O que é pesquisa em Direito?

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Diretoria FGV

CARLOS IVAN SIMONSEN LEAL - Presidente da FGV FRANCISCO OSWALDO NEVES DORNELLES - Vice-Presidente MANOEL FERNANDO T HOMPSON MOITA - Vice-Presidente MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE - Vice­ Presidente JOSÉ AFFONSO BARBOSA - Diretor G eral

EDESP ARY OSWALDO MATTOS FILHO - Diretor da FGV-EDESP ANTONIO ANGARITA - Vice-diretor da FGV-EDESP PAULO CLARINDO GOLOSCHMIUI" - Vice-diretor Administrativo da FGV-EDESP JEAN PAULVEIGA DA ROCHA - Coordenador de Metodologia de Ensino FGV-EDESP JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ - Coordenador de Pesquisas e Publicações ESDRAS BORGES COSTA - Assessor da Diretoria - FGV-EDESP

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer melo ou processo, especialmente por sistemas gr.lflcos, mlcrofllmlcos. fotográficos, reprográficos. fonográficos, vldeogr.lflcos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a Inclusão de qualquer pane desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições apllcam-se também às características gr.lflcas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (arr. 181 e parágrafos do Código Penal), com pena de prlslo e multa, busca e apreenslo e Indenizações diversas (ares. 101 a 110 da Lei 9,610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

MARCOS NOBRE JUDITH MARTINS COSTA CARLOS ARI SUNDFELD SÉRGIO ADORNO OscAR VILHENA V1EIRA PERSIO ARIDA

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR, JOSÉ REINALDO LIMA LOPES RONALDO PORTO MACEDO )R, THEODOMIRO DIAS NETO CASSIO SCARPINELLA BUENO PAULA FORGIONI

CALIXTO SALOMÃO FILHO

O QUE E PESQUISA EM DIREITO?

Editora Quartier Latin do Brasil São Paulo, verão de 2005 quartierlatin@quartier la tin. art. br

Editora Quartier Latln do Brasil Rua Santo Amaro, 349 - Centro - São Paulo Editor: Vinicius Vieira Formado em Admlnlstraç/lo de Empresas pela Fundaçllo Getú//o Vargas - FGV-SP

Editora de Texto: Prlsclla Tanaca Mestranda em Direito na PLJC-SP

Produção Editorial: Mônica A, Guedes

SUMÁRIO

Formada em Letras pela FFLCH-LJSP

Arte: Wlldlney DI Masl Designer Gráfico pela Fac. Oswnldo Cmz

Elaboração das Notas: Ana Mara Machado

Nobre, Marcos et a/li. O que é pesquisa em Direito? - São Paulo: Quartler Latln, 2005.

Título

1. Metodologia Jurídica - Brasil 1.

Índice para catálogo sistemático: 1. Brasil: Metodologia Jurídica

www.quartlerlatln.art.br

Nota de Abertura ....................................................... 7 Prefácio ................................................................... 13

�apítulo I O que é pesquisa em Direito? .................................. Parte I Marcos Nobre ... : ........................................ Parte 1.1 Judith Martins Costa ................................... Parte 1.2 Carlos Ari Sundfeld ..................................... Capítulo li A relação entre dogmática Jurídica e pesquisa ........ Parte 2 Tércio Sampaio Ferraz Jr. ............................ Parte 2.1 José Reinaldo Lima Lopes ............................ Parte 2.2 Ronaldo Porto Macedo Jr. ............................

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Capítulo Ili Direito e Ciências Humanas .................................. 107 Parte 3 Sérgio Adorno ............................................ 109 Parte 3. 1 Oscar Vilhena Vieira ................................. 119 Capítulo IV Direito e Economia ................................................ 139 Parte 4 Persio Arida ............................................... 141 Parte 4.1 Calixto Salomão Filho ................................ 151 Capítulo V As áreas do Direito e especificidades em

matéria de pesquisa ............................................... 1 73 Parte 5 Theodomiro Dias Neto ............................... 1 75 Parte 5.1 Cassio Scarplnella Bueno ........................... 180 Parte 5.2 Paula Forglonl ........................................... J 86

NOTA DE ABERTURA

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O evento "O que é pesquisa em direito?" realizado em 2002 marcou a trajetória de Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. A experiência do Simpósio, agora publicado sob a forma de livro, foi crudal para orientar as grandes linhas que pautam a atuação da Coordenadoria de Pesquisas e Publicações. A agudeza e a profundidade dos debates ocorridos na ocasião fez nas­ cer na Diretoria da Escola a convicção de que tais ativi­ dades devem caracterizar-se pela crítica sem concessões exercitada em tempo integral por um grupo de profissio­ nais voltado exclusivamente para a pesquisa e para a docência. A adoção de tal regime de trabalho tem como objeti­ vo proporcionar aos nossos professores tempo e disposi­ ção para a pesquisa de todas as fontes relevantes para as questões de que tratam, especialmente a jurisprudência, muitas vezes negligenciada pela Doutrina nacional e dei­ xada de lado no ensino do Direito. Além disso, estes pro­ fissionais terão a disponibilidade de meios e o tempo hábil para o envolvimento em debates interdisciplinares. A Escola de Direito da FGV não tem medido esforços para formar um quadro de pesquisadores de qualidade, dotado de condições materiais para o desenvolvimento de seus projetos de pesquisa num ambiente de crítica aberta.

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Tais esforços começam a mostrar seus primeiros resulta­ dos, que certamente se multiplicarão em curto prazo. Estamos convictos de que a exposição pública de nossas atividades em um ambiente de crítica é o melhor caminho para o desenvolvimento de um trabalho científi­ co de alto nível. Por este motivo, todas as reuniões em que são discutidos produtos de nossa atividade acadêmica têm contado com a participação de convid�dos externos à Escola, entre professores, estudantes e profissionais do mercado. Além disso, a Escola desenvolve uma política voltada para a publicação de sua produção expondo-se ao crivo da comunidade acadêmica brasileira por meio dos Cader­ nos Direito GV e uma coletânea de teses, dissertações e trabalhos monográficos. Num futuro próximo, será lançada nossa revista de Direito e uma linha de livros didáticos que incorporarão as metodologias de ensino que utiliza­ mos no curso de graduação. A divergência de opiniões é central para que a Escola de Direito de São Paulo não desenvolva maneirismos que limitem a capacidade de crítica e autocrítica de seus pro­ fissionais. A pluralidade de pontos de vista e abordagens teóricas presentes no ambiente de nossa Escola têm con­ tribuído para o bom nível do trabalho intelectual que co­ meçamos a realizar. Aguardamos com ansiedade os comentários e críticas de nossos eventuais leitores com a certeza de que serão material precioso para o prossegui­ mento de nossas atividades. A pesquisa é um trabalho sem fim. Como nos explicou Max Weber, as ciências da cultura se orientam para a ma-

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téria que estudam conforme um determinado modo de re­ presentar os problemas. Este modo de representar tende a se perpetuar. Os princípios metodológicos são transforma­ dos em um fim em si mesmo, deixando-se de controlar o válor cognitivo do aparelho conceituai estabelecido. "Mas um dia o significado dos pontos de vista adotados Irrefletidamente se torna Incerto e o caminho se perde no crepúsculo. A luz dos gran­ des problemas culturais desloca-se para além. Então, a ciência também muda seu cenário e o seu aparelho conceituai e fita o fluxo do devir das alturas do pensamento. Segue a rota dos astros que unicamente pode dar sentido e rumo ao seu trabalho: '(... ) 'desperta o novo impulso; lanço-me para sorver sua luz eterna; diante de mim o dia, atrás a noite, Acima de mim o céu, abaixo as ondas."' (Fausto, de Goethe)

São Paulo, 10 de novembro de 2004. José Rodrigo Rodriguez Coordenador de Pesquisas e Publicações da Escola de Direito da Fundação Getúllo Vargas

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No início de 2002, Roberto Mangabeira Unger (Di­ reito/Harvard) escreveu para Fundação Getúlio Vargas o ensaio: "Uma Nova Faculdade de Direito no Brasi/" 1• Era o início do projeto de criação da Escola de Direito do Rio de Janeiro e da Escola de Direito de São Paulo da FGV. Esse texto, que circulou nas mesas de discussão das equipes convidadas para elaborar os projetos acadêmicos dessas escolas propunha uma revisão não só do ensino do direi­ to, mas uma crítica à noção de "ciência do direito" que estaria na base da formação de gerações e gerações de juristas no Brasil. Nesse texto, Unger aponta uma con­ tradição e um paradoxo. A contradição: o "formalismo doutrinário" sempre "res­ surgiria das cinzas, como fênix"; ou na forma do "estudo das idéias jurídicas como um sistema que se pudesse ana­ lisar por métodos quase dedutivos e a exposição do con­ teúdo do direito positivo: o direito tal como construído por legisladores e juízes" (''antigo formalismo"); ou na forma da "concepção de que as normas devem ser analisadas com vistas aos valores, aos interesses, às políticas públicas subjacentes, concedendo ao jurista a tarefa de melhorar o h ttp://www.law.harvard.edu/facu I ty /u nger /po rtuguese/ proje.php

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direito ao interpretá-lo, reportando-o a Interesses mais gerais e diminuindo a influência das concessões aos 'iobbies'" ("novo formalismo"). Entre o antigo e o novo formalismo, o ensino Jurídico continuaria, afirmava Unger, distante tanto de um pensa­ mento verdadeiramente teórico quanto de uma utilidade profissional imediata. "Sem servir nem à teoria nem à prá­ tica, resvala na tentativa de casar um amontoado de re­ gras - conteúdo do direito positivo - com um sistema fossilizado de conceitos doutrinários". O paradoxo: em países onde a orientação dos alunos seria menos dirigida para a profissionalização, o conteú­ do do ensino seria mais técnico. E nos Estados Unidos, onde a orientação do aluno é claramente dirigida para a profissionalização, as faculdades de direito mais influen­ tes teriam o ensino menos técnico e mais aberto do mun­ do a outras áreas do conhecimento. O Brasil, segundo Unger, pareceria ser uma exceção: "parece combinar hoje a base relativamente estreita - a maioria dos alunos a caminho de carreiras de direito - e o conteúdo relativa­ mente estreito, em transição do formalismo à antiga para o neoformalismo, a discussão estilizada de políticas pú­ blicas com base para a interpretação do direito". Não cabe apontar aqui a "receita" proposta em segui-. da por Unger ou no que teriam se tornado os projetos das duas "Novas Escolas". Contudo, a crítica ao formalismo ju­ rídico e a crítica ao ensino com objetivos profissionalizantes com sentido meramente "técnico" parece ter na base uma crítica à noção de "ciência do direito" ou uma crítica à noção de "ciência do direito" tal como concebida pelas "vertentes"

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do formalismo Jurídico. Esse sentido crítico esteve na base das reflexões acadêmicas no processo de constituição da área de pesquisa da Escola de Direito de São Paulo da Fun­ dação Getúlio Vargas (FGV-EDESP). Nesse contexto, em dezembro de 2002 a FGV-EDESP organizou em parceria com o Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) o seminário "O que é pesquisa em Direito?". Marcos Nobre (Fi­ losofia/UNICAMP) escreveu um texto especialmente para o evento, publicado posteriormente na revista Novos Estu­ dos do CEBRAP: "Apontamentos sobre a Pesquisa em Direito no Bras//"2• Esse texto teve uma função estratégica no proces­ so de tentativa de criação de algo novo em matéria de re­ flexão sobre pesquisa Jurídica no Brasil, tendo a FGV-EDESP como "laboratório" a ser institucionalizado. Contudo, para além do sentido estratégico do seminá­ rio, Marcos Nobre parece ter escolhido tocar, de forma di­ reta, porém sutil, dado o propósito do texto em questão, nas tensões que estão presentes na base do debate sobre o formalismo Jurídico. Escolheu, dialogando com o Tércio Sampaio Ferraz (Direito/LISP), enfrentar a distinção entre "técnica Jurídica" e "ciência do direito" diretamente relacio­ nada à distinção entre "doutrina" e "dogmática". Fez a críti­ ca ao conceito de "decidibilidade" que Sampaio Ferraz utilizaria para caracterizar a especificidade do direito en­ quanto ciência. O "estatuto tecnológico" do direito na ar­ gumentação de Sampaio Ferraz poderia ter como 2

Marcos Nobre, uApontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil" in Novos Estudos, n º 66, Jufüo de 2003. pp. 145-155.

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conseqüência - assumindo a "decidibilidade" como critério distintivo - uma perspectiva de produção "científica" ("dogmática" enquanto sistematização da "doutrina") li­ gada à idéia de pesquisa e ensino com objetivos meramen­ te "profissionalizantes". A relação entre pesquisa e ensino esteve, desde o iní­ cio, ao meu ver, no cerne da preocupação do projeto de criação da FGV-EDESP. Seja na forma da criação de uma área de metodologia de ensino, seja na forma da criação de um núcleo de pesquisa jurídica inovadora, a FGV-EDESP parece ter procurado lançar uma escola de direito na qual pesquisa e ensino não estão dissociadas, seguindo o pa­ drão Internacional de excelência acadêmica que deu certo nas outras áreas das ciências sociais. Nesse contexto, a Inovação na forma e no conteúdo da pesquisa e do ensino em Direito no Brasil foi tematizada no seminário "O que é pesquisa em Direito?", agora acessí­ vel por meio dessa publicação que contém a transcrição das apresentações que foram feitas por diferentes intelec­ tuais representantes do pensamento jurídico e político­ soclal brasileiro, bem como dos debates ocorridos durante o evento. A relação de textos e dos debates transcritos segue exatamente a estrutura do seminário. O leitor poderá acompanhar reflexões que dizem respeito aos problemas em matéria de pesquisa Jurídica no plano teórico, mas, acima de tudo, reflexões sobre o que poderia significar um novo modelo de pesquisa Jurídica e de ensino do di­ reito. Assim, no horizonte, esse seminário proporcionou, ao meu ver, mais do que um discussão sobre pesquisa.

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Proporcionou a discussão pública do projeto de criação de uma nova escola de Direito no Brasil. Como o leitor poderá verificar, as apresentações e debates permitem ampla discussão e reflexão sobre o formalismo Jurídico, o sentido do ensino com objetivos meramente profissionalizantes, a pesquisa Jurídica limi­ tada exclusivamente a aspectos de decidibilidade, o senti­ do de uma carreira de novo tipo no regime integral de dedicação ao ensino e à pesquisa, a abertura e inter-rela­ ção da pesquisa jurídica com outras áreas do conheci­ mento, a função social da dogmática jurídica e a especificidade do Direito em relação a outras áreas das ciências sociais, e a abertura da pesquisa jurídica na com­ preensão do funcionamento das instituições (políticas, econômicas, etc). Como o leitor poderá avaliar, o tratamento da "dogmática Jurídica" em matéria de pesquisa é discutido. Mas "dogmática" para além dos "formalismos jurídicos"; uma concepção alargada de "dogmática" ligada a cor­ rentes de pensamento teórico com pretensão de "expli­ car" ou "compreender" o funcionamento do sistema jurídico e das Instituições e das formas e relações sociais enquanto fenômenos jurídicos. A realização desse evento não teria sido possível sem o apolo e entusiasmo permanentes dos professores Ary Oswaldo Mattos Filho, Antonio Angarita e Esdras Borges. Mar�os Nobre, Ricardo Terra e os colegas do Núcleo Di­ reito e Democracia do CEBRAP, muitos deles hoje pesqui­ sadores e professores da FGV-EDESP, marcaram as discussões acadêmicas que precederam à realização do

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evento. Tiago Cortez e Jean Paul Rocha organizaram o evento juntamente comigo, sendo figuras fundamentais para que o evento pudesse ocorrer. Os participantes reu­ nidos no evento produziram trabalhos e participaram ln­ tensamen te dos debates, marcando o sentido e o momento histórico de sua realização . No entanto, o re­ sultado do evento ora publicado na forma de livro só foi possível pelo empenho e senslbllldade de José Rodrigo. Rodriguez, atual coordenador da área de pesquisas e publicações da FGV-EDESP, a quem agradeço pelo con­ vite para escrever este prefácio.

São Paulo, 31 de outubro de 2004 Paulo Mattos

CAPÍTULO

O

I

QUE É PESQUISA EM DIREITO?

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PARTE

I

MARCOS NOBRE Professor de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas Pesquisador do CEBRAP A pergunta que tomarei como ponto de partida e como fio condutor da minha exposição é a seguinte: o que per­ mite explicar que o Direito, como disciplina acadêmica, não tenha acompanhado o vertiginoso crescimento quali­ tativo da pesquisa em Ciências Humanas no Brasil, nos últimos 30 anos? Essa pergunta tem, basicamente, dois pressupostos. Em primeiro lugar, a pesquisa científica em Ciências Humanas, no País, atingiu patamares compará­ veis aos Internacionais em· muitas disciplinas, e isto se deve à bem-sucedida implantação de um sistema de pós­ graduação no Brasil. Não demonstrarei este pressupos­ to, porque acho evidente o salto que deu nosso País, principalmente nas três últimas décadas, mesmo em com­ paração com a China e a Índia - reconhecidos pela alta produção científica. Em segundo lugar, pressuponho que o Direito não conta entre essas disciplinas em que a pes"-•;

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quisa atingiu patamares de excelência Internacionais, embora acredite que ele acompanhou quantitativamente esse crescimento e, em segundo lugar, houve, claro, pro­ gressos qualitativos. Dei-me o trabalho de acompanhar manuais de alguns ramos do Direito de 20 ou 40 anos atrás. É espantoso como melhorou, mas não tanto quanto nas outras dlsclplinas das Ciências Humanas. Tentarei explicar por que há essa relativa Indigência do Direito brasileiro quando comparado a outras matérias. A minha hipótese é que esse atraso está ligado a dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, o Isolamento em relação a outras disciplinas das Ciências Humanas e uma peculiar confusão entre prática profissional e pesquisa aca­ dêmica. É da combinação destes dois fatores que irá re­ sultar uma relação extremamente precária com as disciplinas das Ciências Humanas, como na concepção de o que é o objeto da Ciência do Direito. Esses dois fatores, que discutirei a partir de agora, me levarão a analisar qual é a natureza e o objeto de investigação do Direito, tal qual os vejo. Mas esta é uma exposição para lançar problemas, para que possamos ver se esse diagnóstico que apresento agora é plausível ou não. Digo, Já de saída, que tenho dois nortes nesse exame dos dois fatores - que Julgo fundamentais. Primeiramente, acho que desse diagnóstico tiramos que o modelo de cur­ so de Direito, tal como em vigor no Brasil até hoje, está fadado à obsolescência (ou ultrapassado). Ou os cursos de Direito se reformam - e isto só será possível se houver uma concepção de pesquisa nova e renovada no Direito-, ou se tornarão irrelevantes. Neste segundo caso, o resul

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tado será que sem o Direito não conseguiremos entender o Brasil e, por conseguinte, haverá uma ausência marcante no que chamo de consórcio das Ciências Humanas. Passo, então, ao exame do primeiro dos fatores, que é a relação do Direito com as outras dlsclpllnas das Ciên­ cias Humanas. Esse isolamento que apontei, em relação a outras matérias nos últimos 30 anos, se deve a dois ele­ mentos principais. O Direito é mais antigo que as outras disciplinas, não só no Brasil, e este princípio de antigüi­ dade fez com que estivesse diretamente ligado ao poder político do País, no século XIX, podendo se arrogar a con­ dição de "disciplina-rainha" das Ciências Humanas - até 1980, condição da Sociologia. Hoje, temos uma situação bastante diferenciada em re­ lação às ciências e, se pudéssemos falar de alguma hegemonia, falaríamos em uma hegemonia da Economia. Mas passamos a ver que o Direito desempenha um papel lnterna­ clonalmente fundamental na organização da pauta das Ci­ ências Humanas. Infelizmente, estamos ficando para trás no Brasil e, se não fizermos um movimento rápido, deixaremos de alcançar esse novo arranjo mundial das Ciências Huma­ nas. Acho Importante destacar o fato de a Universidade Na­ cional Desenvolvimentlsta - verdadeira Universidade Temporã - ser Implantada contra o Direito, como se ele condensasse todos os defeitos a serem superados. Não me importa se Isto é real ou não, mas, somente, reconstituir como era entendido por seus atores. Quais eram os obstá­ culos a serem vencidos? A falta de rigor científico, um ecletismo teórico e uma Inadmissível falta de Independência em relação à moral e à política - o dado elementar da univer-

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sidade em seu projeto moderno. Essa situação levou, então, a um entrincheiramento mútuo; criou-se um fosso entre o Direito e as demais disciplinas humanas no Brasil. Tanto que vimos, durante décadas, os projetos interdisciplinares das Ciências Humanas não contando com teóricos do Direito em seus quadros. Do outro lado, o Direito só considerava as Ciências Humanas na medida em que traziam algum ele­ mento para reflexão propriamente Jurídica. Não havia um diálogo efetivo. Os dois lados perderam com esse isolamen­ to, mas, realizando um balanço, parece que o Direito perdeu mais em termos de avanço e de pesquisa. Há um exemplo que parece cabal do fracasso em inte­ grar o Direito às demais Ciências Humanas - experiência do CEPED' e esforço do professor David Trubek, uma figu­ ra de referência nos atuais debates europeus e americanos. Acredito que essa situação de bloqueio objetivo, ou muro entre o Direito e as outras ciências, começa a se modifi­ car na década de 90 por duas razões. Primeiro, porque o sistema universitário brasileiro Já está implantado e, logo, Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito - Criado em 1966, o CEPED é um órgão da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Foi criado com a finalidade de aperfeiçoar o ensino jurídico e a realizar pesquisas e estudos especializados no campo do Direito. Dirigido desde a sua fundação pelo Professor Calo Tácito de Sá Viana Pereira de Vasconcelos, professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado da Guanabara, o CEPED reuniu um grupo de professores brasileiros Insatisfeitos com o es­ tado do ensino e da pesquisa em Direito no Brasil. A figura central nas atividades do CEPED foi o então Consultor Jurídi­ co da Agência do Desenvolvimento Internacional do Governo dos Estados Unidos do Brasil (USAID), Professor David Trubek, hoje na Universidade de Wlsconsln.

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o Direito não representa mais um "perigo". O bacharelismo não consegue mais contaminar as Ciências Humanas, que Já estão vacinadas. Há, também, a experiência da Consti­ tuição de 1 988. Esses fatores, conjugados, são suficientes para chamar a atenção dos teóricos das Ciências Sociais quanto à ausência do Direito em suas reflexões, durante décadas, formando uma lacuna a ser_ suprimida. Assim, a partir da década de 90, cientistas sociais, filósofos e his­ toriadores passam a se interessar de uma maneira acen­ tuada pelo Direito. Mas este interesse não alterou a situação, e continuamos a ter um fosso. Quando os teóri­ cos do Direito são chamados para um consórcio interdisciplinar, eles vêm mais como consultores, para dizer qual o ponto de vista do Direito, que propriamente visando construir um diálogo, como ocorreu com outras disciplinas das Ciências Humanas. Existem especialida­ des, a perspectiva antropológica é diferente da sociológi­ ca, e ainda assim criou-se u m clima de debate Interdisciplinar que não conseguimos reproduzir no Di­ reito. Penso que no caso dos teóricos do Direito, mantém­ se a perspectiva da Sociologia, da Antropologia, da História e da Economia como merecedoras de Importân­ cia apenas quando tangem a reflexão propriamente Jurl­ dlca. Mas é claro que, aí, há problemas de tradução, Justamente porque a universidade brasileira foi bem-su­ cedida em sua implantação. O problema maior é definir o padrão de pesquisa das Ciências Sociais e o padrão de pesquisa em Direito, e como os dois estão Institucionalizados quanto a ensino e pesquisa. Esse relativo Isolamento do Direito não pcide ser separa-

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do do que chamo de uma peculiar confusão entre prática profissional e elaboração teórica. Acho que explica esse isolamento, além das características fundamentais da Im­ plantação da universidade brasileira e dos elementos his­ tóricos, um bloqueio objetivo existente para que não se Implante no Direito uma concepção nova de pesquisa. O que bloqueia esta concepção é a confusão, que começo a expor agora. Inicio esta explicação contando uma história, atra­ vés de um teórico americano chamado David Luban2 • No Início de seu livro, chamado "Legal Modernlsm" 3, ele re­ lata a Indicação do juiz Robert Bork para a Suprema Cor­ te Americana. Ao relatar isto, o que Importa a Luban é o testemunho de um conhecido professor de Yale, George Priest, favorável a Bork, então conhecido por suas críti­ cas virulentas ao direito de privacidade e toda a legisla­ ção que diz respeito aos direitos civis. Houve, então, uma campanha pública intensa contra a Indicação do juiz, e Prlest depôs a seu favor. Seu depoimento Ilustra multo bem o ponto que pre­ tendo ressaltar aqui. Disse ele: "de fato, os trabalhos de Bork na área acadêmica revelam posições extremadas, mas não têm nenhuma Importância ao cargo para o qual foi apontado porque, como magistrado, deve ser moderado 2

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Professor de Direito da Universidade de Maryland e pesqui­ sador do lnstltute for Phllosophy and Publlc Pollcy. Publicou Lawyers and Justice: An Ethlcal Study. Prlnceton Unlverslty Press, 1988. LUBAN, David. Legal Modernlsm. Estados Unidos: Unlverslty of Michigan Press, 1994.

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e respeitador da autoridade da Jurisprudência". Ao colo­ car-se a favor da nomeação do Bork à Suprema Corte, ele se coloca contra a renovação de seu contrato em Yale. Quan­ do Bork se torna Juiz moderado, ele não pode mais ser pro­ fessor, porque, nesse momento, ele atrapalhou seu julgamento acadêmico. Essa maneira de raciocinar do maglstrado atrapalha a boa produção acadêmica. Era claro que o Priest sabia o efeito de suas palavras - a maioria dos teóricos do Direito enxerga uma distância entre a prática Jurídica e a elaboração teórica, e procuram justamente su­ primir esta lacuna entre os dois, exaltando, desta forma, esta distinção. Felizmente, a produção acadêmica difere da produção do magistrado e da prática Jurídica em geral. Com esse exemplo, gostaria de ressaltar que, no caso brasllelro, vivenciamos uma confusão entre prática Jurí­ dica, teoria Jurídica e ensino Jurídico. Particularmente, e considerando as minhas experiências em docência de pri­ meiro ano - recolhidas no Núcleo de Direito e Democra­ cia -, acredito que se costuma ensinar aos alunos que o mundo se regula pelos manuais de Direito, e não o con­ trário. Dificilmente o aluno Iniciará aceitando esta condi­ ção; entretanto, no segundo ano Já achará natural que o mundo se regule pelos manuais. Bem, meu assunto·não será o ensino- a não ser multo Indiretamente. Eu me �oncentrarel na pesquisa, através do mercado de trabalho no Direito. Aqueles que criticaram as escolas de Direito do Brasll por não prepararem o aluno para o mercado de trabalho andaram equivocados. Acredi­ to que, sim, as melhores escolas preparavam os alunos para que enfrentassem o mercado e desempenhassem as fun-



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ções do Judiciário. O problema é que o mercado do Direito nunca teve padrões muito exigentes. E isso gerou a crise da década de 90, porque Isto se torna um problema real quan­ do o País abre sua economia: estabeleceram,-se novos pa­ drões de competência e novas exigências, a níveis Internacionais - o que explica o boom de LLMs. A abertura levou a uma exigência de qualificação cada vez maior. Acho que não tínhamos um mercado exigente porque, em boa medida, as escolas de Direito são as responsáveis pelo ní­ vel do mercado de trabalho. Se esse modelo de curso de Direito se mostra lnsatlsfatórlo na década de 90, a abertu­ ra deverá impor mudanças radicais no mercado de traba­ lho, por mais estatal que seja. Por isso, acho que as escolas não estão preparadas para fornecer profissionais à altura. Como no final do século XIX, a elite estudará no exterior; mas em vez de Coimbra, as universidades serão as dos Estados Unidos. As origens históricas desse amálgama de prática jurí­ dica, teoria e ensino Jurídico são complexas, e não preten­ do analisar mais profundamente. Fiz essa pequena Introdução somente para tornar um pouco mais claro o que direi. Há um ponto fundamental para o entendimento de como esse amálgama se dá. O padrão de o que é pesquisa em Direito no Brasil passou a ser o parecer, que se tornou o modelo de pesquisa. Dizer que o parecer desempenha o papel de modelo e que é decisivo na produção desse amálgama de prática, teoria e ensino Jurídicos, significa dizer que o parecer não é tomado aqui como uma peça ju­ rídica entre outras, mas como um formato padronizado de argumentação, que hoje passa por um quase sinônimo de

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produção acadêmica na área de Direito - que penso estar na base da maioria dos trabalhos universitários, atualmen­ te. O modelo padrão do parecer goza desse papel de desta­ que porque supostamente se distanciaria da atividade advocatícia mais Imediata, embora eu Imagine que, na ver­ dade, reforça a sua produção. Quando um advogado ou estagiário de Direito faz uma sistematização da doutrina da jurisprudência e da legislação existentes, ele seleciona os argumentos que lhe pareçam mais úteis, de acordo com a estratégia advocatfcla definida, à construção da tese ju­ rídica ou para a elaboração de um contrato complexo para uma possível solução de caso. Quando se trata de um parecer, temos a impressão de que esta lógica advocatícia está afastada. Neste caso, o Jurista se posicionaria como defensor de uma tese sem qualquer Interesse ou Influência da esiratégla advocatícia definida. Deste modo, a escolha dos argumentos cons­ tantes da doutrina Já existente e da Jurisprudência, com­ binados à Interpretação da legislação, seria feita por convicção. Mesmo que ó ânimo do parecerista seja diver­ so, a lógica que preside a construção da peça é a mesma, ou seja, o parecer recolhe o material doutrinário, Jurlsprudenclal e os devidos títulos legais unicamente em função da tese a ser defendida. Não recolhe todo o mate'" rlal disponível, mas tão-só a porção do material que vem ao encontro da tese a ser defendida; não procura no con­ junto do material um padrão de racionalidade e lnteleglbilidade, para depois formular uma tese explicativa - o que é, para mim, o padrão de um trabalho acadêmico em Direito. Então, no caso paradigmático modelar do pa-

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recer, a resposta Já está dada de antemão. É um tipo de investigação científica que Já possui uma resposta antes de perguntar ao material. Este é o problema. Eu não con­ seguirei avançar na pesquisa em Direito enquanto Já sou­ ber a resposta antes de fazer a pergunta ao material, Já que, quando tenho a resposta, eu só seleciono do material o que importa para defender o que eu Já sei. Sem romper essa lógica, não teremos pesquisa em Direito no Brasil. Para tentar esclarecer um pouco mais esse ponto, que é o que significa ter a resposta antes da formulação da própria pergunta, acho necessário discutir qual é o objeto da Investigação científica e acadêmica no âmbito do Di­ reito. Tentarei defender a idéia de dogmático, um pouco mais ampla que a por mim dominada atualmente. Bem, a dogmática é um núcleo da investigação cien­ tífica no âmbito do Direito. A informação não é original, não pretendo originalidade, tampouco não pretendo que ela seja consensual. Para evitar qualquer tipo de mal-en­ tendido, quero dizer que não acho que a Investigação ci­ entífica no âmbito do Direito significa submeter a disciplina à perspectiva da Sociologia ou da Economia. Acredito que existe um objeto específico de Investigação no âmbito do Direito. E não precisa possuir toda a pureza que a teoria advoga (pelo contrário, um pouco de Impureza é sempre bom), mas há de fato um objeto e é preciso trabalhar so­ bre ele. Mesmo no caso da Sociologia Jurídica, quero di­ zer que a investigação dogmática é um ponto central, mas tem um objetivo diverso do de urna reconstrução em al­ guns dos ramos do Direito.

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Temos, então, de nos perguntar o que é dogmática. Agora, como conectarei Isso com a história do Juiz Bork ou com o amálgama entre prática e teoria Jurídica que tentei apontar anteriormente? Utilizarei um texto do professor Terclo Sampaio Ferraz, que considero ter a mais poderosa reflexão sobre a· dogmática que dispomos no Brasil. Um trecho da conclusão de A Ciência do Direito: "A mera técnica Jurídica que, é verdade, alguns costumam confundir com a Ciência do Direito, e que corresponde à atividade Jurisdicional no sen­ tido amplo - o trabalho dos advogados, Juízes, promotores, legisladores, parecerlstas e outros -. é um dado Importante, mas não é a própria . ciência. Esta se constitui corno urna arquitetônica de modelos, no sentido aristotélico do termo, ou seja, corno uma atividade que os subordina entre si tendo em vista o problema da decidibllldade (e não de urna decisão concreta). Como, porém, a decidibilidade é um problema e não uma solução, uma questão aberta e não um critério fechado, dominada que está por aporias como as da Justi­ ça, da utilidade, da certeza, da legitimidade, da eficiência, da legalidade etc., a arquitetônica Jurí­ dica (combinatória de modelos) depende do modo como colocamos os problemas. Corno os proble­ mas se caracterizam como ausência de uma soI ução, abertura para diversas alternativas possíveis, a ciência Jurídica se nos depara como um espectro de teorias, às vezes até mesmo ln-

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compatíveis, que guardam sua unidade no ponto problemática de sua partida. Corno essas teorias têm uma função social e uma natureza tecnológica, elas não constituem meras explica­ ções dos fenômenos, mas se tornam, na prática, doutrina, Isto é, elas ensinam e dizem corno deve ser feito. O agrupamento de doutrinas em corpos mais ou menos homogêneos é que transforma, por fim, a Ciência do Direito em Dogmática Jurídica. Dogmática é, nesse sentido, um corpo de dou­ trinas, de teorias que têm sua função básica em um " docere" (ensinar). Ora, é justamente este "docere" que delimita as possibilidades abertas pela questão da decidibilidade, proporcionando certo "fechamento" no critério de combinação dos modelos. A arquitetônica Jurídica depende, assim, do modo corno colocamos os problemas, mas esse modo está adstrito ao "docere". A Ci­ ência Jurídica coloca problemas para ensinar. Isso a diferencia de outras formas de aborda­ gem do fenômeno Jurídico, corno a Sociologia, a Psicologia, a História, a Antropologia etc., que colocam problemas e constituem modelos cuja Intenção é multo mais explicativa. Enquanto o cientista do Direito se sente vinculado, na colo­ cação dos problemas, a urna proposta de solu­ ção, possível e viável, os demais podem Inclusive suspender o seu Juízo, colocando questões para deixá-las em aberto."

