Novo Curso de Processo Civil - Teoria  do Processo Civil [1]
 9788520359563

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NOVO CURSO DE PROCESSO CIVIL Volume

1

TEORIA DO PROCESSO CIVIL LUIZ GUILHERME MARINONI SÉRGIO CRUZ ARENHART DANIEL MITIDIERO

Imp~;Vl;w' INCLUI VERSÃO ELETRÔNICA DO LIVRO

(Ç)

desta edição [2015]

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no Brasil [03-2015]

Universitário Fechamento

(texto)

desta edição [17.03.2015]

ISBN 978-85-203-5956-3

Ao Professor OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, por tudo que significa para a nossa tradição.

APRESENTAÇÃO Uma adequada ligação da teoria do direito, do Estado Constitucional e da teoria dos direitos fundamentais com a teoria do processo civil- especialmente para sua compreensão como um meio para tutela dos direitos - depende de uma doutrina consciente da relatividade histórica do direito e do processo e capaz de traduzir a cultura de seu tempo na sua interpretação. O fato de termos um novo Código de processo Civil promulgado recentemente, portanto, por si só não constitui senão a promessa de um novo processo civil. Isso porque, como é pouco mais que evidente, sem que asfontes recebam uma interpretação capaz de gerar significados normativos novos e sem que esses significados possam ser apropriadamente ordenados em uma unidade sistemática, pouco se pode esperar de uma nova legislação. Um primeiro volume, voltado integralmente à teoria do processo civil, é imprescindível para se desenvolver e compreender as elaborações dogmáticas destinadas a explicar o novo Código, na medida em que toda e qualquer afirmação técnico-processual, despida de base teórica, é uma opinião vã. Essa teoria, porém, não mais pode estar ligada aos velhos pressupostos do Estado legislativo, como ainda é comum nas obras que supõem ser possível construir uma única teoria a serviço do processo civil, penal e trabalhista. A teoria do processo que pode hoje interessar é a que mergulha o direito processual nos espaços da teoria do direito e do direito constitucional, especialmente das teorias dos direitos fundamentais. Embora teoricamente aprofundado, este livro foi escrito de maneira didática, visando a facilitar a compreensão dos estudantes e dos operadores do direito. O seu objetivo é dar suporte teórico capaz de permitir ao estudioso compreender e trabalhar o processo civil deforma crítica e criativa, evidenciando que o trabalho do juiz, do advogado, do Ministério Público, da defensoria pública, do doutrinador, do professor e do estudante não pode ficar limitado a uma aplicação mecânica e/ria do processo civil,como desejou o processualismo legalista,que,lamentave1mente, mesmo após a transformação do Estado e das Constituições, continuou de forma acrítica a dominar as obras de teoria do processo não só no Brasil, como em grande parte da América Latina e da Europa. Este é o primeiro volume do nosso Curso. Esperamos que suas linhas possam colaborar na composição de um horizonte idôneo para uma adequada, efetiva e tempestiva tutela jurisdicional dos direitos em nosso país. Por fim, agradecemos aos colegas Marcella Pereira Ferraro, Jordão Violin e Leandro Rutano, pelo minucioso trabalho de revisão realizado e pela constante disposição na verificação das várias versões do novo Código de Processo Civil ao longo de sua elaboração e da construção desta obra. Verão de 2015. LUIZ GUILHERME MARINONI, SÉRGIO CRUZ ARENHART

e DANIEL

MITIDIERO

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suMÁRIO APRESENTAÇÃO

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INTRODUÇÃO

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AJURISDIÇÃO

PARTE I NO ESTADO CONSTITUCIONAL

INTRODUÇÃO 1. AINFLUÊNCIADOS VALORES DO ESTADO LIBERALDEDIREITO E DO POSITIVISMO JURÍDICO SOBRE OS CONCEITOS CLÁSSICOS DE JURISDIÇÃO 1.1 A concepção de direito no Estado Liberal............................................... 1.2 O positivismo jurídico 1.3 A jurisdição como função dirigida a tutelar os direitos subjetivos privados violados.................................................................................................. 1.4 Da teoria da proteção dos direitos subjetivos.privados à teoria da atuação da vontade da lei 1.5 A teoria de Chiovenda: a jurisdição como atuação da vontade concreta da lei 1.6 A doutrina de Carnelutti: ajusta composição da lide............................... 2. DO MITO DO COGNITIVISMO INTERPRETATIVO E DO LOGICISMO NA APLICAÇÃO DO DIREITO NO POSITIVISMO CLÁSSICO À DUPLA INDETERMINAÇÃO DO DIREITO NO ESTADO CONSTITUCIONAL 2.1 O quadro teórico do positivismo clássico de Oitocentos 2.2 A doutrina do cognitivismo interpretativo 2.3 A doutrina do logicismo na aplicação do direito...................................... 2.4 O impacto do cognitivismo e do logicismo sobre a formação dos conceitos de jurisdição e da função do processo civil............................................... 2.5 A dupla indeterminação do direito e sua projeção sobre a teoria da interpretação e da aplicação do direito 3. A TRANSFORMAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: DA LEGALIDADE FORMAL PELAS REGRAS À LEGALIDADE SUBSTANCIAL PELAS NORMAS 3.1 A dissolução da leigenérica, abstrata e fruto coerente da vontade homogênea do parlamento

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29 29 36 38 39 40 42

47 47 48 49 49 50

53 53

~--------------------------14

I

NOVO CURSO DE PROCESSO

3.2

A nova concepção

de 3.3 3.4 3.5 3.6 3.7

4.

5.

CIVIL - VOL. 1

do direito e a transformação

do princípio

da legalida-

.

Compreensão, crítica e conformação da lei . Da legalidade formal pelas regras à legalidade substancial pelas normas: a nova concepção das normas . O problema da compreensão do direito por meio dos princípios . Princípios constitucionais,jusnaturalismo e positivismo crítico . Princípios constitucionais e pluralismo .

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o

CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE PELO JlliZ SINGULAR NO DIREITO BRASILEIRO . 4.1 Qtalquer juiz, no sistema brasileiro, tem a obrigação de controlar a constitucionalidade da lei . 4.2 Outras formas de controle da constitucionalidade da lei . 4.3 O juiz e o controle da constitucionalidade da falta de lei.. . A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS . 5.1 Introdução . 5.2 Conceito de direitos fundamentais . 5.3 As perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais . 5.4 A multifuncionalidade dos direitos fundamentais . 5.5 As eficácias horizontal e vertical dos direitos fundamentais . 5.6 Eficácias vertical, horizontal e vertical com repercussão lateral . 5.7 Direitos fundamentais e democracia. O problema do controle do juiz sobre a decisão da maioria .

6. AJURISDIÇÃO 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5 6.6 6.7 6.8 6.9 6.10 6.11 6.12

NO ESTADO CONSTITUCIONAL . Crítica à teoria que afirma que o juiz atua a vontade concreta da lei . Crítica à teoria de Carnelutti e à teoria que sustenta que o juiz cria a norma individual que dá solução ao caso concreto . O pluralismo e a necessidade de compreensão dos casos concretos . A conformação da lei exige a prévia atribuição de sentido ao caso concreto, mas a definição do caso concreto requer a consideração da lei . A jurisdição, após delinear o caso concreto, deve conformar a lei . A decisão a partir dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais . Conformação da lei e sentido da criação da norma jurídica pelo juiz. A reconstrução da ordem jurídica pela interpretação . O significado da norma jurídica que tutela um direito fundamental diante de outro direito fundamental . A criação da norma jurídica em face das teorias clássicas da jurisdição . A teoria de que ajurisdição pode criar a norma geral . A teoria de que ajurisdição pode criar o direito diante do constitucionalismo contemporâneo . Poder judicial de reconstruir interpretativamente o direito e força obrigatória dos precedentes .

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sUMÁRIO

6.13 6.14 6.15 6.16 6.17 6.18 6.19 6.20 6.21 6.22 6.23

6.24

6.25 6.26 6.27 6.28 6.29 6.30 6.31

A grande peculiaridade da norma reconstruída pelo juiz: a necessidade da sua fundamentação . O impacto da distinção entre texto e norma sobre o conceito de jurisdição e de fundamentação. A necessidade de racionalidade da jurisdição . A teoria de que ajurisdição se define pelo seu dever de concretizar os valores públicos constitucionalizados . A ideia de que a jurisdição tem por objetivo a pacificação social . Ajurisdição deve responder às necessidades do direito material . A tutela dos direitos transindividuais . Dar tutela aos direitos não é simplesmente editar a norma jurídica do caso concreto . A jurisdição a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. As regras processuais abertas como decorrência do direito fundamental à tutela jurisdicional . A ausência de regra processual capaz de viabilizar a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional . A subjetividade do juiz e a necessidade de explicitação da correção da tutela jurisdicional mediante a argumentação jurídica. A controlabilidade intersubjetiva das razões . Os postulados normativos para aplicação do direito e dos direitos fundamentais, a interpretação de acordo e as técnicas de controle da constitucionalidade diante da argumentação jurídica . A argumentação jurídica em prol da técnica processual adequada ao direito fundamental à tutela jurisdicional . A inevitável reação do sistema: a autoridade dos precedentes judiciais . O novo Código de Processo Civil e a força dos precedentes . O processo civil como meio para tutela dos direitos a partir da jurisdição. O duplo discurso . A definitividade . Jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária . Conclusões acerca da concepção contemporânea de jurisdição .

7.

AJURISDIÇÃO E AJUSTIÇA CIVIL 7.1 A justiça civil 7.2 Por uma adequada administração da justiça 7.3 Um projeto para ajustiça civil

8.

AJURISDIÇÃO NO QUADRO DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE LITÍ GI OS . 8.1 Formas de resolução de litígios no Estado Constitucional . 8.2 Métodos heterocompositivos. A jurisdição e a arbitragem . 8.3 Métodos autocompositivos. A conciliação e amediação.A abertura do novo Código de Processo Civil para as formas autocompositivas .

9.

O DIREITO ÀJURISDIÇÃO çÃO E NO NOVO CÓDIGO

E AO]lliZ NATURAL NA CONSTITlliDE PROCESSO CIVIL

. . . .

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NOVO CURSO DE PROCESSO

9.1 9.2 9.3

CIVIL - VOL. 1

Direito fundamental ao processo justo ejurisdição.................................. A universalidade do direito fundamental àjurisdição Nemo iudex in repropria. O direito fundamental aojuiz natural..............

CASOS ..

185

AAÇÃO 1.

2.

3.



4.

181 181 183

PARTEII NO ESTADO CONSTITUCIONAL

AS TEORIAS DA AÇÃO E A POSIÇÃO DO NOVO CPC.PRIMEIROS APONTAMENTOS PARA UMA CONCEPÇÃO ADEQUADA AO ESTADO CONSTITUCIONAL E À REALIDADE NORMATIVA BRASILEIRA . 1.1 A época em que a ação se confundia com o direito material . 1.2 A polêmica entre Windscheid e Muther . 1.3 O direito de agir "abstrato" . 1.4 Ainda a ação como direito abstrato. A teoria de Mortara . 1.5 A pretensão à tutela jurídica. A teoria de Wach . 1.6 A ação como poder em face do-adversário.A teoria de Chiovenda . 1.7 A ação como direito de petição. A teoria de Couture . 1.8 As condições da ação. A teoria de Liebman . 1.9 A posição adotada pelo novo Código de Processo Civil . 1.10 Primeira apreciação crítica. O significado conceitual do debate sobre as teorias da ação .

189 189 191 195 196 197 198 199 201 204

A INFLUÊNCIA DOS VALORES DO ESTADO SOCIAL DIREITO DE AÇÃO 2.1 O direito de ação como direito de acesso àjustiça 2.2 Os problemas que conduziram à questão do acesso àjustiça 2.2.1 O custo do processo 2.2.2 A demora processual

215 215 217 217 219

SOBRE O . . . . .

O DIREITO DE AÇÃO NO QUADRO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS . 3.1 O direito de ação diante da evolução das funcionalidades dos direitos fundamentais . 3.2 O direito de ação como direito fundamental . 3.3 O direito fundamental de ação e seus efeitos .

205

223 223 236 237

O CONTEÚDO DO DIREITO DE AÇÃO A PARTIR DA CONSTITUIçÃo E DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL . 247 4.1 O direito de ação como direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva mediante processo justo . 247 4.2 O direito à duração razoável do processo e aos meios que garantam a tempestividade da prestação da tutela dos direitos. A economia processual, o calendário processual e a ordem cronológica dejulgamento no novo Código de Processo Civil . 262

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sUMÁRIO

4.3

O direito de ação e o princípio da demanda.............................................

5. DA AÇÃO AB,STRATA E UNIFORME (AÇÃO ÚNICA) À AÇÃO ADEQUADA A TUTELA DO DIREITO MATERIAL E AO CASO CONCRETO 5.1 A repercussão da dicotomia tutela pelo equivalente-tutela específica sobre a efetividade da ação 5.2 A ação única como decorrência do princípio da tipicidade das formas processuais..................... 5.3 O escopo de tutela dos direitos................................................................ 5.4 Técnica processual e tutela dos direitos 5.5 As tutelas jurisdicionais dos direitos........................................................ 5.6 A influência da tutela do direito sobre a ação 5.7 Tutelajurisdicional do direito e tutela jurisdicional................................. 5.8 O exercício da ação para a obtenção da tutela do direito 5.9 O direito de ação como direito ao procedimento próprio à participação e ao plano do direito material. O direito de ação como direito ao processo justo 5.10 O direito à técnica processual adequada à tutela do direito e ao caso concreto 5.11 O direito 3_construção da ação adequada ao caso concreto....................... 5.12 Legitimidade da construção da ação segundo a tutela jurisdicional do direito................................................................................. 5.13 Ação de direito material,formas de tutela dos direitos e ação adequada... 5.14 Classificações das ações, das sentenças e das tutelas jurisdicionais dos direitos 5.15 O significado do direito de ação no Estado Constitucional..................... CASOS

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310 313 322 330 332 334 341 343

PARTEIlI A DEFESA NO ESTADO CONSTITUCIONAL 1. CONCEITO 2.

DE DIREITO

DE DEFESA.................................................

