. Uma reunião plenária da Relação foi convocada pelo governador e, depois que os dois disputantes saíram da sala, os outros juizes votaram a favor de Burgos.64 A maioria das disputas dessa natureza era resolvida com dignidade, mas não faltaram exemplos de xingamentos e até troca de socos nas salas do tribunal. Precedentes operacionais tornavam-se usos e costumes que modificavam os estatutos de conduta burocrática. Se um magistrado pedia um favor especial, um estipêndio extra ou dispensa de algum dever, ele geralmente citava um caso anterior da mesma natureza. Como essas informações se tornavam disponíveis para os juizes ou, mais exatamente, como eram transmitidas, é um problema particularmente interessante. Magistrados em Portugal provavelmente tinham 250

acesso aos livros da chancelaria, onde podiam procurar e encontrar precedentes. No Brasil, entretanto, eles só podiam recorrei aos livros de registro da Relação. O boca a boca provavelmente teve uni papel importante rui transmissão desse conhecimento e se desenvolveu uma espécie de tradição oral burocrática na qual os usos da magistratura eram passados de uma geração de juizes para a próxima. Tal situação obviamente dava aos juizes que ficavam longos períodos em seus cargos um poder extra, já que eles se tornavam repositórios de informações para os colegas. Assim, os brasileiros e os mai.s apegados ao Brasil» que tendiam a permanecer mais tempo no cargo do que os seus colegas, talvez tenham tido uma influência na Relação que não se reflcEia inteiramente em seu número. O serviço na Relação da Bahia representava um degrau na escada da progressão burocrática, que em tese ia dos salões de conferência de Coimbra aos conselhos do rei. Magistrados que conseguiam um posto no tribunal baiano não podiam dedicar toda a sua energia e todo o seu interesse à resolução de problemas pessoais e profissionais num contexto exclusivamente brasileiro, se a esperança de avanço na carreira Linha algum significado para eles. Os desembargadores eram parte de um sistema imperial de administração que libava áreas díspares do Império e, como tais, suas ações por vezes respondiam a pressões geradas fora da colónia. O grau de integração das várias camadas da magistratura ao sistema e a facilidade com que esses magistrados iam de cargos em Portugal para as colónias e depois faziam o caminho de volta demonstram o nível de continuidade burocrática que o sistema oferecia. Um subsistema brasileiro de magistratura profissional só se desenvolveu depois de 1690, quando cargos iniciais na colónia passaram a servir de preparação para o Tribunal Superior da Bahia. Mesmo então, as promoções ulteriores quase inva riavelineiite levavam de volta a Portugal.65 Muito embora em termos político-econômicos o Brasil ocupasse uma clássica posição colonial dentro do Império português, em termos burocráticos estava bem integrado à metrópole. Magistrados enviados para o Brasil podiam mobilizar certos recursos pessoais na colónia sem dar muita importância aos efeitos dessas ações na sua vida profissional, mas muitos juizes viam o serviço no Brasil simplesmente como uma etapa da carreira. Essa visão obviamente influenciava o entendimento que os magistrados tinham do seu papei, dos seus deveres e da moralidade profissional. Tendia a isolar os juizes da sociedade e obrigá-los a observa r u m padrão de

formalismo no tratamento de questões tanlo pessoais como profissionais. O aspecto mais notável da burocracia magistrática no Brasil colonial, porém, é o grau em que o formalismo e o distanciamento burocráticos, apesar do forte encorajamento ao progresso na carreira e ao profissionalismo, sucumbiam em face dos objetivos pessoais, das relações não categóricas c dos diversos atrativos da colónia.

13. O abrasileiramento da burocracia

Mesmo que lhe reconheçamos o mérito, n capacidade c o iaL'n!o puni servira Vossa Alteza, ative ser em outra p arte e não nesta terra, onde o parentesco e a amizade pervertem o desinteresse necessário. Juizes são homens de carne e osso, sujeitos ao ódio e ao amor. Câmara de Salvador (l-de setembro dr 1676) Muitos ministros do Tribunal Superior tornam-se patronos dos casos que lhe são apresentados. Conselho Ultramarino (1725)

No século que transcorreu entre o restabelecimento da Relação da Bahia (1625) e a criação de um segundo Tribunal Superior brasileiro no Rio de Janeiro (1751), burocratas magistráticos tornaram-se parte da vida diária da colónia. Como membros do tribunal e como indivíduos, os desembargadores desempenharam papel ativo na vida social, cultural c económica da colónia, com frequência de modo não desejado nem pretendido pelos regulamentos burocráticos, O impacto da magistratura na sociedade colonial precisa ser visto não apenaís em termos de suas açõcs profissionais, mas à luz do estilo de vida e das .motivações pessoais dos magistrados e das reações ou iniciativas de certos ele-