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Bem, esse texto é riquíssimo e tem vários aspectos extremamente complexos que não vêm ao caso desenvol­ ver, Mas queria simplesmente, através dele, retornar mi­ nha argumentação até aqui. Em primeiro lugar, ressaltar a distância entre o que o professor Tercio chama de mera técnica Jurídica e a Ciência do Direito, que é um ponto essencial. Para Terclo, "a mera técnica Jurídica corresponde à atividade Jurisdicional no sentido amplo - o trabalho dos advogados, Juízes, promotores, legisladores, pareceristas e outros", que é o ponto de vista que defendo aqui. Agora, tenho uma dificuldade peculiar com esse tex­ to. Se o que distingue a Ciência do Direito da técnica Jurí­ dica é a decidibilidade em relação a uma decisão concreta, a decidibilidade seria a marca distintiva da Ciência do Direito quando comparada a outras disciplinas das c,fên­ clas Humanas. Ela exprimiria isso que o professor chama de estatuto tecnológico, que faria da Ciência do Direito uma doutrina dogmática. E é nesse ponto que tenho difi­ culdade para acompanhar a argumentação de Tercio, Já que, dada a seqüência argumentativa, teríamos um movi­ mento de tecnicização da ciência, o que tornaria a embaralhar os elementos técnica e ciência do Direito. En­ tão, mesmo não tendo clareza quanto à posição do pro­ fessor, acho que os termos nos permitem avançar teoricamente na definição do objeto, e particularmente no que diz respeito às diferenças do Direito em relação a outras disciplinas das Ciências Humanas. . Se o Direito tem uma especificidade - e acho que tem -, não vejo por que ela deveria impedir que a Ciência do Direito possa ser explicativa. Não vejo por que essa

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especificidade do Direito deva Impedir que ela seja explicativa, desde que mantenhamos com vigor a distinção entre técnica e ciência. Igualmente não compreendo por que ela está direcionada unicamente às propostas de solução. Acho, então, que é possível realizar reconstruções dogmáticas que não tenham compromisso com soluções e com a decidibilidade, mas que procurem unicamente com­ preender o estatuto de determinado instituto na prática jurisprudencial, que iria para primeiro plano. Nesse sentido, a doutrina seria considerada como uma sistematização d� prática Jurídica e estaria a ela vinculada de maneira lnextrlncável, tal como defendeu o professor Tercio. Como disse ele, acho que doutrina está ligada à prá­ tica, mas não acho que a dogmática deva se limitar a siste­ matizar a doutrina; pelo contrário, acho que Insistir na distância entre técnica jurídica e Ciência do Direito só pode ser garantida se distinguir entre dogmática e doutrina. Nesse caso, e guardadas as especificidades, poder­ se-ia distinguir basicamente entre ciência básica e deta­ lhada no Direito. Pelo diagnóstico que apresentei hoje aqui, falta Justamente pesquisa básica em Direito e, se nós não distinguirmos ambas, não vamos conseguir o salto quali­ tativo da pesquisa em Direito que necessitamos urgente­ mente no Brasil. Diante desse exposto, quero apresentar algumas su­ gestões e propostas que se originam disso. Em primeiro lugar, se quisermos Implantar um modelo novo de pesqui­ sa, a primeira coisa que devemos fazer é exigir un:ia dedi­ cação integral à pesquisa, ao ensino e à extensão de uma parte substancial dos docentes de um curso de Direito.

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Para que haja a possibilidade de o Juiz Bork ficar na Su­ prema Corte enquanto George Priest é mantido como pro­ fessor de Yale 4 , para que haja esta distância, essa dedicação precisa de um suporte financeiro adequado não só salarial, como também para recursos de pesquisa. Dou o exemplo mencionado pelo professor Trubek, que mostra as comparações entre a Alemanha e Estados Uni­ dos. "Como na Europa toda, a grande parte dos estudan­ tes de Direito alemães não deixa de ter experiências nas ricas faculdades de Direito norte-americanas. No caso alemão, os estudantes mais brilhantes que vão aos Esta­ dos Unidos fazer seus LLMs retornam ao País não para integrar os escritórios americanos Instalados na Alema­ nha, mas para darem continuidade às suas pesquisas in­ gressando na carreira acadêmica. Em contraste com os franceses, que vão Justamente para os escritórios norte­ americanos que dominam a advocacia francesa". Assim, comparando os modelos alemão e francês, Trubek conclui que a realidade dos altos Investimentos em pesquisa na Alemanha vem permitindo uma assimilação mais crítica do arcabouço teórico norte-americano pelos alemães, e vem gerando uma produção acadêmica de maior qualida­ de que a francesa. No caso francês, as pressões por mudanças no formalismo do ensino do Direito não teriam grande êxito uma vez que os alunos franceses mais brilhantes estariam voltando de seus LLMs para ocupar cargos bem-remune­ rados nos escritórios norte-americanos que dominaram o 4

Yale Law School

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mercado de advocacia francês. E, em segundo lugar, não haveria na França estímulos suficientes à pesquisa acadê­ mica por meio de financiamento de centros acadêmicos de excelência descolados do mercado de advocacia. Nós nos tornaremos a Alemanha ou a França? Este é o momento de escolher. Por último, é preciso romper de fato esse muro com as outras disciplinas das Ciências Humanas. O Direito é uma referência essencial sem a qual é impossível construir a Imagem do País ..

PARTE

1.1

JUDITH MARTINS COSTA Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Passando ao largo das muitas concordâncias que te­ mos, passo a enfocar minhas discordâncias. E há uma discordância de base epistemológica: discordamos sobre o que é o Direito. E isso nos leva a pensar em como o Direito é feito, e como deve ser a pesquisa nesse campo. Eu come­ ço lembrando Sartre, para quem "o conhecimento é o modo de ser, mas na perspectiva materialista não se pode pensar em reduzir o ser ao conhecido". Com essa frase, o escritor introduz o problema da processualidade do conhecimento, que se dá à vista de uma totalização sempre em curso. Gosto muito da passagem, porque ela me parece absolutamente descritiva da concepção de como o Direito é feito. Para mim,

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a disciplina é tecida cotidianamente pela experiência e pelo amálgama entre teoria e prática. A experiência normativa do Direito, que constitui na­ turalmente um dos modos da experimentação social, é cultural, axiológica e não pode ser vista ao modo formal, mas como devendo ser permanentemente tecida pela ofi­ cina da prática e pelo laboratório da teoria, que traduzem essa experiência por meio da linguagem. E na nossa ex­ periência ocidental, essa experimentação normativa por meio de conceitos que são signos de significação. Usa­ mos diarlamente nomes como "crime, contrato, boa-fé"; são conceitos absolutamente significativos que atuam sobre as relações sociais em um processo muito comple­ xo de interação entre faticidade e normatividade. Essa experiência significativa da pensão da realidade é confir­ mada por meio de modelos jurídicos produzidos por fon­ tes jurídicas - aquilo que detém a autoridade de prescrever condutas. Mas esse poder de prescritividade é atribuído a quatro fontes, que seriam a Lei, a jurisdição, a prática e a autonomia privada. Assim, a modelagem da experiência jurídica é um pro­ cesso muito complexo, que agrega a oficina da prática e o laboratório do teórico, e que deve estar em contato direto com as razões sociais. Mas, diferentemente do sociólogo que descreve e explica as relações sociais, o jurista - seja o da prática ou o teórico - opera mediante normas que não são causais ou motivacionais, e sim com normas pro­ duzidas segundo processos correspondentes a cada um dos tipos de fontes - processos legislativo, jurisdicional, do uso ou da autonomia privada. Deste modo, eles têm



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retrospectlvldades e prospectlvldades, o que é multo Inte­ ressante no Direito. Há uma Interação entre as fontes, que são estáticas_. e os modelos, dinâmicos, resultando em positlvação. Se a minha concepção sobre o Direito aqui sintetiza­ da é essa, creio que a pesquisa Jurídica tem, entre suas funções, o "produzir doutrina". Digo no plural "entre as suas funções", porque não creio que haja somente um modelo, ou método de pesquisa. Creio que a resposta à pergunta I mplíclta dessa oficina de trabalho é necessari­ amente plural. Mas, antes de falar em doutrina, devo ex­ plicar um pouco o que é doutrina. Nós, brasileiros, temos uma tradição praxista fortíssima, que é a tradução dos repert�rios de jurisprudência, dos órgãos de mera con­ sulta e dos manuais que infestam o ambiente acadêmico. E a essa tradição, que persiste desde o início dos nossos cursos Jurídicos como um pecado original; soma-se a !egolatria, que é também uma marca cultural multo forte e que nos vem da influência francesa. Isso é o que o Cas­ tanheira Neves5 chama de "doutrina confirmatória", por contraposição à doutrina antecipante que cito aqui. Quanto à doutrina antecipante, sua missão é formular teorias Jurídicas que estejam aptas a resolver os proble­ mas do,presente e a morder o futuro promovendo a recons­ trução dos conceitos. Essa reconstrução deve servir como marco para a solução de problemas práticos e concretos; 5

António Castanheira Neves, Professor da Universidade de Coimbra. autor de Metodologia Jurídica: problemas fundamen­ tais, Coimbra Editora, 1993.

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mas, para isto, precisaríamos de uma outra oficina de tra­ balhos para discutir teorias Jurídicas. Canarls6, que tem um livro muito interessante sobre isso, diz que a função da teoria na Ciência do Direito é tornar as normas mais com­ preensíveis; porém, reconhece que a teoria contém um ele­ mento produtivo, que seria o jurista que utiliza teorias para formulação de novas regras, e daí o seu caráter antecipante de soluções. Tenho absoluta convicção que, por uma série de razões históricas e sociológicas, esse elemento produti­ vo da doutrina tem, no Brasil, um peso cultural muito espe­ cífico e denso. O praxismo teve um lado vicioso e outro virtuoso. Este, chamo em alguns textos de bartollsmo. Sig­ nifica o hábito de a Jurisdição tomar a doutrina - Inclusive a estrangeira - como fundamento; portanto, há uma aber­ tura multo Imediata daquela doutrina. Dou aqui o exemplo do que ocorreu comigo em um seminário de mestrado, onde dava uma aula sobre o princípio do venlre contra factum proprfum exemplificado no Direito Administrativo. Entre os meus alunos estava um Juiz que deixou a aula às IOh, foi para seu gabinete e, horas mais tarde, decidiu uma questão de professores na relação com o Estado - aquele princípio antes nunca usado no Direito Administrativo brasileiro, tor­ nou-se Direito Positivo. Eu estava falando como atuava o venfrle contra factum proprlum na Alemanha. Essa é uma característica multo Importante porque a doutrina, entre nós, tem um caráter quase prescritivo. Se 6

Claus - Wllhelm Canarls, Professor da Cátedra Karl Larenz na Universidade de Munique, autor de Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.



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fizermos uma comparação entre as técnicas sentenciais brasileira e francesa, nos daremos conta dessa imensa abertura que confirma mentalidades diferentes. Esse elemento construtivo ou produtivo contido em cada teoria é o que Justifica, em meu entender, a pesquisa que visa a explicitação de uma teoria Jurídica. Agora vamos sair do plano das idealidades e vamos ver o que temos. Não temos faculdades de Direito, mas sim os "auláreos" da expressão de Juan Capella7 • Temos espaços com instalações absolu­ tamente inadequadas, sem bibliotecas, sem salas de semi­ nários, salas reservadas para os professores. Temos, sim, espaço onde multidões de alunos consomem aulas, que são um monólogo repartido entre centenas de consumidores que buscam diplomas de bacharel em Direito, em vez da função essencial de ensinar. É claro que uma pesquisa voltada à produção de uma doutrina antecipante pode funcionar como um antídoto - ainda que parcial - contra essa reprodução derivada dos nossos "auláreos". Acho que é uma experiência plural essa inconsistência e falácia do nosso ensino jurídico, gerada, no meu entender, pela reprodução em aula da dou­ trina confirmatória. Isso é analisado de uma maneira muito interessante em um texto antigo do Pletro Barcellona8 , em 7

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Juan Ramón Capella Hernandez, Catedrático de Fllosofía do Direito da Universidade de Barcelona. Autor de Fruta Proibido - uma aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do Es­ tado, Livraria do Advogado, 2002. Docente na Universidade de Catania (Itália), membro do Conslglio superlote della Magistratura, Deputado e membro da Comissão de Justiça da Câmara. Dirigiu a r evista "Democrazla e Dlrltto" e presidiu o Centro di Rlforma dello Stato. Autor de Dai/o Stato social ai stato lmmaglnarlo. Crítica dei/a razlone funzlona//sta , Bollattl Boring�lerl Editore, 1994.

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que ele se refere ao caráter legendário com que o Direito é estudado e onde explica por que se ensina o direito legendário. Ele toca em um ponto que quero trazer para nossa discus­ são. Segundo Barcellona, a doutrina abriu um fosso entre a teoria e a prática, e na medida que a doutrina abre esse fos­ so, perde o contato com os Juristas práticos. Marcados esses pontos, sinto que já posso explicar as razões de minha discordância com Marcos Nobre, quando ele afirma haver uma peculiar confusão entre a prática profissional e a pesquisa acadêmica, e que o pro­ blema que vem sendo sistematicamente identificado nos trabalhos sobre a crise do ensino do Direito é o fato de o ensino jurídico estar fundamentalmente baseado na trans­ missão do resultado da prática Jurídica de advogados, juízes, ·procuradores e promotores, e não na produção acadêmica desenvolvida segundo critérios de pesquisa científica. Creio eu que a confusão entre prática profissio­ nal e pesquisa acadêmica não é peculiar, mas sim, peculi­ aridade. Ela deriva do fato de o fenômeno jurídico constituir essa experiência normada que se processa em uma espécie de espiral entre teoria e prática. Pelo menos é assim nos direitos da família continental, no qual exis­ tem categorias prévias generalizantes cujo conteúdo é pre­ enchido pela prática. Por Isso se diz que o Direito é atado à razão prática - e é ela que polariza a pesquisa. Retornando à questão do parecer: Marcos Nobre diz que o parecer jurídico não contém a lógica advocatícia que é a de ter a resposta e, depois, sair buscando argumen­ tos que reforçarão esta resposta que Já tem. Acho que um parecer pode ser uma peça produtora de uma verdadeira

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doutrina antecipante. Por quê? O parecer possui dois mo­ mentos, incluindo um momento prévio que não foi consi­ derado por Nobre. E é neste momento que o jurista examina se pode ou não dar o parecer, que ele faz urna pesquisa exaustiva do universo para saber se ele pode ou não formar sua convicção. Esse é o momento de urna ver­ dadeira pesquisa científica. A partir daí, ele forma sua convicção, decide que pode dar o parecer, e arrola doutri­ nas e Jurisprudências corno um argumento de autoridade. Também questiono a expressão "segundo critérios de pesquisa científica referentes à transmissão da prática Ju­ rídica". Ora, critérios de pesquisa científica no Direito de­ vem levar em conta necessariamente o resultado da prática Jurídica de advogados, Juízes, promotores e procuradores. E esse "levar em conta" é que está no cerne de urna questão que angustia, que é o amalgamar entre teoria e prática. Corno disse anteriormente, ternos urna concordância no di­ agnóstico e urna discordância na terapêutica. Acho que aqui ternos de fazer o corte do modelo que queremos seguir, as diferenças entre as diversas lógicas que regem teoria e prá­ tica no Direito norte-americano e no continental. A prática e a teoria devem estar amalgamadas, por­ que sua relação não é circular, mas sim espiralada, sem­

pre com um elemento novo que acresce. Não conheço ninguém que invente mais e crie mais que um advogado, assim corno também o teórico não pode estar em urna torre de marfim. E é por isso que penso que a composição dos professores de urna faculdade de Direito necessita de pessoas envolvidas com a prática. Se não ternos essa imersão na realidade, não se faz urna boa teoria.

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Por fim, a minha discordância quanto à terapêutica, que me parece urna tendência multo clara à americaniza­ ção do Direito. Há urna espécie de elogio à americaniza­ ção nas referências à experiência do CEPED e à crítica à pesquisa no ensino que não são orientadas pelo padrão norte-americano. Bem, me parece que não se pode Igno­ rar a forte Influência do Direito americano especialmente em áreas corno o Econômico, na concorrência, nos con­ tratos, e até o Penal. É um processo muito semelhante ao ocorrido no século XIX com Napoleão, que detinha urna força expansionista multo grande. A ciência cornparatlsta admite que a mutação dos modelos Jurídicos está Inscrita essencialmente em urna dinâmica de Imitação cuja força motriz é o prestígio. Este termo é tornado pelos cornparatlstas de empréstimo à soclologla, mas tem, no âmbito cornparatista, um valor próprio e certos limites em relação à sua validade explicativa. O prestígio que move a circulação dos modelos Jurídicos não deriva de má qualidade Intrínseca do modelo copiado; é um fenô­ meno absolutamente reversível e normal, porque diz res­ peito a um sistema percebido corno passível de responder de modo mais adequado aos objetivos mais valorizados pela comunidade Jurídica em um determinado momento. E evidentemente, esse prestígio do Direito norte-america­ no está ligado à força expansionista de sua cultura, essa "rncdonaldização" de grande parte do mundo, e ao fato de a racionalidade do Direito no País responder mais ade­ quadamente às necessidades da americanização econô­ mica, o que é um eufemismo para globalização. Acho óbvio que não podemos aceitar essa Influência.

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No Direito norte-americano a racionalidade está fun­ damentada em um sistema de pensamento muito próximo do fato, encontrando neste toda a força da sua legitimida­ de. Portanto, creio que, para que se conceba uma teoria como a acadêmica, não pode haver contaminação pelo fato ao qual ela está proximamente ligada. Nosso Instrumento e nossa forma de ver o Direito não estão fundamentados em um sistema de pensamento próximo ao fato, mas em um sistema de pensamento abstrato, conceituai, e no qual a solução é pré-determinada por um raciocínio dedutivo. A forma de justificação não está no fato - está no conceito. E é por isso que a prática não é o fator de legitimação no caso brasileiro, ao contrário do americano. Parece-me que se quisermos pensar em um modelo brasileiro de como fazer pesquisa em Direito, temos de pensar nessa lógica que preside a nossa forma mental.

PARTE

1.2

CARLOS ARI SUNDFELD Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

Concordo com a professora Judith, quando diz haver no trabalho do parecerlsta uma grande quantidade de ela­ boração científica na medida em que, para aceitar ou não um parecer, ele precisa fazer um grande trabalho de reflexão

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e pesquisa para saber se aceita ou não o caso. Cerca de 10% das consultas que me vêm resultam em trabalho. A grande dificuldade deste método de produção científica é que a parte mais rica do trabalho morre com o parecerista por ele não poder relatar aquela experiência. Mas creio que o professor Nobre também tenha razão quando diz que o trabalho do parecerlsta acaba reproduzindo naquilo que se publica a mesma lógica do trabalho do advogado. d primeiro problema, quando pensamos em discutir o que é pesquisa em Direito, é tentar discutir o que é o Direi­ to. Nenhum de nós faz muita idéia do que seja, por ser uma questão-primária. Temos, entretanto, definições muito prá­ ticas que usamos para poder viver. Quando pensamos em Direito, ligamos diretamente certa categoria de profissio­ nais. Assim, supõe-se que a pesquisa em Direito deva ter alguma vinculação com a atividade destes profissionais. Talvez alguns dos problemas que temos com a concepção do Direito, tal como é ensinada, seja o fato de desconsiderar a existência de uma ampla categoria de profissionais do Direito que não cabe naquele modelo tradicional. Quando pensamos nestes profissionais, ligamos os advogados, juízes, promotores ou procuradores de Justiça, mas esque­ cemos que há uma série de outros profissionais que fazem o trabalho de produção de normas. Uma faculdade de Di­ reito se preocupa pouco com o produtor de normas, pensa­ se: "um produtor envolve a dimensão da política, e não do Direito. Logo, não devemos nos preocupar em fornecer aqui elementos de reflexão para esses produtores de normas". Talvez um dos problemas de nossas escolas de Di­ reito seja a incapacidade de identificar qual o perfil do

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profissional do Direito moderno. Há, certamente, outros profissionais que não correspondem a este perfil do Juiz­ advogado e há, entre aqueles que se denominam advoga­ dos, gente fazendo atividades muito diferentes daquilo que está em nossa cabeça quando pensamos em sua profis­ são. Para nós, o advogado é o sujeito que vai ao fórum e peticiona, argumenta e recorre, fazendo um trabalho muito ligado à atividade Jurisdicional. Talvez devêssemos refle­ tir se a expressão "advogado" não tem matizações muito importantes que deveríamos considerar quando pensamos em formar pessoas para isso. Quando penso no trabalho dos profissionais do Direito, não deixo de co�siderar que devemos ampliar um pouco a nossa visão sobre o que é o profissf onal em Df reito. . Diria, então, que a pesquisa em Direito deve ter al­ guma conexão com a prática Jurídica. É claro que há uma grande dificuldade em distinguir o que serve ou tem algu­ ma ligação com a prática Jurídica, e acho que isso seria uma questão importante a ser debatida no conselho de pesquisa de uma faculdade de Direito para se saber onde aplicar as verbas. Não é uma questão tão difícil saber onde termina o Jurídico e começa a pura Sociologia que está tomando o Direito em consideração; não sei se essa dis­ tinção é muito Importante a não ser para essa questão prática de saber o que uma faculdade de Direito financia e uma escola de outra ordem financia. Precisamos reconhe­ cer a necessidade dos profissionais do Direito de Interagir com os teóricos e práticos da disciplina. E na medida em que essa interação se amplia, teremos cada vez mais difi­ culdade em distinguir um profissional do Direito.

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Uma das características que certamente foram con­ sideradas relevantes na hora de elaborar o programa da Escola da FGV, é expansão do profissional do Direito para outros campos de atuação. Ele deve se tornar um pouco economista, um pouco administrador, e ampliar seus ho­ rizontes. É claro que Isso nos angustia um pouco, já que devemos manter nossa identidade e especificidade. Mas não vejo a importância de se abrir a perspectiva para ou­ tros campos profissionais contrariando minha visão de Direito, já que sinto as questões profissionais práticas mais mescladas que no passado. Uma das características que certamente foram con­ sideradas relevantes na hora de elaborar o programa da Escola da FGV, é expansão do profissional do Direito para outros campos de atuação. Ele deve se tornar um pouco economista, um pouco administrador, e ampliar seus ho­ rizontes. É claro que isso nos angustia um pouco, Já que devemos manter nossa Identidade e especificidade. Mas não vejo a importância de se abrir a perspectiva para ou­ tros campos profissionais contrariando minha visão de Direito, já que sinto as questões profissionais práticas mais mescladas que no passado. Como evoluir? Para mim, o grande problema não está na confusão entre prática e teoria, mas sim na perspecti­ va em que o prático se põe quando vai produzir a teoria. Não vejo mal algum na confusão entre as duas coisas, Justamente porque a definição Intuitiva do Direito está muito ligada à atividade profissional. O problema é a pos­ tura que os indivíduos adotam quando vão produzir aqui­ lo que chamamos de teoria. Creio que se fizer uma descrição,

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possivelmente muitos se identificarão ou identificarão seus inimigos. O que um professor de Direito almeja? Ser um Jurista. Este não é exatamente um pesquisador, mas um sujeito de opinião; o que o caracteriza e entrava nosso pro­ gresso enquanto formuladores de teorias é o fato de ter­ mos um Direito de opinião. O que importa é alguém se transformar em um detentor de opiniões relevantes e, neste sentido, a menção ao exemplo do parecerista é muito feliz, já que ele é um sujeito de opinião valorizada. No fundo, os pareceristas são buscados não por sua capacidade de re­ censear com rapidez, qualidade e método, mas por possu­ írem um belíssimo nome e opinião respeitada. Normalmente o parecerista de sucesso é o que tem um aspecto respeitá­ vel e sério. O jurista não gosta de se apresentar como pesquisa­ dor. Sua produção se coloca mais como fruto de uma re­ flexão pessoal que como um levantamento de dados sistematizado que levou a uma conclusão. Acho que esta é uma característica Importante, e mostra que nosso Di­ reito é de opinião e não de fato; não há uma grande preo­ cupação em se conferir os fatos. E o que nos causa um grande problema é que o Jurista considera sua opinião tão importante que acaba se descolando da própria or­ dem Jurídica, gerando uma revolta destes profissionais contra a ordem. Estes juristas não concordam com as mo­ dificações constitucionais, não as discutem e acabam por afirmar que vigora um Direito que já foi revogado. Creio que o que nos entrava no progresso é justamente essa figura do Jurista, que é um sujeito de opinião que tra­ balha sozinho e precisa ser "Impermeável" às influências

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externas - entre estas, as influências de outras áreas do Direito. Se ele reconhece que para fazer uma reflexão so­ bre Direito Administrativo tem de conhecer Direito do Con­ sumidor, ele perde prestígio. É um problema que acaba tendo reflexos práticos bastante importantes. O sujeito defende o seu Bastião porque defende a si mesmo, como quem possui opinião sobre um mundo em que ele é o má­ ximo e tem de defender até à morte a especificidade de um Direito de não-sei-o-quê, o obrigando a ignorar a Econo­ mia, a Política e outras ciências. Acabei de identificar-me com essa descrição. Meu grande sonho, depois de me formar, era tornar-me um ju­ rista, uma pessoa de opinião e mais tarde produzir um 11:ianual de Direito Administrativo. Imaginava que este era o modelo adequado. Quando isso mudou para mim? Quan­ do comecei a trabalhar em grupo e as lógicas do jurista e da opinião foram completamente destruídas. As transfor­ mações nas cabeças dos juristas começam a ocorrer quan­ do participam de trabalhos em conjunto, porque aí a lógica da opinião não funciona mais. Com três pessoas e opini­ ões diferentes, não se pode ficar no nível da pura opinião; provavelmente brigarão, e posteriormente encontrarão um método de pesquisa. A maior interação teórica que já tive na minha vida profissional, com colegas do departamento de Direito Pú­ blico da PUC, foi com o professor Márcio Camarosan, com quem convivi há muitos anos e tive a oportunidade de fazer debates jurídicos - mais tarde nos envolvemos na produção da Lei Geral de Telecomunicações. Passamos quatro meses trabalhando em grupo para produzir a Lei

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que criaria a Anatel9 , etc. Foi um trabalho de comparação no qual buscamos elementos que Importavam para a or­ ganização do serviço. Para concluir, essa confusão entre prática e teoria não é exatamente um problema - apesar de um dado Im­ portante-, desde que sejamos capazes de entender que a produção da teoria exige uma metodologia diferente de trabalho. Acho que isso não é distinto do que a professora Judith falou. Creio que a separação entre os teóricos e prá­ ticos é uma tática bastante Importante, mas deve ser feita com certo cuidado porque se nós não eliminarmos a lógi­ ca da opinião teremos criado monstros. Se hoje temos Ju­ ristas como pessoas que criam suas opiniões e não as modificam, apesar de trabalharem na prática, Imagine o que acontecerá se permitirmos que esse Jurista se desvincule da prática. Ele vai se desvincular do mundo real, o que é um perigo. Acredito que, se formos bem sucedidos na função de criar grupos de pesquisa, não correremos o risco de se­ parar o prático do teórico, porque se supõe que a pesqui­ sa vai se voltar à prática, permitindo um certo distanciamento. Assim, o sujeito que pesquisa não o fará para defender uma dada solução. É pernicioso iniciar a pesquisa com o desejo de chegar a uma dada conclusão pré-fixada. Creio que esse elemento continua presente nas dissertações e teses de doutoramento, fazendo sua péssima qualidade média. Os sujeitos começam a pro­ duzir uma tese ou dissertação para defender uma dada 9

Agência Nacional de Telecomunicações.

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1.

opinião, Incorporando a postura de advogado. As teses que estão surgindo têm multas características de advo­ gado: o sujeito tem uma certa opinião, quer referendá-la e inicia uma busca de elementos de acordo com aquele sis­ tema tradicional. A Jurisprudência, por exemplo, não é objeto de análise e reflexão, o que se cita é a Jurisprudên­ cia a título de ilustração. Tenho insistido muito com meus orientandos quanto à necessidade de se fazer trabalhos sobre Jurisprudência, mas sempre que chegam à primeira minuta, argumentam que o Supremo não vem fazendo uma boa doutrina, tem uma opinião irrelevante. Veja, então, que a boa e respeitada opinião é mais valorizada. Como os alunos acham que o Supremo não tem uma opinião Interessante, eles não se Interessam por Identificar a po­ sição do órgão. Se nós pudéssemos tomar uma delibera­ ção, como um conselho, proporia a destruição do Jurista. Assim como Mário de Andrade, no movimento modernis­ ta, se voltava contra o burguês, proporia a adaptação do movimento para destruir o Jurista. Só espero que eu não morra neste caminho ...

DEBATES

• Marcos Nobre

Qero só colocar um problema para ser discutido, prin­ cipalmente porque acho que minha posição não ficou clara. Meu modelo não é o norte-americano, mas claramente alemão. Isto não exclui de nenhuma maneira a enorme importância da Jurisprudência. Prt,fessor é criador de ilu ..-

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são necessária, já que deve mostrar que o mundo funciona conforme o manual e a aula, pouco importando se o Supremo diz o contrárlol">Cltei o exemplo do Priest para mostrar um que é oposto a mim; na verdade queria ser neutro com o exemplo. E, particularmente, quero insistir com uma distinção que propus sobre ciência básica e aplicada. De maneira alguma quero dizer que doutrina não é pesquisa, mas sim que deve haver uma distinção entre as pesquisas básica e aplicada.: Como só temos a aplicada, ela fica hipertrofiada de tal modo que não avançaf por isso a previsão de 70% dos professores em tempo integral não é de 100%. Seria importante fazer essa distinção entre básica e aplicada, senão o problema da Inovação fica perdido1Dada a proposta da distinção, o que significa a rela­ ção entre prática e teoria? Segundo a professora Judith, se não há imersão na prática não há teoria. É claro que a professora está radicalizando sua opinião, mas acho que todo o problema foi formulado pelo professor Ari, para quem devemos avançar nessa extirpação da opinião. Se não extirparmos a opinião, dificilmente vamos avançar.

+ Antonio Angarita (Vice-Diretor, Direito GV) Não sei se, com efeito, a Jurisprudência precisa ser pesquisada não para fazer Inventários dela e sustentar opinião, mas para fazer Indagações que revelem o que quer dizer aquela Jurisprudência. Se eu Imaginasse três ou quatro grandes questões sociais neste País, ficaria pre­ ocupado em saber como as cortes decidem sobre elas.

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Isso é uma pesquisa de Jurisprudência, de construção do Direito e da tendência. A professora Judith coloca com muita coragem intelectual essa questão da nossa guina­ da para o Direito americano, que não se faz por simples vontade, mas por uma contingência. Então, se vou pesquisar a Jurisprudência não mais como objeto de pesquisa, mas os próprios pareceres, terei uma tendência do pensamento Jurídico brasileiro. Sobretudo se os grandes Juristas nacio­ nais ou estrangeiros trazidos pelo texto de Marcos Nobre coincidem com os da professora Judith e de outros tantos Juristas. O pesquisador pode começar fazendo Inferências, tabelas e assim por diante. Acho que esse modo de não nos aproximarmos da metodologia excessivamente empírica das Ciências Humanas, mas também não fazermos traba­ lhos-de monges cercados em nossos gabinetes, é uma ten­ tativa de avançar com pesquisa.•,

+ Oscar Vilhena Vieira (Direito - PUC-SP, Direito GV) As Ciências SoclaJs foram dominadas por uma forma de pensamento estruturalista ou marxista, para o qual o Direito tem relevância mínima.,·Ainda que você não seja um'marxlsta de partido, o fato de se pensar marxistamente torna o Direito um organizador secundário das relações sociais/Agora, um segundo ponto para complicar a ques­ tão da teoria e prática - não fazendo uma defesa do Di­ reito americano: lembro que grande parte dos professores americanos é de práticos que, depois de 40 ou 50 anos, vão às universidades fazer teoria. A vantagem deles é se senti­ rem independentes para emitir suas próprias opiniões, já que

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não estão sendo pagos para Isso. Então, precisamos ter a clareza de que o fato de um professor ser fu/1-tlme não significa que ele foi fu/1-time professor. Estes foram, em, primeiro lugar, assessores de um Juiz da Suprema Corte. Só para terminar, a questão que mais me preocupa no Brasllt é a forma como se produz doutrina sem a me­ nor atenção à prátfcaFLembro-me de um Jurista que dizia não mais ter o trabalho de citar pessoas porque todos só queriam saber de sua opinião. E esse Infame Jurista tinha razão, Já que quase 80% dos Juízes do 1rlbunal de Alçada de São Paulo o citam como referência. Isto mostra como uma doutrina que parte da idealização absolutamente de-· sapegada à prática se transforma em uma fonte de cons­ trução para ela. ·isso me aflige.

• Ronaldo Porto Macedo Jr. (Direito - LISP, Direito GV) Considero Interessantes as posições divergentes dos palestrantes. Divergentes, mas nem tanto, Já que trazem distinções do tipo típico-ideal. Em primeiro lugar, em re­ lação a esses modelos de parecer, me chama a atenção e aqui recorrendo a algo que aconteceu na universidade americana acerca da crítica a este modelo de pesquisa jurídica - a experiência dos cr/tlcal lega/ studles. A partir de 1 970, estes estudos passaram a produzir uma dura críti­ ca ao modelo de Ciência Jurídica produzido pela universi­ dade. Basicamente, criticavam o pensamento Jurídico pautado na análise de como ponderar políticas e princípios Jurídicos - o grande norte da boa construção de um pa­ recer.

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É curioso o impasse que se viu, depois de algum tem­ po, com os próprios criticai legal studies, que radicalizaram a ênfase na idéia de crítica e pesquisa na interdisciplina­ ridade até chegarem a afirmar que o Direito havia perdido sua especificidade como uma ciência autônoma e que, por­ tanto, o objeto de ensino nas universidades deveria ser Jus­ tamente esse enfoque Interdisciplinar. Hoje, o que se vê de uma maneira muito Intensa no debate americano é a idéia de alguns pensadores que, certamente, nada teriam a ver com a faculdade de Direito brasileira. Penso, por exemplo, na contratação de uma pessoa como Charles SabeJ Iº para dar aula na Columbia Law School, ou então a integração dos debates do Joshua Cohen" com o pessoal de Direito, ou seja, a idéia da discussão de modelos alternativos Institucionais como forma de fazer Direito. Temos um mo­ delo de parecer, e hoje, cada vez mais acentuadamente, um tipo de análise que b,usca pensar modelos alternativos e afastar o próprio objeto do Direito que deve ser pesquisado e ensinado daquilo que seria o modelo do bom parecer e da boa doutrina. Não deveríamos nos restringir, mas atentar­ mos para queOireito não se torne apenas isso. Há um tipo de função intelectual mais ampla, participante do debate nacional, que formula e cria novas instituições. 10

11

Charles F. Sabei, Professor de Direito e Ciência Social na Columbla Law School. Autor de Can We Put an End to Sweatshops? wlth A rchon Fung and Dara O'Rourke. Beacon Press, 2001 e Work and Po/ftfcs: The Dlvlslon of Labor ln lndustry. Cambridge Unlverslty Press, 1982. Professor do MIT Department of Polltlcal Sclence, editor da revista Boston Revlew. Autor de Soverelgnty and So/idar/ty: EU and us. Oxford Unlverslty Press, 2003.

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Um outro ponto que confesso que ainda não me sa­ tisfez, no que se refere ao texto de Marcos Nobre, é o da relação existente entre pesquisa básica e aplicada. A dis­ tinção é intuitiva, clara, mas a pergunta que faço é a se­ guinte: não haveria uma especificidade na relação que se pode imaginar entre pesquisa básica e aplicada no Direi- �. to? l'.onge de mim recusar esta distinção, mas me parece que há, sim, uma peculiaridade nesta integração. Com relação à professora Judith, me chamaram a atenção duas questões. Tenho uma certa dificuldade em acompanhá-la no sentido de imaginar que há uma racionalidade distinta entre o Direito americano e o Direito continental. Lembro um autor americano, o Guldo Calabresi 12 , que tem um li­ vro chamado Common Law para um Direito na Era das Leis 13 • O que parece haver, dentro das universidades america­ nas, é um cosmopolitismo multo grande; ou Seja, elas não refletem necessariamente o mainstream da produção dos tribunais americanos. E, nesse sentido, o modelo de pes­ quisa e ensino jurídico tende a ser cosmopolita em grau que os Estados Unidos não são na maioria de suas ativi­ dades. Assim, não sei se essa distinção ou polarização continental versus ângulo saxão resiste. Tendo a ver o pa­ drão de pesquisa americano como bem mais cosmopolita do que a experiência jurídica prática. Com relação à posição de Carlos Ari, de fato boa parte de nossa produção na forma de parecer é uma coleção

12 IJ

Professor da Yale Law School Calabresl, Guldo. A Common Law for the age. Estados Unidos: Harvard Unlverslty Press, 1982.