DIREITO DE DEFESA E ACESSO ÀJUSTIÇA

3. O DIREITO DE DEFESA NA CONSTITUIÇÃO. O SIGNIFICADO DO DIREITO À AMPLA DEFESA........................................................... 4. O DIREITO DE DEFESA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL... 4.1 A citação para a audiência e o direito de defesa........................................ 4.2 Resposta e defesa 4.3 Defesas de mérito direta e indireta.......................................................... 4.4 Restrições ao direito de defesa e à prova diante da defesa de mérito indireta

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NOVO CURSO DE PROCESSO

4.5 4.6 4.7 5.

6.

CIVIL - VOL. 1

Os fatos litigiosos e o ônus da prova. Distinção entre contraprova e ônus da prova dos fatos articulados na defesa indireta . 367 Direito de defesa, dinamização e inversão do ônus da prova e julgamento fundado na redução do módulo da prova . 370 Direito de defesa e meio menos restritivo . 374

O DIREITO FUNDAMENTAL DE DEFESA DIANTE DO DIREITO FUNDAMENTAL DE AÇÃO . 5.1 Primeiras considerações . 5.2 As relações entre os direitos fundamentais de defesa e de ação na perspectiva do legislador . 5.3 As relações entre os direitos fundamentais de defesa e de ação na perspectiva do juiz . PROBLEMATIZAÇÃO

DO DIREITO

FUNDAMENTAL

.

6.1 6.2 6.3 6.4

379 387 387 390 391

Julgamento antecipado do mérito e defesa . Improcedência liminar do pedido e defesa . Urgência da tutela e defesa . Evidência e distribuição do ônus do tempo do processo através da técnica antecipatória _ . 6.5 Mandado de segurança e defesa . 6.6 Procedimento monitório e defesa . 6.7 Procedimento de cognição sumária e defesa . 6.8 Mitigação da regra da adstrição da sentença ao pedido e defesa . 6.9 Princípio da concentração dos poderes executivos e defesa . 6.10 Ale.g~tirnidadedo procedimento de cognição parcial e da restrição à matéria de detesa .

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CASOS

.

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PROCESSO E PROCEDIMENTO NA DOUTRINA CLÁSSICA . 1.1 O processo nas-concepções privatísticas . 1.2 O processo enquanto procedimento na época anterior à teorização da autonomia do direito processual civil . 1.3 A distinção entre processo e procedimento diante da "descoberta"do caráter público do processo . 1.4 O delineamento da relação jurídica processual . 1.5 O ambiente de concepção da teoria da relação jurídica processual. O conceitualismo .

421 421

427

BASES PARA UM NOVO CONCEITO DE PROCESSO 2.1 A crise do conceito de relação jurídica processual 2.2 O realinhamento das noções de processo e procedimento 2.3 Jurisdição e processo

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O PROCESSO

2.

376

DE DEFE-

SA

1.

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393 397 402 405 405 408

PARTE IV NO ESTADO CONSTITUCIONAL

. . . .

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SUMÁRIO

2.4 2.5 2.6 2.7 2.8 2.9 2.10 2.11 2.12 2.13 2.14 2.15 2.16 2.17 3.

A participação como fator de legitimação da jurisdição . Significado do contraditório no Estado Constitucional . A intensificação da atuação do juiz em prol da legitimidade do processo. O processo capaz de permitir o acesso das camadas mais pobres da população . O procedimento adequado às necessidades do direito material . Procedimento e técnica processual . Tutela dos direitos e procedimento . A ilegitimidade do procedimento único . A utopia dos procedimentos diferenciados . A criação do procedimento adequado ao caso concreto . A participação por meio do processo. O dever estatal de viabilizar a participação mediante o processo judicial . O processo e a legitimidade da decisão . A legitimidade da definição legislativa do procedimento judicial a partir dos direitos fundamentais . A argumentação como fator de legitimação .

o PROCESSO NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. O DIREITO FUNDAMENTAL AO PROCESSO JUSTO E SUA DENSIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL . 3.1 Primeiras considerações . 3.2 O direito fundamental ao processo justo. Do devido processo legal ao processo justo . 3.2.1 A divisão do trabalho entre o juiz e as partes no processo civil. O direito à colaboração no processo . 3.2.2 Direito à igualdade e à paridade de armas . 3.2.3 Direito ao contraditório . 3.2.4 Direito à prova . 3.2.5 Direito à publicidade . 3.2.6 Direito à fundamentação das decisões . 3.2.7 Direito à segurança jurídica no processo . 3.3 Alegitirnidade da decisão e do precedente apartir dos direitos fundamentais, a otimização da participação popular no procedimento e a argumentação judicial. O direito à decisão justa e à formação de precedentes . 3.4 A legitimidade do procedimento . 3.5 A participação através do procedimento . 3.6 Processo e procedimento . 3.6.1 O problema da contratualização do procedimento no novo Código de Processo Civil . 3.6.1.1 Introdução . 3.6.1.2 Requisitos para a validade e eficácia dos acordos processuais 527 3.6.1.2.1 Acordos que disciplinam apenas interesses das partes no processo 529 3.6.1.2.2 Acordos que afetam a atividade jurisdicional . 3.6.1.3 Considerações críticas .

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NOVO CURSO DE PROCESSO CIV1L - VOL.1

3.6.2

3.7 4.

5.

Oralidade . 3.6.2.1 Introdução . 3.6.2.2 Elementos da oralidade no processo . 3.6.2.3 O procedimento comum e a oralidade . 3.6.3 Impulso oficial . O processo como procedimento adequado aos.fir:sdo estado constitucional. O processo civil como meio para tutela dos direltos .

O PROCESSO, OS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS E O MÉRITO DA CAUSA . O processo e a cognição judicial . Os pressupostos processuais . Os pressupostos processuais de existência e de validade na doutrina . Os pressupostos processuais na teoria de Bülow . A superação das duas fases e a instituição do processo único diante dos pressupostos processuais . A influência do conceitualismo sobre a ideia de pressuposto processual . Os ditos pressupostos processuais não dizem respeito ao processo e não são requisitos para o julgamento do mérito . A necessidade de descoberta dos valores e das funções dos ditos pressupostos processuais . Os referidos pressupostos diante dos direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à duraçfeü-razoáveldo processo . A compreensão dos "pressupostos processuais"apartir das suasfunções e dos direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à duração razoável do processo demonstra a incapacidade da teo:-iada relação jurídi~a ~rocessual e da categoria dos pressupostos processuaIs para expressar o slgmficado de processo jurisdicional no Estado Constitucional . 4.11 O processo e o mérito da causa . PROCESSO DE CONHECIMENTO E PROCESSO DE EXECUÇÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL . 5.1 Processo de con..~ecimentoe processo de execução . 5.2 O conceitualismo e a formação do Código Buzaid . 5.2.1 A estrutura do Código Buzaid . 5.2.2 Processo civil, realidade social e direito material . 5.3 As reformas do Código Buzaid . 5.4 O novo Código de Processo Civil e a tutela dos direitos . 5.4.1 A estrutura do novo Código. Do processo à tutela . 5.4.2 Processo civil,realidade social e direito material .

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SOLUÇÕES DOS CASOS

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REFERÊNCIAS

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CASOS

BIBLIOGRÁFICAS

Introdução Por força de um notório exercício de abstração realizado pela doutrina italiana da primeira metade de Novecentos, 1 cujo resultado foi a transformação da Rivista di Diritto Processuale Civile em Rivista di Diritto Processuale, a criação de uma disciplina nos currículos universitários e o fomento de um modo de ver o processo civil inconscientemente despreocupado com as particularidades do direito material que esse deveria se encontrar pré-ordenado a efetivar, tornou-se lugar-comum o estudo do processo civil ser precedido pelo estudo da teoria geral do processo. Essa tradição foi importada pela doutrina brasileira na segunda metade de Novecentos2 e mesmo no início do nosso século contou com entusiasmadas adesões e criativas tentativas de desenvolvimento.3 A expressão teoria geral- cuja aplicação à teoria do direito foi feita pela primeira vez em Oitocentos tanto na tradição romano-germânica (AIlgemeine Rechtslehre) como na tradição do Common Law (generaljurisprudence)4 - pode ser compreendida no mínimo de três maneiras diferentes. A ambiguidade da expressão reside especificamente na adjetivação geral que acompanha o substantivo teoria. Em primeiro lugar, pode-se falar em teoria geral para designar-se uma teoria uni~)ersal,isto é, uma teoria que se propõe a identificar os conceitos suscetíveis de emprego e os institutos comuns para compreensão de qualquer ordenamento ju-

Francesco Carnelutti, Sistema deI diritto processuale civile, p. 3-6, v.I. Com apublicação em 1974do livro Teoria geral doprocesso, deAntônio Carlos de Araújo Cintra,Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, hoje na 30. ed., 2014. 3 Fredie Didier Júnior, Sobre a teoria geral doprocesso - Essa desconhecida. 4 Pierluigi Chiassoni,L 1ndirizzo analitico nellajilosqfial deI diritto. L Da Bentham a Kelsen, p.125-128 e p. 192-197; Guido Fasso, Storia della Filosqfia deI Diritto, atualizada por Carla Faralli,p.183-185, v.III. A expressão "generaljurisprudence" é devida aJohn Austin, The Uses ofthe StudyofJurisprudence (1863), in The Province ofJurisprudence Determined and7he Uses ofthe Study ofJurisprudence, com introdução de Herbert Hart, p. 367, cuja notória inspiração é a universal unauthoritative expository jurisprudence de Jeremy Bentham,An Introduction to the PrincipIes of MoraIs and Legislation (1789), editado por J. H. Burns e Herbert Hart e com ensaiosde F.Rosen e HerbertHart, p.293-295, apontada como verdadeira certidão de nascimento da teoria do direito (PierluigiChiassoni, L 1ndirizzo analitico nellajilosqfia deI diritto, p.15). A expressãoAllgemeine Rechtslehre é própria do final de Oitocentos no âmbito da cultura jurídica germânica e pode ser encontrada,por exemplo,na obra de August1hon, Rechtsnorm und subjectives Recht. 1

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NOVO CURSO DE PROCESSO

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rídico sem nenhuma distinção de espaço e de tempoS - isto é, com a abstração de qualquer elemento jurídico-cultural. Trata -se de acepção em grande parte ligada ao estilo cientificista do jusnaturalismo racionalista de Setecentos.6 Nessa perspectiva, a teoria geral acaba se convertendo em uma teoria simplesmente preocupada com a terminologia jurídica. 7 O problema é que os ordenamentos jurídicos não se valem invariavelmente dos mesmos conceitos e institutos jurídicos. Nem sempre às mesmas palavras correspondem os mesmos conceitos, assim como os ordenamentos não contam necessariamente com institutos comuns. 8 A expressão jurisdiction no âmbito da doutrina estadunidense, por exemplo, significa competência, sendo que o nosso conceito dejurisdição encontra adequada tradução naquela doutrina com o termo adjudication. Ainda, o processo civil brasileiro conhece o instituto dos embargos de declaração como um recurso (art. 1.022 do CPC), ao passo que o direito alemão trata como simples requerimento o pedido de correção da decisão por obscuridade ou contradição (9 320, ZPO). No mais, a própria ideia de conceitos lógico-jurídicos apriori e universais deixa de lado o fato de que não é possível conceber a existência de conceitos jurídicos independentes de determinada ordem jurídica. Daí que a pretensão de universalidade conceitual e institucional vinculada à teoria geral como teoria universal não se sustenta. Em segundo lugar, pode-se cogitar de teoriageral como teoria transordenamental, isto é, uma teoria que tem por objetivo construir os conceitos suscetíveis de utilização em determinados ordenamentos jurídicos que contam com características semelhantes.9 Cuida-se de acepção notoriamente ligada ao positivismo jurídico kelseniano de 5 Riccardo Guastini, Teoria de! diritto - Approccio metodologico, p. 28. Nessa linha, Fredie Didier Júnior, Sobre a teoria geral do processo, p. 36 ("uma teoria é geral quando reú~e enunciados que possuem pretensão universal, invari~vel") e.p.?4 ("a teoria ge~al do p:oc.es~o,t~or~a.do pro~esso, teoria geral do direito processual ou teona do dlrelt~ pro.ces,s~ale uma dlsclpli~a J~n~lc~ de?l.cada à elaboração, à organização e à articulação dos conceItos Jundicos fundamentais (loglCo-Jundlcos) processuais. São conceitos lógico-jurídicos processuais todos aqueles indisp.ensáveis à compreensão jurídica do fenômeno processu~, onde que~ que ele o~orra ..(.:.). ~ te.o:la geral do pr~cesso pode ser compreendida como uma teona ger~, pOISos con~eltos ~0lp~o-Jundlc~s pro~essuals,que compõem o seu conteúdo, têm pretensão umversal. Convem adJetiva-la como geral exatame?t~ para que possa ser distinguida das teorias individuais do processo, que têm pretensão de servrr a compreensão de determinadas realidades normativas"). 6 Riccardo Guastini, Teoria deI diritto, p.28. Sobre o estilo cientificista do jus naturalismo racionalista, sinteticamente, Norberto Bobbio, Teoria generale deI diritto, p. 206; extensamente, Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Berücksichting der deutschen Entwicklung, p. 249/347 (há tradução portuguesa: Franz Wieacker, História do direito privado moderno, tradução de Antônio Manuel Hespanha, p. 279/395). 7 Jeremy Bentham,An introduction to the principIes of moraIs and legislation, p. 295. Riccardo Guastini, Teoria dei diritto, p. 28.

Idem,p.29.

