O Direito à Preguiça

Table of contents :
Biografia
Porque Crê em Deus a Burguesia
Duas Palavras para Servirem de Prefácio
Capitulo I: Religiosidade da Burguesia e Irreligiosidade do Proletariado
Capitulo II: Origens Naturais da Ideia de Deus no Selvagem
Capitulo III: Origens Econômicas da Crença em Deus da Burguesia
Capitulo IV: Evolução da Ideia de Deus
Capitulo V: Causas da Irreligião do Proletariado
Apêndice: A Caridade
O Direito à Preguiça
Introdução
Capitulo I: Um Dogma Desastroso
Capitulo II: Bençãos do Trabalho
Capitulo III: O Que se Segue à Superprodução
Capitulo IV: Para Nova Música Nova Canção
Apêndice
Apêndice
Socialismo e Patriotismo
Recordações da Vida Íntima de Karl Marx
Notas

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poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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Biografia Paul Lafargue (15 de janeiro de 1842 - 25 de novembro de 1911) foi um jornalista socialista marxista revolucionário francês, crítico literário , escritor e ativista político; ele era genro de Karl Marx, casado com sua segunda filha, Laura. Seu trabalho mais conhecido é O Direito à Preguiça. Nascido em Cuba, filho de pais franceses e crioulos, Lafargue passou a maior parte de sua vida na França, com períodos na Inglaterra e na Espanha. Aos 69 anos, ele e Laura, de 66 anos, morreram juntos por um pacto de suicídio. Lafargue foi objeto de uma famosa citação de Karl Marx. Pouco antes de Marx morrer, em 1883, ele escreveu uma carta a Lafargue e ao organizador do Partido dos Trabalhadores Franceses Jules Guesde , ambos que já alegavam representar princípios "marxistas". Marx os acusou de "traçar revolucionárias frases" e de negar o valor das lutas reformistas. Essa troca é a fonte da observação de Marx, relatada por Friedrich Engels: "como você tem certeza de que há um moi, je ne suis pas Marxiste" ("o que é certo para mim é que [, se eles são marxistas, então] eu não sou [a] marxista"). ∗∗∗ Lafargue nasceu em Santiago de Cuba. Seu pai era dono de plantações de café em Cuba, e a riqueza da família permitiu que Lafargue estudasse em Santiago e depois na França. Seus quatro avós eram um cristão francês, um indiano da Jamaica , um refugiado mulato do Haiti e um judeu francês . Lafargue observou que ele era um "internacionalista de sangue antes [de] ideologia" e que "o sangue de três raças oprimidas corre em minhas veias". Quando Daniel De Leon perguntou sobre suas origens, ele

prontamente respondeu: "Tenho orgulho da minha extração de negros". Em 1851, a família Lafargue mudou-se de volta para sua cidade natal , Bordeaux , onde Paul frequentava a escola secundária. Mais tarde, ele estudou medicina em Paris. Foi lá que Lafargue iniciou sua carreira intelectual e política, endossando a filosofia positivista e se comunicando com os grupos republicanos que se opunham a Napoleão III. O trabalho de Pierre-Joseph Proudhon parece tê-lo influenciado particularmente durante esta fase. Como anarquista proudhoniano, Lafargue ingressou na seção francesa da Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira) No entanto, ele logo começou a se comunicar com dois dos revolucionários mais importantes: Marx e Auguste Blanqui, cuja influência acabou com as tendências anarquistas do jovem Lafargue. Em 1865, após participar do Congresso Internacional de Estudantes em Liège, Lafargue foi banido de todas as universidades francesas e teve que partir para Londres para iniciar uma carreira. Foi lá que ele se tornou um visitante frequente da casa de Marx, conhecendo sua segunda filha Laura, com quem se casou no cartório de St. Pancras em abril de 1868. Durante os primeiros três anos de casamento, tiveram três filhos, dois meninos e uma menina, todos os quais morreram na infância. Eles não tiveram outros filhos. Lafargue foi escolhido como membro do Conselho Geral da Primeira Internacional, depois nomeado secretário correspondente da Espanha, embora ele não pareça ter conseguido estabelecer uma comunicação séria com os grupos de trabalhadores naquele país - a Espanha ingressou no congresso internacional somente após a Revolução Cantonalista de 1868, enquanto eventos como a chegada do anarquista italiano Giuseppe Fanelli fizeram com que ela

fosse fortemente influenciada pelo anarquismo (e não pelo marxismo que Lafargue escolheu representar). A oposição de Lafargue ao anarquismo tornou-se notória quando, após seu retorno à França, ele escreveu vários artigos criticando as tendências bakuninistas que eram muito influentes em alguns grupos de trabalhadores franceses; essa série de artigos iniciou uma longa carreira como jornalista política. ∗∗∗ Após o episódio revolucionário da Comuna de Paris em 1871, a repressão política o forçou a fugir para a Espanha. Ele finalmente se estabeleceu em Madri, onde entrou em contato com alguns membros locais da Internacional. Ao contrário de outras partes da Europa onde o marxismo passou a ter uma parte dominante, os revolucionários da Espanha eram principalmente devotos da facção anarquista da Internacional (eles permaneceriam muito fortes até a Guerra Civil Espanhola da década de 1930 e a ditadura subsequente). Lafargue envolveu-se na propagação do marxismo, uma atividade que foi dirigida em grande parte por Friedrich Engels, e que se entrelaçou com as lutas que ambas as tendências tinham internacionalmente - como a federação espanhola da Internacional foi um dos principais endossadores do grupo anarquista. A tarefa dada a Lafargue consistia principalmente em reunir uma liderança marxista em Madri, enquanto exercia uma influência ideológica através de artigos não assinados no jornal La Emancipación (onde defendia a necessidade de criar um partido político da classe trabalhadora, um dos principais tópicos opostos. pelos anarquistas). Ao mesmo tempo, Lafargue tomou iniciativa através de alguns de seus artigos, expressando suas próprias ideias sobre uma redução radical da jornada de trabalho (um conceito que

não era totalmente estranho ao pensamento original de Marx). Em 1872, após críticas públicas da La Emancipación contra o novo Conselho Federal anarquista, a Federação de Madri expulsou os signatários desse artigo, que logo iniciou a Nova Federação de Madri, um grupo de influência limitada. A última atividade de Lafargue como ativista espanhol foi representar esse grupo minoritário marxista no Congresso de Haia de 1872, que marcou o fim da Primeira Internacional como um grupo unido de todos os comunistas. ∗∗∗ Entre 1873 e 1882, Paul Lafargue viveu em Londres e evitou praticar medicina, pois havia perdido a fé depois da morte na infância dos três filhos dele e de Laura. Ele abriu uma oficina de fotolitografia, mas sua renda limitada o forçou a solicitar dinheiro à Engels (cuja família era coproprietária da empresa têxtil Baumwollspinnerei Ermen & Engels) em várias ocasiões. Graças à assistência de Engels, ele novamente começou a se comunicar com o movimento dos trabalhadores franceses de Londres, depois que ele começou a recuperar a popularidade perdida como resultado da repressão reacionária de Adolphe Thiers durante os primeiros anos da Terceira República. A partir de 1880, ele novamente trabalhou como editor do jornal L'Egalité. Durante o mesmo ano, e nessa publicação, Lafargue começou a publicar o primeiro rascunho de O Direito à Preguiça. Em 1882, ele começou a trabalhar em uma companhia de seguros, o que lhe permitiu mudar de volta para Paris e se envolver mais com a política socialista francesa. Juntamente com Jules Guesde e Gabriel Deville, ele começou a dirigir as atividades do recém-iniciado Partido dos Trabalhadores Franceses (Parti Ouvrier Français; POF), que causou conflitos com outras grandes tendências

de esquerda: anarquismo, "Radicaise Blanquists.

bem

como

o

"jacobino".

Desde então até sua morte, Lafargue permaneceu o teórico mais respeitado da POF, não apenas estendendo as doutrinas marxistas originais, mas também adicionando suas próprias ideias originais. Ele também participou de atividades públicas, como greves e eleições, e foi preso várias vezes. Em 1891, apesar de estar sob custódia policial, ele foi eleito para o Parlamento francês por Lille, sendo o primeiro socialista francês a ocupar esse cargo. Seu sucesso encorajaria a POF a permanecer engajada em atividades eleitorais e abandonaria amplamente as políticas insurrecionistas de seu período anterior. No entanto, Lafargue continuou sua defesa da ortodoxia marxista contra qualquer tendência reformista, como mostra seu conflito com Jean Jaurès, bem como sua recusa em participar de qualquer governo "burguês". ∗∗∗ Em 1908, depois de um congresso em Toulouse, as diferentes tendências socialistas foram unificadas na forma de um único partido. Lafargue se opôs ao reformismo socialdemocrata defendido por Jaurès. Nos últimos anos, Lafargue já havia começado a negligenciar a política, morando nos arredores de Paris, na vila de Draveil, limitando suas contribuições a vários artigos e ensaios, bem como a comunicação ocasional com alguns dos ativistas socialistas mais conhecidos de a época, como Karl Kautsky e Hjalmar Branting, da geração mais velha, e Karl Liebknecht ou Vladimir Lênin, da geração mais jovem. Foi em Draveil que Paul e Laura Lafargue terminaram suas vidas, para surpresa e até ultraje dos socialistas franceses e europeus.

Ele escreveu naquela ocasião: "Saudável no corpo e na mente, termino minha vida antes da velhice impiedosa, que tirou de mim meus prazeres e alegrias um após o outro; e que me despojou de meus poderes físicos e mentais, pode paralisar minha energia e quebrar minha vontade, tornando-me um fardo para mim e para os outros.Por alguns anos eu prometi a mim mesma não viver além dos 70 anos e fixei o ano exato para minha partida da vida. Eu preparei o método para a execução de nossa resolução, era uma hipodérmica de ácido cianeto. Morro com a suprema alegria de saber que, em algum momento futuro, a causa à qual me dedico por quarenta e cinco anos triunfará. Viva o comunismo! Viva a Segunda Internacional!" A maioria dos socialistas conhecidos lamentou sua decisão publicamente ou em particular; alguns, notavelmente o anarquista espanhol Anselmo Lorenzo, que havia sido um grande rival político de Lafargue durante seu período espanhol, aceitaram sua decisão com entendimento. Lorenzo escreveu após a morte de Lafargue: "O duplo, original e, seja qual for a resposta de rotina, até o suicídio simpático de Paul Lafargue e Laura Marx [na Espanha, as mulheres mantêm seu sobrenome de solteira após o casamento], que sabiam e podiam viver unidos e amantes até a morte, despertaram minhas memórias (...) Lafargue era meu professor: a memória dele é para mim quase tão importante quanto a de Fanelli. (...) em Lafargue foram dois aspectos diferentes que o fizeram aparecer em constante contradição: filiado ao socialismo, ele era comunista anarquista por convicção íntima; mas inimigo de Bakunin, por

sugestão de Marx, ele tentou prejudicar o anarquismo. Devido a essa dupla maneira de ser, ele causou efeitos diferentes naqueles que tinham relações com ele: os simples eram confortados por seus otimismos, mas aqueles tocados por paixões deprimentes transformavam amizade em ódio e produziam problemas pessoais, divisões e criaram organizações que, por causa do vício original, sempre dará frutos amargos. (...)" Adolf Abramovich Joffe, que mais tarde se suicidou para protestar contra a expulsão de Leon Trotsky do Comitê Central do Partido Comunista Soviético, observou em sua carta final a Trotsky à beira de cometer suicídio que ele aprovou o pacto de Lafargue e Marx em sua juventude: "Quando eu ainda era um jovem inexperiente, e o suicídio de Paul Lafargue e sua esposa Laura Marx provocou tal grito nos partidos socialistas, defendi firmemente a natureza correta e de princípios de suas posições. Lembro-me de que me opus veementemente a August Bebel, indignado com esses suicídios, que se alguém pudesse argumentar contra a idade em que os Lafargues optaram por morrer - pois aqui estávamos lidando não com o número de anos, mas com a possível utilidade de uma figura política - então poderíamos não há como argumentar contra o próprio princípio de uma figura política que se afasta desta vida no momento em que ele sentiu que não traria mais nenhum benefício à causa à qual se dedicara". Vladimir Lênin, que foi um dos oradores no funeral, disse mais tarde a sua esposa Nadezhda Krupskaya: "Se alguém não pode mais trabalhar para o Partido, deve ser capaz de olhar a verdade de frente e morrer como os Lafargues."

Paul e Laura Lafargue foram enterrados na divisão 76 (perto do Muro dos Comuns ) do cemitério Père Lachaise em Paris. Seu sobrinho Jean Longuet e sua esposa e dois filhos foram enterrados posteriormente no mesmo túmulo.

Porque Crê em Deus a Burguesia Duas Palavras para Servirem de Prefácio Não conheço senão através da tradução, que suponho fiel e a que estas palavras vão servir de prefácio, o opúsculo, da autoria de Paul Lafargue, intitulado — Porque crê em Deus a burguesia. Devo confessar que se eu conhecesse, no original, as páginas que vão a seguir nem por isso seria maior a minha autoridade para as inculcar à atenção do público português. Um trabalho de Lafargue recomenda-se por si. Quando, — há que anos isso vai! — tive ensejo de ler as páginas brilhantemente paradoxais do Direito à preguiça, logo fiquei admirando em quem com tanta ousadia intelectual soube traçá-las um espírito analítico e esfuziante, ao mesmo tempo, através do qual as mais áridas realidades da história adquiriam um toque de luz em que relampejava a mordacidade. O opúsculo que, pela primeira vez, — segundo creio — agora se publica em Portugal, sob a epígrafe sintomaticamente irônica de Porque crê em Deus a burguesia, não destoa, quanto à índole, da saborosa tese a que acabo de aludir. É possível que o ponto de vista de Paul Lafargue não resista, absolutamente, a uma revisão critica desapaixonada. Sou dos que reconhecem os altos serviços que, carregada embora de máculas e de crimes, enxovalhada vilipendiosamente pelo sangue dos mártires que imolou à arrogância do seu despotismo, a igreja católica pôde prestar à civilização e ao progresso do mundo. O requisitório que Paul Lafargue articula contra ela pôde, por isso, num ou noutro ponto, afigurar-se informado excessivamente pela reação, aliás legítima, suscitada contra o catolicismo pelas suas próprias culpas, que à luz da

História acusam, não raro, a lividez sinistra das mais hediondas depredações. De um modo geral, eu estou, no entanto, com Paul Lafargue e nenhuma dúvida tenho em afirmar que se o ateísmo, como tema de propaganda, me parece inane e quiçá contraproducente, nunca será demais a divulgação dos motivos de queixa que as classes populares têm o direito de invocar contra uma igreja que, atenta à orientação dos ventos, ardilosamente busca enfeitar-se com o titulo de padroeira dos humilhados e dos espezinhados quando o que principalmente avulta no seu passado de muitos séculos é o conservantismo que dela fez a herdeira do cezarismo romano. e, através do convulso drama da História, a solícita alcoviteira de todas as tiranias. Prova-no-lo, insofismavelmente, o que se passou com a escravatura, que o espírito cristão das primeiras comunidades feriu com as suas evangélicas objurgações para, afinal, perdurar até os nossos dias pela força dos interesses ihumanos com os quais a igreja acabou por se conformar, reduzindo a um precário e caritativo adoçamento todo o programa moral da sua atitude perante a ignóbil instituição. Claro está que Paul Lafargue não pretende convencer ninguém de que para crer em Deus é indispensável possuir ações com cotação na Bolsa... Era Paul Lafargue homem inteligentíssimo e de larga cultura, que muito bem sabia ter a atitude religiosa profundas raízes, tão profundas que mergulham nas obscuras regiões do sub-consciente do pobre ser humano. Mas não ignorava, tampouco, que a religião é, pragmaticamente, um instrumento disciplinar, que as oligarquias parasitárias utilizam sabiamente em benefício da conservação dos seus privilégios pelo que se pôde, com verdade, dizer que Deus vem a ser, efetivamente, na sua invisível onipotência, — que os sacerdotes corporizam, — o mais poderoso sustentáculo da Ordem contra as inclinações do descontentamento milenário das plebes e as revindicações da justiça ultrajada e militante.

Eis porque o opúsculo "Porque crê em Deus a burguesia", a despeito da sua feição panfletária, sugere úteis reflexões e contém nas suas páginas, a que não falta o timbre da mais ardente combatividade, um pecúlio apreciável de observações exatas e sugestivas. O aparecimento deste livrinho é, de resto, oportunissimo. Estamos num singular momento histórico, atravessando uma crise que, pela trágica amplitude, não tem precedentes. Milhões de criaturas debatem-se nas incertezas lancinantes do desemprego, entregues às multíplices solicitações do tédio e do desespero. No meio deste torvelinho de aflições nunca vistas, face a face do tremendo absurdo de uma civilização cujos recursos técnicos atingiram um coeficiente de produtivo rendimento jamais pressentido sequer pelos utopistas mais confiantes no indefinido desenvolvimento do progresso e que, todavia, vê crescer dia a dia o lúgubre exército da fome, genialmente profetizado por Marx, as igrejas não desistem de congregar em redor dos seus velhos símbolos inúteis as turbas martirizadas e ludibriadas. E, entre todas elas, a católica, que multiplica infinitamente os seus processos de captação para refazer um intolerável primado espiritual e temporal. Se é tempo de opôr uma barragem enérgica a esse retorno ofensivo das forças clericais, de novo reagrupadas para o combate em que sempre porfiaram, o folheto de Paul Lafargue tem uma atualidade inquestionável. Leiam-no, pois, com atenção — e divulguem-no com tenacidade — aqueles que, repudiando todas as servidões, vivamente se empenham pela emancipação moral e social da humanidade. Lisboa Setembro de 1932. Bourbon e Meneses.

Capitulo I: Religiosidade da Burguesia e Irreligiosidade do Proletariado Sob os auspícios dos sábios ilustres, Berthelot e Haekel, o livre-pensamento burguês teve singular interesse em levantar sua tribuna em Roma, frente ao Vaticano, para lançar sua eloquência oratória contra o catolicismo, o qual, por meio do seu clero jerárquico e seus dogmas, julgados imutáveis, representa para ele a religião. Porque fazem processo do catolicismo e creem os livrepensadores estar isentos da crença em Deus, base fundamental das religiões, qualquer que seja o seu nome? Supõem que a burguesia, classe a que pertencem, pode prescindir do cristianismo, do qual é uma manifestação evidente? Tenha podido, embora, adaptar-se a outras formas sociais, o cristianismo é, por excelência, a religião das sociedades que descansam sobre as bases da propriedade individual e da exploração do trabalho assalariado; por isso, tem sido, é e será — diga-se e faça-se o que se quiser — a religião da burguesia. Após mais de dez séculos, todos os seus movimentos, realizados só para organizar-se, para emancipar-se, ou para elevar ao poder a um dos seus, têm sido acompanhados de crises religiosas, havendo posto sempre os interesses materiais, cujo triunfo importava, sob a proteção do cristianismo que declarava querer reformar e conduzir à pura doutrina do divino mestre. Supondo que era possível descristianizar a França, os burgueses revolucionários de 1789 perseguiram os curas com grande fúria. Os mais lógicos, pensando que nada poderia conseguir-se enquanto subsistisse a crença em Deus, aboliram este por decreto, como se se tratasse de um

funcionário e substituíram-no pela deusa Razão. Apenas, porém, a Revolução perigou, Robespierre restabeleceu por decreto o Ser Supremo, — pois o nome de Deus não era, todavia, bem considerado — e alguns meses depois os curas saíam de seus esconderijos e abriam de novo as igrejas, onde os fieis se amontoavam, enquanto Bonaparte — para satisfazer a plebe burguesa — firmava a Convenção. Então nasceu um cristianismo romântico, sentimental, pitoresco e macarrônico, acomodado por Chateaubriand ao gosto da burguesia triunfante. Os homens de valor do livre-pensamento tem afirmado e afirmam ainda, a-pesar-da evidência, que a ciência desembaraçaria o cérebro humano da ideia de Deus, tornando-o inútil para compreender a mecânica celeste. Apesar disso, os homens de ciência quase com poucas excepções, vivem sob o encanto desta crença. Se na ciência que constitui a sua especialidade um sábio não necessita — segundo a expressão de Laplace — da hipótese de Deus para explicar os fenômenos que estuda, não se aventura a declarar que é inútil para dar-se conta daqueles que não entram no quadro das suas investigações, e todos os sábios reconhecem que Deus é mais ou menos necessário para o bom funcionamento da engrenagem social e para a moralização das massas populares1. Não somente a ideia de Deus não está de todo desvanecida da cabeça dos homens, mas que até floresce a mais grosseira superstição, não só entre a gente ignorante dos campos, mas até nas capitais da civilização e entre os burgueses instruídos, alguns dos quais estão em relação com os espíritos, com a intenção de ter notícias de além túmulo, — enquanto outros se ajoelham ante Santo Antônio de Pádua, pedindo que os faça encontrar um objecto perdido ou que lhes permita adivinhar o número que há-de ser premiado na lotaria, ou sair bem de um exame na Universidade: — isto, quando não consultam adivinhos, sonâmbulos ou os que deitam cartas para

conhecer o futuro, interpretar sonhos, etc, etc. Os conhecimentos científicos que possuem, não os protegem, pois, contra a mais ignorante credulidade. Enquanto, porém, em todas as camadas da burguesia, o sentimento religioso permanece vivo e se manifesta de mil formas, uma indiferença religiosa não raciocinada, mas inquebrantável, caracteriza o proletariado industrial. Depois dum vasto inquérito realizado pela Companhia de Saúde sobre o estado religioso de Londres, cujos higienistas visitaram distrito por distrito, rua por rua e a medo casa por casa, o seu general, Mr. Booth, confirma que: a massa do povo não professa nenhuma religião, nem sente o menor interesse pelas cerimonias do culto... A grande parte do povo que tem o nome de classe operária, que se move entre a pequena burguesia e a classe dos miseráveis, permanece, em conjunto, fora da ação de todas as seitas religiosas. Esta classe chegou a considerar as igrejas como simples lugares de reunião dos ricos e dos que estão dispostos a aceitar a proteção dos que desfrutam uma situação melhor do que a sua. Na generalidade, os operários da nossa época pensam mais nos seus direitos e na injustiça de que são objecto, que em seus deveres — que nem sempre cumprem. A humildade e a consciência de achar-se em estado de pecado não são, quiçá, naturais no operário. Estas afirmações incontrastáveis da irreligião instintiva dos operários de Londres, considerados, geralmente, como muito religiosos, pode fazê-las o observador mais superficial nas cidades industrializadas da França.

Se se encontram nelas trabalhadores que parecem ter sentimentos religiosos, ou que realmente os tem — estes são raros — é porque a religião se apresenta a seus olhos sob a forma de socorros caritativos; se outros são fanáticos livre-pensadores, é porque sofreram a ingerência do cura nas suas famílias ou nas suas relações com o patrão. A indiferença em matéria religiosa, o mais grave sintoma da irreligião, segundo Lamenais, é inata na classe operária moderna. Se os movimentos políticos da burguesia se investiram duma forma religiosa ou irreligiosa, não pode observar-se no proletariado da grande indústria da Europa e da América, nenhum desejo de elaborar uma religião nova para substituir o cristianismo, nem, sequer, o menor propósito de reformá-lo. As organizações econômicas e políticas da classe operária dos dois mundos desinteressamse de qualquer discussão doutrinária sobre os dogmas religiosos e sobre as ideias espiritualistas — o que os não impede de fazer guerra aos curas de todos os cultos, porque são os servidores da classe capitalista. Como é que os burgueses, que recebem uma educação científica mais ou menos extensa, são ainda afetos às ideias religiosas das quais se emanciparam os operários que daquela carecem?

Capitulo II: Origens Naturais da Ideia de Deus no Selvagem Perorar contra o catolicismo, como os livre-pensadores, ou prescindir de Deus como os positivistas, não quebranta a persistência na crença em Deus, a-pesar-do progresso e da vulgarização dos conhecimentos científicos e a-pesar-das diatribes de Voltaire e das perseguições dos revolucionários. É fácil perorar e prescindir, mas difícil explicar, pois, para isso, deve esforçar-se por indagar como e porquê a crença em Deus e porque as ideias espiritualistas penetraram na cabeça humana, aí encontrando raízes e se desenvolvendo. E só pode fazer-se uma contestação adequada a estas questões, remontando-se ao estudo da metafísica dos selvagens, nos quais imperam, manifestamente, as idéias espirituais que embaraçam o cérebro dos civilizados. A ideia da alma e da sua sobrevivência é invenção dos selvagens, os quais forjaram um espírito imaterial e imortal para explicar os fenômenos do sonho. O selvagem, que não duvida da realidade de seus sonhos, supõe que, se em sonhos caça, se bate ou se vinga, e ao acordar se acha no mesmo lugar a que se encostou, é que um outro, ou seja um doble indivíduo, segundo a sua própria expressão, impalpável, invisível e leve como o ar, abandonou seu corpo adormecido para ir caçar ou bater-se. E como se dá o caso de ver em sonhos, seus ascendentes e seus companheiros falecidos, deduz que foi visitado pelos seus espíritos, que sobrevivem à destruição de seus cadáveres. O selvagem, este menino do gênero humano, como lhe chama Vico, tem, como o menino, noções pueris sobre a natureza; acredita que pode mandar nos elementos como nos seus membros, que lhe é possível, com palavras e

práticas mágicas, ordenar à chuva que caia, ao vento que sopre... Se teme, por exemplo, que a noite o surpreenda no caminho, ata de determinado modo certas ervas para deter o Sol, como fez o Josué da Bíblia com o seu rogo. Tendo os espíritos dos mortos este poder sobre os elementos num grau muito maior que os vivos, invoca-os para que produzam o fenômeno quando tem precisão dele. Possuindo um valente guerreiro e um bruxo hábil mais ação sobre a natureza que os simples mortais, seus espíritos, quando estejam mortos, devem, por consequência, ter sobre aqueles um poder muito maior que o doble da generalidade dos homens. Por isso o selvagem os escolhe entre a multidão de espíritos para honra-los com oferendas e sacrifícios, e para suplicar-lhes que façam chover quando a seca põe em perigo a colheita, para pedir-lhes a vitória quando entra em luta, ou para que o curem quando está doente. Partindo duma explicação errônea do sonho, os homens primitivos elaboraram os elementos que mais haviam de servir para a criação de um Deus único, o qual não é, definitivamente, mais do que um espírito mais poderoso que os outros. A ideia de Deus não é à priori, mas à posteriori, como o são todas as ideias, pois o homem só pode pensar depois de haver-se posto em contacto com as ideias do mundo real, que explica como pode. Não é possível expor num trabalho destas dimensões, a maneira logicamente dedutiva segundo a qual a ideia de Deus tenha saído da ideia da alma, inventada pelos selvagens. Colecionando e resumindo Grant Allen as observações e as investigações dos exploradores, dos folkloristas e dos antropólogos, e interpretando-as e aclarando-as mediante a sua crítica engenhosa e fecunda, seguiu nas suas principais

etapas o modo de formação da ideia de Deus na sua obra notável Evolution de l'idée de Dieu. Demonstrou, igualmente, mediante provas, que o cristianismo primitivo, com o seu Homem-Deus, morto e ressuscitado, sua Virgem-Mãe, seu Espirito Santo, suas lendas, seus mistérios, seus dogmas, sua moral, seus milagres, e suas cerimônias, não fez mais que recolher e organizar numa religião ideias e mitos que circulavam, havia séculos, pelo mundo!

Capitulo III: Origens Econômicas da Crença em Deus da Burguesia Era de esperar que o extraordinário desenvolvimento e vulgarização dos conhecimentos científicos e a demonstração do encadeamento necessário dos fenômenos naturais, teriam estabelecido a ideia de que o universo, regido por uma lei precisa, estava fora do alcance dos caprichos duma vontade humana ou sobre-humana e que, por conseguinte, Deus era inútil, desapossado das múltiplas funções que a ignorância do selvagem o havia investido. Não obstante, forçoso é reconhecer que a crença num Deus, podendo por sua vez alterar a ordem precisa das coisas, subsiste ainda entre os homens de ciência, achando-se entre os burgueses os que pedem, como os selvagens, chuvas, vitórias, ou a cura de enfermidades. Ainda que os sábios houvessem criado entre os burgueses a convicção de que os fenômenos naturais obedecem à lei de precisão, de sorte que, determinados pelos que os precedem, determinam os que lhes hão-de seguir, ficaria ainda por demonstrar que os fenômenos do mundo social estão por igual submetidos à lei de precisão. Porém os economistas, os filósofos e os políticos que estudam as sociedades humanas e que tem até a pretensão de dirigilas, não chegaram nem podiam ter chegado a impor a convicção de que os fenômenos sociais dependem da lei de precisão, como os fenômenos naturais. E porque não puderam estabelecer esta convicção, a crença em Deus constitui uma necessidade para os cérebros burgueses, mesmo para os mais cultivados. O determinismo filosófico só atua nas ciências naturais, porque a burguesia permitiu a seus sábios estudar

livremente a combinação das forças da natureza, que tem todo o interesse em conhecer, pois que as utiliza para a produção das suas riquezas. Devido, porém, à situação que ocupa na sociedade, não podia conceder igual liberdade aos seus economistas, filósofos, moralistas, historiadores, sociólogos e políticos, motivo porque estes não puderam aplicar o determinismo filosófico às ciências do mundo social. Pela mesma razão impediu noutro tempo à igreja católica o livre estudo da natureza, sendo preciso destruir a sua dominação social para criar as ciências naturais. O problema da crença em Deus, da burguesia, só pode ser abordado tendo uma noção exata do papel que desempenha na sociedade. O papel social da burguesia moderna não é o de produzir riquezas, mas o de fazê-las produzir pelos trabalhadores assalariados, de açambarcá-las e distribuí-las entre os membros da sua classe, depois de ter entregue aos seus produtores manuais e intelectuais o precisamente indispensável para viver e reproduzir-se. As riquezas arrancadas aos trabalhadores, constituem a pilhagem da classe burguesa. Os guerreiros bárbaros, depois do saque duma cidade, punham em comum os produtos da pilhagem, dividiam-nos em partes quanto possivelmente iguais e distribuíam-nos por meio de sortes entre os que tinham arriscado a vida para conquistá-los. A organização da sociedade permite à burguesia apoderar-se das riquezas sem que nenhum de seus membros se veja obrigado a arriscar a sua vida: — toma-a por posição nesta pilhagem colossal, sem experimentar perigos, o que constitui um dos maiores progressos da civilização! As riquezas arrancadas aos produtores não são divididas em partes iguais, para ser distribuídas por meio de sortes, mas repartidas por meio de alugueres, rendas, dividendos, interesses e lucros industriais e comerciais

proporcionalmente ao valor da propriedade móvel ou imóvel, ou seja respeitante à importância do capital que cada burguês possui. A posse duma propriedade, dum capital, — e não das qualidades físicas, intelectuais ou morais, é a condição sine qua non para receber uma parte na distribuição das riquezas, — um morto possui-as, enquanto que um vivo carece delas enquanto não tiver o título que o acredite como seu possuidor. A distribuição não se realiza entre homens, mas entre proprietários. O homem é um zero; só se tem em conta a propriedade. Quis-se assimilar, equìvocamente, a luta darwiniana que mantém os animais entre si, para procurar-se os meios de subsistência e de reprodução, com a que se verificou entre os burgueses para o ratear das riquezas. As qualidades de força, valor, agilidade, paciência, engenho, etc, que asseguram a vitória ao animal, são parte integrante do seu organismo, enquanto que a propriedade, que proporciona ao burguês uma parte das riquezas que não produziu, não está incorporada no indivíduo. Esta propriedade pode aumentar ou diminuir e proporcionar-lhe, por isso, uma parte maior ou menor de riqueza, sem que tal aumento ou diminuição sejam motivados pelo exercício das suas qualidades físicas ou intelectuais. Mais se poderia dizer da velhacaria, da intriga e do charlatanismo, numa palavra, que as qualidades mentais mais inferiores permitem ao burguês apoderar-se duma parte maior que aquela que o autoriza a receber o seu capital: — neste caso arrebenta com os seus colegas burgueses. Se a luta pela vida pode ser, pois, em muitas circunstâncias, uma causa de progresso para os animais, a luta pelas riquezas é uma causa de degenerescência para os burgueses.