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recortacla de opiniões com pouca reconstrução teórica. De uma maneira simples e direta, o professor Carlos Arl nos dá um antídot9· multo Interessante, que é do trabalho em grupo, colo'1aii,d.Q,p,osições em confronto'. Todos nós somos acostumados a elogiar os amigos e criticar os inimigos; poucos são os foros nos quais há um debate acadêmico efetivor,E alguns daqueles mais diretamente responsáveis pelo espírito de crítica são apenas aqueles que se legiti­ mam na condição de "mandarins" - pessoas que se jul­ gam acima do bem e do mal -, porque boa parte das resenhas é laudatória. Ou seja, não tem debate, crítica. Ao meu ver, esse é um dos pontos de estrangulamento efe­ tivo. Se alguém produz um livro fraco, os críticos e os. lnhrllgos silenciam e, muitas vezes, até se esquecem de debatê-lGJ.' Parece-me, então, que essa recomendação de Nobre tem um poder revolucionário im�nso, que é o de instituir efetivo debate, crítica e censura. + Caio Rodriguez (Direito Rio - FGV) Darei uma ênfase maior a alguns pontos. Por que se­ ria necessário justificar a melhoria da pesquisa Jurídica a partir de critérios de clentificidade? Basicamente, tenho a dizer que essa questão, se a pesquisa em Direito é cientí­ fica ou não é, tornou-se obsoleta e irrelevante, mas conti­ nuamos a persegul-la.lObviamente concordamos que a pesquisa jurídica no Brasil é muito pobre - é pobre, mas não científica ou acientífica. A minha hipótese ou provo­ cação é que o Direito se distanciou das Ciências Sociais não porque ele deixou de ser científico, mas porque ele continua preso ao paradigma "o que é científico ou não".

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Também quero fazer uma proposta sobre o que seria uma pesquisa em Direito mais Interessante e livre das questões de objetividade e clentlficldade. Se fôssemos to­ mar o exemplo dos Estados Unidos, essa pesquisa não reconheceria seu destinatário no Juiz, mas no cidadão. As­ sim, o Jurista teria como tarefa pensar e mapear a cultura:s, jurídica a partir de como os interesses e Ideais da prática. jurídica se institucionalizam, fazendo a crítica dessa crrs­ talização e propondo alternativas de reformas Institucio­ nais.. Então, em vez de ficarmos presos sobre o que é ou não objetivo, adotaríamos uma perspectiva multo mais radical, afirmando a necessidade de tornar como destina­ tário do discurso Jurídico o cidadão; e não o Juiz. Adotam­ do como prática do Direito a Imaginação de possibilidades novas e institucionais para o grupo.,..

• Luis Virgílio Afonso da Silva (pesquisador Direito GV) Com relação às questões da dogmática Jurídica e da decidibilidade, creio que não necessariamente a dogmática está relacionada diretamente com o problema da decisão. Acredito que este está ligado a um âmbito normativo da dogmática jurídica - há outras dimensões, como a analí­ tico-conceituai ou empírica, que não necessariamente es­ tão relacionadas com a decidibilidade. O meu ponto principal. na verdade, é a questão dopa­ recer. Penso que essa concepção parecerística do Direito não é o problema mais sério;.que fica por conta da concep­ ção manualesca,,. Sou um pouco pessimista com relação a · isso. Já que acho que os manuais de hoje em dia não diferem

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dos manuais surgidos há 30 anos - aliás, vejo que os de hoje são piores e mais rasos, por serem uma cópia dos antigos. Mas o problema não se restringe aos manuais; há uma contaminação dos manuais para pesquisa. SãG> monografias baseadas em manuais, quando deveria ser o contrário: Já vi vários trabalhos que conseguem a proeza de estender duas páginas de um manual para 250 páginas de monografia. E não é porque o aluno achou a Idéia contida no trecho Interessante, mas simplesmente destrinchou as duas páginas e não pesquisou nada mais. A monografia é. no Brasil, uma expansão dos manualis. Minha última consideração diz respeito às palavras da professora Judith. Foi dito que não há possibilidade de se'";· fazer boa teoria sem uma interação com a prátlcar. Pergunto­ me: como se explica que todos os professores estrangeiros,, que costumamos idolatrar se dedicam exclusivamente à,, pesquisa? ·,

• Judith Martins Costa Quando digo que o teórico tem de mergulhar na prá­ tica,, não afirmo que ele tem de ser um promotor ou advo­ gado. Quero dizer, sim, que o objeto da sua reflexão deve ser a prática,: E nesse sentido sou radical, acho que o ob­ jeto da reflexão do teórico é a prática - não com caráter reprodutivo. Em outro ponto, gostaria de dizer que adorei o que o Carlos Ari falou sobre opinião, mas não entrei nesse assunto porque acreditei que esse seminário era sobre pesquisa. Para mim, a opinião é a não-pesquisa.,Bem, quanto ao problema das racionalidades do Direito norte-americano e o nosso, é

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lógico que existem contatos muito grandes, mas são racionalidades diversas que se contaminam. E, por fim, gos­ tei muito da observação do Ronaldo sobre a crítica, "não se fazem críticas dentro da Academia e mesmo fora".

queria comprovar a hipótese que a diferença conceituai entre autonomia privada e autonomia da vontade pos­ sui diferenças quanto à eficácia. Foi comprovada a hi­ pótese e posso, a partir daí, fazer uma doutrina.

+ José Rodrigo Rodriguez (Núcleo Direito e Democracia­ CEBRAP) Tenho só uma questão pontual, direcionada à pro­ fessora Judith. Quando a senhora fala que o papel da pesquisa também é fazer doutrina, fico me perguntando

+ Esdras Borges Costa (Assessor da Diretoria, Direito GV) Como sociólogo de formação, não posso fugir da pergunta que vocês estão fazendo: afinal de contas, a minha pesquisa sociológica e antropológica é ou não científica? É uma questão que há muito tempo vem sendo discutida no campo, ocupando profissionais e pesquisadores de fato que perguntam: o que há de científico no que estou fazendo? Até que ponto é uma crônica, um testemunho ou uma preferên­ cia política e ideológica 7 Com isso, queria me referir a uma Imagem que tem de ser corrigida. Uma das imagens erra­ das é que o sociólogo é um escravo dos dados. Digo isto porque nesta nossa discussão sinto freqüentemente um certo "conceito residual" , uma idéia de que a contribuição socio­ lógica é a aquela que nos trará a capacidade de entrar em contato com os dados. Na pesquisa social, o sociólogo está tão sedento de teoria e doutrina, que tem sido objeto de multas discus­ sões. Foi feita por americanos, na época da ditadura, uma pesquisa sobre o Chile e, na zona Oeste dos Estados Uni­ dos, ficou a polêmica se a pesquisa não seria encomenda­ da, o que a daria um caráter ideológico, e não científico. Bem, era uma parte do esforço do governo americano de apoiar a ditadura.

o que é o "não fazer doutrina" que a pesquisa faz. Eu, como aluno de pós-gradução, tive multa dificuldade em achar uma forma de dissertação que se diferenciasse dos trabalhos tradicionalmente realizados. Como se articu­ la um texto que expresse a idéia: "vou sair para a pes­ quisa como se fosse Colombo e n ão sei o que vou encontrar?" Quais são as formas de uma nova disserta­ ção e de um novo doutorado? + Judith Martins Costa Penso em alguém que resolva recolher todos os acórdãos sobre determinado objeto para saber deter­ minada tendência. Ele não está exatamente fazendo dou­ trina. Por exemplo, nessa pesquisa que orientei no Rio Grande do Sul, eu e meus alunos recolhemos todos os acórdãos possíveis no Tribunal do Estado e no STJ, para saber o que os tribunais entendem por autonomia da vontade e quais eram as tendências. Fizemos uma com­ paração com o Supremo Tribunal de Portugal, porque

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Assim, não sinto nenh uma diferença nessas conver­ sas com me us amigos j uristas, nessa preoc u pação com as informações, a crítica conceit uai, a crítica à do u trina anterior e com a doutrina. Tendo em vista Isso, acho q ue os "soldados" da pe sq uisa social na área J u rídica e social têm de safios seme lhantes. Não vou propor nenh uma con­ vergência fácil aqui, mas acho que temos algumas tarefas comuns. Te mos, por exe mplo, a missão de de cifrar os fe ­ nômenos e torná-los alguma coisa útil para a orientação filosófica, moral, política e assim por diante.

+ (não identificado)

o q ue É preciso definir o q ue é essa clentlflcidade..,('\ch , eu quero é uma espécie de lealdade ao discurso; ou seja onder sobre o fazer Ciência? Tudo bem, mas tenho de resp de aproxima­ que estou falando, sobre meu objeto, forma dade dentro ção e qual o meu conce ito de verdade ou falsi rolar aque­ de meu discurso. A partir dai, tenho como cont não tenho o la Informação. Sem o controle da Informação, u ma forma de debate em gr upo. Para mim, a Ciência é inters ubjetividade do conhecimento. Acho A proposta do debate é pesq uisa em Direito. o quê1 Em Di­ que é uma estr utura reveladora. Pesquisar acordo com a reito fica u m pouco vaga esta questão. De rmino e de­ Ciência e com o objeto q u e delimitarei, dete irão as Infor­ marco um conjunto de dados q u e constit u u isa. Qu ando mações q u e articularei a partir dessa pesq demarcan­ demarco os dados q ue pesq uisarei, Já esto u já afasta do a minha Ciência. Assim, de certa forma. isso responder a importância da segunda perg unta, q ue deve

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o q u e é Direito. Tenho várias perspectivas de Direito. Estamos diante de uma série de propostas interdisci­ plinares. Posso pesq uisar, por exemplo, a Infl u ência da Economia no Direito; é uma pesquisa relevantíssima para se entender a disciplina. Na proposta de estar aproxi­ mando teoria de prática, n u nca conseg u irei u ma teoria que esgote completamente a prática, mas conseg u irei te­ orias q u e expliq u em cada vez mais o objeto através de um s u porte fátlco. Diante disso, em uma o utra refle xão sobre o Direito, Marcos Nobre ressalto u a Importância da reconstrução da dogmática. Concordo plenamente, mas penso q u e te­ mos de reconstruir u ma dogmática verdadeira. Deve ser uma dogmática séria, que define seus objetos, pretensão, b u sca explicar o Direito e q ue, multas vezes, diante da amblgüldade das palavras, diz q ue não tem resposta. Sobre a questão teoria e prática, acho que mais uma vez trata-se de objeto. Para mim, existem duas te orias diversas. Uma é a teoria convencional, que delimita como objeto o conj u nto de textos normativos, a Jurispr udência e atos administrativos: a outra é a q ue parte da prática dos fatos de aplicação dessas leis, Jurisprudência e reg u­ lamentos nos casos concretos. Enq u anto uma tem por ç,bjeto u m corpo lingüístico definido, a outra tem por ob­ jeto fatos de aplicação desse corpo lingüístico interpreta­ do por dados operadores do Direito. São objetos distintos. Devemos est udar prática como uma teoria, e est udar essa teoria como uma o utra forma de fazer teoria. São propos­ tas q ue se aproximam.

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Nesse sentido acho muito importante essa recons­ trução da dogmática, até para poder criticá-la.

• (não identificado) Farei algumas colocações quanto ao que foi dito com relação à defasagem do Direito frente às Ciências Huma­ nas. Contarei minha experiência. Sou formada tanto em História quanto em Direito. Quan­ do falei para os meus pais que cursaria História, sentimos uma incompreensão muito grande. Então, senti que as pes­ soas das faculdades de Sociologia, Filosofia, História e Ciên­ cias Sociais vão para lá por paixão. Dentro destas unidades, percebi que o corpo docente tinha a função de transformar essa paixão em uma pesquisa com método. Assim, é muito mais comum na área d.�,Humanas a pessoa entrar na facul­ dade Já pensando no amor ao objeto que éscolheu;aenquanto que em meus colegas da faculdade de Dlreito,.,percebl a bus-,,. ca por uma posição no mercado de trabalho. .J'or que a pes­ soa fazia essa opção? Simplesmente porque é a área que tem o maior número de concursos públicos e que lhe possi­ bilita fazer parte de uma sociedade afluente. Acho que isso determina muito a questão da defasagem na pesquisa. A pes­ soa entra na faculdade, que a princípio selecionará uma par­ te dos seus alunos para a pesquisa, e já sofre esse deficit. A. maioria dos que estão ali não pensa em pesquisa, mas em se encaixar no mercado de trabalho. Aqui entra uma outra questão. Também fiquei dividi­ da quando o assunto era teoria e pesquisa, porque acho multo complicado só a prática ou só a teoria. Senti na faculdade de História um certo distanciamento nessa ques-

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tão de "só teoria". No caso da Pedagogia, era muito pro blemático, porque os pedagogos elaboravam doutrinas mirabolantes que aqueles que lidarão com alunos da rede de ensino não conseguiriam aplicar jamais. A�redito que se o Direito possuísse somente profissionais pesquisado­ res hav�ria os mesmos problemas da Pedagogia, com o mesmo distanciamento. A outra colocação é a questão do distanciamento com as outras disciplinas de Ciências Humanas. Quando ter­ m i nel História, na década de 80, Já existia essa interdisciplinaridade multo rica. Depois de passado o de­ safio do vestibular, tínhamos de estipular o objeto de pes­ quisa. Chega um momento que os limites intelectuais esgotam esse objeto. Existe um momento do conhecimen­ to e da pesquisa em que aquele objeto se esgota.

• (não identificado) Dentro do tema "O que é pesquisa em Direito", o pro­ fessor Marcos Nobre destacou duas premissas sobre o isolamento da Ciência do Direito das demais Ciência So­ ciais. O principal ponto de discussão é o seguri'do, sobre a confusão entre a prática e a teoria. Para mim, são três os objetos da Ciência do Direito: a Le�. a doutrina (ou dogmática) e a Jurisprudência. E esse tripé deveria ser utilizado como ferramenta de trabalho da história do Direito. Não para produzir capítulos ou volumes de dissertação. Qualquer ponto da pesquisa do Direito deve pressupor um trabalho histórico para saber­ mos se a História, naquele ponto particular, traz ou não alguma contribuição. Penso que existe uma profunda

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interação entre esses três pés. Imaginei dois exemplos. O tema particular da união estável teve origem na Juris­ prudência, e não na Lei nem na doutrina. É o contato direto com uma realidade dramática social, posteriormente sen­ do recepcionado na Constituição e Código Clvll Brasileiro. Mas o contrário também ocorre. Toda a doutrina que foi base no Código de Defesa do Consumidor foi importada do exterior, não sofrendo maturação na comunidade acadê­ mica. Assim, não sei se a prática e a teoria devem sempre interagir na Pesquisa em Direito. Ocorreu-me também, enquanto assistia à apresen­ tação, que, grosso modo, o Direito é romano. A primeira­ fase foi legislativa; a fase principal teve características jurlsprudenclals e, com a decadência do Império roma­ no, houve um momento de registro histórico e docu­ mentação que ficou esquecido na História e só foi recuperado com a renovação dos estudos de Direito nas universidades européias. Criou-se urna escola dogmá­ tica que se desenvolveu de tal forma que esse "dogmatl­ cismo" terminou exagerado e hipertrofiado, gerando todo um movimento contra o excesso de racionalismo. Enfim, tudo Isso me ocorreu para colocar aqui como ponto de debate o isolamento que existe entre a facul­ dade e a vida prátlca,;•Quando um aluno se forma em Direito conta apenas com a formação manualístlca, sem o contato com o Direito vivo e atual:A recíproca é ver­ dadeira, porque como não se produz muito na univer­ sidade, os juízes passam a repetir, em suas decisões, citações dos manuais mais vendidos.

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+ Marcos Nobre Acredito que a grande maioria dos estudantes de Direi­ to quer melhorar sua posição no mercado por uma razão elementar: não lhes é dada uma oportunidade na carreira acadêmica. Se a remuneração fosse compatível e houves­ se possibilidade de pesquisa, muitos alunos optariam pela carreira acadêmica. O professor Vilhena levantou um problema impor­ tante da relação entre teoria e prática. Um manual cria a ilusão da realidade funcionando de acordo com ele - e o maravilhoso é que de fato funciona como o manual. Por isso, é urna ilusão necessária, O problema é se nós quere­ mos manter esse modelo, ou se ele é mesmo sustentável. Um exemplo sobre teoria e prática, com o modelo de ilu­ são necessária: quem diz qual é a melhor doutrina? Quem aponta qual é a corrente interpretativa majoritária? Ado­ raria compreender isso, mas como? É quantitativo? Corno fazer para mudar isso? O que a professora Judith descre� veu como a pesquisa que faz, é exatamente o que chamo de pesquisa básica. Na pesquisa aplicada, ternos o empe­ cilho de retirar a opiniãc,. Não precisamos ter uma dou� trina necessariamente opiniática.• Aproveitaria para passar à observação de Virgílio, que diz "a dogmática não está necessariamente ligada à decidibilidade". Foi exatamente o que eu disse. Se o manu­ al é mais importante que o modelo do parecer, acho que não fui claro o suficiente. O que digo é que o manual, opi­ niático do Jeito que é, segue o. modelo do parecer. O ma-, nual é conseqüência necessária de urna determinada concepção da produção em pesquisa aplicada ao Direito.

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Passando para o problema da distinção entre Ciência básica e aplicada: sei que falar nelas em Direito é diferen­ te de anallsá-las em outras disciplinas. O que estamos buscando é qual é a especificidade do Direito. Nesse sen­ tido, seria muito bom se tivéssemos criticai legal studies aqui. Não quero que o Direito perca a sua especificidade. Todas as vezes que eu vi consórcio interdisciplinar e uma das disciplinas perdeu sua especificidade, o consórcio aca­ bou. O trabalho interdisciplinar é feito para fortalecer a especificidade, e não o contrário. Chegamos ao critério da científicidade, abordado pelos professores Esdras e Caio. Esta é uma questão impossível de se resolver aqui. Sustento que existe uma diferença entre explicar e . c.ompraende.C; Quando se faz uma distinção entre explicar e compreender, quem é "soft" é quem explica, e nós é que somos "hard", porque compreendemos. Não acho que o critério de cientificidade seja irrele­ vante. Se não tivermos esse critério, não dá para dizer que a produção científica brasileira é pobre ou rica.' Finalizando, nessa discussão entre teoria e prática estamos esbarrando em questões institucionais muito cla­ ras. Há um momento em que temos uma discussão teóri­ ca sobre o que é dogmática e o que é doutrina-eu insisto que é preciso distinguir as duas e não esquecer que a si­ tuação atual é de confusão-, apesar da existência de cri­ térios institucionais. Se esta escola de Direito em formação quer romper com o modelo atual, quais serão seus requi­ sitos institucionais?

CAPÍTULO

A

II

RELAÇÃO ENTRE

DOGMÁTICA JURÍDICA E PESQUISA

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PARTE

2

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

É Importante fixar alguns conceitos históricos do tema proposto, sem o que corremos o risco de discutir apenas propostas e delineamentos modelares com formalidade. Como a proposta aqui é de debate, até para ativar a pes­ quisa, é importante olharmos o que aconteceu e o porquê. A idéia de uma d.ogmática surgiu na Idade Média junto com a Teologia. Apesar de a dogmática ter aparecido em outras ciências, hoje resta somente no Direito e na Teolo- · gla.. Esse nascimento de uma dogmática na Alta Idade Média, com os glosadores, originou-se do princípio de um saber que gozaria de autoridade e ficava de fora., Um acidente histórico foi a criação da Universidade de Bolonha - não tão acidental assim - pois o cenário já era preparado pela admiração dos digestos, como uma expressão Importante do Direito. Era uma expressão ex­ terior, porque a cultura romana foi sobreposta pelos bár­ baros. Historiadores mostram que o Direito teria surgido

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como dogma a partir da união entre a idéia da autoridade romana com a autoridade cristã. Aquele repertório toma uma característica forte de algo externo, que deveria ser respeitado. Ocorreu com este repertório o que se fez com a Bíblia. Foi atribuída ao Direito essa dupla condição de racionalidade e autoridade, Atualmente é difícil compreender, porque isso desa­ pareceu parcialmente com a crítica ao dogmatismo dos séculos XVII e XVIII. Podemos dizer que os glosadores exercitavam um raciocínio Jurídico não para esclarecer os textos romanos ou comentá-los, no sentido de expli­ car; era a idéia da confirmação, a vontade de certificar a racionalidade daquele texto que gozava de autoridade. Foi exatamente o que o antidogmatismo veio combater e foi quando a palavra dogma ganhou um sentido pejorativo. O saber dogmático Jurídico medieval procurava, na dis­ persão dos textos, montar uma visão coordenada e har­ mônica, que não existiu na Roma antiga - havia vários Direitos, e até as opiniões pessoais dos jurisconsultos. O Direito Justiniano, por exemplo, foi mais uma compilação que a tentativa de compor algo harmônico. Quando a Idéia de sistema entra na ciência Jurídica, as coisas mudam cabalmente. A dogmática não chega a desaparecer e, no Renascimento, aparece a idéia de siste­ ma que se efetiva no século XVII. A idéia de sistema que permanece até hoje na cabeça dos juristas é a de subjunção, que "casava" muito bem com o dogma da idade Média. O jusnaturalismo, na sua forma racionalista, trouxe um outro elemento Importante na formação do pensamento dogmático: uma espécie de voluntarismo separado/aliado

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a formas racionais. O Direito, produzido espontaneamente, tinha mais a ver com movimentos de vontade que com movimentos racionais. A autoridade estaria confirmada após se submeter à racionalidade, o que, portanto, é dife­ rente do conúblo que havia entre as duas na Idade Média. Quando autoridade e racionalidade se separaram, ficou claro que o trabalho da Ciência do Direito era reconstruir o produto da razão. Tentou-se corrigir a noção de pro­ cesso voluntário; o Direito passou a ser percebido como algoproduziçlo. O Jusnaturalismo, que mais tarde desembocou no Iluminismo, foi responsável pelos grandes códigos daquele tempo, em especial o de Napoleão. Este movimento culti­ vou uma forma de saber jurídico que chegou ao século XIX, mas acabou desaparecendo. Um saber jurídico de "fazer legislação", que foi enfraquecendo. No lugar dele, entrou a noção do Direito por ato e vontade, ou seja, como algo produzido, um fenômeno social e, basicamente, um fruto da Hlstória.,Para a Ciência Jurídica, o nascimento da História se deu no século XIX, porém, foi de caráter efêmero. Curiosamente, a Escola Histórica éllemã é res­ ponsável pelo fortalecimento de uma Ciência do Direito em que os fundamentos são pesquisados como fenôme­ nos históricos, embora se renda à dogmática Jurídica. Quando chegamos ao século XX",possuíamos uma forma de saber Jurídico dogmático altamente ligado à pre­ missa das asserções que são postas por vontade e à idéia de que o sistema trabalha de maneira dedutiva. Passamos a uma Ciência do Direito em que a pesquisa dos funda­ mentos do fenômeno se tornou secundária. A produção

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do Direito é relegada a algo espontâneo, sobre o qual não temos controle direto, e a teoria da legislação se torna secundária-; mas em lugar disso entra. uma preocupação hermenêutica, dentro de um modelo judicial de aplicaçãa do Direito. Acredito que essas são as linhas mestras de um saber dogmático no campo Jurídico. Isto vale para a Europa e a América Latina, não para o mundo anglo-saxão - onde a formação é diferente, a simbiose autoridade-ra­ zão tomou outro rumo e a pesquisa se desenvolveu mais ligada aos princípios. O motivo das dificuldades que te­ mos em trazer os modelos anglo-saxões para o Brasil, talvez esteja no olhar para o saber dogmático focado nos Estados Unidos. Esta dificuldade aparece, por exemplo, quando avaliamos currículos e cursos realizados fora para certificá-los aqui. O saber dogmático, apartado, que toma o aspecto so­ cial da formação como secundário, que nele vê uma produ­ ção espontânea; voluntarista, e uma sistemática em reconstrução onde a subjunção é forte, gerou um modo de. pensar o Direito que é um Instrumento para percebê-lo, mas termina assumindo como real as suas próprias cons-· truções. Isto apareceu no século XIX. Quais são os elemen­ tos que nós temos? Todo aquele cabedal do estudo do Direito que começa com seus conceitos básicos: Direito objetivo, Direito subjetivo, norma, Lei, Interesse privado, Interesse público, obrigação, dever, contrato. É uma terminologia que surge no século XIX como um Instrumental para recons­ truir o Direito, tomando, depois, vida própria - com o ad­ vento dos primeiros trabalhos críticos, no século retrasado, não conseguimos nos desligar da construção.

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Talvez seja Interessante ler um trabalho de Oswald Spengler 14 , um historiador que lecionava em escola se­ cundária, que escreveu no Início do século XX sobre a decadência do Direito Incluindo um largo capítulo abor­ dando o Direito. Deve-se ler este capítulo do ponto de vis­ ta histórico, porque ele empreende uma curiosíssima crítica do saber Jurídico em que diz "é Incrível que os nossos Juristas, ainda hoje (à época), acreditem naquilo que eles constroem como se isso fosse a realidade jurídica; não consigo entender como tomam uma palavra como Direito subjetivo e acreditam que tem uma realidade, trabalhan­ do em cima desta realldad�" Isto foi o que disse um histo­ riador daquela época, mas, evidentemente, no campo Jurídico a repercussão foi mínima. A verdade é que o ou ,.,. tro aspecto do saber dogmático que se forma é este, uma construção que assume o caráter de realidade •. E o traba:­ lho do jurista torna-se reconstruir o Direito produzido, além de conhecer as suas próprias construções� A pre-. sença do fenômeno Jurídico como um fenômeno social. histórico, fica à parte e repercute com o desaparecimento da teoria da legislação e a restrição dos trabalhos Jurídi­ cos a essas grandes construções.• As construções possuem algumas características que devemos abordar, mesmo que rapidamente. O trabalho da dogmática se volta a um modelo Jurlsprudenclal, enxergan­ do seu objetivo na criação de condições de aplicabilidade e decidibilidade. O trabalho dogmático do Jurista, nt1s suas. 14

Fiiósofo e matemático alemão do final do séc. XIX e começo do séc. XX, autor de O D,:c/fnlo do Oc/d,:nt,: de 1918.

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construções, é criar condições para que os conflitos sejam solucionáveis. Neste momento, somos capazes de traçar algumas diferenças entre dogmática e técnica jurídica. À técnica corresponde o trabalho imediato do aplicador (o juiz). Ela foi precedida da elaboração que nasce da harmonização medieval, passa pela sistematização Jusnaturalista e culmina na preocupação em criar condi­ ções para que os conflitos sejam resolvidos. Visando isto, de um lado temos a elaboração conceituai, e do outro a busca de fundamentos, onde as disciplinas tidas por se­ cundárias, como Economia, Filosofia e História apare­ cem. Como é um saber voltado a criar condições para a decisão, é eminentemente doutrinário. Embora também se use "teoria Jurídica", uma expressão que ganha foro no final do século XX, a palavra forte é doutrina, assim como na Teologia. 'w:ata-se da luz ideológica que o ter­ mo traz: doutrinação, com origem no saber medieval que servia para confirmar a razão e a autoridade dos textos. A dogmática Juridica que nós temos hoje não perde isso, é uma ciência para confirmar, que recebe os textos e procura racionalmente torná-los utilizáveis, gozadores de autoridade e fundamento. ,,,. Essa Idéia de doutrinação, na prática, gera o risco de um imenso fechamento ..No Brasil, comumente noto o au­ tor reproduzindo um saber.,Muitas vezes compramos um livro com 40% de reprodução de texto legal, e o resto em reprodução parafrásica - esta é a representação mais desesperada dessa dogmática. ,Existe ainda um outro tra­ balho em que se realiza uma efetiva confirmação, com pes­ quisa fundamental apenas para a criação de condições para

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a tomada de decisão. Não é o aplicador do Direito que se abre para o fenômeno, mas a exigência de se confirmar a sabedoria da Lei, que abarca tudo, que regula até o irregulável, é que força a trazer para a dogmática a espe­ culação que, de secundária, olhando-se a finalidade, se torna relevante. Quando a pesquisa se abre, temos a possibilidade de promover mudanças em velhos conceitos. A idéia de con­ trato relacional é um belo exemplo de como i,sto pode ser feito. A dogmática não precisa ser repetidora! a questão é se, com esse enfoque, podemos ampliá-la e superar esse tipo de trabalho. Ao discutir a possibilidade de uma Ciência do Direito, há vinte anos, eu dizia que quando acabásse­ mos com os dogmas (o que é muito complicado) talvez fos­ se possível superar o pensamento que se originou na idade Média. Há principies dogmáticos, quase teológicos, como o da legalidade - em que a Lei prevê uma administração "incrível", no que ela pode· e até no que ela supõem que pode fazer-, que não nos dão espaço. Ao tentarmos reunir dogmática e pesquisa, aparece um aspecto inquiridor dos fundamentos como meio de alargamento das condições de decidibilidade. A dogmática termina absorvendo a pesqui­ sa, utilizando-a para fins próprios.Assim, a pesquisa jurí­ dica é fradlclonalmente limitada. Às vezes percebemos trabalhos que rompem esse estreitamento mas, no Brasil, eu diria que 90% têm essa enorme limitação, com uma forte absorção pela dogmática. Acho que é o suficiente para começarmos.

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PARTE

2.1

·JOSÉ REINALDO LIMA LOPES Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

e da

Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

O professor Terclo lembrou a história da do gmática Jurídica,_ por meio da qual pudemos Imaginar as condi­ ções de sua transformação . Mostrou-nos que o pensa­ mento dogmático assume distintos pressupostos e fo rmas ao l ongo da história. Farei alguns comentários a resp eito disso e, depois, so bre a fala final do professor Terclo. Em primeiro lugar, essa cronologia tem de ser locada paralelamente às fo rmas institucio nais do po der e ao que eu cham,aria de recursos de reso lução de conflitos. Muda a abo rdagem do s juristas à medida que mudam os recursos instit4cionals de resolução dos conflitos. Evidentemente, o saber medieval Ignorava o Estado como nós o conhecemos. Naquela épo ca, o poder político era Jurisdicional, e não le­ gislador, e grande produçã o era de decisões para os confli­ to s.

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Ao l o ngo d o processo histórico, transformações nesse

tipo de recurso repercutiram na do gmática. É verdade que estamos passando por uma mo dificação institucional que nos permitirá uma mudança no pensamento dogmático ? É possível. se considerarmos os atuais recursos e formas de organização do poder político. O professor Tercio insiste no caráter do saber dogmá­ tico e em sua finalidade - que é criar as condições de decidibilidade. Parece-me. do ponto de vista da pesquisa

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em Direito , extremamente imp o rtante, p o rque é o que marca o Início da separação entre saber Jurídic o e ciên­ cia m o derna. A ciência moderna propõe a supressão da finalidade, o que me lembra Francis Bacon 15: para as coisas humanas talvez, Interessem os fins, mas para co­ nhecerm o s o funcionamento da natureza, nã o é neces­ sária. O pro fess o r Tercl o reitero u de diversas maneiras que o pr o blema da finalidade c o nstantem ent e se col o ca para o pensamento Jurídico . Mesm o que Juízes e Juristas Ignorem ou disfarcem, a sua ativi dade é flnalística. Re­ to mando , aqui, uma linguagem tradicional do pensamento fllosóflco , é isto que faz a diferenciação entre razã o prá­ tica e especulativa. A pretensão dos Juristas não é ape­ nas especular - no século XIX h ouve, sim, esta pretensão de fazer uma ciência que de t erminasse verdades especulativas, emb o ra terminasse sempre produzindo um saber aplicativo e finalístico. Ao final, o professo r Tércl o n o s lembra a dificuldade de a dogmática se livrar dos d o gmas. Eu diria que, h o je, cada vez mais temos claro que fazer uma Ciência do Di­ reit o é problemático , po rque é um saber práticorUm sa­ ber prático que não co rresponde à técnica, mas a um saber fazer.·Eu gostaria, portanto, de introduzir alguns pontos interessantes para o caso de, efetivamente, pro duzirmos pesquisa em Direito. Segundo

o

professor Tercio, a pes­

quisa se faz nas disciplinas auxiliares, paralelas ao Di­ reito, se c o nsideram o s a d o gmática c o mo um núcleo "duro" que é, como um saber sobre os dogmas. Acredito 15

Fiiósofo e ensaísta britânico do século XVI, 1561-1626.