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INTRODUÇÃO

Novecentos.lo Nessa linha, porém, a teoria geral termina esfumaçando-se de um simples exercício de comparaçãojurídica. II

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no âmbito

Em terceiro lugar, é possível falar em teoria geral como teoria transsetoria!, isto é, como uma teori~ encarregada de reconstruir os fundamentos e os conceitos que são comuns aos dIferentes setores de um mesmo ordenamento jurídico.12 Essa é uma maneira apropriada de compreender o significado de uma teoria geral- que, no entanto, não nos parece adequado para viabilizar o estudo do processo.13 Embora a tradição possa legitimar o uso em determinados contextos da expressão teoria geral do processo para uma melhor comunicação com a comunidade acadêmica, 14 é certo que existem diferençasfuncionais entre o processo civil e o processo penallS - isso para não falarmos nas diferenças entre os processos jurisdicionais e não 10 Como observa Hans Kelsen, no prefácio à sua Teoria geral do direito e do Estado (1945), "a teoria que será exposta na primeira parte deste livro é uma teoria geral do direito positivo. O direito positivo é sempre o direito de uma comunidade definida: o direito dos Estados Unidos, o direito da França, o direito mexicano, o direito internacional. Conseguir uma exposição científica .dessas ordens jurídicas parciais que constituem as comunidades jurídicas correspondentes é o intuito da teoria geral do direito aqui exposta. Esta teoria, resultado de uma análise comparativa das diversas ordens jurídicas positivas, fornece os conceitos fundamentais por meio dos quais o direito positivo de uma comunidade jurídica definida pode ser descrito" (Teoria gerai do direito e doEstado, tradução de Luís Carlos Borges, p.XXVII). 11 Riccardo Guastini, Teoria de! diritto, p. 29. 12 Idem, p. 31. Por essa razão, dada a necessidade de transversalidade como algo inerente à caracterização da teoria geral, parece-nos inapropriado falar em teoria geral do processo civil (como está, por exemplo, em Ovídio Baptista da Silva e Fábio Gomes, Teoria geral doprocesso civil), porque aí a teoria geral acaba sendo reportada apenas a um único setor da dogmática jurídica. 13 Contra, entendendo possível a existência de uma teoria geral do processo capaz de amalgamar o estudo do processo civil e do processo penal, Francesco Carnelutti, Sistema dei diritto processuaie civiie, p. 3-6; Diritto eprocesso, p. 47-48; Antônio Carlos de Araújo Cintra,Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, p. 48; contra, entendendo possível a existência de uma teoria geral do processo capaz de enfeixar não só o estudo dos processos jurisdicionais civil, trabalhista e penal, mas também dos processos não jurisdicionais administrativo e legislativo,Elio Fazzalari,Istituzioni di diritto processuaie, p. 67-69; Fredie Didier Júnior, Sobre a teoria gerai doprocesso, p. 76. 14 E precisamente por isso - para facilitar o diálogo acadêmico -um de nós intitulou um de seus livros anteriores como Teoria gerai do processo, nada obstante o seu conteúdo facilmente de~otasse se tratar de um livro voltado especificamente para a teoria do processo civil (Luiz GUIlherme Marinoni, Curso de processo civil - Teoria geral doprocesso, v. I).

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. 15 O processo civil é um meio para tutela adequada, efetiva e tempestiva dos direitos medIante processo justo. O direito de ação e o direito de defesa estão, como regra, em equilíbrio. O pr.ocessopenal, embora sirva para efetiva realização da pretensão punitiva alegada pelo Estado medIante processo justo, constitui em primeiro lugar um anteparo ao arbítrio do Estado e instrumento de salvaguarda da liberdade do acusado. As posições ocupadas pelo demandante e pelo d.e~andado não estão, como regra, em equilíbrio. Essas diferenças funcionais entre o processo CIvile o processo penal demandam diferentes adequações em termos de técnica processual para



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jurisdicionais16 - que desautorizam sua teorização conjunta. E como essas diferenças funcionais acabam ecoando nas grandes linhas do processo civil, na jàrmulação dos seus conceitos e na estruturação do processo como um todo, o ideal é que o processo civil seja teorizado autonomamente. Essa é a razão pela qual este volume de nosso Curso cuida apenas da teoria do processo civil. Neste examinamos os conceitos básicos do processo - jurisdição, ação, defesa e processo - na perspectiva doprocesso civil, bem como o modo pelo qual o nosso novo Código de Processo-Civil está estruturado para prestação da tutela jurisdicional dos direitos. Nos próximos volumes estudaremos a tutela dos direitos mediante procedimento comum e a tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados.

promoção de sua justa estruturação. Nessa linha, frisando as diferenças entre o processo civil e o processo penal, Heitor Sica, Velhos e novos institutosfimdamentais do direito processual civil, p. 432. 16 As diferenças são ainda mais flagrantes entre os processos jurisdicionais e os processos não jurisdicionais. O processo legislativo, por exemplo, não tem a necessidade de terminar com uma decisão justificada, bastando como meio de sua legitimação a composição de maioria parlamentar. O processo judicial obedece a outra lógica: sem decisão justificada não há exercício legítimo do poder estatal.

PARTE

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A JURISDIÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

Introdução

Ainda são sustentadas, depois de aproximadamente cem anos, as teorias de que ajurisdição tem a função de atuar a vontade concreta da lei - atribuída a Chiovenda1 _ e de que o juiz cria a norma individual para o caso concreto, relacionada com a tese da "justa composição da-lide" - formulada por Carnelutti.2 E isso após a própria concepção de direito ter sido completamente transformada. A lei, que na época do Estado legislativo valia em razão da autoridade que a proclamava, independentemente da sua correlação com os princípios de justiça, não existe mais. A lei, como é sabido, perdeu o seu posto de supremacia-e hoje é subordinada à Constituição.3 Agora é amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituição e, por isso,já constitui slogan dizer que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais, contrariando o que antes acontecia, quando os direitos fundamentais dependiam da lei.4 A assunção do Estado constitucional deu novo conteúdo ao princípio da legalidade. Em primeiro lugar, esse-evidenciou a necessidade de o direito ser trabalhado como um problema que demanda para a sua solução um empreendimento de colaboração entre o legislador, o juiz e a doutrina.5 Em segundo lugar, esse princípio incorporou o qualificativo "substancial" para evidenciar que exige a conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais. Não se pense, porém, que o princípio da legalidade simplesmente sofreu um desenvolvimento, trocando-se a lei pelas normas constitucionais, ou expressa apenas uma mera "continuação" do pr.incípio da legalidade formal, característico do Estado legislativo. Na verdade, o princípio da legalidade substancial significa uma "transformação" que afeta Giuseppe Chiovenda, Instituições de direito processual civil, v.2, p. 55. Francesco Carne1utti, Sistema di diritto processualecivile, v.1, p. 40.Tão importantes e tradicionaiscomo estas,podem ser mencionadas, na doutrina alemã,asteorias de Bernard Windscheid,DieActio - Abwehr gegen Dr.Theodor Muther, p.!-3, e Oscar Bülow,Die Lehrevon den Prozesseinredenund die Prozessvoraussetzungen, p. V-VII, e Klage und Urteil- Eine Grundfrage desVerhiiltnisseszwischen Privatrecht und Prozess,p. 68 e ss. 3 VerMarbury versus Madison, 5 U.S (1Cranch) 137 (1803). 4 James Fleming, Constructing the substantive constitution. Texas Law Review, v.72, n.2, p.2!1. 5 Gustavo Zagrebelslcy,11Diritto Mite, p. 45. 1

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AJURlSDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

as próprias concepções de direito e de jurisdição e, assim, representa uma quebra de paradigma.6 Se as teorias da jurisdição constituem espelhos dos valores e das ideias das épocas e, assim, não podem ser ditas equivocadas - uma vez que isso seria um erro derivado de uma falsa compreensão de história -, certamente devem ser deixadas de lado quando não mais revelam a função exercida pelo juiz. Isso signmca que as teorias de Chiovenda e Carnelutti, se não podem ser contestadas em sua lógica, certamente não têm - nem poderiam ter - mais relação alguma com a realidade do Estado contemporâneo. Por isso, são importantes apenas quando se faz uma abordagem crítica do direito atual, considerando-se a sua relação com os valores e concepções do instante em que foram construídas. Assim, antes de constituírem teorias capazes de dar lugar à compreensão do processo civil no Estado Constitucional, pertencem apenas à história da cultura jurídica processual civil. A transformação da concepção de direito fez surgir um positivismo crítico, que passou a desenvolver teorias destinadas a dar ao juiz a real possibilidade de afirmar o conteúdo da lei comprometido com a Constituição? mediante adequada interpretação e idônea aplicação da ordem jurídica. 8 Nessa linha podem ser mencionadas a teoria das normas, inclusive no que tange ao próprio conceito de norma e à incorporação da teorização dos princípios e dos postulados normativos em seu âmbito, as teorias dos direitos fundamentais, a técnica da interpretação de acordo, as novas técnicas de controle da constitucionalidade - que conferema-o juiz uma função em grande medida "produtiva", e não mais apenas de declaração de inconstitucionalidade - e a própria possibilidade de controle da inconstitucionalidade por omissão no caso concreto. Ora, é pouco mais do que evidente que isso tudo fez surgir outro modelo de jurisdição, sendo apenas necessário, agora, que o direito processual civil se dê conta disso e proponha um conceito de jurisdição que seja capaz de abarcar a nova realidade que se criou.

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Luigi Ferrajoli,Derechos fundamentales.Losjundamentos

delosderechosfimdamentales,

p.53. Nesse sentido, Luigi Ferrajoli, Derechoy razón. Riccardo Guastini, Interpretare eArgomentare, p. 13 e ss.;Pierluigi Chiassoni, Tecnica delrInterpretazione Giuridica, p.ll e ss.;Humberto Avila,Teoria dos Princípios, p. 50 e ss. 7 8

1 A influência dos valores do Estado Liberal de Direito e do positivismo jurídico sobre os conceitos clássicos de jurisdição SUMÁRIO: 1.1A concepção de direito no Estado Liberal-1.2 O positivismojurídica -1.3 A jurisdição como função dirigida a tutelar os direitos subjetivosprivados violados - 1.4 Da teoria da proteção dos direitos subjetivos privados à teoria da atuaçãoda vontade da lei-1.5 A teoria de Chiovenda: ajurisdição como atuação da vontade concreta da lei-1.6 A doutrina de Carnelutti: ajusta composição da lide.

1.1 A concepção de direito no Estado Liberal O Estado Liberal de Direito, diante da necessidade de frear os desmandos do regime que lhe antecedeu, erigiu o princípio da legalidade como fundamento para a sua imposição. Esse princípio elevou a lei a um ato supremo, objetivando eliminar as tradições jurídicas do absolutismo e do ancien régime. A administração e os juízes, a partir dele, ficaram impedidos de invocar qualquer direito ou razão pública que se chocasse com a lei. 1 O princípio da legalidade, porém, constituiu apenas, a forma, encontrada pela burguesia, de substituir o absolutismo do regime deposto. E preciso ter em conta que uma das ideias fundamentais implantadas pelo princípio da legalidade foi a de que uma qualidade essencial de toda lei é pôr limites à liberdade individual. Para haver intromissão na liberdade dos indivíduos, seria necessária uma lei aprovada com a cooperação da representação popular. Não bastaria uma ordenação do rei. Como 1 Martin Raymond,A nouveausiüle nouveau procescivil, p.40:"Cette neutralite decoulait, aumoinsdans la procédure suiviedevant le tribunal civilrepresentant le droit commun procedural, dela representation obligatoire des parties par des avoués,successeursdes procureurs d'Ancien Regime.La procedure était faitepar lesavoues.Lejuge nen connaissaitqu' à l'occasiondesincidents quiétaient portés devant lui, circonstance rare, car les avouéspréféraient regler ces incidents en famillie.(...) Les avocats ne se safissaientpas alorsles mains à cesjeux proceduriers. La neutralité dujugeétaitfaite de factivité des avoues.Cetaitune neutralité de tous lesjours,coupée de quelques incidentsrecueillispar de rares professeurs, et non une affirmation de principe".

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A JURISDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

adverte Carl Schmitt, para entender esse conceito de lei (lei como limite da liberdade) é necessário considerar a situação política em que se originou. Na luta política contra um forte governo monárquico, a coop~ração da representação popular tinha que ser acentuada cada vez com mais força, até converter-se em critério decisivo de conceituação da lei. De tal modo a lei passou a ser definida como o ato produzido mediante a cooperação da representação popular. E o império da lei converteu-se em império da representação popular.2 Nesse sentido se pode dizer que na Europa continental o absolutismo do rei foi substituído pelo absolutismo da assembleia parlamentar. Daí a impossibilidade de confundir o Rule ofLaw inglês com o princípio da legalidade.3 O parlamento inglês eliminou o absolutismo, ao passo que a assembleia parlamentar do direito francês, embora substituindo o rei, manteve o absolutismo através do princípio da legalidade.4 Diante disso, e grosso modo, no direito inglês a lei (o Statutory Law) pôde ser conjugada com outros valores e elementos, dando origem a um sistema jurídico complexo - o Common Law -, enquanto nos países marcados pelo princípio da legalidade o direito foi reduzido à lei.5 Se - como diz Carl Schmitt - na idealização do Estado de Direito Liberal a burguesia adotou um conceito de lei que repousa em uma velha tradição europeia - herança da filosofia grega, que passou à Idade Moderna através da escolástica -, conforme o qual a lei não é uma vontade de um ou de muitos homens, mas uma coisa geral-racional (não é voluntas, mas ratio),6 no processo histórico de afirmação da burguesia, esta noçã-o de lei cedeu espaço para o seu oposto, isto é, para a noção de lei defendida pelos representantes do absolutismo de Estado, segundo a qual, na fórmula clássica cunhada por Hobbes, auctoritas, non veritas facit legem - a lei é vontade, não vale por qualidades morais e lógicas, mas precisamente como ordem. Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, p. 157. A. V.Dicey,Introduction to the study ofthe law ofthe constitution, p. 202-203, caracteriza o rule oflaw por três notas: ausência de poder arbitrário, igualdade perante a lei e,por fim, o fato de que os princípios gerais da Constituição constituem resultados do direito comum, ou seja, revelam-se na forma como os tribunais reconhecem direitos individuais.Ver,ainda, para um estudo comparativo das noções de rule oflaw, État de droit eRechtstaat, Michel Rosenfeld,The role oflaw and the legitimacy of constitutional democracy,Southern California Law Review, v.74,n. 5, p. 1307-1351; Luc Heusch1ing, Etat de Droit, Rechtsstaat, Rule ofLaw. No direito brasileiroe, em particular, diante do processo civil,ver Daniel Mitidiero, Processocivil eEstado constitucional. 4 Gustavo Zagrebelsky,A lei, o direito e a Constituição, texto apresentado no colóquio comemorativo do XX Aniversário do Tribunal Constitucional Português, realizado em Lisboa, em 28.11.2003. Sobre a importância da história constitucional, ou melhor, de uma história crítica para uma melhor compreensão do direito constitucionalcontemporâneo,ver Gustavo Zagrebelsky, Historia y Constitución (com introdução de Miguel Carbonell). 5 Gustavo Zagrebelsky, EI derechodúctil, p. 25. 6 Carl Schmitt, Teoría de la constitución, cit., p.150. 2