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processo não foi totalmente negativo para a operacionalidade do sistema colonial, uma vez que a penetração de padrões e critérios não burocráticos na rígida estrutura imperial criou a elasticidade e a flexibilidade que permitiram ao governo continuar, a despeito de circunstâncias históricas e sociais em constante transformação.27 No sentido mais amplo, a corrupção cobria uma grande diversidade de desvios das normas legais e burocráticas. Através de toda a história do Império português, observadores, tanto nacionais como estrangeiros, fizeram comentários sobre a natureza venal da magistratura e a facilidade com que a justiça podia ser subvertida. O comentário do lorde Tyrawley, enviado da Inglaterra a Lisboa nos anos de 1730, pode servir de exemplo: Os portugueses, mais do que qualquer outro povo, seguem à risca aquela regra das Escrituras, de que um presente abre espaço para um homem, e é incrível como um presente atenua as dificuldades de uma solicitação; além disso, eles até já esperam recebê-lo, e apesar de os presentes necessários não serem consideráveis, pois algumas dúzias de garrafas de vinho estrangeiro ou algumas jardas de tecido fino são suficientes, isso, repetido com frequência, representa dinheiro,28

As observações de Tyrawley sobre Portugal podem ser transferidas, com pequenos ajustes, para as colónias portuguesas. Na verdade, apesar de as evidências serem fragmentárias e impressionistas, parece que o nível de corrupção colonial aumentou com o tempo, de modo que as queixas feitas contra magistrados no Brasil do século XVIH foram mais numerosas do que nos séculos anteriores. A crescente burocratização do Império e o contínuo acúmulo de obrigações e poderes pelos desembargadores criavam oportunidades de corrupção cada vez mais numerosas. Os magistrados não só controlavam o Tribunal Superior e os tribunais inferiores, mas, como funcionários mais graduados, também exerciam considerável influência sobre instituições como o Tesouro e a Casa da Moeda e sobre o vice-rei em sua função de provedor de cargos. Qualquer um que se candidatasse a escrevente ou a um posto num tabelionato geralmente pedia carta de recomendação de um desembargador. Além disso, depois de 1678, nenhum advogado podia exercer a profissão na Bahia sem um certificado da Relação, de modo que mais uma vez os poderes dos juizes foram

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ampliados. 29 Não c necessário citar a máxima de lorde Acton sobre o poder para compreender como responsabilidades cada vez maiores levaram ao aumento da corrupção. É importante lembrar que nem todos os atos considerados corruptos na burocracia ^-ram necessariamente ilegais. Magistrados e outros luncionários reais servia ai sob normas destinadas a aumentar sua eficiência como burocratas, de modo que eles estavam proibidos de exercer certas atividadcs que. embora 1140 fossem ilegais, erarn tidas como prejudiciais ao desempenho de suas funções. A maior dessas restrições era a legislação real que proibia qualquer funcionário da Coroa de negociar, ou exercer atividade comercial, na área de sua jurisdição. Essa lei sempre foi de difícil aplicação, especialmente entre governadores e capitães-mores, que não raro viam seus postos mais como posições patrimoniais do que como cargos burocráticos. 30 Os magistrados no Brasil desobedeciam continuamente às restrições de comércio e geralmente mantinham negócios, em seu próprio nome ou utilizando testas de ferro como agentes. As leis contra tais atividadcs estavam nos livros desde que a Relação começou a funcionar, mas sua aplicação se revelou praticamente impossível. Em 1720, a Coroa resolveu agir contra essas contínuas infrações publicando uma reiteração das restrições, chamada de lei novíssima.^ Logo depois, uma grande investigação foi iniciada pela Coroa e quatro desembargadores baianos foram implicados. Dois foram punidos com demissão do serviço real por "negociarem em seu próprio nome".32 Os dois desembargado rés, Manoel Ferreira de Carvalho e Afonso Rodrigues Bernardo e Sampaio, tinham servido na África e provavelmente estavam envolvidos com o tráfico de escravos. Bernardo e Sampaio era o juiz cristão-novo do qual se falou no capítulo anterior c há motivos para suspeitar de que a punição tenha caído pesadamente sobre ele em razão de seus antecedentes familiares, tanto quanto por seus crimes.3J Certamente, sua punição não abalou os colegas, pois em 1728 o ouvidor-geral da Bahia queixou-se de que os desembargadores continuavam a manter negócios. Havia pouco que se pudesse fazer e ainda em 1799 desembargadores se dedicavam ao contrabando. 3 ^ Dois.?aspectos das atividades comerciais magistráticas requerem algum comentárkíj Primeiro, uni levantamento dos registros notariais de Salvador deixa bern^feiaro que o ato de tomar emprestado ou emprestar dinheiro não o que proibia o comércio. Exemplos de desembargadores