A missão social de apoderar-se das riquezas produzidas pelos assalariados, faz da burguesia uma classe parasitária: — os seus membros não concorrem à criação das riquezas, à excepção de alguns, cujo número diminui incessantemente. Ainda nestes casos, o trabalho que proporcionam não corresponde à parte de riqueza de que beneficiam. Se o cristianismo, depois de ter sido nos primeiros séculos a religião das multidões mendicantes, que o Estado e os ricos mantinham mediante distribuições diárias de víveres, se converteu na religião da burguesia, classe parasitária por excelência, é porque o parasitismo é a essência do cristianismo. No sermão da montanha, Jesus expôs magistralmente o seu carácter. Formou ali o Padre Nosso, a oração que todo-o fiel deve elevar a Deus para pedir-lhe seu pão cotidiano, em vez de pedir trabalho e afim de que nenhum cristão digno deste nome seja tentado a recorrer ao esforço para obter o essencial à vida; Jesus acrescenta: — "observai os pássaros do ar: — não semeiam nem recolhem e, não obstante, o Pai do céu alimenta-os. Não vos inquieteis pois e não pregunteis nunca que comeremos amanhã, que beberemos, de que nos havemos de vestir?... O vosso Pai celestial conhece todas as vossas necessidades". O Pai celestial da burguesia é a classe dos assalariados manuais e intelectuais: — ela é o Deus que satisfaz todos os seus desejos. A burguesia, porém, não pode reconhecer o seu carácter usurpador sem afirmar ao mesmo tempo o seu decreto de morte. Por isso, enquanto dá tréguas aos seus homens de ciência para que sem ser molestados por nenhum dogma, nem detidos por nenhuma consideração, se dediquem ao estudo mais livre e mais profundo, que aplica à produção das riquezas, impede os seus economistas, filósofos, moralistas, historiadores, sociólogos e políticos ao estudo imparcial do problema social e condena-os a procurar

razoes que possam servir de justificação à sua descomunal fortuna2. Preocupados os sábios pela única fonte das remunerações recebidas ou a receber, tem-se dedicado a investigar com ardor se por um acaso feliz as riquezas sociais teriam outra origem além da do trabalho assalariado e descobriram que o trabalho, a economia, a ordem, a honradez, o saber, a inteligência e muitas outras virtudes burguesas, dos industriais, comerciantes ou proprietários territoriais, banqueiros e acionistas, concorriam para a sua produção de uma maneira tão eficaz como o trabalho dos assalariados manuais e intelectuais e que por ele tinham o direito de manter-se com a parte de leão, não deixando para os outros mais que a parte da besta de carga. O burguês ouve-os sorrindo, porque fazem o seu elogio, logo fazendo repetir estes assertos imprudentes e declarando-os verdades eternas. Mas, por muito acanhada que seja a sua inteligência, não pode admiti-los intimamente, pois só terá que olhar à sua volta para certificar-se de que aqueles que trabalham toda a sua vida, são mais pobres do que Job, e que os que não possuem mais do que o saber, a inteligência, a economia e a honradez, e que exerçam estas qualidades, devem limitar a sua ambição [à] ração diária — raras vezes a nada mais. Se os economistas, os filósofos e os políticos que tem muita argúcia e conhecem a literatura não tem podido, a-pesardas suas porfiadas investigações, encontrar razões mais cômodas para explicar a origem das riquezas da burguesia, é porque há mistificações no assunto, é porque há causas desconhecidas cujos mistérios não podem sondar-se. Erguese diante do burguês um desconhecimento de ordem social. Para tranquilidade da sua ordem social, o capitalista tem interesse que os assalariados acreditem que as riquezas são o fruto das suas inumeráveis virtudes. Mas, na realidade, está convencido de que estas constituem uma recompensa das suas qualidades. Uma coisa única o preocupa: — é

possuir tais riquezas, e o que o tortura é supor que um dia possa perde-las sem que a culpa seja sua. E não pode evitar esta perspectiva desagradável, pois que no círculo estreito de seus conhecimentos, viu indivíduos perder seus bens, enquanto que outros, vivendo na pobreza, aparecem ricos. As causas destes revezes e destas fortunas escapam à sua inteligência de modo igual àqueles que as tem experimentado. Numa palavra: — observa uma contínua mudança de riquezas, que são para ele de desconhecido domínio, vendo-se induzido a atribuir estas mudanças de fortuna à sorte, ao acaso.3 Não é possível esperar que o burguês chegue algum dia a ter a noção positiva da distribuição das riquezas, porque à medida que a produção mecânica se despersonaliza, reveste a forma colectiva e impessoal das sociedades por ações, cujos títulos acabam por ser arrastados à mercê da Bolsa. Ali passam, de mão em mão, sem que compradores nem vendedores tenham visto a propriedade que representam nem saibam exatamente o lugar geográfico em que se acha situada. Ali se trocam, perdidos por uns e ganhos por outros, duma forma tão semelhante à do jogo, que as operações da Bolsa tem este nome. Todo o desenvolvimento econômico moderno tende, cada vez mais, a transformar a sociedade capitalista num vasto estabelecimento de jogo, onde os burgueses ganham e perdem capitais por efeito de circunstâncias que ignoram e que escapam a toda a previsão e a todo o calculo, e que parecem depender, exclusivamente, do acaso. Na sociedade burguesa reina o imprevisto, tal como numa casa de batota. O Jogo, que na Bolsa se manifesta sem disfarces, foi sempre uma das condições da vida do negócio e da indústria. Os seus sucessos são tão imprevistos e tão numerosos, que, a miúde, fracassam as operações melhor realizadas e melhor concebidas, enquanto que outras,

empreendidas de ânimo leve, resultam acertadas. Estes acertos ou estes fracassos, devidos a causas inesperadas, geralmente desconhecidas, parecem ser obra exclusiva do simples acaso e predispõem o burguês ao jogo da Bolsa, o qual aviva e fortifica esta disposição. O capitalista, cuja fortuna emprega em valores de Bolsa, que ignora o porquê das alterações dos preços e dos dividendos, é um jogador profissional. E o jogador que só atribui os seus ganhos ou as suas perdas à sorte ou à fatalidade, é um indivíduo eminentemente supersticioso. Os concorrentes habituais das casas de jogos, empregam todos estes mágicos encantos para conjurar a sorte: — um balbucia uma oração a Santo Antônio de Pádua, ou a qualquer santo, outro aposta somente depois de ter ganho determinado valor, outro conserva na mão uma pata de coelho, etc... O burguês vive em completo desconhecimento da ordem social, como o selvagem desconhece quanto influi nele a ordem natural. Todos os atos da vida civilizada, ou quase todos, tendem a desenvolver no homem o hábito supersticioso e místico próprio do jogador de profissão. O crédito, por exemplo, sem o qual não é possível o comércio nem a indústria, é um ato de fé no acaso, ao desconhecido que faz quem o cede — pois não tem nenhuma garantia positiva de que o vencimento possa cumprir seus compromissos, porquanto a solvabilidade depende de mil e um acidentes tão imprevistos quanto desconhecidos. Outros fenômenos econômicos diários insinuam no espírito burguês a crença numa força mística, sem base material, desprendida de toda a substância. O bilhete de Tesouro, para não citar senão um exemplo, incorpora uma força social tão pouco relacionada com tão limitada matéria, que prepara a inteligência burguesa a aceitar a ideia duma força que existira independentemente da matéria.

Este miserável pedaço de papel, que ninguém se dignaria possuir se não fora o seu poder mágico, proporciona a quem o tem, quanto há de mais material e desejável no mundo civilizado: — pão, carnes, vinhos, casas, terras, cavalos, mulheres, saúde, considerações e honras, etc, etc; os prazeres dos sentidos e as satisfações do espírito; Deus não faria mais. A vida burguesa é um tecido de misticismo4. A crise do comércio e da indústria representa ante o burguês tímido enormes forças, de irresistível poder, que parecem catástrofes tão espantosas como a cólera do Deus cristão. Quando estas forças se desencadeiam no mundo civilizado, arruivam os burgueses, aos milhares e destroem os produtos e os meios de produção no valor de centenares de milhões. Os economistas, registam, há um século, a sua repetição periódica, sem poder emitir uma hipótese quanto às causas que originam estas catástrofes. A impossibilidade de descobrir estas causas na terra, sugeriu a alguns economistas ingleses a ideia de buscá-las no Sol, cujas manchas, — dizem — destruindo por meio da seca as colheitas da Índia diminuem seus meios de compra das mercadorias europeias e determinam crises. Estes sábios sisudos levam-nos, cientificamente, à astrologia da Idade Média, que subordinava à análise dos astros os acontecimentos das sociedades humanas e à crença dos selvagens na ação das estrelas errantes, dos cometas e dos eclipses da lua sobre os seus destinos. O mundo econômico proporciona ao burguês mistérios insondáveis, que os economistas se resignam a não profundar. O capitalista, que graças aos seus sábios, tem chegado a dominar as forças naturais, fica tão pasmado ante os efeitos incompreensíveis das forças econômicas, que as considera invencíveis — tanto como Deus ser Deus. E deduz que o mais prudente é suportar com resignação as desgraças que

desencadeiam e aceitar com reconhecimento as vantagens que ocasionam. Como Job, diz: — O Eterno m'o tinha dado, o Eterno m'o há tirado — bendito seja o nome do Eterno. As forças econômicas parecem-lhe fantásticas, como seres benéficos ou maléficos5. Os terríveis enigmas de carácter social que envolvem o burguês e que sem saber a causa atentam contra o seu comércio, contra a sua indústria, contra a sua fortuna, contra o seu bem-estar e contra a sua vida, são tão incompreensíveis para ele, como o eram para o selvagem os enigmas de carácter natural que estremeciam e exaltavam sua exuberante imaginação. Os antropologistas atribuíam a bruxaria, a crença na alma, nos espíritos e em Deus, do homem primitivo, ao seu desconhecimento do mundo natural. A mesma explicação é aplicável ao homem civilizado:— as suas ideias espiritualistas e a sua crença em Deus devem ser atribuídas à sua ignorância do mundo social. A constante incerteza da sua prosperidade e as causas ignoradas da sua adversidade ou da sua fortuna, predispõe os burgueses a admitir, tal como o selvagem, a existência de seres superiores que, segundo as suas fantasias, obram com os fenômenos sociais, para que sejam favoráveis ou desfavoráveis, como o dizem Teognis e os livros do Antigo Testamento. Por isso, com o propósito de tê-los seguros, entrega-se à prática da mais grosseira superstição, comunica com os espíritos do outro mundo, acende velas às santas imagens e faz orações ao Deus tríplice dos cristãos ou ao Deus único dos filósofos. Vivendo em plena natureza, o selvagem sente-se impressionado, em primeiro lugar, pelos enigmas de ordem natural que, pelo contrário, afetam muito pouco o burguês, o qual só conhece uma natureza decorativa, raquítica, familiar. Os serviços numerosos que a ciência lhe prestou

para enriquecê-lo, e os que, todavia, espera dela, fazem nascer no seu espírito uma fé cega no seu poder — ao ponto, até, de não admitir a menor dúvida de que acabará por resolver um dia os enigmas da natureza e de prolongar mesmo, indefinidamente, a sua vida, como promete M. Metchnikoff, o micróbio-maníaco. O mesmo não acontece, porém, com os enigmas do mundo social, únicos que o preocupam e os quais considera incompreensíveis. O desconhecimento destes enigmas de ordem social, e não os de ordem natural, são os que insinuam na sua cabeça — pouco imaginativa — a ideia de Deus, que não teve o trabalho de inventar, pois a encontrou em condições de ser apropriada. Os incompreensíveis e insolúveis problemas sociais tornam Deus tão necessário que o teriam inventado se não existisse. Preocupado o burguês pelo oscilar desconcertante das fortunas e dos fracassos e pelo jogo incompreensível das forças econômicas, vê-se confundido, por consequência, pela brutal contradição da sua conduta e da de seus camaradas com as noções de justiça, de moral e de probidade propagadas entre o povo. Estas noções repete-as ele sentenciosamente; porém, esquiva-se muito a ajustar a elas suas ações, embora peça às pessoas que se acham em contacto com ele que as cumpram estritamente. Por exemplo: — se o negociante entrega ao cliente um gênero avariado ou falsificado, ele quer pagar-se, em troca, em boa e legítima moeda; se o industrial desfalca o operário ao medir a sua obra, nem por isso deixa de exigir-lhe, sequer, um minuto de trabalho pelo qual o contratou; se o burguês patriota — todos os burgueses são patriotas — se apodera da pátria dum povo mais fraco, tem por dogma comercial a integridade da sua pátria, que — segundo expressão de Cecil Rodes — é uma razão social. A justiça, a moral e os outros princípios mais ou menos eternos, apenas são válidos, para os burgueses, quando servem os seus

interesses. Estes princípios tem duas caras: — risonha e indulgente uma, a que olha para eles; feroz e imperativa a outra, que está voltada para os restantes. A perpétua e geral contradição entre os atos e as noções de justiça e de moral que supor-se-ia bastante para enfraquecer entre os burgueses a ideia de um Deus justiceiro, consolida-a, pelo contrário, e prepara o terreno para a imortalidade da alma, que se tinha desvanecido entre os povos chegados ao período patriarcal. Esta ideia é mantida, fortificada e constantemente avivada entre os burgueses, pelo seu costume de esperar uma inteira remuneração, quer do que fazem, quer do que não fazem6. Não emprega operários, não fabrica gêneros, não vende, não compra, não empresta dinheiro nem faz qualquer serviço sem que haja esperança de ser retribuído, isto é, de obter benefícios. A ideia constante do lucro faz com que não realize nenhuma ação pelo prazer de realizá-la, mas com o propósito de obter uma recompensa. Se é generoso, caritativo, honrado, ou até se se limita a não ser desonesto, não lhe basta a satisfação da sua consciência: — precisa de mais, duma retribuição. E se na terra não obtém a recompensa desejada, o que sucede frequentemente, conta alcançá-la no céu. Não somente espera uma remuneração pelas suas boas ações, e por abster-se das más, mas espera ainda uma compensação pelos seus infortúnios, pelos seus fracassos, pelos seus dissabores, e também pelas suas tristezas. O seu Eu é tão imenso que, para contê-lo, une o céu à terra. Às injustiças na civilização são tão numerosas e tão manifestas, que as de que ele é vítima tem a seus olhos proporções tão infinitas que, em seu entender, hão-de ser um dia forçosamente reparadas. Porém, este dia, só pode luzir no outro mundo; só no céu tem a certeza de alcançar a remuneração pelos seus infortúnios. A vida depois da morte

é para ele uma coisa certa, pois que o seu bom Deus, justo e reconhecido às virtudes burguesas, não poderá menos que conceder-lhe recompensas, tanto pelo que fez como pelo que deixou de fazer, reparando-o pelo que sofreu. No tribunal do comércio do céu serão apuradas as contas que na terra não puderam saldar-se. O burguês não chama injustiça ao açambarcamento das riquezas criadas pelos assalariados: — este despojo é, na sua opinião, a mesma justiça, e não pode conceber que Deus ou outro ser qualquer tenha sobre este ponto uma opinião diferente da sua. Não crê, todavia, que quando se permite aos operários ter o desejo de melhorar as suas condições de vida e do trabalho se viole a justiça eterna; mas, como sabe perfeitamente que estas melhorias deverão ser realizadas a expensas suas, pensa que é uma medida de prudência política prometer-lhes uma vida futura, onde nadarão em abundância, como os burgueses. A promessa da vida póstuma é para ele a maneira mais econômica de dar satisfação às reclamações operárias. A vida mais além da morte, para ele — que se compraz a esperar até então, para dar satisfação ao seu Eu — converte-se em instrumento de exploração. A partir do momento em que as contas da terra sejam definitivamente saldadas no céu, Deus converte-se, necessariamente, num juiz, tendo à sua disposição um Eldorado para uns e um presídio para outros, como o assegura o cristianismo, segundo Platão.7 O juiz celeste pronuncia as suas sentenças subordinadas ao Código judicial da civilização, acrescido de algumas leis morais que não puderam ser incluídas naquele. O burguês moderno não se preocupa, em primeiro lugar, mais do que com as remunerações e compensações de além campa. Em contraposição manifesta ter muito pouco

interesse no castigo dos maus, quer dizer, dos que lhe infligiram faltas pessoais. Apenas o inferno cristão o preocupa. Primeiramente, porque está convencido de que nada fez nem pode fazer para merecê-lo, e além disso porque conserva pouco ódio aos camaradas que cometeram faltas para com ele, estando até sempre disposto a reatar as relações de negócios ou de prazeres se nisso vê proveito. Tem mesmo certa afeição àqueles que o enganaram, porque, no fim de tudo, não lhe fizeram mais do que ele lhes teria feito se pudesse. Na sociedade burguesa todos os dias se veem indivíduos cujas quebras motivaram grosso escândalo e aos quais julgaram afundados para sempre, voltar à superfície e alcançar uma honrosa posição. Para começar de novo negócios e para patente de honestos só se lhes exige que tenham dinheiro8. O inferno só podia ser inventado por homens e para homens torturados pelo ódio e pela paixão da vingança. O Deus dos primeiros cristãos é um implacável verdugo que experimenta grande prazer ante os suplícios impostos eternamente aos infiéis, seus inimigos. Jesus, disse S. Paulo, subirá ao céu com os anjos da sua potestade, com labaredas flamígeros, exercendo a vingança contra os que não reconhecem Deus e não se submetem ao seu Evangelho. Estes serão punidos com a pena eterna, em presença do Senhor e ante a glória do seu poderio (II. Thess; I, 6 9). O cristão de então esperava com fé tão ardente a recompensa da sua piedade como o castigo dos seus inimigos, que se convertiam em inimigos de Deus. Como o burguês já não alimenta estes ódios ferozes, pois que o ódio não proporciona benefício algum, não tem necessidade de um inferno para satisfazer a sua vingança, nem de um Deus verdugo para castigar os colegas que o tenham ludibriado.

A crença da burguesia em Deus e na imortalidade da alma é um dos fenômenos ideológicos do seu meio social e não se desembaraçará dela senão depois de tê-la desapossado das suas riquezas arrancadas aos assalariados e tê-la transformado de classe usurpadora em classe produtora. A burguesia do século XVIII, que lutava em França para apoderar-se da ditadura social, atacou com fúria o clero católico e o cristianismo porque eram os pilares da aristocracia. Se, no ardor da batalha, alguns dos seus chefes, Diderot, La Metrie, Helvetius e d'Holbach, levaram a sua irreligião até ao ateísmo, outros, tão intérpretes do seu espírito — se não mais — Voltaire, Rousseau, Turgot, etc, não chegaram nunca à negação de Deus. Os filósofos materialistas e sensualistas, Cabanis, Maine de Biran, de Gerando, que sobreviveram à Revolução, retrataram-se publicamente das suas doutrinas ímpias. Não deve acusarse estes homens notáveis de terem traído as doutrinas filosóficas que, desde o início da sua carreira, lhes tinham assegurado a notoriedade e meios de existência; só a burguesia é disso culpável, pois que, vitoriosa, perdeu a sua irreligiosa combatividade e como os infiéis da Bíblia, vomitou novamente o cristianismo que, — como a sífilis — é uma enfermidade constitucional que tem no sangue. Aqueles filósofos sofreram a influência do ambiente social: — eram burgueses e evolucionaram com a sua classe. Este ambiente, ao qual não podem subtrair-se os burgueses mais instruídos nem os mais intelectualmente emancipados, é responsável do deísmo de homens de gênio como Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire, Faraday e Darwin e do positivismo de sábios contemporâneos que, não se atrevendo a negar Deus, se abstêm de ocupar-se dele. Porém, esta abstenção, é um implícito reconhecimento da existência de Deus, do qual tem necessidade para conhecer o mundo social, que lhes parece joguete do acaso, em vez de estar regido pela lei de precisão como o mundo natural.

Julgando fazer um epigrama contra a liberdade da sua classe, M. Brunetière repete a frase do jesuíta alemão Gruber, que o desconhecido é uma ideia de Deus adequada à franco-maçonaria. O desconhecido não pode ser a ideia de Deus para ninguém, mas é a sua causa genésica, de igual modo que entre os selvagens e os bárbaros, que entre os burgueses cristãos e os franco-maçons. Se os enigmas do meio natural tornaram necessário para o selvagem e para o bárbaro a ideia de um Deus, criador e regulador do mundo, os enigmas do meio social tornam necessária para o burguês a ideia de um Deus, distribuidor das riquezas arrebatadas aos assalariados manuais e intelectuais, repartidor dos bens e dos males, remunerador das ações, o remetente das injustiças e reparador das faltas. O selvagem e o burguês são induzidos na crença em Deus, sem se aperceberem disso, como são levados pela rotação da terra.

Capitulo IV: Evolução da Ideia de Deus A ideia de Deus, que os enigmas do meio natural e do meio social fizeram germinar no cérebro humano, não é invariável; pelo contrário, modifica-se com o tempo e com o lugar, evolucionando à medida que o modo de produção se desenvolve e transforma o meio social. Para os gregos, romanos e povos da antiguidade, Deus permanecia em lugar determinado e só existia para ser útil aos seus adoradores e hostil aos seus inimigos. Cada família tinha os seus deuses particulares, que eram os espíritos dos antecessores divinizados, e cada cidade tinha a sua divindade municipal ou «políade», como diziam os gregos. O Deus ou a Deusa municipal residia no templo que lhe era consagrado, e estava incorporado na sua efígie, que consistia, muitas vezes, num bloco de madeira ou numa pedra. Estes deuses só se interessavam pela sorte dos habitantes da cidade. Os Deuses dos antepassados de nada mais se ocupavam que dos assuntos da família. O Jehovah da Bíblia era um Deus desta espécie. Permanecia num cofre de madeira, chamado Arca Santa, que transportavam quando as tribuis mudavam de lugar. Também a colocavam à frente.dos exércitos, para que Jehovah se batesse pelo seu povo. Se o castigava cruelmente por faltar à sua. lei, também lhe prestava numerosos serviços, daqueles a que se refere o Antigo Testamento. Quando o Deus municipal não estava à altura das circunstâncias, acrescentava-se-lhe outra divindade. Durante a segunda guerra púnica, os romanos fizeram vir de Pessinonte a estátua de Cybeles, afim de que a Deusa da Ásia Menor os ajudasse a defenderse de Aníbal. Quando os cristãos demoliam os templos e destruíam as estátuas de seus Deuses para desalojá-los de

seus nichos e para impedir que protegessem os pagãos, não tinham outra ideia da divindade. Os selvagens criam que a alma constituía um segundo corpo. Por isso os seus espíritos divinizados, ainda que os encorporassem em pedras, em pedaços de madeira e em animais, conservavam a forma humana. De igual modo para S. Paulo e para os apóstolos, Deus era um antropomorfo; por isso fizeram dele um Homem-Deus semelhante a eles, conforme o corpo e o espírito, enquanto que o capitalista moderno o concebe sem cabeça nem braços e presente em toda a parte, em vez de estar aposentado em sítio certo do globo. Os romanos e os gregos, assim como os judeus e os primeiros cristãos, não criam que o seu Deus fosse o único da criação. Os judeus criam em Moloch, em Baal e noutros Deuses dos povos com os quais guerreavam com a mesma firmeza que com Jehovah, e os cristãos dos primeiros séculos e da Idade Média, se chamavam a Júpiter e a Alah falsos Deuses, capazes de realizar prodígios milagrosos, tais como Jesus e seu Pai Eterno9. Precisamente porque criam na multiplicidade dos Deuses, era possível que cada população tivesse um Deus ao seu serviço, encerrado num templo e encorporado num objecto qualquer: — Jehovah estava-o numa pedra. O capitalista moderno, que pensa que o seu Deus está presente em toda a parte da terra, nada mais pode aceitar que a noção de um Deus único, e a ubiquidade que atribuo a um Deus impede que o represente com cara, nádegas, braços e pernas, como Júpiter de Homero e Jesus de S. Paulo. As divindades adotadas pelas cidades guerreiras da antiguidade, sempre em luta com os povos circunvizinhos, não podiam corresponder às necessidades que a produção mercantil criava nas cidades comerciais e industriais, obrigadas, pelo contrário, a manter relações pacíficas com as nações fronteiriças. As necessidades do comércio e da indústria obrigaram a burguesia nascente a

desmunicipalizar cosmopolitas.

as

divindades

e

a

crer

Deuses

Sete ou seis séculos antes da era cristã, nas cidades marítimas da Jônia, da Grande Grécia e da Grécia, observam-se tentativas destinadas a organizar relações, cujos Deuses não haviam de ser monopolizados exclusivamente por uma cidade mas reconhecidos e adorados por diversos povos, mesmo inimigos. Estas novas divindades, Ísis, Deméter, Dionísios, Mitra. Jesus, etc, algumas das quais pertencem à época matriarcal, revestiam ainda a forma humana, embora começasse já a sentir-se a necessidade de um Ser supremo, que não fosse antropomorfo. Só na época capitalista, porém, se chegou a impor a ideia de um Deus amorfo, como consequência da forma impessoal revestida pela propriedade das sociedades por ações. A propriedade impessoal, que introduziu um modo de posse absolutamente novo e diametralmente oposto ao que até então existira, havia de modificar, necessariamente, os hábitos e os costumes do burguês, e de transformar, por conseguinte, a sua mentalidade. Até à sua aparição, não se podia ser possuidor, em França, mais do que dum vinhedo no Bordelais, de um tear em Ruão, de uma forja em Marselha, ou de uma drogaria em Paris. Cada uma destas propriedades, diferentes pelo gênero da indústria, pela situação geográfica e possuída por um único indivíduo, ou, quando muito, por dois ou três: — era raro que a mesma pessoa tivesse mais. Com a propriedade impessoal, sucede o contrário. Uma linha férrea, uma mina, um banco, são propriedade de centenas e de milhares de capitalistas, e um mesmo capitalista pode ter na sua própria carteira, títulos de rendimento e das dívidas públicas da França, da Rússia, da Turquia e do Japão, e ações das minas de ouro do Transvaal,

dos tranvias eléctricos da China, duma carreira de vapores transatlânticos, de uma plantação de café no Brasil, duma roça em Portugal ou de uma mina de carvão em França. O capitalista não pode ter, pela propriedade impessoal de cujos títulos é possuidor, o mesmo carinho que o burguês manifesta pela que ele administra ou faz dirigir sob as suas ordens: — o único interesse que sente por ela está em proporção com o prêmio pago pela ação adquirida e do dividendo que dela recebe. Pouco lhe importa a ele que este dividendo seja proporcionado por uma empresa de extração de massas, por uma refinaria de açúcar ou por uma cultura de algodão, e que este se domicilie em Paris ou em Pekin. Uma vez que só lhe importa o dividendo, desaparecem os caracteres diferenciais das propriedades que o proporcionam. E estas propriedades, de indústrias e de situações geográficas diferentes, identificam-se para o capitalista numa propriedade única, proporcionadora de dividendos cujos títulos, circulando na Bolsa, continuam conservando diversos nomes de ofícios e de países. A propriedade impessoal, que abrange todos os ofícios e se torna extensiva a todo o globo, desenvolve os seus tentáculos munidos de sugadores de dividendos, quer numa ação cristã, num país maometano, budista ou fetichista. Sendo a acumulação de riquezas a paixão dominante do burguês, esta identificação de propriedades, de natureza e de nacionalidades distintas numa propriedade única e cosmopolita, devia refletir-se na sua inteligência e influir na sua concepção de Deus10. A propriedade impessoal tenta-o, sem que ele dê conta disso, a identificar os Deuses da terra num Deus único e cosmopolita, que nuns países tem o nome de Jesus, noutros de Alá ou de Buda e é adorado segundo os diferentes ritos. É um fato histórico que a ideia de um Deus único e universal, que Anaxágoras foi um dos primeiros a conceber,

e que durante séculos apenas foi alimentado pelo cérebro de alguns pensadores, não foi convertido em ideia geral até ao predomínio da civilização capitalista. Como, porém, ao lado desta propriedade impessoal, única e cosmopolita, subsistem ainda inumeráveis propriedades pessoais e locais, os Deuses locais e antropomorfos, faziam germinar no cérebro do capitalista a ideia do Deus único e cosmopolita. A divisão dos povos em nações comercial e industrialmente rivais, obriga a burguesia a dividir o seu Deus único em outros tantos Deuses quantas nações existem. Assim, cada povo da cristandade crê que o Deus cristão, — que é, sem embargo, o Deus de todos os cristãos, é seu Deus nacional, como o era o Jehovah dos judeus e o Pallas-Athena, dos atenienses. Quando duas nações cristãs, se declaram em guerra, cada uma roga ao seu Deus nacional e cristão que combata por ela, e, se obtém a vitória, entoa um Te-Deum em sinal de graças por ter derrotado a nação rival e o seu Deus nacional e cristão. Os pagãos faziam lutar, entre si, Deuses diferentes; os cristãos fazem lutar seu Deus único com ele mesmo. O Deus único e cosmopolita, não poderia destronar completamente os Deuses nacionais do cérebro burguês, a não ser que todas as nações burguesas estivessem centralizadas numa só nação. A propriedade impessoal possui outras qualidades que transmitiu ao Deus único e cosmopolita. O proprietário dum campo de trigo, de uma oficina de carpintaria ou de uma mercearia, pode ver, tocar, medir e valorizar a sua propriedade, cuja forma clara e precisa impressiona os seus sentidos. Mas o proprietário de títulos de rendimento duma dívida pública e de ações duma linha férrea, de uma mina de carvão, duma companhia de seguros ou de um banco não pode ver, tocar, medir ou valorizar a partícula de propriedade que representam os seus títulos e as suas

ações de papel: em que floresta ou edifício do Estado, em que vagão, tonelada de hulha, apólice de seguro ou caixa de banco possa supor que ela se encontra. O seu fragmento de propriedade está perdido, fundido num todo enorme, de que não pode, sequer, formar uma ideia, pois se viu locomotoras e estações e mesmo galerias subterrâneas, não pode apreciar em seu conjunto uma linha férrea e uma mina; e, quanto à dívida pública de um Estado, a um Banco ou a uma companhia de seguros, não são susceptíveis de ser representados por uma imagem qualquer. A propriedade impessoal, da qual é um dos coproprietários, não pode adquirir na sua imaginação mais do que uma forma vaga, imprecisa, indeterminada; para ele é melhor um ser que raciocina, que revela a sua existência por meio de dividendos, que uma realidade sensível. Não obstante, esta propriedade impessoal, indefinida, como um conceito metafísico, provê todas as suas necessidades, como o Pai do céu dos cristãos, sem exigir dele outro trabalho nem mais quebra-cabeças que esperar os dividendos, que recebe com beatífica satisfação de corpo e de espírito como uma graça do capital, do qual a graça de Deus, «o mais verdadeiro dos dogmas cristãos», segundo Renán, é a reflexão religiosa. Já não se preocupa por conhecer o carácter da propriedade impessoal que lhe proporciona rendas e dividendos, nem por saber se o seu Deus único e cosmopolita é homem, mulher ou besta, inteligente ou idiota, — se possui as qualidades de fôrça, ferocidade, bondade, justiça, etc, das quais estavam munidos os Deuses antropomorfos. Nem mesmo perde tempo a dirigir-lhe orações, pois sabe, de ante-mão, que súplica alguma modificará a taxa do rendimento e do dividendo da propriedade impessoal da qual o seu Deus único e cosmopolita é a reflexão intelectual.

Ao mesmo tempo que a propriedade impessoal metamorfoseava o Deus antropomorfo dos cristãos num Deus amorfo e num ser razoável, num conceito metafísico, despojava em sentimento religioso da burguesia a virulência que engendrara a febre fanática dos mártires, dos cruzados e dos inquisidores, e transformava a religião numa questão de gosto pessoal, como o cozinhar, que cada qual prepara a seu modo, com manteiga, com alho ou sem ele. Mas a burguesia capitalista tem necessidade de uma religião e se encontra o cristianismo liberal por sua conveniência, não pode aceitar, sem emendas de vulto, a Igreja católica, cujo despotismo inquisitorial desceu até aos pormenores da vida privada e cuja organização de bispos, curas, monges e jesuítas, disciplinados e obedecendo cegamente às ordens que recebiam, constituíam uma ameaça para a ordem pública. A Igreja católica podia ser suportada pela sociedade feudal, na qual todos os seus membros, desde o servo ao rei, estavam unidos por direitos recíprocos; porém, não pode ser tolerada pela democracia burguesa, cujos membros, iguais ante a fortuna e a lei, embora divididos por interesses, se acham entre si em perpétua guerra industrial e comercial e querem ter sempre e direito de criticar as autoridades constituídas e torná-las responsáveis pelos seus fracassos econômicos. O burguês, que para enriquecer não quer ser perturbado por nenhum obstáculo, nem sequer toleraria a organização corporativa dos seus mestres de ofícios, que vigiava a maneira de produzir e a qualidade dos produtos. For isso aboliu-a. Desembaraçado de qualquer intervenção, só teria de consultar o seu interesse para fazer fortuna, cada um segundo os meios de que dispunha. A qualidade das mercadorias que fabrica e vende, só depende da sua elástica consciência:— cumpre ao cliente não deixar-se enganar quanto à qualidade, ao preço e ao peso do que

compra. Cada um por si, e Deus, quer dizer o dinheiro, por todos. A liberdade da indústria e do comércio devia refletir-se, forçosamente, na maneira de conceber a religião, que cada um entende como melhor lhe parece. Cada um porta-se com Deus, como com a sua consciência, em matéria comercial; cada um interpreta, segundo os seus interesses e as suas luzes, os ensinamentos da Igreja e as palavras da Bíblia, posta em mãos dos protestantes como o Código é nas mãos de todos os burgueses. O burguês capitalista que não pode ser nem mártir nem inquisidor, por ter perdido a ferocidade do proselitismo que inflamava os primeiros cristãos — tinha um interesse vital em aumentar o número dos crentes, afim de engrossar o exército dos descontentes, dando batalha à sociedade pagã — tem, não obstante, uma espécie de proselitismo religioso, sem entusiasmo e sem convicção, que está condicionado para a exploração da mulher e do assalariado. A mulher deve ser manejável pela sua vontade. Deseja-a fiel e infiel, segundo as suas conveniências. Se é a esposa de um camarada e ele lhe faz a corte, pede-lhe a infidelidade como um dever para o seu Eu e despeja a sua retórica para desembaraçá-la dos seus escrúpulos religiosos; se se trata da sua mulher legítima, converte-a em propriedade sua e deve ser intangível: — exige dela uma fidelidade a toda a prova e serve-se da religião para melhor fazer penetrar na sua cabeça a ideia do dever conjugal. O assalariado deve estar resignado com a sua sorte. A função social do explorador do trabalho exige que o burguês propague a religião cristã, predicando a humildade e a submissão a Deus, que elege os amos e designa os servidores e que aperfeiçoa os ensinamentos do cristianismo com os eternos princípios da democracia. Tem

o máximo interesse em que os assalariados esgotem a sua potência cerebral controversando sobre as verdades da religião e discutindo sobre a justiça, liberdade, moral, pátria e coisas quejendas, afim de que lhes não sobre um minuto para refletir acerca da sua miserável condição e acerca dos meios de melhorá-la. O famoso radical e livre cambista, Jacob Bright, presava tanto este meio de astúcia, que dedicava os domingos a ler a Bíblia aos seus operários. Mas, a função de embrutecedor bíblico, que os burgueses ingleses dos dois sexos podem realizar por mero entusiasmo, é forçosamente irregular, como todo o trabalho de amador. A burguesia industrial tem à sua disposição professores do embrutecimento para realizar esta tarefa. Os padres de todos os cultos prestam-se a isso. Mas, toda a medalha tem o seu verso. A leitura da Bíblia pelos assalariados tem perigos que Rockfeller soube apreciar, e afim de remediá-los, o grande capitalista organizou um trust para a publicação das bíblias populares, expurgadas das queixas contra as iniquidades dos ricos e dos protestos de cólera contra o escândalo da sua fortuna. A Igreja Católica, que previra estes perigos, conjurou-os, impedindo aos fieis a leitura da Bíblia e queimando vivo Wicklif, o seu primeiro tradutor em língua vulgar. Com as suas novenas, com as suas peregrinações e outras baboseiras, o clero católico é sobre todos os outros cleros aquele que melhor desempenha o papel de embrutecedor; é também o melhor remunerado para proporcionar irmãos e irmãs ignorantes para as escolas primárias e religiosas, vigilantes para as oficinas de mulheres. Pelos altos serviços que lhe presta, a alta burguesia industrial sustenta-o política e pecuniariamente, apesar-da grande antipatia que sente por eles, pela sua rapacidade e pela sua ingerência nos assuntos familiares.