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INFLUÊNCIA

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O princípio da legalidade, assim, acabou por constituir um critério de identificação do direito: o direito estaria apenas na norma jurídica, cuja validade não dependeria de sua correspondência com a justiça, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa. Nessa linha, Ferrajoli qualifica o princípio da legalidade como metanorma de reconhecimento das normas vigentes, acrescentando que, segundo esse princípio, uma norma jurídica existe e é válida apenas em razão das formas de sua produção. Ou melhor, nessa dimensão a juridicidade da norma está desligada de sua justiça intrínseca, importando somente se foi editada por uma autoridade competente e segundo um procedimento regular. 7 No Estado Liberal de Direito, os parlamentos da Europa continental reservaram a si o poder político mediante a fórmula do princípio da legalidade. Diante da hegemonia do parlamento, o Executivo e o Judiciário assumiram posições óbvias de subordinação: o Executivo somente poderia atuar se autorizado pela lei e nos seus exatos limites, sendo que o Judiciário poderia apenas aplicá-la, sem mesmo poder interpretá-la. O Legislativo, assim, assumia uma nítida posição de superioridade. Na teoria da separação dos poderes, a criação do direito era tarefa única e exclusiva do Legislativo. Para Montesquieu - autor da obraS que idealizou a teoria da separação dos poderes recepcionada pelo Estado liberal-, o "poder de julgar" deveria ser exercido por meio de uma atividade puramente intelectual, meramente cognitiva e logicista, não produtiva de "direitos novos". Essa atividade não seria limitada apenas pela legislação, mas também pela atividade executiva, que teria também o poder de executar materialmente as decisões que constituem o "poder de julgar". Nesse sentido, o poder dos juízes-fi:caria limitado a afirmar o que já havia sido dito pelo Legislativo, pois ojulgamento deveria ser apenas "um texto exato dalei".9 Por isso, Montesquieu acabou concluindo que o "poder de julgar" era, de qualquer modo, um "poder nulo" (en quelqueJaçon, nulle).lO Antes do Estado legislativo, ou do advento do princípio da legalidade, o direito não decorria da lei, mas sim da jurisprudência e das teses dos doutores, e por esse motivo existia uma grande pluralidade de fontes, procedentes de instituições não só diversas, mas também concorrentes, como o império, a igreja etc.A criação do Estado legislativo,portanto, implicou signijicativa transformação das concepçõesde direito e de jurisdição. 11

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Luigi Ferrajoli,Derechos fundamentales, cit., p. 52. De l'espritdes lois (Do espírito das leis), publicada pela primeira vez em 1748. Montesquieu, Do espírito das leis, p.158. VerGiovanniTarello,Storia dellaculturagiuridica moderna (assolustismoecodificazione

deidiritto),p.291. 11 Luigi Ferrajoli,Pasadoe futuro delestado de derecho,Neoconstitucionalismo(s), p.15-17.

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A]URlSDIÇÃO

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A transformação operada pelo Estado legislativo teve a intenção de conter os abusos da administração e da jurisdição. Com isso, obviamente, não se está dizendo que o sistema anterior ao do Estado legislativo era melhor. Não há dúvida de que a supremacia da lei sobre o Judiciário teve o mérito de conter as arbitrariedades de um corpo de juízes imoral e corrupto. Os juízes anteriores à Revolução Francesa eram tão comprometidos com o poder feudal que se recusavam a admitir qualquer inovação introduzida pelo legislador que pudesse prejudicar o regime. Os cargos de juízes não apenas eram hereditários, como também podiam ser comprados e vendidos, sendo daí oriunda a explicação natural para o vínculo dos tribunais judiciários com ideias conservadoras e próprias do poder instituído e para a consequente repulsa devotada aos magistrados pelas classes populares.12 Montesquieu, ao afirmar a tese de que não poderia haver liberdade caso o "poder de julgar" não estivesse separado dos poderes Legislativo e Executivo, partia da sua própria experiência pessoal, pois conhecia muito bem os juízes da França da sua época. Montesquieu nasceu Charles-Louis de Secondat em uma família de magistrados, tendo herdado do seu tio não apenas o cargo de Président à mortier no Parlement de Bordeaux, bem como o nome de Montesquieu.13 Mas ele não se deixou seduzir pelas facilidades dessa posição social, como ainda teve a coragem de denunciar as relações espúrias dos juízes com o poder, nessa dimensão idealizando a teoria da separação dos poderes,14 e assim propondo que os magistrados deveriam se limitar a dizer as palavras-da lei.15 Porém, como o direito foi resumido à lei e a sua validade conectada exclusivamente com a autoridade da fonte da sua produção, restou impossível controlar os abusos da legislação. Se a lei vale em razão da autoridade que a edita, independentemente da sua correlação com os princípios de justiça, não há como direcionar a 12 Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu? A expansão e a legitimidade da "justiça constitucional", Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v.20, p. 268. 13 Idem,p.269. 14 Na obra Do espírito das leis. 15 A Lei Revolucionária de agosto de 1790 afirmou expressamente que "os tribunais judiciários não tomarão parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nem impedirão ou suspenderão a execução das decisões do poder legislativo ..." (Título II, art. 1?); que os tribunais "reportar-se-ão ao corpo legislativo sempre que assim considerarem necessáno, a fim de interpretar ou editar uma nova lei" (Título II, art. 12); e que "as funções judiciárias são distintas e sempre permanecerão separadas das funções administrativas. Sob pena de perda de seus cargos, os juízes de nenhuma maneira interferirão com a administração pública, nem convocarão os administradores à prestação de contas com respeito ao exercício de suas funções" (Título II, art. 12) (cf Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu? .., cit., p. 272).

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produção do ~ireito aos reais valores da sociedade.16 Daí se ter como certo que a teoria de MontesqUleu, embora se voltando contra os abusos do ancien régime, lançou as sementes da tirania do Legislativo.17 Por outro lado, o princípio da legalidade tinha estreita ligação com o princípio da liberdade, valor perseguido pelo Estado liberal a partir das ideias de que a Administração apenas podia fazer o que a lei autorizasse e de que os cidadãos podiam fazer tudo aquilo que a lei não vedasse. Conforme anota Carl Schmitt, da ideia fundamental da liberdade burguesa - proteção dos cidadãos contra os abusos do poder público - deduzem-se duas consequências, que integram os dois princípios típicos do Estado de Direito Liberal. Primeiro, um princípio de distribuição: a esfera de liberdade do indivíduo é suposta como um dado anterior ao Estado, restando a liberdade do indivíduo ilimitada a princípio, enquanto a faculdade do Estado de invadi-la é limitada a princípio. Segundo, um princípio de organização, que serve para pôr em prática aquele princípio de distribuição: o poder do Estado (limitado em princípio) reparte-se e encerra-se em um sistema de competências circunscritas.18 O império da lei, como instrumento a serviço da liberdade burguesa, ganha conteúdo em contraposição à ideia de império de homens. Império da lei significa, antes de tudo, que o próprio legislador está vinculado às leis que edita. A vinculação do legislador à lei só é possível, todavia, enquanto a lei é uma norma com certas propriedades. 19Essas são sintetizadas na expressão da lei geral e abstrata. Para não violar a liberdade e a igualdade - formal- dos cidadãos, alei deveria guardar as características dagenera:idade e da abs~ração.A norma não poderia tomar em consideração alguém em espeClfico ou ser feIta para determinada hipótese. A generalidade era pensada ~~m~ ~aranti~ de imparcialidade do poder perante os cidadãos - que, por serem 19ua~s.' devenam ser tratados sem discriminação - e a abstração como garantia da estabIlidade - de longa vida - do ordenamento jurídico. 20 A igualdade, que não tomava em conta a vida real das pessoas, era vista como si~p~es projeç~o da garantia da liberdade, isto é, da não discriminação das posições SOClalS, pouco Importando se entre elas existissem gritantes distinções concretas. O Estado liberal tinha preocupação com a defesa do cidadão contra as eventuais agressões .16 V:r.Gustavo Zagrebe1sky, A lei, o direito e a Constituição. Colóquio comemorativo do XXAmversarlO do Trzbunal Constitucional Português; Kathleen M. Sullivan, The Supreme Court, 1991 Term - F~rewor~: The justice of roles and standards, Harvard Law Review, v. 106, p. 22; Ronald Dworkin,A Bzll ojRightsfor Britain. 17 18 19

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Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu? .., cit., p. 272. Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, cit., p.138. Idem, p. 150.

2~ ~u.stavo ~agreb~lsky,EI derechodúctil,cit., p.29; ver Edwards S. Corwin,The establishment ofjudlClal reVIew, Mlchigan Law Review, v. 9, n. 2, p. 102-125.

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da autoridade estatal e não com as diferentes necessidades sociaiS.21 A impossibilidade de o Estado interferir na sociedade,22 de modo a proteger as posições sociais menos favorecidas, constituía consequência natural da suposição de quepara se conservar a liberdade de todos era necessário não discriminar ninguém, pois qualquer tratamento diferenciado era visto como violador da igualdade -logicamente formal. 23 Ademais, para o desenvolvimento da sociedade em meio à liberdade, aspirava-se a um direito previsível ou à chamada "certeza do direito" - aí entendida como garantia de certeza de um significado prévio e determinado atribuído à norma.24 Desejava-se uma lei abstrata, que pudesse albergar quaisquer situações concretas futuras, e assim eliminasse a necessidade da edição de novas leis e especialmente a possibilidade de o juiz, ao aplicá -la, ser levado a tomar em conta especificidades próprias e características de determinada situação. A generalidade e a abstração evidentemente também apontavam para a impossibilidade de o juiz aplicar a lei ou considerar circunstâncias especiais ou concretas. Como é óbvio, de nada adiantaria uma lei marcada pela generalidade e pela abstração se o juiz pudesse conformá-la às diferentes situações concretas. Isso, segundo os valores liberais, obscureceria a previsibilidade e a certeza do direito, pensados como indispensáveis para a manutenção da liberdade. Compreende-se, nessa dimensão, a razão pela qual Montesquieu disse que, se "os julgamentos fossem-uma opinião 21 Ver Jürgen Habermas, Direito e democracia, p. 305: "Esse modelo parte da premissa segundo a qual a constituição do Estado de direito democrático deve repelir primariamente os perigos que podem surgir na dimensão que envolve o Estado e o cidadão, portanto nas relações entre o aparelho administrativo que detém o monopólio do poder e as pessoas privadas desarmadas. Ao passo que as relações horizontais entre as pessoas privadas, especialmente as relações intersubjetivas, não têm nenhuma força estruturadora para o esquema liberal de divisão dos poderes". 22 Ver Carl Schmitt, Teoría de la constitución, cit., que define o Estado de Direito oriundo do liberalismo clássico como "todo Estado que respete sin condiciones el Derecho objetivo vigente y los derechos subjetivos que existan", e adverte que tal concepção tem por consequência "legitimar y eternizar el status quo vigente". 23 Exemplar, nesse sentido, o pronunciamento da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Adkins versus Childrens Hospital 261 U.S. 525 (1923), decisão de 1923 que invalidou uma legislação que estabelecia salário mínimo para mulheres e crianças: "To the extent that the sum fixed [by the minimum wage statute] exceeds the fair value of the services rendered, it amounts to a compulsory exaction from the employer for the support of a parTially indigent person, for whose condition there rests upon him no peculiar responsibility, and therefore,in effect, arbitrarily shifts to his shoulders a burden which, if it belongs to anybody, belongs to society as a whole" (N a extensão em que a soma fixada [pela lei do salário mínimo] excede o valor justo dos serviços prestados, equivale a uma exação compulsória do empregador para o sustento de uma pessoa parcialmente indigente, por cuja condição ele não tem nenhuma responsabilidade especial, e por isso, de fato, transfere arbitrariamente para os seus ombros um fardo que, se pertence a alguém, pertence à sociedade como um todo). Ver Cass Sunstein, lhe partial constitution, p. 45. 24 Sobre esse conceito de certeza jurídica e sobre a sua superação, Humberto Ávila, Se-

gurançajurídua,p.250-252.

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particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos".25 Não há dúvida de que essa afirmação de Montesquieu revela uma ideologia política ligada à ideia de que a liberdade política, vista como segurança psicológica do sujeito, realiza-se mediante a "certeza do direito".26 Mas tudo isso leva ainda às questões da sistematicidade e da plenitude do direito. O ideal da supremacia do legislativo era o de que a lei e os códigos deveriam ser tão claros e completos que apenas poderiam gerar uma única interpretação, inquestionavelmente corretaY O resultado da interpretação só poderia ser um único resultado possíveF8 A lei era bastante e suficiente para que o juiz pudesse solucionar os conflitos29 sem que precisasse recorrer às normas constitucionais. Como explica Zagrebelsky, "com base nessas premissas a ciência do direito podia afirmar que as disposições legislativas nada mais eram do que partículas constitutivas de um edifício jurídico coerente e que, portanto, o intérprete podia retirar delas, indutivamente ou mediante uma operação intelectiva, as estruturas que o sustentavam, isto é,os seus princípios. Esse é o fundamento da interpretação sistemática e da analogia, dos métodos de interpretação que, na presença de uma lacuna, isto é, da falta de uma disposição expressa para resolver uma controvérsia jurídica, permitiam individualizar a norma precisa em coerência com o sistema. A sistematicidade acompanhava, portanto, a plenitude do direito".30 Montesquieu,Do espírito das leis, cit., p.158. Giovanni Tarello, Storia della cultura giuridica moderna ... , cit., p. 294; ver Geoffrey C. Hazard Jr., Reflections on the substance of finality, Cornell Law Review, v. 70, p. 642, 646-647. 27 Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu? ..., cit., p. 271. 28 Para um quadro da teoria do direito em Oitocentos, em que se inserem os dogmas do cognitivismo interpretativo e do logicisimo aplicativo dos quais decorrem a tese da única resposta correta para os problemas interpretativos naquele ambiente cultural, Pierluigi Chiassoni, LlndirizzoAnalitico nella Filosofia deI Diritto, p. 116-117. 25

26

29 Jürgen Habermas, Direito e democracia, cit., p. 313: "O paradigma liberal do direito expressou, até as primeiras décadas do século XX, um consenso de fundo muito dif.mdido entre os especialistas em direito, preparando, assim, um contexto de máximas de interpretação não questionadas para a aplicação do direito. Essa circunstância explica por que muitos pensavam que o direito podia ser aplicado a seu tempo, sem o recurso a princípios necessitados de interpretação ou a 'conceitos-chave' duvidosos". 30 Gustavo Zagrebelsky,EI derecho dúctil, cit., p. 32. Referindo-se ao Código Civil italiano de 1865, diz Natalino Irti: "Na idade liberal- a idade que se encerra em 1914 entre os esplendores da grande guerra -, o sistema normativo gravita completamente em torno ao Código Civil. O Código Civil de 1865 contém os princípios gerais, que orientam a regulação das particulares

Instituições ou matérias, e que, em última instância, servem para colmatar as lacunas do ordenamento"

(Leyes especiales (del mono-sistema

al poli-sistema), La edad de la descodificación, p. 93).