envolvidos em tais atividadcs são encontrados ao longo de toda a história do Tribunal Superior. O desembargador Francisco Rodrigues da Silva tomou 250 mil-réis emprestados, à taxa costumeira de 6,25%, do grande financista baiano João de Matos de Aguiar, que fez esse empréstimo cm 1699 tomando como garantia os canaviais do juiz em Passé.^ Noutro caso, em 1/28 Cosme Rolim de Moura emprestou 4 mil cruzados ao desembargador Uris de Sousa Pereira. N'o mesmo ano e no mesmo mês, Sousa Pereira emprestou 2 mil cruzados ao coronel Bernardino Cavalcanti de Albuquerque, tomando como çanmtia uma fazenda de criação de gado com 250 cabeças e oito escravos. As duas transações foram feitas a juros de 6, 25%, a cifra mais alta possível de acordo com as definições eclesiásticas de usura, mas é difícil acreditar que Sousa Pereira não pretendesse, mediante cobrança de taxas de juros ocultas, obter bom lucro com todas essas negociatas.36 O que é significativo, porém, é que esses contratos eram feitos em público, perante um tabelião. Se fossem considerados ilegais, isso não teria como ocorrer.3' Parece que algumas formas de comércio eram permitidas ou toleradas na magistratura e que a Coroa preferia aplicar os critérios burocráticos de manei rã seletiva. Mais uma vez podemos recorrer aqui à distinção entre lei e comporta mento aceitável. A Coroa estava disposta a permitir alguma atividade comercial, desde que esta não provocasse fortes objcçõcs dos outros funcionários ou da população colonial e não perturbasse o funcionamento da burocracia. Quando alguém levantava objcções, a Coroa tinha sempre o recurso de aplicar as leis existentes. Embora os desembargadores fossem submetidos a frequente fiscalização e, em alguns casos, até chamados de volta, apenas os dois juizes acima mencionados sofreram severas punições por suas infrações.Jli Obviamente, a frequência do castigo não coincidia com a incidência cio abuso. Magistrados geralmente usavam o poder e a influência do cargo para obter ganhos pessoais, por conveniência ou para proteger a família e seus dependentes. Exemplos de tal conduta são encontrados ao longo cie toda a história da Relação. Em 1676, José de Freitas Serrão recusou-se a desocupar as casas que alugava, apesar de um mandado de despejo, e impediu que seu senhorio conseguisse uma audiência nos tribunais. 39 Caetano Brito de Figueiredo, depois de tomar vultosas somas de dinheiro emprestadas para financiar a compra de um engenho, de canaviais e de jóias, recusou-se, durante nove anos, a pagar a tUvida-*Quando o credor tentou processá-lo, o desembargador usou o cargo

para impedir qualquer ação legal.40 Talvez ainda mais sério fosse o uso de influência magistrática para sabotar o tribunal em casos de delitos graves cometidos por parentes ou dependentes dos juizes. Já vimos um exemplo desse procedimento no caso de Balthasar Ferraz, mas o problema continuou depois de 1652. Jorge Seco, sobrinho do chanceler Jorge Seco de Macedo, matou um homem na Bahia e fugiu para o mosteiro carmelita em Salvador, Devido ao poder e à influência do tio, ninguém o levou à justiça.41 Em 1716, os escravos de Cristóvão Tavares de Morais meteram-se numa briga de rua na frente da casa do desembargador. Quando a força policial interveio, um dos policiais foi ferido na confusão. Nesse momento, o desembargador saiu de casa, o bastão do cargo na mão, não para ajudar a prender os escravos, mas para libertá-los. O vice-rei prendeu Tavares de Morais e ele só foi solto depois de recorrer à Coroa.42 Geralmente o abuso do cargo visava ao ganho pessoal direto. As acusações feitas por Francisco de Estrada contra o desembargador António Rodrigues Bahia em 1692 mostram as técnicas que os juizes empregavam para aumentar a própria fortuna. 43 Estrada tinha herdado um engenho do pai, mas, incapaz de cumprir as exigências dos credores, levou a leilão o engenho, seu equipamento, quatro fazendas de cana dependentes e quarenta escravos. Quando os lances começaram, Rodrigues Banha, o magistrado encarregado do leilão, insistiu para que eles fossem feitos em dinheiro vivo. Como sempre havia pouco dinheiro em espécie na colónia, essa exigência extraordinária eliminou a maioria dos interessados, de modo que a sogra de Rodrigues Banha adquiriu a propriedade para o genro por uma soma bem abaixo do preço de mercado. Estrada tentou mover ação, mas, como Rodrigues Banha pertencia à Relação, nada pôde ser feito. O desembargador, segundo alegou Estrada, chegara até a contratar capangas para atacar um advogado que trabalhava no caso. Não contente com o êxito, Rodrigues Banha passou a pressionar outros credores de Estrada para que eles o obrigassem a pagar suas dívidas. Estrada, incapaz de satisfazer essas exigências, fugiu para as "entranhas do sertão" para escapar da cadeia. Era praticamente tudo o que podia fazer.44 As razões desse tipo de comportamento eram variadas, mas as pressões financeiras e aspirações de status contribuíam para que os magistrados abusassem do cargo em proveito pessoal. Embora os salários e emolumentos fossem substanciais, em comparação com os de outros funcionários, os desembargadores esperavam manter um estilo de vida compatível com sua posição. , . : .;..,,.-. | ^ s* 266