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que há uma possibilidade de pesquisa em dogmática jurídi­ ca desde que reconheçamos seus limites e características. Para o professor Terclo Sampaio, é possível uma pes­ quisa criativa; eu diria que muitas vezes ela se torna pos­ sível e necessária nos momentos de transição, de grandes mudanças - ocasião que nos propicia uma visão diversa dos instrumentos. Ouvimos acerca dos contratos relacionais e, inclusive, é a tese do professor Ronaldo que traz para o Brasil esta questão. Tomando-os como exem­ plo, o que acontece na teoria dos contratos? Se voltarmos aos séculos XIII e XIV, a teoria pressupunha uma nature­ za dos contratos. Mas a natureza dos contratos, para o medieval, não era a mesma da pensada por um alemão do século XIX. Eles reconheciam dois problemas na estrutu­ ra çlos contratos: eram instrumentos de distribuição e comutação, e percebiam que os contratos eram instru­ mentos de relação, mas havia diferentes tipos de relação. Eles poderiam ser cooperativos (chamados contratos comunicatórios). como um contrato de casamento; ou separatórios. Os medievais analisavam a natureza dos contratos através de suas relações e, a partir daí, traça­ vam seus conceitos dogmáticos. Isto nos chama a atenção para um primeiro proble­ ma: é possível fazer uma reflexão, usando o instrumental da dogmática, com a perspectiva de conceber uma solu­ ção para os conflitos? ,Essa investigação pressupõe problematizarmos o mundo. tfemos de separar os proble­ mas jurídicos dos lingüísticos. Há um problema lingüístico muito comum entre os juristas, que é fazer exegeses dos textos e Ignorar que por trás deles há conflitos cuja natu-

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reza precisam Investigar a natureza. Talvez por isto o professor Terclo afirme que na dogmática não se faz in­ vestigação da natureza de que falo, dada pela História, pelas Ciências Sociais, e pela Filosofia. Acredito que o pro­ blema deve ser colocado como de pesquisa em Direito se as formulações da questão e da resposta se dão em ter­ mos jurídicos (normativos). Eventualmente, no curso da pesquisa e mesmo da prática jurídica, precisamos inven­ tar estes termos. São criações de realidades. Como o pro­ fessor também afirma, a linguagem jurídica cria seus próprios objetos. Isto significa que há problemas jurídicos por serem idenUficados, Investigados. Algo curioso que fazemos com um aluno que nos chega com um trabalho em dogmática é perguntar: qual é o seu problema? t,. maioria não tem problema, apenas quer abordar o assunto como em uma dissertação,. Assim é muito fácil cairmos nas citações de outros que já escreveram sobre o assunto; Deve-se criar um problema jurídico, mesmo que ele já tenha solução, porque a iniciação científica será uma oportunidade para compreendê-lo melhor, o que é extremamente válido. Acompanhando o que fazem as outras disciplinas, é necessária a consciência do objeto de pesquisa. Nós ju­ ristas devemos confessar que o nosso objeto está em conceitos prescrltlvos-normativos, sem a vergonha de afirmar que o nosso saber é uma discussão sobre as re­ gras. O professor Tercio usava em suas obras a expres­ são "caráter cripto-normativo do Direito". O que é um Direito subjetivo? Os autores do século XIII jamais falaram nisto. Os do século XV III só falam em Direito subjetivo. '"':

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Nos séculos XVI e XVII misturam, falam dos diversos con­ ceitos. Agora Já temos estipulados os conceitos, que se­ rão os objetos Jurídicos. É importante a distinção, como as outras ciências fazem, dos métodos e procedimentos. Outra vez, deve­ mos confessar o caráter do método Jurídico - o método filosófico, dialético. Em Direito não é possível aplicar as demonstrações, no entanto, não só é possível, como,àp.li-líf' camos,a todo instante, as refutaçõe5',É uma maneira de proceder própria dos juristas. Refutamos boas e más ra­ zões, testamos a universalidade de determinados concei­ tos, soluções e regras. E o fazemos como na Fiiosofia. O método é, portanto, argumentatiyo.Q.uando argumenta­ mos desse modo estamos fazendo dogmática jurídica, e boa dogmática jurídica. Eu vejo que nos momentos de gran­ de modificação histórica essa argumentaçãQ cresce; não apenas porque eu quero vencer o meu adversário, mas porque eu quero mostrar que o seu ponto de vista é insus­ tentável. Evidentemente, eu o faço com certos pontos de partida. No século XIII os pontos de partida eram uns: não se'!conslderava a sociedade um artefato contratual, não era artificial e sim natural. Então, argumentava-se a partir disto. No século XVIII o pensamento crítico sus­ pende a idéia das sociedades naturais - e o ponto de par­ tida para a argumentação passou a ser outro. Os nossos procedimentos giram em torno das nor­ mas..Como podemos realizar pesquisas? 1.1.á alguns exem­ plos de o que pesquisar, além de Investigações conceituais. Podemos investigar qual é a orientação de um tribunal. e saber se ele sempre decide da mesma formai Os antigos

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diziam que as decisões dos tribunais valiam quando eram, por um longo tempo e em número suficiente, as mesmas, adquirindo, assim, condição de Igualdade frente aos cos­ tumes ou à Constituição do Príncipe. Como quantificar as decisões dos tribunais? Quais tribunais são comparáveis? Se quisermos comparar o Tribunal de Justiça de São Paulo com o do Rio Grande do Sul, ou o de Minas Gerais, qual é a justificativa? Os resultados serão quantitativos e quali­ tativos. Confesso que, certa vez, eu me engajei em uma pesquisa dessas com os meus alunos. Pesquisávamos qual era a direção majoritária das decisões do tribunal em de­ terminado assunto, e quais argumentos eram utilizados. Constatamos, muitas vezes, inclina ções ideológicas desacompanhadas de argumentos. Um colega nosso, anos atrás, fez uma pesquisa na UNS 16 sobre as tendências do Supremo Tribunal Federal. Depois de quantificar e sepa­ rar as matérias (em tributária, criminal, etc.), ele consta­ tou que o senso-comum, a respeito de o que pensa o STF, é equivocado. Decisões utilizadas como paradigmáticas eram episódicas. Outra maneira de pesquisar.é nos surpreendermos e não nos conformarmos com certas f ormas de decidir.. No­ vamente devemos confessar: o Direito é dependente. Re­ centemente lia os comentários de Bártolo, às instituições de Justiniano, em que havia uma grande discussão, bem ao modelo aristotélico: qual seria a causa formal do Di­ reito? Qual a causa eficiente? Ele dizia: "Concluo que a nossa disciplina está submetido (sub-posto) à ética. o 16

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Direito é algo dependente disso". Acho que nós juristas só nos damos conta dos problemas, e os colocamos como normativos e Jurídicos, quando, em última instâricia, perce­ bemos que há questões éticas a serem resolvidas. Exemplos atuais são as questões de distribuição de poder, de recursos, e da reforma do Estado, que estão condicionadas a uma dis­ cussão ética. Penso que há a possibilidade destes acordos mínimos. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte admite, nem sempre acertadamente, que está discutindo questões éticas importantes para a manutenção do Estado. Assim, há a possibilidade de construirmos problemas, objetos, métodos e procedimentos para uma pesquisa prescritivo-normativa (dogmática) em Direito. Acredito que essa é a forma de racionalidade com que trabalhamos, e reconhecer isso ajudaria muito a pesquisa dogmática, porque as discussões sobre os problemas em Direito se­ riam mais honestas.

PARTE

2.2

RONALDO PORTO MACEDO JR. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

Abordarei aqui a filosofia do Direito, retomando os conceitos do professor Terclo, não de uma perspectiva his­ tórica, mas de uma perspectiva analítica, ou quase

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)\"?

topológica. Apresentarei também um argumento acerca do tema "o que é pesquisa em Direito" e, ao final, mostra­ rei o que podemos visualizar como uma pesquisa no cam­ po dogmático. Já foi salientado, e eu aceito essa definição, que dogma- é uma opinião estabelecida e não questionada. Acho que a dogmática é uma espécie de opinião Jurídica racionalizada com base em determinados dogmas. Nes­ se sentido, a dogmática se reporta a esse processo de racionalização que visa tornar as opiniões estáveis, fi­ xas, ensináveis, transmissíveis e coordenadas (através de sentenças, acórdãos, leis); implicando em um alto grau de obrigatoriedade. A técnica se reporta mais à maneira pela qual, por exemplo, um Juiz opera determinadas categorias, ao pas­ so que a dogmática é uma tecnologia, uma doutrina, uma sistematização das técnicas para a realização de uma dada atividade. Nesse sentido, é importante �hamar des­ de Já a atenção, a dogmática é um procedimento teórico, doutrinário, não apenas técnico ..Eu quero insistir nesse ponto porque, me parece, uma parte significativa do que se produz na academia não ultrapassa esse limite - não é mais que uma exposição de técnicas, um repertório um pouco ilustrado, que não constitui uma reflexão teórica, racionalizante, sobre como os dogmas podem ser opera­ dostAlgumas dessas obras técnicas, dizia um amigo meu da promotoria, são boas e úteis muletas que não pode­ mos dispensar. Qual é o papel da teoria do Direito? Qual é o seu lugar em relação à dogmática Jurídica? Parece-me que a função

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da Teoria do Direito é unificar determinados dogmas fun­ damentais, ou seja, coordenar a maneira pela qual são embasados e estruturados, Esse foi o esquema básico para a articulação entre a teoria do Direito e a dogmática Jurídi­ ca a partir da Idade Média. À mesma época, um espaço funcional começava a se delinear. Existiam trabalhos de filósofos delimitando o que, mais tarde, seria a Filosofia do Direito (uma especulação quanto aos fundamentos da Jus­ tiça). Dentro desta concepção, o papel da Fiiosofia em re­ lação à Teoria seria duplo. A Filosofia do Direito participa da concepção da Teoria na medida em que, historicamente, esta pressupõe Idéias e experimentos conceituais ofereci­ dos pela primeira. Um segundo papel estaria relacionado ao fato de que a Filosofia, ao emprestar essa parafernália conceituai, não se limita a Isso; sua dimensão crítica ques­ tiona as próprias categorias emprestadas à Teoria. É releva·nte observar que a experiência moderna de positivação do Direito é uma relação que, no século XX, 1 passa a ser distinta entre teoria e dogmática. A Teoria do Direito ganha um caráter descritivo e se assenta em pres­ supostos epistemológicos céticos, ou mais próximos da reflexão da ciência moderna. A meu ver, do ponto de vista metódológlco, a relação muda: a Teoria do Direito deixa de ser aquele campo do conhecimento que oferecia um núcleo sólido para a construção da dogmática, caminhan­ do, paulatinamente, na direção de se tornar uma dlsclpll­ na independente que visa analisar. e não fundamentar. Para o jurista, o mundo conceituai conquista autonomia sem depender de uma fundamentação metafísica para a sua existência. Essa parafernália conceituai, a dogmática Ju-

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rídlca, torna-se um obJeto,,Cada vez mais, é isto que trans­ forma a relação histórica da Fllosofla com a Teoria do Direito. Enquanto a dogmática Jurídica se autonomiza, a tripartição teorla-fllosofla-dogmátlca de alguma forma começa a se reembaralhar - a Teoria do Direito torna-se mais filosófica, mas com novas preocupações e definições quanto ao que é Filosofia. Paralelamente à modificação do papel e da natureza da discussão dos objetos da Filosofia contemporânea, a experiência jurídica e o Estado moderno modificam-se com maior intensidade. O tempo para a Incorporação de mé­ todos e categorias teóricas também tende a encurtar-se. Uma indicação prática para o que estou dizendo foi a ve­ locidade com que o Direito Antltruste chegou no Brasil informado por categorias, princípios de análise, métodos de compreensão hermenêuticos e uma dogmática com­ pletamente alheia, extravagante; claramente choca-se com a dogmática tradicional brasileira (analítica versus finalística) e gera problemas pela inconsistência da lin­ guagem. Feita esta topologia das categorias, acho relevante pensarmos no espaço que existe atualmente para a pes­ quisa no campo dogmático. A teoria seria um setor privi­ legiado. Se quisermos, por exemplo, compreender como se constitui a dogmática no campo antitruste seria multo importante identificar a Influência de categorias e concei­ tos da análise econômica para a aplicação no Direito. O que s� percebe é a necessidade da utilização de outros repertórios teóricos para redefinir a questão da dogmática jurídica.

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A dogmática jurídica é uma tautologia imperfeita. A imperfeição não decorre apenas das falhas de racionaliza­ ção, mas também das dogmáticas analíticas mal feitas. Ima­ gino que a escolha da subsunção adequada de uma norma ou de um problema em relação a um sistema jurídico seria um enfoque privilegiado para faculdades. Verificamos o for­ talecimento da importância de outros modelos de análise dogmática, notadamente o empírico e o hermenêutico. A ra­ zão para isto é a existência de dogmáticas já estabelecidas em determinadas áreas e raramente postas em xeque. Mas há outros campos em que este xeque (imperfeição tauto­ lógica) é verificado com maior intensidade - são exatamente os que mereceriam prioridade, um maior esforço de pes­ quisa. Por que certas categorias dogmáticas não funcio­ nam em determinados campos? O professor Carlos Ari Sundfeld, chama a atenção para o fato de muitos orientadores de conduta (agências regu­ ladoras), em Direito Administrativo, serem ignorados por boa parte da doutrina administrativista, o que revela a necessidade de pesquisas dogmáticas na área. Quando temos uma doutrina que diz que o que existe não existe, que as agências reguladoras são uma excrescência cons­ titucional, devemos compreendê-la em seu funcionamen­ to para definir quais categorias e racionalizações seriam mais adequadas. Vivemos um momento de crise ímpar em algumas categorias dogmáticas, quando, no entanto, para outras há estabilidade - a de registros públicos é um bom exemplo. Finalizando, abordarei agora o que seriam pesqui­ sas relevantes no âmbito de uma nova faculdade de Direi-

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to. Um dos campos em dogmática, citado pelo professor Reinaldo, que seria dos mais férteis, é o da Jurisprudên­ cia.lo próprio professor José Reinaldo, em uma das pes­ quisas de Jurisprudência que fez no Tribunal de Justiça de São Paulo, especificamente quanto aos planos de saúde, constatou que em boa parcela das sentenças pró-consu­ midor não havia sequer referência ao Código de Defesa do Consumidor. Um raciocínio possível seria que desembargadores ignoravam o Código; mas uma possibi­ lidade mais interessante seria analisar que mesmo sem invocar o fundamento normativo do Código de Defesa do Consumidor, os resultados eram semelhantes. Esse é um dos aspectos essenciais para entendernios como a dogmática está mudando, sem o reconhecim'ento explíci­ to de outro registro normativo. Acho que o campo do Di 7, reito.Comparadoié igualmente privilegiado para a análise dogmática. Quais seriam as teorias adequadas? E os pro­ blemas de tradução quando se comparam dogmáticas dis­ tintas? É um campo muito pobre no Brasil, em que as pesquisas trazem históricos e trechos de uma página so­ bre o Direito em outros países como em um esforço de erudição sem Justificativa ou efetivo acréscimo. A análise econômica.também é um campo que merece mais análise. Com isso, não estou afirmando qualquer preferência metodológica e sim reconhecendo que a utilização destes instrumentos, na intersecção de Direito com Economia, criaria uma dogmática mais crítica, moderna e adequada às necessidades de operação do sistema jurídico. Em diversos campos - como o Direito Antitruste, o Ambiental, o do Comércio Internacional - encontramos uma

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dogmática desatualizada e Inaplicável às disciplinas. Im­ põe-se um trabalho de pesquisa ao Jurista brasileiro. por­ que precisamos operaclonallzar uma nova dinâmica Jurídica.

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Mas, porque as pessoas se preocupam com Filosofia do Direito, epistemologia, semiótica e lógica Jurídica em Di­ reito Tributário? Porque "dá dinheiro" e, sendo assim, se dedicam ao que for necessário. É incrível, porque eu acom­ panho os avanços nesta área, leio teses, e vejo questio­

DEBATES + Eurico Oiniz de Santi (Direito GV) Minha Intenção é dirigir uma exposição ao professor Terclo, para submetê-la à análise. Acho que a FGV está Inaugurando uma visão diferenciada do estudo do Direi­ to. A questão central é a dogmática, e as exposições fo­ ram maravilhosas. O professor Terclo teceu uma história do termo dogmática, o professor Reinaldo retrabalhou esta questão e propôs um objeto e o Ronaldo sintetizou novas propostas. Tomando o mote do Ronaldo, para reenquadrar a dogmática, foi dito que os dogmas não são questiona­ dos e há uma tautologiá imperfeita. Tenho uma notícia sobre a dogmática, talvez canhestra, com a qual trabalho há dez anos. A peculiari­ dade do Direito Tributário é que está voltado ao empresa­ riado e, antes de uma Justiça Ideal - que a meu ver não existe -, busca uma justiça formal que dê segurança ao empresário. Parece que atende ao desígnio da Getúlio Vargas, ·que é formar consultores. Quanto a esse Direito, temos de definir o objeto para proporcionar segurança aos destinatários das regras. Ne$Se sentido, o fruto do Direito tem brotado com força no campo tributário. Por que no Direito lrlbutárlo? Pri­ meiro, porque é um ramo aplicado, com casos concretos.

namentos acerca dos dogmas o tempo Inteiro. Dentro da nossa área, fá se rompeu há multo tempo a idéia de que interpretar é buscar o verdadeiro sentido da regra. Temos plena consciência de que a Interpretação é uma construção de sentido. A forma de romper com essa Interpretação e de controlá-la é ajustando o discurso científico, construindo uma teoria, uma epistemologia, um discurso rigoroso para ser submetido à crítica, à dialética. Novamente, falamos de uma dogmática crítica. No Direito Tributário, fizeram aproximações com a semiótica do texto e, através desta sistemática, busca­ ram as marcas da enunciação no momento histórico de produção da Lei, visando compreendê-la. Assim, foi res­ gatado um método histórico rigoroso, permitindo à pes­ quisa Identificar o que motivou a criação da Lei, e dando impulso a uma forma bastante Interessante de compreen­ são do Direito. A dogmática é essencial para revelar o que a Lei quer transmitir. Houve uma crítica de Oscar Vilhena nesse sen­ tido, contudo, eu não concordo. Multas vezes, a dogmática se fecha e não aceita a Lei que mudou. Volto à questão sobre a eventual necessidade de uma dogmática rigorosa como referencial para a pesquisa para nos enquadrarmos às Instituições positivadas do País. De certa forma, a lega­ lidade é uma representação democrática do nosso Direito.

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Temos de eleger um referencial. Se a Lei muda, se o con­ ceito muda, criando uma nova realidade, eu preciso me submeter a ela. Parece-me que o principal é estabelecer uma dogmática. Podemos demarcar vários objetos que são quase uma ciên­ cia específica, mas o central é encontrar critérios objetivos para descrever o Direito com todo o rigor possível, através de um discurso permeável, intersubjetivo, ao qual todos acessem e que possa ser criticado dentro de uma dialética sem abandonar as Instituições.

+ Luís Virgílio Acredito que o problema preliminar, quando se fala em dogmática jurídica, é compreender o sentido do termo - muitas vezes as interpretações não são uniformes. Como o professor Terclo afirma, na Alemanha fala-se em dogmática Jurídica simplesmente como a Ciência do Di­ reito. O que me deixa perplexo é a impressão de impossi­ bilidade da pesquisa coexistindo com a dogmática, porque neste caso, supostamente, não haveria crítica. Meu racio­ cínio parece raso e exagerado, mas é a impressão que tenho quando converso com as pessoas. Ao afirmar para alguém que o seu trabalho é dogmático, logo ouço como resposta: "de maneira alguma". Permanece uma idéia de um trabalho sem crítica, que apenas reproduziria outras opiniões. Acho possível fazer dogmática com crítica. Eu enten­ do a dogmática como um método jurídico por excelência. Um trabalho pode ser dogmático somente por não utili­ zar um método das ciências auxiliares, uma aproxima-

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ção filosófica ou sociológica. Posso analisar conceitos e mesmo a Jurisprudência empiricamente, ou ser crítico fren­ te à decidibilidade sem deixar a dogmática. Na minha opinião é isso que, comumente, se pede na iniciação cien­ tífica, quando muitos entram em pânico ao ter de preen­ cher o Item "qual é o seu método de trabalho". Alguns pensam que é ler e escrever, quando a resposta deveria remeter à aproximação com o objeto. Isso fica patente no caso da análise de jurisprudên­ cia: os juízes pensam "isso não é um trabalho jurídico". Como o professor Reinaldo afirma, podemos demonstrar como o tribunal decide em um trabalho de estagiário ou, em um caso mais extenso, em um trabalho de cientista político. O trabalho pode ser dogmático e revelar qual é a análise de um tribunal em determinado período. Seria notadamente crítico. Acredito, portanto, que':no Brasil há uma confusão de dogmática com falta de crítica. Essa hipertrofia do dogma como algo não passível de crítica é um equívoco. A dogmática é um método jurídico por exce­ lência que pressupõe a crítica. A produção científica em outros países é, essencialmente, dogmática e crítica. Pen­ so que uma coisa não exclui a outra. Não sei se a posição do professor Terclo é esta... Acredito que a dogmática não serve apenas aos trabalhos básicos e de decldlbllldade.

+ Marcos Nobre

Ontem, o centro de minha apresentação era a confu­ são entre a Ciência do Direito e a Dogmática. O texto que apresentei levantou uma dúvida, que aproveitarei para ti­ rar agora. Na minha opinião, discutir o que é pesquisa em

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Direito significa dizer que pesquisa só se faz em ciência, portanto, o que está em causa é o que é a Ciência do Dl­ reit9. Sendo esta a discussão, há duas conseqüências: te­ mos de limitar o objeto e determinar qual será o critério de clentlflcldade. Quando eu fazia a longa citação de conclusão, esta­ va preocupado com a distinção entre dogmática e Ciência do Direito. No final das contas, depois de ler atentamente o texto, concluí que não conseguia distinguir multo bem, que Ciência do Direito e dogmática eram sinônimos. Ha­ via alguns "exercícios de perfumaria", como disse o pro­ fessor Tercio na entrevista que me deu 17 , mas Ciência do Direito é dogmática, e presa à questão da decidibilidade e a um objeto muito claro. Sendo assim, temos a mera téc­ nica ou a dogmática que é uma sistematização da doutri­ na. O'i'a, pensando na idéia do professor Terclo de estatu!o tecnológico do Direito, a conclusão é que estamos diante de uma "técnica de segundo grau" e não uma ciência. Não consigo enxergar bem essa dfferença entre ciência e téc­ nica no Direito. Acho que a questão da decidibilidade não é suficiente, é um momento reflexivo da própria técnica. O professor Reinaldo falou com todas as letras que o Direito se separou da ciência moderna. Eu concluo que ele se torna técnica. O professor Reinaldo diz que não é bem assim, é um "saber prático". Fiquei atrapalhado, por­ que �ara mim um saber prático está ligado à prudência e coisas muito antigas. Sem distinguir, não consigo avan17

NOBRE, Marcos, Conversas com Filósofos Brasileiros, São Pau­ lo, Ed. 34 Letras, 2000.

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çar, porque não sei qual é a área de investigação própria do Direito. No passo seguinte, temos uma tal tecnlzação da ciência que, para mim, é a Ciência do Direito. Isso fica particularmente difícil com a proposta do professor José Reinaldo. Ele e o professor Terclo concordam em grande parte e, então, o professor Reinaldo estabelece uma agen­ da de pesquisa. Inicia com a pesquisa de jurisprudência, que seria básica e ainda não fazemos. Outro ponto levantado pelos professores foi o doca­ ráter estlpulatlvo e construtivo da dogmática em vez de só reconstrutivo. O professor Terclo afirmou que no sécu­ lo XIX existia somente o caráter reconstrutivo que, paula­ tinamente, assumiu um caráter também construtivo (atribuído como "estipulativo" pelo professor José Reinaldo). Traduzindo para a nossa prática jurídica, o que tentei dizer ontem foi que a função do manual é afirmar que o mundo funciona como descreve. A conseqüência é que, formando todos os operadores do Direito com esta premissa, logo o mundo começa a funcionar segundo o manual. A questão é se queremos e podemos continuar presos a esse tipo de paradigma. Penso, quanto à delimi­ tação do objeto, em o que é e o que não é Direito. Estudar Jurisprudência é assunto da Ciência do Direito ou não? Mais uma vez chegamos às disciplinas auxiliares. Quan­ do ouço "disciplinas auxiliares" eu nem sei o que fazer. Quanto ao estudo da jurisprudência, porque eu não posso chamar de dogmática? Elaborando um projeto de pesqui­ sa sobre a distância entre o manual e a realidade dos tri­ bunais, porque eu não poderia chamá-lo de Direito? A minha dificuldade é como essa distinção entre técnica e

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ciência não acaba "manchando" as outras coisas, e como não guarda uma certa pureza para a dogmática sem que haja uma razão para tal - eu teria de excluir o estudo da jurisprudência, porque eu perderia o critério da decidibilidade. No fundo, o que estamos discutindo aqui é se o Direito serve ou não para compreendermos o mundo. Eu acho que serve, mas não sei se a concepção de dogmática que temos hoje nos permite entender o Direito como um instrumento para compreender o mundo - se não serve, é uma mera técnica.

• Tércio Sampaio Ferraz Acho que podemos juntar as questões. O Eurico fala do aproveitamento de outras formas de conhecimento como a Semiótica provocando uma expansão diferente da dogmática tributária. O Virgílio encara a possibilidade de uma dogmática crítica. E perguntamos se estamos falan­ do em técr:ilca ou ciência. Eu acho que podemos juntar as perguntas. Começando pela terceira, acho importante dizer que não estou fazendo uma identificação reducionista do sa­ ber jurídico à dogmática. A dogmática é um pedaço que desde o século XIX tomou conta das faculdades de tal maneira, que passou a existir ela e "o resto". Não pode­ mos reduzir tudo à dogmática; o Direito é muito mais com­ plexo. O estudo do Direito abarca uma idéia de saber que torna esse estudo muito complicado. Evidentemente, quan­ do reduzimos à dogmática, por comodidade, fica mais fá­ cil lidar com tudo Isto. Em razão disto, 98% dos estudantes terminam fazendo só dogmática pelo resto da vida. Quando

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começa e quando termina o primeiro ano de faculdade eu digo aos alunos: "passar ?e ano e exercer profissão é muito fácil, mas fazer Ciência do Direito é co111plícadíssi­ mo; vocês acabarão a sua vida e não entenderão a com­ plexidade de tudo isso". Por que a distinção entre ciência e técnica, na forma como o direito se apresenta hoje? São diferenças conceituais sem qualquer pretensão de descrever estritamente uma re­ alidade - por isto podem ser contestadas com facilidade. De uma forma Intuitiva, é possível buscarmos exemplos em outras ciências onde isso também aparece. Semana passa­ da eu via uma pesquisa da .LISP sobre um modo de obturar sem desgastar o dente. Houve uma pesquisa técnica capaz de construir um aparelho que não causa dor e, mais do que isso, dizia o comentador, elimina o ruído. Foi exigido um desenvolvimento que eu colocaria no campo tecnológico. Depois, realmente será necessário o treinamento de técni­ cos para lidar com isto, o que é uma outra etapa. Provavel­ mente, para realizar essa pesquisa tecnológica, é indispensável lidar com teoria pura (Anatomia, etc.), para preparar esse saber e lidar com ele. É verdade que as coi­ sas se misturam; mas essa tecnologia é algo da era moder­ na, do século XX. No começo da era modera, havia um saber prático, voltado para a prudência, a justiça, a !=Onfirmação do certo. Esse lado técnicq do Direito trata mais de fazer que de discutir. A idéia de 'separar as três noções tinha o objetivo de mostrar onde se encaixa o saber dogmático (eu acho que entra no saber tecnológico). l_sto não significa que o saber dogmático seja acrítico, como foi apontado. Não é crítico como a Filosofia, por

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exemplo. A Filosofia não se prende a pressupostos, o que resulta em um saber critico exacerbado. A dogmá­ tica não é uma forma "tapada" de olhar o dogma. Entro agora na questão do Eurico. Há uma expressão Interes­ sante sobre Isso: "o saber dogmático parte de dogmas, mas não é uma repetição de dogmas". Partir do dogma significa que eu não posso colocá-lo para fora - eu não posso esquecer que existe a Lei, por exemplo. Aí entra um princípio chamado legalidade, que não me deixa fa­ zer diferente. O pesquisador dogmático tem a capacidade de am­ pliar as certezas de um modo controlado. Ele nunca per­ de de vista que precisa criar condições para que decisões sejam .tomadas. Quando o Direito Tributário absorve a Semiótica, isto ocorre controladamente. A dogmática tra­ balhou, nos últimos 200 anos, a construção conceituai (dogmática analítica). Simultaneamente houve um tra­ balho pela busca de sentido, e a hermenêutica se desen­ volveu bastante. Curiosamente, a tomada de decisão foi a que menos se desenvolveu - quase não houve teoria da decisão no século XIX, dado o dogma da subjunção. A teoria da decisão, no Direi_to, é um campo de pesquisa em aberto. Resumindo, e voltando à pergunta, eu acho que no passado houve uma fórmula fácil de se perceber o Direito como uma ciência prática. A palavra prática ainda pos­ suía toda a tradição da Antigüidade, em que prática era, práxis e estava ligada à ação, ao agir com justiça e, por­ tanto, a idéia de prudência era muito forte. A partir do século XVIII, o juiz não tem de ser imparcial. ele tem de

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ser objetivo. Isto acabou com a prudência e Introduziu a necessidade de tecnologia. Tornou-se necessário produ­ zir uma decisão em que a subjetividade não se Imiscuísse. Nesse momento, a ciência prática e a subjetividade termi­ naram em favor da objetividade.

+ Ronaldo Porto Macedo Jr.

Com relação a essa distinção entre filosofia, teoria e dogmática, eu tendo a achar que ela tem uma função di­ dática muito importante, porque delimita de maneira efi­ caz qual deve ser o campo de pesquisa privilegiado em uma faculdade de Direito. Nesta articulação entre a teo­ ria do Direito e a dogmática deve estar o campo privilegi­ ado dos esforços, do investimento institucional e das preocupações. Sobre a tomada de decisão, me parece que este tema tem sido dos mais negligenciados. Freqüentemente, no CADE 18 , as decisões são tomadas com base em informa­ ções Imperfeitas, gerando resistência de ordem cultural mais forte entre os economistas que entre os juristas. Os economistas têm uma imensa dificuldade de decidir com informações imperfeitas, embora analisem com mais cla­ reza. Qual é o conceito de evidência forte para a decisão? Quando se inverte o ônus da prova? São questões muito complicadas e não resolvidas, porque o repertório de so­ luções dogmáticas é pobre.

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Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão do Mi­ nistério da Justiça.

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+ (não identificado)

Eu represento as disciplinas auxiliares e queria re­ gistrar que essa angústia epistemológica e metodológica existe sempre. O sociólogo não tem a pressão de decidir e julgar, mas constantemente está envolvido em situações políticas. A questão metodológica na Sociologia tem pa­ ralelos com o que vocês estão fazendo. Por exemplo, será que a experiência humana não é sempre decisória? A segunda observação é com referência à Teologia. Tive contato com o meio e acho que aquela relação entre dogmática e Teologia tem de ser revista. Nos meios do pensamento teológico, durante o pós-guerra, a ênfase deixou de estar na dogmática e passou à profecia. A ma­ nipulação das massas e a aplicação ética da doutrina são pontos importantes porque, vez por outra, algum movi­ mento fundamentalista retoma princípios pouco práticos. Eu gostaria de ouvi-lo sobre Isso.

+ Carlos Eduardo Batalha (Núcleo Direito Democracia-CEBRAP)

O prof. Tercio diz que há um campo aberto em rela­ ção à decisão, e que seria um campo de estudo bastante interessante, a pergunta que me vem é por que não tem sido feito. É uma negligência da dogmática ou uma limita­ ção dela? Neste último caso, para a elaboração de uma teoria da decisão seria preciso a superação da dogmática e a abertura para alguma outra forma de estudo do Direi­ to. Já que essa é uma área aberta, qual seria o estatuto para a realização dessa pesquisa? Eu gostaria de abrir esta pergunta em três.

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é Nas suas obras o prof. Tercio diz que o dogma o inescapável para o jurista, e que isso tem a ver com ação. conhecimento jurídico ser um saber voltado para a ori­ Se eu não estou enganado, o senhor afirma que para as entar a sociedade são necessários dogmas. Sem os dogm vel haveria uma paralisia da ação. Por quê? Seria possí uma forma de conhecimento jurídico que orientasse a ação oe sem os dogmas? Que relação o senhor vê entre ensin '. pesquisa? , A última: partindo do } eu diagnóstico sobre a decadência da legislação, no séc lo XIX, em favor d� dogmática, qual seria a locallzação da retomada de certas questões no zetéticas acontecida no s�culo XX, como aparece Habermas 19 ou no Rawls? i

+ (não identificado)

É possível identificarmos se a boa pesquisa em Direi­ to é aquela que busca a4 respostas certas ou aquela procedlmentalmente bem feita?

+ Tércio Sampaio Ferraz

A expressão disciplinas auxiliares tem um sentido pe­ jorativo na medida em que, no ensino do Direito, a dogmática toma conta. Então, tudo aquilo que não tem o objetivo de criar condições para o aprendizado ou para tomar decisões, é secundário. É perfeitamente possível percebermos a incerteza com que se trata o assunto (no 19

Jilrgen Habermas, filósofo alemão, autor de Direito e demo­ i 997. cracia: entre factlcldade e validade, Tempo Brasileiro, J

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CNPq2º , na CAPES21 ), visível quando lemos classificações como "Ciências Sociais Aplicadas". Dlsclpllnas se Interpenetram mas precisam ser classificadas separada­ mente. O Direito, ao ser pesquisado, sempre caía na defi­ nição Ciências Sociais Aplicadas. Eu Implicava um pouco com Isso, embora pensássemos a dogmática como o es­ tudo do Direito - que não é só Isto. Era tentador, certas vezes, classificar a pesquisa proposta em Direito na Soclo­ log!a, Por que não? : No final da década de 60 houve uma distinção entre do�mática e zetética, aquele pensamento que não questi­ onamos e aquele que o deveria ser. Dava-se a entender que a Idéia seria aplicável em qualquer ciência, não ne­ ces.sarlamente em Humanas. É claro que a palavra dogma tem vários sentidos, e deles estamos utilizando o da con­ dição (premissa) da ação. Não estou me referindo, neces­ sariamente, à noção de dogma da Idade Média. Se nós começarmos a questionar o sentido de cada palavra que usarmos aqui. chegaremos a uma impossibilidade de co­ municação. Portanto, o modo de pensar zetétlco está em qualquer disciplina ,e, no Direito, é secundário. Uma dogmática econômiêa, ou uma dogmática sociológica, seguramente tem pressupostos diferentes da Jurídica. A prisão para o jurista é mais forte. Por exemplo, há a premissa da legalidade estrita. A dogmática cria Incerte­ za; mas de uma forma controlada. Nesse sentido, as dis­ ciplinas mais zetéticas são realmente mais livres. 20 21

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e TecnológJco Conselho de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior

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Quanto à Teologia, quando eu comecei a exposição estava me referindo à da Idade Média. Assim como existe uma dogmática diferente da Medieval, o mesmo ocorre com a Teologia. Por que não existe uma teoria dogmática da decisão? Existe; O que eu quis dizer é que foi pouco desenvolvida, especialmente se compararmos com a dogmática analítica ou a hermenêutica. Ela não se desen­ volveu tanto porque, no fundo, quando um Juiz decide, a subjunção ainda está presente no inconsciente. Eu quis dizer que estamos vivendo uma situação de mudança so­ cial de altíssima complexidade na tomada de decisões, e que não conseguiremos mais resolver com esse estereóti­ po. Foi possível levar com a subjunção por multo tempo, mas agora não dá mais e os exemplos se multiplicam. Acerca de ensino e pesquisa, a pergunta é muito anti­ ga. No campo da dogmática Jurídica, acredito que pode­ mos conciliar os dois e é até fecundo e louvável. Não sei como colocar em prática - talvez a Escola da FGV resolva isto. Sem dúvida, aliar os dois é necessário, no entanto, sei que no ensino de massas que temos é difícil fazer com que todos os alunos pesquisem. Acho que devemos multi­ plicar as formas de contato do aluno com a realidade. Muitas vezes o aluno está pesquisando para elaborar um parecer e, de repente, se entusiasma. Temos de chamá­ lo de lado para dizer que, por trás da pesquisa, há outras coisas. Pesquisa para um parecer é diferente, porque se entrarmos em determinados questionamentos o invia­ bilizamos. É cínico, mas é a realidade. Essa é a relação entre retórica e ética, da qual Aristóteles já falava. A relação entre ensino e pesquisa deveria ser mais íntima, porque é ela

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que "abre" a cabeça do aluno para a realidade e a possi­ bilidade de uma dogmática mais Inteligente. Ainda em relação aos procedimentos da formação de decisão e à recuperação da teoria da legislação, o curioso é que foram citados dois filósofos. Os Juristas que tra­ balharam a teoria da legislação, o fizeram dogmaticamente - quase como um desenvolvimento do Direito Constitucio­ nal. A teoria da legislação que apareceu lá atrás com o Bentham22 , e não prosseguiu, deveria ser recuperada. Finalmente, é possível eleger um método de pesqui­ sa? Lamentavelmente, os manuais mais usados ensinam a adotar o método de citação de opiniões, de repetição, de omissão de uma opinião própria. Este é um mau procedi­ mento. O que o estudante tem de perceber são as incerte­ zas nos dispositivos que regulam as situações. O método para fazer isto é utlllzar as secundárias, porque elas Ini­ ciarão mostrando uma visão externa.

22

Jert'my Bentham ( 1 748-1832). filósofo e jurista Inglês.