Capitulo V: Causas da Irreligião do Proletariado As numerosas tentativas realizadas na Europa e América para cristianizar o proletariado industrial, têm fracassado completamente: — não tem bastado afastá-lo da sua indiferença religiosa, que se generaliza à medida que a produção mecânica realiza novos recrutamentos de aldeões, de artistas e de pequenos burgueses para o exército dos assalariados. O processo mecânico de produção, que engendra a religiosidade no burguês, cria, pelo contrário, a irreligiosidade no proletariado. Se é lógico que o burguês creia numa providência atenta às suas necessidades e num Deus que o elege entre milhares e milhares de homens para ornar de riquezas a sua pureza e a sua inutilidade social, é mais justo ainda que o proletário desconheça a existência de uma providência divina, pois sabe que nenhum pai celestial lhe proporcionaria o pão cotidiano se o pedisse de manhã até á noite e que o salário que lhe proporciona as primeiras necessidades da vida o tem ganho com o seu trabalho, pois demasiadamente sabe que, se não trabalhasse, morreria de fome, apesar de todos os bons deuses do céu e de todos os filantropos da terra. O assalariado é a providência de si mesmo. As suas condições de vida tornam impossível a concepção de outra providência. Não existe na sua vida, como na do burguês, esses rasgos de fortuna que poderiam, por mágico acaso, tirá-lo da sua triste situação. Assalariado nasceu, assalariado vive e assalariado morre. A sua ambição não pode ir mais além de um aumento de salário e de uma continuidade de salários durante todos os dias do ano e durante todos os anos da sua vida. Os azares e as

fortunas imprevistas, que predispõem os burgueses à superstição, não existem para o proletariado e a ideia de Deus não pode aparecer no cérebro humano senão quando vá preparada e unida a ideias supersticiosas, não importa de que origem. Se o operário se deixasse levar pela ideia de Deus, do qual ouve falar em sua volta sem prestar nenhuma atenção, começaria por discutir a sua justiça, que só o carrega de trabalho e de miséria; ter-lhe-ia horror e ódio e representalo-ia sob a forma e condição de um burguês explorador, como os escravos negros das colônias, os quais diziam que Deus era branco como os seus amos. Certamente, o operário, assim como o capitalista e seus economistas, não se apercebe do desenvolvimento das ideias econômicas nem se explica porque, com a mesma regularidade com que a noite sucede ao dia, os períodos de prosperidade industrial e de trabalho a alta pressão, são seguidos de crises e de falta de trabalho. Este desconhecimento, que predispõe o espírito do burguês à crença em Deus, não provoca o mesmo efeito no operário, porque ocupam posições distintas na produção moderna. A posse dos meios produtivos, dá ao burguês a direção total da produção e obriga-o, por consequência, a preocupar-se, com as causas que influem nestas questões. Pelo contrário, o operário não tem direito a inquietar se por isso. O operário não participa nem da direção da produção, nem da adoção e abastecimento das matérias primas, nem da forma de produzir, nem da circulação dos produtos: — ele só tem que proporcionar a fôrça de trabalho como uma besta de carga. A passiva obediência dos jesuítas, que subleva a verbosa indignação dos livre-pensadores, é a lei imposta na oficina. O capitalista coloca o assalariado diante da máquina em movimento, abastecida de matéria prima e ordena-lhe que trabalhe: — o operário converte-se numa roda da máquina,

não tendo, na produção, mais do que um objecto, o salário, o único interesse que a burguesia se vê forçada a dar-lhe. Depois de ter recebido o salário, já nada mais tem que reclamar. Sendo o salário a única remuneração que aquela lhe permitiu conservar na produção, não deve preocupar-se com outra coisa que o ter trabalho para receber um salário. E como o patrão, ou os seus representantes, são os que proporcionam trabalho, é a eles, homens de carne e osso como ele, a quem culpa quando aquele falta, e não aos fenômenos econômicos, que ignora; contra eles se irrita pelas reduções de salário e pela escassez de trabalho, e não contra as perturbações gerais da produção. A eles torna responsáveis de tudo que acontece, seja no que for. O assalariado personaliza os acidentes da produção que o afetam, enquanto que a posse dos meios de produção se despersonaliza à medida que estes se mecanizam! A vida que leva o operário da grande indústria, subtrai-o, mais ainda que ao burguês, às influências do meio natural, que mantém no aldeão a crença nas aparições, nas bruxas, nos maus olhados e noutras ideias supersticiosas. Não vê o sol senão através dos vidros da oficina e não conhece, da natureza, senão os campos que rodeiam a população em que trabalha, que visita em memoráveis ocasiões de folga. Não saberia distinguir um campo de aveia dum campo de trigo, nem um de batatas de outro de cânhamo. Os produtos da terra só os conhece na forma em que os consome. Vive numa ignorância completa no que diz respeito ao trabalho dos campos e nas causas que influem no rendimento das colheitas. A seca, as chuvas torrenciais, o granizo, os furacões, etc, não o induziram nunca a pensar na sua ação sobre a natureza das suas colheitas. A sua vida urbana põeo a coberto das inquietações e das grandes preocupações que assaltam o espírito do cultivador. A natureza não preocupa a sua imaginação.

O trabalho da oficina mecânica põe o operário em relação com as terríveis forças naturais que o aldeão desconhece; em vez, porém, de ser dominado por elas, ele guia-as. O gigantesco mecanismo de ferro e aço do que constitui a fábrica, que faz mover como um autômato, e que às vezes o colhe e mutila, em vez de provocar nele um terror supersticioso como o trovão — ao camponês, deixa-o impassível e impávido, pois sabe que os membros do monstro metálico foram fabricados e montados por camaradas e que uma simples correia basta para pô-lo em marcha ou detê-lo. Apesar-da sua potência e da sua milagrosa produção, a máquina não encerra para ele nenhum mistério. O operário das fábricas produtoras de eletricidade, que só tem que mover uma manivela sobre um quadrante para mandar, a quilômetros de distancia, a força motriz para comboios ou iluminação duma população, só tem que dizer, como o Deus do Gênesis: —«Faça-se a luz», para que esta seja feita. Jamais bruxaria tão fantástica havia sido concebida. Todavia, para o operário, esta bruxaria é coisa simples e natural, e ficaria sumamente surpreendido se alguém lhe dissesse que qualquer Deus poderia, se quisesse, deter as máquinas e extinguir a luz das lâmpadas quando se lhes abrisse a corrente; por fim teria que contestar que este Deus anarquista seria simplesmente uma engrenagem gasta ou um fio condutor partido, e que seria fácil procurar e encontrar este Deus perturbador. A prática da oficina moderna ensina ao assalariado o determinismo científico, sem necessidade de passar pelo estudo teórico das ciências. Como nem o burguês nem o proletário vivem no campo, os fenômenos naturais não podem provocar neles as ideias supersticiosas que foram utilizadas pelo selvagem para elaborar a ideia de Deus. Se um deles, porém, por pertencer

à classe dominante e parasitária sofre a ação geradora das ideias supersticiosas dos fenômenos sociais, o outro, por fazer parte da classe explorada e produtora, acha-se subtraído à sua ação supersticiosa. A burguesia não poderá ser descristianizada nem afastada da crença em Deus enquanto não for expropriada da sua ditadura de classe e das riquezas que diariamente arrebata aos trabalhadores assalariados. O estudo livre e imparcial da natureza, tem feito germinar e tem estabelecido firmemente em determinados meios científicos a convicção de que todos os seus fenômenos estão submetidos à lei de precisão e que deve procurar-se as suas causas determinantes na natureza e não fora dela. Este estudo tem permitido, além disso, o domínio das forças naturais para o uso do homem. Porém, o emprego industrial das forças naturais tem transformado os meios de produção em organismos econômicos tão gigantescos que escapam à investigação dos capitalistas que os monopolizam, conforme demonstram as crises econômicas da indústria e do comércio. Embora de criação humana, estes organismos de produção, alteram, quando se produzem, o meio social, tão cegamente como as forças naturais alteram a natureza quando se desencadeiam. Os meios de produção moderna só podem ser assistidos pela sociedade, e para que esta intervenção possa estabelecer-se, devem converter-se, previamente, em propriedade social. Então, e só então, deixarão de provocar desigualdades sociais, de proporcionar as riquezas aos parasitas, de impor a miséria aos produtores assalariados e de criar as perturbações mundiais que o capitalista e os seus economistas não sabem atribuir senão ao acaso e a causas desconhecidas. Quando estes meios de produção estiverem em poder da sociedade, terá

desaparecido o desconhecimento da causa social. Então, e só então, será definitivamente eliminada da cabeça humana a ideia de Deus. A indiferença em matéria religiosa dos operários modernos, cujas causas determinantes tratei de investigar, é um fenômeno novo, que se produz pela primeira vez na história. As massas populares tem elaborado sempre, até hoje, as ideias espiritualistas que os filósofos reduziram à quinta-essência e mistificaram, tal como as lendas e as ideias religiosas, que os curas e as classes dirigentes nada mais fizeram que organizá-las em religião oficial e em instrumentos de opressão intelectual.

Apêndice: A Caridade I - A Caridade dos Primeiros Cristãos A caridade, uma das três virtudes teologais que o cristianismo se envaidece de ter feito germinar no coração humano, fechado, até à vinda de Jesus Cristo, a todo o sentimento de comiseração pelos seus semelhantes, é a digna precursora dos três princípios políticos: Liberdade, Igualdade e Fraternidade que a burguesia francesa se lisonjeia de ter revelado à humanidade do século XVIII. A caridade cristã que apenas pede humildemente ao rico uma pequena parcela do supérfluo, é uma virtude que proporciona grandes benefícios, pois sem alterar os seus costumes, sem refrear os seus vícios, sem condenar os seus prazeres, sem exigir o menor esforço físico ou intelectual e sem grandes dispêndios, proporciona a satisfação moral de crer-se um bem-feitor todo aquele que a pratica e de procurar-lhe o efeito social próprio de todo o ato generoso, garantindo-lhe, a baixo preço, um lugar reservado no paraíso, pois, segundo S. Pedro "a caridade apaga infinidade de pecados". Além disso, realiza outros serviços, não menos notáveis, que os seus panegiristas não se atrevem a mencionar. A caridade é a cínica expectativa que corrompe o pobre, envilece a sua dignidade e acostuma-o a suportar com paciência a sua iníqua e miserável sorte. A sociedade capitalista, que chega ao seu extremo limite a exploração do pobre, era a única capaz de erigir em virtude teologal e social a colocação do dinheiro a um juro tão fabulosamente agiota. A caridade, digam os teólogos o que quiserem, não alcançou no primeiro momento tão alto grau de perfeição. Os apóstolos e os primeiros cristãos tinham dela uma ideia

menos concreta e, sobretudo, menos burguesa; careciam demasiadamente do necessário para poder dispor caritativamente do supérfluo que não tinham. É preciso ter uma ideia errônea da sua vida e, sobretudo, alterar atrozmente o texto dos «Atos» e dos «Capítulos dos Apóstolos», para adorná-los com esta proveitosa virtude capitalista. Nunca texto algum foi tão imprudentemente alterado como o do Novo Testamento.11 De tal forma desconheciam os apóstolos esta famosa virtude teologal, que a palavra caridade não se vê em nenhum dos seus escritos. A palavra do Novo Testamento «caritas», que se traduziu por caridade, nunca teve êste significado nas línguas grega e latina e nunca S. Paulo, S. Jaime e S. João lhe deram este sentido, pois a aplicavam como sinônimo de amizade e de amor fraternal — «amor fraternus». «Ágape» quer dizer amizade e isso prova que os primeiros cristãos só lhe davam esta significação servindose dela para designar as suas refeições comuns, que não eram simples refeições de caridade, mas «ágapes» de fraternidade e que chamavam «agapetes» às mulheres que co-habitavam com os sacerdotes, como irmãos de eleição, pois o amor fraternal estava em oposição com o amor sexual. «Caritas», traduzido pelos latinos por caridade e num sentido figurado por amor, por conseguinte, foi sempre interpretado nesta acepção, propriamente pelos autores da época da decadência, como Amiano Marcelino, que escrevia no século IV da nossa era. A palavra da língua grega, cujo sentido se aproxima mais da ideia de caridade, é «compartível», que na língua eclesiástica se transforma em «caritable». Não existindo a palavra na língua latina, Tertuliano, S. Jerônimo e Santo Agostinho tomaram-na do grego e disseram «elemosyna» por esmola, por caridade. Os teólogos protestantes da Inglaterra, que em 1880 revisaram a tradução inglesa do Novo Testamento traduziram «caritas» por «love» (amizade, amor). A maneira

de viver e de pensar dos primeiros cristãos não permite outra interpretação. Os primeiros cristãos de Jerusalém, de Corinto, de Éfeso, de Antioquia, etc, agrupavam-se em pequenas comunidades, vivendo numa mesma casa e às vezes numa mesma habitação. Os «Atos» e os «Capítulos dos apóstolos» contêm preciosos detalhes sobre o seu recrutamento, sobre a sua maneira de viver e sobre as paixões que os agitavam. «Os que recebiam com toda a sinceridade a boa palavra, eram batizados e incorporados na comunidade..., se perseveravam na doutrina, eram admitidos na divisão do pão e nas orações... Os que participavam da fé viviam juntos e possuíam todas as coisas em comum: — vendiam os seus bens e os seus haveres e distribuíam-nos a todos segundo as suas necessidades... A multidão de crentes não tinha mais do que um corpo e uma alma, e ninguém dizia que as coisas em seu poder eram suas, mas comuns a todos... Desta forma não existia entre eles pessoas necessitadas, pois os que eram donos de campos e de casas vendiam-nos e depositavam o seu custo junto dos Apóstolos para ser distribuído a cada um segundo as suas necessidades. A admissão nas divisões de pão e outros alimentos era um dos meios mais eficazes de propaganda dos apóstolos. Conforme os «Atos», num só dia inscreveram-se uns três mil pobres diabos na distribuição de víveres e de doutrina. Estes aceitavam a doutrina sem compreendê-la, pois resultava imprecisa e confusa ainda pelos próprios apóstolos, como o confirma a querela surgida entre S. Paulo e S. Pedro sobre a circuncisão. A ter-se mantido este costume hebraico, o cristianismo não teria chegado a revestir carácter internacional.

As massas dos convertidos às novas doutrinas só se impuseram à sua perseverança nelas com a condição de poder encher a barriga: — de contrário tê-las-iam rechaçado com a mesma facilidade com que as aceitaram. Os apóstolos tinham necessidade de aguçar o engenho para proporcionar-lhes pão, com o fim de detê-los; e, para conseguir fim tão plausível, todos os meios eram bons, incluso o do assassinato! Os «Atos» referem, com cinismo sem igual, um duplo assassinato cometido por S. Pedro, e a forma como se narra o fato leva-nos a supor que semelhantes crimes eram coisa corrente entre os apóstolos: — a maneira rápida com que o santo varão perpetra o crime e se desembaraça dos cadáveres dá motivo para pensar que não se tratava de um simples ensaio. Eis o relato evangélico: — Ananias e sua mulher, Safira, dois bons burgueses, tinham tomado tão a sério a doutrina dos Apóstolos, que, querendo adaptar-se às regras da comunidade, venderam os seus bens e depositaram a importância deles aos pés de S. Pedro, embora deixando para si uma parte, não dizem os «Atos» com que intenção. O apóstolo que indubitavelmente se tinha inteirado com interesse da venda dos bens, compreendeu que não lhe entregavam todo o dinheiro que aquela tinha produzido. Então mandou chamar, separadamente, à sua presença, primeiro o marido e depois a mulher, e tendo mandado dar morte a Ananias, por homens novos que tinha sempre à sua disposição com este fim, como fazem supor as palavras do santo dirigidas a Safira, disse a esta; — «À porta estão os que enterraram teu marido e que não tardarão a fazer o mesmo contigo». Como é de supor, os «Atos» levam este duplo assassinato à conta do bom Deus, o qual não está presente para desculpar-se. Os curas e os feiticeiros atribuíram sempre a Deus o papel de executor das suas grandes obras. «Este crime causou grande pânico entre a comunidade e entre todos aqueles que dele tiveram

conhecimento». A política dos apóstolos, como a de todos os feiticeiros, consistia em impor-se por meio do terror. Os «Atos», em certas passagens, fazem menção do terror que os apóstolos inspiravam aos fiéis. Os propagadores do cristianismo seguiram sempre, quer no velho quer no novo mundo, esta política. O jesuíta Charlevoi, que era uma pessoa honrada, conta com a maior naturalidade na sua «História do Paraguay», que tendo-se negado um cacique chamado Guarany a aceitar as predicações dos jesuítas, foi queimado vivo pelo fogo do céu, como Ananias e Safira tinham sido mortos por Deus. Além das Comunidades, que o texto grego dos «Atos» denominam Ekklesía (assembleia e origem do nome de Igreja) havia fiéis que, menos cândidos que Ananias e Safira, conservavam os seus bens, contribuindo, porém, para o sustento dos «santos», assim se designavam entre si os membros das Comunidades, porque tinham talvez sobre a propriedade ideias distintas das dos indígenas, dos quais se achavam rodeados. Os apóstolos e os santos, disse S. Paulo, «recebiam estes dons como um sacrifício agradável a Deus». Os apóstolos andavam constantemente na pesquisa de pessoas ricas e generosas: — quando tinham probabilidade de encontrar uma, prestavam toda a atenção às suas palavras e ensaiavam quantas farsas pudessem inventar com o fim de se apoderarem do seu espírito e da sua bolsa. S. Pedro chegou a ser um mestre consumado nesta arte: — Os «Atos» descreviam coma maior naturalidade duas destas vigarices: a da viúva Tabitha e a do centurião Cornélio. O santo varão convenceu a boa mulher que ela tinha morrido e ele a tinha ressuscitado. Com tal propósito, chegou a sugestioná-la ao ponto de fazê-la acreditar em aparições de anjos, que lhe traziam felicitações de Deus pelas suas dádivas.

Como os santos da Judeia recolhiam pouco dinheiro dos seus compatriotas, pediam dinheiro aos fiéis dos outros países. Foi esta a origem do dinheiro de S. Pedro. Os de Corinto, disse S. Paulo, eram muito generosos e as suas dádivas suficientes para «acudir às necessidades dos santos» e até para proporcionar-lhes o supérfluo (II, IX, 12), Eram, porém, uma exceção; pelo menos a julgar pelas queixas do mesmo santo sobre as dificuldades com que tropeçavam para reunir os donativos e das declamações de S. Jaime contra os ricos, renitentes em mostrar a bolsa. «Agora, ricos — disse — chorai e lamentai vos das desgraças que cairão sobre vós! As vossas riquezas estão apodrecidas; os vossos vestidos estão roídos pelos vermes; o vosso ouro e a vossa prata estão oxidados e este óxido atingir-vos-á a vós próprios e devorará as vossas carnes tal como o fogo». (S. Jaime, V). Dir-se-ia que se estava lendo uma das diatribes dos anti-semitas contra os banqueiros judeus, ao não se apressarem a satisfazer os seus pedidos de dinheiro. Os fiéis, embora não vivessem em comunhão com os santos, tomavam parte nas suas refeições, que recordavam a ceia onde Jesus tinha dado simbolicamente aos Apóstolos a sua carne a comer e o seu sangue a beber. Mas os ricos, antes de sentar-se à mesa dos santos, deveras grosseira para o seu paladar delicado, tinham a precaução de comer opíparamente (I, Cor. XI, 21) Os santos conduziam-se servilmente com os ricos e davam-lhes os lugares de honra, enquanto os pobres comiam de pé ou sentados em bancos. S. Jaime, que é o tipo dos demagogos que pululavam entre os cristãos dos primeiros séculos, indignava-se de «as tentações de que é objecto todo aquele que leva alamares de ouro e vestidos de alto preço... ¿Não escolheu Deus os pobres deste mundo por serem ricos em fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amavam? E, todavia, ¿não os oprimem os ricos e não os levam aos

tribunais?» Os Apóstolos e os santos não tinham inventado a mendicidade, mas estavam de acordo em exercê-la.12 Os ricos e os fieis caçavam-se de sustentar os santos e não tinham o menor escrúpulo em protestar contra os seus pedidos constantes. Embora S. Paulo afirme que «Deus ordenou que os que propagam o Evangelho devem viver dele», tem, não obstante, altivez demasiada, para suportar estes revezes. «Eu nunca me fiz valer desta lei — exclama arrogantemente— nem escrevo isto para evitar que se empreguem contra mim tais argumentos, pois antes preferiria morrer que permitir que alguém atentasse contra a minha glória», (I, Cor., 1, 14 15). S. Pedro era mendicante por temperamento. Para distinguir-se dele, S. Paulo repete com insistência que ele nada tem custado aos fiéis e que tem trabalhado para ganhar o seu pão. Dirigindo-se aos coríntios acrescenta: «eu não peço os vossos bens». Assim como os cavalos se mordem quando não tem cevada na manjadoura, assim os santos se querelavam quando não havia dinheiro em caixa. Então desencadeavam se as línguas, voavam os insultos e choviam as pauladas. «A língua, disse S Jaime, é um pequeno órgão; no entanto, pode orgulhar-se de grandes coisas. Quantos bosques pode incendiar um pequeno fogo!... A língua é um pequeno fogo e um mundo de iniquidades... mancha todo o corpo e queima os indivíduos... » (S. Jaime, III 5-8). As línguas das mulheres eram as mais acesas e abrasavam todas as comunidades, produzindo nos santos e nas santas queimaduras profundas. S. Paulo impõe-lhes silêncio repetidas vezes, dizendo que «é incorreto que a mulher fale da comunidade». (I, Cor. XIV, 25). As questões de interesse davam assunto para que as línguas taramelassem. Os conflitos tinham início nas igrejas, para serem solucionados nos «tribunais dos infiéis», em vez de serem liquidados pelos santos, «que julgarão os mundos e

os homens» (Cor. V, 1-6). S. Paulo chega a prognosticar que os conflitos e as querelas, conduzirão as comunidades à ruína: «se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidai não sejais consumidos uns pelos outros» (Gal. V, 5). A fraternidade não era, pois, a virtude dos santos e dos fiéis no cristianismo primitivo. Era difícil manter a ordem e estabelecer o respeito nas igrejas dos santos e nas reuniões dos fiéis. Os primeiros cristãos constituíam uma estranha mescla de pobres diabos enfraquecidos pela miséria e invejosos uns dos outros — um conjunto de vagabundos e de canalhas convertidos à boa fé mercê das vantagens que esta proporcionava. Naquela pequena sociedade abundavam os artistas e as pessoas de baixa condição, as quais, às vezes, se envergonhavam de estar em contacto com aquela crápula. Havia também pessoas anichadas, orgulhosas das suas riquezas, as quais exigiam homenagem em troca dos seus donativos.13 A doutrina que os unia não predicava ainda a humildade, propagando, pelo contrário, o sentimento de igualdade, pois que todos, ricos e pobres, homens ricos e escravos, virtuosos e dissolutos, deviam ressuscitar sem distinção e possuir-se de uma alma imortal e de um «corpo incorruptível» para gozar de uma vida eterna. A esperança de alcançar a igualdade depois da morte não contribuía para extinguir os zelos, os desdéns, os ódios e as questões de que enfermavam as sociedades dos primeiros cristãos. Tornava-se, pois impossível, como se fez mais tarde, predicar a humildade e inculcar a submissão dos primeiros adeptos do cristianismo, aos quais só podia refrear a autoridade mística dos apóstolos. S. Paulo e S. Pedro, apenas se atrevem a impor silêncio às mulheres, chamando-as à obediência marital cujo jugo aquelas tinham a pretensão de sacudir nas igrejas, onde se introduzia a promiscuidade primitiva. Os apóstolos que não dispunham

da força material para poder conter os irascíveis e fogosos santos e fieis14, viram-se obrigados a dirigir-se aos seus sentimentos, tratando de discipliná-los e de os fazer viver em paz à força de predicar-lhes a amizade fraternal. «Meus irmãos, exclama S. Jaime, não me digais nada uns dos outros. O que fala de um irmão ou julga um irmão, fala contra a lei e julga a lei. Irmãos, tende paciência até à vinda do Senhor». (S. Jaime, IV e V). «Ajudai-vos uns aos outros — repete S. Paulo. Ama o teu próximo como a ti mesmo e cumprirás toda a lei». (Gal. V, 13. Rom. XIII, 9)15. «Está próximo o fim de todas as coisas; sede, pois, castos e sóbrios nos lugares destinados à oração; conservai, sobretudo, verdadeira amizade entre si, pois a amizade apaga muitas faltas» (S. Pedro, IV, 7-8).16 «Meus amigos, amai-vos uns aos outros, pois que Deus é Amor e quem ama é filho de Deus e conhece Deus. Quem não ama não conhece Deus, pois que Deus é amor. (S. João, IV, 7-8). A necessidade de estabelecer a paz entre os santos e fiéis era tão imperiosa, que S. Paulo, no seu capítulo aos coríntios coloca a amizade acima da fé, de todas as virtudes e de todos os sacrifícios: — o apóstolo dos nativos, que se presava de ser letrado, com o que se envaidece, começa o capítulo treze com um hino à amizade imitado de um canto guerreiro de Tirteo17 «Se falo a língua dos homens e a dos anjos e não tenho amizade, sou um bronze oco ou um prato sonoro. — Se tiver o dom da profecia, se conhecer todos os mistérios e todas as ciências e se tiver a fé que transporta montanhas, mas se me faltar a amizade, não sei nada. Se distribuir todos os meus bens, se entregar o meu corpo para ser queimado, mas se não tiver amizade, tudo isso não me proporciona a menor vantagem18. O apóstolo diz que enaltece a amizade porque contém todas as virtudes. «A amizade é paciente, doce; a amizade não tem inveja; a amizade não é presunçosa, nada faz de mau; não se apodera dos bens dos outros, não se liga com a

injustiça: — encontra o seu prazer na verdade; esconde tudo, espera tudo, tolera tudo». Numa palavra, a amizade possui todas as qualidades de que careciam os santos19. A nova religião, tal como quando Roma foi fundada, acolhia os fugitivos, os proscritos e criminosos sem inquirir da sua procedência, sem inquietar-se com a sua nacionalidade, posição social e moralidade, dedicando-se a agrupá-los e a organizá-los contra o mundo exterior, que era o inimigo. Mas se o Deus dos cristãos não distinguia judeus, gregos nem romanos, homens livres nem escravos, ricos, pobres, virtuosos e criminosos, classificava, todavia, os homens em duas categorias inimigas: — os fiéis e os infiéis. Os que aceitavam a fé, recebiam o batismo e comiam simbolicamente a carne de Cristo, eram «santificados» e convertiam-se em «membros de Cristo», tivessem, embora, todos os vícios, continuassem, embora, a satisfazê-los nas igrejas. Os infiéis, mesmo que fossem modelos de virtude, eram escorraçados. «Jesus, diz S. Paulo, revelar-se-à no céu com os amigos do seu poder, exercendo com chamas de lume a vingança contra aqueles que não reconheçam Deus e não obedeçam ao Evangelho: — estes serão castigados com a pena eterna ante o Senhor e perante a glória do seu poderio. (II, Thes. 1-6 9). A amizade e o amor fraternal que predicavam os apóstolos e que nas traduções das línguas modernas se denominam caridade, não deviam praticá-la senão entre os cristãos, entre os fiéis; os infiéis eram o inimigo e era contra eles que se devia praticar o ódio eterno. Os santos divertiam-se com a vingança de além-túmulo que Jesus exercia contra eles, para consolar-se da vingança, que não podiam saciar neste mundo. A nova religião ressuscitava a antiga vingança com todo o seu ardor e com todo o seu cerimonial. O. selvagem e o bárbaro só estavam satisfeitos quando se vingavam por

suas próprias mãos; quando a autoridade civil negou ao individuo o direito de exercer a vingança, os filhos da vitima, e na sua falta o parente mais próximo devia, em caso de morte, assistir à execução do culpado para que a vingança fosse satisfeita. Isto sucedia ainda na Atenas de Péricles. O Jesus de S. Paulo, como o selvagem, vingar-se-à por si próprio dos infiéis; e Deus, seu pai, alegrará a vista com os seus sofrimentos, pois serão castigados durante a eternidade, «diante de Deus e ante a glória do seu poderio». Porém quando o cristianismo começou a penetrar nas camadas mais civilizadas da sociedade pagã Jesus e Deus civilizaram-se: — perderam o hábito de vingar-se pelas suas próprias mãos e delegaram em agentes subalternos o cuidado de impor os castigos aos infiéis; e só alguns séculos depois se civilizaram suficientemente para não encontrar prazer em ser espectadores das torturas que os diabos hãode fazer sofrer aos atirados para o fundo do inferno. Os cristãos dos primeiros séculos estavam muito longe de possuir costumes ao nível da moral pagã e de manter a sua doutrina à altura do espiritualismo da filosofia sofística de Platão.

II - A Caridade dos Pagãos O Cristianismo não trouxe ao mundo a caridade e não a havia de trazer porque, muitos séculos antes de Jesus Cristo, já ela florescia em todas as cidades da antiguidade, sendo praticada com uma fraternidade e uma generosidade da qual nunca os cristãos fizeram uma ideia. Foi preciso toda a má fé dos escritores religiosos e todo o servilismo dos historiadores e dos moralistas laicos para suster que a caridade data da era cristã. Por escassos que sejam os conhecimentos da vida grega e latina que possam atribuir-se-lhes, é impossível admitir que os ditos historiadores tenham ignorado que os ricos de Atenas, de Roma e das grandes cidades da Grécia e da Itália, distribuíam às suas portas e em dias fixos, e às vezes diariamente, alimentos aos pobres.20 A caridade pagã é inegável: — os «Atos dos Apóstolos» rizam-na bem; a viúva de Tabitha e o centurião Cornélio não tinham esperado receber a fé de Cristo para praticar a caridade, e, precisamente, porque eram generosos nas suas esmolas foi por isso que o mestre S. Pedro, para apoderar-se do seu espírito e dispor das suas bolsas, pôs em prática as suas farsas de feiticeiro cruel. O pobre da sociedade pagã, não era socorrido miseravelmente e por compaixão, como o indivíduo da moderna sociedade cristã. Tito Lívio (II) conta que os cidadãos pobres de Roma tinham direito a viver a expensas do tesouro público, sem que fosse possível impedi-los de exercer nenhuma das «artes sórdidas», como chamavam os homens livres aos ofícios materiais na antiguidade, os quais estavam reservados aos escravos e aos estrangeiros. Fora necessário que a miséria os tivesse reduzido à pior condição, para se prestarem a ir trabalhar nas oficinas que o

Estado se vira obrigado a estabelecer em Atenas para mantê-los; e só se prestaram a sofrer esta degradação, nos últimos séculos antes de Jesus Cristo, quando a produção mercantil tinha destruído a família patriarcal e engendrado uma nova classe — a burguesia. O sustento dos pobres era uma das constantes e principais preocupações dos chefes das repúblicas gregas: — faziam-lhes frequentes distribuições de viveres e até de dinheiro, e esta solicitude era levada a tal extremo, que Péricles pagava aos cidadãos indigentes para ir ao teatro e para assistir às assembleias públicas onde se defendiam os assuntos privados e se tratavam as questões públicas. O número de pobres retribuídos para fazer o ato de presença nestas assembleias era, em Atenas, de mais de seis mil, quase metade da população adulta na posse dos direitos políticos. Aristóteles, assegura que este hábito era geral em todas as cidades democráticas. O demagogo Cleon faz ascender a três óbolos (30 réis antigos) o salário fixado por Péricles. Com esta soma podia fazer-se frente às primeiras necessidades. No século V antes de Jesus Cristo, o salário de um operário era, na Grécia, de um dracma, (uns 3 escudos); o preço de meio hectolitro de farinha de cevada era de dois dracmas e o de farinha triga era de três dracmas. Aí por meados do século IV, os salários dobravam e até triplicavam e, conforme a inscrição de Elensis, o preço dos viveres tinha subido paralelamente: — o meio hectolitro de farinha triga valia de cinco a seis dracmas. Paul Guiraud: «La main d'oeuvre industrielle dans l’ancienne Grèce». Paris, 1900. O Estado recorria constantemente às guerras para ocupar os pobres e á conquista de terras que logo distribuía: — os homens políticos e os cortesões arruínam-se para dar-lhes pão e festas, «panem et circenses», e a carne dos

numerosos animais imolado» sobre os altares dos deuses eram-lhes entregues. O Estado e os ricos consideravam-se obrigados a manter os cidadãos pobres, porque alguns desta categoria tinham relações de parentesco ou de outras afinidades com as famílias cujos antecessores foram os fundadores da cidade. Tinham sido desapossados de seus bens de origem pela divisão da propriedade patriarcal, que fora imposta por efeito do desenvolvimento comercial e industrial. O Estado representava, para esses cidadãos pobres, a antiga administração da comunidade familiar, que devia manter todos os seus membros, adultos, jovens ou velhos, válidos ou inválidos. Os ricos tinham aumentado as suas fortunas nas terras de cidadãos pobres; e estes podiam apontar a dedo aqueles que os tinham desapossado e que se encontravam na posse dos campos que pertenceram a seus antecessores. Por respeito humano, os ricos viam-sé obrigados a sustentar os pobres que tinham feito, da mesma forma que os Dollfus, os Scherer e outros filantropos da Alsàcia se viram induzidos, há três quartos de século, a fundar instituições de caridade para que os velhos operários, que os tinham tornado milionários, não recorressem à mendicidade nas ruas das suas cidades industriais. Mas, para ter direito à repartição de viveres e de dinheiro distribuídos pelo Estado, era necessário pertencer à classe dos cidadãos e possuir direitos políticos. Péricles, antes de fazer uma importante distribuição de trigo, ordenou um novo censo da cidade de Atenas e fez vender como escravos os que não tendo direitos políticos se tinham feito inscrever nos registos dos cidadãos. Durante as guerras civis, muitas pessoas tinham ido estabelecer-se em Roma para participar das numerosas distribuições de viveres, (trigo, vinho, azeite, etc.)