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AJURlSmçÃo

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

1.2 O positivismo jurídico

o positivismo jurídico é solidário a essa concepção de direito, pois, partindo da ideia de que o direito se resume à lei e, assim, é fruto exclusivo das casas legislativas, limita a atividade do jurista à descrição da lei e à busca da vontade do legislador.31 O positivismo jurídico nada mais é do que uma tentativa de adaptação do positivismo filosófico ao domínio do direito.32 Imaginou-se, sob o rótulo de positivismo jurídico, que seria possível criar uma ciência jurídica a partir dos métodos das ciências naturais, basicamente da objetividade da observação e da experimentação. Se 31 Ver, sobre o positivismo jurídico oitocentista,Pierluigi C'nlassoni,L1ndirizzoAnalitico nella Filosifia dei diritto, p. 177 e seguintes; Norberto Bobbio, Opositivismo jurídico; Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 21 e seguintes; sobre o positivismo jurídico em Novecentos, Hans Kelsen, Teoriapura do direito; Herbert L. A. Hart, O conceitode direito; AlfRoss, On Law and Justice;Cláudio Michelon,Aceitação e objetividade - Uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do direito; Luís Fernando Barzotto, O positivismo jurídico contemporâneo - Uma introdução a Kelsen, Ross e Hart; Ronaldo Porto Macedo Júnior, Do xadrez à cortesia - Dworkin e a teoria do direito contemporânea; Ronald Dworkin, Taking Rights Seriousiy; Ronald Dworkin,Justice for Hedgehogs; J oseph Raz, The authority oflaw;Jules Coleman, Negative and positive positivism, OxfordJournal ofLegal Studies, v. 11, p.139. Para um vigoroso argumento positivista sustentando a importância das intenções do legislador para a interpretação, Larry Alexander. Tudo ou nada? As intenções das autoridades e a autoridade das intenções, Direito e interpretação, p. 537-608. 32 Como observa Tercio Sampaio FerrazJr.,o termo positivismo não é unívoco, servindo para designar "tanto a doutrina de Auguste Comte, como também aquelas que se ligam à sua doutrina ou a ela se assemelham. Comte entende por 'ciência positiva' coordination dejàits. Devemos, segundo ele, reconhecer a impossibilidade de atingir as causas imanentes dos fenômenos, aceitando os fatos e suas relações recíprocas como o único objeto possível de investigação científica. A physique socialedeveria, neste sentido, tornar-se uma estigmatização dos dogmas e dos pressupostos da filosofia do século XVIII. Comte afirma que, numa ordem qualquer de fenômenos, a ação humana é sempre bastante limitada, isto é, a intensidade dos fenômenos pode ser perturbada, mas nunca a sua natureza. O estreitamento na margem de mutabilidade da natureza humana, que Comte recolhe do modelo da biologia antievolucionista, dá condições de possibilidade a uma sociologia. Supõe-se que o desenvolvimento humano é sempre o mesmo, apenas modificado na desigualdade da sua velocidade (vitesse de developpement). Em célebre disputa entre Lamarque e Cuvier, Comte colocou-se ao lado do último. Foi da biologia fixista que saiu o seu 'princípio das condições de existência, garantia da positividade da Sociologia. A adoção da problemática da biologia positiva ('étant donné I'organe, trouver lafonction et réciproquement') implicou a recusa do método teleológico e o predomínio da explicação causal. Daí a luta, na segunda metade do século XIX, contra a teleologia nas ciências da natureza e mais tarde, com Kelsen, na Ciência do Direito; daí o determinismo e a negação da liberdade da vontade. Todos os fenômenos vitais humanos deviam ser explicados a partir de suas 'causas sociológicas'. Era uma 'conformité spontanée' dos fenômenos políticos com uma fase determinada do desenvolvimento da civilização. Todas essas teses de Comte foram base comum para o positivismo do século XIX. Daí surgiu, finalmente, a negação de toda metafísica, a preferência dada às ciências experimentais, a confiança exclusiva no conhecimento dos fatos etc." (A ciência do direito, p. 31).

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o investigador das ciências naturais pode realizar experimentos com base em procedimentos lógicos até concluir a respeito da verdade ou da falsidade de uma proposição, supôs-se que a tarefa do jurista poderia ser submetida a essa mesma lógica. Nessa linha, os juristas sempre chegariam a um resultado correto ou falso na descrição do direito positivo, como se físicos ou químicos fossem. A mera observação e descrição da norma constituem o ponto caracterizador do positivismo jurídico, que dessa forma pode ser visto como uma ciência cognoscitiva ou explicativa de um objeto, isto é, da norma positivada. Por constituir explicação da norma, o positivismo difere nitidamente da atividade de produção do direito, ou da atividade normativa, pois a tarefa do jurista positivista é completamente autônoma em relação à atividade de produção do direito, sendo simplesmente descritiva, ao contrário do que acontecia à época em que a atividade da jurisprudência e dos doutores criava o direito.33 O positivismo não se preocupava com o conteúdo da norma, uma vez que a validade da lei estava apenas na dependência da observância do procedimento estabelecido para a sua criação. Além do mais, tal forma de pensar o direito não via lacuna no ordenamento jurídico, afirmando a sua plenitude. A lei, compreendida como corpo de lei ou como Código, era dotada de plenitude e, portanto, sempre teria que dar resposta aos conflitos de interesses. Contudo, o positivismo jurídico não apenas aceitou a ideia de que o direito deveria ser reduzido à lei, mas também foi o responsável por uma inconcebível simplificação das tarefas e das responsabilidades dos juízes, promotores, advogados, professores e juristas, limitando-as a uma aplicação mecânica das normas jurídicas na prática forense, na universidade e na elaboração doutrinária.34 Isso significa que o positivismo jurídico, originariamente concebido para manter a ideologia do Estado liberal, transformou-se, ele mesmo, em ideologia.35 Nessa dimensão, passou a constituir a bandeira dos defensores do status quo ou dos interessados em manter a situação consolidada pela lei. Isso permitiu que a sociedade se desenvolvesse sob um asséptico e indiferente sistema legal ou mediante a proteção Luigi Ferrajoli,Pasado e futuro ...,cit.,p.16; ver Hans Kelsen, Teoriapura dodireito,cit. Mauro Cappelletti,Dimensioni dellagiustizia nelle societàcontemporanee, p. 72. O que se ~retende evidenciar aqui é que o positivismo clássico não dá conta de alguma forma de raciocínio Jurídico que não seja uma simples dedução, ou que deixe de encaixar um caso especial dentro do molde de uma regra geral prefixada. Para uma comparação do papel da doutrina oitocentista e da primeira metade de Novecentos com o papel da doutrina contemporânea, Humberto Ávila, Função da ciência do direito tributário: do formalismo epistemológico ao estruturalismo argumentativo, Revista Direito Tributário Atual. 35 Norberto Bobbio, 11positivismo giuridico, p. 233 e ss. 33

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A JURISDIÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

de uma lei que, sem tratar de modo adequado os desiguais, tornou os iguais em carne e osso mais desiguais ainda.36

1.3 A jurisdição como função dirigida atutelar os direitos subjetivos privados violados Se é certo que a jurisdição, no final do século XIX, encontrava-se totalmente comprometida com os valores do Estado liberal e do positivismo jurídico, passa a importar agora a relação entre esses valores e a concepção de jurisdição como função voltada a dar atuação aos direitos subjetivos privados violados. Os processualistas que definiram essa ideia de jurisdição estavam sob a influência ideológica do modelo do Estado Liberal de Direito e, por isso, submetidos aos valores da igualdade formal, da liberdade individual mediante a não interferência do Estado nas relações privadas e do princípio da separação de poderes como mecanismo de subordinação do Executivo e do Judiciário à lei.37 Na época, na área de influência franco-italiana, atuava a chamada escola exegética, que, além de ter sido influenciada pelo iluminismo, foi acentuadamente marcada pelo positivismo jurídico e, assim, pela ideia de submissão do juiz à lei.38 A tendência de defesa da esfera de liberdade do particular aliada à tese de que apenas a supremacia da lei seria capaz de proteger esses direitos deram naturalmente à jurisdição a função de proteger os direitos subjetivos dos particulares mediante a aplicação da lei. Mais precisamente, ajurisdição tirLha a função de viabilizar a reparação do dano, uma vez que, nessa época, não se admitia que o juiz pudesse atuar antes de uma ação humana ter violado o ordenamento jurídico. Se a liberdade era garantida na medida em que o Estado não interferia nas relações privadas, obviamente não se podia dar ao juiz o poder de evitar a prática de uma conduta sob o argumento de que ela poderia

36 Peter Haberle, Die Wesengehaltsgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz, p. 90-91: "O pensamento individualista e o liberalismo constituem as causas adicionais para o desprezo da parte institucional dos direitos fundamentais. (... ) O forrr:alismo ~o p.ositivismo não têm neu:lU~ sentido para a relação imanente dos direitos fundamentals como inStItutoS. Creem que a essenCla da liberdade se esgota com as liberdades negativas diante da coerção do Estado". 37 RudolfWassermann, Der soziale Zivilprozess, p. 44: "Na crença de que o juiz está sujeito às amarras da lei, sente-se a utopia do desconnante liberalismo contra todo poder e~tatal, imaginando-se com isso se ter solucion2;do o problema do controle do poder. Qyem pode dizer o que alei afirma não exerce poder algum. E apenas um guardião, que por sua vez não requer qualqu~r outro guardião sobre si. O perigo de que as instâncias políticas possam influir na jurisprudêncIa conduz também ao princípio do juiz natural". 38 Sobre o assunto, Giovanni TardIo, "La Scuola dell'Esegesi e sua Diffusione in Italia', Cultura Giuridica e Politica dei Diritto, p. 69 e 55.; Pierluigi Chiassoni, L 'IndirizzoAnalitico nella Filosofia dei Diritto, pp. 243 e 55.; AlfRoss, Theorieder Rechtsquellen, p. 34 e 55.

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violar a lei. Na verdade, qualquer ingerência do juiz, sem que houvesse sido violada urna lei, seria vista como um atentado à liberdade individual Giuseppe Manfredini - um doutrinador italiano da época -, ao escrever, em 1884, o seu Programma deI corsodi diritto giudiziario civile, destacou entre os princípios inform~d?res d~ procedura ,ci~ile aquele. que ~intetizaria ~ ~ecessidad.e ,d: se conferir aos drreltos pnvados a maxlma garantla SOClalcom o mmzmo de sacrificzo de liberdade individual. Disse Manfredini que "cada restrição à liberdade do indivíduo é superior aopoder de todas as leispositivas humanas, e que consequentemente também a de 'procedura'deve respeitar esse limite". 39 Não é de se admirar, assim, que o conceito de jurisdição, nessa época, não englobasse a necessidade de tutela preventiva, ficando restrita à reparação do direito violado.40 Mas a conotação repressiva da jurisdição não foi simplesmente influenciada pelo valor da liberdade individual, pois o princípio da separação dos poderes também serviu para negar à jurisdição o poder de dar tutela preventiva aos direitos, uma vez que, no quadro deste princípio, a função de prevenção diante da ameaça de não observância dalei era da Administração. Esse seria um poder exclusivo de "polícia administrativà', evitando-se, desse modo, uma sobreposição de poderes: a Administração exerceria a prevenção e o Judiciário apenas a repressão. Ademais, a ideia de igualdade formal, ao refletir a impossibilidade de tratamento diferenciado às diferentes posições sociais e aos bens, unificou o valor dos direitos, permitindo a sua expressão em dinheiro e, assim, que a jurisdição pudesse conferir a todos eles um significado em pecúnia. Foi quando surgiu a ideia de reparação do dano pelo equivalente, o que obviamente também teve influência sobre a concepção de jurisdição como função dirigida a dar tutela aos direitos privados violados. Ora, se todos os direitos podiam ser convertidos em pecúnia, e a jurisdição então não se preocupava com a tutela da integridade do direito material, mas apenas em manter em funcionamento os mecanismos de mercado, logicamente não era necessária a prestação jurisdicional preventiva, bastando aquela que pudesse colocar no bolso do particular o equivalente monetário.

1.4 Da teoria da proteção dos direitos subjetivos privados à teoria da atuação da vontade da lei Após a análise realizada no item anterior, cabe verificar o que separa e o que identifica as teorias da proteção dos direitos subjetivos privados e da atuação da vontade da lei.

39 40

Giuseppe Manfredini, Programma dei corsodi diritto giudiziario civile, p. 44. Ver Luiz Guilherme Marinoni, Tuteia inibitória, p. 312 e 55.