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A Coroa tinha visualizado paradigmas sóbrios e modestos, de vida simples, mas numa sociedade colonial já conhecida pela ostentação e dissipação esse estilo de vida parecia impossível. Desembargadores geralmente tinham de arcar com pesados encargos financeiros. Ao ser nomeado em Portugal, o magistrado precisava arranjar transporte para si e geralmente para a família. Quando chegava a Salvador, tinha de comprar ou alugar alojamentos, adquirir uma liteira e alguns escravos e contratar empregados domésticos. Depois dessas despesas preliminares, as pressões para manter certa imagem que refletisse sua elevada posição e talvez a insistência da mulher, que não queria parecer menos rica do que as damas coloniais, levavam-no a cometer certos abusos. A história de Agostinho de Azevedo Monteiro oferece um quadro em miniatura desse processo.45 Ele chegou à Bahia em 1659, acompanhado da mulher, sete filhos, uma escrava e um criado moço. Nem de longe um homem rico, dizia-se dele na época que não tinha "dezoito camisas que fossem suas" O salário anual de Azevedo Monteiro, como desembargador, era de 400 mil-réis, dos quais usava 60 mil-réis para pagar aluguel. O que lhe sobrava era insuficiente para sustentar a família por mais de meio ano. Sob tamanha pressão, ele se lançou em atividades financeiras. Pelo uso da forca, confiscou alguns lotes em Salvador por preços bem inferiores ao que valiam no mercado. Voltando-se então para o Recôncavo, alugou terra, escravos e gado. Manteve essa propriedade durante seis anos sem pagar um centavo e, quando o dono moveu uma ação, Azevedo Monteiro usou sua influência para retardar o processo. Essa prática funcionou tão bem que ele resolveu adotá-la de novo, alugando canaviais, colhendo uma safra de cana e recusando-se a pagar aluguel ao proprietário. Em 1675, a Câmara de Salvador queixou-se de que esse outrora pobre magistrado agora possuía 27 escravos, que valiam l conto e 200 mil-réis, sem falar dos cavalos, bois e ferramentas. Não admira que Azevedo Monteiro jamais tenha buscado promoção em Portugal, contentando-se em permanecer em seu posto brasileiro durante dezesseis anos. A carreira de Azevedo Monteiro indica que suborno não era apenas uma resposta a pressões financeiras, um resultado de baixos salários e altas despesas. Mesmo quando tais pressões diminuíam e o magistrado podia viver confortavelmente, ele continuava a usar o cargo em proveito próprio. A posição dos desembargadores no fulcro do poder oferecia oportunidades que poucos homens — bem ou mal pagos — deixariam passar. Os juizes viam a disparidade 167

entre sua posição e sua renda. As aspirações magistráticas de classe social não se reduziam a alcançar um status igual ao da nobreza, mas incluíam a aquisição dos benefícios e símbolos materiais tradicionalmente associados a tal status. Apesar de os desembargadores desempenharem atividades comerciais e de por vezes ocuparem cargos menores que geravam taxas e honorários, seu principal objetivo era adquirir terras,40 A riqueza em terras, mais do que a linhagem nobre, criou a aristocracia brasileira e, portanto, não é de surpreender que magistrados no Brasil se esforçassem para adquirir canaviais ou engenhos. Alguns desembargadores tinham sesmarias, mas a maioria obtinha suas terras por compra, herança ou dote. Parece que eles preferiam as terras canaviciras do Recôncavo. Luís de Sousa Pereira era dono de terras canavieiras ern Cachoeira c Iguape; Pedro de Unhão Castelobranco, em São Francisco do Conde; e Dionísio de Azevedo e Arevalos, em Paripe. Este último juiz acabou administrando as plantações de cana da sogra, o engenho Jacareacanga, que pertencera ao marido desta, o desembargador António Rodrigues Banha. 47 Juizes nascidos no Brasil, como João de Góes e Araújo, geralmente superavam os colegas no que dizia respeito à propriedade de terras, adquirindo-as por doação, herança e compra.^ A terra dava aos magistrados riqueza e status compatíveis com suas aspirações. A aquisição de uma fonte de renda independente, entretanto, diminuía a força das motivações profissionais c das restrições burocráticas. Um magistrado que fizesse fortuna no Brasil podia perder o interesse numa eventual promoção. O suborno criava seu próprio círculo fechado. Um desembargador infringia o regulamento burocrático para obter riqueza ou terras e, tendo feilo isso, as leis destinadas a impedir taí comportamento e canalizá-lo para os objetivos da carreira tornavam-se cada vez menos importantes. As restrições burocráticas perdiam força à medida que ele acumulava riqueza e propriedades e consequentcmente cada ato venal facilitava o seguinte. Os brasileiros raramente se queixavam do fato de os juizes adquirirem terras ou acumularem riqueza, pois os padrões da sociedade não eram os mesmos da burocracia. Muitos coionos tinham ido para o Brasil em busca de fortuna e não reprovavam os magistrados por fazerem o mesmo. O que preocupava os colonos, entretanto, era o inequívoco mau uso do cargo em proveito pessoal, a subversão da justiça por meio de propinas e favoritismo e o abuso egoísta de poder. Tais atividades eram injustas, tanto pelos padrões coloniais como pelos.b$rocráticos. v . •••-í íi .. 268