«Congiaria». César mandou revisar as listas e excluir todos os que não demonstrassem ser cidadãos romanos; de 320.000, que era o número dos inscritos, foi reduzido a 150.000. O sustento dos cidadãos pobres pelo Estado e pelos ricos era, na sua origem, um dever, e não um ato de benevolência. Julgava-se um dever reparar os caprichos da fortuna e atenuar a miséria provocada pela usurpação dos bens que tinham pertencido-a seus antecessores. O seu sustento era uma recompensa e uma espécie de indemnização. Assim, o pobre da sociedade pagã, não era um degradado, como o é o indigente da sociedade cristã, mantido pela caridade; aquele pobre considera-se igual ao rico, por quem não tinha nenhuma espécie de reconhecimento pelas suas liberdades, que, a seus olhos, era apenas uma simples restituição do que lhe haviam arrebatado. S. Jaime expõe de uma forma confusa este pensamento quando se indigna do servilismo dos santos e dos fiéis ante os ricos que ofereciam donativos às suas comunidades. O nobre sentimento de fraternidade que baseado num princípio impunha ao Estado e aos ricos o dever de ir em auxílio dos cidadãos pobres, não tardou em degenerar rapidamente, convertendo-se, pelo seu número e pelo seu carácter turbulento, em fator de revoltas e de guerras civis; então só foram atendidos pelo temor que inspiravam. E assim, a distribuição de viveres e de dinheiro, anteriormente limitada aos cidadãos que desfrutavam de seus direitos políticos — em Roma, para ter direito era preciso provar a descendência de uma das tribos fundadoras da cidade — acabaram por ser extensivas, indistintamente, a todos os pobres. O Senado romano tinha estabelecido desde os seus primeiros tempos uma administração — «o annonae» —

para vender o trigo a preço mais baixo que no mercado. Tito Lívio (IV, 12) diz que o seu primeiro prefeito — «proefectus annonae» — foi nomeado no ano 439 antes de J. C. Esta função era tão importante, que o partido aristocrático elegeu Pompeu por cinco anos e que Augusto, logo que foi imperador se preocupou com a instituição, do «annonae», que reformou. Todas as províncias tinham o dever de enviar a Roma uma quantidade determinada de trigo, cujo preço de venda era fixado pelo Senado. Todavia, os tribunos e os demagogos, para obter os aplausos da plebe, reclamavam reduções, de preço. Sempronio Graco fez adotar, 123 anos antes de J. C, a «ley frumentaria» para reduzir o preço do trigo, que 20 anos depois Apuleio Saturtino reduziu novamente. Sylla aboliu a lei de Graco; depois da sua morte o Senado teve de restabelecê-la para evitar distúrbios, e 58 anos antes de J. C., a lei Clodra suprimiu o preço do trigo. Esta supressão custou à República a quinta parte dos seus ingressos. Qual é o Estado cristão que tenha dado provas de tal sentimento de caridade? O número de pessoas inscritas nas listas das distribuições gratuitas de viveres, e às vezes de dinheiro, era considerável: — César reduziu-o a 150.000, mas Augusto, depois, de feita uma revisão, fê-lo, ascender a 200.000. A inscrição nas listas era uma propriedade que se transmitia por herança e que se vendia. A sua compra equivalia à aquisição de uma descendência, numa das tribos fundadoras de Roma. Só os homens tinham direito à distribuição de viveres; porém, Nervo e Trajano, tornaram-na extensiva aos órfãos e aos meninos. Três séculos depois de J. C., Aureliano fez distribuir pão em vez de trigo, pelo facto dos pobres não terem meio de moer este ou de cozer aquele. Constantino, como os papas, teve que seguir o exemplo dos imperadores

pagãos; quando transferiu a sede do Governo de Roma para Constantinopla, distribuiu pão a todos os habitantes da cidade. Os imperadores e seus governadores de província, atendiam as necessidades do turbulento populacho de Roma, de Constantinopla, de Alexandria e das demais grandes cidades do império, afim de evitar motins. Já não era o amor, mas o medo ao próximo que motivava então a caridade. Os ricos viviam com um terror constante dos pobres, os quais Sócrates compara aos zangões («Republica», X), quer dizer, aos parasitas perigosos, de quem há a temer as paixões violentas; quando os pobres tomavam conta do poder, após um motim, aboliam as dívidas e dividiam entre si os haveres dos ricos, que desterravam ou condenavam à morte. O populacho famélico aumentara de tal modo nos primeiros séculos da era cristã em Roma, Bizâncio, na Alexandria, etc, que o governo imperial e os ricos, contra a sua própria vontade, não podendo alimentá-los nem enviálos para as colônias situadas nas fronteiras do império ou fazê-los ingressar no exército, viram-se obrigados a recorrer à força para contê-lo. A polícia transformou-se em complemento de caridade. A função de beleguim era tão menosprezada, que os cidadãos se negavam a exercê-la; o Estado ateniense viu-se obrigado a empregar escravos para manter a ordem à chicotada; deste modo os cidadãos livres eram rechaçados pelos escravos. Os imperadores recrutaram bandos de bárbaros— «godos, hérulos, escandinavos, etc.,» —os quais perseguiam a plebe tumultuosa com bastões e látegos, desdenhando servir-se, contra ela, das suas armas de combate. O célebre herói escandinavo, Harolt Alfagarr que no século IX reformou a Noruega, tinha montado a guarda do palácio do imperador de Constantinopla.

Os apóstolos e os padres da igreja recrutaram neste populacho, mantido pela caridade pública e privada, a massa dos primeiros cristãos.

III — A Caridade dos Bispos e dos Monges Os padres da igreja e os bispos dos primeiros séculos recrutaram os prosélitos do cristianismo entre o populacho indigno, vagabundo e gatuno das cidades do Baixo Império. Viu-se que na eleição dos santos e dos fiéis os apóstolos não eram muito exigentes. E os seus sucessores imitaram-nos. Compreenderam que, se chegassem a ganhar, a dominar e a dirigir esta horda de parasitas dissolutos e famintos, que se rebelavam frequentemente, incendiando e saqueando distritos inteiros, forjariam uma arma terrível para resistir e impor a sua vontade aos imperadores e aos governadores das províncias. Esta foi a idade heroica do cristianismo. Os bispos empreenderam a tarefa de dar de comer àqueles desgraçados, a-fim-de trazê-los dominados pela barriga e pela cabeça. Os monges do alto Egito não eram fanáticos, bêbados e vagabundos matreiros como os da Idade Média, mas rudes e laboriosos agricultores, consagrados ao amanho de vastos campos cujas colheitas enviavam aos bispos de Alexandria (por meio de barcos que construíam, e eles próprios dirigiam) para ser distribuídas entre a plebe cristã. Os ricos eram forçados a uma pesada contribuição, e quando a não davam voluntariamente, os bispos e o populacho obrigavam-nos a isso pela perseguição e pela ameaça21. Contribuíam com donativos para as igrejas e para os demagogos para se garantirem contra os tumultos e contra os saques que os guardas bárbaros reprimiam brutalmente, mas sem que os conseguissem evitar. Quando achavam o momento propício, os bispos organizavam distúrbios e assaltos. S. Cirilo, patriarca da Alexandria, foi o instigador e o organizador do terrível conflito contra a Hipatia, por efeito do qual foi incendiada e saqueada uma parte da cidade.

O medo e causas políticas eram os fatores da caridade dos cristãos ricos e dos bispos do Baixo Império. S. Cirilo, S. João Crisóstomo e os patriarcas da cristandade eram hábeis e violentos demagogos, que entusiasmavam o populacho, que predicavam a guerra dos pobres contra os ricos e que faziam tremer os imperadores rodeados dos seus soldados bárbaros, exaltando a fúria da plebe e dirigindo as suas paixões sublevadas. Quando os ricos impuseram a sua vontade aos imperadores e aos governadores, amainaram a sua cólera contra os ricos e poderosos e abandonaram as suas atitudes demagógicas. E os pobres que, como os apóstolos, tinham sido enaltecidos, apresentando-os como eleitos de Deus, perderam desde então a sua graça: — deixaram de ser aqueles que Deus escolhera «para serem ricos em fé e os herdeiros do seu reino» e converteram-se em seres miseráveis a quem era preciso impor o respeito da força e degradar por meio de uma mesquinha e humilhante caridade. Os bispos afastavam-se da autoridade civil quando esta empregava a força brutal para conter a multidão e para castigar ferozmente os seus distúrbios. A idade heroica do Cristianismo terminara. Todavia, os papas, que temiam as sublevações da populaça — tanto como os imperadores pagãos, aos quais sucederam — continuaram a sua política e ocuparam-se da alimentação popular, não por amor, mas por medo. Com efeito, eles conservaram o «annonae» como um legado precioso do paganismo. Além disso, os candidatos ao papado e ao episcopado viam-se obrigados a arengar à plebe cristã, a qual tomava parte nas eleições22. A «Casa Annonaria», que se converteu num instrumento de reino do papado, foi reorganizada pelo papa Paulo VII, nos princípios do século XVII, afim de impedir as alterações de preço das subsistências, particularmente o pão, que

durante dois séculos foi vendido em Roma a 10 e a 11 cêntimos da libra, enquanto a penúria e as fomes periódicas desolavam as cidades europeias. O «Annonae» papal foi extinto no ano 1797 pelo governo revolucionário23. Os conventos seguiram o exemplo dado pelos bispos e serviram-se de todos os momentos para limitar a sua amizade com os pobres sempre que motivos políticos assim aconselhassem. Deixaram de preocupar-se com o sustento dos cristãos indigentes, aos quais já não distribuíam o pão cotidiano, embora lhes prodigalizassem orações generosamente. Os monges já não trabalhavam a terra para enviar provisões e distribui-las entre os fiéis necessitados. Serviam-se de numerosos escravos e servos para se desembaraçarem de toda a ocupação produtiva, afim de se dedicarem exclusivamente à mendicidade e à caça das heranças. A abadia de S. Germano, perto de Paris, era no século IX, proprietária de enormes domínios, tratados por uma população de cerca de 9.000 servos e vassalos. A citada Abadia não constituía nenhuma excepção, pois, todos os conventos da Europa da Idade Média possuíam terras de extensão enormíssima. Recebiam, tal como os bispos e os curas, dízimos sobre as colheitas, independentemente dos direitos senhoriais que exploravam como os barões feudais. A hospitalidade que os monges praticavam com certa liberalidade e as distribuições de viveres que autorizavam em determinadas épocas, não lhes eram excessivamente pesadas. Os dízimos e os censos que recebiam eram em espécies, e, como por falta de vias de comunicação e de comércio era impossível desfazerem-se. vantajosamente do trigo, dos legumes, dos toucinhos, dos carneiros, da criação e de outros produtos agrícolas de que dispunham, antes de deixa-los perder, entregavam-nos, em forma de socorro, aos hospitais e aos viajantes e em esmolas aos pobres. Se mostravam alguma generosidade na distribuição de

legumes, de trigo e ainda das carnes que não podiam consumir — tão grande era a sua abundância — observavam, pelo contrário, uma certa avareza no vinho que podiam conservar e fazer depósito. As caves dos conventos tinham uma reputação tão grande quanto merecida. O vinho e a boa mesa eram artigos de fé para os monges e para os altos dignatários da Igreja, que, com profunda convicção, predicavam aos pobres o jejum e a mortificação da carne. A caridade dos monges e dos bispos, que consistia em dar o que não podiam consumir, vender ou conservar, tinha por móbil o medo, já não dos senhores feudais, mas dos grupos de militares que percorriam o país. As igrejas e os conventos, deficientemente protegidos dos anátemas terríveis com que os papas e os bispos fulminavam os incrédulos que atentavam contra os seus bens, eram, não poucas vezes, entregues à pilhagem. Os chefes bárbaros, os reis e os barões, muito católicos e apostólicos, julgavam-se sempre com o direito de lançar mão aos seus tesouros em casos apertados24. Tendo os bispos e os monges que recorrer ao valor popular para proteger-se viam-se obrigados a manter ante as massas aldeãs e operárias o respeito e o amor a seus bens, persuadindo-os de que os conservavam apenas para minorar as suas misérias mediante caritativas distribuições. Esta caridade, porém, inspirada no medo, desvanecia-se com a desaparição da sua causa originária, quando a força real foi suficientemente numerosa para desembaraçar o reino dos barões e da soldadesca saqueadora. Logo que as estradas se. multiplicaram e ofereceram bastante segurança para se poder desenvolver o comércio, as igrejas e os conventos venderam todo o supérfluo dos produtos agrícolas das colheitas com excepção dos dízimos e das rendas.

Então, os monges e os bispos, converteram-se, cinicamente, em ladrões dos pobres. Com efeito, os bens territoriais e os dízimos e rendas das igrejas e dos conventos, procedentes de donativos feitos por almas boas para socorrer os pobres, ou mendigados sob este falso pretexto, não pertenciam aos bispos nem aos monges, mas à igreja, «ekklesia», quer dizer, à comunidade dos fiéis. Os burgueses de 1789 invocaram esta razão para apoderar-se deles, pretendendo fazer entender que os restituíam assim à nação. Comerciando com as colheitas dos bens da igreja e dos conventos, e desviando-as do seu destino caritativo, os monges e os bispos perderam o amor popular que, durante séculos, os acompanhara. Na Inglaterra e na França foram despojados durante o período revolucionário sem que as massas aldeãs ou operárias se movessem para defendê-los. Tem-se criticado a igreja católica por estar petrificada na sua doutrina, nos seus dogmas e nas suas cerimônias, supondo-se que tenha permanecido imutável através dos séculos. Tem-se mau juízo quando se confere a ela esse diploma de imbecilidade, pois, pelo contrário, ela tem sabido acomodar-se com astúcia rara às circunstâncias ambientes; vestiu a caridade de vários disfarces para utilizála no seu estabelecimento e em seu desenvolvimento, para a manutenção da sua autoridade e do seu prestígio. O desprezo pelos bens deste mundo, — este dogma dos apóstolos e dos primeiros cristãos que só aspiravam os bens de além-túmulo porque não podiam apoderar-se dos deste mundo, — foi tão imediatamente posto de parte como o imediato açambarcamento das riquezas da terra e o tráfico das colheitas e dos dízimos que pertenciam aos pobres. Hoje marcha à frente do movimento industrial e da traficância comercial. Os conventos são empresas industriais, que em França se dedicam, principalmente, à

fabricação de licores alcoólicos, sem desdenhar, por isso, das outras industrias lucrativas. Os trapenses, depois de terem transformado o seu «irmão, morrer devemos», em «irmão, destilar devemos», deram-se. a explorar manufacturas de porcelana25. Os conventos de mulheres entraram no movimento do século. As ordens de mendicantes foram substituídas por congregações religiosas que se dedicam à mendicidade mais cínica e mais importuna. Outras santas mulheres praticam com conhecimento de causa a exploração mais desavergonhada sobre órfãos, que elas recolhem por caridade... A sua caridade, bem-dita pelo bom Deus dos cristãos, fá-las milionárias!

IV — A Caridade dos Burgueses A burguesia, para aumentar a sua fortuna — que é uma acumulação de espólios cometidos à custa do trabalho salariado — tem necessidade de poder dispor duma numerosa população de operários livres, desorganizados, sem nenhuma proteção e suficientemente pobres para se verem obrigados a vender por vil preço a sua força de trabalho. A burguesia dividiu sistematicamente os trabalhadores da opressão feudal, destruiu as suas organizações cooperativas e desfez algumas vantagens que lhe oferecia a religião: — os dias feriados da igreja católica, que, com os 52 domingos elevavam a 90 as festas do ano, durante as quais, no antigo regime, não era permitido trabalhar, o que constituía um obstáculo para a exploração do operário, e bem assim a distribuição de sopa e viveres que continuavam praticando alguns conventos, e que traziam de certo modo, aos operários necessitados, um complemento dos seus salários. O protestantismo, para dar satisfação aos burgueses industriais, que eram muito numerosos nas suas filas, condenou a esmola em nome da religião e aboliu os santos do céu para achar motivo na supressão dos dias feriados na terra. A revolução de 1789 fez mais. A religião reformada tinha conservado o domingo, mas os burgueses revolucionários, achando que um dia de descanso em cada sete dias era demasiado, substituíram a semana pela «década», e, afim de enterrar definitivamente a memória dos dias feriados, substituíram no calendário republicano os santos por nomes de metais, de plantas e de animais. A lei de 24 de Setembro declarou delito a esmola.

A economia política, esta outra expressão intelectual dos interesses materiais da classe burguesa, secundou a religião reformada em seus atentados contra as instituições de previsão da classe operária: — os aprovisionamentos de trigo feitos pelas municipalidades, a regulamentação do preço de viveres e a «Casa Annonaria» este modelo das instituições de previsão legado pelo paganismo ao papado, foram objecto de críticas acerbas dos Fisiocratas, de Condorcet, do abade Galiani e de outros, que se tinham convertido nos predicadores da liberdade do comércio dos trigos, que Necker comparava à maior mesa de jogo que possa estabelecer-se, pois «com um só milhão — dizia — se poderia fazer um povo faminto». Sem embargo, a produção moderna, que para desenvolver-se deve achar trabalho em abundância e a preço reduzido — para o qual os revolucionários burgueses transformaram as condições de vida dos operários e aboliram as corporações e as instituições de previsão do antigo regime — tinha criado, desde o seu aparecimento, um excesso de população operária à qual não podia garantir trabalho, seu único modo de vida. O número de vagabundos e de mendigos, uma das incuráveis chagas da civilização, passara a ser tão considerável, que, a partir do século XVI, a França teve que adotar penas terríveis contra eles: — eram condenados ao látego, a ser marcados e a ser enforcados. Estas penas foram modificadas durante o período revolucionário do século XVIII. A lei de setembro, do segundo ano, anteriormente citada, obrigava o mendigo a residir na sua terra natal, a qual devia organizar oficinas para ocupá-lo. Se se atrevia a abandonar a sua população, era condenado à prisão e a trabalhos forçados, e, em caso de reincidência, à deportação para a ilha de Madagascar.

Durante o reinado de Luís XV, abriram-se depósitos para os mendigos, que eram verdadeiras prisões onde se maltratada os vagabundos para fazê-los aborrecer a vida errante. O mesmo fenômeno de excesso de população se produzira na Inglaterra, e, como apesar da bárbara repressão, as hostes dos vagabundos e mendigos — lançados pela transformação das terras aráveis em terras de pastagens aumentavam incessantemente — teve-se, neste país da reforma protestante, de completar os castigos por caridade. Com efeito, durante o reinado de Isabel, decretou-se as «Poor-laws» (leis dos pobres), que impunham a cada paróquia o sustento dos seus. Estas leis estão, todavia, em vigor e contribuem para este paradoxal resultado de caridade burguesa: — que o sustento dos pobres corre a cargo dos mesmos pobres. Assim, por exemplo, as paróquias ricas de Londres, de onde o elevado custo dos alugueres afugenta os indigentes, não satisfazem o imposto, enquanto que, nos distritos operários, onde se amontoam, se veem forçados a fazer grandes sacrifícios para atendê-los. A burguesia criava os pobres para dar-lhes trabalho a preço reduzido, mas, quando aqueles recebiam o número que podia ocupar com proveito seu, recambiava-os para as cidades, restituíam-nos às povoações de origem e condenava-os ao cárcere e aos castigos corporais. Fazia crime da miséria que não lhe produzia riquezas. A questão dos pobres adquiriu um carácter agudo após os primeiros dias da Revolução de 1789. Bailly, que acabava de ser eleito vereador de Paris, para aliviar as misérias dos trabalhadores que a crise política deixava sem ocupação, reuniu-os em número de 18.000, nas alturas de Montmartre. Os vencedores da Bastilha guardavam-nos com canhões, de mechas acesas. Esta conduta dos burgueses revolucionários, empreendendo a luta pela «emancipação da humanidade»,

segundo diziam, indicava à classe operária o tratamento que devia esperar da burguesia vitoriosa. Quando, porém, para resistir às monarquias europeias coligadas, fora preciso fazer um chamamento ao valor das massas populares, os burgueses revolucionários usavam outra vez da força para impôr-lhes respeito, prometendo, solenemente, distribuir aos soldados da República mil milhões dos bens dos emigrados. Então, acariciaram os pobres com as declarações demagógicas dos padres da igreja e dos bispos de Constantinopla e de Alexandria. Oito meses depois de ser votada a lei de setembro, ano segundo, a qual não se atreveram a aplicar, Barrere, em 22 de maio do mesmo ano, leu em nome do Comité de Saúde Pública — na convenção, — uma memória sobre a extirpação da mendicidade..., a qual constituo uma acusação e uma denúncia flagrante contra o governo... « O quadro da mendicidade, não tem sido, até agora, sobre a terra, mais do que a história da conspiração dos proprietários contra os proprietários». Enquanto os membros da Convenção, davam como ração aos pobres a mera fraseologia filantrópica, iam-se apoderando dos bens do clero e dos hospícios que pertenciam aos deserdados e distribuíam aos proprietários os bens comuns, cuja supressão fez aumentar nos campos o número de trabalhadores reduzidos à mendicidade. Se a guerra não tivesse alistado e lançado nas fronteiras milhares de operários e aldeões sem trabalho e sem meios de vida, teria havido, possivelmente, um levantamento em toda a França, nas cidades e nos campos. A guerra era um meio mais eficaz de desembaraçar-se dos pobres que amontoá-los em Montmartre, assestando sobre eles os canhões dos vencedores da Bastilha, metamorfoseados, convertidos em cães de fila da ordem burguesa que nascia.

A revolução imprimiu uma marcha acelerada ao movimento industrial. A burguesia, aproveitando-se da liberdade conquistada com a supressão dos jurados, das corporações e dos entraves de todos os gêneros que o regime deposto oferecia ao comércio e à indústria, estabelecia fábricas e desenvolvia as já existentes. Não tardou, por isso, a lutar-se com falta de carne de trabalho, o que se explica por a guerra ter ceifado um número considerável de operários válidos e adultos. Havendo falta de homens, lançou-se mão às crianças, cujo emprego industrial as corporações então extintas tinham proibido. Antes da revolução, os meninos menores de 14 anos não podiam ser explorados nas fábricas, e, acima desta idade, eram poucos em número. O emprego de muitos menores de 14 anos na fábrica de papeis pintados de Réveillon, excitara a cólera dos artistas do arrabalde de Saint Antoine, os quais a incendiaram enquanto se procedia, em Paris, à eleição dos deputados para os estados gerais de 1789. A questão do trabalho, tal como a da miséria, foi pleiteada desde os começos da revolução. Não bastando os filhos dos operários e dos artistas para as necessidades do consumo industrial, lançou-se mão dos órfãos e das crianças recolhidas pela caridade pública. «La Décade» — «o órgão filosófico, literário e político» dos ideólogos e dos economistas, assinala como um triunfo da filantropia o que Boyer-Tondedre, irmão do convencionalista, «proprietário de uma importante fábrica de Toulouse, tenha sido autorizado para escolher 500 meninos dos hospícios e empregá-los nas suas oficinas.... Deste modo, associou à sua fábrica os hospícios de Toulouse, Montpellier, Carcassone e dos povos que a rodeavam». (20 de Março, ano sexto). A exploração industrial da criança e da mulher,

que desfez a família operária, é um dos triunfos da filantropia. Nutrir barato os trabalhadores, para reduzir os salários, era uma das preocupações filantrópicas dos fabricantes e dos economistas do século XVIII. O trigo era, segundo a sua opinião, um meio excessivamente caro para nutrir os operários:— acolheram, por isso, com júbilo, a batata, de Parmentier. J. B. Say, fê-la melhor: — encontrou a banana26. «La Décade», de 10 de Abril do ano oitavo aconselhava, para nutrir o povo economicamente, substituir «o pão de trigo por um pão que se fabricaria com farinhas de cevada, aveia, milho, favas, batatas e de castanhas». Quando os franceses estudaram a revolução com sanguefrio e sem prejuízos de classe, aperceberam-se de que as ideias que lhe imprimiram o carácter de grandeza eram provenientes da Suíça, onde a burguesia já se tinha apoderado do poder. Foi de Genebra que Candolle. importou as «cozinhas econômicas», que tanto furor fizeram em Paris revolucionário, porque proporcionaram aos pequenos artistas um alimento são e agradável...» «Os diretores de fábricas — escreve «La Décade» —deveriam estabelecer em suas oficinas uma caldeira para cozinhar, com evidente vantagem duns e doutros... Não é só o homem sensível que participa das vantagens desta instituição; a política vê que, assegurando ao pobre uma nutrição pouco dispendiosa, tem segura a tranquilidade do Estado». O conde de Runford, que se apelidou o ministro da humanidade, achava-se à frente dum comité que estabelecia cozinhas econômicas nos arredores de Saint Antoine e noutros bairros de Paris. O seco e enrugado Volney não podia deixar de enternecer-se a contemplar «esta reunião de homens de honrosa posição cuidando duma panela de sopa» («Décade», 10 de nivox (Dezembro) ano décimo).

Eis aqui o que destruía as promessas e a fraseologia demagógica da convenção. A filantropia, cujo nome não apareceu em língua francesa até meados do século XVIII, fazia a sua entrada triunfal na França revolucionária para substituir a caridade cristã. A revolução preparava o terreno social para o advento da produção mecânica, que encontrava abundantemente e a baixo preço os trabalhadores que necessitava para desenvolver-se e enriquecer a classe capitalista. O proletariado, a classe produtora, é de criação moderna. Esta classe distingue-se das classes oprimidas e exploradas dos tempos passados. O proletário é um cidadão que desfruta, pelo menos em teoria, de direitos políticos, mas não possui propriedade nem garantia social de espécie alguma: — vive durante o dia do seu salário, que é o preço em troca do seu trabalho. Se o capitalista deixa de ter necessidade desta força de trabalho, deita-a para a rua, sem que se importe com a sorte do operário ou da sua família. Se, no começo da indústria capitalista, esta carecia de braços, como a agricultura dos nossos, dias, a máquinaferramenta fez desaparecer este inconveniente tornando possível o emprego industrial da mulher e da criança e originando um excesso de população que Engels designa com o nome de exército de reserva do trabalho. O capitalista já não receia as exigências operárias; faz a lei para os proletários, fixa despoticamente os salários e as horas de trabalho, afixa os regulamentos da fábrica e impõe as multas e os despedimentos. O pauperismo da sociedade capitalista torna-se igualmente distinto do pauperismo das sociedades anteriores. As classes deserdadas das cidades antigas dividiam-se em três categorias: — os escravos, os artistas e trabalhadores manuais e os pobres; a maioria destes últimos não conhecia

ofício algum, nem queria exercer outro que não fosse o das armas. O Estado e os ricos cuidavam deles. Primeiro, por um sentimento de fraternidade e depois pelo medo dos seus tumultos. Todavia não os exploravam industrialmente. Depois do século IV, antes de Jesus Cristo, estes pobres, muito numerosos na Grécia, encontram-se guerreando em todos os exércitos na qualidade de mercenários; vendiam até os seus serviços aos bárbaros (persas, cartagineses, etc), para combater os gregos. Após a conquista da Ásia por Alexandre, e da Grécia pelos romanos, espalharam-se por todo o mundo, exercendo as funções de soldados heteus, filósofos, médicos, administradores e parasitas. Os pobres da sociedade capitalista, fisiologicamente empobrecidos por um trabalho monótono, anti-higiênico e prolongado até ao esgotamento das suas forças, por uma alimentação insuficiente e má e pelo alcoolismo, tuberculose, raquitismo, etc, não possuem o vigor físico, a cultura intelectual e o ardor combativo dos pobres da sociedade antiga; bastam, por isso, as forças da polícia, relativamente fracas, para contê-los. A docilidade e a mansidão que se observam no proletariado, são contemporâneas: — datam apenas de meio século, aproximadamente. As penúrias frequentes da segunda metade do século XVIII, motivadas pelo rápido crescimento das populações urbanas, pela falta de caminhos e pela imperfeição dos meios de transporte, provocaram tumultos que prepararam o povo dos campos para a revolução. Um deficit sensível na colheita de cereais era, ainda na primeira metade do século XIX, susceptível de produzir agitações populares. A má colheita de 1847 foi uma das causas ocasionais da revolução de 1848. Os pobres inspiravam então terror às classes governantes. A sua nutrição era uma das preocupações dos homens de Estado. Os governos mais

reacionários não vacilavam, quando a colheita fora má, em suspender as tarifas alfandegárias e em estimular as importações estrangeiras para deter a alta do preço do pão. O medo aos pobres está hoje desvanecido, e os ministros e os deputados votam tranquilamente os direitos protetores para fazer o pão caro... Os chefes da indústria, que no segundo império reclamavam, não obstante a entrada franca de cereais e de gado, a-fim-de que os operários pudessem alimentar-se a preços reduzidos, têm tamanha confiança em poder manter os salários na sua expressão mais ínfima — qualquer que seja o preço dos víveres — que já não se interessam pela alimentação operária, fazendo até causa comum com os agrários, interessados em impor direitos elevados à entrada da carne e dos cereais. As classes ricas, sentem-se de tal forma protegidas contra qualquer revolta dos pobres — pelo costume e pela resignação destes à sua sorte miserável — que nem sequer se preocupam. Estas classes temem só as reivindicações individuais e anarquistas, ou sejam os roubos e os assassinatos. Todavia, negam-se a investigar acerca das causas dos delitos e dos crimes, cujo número aumenta à medida que a civilização progride, ante o receio de ter que reconhecer que a ordem social de que eles beneficiam, é a única responsável da sua origem. Os legisladores que votam as leis e os magistrados que as aplicam, estão muito longe de considerar o livre alvedrio, o espiritualismo e o cristianismo como um dogma intangível da justiça e conceituam que o criminoso é o único responsável das faltas cometidas. Lombroso e a sua escola de farsantes, pretendendo descobrir na organização física do criminoso a causa dos seus delitos, não fizeram outra coisa senão pôr a descoberto uma aparência de falsa ciência anatômica para os confirmar em sua opinião. Sem embargo, há três quartos de século,

Quetelet chamou a atenção sobre as relações que existem entre o número de delitos e de crimes cometidos e o preço do trigo. Quando Quetelet realizava as suas estatísticas comparadas, o preço do pão estava sujeito a grandes variações, que podiam constituir um principal fator do brusco crescimento da criminalidade. Há meio século, porém, particularmente depois da enorme produção de cereais dos Estados-Unidos, que data de 1880, o preço do pão oscila debilmente em volta de um preço médio, o que não impede que a criminalidade aumente sem cessar e que durante determinados anos este aumento adquira ainda maiores proporções. Admitindo ainda que o preço do pão constitua uma causa constante da criminalidade, precisa, todavia, do aceleramento momentâneo de alguma coisa mais do que o preço do pão. Utilizando as estatísticas publicadas de 1826 a 1880 pelo Ministério da Justiça, analisei a ação que podiam ter sobre a criminalidade os conflitos do comércio e da indústria, que se traduzem por quebras e que precedem e acompanham as reduções de salários e «chômage»; descobri que o número de delitos e de crimes aumentava bruscamente quando o das quebras aumentava, para diminuir quando os negócios se reanimavam. Os assassinatos não pareciam sofrer a influência das quebras; os atentados ao pudor eram, em razão inversa, mais numerosos durante os anos de prosperidade, quando as quebras diminuíam. Durante a época de quebras persistentes e de intensa crise de trabalho, os pobres, privados deste e por conseguinte dos meios de subsistência, não tinham outros meios senão os de procurar recursos no roubo, «este direito outorgado pela natureza», disse Carlos Fourier. A classe capitalista, que se desinteressa das causas da criminalidade que a civilização provoca, interessa-se, todavia, na repressão dos delitos e dos crimes, afim de proteger os seus membros contra as reivindicações

individuais e anarquistas dos pobres. Os homens políticos, os moralistas e os filantropos têm-se dedicado a aperfeiçoar o regime penitenciário, e de tal forma o têm conseguido, que o seu desenvolvimento pode ser tomado como medida de civilização dum povo. Há um século, têm-se multiplicado os cárceres, os presídios e as colônias penitenciárias, importando-se dos Estados Unidos a espantosa prisão celular. A exploração burguesa não perde os seus direitos sobre os presos, os quais constituem uma fonte de receita para os que fazem trabalhar e um meio de reduzir os salários do trabalho livre. Não conseguindo a repressão brutal reduzir o número crescente dos criminosos que a sociedade capitalista forja, viu-se obrigada a imitar a Inglaterra de Isabel e estabelecer instituições de caridade, assistência pública, fatia de pão, hospitais que proporcionam aos estudantes e aos doutores meios de prática e de estudo, asilos que durante a noite limparam a rua de vagabundos perigosos para os passeantes, etc.... O medo é a mãe da caridade pública. Os burgueses puseram em moda a caridade, quer praticando a filantropia a 6% com os alugueres operários, quer abrindo subscrições públicas em que tomam parte ou como mero passatempo. Para as senhoras do capitalismo, a caridade é um pretexto para intrigar em comissões organizadoras de festas deste gênero, para bailar, flirtar, comer pasteis e beber «champagne» nos bazares de caridade. Os pobres servem para tudo: — os senhores capitalistas tiram deles proveito, e prazeres as senhoras. Os pobres são, para eles, uma bênção do bom Deus. Só por Jesus ter dito: «haverá sempre pobres entre vós», creriam na sua divindade. A classe capitalista que, sistematicamente, empobrece e desorganiza a classe trabalhadora, julga-se segura contra toda a reivindicação colectiva, pela sua falta de coesão, pela sua miséria econômica e fisiológica e pelos sabres e baionetas dos polícias e dos soldados. Porém, o admirável

valor, a inquebrantável resistência e a formosa disciplina, da qual os trabalhadores têm dado prova em algumas grandes greves, que duram semanas e meses, são demonstrações inegáveis da energia indomável que vive latente nas massas do proletariado e que um acontecimento político ou uma crise econômica geral pode despertar e desencadear. A classe capitalista verá então quanto pesam na balança duma revolução social a polícia e o exército que protegem a sua dominação econômica e política. O proletariado sublevado varrerá toda a resistência, nacionalizará os meios de produção e estabelecerá a comunidade de bens. Então, como na época do comunismo primitivo, a humanidade não conhecerá a degradante caridade. Não haverá ricos para distribui-la, nem pobres para recebe-la.