40



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NO ESTADO CONSTITUCIONAL

A atuação da vontade da lei revela a preocupação em salientar que a jurisdição exerce um poder voltado à afirmação do direito objetivo ou do ordenamento jurídico. O objetivo da jurisdição, nessa linha, passa a ter, antes de tudo, uma conotação publicista, e não apenas um compromisso com a proteção dos particulares, isto é, um compromisso privatista. São de Lodovico Mortara as primeiras lições endereçadas a essa concepção de jurisdição, as quais levaram os próprios processualistas chiovendianos a confessar o seu papel de jurista de transição entre a,escola exegética e a escola histórico-dogmática, fundada por Giuseppe Chiovenda. E possível dizer que o Commentario dei codice e delle leggi di procedura civile41 de Mortara afirmou, pela primeira vez, a natureza pública do processo civil. Como reconheceu Chiovenda,42 o grande mérito de Mortara foi o de ter pensado o processo civil como instituto de direito público, "o qual foi o ponto de partida dos progressos sucessivamente obtidos no nosso campo".43 Não obstante, ainda que o pensamento de Mortara tenha sido importante para afirmar a natureza pública do processo, o fato é que a sua concepção de jurisdição, ao frisar a defesa do direito objetivo, não se livrou do peso dos valores do Estado liberal, mantendo-se absolutamente fiel à ideia de que o juiz, diante da sua posição de subordinação ao legislador, deveria apenas atuar a vontade da lei. C21Iando Mortara afirma que a jurisdição tem o fim de defender o direito objetivo, fica claro que esse objetivo deve ser realizado mediante a declaração ou a atuação da lei. Portanto, a doutrina de Mortara se diferenciou, em relação às lições dos processualistas que sustentaram a concepção de jurisdição vista no item anterior, apenas em razão de ter revelado a natureza pública do processo, mas se manteve presa aos valores-culturais e ideológicos do Estado liberal.

1.5 A teoria de Chiovenda: a jurisdição como atuação da vontade concreta da lei Giuseppe Chiovenda, em 1903, proferiu uma conferência - que se tornou famosa nos estudos do processo civil- demonstrando a autonomia conceitual da ação em face do direito subjetivo material.44 Essa conferência, ao relativamente desvincular a ação do direito material, marcou o fim da era privatista do processo e reafirmou a tendência - já inaugurada por Mortara - do realce da natureza publicista do processo civil. 41 Lodovico Mortara, Commentario deI Codice e delle leggi di procedura civile. Ainda, Paolo Grossi, Scienza GiuridicaItalianaUn Profilo Storico (1860 -1950), p. 61-66. 42 Em homenagem póstuma a Mortara. 43 Giuseppe Chiovenda, Lodovico Mortara. Rivista di Diritto Processuale Civile, 1937, p.

101. 44

Giuseppe Chiovenda, L'azione nel sistema dei diritti. Saggi di diritto processual e civile,

p.3 e ss.

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A jurisdição, mergulhada no sistema de Chiovenda, é vista como função voltada à atuação da vontade concreta da lei. Segundo Chiovenda, ajurisdição, no processo de

conhecimento, "consiste na substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual não só das partes, mas de todos os cidadãos, pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não existente uma vontade concreta da lei em relação às partes". 45 Chiovenda chegou a dizer que, como ajurisdição significa a atuação da lei, "não pode haver sujeição à jurisdição senão onde pode haver sujeição à lei".46 Essa passagem da doutrina chiovendiana é bastante expressiva no sentido de que o verdadeiro poder estatal estava na lei e de que a jurisdição somente se manifestava a partir da revelação da vontade do legislador.

É verdade que Chiovenda afirmou que a função do juiz é aplicar a vontade da lei "aocaso concreto". Com isso, no entanto,jamais desejou dizer que ojuiz cria a norma individual ou a norma do caso concreto, à semelhança do que fizeram Carnelutti e todos os adeptos da teoria unitária do ordenamento jurídico. Lembre-se de que, para Kelsen - certamente o grande projetor dessa última teoria -, o juiz,oe1ém de aplicar a lei, cria a norma individual (ou a sentença). 47 Chiovenda é um verdadeiro adepto da doutrina que, inspirada no iluminismo e nos valores da Revolução Francesa, separava radicalmente as funções do legislador e do juiz, ou melhor, atribuía ao legislador a criação do direito e ao juiz a sua aplicação. Recorde-se que, na doutrina do Estado liberal, aos juízes restava simplesmente aplicar a lei ditada pelo legislador. Nessa época, o direito constituía as normas gerais, isto é, a lei. Portanto, o Legislativo criava as normas gerais e o Judiciário as aplicava. Enquanto o Legislativo constituía o poder político por excelência, o Judiciário, visto com desconfiança, resumia -se a um corpo de profissionais que nada podia .criar.48 De modo que não se pode confundir aplicação da norma geral ao caso concreto com criação da norma individual do caso concreto. C21Iando se sustenta, na linha da lição de Ke1sen, que o juiz cria a norma individual, admite-se que o direito éo conjunto das normas gerais e das normas individuais e, por consequência, que o direito também é criado pelo juiz. 49 Giuseppe Chiovenda, Principios deI derecho procesal, p. 365. Giuseppe Chiovenda,Instituições ... , cit., v. 2, p. 55. 47 Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.165; ver Ulises Schmill Ordóiiez, Observaciones a "inconstitucionalidad y derogación". Discusiones, p. 79-83; Carlos Nino, El concepto de validezjurídica en la teoría de Kelsen.La validez dei derecho, p. 7-40. 48 Eugenio Bulygin, ~Los jueces crean derecho?, texto apresentado ao XII Seminário Eduardo García Maynez sobre teoria e filosofia do direito, organizado pelo Instituto de InvestigacionesJurídicas y el Instituto de Investigaciones Filosóficas de la Unam, p. 8. . 49 Hans Kelsen, Reine Rechtslehre - Einleitung in die rechtswissenschaftliche Problematlk, 1934, p. 3-5, 197,237; em senso crítico Horst Dreier,Hans Kelsen (1881-1973) - Jurist des Jahrhunderts? Deutsche juristen jüdischer Herkunft, 1993, p. 705-733. 45

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Embora a doutrina da criação da norma individual não signifique que ojuiz não esteja preso ao texto da lei - como ficará claro quando se estudar a concepção de jurisdição de Carnelutti -, é inegável que tal doutrina, ao sustentar que o juiz cria a norma individual, representou uma crítica à posição que enxergava na função do juiz uma simples aplicação das normas gerais.

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Contudo, não se pode obscurecer que a doutrina de Chiovenda deu origem a uma escola que desvinculou o processo do direito material, manchando-se com características que a diferenciaram da escola exegética. Porém, os princípios básicos da escola chiovendiana - sobre os quais, aliás, formaram-se a moderna doutrina processual italiana e a doutrina processual brasileira, especialmente aquela ligada à formação do Código Buzaid de 1973 - foram inspirados no modelo institucional do Estado de Direito de matriz liberal, revelando, de tal modo, uma continuidade ideológica em relação ao pensamento dos juristas do século XIX. 50 A mudança que se verificou em relação à natureza do processo, que de algo posto a serviço dos particulares passou a ser visto como meio pelo qual se exprime a autoridade do Estado, nada teve a ver com o surgimento de uma ideologia diversa da liberal, e muito menos com uma tentativa de inserção do processo civil em uma dimensão social, constituindo apenas o resultado da evolução da cultura jurídica. 51 Deixe-se claro que a escola chiovendiana, ainda que preocupada com a investigação das raízes históricas dos institutos processuais, bem como com uma maior problematização da dogmática processual civil, jamais chegou a questionar, por exemplo, o acesso dos cidadãos ao Poder Judiciário e a efetividade dos procedimentos para atender aos direitos das classes desprivilegiadas. Como está claro, a escola chiovendiana, apesar de ter contribuído para desenvolver a natureza publicista do processo, manteve-se fiel ao positivismo clássico.

1.6 A doutrina de Carnelutti: ajusta composição da lide Carnelutti atribuiu à jurisdição a função de justa composição da lide, entendida como o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um e pela resistência do outro interessado.52 A lide, no sistema de Carnelutti, ocupa o lugar da ação no sistema chiovendiano. Como visto, Chiovenda, ao desenvolver o estudo da ação, demonstrou a sua relativa autonomia em relação ao direito material. Porém, esse trabalho de separação entre a ação e o direito subjetivo material teve o nítido objetivo de demonstrar a superação da concepção privatista de processo. Como fez questão de frisar Cristina Rapisarda, a teoria chiovendiana da jurisdição, como função voltada à atuação da 50 51 52

Cristina Rapisarda, Projili della tutela civile inibitoria, p. 70. Miche1eTaruffo, La giustizia civile in Italia dai '700 a oggi, p. 186. Francesco Carne1utti, Sistema ..., cit.,v. 1,p. 40.

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vontade concreta da lei, era estritamente conexa, no plano conceitual, com o princípio da autonomia da ação.53 Ou seja, se a ação não se confunde com o direito material, constituindo um poder de provocar a atividade do juiz, é lógico que essa atividade é voltada à atuação da lei e não à realização do direito material. De modo que o conceito chiovendiano de ação se colocou ao centro do sistema que revelou a natureza publicista do processo. A partir desse conceito, a jurisdição foi, por consequência, pensada no quadro das funções do Estado, considerada, então, a tripartição dos poderes. Carnelutti, entretanto, partiu da ideia de lide entre duas pessoas - compreendida como conflito de interesses individual ou, mais precisamente, marcada pela ideia de litigiosidade, conflituosidade ou contenciosidade - para definir a existência de jurisdição. A lide, dentro do sistema carneluttiano, é característica essencial para a presença de jurisdição. Havendo lide, a atividade do juiz é jurisdicional, mas não há jurisdição quando não existe um conflito de interesses para ser resolvido ou uma lide para ser composta pelo juiz. 54

É evidente que o ângulo visual de Carnelutti revela uma compreensão privatista da relação entre a lei, os conflitos e o juiz, além de uma imagem puramente individualista dos conflitos sociais. Enquanto Chiovenda procurava a essência da jurisdição dentro do quadro das funções do Estado, Carnelutti via na especial razão pela qual as partes precisavam do juiz - no conflito de interesses - a característica que deveria conferir corpo à jurisdição. Carnelutti estava preocupado com a finalidade das partes; Chiovenda, com a atividade do juiz. Por isso, é possível dizer que Carnelutti enxergava o processo a partir de um interesse privado e Chiovenda em uma perspectiva publicista. De qualquer maneira, a fórmula da "composição da lide" também pode ser analisada a partir da ideia, que está presente no sistema de Carnelutti, de que a lei é, por si só, insuficiente para compor a lide, sendo necessária para tanto a atividade do juiz. A sentença, nessa linha, integra o ordenamento jurídico, tendo a missão de fazer concreta a norma abstrata, isto é, a lei. A sentença, ao tornar a lei particular para as partes, comporia a lide. 55 As concepções de "justa composição da lide", de Carnelutti, e de "atuação da vontade concreta do direito", elaborada por Chiovenda, são ligadas a uma tomada de posição em face da teoria do ordenamento jurídico, ou melhor, à função da sentença diante do ordenamento jurídico. Para Chiovenda, a função da jurisdição é meramente declaratória; o juiz declara ou atua a vontade da lei. Carnelutti, ao contrário, entende que a sentença torna concreta a norma abstrata e genérica, isto é, faz particular a lei para os litigantes.

53 54 55

Cristina Rapisarda, Proftli ..., cit., p. 52. Francesco Carne1utti, Sistema ... , cit., v.l, p.130 e ss. Francesco Carne1utti, Diritto eprocesso,p. 18 e ss.



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Para Carnelutti, a sentença cria uma regra ou norma individual, particular para o caso concreto, que passa a integrar o ordenamento jurídico, enquanto, na teoria de Chiovenda, a sentença é externa (está fora) à ordem normativa, tendo a função de simplesmente declarar a lei, e não de completar o ordenamento jurídico. A primeira concepção é considerada adepta da teoria unitária e a segunda, da teoria dualista do ordenamento jurídico, sendo que essas teorias também são chamadas de constitutiva (unitária) e declaratória (dualista). Alguém pode indagar, diante disso, se Carnelutti, quando adere à teoria unitária, admite que a sentença cria um direito que ainda não existia. Para tanto é preciso esclarecer se, diante da teoria unitária, devida especialmente a Kelsen, o qual afirma que o juiz produz uma norma jurídica concreta, desejou -se concluir que o juiz pode, ao proferir a sentença, criar uma norma individual que não tenha base em uma norma jurídica já existente. A resposta não é animadora para quem pretenda ver algo mais na definição de jurisdição. Para Kelsen todo ato jurídico constitui, em um só tempo, aplicação e criação do direito, com exceção da Constituição e da execução da sentença, pois a primeira seria pura criação e a segunda-pura aplicação do direito.56 Por isso, o legislador aplica a Constituição e cria a norma geral e o juiz aplica a norma geral e cria a norma individual. 57 A teoria de Kelsen afirma a ideia de que toda norma tem como base uma norma superior, até se chegar à norma fundamental, que.estaria no ápice do ordenamento.De modo que a norma individual,jixada na sentença, liga-se necessariamente a uma norma superior. A norma individual faria parte do ordenamento, ou teria natureza constitutiva, apenas por individualizar a norma superior para aspartes. 58 Cf. Eugenio Bulygin, ~Los jueces crean derecho?, cit., p.10. "Criar uma norma é, portanto, ao mesmo tempo, aplicar uma outra norma; o mesmo ato é, simultaneamente, de criação e de aplicação do direito" (Hans Kelsen, Teoria geral do estado, p. 105); ver também Hans Kelsen, La garantie jurisdictionnelle de la constitution. La justice constitutionnelle. Revue de Droit Public, 1928, p. 204. 58 Hans Kelsen, Teoria geral do Estado, cit., p. 109 e ss. "El tribunal tiene que declarar la existencia de tal norma del mismo modo que está obligado a establecer la existencia deI acto violatorio. Pero no solo los tribunales: todos los órganos jurídicos se encuentran en la necesidad de decidir si la norma que 'prima facie' les exige ejecución es una norma perteneciente al orden jurídico. Para ello, colocándose en el punto de vista interno o inmanente al derecho, tiene que determinar si la norma respectiva es una norma existente y regular, si ha sido creada con arreglo a los procedimientos y con los contenidos establecidos por las normas condicionantes (superiores)" (Ulises Schmill Ordóííez, Observaciones ... ,cit., p.109); "La norma básica de Kelsen establece1a obligatoriedad de un sistema jurídico; su identidad está determinada por un criterio que to~a en cuenta el hecho de que la misma norma básica es presupuesta cuando adscribimos obligator~edwi a todas las normas del sistema. De cualquier manera, como criterio de identidad el antenor es vacuo, ya que el contenido de cada norma básica (y, consecuentemente, su propia identidad) no puede, ser establecido, en el contexto de la teoría de Kelsen, antes de circunscribir las normas que 56