De todos os abusos magistráticos, o que provocava cuiKlenaçào mais severa era a venda da justiça. Gregório de Matos escrevera contra a subversão da justiça por meio de propinas e contra o modo como juizes venais vendiam a integridade do Tribunal Superior. Boatos sobre esse tipo de comportamento tornaram-se moeda corrente, mas era difícil prová-lo. Dizia-se que Feruão da Maia [ ; urudo aceitava suborno e dava aconselhamento jurídico a pessoas por ele julgadas/' Uma investigação de suas atividades realizada em 1655 nada ix-velou c ele permaneceu no cargo até se aposentar, em 1663. A disseminação dessa forma de corrupção é sugerida numa carta de 1799, que joga alguma luz sobre épocas anteriores. O governador da Bahia informava que ura canavieiro local mandava anualmente para todos os desembargadores alguns caixotes de açúcar ''como em todo o tempo tem praticado e praticarão outras pessoas nesta cidade".-"'11 Os colonos reprovavam particularmente o fato de que pouco se podia fa/cr para punir esses abusos dos magistrados. Apesar de existirem competição e i mmizade entre os desembargadores, amizade e cooperação formavam o padrão mais corrente. Regulamentos reais patrocinavam a interação social entre os j u i zes ao impor limites a outras opções sociais. Além disso, atitudes profissionais compartilhadas, origens comuns e interesses semelhantes levavam os magistrados a cooperar com os colegas de tribunal. Como poderia um comerciante ou senhor de engenho processar um desembargador, se os amigos, colegas c compadres do juiz pertenciam ao tribunal que julgaria o caso? Um exemplo é mais do que suficiente. Em 168.1, João Rodrigues dos Reis entrou na justiça contra as ações de um desembargador, mas passou-se um ano e meio sem qne uma decisão fosse tomada. Rodrigues dos Reis afirmou que o chanceler não tinha agido, nem agiria, por causa "da particular amizade com que se trata com o suplicado assistindo de ordinário em sua companhia" Na verdade, ele pediu que o provedor-mor conduzisse a investigação, uma vez que os "mais ministros [eram] mal afctados ao suplicante por ser o suplicado desembargador1?1 Juizes considerados "suspeitos" ou pessoalmente envolvidos num caso eram, por vezes, afastados, mas essas medidas talvez tenham sido ineficazes numa situação em que os laços de interesse c amizade eram muitos e o número de juizes era pequeno. A frustração diante desse estado de coisas e a inveja às vezes levavam a violentos ataques aos desembargadores. Em 1693, sete homens foram acusados de tocaiar o desembargador João de Sousa. Os acusados pediram uma mudança do local de juízo, alegando que Sousa e outro desembarga-

dor eram seus inimigos pessoais e tinham fabricado as acusações.52 Em 1734, um assassino matou o desembargador Luís de Sousa Pereira enquanto ele jantava em sua propriedade em Iguape.53 Tais ataques constituíam a forma definitiva de reprovação colonial. Suborno e má conduta provocavam censura tanto da colónia como do rei, mas tais atividades não eram a única forma de comportamento magistrátíco que violava o código burocrático de desempenho. Como observado no capítulo 8> relações primárias vinculavam os desembargadores à sociedade e criavam pressões que poderiam ter efeito em seu desempenho profissional. As tendências já notadas no período de 1609 a 1626 continuaram a prevalecer depois de 1652. As numerosas relações primárias associativas ou ritualizadas dos desembargadores só eram limitadas peias quase sempre ignoradas proibições e pelas distinções sociais que concentravam tais contatos em certos estratos da sociedade. Interesses compartilhados, cooperação em alguma tarefa, um arranjo comercial, filiação a uma mesma organização e até um estilo de vida em comum criavam uma teia de contatos associativos que violavam o teórico isolamento da magistratura. Além disso, uma segunda camada de relações primárias, formada por consanguinidade, parentesco por afinidade, casamento e apadrinhamento ritual, era geralmente ritualizada dentro da Igreja.54 Essa camada tendia a tornar-se cumulativa, de modo que, uma vez estabelecida uma ligação desse tipo, outras se seguiam quase inevitavelmente. As relações ritualizadas também tinham tendência a ampliar-se através de gerações, o que lhes dava um caráter de permanência não encontrado nas ligações associativas. Tanto os contatos associativos como os ritualizados exerciam forte pressão sobre o funcionamento do governo no Brasil colonial. Um exemplo talvez possa revelar todo o universo desses vínculos e, assim, demonstrar não apenas sua existência, mas também sua complexidade. Em 1681, Manoel Pais de Costa casou-se com Isabel d'Ávila, mas a mãe da moça, a viúva Catherina Fogaça, alegou que sua filha tinha sido levada a contragosto.55 Uma investigação foi iniciada, mas Costa queixou-se de que tinha pouca esperança de um julgamento justo, pois havia "com grandes razões de suspeita nos mais ministros daquele estado pela afinidade e parentesco que há entre a dita Catherina Fogaça e Thome Pereira Falcão e ter este muitos desembargadores daquela Relação seus pares e amigos". Aqui se vê não apenas a ameaça de relações pessoais no julgamento de um caso, como também que essa influência