O Direito à Preguiça Introdução O Sr. Thiers, no seio da Comissão sobre a Instrução Primária de 1849, dizia: "Quero tornar a influência do clero todo-poderosa, porque conto com ele para propagar esta boa filosofia que ensina ao homem que ele veio a este mundo para sofrer e não aquela outra filosofia que, pelo contrário, diz ao homem: 'Goza'." O Sr. Thiers formulava a moral da classe burguesa cujo egoísmo feroz e inteligência estreita encarnou. A burguesia, quando lutava contra a nobreza, apoiada pelo clero, arvorou o livre exame e o ateísmo; mas, triunfante, mudou de tom e de comportamento e hoje conta apoiar na religião a sua supremacia econômica e política. Nos séculos XV e XVI, tinha alegremente retomado a tradição pagã e glorificava a carne e as suas paixões, que eram reprovadas pelo cristianismo; atualmente, cumulada de bens e de prazeres, renega os ensinamentos dos seus pensadores, os Rabelais, os Diderot, e prega a abstinência aos assalariados. A moral capitalista, lamentável paródia da moral cristã, fulmina com o anátema o corpo trabalhador; toma como ideal reduzir o produtor ao mínimo mais restrito de necessidades, suprimir as suas alegrias e as suas paixões e condená-lo ao papel de máquina entregando trabalho sem tréguas nem piedade. Os socialistas revolucionários têm de recomeçar o combate que os filósofos e os panfletários da burguesia já travaram; têm de atacar a moral e as teorias sociais do capitalismo; têm de demolir, nas cabeças da classe

chamada à ação, os preconceitos semeados pela classe reinante; têm de proclamar, no rosto dos hipócritas de todas as morais, que a terra deixará de ser o vale de lágrimas do trabalhador: que, na sociedade comunista do futuro que fundaremos "pacificamente se possível, senão violentamente", as paixões dos homens terão rédea curta, porque "todas são boas pela sua natureza, apenas temos de evitar a sua má utilização e os seus excessos"27, e só serão evitadas pelo seu mútuo contrabalançar, pelo desenvolvimento harmônico do organismo humano, porque, diz o Dr. Beddoe, "só quando uma raça atinge o seu ponto máximo de desenvolvimento físico é que ela atinge o seu mais elevado nível de energia e de vigor moral". Era esta também a opinião do grande naturista Charles Darwin.28 A refutação do direito ao trabalho, que reedito com algumas notas adicionais, foi publicado no semanário L'Egalité de 1880, segunda parte. Prisão de Sainte-Pélagie, 1883. Paul Lafargue

Capitulo I: Um Dogma Desastroso

"Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos preguiçosos." - LESSING Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que não confesso ser cristão, economista e moralista, recuso admitir os seus juízos como os do seu Deus; recuso admitir os sermões da sua moral religiosa, econômica, livrepensadora, face às terríveis consequências do trabalho na sociedade capitalista. Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados de máquinas.29 Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir procurá-lo

nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que infelizmente degenera, ainda se pode gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; mas o artista regozija-se ao admirar o ousado Andaluz, moreno como as castanhas, direito e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o Espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravaturas30. Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre ia dentro em breve conquistar. Os filósofos da antiguidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit.31 Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha: "Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho."32 Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade. Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os "Auvergnats"; os Escoceses, esses "Auvergnats" das ilhas britânicas; os Galegos, esses "Auvergnats" da Espanha; os Pomeranianos,

esses "Auvergnats" da Alemanha; os Chineses, esses "Auvergnats" da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos pelo hábito nas suas lojas, mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e nunca se endireitam para olhar com vagar para a natureza. E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos, esquecendo-se da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi a sua punição. Todas as misérias individuais e sociais mereceram da sua paixão pelo trabalho.

Capitulo II: Bençãos do Trabalho Em 1770 apareceu em Londres um escrito anônimo intitulado: An Essay on Trade and Commerce33. Fez na época um certo barulho. O seu autor, grande filantropo, indignava-se pelo fato de a plebe manufatureira da Inglaterra ter metido na cabeça a ideia fixa de que na qualidade de Ingleses todos os indivíduos que a compunham terem, por direito de nascimento, o privilégio de serem mais livres e mais independentes do que os operários de qualquer outro país da Europa. Esta ideia pode ter a sua utilidade para os soldados cuja bravura estimula, mas quanto menos os operários das manufaturas dela estiverem imbuídos, tanto melhor para eles próprios e para o Estado. Os operários nunca deveriam considerar-se independentes dos seus superiores. É extremamente perigoso encorajar semelhantes manias num Estado comercial como o nosso, onde talvez sete oitavos da população tenham pouca ou nenhuma propriedade. A cura não será completa enquanto os nossos pobres da indústria não se resignarem a trabalhar seis dias pela mesma soma que eles ganham agora em quatro". Assim, cerca de um século antes de Guizot, pregava-se abertamente em Londres o trabalho como um travão às nobres paixões do homem. "Quanto mais os meus povos trabalharem, menos vícios existirão, escrevia Napoleão de Osterode no dia 5 de Maio de 1807. Eu sou a autoridade [...] e estaria disposto a ordenar que ao domingo, passada a hora dos ofícios divinos, as lojas estivessem abertas e os operários fossem para o seu trabalho."

Para extirpar a preguiça e curvar os sentimentos de orgulho e de independência que esta gera, o autor de Essay on Trade propunha encarcerar os pobres nas casas ideais do trabalho (ideal workhouses) que se tornariam "casas de terror onde se fariam trabalhar 14 horas por dia, de tal maneira que, subtraído o tempo das refeições, ficariam 12 horas de trabalho completas". Doze horas de trabalho por dia, eis o ideal dos filantropos e moralistas do século XVIII. Como ultrapassamos esse nec plus ultra! As oficinas modernas tornaram-se casas ideais de correção onde se encerram as massas operárias, onde se condena a trabalhos forçados, durante 12 e 14 horas, não só os homens, como também as mulheres e as crianças.34 E dizer que os filhos dos heróis do Terror se deixaram degradar pela religião do trabalho ao ponto de aceitarem depois de 1848, como uma conquista revolucionária, a lei que limitava o trabalho nas fábricas a doze horas; proclamavam, como um princípio revolucionário, o direito ao trabalho. Que vergonha para o proletariado francês! Só escravos teriam sido capazes de uma tal baixeza. Seriam necessários vinte anos de civilização capitalista a um grego dos tempos heroicos para conceber um tal aviltamento. E se as dores do trabalho forçado, se as torturas da fome se abateram sobre o proletariado, mais numerosas do que os gafanhotos da Bíblia, foi ele que as chamou. Este trabalho, que em Junho de 1848 os operários reclamavam de armas na mão, impuseram-no eles às suas famílias; entregaram, aos barões da indústria, as suas mulheres e os seus filhos. Com as suas próprias mãos, demoliram o lar, com as suas próprias mãos, secaram o leite das suas mulheres; as infelizes, grávidas e amamentando os seus bebês, tiveram de ir para as minas e para as manufaturas esticar a espinha e esgotar os nervos; com as suas próprias mãos, quebraram a vida e vigor dos

seus filhos. - Que vergonha para os proletários! Onde é que estão essas bisbilhoteiras de que falam as nossas trovas e contos antigos, ousadas nas afirmações, francas de boca, amantes da divina garrafa? Onde estão essas mulheres prazenteiras, sempre apressadas, sempre a cozinhar, sempre a cantar, sempre a semear a vida gerando a alegria, dando à luz sem dores filhos sãos e vigorosos?... Temos hoje as raparigas e as mulheres da fábrica, insignificantes flores de pálidas cores, com um sangue sem rutilância, com o estômago deteriorado, com os membros sem energia!... Nunca conheceram o prazer robusto e não seriam capazes de contar atrevidamente como quebraram a sua concha! E as crianças? Doze horas de trabalho para as crianças. O miséria! - Mas todos os Jules Simon da Academia das Ciências Morais e Políticas, todos os Germiny da jesuitaria, não teriam podido inventar um vício mais embrutecedor para a inteligência das crianças, mais corruptor dos seus instintos, mais destruidor do seu organismo do que o trabalho na atmosfera viciada da oficina capitalista. A nossa época é, dizem, o século do trabalho; de fato, é o século da dor, da miséria e da corrupção. E, no entanto, os filósofos, os economistas burgueses, desde o penosamente confuso Augusto Comte até ao ridiculamente claro Leroy-Beaulieu; os intelectuais burgueses, desde o charlatanescamente romântico Victor Hugo até ao ingenuamente grotesco Paul de Kock, todos entoaram cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho. Ao ouvi-los, a felicidade ia reinar sobre a terra: já se sentia a sua chegada.. Iam aos séculos passados vasculhar o pó e a miséria feudais para trazerem sombrios contrastes às delícias dos tempos presentes. - Acaso nos fatigaram, esses saciados, esses satisfeitos, outrora ainda membros da domesticidade dos grandes senhores, hoje criados de pena

da burguesia, generosamente alugados; acaso nos fatigaram com o camponês do retórico La Bruyere? Ora, eis o brilhante quadro dos prazeres proletários no ano do progresso capitalista de 1840, pintado por um dos deles, pelo Dr. Villermé, membro do Instituto, o mesmo que, em 1848, fez parte daquela sociedade de sábios (Tiers, Cousin, Passy, Blanqui, o acadêmico, estavam lá) que propagou nas massas os disparates da economia e da moral burguesa. É da Alsácia manufatureira que fala Villermé, da Alsácia dos Kestner, dos Dolífus, essas flores da filantropia e do republicanismo industrial. Mas antes que o doutor esboce diante de nós o quadro das misérias proletárias, escutemos um manufatureiro alsaciano, o Sr. Th. Mieg, da Casa Dolífus, Mieg e C.ª, descrevendo a situação do artesão da antiga indústria: "Em Mulhouse, há cinquenta anos (em 1813, quando nascia a moderna indústria mecânica), os operários eram todos filhos do solo, que habitavam a cidade ou as aldeias próximas e possuíam quase todos uma casa e muitas vezes um pequeno terreno."35 Era a idade de ouro do trabalhador. Mas então a indústria alsaciana não inundava o mundo com os seus tecidos de algodão e não tornava milionários os seus Dollfus e os seus Koechlin. Mas vinte e cinco anos depois, quando Villermé visitou a Alsácia, o minotauro moderno, a oficina capitalista tinha conquistado a região; na sua bulimia de trabalho humano, tinha arrancado os operários dos seus lares para melhor os torcer e para melhor espremer o trabalho que continham. Era aos milhares que os operários acorriam ao apito da máquina. "Um grande número, diz Villermé, cinco mil em dezassete mil, eram obrigados, pela carestia das rendas, a instalar-se

nas aldeias vizinhas. Alguns habitavam a duas léguas e um quarto da manufatura onde trabalhavam. Em Mulhouse, em Dornach, o trabalho começava às cinco horas da manhã e acabava às cinco horas da tarde tanto no Verão como no Inverno [...]. Era preciso vê-los chegar todas as manhãs à cidade e vê-los partir à noite. Há entre eles uma multidão de mulheres pálidas, magras, caminhando de pés descalços por cima da lama e que, à falta de guardachuva, trazem, atirados sobre a cabeça, quando chove ou neva, os aventais e as saias de cima para protegerem o rosto e o pescoço, e um número mais considerável de crianças pequenas não menos sujas, não menos pálidas e macilentas, cobertas de farrapos, todas engorduradas do óleo dos teares que lhes cai em cima enquanto trabalham. Estas últimas, melhor preservadas da chuva pela impermeabilidade das suas roupas, nem sequer têm no braço, como as mulheres de que acabamos de falar, um cesto onde estão as provisões do dia; mas trazem na mão, ou escondem debaixo do seu casaco ou como podem, o bocado de pão que os deve alimentar até à hora do seu regresso a casa. Assim, à fadiga de um dia de trabalho excessivamente longo, visto que tem pelo menos quinze horas, vem juntarse para estes desgraçados a das idas e vindas tão frequentes, tão penosas. Daqui resulta que à noite chegam a suas casas oprimidos pela necessidade de dormir e que no dia seguinte saem antes de terem repousado completamente para se encontrarem na oficina à hora da abertura." Eis agora as cubículos onde se amontoavam aqueles que habitavam na cidade: "Vi, em Mulhouse, em Dornach e nas casas vizinhas, dessas miseráveis instalações onde dormiam duas famílias cada uma a seu canto, sobre

a palha colocada sobre o tijolo e retida por duas tábuas... Esta miséria em que vivem os operários da indústria do algodão no distrito do Alto-Reno é tão profunda, que produz este triste resultado: enquanto que nas famílias dos fabricantes, mercadores de panos, diretores de fábricas, metade das crianças atinge os vinte e um anos, essa mesma metade deixa de existir antes mesmo de completar os dois anos nas famílias de tecelões e de operários de fábricas de fiação de algodão." Falando do trabalho da oficina, Villermé acrescenta:"Não é um trabalho, uma tarefa, é uma tortura e infligem-na a crianças de seis a oito anos. [...] É esse longo suplício de todos os dias que mina sobretudo os operários nas fábricas de fiação de algodão." E, a propósito da duração do trabalho, Villermé observa que os forçados das galés só trabalhavam dez horas, os escravos das Antilhas uma média de nove horas, enquanto que existia na França que tinha feito a Revolução de 1789, que tinha proclamado os pomposos Direitos do Homem, manufaturas onde o dia de trabalho era de dezasseis horas, nas quais davam aos operários uma hora e meia para as refeições36. O miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! O lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem na ociosidade, dão trabalho aos pobres; mais valia semear a peste ou envenenar as fontes do que erguer uma fábrica no meio de uma povoação rústica. Introduzam o trabalho de fábrica, e adeus alegria, saúde, liberdade; adeus a tudo o que fez a vida bela e digna de ser vivida37. E os economistas continuam a repetir aos operários: Trabalhem para aumentar a fortuna social! E, no entanto,

um economista, Destutt de Tracy, responde-lhes: nas nações pobres que o povo está à sua vontade; é nas nações ricas que de um modo geral ele é pobre. E o seu discípulo Cherbuliez continua: "Os próprios trabalhadores, ao cooperarem na acumulação dos capitais produtivos, contribuem para o acontecimento que, mais tarde ou mais cedo, os deve privar de uma parte do seu salário." Mas, ensurdecidos e tornados idiotas pelos seus próprios berros, os economistas continuam a responder: Trabalhem, trabalhem sempre para criarem o vosso bem-estar! E, em nome da bondade cristã, um padre da Igreja Anglicana, o reverendo Townshend, prega: "Trabalhem, trabalhem noite e dia! Ao trabalharem, fazem crescer a vossa miséria e a vossa miséria dispensa-nos de vos impor o trabalho pela força da lei. A imposição legal do trabalho exige demasiado esforço, demasiada violência e faz demasiado estardalhaço; a fome, pelo contrário, não só é uma pressão calma, silenciosa, incessante, como também o móbil mais natural do trabalho e da indústria, ela provoca também os mais poderosos esforços." Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a fortuna social e as vossas misérias individuais, trabalhem, trabalhem, para que, tornando-vos mais pobres, tenham mais razão para trabalhar e para serem miseráveis. Eis a lei inexorável da produção capitalista. Porque, ao prestarem atenção às insidiosas palavras dos economistas, os proletários se entregaram de corpo e alma ao vício do trabalho, precipitam toda a sociedade numa destas crises de superprodução que convulsionam o organismo social. Então, porque há superabundância de mercadorias e penúria de compradores, as oficinas encerram e a fome fustiga as populações operárias com o

seu chicote com mil loros. Os proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, não compreendem que é o supertrabalho que infligiram a si próprios durante o tempo da pretensa prosperidade a causa da sua miséria presente, em vez de correrem ao celeiro de trigo e de gritarem: "Temos fome e queremos comer!... Sim, não temos nem uma moeda, mas, pobres como estamos, fomos nós quem ceifou o trigo e vindimou a uva... " - Em vez de cercarem os armazéns do Sr. Bonnet de Jujureux, o inventor dos conventos industriais, e de clamar: "Sr. Bonnet, aqui estão as vossas operárias ovalistas38, moulineuses39, fiandeiras, tecedeiras, elas tremem de frio nos seus tecidos de algodão passajados de modo a condoer os olhos de um judeu e, no entanto, foram elas que fiaram e teceram os vestidos de seda das cocotes de toda a cristandade. As desgraçadas, trabalhando treze horas por dia, não tinham tempo de pensar na "toilette", agora, elas estão desempregadas e podem ostentar um grande luxo com as sedas que trabalharam. Mal perderam os dentes de leite, dedicaram-se à sua fortuna e viveram na abstinência; agora, elas têm tempos de lazer e querem gozar um pouco dos frutos do seu trabalho. Vamos, Sr. Bonnet, entregue as suas sedas, o Sr. Harmel fornecerá as suas musselinas, o Sr. PouyerQuertier os seus paninhos, o Sr. Pinet as suas botinas para os seus queridos pezinhos frios e húmidos... Vestidas dos pés à cabeça, dar-vos-á prazer contemplá-las. Vamos, nada de hesitações o Sr. é amigo da humanidade, não é verdade? E cristão ainda por cima! Ponha à disposição das suas operárias a fortuna que estas lhe construíram com a carne da sua carne. - É amigo do comércio? - Facilite a circulação das mercadorias; eis consumido-res acabados de encontrar; abra-lhes créditos ilimitados. É obrigado a fazê-lo a negociantes que não conhece de parte nenhuma, que não lhe deram nada, nem sequer um copo de água. As suas operarias pagarão como puderem: se, no dia do

vencimento, elas fogem e deixam protestar a letra, leva-lasá à falência e, se elas não tiverem nada para penhorar, exigirá que elas lhe paguem em orações: elas enviá-lo-ão ao paraíso, melhor do que os seus sacos negros com o nariz cheio de tabaco." Em vez de se aproveitarem dos momentos de crise para uma distribuição geral de produtos e uma manifestação universal de alegria, os operários, morrendo à fome, vão bater com a cabeça contra as portas da oficina. Com rostos pálidos e macilentos, corpos emagrecidos, discursos lamentáveis, assaltam os fabricantes: "Bom Sr. Chagot, excelente Sr. Schneider, deem-nos trabalho, não é a fome, mas a paixão do trabalho que nos atormenta!" E esses miseráveis, que mal têm forças para se manterem de pé, vendem doze e catorze horas de trabalho duas vezes mais barato do que quando tinham trabalho durante um certo tempo. E os filantropos da indústria continuam a aproveitar as crises de desemprego para fabricarem mais barato. Se as crises industriais se seguem aos períodos de supertrabalho tão fatalmente como a noite se segue ao dia, arrastando atrás de si o desemprego forçado, e a miséria sem saída, também levam à bancarrota inexorável. Enquanto o fabricante tem crédito, solta a rédea à raiva do trabalho, faz empréstimos, volta a fazer empréstimos para fornecer matéria-prima aos operários. Tem de se produzir, sem refletir que o mercado se obstrui e que, se as mercadorias não chegarem a serem vendidas, as suas ordens de pagamento acabarão por se vencer. Encurralado, vai implorar ao Judeu, lança-se a seus pés, oferece-lhe o seu sangue, a sua honra. "Um bocadinho de ouro ser-lhe-ia mais útil, responde o Rothschild, tem 20.000 pares de meias em armazém, valem vinte soldos, compro-lhas por quatro soldos." Obtidas as meias, o Judeu vende-as a seis e a oito soldos e embolsa as buliçosas moedas de cem soldos que não devem nada a ninguém: mas o fabricante recuou para

melhor saltar. Chega finalmente o degelo e os armazéns despejam-se; lança-se então tanta mercadoria pelas janelas que não se sabe como é que elas entraram pela porta. É em centenas de milhões que se cifra o valor das mercadorias destruídas: no século passado, queimavam-nas ou lançavam-nas à água40. Mas antes de chegar a esta conclusão, os fabricantes percorreram o mundo à procura de colocação para as mercadorias que se amontoavam; forçam o seu governo a anexar Congos, a apoderar-se de Tonquim, a demolir com fogo dos canhões as muralhas da China, para aí darem saída aos seus tecidos de algodão. Nos séculos passados, era um duelo de morte entre a França e a Inglaterra para saber quem teria o privilégio exclusivo de vender na América e nas Índias. Milhares de homens jovens e vigorosos purpurearam os mares com o seu sangue durante as guerras coloniais dos séculos XV, XVI e XVII. Os capitais abundam como as mercadorias. Os financeiros já não sabem onde colocá-los; vão então para as nações felizes que passeiam ao sol a fumar cigarros pôr caminhos de ferro, construir fábricas e importar a maldição do trabalho. E esta exportação de capitais franceses termina uma bela manhã em complicações diplomáticas: no Egito, a França, a Inglaterra e a Alemanha estavam prestes a agarrar-se pelos cabelos para saber quais os usurários que seriam pagos em primeiro lugar; em guerras no México para onde são enviados os soldados franceses exercerem a profissão de oficial de diligências para encobrir más dívidas41. Estas misérias individuais e sociais, por muito grandes e numerosas que sejam, por eternas que pareçam, desaparecerão como as hienas e os chacais à aproximação do leão, quando o proletariado disser: "Quero isso." Mas para que ele venha a ter consciência da sua força, é preciso

que o proletariado calque aos pés os preconceitos da moral cristã, econômica, livre-pensadora; é preciso que ele regresse aos seus instintos naturais, que proclame os Direitos da Preguiça, milhares de vezes mais nobres e sagrados do que os tísicos Direitos do Homem, digeridos pelos advogados metafísicos da revolução burguesa; que ele se obrigue a trabalhar apenas três horas por dia, a mandriar e a andar no regabofe o resto do dia e da noite. Até aqui, a minha tarefa tem sido fácil, tinha apenas de descrever males reais que todos nós conhecemos muito bem infelizmente. Mas convencer o proletariado de que a palavra que lhe inocularam é perversa, que o trabalho desenfreado a que se dedica desde o início do século é o mais terrível flagelo que já alguma vez atacou a humanidade, que o trabalho só se tornará um condimento de prazer da preguiça, um exercício benéfico para o organismo humano, uma paixão útil ao organismo social, quando for prudentemente regulamentado e limitado a um máximo de três horas por dia, é uma tarefa árdua superior às minhas forças; só fisiologistas, higienistas, economistas comunistas poderão empreendê-la. Nas páginas que se seguem, limitar-me-ei a demonstrar que, atendendo aos meios de produção modernos e à sua potência reprodutiva ilimitada, tem de se dominar a paixão extravagante dos operários pelo trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem.

Capitulo III: O Que se Segue à Superprodução Um poeta grego do tempo de Cícero, Antiparos, cantava deste modo a invenção da azenha (para moer os cereais): ia emancipar as mulheres escravas e voltar a trazer a idade de ouro: "Poupai o braço que faz girar a mó, ó moleiras, e dormi tranquilamente! Que o galo vos avise em vão de que já é dia! Dão impôs às ninfas o trabalho das escravas e ei-las que saltitam alegremente sobre a roda e eis que o eixo agitado rola com os seus raios, fazendo rodar a pesada pedra rolante. Vivamos da vida dos nossos pais e ociosos regozijemo-nos dos dons que a deusa nos concede." Infelizmente, os tempos livres que o poeta pagão anunciava não vieram; a paixão cega, perversa e homicida do trabalho transforma a máquina libertadora em instrumento de sujeição dos homens livres: a sua produtividade empobrece-os. Uma boa operária só faz com o fuso cinco malhas por minuto, alguns teares circulares para tricotar fazem trinta mil no mesmo tempo. Cada minuto à máquina equivale, portanto, a cem horas de trabalho da operaria; ou então cada minuto de trabalho da máquina dá à operária dez dias de repouso. Aquilo que se passa com a indústria de malhas é mais ou menos verdade para todas as indústrias renovadas pela mecânica moderna. Mas que vemos nós? A medida que a máquina se aperfeiçoa e despacha o trabalho do homem com uma rapidez e uma precisão incessantemente crescentes, o operário, em vez de prolongar o seu repouso proporcionalmente, redobra de

ardor, como se quisesse rivalizar com a máquina. Ó concorrência absurda e mortal! Para que a concorrência do homem e da máquina tomasse livre curso, os proletários aboliram as sábias leis que limitavam o trabalho dos artesãos das antigas corporações; suprimiram os dias feriados42. Porque os produtores de então só trabalhavam cinco dias em sete, julgavam eles então, assim o contam os economistas mentirosos, que viviam só de ar e de água fresca? Ora vamos! Eles tinham tempos livres para gozar as alegrias da terra, para fazer amor, para se divertirem, para se banquetearem em honra do alegre deus da Mandriice. A triste Inglaterra, engaiolada no protestantismo, chamava-se então a "alegre Inglaterra" (Merry England). Rabelais, Quevedo, Cervantes, os autores desconhecidos dos romances picarescos, fazem-nos crescer água na boca com as suas narrativas daquelas monumentais patuscadas43 com que se regalavam então entre duas batalhas e duas devastações e nas quais tudo "era medido aos pratos". Jordaens e a escola flamenga escreveram-nas nas suas alegres telas. Sublimes estômagos gargantuescos, que é feito de vós? Sublimes cérebros que abarcáveis todo o pensamento humano, que é feito de vós? Estamos muito diminuídos e muito degenerados. A vaca atacada de raiva, a batata, o vinho com fucsina e a aguardente prussiana sabiamente combinados com o trabalho forçado debilitaram os nossos corpos e diminuíram os nossos espíritos. E foi então que o homem encolheu o seu estômago e que a máquina alargou a sua produtividade, é então que os economistas nos pregam a teoria malthusiana, a religião da abstinência e o dogma do trabalho? Mas era preciso arrancar-lhes a língua e deitá-la aos cães. Porque a classe operária, com a sua boa fé simplista, se deixou doutrinar, porque, com a sua impetuosidade nativa,

se precipitou cegamente para o trabalho e para a abstinência, a classe capitalista achou-se condenada à preguiça e ao prazer forçado, à improdutividade e ao superconsumo. Mas, se o supertrabalho do operário magoa a sua carne e atormenta os seus nervos, ele também é fecundo em dores para o burguês. A abstinência à qual a classe produtiva se condena Obriga os burgueses a dedicarem-se ao super-consumo dos produtos que ela manufatura desordenadamente. No início da produção capitalista, há um ou dois séculos, o burguês era um homem ajuizado, de hábitos razoáveis e calmos; contentava-se com a sua mulher ou quase; bebia e comia moderadamente. Deixava aos cortesões e às cortesãs as nobres virtudes da vida debochada. Hoje, não há filho de arrivista que não se julgue obrigado a desenvolver a prostituição e a mercurializar o seu corpo para dar um objetivo ao trabalho que os operários das minas de mercúrio se impõem; não há burguês que não se farte de capões trufados e de Laffitte navegado, para encorajar os criadores de La Fleche e os vinhateiros do Bordelais. Nesta profissão, o organismo deteriora-se rapidamente, os cabelos caem, os dentes descarnam-se até à raiz, o tronco deforma-se, o ventre entripa-se, a respiração complica-se, os movimentos tornam-se pesados, as articulações tornam-se anquilosadas, as falanges enodam-se. Outros, demasiado fracos para suportar as fadigas do deboche, mas dotados da bossa do ´prudhommismo, dessecam o seu cérebro como os Garnier da economia política, como os Acolias da filosofia jurídica, a elucubrar grossos livros soporíficos para ocupar os tempos livres dos compositores e dos tipógrafos. As mulheres da alta sociedade têm uma vida de mártir. Para provarem e fazerem valer as "toilettes" feéricas que as costureiras se matam a fazer, andam de manhã à noite de um lado para o outro, de um vestido para outro; durante horas abandonam a sua cabeça oca aos artistas capilares

que, a todo o custo, querem saciar a sua paixão pelos montões de postiços. Apertadas nos seus espartilhos, pouco à vontade nas suas botinas, decotadas de maneira a fazer corar um sapador, voltejam noites inteiras nos seus bailes de caridade para recolherem alguns soldos para os pobres. Santas almas! Para desempenhar a sua dupla função social de não produtor e de super-consumidor, o burguês teve não só de violentar os seus gostos modestos, perder os seus hábitos de trabalho de há dois séculos e entregar-se a um luxo desenfreado, às indigestões trufadas e aos deboches sifilíticos, mas também teve de subtrair ao trabalho produtivo uma enorme massa de homens para conseguir ajudantes. Eis alguns números que provam como é colossal essa diminuição de forças produtivas: de acordo com o recenseamento de 1861, a população de Inglaterra e do País de Gales compreendia 20066244 pessoas, das quais 9 776259 do sexo masculino e 10289965 do sexo feminino. Se deduzirmos os que são demasiado velhos ou demasiado novos para trabalhar, as mulheres, os adolescentes e as crianças improdutivas, em seguida as profissões ideológicas como por exemplo governantes, polícia, clero, magistratura, exército, prostituição, artes, ciências, etc., depois as pessoas exclusivamente ocupadas a comer o trabalho de outrem sob a forma de renda fundiária, de juros, de dividendos, etc., restam por alto oito milhões de indivíduos dos dois sexos e de todas as idades, incluindo os capitalistas que funcionam na produção, no comércio, na finança, etc. Nesses oito milhões contam-se: Trabalhadores agrícolas (incluindo os pastores, os criados e criadas de lavoura que habitam na quinta) = 1.098;261 Operários de fábricas de algodão, de lã, de cânhamo, de linho, de seda, de malha = 642.607

Operários de minas de carvão e de metal = 565.835 Operários metalúrgicos (alto-fornos, laminadores, etc.) = 396.998 Classe doméstica = 1.208.648 "Se somarmos o número dos trabalhadores têxteis ao dos das minas de carvão e de metal, obteremos o total de 1.208.442; se somarmos os primeiros e os das fábricas metalúrgicas, temos um total de 1.039.605 pessoas; ou seja, de ambas as vezes um número inferior ao dos modernos escravos domésticos. Eis o magnífico resultado da exploração capitalista das máquinas."44 A toda esta classe doméstica, cuja grandeza indica o grau atingido pela civilização capitalista, tem de se acrescentar a numerosa classe dos infelizes exclusivamente dedicados à satisfação dos gostos dispendiosos e fúteis das classes ricas, lapidadores de diamantes, rendeiras, bordadoras, encadernadores de luxo, costureiras de luxo, decoradores das casas de recreio, etc.45 Uma vez acocorada na preguiça absoluta e desmoralizada pelo prazer forçado, a burguesia, apesar das dificuldades que teve nisso, adaptou-se ao seu novo estilo de vida. Encarou com horror qualquer alteração. A visão das miseráveis condições de existência aceites com resignação pela classe operária e a da degradação orgânica gerada pela paixão depravada pelo trabalho aumentava ainda mais a sua repulsa por qualquer imposição de trabalho e por qualquer restrição de prazeres. Foi precisamente então que, sem ter em conta a desmoralização que a burguesia tinha imposto a si própria como um dever social, os proletários resolveram infligir o trabalho aos capitalistas. Ingênuos, tomaram a sério as teorias dos economistas e dos moralistas sobre o trabalho e

maltrataram os rins para infligir a sua prática aos capitalistas. O proletariado arvorou a divisa: Quem não trabalha, não come; Lyon, em 1831, levantou-se pelo chumbo ou pelo trabalho, os federados de 1871 declararam o seu levantamento a revolução do trabalho. A estes ímpetos de furor bárbaro, destrutivo de todo o prazer e de toda a preguiça burguesas, os capitalistas só podiam responder com uma repressão feroz, mas sabiam que, se tinham conseguido reprimir estas explosões revolucionárias, não tinham afogado no sangue dos seus gigantescos massacres a absurda ideia do proletariado de querer infligir o trabalho às classes ociosas e fartas, e foi para desviar essa infelicidade que se rodearam de pretorianos, de polícias, de magistrados, de carcereiros mantidos numa improdutividade laboriosa. Já não se podem ter ilusões sobre o caráter dos exércitos modernos, são mantidos em permanência apenas para reprimir "o inimigo interno"; e assim que os fortes de Paris e de Lyon não foram construídos para defender a cidade contra o estrangeiro, mas para o esmagar no caso de revolta. E se fosse preciso um exemplo sem réplica, citemos o exército da Bélgica, desse país de Cocagne do capitalismo; à sua neutralidade é garantida pelas potências europeias e, no entanto, o seu exército é um dos mais fortes em proporção da população. Os gloriosos campos de batalha do bravo exército belga são as planícies do Borinage e de Charleroi, é no sangue dos mineiros e dos operários desarmados que os oficiais belgas ensanguentam as suas espadas e ganham os seus galões. As nações europeias não tem exércitos nacionais, mas sim exércitos mercenários, que protegem os capitalistas contra o furor popular que os queria condenar a dez horas de mina ou de fábrica de fiação. Portanto, ao apertar o cinto, a classe operária desenvolveu para além do normal o ventre da burguesia condenada ao super-consumo.