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JURíDICO

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Contudo, ao individualizar a norma superior, o juiz a declara. ~ando torna a norma concreta, ou compõe a lide no sentido da doutrina de Carnelutti, faz apenas um processo de adequação da norma - já existente - ao caso concreto. É certo que a norma jurídica, genérica e abstrata, pode ser concretizada ainda que sem a necessidade do processo. Para tanto, basta que um fato se enquadre perfeitamente à previsão da norma abstrata. Mas se isso não ocorre - até mesmo porque não é fácil, à primeira vista e de comum acordo, concluir se um fato se adapta à previsão da norma abstrata-, surge como necessária ajurisdição para dizer se o fato ocorrido está por ela albergado. Mediante uma atividade de conhecimento do fato e de intelecção da norma, o juiz, ao proferir a sentença, individualiza a norma, tornando-a concreta para os litigantes. Isso quer dizer que as concepções de que o juiz atua a vontade da lei e de que o juiz edita a norma do caso concreto beberam na mesmafinte, pois a segunda, ao afirmar que a sentença produz a norma individual, quer dizer apenas que o juiz, depois de raciocinar, concretiza a norma já existente, a qual, dessafirma, também é declarada. 59 pertenecen al sistema jurídico. (... ) Si se dan por correctas las objeciones precedentes, seria el casode preguntarse cuáles son los obstáculos que Kelsen pretende superar integrando a su teoría la hipótesis de autorización abierta que hemos examinado. Es obvio que el concepto de validez que la Teoría pura parece formular en forma explícita, implica trivialmente que no son válidas aquellas normas que contradicen las condiciones para su creación prescriptas por normas de nivelsuperior. Por otra parte, esa supuesta definición kelseniana de 'validez' es incompatible con elreconocimiento de que la validez o invalidez de una norma dependa de la declaración en uno u otro sentido por un órgano competente" (Carlos Nino, El concepto ..., cit., p. 14 e p. 35). 59 Não se olvide, entretanto, que, ao menos no modelo de criação da norma individual pelojuiz reconhecido por Kelsen, existe um componente criativo originário na atuação do juiz. Como explica o autor: '~'\relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação ou vinculação: a norma do escalão superior regula o ato através do qual é produzida a norma do escalãoinferior. ( ... ) Essa determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior nãopode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa, ( ... ) o caráter de um quadro ou moldura a preencher por esse ato" (Hans Kelsen, Teoria pura do direito, cit., p. 388). "Se por 'interpretação' se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resul:ado.de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o DIreIto a mterpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro dessamoldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delasse torne direito positivo no ato do órgão aplicador do direito - no ato do tribunal, especialmente.Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela ~ec.o~tém dentro da moldura ou quadro que a lei representa - não significa que ela é a norma IndlVJ.dual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral" (idem, p. 390-391). ''A obtenção da norma individual no processo de

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I

AJURISmçÃo

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

Qyando os processualistas clássicos sustentam que a sentença fixa a lei do caso concreto, obviamente não querem dizer que a sentença não é fiel à lei que preexiste ao processo, mas apenas que a sentença, após o processo ter encerrado - e produzido o que se chama de coisa julgada material-, vale como lei para as partes. Dizia, por exemplo, Calamandrei,já em obra madura60 - um dos mais importantes processualistas do século passado - que "a lei abstrata se individualiza por obra dojuiz". 6i Isso ocorreria após o término do processo, quando a sentença não pudesse mais ser discutida, ocasião em que não se admitiria mais nem falta de certeza nem conflito sobre a relação jurídica julgada. Eis a lição do ilustre jurista italiano: ''Assim como a lei vale, enquanto está em vigor, não porque corresponda àjustiça social, senão unicamente pela autoridade de que está revestida (dura lex sed lex), assim também a sentença, uma vez transitada em julgado, vale não porque seja justa, senão porque tem, para o caso concreto, a mesma força da lei (lex specialis). Em um certo ponto,já não é legalmente possível examinar se a sentença corresponde ou não à lei: a sentença é a lei, e a lei é a que o juiz proclama como tal. Mas com isto não se quer dizer que a passagem à coisa julgada crie o direito: a sentença (ou a coisajulgada material ou declaração de certeza), no sistema da legalidade, tem sempre caráter declarativo, não criativo do direito". 62 Frise-se que Calamandrei é adepto da teoria unitária do ordenamento jurídico, sustentando que a lei se individualiza através da sentença. Mas, ainda assim, não nega que a tarefa jurisdicional tenha função declaratória. Aliás, afirma expressamente que "a lei vale, enquanto está em vigor, não porque correspondaàjustiça social, senão unicamente pela autoridade de que está revestida". Essa afirmação de Calamandrei é imprescindível para se compreender e demonstrar que a adesão à teoria unitária não representa, por si só, qualquer rompimento com olJositivismo clássico. Deixe-se claro, portanto, que as concepções de Carnelutti e Calamandrei, apesar de filiadas à teoria unitária do ordenamento jurídico, não se desligaram da ideia de que a função do juiz está estritamente subordinada à do legislador, devendo declarar a lei. Na verdade, a distinção entre a formulação de Chiovenda e as de Carnelutti e Calamandrei está em que, para a primeira, a jurisdição declara a lei, mas não produz uma nova regra, que integra o ordenamento jurídico, enquanto, para as demais, a jurisdição, apesar de não deixar de declarar a lei, cria uma regra indi .•• 'idual que passa a integrar o ordenamento jurídico.

aplicação da lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma função voluntária"(idem, p. 393). 60 Épreciso distinguir no mínimo duas fasesdo pensamento de Calamandrei: Calamandrei aluno de Chiovenda e Calamandrei proftssor de Mauro Cappelletti. A observação é oportuna na medida em que, nas Istituzioni (1940), Calamandrei apresenta uma relação entre legislaç~o ejurisdição que mais se aproxima de Carnelutti. Em seu clássicoensaio sobre "La Genesi Logzca della Sentenza Civile" (1914), porém, sua lição segue à risca o pensamento de Chiovenda. 61 Piero Calamandrei, Istituzioni di diritto processuale civile, p. 156. 62 Piero Calamandrei, Estudios sobre elproceso civil, p. 158.

2 Do mito do cognitivismo interpretativo e do logicismo na aplicação do direito no positivismo clássico à dupla indeterminação do direito no Estado Constitucional SUMÁRIO: 2.1 o quatro teórico do positivismo clássico de Oitocentos - 2.2. A doutrina do cognitivismo interpretativo - 2.3.A doutrina do logicismo na aplicação do direito - 2.4. O impacto docognitivismo e do logicismo sobre a formação dos conceitos clássicosde jurisdição e da função do processo civil- 2.5. A dupla indeterminação do direito e sua projeção sobre a teoria da interpretação e da aplicaçãodo direito.

2.1 O quadroreórico do positivismo clássico de Oitocentos

o

qua~ro teórico do ?ositivismo clássico de Oitocentos, que forneceu os pressupostos geraIS para as teonas de Mortara, Chiovenda, Carnelutti e de Calamandrei spbre o conceito de jurisdição, em qualquer de suas três vertentes mais conhecidas - a ~cole de l'Exégese francesa, a Begrijfsjurisprudenz alemã e a analytical jurisprudence lllg~es.a i - pod~ ser traçado em suas linhas gerais a partir de dez ideias básicas. A uma, o drreIto era VIStodesde uma perspectiva imperativista, isto é, o direito seria basicamente um conjunto de comandos e de vedações. A duas, era visto como um sistema, como algo necessariamente dotado de plenitude, isto é, um todo ordenado, completo e coerente. A três, era visto como uma ciência, nos mesmos moldes das ciências da na~r~za, sendo o discurso jurídico avalorativo. A quatro, era encarado como algo artificzal, vale dizer, tão somente como um produto da convivência social. A cinco, como um sistema artificial de imperativos cuja eficácia depende invariavelmente do uso . apenas aq uil o que po d e ser sancionado coercitivamente. A . da. f;orça, sen d o d'Irelto seiS,dIante do seu caráter necessariamente sancionatório, o direito era visto como algo sempre ligado ao Estado - estatalismo jurídico -, na medida em que apenas o Estado d e t'em o monopo 'li o di" o uso egItImo d a rlOrça. A sete, por ser necessariamente

-------------1

Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 415-421.



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A JURISDIÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

de origem estatal, o direito sempre deveria ser veiculado pela legislação, sendo a lei a fonte exclusiva ou ao menos preponderante de todas as manifestações do direito. A oito, sendo o direito artificial e estando a sua validade ligada tão somente à sua origem e àforma com que exteriorizado - formalismo jurídico -, esse teria uma moralidade contingente, não sendo a assunção de determinada moral condição de validade do discurso jurídico. A nove, pressupondo-se a norma como algo pré-existente à atividade interpretativa do juiz, o positivismo clássico enxergava na interpretação uma atividade puramente cognitiva, cujo objetivo estava em declarar o correto significado da norma. A dez, por fim, o positivismo clássico pressupunha que a ligação entre a norma e o caso concreto ocorreria mediante umjuízo puramente lógico dedutivo, em que figuraria como premissa maior a norma, premissa menor o caso e como conclusão a solução jurídica verdadeira para a causa.2 Imperativismo, sistematicidade, avaloratividade, artificialidade, coatividade, estatalismo,legalismo,formalismo, cognitivismo e logicisimo são termos comumente associados ao pensamento jurídico oitocentista.3Todos estavam presentes no caldo de cultura em que imersos Mortara, Chiovenda, Carnelutti e Calamandrei. No entanto, ganharam especial relevo para a formação dos seus respectivos conceitos de jurisdição - e para todas as questões daí decorrentes - basicamente duas características: o cognitivismo interpretativo e o logicismo aplicativo.

2.2 A doutrina do cognitivismointerpretativo Tanto a doutrina da jurisdição como declaração da vontade concr.eta da lei quanto aquela da justa composição da lide partem do pressuposto de que a norma jurídica é algo totalmente anterior à atividade de interpretação. Vale dizer: partem do pressuposto de que o legislador outorga não só o texto, mas também a norma ao legislar. A interpretação constituiria, portanto, uma atividade que visaria simplesmente a conhecero significado intrínseco do texto legal, declarando-o para solução de determinado caso. Na perspectiva cognitivista, a interpretação consubstancia-se em um ato de puro conhecimento. A interpretação teria como resultado a declaração da única, exata, objetiva e correta interpretação da lei.4 Como observa a doutrina, as teses centrais da teoria cognitivista podem ser assim resumidas: (i) toda norma tem um significado intrínseco, implícito, mas objetivamente dado; (ii) a atividade do intérprete consiste

2 Tudo conforme Pierluigi Chiassoni, L1ndirizzo analitico nella filosofia dei diritto, p. 116-117. Ainda, Norberto Bobbio,I1 positivismo giuridico, p. 129-132. 3 Nada obstante, é claro, muitos desses traços tenham sido herdados da cultura jurídica setecentista do jusnaturalismo racionalista, conforme Giovanni T arelIo, Storia della culturagiuridica moderna, p. 97 e seguintes; Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichte der Neuzeit, p. 249 e ss. 4 Riccardo Guastini,Interpretare eargomentare, p.409-410; Pierluigi Chiassoni, Tecnica deltinterpretazione giuridica, p. 143.

.

..1

DO MITO DO COGNITIVISMO

INTERPRETATIVO

E DO LOGICISMO

I 49

em individualizar e tornar explícito esse significado; (iii) eventual problema interpretativO, ou a existência de .m~is .de u~ si~nificado atri?uí~el ~o mesmo enunciado normativO, resolve-se pela zndzvzduahzaçao do verdadeIro sIgnificado e descarte dos demais significados, que por consequência são falsos; (iv) o método interpretativo é lógico-dedutivo e exclui qualquer valoração e escol~ad!scricio~ária,dc: inté:p~ete; e (v) ojuiz interpreta a norma a fim de declarar o seu slgmficado lmphclto objetivamente existente, sem em nenhum momento realizar qualquer escolha valorativa, aplicando dedutivamente a norma ao fato.5

2.3 A doutrina do logicismo na aplicação do direito Para a declaração da vontade concreta dalei ou para ajusta composição da lide, a intepretação da norma seria apenas um dos atos necessários. O outro estaria no estabelecimento de uma necessária conexão entre a norma devidamente interpretada . e o caso concreto mediante o qual a vontade concreta da lei deveria ser atuada ou em que se concretizaria a lide que deveria ser justamente composta. No contexto teórico do positivismo clássico, imaginava-se que essa conexão ocorreria mediante a simples utilização da lógica - especialmente, da-!ó;;icadedutiva. Supunha-se que a lógica dedutiva seria suficiente para ligar a norma ao' fato para daí se retirar uma decisão. Depois de interpretada a norma, essa deveria ser aplicada ao casoconcreto mediante um silogismojudiciário, em que figurava como premissa maior a norma, premissa menor o fato e como conclusão a decisão da causa.6

2.4 O impacto do cognitivismo e do logicismo sobre a formação dos

conceitos de jurisdição e da função do processo civil

o

cognitivismo interpretativo e o logicismo na aplicação do direito fizeram com que ajurisdição fosse compreendida como a declaração de uma norma pré-existente em que não comparece qualquer juízo decisório. A jurisdição estaria pronta a desempenhar uma atividade de simples conhecimento de uma norma pré-existente cujo objetivo estaria na declaração de um resultado verdadeiro, declarando-se o significado i.ntrínseco e correto da norma para o caso concreto sem a intervenção de qualquer Juízo valorativo e decisório por parte do juiz. . Essas duas doutrinas partiram do pressuposto, portanto, de que o resultado da Jurisdição é sempre apenas a declaraçãoda legislação.Exatamente por essa razão o seu modelode direito é um modelo de legislaçãosemjurisdição. Essa concepção teve inúmeras

5 Miche1e Taruffo, ''La Corte di Cassazione e la Legge'; Il VerticeAmbiguo - Saggi sulla CassazioneCivil e, p. 75. • • 6. Mich~l~ Taruffo,La motivazione della sentenza civile, p.149-151; Pierluigi Chiassoni, L Indmzzo analttzco nellafilosofia dei diritto, p.116-117.