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podia ser transmitida para parentes, de modo que o contato direto com os desembargadores não era sequer necessário, desde que algum amigo ou parente tivesse acesso à "fonte" da influência. Esse exemplo também indica o nível da sociedade no qual era rnais provável que tais relações fossem encontradas. Catherina Fogaça não era uma viúva necessitada, mas membro da família Dias d'Âvila, proprietária de grandes pedaços de terra ao norte de Salvador e também do rio São Francisco e um dos mais poderosos clãs do Brasil colonial.56 Tomé Pereira Falcão era seu cunhado. Esse cavalheiro baiano, tão bem relacionado com os desembargadores da Relação, era filho de um senhor de engenho, capitão de Iguape no Recôncavo, e, como vereador da Câmara de Salvador em 1671, defendeu o direito de os brasileiros servirem na Relação.57 Sem dúvida, os contatos pessoais mais comuns e eficazes eram os estabelecidos entre os magistrados e a elite de senhores de engenho e criadores de gado do Brasil, especialmente na capitania da Bahia. Certamente tais relações também existiam entre os juizes e pessoas de nível social inferior, mas, como era pequena a possibilidade de troca de "favores" nas relações entre superiores e inferiores, é de suspeitar que estas tenham tido impacto bem menor na conduta judicial. Deve-se também registrar a outra face dessas relações primárias: delas podiam resultar antipatia, competição e inimizade com a mesma facilidade com que resultavam a amizade e a cooperação. Não havia garantia de que o parentesco ou a participação conjunta na Misericórdia sempre produzissem respeito e harmonia. Apesar disso, um desembargador que agisse na profissão por maldade ou ódio, em contradição com as leis e os méritos do caso, introduzia critérios não burocráticos no funcionamento do governo, tanto quanto o juiz que agia por amizade. Os parentescos por afinidade estavam no coração dessas relações. No Brasil o número de famílias de elite — as de origem nobre, descendentes dos primeiros colonos, e a rica oligarquia do açúcar e do gado — continuou limitado. A genealogia das famílias baianas do século xvin de frei António de Santa Maria Jaboatão relaciona apenas 148 linhagens distintas, e em qualquer ponto do tempo o número era sempre menor que esse.58 A infusão de sangue novo de Portugal não oferecia, de fato, uma alternativa viável; a população metropolitana era pequena, e os portugueses que migraram para o Brasil geralmente vinham de categorias sociais com as quais os orgulhosos brasileiros não que~-. ".•-••• - . . ,.."."" 271

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riam ter nenhuma ligação. Assim, o totaí de uniões possíveis era pequeno e as árvores genealógicas da colónia tornaram-se emaranhadas e retorcidas num trançado de constantes casamentos entre primos. Um sinal dessas convoluções de família é o modo como os nomes começaram a encornpridar. Um simples "João de Sousa'1 do século xvr tornara-se "João de Sousa Pacheco dê Carvalho" no século xviíi, já que os patronímicas eram empregados para distinguir ramos de família e evitar confusões. Como a riqueza, a propriedade, o poder e a influência geralmente se tornavam disponíveis para alguém como resultado desses vínculos, passava a ser imperativo para membros desse estrato social identificar parentes até um grau distante. É uma arte não completamente morta no Brasil de hoje. O casamento servia como principal vínculo entre íamílias e o método mais eficaz de incorporar os magistrados ã sociedade local em caráter permanente. Os atrativos de trazer um desembargador para a família eram muitos. Primeiro, limitações cada vez maiores no número de possíveis combinações de família impostas por laços de sangue e brigas entre clãs tornavam os desembargadores particularmente bem-vindos, pois, diferentemente de muitos imigrantes portugueses, os juizes eram aceitáveis .socialmente em virtude de sua posição. A toga do desembargador obscurecia suas origens. Dos quinze magistrados nascidos em Portugal que se casaram no Brasil e sobre cujas origens sociais dispomos de informações, nenhum era fidalgo; sele vinham de famílias de letrados e cinco eram filhos de comerciantes e soldados. Certamente, as origens peninsulares dos juizes não* poderiam ter ajudado a atrair a oligarquia baiana. Em contrapartida, os juizes pareciam oferecer poder e prestígio em benefício direto da família enquanto servissem na r colônia, e, ao voltarem para Portugal, podiam até trazer novos laços, propriedades e influência na metrópole para -* uma família brasileira. :; Os desembargadores, por seu turno, podiam ver um casamento colonial y '* como oportunidade de adquirir a riqueza e a propriedade correspondentes à posição social a que aspiravam. Terá António Rodrigues Banha se casado com ; Maria ^rancisca de Vasconcellos porque ela ia herdar o engenho Jacareacanga? Quanta influência o enorme dote de 24 contos de réis terá exercido sobre o desembargador Tomás Feliciano Albernás para que escolhesse a filha do coronel João Teixeira de Sousa como sua mulher? 59 Trata-se de perguntas sem resposta, mas que sugerem as razões plausíveis para tais uniões. Não se pode afastar a hipótese de amor, mas nesse sistema social as mulheres traziam recursos - '/. -•;