Para ser aliviada no seu penoso trabalho, a burguesia retirou da classe operária uma massa de homens muito superior à que continuava dedicada à produção útil e condenou-a, por seu turno, à improdutividade e ao superconsumo. Mas este rebanho de bocas inúteis, apesar da sua voracidade insaciável, não basta para consumir todas as mercadorias que os operários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, produzem como maníacos, sem os quererem consumir e sem sequer pensarem se se encontrarão pessoas para os consumir. Em presença desta dupla loucura dos trabalhadores, de se matarem de supertrabalho e de vegetarem na abstinência, o grande problema da produção capitalista já não é encontrar produtores e multiplicar as suas forças, mas descobrir consumidores, excitar os seus apetites e criar-lhes necessidades fictícias. Uma vez que os operários europeus, que tremem de frio e de fome, recusam usar os tecidos que eles próprios tecem, beber os vinhos que eles próprios colhem, os pobres fabricantes, como espertalhões, devem correr aos antípodas para procurar quem os usará e quem os beberá: são centenas de milhões e de biliões que a Europa exporta todos os anos para os quatro cantos do mundo, para populações que não têm nada que fazer com esses produtos46. Mas os continentes explorados já não são suficientemente vastos, são necessários países virgens. Os fabricantes da Europa sonham noite e dia com a África, com o lago sariano, com o caminho de ferro do Sudão, seguem com ansiedade os progressos dos Livingstone dos Stanley, dos Du Chailiu, dos de Brazza; de boca aberta, escutam as histórias mirabolantes desses corajosos viajantes. Que maravilhas desconhecidas encerra o "continente negro"! Campos são plantados de dentes de elefantes, rios de óleo de coco arrastam no seu curso palhetas de ouro, milhões de cus negros, nus como o rosto de Dufaure ou de Girardin esperam pelos tecidos de algodão para aprenderem a

decência, pelas garrafas de aguardente e pelas bíblias para conhecerem as virtudes da civilização. Mas tudo é insuficiente: o burguês que se farta, a classe doméstica que ultrapassa a classe produtiva, as nações estrangeiras e bárbaras que se enchem de mercadorias europeias; nada, nada pode conseguir dar vazão às montanhas de produtos que se amontoam maiores e mais altas do que as pirâmides do Egito: a produtividade dos operários europeus desafia todo o consumo, todo o desperdício. Os fabricantes, doidos, já não sabem que fazer, já não conseguem encontrar matéria-prima para satisfazer a paixão desordenada, depravada, que os seus operários têm pelo trabalho. Nos nossos distritos onde há lã, desfiam-se trapos manchados e meio podres, fazem-se com eles panos chamados de renascimento, que duram o mesmo que as promessas eleitorais; em Lyon, em vez de deixar à fibra sedosa a sua simplicidade e a sua flexibilidade natural, sobrecarregam-na de sais minerais que, ao acrescentaremlhe peso, a tornam friável e de pouco uso. Todos os nossos produtos são adulterados para facilitar o seu escoamento e abreviar a sua existência. A nossa época será chamada a idade da falsificação, tal como as primeiras épocas da humanidade receberam os nomes de idade da pedra, idade de bronze, pelo caráter da sua produção. Os ignorantes acusam de fraude os nossos piedosos industriais, enquanto que na realidade o pensamento que os anima é o de fornecer trabalho aos operários, que não conseguem resignar-se a viver de braços cruzados. Estas falsificações, que têm como único móbil um sentimento humanitário, mas que rendem soberbos lucros aos fabricantes que as praticam, se são desastrosas para a qualidade das mercadorias, se são uma fonte inesgotável de desperdício de trabalho humano, provam a filantrópica habilidade dos burgueses e a horrível perversão dos operários que, para saciarem o seu vicio do trabalho, obrigam os industriais a

abafar os gritos da sua consciência e até mesmo a violar as leis da honestidade comercial. E, no entanto, apesar da superprodução de mercadorias, apesar das falsificações industriais, os operários atravancam o mercado em grandes grupos implorando: trabalho! trabalho! A sua superabundância devia obrigá-los a refrear a sua paixão; pelo contrário, ela leva-a ao paroxismo. Mal uma possibilidade de trabalho se apresenta, logo se atiram a ela; então são doze, catorze horas que reclamam para estarem fartos até à saciedade e no dia seguinte ei-los de novo na rua, sem mais nada para alimentarem o seu vicio. Todos os anos, em todas as indústrias, os despedimentos surgem com a regularidade das estações. Ao supertrabalho perigoso para o organismo sucede-se o repouso absoluto durante dois ou quatro meses; e, não havendo trabalho, não há a ração diária. Uma vez que o vício do trabalho está diabolicamente encavilhado no coração dos operários; uma vez que as suas exigências abafam todos os outros instintos da natureza; uma vez que a quantidade de trabalho exigida pela sociedade é forçosamente limitada pelo consumo e pela abundância de matéria-prima, por que razão devorar em seis meses o trabalho de todo o ano? Porque não distribuí-lo uniformemente por doze meses e forçar todos os operários a contentar-se com seis ou cinco horas por dia, durante o ano, em vez de apanhar indigestões de doze horas durante seis meses? Seguros da sua parte diária de trabalho, os operários já não se invejarão, já não se baterão para arrancarem mutuamente o trabalho das mãos e o pão da boca; então, não esgotados de corpo e de espírito, começarão a praticar as virtudes da preguiça. Embrutecidos pelo seu vício, os operários não conseguiram elevar-se à inteligência deste fato segundo o qual, para ter trabalho para todos era preciso racioná-lo como à água num navio em perigo. No entanto, os

industriais, em nome da exploração capitalista, já há muito que pediram um limite legal do dia de trabalho. Perante a Comissão de 1860 sobre o ensino profissional, um dos maiores manufatureiros da Alsácia, o Sr. Bourcart, de Guebwiller, declarava: "O dia de trabalho de doze horas era excessivo e devia ser reduzido para onze e aos sábados devia-se suspender o trabalho às duas horas. Posso aconselhar a adoção desta medida embora pareça onerosa à primeira vista; experimentamo-la nos nossos estabelecimentos industriais há já quatro anos e demo-nos bem e a produção média, longe de diminuir, aumentou." No seu estudo sobre as máquinas, o Sr. F. Passy cita a seguinte carta de um grande industrial belga, o Sr. M. Ottavaere: "As nossas máquinas, embora sejam as mesmas que as das fábricas de fiação inglesas, não produzem o que deveriam produzir e o que produziriam essas mesmas máquinas em Inglaterra, embora as fábricas de fiação funcionem menos duas horas por dia. [...] Trabalhamos todos duas longas horas a mais, estou convencido de que, se trabalhássemos onze horas em vez de treze, teríamos a mesma produção e, por conseguinte, produziríamos mais economicamente." Por outro lado, o Sr. Leroy-Beaulieu afirma que "um grande manufatureiro belga observa muito bem que nas semanas em que calha um dia feriado a produção não é inferior às das semanas normais"47. Aquilo que o povo, logrado na sua ingenuidade pelos moralistas, nunca ousou, ousou-o um governo aristocrático. Desprezando as elevadas considerações morais e industriais dos economistas, que, como as aves de mau agoiro,

cacarejavam que diminuir uma hora ao trabalho das fábricas era decretar a ruína da indústria inglesa, o governo de Inglaterra proibiu por lei, estritamente observada, trabalhar mais de dez horas por dia; e, depois disso tal como antes, a Inglaterra continua a ser a primeira nação industrial do mundo. Eis a grande experiência inglesa, eis a experiência de alguns capitalistas inteligentes, ela demonstra irrefutavelmente que, para reforçar a produtividade humana, tem de se reduzir as horas de trabalho e multiplicar os dias de pagamento e os feriados, e o povo francês não está convencido. Mas se uma miserável redução de duas horas aumentou em dez anos a produção inglesa em cerca de um terço48, que ritmo vertiginoso imprimiria à produção francesa uma redução geral de três horas no dia de trabalho? Os operários não conseguem compreender que, cansando-se excessivamente, esgotam as suas forças antes da idade de se tornarem incapazes para qualquer trabalho; que absorvidos, embrutecidos por um único vício, já não são homens, mas sim restos de homens; que matam neles todas as belas faculdades para só deixarem de pé, e luxuriante, a loucura furiosa do trabalho. Ah! como papagaios de Arcádia repetem a lição dos economistas: "Trabalhemos, trabalhemos para aumentar a riqueza nacional." O idiotas! é porque trabalhais demais que a ferramenta industrial se desenvolve lentamente. Deixai de vociferar e escutai um economista; ele não é um águia, não é o Sr. L. Reybaud, que tivemos a felicidade de perder há alguns meses: "De um modo geral, é na base das condições de mão-de-obra que se regula a revolução nos métodos de trabalho. Enquanto a mão-de-obra fornece os seus serviços a baixo preço, esbanjam-na; procuram

poupá-la quando os seus serviços se tornam mais caros."49 Para forçar os capitalistas a aperfeiçoarem as suas máquinas de madeira e de ferro, é preciso elevar-se os salários e diminuir as horas de trabalho das máquinas de carne e osso. As provas? Podemos fornecê-las às centenas. Na fábrica de fiação, o tear mecânico (self acting mule) foi inventado e aplicado em Manchester, porque os fiandeiros se recusavam a trabalhar tanto tempo como antes. Na América, a máquina invadiu todos os ramos da produção agrícola, desde o fabrico da manteiga até à sacha dos trigos: porquê? Porque o Americano, livre e preguiçoso, preferiria morrer mil vezes a ter a vida bovina do camponês francês. A lavra, tão penosa na nossa gloriosa França, tão rica de aguamentos, é, no Oeste americano, um agradável passatempo ao ar livre que se pratica sentado, fumando descuidadamente o seu cachimbo.

Capitulo IV: Para Nova Música Nova Canção Se, diminuindo as horas de trabalho, se conquista para a produção social novas forças mecânicas, obrigando os operários a consumir os seus produtos, conquistar-se-á um enorme exército de forças de trabalho. A burguesia, liberta então da sua tarefa de consumidor universal, apressar-se-á a licenciar a barafunda de soldadas, de magistrados, de vigaristas, de proxenetas, etc., que retirou do trabalho útil para a auxiliar a consumir e a desperdiçar. É então que o mercado do trabalho ficará a transbordar, é então que será necessária uma lei de ferro para proibir o trabalho: será impossível encontrar trabalho para este bando de anteriores improdutivos, mais numerosos do que os piolhos da madeira. E a seguir a eles será necessário pensar em todos aqueles que proviam as suas necessidades e gostos fúteis e dispendiosos. Quando já não houver mais lacaios e generais a quem dar galões, mais prostitutas livres e casadas para cobrir de rendas, mais canhões para furar, mais palácios para construir, será necessário impor, através de leis severas, às operárias e aos operários de passamanaria, de rendas, de ferro, de construção civil, higiênicos passeios em escaler e os exercícios coreográficos para o restabelecimento da sua saúde e o aperfeiçoamento da sua raça. Desde que os produtos europeus consumidos no local não sejam transportados para o diabo, será preciso que os marinheiros, as tripulações, os camionistas se sentem e aprendam a passar o tempo na ociosidade. Os bemaventurados Polinésios poderão então entregar-se ao amor livre sem recear os pontapés da Vênus civilizada e os sermões da moral europeia.

Há mais. Para encontrar trabalho para todos os não valores da sociedade atual, para deixar a ferramenta industrial desenvolver-se indefinidamente, a classe operária deverá, tal como a burguesia, violentar os seus gostos abstinentes e desenvolver indefinidamente as suas capacidades consumidoras. Em vez de comer por dia uma ou duas onças de carne dura, quando a comer, comerá alegres bifes de uma ou duas libras; em vez de beber moderadamente mau vinho, mais papista que o papa, beberá grandes e profundos copázios de bordéus, de borgonha, sem batismo industrial, e deixará a água para os animais. Os proletários meteram na cabeça infligir aos capitalistas dez horas de forja e de refinaria; eis o grande erro, a causa dos antagonismos sociais e das guerras civis. Será necessário não impor o trabalho mas proibi-lo. Será permitido aos Rothschild e aos Say provarem que foram durante toda a sua vida perfeitos velhacos; e se eles jurarem que querem continuar a viver como perfeitos velhacos, apesar do arrebatamento geral pelo trabalho, serão registados e, nas respectivas câmaras, receberão todas as manhãs uma moeda de vinte francos para os seus pequenos prazeres. As discórdias sociais desaparecerão. Os que vivem dos rendimentos, os capitalistas, serão os primeiros a unir-se ao partido popular, uma vez convencidos de que, longe de se lhes querer mal, se pretende pelo contrário livrá-los do trabalho de super-consumo e de desperdício pelo qual foram esmagados desde o seu nascimento. Quanto aos burgueses incapazes de provar os seus títulos de velhacos, deixá-los-ão seguir os seus instintos: existe um número suficiente de profissões nojentas para os colocar Dufaure limparia as latrinas públicas; Galliffet assassinaria os porcos sarnosos e os cavalos inchados; os membros da comissão das graças, enviados a Poissy50, marcariam o bois e os carneiros para

abater; os senadores, ligados às pompas fúnebres, farão de gatos-pingados. Para outros, encontrar-se-ão profissões à altura da sua inteligência. Lorgeril e Broglie rolharão as garrafas de champanhe, mas seriam amordaçados para não se embriagar; Ferry, Freycinet, Tirard, destruiriam os percevejos e os vermes dos ministérios e de outros albergues públicos No entanto, será necessário por os dinheiros públicos fora do alcance dos burgueses por se recear os hábitos adquiridos. Mas tirar-se-á uma dura e longa vingança dos moralistas que perverteram a natureza humana, beatos falsos, santarrões, hipócritas "e outras seitas de pessoas como estas que se disfarçaram para enganar o mundo. Porque, dando a entender ao popular comum que não se ocuparam senão em contemplações e devoção, em jejuns e macerações da sensualidade, senão realmente para sustentar e alimentar a pequena fragilidade da sua humanidade: pelo contrário, zombam. E Deus sabe de que maneira! Et Curios simulant sed Bacchnalia vivunt51. Podeis lê-lo em grandes letras e em iluminuras nos seus focinhos vermelhos e no seu ventre saliente, quando não se perfumam de enxofre". Nos dias de grandes festas populares, onde, em vez de comerem pó como nos 15 de Agosto e nos 14 de Julho dos burgueses, os comunistas e os coletivistas fizeram andar as garrafas e os presuntos e voar as taças, os membros da Academia das Ciências Morais e Políticas, os padres de vestes longas e curtas da igreja econômica, católica, protestante, judaica, positivista e livre pensadora, os propagadores do malthusianismo e da moral cristã, altruísta, independente ou submetida, vestidos de amarelo, segurarão na vela até se queimarem os dedos e viverão em fome junto das mulheres gaulesas e das mesas carregadas de carnes, de frutos e de flores e morrerão de sede juntos dos tonéis destapados. Quatro vezes por ano, quando as

estações mudarem, tal como aos cães dos amoladores ambulantes, encerrá-los-ão nas grandes rodas e durante dez horas obrigá-los-ão a moer vento. Os advogados e os legistas sofrerão a mesma pena. Num regime de preguiça, para matar o tempo que nos mata segundo a segundo, haverá sempre espetáculos e representações teatrais; é um trabalho adotado especialmente para os nossos burgueses legisladores. Organizá-los-emos em bandos que percorrem as feiras e as aldeias, dando representações legislativas. Os generais, com botas de montar, o peito agaloado de atacadores, de crachás, de cruzes da Legião de honra, irão pelas ruas e pelas praças, recrutando as boas pessoas. Gambetta e Cassagnac, seu compadre, farão a pantominice da porta. Cassagnac, em fato de gala de mata-mouros, revirando os olhos, torcendo o bigode, cuspindo a estopa inflamada, ameaçará todos com a pistola do pai e cairá num buraco mal lhe mostrem um retrato de Luílier; Gambetta discorrerá sobre a política externa, sobre a pequena Grécia que o endoutoriza e largará fogo à Europa para roubar a Turquia; sobre a grande Rússia que o estultifica com a compota que ela promete fazer com a Prússia e que deseja a oeste da Europa feridas e inchaços para enriquecer a leste e estrangular o niilismo no interior; sobre o Sr. Bismarck, que foi bastante bom para lhe permitir que se pronunciasse sobre a amnistia... depois, desnudando a sua vasta barriga pintada a três cores, tocará nela a chamada e enumerará os deliciosos animaizinhos, as verdelhas, as trufas, os copos de Margaux e de Yquem que tragou para encorajar a agricultura e manter alegres os eleitores de Belleville. Na barraca, começar-se-á pela Farsa Eleitoral. Diante dos eleitores com cabeças de madeira e orelhas de burro, os candidatos burgueses, vestidos como palhaços, dançarão a dança das liberdades políticas, limpando a face

e o posfácio com os seus programas eleitorais de múltiplas promessas e falando com lágrimas nos olhos das misérias do povo e com voz de bronze das glórias da França; e as cabeças dos eleitores gritam em coro e solidamente: hi han! hi han! Depois começará a grande peça: O Roubo dos Bens da Nação. A França capitalista, enorme fêmea, de face peluda e de crânio calvo, deformada, com carnes flácidas, balofas, deslavadas, com olhos sem vida, ensonada e bocejando, está reclinada num canapé de veludo; a seus pés, o Capitalismo industrial, gigantesco organismo de ferro, com uma máscara simiesca, devora mecanicamente homens, mulheres, crianças, cujos gritos lúgubres e terríveis enchem o ar; a Banca com focinho de fuinha, com corpo de hiena e mãos de harpia, rouba-lhe habilmente do bolso as moedas de cem soldos. Hordas de miseráveis proletários descarnados, escoltados por gendarmes, de sabre desembainhado, expulsos pelas fúrias que os zurzem com os chicotes da fome, trazem para os pés da França capitalista montes de mercadorias, barricas de vinho, sacos de ouro e de trigo. Langlois, com os calções numa mão, o testamento de Proudhon na outra, o livro do orçamento entre os dentes, põe-se à frente dos defensores dos bens da nação e monta a guarda. Uma vez depostos os fardos, mandam expulsar os operários à coronhada e a golpes de baioneta e abrem a porta aos industriais, aos comerciantes e aos banqueiros. De cambolhada, eles precipitam-se sobre o monte, tragando tecidos de algodão, sacos de trigo, lingotes de ouro, despejando pipas; sem poderem mais, sujos, nojentos, ficam prostrados nos seus excrementos e nos seus vômitos... Então ribomba o trovão, a terra agita-se e entreabre-se, surge a Fatalidade histórica; com o seu pé de

ferro ela esmaga as cabeças daqueles que soluçam, cambaleiam, caem e já não podem fugir, e com a sua grande mão derruba a França capitalista, estupefata e suando de medo. Se, desenraizando do seu coração o vício que a domina e avilta a sua natureza, a classe operária se erguesse com a sua força terrível, não para reclamar os Direitos do Homem, que não são senão os direitos da exploração capitalista, não para reclamar o Direito ao Trabalho, que não é senão o direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proíba todos os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, a velha Terra, tremendo de alegria, sentiria saltar nela um novo universo... Mas como pedir a um proletariado corrompido pela moral capitalista uma resolução viril? Tal como Cristo, a triste personificação da escravatura antiga, os homens, as mulheres, as crianças do Proletariado sobem penosamente há um século o duro calvário da dor: desde há um século que o trabalho forçado quebra os seus ossos, magoa as suas carnes, dá cabo dos seus nervos; desde há um século que a fome torce as suas entranhas e alucina os seus cérebros!... Ó Preguiça, tem piedade da nossa longa miséria! Ó Preguiça, mãe das artes e das nobres virtudes, sê o bálsamo das angústias humanas!

Apêndice Os nossos moralistas são pessoas muito modestas; se inventaram o dogma do trabalho, duvidam da sua eficácia para tranquilizar a alma, regozijar o espírito e manter o bom funcionamento dos rins e outros órgãos; querem experimentar a sua utilização nos populares, in anima vili antes de o voltar contra os capitalistas, cujos vícios têm como missão desculpar e autorizar. Mas, filósofos de quatro tostões a dúzia, porquê preocupardes-vos assim a elucubrar uma moral cuja prática não ousais aconselhar aos vossos senhores? O vosso dogma do trabalho, do qual vos mostrais tão orgulhosos, quereis vê-lo escarnecido, amaldiçoado? Abramos a história dos povos antigos e os escritos dos seus filósofos e dos seus legisladores. "Não posso afirmar, diz o pai da história, Heródoto, que os Gregos receberam dos Egípcios o desprezo que têm pelo trabalho, porque encontro o mesmo desprezo estabelecido entre os Trácios, os Citas, os Persas e os Lídios; numa palavra, por que, na maior parte dos bárbaros, aqueles que aprendem as artes mecânicas e até mesmo os seus filhos são considerados como os últimos cidadãos.. - Todos os Gregos foram educados nestes princípios, 52 especialmente os Lacedemônios." "Em Atenas, os cidadãos eram verdadeiros nobres que só se deviam ocupar da defesa e da administração da comunidade, como os guerreiros selvagens de onde tinham origem. Devendo, portanto, estar livres todo o tempo para velar, com a sua força intelectual e física, pelos interesses da

República, encarregavam os escravos de todo o trabalho. O mesmo sucedia com a Lacedemônia, onde até as mulheres não deviam nem fiar nem tecer para não se furtarem à sua nobreza."53 Os Romanos só conhecem duas profissões nobres e livres, a agricultura e as armas; todos os cidadãos viviam por direito à custa do Tesouro, sem poderem ser obrigados a prover à sua subsistência por nenhum dos sordidae artes (designavam assim os misteres) que pertenciam por direito aos escravos. Brutus, o Velho, para levantar o povo, acusou sobretudo Tarquínio, o tirano, de ter feito dos artesãos e dos pedreiros cidadãos livres.54 Os filósofos antigos discutiam entre si sobre a origem das ideias, mas estavam de acordo se se tratava de abominar o trabalho. "A natureza, diz Platão, na sua utopia social, na sua Republica modelo, a natureza não fez nem o sapateiro nem o ferreiro; essas ocupações degradam as pessoas que as exercem, vis mercenários, miseráveis sem nome que pelo seu próprio estado são excluídos dos direitos políticos. Quanto aos mercadores acostumados a mentir e a enganar, só serão suportados na cidade como um mal necessário. O cidadão que se tiver aviltado pelo comércio será perseguido por esse delito. Se se provar a acusação, será condenado a um ano de prisão. A punição será duplicada em cada reincidência."55 No seu Econômico, Xenofonte escreve: "As pessoas que se dedicam aos trabalhos manuais nunca são elevadas a altos cargos e é razoável. Condenadas na sua grande parte a estar sentadas

todo o dia, algumas mesmo a suportar um fogo contínuo, não podem deixar de ter o corpo alterado e é muito difícil que o espírito não se ressinta disso." "Que pode sair de honroso de uma loja? - confessa Cícero - e o que é que o comércio pode produzir de honesto? Tudo o que se chama loja é indigno de um homem honesto [...] uma vez que os mercadores não podem ganhar sem mentir, e o que há de mais vergonhoso do que a mentira? Portanto, deve-se encarar como algo de baixo e de vil o mister de todos aqueles que vendem o seu esforço e a sua indústria, porque todo aquele que dá o seu trabalho por dinheiro vende-se a si mesmo e põe-se ao nível dos escravos."56 Proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, compreendeis a linguagem destes filósofos, que escondem de vós com cioso cuidado: - Um cidadão que dá o seu trabalho em troca de dinheiro degrada-se ao nível dos escravos, comete um crime, que merece anos de prisão? A hipocrisia cristã e o utilitarismo capitalista não tinham pervertido estes filósofos das Repúblicas antigas; dirigindose a homens livres, expunham ingenuamente o seu pensamento. Platão, Aristóteles, esses pensadores gigantes, cujos calcanhares os nossos Cousin, os nossos Caro, o nossos Simon só podem atingir pondo-se nas pontas dos pés, queriam que os cidadãos das suas Repúblicas ideais vivessem na maior ociosidade, porque, acrescentava Xenofonte, "o trabalho tira todo o tempo e com ele não há nenhum tempo livre para a República e para os amigos". Segundo Plutarco, o grande título de Licurgo, "o mais sábio dos homens" para admiração da posteridade, era ter concedido a ociosidade aos cidadãos da República proibindo-os de exercer qualquer mister57.

Mas, responderão os Bastiat, os Dupanloup, os Beaulieu e companhia da moral cristã e capitalista, esses pensadores, esses filósofos preconizavam a escravatura. - Perfeitamente, mas acaso podia ser de outro modo atendendo às condições econômicas e políticas da sua época? A guerra era o estado normal das sociedades antigas; o homem livre devia dedicar o seu tempo a discutir os assuntos de Estado e a velar pela sua defesa, os misteres eram então demasiado primitivos e demasiado grosseiros para que, ao praticá-los, se pudesse exercer a profissão de soldado e de cidadão; para possuírem guerreiros e cidadãos, os filósofos e os legisladores deviam tolerar os escravos nas Repúblicas heroicas. - Mas os moralistas e os economistas do capitalismo não preconizam o salariado, a escravatura moderna? E a que homens concede a escravatura capitalista a ociosidade? - Aos Rothschild, aos Schneider, às Sr.as Boucicaut, inúteis e prejudiciais, escravos dos seus vícios e dos seus criados. "O preconceito da escravatura dominava o espírito de Pitágoras e de Aristóteles", escreveu-se desdenhosamente; e no entanto Aristóteles previa que "se cada utensílio pudesse executar sem intimação, ou então por si só, a sua função própria, tal como as obras-primas de Dédalo se moviam por si mesmas ou tal como os tripés de Vulcano que se punham espontaneamente ao seu trabalho sagrado; se, por exemplo, as lançadeiras dos tecelões tecessem por si próprias, o chefe de oficina já não teria necessidade de ajudantes, nem o senhor de escravos". O sonho de Aristóteles é a nossa realidade. As nossas máquinas a vapor, com membros de aço, infatigáveis, de maravilhosa e inesgotável fecundidade, realizam por si próprias docilmente o seu trabalho sagrado; e, no entanto, o gênio dos grandes filósofos do capitalismo continua a ser dominado pelo preconceito do salariado, a pior das

escravaturas. Ainda não compreendem que a máquina é o redentor da humanidade, o Deus que resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o Deus que lhe dará tempos livres e a liberdade.

Apêndice Socialismo e Patriotismo O Sr. Renan, um dos homens espirituais e inteligentes da burguesia decrépita, disse um dia: "Onde o socialismo aparece, desaparece o patriotismo". É verdade. Os socialistas só têm uma pátria, a Revolução social. Todos os socialistas, sem distinção de nacionalidade, de raça e de cor, estão fraternalmente unidos. O sentimento profundo que os liga entre si e que os une é o ódio da iníqua sociedade capitalista e dos seus defensores, quer se chamem Ferry, Bismarck, Salisbury ou Katkoff. Mas quem dá aos burgueses derouledistas e boulangistas o direito de censurar aos socialistas o seu cosmopolitismo? No século passado, os burgueses revolucionários, que tinham de emancipar politicamente a sua classe e de defender a revolução burguesa contra a coligação internacional dos reis e dos nobres, proclamavam a fraternidade dos povos e armavam-se para libertar as nações da Europa. Todos os povos aclamavam com entusiasmo os primeiros exércitos republicanos. Era então a grande época, a França orgulhava-se de se dizer libertadora do gênero humano. Mas os tempos heroicos passaram e desde há muito que vieram os oportunistas. O sublime internacionalismo dos burgueses revolucionários transformou-se num repugnante cosmopolitismo de ladrões. A França capitalista envia os operários e os camponeses para a Argélia, para a Tunísia, para Madagáscar, para Tonquim, a fim de roubar e despojar nações semicivilizadas.

A finança moderna, que governa os países civilizados, é a mais alta expressão da pirataria internacional da burguesia. Todos os manejadores de dinheiro sem distinção de nacionalidade, de raça, de cor, estreitamente ligados entre si por interesses idênticos, pertencem à Internacional amarela, que oprime as nações dos dois mundos. Os Bontoux e os Rothschild podem ser de raças e de religiões diferentes, podem odiar-se cordialmente, podem maquinar a ruína das suas operações financeiras, mas entendem-se às mil maravilhas para se apoderarem dos capitais da nação francesa, para os levarem para a Áustria, para a Sérvia, para o Egito e para aí os utilizarem como instrumentos de exploração dos Austríacos, dos Sérvios e dos Egípcios. Pouco lhes importa a nacionalidade dos proletários que fazem frutificar os capitais que roubaram aos seus compatriotas. Os capitalistas só têm uma pátria: o amor do ouro. Subscreveram com solicitude os empréstimos dos governos inimigos do seu país, embora saibam que esse dinheiro, produzido e poupado pelos seus compatriotas, serve para fundir canhões, para derreter projéteis que perfurarão os peitos franceses e para preparar expedições bélicas que devastarão a França. Faça Bismarck amanhã um empréstimo de cinco mil milhões em condições tão vantajosas para os capitalistas e tão deploráveis para o governo prussiano como o empréstimo dos cinco mil milhões do Sr. Thiers, que milhares de capitalistas venderão o seu 3% francês para subscrever a esse empréstimo de 6% e milhões de francos da fortuna da França irão desaparecer nos cofres da Prússia. O ouro não tem pátria, vai para onde encontra um bom investimento. O internacionalismo dos industriais reveste uma outra forma. Percorreram o mundo à procura de populações operárias para explorar, para roubar. Capitalistas franceses vão à Espanha, à Itália, à Alemanha, à Argélia, à Ásia, à

América construir fábricas, escavar minas, fazer culturas para degradar com um trabalho longo e mal retribuído os proletários desses países. Da Inglaterra, da Bélgica, da Alemanha, estabelecem-se na França capitalistas que vêm aquartelar populações operárias nas suas galés industriais. Na França, todos os capitalistas industriais, sem distinção de nacionalidade, encontram junto do governo francês a mesma proteção contra os seus operários. O exército francês dito nacional porque oprime a nação, seja ele comandado por Mac Mahon, Boulanger ou Ferron, está sempre ao serviço dos vampiros patronais franceses, ingleses ou prussianos, desde que se trate de espadeirar e de fuzilar operários em greve. As minas de Anzin, esse campo de massacre dos grevistas, pertencem a capitalistas de todas as nações. O governo burguês, republicano ou monárquico, torna-se internacional desde que seja preciso proteger a prosperidade dos capitalistas. Em todas as nações de civilização capitalista, há duas classes: a classe que detém os meios de produção (terras, fábricas, minas, canais, máquinas, capital monetário, etc.) e a classe despojada de qualquer propriedade e que trabalha. A guerra é declarada entre estas duas classes: a guerra de morte. A classe proletária deve abolir a classe capitalista para estabelecer a ordem e a harmonia social. Os socialistas são os representantes dos interesses do proletariado; contra os socialistas estão unidos os governos de todas as nações. A polícia francesa espanca, prende e expulsa os socialistas russos e alemães por conta dos governos de São Petersburgo e de Berlim. Em 1871, Bismarck, contrariamente às cláusulas de Frankfurt, devolvia a Thiers os soldados prisioneiros para lhe permitir esmagar a Comuna socialista; e as tropas prussianas, acampadas à volta de Paris vencida por Versalhes, abatiam

os federados que tentavam fugir sob os sabres e as metralhadoras de Boulanger e de Gallifet. A guerra contra os socialistas é mais feroz e bárbara do que nunca o foi a guerra de uma nação contra a outra. Qual Blucher, qual Moltke, teria alguma vez juncado as ruas de Paris com tantos cadáveres como o exército de Versalhes onde reinava Thiers, dito o pai da pátria? Os soldados vencidos de Sedan, de Metz, eram transportados para a Alemanha, os federados vencidos eram arrastados para Versalhes à espadeirada e fuzilados no caminho. Terminada a guerra, os soldados franceses prisioneiros de guerra na Alemanha eram repatriados pelo governo prussiano; vencida a Comuna, o governo burguês de Versalhes começou as execuções e as deportações legais. Junho de 1848 e Maio de 1871 afogaram no sangue dos proletários o amor dos socialistas pela França capitalista. Mas existe uma França que os socialistas de todas as nações amam ardentemente, é a França revolucionária, a França que, unida à Rússia revolucionária, à Alemanha revolucionária, plantará na Europa a bandeira vermelha da República social.

Recordações da Vida Íntima de Karl Marx Vi Marx, pela primeira vez, em fevereiro de 1865. Num comício do Saint Martin's Hall acabava de fundar-se a Internacional. Eu chegava de Paris para tomar conhecimento dos progressos da novel organização. M. Toloin, hoje representante do Senado burguês e um de seus delegados na Conferencia de Berlim, dera-me uma carta de recomendação para ele. Eu tinha, então, 24 anos. Jamais esquecerei a impressão que me causou, desde os primeiros momentos em que o vi. Nessa época, achava-se Marx debilitado fisicamente. Trabalhava no primeiro volume de O Capital, ainda que o mesmo só aparecesse dois anos depois, isto é, em 1867. Temia não poder terminar a obra e procurava receber cordialmente os moços, a quem dizia: "É preciso haver homens que continuem, depois de mim, a propaganda comunista". Marx é desses seres insólitos, que ocupam o primeiro lugar na ciência e na vida publica. De tal maneira confinava com essas duas atividades, que era difícil saber o que se projetava em primeiro lugar: se o homem de ciência ou o lutador socialista. Considerando que toda a ciência deve ser cultivada por si mesma e que nas investigações cientificas não há resultados passageiros ou eventuais, era de opinião que se o homem de ciência não queria ocupar um plano secundário deveria participar incessante e ativamente da vida publica, sem fazer do seu gabinete um esconderijo, antes atirando-se às lutas sociais e políticas de sua época. "A ciência não deve significar apenas um prazer egoístico. Os que têm a sorte de consagrar-se aos

estudos científicos deverão ser os primeiros a pôr sua ciência a serviço da humanidade". "Trabalhar pela humanidade" era sua divisa. Ainda que se comovesse profundamente com os sofrimentos das classes trabalhadoras, não fora uma ordem de considerações sentimentais que o levara até ao comunismo. Impelira-o até ai as conclusões de seus estudos históricos e econômicos. Entendia que todo espírito imparcial, não influenciado pelo interesse privado ou pelos preconceitos de classes, deveria chegar a essas mesmas conclusões. Se não levava ideias preconcebidas para o estudo da revolução econômica e politica das sociedades humanas, ao escrever assumia, entretanto, a firme intenção de difundir o resultado de suas investigações como base cientifica do movimento socialista que, nessa época, se perdia entre as nuvens da utopia. Só se apresentava em publico em busca da vitoria do proletariado, que tem por missão histórica instaurar o comunismo logo que possa apoderar-se do poder publico. O papel histórico da burguesia no poder foi, do mesmo modo, quebrar as correntes que a ligavam ao feudalismo, porque este se opunha ao desenvolvimento da industria e da agricultura. Seu papel foi também, em consequência, o de estabelecer a livre circulação dos bens e dos homens, o contrato livre entre as empresas e os trabalhadores, a centralização dos instrumentos de produção e sua troca, sem se aperceber que, assim fazendo, preparava os elementos intelectuais e materiais da futura sociedade comunista. A atividade de Marx não dizia respeito apenas ao seu país de origem: "Sou cidadão do mundo — dizia — e trabalho onde me encontro". As perseguições, com efeito, que sofreu na França, na Bélgica e na Inglaterra, foram devidas à sua intervenção em acontecimentos locais. Vemos nele, contudo, menos que o agitador, o homem de ciência, aquele

que pude observar num quarto do Maitland Park Road, local por onde constantemente passavam os soldados avançados do mundo civilizado, que vinham esclarecer-se com o pai do pensamento socialista. O aposento de Marx possui seu sentido histórico. Era preciso conhecê-lo para chegar-se à intimidade da vida intelectual de Marx. Estava situado no primeiro pavimento e o largo balcão, por onde penetrava abundante luz, dava para o parque. De um e de outro lado do fogão, frente à janela, estavam as estantes repletas de livros, pacotes de jornais e manuscritos. Diante do fogão, de um dos lados da janela, viam-se duas mesas com papeis, livros e jornais. No centro da sala, na parte mais clara, havia uma mesa singela, de um metro de comprimento por 17 centímetros de largura e uma poltrona de madeira. Entre esta e as estantes, via-se um divã de couro, que Marx utilizava para descansar, de quando em quando. Sobre o fogão, havia também livros misturados com cigarros e maços de tabaco, retratos de suas filhas, de sua companheira, de Wilhelm Wolff e de Engels. Marx era grande fumador. "O Capital, dizia-me, jamais me dará o que já gastei em fumo enquanto o escrevia". Estragava muitos fósforos. De vez em quando, o cachimbo ou o cigarro se apagavam. E, por isto, desperdiçava incrível quantidade de fósforos. Não permitia que ninguém lhe arrumasse — ou, melhor, lhe desarrumasse — os papeis. Na realidade, essa desordem era apenas aparente. Tudo estava no seu devido lugar. Encontrava sempre o livro ou o papel que necessitasse. No decurso de uma conversa, podia mostrar o trecho a que se referisse o tema em debate, exibindo-o imediatamente ao interlocutor. Estava tão identificado com o ambiente de seu aposento, que os livros lhe obedeciam como partes do próprio corpo. Não ligava importância à estética. Volumes

de todo tamanho, misturados a folhetos, confundiam-se pitorescamente. Não os arrumava de acordo com as dimensões, mas levando em conta o assunto. Para Marx, os livros representavam instrumentos de trabalho e não objetos de luxo. Afirmava: "Os livros são meus escravos e hão de servir-me de acordo com meus desejos e com toda a pontualidade". Sem levar em conta o formato ou a beleza gráfica, maltratava os livros, dobrava-os em angulo, borrava-os e sublinhava as passagens históricas. Não era dado ao costume de anotar. Limitava-se a por um ponto de exclamação ou interrogação, quando o autor se desviava do verdadeiro sentido. Seu sistema de sublinhar permitia-lhe ir ao assunto sempre que julgasse oportuno. Tinha o costume de reler os livros, guardando os assuntos na memoria. Exercitou esta desde a adolescência. Seguindo os conselhos de Hegel, decorava versos escritos em língua que desconhecia. Sabia de cor as obras de Heine e Goethe e citava, de memoria, trechos desses autores. Lia as obras dos poetas europeus e, frequentemente, no texto original, relia Esquilo, a quem considerava, concomitantemente com Shakespeare, o gênio mais democrático de todos os tempos. Dedicou-se a estudar profundamente a obra de Shakespeare, por quem sentia admiração sem limites. Conhecia o caráter de todas as personagens criadas pelo dramaturgo inglês. Da sua devoção ao poeta de Hamlet compartilhava toda a família, tanto que suas filhas sabiam de cor os trabalhos de Shakespeare. Depois de 1848, querendo aperfeiçoar-se no conhecimento da língua inglesa, examinou e classificou as expressões de Shakespeare. Fez o mesmo com parte da obra do polemista inglês William Cobbert, a quem

grandemente se afeiçoara. Entre seus poetas favoritos, contavam-se Dante e Robert Burns. Tinha verdadeiro prazer em ouvir as filhas recitarem-lhe fragmentos de sátiras ou madrigais do poeta escocês. Cuvier, esse infatigável trabalhador a serviço da ciência, instalara, no Museu de Paris, que dirigia, vários laboratórios para seu uso pessoal. Cada laboratório destinava-se a um fim especial e continha livros e instrumentos adequados. Quando Cuvier se aborrecia com determinada pesquisa, passava a outro laboratório, ai continuando outra classe de estudo. Esta simples troca de atividade representava para ele saudável repouso. Marx, trabalhador tão incansável quanto Cuvier, não dispunha de meios para instalar tantos laboratórios. Sua forma de descansar era passear pelo quarto. Seus passos como que estavam impressos no tapete, já desgastado, desde a porta à janela. De quando em quando, estirava-se no diva e lia uma novela. Às vezes, lia duas ou três de uma vez, andando de um lado para outro. Como Darwin, era grande ledor de novelas. Tinha preferencia pelas do século XVIII, interessando-se, em particular, por Tom Jones, de Fielding. Os autores, seus contemporâneos, de que mais gostava, eram Paul de Kock, Charles Lever, Alexandre Dumas, pai, e Walter Scott. Considerava magistral a obra deste último Old Mortalitis. Admirava as narrações alegres e de aventuras. Cervantes e Balzac eram também autores de sua predileção. Em Dom Quixote via os derradeiros dias da cavalaria andante, que teve seus méritos transformados em objetos de chacotas e escarneio, por parte do mundo burguês. Sentia tal interesse por Balzac, que se propunha escrever uma obra crítica sobre A Comedia Humana, "logo que terminasse seus trabalhos sobre economia". Balzac não foi só o historiador da sociedade de seu tempo, mas também o criador de tipos proféticos que, na