CAPÍTULO

III

DIREITO E CIÊNCIAS HUMANAS

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PARTE

3

SÉRGIO ADORNO Professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

É uma grande satisfação poder expor um pouco da minha experiência na interface entre o Direito e a socie­ dade. Primeiramente, quero falar um pouco sobre a minha relação com o objeto para depois ampliar um pouco mais esta reflexão. Venho trabalhando com essa Interface há um certo tempo e, na verdade, meu interesse começou no final de meu curso de graduação em Ciências Sociais na LISP. Na­ quela época, em 1975, estávamos no auge da discussão acer­ ca do fim da ditadura militar e da passagem para uma sociedade democrática. Discutia-se muito a questão do re­ torno ao Estado de Direito. Lembro-me que a minha geração debateu muito o que havia ocorrido na sociedade brasileira sob o ponto de vista Intelectual. A discussão abordava o con­ flito entre autoritarismo e liberalismo. Nossa herança escravista e profundamente autoritária, de alguma forma,

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limitava as possibilidades da construção de uma socieda de democrática no Brasil. Discutiam-se muito os princí pios fundamentais da democracia, mas pouco a questão das instituições e da reconstrução de uma nova normali­ dade democrática. Talvez não enxergássemos com multa clareza este sentido. Resolvi estudar um pouco essa mística do Direito no Brasil. O Interesse era, também, pessoal, já que venho de uma família de funcionários públicos, escreventes de car­ tórios, e amantes da burocracia. Cresci vendo, aos do­ mingos, a família discutindo questões de escritura; sempre achei estas normas e regulamentos multo misteriosos. Elaborei um estudo histórico sobre a formação dos ba­ charéis no Brasil, procurando entender como havia se pro­ cessado a tal formação e como ela se enraizou na cultura política brasileira. Foi um estudo exploratório, levantei a biografia de cerca de dez ex-estudantes de Direito que se notabilizaram na vida pública brasileira do século XIX, como Rui Barbosa, a família Mesquita, Joaquim Nabuco, Prudente de Morais e outros. O mais interessante é que todos, de uma maneira geral, se identificaram herdeiros de uma tradição liberal e, ao mesmo tempo, foram os homens que construíram o chamado Estado autoritário. A minha pergunta era: como essa formação liberal propiciou a es­ tes homens, como políticos profissionais, o trânsito do liberalismo para o autoritarismo? Resolvi fazer um estudo sobre a formação dos bacha­ réis da faculdade de Direito. Um estudo que ficou concen­ trado no âmbito da formação - analisei o que se lia, o que se estudava, e me beneficiando das memórias acadêmicas

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e, sobretudo, da pesquisa na imprensa acadêmica. Esta me revelou que havia uma vida extra-acadêmica muito rica e viva; a formação não se devia à sala de aula ou ao ensino formal, mas sim à vida extra-acadêmica e aos debates. Os bacharéis eram estudantes de uma tradição de amplo debate público e de discussão das questões da sociedade. Encerrei convencido que o problema colocado, a re lação entre liberalismo e autoritarismo era, na verdade, um falsó problema. A questão seria o liberalismo versus a democracia. Os liberais brasileiros eram conservadores e autoritários - o problema era por que não chegaram a ser democráticos ou por que não conseguiram ultrapassar as determinações da liberdade individual e pensar a questão da igu�ldade. Todo esse resumo é para dizer que, desde aquele momento, me Interessei muito por compreender o lugar do Direito na sociedade, como as normas são produzi­ das, circulam, se transformam em instrumentos de domi­ nação, e como elas constituíam espaços de significação da vida social. Continuo muito Interessado nessas ques­ tões, que acho muito tangentes e merecem mais investi­ gações que as existentes hoje na bibliografia brasileira. Antes de terminar minha tese, Já estava trabalhando no banco do Estado as questões da violência. O tema no­ vamente colocou em evidência a temática da regulamen­ tação da vida social, o problema da eficácia das leis, do acesso à justiça e da relação entre a ordem e sua eficácia. Venho pesquisando o tema da violência desde 1970, e digo que é muito complexo porque não se resume ao tema do

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crime, mas às violações dos Direitos Humanos e à violên­ cia acirrada nas relações Intra-subjetivas - brigas entre vizinhos, de casais, entre adolescentes, etc. Trabalhando com esse tema, me preocupei com a evo­ lução dos crimes, da violência e de seus traços; mas uma questão que sempre apareceu com multa força foi o papel do Estado na contenção e repressão da violência. Nos últi­ mos 20 anos, a bibliografia sobre vlolêncla, Direitos Hu­ manos e crime cresceu acentuadamente no campo das Ciências Sociais. Só para terem uma Idéia, fiz uma revisão de literatura dos estudos dlsponfvels no campo das Ciências Soclais;no início dos anos 90, e localizei, na época, cerca de 60 trabalhos. Hoje, duas recentes revisões - uma feita pela professora Alba Zaluar, da UFRJ, e outra feita pelo antro­ pólogo Roberto Kant de Lima23 - apontaram a existência de mais de 300 trabalhos sobre violência. Isso não quer dizer que todos os trabalhos sejam da mesma qualidade, mesmo que traduzam uma série de questões. Um dos pon­ tos que essa literatura trabalha é a crise do sistema de Justiça. Quando se debate a violência no Brasil, sempre há aqueles que enfatizam mais as questões macro-estruturais como a concentração de renda. Alba Zaluar Insiste muito na desorganização que a emergência do tráfico de drogas - este pensado da perspectiva da Internacionalização dos mercados e do contexto da volatilidade dos capitais - pro­ vocou na sociedade brasileira. O outro bloco de questões diz respeito ao sistema de Justiça, Parte da constatação que os crimes e a violência 23

Antropólogo, Professor da Universidade Federal Fluminense.

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cresceram, e que transitamos de uma criminalidade Indi­ vidual para uma organizada sob formas hierarquizadas que, sobretudo, vltimiza os jovens do sexo masculino na faixa dos 15 aos 29 anos. Os crimes mudaram, a violên­ cia mudou de qualidade, e o sistema de Justiça continuou operando como há 10, 30 ou 40 anos. Aumentou o gap entre o perfil dessa violência e a capacidade de o Estado conter essa violência responsabilizando seus autores. Esse tema envolve, portanto, a problemática das leis, das Insti­ tuições e da organização da polícia e dos sistemas Judici­ ário e penitenciário. Assim, pensar um pouco essa questão do ponto de vista da interface entre Direito e soeiedade, pela perspectiva da violência e do crime, é pensar de algu­ ma maneira qual é a capacidade que o Estado tem de con­ ter essa violência com eficácia. Em outras palavras, o problema que aparece para nós é como articular a prote­ ção dos direitos fundamentais dos cidadãos com a apli­ cação da Lei e da ordem. Na questão dos Direitos Humanos constatamos que a população já reconhece que envolvem proteção dos direitos da pessoa e dos direitos sociais, embora ainda seja muito resistente a Isso. Mas as pessoas não fazem qualquer ligação entre Direitos Humanos e Lei e ordem. Para trabalhar esse tema estou fazendo uma pesqui­ sa razoavelmente grande sobre a questão da Impunidade em São Paulo, e digo que essa discussão da relação entre Direitos Humanos e Lei e ordem me levou a uma reflexão em três direções. Eu me referirei a duas e detalharei mais a terceira. A primeira delas é justamente a problemática da relação entre Lei e ordem, nos termos que coloquei

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anteriormente. Para se ter uma idéia, faço uma avaliação da política na área de Segurança do governo Fernando Henrique Cardoso, nos últimos oito anos, e reconheço que houve avanço no domínio dos Direitos Humanos. Por ou­ tro lado, toda a área de Segurança padeceu das dificulda­ des de Implementação e de convencimento da sociedade acerca dos novos planos necessários - que não poderiam se divorciar da proteção aos Direitos Humanos. No fun­ do, a pergunta básica é: qual é a legalidade e a estrutura Jurídica compatível com a democracia e com os Direitos Humanos, eficaz do ponto de vista da proteção ao patrimônio e à vida dos cidadãos? A segunda questão é a problemática da legitimida­ de das instituições encarregadas de implementar leis e exercer o controle social. Assistimos, nos últimos anos, a uma profunda descrença dos cidadãos, nas mais di­ versas escalas sociais, com relação às instituições en­ carregadas de implementar a ordem social - refiro-me aqui à polícia, ao Judiciário e ao sistema prisional. Le­ vantamentos recentes mostram que os cidadãos brasi­ leiros não confiam no funcionamento das suas instituições. Vivemos uma profunda deslegitimação das instituições, o que faz os cidadãos se sentirem desprotegidos e, so­ bretudo, procurarem mecanismos privados de resolução e proteção. Temos, hoje, um mercado de segurança pú­ blica altamente profissionalizado, embora nos bairros periféricos a segurança seja apoiada por traficantes e justiceiros locais. O perigo é que há o comprometimento de um princípio básico da democracia, a crença na capacida­ de das instituições públicas para Intermediar conflitos e

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estabelecer um consenso mínimo quanto à aplicação e ao respeito às leis. O terceiro ponto tem a ver com o tema do monopó­ lio estatal da violência física legítima, que é extrema­ mente importante - alguns pesquisadores brasileiros suspeitam que nós jamais logramos conquistar o mono­ pólio estatal da violência física legítima. O tema do mo­ nopólio não é, evidentemente, novo. É uma discussão clássica: como conciliar a Idéia de Lei, de contenção da violência e de liberdade? Este é um tema que de alguma forma mobilizou uma parte da reflexão política contem­ porânea, porque se consideramos que qualquer limita­ ção é uma violência, qualquer lei será, em princípio, violen.ta. Toda essa reflexão um pouco contemporânea serve para elaborar um pensamento que mostre a possi­ bilidade de contenção da violência através de regras pac­ tuadas e consensuais na sociedade; e que, deste pacto, resulte a liberdade. O resultado é algo Já tradicional da Sociologia Políti­ ca, que vê essa relação entre Lei, ordem, e monopólio es­ tatal da violência como requisito fundamental do Estado Moderno e -como princípio de sua liberdade. Aqui, o meu marco de referência é Weber 24• Há várias passagens em referência a Isso. Valeria a pena me reportar um pouco ao que Weber diz, porque é extremamente significativo. "Por Estado deve entender-se um Instituto político de atividade contínua quando e na medida em que seu quadro admi­ nistrativo mantenha, com êxito, a pretensão ao monopólio 24

Max Weber ( 1864-1920).

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legítimo da coação física para manutenção da ordem vi­ gente". Em um ensaio chamado "Política como Vocação", escrito entre 1918 e 1919, Weber continuou nos seguintes termos: "Em nossa época, no entanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território, reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. É, com efeito, próprio de nossa época não reconhecer, em relação a qual­ quer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer o uso da violência a não ser que o Estado tolere. O Estado se transforma na fonte de direito à violência. O Estado consis­ te em uma relação de dominação do homem sobre o ho­ mem. fundada no instrumento da vlolêncla legítima e, nesta circunstância, o Estado só pode existir sob a condição que os homens dominados se submetam à autoridade continu­ amente reivindicada pelos dominadores". Quero chamar a atenção, nesta definição do Weber, para três aspectos que me parecem importantes. O pri­ meiro deles é a idéia do monopólio da violência. Quando o Weber se refere a esse monopólio, quer dizer "apenas o Estado tem essa prerrogativa de recorrer à violência". Todos os demais grupos que recorram à violência para a resolução de questões privadas são caracterizados pela ilegitimidade. O segundo aspect9 é que, quando o Weber reivindica para o Estado o monopólio da violência, não significa que este pode utilizar a violência de qualquer modo. mas somente para se defender de uma agressão externa ou para garantir a unidade Interna de uma socie­ dade fracionada. Assim mesmo. diz Weber, em circuns­ tâncias regulamentadas; porque a legitimidade do ato

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col nclde com sua legalidade. A terceira Idéia que me parece Importante é a noção de território. Lembro que a Antropo­ logia foi a área das Ciências Sociais que mais explorou o tema do território - ao lado da Sociologia Política, quando estuda a questão da guerra. Mas não é um tema, de fato, de peso sob o ponto de vista das implicações com o Direito, com a ordem normativa e, sobretudo, com a representação simbólica do uso do espaço e do território. O problema todo é que, quando recorremos à litera­ tura que fala sobre o monopólio da violência, lemos que o monopólio não é mais uma questão do Estado contempo­ râneo, porque a noção de território que era a base da so­ berania clássica desapareceu. Surgem o que chamamos de obituários da soberania do Estado e do monopólio es­ tatal da violência. Citarei dois autores; um deles chamado David Garland25 , que produziu estudos comprovando a profunda erosão na idéia de soberania e a indefinição dos limites do território como espaço de realização do mono­ pólio da violência. O Garland insiste em dois aspectos fun­ damentais: um deles é a ampla difusão das chamadas políticas de policiamento comunitário que, segundo ele, longe de ser um processo de aperfeiçoamento do policia­ mento, é uma transferência da responsabilidade do Esta­ do para a comunidade; a segunda questão é que. com a Internacionalização do crime, cada vez mais a polícia In­ ternacional diminui a Importância da polícia local. 25

David W. Garland, professor da New York Unlversity School of Law, autor de The Culture of Contrai: Crime and Soe/a/ Order in Contemporary Society. Unlverslty of Chicago Press, 2001

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Esse debate quer colocar em evidência que a questão do monopólio estatal da violência física legítima não se refere mais ao Estado contemporâneo. Insistir em refor­ mas na Justiça e na legalidade, que retomem o problema do monopólio, diria Garland, é voltar atrás. Quanto a isto, um outro analista chamado Herbert contesta Garland. Ele argumenta que apesar da difusão da polícia comunitária, do rápido crescimento do mercado de segurança privada, e da internacionalização dos controles policiais, nada é suficiente para romper com o modelo estatal do Estado Moderno. A crítica dele é o não-funcionamento efetivo da polícia comunitária, que apesar da privatização da segu­ rança não significa o enfraquecimento da soberania do País, já que toda a iniciativa policial continua nas mãos da polícia local. O argumento de Herbert é que o monopó­ lio permanece no horizonte dessa literatura sobre violên­ cia e controle da violência. Concluo que, nesse campo que envolve violência e Direitos Humanos, temos um programa de investigação bastante provocativo pela frente. De certo modo ele está pautado por questões tradicionais como legitimidade e ordem, mas precisamos pensar estas questões sob a pers­ pectiva de o que é a sociedade contemporânea e, sobretu­ do, do estatuto da regulamentação em uma sociedade na qual os limites das fronteiras estão em fase de transfor­ mação.

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PARTE

3.1

ÜSCAR VILHENA VIEIRA Professor d" Faculdade de Direito d" Pontifícia Universidade CatólicQ de São PQulo e da Escola de Direito de São PQulo da Fundação Getúlio Vargas

Voltarei um pouco para fazer uma colocação bem mais genérica que a do professor Sérgio, expondo outras conexões possíveis entre as Ciências Humanas,e o Direito. Contarei alguns detalhes de minha vida para exemplificar aquilo que estou dizendo. Lembro-me que, em 1983, estava a caminho da sede do CNPQpara protocolar meu pedido de bolsa de inicia­ ção clen.tfflca na área do Direito, quando duas moças no balcão àflrmaram que não havia a área. Mostrei a elas que também se chamava Ciências Humanas Ap'llcadas, ao que responderam "engraçado, nunca apareceu ninguém aqui". Não sei se era verdade ou se as moças estavam trabalhando lá há pouco tempo, mas demonstra como era pouco usual que os alunos de Direito fizessem pesquisa neste sentido lnstltuclonalizado. Lembro-me que, na fa­ culdade de Direito, as pessoas me olhavam com um certo preconceito, como se eu estivesse levando alguma vanta­ gem sobre os alunos, Já que eu iria ganhar para fazer aqui­ lo que muitos faziam sem receber. isso demarca um pouco como o mundo do Direito nunca explorou as possibilida­ des de realização da pesquisa. As pessoas sempre viram muito mais as lnstândas de fomento à pesquisa como ins­ tâncias de subsídio financeiro para se fazer. uma pesquisa

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Individual, e nunca no sentido da Institucionalização. Tanto que dos centros de pesquisa que surgiram nos anos 80 e 90, pouqufsslmos tiveram como foco a questão do Direi­ to; os que enfocaram o Direito foram criados fora das uni­ versidades. Por que houve essa prática? Porque Isso nem sempre foi verdade no Brasil. Grande parte do que pensamos so­ bre o País foi produzido por juristas. Tomo como exemplo Oliveira Vlanna 26 , que foi um dos grandes sociólogos e antropólogos brasileiros. O fato é que passamos a reco­ nhecer as necessidades e os remédios a serem aplicados no País por mãos de pessoas que vieram do universo Jurí­ dico. Em que medida esse Direito abarcador de todas as outras Ciências Humanas abandona essa sua tarefa e se concentra apenas na produção da análise da norma? Essa necessidade de se purificar das outras ciências faz com que haja um engajamento de grande parte de nossos ju­ ristas na discussão pura da norma. De certa forma, os manualistas - citados várias ve­ zes - buscam descrever as melhores interpretações para essas normas. A Ciência do Direito se volta quase que exclusivamente para esse tipo de prática acadêmica, cha­ mada opinativa. Acho que realmente é uma boa definição, porque são opiniões sem o menor fundamento, seja em análise sociológica ou em filosófica. São simples escolhas pessoais que levam a pessoa a resolver um problema jurí­ dico de uma maneira especial. A meu ver, a nossa Ciência 26

Autor de Instituições Políticas Bras//elras, Itatiaia Editora, 1987 e Populações Meridionais do Bras/1, Itatiaia Editora, 1987.

D que é pesquisa em Direito 7

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do Direito é absolutamente Idiossincrática e focada em norma e Inimizades pessoais. Isso é o que tem sido pro­ duzido ao longo das últimas décadas - estou retirando destas décadas os nomes dos grandes Juristas que foram capazes de pensar o Brasil e Influenciar nosso pensamen­ to, Independentemente de concordarmos ou não com eles. Esse é, a meu ver, o momento em que a Ciência do Direito perdeu a oportunidade de se construir enquanto uma ci­ ência fundamental, e optou por uma saída técnica mais limitada onde passou a ser Instrumentalizada pelas de­ mais ordens de demanda e ciências. Um segundo ponto, deixando agora a Ciência do Di­ reito e partindo para as outras ciências. Analisando o Di­ reito, gostaria de saber o quanto elas se preocuparam com a disciplina. Houve um certo distanciamento, a partir dos anos 60, dessa discussão sobre o Direito. Em primeiro lugar, porque uma parte dos cientistas sociais passou a analisar as Ciências sob uma perspectiva marxista. E, nesta perspectiva, sabemos que a Importância do Direito é bas­ tante secundária. Por outro lado, não havia um grande interesse nesse tipo de pesquisa, porque durante o regime militar o Direito tinha pouca importância. Lembrarei aqui só mais uma passagem biográfica: um grande historiador brasileiro, quando estava na minha banca de qualifica­ ção, analisando como as cláusulas superconstitucionais poderiam Inviabilizar qualquer golpe, virou-se e disse: "golpe se dá. Ninguém vai olhar em um livro para ver se pode ou não pode dar". Deu as costas para a análise que as Ciências Sociais poderiam fazer sobre o Direito. O pou­ co de Ciência Social acerca do Direito, ainda no final do

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Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

regime militar, era sobre a questão eleitoral. Acho que aí temos um ponto de mudança extremamente importante, que é o início do processo de democratização e da Cons­ tituição de 1988. As pessoas começam a se dar conta que existe uma nova normatividade, e que dentro de um regi­ me constitucional e democrático as instituições do Direi­ to devem ter um papel importante. Logo, seria curioso sabermos qual o impacto dessa nova normatividade so­ bre a realidade social. Surgiram diversos trabalhos na área das Ciências Humanas buscando compreender o Direito. O professor Sérgio Adorno é um exemplo disto. Começamos a dispor de pesquisas extremamente relevantes na área da Socio­ logia, voltadas à questão da Lei e da Ordem, do monopó­ lio e do poder estatal. Do ponto de vista da Ciência Política, há pesquisas sobre o Judiciário - eu mesmo fiz um traba­ lho sobre o Judiciário dentro da Escola de Ciência Política, porque na Faculdade de Direito não havia espaço para se discutir o Supremo Tribunal Federal na perspectiva do seu papel institucional na democracia que estava se forman­ do no Brasil. Hoje, ao contrário, abriu-se um campo de trabalho sobre a instituição Poder Judiciário, enquanto a Ciência Política também abre um campo sobre as institui­ ções de produção do Direito. Ampliamos o leque de pes­ quisadores de fora do Direito, que olham para dentro do Direito - Instituição e conseqüência. Isto me parece um avanço extremamente importante. Hoje recomendo aos meus alunos que querem aprender Direito que não leiam livros da disciplina, mas leiam livros que estejam sendo produzidos por fora. Se você quiser compreender o Con-

O que é pcsqlllsa em Direito 7

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gresso Brasileiro, leia um trabalho de Ciência Política so­ bre o Congresso. Se alguém quiser entender o Supremo Tribunal Federal, não recorra a um manual de Direito Cons­ titucional que diz "O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição", e etc., mas procurem algum trabalho de Ciências Sociais que analise como o STF decide. Sinto que estamos vivendo um momento riquíssimo. O Direito está passando por um olhar interdisciplinar da Eco­ nomia, da Política, Sociologia e da Antropologia. Assim, o desafio é saber como Incorporaremos estes outros olhares ao nosso olhar do Direito. O que falta sobre o Direito é o olhar do jurista, porque ele enxerga apenas a norma. Há um grande cardápio de áreas em que nós, juristas, poderí­ amos nos envolver levando em consideração as diversas disciplinas que se colocam na fronteira das Ciências Hu­ manas com o Direito. Acho que existe um grande campo de trabalho, reaberto pelo finado professor John Rawls27 , na área da discussão sobre os fundamentos do Direito. O que era quase um sacrilégio - fazer uma pesquisa sobre os fun­ damentos do Direito nos anos 50, 60 e 70 no Brasil - pas­ sou a ser uma oportunidade devida à filosofia anglo-saxã Impulsionada pelo professor Rawls. Penso que também há um campo aberto aos juristas na área do estudo das insti­ tuições. O Direito Público abandonou este papel de tentar compreender o impacto das instituições. Parece-me que o experimentalismo institucional brasileiro é fabuloso:

27

John Rawls ( 1921-2002), filósofo norte-americano, autor de Uma Teoria da Justiça, Martins Fontes, 2002 e Justiça como Equidade, Martins Fontes, 2003.

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Escola de Direito da Fundação Getúllo Vargas

Inventamos Instituições sem levar em consideração quais Impactos elas podem ter sobre a realidade. E falando em realidade, há um campo enorme de trabalho Junto à Socio­ logia, principalmente voltado ao entendimento das práti­ cas sociais do Direito, ou seja, de como o Direito produzido é efetivamente aplicado na micro-cena. Corno a polícia aplica o Direito? Corno ela distingue quem parar ou não na rua? Que relação isto tem com o princípio de igualdade da Cons­ tituição? Corno o Judiciário aplica? Isso também pode ser incorporado pelo Direito. A questão das normas é continuar com a doutrina, que é importantíssima; a visão das normas deve estar, no en­ tanto, acoplada àquilo que também é Direito e à Jurispru­ dência. Acredito que o modo que se trata da Jurisprudência no Brasil é totalmente relapso e negligente, servindo so­ mente para legitimar posições. Deveríamos saber como decidem os nossos tribunais, o que eles decidem e quais as conseqüências. Por fim, acredito que também há um trabalho a ser feito junto dos economistas e filósofos, que é a discussão sobre os efeitos do Direito, sejam eles sobre os princípios de justiça ou em relação à eficiência que este Direito deve promover. Ternos, sim, urna agenda possível de análise interdisciplinar que nos permite pensar e compreender o Direito de urna maneira mais ampla do que vem sendo feito no Brasil. Se não formos capazes de Incorporar es:­ sas novas dimensões, nos tornamos simplesmente Instru­ mentais no Jogo institucional e Intelectual brasileiro; se formos capazes de dar um passo adiante e incorporarmos as outras percepções, certamente as nossas posições deixam

O que é pesquisa em Direito l

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de ser as de um mero técnico e passam a ser as de um arquiteto dessas formas de evolução Institucional pela qual estamos passando.

DEBATES

+ Carlos Ari Sundfeld

Esta é a nossa questão central: como podemos utilizar toda essa experiência de pesquisa com método, de levanta­ mentos produzidos e de produção científica fora da área do Direito para produzir a nossa própria experiência? Corno o professor de Direito pode contribuir usando essas reflexões? Vamos ouvir agora o professor Sérgio, em sua defesa.

+ Sérgio Adorno

Talvez eu possa reagir a duas ou três questões colo­ cadas por Oscar Vilhena que considero importantes. Acre­ dito que tenha razão quando mostra que as duas tradições - a que vem das Ciências Sociais e a que vem do Direito têm raízes e histórias diferentes. Logo que terminei meu curso de Ciências Sociais, comecei a freqüentar o grupo de trabalho chamado Direito e Sociedade, da ANPOCS28 • Lem­ bro-me que os juristas que também participavam do gru­ po, que eram da PUC do Rio de Janeiro, estavam lá para sair do Direito normativo. Assim, quero dizer que o forte na tradição das Ciências Sociais brasileiras é a pesquisa 28

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciên­ cias Sociais.

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Escola de Direito da Fundação Gettí/io Vargas

empírica. De alguma maneira, o aprendizado das idéias e modelos de pensamento dos sociólogos e cientistas sociais é embasado na construção do objeto científico. Acho que essa tradição ainda não é forte no campo do Direito. De fato, quero dizer que não se desenvolveu, efetiva­ mente, uma Sociologia Jurídica brasileira porque talvez outras áreas estivessem pouco desenvolvidas também. Nos anos 60 e 70, desenvolveu-se aqui uma Sociologia do de­ senvolvimento que pensava a vida social atrelada à ques­ tão do desenvolvimento; não tinha propriamente uma Sociologia da política. Acho que a Sociologia Jurídica é retardada, começando aqui no Brasil a partir dos anos 70. Certamente Já havia um enorme prenúncio dessa pes­ quisa a partir dos anos 60, com o livro sobre Antropolo­ gia Jurídica de Robert Shirley29 , com o livro da Maria Sylvia de Carvalho Franco, "Os Homens Livres na Ordem Escravocrata" e o de Vítor Nunes Lea1 3° . Havia um pre­ núncio na época, e não um campo. 29

30

Professor da Universidade de Toronto (Canadá), Professor ad­ junto da Universidade Estadual de Campinas, Membro do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade cje São Paulo. Autor de Antropologia Jurídica, Editora Saraiva, São Paulo, 1987. Primeiro presidente do Instituto de Ciências Sociais, criado em 1959 e depois transformado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nomeado em 1960 para o cargo de Ministro do Su­ premo Tribunal Federal (STF). Integrou o grupo de professo­ res e cientistas que formulou e Implementou o projeto da Universidade de Brasília em 1962, tornando-se, em seguida, regente da cadeira de ciência política e, mais tarde, da cadei­ ra de direito constitucional dessa Instituição. Em 1966 foi designado para compor o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Autor de Coronellsmo, Enxada e Voto, Nova Fronteira, 1997.

O que é pesquisa em Direito l

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Acho interessante ter um campo programático e as linhas de pesquisa abordadas por Oscar, mas não sei se seria uma estratégia deixar este campo amadurecer um pouco e investir em pesquisa empírica. Como sociólogo, acredito que é preciso acumular observações e conheci­ mento sobre os campos que ainda não estão frutificados. É uma questão de estratégia. Talvez seja possível poster­ gar um pouco esse programa por um mais amplo de acúmulo de informações. Mas este é um debate...

+ Marcos Nobre

Pergunto ao professor Sérgio Adorno o seguinte: po­ demos fazer esse campo comum, abrindo a pauta de inves­ tigações e deixar livre para depois sistematizar. Mas, e se não houver esse padrão de investigação no Direito? Posso constituir esse campo nas Ciências Sociais sem nenhum problema porque, quando houver algum ponto discordan­ te, chamarei um consultor, anexarei o seu relatório ao meu e assim irá. Como farei isto de verdade e de modo que o Direito entre como um elemento real de um diálogo interdisciplinar? Aproveito minha pergunta para questio­ nar o professor sobre sua experiência no Núcleo de Estu­ dos da Violência. Vamos tomar o exemplo do monopólio estatal da violência: temos pesquisa básica em Direito su­ ficie�te para discutir uma soberania que seja adequada, ou estamos repetindo há 30 anos manuais de 50 anos atrás? É possível fazer Isso sem que você constitua no Direito um padrão de Investigação novo? Atrelar o Direito às outras disciplinas é fácil, mas fazer com que o Direito, como disci­ plina autônoma, participe de um diálogo, é mais difícil.

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O que é pesquisa em Direito l

Escola de Direito da Fundaçdo Getúlio Vargas

+ Judith Martins Costa

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viu nas faculdades de Direito foi a tentativa de superar esse modelo do parecer através da produção de um esforço he­

Não podemos discutir pesquisa quando há uma coisa

róico de se fazer uma filosofia do Direito na faculdade.

mais forte que é a não-pesquisa - o que chamamos de opi­ nião. Como incorporar esses outros olhares sobre o Direi­

Isto está relacionado ao enclausuramento da facul­

to? Todas as análises que nos explicam o Direito vêm de

dade de Direito e à falta de definição da especificidade

pesquisas de outras áreas das Ciências Humanas. Isso

do Jurista. Acho que uma das características do olhar do jurista é ser capaz de pensar as instituições no seu de­

mostra um problema na organização do ensino do Direito. Quanto às colocações do professor Adorno, nessa

talhe - sejam elas burocráticas ou do aparato decisório

relação entre Direito e sociedade, será que nós conhece­

judicial. Ele deve saber operar com uma série de regras que freqüentemente o economista e o filósofo não conhe­

m'os realmente qual sociedade está sendo analisada? No

cem. Não se trata apenas da interdisciplinaridade, mas

Direito, não conhecemos essa sociedade. Não conheço e

da falta de foco. Freqüentemente, esses esforços herói­

não tenho como saber através do que se formou o Direito

cos foram multo mal enfocados, colocando talentos para

no Brasil. Quero saber qual é essa sociedade à qual o Di­

produzir uma pesquisa no lugar errado, com os

reito se dirige e como esta sociedade interage com o Di­

interlocutores errados.

reito. É uma relação que não entendo. Sei que é uma falha

Em outro aspecto, o professor Adorno chama muito a

da organização do ensino.

atenção para a análise sociológica empírica. Curiosamen­

+ Ronaldo Porto Macedo Jr.

te, o tipo de ensino de Sociologia Jurídica na faculdade de Direito não é nada empírico, ou seja, vivemos uma certa

De fato, não só o Direito renasce como preocupação

euforia funclonallsta no ensino Jurídico paulistano. Isto se

teórica, mas também a Sociologia, a Antropologia e a Fi­

reporta a um aspecto que a teoria distingue, entre Socio­

tosofia. Há dez anos, não havia quem se Importasse com

logia do Direito e Jurídica, ou seja, o Direito como objeto

d tema Filosofia do Direito na faculdade de Filosofia da

da reflexão sociológica e os modelos sociológicos de aná­

LISP. Pensar nesta dlsclplina era pensar em Kant e Hegel.

lise da disciplina. Assim, gostaria de ouvir o professor em

Hoje, ao contrário, há uma preocupação do Direito como

relação a esse cenário que vemos e em relação a essa

objeto da Ciência Política - os trabalhos do professor Sér­

reflexão de modelos sociológicos e análise jurídicas.

gio Adorno são exemplo disso.

Outra pergunta: como o professor Adorno vê essa

Concordo com o pensamento de Oscar, para quem, ao se ensinar aos alunos o que faz o Supremo, deveria se Indi­ car uma rica bibliografia paralela ao invés de pedir para ler os manuais de Direito. Durante um bóm tempo, o que se

••• ·t

questão tão comum de uma espécie de colonização da So­ ciologia pela Economia? Aproveito a mesma questão para o professor Oscar, perguntando como vê essa questão do

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Escola de Direito da Fundação Gelliiio \largas

ponto de vista da Ciência Política. Como lidar com essa questão dos empréstimos metodológicos?

+ Esdras Costa Faço agora duas observações. Uma delas refere-se à sugestão do professor Sérgio, sobre a necessidade de se au­ mentar os estudos empíricos até que seja possível estruturar melhor o campo do Direito no estudo sociológico. Minha pri­ meira reação é muito favorável, mas tenho dúvidas sobre com quais perguntas nos dirigiremos à pesquisa empírica. Isto é um pouco mais complicado quando há uma tendência de se insistir na ground theo,y, ou seja, na possibilidade de se descobrir teoria na própria prática da pesquisa empírica. Nesta experiência, a questão da decifração dos fenômenos levanta para o sociólogo um grande desafio teórico, conceituai e matemático. Então, acho que sua sugestão é muito valiosa mas tem, no entanto, algumas dificuldades práticas que também encontramos na Sociologia. O outro ponto é que, imagino, a discussão acerca do lugar do Direito na Sociologia ocorre com uma visão mais recente. Gostaria, no entanto, de lembrar que os nossos grandes pais fundadores eram grandes juristas e suas experiências não·só influíram por terem descoberto pro­ blemas como também por criticarem o Direito. Acredito que estou precisando reler Weber a partir da inspiração que ele foi para os Juristas e da maneira que estes têm aproveitado o estudioso. Precisamos voltar a formular essa preocupação de saber quais são as ba­ ses, dentro da própria experiência do Direito, para fazer pesquisa.

O que é pesquisa em Oirelio ?

t.: \

+ Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Como Incorporar esses olhares externos ao Direito a um curso de Direito? Sugiro, aqui, alguns pontos para pensarmos, em função da minha experiência de docente nestes cursos - embora minhas graduações sejam em Ci­ ências Sociais e em Direito, e o mestrado e o doutorado em Antropologia. Há uma tendência, muito sutil, até nos cursos de Direito mais-tradicionais, de abrir uma brecha na disciplina Metodologia da Pesquisa Jurídica. Eu, pelo menos, nunca fui tão requisitada para lecionar metodologia em cursos de Direito quanto nos últimos anos. Especialr'nente por­ que as monografias de conclusão de curso têm se tornado uma obrigação. E é surpreendente como os alunos - às vezes, infelizmente, já no quinto ano - se interessam por pesquisa empírica e documental; eles têm a noção que um parecer não é pesquisa e que os manuais repetem as mes­ mas coisas há trinta anos. Deve se investir multo no pensar metodologia de pes­ quisa - seja ela voltada à pesquisa doutrinária, empírica ou jurisprudenclal -, que acompanhará o aluno nos vários anos de graduação. Não vejo outra maneira de se fazer Isto senão colocando o conhecimento das Ciências Soci­ ais como instrumental do Direito, e vice-versa. E aí tem de haver uma humildade recíproca, porque ninguém é dono da verdade nesse assunto. Nós, cientistas sociais, dominamos algumas técnicas que nenhum aluno de Direito aprenderá em um ano. E nós, que somos das Ciências Sociais e não temos um profundo conhecimento das várias áreas do Direito, não podemos

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Escola de Direito da F11ndaçífo Getúlio Vargas

nos meter a tratar dessas q u estões com as minúcias q u e q u ef!1 é da área tem condições. Acho, realmente, q u e essa composição de professores em uma mesma disciplina pode ser Interessante. Eu, por exemplo, leciono metodologia para os cursos de especialização em Direito Público e Processual Clvll da Escola S u perior de Advocacia da OAB. São áreas q u e não domino tecnicamente, embora formada em Direito. Assim. falei aos al u nos que poderia ajudá-los no q u e diz respeito a coino pensar um projeto de pesq u isa o u u m referencial teórico, embora não pudesse a u xiliá-los q u anto ao con­ teúdo das q u estões de Direito Process u al Civil, q u e não domino. Eles aceitaram o fato de haver uma d u pla orien­ tação. Orientarei os alunos metodologicamente, enq u an­ to o u tro professor orientará sobre o tema q u e cada al u no escolher para a s u a monografia. Acho que tem de haver uma combinação corno essa desde o primeiro ano de c u rso, e não no último.

+ (não identificado) Não sei se o qu e colocarei aq u i é exatamente urna per­ g u nta o u urna tentativa de contrib u ição à reflexão de u m curso de Direito q u e pretende começar de u ma forma dife­ renciada. Essa perg u nta tema do nosso workshop lernbrou­ rne uma perg u nta q u e o Roberto Lira fazia já na década de 80: pesq u isa em qu al Direito? Ele já denunciava o problema de urna ciência q u e trabalha com u m objeto pré-determi­ nado e dogmatizado, qu e é a nossa ciência j u rídica. ,Parece-me qu e esse paradigma condiciona a nossa ci­ ência a ponto de não nos deixar desenvolvê-la sob outros

O que é pesquisa em Direito ?