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adicionais para a família e eram, portanto, cuidadosamente isoladaladas para servir a objetivos familiares, situação tendenre a impossibiliur o* enlaces por amor.60 Muito embora a lei de 1610 proibisse esses casamentos e não obstante o fato de que a maioria dos desembargadores vinha para o Brasil como homens maduros, já casados, quase 20% (32 de 168) dos magistrados casara m-se com brasileiras. A maioria dos juizes obtinha a licença necessária an tcs de se cas.i r na colónia, mas o número crescente dessas uniões no começo do século xvin pro\cou considerável preocupação real. Em 1706, a Coroa ordenou ao Desembalo do Paço qne se abstivesse de conceder essas licenças a magistrados além-rnar. Essa política logo foi abandonada, entretanto, quando a Coroa descobriu que os magistrados se casariam com ou sem permissão. Fsso ficou claro em 1728, quando dois juizes da Relação agiram exatamente assim.61 Bernardo de Sousa Estrela casou-se na Bahia contra a vontade expressa da Coroa e c Conselho Ultramarino queria que ele fosse publicamente desonrado para servir de exemplo. O juiz, escapou da punição, mas se afastou em 1730, muito provavelmente por reconhecer que seus superiores não lhe permitiam avançar na carreira. 62 Francisco de Santa Bárbara e Moura tinha recebido licença para se easar quando servia em Angola e alegava que a permissão era válida também para o Brasil. 63 Apesar de alguns colegas desejarem que fosse demitido, suas promoções posteriores indicam que a Coroa não adotou nenhuma medida contra ele. Em 1734, a Coroa, percebendo as dificuldades de controlar a situação, ameaçou expulsar qualquer juiz que se casasse no Brasil sem permissão expressa.61 Casamentos semelhantes são encontrados no século xrx, mas sua frequência parece ter diminuído depois dos anos de 1740. Apesar de as origens sociais de todas as noivas não poderem ser determinadas, a amostra existente (doze de 34) indica que essas mulheres vinham de dois elementos da população colonial. As filhas ou viúvas de outros funcionários reais não estavam, pelo menos em tese, sobrecarregadas de vínculos coloniais e, portanto, eram noivas adequadas para os desembargadores. Mas, como funcionários reais constan temente participavam da vida colonial, o casamento com suas filhas criava as mesmas complicações do casamento com a filha de um senhor de engenho, o outro grupo onde os juizes buscavam suas esposas. As origens sociais das noivas, relacionadas no Apêndice n, não deveriam causar tais uniões como uma permutado poder e do prós-

tígio magistráticos com o acesso à riqueza e às propriedades das famílias coloniais. Cabe notar também que algumas das noivas eram viúvas. Dada a idade média dos desembargadores, é provável que muitos se casassem pela segunda vez. Segundas núpcias levantam questões sobre a possível influência de um magistrado sobre seus enteados e os vínculos que se estabeleciam entre um e outros, mas atualmente não há respostas para essas questões. Outra área que desafia a análise é a existência de relações sexuais ilícitas. Obviamente tais informações são difíceis de obter, mas referências ocasionais a concubinagem e homossexualidade entre os desembargadores, relatos de don-juanismo magistrático e de reconhecimento de filhos ilegítimos sugerem a existência de tais relações.65 Difícil é determinar até que ponto tais ligações influenciaram padrões de influência e patronagem, pois, apesar da ausência de reconhecimento jurídico, elas podem ter sido mais íntimas e duradouras do que as relações formais. Uma coisa é certa: os desembargadores podiam manter uma ativa vida sexual na colónia, e os braços de mulatas, de jovens cadetes e de matronas solitárias se abriam para eles. Na sociedade portuguesa, o número de vínculos podia aumentar com a criação de parentescos fictícios. Isso era feito normalmente por meio da instituição sancionada pela Igreja do compadrio. Ao servir como padrinho de batismo ou testemunha de casamento, um indivíduo criava uma série de laços não apenas com o afilhado ou o casal, mas também com os país naturais. Laços de compadrio geravam obrigações genuínas para as partes envolvidas e considerava-se que criavam, de fato, graus de afinidade que proibiam a união sexual.66 O compadrio podia estabelecer relações primárias entre inferior e superior, por exemplo, entre um senhor de engenho e seu arrendatário, mas geralmente era usado para criar vínculos entre pessoas do mesmo nível social, ou para reforçar laços já existentes de consanguinidade ou amizade. Diferentemente do vínculo matrimonial, que ligava diretamente um juiz a apenas uma família, ou pelo menos a uma família de cada vez, as relações fictícias eram teoricamente ilimitadas. Um desembargador podia tornar-se compadre sempre que fosse convidado, se assim o desejasse. Assim, o parentesco fictício representava em termos quantitativos uma ameaça ainda maior para a isenção judicial do que os laços de sangue e casamento. Mas, se era para os juizes viver em sociedade, casar, ter filhos, então a doutrina da Igreja exigia, e a Coroa era obrigada a permitir, a criação desses laços. 274