época de Luís Felipe, existiam apenas em estado embrionário, só se desenvolvendo completamente ao tempo de Napoleão III. Marx lia com perfeição todas as línguas europeias e escrevia em três: alemão, francês e inglês, causando admiração aos donos dessas línguas. "Um idioma é arma em luta pela vida" — dizia muitas vezes. Tinha muita facilidade em adquirir conhecimentos de qualquer idioma. Aos cinquenta anos, começou a estudar o russo e, ainda que esta língua nada tivesse de comum com a etimologia das línguas que conhecia, em seis meses já lia trechos de escritores e poetas russos, como Gogol, Puchkin e Chtcherin. O que o levou a aprender o russo foi o desejo de ler diretamente os documentos oficiais que o Governo do Tzar não permitia circulassem pelas espantosas revelações que continham. Os amigos enviavam essa documentação a Marx, que, seguramente, era o único economista da Europa ocidental que estava em condições de a conhecer. Além dos poetas e novelistas, interessava-lhe a matemática. A álgebra era para ele como um reconstituinte moral e serviu-lhe de refugio nos momentos mais difíceis e dolorosos de sua agitada existência. Durante o tempo da enfermidade da mulher, foi obrigado a afastar-se de seus trabalhos científicos. E o único meio que encontrou, para subtrair-se à impressão que lhe causava a doença da companheira, foi refugiar-se no árido campo da matemática. Nesse doloroso período, escreveu um trabalho sobre calculo infinitesimal, obra de grande valor, a dar-se credito aos matemáticos que a compulsaram. Cogita-se, aliás, de sua publicação nas Obras Completas de Marx. No campo das matemáticas superiores, recuperava a atividade dialética em sua maior simplicidade logica. Era de opinião que uma ciência não podia verdadeiramente

desenvolver-se matemática.

senão

quando

admitia

o

estudo

da

A biblioteca de Marx, que se compunha de mais de mil volumes, reunidos cuidadosamente durante uma longa vida consagrada às investigações cientificas, não lhe bastava, tanto que recorria às bibliotecas publicas. Seus próprios adversários constatavam que visitava assiduamente o British Museum e reconheceram a extensão e a profundeza da sua ciência, não só na sua especialidade característica, a economia, como no que se refere à filosofia e à literatura universal. Ainda que se deitasse altas horas, levantava-se entre oito e nove da manhã, tomava café, lia os jornais e permanecia no seu gabinete de trabalho até a madrugada. Seu labor não era interrompido senão para comer e passear, de tarde, em Hampstead Heath, quando o tempo o permitia. De dia, repousava no canapé, durante mais ou menos duas horas. Na sua juventude, passava noites inteiras entregue ao trabalho, que chegou a ser para ele verdadeira paixão. De tal maneira se empolgava por ele, que, frequentemente, se esquecia de comer. Era preciso insistir para que se alimentasse. Logo que acabava de comer, atirava-se ao serviço. Comia pouco e, porque tivesse pouco apetite, estimulava-o com pratos condimentados de vários modos: presunto, pescado, caviar, pepinos. A pouca atividade do estomago contrastava com a da cabeça. Pelo cérebro sacrificava tudo. Pensar era sua alegria. Ouvi-o, muitas vezes, repetir as palavras de Hegel, o mestre de filosofia dos seus tempos da juventude; "O pensamento criminoso de um malvado é maior e mais nobre do que todas as maravilhas do céu". Tão continuo e esgotador era seu esforço de trabalho que, para o suportar, precisava de uma constituição privilegiada. E, na verdade, era bem forte, estatura alem da mediana,

ombros largos, peito bem desenvolvido e partes do corpo proporcionais, com exceção do tronco, nada em conformidade com as pernas, o que é muito frequente entre os da raça hebreia. Se, na juventude, houvesse feito exercícios físicos, teria sido extraordinariamente forte. O único esporte que praticava regularmente era andar a pé. Podia ficar subindo uma colina horas inteiras. Fazia isto pairando e fumando, sem demonstrar a menor fadiga. Mesmo trabalhando, ficava a passear no gabinete. Quando procurava assento era para anotar alguma coisa que lhe ditava o cérebro, sempre em perpetua atividade. Gostava de falar enquanto andava, parando, uma ou outra vez, ao surgir um tema interessante. Acompanhei-o anos inteiros em seus passeios por Hampstead Heath. Foi percorrendo os prados que adquiri meus conhecimentos de economia. Sem dar por isso, Marx desenvolvia perante mim o conteúdo de seu primeiro volume de O Capital na mesma ordem em que o escrevia. Geralmente anotava o que me dizia. No começo, eu tinha muita dificuldade em acompanhar o fio de seu pensamento, tão profundo e complexo. Infelizmente, perdi minhas notas. Depois da Comuna, a policia apoderou-se dos papeis que eu tinha em Paris e Bordeus e queimou-os. O que mais lastimo é ter perdido as anotações que fiz uma tarde, após ouvir, de Marx, com seu brilho peculiar, a genial teoria do desenvolvimento da sociedade humana. Como se um véu se rasgasse ante meus olhos, compreendi, pela primeira vez em minha vida, a logica da historia e as causas materiais das manifestações, aparentemente tão contraditórias, do desenvolvimento da sociedade e do pensamento humanos. Fiquei como atordoado e, durante anos, guardei a mais forte das impressões. O mesmo efeito causei aos socialistas de Madrid, quando reconstitui, ante eles, minhas poucas recordações a respeito da mais genial das teorias de Marx, a mais genial no gênero, sem duvida, que já brotou de cérebro humano.

Marx recordava-se de uma serie inesgotável de fatos históricos e naturais, assim como de teorias filosóficas e suas consequências, tudo integrado na valorização de seu intenso labor intelectual. Podiam perguntar a Marx as coisas mais variadas, na certeza de que obteriam respostas sempre oportunas. Seu cérebro era como caldeira em ebulição. Estava sempre pronto para as atividades mentais. O Capital revela uma inteligencia de vigor e riqueza extraordinários, ainda que, para aqueles que conheceram do perto o autor, nem O Capital, nem outra de suas obras, reflita a profundeza de seu gênio, que, de fato, estava muito acima do que escreveu. Trabalhei com ele. Apesar de não passar da categoria de amanuense, cheguei a compreender-lhe a maneira de pensar e escrever. O trabalho, para ele, era, ao mesmo tempo, fácil e difícil: fácil, porque os fatos e as ideias referentes ao tema se atropelavam em seu espirito, difícil, porque o excesso de referencias embaraçava a exposição das ideias. Dizia Vico: "As coisas só são corpos para Deus; para os homens, que só vêm o exterior, não passam de superfícies". Marx captava os fenômenos à maneira da divindade, à maneira de Vico. Não via apenas a dimensão superficial das coisas; penetrava nelas; estudava todos os elementos, as ações e reações reciprocas; isolava um por um dos elementos e pesquisava-lhes a evolução e o desenvolvimento. Em seguida, passava ao estudo do meio ambiente e observava efeitos e reciprocidades. Quando remontava à origem das coisas, procurava as ações e as repercussões mais longínquas. Não se detinha no fenômeno isolado, mas relacionava-o com o ambiente. Via a

complexidade do mundo em perpetua atividade e achava que a vitalidade desse mundo era expressa por suas ações e reações e no fato de sua continua transformação. Escritores da escola de Flaubert e dos Goncourt queixamse das dificuldades que a realidade apresenta para ser refletida com exatidão. O que eles pretendem fixar é a dimensão superficial de que nos fala Vico, é apenas a impressão produzida pelas coisas. A atividade literária de Flaubert e dos Goncourt é simples jogo infantil comparado com o trabalho de Marx. Era preciso extraordinária potencia intelectual para apreender a realidade e arte não menos extraordinária para descrevê-la. Marx nunca estava contente com o que fazia. Vivia sempre trocando impressões sobre o fato de ser a expressão inferior à concepção. Há um estudo de Balzac, vergonhosamente plagiado por Zola: A Obra Prima Desconhecida. Este estudo causou profunda impressão em Marx, porque descrevia sentimentos que ele experimentara. Trata-se de um pintor genial, atormentado pela necessidade de reproduzir as coisas tal como se lhe refletem no cérebro. Retoca cem cessar o quadro, ao ponto de o converter numa massa informe de coros, quando, no entanto, ele representa fielmente a realidade. Marx reunia as duas qualidades do pensador de gênio: sabia, às mil maravilhas, dissociar os diversas elementos componentes de um objeto e, descobrindo sua intima harmonia, reconstruí-lo, depois, em todos os seus detalhes e formas diferentes de desenvolvimento. Suas demonstrações não se apoiavam em abstrações como o acusam severos economistas. Não empregava o método dos geômetras que, depois de ter tirado suas definições do meio ambiente, fazem completo descaso do dito meio, quando se trata de deduzir consequências. Não se encontra em O Capital uma só definição, uma só formula. Defrontamo-nos, sim, com analises da maior sutileza, que, à primeira vista,

apresentam fugitivas tonalidades e escassa coloração. Marx começa comprovando o fato evidente de que a riqueza das sociedades, onde domina a produção capitalística, aparece transformada em imensa acumulação de mercadorias. As mercadorias — fato concreto e não abstração matemática — são, pois, o elemento, o nó da riqueza capitalística. Marx toma a mercadoria, dá-lhe voltas em todos os sentidos, penetra-lhe no interior, e, afinal, um atrás do outro, desdobra-lhe todos os segredos, dos quais os economistas oficiais não tinham a menor ideia, ainda que tais segredos sejam mais numerosos e profundos que os mistérios da religião católica. Depois de examinar as mercadorias em todos os seus aspectos, observa a relação que entre elas se estabelece com a troca. Chega logo até à produção e suas condições históricas. Estuda as diferentes formas da mercadoria e assinala como esta passou de uma a outra forma e como determinada maneira substituiu outra. A serie do desenvolvimento logico dos fenômenos está representada com arte tão perfeita, que quase se diria Marx a ter inventado, e, no entanto, foi a realidade que o inspirou e outra coisa não fez senão dar expressão ao movimento dialético da mercadoria. Marx trabalhava sempre com elevado critério. Não se utilizava jamais de um fato ou de uma data sem que se apoiasse nas fontes mais autorizadas. Não se satisfazia com informações de segunda mão; mas procurava as fontes, ainda que isto lhe custasse algum esforço. Era capaz de ir ao British Museum para comparar aos textos o fato mais insignificante. Seus críticos nunca puderam acusá-lo da menor inexatidão ou provar que, em alguma de suas demonstrações, se apoiasse em fatos que não resistissem ao mais rigoroso exame. O habito de ir às origens, levou-o a ler autores muito pouco conhecidos e por ninguém citados, a não ser por ele. O Capital contém tal quantidade de citações de autores desconhecidos, que não é para admirar

ver-se alguém tentado a crer que o autor assim o fez por prazer ou vaidade de fazer brilhar seus conhecimentos. No entanto, nada mais injusto: "Exerço a justiça histórica — dizia Marx — e dou a cada qual o que lhe pertence". Considerou, com efeito, que era de seu dever indicar o autor, por mais desconhecido ou insignificante que fosse, que fora o primeiro a expressar uma ideia ou a fazê-lo da melhor maneira. Sua consciência literária era tão severa como sua consciência cientifica. Não só jamais se basearia em fato de que não tivesse pleno conhecimento, como não se permitiria tocar em pontos de que não tivesse ciência exata. Só publicava alguma coisa após refazê-la tantas vezes quantas julgasse necessárias, antes de atingir a forma adequada. Não podia suportar a ideia de aparecer em publico com a ideia incompleta. Constituir-lhe-ia verdadeiro martírio ser obrigado a transmitir seus manuscritos antes do ultimo toque. Tão forte lhe era esse sentimento, que, um dia, me disse preferiria queimar seus manuscritos a deixálos incompletos. Seus métodos de trabalho impunham-lhe tarefas de que seus leitores não poderão formar a menor ideia Assim se explica que, para escrever aquelas vinte paginas de O Capital sobre a legislação trabalhista inglesa, se visse obrigado a estudar uma biblioteca de livros azuis, livros que continham os informes das comissões revisão e dos inspetores de fábricas da Inglaterra e da Escócia. Leu todos esses livros, do principio ao fim, segundo se pode atestar pelos numerosos sinais a lápis que neles fez. Achava que tais informes se enfileiravam entre os documentos mais importantes que existiam para o estudo do regime de produção capitalística e, a proposito, tinha opinião tão elevada dos homens que os elaboraram, que duvidava se pudesse encontrar em qualquer outro país da Europa "homens tão capazes e tão imparciais como os inspetores

de fabrica da Inglaterra". Não lhes regateou sua estima no prefacio de O Capital. Foi considerável o material encontrado por Marx naqueles livros azuis. A maior parte dos membros da Câmara dos Comuns, como da Câmara dos Lordes, entre os quais eram distribuídos, não utilizavam mais esses livros a não ser, por assim dizer, como alvos, sobre os quais atiravam, para medir, conforme a resistencia que a bala encontrasse, a força de percussão da arma. Houve quem vendesse tais livros a peso. Foi o melhor que fizeram, pois, permitiram a Marx, pelo menos, comprá-los a baixo preço, conjuntamente com um lote de papeis velhos, na casa de um comerciante de Long Acre, onde costumava ir. Dizia o professor Beesly, que Marx era o homem que melhor se utilizara dos papeis oficiais da Inglaterra, oferecendo-os ao conhecimento do mundo. Beesly dizia isto porque ignorava que, antes de 1845, Engels extraíra numerosos documentos dos livros azuis, com que enriqueceu sua obra sobre "A Situação das Classes Operarias na Inglaterra". ∗∗∗ Para conhecer e amar o coração que batia no nobre peito do sábio, era preciso vê-lo, nas tardes de domingo, quando, fechados os livros e cadernos, ficava entre os seus, rodeado de amigos. Nesses momentos, revelava-se o companheiro mais agradável que se podia imaginar. Estava sempre disposto a rir, cheio de alegria e bom humor. Seus olhos negros, sombreados por espessas sobrancelhas, brilhavam de contentamento e jovial ironia, toda vez que ouvia alguma frase adequada ou alguma coisa engenhosa. Era pai terno e indulgente. "Os filhos deviam educar os pais" — costumava dizer —. Nunca fez sentir aos filhos, que o amavam com loucura, a mais insignificante partícula de autoridade. Não lhes dava ordens, mas pedia-lhes as coisas por obsequio, persuadindo-os a não fazer aquilo que fosse

contrario aos seus desejos. Apesar disso, era obedecido como poucos pais o seriam. Suas filhas consideravam-no mais como companheiro. Não o chamavam de "pai" mas sim de "Mohd", apelido que lhe haviam dado por causa de sua cor mate, de sua barba e cabelos negros. Os membros da Liga dos Comunistas, anterior a 1848, chamavam-no, entretanto, de "pai Marx", apesar de ainda não ter trinta anos nessa época. Muitas vezes acontecia passar horas inteiras brincando com os filhos. Estes não esqueciam as batalha navais e os incêndios de frotas inteiras de barcos de papel, que Marx construía e tocava fogo, usando um grande cubo, com enorme entusiasmo dos pequenos. Suas filhas não lhe permitiam trabalhar aos domingos. Era um dia reservado para elas. Quando fazia bom tempo, toda a família ia passear no campo. Detinham-se nas pousadas do caminho para beber cerveja de gengibre e comer pão com queijo. Quando as filhas eram pequenas, procurava distraí-las, durante o passeio, contando-lhes intermináveis historias de fadas, historias que ele mesmo inventava durante a marcha a que se tornavam mais longas na razão direta da extensão do caminho. De maneira que as meninas, atentas aos contos, esqueciam as fadigas. Marx possuía incomparável veia poética. Foram poesias os seus primeiros trabalhos literários. Sua mulher guardava, cuidadosamente, as obras que ele traçara na mocidade, porem, não as mostrava a ninguém. Os pais de Marx haviam sonhado encaminhar o filho na carreira de homem de letras ou de professor. Mas o rapaz deixou-se levar pelo destino, consagrando todas as suas atividades aos serviços de agitação socialista e ao estudo de economia politica, ciência, na época, muito pouco admirada na Alemanha. Marx prometeu às filhas que escreveria para elas um drama sobre os Gracos. Infelizmente, não pôde cumprir a palavra. Seria interessante ver como ele, a quem chamavam "o cavaleiro da luta de

classes", trataria aquele terrível e grandioso episodio da luta de classes do mundo antigo. Marx não pôde realizar grande números de seus projetos. Propunha-se, por exemplo, escrever uma Logica e uma Historia da Filosofia, que haviam sido, quando moço, seus estudos favoritos. Precisaria viver cem anos para executar seus projetos literários e dar ao mundo uma insignificante parte dos inumeráveis tesouros guardados em seu privilegiado cérebro. Durante toda sua vida, sua mulher foi, na verdadeira acepção da palavra, uma boa companheira. Conheceram-se crianças e cresceram juntos. Marx ainda tinha dezessete anos, quando ficou noivo dela. Tiveram que esperar nove anos para casar-se, o que fizeram em 1845, não se separando mais, daí por diante. A senhora Marx morreu pouco tempo antes do marido. Ainda que nascida e educada no seio de uma família de aristocratas alemães, não havia pessoa que, mais do que ela, tivesse tão elevados conceitos de justiça. Não existiam para ela diferenças ou categorias sociais. Em sua casa e à sua mesa, recebia e fazia sentar operários com suas roupas de trabalho, tratando-os com a mesma cortesia com que trataria um príncipe. Grande numero de operários, de todos os países, gozaram de sua hospitalidade e, hoje, estou mesmo convencido de que alguns deles sempre ignoraram que quem os recebia com tanta simplicidade e franca cordialidade descendia, pelo lado materno, da família dos duques de Argyll, e que seu irmão fora ministro do rei da Prússia. A esposa de Marx não se preocupava muito com o mundo e suas vaidades. Abandonara tudo para acompanhar o marido e nunca, mesmo no meio da mais espantosa miséria, lamentou o que fizera.

Seu espirito era vivo e jovial. Manejava a pena com facilidade. As cartas que escreveu aos seus amigos são verdadeiras obras de arte e revelam originalidade e vivacidade espiritual. Receber uma carta da senhora Marx era grande fortuna. Jean-Phillipe Becker publicou muitas delas. Henri Heine, o impiedoso satírico, se temia a ironia de Marx, era, por outro lado, grande admirador da inteligência da mulher. Na época da estada do casal Marx em Paris, Heine visitava-o com assiduidade. Marx tinha opinião tão elevada a respeito da inteligencia e do espirito critico da mulher, que— dizia-me em 1866 — sempre a punha ao par de seus escritos e dava grande valor às suas observações. Era a senhora Marx quem passava a limpo os manuscritos de Marx, afim de os dar à publicidade. A senhora Marx teve muitos filhos. Três deles morreram na infância, durante o período de miséria que assoberbou o casal depois da revolução de 1848, quando, refugiado em Londres, teve que se abrigar nos casebres de Dean Street, Soho Square. Eu só conheci as três filhas. Quando, em 1865, fui, pela primeira vez, apresentado em casa de Marx, Leonor, a mais moça, era uma jovem encantadora, com temperamento de rapaz. Marx costumava dizer que a esposa se equivocara quanto ao sexo dessa filha, ao apresentá-la ao mundo como mulher. As outras moças constituíam a mais bela e harmoniosa contradição que se possa imaginar. A mais velha, a senhora Longuet, tinha, como o pai, a cor mate e negríssimos cabelos e olhos. Sua opulenta cabeleira brilhava como se, nela, o sol fizesse seu ocaso. Parecia-se muito com a mãe. Além das pessoas a que acabamos de nos referir, a família Marx contava com mais uma pessoa importante: a senhorinha Helena Demuth. Procedia de uma família de camponeses e era bem nova quando entrou para o serviço da senhora Marx, ainda muito antes do casamento desta. Helena Demuth não quis

abandonar a patroa mesmo depois do matrimônio com Marx. Acompanhou o casal em suas viagens pela Europa e compartilhou das expulsões e vicissitudes. Seu espirito domestico permitia-lhe atravessar as situações mais difíceis. Graças à sua habilidade e medidas de ordem e economia, a família Marx não se viu obrigada a privar-se do mínimo necessário à existência. Sabia fazer tudo: cozinhava, arrumava a casa, vestia as crianças, talhava as roupas e costurava com o auxilio da senhora Marx. Era, ao mesmo tempo, a economista e a governante da casa que dirigia. As meninas queriam-na como segunda mãe e Helena, por sua vez, sentia por elas carinho igual, o que lhe dava sobre as mesmas certa autoridade maternal. A senhora Marx tratava Helena como amiga íntima e Marx tinha por ela especial consideração: jogava o xadrez com ela e muitas vezes acontecia perder. A dedicação de Helena para com a família Marx era cega. Tudo que os Marx faziam estava certo e nada a convencia do contrario. Quem criticasse Marx já podia contar com a inimizade de Helena, como podia contar com sua maternal proteção quem merecesse as simpatias da família. Tutelava, por assim dizer, toda a família Marx. Helena sobreviveu ao casal. Em seguida, passou a trabalhar na casa de Engels, a quem conhecera na mocidade e a quem dedicava o afeto que sentia pelos Marx. Por outro lado, Engels era como um ramo da família Marx. As filhas deste chamavam-no de segundo pai; era o alter ego de Marx. Durante muito tempo, esses dois nomes gloriosos, que a historia reunirá para sempre, viveram ligados na Alemanha. Realizaram os dois, neste seculo, essa amizade ideal, que os poetas antigos celebravam. Desde adolescentes cresceram juntos e sempre viveram na mais intima comunhão de ideias e sentimentos. Participaram da mesma agitação revolucionaria e, quando em contacto, colaboraram nos mesmos atos. Seria provável que

trabalhassem em comum a vida inteira, se os acontecimentos não os obrigassem a viver separados cerca de vinte anos. Depois do fracasso da revolução de 1848, Engels viu-se forçado a seguir para Manchester, enquanto Marx permanecia em Londres. Continuaram, entretanto, a comunicar-se quase diariamente, emitindo opiniões sobre o que ia acontecendo, politica e economicamente, assim como dando conta de seus labores intelectuais. Logo que foi possível, Engels trocou Manchester por Londres, passando a morar apenas a uma distancia de dez minutos da casa de Marx. E, desde 1870, até a morte do amigo, Engels não passou um só dia que o não visse e, cada um, alternadamente, era encontrado na casa do outro. No dia em que Engels anunciou sua partida para Londres, houve verdadeira festa na casa de Marx. Não se falou noutra coisa muito tempo antes e muito tempo depois de sua chegada. Marx ficou tão impaciente que nem podia trabalhar. Os dois permaneceram a noite inteira bebendo e fumando, sendo pouco o tempo para contarem reciprocamente os fatos ocorridos desde a data em que se haviam separado. A opinião de Engels estava, para Marx, acima de qualquer outra, pois era o único homem que Marx considerava com capacidade para colaborar com ele. Engels representava o publico de Marx e, para este, não havia trabalho mais penoso do que conquistar Engels para suas ideias. Vi-o, uma vez, revolvendo livros e manuseando-os, de ponta a ponta, até encontrar referencia a certos fatos, que eram necessários exumar, para modificar a opinião de Engels, no que se referia a um ponto sem importância, de que já me esqueci, da cruzada dos albigenses. Considerava como triunfo conquistar a aquiescência de Engels.

Marx orgulhava-se do amigo. Descrevia-me com satisfação todas as qualidades morais e intelectuais de Engels. Levou-me a Manchester, exclusivamente para no apresentar. Enchia-se de admiração pela extraordinária variedade de conhecimentos científicos de Engels. Estava sempre a temer que o amigo fosse vitima, dalgum acidente, "Tenho medo — dizia-me — que lhe ocorra alguma desgraça, durante uma dessas caçadas em que tão apaixonadamente toma parte e que o levam a cavalgar e transpor os campos a galope". Marx era tão bom amigo como esposo e pai. Mas convêm afirmar que teve a felicidade de encontrar na mulher e nas filhas, em Helena e Engels, criaturas que mereciam ser amadas por um homem como ele. ∗∗∗ Marx, que começara como um dos chefes da burguesia radical, viu-se, logo após, abandonado, no momento em que sua oposição se tornou decisiva e tratado como inimigo ao fazer-se socialista. Depois de o insultarem, caluniarem e expulsarem de sua terra natal, organizaram contra ele e seus trabalhos a conspiração do silencio. O 18 Brumário, que permaneceu completamente ignorado, demonstrou que, de todos os historiadores e homens políticos do ano de 1848, Marx foi o unico que compreendeu e expôs claramente as verdadeiras causas e consequências do golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851. Nenhum só jornal burguês noticiou o aparecimento desse trabalho, apesar de sua oportunidade. O mesmo aconteceu com Miséria da Filosofia, resposta à Filosofia da Miséria, de Proudhon, assim como com a Critica da Economia Política. Mas essa conspiração do silencio, que durou 15 anos, deu em nada com a criação da Internacional e o aparecimento do primeiro volume do O Capital. A partir dessa ocasião, Marx não podia ser mais ignorado. A Internacional progredia

incessantemente e o eco de seus atos repercutiam no mundo inteiro. Quando Marx se colocara em ultimo plano, logo se descobriu que ele era o verdadeiro dirigente e criador de tudo aquilo. Na Alemanha, fundara-se o Partido Social Democrata, que, imediatamente, se transformou em valor positivo, numa força que Bismarck se esforçou por conquistar, antes que a mesma, consciente de seu poderio, passasse ao ataque. Schweizer, o partido de Lassalle, fez publicar uma serie de artigos de grande valor, através dos quais O Capital se tornou conhecido do publico proletário. Por proposta de Jean-Phillippe Becker, o Congresso da Internacional decidiu chamar a atenção dos socialistas de todos os países sobre O Capital, que era qualificado de "Bíblia da classe operaria". Depois da insurreição de 18 de março de 1871, em que se quis ver o dedo da Internacional, e depois do fracasso da Comuna, a Assembleia Geral da Internacional, ao defenderse dos ataques da imprensa burguesa de todos os países, tornou celebre o nome de, Marx em todo o mundo. Foi, então, reconhecido como o teórico irrefutável do socialismo cientifico e como o organizador do primeiro movimento operário internacional. O Capital viu a tornar-se o livro obrigatório dos socialistas. Todos os jornais socialistas e os operários popularizaram seus ensinamentos. Na América, durante uma greve monstro em Nova York, publicaram-se trechos e capítulos maciços desse livro, com que os operários eram animados a resistir e a compreender os fundamentos de suas reivindicações. O Capital foi traduzido para as principais línguas europeias: russo, francês e inglês. Publicaram-se resumos em alemão, italiano, francês, espanhol e holandês. Toda vez que, na Europa ou na América, alguém intentava combater uma tese, os economistas-socialistas encontravam, imediatamente, a resposta adequada com que lhe fechavam a boca. O Capital

é, hoje, realmente, aquilo que o Congresso da Internacional designava por "Bíblia operaria". As atividades que Marx dedicava ao movimento socialista não lhe davam folga para levar adiante seus trabalhos científicos. A morte da mulher e da filha mais velha, a senhora Longuet, deveria exercer decisiva influencia na marcha de seus trabalhos. Era profundo o afeto que Marx sentia pela esposa, de quem a beleza lhe fora orgulho e alegria e de quem a bondade e o espírito de sacrifício o haviam ajudado a suportar a miséria, eterna companheira de sua agitada vida de socialista revolucionário. A enfermidade, que acabou prostando sem vida a senhora Marx, deveria abreviar os dias do marido. Durante o tempo em que durou aquela longa e dolorosa doença, Marx, esgotado pelas emoções, vigílias, falta de ar e de exercícios, contraiu uma bronquite que ameaçava acabar com ele. A senhora Marx faleceu a 2 de dezembro de 1881, sem abjurar das ideias comunistas e materialistas que sempre teve em vida. Não se assustou com a morte. Quando sentiu que se aproximava o fim, exclamou: "Karl, as forças me abandonam". Estas foram suas ultimas palavras. Foi sepultada, a 5 de dezembro, no cemitério de Highgate, na secção dos "malditos" ("unconsacrated ground, terra profana). De acordo com os hábitos de toda sua vida em concomitância com os de Marx, evitaram-se solenidades no enterro. Só alguns amigos íntimos acompanharam os restos mortais à sua ultima morada. Antes de descer o caixão, Engels, o velho e querido amigo de Marx, pronunciou, à beira do tumulo, as seguintes palavras: "Meus amigos! A bondosa mulher que acabamos de acompanhar e que, agora, vai ser sepultada, nasceu em Salzwaedel, em 1814. Seu pai, o barão de Westphalen, foi, na qualidade de conselheiro do

Governo, enviado a Treves e aí estabeleceu relações intimas com a família Marx. Os meninos cresceram juntos e aquelas duas naturezas cheias de vida, se compreenderam. Quando Marx entrou para a Universidade, os dois futuros esposos estavam fortemente comprometidos. O casamento teve lugar em 1843, depois do desaparecimento da Gazeta Renana, na sua primeira fase, da qual Marx fora redator por algum tempo. A partir dessa data, Jenny Marx não só compartilhou do destino, dos trabalhos e das lutas do marido, como nisso tudo participou com o mais perfeito entendimento e a mais ardente paixão. "O jovem casal exilou-se voluntariamente em Paris, exílio que, mais tarde, se tornou forçado. O casal acabou sendo também vitima da impiedosa perseguição do Governo prussiano. Devo acrescentar, com lastima, que um homem como Alexandre Humboldt se rebaixou ao ponto de tomar parte na ordem de expulsão de Marx. Eles foram para Bruxelas. Sobreviveu a revolução de fevereiro. Durante os motins, que começaram em Bruxelas, não só Marx, mas também, sua esposa, foram encarcerados sem motivos que justificassem tão despótica medida. "O movimento revolucionário de 1848 fracassou no ano seguinte. Novamente o desterro, primeiro em Paris, e, logo depois, em Londres, em virtude de nova intervenção do Governo francês. Desta vez, para Jenny Marx, o desterro viu acompanhado de toda sorte de horrores. Suportou com estoicismo os sofrimentos que lhe causaram a morte de seus dois filhos e de uma filha. O que mais a consumiu, porém, foi a coalizão do Governo e da oposição burguesa, contando-se nesta não só democratas como liberais, afim de mais fortemente combaterem Marx. Fizeram-

no alvo das mais sórdidas calunias, das mais miseráveis que pudessem ser lançadas por qualquer imprensa, proibindo-se-lhe toda possibilidade de defesa, de maneira que se encontrava desarmado diante de tão desprezíveis inimigos. E isto durou muito tempo. "Mas não para sempre! As circunstancias novamente permitiram que o proletariado europeu se movimentasse em determinado sentido, desta vez de modo independente. A Internacional foi criada. A luta de classe do proletariado estendeu-se a todos os países e era o marido de Jenny o orientador desse movimento. Começou, então, um período que, para sua concretização, custara não poucos sofrimentos. As calunias atiradas copiosamente contra Marx dissiparam-se como falripas na tormenta; seus ensinamentos, que todos os partidos reacionários, do feudal ao democrata, se haviam esforçado lamentavelmente por sufocar, espalharam-se por todos os países civilizados e por todas as línguas. O movimento proletário, a que a senhora Marx dedicara toda sua existência, abalou o Velho Mundo até seus fundamentos. Da Rússia aos Estados Unidos, e dos Estados Unidos a espraiar-se por toda a América, a despeito de entraves e resistências, o progresso dessas ideias crescia dia a dia. E uma das alegrias mais intensas que experimentou foi a de constatar a força indomável de nossos operários alemães nas ultimas eleições do Reischstag. "Eis o que fez durante quarenta anos uma mulher, que possuía, tão viva e tão critica, uma inteligência politica, uma força de caráter e um espirito de sacrifício devotado a todos os camaradas em luta. Eis o que malevolamente se pretendeu omitir nos anais da imprensa contemporânea. Era preciso estar

presente para compreender tais fatos. De qualquer maneira, o que sei dizer é que, da mesma forma como as mulheres dos refugiados da Comuna dela se recordarão muito tempo, nós, igualmente, mais de uma vez nos lembraremos de seus conselhos, sempre razoáveis e sempre prudentes, valorosos sem fanfarronada, sem que, por isto, fizesse quaisquer concessões, pertinentes exclusivamente ao capitulo da honra. "Não tenho necessidade de falar de suas qualidades pessoais. Nossos amigos a conheciam e jamais a esquecerão. Se houver mulher, no mundo, que tivesse como ventura maior fazer a felicidade alheia, esta mulher foi Jenny Marx". Desde a morte de sua companheira, a vida de Marx não foi mais que uma cadeia de sofrimentos físicos e morais, que suportou estoicamente e se agravaram ainda mais com a morte da filha mais velha, a senhora Longuet, morte essa sobrevinda repentinamente um ano mais tarde. Desde esse momento, Marx perdeu de uma vez a saúde. Morreu, na sua mesa de trabalho, a 14 de março de 1883, com sessenta e cinco anos de idade.