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olhares. Mesmo as tentativas de reforma do ensino J u rídico feitas há alg u m tempo, fr u straram-me bastante, à medida que m u damos a grade curric u lar do c u rso b u scando dar urna formação diferenciada ao nosso profissional mas, por conta do despreparo dos docentes, fica a Impressão que o est u do do Direito só começa no terceiro ano da faculdade. E os al u nos nos cobram isso, perg u ntando: "Quando va­ mos começar a estudar Direito?". Entramos, então, nessa questão da problemática do ensino j u rídico em si, que é u m mero reprodutor dessa ciência j u rídica através de seus manuais, no q u al o pro­ fessor ensina o Direito conforme aprendeu. Assim, te­ mos manuais que chegam à trigésima sexta edição sem u rna vírg u la modificada. Com isso, o aluno sai sem a mínima noção de realidade da vida social. Tenho convic­ ção q u e existe u rna limitação epistemológica, q u e é a concepção do Direito enq u anto norma jurídica e que es­ t u dar o Direito é estudar a norma. O Direito at u al está completamente afastado da rea­ lidade social e não serve mais para resolver os problemas que a modernidade nos coloca. Hoje, somos cerca de 605 c u rsos no Brasil - mais da metade, da última década - e todos dentro dessa formatação. As notas do Provão reve­ lam que o ensino não tem q u alidade. Parece-me q u e esse momento é de r u pt u ra de paradigmas e q u e precisamos de todos esses o u tros olha­ res para buscar u ma ciência diferente dessa forjada no século XVIII e com a q u al contin u amos trabalhando como se fosse nova.

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Escola de 0/rello da Fundação Getúlio Vargns

+ (não identificado) Serei breve em minha questão. Quando o professor Oscar falou sobre as agendas de pesquisa possíveis, para abrir o Direito às outras Ciências Sociais, abordou os fun­ damentos e efeitos do Direito, além da doutrina. Minha pergunta é: será que o modo como o Direito se abriria para as Ciências Sociais seria somente por meio da "com­ pra" de uma agenda que já faz parte das outras ciências, ou pode-se, também, inserir elementos dessas ciências na análise da doutrina jurídica? Esta tem de ser sempre auto­ referenciada para o próprio sistema normativo ou pode se valer de elementos de outras disciplinas como Econo­ mia, Sociologia e Ciências Políticas, visando enriquecer a análise do próprio Direito?

+ Oscar Vilhena Acho que todas as indagações levam ao mesmo pon­ to. Quando coloquei que existem diversos outros olhares sobre o Direito, que evoluíram muito na última década, e que nos fazem compreender a disciplina de uma maneira diferente, não significa que a faculdade de Direito tem de se tornar uma faculdade de multi-disciplinas que olham para o Direito. Não seremos bons sociólogos ou filósofos e, se o formos, certamente não seremos bons advogados - e Isso é um problema para quem sai com um diploma de Direito. Não há dúvida nenhuma que o nosso objeto principal seja aquilo que vincula e impõe as condutas. Mas parece haver uma confusão simplista disto com a norma escrita no código. O que nos vincula e nos é Imposto é algo muito

O que é pesquisa em Direito ?

� '· 5

maior do que isso. As práticas institucionais é que me p a ­ recem problemáticas. Precisamos, também, indagar se so­ mos aplicadores do Direito na condição de validade daquele Direito sobre um ponto de vista teórico e filosófico. Ao meu ver, o nosso foco é o Direito, não devendo se transformar em outras coisas. Temos de ter um pouco de humildade para saber que existem outros olhares sobre o Direito. Se pudermos aprender um pouco destas outras gramáticas já é muito bom. O ideal é que o nosso aluno seja submetido tanto à nossa visão do Direito quanto à de outras pessoas, e que descubra que talvez não tenhamos mais salvação. Temos de viabilizar essa embocadura nova para o aluno. Como não incorrer no perigo de colonização? Acredito que esse risco não é tão levado a sério hoje mas, nos Esta­ dos Unidos, já acharam que o Direito se transformaria em um instrumento de maximização de utilidade. Parece-me que isso se dará a partir de uma montagem do nosso uni­ versq de pesquisa; e, discordando um pouco de Sérgio Ador­ no, não temos de nos transformar em uma escola de pesquisa em Sociologia para montar um grande campo empírico, mas temos de dialogar com quem já faz isso. Esse é o nosso papel. Acho, então, que o nosso foco deve ser a solução dos problemas jurídicos que se colocam à nossa frente. Na questão das privatizações: como resolveremos isto Incorporando a lógica econômica e a Justiça social? Não podemos abandonar o olhar do Direito e de como se vinculam condutas e'm uma determinada sociedade. Temos que incorporar outras formas de percepção sobre esse mesmo tema.

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Escola de Direito da Fundaçifo Gettíllo Vargàs

+ Sérgio Adorno

Quero começar a responder as questões pela Inda­ gação do professor Esdras. É claro que não defendo aqui a empirla pela emplrla, ou um olhar cego pelo social. Eu, que venho de uma tradição em que o fundamental é a cons­ trução de um problema, acredito ser um bom sociólogo aquele que sabe perguntar bem para ter as respostas ade­ quadas. Quais são os problemas relevantes? De onde vêm as inquietações? Estas são as perguntas fundamentais. Aprendi, com meus professores e com Florestan Fern�ndes, que o primeiró olhar de um sociólogo é problematizar a sociedade tal como ela é vista pelo senso comum. O segundo é a transformação de um problema social em um problema de Investigação sociológica. Acho, então, que o ponto de partida é, no fundo, saber quais são os pontos relevantes. Insistirei em Durkhelm31, pois, como estou dando curso e, portanto, relendo seus livros, acabo pegando seus exemplos. Ele, dado um certo momento, estava preocupa­ do com o problema da crise moral da sociedade moderna e acreditava que não bastava reordenar a Justiça social sem ter outros princípios orientadores de convivência so­ cial e solidariedade. Acho que devemos refletir quais são as questões que mobilizam um programa de investigações. Quando insis­ to na observação dos estudos empíricos, quero dizer que devemos abrir o olhar do pesquisador do campo do Direito para a sociedade abrangente. Nós, ao contrário, olhamos 31

Emile Durkheim ( 1858-1917).

O que é pesquisa em Direito ?

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da sociedade para o Direito. Nós, sociólogos, temos mui­ ta dificuldade em entender o Direito como ciência; consi­ go pensar que a disciplina é uma dimensão da vida social como a cultura ou o Estado. Isso me leva a pensar que temos de fazer o caminho Inverso, olhando para o social. Acontece que muitas ve­ zes olhamos com uma certa cisão; uma coisa é o que fala o Direito e outra é o que fala a sociedade. E aí os cursos falham, porque, na verdade, tornam-se multidisciplinares e não permitem ao aluno uma síntese. Temos de nos es­ forçar no olhar, e fundar uma perspectiva científica. Com isso, já respondo à outra questão do Ronaldo. Para mim, uma coisa é pensar quais são os modelos socio­ lógicos de se refletir o Direito, e outra é saber quais são os modelos científicos de que se dispõem para pensar o Di­ reito em relação à sociedade. Se pensarmos quais são os modelos, constataríamos que nossa tradição sociológica pensou em vários. Um pensa o Direito como, por excelên­ cia, um ponto da unidade social; um outro pensou a disci­ plina no campo da regulamentação e ainda há aquele que pensa o Direito como expressão e lugar de decifração. Eu, por exemplo, quando estudo questões de violência, estou mais preocupado em entender o que esse conflito diz a respeito da nossa sociedade do que em resolver um pro­ blema de patologia social. Acho que temos versões sobre a sociedade brasileira; o problema é a decifração da contemporaneidade. Uma coisa é o olhar sobre o passado - que podemos constituir sobre diferentes pontos de vista - outra é tentar decifrar o momento presente, da contemporaneidade.

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Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

Concordo com o que disse, que temos um treinamen­ to técnico que nos diferencia dos juristas e outros profis­ sionais da área. Mas acho que a questão não é técnica, e sim metodológica. Trata-se de instituir um olhar diferente na relação sujeito-objeto, que pode ser até uma relação de ruptura. Esta relação precisa ser construída no campo do Direito, e ainda não a vejo claramente. Acho, então, que o Direito deve continuar fazendo o que faz de melhor: os ensaios sobre a sua fundamentação teórica. Penso que devemos nos aproximar mais de uma epistemologia no campo científico. Por fim, comento um pouco sobre a fala de Marcos. Acho que se vocês querem fundamentar o Direito na pes­ quisa, devo perguntar em qual modelo de pesquisa vocês estão pensando. Vocês só precisam apontar por que es­ tão negando o método de pesquisa anterior e a razão de quererem uma nova. Acho que por mais que as grandes tradições tenham sido alteradas, questões clássicas do tipo experimentação e das regras de observação empírica têm de ser enfrentadas. Finalmente, acredito que há um forte renascimento do neofuncionalismo na Sociologia, mas não é verdade que isso seja tão hegemônico. Acho que esse modelo é muito mais um exercício de observação do que um mode­ lo de explicação, que tem de ser exercitado na imagina­ ção científica.

CAPÍTULO

IV

, DIREITO E ECONOMIA

O que é pesquisa em Direito 7

141

PARTE

4

PERSIO ARIDA Professor da Faculdade de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Depois de várias tratativas combinamos que eu fala­ ria sobre uma perspectiva diferente, porém complemen­ tar: como a pesquisa em Economia pensa o Direito. Tentarei transmitir como a norma legal é pensada nos est�dos de teoria econômica. A teoria econômica à qual estarei me referindo aqui é a dominante hoje em dia, ou neoclássica, não mencionando teorias marxistas ou alternativas. Minha idéia aqui é tentar fazer uma taxonomia dos tipos de modelos usados em Economia para pensar ques­ tões jurídicas. Para isso, abordarei quatro tipos de mode­ los usados em economia. O primeiro deles pensa a norma legal como distorção ao sistema de mercado, ou seja. é um modelo no qual o economista pensa que o mercado está funcionando bem no ponto de vista de alocação eficiente de recursos mas, no entanto, alguma norma impede esse mer­ cado de funcionar, gerando conseqüências econômicas. Essa primeira classe pensa a norma como distorção.

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Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

A segunda classe de modelos pensa a norma jurídica como necessária para corrigir o funcionamento Ineficiente do mercado. Já pela terceira classe, me referirei a fenôme­ nos intrinsecamente normativos e responder, dada a sua característica, que norma melhor se coaduna com a alocação eficiente de recursos. Por último, darei um exem­ plo particular da última classe de modelos, que pensa a questão do aprendizado conjunto, ou seja, da evolução legal e da evolução da vida econômica. O primeiro exemplo para o modelo que pensa a nor­ ma como uma distorção do mercado, ocorreu em Nova York com os vários congelamentos de aluguel residencial. O que acontece quando, por algum motivo, alguma nor­ ma bloqueia o reajuste de aluguéis? Surge um novo mer­ cado de aluguéis, os novos imóveis são locados a preços astronomicamente altos, os velhos a preços muito des­ valorizados, e cria-se toda uma sorte de arranjos infor­ mais - o proprietário prefere alugar a um amigo, por exemplo, que aceitaria deixar o imóvel assim que solici­ tado. Continuando o exemplo, sabemos que certas regi­ ões das cidades se degradam e uma proporção muito grande de imóveis para alocação permanece vazia, ge­ rando uma redução no investimento em imóveis. O exem­ plo mostra que o mercado funcionaria bem caso não houvesse a norma, que acabou distorcendo a alocação de recursos como um todo. O volume de atividades eco­ nômicas dedicadas a esse setor diminui por conta da presença da norma. No segundo exemplo, temos a seguinte pergunta: ás farmácias devem ter margens fixas de revenda ou não?

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O que acontece quando a Lei determina que esses estabe­ lecimentos devem ter uma margem de lucro fixa por re­ médio vendido? Tende-se a ter mais farmácias - já que ela tende a ser mais lucrativa. Mas, como a demanda é a mesma, a venda por farmácias diminui. Assim, você terá mais farmácias e maior ganho por remédio, mas o retor­ no sobre o capital é o mesmo. Ou seja, o consumidor paga um preço mais alto, mas terá de andar menos até chegar a uma farmácia em caso de necessidade. O terceiro exemplo será Ilustrado com um paper fa­ moso em Economia, que mostra o que acontec.e quando se desregula o mercado de táxi. Quando se perr,;ite a livre negociação entre taxistae passageiro, cria-se um merca­ do dual em que o cidadão da cidade sabe o preço médio que lhe será cobrado. Mas e o turista incauto que chega ao aeroporto? Este paga qualquer preço. Isso me dá o "gancho" para a segunda classe de modelos, através da qual o mercado é visto pelo econo­ mista como gerador de uma alocação indesejável e ineficiente de recursos. Pergunto: qual é a norma que me­ lhor corrige essa distorção? Os campos de excelência desta discussão são truste take over. Economias de escala origi­ nam, com freqüência, conglomerados que violam a Lei básica de concorrência. Não está claro se isto é bom ou ruim porque, dependendo do caso, os ganhos para o con­ sumidor podem ser melhores em oligopólio que em con­ corrências. Mas em alguns casos, não. E, nos casos em que seria preferível ter uma alocação concorrencial, você tem obrigatoriedade de impor, via norma, a quebra do trust; algo que limite ou force a competição no setor.

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Há exemplos mais ricos dessa segunda classe de modelos. O caso da regulamentação financeira é particu­ larmente Interessante nesse aspecto. A teoria econômica sugere que é contra bancos com 100% de reservas com­ pulsórias, e permite que eles façam alavancagem. É assim no mundo Inteiro. O total de ativos e passivos do banco excede, o capital. Quando você faz com que os requeri­ mentos compulsórios sejam menores que 100%, o banco pode quebrar afetando, conseqüentemente, terceiros. Sur­ ge aí a questão da chamada crise bancária que, segundo a teoria econômica, é um mal que deve ser evitado. Como se evita uma crise bancária? Evidentemente impondo normas prudenciais. Os bancos centrais do mun­ do todo evoluíram em duas direções. Uma, impondo es­ sas normas - hoje cristalizadas nos acordos da Basiléia -, e a outra, incentivando a regulamentação via fundos porque os fundos de investimento são uma maneira de Intermediação financeira sem o uso do balanço do banco e, portanto, com menor risco de crise. Desde a década de 80 houve estímulo dos bancos centrais para desenvolver a indústria de fundos e forçar requerimentos de capital uniforme de todo o mundo. A sorte é que o mundo, há trinta anos, não tinha esta quantidade de fundos de inves­ timento que existe hoje - e multo menos a uniformidade de critérios prudenciais. Quando esses critérios são uniformes, evidentemen­ te há uh, excesso de capital no mundo bancário. Se a nor­ ma legal exigir mais capital que o necessário, é inflexível; se exigir menos capital que o caso, o Banco Central tem o poder de exigir mais capital para aquela alocação especí-

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fica. Aos poucos, por efeito da norma legal. os bancos es­ tão usando mais capital do que precisariam. E como os economistas pensam isso? Para eles, como os bancos es­ tão usando mais capital do que deveriam usar, acabam emprestando menos do que poderiam emprestar e, conse­ qüentemente, cobram uma taxa de Juros mais alta. Mes­ mo assim, prefiro essa norma legal a um mercado funcionando livre, leve e solto, podendo gerar uma crise bancária. Há um terceiro exemplo que pode atender a essa se­ gunda classe de modelos: a questão da proibição em se usar moeda estrangeira para quitar obrigações contraí­ das no país. Um economista poderia pensar que essa é uma limitação na liberdade dos agentes, que não é ótima do ponto de vista da alocação de recursos. E por que a norma legal existe e a maior parte dos economistas gosta dela? O fato é que, se os Estados Unidos impõem paga­ mentos em dólar e eu deixo livre, parte do meu ganho e do ágio vai para lá, sem que eu ganhe algo em troca. Este economista pensa: só faz sentido abrir mão da obrigatoriedade de quitar pagamentos feitos no Brasil em Reais se os outros países fizerem o mesmo em seus res­ pectivos mercados. Como eles não estão dispostos a abrir mão de seus ganhos, tampouco eu estou disposto. Trata-se de uma situação na qual o equilíbrio como um todo é pior do que deveria existir, mas que, sendo o mundo "dado" para nós, é melhor introduzir a norma que deixar o livre mercado funcionar. Bem, mostrei aqui três exemplos - casos antltruste, de legislação bancária prudencial e de restrição no pagamento

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de obrigações com moeda estrangeira - de como os eco­ nomistas pensam situações nas quais a norma é uma maneira de se evitar a alocação que de outra forma seria ruim e gerada pelo próprio mercado. Há uma terceira classe de modelos onde as questões a serem pensadas são intrinsecamente normativas. Ou seja, eu examino algo que tem de ser regulado por Lei e me pergunto qual a forma de regulamentação legal mais apropriada à vida econômica. Um exemplo disso são os vários estudos sobre a Lei de Falências feitos nos Estados Unidos recentemente, nos quais se compara a legislação nos diversos estados americanos. Observa-se que, quan­ to mais fácil e exemplificada é a execução de garantias, maior é o volume de crédito e menor a taxa de juros. Um outro exemplo também nessa área aparece in­ trinsecamente na legislação americana - e, em alguns casos também na inglesa -, quando se permite que os cre­ dores assumam o controle da companhia, mantendo-a em funcionamento, mas diluindo o valor das ações dos acio­ nistas anteriores a quase zero. A princípio, esta é uma ação boa, porque se preserva o emprego, possibilita-se a saída do empresário ineficiente e os credores rateiam os créditos entre si. Esta situação é boa, supondo que os cre­ dores sejam todos Iguais; já quando as leis permitem di­ ferenciação entre crédito júnior e sênior, tem-se a possibilidade de equacionar urna estratégia entre tipos de credores fazendo com que a Lei não funcione bem. Na verdade, há correntes que defendem que a Lei fun­ cionará bem quando os credores forem do mesmo ranking de Importância. Isto porque os credores com crédito menos

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privilegiado têm interesse em uma gestão com mais risco, gerando mais retorno; ao contrário, os credores que têm direito a urna maior fatia, preferirão uma gestão mais con­ servadora. A pergunta é: qual norma legal é mais apro­ priada à vida econômica? Uma segunda questão dessa natureza, próxima ao mundo jurídico, é o voto. Corno todos sabem,, os econo­ mistas têm uma longa tradição associada ao' voto, que vem diretamente da Microeconornia. Não é à toa que as teorias de voto desenvolveram a Economia. Esse assunto voltou à baila, por exemplo, no contexto da União Euro­ péia. Será que o princípio de "um homem, um voto" ou, neste caso, um país equfvalendo a um voto, deve valer para cada eleição? Seria um homem, um voto, para cada eleição ou grupo de eleições? Quero dizer, um país pode­ ria optar por não votar determinada pauta, e se reservar o direito de ter voto dobrado em uma questão que, para ele, seja relevante? Será que o sistema em que posso "guar­ dar" o meu voto não é melhor que aquele em que sou obri gado a votar em cada eleição? Com a Comunidade Européia, a discussão sobre o desenho Ideal para o sistema de voto tornou a ser Impor­ tante. Há um conjunto de questões que interessam mais a determinados países, e não tanto a outros. Portanto, o debate quanto à cumulatividade do voto passou a ser no­ vamente importante. O interesse pelo voto negativo tam­ bém foi renovado. Há urna série de teorias na área econômica que afirmam que votar em dois turnos explicitaria melhor a vontade da maioria. No primeiro, o voto seria "sincero", e no segundo, seria o mal� adequado

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em dada circunstância. Estudos recentes mostram que esta sinceridade seria relativa porque nem sempre seria conveniente expor a vontade, na esperança de se evitar um mal maior. Estes casos seriam propícios para o voto· negativo, ou seja, eu não voto a favor de algo, mas contra, derrubando, então, um voto a favor. Estou dando o exem­ plo do voto negativo para chegar a uma área Intrinseca­ mente normativa, e que influi muito na vida econômica. O terceiro exemplo de pesquisa nessa área está rela­ cionado a mandatos políticos. Em um regime parlamen­ tarista o mandato não é exatamente fixo porque o parlamento pode ser dissolvido. Os contratos econômi­ cos têm várias otimalidades quando o tempo não é pen­ sado cronologicamente: cláusula de rescisão, e outras nas quais o tempo de exercício pode ser ajustado de acordo com eventos externos que modifiquem as condições estabelecidas em contrato. Há pesquisas em Economia pleiteando se não deveria ser assim. Se com o Banco Cen­ tral independente, por exemplo, a inflação excedesse um certo valor, o Congresso estaria apto a eventualmente ele­ ger uma nova direção. Seria um arranjo normativo de in­ dependência condicionado a um evento econômico. A discussão sobre Civil Law ou Common Law como melhor base para o funcionamento da vida econômica também ganha foro. Trata-se de um mundo extrema­ mente complexo, onde há duas vertentes. Os economis­ tas tendem a preferir Common Law porque a sacralidade do contrato fica mais preservada enquanto, por outro lado, há a preocupação em se compreender um processo em evolução.

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Outra área Intrinsecamente normativa que está sen­ do pesquisada sob a ótica econômica é a de direitos Inte­ lectuais e patentes. Existe o reconhecimento do aspecto positivo de estímulo à pesquisa que, entretanto, por sua vez estimula o oligopólio. A Lei de patentes leva a Indús­ tria farmacêutica a investir grandes volumes de recursos no desenvolvimento; porém, quem quiser entrar neste se­ tor terá de arcar com custos extremamente altos com pro­ duto e criação de marca. Isto pode ser corrigido através da regulamentação do oligopólio; ou seria melhor não ter Lei de patentes, custear com Impostos a pesquisa desen­ volvida em universidades e tornar a Indústria farmacêuti­ ca mais competitiva? É uma pergunta típica do setor econômico, que traz complicações do ponto de vista normativo. Um último exemplo dessa terceira classe de mode­ los, nas quais se pensa o melhor equilíbrio econômico di­ ante de normas que de qualquer forma precisam existir, é o de doações em campanhas eleitorais. Há uma evidência clara nos Estados Unidos da relação entre as doações e a eleição do candidato. Onde o número de candidatos é muito expressivo, naturalmente a propaganda faz a diferença. Também há uma relação entre as doações e o atendimen­ to de interesses específicos. Deputados que, nos Estados Unidos, recebem doações muito expressivas tendem a votar de acordo com os interesses do doador - o que não necessariamente é ruim, se o interesse do doador coinci­ dir com o público. O problema é: o interesse público é alcançado com esta vinculação entre Economia e política? Não existe, ainda, orientação quanto a·o uso de recursos

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próprios. Sem definições quanto a isto, os economistas pensam que o tempo obrigatório, como se faz aqui no Bra­ sil, deve existir para minimizar o peso dos doadores. A questão é o custo social que esta medida traz durante o processo eleitoral. O problema do sistema eleitoral me dá o gancho para a última classe de modelos, que é a do aprendizado con­ junto (da Economia com o Direito). Um exemplo que eu acho relevante no nosso caso é o da limitação do juro a 12 % , pela Constituição. Por entendimento do Supremo, julgou-se que Isto não é auto-aplicável e, portanto, a nor­ ma constitucional ficou suspensa. O que aconteceu de fato? Na constituinte de 88 houve um enorme lobby de economistas dizendo que aquilo provocaria o caos no País. O argumento era que este juro seria artificialmente baixo, o que levaria a uma instabilidade monetária e a um custo social altíssimo. Quando se faz algo assim, cria-se a percepção que algo está na Constituição, mas não vale - e que esta Constituição estaria errada. Por meios não-constitucionais, busca-se "corrigir", de ma­ neira que são gerados vícios no processo jurídico. Por­ tanto, o arcabouço jurídico base da vida econômica tem problemas. Não seria melhor cumprir o que a Constitui­ ção estabelece e, se decorresse algum problema, apren­ deríamos que mais benéfico seria votarmos uma nova Constituição em vez de efetivarmos a "gambiarra" para quando algo não convier? A tentativa de driblar a Cons­ tituição, embora economicamente fundamentada, traz resultados ruins Inclusive para a própria lógica econô­ mica. Pode-se driblar em um caso mas não em outro e,

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no fundo, terminamos sem um ordenamento jurídico com a ordenação que seria de se esperar. Basicamente, o entendimento dos economistas é que o melhor é aplicar estritamente o que diz a Constituição, desde que haja procedimentos de correção rápidos para o caso de acontecerem graves distorções na vida econômi­ ca. O drama é que alterar leis não é fácil, assim como leis complementares e, pior ainda, se forem normas constitu­ cionais. O pensamento que se alastra na Economia é que quanto mais rapidamente executável for a norma, melhor. Deve-se corrigir a norma, e não torná-la cada vez mais vaga, ou driblável, porque isto gera uma incerteza quanto ao ordenamento jurídico que é prejudicial à vida econô­ mica. Concluo aqui meus trinta minutos.

PARTE

4.1

CALIXTO SALOMÃO FILHO Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Começo dizendo que nem tudo o que não é Economia neoclássica necessariamente contesta todos os pressu­ postos de mercado. O grande elemento econômico destes anos é o reavivar de uma teoria que se encontrava morta há 50 anos e que, por sua vez, originou-se da teoria da escolha social. Ao nos perguntarmos o que é Economia, eu colocaria, ao lado da neoclássica, as preocupações com

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a �eoria da escolha social. Eu pretendo, depois, explicar por que esta preocupação com a teoria da escolha social é Importante para o Direito. Admitindo a concepção neoclássica, do ponto de vista do Direito me parece que existem multas contribuições a serem dadas - e, também, alguns malefícios. A primeira contribuição genérica é a questão relativa ao porquê das normas. Apegados à nos­ sa tradição dogmática, freqüentemente não perguntamos o porquê das normas. Um exemplo: a norma que prevê a aquisição de propriedade de boa-fé existe para o título de crédito, mas outros bens não. Por quê? Ela existe, neste caso; porque é necessário Justificar a qualquer preço a circulação de títulos de crédito. Nos outros, não querem estimular o "direito dos ladrões", ou seJa, fulano é o pro­ priet�rio até que se prove o contrário. A Economia nos traz questionamento do porquê das normas e da sua importância para estimular o comportamento de boa-fé. A segunda contribuição é analítica. A Economia con­ tribui para a análise de situações nas quais o Direito será aplicado. Um exemplo desta Idéia é quando, na tese .do Direito antltruste, o Instrumental neoclássico nos aJuda a compreender qual é o mercado relevante. Precisamos sa­ ber de qual mercado, de quais consumidores se está fa­ lando para depois aplicarmos a norma. Mais complexo é o segundo efeito analítico da Economia: os resultados. Uma grande contribuição de vertentes como a análise eco­ nômica do Direito, foi olhar as normas enxergando, tam­ bém, os efeitos econômicos que as acompanha. Para Isto, podemos tomar o exemplo dos aluguéis. O problema fun­ damental está exatamente no depois. Eventualmente, o

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nível de aluguéis controlado pode levar a uma retração de demanda neste mercado. É necessário que o legislador tenha ciência disso ao fazer a norma, assim como todo advogado ou Juiz ao aplicá-la. Dessa análise de resulta­ dos não devemos passar a uma determinação de resulta­ dos. A análise econômica do Direito sofreu esta crítica durante muitos anos. Alguns dos possíveis modelos iden­ tificados pelo professor Pérsio, revelavam isto: foi, sem dúvida, o que ocorreu com a teoria neoclássica. A Econo­ mia preocupava-se em dizer "o mercado, tal como por nós Imaginado, deve funcionar assim", portanto, se o re­ sultado não era bom para o mercado, a norma é que de­ veria ser modificada. Corro o risco de cair no óbvio, mas devo dizer que é possível a existência de valores que se sobreponham ao mercado. Por exemplo, suponhamos que em uma deter­ minada região da cidade busquem o aluguel apenas pes­ soas desprovidas de recursos. Em um primeiro momento, pode ser necessário limitar o valor do aluguel, e em um segundo momento, o Estado pode Intervir proporcionando a essas pessoas o equilíbrio. É uma decisão valorativa da sociedade. Não é comum em nossas escolas de Direi­ to, mas é necessário questionarmos os porquês, quais são os resultados da norma - e a Economia chega até aqui. A partir deste ponto, cabe ao Direito discutir o sen­ tido do v.alor. Como Isto é feito? Trata-se de uma discus­ são longa... Faz-se necessário lembrar que o Direito lança mão de diversos métodos para descobrir esses valores. Pri­ meiramente, o método histórico é fundamental para nos

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revelar a evolução da sociedade quanto a um determina­ do grupo de valores. Em segundo lugar, as normas procedimentais são também essenciais para a descober­ ta deles - hoje, vemos normas de concorrência definindo o valor assim como definindo um procedimento no campo econômico. Procedimento este, que leva o consumidor a, comparando, descobrir a alternativa mais eficaz. Logo, o Direito conta com muitos instrumentos que não a mera imposição, diminuindo, neste caso, a utilidade da Econo­ mia. Não cabe a ele impor um valor à sociedade, é um princípio democrático. Atingimos os problemas da relação entre Direito e Economia. A análise neoclássica tradicional tende a ver o Direito como forma de corrigir, através de normas, as fa­ lhas do mercado, visando atingir o funcionamento proje­ tado como ótimo. Não há discussão de objetivos; o objetivo é este e o Direito deve conformar-se com ele. Ora, é um consenso que o estudo do Direito não se resume a isso. Não deve incorporar esses princípios, a menos que os ins­ trumentos democráticos de captação de valores na socie­ dade apontem nesse sentido. Um segundo problema da relação entre Direito e Eco­ nomia é o método. O método econômico tradicional tende a dar um pequeno valor à História; quanto mais pende-se ao pensamento neoclássico, menos relevante torna-se a História. Tanto é verdade, que o momento em que a Histó­ ria Econômica ganhou mais importância, no Brasil, foi quando do pensamento estruturalista. O crescimento e a hegemonia do pensamento neoclássico na tradição eco­ nômica brasileira deixou de lado preocupações históricas

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que, por sua vez, são fundamentais no Direito para o es­ tabelecimento de valores. O estudo histórico de idéias e valores, e da aplicação do campo jurídico na �conomia é muito importante. O Direito, visto sob a perspectiva da Economia, é antes uma técnica de estruturação dos valores econômi­ cos que uma busca destes. Busca-se o advogado para es­ crever a lei após o economista ter idealizado um modelo de mercado, enquanto para o Direito, ao pensarmos e dis­ cutirmos a lei, trazemos também o valor. isto nos invade de tal forma que, para citar um exemplo próximo a todos nós, o Direito participou da criação dos modelos de tele­ comunicações e energia apenas para resolver as exigên­ cias técnicas econômicas, quando poderia contribuir com princípios gerais através do Direito Administrativo e dos sistemas regulatórios. É muito discutível que seja um passo adiante, porque quando o Direito somente segue as exi­ gências econômicas estamos deixando de lado os valo­ res. E� gostaria de fazer uma advertência veemente: nós, geralmente, tendemos a essa mentalidade sem perceber­ mos - toda a prática destes últimos dez anos nos leva a ela. Setores privatizados, desregulamentados e tratados como sistemas em si, como se não houvesse princípio regulatório que devesse ser discutido em telecomunica­ ções, energia ou saneamento. Aos meus olhos, isto causa preocupação e deve ser matéria de reflexão. Afirmados os valores filosóficos e analíticos da Eco­ nomia, penso, talvez pretensiosamente, se a questão não seria como o Direito pode ajudar a Economia,'e não mais o inverso. Acho que esta é uma grande linha de pesquisa.

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Sendo tão Importante para a compreensão do Direito, não poderia deixar de mencionar a Economia como disciplina anexa à pesquisa em Direito. Em palavras superficiais, o que esta linha propõe é uma outra preocupação - não ne­ cessariamente recusando o pensamento neoclássico. Em meados do século passado afirmaram que teoria da escolha social estava morta, porque seria impossível o conjunto chegar a um modelo econômico em consenso. Entretanto, é possível transportar a idéia de votação po­ pular do sistema político para o econômico, comparando os valores atribuídos aos bens. Esta tese simples, junto a estudos sobre a pobreza, valeu o Prêmio Nobel de Econo­ mia a um indiano. Mas a preocupação dele se encerra aí, onde termina o trabalho do economista. O valor é Impor­ tante para se definir a opção por um tipo de sociedade. Então, como o Direito pode ajudar a Economia e como o valor entraria neste sistema? Será que o ótimo de Pareto é o ideal para uma sociedade? Será que esta é a escolha? A questão central é como inserir o valor na Econo­ mia para que discutamos a teoria da escolha social. Exis­ tem algumas idéias. Uma delas é: o valor penetrará no mundo econômico na mesma proporção em que for proced\mental, na mesma proporção do número de es­ colhas que permitir ao mundo econômico. Idéias que per­ mitam às pessoas e empresas comparar e optar. Enfim, a Economia pode contribuir multo na esfera analítica e na concepção fllosóflca (os porquês do Direito). Traz problemas relacionados ao método, com os quais deve­ mos ter cuidado. E, certamente, há um extenso campo de pesquisa que relaciona Direito e Economia e que promete

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reavivar as teorias da escolha social - que só podem ser canalizadas com a discussão de valores.

DEBATES

• Carlos Ari Sundfeld Temos de fazer uma ligação entre este palnel e o tema central, "o que é pesquisa em Direito". Quando elabora­ mos o programa desta Escola, introduzimos !3 pesquisa em Direito corno algo fundamental para a produção de um novo conhecimento jurídico e a formação dos alunos. Com o modelo quase aprovado e tudo certo para come­ çarmos a funcionar, nos questionamos acerca de o que seria esta pesquisa. Agora estamos aqui aflitos para defi­ nir seu papel. já que é tão importante. Discutimos com o professor Sérgio Adorno a especificidade do Direito. Abordamos corno o conhecimen­ to produzido através da pesquisa em Direito pode ser uti­ lizado em outras áreas, e como estas podem contribuir com a sua metodologia. Não estamos bem desenvolvidos, afinal não temos tradição de pesquisa em nossas escolas. Começamos, pela manhã, criticando as nossas práticas e até a ausência delas. Tratadas as metodologias que seriam incorporadas, permaneceu a questão sobre a contribuição que a pesquisa das escolas de Direito traria. Gostaria de "provocar" o Calixto, embora já tenha demonstrado o que espera de uma pesquisa e, principalmen­ te, o Pérsio. O professor Arida não é de uma escola de Direito e, naturalmente, não apresentará essa crítica interna. Mas

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há, notadamente, uma crítica externa. Relatou a contri­ buição, extremamente relevante, que a Economia foi ca­ paz de fornecer para o estudo do Direrto - e se nós utilizarmos estes resultados, seremos capazes de fazer melhor. Eu lhe pergunto: por qual omissão nós das esco­ las de Direito somos responsáveis? Na ótica de um pes­ quisador da Economia, qual é a especificidade da pesquisa em Direito?