A genealogia social de um desembargador, a rede de parentesco e de outras relações primárias, simplesmente constitui uma série de possíveis influências primárias em seu comportamento profissional.67 Na maioria dos casos, é impossível determinar as motivações de uma decisão particular, mesmo quando há indícios que sugerem relações primárias. Os desembargadores, como a maioria dos homens, agiam em resposta a uma mistura de motivações de que, devido a certas suposições e racionalizações subconscientes, eles mesmos não se davam conta plenamente. Portanto, a identificação de relações primárias simplesmente acrescenta uma variável, se bem que importante, à mistura. A análise de parentesco tem outras limitações. Como descendentes de Adão, todos os homens são, pelo menos alegoricamente, aparentados. No Brasil colonial, onde o número de colonos era limitado, laços de família acabavam ligando todos os clãs da elite, de modo que mesmo os rivais mais encarniçados podiam encontrar um antepassado comum em suas árvores genealógicas. Dessa maneira, cada indivíduo escolhia, entre todas as ligações sanguíneas, matrimoniais e rituais, certo número de indivíduos que ele considerava parentes seus. A família por afinidade, portanto, era uma "construção orientada pelo ego"68 um cálculo dos vínculos que o indivíduo considerava eficazes. Assim, as descrições genealógicas podem, quando muito, estabelecer apenas um campo de possibilidades. Mas mesmo diante dessas limitações ainda é possível notar certas tendências nos vínculos estabelecidos entre os desembargadores e a sociedade brasileira. Certas famílias baianas pareciam preferir as conexões com a magistratura quase como questão de política. Assim, nas genealogias sociais de três famílias importantes, os Cavalcanti de Albuquerque, os Rocha Pitta e os Ferrão Castelobranço, pode-se ver a maioria das características distintivas de uma conexão rnagistrática. A família Cavalcanti de Albuquerque era uma das maiores e mais poderosas do norte do Brasil, e uma das de maior prestígio. Sua linhagem poderia ser traçada até os donatários de Pernambuco, um cavalheiro florentino, Felipe Cavalcanti, que fugiu para o Brasil a fim de escapar à ira de Cosmo de Mediei, e um nobre flamengo, Arnau de Holanda, um dos primeiros colonizadores de Pernambuco. A família espalhara-se pelas capitanias do norte do Brasil e um ramo se estabelecera na Bahia desde o período da Guerra Holandesa. As ligações dos Cavalcanti com o Tribunal Superior existiam já no período da primeira

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Relação, pelo casamento de Manoel Pinto da Rocha com uma moça do ramo pernambucano, e, como o demonstra a Figura 5, esses vínculos desenvolvcram-se também depois de 1652. O coronel Cristóvão Cavalcanti de Albuquerque, rico e distinto proprietário de terras baiano, casou-se com Isabel de Aragao, filha de um senhor de engenho que contava entre seus tios e tias o alcaide-mor e a mulher de Jerônimo Sodré Pereira, outro canavieiro rico, militar e antigo provedor-mor da Misericórdia de Salvador.69 A união de Cristóvão Cavalcanti de Albuquerque e Isabel de Aragao produziu três filhos: António Cavalcanti, Ana de Aragao e Joana Cavalcanti de Albuquerque. António tinha propriedades em Cachoeira, mas conquistou a reputação de jovem dissipado e valente que teve muitos filhos bastardos. Essas desventuras talve?, expliquem o seu assassinato, que alguns dizem ter sido ordenado pelo pai para proteger o nome da família. Os outros filhos levaram vida mais ordeira. Ana de Aragao casou-se com Sebastião da Rocha Pitta, o célebre historiador. Joana casou-se três vezes: primeiro com o coronel Francisco Pereira Botelho e, depois de sua morte, com o desembargador José de Sá de Mendonça, em 1690. Com a morte deste, ela se casou com um de seus colegas, o desembargador Bernardo de Sousa Estrela, em 1721. Essa terceira união produziu dois filhos, ambos donos de propriedades e de cargos militares em Cachoeira. Enquanto isso, Isabel de Aragao morreu e Cristóvão Cavalcanti de Albuquerque casou-se outra vez. Esta segunda união resultou em oito filhos, entre eles Adriana Cavalcanti de Albuquerque, que se casou com o desembargador Cristóvão Tavares de Morais, e o coronel Bernardino Cavalcanti de Albuquerque, rico canavieiro.70 Dessa forma, três desembargadores estavam vinculados por casamento ao grupo familiar dos Cavalcanti de Albuquerque e, por intermédio deles, a outras notáveis famílias baianas como os Rocha Pitta, os Vieira Ravasco c os Araújo. É impossível determinar até que ponto os laços de parentesco influenciavam as ações dos juizes ou até que grau de distância os laços de parentesco continuavam em vigor; mas, em vista da importância da família e das muitas referências à influência de papéis atributivos no comportamento burocrático, parece seguro supor que a influência era considerável. Não só o parentesco influenciava o desempenho burocrático, mas pelos laços de associação e amizade os vínculos de sangue e casamento podiam estimular outras relações. Não é de admirar, portanto, que se encontre o coronel Bernardino

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