Notas 1 - La Revue Scientifique, de 19 de Novembro de 1904, contém uma afirmação aos nossos assertos. Dando o snr. H. Pierrou conta de um livro sobre o Matérialisme Scientifique, reconhece que Deus é a causa residencial cômoda de tudo o inexplicável... que a crença teve por base suprir sempre a ciência... e que a ciência nada tem de comum com as crenças e a fé...; porém, que a religião não é absolutamente incompatível com a ciência, a condição, não obstante, de encerrá-la num compartimento perfeitamente inacessível. Protesta mesmo contra a série de sábios da nossa época, os quais não buscam na ciência mais do que provas da existência de Deus ou da veracidade da religião... ou contra o sofisma do que busca na ciência provas da não existência de Deus. 2 - A história da Economia é instrutiva. Enquanto a produção capitalista, ao princípio da sua evolução, não havia ainda transformado a massa dos burgueses em parasitas, os fisiocratas Adam Smith, Ricardo, etc, podiam estudar, sem prevenção, os fenômenos econômicos e investigar acerca das leis gerais da produção; todavia, desde que a máquina-ferramenta e o vapor só obrigam a concorrer com os assalariados à produção das riquezas, os economistas limitam-se a enumerar factos e estatísticas úteis às especulações do comércio e da Bolsa, sem pretender agrupá-los e classificá-los afim de tirar conclusões teóricas, que não poderiam deixar de ser perigosas ao predomínio de uma classe. E em vez de fazer ciência, combatem o socialismo; quiseram até refutar a teoria ricardiana do valor, porque a crítica socialista se apoderara dela.

3 - O espírito burguês foi em todos os tempos atormentado pela incerteza da fortuna, que a mitologia grega representava por meio de uma mulher posta de pé sobre uma roda dentada e com os olhos vendados. Teognis, o poeta mégaro do século V antes da era cristã, cujas poesias, segundo Isócrates, constituíam um livro de texto nas escolas gregas, dizia: Ninguém é causador de lucros ou perdas, pois que os deuses são os distribuidores das riquezas... Nós, homens, alimentamo-nos com pensamentos vãos, mas nada sabemos. Os deuses fazem chegar as coisas segundo a sua própria vontade. Júpiter faz inclinar a balança ora de um lado ora de outro, segundo julga conveniente, afim de que o rico de hoje nada tenha amanhã. Nenhum homem é rico ou pobre, nobre ou plebeu, sem a intervenção de Deus. Os autores do Eclesiastes, dos livros dos Salmos, dos Provérbios e de Job fazem desempenhar o mesmo papel que Jehovah. O poeta grego e os escritores judeus, formulam, pois, o pensamento burguês! Megara, como Corinto, sua rival, foi uma das principais cidades da antiga Grécia, onde se desenvolveram o comércio e a indústria. Formara-se nelas uma numerosa classe de artistas e de burgueses, os quais fomentavam guerras civis para se apossarem do poder. Uns sessenta anos antes do nascimento de Teognis, os democratas, depois de uma revolta vitoriosa aboliram as dívidas contraídas com os aristocratas e exigiram a devolução dos interesses percebidos. Membro, embora, da classe aristocrata e ainda que alimentando um ódio feroz contra os democratas, dos quais quisera beber o sangue negro, porque o haviam despojado dos seus bens e o desterraram, não pôde Teognis subtrair-se à influência do meio social burguês. Ele está impregnado destas ideias, destes sentimentos e até da mesma linguagem; assim, estabelece repetidas vezes comparações à cerca do ágio do ouro, a que os comerciantes se viam constantemente obrigados a recorrer para conhecer o valor das moedas e dos lingotes

dados em troca. Precisamente porque o poema de Teognis, assim como os livros do Antigo Testamento continham máximas de previsão burguesa era um livro de texto nas escolas da democrática Atenas. Deste livro, disse Xenofonte, que era um tratado sobre o homem, semelhante ao que escrevia um hábil cavaleiro sobre a arte de montar. 4 - Renán, cujo cultivado espírito fora tomado de misticismo, sentia simpatia manifesta pela forma impessoal da propriedade. Nos seus Souvenirs d’enfance (VI) conta que em vez de empregar os seus capitais na aquisição de uma propriedade imóvel, terra ou casa, preferiu comprar valores de Bolsa, que são coisas mais leves, mais frágeis, mais etéreas. O bilhete de Tesouro é um valor tão etéreo como as ações das companhias e os títulos da dívida pública. 5 - As crises impressionam tão vivamente os burgueses, que falam delas como se fossem seres corpóreos. O célebre humorista americano Artemus Ward conta que ouvindo aos jogadores da bolsa e aos industriais de Nova York afirmar tão positivamente que a crise tinha chegado, que estava ali, acreditou que se encontrava no salão e para ver a cara que faziam, alvitrou que a procurassem debaixo das mesas e das cadeiras. 6 - Teognis, assim como Job e como os autores dos livros do Antigo Testamento, veem-se embaraçados ante a dificuldade de conciliar as injustiças dos homens com a justiça de Deus. Oh! Filho de Saturno! —diz o poeta grego — (¿Como podes conceder a mesma sorte ao justo como ao injusto? ; Oh! Rei dos imortais! ¿É justo que o que não foi desonrado, o que não fez transgressão á lei, que não jurou falso e que foi sempre honrado, sofra?... O homem injusto que não teme a cólera dos homens nem dos Deuses, que

comete injustiças, está cheio de riquezas, — enquanto que o justo está despojado delas e se encontra submetido à dura pobreza... ¿Qual é o mortal que ante estas coisas temerá os Deuses? O salmista diz: — Os maus vivem com satisfação e adquirem fortunas de dia para dia... Quiz investigar este extremo, mas pareceu-me difícil... Ao ver a prosperidade dos maus, senti inveja dos insensatos (os que não temem o Eterno). (Salmos. LXXI1I-8-10). Não crendo na existência da alma depois da morte, Teognis e os judeus do Antigo Testamento, supõem que o injusto é castigado na terra, pois a sabedoria dos Deuses é superior, diz o moralista grego. Isto, porém, turva o espírito dos homens, pois não é no momento em que o ato é cometido quando os imortais se vingam da falta. Um, paga pessoalmente a sua dívida, outro condena seus filhos ao infortúnio. Segundo o cristianismo, os homens são castigados pelo pecado de Adão. 7 - No seu décimo e último livro de A República, Sócrates conta como coisa digna de crédito, a história de um armênio que, abandonado como morto durante dez dias no campo de batalha, ressuscitou como Jesus e explicou que vira no outro mundo as almas castigadas dez vezes por cada uma das injustiças cometidas durante a vida. Estas almas eram torturadas por homens horrorosos, que pareciam de fogo... os quais martirizavam os criminosos e os lançavam sobre esqueletos, etc. Os cristãos, que tiraram do sofisma platônico uma parte das suas ideias morais, só tiveram que completar e confeccionar a história de Sócrates para continuar o seu inferno embelezado de tão espantosos horrores. 8 - No dia imediato ao do escandaloso krach do Crédit Mobilier, de Paris, Emílio Pereira, que era o fundador e diretor, encontrava nos boulevards um amigo que fingia não conhecê-lo. Ao verificar isso, Pereira foi ao seu encontro e

increpou-o em alta voz: — Podeis saudar-me — disse ele — pois ainda me restam dois milhões! A interpelação, que traduzia perfeitamente o sentimento burguês, foi muito celebrada e apreciada. Pereira morreu cem vezes milionário, muito venerado e chorado. 9 - Tertuliano, em seu Apologético, e Santo Agostinho na Cidade de Deus, contam como factos certíssimos que Esculápio tinha ressuscitado alguns mortos, cujos nomes dão; que uma vestal trouxera água do Tibre numa cesta, que outra vestal rebocara um navio, etc. 10 - A riqueza não produz a saciedade, disse Teognis: —o homem que tem muitos bens esforça-se por ter o dobro. 11 - O Padre Nosso, a oração cristã por excelência (S. Mateus, V, 9-14) foi desnaturalizado de um modo extraordinário pelos tradutores. Os primeiros cristãos, para quem foi composto, eram uns pobres diabos, faltos de pão e com mais dívidas que pecados. Por isso, pediam ao Pai celestial que aplacasse a sua fome e que os desembaraçasse de seus credores, alguns dos quais, embora convertidos à nova fé, levavam-nos ante os tribunais dos pagãos, (Epístola de S. Jaime, II, 6). Ao rezar o Padre Nosso, também imploravam a Deus o pão cotidiano – panem quotidianum — e a abolição das suas dívidas – remite nobis debita nostra. Pedir a abolição das dívidas pode parecer aos capitalistas judeus e cristãos da nossa época uma reclamação abominável; não obstante, a sua abolição era coisa frequente no mundo antigo, pois na Judeia efetuava-se com toda a regularidade no ano do grande jubileu, e nas cidades gregas, todas as vezes que o partido democrático se apoderava do poder, depois de um tumulto, eram suprimidas também. Nas escavações praticadas em Éfeso, no ano de 1870, encontraram-se

inscrições que consignavam que um século antes de Jesus, os magistrados da cidade, na previsão que rebentasse uma guerra contra Mitridates, tinham abolido as dívidas, excepto aquelas que estavam garantidas por uma hipoteca. A promessa de abolir as dívidas era um dos melhores meios de propaganda do cristianismo primitivo. Num diálogo, Filopatris, atribuído a Luciano, mas cujo autor vivia em Alexandria no tempo de Juliano, o Apóstata, fala-se de predicadores cristãos que anunciavam que Cristo abolirá as dívidas privadas e públicas e reembolsará os credores. Como se vê, as dívidas eram perdoadas, como se pede no Padre Nosso, mas os credores serão reembolsados. Por isso, os primeiros cristãos não se inquietavam. Logo que os ricos começaram a ser numerosos entre os fieis, para não serem maçados nem obrigados a afastar-se perante a ameaça da perda dos seus interesses, começou a ser torturado o texto da oração dominical. Com efeito, Tertuliano escreveu um tratado para demonstrar que debita não havia de ser tomado como dívidas, no seu sentido literal, mas no sentido figurado de pecados, de ofensas, quer dizer, de dívidas para com Deus. Falsificando o texto chamado sagrado, os padres da Igreja e os tradutores adotaram a significação de pecados. Todavia, a tradução espanhola do Padre Nosso diz dívidas por debitas; a última revisão da tradução inglesa do Novo Testamento de 1880, estabelece a significação primitiva e diz debts (dívidas) em vez de pecados. As dívidas passaram a ser tão sagradas que nem o próprio Padre eterno poderia aboli-las. Por isso, os pastores ingleses que revisaram a tradução, não julgaram pertinente alterar o texto grego. A história da interpretação de debita põe a descoberto a evolução do cristianismo primitivo. 12 - O cristianismo é a religião dos parasitas e dos mendigos. É, por isso, a religião da classe burguesa, a classe parasitária por excelência.

13 - Entre os santos e os fiéis cujos corpos santificados, eram os membros de Cristo, návia fornicadores adúlteros, pederastas, ladrões, bêbados, avaros e difamadores; numa palavra, havia a gente mais crapulosa. É preciso aceitar está vergonhosa verdade, visto que S. Paulo a expõe no seu primeiro capítulo aos coríntios (VI, 10-11). O procedimento incorreto daquela gente, convertia as igrejas em lugares de libertinagem. Diz-se em toda a parte — escreve aos coríntios o apóstolo dos nativos — que a prostituição reina entre vós, e que é tal, que entre os nativos não se vê coisa semelhante. Um qualquer de vós dorme com a esposa de seu pai. (I, Cor. V. I). A predicação evangélica não melhorou os costumes dos fiéis da Judeia, não obstante os quatro séculos de moralização cristã. S, Gregório de Nisa, aconselha não, ir a Jerusalém, pois, muito longe de achá-la isenta de coisas más, esta terra que recebera a impressão da verdadeira vida, achou-a infestada de todas as impurezas imagináveis. Reinam nela a avareza, o adultério, o roubo, a idolatria, o envenenamento e, particularmente, o assassinato... O homicídio realiza-se aqui com mais facilidade que em parte alguma do mundo. Que devemos pensar de Renán e das suas fantasias idílicas! Lendo os Atos e os Capítulos dos Apóstolos, compreende-se o horror e a aversão que os primeiros cristãos inspiravam aos pagãos. Aqueles costumes dissolutos não podiam continuar; os apóstolos fizeram o possível por modificá-los, embora sem obter grandes resultados, pois constituíam uma das maiores atrações do Cristianismo nos seus tempos primitivos. Tais costumes só se foram modificando lentamente, embora persistissem em toda a sua impureza, em algumas seitas, entre elas a dos Cainitas, no século II da era cristã. Durante a reforma protestante, floresceram na Inglaterra numerosas seitas — as Familistas da Montanha, os Gríndletonianos, a Quinta Monarquia, etc, as quais professavam como princípio, que sendo os seus membros santos, estavam, por consequência, acima de toda a lei e de toda a moral

humana e divina, e, como se pecava somente pela crença de que se violava uma lei civil ou religiosa, os santos, que não conheciam nenhuma, não pecavam, nem mesmo cometendo as piores ações. 14 - Logo que o imperador Constantino reconheceu legalmente o Cristianismo, os bispos apenas se dedicaram a armar-se da força repressiva, primeiro arrancando aos imperadores cristãos a jurisdição eclesiástica sobre o clero e depois sobre os fiéis laicos. Estilação aboliu, sob o domínio de Horácio, imperador do Ocidente, este privilégio; porém, Olímpias, que lhe sucedeu no trono depois de tê-lo feito assassinar, restabeleceu-o no ano 408 e substituiu a ação dos magistrados pela da Igreja. Esta jurisdição inapelável colocava o bispo acima do governador da província. O eunuco Jovios, que o substituiu no favor imperial, restabeleceu-o de novo e impediu que se violentasse os heréticos e os pagãos com o fim de convertê-los ao catolicismo saído do concílio de Niceia. Este facto dará uma ideia do despotismo com que procediam os bispos: — Tendo ido os monges dum convento, com o seu superior à frente, pedir a Nestório, bispo de Constantinopla, explicações a respeito da interpretação da dupla natureza de Cristo, mandou-os açoitar e enviou-os ao magistrado acusando-os de o terem insultado. Não os tendo achado culpados, o magistrado enviou-os de novo ao bispo, o qual os fez novamente açoitar. 15 - Traduz-se próximo por vizinho, por se supor que S. Paulo trata de tornar extensivo este amor a todos os homens, embora nesta e noutras passagens, peça aos santos e aos fiéis que apenas tenham amizade aos que participam da sua mesma fé, com o que nada mais faz que interpretar e repetir a antiga lei hebraica que diz: — não exercerás vingança nem reservarás ódio aos filhos do teu

povo: — Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Eterno. (Levítico, XIX —18). É sabido que, para os israelitas, tal como para os povos da antiguidade, o estrangeiro é o inimigo. 16 - Esta citação, cuja tradução foi revisada com o texto grego, dá uma ideia das orgias e dos atos de libertinagem que se realizavam nas igrejas. O Mestre Pedro, que dera a morte a Ananias e a Safira por estes terem ficado com uma parte do dinheiro procedente da venda de seus bens, com o pretexto de que tinham mentido ao Senhor, contenta-se em recordar aos que rogavam nas igrejas, ao mesmo tempo que nelas fornicavam e se embriagavam, porque o fim do mundo está próximo. 17 - Os cristãos apoderavam-se da literatura e da filosofia gregas. Para contestar Rufino, que o critica pelas suas cópias dos autores profanos, S. Jerônimo desculpa-se dizendo que S. Paulo, no seu capítulo dedicado a Tito, cita um verso de Epinemida, em sua Primeira Parte aos coríntios uma passagem de Menandro e na disputa de Atenas um verso de Arato. 18 - A tradução latina, ampliando o texto grego, diz: — Se distribuir todos os meus bens para alimentar os pobres. Esta adição, fielmente reproduzida pelos tradutores das línguas modernas, autoriza o leitor a supor que os primeiros cristãos tinham o costume de dar indistintamente seus bens a todos os pobres, enquanto S. Paulo apenas fala dos que os distribuem aos santos das comunidades. 19 - Renán disse algures que as discussões dos Congressos e dos diários socialistas sobre pontos de doutrina recordam as questões das seitas cristãs sobre os dogmas da Igreja. Se é possível estabelecer comparações

entre os primeiros cristãos e os socialistas pelo ardor e pelo interesse demonstrado na disputa de questões que aos indiferentes parecem de pouca monta, não se pode comparar a sua moralidade. Há mais de trinta anos que milito nas filas do partido socialista internacional e nunca vi, na Europa e na América, que tenha sido preciso predicar aos socialistas a decência e a amizade, como o faziam os apóstolos aos santos e aos fiéis. Pelo contrário, os militantes do socialismo distinguem-se geralmente pelo espírito de fraternidade e pela dignidade da sua vida privada e pública. O Cristianismo primitivo e o Socialismo têm isto de comum: — São movimentos populares; assim, um militante socialista está melhor preparado para as suas lutas diárias, que um letrado com a sua vida de gabinete para compreender as paixões dos primeiros cristãos. 20 - Estrabão, que foi contemporâneo dos apóstolos, diz que os rodenses mostram-se muito zelosos do bem-estar do povo, embora a sua república não seja uma democracia: esperam, com isso, conter a classe tão numerosa dos pobres; além das distribuições periódicas, de trigo, feitas pelo Estado, os particulares enchem-nos de liberalidades. Esta liberalidade dos ricos, assume, amiúde, o caráter duma liturgia (serviço público). Vem por conta deles um abastecimento completo de viveres, de modo que o pobre tem sempre assegurada a sua subsistência(XIV). 21 - Augusto Thierry, na sua Histoire de Saint Jérôme páginas 480 e seguintes, conta o meio de que usou Santo Agostinho para arrancar o dinheiro a um rico romano de família patrícia, convertido ao cristianismo. Tendo-se dirigido Piniano e sua mulher com o bispo Alipius a Hipona, para falar com Santo Agostinho, — em que era bispo, — os curas da jurisdição episcopal organizaram um complot com o fim de se apoderarem dos seus bens. Estava-se à caça da gente

rica — disse A. Thierry — atraíam-na, rodeavam-na de perigos, e até, a míude, a violentavam. A vocação para o sacerdócio, considerada de longe como uma obra de iluminação do Espírito-divino, não era mais, ás vezes, do que um tenebroso cálculo de Satanás. Enquanto Santo Agostinho oficiava, rebentou um tumulto dentro da igreja. Ameaçados Piniano e sua mulher pelo populacho, tiveram que jurar não abandonar Hipona. Alipius, que fugira para não ser vítima dos fiéis, escreveu a seu amigo Santo Agostinho para lhe fazer sentir que um juramento arrancado pela força não era válido. O piedoso bispo manteve o contrário; que, quando se faz uma promessa, é necessário cumpri-la: — que violar o juramento é um crime e que interpretá-lo constitui outro crime. O desgraçado Piniano só foi perdoado pelo seu juramento depois de estar completamente espoliado dos seus haveres. Esta edificante história só é conhecida pelas cartas de Santo Agostinho. 22 - As eleições papais e episcopais davam sempre lugar a motins e a sangrentas lutas entre as facções rivais. A eleição do papa Damasco, no século IV, foi assinalada numa igreja pela morte de mais de 200 pessoas; a autoridade civil teve que intervir para dominar a populaça e para alcandorar o papa Ursin que aquela elegera e aos numerosos sacerdotes que este consagrara. 23 - A câmara apostólica do annonae qualquer que fosse a abundância ou a penúria de trigo, vendia-o aos padeiros à razão de 7 escudos romanos (37,10 francos) cada rúbio, que pesa 640 libras. Os lucros da casa annonaria compensaram os prejuízos até 1768; nesta época começou uma alta no preço do trigo, que foi aumentando até ao fim do século. O papado, temendo o descontentamento popular, continuou, a pesar destes prejuízos, vendendo o pão ao mesmo preço. Assim, quando em 1797 foi destituído o governo pontifical,

o annonae apresentava um déficit de cerca de um milhão e meio de francos. 24 - Carlos Martel, avô de Carlos Magno, que fundou o reinado temporal do papado, roubava os bens da Igreja para distribui-los pelos seus guerreiros. Os reis feudais pensavam que as riquezas eclesiásticas estavam amealhadas para socorrer as suas necessidades urgentes e atentavam contra os mosteiros e igrejas como atentavam contra os judeus. O clero, porém, recebia tanto—disse Montesquieu a este respeito — que, seguramente, em três gerações reais, deuse-lhes muitas vezes mais o valor igual a todos os bens do reino. 25 - Os trapenses, que se saúdam com o macabro irmão, morrer devemos, e que, para distrair-se cavam a-sua própria cova, são trapaceiros tão hábeis como ferventes cristãos. Eis um exemplo do seu procedimento: — O mosteiro da Grande Trapa, de Saligny, comprava, em 1894, a uma viúva chamada Arnoulin, pelo preço de 6.200 francos, uma extensão de terreno de 12 hectares, denominado a Grande Bruyère de Prépotin. Os monges, que por intermédio dum irmão da comunidade, hábil químico e geólogo, sabiam que a propriedade continha ricos jazigos de caolino e de areia para vidro, oonstituiram imediatamente, depois da compra, uma sociedade anônima, com o capital de dois milhões — do qual se destinava para os 12 hectares de terra uma soma de 800.000 francos, representada por 16.000 acções de 500 francos! A senhora Arnoulin, que ignorava as riquezas contidas na sua antiga propriedade — vendida por baixo preço — pediu aos trapenses uma parte do seu valor maior. Os piedosos velhacos negaram-se a aceder. Então, a referida senhora levou o assunto ao tribunal de Mortagne, o qual lhe deu razão, calculando que o sub-solo da Grande Bruyère continha no momento da venda um valor

importante, o qual não fora tomado em conta no preço da aquisição. Todavia, aqueles homens de Deus, não se submeteram àquele parecer dos homens e apelaram para a audiência de Caen, que confirmou a decisão do tribunal de Mortagne. Enraivecidos, por não terem podido consumar a extorsão, tiveram que pagar o terreno em conformidade com a avaliação dos peritos. 26 - J. B. Say expõe com, grande satisfação, na sua Economia Política (Livro I e XVII) a superioridade da banana. Um mesmo terreno produz 106.000 quilogramas de bananas, 2.400 quilogramas de batatas e 800 de trigo. Uma média de um hectare semeado de bananas, do México, pode nutrir mais de 60 indivíduos, enquanto que o mesmo terreno, semeado de trigo, na Europa, nutre apenas duas pessoas. A batata cultivada na Itália e na Inglaterra, a partir do século XVII, não entrou no consumo popular até à primeira metade do século XIX. 27 - Descartes, As Paixões da Alma. 28 - Doutor Beddoe, Memoirs of the Anthropological Society; Ch. Darwin, Descent of man. 29 - Os exploradores europeus param espantados diante da beleza física e da atitude orgulhosa dos homens das tribos nômades primitivas, não manchadas pelo que Paeppig chamava o "bafo envenenado da civilização". Ao falar dos aborígenes das ilhas da Oceania, lord George Champbell escreve: "No mundo não há povo que impressione mais à primeira vista. A sua pele lisa e de um tom ligeiramente acobreado, os seus cabelos louros e ondulados, o seu belo e alegre rosto, numa palavra, toda a sua pessoa formava uma nova e esplêndida amostra do genus homo; o seu aspecto físico dava a impressão de uma

raça superior à nossa." Os civilizados da Roma antiga, os Césares, os Tácitos, contemplavam com a mesma admiração os germanos das tribos comunistas que invadiam o Império Romano. - Tal como Tácito, Salviano, o padre do século V, a que chamaram o mestre dos bispos, apresentava os bárbaros como exemplo aos civilizados e aos cristãos: "Somos impudicos no meio do bárbaros, que são mais castos do que nós. Mais do que isso, os bárbaros ficam magoados com a nossa lascívia, os Godos não suportam que haja entre eles debochados da sua nação; entre eles, só os Romanos, pelo triste privilégio da sua nacionalidade e do seu nome, têm o direito de serem impuros. [A pederastia estava então em grande moda entre os pagãos e os cristãos...] Os oprimidos vão para junto dos bárbaros procurar a humanidade e um abrigo" (De Gubernatione Dei). - A velha civilização e o cristianismo nascente corromperam os bárbaros do velho mundo, tal como o cristianismo envelhecido e a moderna civilização capitalista corrompem os selvagens do novo mundo. O Sr. F. le Play, cujo talento de observador devemos reconhecer, mesmo quando se repelem as suas conclusões sociológicas, manchadas de prudhommismo filantrópico e cristão, diz no seu livro Les Ouvriers européens ("Os Operários Europeus") (1885): "A propensão dos Bachkires para a preguiça [os Bachkires são pastores seminômades da vertente asiática dos Urais], as distrações da vida nômade, os hábitos de meditação que fazem nascer nos indivíduos mais dotados comunicam por vezes a estes uma distinção de maneiras, uma subtileza de inteligência e de Juízo que raramente se notam no mesmo nível social numa civilização mais desenvolvida... O que mais lhes repugna são os trabalhos agrícolas; fazem tudo exceto aceitar a profissão de agricultor." De fato, a agricultura é a primeira manifestação do trabalho servil na humanidade. Segundo a tradição bíblica, o primeiro criminoso, Caim, é um agricultor.

30 - O provérbio espanhol diz: Descansar es salud (Descansar é saúde). 31 - Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade. Virgílio, Bucolicas. 32 - Evangelho segundo São Mateus, cap. VI. 33 - Um ensaio sobre o negócio e o comércio. 34 - No primeiro congresso de beneficência realizado em Bruxelas, em 1857, um dos mais ricos manufatureiros de Marquette, perto de Lilie, o Sr. Scrive, aplaudido pelos membros do congresso, contava com a mais nobre satisfação de um dever cumprido: "Introduzimos alguns meios de distração para as crianças. Ensinamo-lhe a cantar durante o trabalho, a contar também enquanto trabalham: isto distrai-as e faz-lhes aceitar com coragem aquelas doze horas de trabalho que são necessárias para lhes proporcionar os meios de existência" - Doze horas de trabalho, e que trabalho! impostas a crianças que não têm doze anos! - Os materialistas lamentarão sempre que não haja um inferno para nele pôr estes cristãos, esses filantropos, carrascos da infância! 35 - Discurso pronunciado na Sociedade Internacional de Estudos Práticos de Economia Social de Paris em Maio de 1863 e publicado em L'Economiste français da mesma época. 36 - L.-R. Villermé, Tableau de l'État Physique et Moral des Ouvriers dans les Fabriques de Coton, de Laine et de Soie (Quadro do Estado Físico e Moral dos Operários nas Fábricas de Algodão, de Lá e de Seda), 1840. Não era pelo fato dos

Koechlin e de outros fabricantes alsacianos serem republicanos, patriotas e filantropos protestantes que tratavam desta maneira os seus operários; porque Blanqui, o acadêmico, Reybaud, o protótipo de Jerôme Paturot, e Jules Simon, o mestre Jacques político, constataram as mesmas amenidades para a classe operária nos fabricantes muito católicos e muito monárquicos de Lilie e de Lyon. Trata-se de virtudes capitalistas que se harmonizam às mil maravilhas com todas as convicções políticas e religiosas. 37 - Os índios das tribos guerreiras do Brasil matam os seus doentes e os seus velhos; testemunham a sua amizade acabando com uma vida que já não é animada por combates, por festas, por danças. Todos os povos primitivos deram aos seus estas provas de afeição: os Messagetas do mar Cáspio (Heródoto), bem como os Wens da Alemanha e os Celtas da Gália. Nas igrejas da Suécia, ainda há pouco se conservavam davas chamadas davas familiares que serviam para libertar os parentes das tristezas da velhice. Como estão degenerados os proletários modernos para aceitarem com paciência as terríveis misérias do trabalho de fábrica! 38 - Ovaliste: operário que torna as sedas ovais. 39 - Moulineur: operário que fia e torce mecanicamente Os fios de seda crua. 40 - No congresso industrial realizado em Berlim em 21 de Janeiro de 1879, avaliava-se em 568 milhares de francos o prejuízo que a indústria de ferro tinha sofrido na Alemanha durante a última crise. 41 - La Justice, do Sr. Clemenceau, na sua parte financeira, dizia a 6 de Abril de 1880: "Ouvimos defender a

opinião de que, à excepção da Prússia, os milhares da guerra de 1870 foram igualmente perdidos pela França, e isto sob a forma de empréstimos periódica mente emitidos para o equilíbrio dos orçamentos estrangeiros; esta é também a nossa opinião." Avalia-se em cinco mil milhões o prejuízo dos capitais ingleses nos empréstimos às Repúblicas da América do Sul. Os trabalhadores franceses não só produziram os cinco mil milhões pagos ao Sr. Bismarck, como continuam a servir os juros da indenização de guerra aos Oluvier, aos Girardin, aos Bazaine e outros portadores de títulos de rendimento que originaram a guerra e a derrota. No entanto, resta-lhes um prêmio de consolação: esses milhões não ocasionarão guerra de recuperação. 42 - No Antigo Regime, as leis da Igreja garantiam ao trabalhador 90 dias de descanso (52 domingos e 38 dias feriados) durante os quais era estritamente proibido trabalhar. Era o grande crime do catolicismo, a causa principal da irreligião da burguesia industrial e comercial. Na Revolução, mal esta foi senhora da situação, aboliu os dias feriados e substituiu a semana de sete dias pela de dez. Libertou os operários do jugo da Igreja para melhor os submeter ao jugo do trabalho. O ódio pelos dias feriados só aparece quando a moderna burguesia industrial e comerciante ganha corpo, entre os séculos XV e XVI. Henrique IV pediu a sua redução ao Papa; este recusou, porque "uma das heresias que correm atualmente diz respeito às festas" (carta do cardeal d'Ossat). Mas, em 1666, Perefixe, arcebispo de Paris suprimiu 17 na sua diocese. O protestantismo, que era a religião cristã adaptada às novas necessidades industriais e comerciais da burguesia, preocupou-se menos com o descanso popular; destronou no céu os santos para abolir na terra as suas festas. A reforma religiosa e o livre pensamento filosófico

não eram senão pretextos que permitiram à burguesia jesuíta e voraz escamotear os dias de festa do popular. 43 - Estas festas pantagruélicas duravam semanas. Don Rodrigo de Lara ganha a sua noiva expulsando os Mouros de Calatrava-a-velha e o Romancero narra que: Las bodas fueron en Burgos, / Las tornabodas en Salas: / En bodas y tornabodas / Passaron siete semanas / Tantas vienen de las gentes, / Que no caben por las plazas... (As bodas foram em Burgos, o regresso das bodas em Salas; em bodas e regresso de bodas passaram sete semanas; acorrem tantas pessoas que não cabem nas praças...) Os homens destas bodas de sete semanas eram os heroicos soldados das guerras da independência. 44 - Karl Marx, O Capital, t. III. 45 - "A proporção segundo a qual a população de um pais é empregada como doméstica, ao serviço das classes abastadas, indica o seu progresso em riqueza nacional e em civilização.)" (R. M. Martin, Ireland before and after the Union, 1818.) Gambetta, que negava a questão social, depois de já não ser advogado pobre do Café Procope, queria certamente referir-se a essa classe doméstica sempre crescente quando ele reclamava o advento das novas camadas sociais. 46 - Dois exemplos: o governo inglês, para agradar aos países indianos que, apesar das fomes periódicas que desolam o país, teimam em cultivar a dormideira em vez de arroz ou de trigo, viu-se obrigado a empreender guerras sangrentas para impor ao governo chinês a livre introdução do ópio indiano. Os selvagens da Polinésia, apesar da mortalidade que daí adveio, viram-se obrigados a vestiremse e a embriagarem-se à inglesa para consumirem os

produtos das destilarias da Escócia e das tecelagens de Manchester. 47 - Paul Leroy-Beaulieu, La Question Ouvriere au XIV siecle, 1872. 48 - Eis, segundo o célebre estatístico R. Giffen, do Departamento de Estatística de Londres, a progressão crescente da riqueza nacional da Inglaterra e da Irlanda em: 1814 - ela era de 55 mil milhões de francos / 1865- 162,5 mil milhões de francos / 1875- 212,5 mil milhões de francos 49 - Louis Reybaud, Le Coton, son Régime, ses Problêmes, 1863. 50 - Poissy: Prisão Central. 51 - Simulam ser Curius e vivem como nas Bacanais. 52 - Heródoto, t. II, trad. Larcher, 1876. 53 - Biot, De l'Abolition de l'Esclavage Ancien en Occident, 1840. 54 - Tito Lívio, L. 1. 55 - Platão, Repúblicas, 1. V. 56 - Cícero, Des Devoirs, 1, tít. II, cap. XLII. 57 - Platão, República, V e As Leis, III; Aristóteles, Política, II e VII; Xenofontes, Econômico, IV e VI; Plutarco, Vida de Licurgo.

Table of Contents Biografia Porque Crê em Deus a Burguesia Duas Palavras para Servirem de Prefácio Capitulo I: Religiosidade da Burguesia e Irreligiosidade do Proletariado Capitulo II: Origens Naturais da Ideia de Deus no Selvagem Capitulo III: Origens Econômicas da Crença em Deus da Burguesia Capitulo IV: Evolução da Ideia de Deus Capitulo V: Causas da Irreligião do Proletariado Apêndice: A Caridade O Direito à Preguiça Introdução Capitulo I: Um Dogma Desastroso Capitulo II: Bençãos do Trabalho Capitulo III: O Que se Segue à Superprodução Capitulo IV: Para Nova Música Nova Canção Apêndice Apêndice Socialismo e Patriotismo Recordações da Vida Íntima de Karl Marx Notas