• Persio Arida Esta é uma questão instigante. Farei algumas obser­ vações. Ao centrar a minha exposição nos vários modelos do que se chama Economia Neoclássica, não estou suge­ rindo que é a melhor maneira de se pensar a Economia. Os dois Journals mais influentes hoje em dia - o Law & Econom/cs e o European Journaf of Law & Economics - são basicamente neoclássicos em sua orientação. Nesta ver­ tente, o que acontece com a pesquisa é que o economista vê o mercado Independentemente da norma. Este merca­ do pode funcionar bem, ou funcionar mal. Se funcionar bem, a norma é distorcida e produz efeitos indesejáveis. Se funcionar mal, trata-se de saber qual norma assegura um funcionamento melhor. O economista neoclássico pen­ sa Isto do ponto de vista da alocação de recursos, 11ão dos valores. O argumento é: "os valores são extra-econô­ micos", ou seja, quando são introduzidos deixa de tratar­ se de uma discussão econômica. Portanto, não se Interessa por valores - e sim pela eficiência do mercado. No fundo, onde a pesquisa se faz necessária? Esses modelos da Economia Neoclássica são ahistórfcos, pen-

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sam o mercado, mas não o_'que historicamente o levou àquela situação. Sendo ahistóricos, ignoram· também o que se processará dali para a.diante. Se observarmos qual­ quer mercado, constataremos que são sempre fundados em contratos (normas). A questão crítica que se coloca, mesmo no âmbito da economia neoclássica, é: como a norma evolui? O economista tende a pensar que ela evolui para acomodar pressões econômicas. A norma evoluindo para responder às exigências econômicas. Nãp funciona, necessariamente, desta maneira. É mais provável que seja o contrário: a vida econômica, a ordem, é fundada em tor­ no da norma. O caso das concessões públicas é, um exem­ plo em que a norma é fundadora. o que é este mercado? É um mercado fundado pela norma. Então, se eu puder responder em que dire,,;ão a pes­ quisa faz mais sentido, eu diria que é na da historicidade da norma, como ela evolui. É uma pesquisa intrínseca do Direit0, apesar dos olhos postos na Economia, que a meu ver traria conseqüências extremamente interessantes para a evolução dos mercados inclusive na perspectiva neoclássica . Na perspectiva chamada escolha social, a área de Interação é evidentemente maior, e como ela se desdobrará ainda é algo desconhecido. No paradigma vi­ gente, eu diria que a historicidade da norma e como Isto funda o mercado são as questões relevantes.

• Calixto Salomão Filho

Eu complementaria dizendo que do ponto de vista do Direito Econômico, as pesquisas mais interessantes, além das históricas, são as que envolvem os efeitos das nor-

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mas procedimentais econômicas - aquelas que não defi­ nem uma linha, não adotam uma tese como a neoclássica,· não incorporam um valor. Como se dissessem: será cria­ da uma limitação de poder que permita à sociedade acessar a esfera econômica realizando a melhor escolha social, estabelecendo o que é o seu ótimo. Tanto uma norma de concorrência quanto uma nor­ ma reequilibradora, que Inclui participantes no mercado, aumentam a escolha, aumentam o número dos que estão votando na escolha social - se fosse possível equacionar o voto econômico desta maneira. Eu acho Interessantíssi­ mo pesquisar o efeito das normas procedimentais na so­ ciedé)de, aliás, tanto acho que pretendo fazê�lo. t Ronaldo Porto Macedo Jr. O estado de arte do uso de Instrumentos econômicos na análise Jurídica brasileira ainda é elementar e, embora haja'alguns poucos trabalhos de ponta, atualizados, é certo que somente agora o assunto ganha espaço nas escolàs de Direito. A minha pergunta, particularmente ao Pérsio, é algo distante do nosso problema imediato; mas eu não gostaria de perder a oportunidade de questionar o pro­ fessor Arlda, até porque já escreveu sobre o assunto. No painel da manhã discutimos acerca do padrão de ciência que devemos adotar para analisarmos a pesquisa em Di­ reito, qual será o viés epistemológico para se pensar uma ciência jurídica. O professor Adorno até afirmou a sua per­ plexidade, pois percebia o Direito como objeto, e uma certa dificuldade em pensar uma ciência. O professor Arida pos­ sui trabalhos sobre a questão da retórica da Economia,

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seus fundamentos epistemológicos e, portanto, eu gosta­ ria de ouvir se há uma afinidade entre estas questões e a lnafastável retórica do Direito. + Perslo Arlda Eu escrevi sobre essas questões há quase vinte anos, mas, surpreendentemente, ainda penso de forma pareci­ da. Meu argumento, na época, era que a Economia como soft sc/ence tem uma visão errada de si mesma. Os econo­ mistas gostam de pensar que elaboram teorias e as tes­ tam como nas hard sclences, usando econometrias com graus razoáveis de sofisticação, quando, na verdade, ao se tratar uma questão realmente importante em teoria econô�ica, a relevância da evidência empírica quanto às teorias predominantes é multo menor que o Imaginado pelos economistas. Os economistas figuram uma prática que não corresponde ao que fazem e, portanto, têm uma visão epistemológica pobre de sua disciplina. O segundo argumento é que as grandes controvérsi­ as da Economia foram superadas por uma variedade de expedientes, embora nunca houvesse testes empíricos para a resolução quanto à visão a ser aplicada. Decorre a dú­ vida: a Economia não possui qualquer cientiflcldade, por­ que, certamente, ela não tem a cientlficldade das Ciências Exatas? Meu argumento é que a cientlflcidade na Econo­ mia deve ser pensada de outra maneira. Se olharmos al­ gumas das controvérsias que pontificaram o pensamento econômico, verificaremos que foram resolvidas não atra­ vés das evidências empíricas, mas porque existia um con­ junto de regras retóricas aceito por todos os participantes.

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Seria como se e u explicasse um fenômeno de maneira mais simples q ue a apresentada por o utro professor; a minh a seria mais razoável. Se a minha explica ção a b arcar uma rela ção de fenômenos maior que a dele, a minha será a mais razoável. É um conj unto de regras retóricas que nas diversas controvérsias se provaram eficazes. A conjectura que lancei há vinte anos é q ue o núcleo de cientiflcldade não está no recurso ao empirismo, e sim na adesão a um conjunto de regras retóricas uniforme. Seria como se os participantes dissessem "não s a bemos resolver" e, por adotar um grupo comum de regra� retóri­ cas, chegassem a uma decisão - o que demonstra a exis­ tência de uma cientificidade que não é a das hard sciences, nem por isto deixando de ser cientificidade. Apesar de não recorrermos à evidência empírica, a teoria econômica evo­ l uiu extraordinariamente: a infla ção, na maior parte do mundo, acabou. Em nosso país ainda falta um pouco mas, basicamente, terminou. As graves recessões, como a da década de 30, também não existem mais. É outro mundo, com outro entendimento do potencial uso dos instrumen­ tos econômicos. São exemplos do ganho de conhecimento q ue há, entretanto, não à maneira da epistemologia das Ciências Exatas. Não me sinto capaz de afirmar o quanto isto seria útil em uma Ciência do Direito. No m undo econômico a reflexão apontou que a epistemologia das Ciências Exa­ tas não seria tão útil, e nem por isto deixo u -se de avan­ çar. A conjectura é pensar a cientificidade a partir de um núcleo comum de regras de retórica, em que h a j a simplicidade, capacidade de assumir teses adversárias

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em seus próprios termos, general idade, enfim, um con­ j unto de regras q u e proporciona vantagem retórica. Neste caso, não tenho competência para a firmar como isso poderia ser aplicado no m undo do Direito o u q ual seria a s ua validade.

+

Calixto Salomão Filho

rtante é, A mim sempre Impressionou o quão Impo da comunidade para a com unidade econômica, a opinião ente científico científica para que considere algo efetivam afastado". - "isto é malnstream, aquil o não é e deve ser r sistemas Na relativa retórica do Direito, o fato de have de uma opi­ diferentes não leva à excessiva dependência ctos positi­ nião da comunidade científica. Nisto há aspe omia é vos e negativos. O consenso científico na Econ as tra z o inte ress ante, mas em dete rmina da s époc , a Economia unilateralismo. Ao perceber isto, entretanto e a aplicá­ passa a agregar elementos de outra retórica História e dos los. Como exemplos, temos as questões da valores. r im. Talvez, para o Direito, seja relevante dar maio mais os prin­ portância ao consenso científico, observando mos visando cípios e a doutrina - ainda mais se esta interpre­ ciência. A doutrina era apenas uma forma de se em Direito tar o que dizia a Jurisprudência; no entanto, os trinta Econômico, as mudanças legislativas dos últim igo do anos são efeitos de movimentos do utrinários (Cód rina e o Consumidor, Direito Ambiental). Reavivar a dout consenso científico talvez sej a interessante.

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+ Rabib Ali Nasser (pesquisador Direito GV)

Eu gostaria de incluir a dimensão Internacional nes­ sa discussão dos modelos possíveis, através dos quais a Economia enxerga a norma jurídica. Penso que há dois processos de globalização em curso: a econômica (a cres­ cente interdependência e o aumento das operações entre agentes de diferentes países) e a Jurídica (a elaboração de normas em tratados que visam regular as relações eco­ nômicas internacionais). As normas são elaboradas de acordo com valores considerados adequados em deter­ mina?ª etapa histórica. Verificamos que os valores que regem os tratados internacionais estão baseados na teo­ ria neoclássica. Também sabemos que a composição dessas normas se dáem um ambiente de assimetria de poder, este de­ terminando os valores levados em conta e o conteúdo final. Acho que o Brasil é uma vítima deste processo. Per­ cebemos que o ordenamento jurídico brasileiro está con­ dicionado ao que os investidores estrangeiros esperam e aos compromissos assumidos em acordos Internacio­ nais. Gostaria de saber, neste contexto de surgimento de um curso que se pretende Inovador, se na pesquisa em Direito o exame histórico das normas seria suficiente, se nos restringiremos a isto, ou há espaço para a elabora­ ção de proposições quanto a políticas públicas possíveis de maneira que a pesquisa oriente a composição da nor­ ma. Há espaço para uma atuação propositlva da pesqui­ sa em Direito?

O que é pesquisa em Direito ?

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+ Persio Arida Espaço para a atuação proposltlva, evidentemente, sempre há. Se quisermos nos ater ao mundo neoclássico, quando da proposição de um valor afirmarão "não temos nada a dizer", mas quando algo na norma for pertinente ao mercado, pensarão apenas se ela o distorce ou corrige seu mau funcionamento. Por outro lado, se na pesquisa em Direito concluirmos que as normas evoluem de uma maneira mais complexa, em sua relação com mercado, o economista será obrigado a pensar seu modelo em con­ formidade com a norma que o funda. Mas para convencê­ lo a pensar de um modo mais amplo, ele precisará deixar de enxergar a norma como algo que está lá para ser mo­ dificado em conformidade com os objetivos de seu mode­ lo. Compreendendo a origem daquela norma, ele concluirá que talvez seja«:> caso de deixar o mercado relativamente Ineficiente. Se um economista, por exemplo, partir de um mer­ cado regulado que, ele crê, seria mais eficiente desregulado. Ele deve ter em mente que a modificação das normas trará conseqüências, que por sua vez se­ rão corrigidas com outras normas que talvez provo­ quem um funcionamento ainda pior do mercado. Se a historicidade da norma convencer o economista pela não-desregulamentação do mercado, talvez o ótimo de Pareto 32 seja deixado de lado. Ele precisa entender essa dinâmica quase endógena da norma e sua relação com a vida econômica. Enquanto o economista neoclássico 32

Vllfredo Pareto ( 1848-1923), economista Italiano.

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pensar a norma como exogenamente dada, ele dirá "a nor­ ma é distorciva" ou "a norma é boa" e, quando muito, dará uma sugestão de boa norma que, quem sabe, alguém do mundo jurídico se encarregaria de implementar. Eu ten­ do a achar que a maneira mais eficaz de convencer um economista neoclássico a Introduzir o Direito, efetivamen­ te, em suas considerações, é através de um melhor enten­ dimento da historicidade da norma.

• (não identificado)

Eu gostaria de citar um exemplo brasileiro para que o senhor analise segundo a sua visão econômica e encai­ xe em um dos modelos anteriormente expostos: Houve a falência de uma grande incorporadora, como todos sabem, e ao discutirem os créditos no STJ, chegou­ se a um acórdão que privilegiou o crédito de natureza pessoal em detrimento de garantias hipotecárias de direi­ to real (contradizendo a Lei de Falências), em função de um pacto social que existiria se a decisão tomasse outro rumo. Parece-me que esta decisão, contrariando disposi­ ções legais, geraria o impacto econômico da diminuição no crédito para financiamento de incorporações, haja vis­ ta que o banco, detendo uma garantia real, foi prejudica­ do em favor do promissárlo que tinha uma garantia pessoal. Dado o risco, o precedente, talvez o banco desis­ ta de investir nesse segmento. Gostaria de ouvir o seu co­ mentário sobre Isso. E quando afirmou, no final da sua exposição, a ne­ cessidade de uma norma para mais agilmente atender as mudanças do mercado, Imediatamente pensei nas medi-

O que é pesquisa em D/relia l

1 (, 7

das provisórias. Não sei se também pensou nisto ... Na minha opinião, e considerando a doutrina com a qual eu concordo, as medidas provisórias vêm sendo aplicadas de maneira frontalmente contrária à disposição constitu­ cional. Isto macula o sistema, exatamente corno o senhor disse que não deveria ocorrer.

• Persio Arida

ma A primeira, sobre o STJ, causou uma grande celeu urna no merc ado. Pens ando como econ omis ta, há s; já raci-onalidade, mesm o à luz de princípios conflitante muito do ponto de vista do banco, a garantia real era ' exemplos menos real do que se Imaginava. Corno nos cia que citei, em uma comparação com as leis' de Falên for dos Estados Unidos, no Estado em que a garantia ­ Histó menor o crédito também será reduzido. À luz da crédito ria e dos estudos, a tendência é um volume de nor­ menor na área habitacional corno conseqüência da

ma legal. Na segunda questão, eu não tinha em mente as Me­ de didas Provisórias. O economista neoclássico gostaria um uma Constituição mínima, realmente reduzida, com di­ capítulo sobre ordem financeira afirmando apenas o reito à propriedade. Claro que é um exemplo extremo. Uma . A Constituição mínima e nenhuma Medida Provisória medida provisória cria Incerteza; mesmo que não possa o aherar Lei Complementar, passa a agir imediatamente, que retira a eficácia da Lei como balizadora da atividade econômica.

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+ Jean Paul Veiga da Rocha (Coordenador de Metodologia de Ensino, Direito GV)

Especialmente na área de regulação do mercado é multo desapontador para os professores a maneira como os alunos lidam com a relação entre Direito e Economia. A confusão entre a prática profissional e a reflexão acadê­ mica, e o isolamento do Direito frente às outras ciências, particularmente a Economia, impedem que o aluno e o pro­ fessor avancem na construção da melhor solução, da me­

lhor doutrina para um caso concreto. Há casos extremante complexos na área do mercado financeiro que compro­ vam isto ;... o professor Pérsio Arida citou o caso da limita­ ção do juro pelo STF. Nas mais de 150 páginas da decisão há um debate rlqufssimo em que os ministros do Supremo tentam responder como lidar com o estudo do Banco Cen­

tral que demonstra, com detalhes, que a aplicabilidade imediata do teto de juros seria catastrófica. Ora, é claro que não podemos exigir que um ministro do Supremo aja de maneira diferente. Ele é um ator jurídico que, portanto,

constrói um discurso correspondente ao seu papel. É frustrante que aqueles que analisam e refletem so­

bre a decisão em aula ou trabalho cientifico não procu­ rem compreender o sentido daquela decisão. Outro exemplo é a proibição do anatoclsmo pelo STJ. entendi­ mento da alta corte do País que não se pode cobrar Juro

sobre juro. Como ir além dos debates, das querelas hermenêuticas tradicionais, e pensar o que significa um tribunal afirmar que não se pode capitalizar juro? Qual é

O que é pesquisa em Direito 7

169

o significado da decisão da corte no capitalismo e no com­ plexo mercado financeiro nacional? Fora a sugestão do professor Pérsio Arida, de se In­ vestigar a historicidade da norma (o que é um grande avanço nesse tradicionalismo, no entrave para a refor­ ma do sistema financeiro), chega a ser tragicômico que na pauta da transição, em uma situação de ameaça de inflação, todo o debate sobre um novo desenho para o sistema financeiro nacional esteja bloqueado porque uma tese jurídica dominante prega que não se pode reformar, ou regulamentar o Artigo 192 com uma única Lei Com­ plementar. Se uma Lei Específica conceder independên­ cia ao Banco Central ela será inconstitucional; o Congresso tem de aprovar uma emenda constitucional que troque a expressão pela mágica "leis complementa­ res". Essa é a pobreza do debate Jurídico sobre o siste­ ma financeiro. Para além da questão da eficiência econômica: nós não temos, no melo acadêmico, a dis-:­ cussão da legitimidade da regulação do mercado finan­ ceiro - um debate clássico que começa com Weber sobre o agigantamento das burocracias, o que foi uma respos­ ta à complexificação do mercado. A necessidade de uma burocracia corresponde ao cuidado técnico e Imparcial da moeda e do crédito. Daí vem a questão lntertemporal, a necessidade de um Banco Central Independente e com mandato, enquanto, paralelamente, há uma discussão riquíssima por ocorrer acerca da legitimidade desta bu­ rocracia imparcial que garante a eficiência do mercado. A minha questão é se, além da discussão de eficiência do mercado, da adequação da norma à necessidade e dos

I,:"·

!

170·

Escola ele Direito ela F1111dação Getú/in Vc:irgas

efeitos adversos, também não poderíamos acrescentar essa pauta sofisticada da relação Direito e Economia.

+ Persio Arida De fato, o debate no Brasil sobre o Banco Central Independente é extremamente pobre e, curiosamente, mais desenvolvido no mundo dos economistas que no jurídico. Eu digo curiosamente porque no mundo dos economistas ele é relativamente simples, e no mundo jurídico muito intrincado. O que significa um Bance> Central independen­ te? Qual é o projeto? Claramente há uma pobreza de de­ bate impressionante. A questão crítica, a meu ver, é que o que se debate no mundo jurídico está aquém do necessá­ rio. Por favor não me levem a mal. Todo o debate, suges­ tões, vêm de economistas. Os vários projetos, inclusive esse que o Banco Central trabalhou, foram pensados por economistas. A pergunta é se esta é a melhor ótica. Ne­ cessária sim, mas talvez não a melhor. Imagino que com­ plementar à ótica Jurídica. Corremos o risco de implementar um Banco Central em que questões normativas não foram muito pensadas pelos economistas. A independência serve para regular o mercado, mas do ponto de vista de alguma interação com o poder político - do contrário, não precisaria ser inde­ pendente. Trata-se de algo intrinsecamente do plano normativo, por isto a reflexão dos economistas é impor­ tante e certamente insuficiente para caracterizar uma boa legislação a respeito. É preciso trabalhar o que é uma boa pesquisa em Direito, que efetivamente evolua para o posi­ tivo. É evidente que a historicidade da norma, que abordei

O que é pesquisa em Direito ?

Ii1

antes, interessa aos economistas em geral. Este é um caso urgente,_ de carência de reflexão, em que os economistas não podem ajudar porque apenas comparam sob o pris­ ma do funcionamento de mercado. Certamente é uma óti ca interessante, porém desenraizada juri�icamente quando a questão é normativa por definição.

+ Calixto Salomão Filho Também estava aqui pensando em como responder por que acontecem essas coisas. É difícil. Um hábito ar­ raigado em Direito é pesquísar apenas a história da nor­ ma quando se fala em pesquisa histórica. É difícil pesquisar a evolução das idéias. Em matéria �egulatória, com freqüência é catastrófico. Prova disto é uni outro pro­ blema, além da pesquisa histórica um pouco:desfocada: quase não se faz a pesquis� empírica, o que é fundamen­ tal para analisarmos o efejto de uma norma. Acho que existe um tripé importante formado por pesquisa históri­ ca, empírica e de fundamentos valorativos - freqüentemente imaginamos que a Lei é Igual aos valores aceitos pela so­ ciedade. Às vezes, a questão não é tão compléxa, trata-se de ab_andonar o formalismo e buscar o valor. Um dos ter­ mos mais relevantes na história do Direito'Econômico bra­ sileiro foi a discussão social da empresa (porque buscaram o valor atrás da norma). Precisamos de mais atenção à pesquisa, mais tempo despendido e outros métodos.

·---------- CAPÍTULO

As

V

ÁREAS DO DIREITO E ESPECIFICIDADES EM MATÉRIA DE PESQUISA

O que é pesquisa em Direito 7

175

PARTE

5

THEODOMIRO DIAS NETO Professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas

Pretendo discutir como a pesquisa pode contribuir para que o Direito Penal possa cumprir o seu papel na solução de conflitos de maneira mais justa e eficaz. Concordo com o diagnóstico aqui apresentado quan­ to ao atraso da pesquisa em Direito em relação a outros campos das ciências humanas. É possível detectar um aumento quantitativo da pesquisa na área penal, que eu atribuo também ao crescimento �a pós-graduação. Mas a quantidade é superior à qualidade. Grande parte dos trabalhos apenas confirma a autoridade da doutrina. Também é válido para o Direito Penal o diagnóstico de isolamento em relação às demais disciplinas das ciências humanas. A elaboração teórica está basicamente voltada a servir os profissionais em suas atuações nos tribunais. A escolha dos temas de pesquisa é, com freqüência determi­ nada pelo interesse do advogado, do promotor e do Juiz em buscar soluções para seus casos concretos.

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Escola de Direito da Fundação Oet1Wo Vargas

Há, portanto, um enorme campo a ser explorado na pesquisa em ciências criminais. Pretendo colocar algu­ mas vertentes que, na minha opinião, precisam ser aprofundadas para que o sistema penal possa ser um ins­ trumento mais eficaz de solução de conflitos e de controle do poder punitivo estatal. Uma vertente seria conhecimento do processo de produção legislativa. Nunca se legislou tanto em Direito Penal. O Direito Penal converteu-se no grande curinga da política contemporânea, um instrumento sempre a mão · para a busca de consensos partidários e articulação de respostas simbólicas aos conflitos. Diante desse quadro, algumas questões merecem investigação. Como tem se dado o processo decisório legislativo na área penal? Como nascem as leis penais? Quais são os seus trâmites dentro do Congresso Nacional? Quais são os autores que Inter­ vém no processo legislativo? N? final de 1990, por exemplo, duas leis Importantes leis penais foram aprovadas: a 8.13 7 /90 prevendo crimes tributários, de abuso de poder econômico e contra o con­ sumidqr e a 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor. Inexplicavelmente, condutas muito semelhantes relacio­ nados à propaganda enganosa são tipificadas nas duas leis com penas totalmente distintas. A constatação é que as comissões que redigiram os projetos das duas leis não conversaram entre si. O resultado é o caos legislativo. Exemplos como este surgem a cada ano. Uma das grandes características do Direito Penal atual, não somente no Brasil, está em seu caráter altamente sim­ bólico. Na chamada "política como espetáculo", os políticos

o

O que é pesquisa em Direito ?

177

vendem ilusão de segurança em troca de votos. A despeito deste processo de Inflação legislativa, o sistema penal não tem sido avaliado socialmente no plano de sua eficácia. Pelo contrário, a ausência de resultados positivos na solução de conflitos somente revigora a Insistência na demanda re­ pressiva. É como se o problema estivesse na dose do remé­ dio e não no remédio em si. A hegemonia cultural da ótica penal de compreensão dos conflitos sociais bloqueia a libe­ ração da Imaginação para outros tratamentos. Alessandro Baratta33 explicava que o atual movimento do "eflcientismo penal", tendência de se valorizar os aspectos da eficiência em detrimento das garantias, constitui um círculo vicioso de resposta via pena à desilusão causada pela ineficiência da mesma pena no confronto de determinados problemas. Segundo Baratta, o eficlentismo não responde cognitiva­ mente, mas normativamente; ou seja, se nega a aprender e, em vez de buscar respostas mais eficazes, trata de tornar mais efetiva a resposta penal aumentando a sua lntenslda,­ de ainda que a custo da Justiça. Neste sentido, além de conhecer o processo legislativo, a pesquisa deve preocupar-se também em conhecer os efei­ tos das leis penais sobre os problemas. Como o processo­ criminal se desenvolve na prática? Como tem sido o filtro policial? Quantos casos chegam ao Judiciário? Qual tem sido o Impacto da regulação penal em áreas como dro­ gas, aborto, melo-ambiente, abuso do poder econômico? 33

Alessandro Baratta, Jurista Italiano, é diretor do lnstltut für Rechtsund Soclalphllosophle da Universidade do Saarland, Alemanha. Autor de Criminologia crítica e crítica do direito penal, Editora Renavan - Instituto Carioca de· Criminologia, 2002.

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Há outros meios mais eficazes para a regulamentação desses problemas7 Enfatizo aqui a Importância do estudo interdisciplinar. É necessário discutir em que medida o Direito Penal tem se mostrado um Instrumento adequado no tratamento de problemas ou se, pelo contrário, converteu-se em parte essencial do problema. Se comprovada a sua ineficácia no confronto de determinada situação problemática, de­ vemos renunciar ao uso do Direito Penal. Se diante de um conflito não houver alternativa melhor à pena, e esta tampouco se mostrar útil, é preferível não fazer nada a sofrer os custos sociais da Intervenção penal. Em alguns casos, os problemas não derivam das leis, mas da aplicação inadequada das mesmas. A lei dos Juizados Especiais Criminais prevê, por exemplo, para de­ terminados crimes de pequeno ou médio potencial ofensi­ vo, a possibilidade de transação penal e suspensão condicional do processo através da imposição ao acusa­ do de determinadas condições, como prestação de servi­ ços, reparação do dano, restrição de direitos, etc. Em regra, contudo, salvo importantes exceções, essa lei converteu­ se em instrumento de Impunidade e descrença no Judiciá­ rio através da aplicação burocrática de cestas básicas pelos juízes. A esposa agredida procura o Judiciário para denunciar uma lesão corporal, o marido concorda em pa­ gar uma cesta básica para se ver livre do processo e, logo após a audiência, em tom de sarcasmo ainda obriga a impotente vítima a arcar com as suas "despesas" proces­ suais. Este tipo de diagnóstico somente é possível pela pesquisa.

O que é pesquisa em Direito l

179

Na mesma linha, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM 31 ) tem pesquisado a atuação dos CICs, os Centros de Integração da Cidadania, enquanto política de solução de conflitos e prevenção criminal nos bairros periféricos da cidade de São Paulo. É necessário ainda lembrar a importância do estu­ do da dogmática penal. Dogmática penal, de acordo com definição já ap�esentada, seria uma tecnologia para as­ segurar a capacidade decisória do Direito, enquanto con­ junto de regras generalizáveis. O professor Tercio tr.ata da importância da dogmática para a confirmar a razão e a autoridade dos textos na Idade Média. A dogmática converteu-se em instrumento de resgate de razão dos textos legais. Com Isso, o espaço da dogmática e da te­ oria geral do delito é o de busca de racionalidade e recu­ peração do papel original do Direito Penal, qual seja garant.lr que o poder punitivo seja exercido em confor­ midade com as regras da Constituição. Precisamos re­ solver as antinomias entre o Código Penal e a legislação especial, resgatar a dogmática penal como delimitadora da pena, e, por fim, agregar uma análise interdisciplinar dos conflitos. A Integração do Direito com as faculdades de Econ9mia e Administração Pública podem ser muito producentes.

34

Instituto Brasllelro de Ciências Criminais.

180

Escola dt Dlrtlto da Fundaçifo Gtt1Ulo Vargas

PARTE

5.1

O qut i pesquisa em D/rt/to ?

181

semi-automática. Nós aprendemos que a idéia do código, cientificamente falando, é de Inteireza do Direito. Quando

CASSIO SCARPINELLA BUENO

falo especificamente em processo civil e ponho em minha

Professor da Faculdade de Direito da

frente os códigos dos professores Theotonio Negrão e

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Nelson Nery Junior, tenho mais que a Inteireza Jurídica; tenho tudo do Direito Processual Civil. Podemos, sem exa­

É fácll descrever o que é a pesquisa em Direito Proces­

gero, sobretudo para quem está na prática, afirmar que

sual, mas é bem diferente afirmar o que deve ser ou o que

se não está neles, é porque não precisa estar. Uma coisa é

eu gostaria que fosse. Acho que o mais Importante deste

certa: o juiz lê o código, e se ele tiver um é destes. Neste

encontro é discutirmos o que pode ser, concretamente, a

sentido , a pesquisa processual civil poderia se limitar a

linha de pesquisa. Eu, particularmente, venho totalmente

saber se o Theotonio fez alguma anotação. Quanto a isso

desarmado no que diz respeito a definir o que é Direito.

tive uma experiência como professor, em que dei uma prova

Não discutirei o que é Direito ou o método que me parece

com consulta ao livro do professor Nelson Nery Junior e,

mais relevante. Falarei sobre como está funcionando, onde

retirando aqueles vinte do "gargarejo" que normalmente

vejo problemas e quais soluções me parecem melhores.

vão bem, os outros cento e trinta foram mal. Perguntei­

Concordo com o que foi dito pelo Theodomlro quanto

me: nem com o código do Nery eles vão bem 7 Descobri

ao complemento que se faz necessário ao processo. O In­

que havia um claro problema de pesquisa. Eles sequer

teressante no processo

é que se confunde com a prática

abriram o código e, portanto, não sabiam da ferramenta

Judiciária e há mais de uma corrente filosófica, dizendo

de pesquisa que era o índice. Pensaram: "eu não conse­

que o Direito se limita a ser a experiência Judiciária. Não

guirei ler tudo Isto na hora da prova". Diante do resultado

fui eu que Inventei e o fato de eu concordar ou não com

da prova, naquele dia limitei-me a dar uma aula de

isto e quais são as minhas convicções filosóficas são com­

metodologia de pesquisa no código do Nery.

pletamente impertinentes agora. Existe este agravante na

De qualquer forma, o Direito não se resume ao códi­

pesquisa do Direito Processual. Também há mais de uma

go. Juizados Especial, Cível e Federal estão fora do códi­

corrente filosófica que defende: "Direito é o que o Juiz diz".

go, embora na livraria compremos tudo Junto. Pior: o atual

Se o Direito é o que o Juiz diz, af sim a nossa pesquisa do

estágio do Código de Processo Civil não está no Código .

processo se confunde com a pesquisa do que é Direito - e.

São leis mais recentes que entram no código e, com as

o resto é mera opinião.

letras a, b e c misturam tudo - no caso do Processo Civil,

Eu diria que a pesquisa tende a ser multo mal pensa­ da no Direito Processual, quase desprezada, porque é

Inverte a lógica do próprio Direito Processual. Então, per­ gunto: qual é o critério ou o que é a pesquisa no Direito

182

Escola de Direito da Fundação Get:i/io Vurgas

Processual? Continua sendo identificar a Lei vigente, este­ ja dentro ou fora do Código, o que já é um grande desafio. Antes, quando as medidas provisórias podiam alterar o Código, era mais difícil. Há correntes que simplesmente se recusam a olhar o novo. O jurista tem duas opções diante de uma medida provisória (ou lei): ele a aceita e estuda ou Juridicamente a recusa afirmando que é inconstitucional e que não passa no teste de validade, não podendo pertencer ao ordenamento jurídico. Se não nos debruçarmos sobre a identificação do objeto, não sabere­ mos qual é o Direito vigente e teremos sérios problemas. Não só é importante, como já é um grande desafio para todos nós que nos debruçamos sobre o Direito Processual. A razão é simples: não existe, hoje, no mercado, Código Processual Civil atualizado. Houve uma radical reforma no final de 2001, com duas leis, e os códigos saíram em março. Em maio houve uma terceira lei modificadora e as editoras não tiveram fôlego e dinheiro para reeditar códi­ gos. Hoje, quando as editoras estão mandando para as gráficas seus novos códigos, sai nos jornais outro projeto de lei que rapidamente estará nas mãos do presidente, modificando dois estatutos da tutela antecipada. É importante tentar definir o que é Direito Processual? Sim. Para verificarmos que ele não se esgota nos códigos. Aqui eu sou multo técnico, porque não me preocupam ago­ ra quaisquer conotações filosóficas sobre como encarar o processo - isso é o dever ser, que ficará para o final. Es­ sas reformas do Código, ou o que estou chamando de indefinição do objeto a ser pesquisado, têm um grande problema que quero evidenciar. A tarefa mais simples,

O que é pesquisa em Direiro ?

'.BJ

embora custosa e pouco realizada, é saber qual é a Lei vigente. Existe uma tarefa muito próxima do que Theodomiro coloca: nós temos de identificar o que preci­ sa ser mudado. Fala-se que o processo deve ser mais rá­ pido, mais eficiente e cogitam-se modificações legislativas. O que falta nas novas leis, que geralmente saem da aca­ demia, é pesquisa empírica. Será que podemos dar mais força ao juiz de primeiro grau? Será que ele é confiável? Não existe pesquisa sobre isto. O processo é demorado, dizem os jornais, mas em média quanto tempo demora um processo civil? O juiz é ruim para as multinacionais. então vamos apoiar as mediações e arbitragens. Mas o nosso advogado sabe arbitrar, transacionar ou mediar? Ou será que o advogado sai das faculdades como um "galo de briga", formado para o litígio? Também há o problema de mercado, do advogado que recebe por tempo e segura o processo na Justiça. Portanto, falta a pesquisa desses dados que, muitas vezes, alavancarão oportunas mas pon­ tuais mudanças no Código Processual Civil - sem contar que as reformas certamente serão mais eficazes. Existe um outro método de pesquisa, que ocorre com mais freqüência e que até motivou uma modificação no Código. Podemos ser jocosos ou até criticá-lo, mas ele tem a sua importância. Escritórios grandes comumente destacam um estagiário para Ir, por exemplo, ao Fórum da Fazenda Pública e verificar como os juízes estão de­ cidindo sobre um determinado tributo (se a tese está fun­ cionando). Isto é uma excrescência, é abominável, no entanto acontece. Este levantamento é um dado de pes­ quisa útil, uma jurisprudência de primeiro grau. O aluno

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confunde com a maior tranqüilidade Jurisprudência com qualquer "Julgadinho", por mais temerário ou menorzinho que seja, de preferência se for ementa curta e estiver no Theotonlo, certamente será Jurisprudência. "Eu citei doze Jurisprudências". Puxa, doze Jurisprudências? É mais do que o Código Civil dá . .Trata-se de doze Julgados, catalo-· gados, que foram pinçados por conveniência. Um Julgado não é relevante para o Direito até que se transforme em jurisprudência. Temos de saber o que é jurisprudência porque é norma de Direito positivo, equivale à possibili­ dade de os tribunais decidirem monocratlcamente. O bom consultor deve saber o que é jurisprudência porque ela autoriza um corte de procedimento. É fundamental distln­ gu irmos para que estabeleçamos as premissas metodológicas do que é a análise da Jurisprudência. O grande problema que vejo em o q'ue é pesquisa pro­ cessual, é um absoluto sincretismo metodológico. É por isto que o Julgado vira jurisprudência. Qualquer argumento vale. Não há na doutrina ou na jurisprudência o menor pudor em argumentos, p'rincipalmente no parcial traba­ lho do advogado. Não há pudores filosóficos em citar au­ tores de movimentos completamente distintos simplesmente porque uma vírgula é comum aos dois. Se­ ria como querer explicar a técnica de pintura moderna através da barroca. Não se explica, são linguagens que não se misturam. Deve-se definir qual será a proposta, a escola e a ideologia para então utilizar com alguma tran­ qüilidade métodos coerentes entre si. Existe a pena de não se produzir algo doutrinário, mas o caos, a tentativa de organizar o caos, ou pior, sistematizá-lo sem entendê-lo.

O que é pesquisa em Direito ?

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Vejo apenas uma vantagem no que chamo de sincretismo metodológico: a pesquisa pode equivaler à necessidade de fundamentação. Não sou kelsenlano - e estou ciente das críticas do Eurico quanto a se afirmar sem sê-lo - mas me agrada multo a figura da moldura Interpretativa. Em suma, Kelsen35 fala, fala, fala e, quando se cansa, diz: "quer saber de uma coisa ... a norma do Direito pode ser qual­ quer coisa, vale tudo, Inclusive aquilo que não se con­ segue colocar na moldura". Se o juiz for um louco e fizer unl-duni-tê para escolher a norma, rigorosamente fa-:

!ando, será aquela. Com todas as licenças poéticas do mundo: acho que a pesquisa é capaz de lidar com isto, desde que com ciência do material desconexo e da ne­ cessidade de sistematizá-lo e catalogá-lo para, então, decidir o que serve e o que pertence a cada escola. É importante definirmos como pesquisa todo o material que possa ser útil, pelo menos a título de premissa, para embasar conclusões. Gostaria de definir que tipo de escola - e eu gosto da ênfase no nome escola -, que moral, que ética, que finali­ dade teremos na EDESP. Seremos concretistas, finalistas, abstracionistas, jusnaturallstas, positivistas? Vamos de­ finir Isto, porque a partir de então estaremos mais tran­ qüilos para a realização de pesquisas de campo ou legislação. Até compartilharemos premissas, e com isto facilitaremos a vida dos nossos pesquisadores. 35

Hans Kelsen ( 1881 - 1973), jurista alemão, autor de Teoria pura do Direito, Martins Fontes, 1987.

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Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

PARTE PAULA

5.2

fORGIONI

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Raramente se aborda a pesquisa jurídica. É um tema que precisamos discutir, sistematizar e trocar experiências. Percebo que todos os que encaram o ensino do direito de forma responsável e séria estão, de alguma forma, traba­ lhando com essa questão. Entretanto, cada um desenvolve metodologias próprias e não é hábito na academia brasi­ leira o intercâmbio de conhecimento sobre formas de ensi­ no do direito. Talvez não por vontade de ocultar os progressos que, às vezes, logramos obter, mas por falta de oportunidades, de arenas adequadas à discussão do tema. Buscando trazer minha colaboração para o debate apaixonante, por certo - acredito ser importante darmos destaque a alguns pontos que ainda não foram abordados. Antes de tudo, quero defender Kelsen, apesar de não ser "kelseniana", no sentido pejorativo que essa expres­ são hoje assumiu [aliás, geralmente fala mal de Kelsen quem não o entendeu]. Não possuo base teórica sobre didática em metodologia de pesquisa, embora seja ampla minha ex­ periência prática propiciada pela FGV e pela LISP. Com base nessa prática, colocarei algumas inquietações e con­ clusões pessoais. Inicialmente, eu separaria o estudo da pesquisa. Con­ tudo, é possível estudar sem pesquisar? A resposta ideal é

O que é pesquisa em Direito 7

187

não. Por outro lado, é possível pesquisar sem estudar, pois muitas vezes alguém já fez a pesquisa por você. Temos o grande dever e a oportunidade de transmitir o fruto das nossas pesquisas para os alunos. Relatarei al;gumas ex­ periências feitas com estudantes que foram obrigados a se dedicar com afinco à investigação e chegar a suas pró­ prias conclusões. Tem se mostrado útil fazer com que os estudantes se lancem às pesquisas - e não a fiquem ape­ nas esperando que alguém (i.e., o professor) conte-lhes como é a realidade. O aluno, mesmo de graduação, há de conciliar estudo e pesquisa - não é nossa função ensiná­ lo a usar índices e ler leis em aula. Está na moda falar mal dos manuais. E, se vocês me permitem, já que estamos entre amigos, isso causa profun­ da revolta. A origem dessa prática é uma idolatria à doutri­ na e ao material estrangeiros, enquanto se despreza a nossa tradição, bastante respeitável em Direito Empresarial e Comercial. Possuímos um bom material, porém desatualizado. No passado; fiz a experiência de conduzir cursos de graduação sem a indicação de qualquer manual, e a minha conclusão foi que o aluno precisa de um "corri­ mão" para, pelo menos, um primeiro contato com a maté­ ria. Na área de Direito Comercial temos manuais de qualidade, embora desatualizados, como disse. A obra de Rubens Requião, por exemplo, é preciosa, porém o que não podemos esquecer - e embasar nossas críticas nessa visão distorcida - é que se trata de um manual, "para ter à mão", e n�o de um tratado. Não é por isso, todavia', que vamos jogá-la no lixo e dizer que não serve para nada. Serve sim, e por que não os atualizar? Duvido que, se profissionais

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experientes e de notório saber lançarem-se à atualização dessas obras, não tenhamos um resultado favorável. Coincldentemente, fiz esta mesma pergunta aos alu­ nos da São Franclsco36 quais professores eles realmente respeitavam. São Juristas bastante conhecidos, com larga experiência docente e profissional. Todos eles utilizam ma­ nuais {geralmente, mais de um), complementando-os em sala de aula e indicando bibliografia extra. Não podemos ignorar que o aluno vai ter de encontram em algum texto uma primeira explicação sobre "o que é ação preferencial". o fato "de indicar tais obras, contudo, não exime o pro­ fessor de trazer textos complementares e Instigar o racio­ cínio dos estudantes. Devemos usar bons manuais, da tradição brasileira. Ouvi uma palestra de colegas do Rio de Janeiro que, nesse sentido, me encheu de alegria. Vamos estudar Direito Comparado, que é um dos mais poderosos instrumentos que temos para a compreensão de nosso sis­ tema, mas também vamos estudar a nossa boa tradição, principalmente a que temos em Direito Comercial. Feita essa introdução, para que serve a pesquisa? Para podermos enfrentar essa questão, é preciso ter '1 em m�te que há, basicamente, dois tipos de pesquisa Ju1. rídica: aquela com fins acadêmicos e outra ligada ao exercício da atividade profissional dos chamados operadores do direito: Quanto à pesquisa de Direito Comercial com fins aca­ dêmicos, basta ler qualquer clássico para concluir que tam­ bém não há academia nesta área sem experiência prática. 36

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

O que é pesquisa em Direito ?

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Talvez, para algumas disciplinas, como Filosofia do Di­ reito e Direito Romano, não haja a necessidade da vivência prática do docente. Mas não consigo vislumbrar como al­ guém pode poreJar a racionalidade dos agentes econômi­ cos, que é a mola do Direito Comercial, sem trabalhar. Não há como entender essa racionalidade típica sem man­ ter contato com os agentes econômicos movidos por esta racionalidade. Um exemplo é a Lei das S/A. Consulto esta Lei prati­ camente todos os dias e, ainda assim, encontro vírgulas que não havia notado antes - o que acontece somente quan­ do vivenciamos um caso concreto. Mesmo a pesquisa aca­ dêmica não é - e nem pode ser - dissociada da prática. Quanto a pesquisa com fins profissionais, esta se apresenta ligada ao embasamento de ações judiciais, con­ sultas e pareceres. O primeiro tipo é alvo de preconceito, pois, realmen­ te, os advogados acabam transformando-se. em "buscadores de citações". Pedem ao estagiário que encon­ tre alguém que afirme o que ele precisa. Quando comecei a estagiar lembro que um advogado me disse: "toda peti­ ção precisa de doutrina e Jurisprudência". Então que se distorça, corte, mas se deve encontrar "alguma coisa para citar". No entanto, há outro modo de pesquisa para ação que é muito mais instigante: estudar o caso, verificar as possibilidades e construir a linha a ser defendida. Para a pesquisa relacionada à consultoria, vale o mesmo pressuposto. No entanto, ela necessariamente é mais "honesta" , uma vez que o agente econômico está questionando ao "pesquisador" se pode ou como pode

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Escola de Direito da Fundação Getr.illo Vinsas

diminuir o seu risco. Se o empresário, em sua racionalidade peculiar, busca aumentar o grau de segurança e previsibilidade do ambiente em que atua, é função do con­ sultor Indicar o caminho em que as chances de sucesso são maiores. A pesquisa para consultoria é algo em que se deveria Investir na Escola, especialmente a boa consultoria, neutra, que diz aquilo que o cliente não gos­ taria ouvir. Essa pesquisa traz uma grande responsabili­ dade para o consultor, que diminui Incertezas utilizando probabilidades (considerando que, no direito, ao contrá­ rio do que querem muitos, há a possibilidade de mais de uma resposta "correta" para o caso concreto). A terceira forma é a pesquisa para o parecer pro

veritate. Não há outro caminho senão estudar multo para, primeiro, decidir se é possível proferir opinião favorável à posição do consulente. Ouvi comentários aqui que não entendo justos. Depois que o parecerista realiza profun­ do estudo sobre o tema, elabora o texto, o fato de o juiz concordar ou não concordar com a opinião ali exposta não é o que deve orientar nossa visão sobre o assunto. O parecer, naturalmente, deve ser consistente para embasar a argumentação do advogado, e Isto só se con­ segue com uma pesquisa profunda. Confesso que busco remover um pouco desse preconceito, porque acredito que essas pesquisas podem contribuir para o ensino e apren­ dizado sobre a matéria. Particularmente, aprendo e aprendi muito pesquisando durante minhas atividades profissio­ nais não acadêmicas. Antes de falar da pesquisa Jurisprudencial, porém, é preciso apartar a mera pesquisa "de legislação" daquela

O que é pesquisa cm Direito 7

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que analisa a política p ú blica por ela implementada. Na primei ra, estamos em meio a um cipoal, buscando o texto normativo vigente e que, eventualmente, Incida sobre o caso. A segunda, por outro lado, visa a identificar a implementação de polftlca econômica por Intermédio do Direito (e de sua aplicação). Um exemplo: para analisarmos a Lei das S/A é Indispensável identificar o que está por trás dela, ou seja, qual é a política econômica por ela concretizada. Sob esse p ris­ ma, podemos perguntar: por que foi retirada a oferta p úbli ­ ca da Lei das S/A, à época das privatizações? Por que se implementava uma política fiscalista e, manti�a a oferta pública, seria mais difícil (e cara) e venda do controle? Por que, após das privatizações, a lei foi mais uma vez altera­ da, incluindo-se, novamente, a previsão da ofer�a pública? Quanto à pesquisa doutrinária, peço licença para fa­ zer uma pergunta: depois de O Poder de Controle, de Fá bio Comparato37, qual seria um grande livro de Direito Comercial? Temos os pareceres, não vendidos, mas certa mente comprados. Isto faz com que a doutrina existente penda para um lado: o dos agentes econômicos. Note-se bem: não que os juristas que proferiram parl;!ceres não acreditem no que escrevem, muito ao contrário. No en­ tanto, esses trabalhos são encomendados por agentes eco nômicos, ou seja, a matéria pesquisada não é "escolhida" pelo professor, mas sim pelo cliente. 37

Fablo Konder Comparato, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, autor de Afirmação His­ tórica dos Diretros Humanos, Saraiva, 2002 e O Poder·de Contro­ le na Sociedade Anônima, Forense, 1983.

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Escola de Direito dei Fundeiçilo Qetl1/lo Veirgeis

Para dar um exemplo de doutrina em Direito Empre­ sarial, há alguns anos o Prof. Carvalhosa38 , grande Juris­ ta. defendeu em parecer que acordo entre acionistas com prazo longo, maior que dez anos, poderia ser denunciado a qualquer tempo. Essa Idéia disseminou-se de tal forma que a mâioria dos advogados receava prever prazo de vi­ gência superior a dez anos em acordos de acionistas. Resta-nos a análise Jurlsprudenclal. Entendo, concor­ do e temo as críticas que escutei aqui. Vamos apenas re­ petir Jurl�prudência? Não pode ser. O enfoque coreto é que a análise Jurlsprudencial deve ser realizada porque está relacionada à busca de segurança e prevlslbllldade, além de possibilitar a compreensão do sistema, do direito vivo. Isso, obviamente, não transforma nosso sistema em Common Law, mas por intermédio da pesquisa sistemática de jurisprudência é possível ver o direito comercial como ele é, en�endê-lo para poder formular críticas de forma consistente e responsável. Peço licença para trazer outro exemplo: quando a Internet.ainda não fazia parte de nosso quotidiano, o di­ retor de um banco nos procurou perguntando sobre os riscos que assumiria ao adotar uma forma de contratação ainda não regulamentada em texto normativo e tampouco analisada pelos tribunais. A preocupação principal liga­ va-se à assinatura eletrônica. Levantamos tudo o que ha­ via sobre senhas (considerando que a assinatura eletrônica 38

Modesto Carvalhosa, advogado especlallzado em Direito Societário. autor de Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 4 vols, Saraiva ..

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é, na verdade, um sistema baseado em senhas duplas). Verificamos como os tribunais analisavam senhas comuns, e descobrimos que as entendiam como uma assinatura. Pesquisamos, então, a função da assinatura desde a Rota de Gênova. Nosso foco passou a ser a função do docu­ mento e da assinatura. Assim, pudemos estudar e Indicar qual poderia ser a compreensão dos tribunais em face do novo problema. Tempo passado, acho que nossas previ­ sões se concretizaram. Ainda mais um exemplo: pesquisamos a S/A, com patrocínio da FGV, levantando todos os acórdãos dos úl­ timos vinte anos. Formamos uma equipe de estudantes para reunir os acórdãos e os organizamos por grupos de principais pontos de conflito das SIA nos tribunais. Em cada grupo de decisão fizemos uma análise profunda e sistemática da jurisprudência, tendo sido possível perce­ ber certas tendências. Identificamos uma linha principal e afirmar para onde se direciona. O estudo da Jurisprudência não deve ser visto como algo limitador, ultrapassado e fora de moda, mas como um movimento de evolução. Outro ponto que causa profunda revolta liga-se à constante referência ao "risco Brasil" que derivaria do direito brasileiro. Dizem que o sistema Jurídico brasileiro "não funciona". Concordo em parte. mas muito desse ris­ co é atribuído por quem aqui chega para operar e desco­ nhece o nosso sistema. Por exemplo, cláusulas que foram recortadas de contratos talhados no sistema americano e coladas nos contratos brasileiros. Se uma dessas cláusu­ las for julgada abusiva, dir-se-á: "o B-rasil está atrasado".

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Mas quem assim alega, conhece o nos�o sistema 7 Por que atrasado? Estamos atrasados porque não aceitamos a clá­ usula americana? Por que temos outros valores para pro­ teger? Por que a maioria das sociedades brasileiras é limitada? Somos atrasados porque não aceitamos a abusividade da cláusula estrangeira? Tomemos o curioso caso julgado pelo ST] 39 sobre contenda envolvendo a venda do Jogador de futebol Juninho Paulista que, à época, estava no ltuano. Esse time de fute­ bol fez um acordo para que o São Paulo vendesse o passe do jogador, nos seguintes termos: se este clube vendesse o Juninho Paulista até o dia tal, o ltuano ganharia um de­ terminado valor. O que fez o São Paulo? Esperou o escoa­ mento do prazo e vendeu o passe posteriormente, sem pagar comissão ao ltuano. A questão foi apreciada pelo STJ e gravitou em torno da discussão sobre ser ou não essa cláusula potestativa. Se o STJ dissesse que a cláusu­ la não era potestativa, mas sim que o São Paulo havia abusado do direito que lhe havia sido assegurado, estar­ se-ia diante de reinterpretação de cláusula contratual e o Recurso Especial não poderia ser admitido. O que se fez? Decidiu-se que a cláusula era potestativa. Como ignorar os efeitos desse precedente sobre a validade de cláusulas semelhantes? Voltando a questão do incentivo dos alunos de gradu­ ação à pesquisa, tenho Interessante experiência a relatar. Propus que estudantes do 2 ° ano de direito escolhessem qualquer tema da teoria do Direito Comercial para, desde 39

Superior Tribunal de Justiça.

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O que é pesquisa em Direito 7

o número um da RT, analisarem a evolução jurisprudencial da matéria. Os trabalhos foram de excelente nível. Por exem­ plo, a evolução do conceito de justa causa para a exclusão do sócio: penhora de cotas, dissolução parcial. .. Com base nisso, conseguimos entender a dissolução parcirl em S/A, um dos temas mais atuais. Assistimos aos mesmos argu­ mentos das décadas de 40 e 50 brotando agora. Enfim, a pesquisa jurisprudencial faz com que enten­ damos melhor o nosso sistema, a nossa realidade.

DEBATES

+ Carlos Ari Sundfeld

Poderíamos perguntar ao professor Theodomiro se ele montaria um curso de Direito Penal com tantas an­ gústias e se uma forma não seria usar a pesquisa como técnica didática. Estamos naquele conflito sobre o que é o Direito; se é uma teoria, uma prática, uma didática.

+ Eurico de Santi Diniz

A minha proposta é analisar o que foi dito. Podemos aplicar um instrumento de Hans Kelsen que foi desenvolvi­ do por um professor de Pernambuco, chamado Lourival Vilanova40 : o processo de causalidade do Direito, que ca­ sou com os argumentos apresentados pelos três. O Lourlval partiu de Kelsen, entendendo que a proposta não era de 40

Filósofo do direito, Professor na Universidade Federal do Re­ cife, autor de As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positi­ vo, Max Llmonad, 1997.

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O que é pesqitlsa em Direito 7

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uma dogmática, mas de uma teoria formal do Direito que, portanto, era vazia e sem conteúdo específico. É uma teo­ ria que monta as estruturas e não dá as respostas - não adi­ anta ter angústia com Kelsen, porque ele delimita, delimita, sem resolver. A teoria pura é tão delimitada que oferece pouco, quase nada: um quase nada que não é condição su­ ficiente mas é condição necessária para tudo. Retomando, esse professor reestruturou Kelsen, seus atos e aplicações das normas, e compôs o processo de causalidade do Direi­ to que está no livro. Há vários momentos que se encaixam no processo de causalidade. A produção legislativa oferece dois as­ pectos: o de análise pré-factual, que determina as condi­

definirmos o objeto da dogmática em sentido estrito) e a ter­ ceira doutrinária (analisar os fatos de interpretação para suporte legislativo, as teorias Jurídicas e os preenchimentos de sentido feitos pela doutrina em face destes fatos de pro­ dução normativa). O suporte factual é multo Importante, afi­ nal, o Direito incide sobre o fato e, por sua vez, o Direito subjetivo depende deste para nascer. Muitas vezes nos res­ tringimos ao Direito, que é delimitado, por ser mais fácil acessar a legislação sem compreender o mundo em seu en­ torno - as operações econômicas, as falências, a contabili­ dade para trabalhar com Direito Tributário. Olhando somente a Lei, não é possível aplicá-la adequadamente porque não

ções de produção daquela lei, e o de análise pós-factual. que é o produto daquela lei. A partir da Lei, a doutrina interpreta e tenta preencher aquelas molduras vazias de Kelsen com conceitos. Primeiro fato: produzo a Lei. Se­ gundo fato: interpreto a Lei. Terceiro fato: a Lei busca incidir sobre uma ação (subsunção). O Tercio menciona e eu não consigo Imaginar Direito sem subsunção, porque sem ela não há controle. Há um quarto fato, que é o ato de subsunção jurídica das autoridades, ou seja, é a aplica­ ção do Direito ao caso concreto. Reiteradas as decisões, serão formadas jurisprudências administrativas e Judici­ ais. Um último fato, é como a sociedade reage àqueles atos de subsunção jurídica. Quanto à pesquisa em Direito, temos nestes cinco fatos momentos relevantes para a investigação: a primeira seria histórica (em que condições a Lei foi produzida), a segunda legislativa (descobrir quais normas estão em vigor; até para

naridade que Jean Paul e Paulo Mattos buscam. O quarto fato orientaria a pesquisa jurisprudencial, revelando a prática do Direito e as tendências dos tribunais - possibi­ litando o aconselhamento dos clientes e o direcionamento de outras pesquisas. Por fim, Theodomiro colocou o as­ pecto da eficácia da norma, não em sentido estrito (o fato produzindo as relações jurídicas), mas de sua efetividade, dos efeitos produzidos pela Lei na sociedade. Em suma, aplicando um pouco do "saco vazio" de Hans Kelsen para entendermos essa estrutura, temos cinco grandes objetos de pesquisa. A minha proposta é essa.

se conhece o fato. Este é o grande campo da interdiscipli­

+ Paulo Mattos Eu gostaria de fazer comentários, com algumas ob­ servações pontuais para cada um. Paula, a única diver­ gência que temos é com relação ao enfoque - que não é claro para mim e, com o que o evento demonstrou, para

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nenhum de nós. As concordâncias fundamentais estão

O que é pesquisa cm Direito ?

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idéia generalizada quanto a não-utilidade dos traba­

principalmente ligadas às questões dos manuais, dos tipos

lhos desenvolvidos no âmbito da Common Law, uma re­

de pesquisa elaborados nos escritórios e da carência de investigações que atualizem os manuais e abranjam áre­

cusa em se adaptar algo de outra realidade. Eu torno

as ainda não abordadas. Acredito que as críticas que ocor­

discussões italianas e francesas, esquecendo que aque­

reram, por exemplo quanto aos manuais, seguiam a sua

les sistemas são parlamentaristas, em vez de aprovei­

ao problema das medidas provisórias. Vão atrás das

linha quando os mostrava como referências únicas mes­

tar a experiência semelhante do presidencialismo

mo que pobres em atualização. Faltam trabalhos "de fô­

norte-americano. É claro que não se trata de importar

lego", corno o do professor Cornparato, que interpretam

uma realidade diferente; entretanto, imagino que isto

e, com isto, reconstroem a dogmática. Há novos traba­

atravanca a nossa evolução. Quando eu estava na fa­

lhos surgindo, corno o do Munhoz, que traz um pouco de

culdade me diziam para não perder tempo estudando

doutrina em Direito Concorrencial para analisar o poder

inglês, que não seria útil, e que me concentrasse no fran­

de controle, e o artigo do professor Calixto em Direito

cês e no italiano.

Societário. Portanto, ficamos dependentes dos manuais

Estou escrevendo um artigo sobre o tema abordado

exatamente por não contarmos com trabalhos como estes.

por Cássio; aliás, o título é exatamente sincretismo

O Marcos dizia, e houve um debate interessante em

metodológico. Fiquei contente por saber que não sou o

função disto, que o manual forja uma realidade jurídica.

único a pensar assim, e triste porque pensei que fui origi­

Não há pesquisa de jurisprudência e, se houvesse, prova­

nal na escolha do tema. Esse é um problema do processo,

velmente elas terminariam comprovando tendências dife­

bem como do Direito Constitucional. Quando se fala em

rentes das que constam no manual. Com isso, novamente

métodos, em um inventário crítico escrito por um alemão

entramos na questão da importância de um trabalho de

há 25 anos, constatamos que a maioria deles é inaplicável,

atualização. Penso que a crítica aos manuais foi nesse

excludente, seja separadamente ou conjuntamente.

sentido. Se pensarmos em doutrinas estrangeiras, temos

Um último problema, também comentado pelo

de fazê-lo criticamente, utilizando o Direito Comparado,

Ronaldo, é a questão do manual e do parecer. Ontem me

adaptando-as à nossa realidade.

manifestei contra os dois, mesmo porque convivo há mui­ to tempo com alguém que utiliza manuais para elaborar

+ Luiz Virgílio (Pesquisador Direito GV)

de excelência são uma miséria, o desastre da pesquisa

Para começar, é mais fácil compreender o Direito

Jurídica no Brasil. Está na hora de percebermos que não

nestes fóruns que na faculdade. Acredito que há uma

se deve contar com o manual como base de pesquisa. Boa

pareceres (e os faz de graça), e mantenho que como obras

Escola de Direito da Fundaçdo Getúlio Vargas

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parte da péssima produção acadêmica nacional é respon­ sabilidade da hipertrofia do manual e/ou do parecer.

• Ana Lúcia Pastore

Quero fazer duas colocações, a primeira delas con­

frontando o que a professora Paula expôs. Acredito que

O que é pesquisa em Direito 7

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pesquisa é, com honrosas exceções, ingênua. Imagino que nisto as Ciências Sociais são capazes de contribuir. Em Direito Penal acho que a tendência é pensarmos no

que não está nos autos, no que está no mundo e Interessa ao Direito: ou seja, extrapolar as normas - a periferia, por exem­

plo, não funciona com leis, vive do narcotráfico. O IBCCRIM

respondeu perfeitamente ao que é o tema deste workshop.

é uma associação importante, exatamente porque está In­

(tudo é pesquisa). Abrimos um jornal para saber quais

de Estudos da Violência, há cerca de 4 anos: fizemos uma

Infelizmente, pesquisa em Direito é esse "saco de gatos"

filmes estão nos cinemas, e já estamos fazendo pesquisa. Na minha opinião, é a mesma coisa entrar na Internet para saber qual Lei está em vigor. Você tem uma pergunta e através de uma fonte obtém a resposta. Pesquisa acadê­ mica é muitíssimo mais que Isso. O que é pesquisa acadêmica? É uma pergunta empiricamente, teoricamente embasada por outras pes­ quisas. É bma metodologia crítica que toma as fontes para desconstruí-las, pensá-las - porque nenhuma delas é neu­ tra. Nós sabemos que a própria jurisprudência, que cha­ mamos de brasileira, é do sul-sudeste. A Revista dos Tribunais faz uma triagem, o que cita é pinçado de milha­ res de julgados que, em sua maioria, Ignoramos. Foi bem dito que no Tribunal de Justiça de São Paulo 10% são ca­ talogados.

Além disso, quando se chega à resposta na pesquisa acadêmica, inicia-se um feedback com as outras e, com as questões que surgirão, os pesquisadores serão provo­

cados para novas pesquisas. É uma grande criação cole­ tiva. Acho que o salto qualitativo necessário à pesquisa em Direito está na metodologia. Quanto a Isto. a nossa

vestindo nisto. Algo muito interessante aconteceu no Núcleo pesquisa, com recursos da Comunidade Econômica Euro­ péia, sobre a administração das instituições Jurídicas (Poder Judiciário, Polícia Militar e Polícia Civil) e suas hierarquizações, sobre como este autoritarismo está aquém da Lei. Concluímos pela necessidade de espaço para admi­ nistradores nessas instituições, mesmo que ligados aos qua­ dros do Judiciário. As instituições jurídicas padecem de um problema de gerenciamento. O CEBEPEJ1 1 , coordenado pelo professor Kazuo Watanabe, foi um núcleo que surgiu exata­ mente por conta desta pesquisa do Núcleo de Violência. Cha­ mamos alguns desembargadores para discutirem essa questão e, a partir disto, repetiram-se as reuniões iniciadas com o workshop e foi fundado o Núcleo. É fantástico que uma

pesquisa de Ciências Sociais tenha interagido com o Judiciá­ rio e que disto tenha se originado um centro de estudos.

Há espaço para que estas questões ganhem corpo nas faculdades de Direito. À EDESP cabe uma comunica­ ção mais eficaz entre administradores, professores de Di­ reito e profissionais das Ciências Sociais. A pesquisa lato 41

Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.

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sensu também pode ser o objetivo de uma faculdade de Direito; ou seja, formar profissionais que pesquisem enquanto advogados ou pareceristas. Pesquisa acadêmica não se confunde com opinião. Devemos entender douto­ rado como um título acadêmico para quem quer continu­ ar se dedicando, de preferência integralmente, à pesquisa - porque pesquisar demanda tempo, e para isto é preciso dinheiro. Na minha opinião, esta atuação é incompatível com uma forte presença no mercado. Manter a excelência nas duas atividades é muito difícil.

+ Esdras Borges Costa Na década de 60, espalhava-se pelos Estados Uni­ dos a discussão metodológica questionando, por exem­ plo, qual seria o valor da estatística. Havia um movimento para revigorar o pensamento teórico. Estou trazendo algo específico da minha vivência, que cabe nesta discussão porque se aborda aqui, também, qual seria a autoridade, a contribuição que uma pesquisa pode dar - em contra­ posição com a teoria. Certa vez criticaram o Parsons, ape­ sar de tudo o que ele trouxe, porque havia feito pouca pesquisa empírica. Esta crítica acabou ajudando toda a renovação teórica que veio a seguir na Sociologia. Queria apresentar Isso, porque acho que a questão surgirá freqüentemente. Quanto à fonte neutra, também foi um enorme pro­ blema na Sociologia. Eia reflete a ingenuidade de muitos pesquisadores que pensavam fazer uma pesquisa com grande objetividade filosófica, até que descobriram que mesmo os fundadores da ciência nunca pretenderam

O que é pesquisa em Direito 7

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Investigar com neutralidade - aliás, dedicaram-se real­ mente a mostrar a importância de sua cultura e de sua sistemática metodológica. A minha intervenção é pela in­ sistência no diálogo com as ciências auxiliares.

+ (não identificado) A questão da metodologia, que é fundamentai e pre­ cisaremos desenvolver, na minha área (comércio) está em aberto, porque eu não consigo sequer identificar como fi­ zeram Theodomlro, a Paula ou o Carlos Ari. Não há metodologia no Brasil para estudar comércio internacio­ nal. Se em Direito Empresarial quem "chuta faz doutri­ na", em comércio Internacional quem abre a boca faz Lei. Também senti, desde o começo da minha pesquisa, uma preocupação com teoria e prática. Há uma falta de diálogo com os professores no sentido de se fazer uma reserva de mercado para a prática. Concordo com a Ana Lúcia. quanto ao problema do vínculo total, porque al­ guns professores pensam que se difundirem conhecimen­ to eventualmente perderá um potencial mercado de pareceres, consultas ou clientes. Devemos trazer o debate sério para dentro deste nú­ cleo de pesquisas, fomentá-las e expor as propostas (mes­ mo que estejam em um paper de cinco páginas elaborado por um aluno) ao debate.

+ Oscar Vilhena Eu parto de perguntas básicas: o que nos trouxe aqui? O que pretendemos com esta instituição? Desde o início, o grupo que trabalha com a idéia de constltulr·a faculda-

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de de Direito da FGV têm consciência que é necessário fornecer instrumental para capacitar profissionais que colaborem por uma sociedade mais Justa. Sinto que as faculdades de Direito nas quais nos formamos e leciona­ mos não são capazes disto. Quando discutimos pesquisa, o fazemos porque esta fundação possui um projeto político maior, de transfor­ mar e propiciar ao mundo do Direito uma parcela de con­ tribuição na reconstrução deste país, na consolidação do que prezamos nele. Esta é a razão: sentimos um descon­ forto. A faculdade de Direito da LISP, que no século XIX tinha um projeto, formou este país com o qual estamos todos desconfortáveis. Este legado de bacharelismo foi a contribuição dada por aquela faculdade. Estamos baten­ do nessa tecla da pesquisa porque as instituições de hoje não sâo capazes de posicionar o Direito com destaque na construção da sociedade que nós almejamos. Qual é o projeto acadêmico? O que conseguimos ex­ trair deste workshop? Em primeiro lugar, que o velho mé­ todo de se debrnçar sobre as normas jurídicas é insatisfatório. Precisamos nos relacionar com outras dis­ ciplinas, conhecer melhor a nossa sociedade, as nossas Instituições e o impacto que o Direito provoca na socie­ dade. Tudo isto nos abre um campo de pesquisa interdisciplinar, onde se agregam, em especial, a Sociolo­ gia e a Ciência Política. A partir de então, nos preocupare­ mos com o que é específico do Direito. Enquanto algumas pessoas vêem com repugnância os case books americanos, eu vejo de maneira oposta: aquilo é uma ordenação do caos. Parte-se d.i Jurisprudência traçando-se as linhas

O que é pesquisa em Direito l

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lógicas da ideologia, das razões que motivam aquilo. Não é um "samba do crioulo doido", como a argumentação Jurídica brasileira: o argumento do Zé das Couves vale tanto quanto o do Kelsen porque, naquele momento, é a visão que mais interessa. Isto é ótimo para a advocacia, mas não para o professor de Direito. Depois deste debate, acho que está claro para todos que a aproximação com as outras ciências é importante; no entanto, precisamos reinventar o específico, a pesqui­ sa em Direito, a ordenação do caos. Parece-me, apesar do Kelsen, que abandonamos uma dimensão essencial: a de avaliar o que estamos fazendo aqui. Falta pensar, dos pontos de vista utilitário e ético, se este Direito é bom, se vale a pena e se está correto. Acho que ninguém aqui pre­ tende um unitarismo metodológico; não queremos o sincretismo, e sim o pluralismo. Cada um deve desenvol­ ver a sua metodologia, embora no caso da elaboração do material didático, que começará em janeiro, seja neces­ sária clareza e concordância quanto aos objetivos.

+ Paula Forgioni Quanto ao manual, trata-se de um material didático que não é o único ou o mais Importante, porém que viabiliza o início do estudo da matéria. Acredito que neste início de desenvolvimento do material didático temos de dar atenção aos manuais, ao que complemente e ao que instigue à pesquisa. Aqui se falou em incitar a pesquisa, o que eu considero central. Mas acho, também, que pode­ mos conjugar isto com manuais revisados, sem deixar de lado o que produzimos até agora.

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Não sei como é nas outras áreas, mas em Direito Empresarial não vejo onde estaria a solução em se pesquisar em tempo integral. Quem diz isso é vlvante, por­ que pesquisar sem conhecimento prático possivelmente leva a algo estéril. Digo Isto com embasamento histórico, inclusive de Direito Comparado. Todos os grandes comercialistas que tivemos foram grandes advogados. Quando eu falo da análise de Julgados, obviamente estou me referindo a um dos métodos. Também me referi à análise da política econômica, ou pública. O mito da neu­ tralidade caiu há muito tempo; por isto, devemos acompa­ nhar as políticas que estão sendo implementadas. A análise seria, portanto, um ponto de partida - o que não impede, em hipótese alguma, uma abordagem crítica; desde que se reconheça a não-neutralidade da fonte e a política por trás das ações. Não devemos pensar que este tipo de pesquisa clássica, e não ingênua, nos coloca dentro de uma gaiola. Conhecer bem o objeto é o primeiro passo para uma crítica fundamentada. Talvez eu tenha transmitido uma impres­ são de sufocamento do método, mas não é assim..

+ Cassio Scarpinella Bueno Eu gostaria de fazer _um fechamento ligado a essa questão da cultura do manual. Os meios alternativos de conflitos, ADRs, por exemplo, estão fora do Código mas não do objeto de processo. Se pegarmos os manuais, es­ tarão fora - porque é algo novo, de origem norte-ameri­ cana. Precisamos de pesquisa sobre isto, e não de processo, a auxiliadas por outras ciências no desenvolvi­ mento das técnicas.

O que é pesquisa em Direito ?

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Quando se fala em Kelsen, acho que o mais impor­ tante é definirmos a "cara" da nossa pesquisa. Métodos há vários. Vejo que todos lêem Kelsen mas ninguém apli­ ca. Se optarmos, conscientemente, por sermos kelsenianos, devemos vestir a camisa e nos assumir como tal. A nossa dogmática cria dificuldades para que entendamos outras .filosofias� e acho que não basta termos notícia do que é, por exemplo, Sociologia; temos de saber aplicá-la. Sobre a discussão do sincretismo metodológico, o que achei maravilhosa foi a proposta de pesquisa em tempo integral - só espero que não seja utopia. Não que isto, somente, baste. O contato com a prática é indispensável. O professor Esdras falou em estatísticas, e os processualistas, hoje, reclamam da falta delas para direcionar certas mudanças. Acontece que todos criticam e as mudanças ocorrem sem as estatísticas, de acordo com o pensamento individual ou a doutrina. Faz-se com base em leituras, ignorando o empirismo. Devemos bus­ car elementos distantes do Direito para alimentar, com maior se�urança, um projeto amplo de mudança na inter­ pretação e na sistematização do caos jurídico, Inclusive para melhor direcioná-lo.

+ Theodomiro Dias Neto Acreâlto que um projeto de pesquisa envolve, também, a formação de uma comunidade que se torna amiga e que dedica o seu tempo nisto. O que nos une aqui é a idéia de fazer melhor, dedicando mais tempo e debatendo mais. Falta sabermos como, na minha área, o processo pe­ nal está acontecendo na prática. Será ótimo se a FGV for

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um espaço de percepção, de discussão sobre qual é a re­ alidade das políticas criminais, e para que serve o Direito Penal como Instrumento da sociedade, sem perder a liga­ ção com a realidade. Trabalhar às cegas, com "achismos", traz o risco de se utilizar premissas falsas. Acho que o cruzamento do Direito com uma faculdade de Adminis­ tração Pública pode ser multo útil para nós.

EST E LIVRO FOI COMPOSTO EM TIEPOLO BOOK 11,5/16 E IMPRESSO EM PAPEL PÓLEN 70 GIM' NAS OFICINAS DA GRÁFICA PAYM