50

I AJURlSmçÃo

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

consequências para a estruturação do processo civil. 7 A que mais interessa agora é a de que sendo a jurisdição meramente declaratória, suas decisõesjamais poderiam interessar em termos depositivação jurídica, isto é, em termos de acréscimo de dados normativos novos para osistema jurídico. Vale dizer: ajurisdição e o processo civil teriam apenas por função resolver casos concretos mediante a declaração da norma incidente e aplicáveL Isto quer dizer que não teriam qualquer função em relação à ordem jurídica em geral.

2.5 A dupla indeterminação do direito e sua projeção sobre a teoria da interpretação e da aplicação do direito

o

problema é que o cognitivismo interpretativo e o logicisismo aplicativo revelaram-se teorias equivocadas. As normas não preexistem ao ato de interpretação, com o que a atividade interpretativa não é puramente cognitiva. E também o seu resultado não é sempre unívoco, admitindo-se invariavelmente uma pluralidade de alternativas igualmente racionais como resultado da interpretação. Texto e norma não se confundem.8 O ato de aplicação do direito igualmente não se reduz à lógica dedutiva. Tudo isso remete as teorias da declaração da vontade concreta da lei e da justa composição da lide às páginas dos livros de história da cultura processuaLcivil moderna. Daí que qualquer tentativa de invocação de semelhantes teorias no contexto atual só pode servista como um despropositado exercício de mistificação e de encobrimento daquilo que efetivamente a jurisdição faz no Estado Constitucional. A atividade de interpretação não é descritiva de uma norma pré-existente. Por seu intermédio não é possível obter sempre uma única resposta correta para os problemas interpretativos.9 A interpretação é adscritiva de sentido a textos e a elementos não textuais da ordem jurídica - essa outorga sentido. O seu objeto, portanto, não é a norma. O seu objeto é o texto, o dispositivo constitucional ou legal, ou elementos não textuais presentes na ordem jurídica, como os usos e costumes. Interpretar significa adscrever sentido a um texto ou a elementos não textuais da ordem jurídica, o que implica necessariamente o reconhecimento de sentidos mínimos com que as palavras são utilizadas, a valoração das razões que militam a favor e contra a adoção de determinados sentidos e a efetiva decisão entre os significados concorrentes. A norma jurídica é o resultado da interpretação, não o seu objeto. Isso quer dizer que o empreendimento

Ovídio Baptista da Silva,jurisdição e execução na tradição romano-canônica;processo e ideologia - O paradigma racionalista; Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória;precedent:s obrigatórios; O ST] enquanto Corte de precedentes; Sergio Cruz Arenhart, Perfis da tutela inibitórta coletiva; Daniel Mitidiero, Cortes Superiores e Cortes Supremas. Giovanni T arello, L 'Interpretazione della legge, p. 9-10; Riccardo Guastini,Interpretare p. 8-9; Pierluigi Chiassoni, Tecnica deltinterpretazione giuridica, p.142. 9 Aulis Aarnio, The rational as reasonable, p.158-165; Aleksander Peczenik, On lawand reason, p. 305-307; contra, Ronald Dworkin, Takingrights seriously, p. 81 e seguintes;Law's empire, p.225 e seguintes. 8

e argomentare,

DO MITO DO COGNITIVISMO INTERPRETATIVO E DO LOGICISMO

I 51

ativo é um empreendimento interpretativo que depende de reconstrução de ~orI?ficados a partir do trabalho do legislador, do juiz e da doutrina. lO

Slgnt

A aplicação do direito não se confunde com a sua interpretação. Obviamente todo ato de aplicação do direito pressupõe a sua interpretação. A constância do q::interpretativo é um dado firme da teoria do direito de novecentos. 11 Isso não quer ~izer, contud~, que to?a interpret~ç~o t~n~a fin: a ~p~c~ção do direito: A?~car o direito sigmfica retzrar consequenczas Jurúlzcas da lnCldenCla de normas Jundlcas em uma determinada situação jurídica - vale dizer, retirar consequências práticas no mundo normativo normalmente a partir de um caso concreto. Essa operação envolve certamente a lógica dedutiva, isto é, o emprego de um silogismo judiciário, mas não só. Para além a lógica dedutiva, é comum a utilização da lógica indutiva e abdutiva no raciocínio judiciário, especialmente na formação do convencimento judicial a respeito dos fatos alegados em juízo. As normas são ainda vagas, no sentido de que seu alcance é incerto. Para sua aplicação, é necessário proceder de forma analógica, comparando-se semelhanças e diferenças, procedimento que certamente não pode ser enquadrado como um caso de aplicação de lógica dedutiva. Texto e norma p.ão se confundem basicamente porque o direito sofre de uma dupla indeterminação. E essa dupla indeterminação que faz com que interpretar o direito constitua uma empresa lógico-argumentativa. De um lado, os textos em que vazados os dispositivos são equívocos. De outro, as normas são vagas. Equivocidade e vagueza sãoelementos de indeterminação do significado dos textos e do alcance das normas.

por

Os textos são potencialmente equívocos por várias razões. Entre elas, a ambiguidade, a complexidade, a implicabilidade, a superabilidade e a abrangibilidade dos enunciados textuais. Os enunciados são ambíguos, porque apresentam duas ou mais opçõesde significado. São complexos, porque podem exprimir duas ou mais normas ao mesmo tempo. Por vezes, pode existir dúvida a respeito da existência de um nexo de implicação entre os enunciados, da superabilidade ou não do enunciado - isto é, se ele está sujeito ou não a exceções implícitas - e da abrangência da disposição - se taxativa ou meramente exemplificativa.12 Em todos esses casos há equivocidade do texto, sendo necessário individualizar, valorar e escolher entre duas ou mais opções de significado a fim de obter-se uma norma.13 Entretanto, essa potencial equivocidade dos textos não é algo eliminável simplesmente pelo apuramento linguístico na sua redação. Na verdade, a equivocidade não é propriamente um defeito objetivo do texto, mas uma decorrência de diferentes

Humberto Ávila, Teoria dosprincípios,p. 51-55. Daí a razão pela qual se pode afirmar que o direito atualmente é "considerado como ~maatividade dependente do processo de interpretação e aplicação" (Humberto Ávila, Segurança Jurídica, p. 137). 10

11

Riccardo Guastini,Interpretare Riccardo Guastini, Interpretare dell"interpretazione giuridica, p. 144-145. 12

13

e argomentare, e argomentare,

p. 39-46. p. 27-29; Pierluigi Chiassoni, Tecnica

52

I

AJURISDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

interesses e concepções a respeito dajustiça dos intérpretes e da multiplicidade de concepções dogmáticas e métodos interpretativos por eles utilizados que interferem na atividade de individualização, valoração e escolha de significados. A interpretação varia de aCOrdo com a posição assumida pelo intérprete na sociedade ou diante de determinado conflito (diferentes interesses), com as suas inclinações ético-políticas (concepções de justiça), com os conceitos jurídicos de que se vale (concepções dogmáticas) e com os argumentos interpretativos eleitos (métodos interpretativos).14 A norma é resultado de um processo que visa a reduzir a equivocidade do texto e concentrar o seu significado. Daí a razão pela qual texto e norma não se confundem e nem há entre os mesmos uma correspondência biunívoca.15 As normas são vagas, na medida em que não é possível antecipar exatamente quais são os casos que entram no seu âmbito de aplicação.16 A vagueza compromete o alcance das normas, dada a sua textura aberta (open texture) .17Para redução da vagueza, é necessário proceder analogicamente, comparando-se semelhanças e diferenças a fim de que a área de penumbra normativa seja reduzida. 18Logo, mesmo depois de interpretada a norma ainda pode ser considerada vaga, de modo que se mostra necessária a atuação do intérprete também no momento da sua aplicação para a redução da indeterminação normativa e precisão de seu alcance. Se tudo isso é verdade, então é impossível sustentar que a jurisdição, quando resolve situações jurídicas, apenas declara uma norma preexistente a fim de revelar o seu significado intrínseco (cognitivismo interpretativo) mediante um juízo puramente silogístico (logicismo aplicativo).Ajurisdição não visa simplesmente à atuação de direitos subjetivos privados, à declaração da vontade concreta da lei ou àjusta composição da lide, como se a interpretação e a aplicação do direito não colaborassem deforma ativa na positivação da ordem jurídica e,portanto, não-importassem como direito vigente. E se tudo isso é verdade, então parece igualmente evidente que a jurisdição também tem um papel de outorga de unidade ao direito, dissipando-se dúvidas interpretativas e desenvolvendo o direito de acordo com as necessidades sociais, não sendo apenas um meio para resolução de casos concretos. Nessa perspectiva, obviamente que os conceitos de jurisdição apegados à tradição oitocentista não têm condições de definir de forma adequada aquilo que a jurisdição faz no Estado Constitucional.

14

Riccardo Guastini, Interpretare e argomentare, p. 46-52; Pierluigi Chiassoni, Tecnica giuridica, p. 144-145. . Riccardo Guastini, Interpretare e argomentare, p. 44; Humberto Ávila, Teoria dosprin-

del/'interpretazione 15

cpios,

p. 50-SI.

Giovanni Tarello, L1nterpretazione della legge, p. 27; Riccardo Guastini, Interpretare e p. 53; Pierluigi Chiassoni, Tecnica deltinterpretazione giuridica, p. 56. 17 Herbert Hart, The concept of law, p. 124 e seguintes. Por comodidade de exposição, não vamos distinguir aqui vagueza potencial (open texture) de vagueza (como faz, por exemplo, Frederick Schauer, Playing by the rules, p. 35-36), na medida em que essa distinção aqui não tem qualquer relevância. 18 Riccardo Guastini,Interpretare e argomentare, p. 56-57. 16

argomentare,

3 A transformação do princípio da legalidade: da legalidade formal pelas regras à legalidade substancial pelas normas SUMÁRIO:3.1 A dissolução da lei genérica, abstrata e fruto coerente da vontade homogênea do parlamento - 3.2 A nova concepção do direito e a transformação do princípio da legalidade - 3.3 Compreensão, crítica e conformação da lei - 3.4 Da legalidade formal pelas regras à legalidade substancial pelas normas: a nova concepção das normas - 3.5 O problema da compreensão do direito por meio dos princípios - 3.6 Princípios constitucionais,jusnaturalismo e positivismo crítico3.7 Princípios constitucionais e pluralismo.

3.1 A dissolução dalei genérica, abstrata e fruto coerente da vontade homogênea do parlamento . A ideia de lei genérica e abstrata, fundada pelo Estado legislativo, supunha uma SOCIedadehom?gênea, composta por "homens livres e iguais" e dotados das mesmas necessidade~. E claro ~ue ess~ pretensão foi rapidamente negada pela dimensão c?ncreta da VIda em socledade,mexoravelmente formada por pessoas e classes sociais dIferentes e com necessidades e aspirações completamente distintas. " . A lei genérica ~u universal, assim como a sua abstração ou eficácia temporal ili~l:ada, somente sena~ possíveis em uma sociedade formada por iguais - o que é ut?~ICO:-,ou :m uma sOCledade em que o Estado ignorasse as desigualdades sociais para pr1VllegJara liberdade, baseando-se na premissa de que essa somente seria garantida seos ho:nens fossem tratados de maneira formalmente igual, independentemente das suasd:slgual~ades concretas: Lembre-se de que, para acabar com os privilégios, típicos do antIgo regIme, o Estado liberal resolveu tratar todos de forma igual perante a lei. Esse úl?mo é o verdadeiro fundamento da lei genérica e abstrata, I que, por suavez, tambem teve repercussão sobre a função da jurisdição. Ora, se a lei não podia

I 1 Ver Carl Sc~mitt, Teoría de la Constitución, p.162: "La igualdad ante la Ley es inmanente a concepto de Ley proplO dei Estado de Derecho, es decir, Ley es sólo la que contiene en sí misma la

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I

A]URlSDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

r

considerar determinados bens ou posições sociais, é claro que o juiz estava proibido de interpretar os textos legais considerando as diferenças entre as pessoas. Porém, a neutralidade ou a falta de conteúdo da lei e da jurisdição - ou, enfim, do próprio Estado legislativo - rapidamente fez perceber que a igualdade social constituía requisito para a efetivação da própria liberdade, ou melhor, para o desenvolvimento da sociedade. Concluiu -se, em síntese, que a liberdade somente poderia ser usufruída por aquele que tivesse o mínimo de condições materiais para ter uma vida digna.2 Surge, então, o Estado preocupado com as questões sociais que impediam a "justa" inserção do cidadão na comunidade. Com ele explodem grupos orientados à proteção de setores determinados, que nessa linha passam a fazer pressão sobre o legislativo, visando à elaboração de leis diferenciadas. Tais grupos de pressão - sindicatos, associações de profissionais liberais, associações de empresários etc. - não apenas dão origem a leis destinadas a regular as suas próprias áreas de interesse, mas também passam a medir forças em torno de leis que são, por exemplo, do interesse comum de sindicatos de trabalhadores e empresário. Lembre-se de que à época do Estado liberal a lei era considerada fruto da vontade de um parlamento habitado apenas por representantesua burguesia, no qual não havia confronto ideológico. Após essa fase, as casas legislativas deixam de ser o lugar da uniformidade, tornando-se o local da divergência, em que diferentes ideias acerca do papel do direito e do Estado passam ase confrontar. Aí, evidentemente, não há mais uma vontade geral, podendo-se falar em uma "vontade política", ou melhor, na vontade do grupo mais forte dentro do parlamento. Atualmente, porém, essa vontade política pode se confundir com a vontade dos lobbies e dos grupos de pressão que atuam nos bastidores do parlamento.3

posibilidad de una igualdad, siendo, así, una norma general. Ante un mandata particular no hay igualdad ninguna, porque está determinado en su contenido por la situación individual del caso concreto. (... ) Dondequiera que se adoptan mandatos especiales o simples medidas, se excluye con eso la consideración de leye de igualdad. La disposición: El serror X será expulsado del país, no es cosa en que pueda hablarse de 'igualdad'; sólo afecta a una persona individual, a un hecho aislado, y se agota en ese mandato. (... ) Ni el sefior X, a quien afecta el mandato, ni cualesquiera otras personas no afectadas por él, pueden ser designadas en este caso como 'iguales'. La igualdad sólo cabe allí donde, al menos, puede quedar afectada una mayoría de casos, esto es, se produce una regulación general" (grifo no original). 2 Ver Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal daAlemanha, p.176; RobertAlexy, Teoría de losderechosjimdamentales, p. 486; Laurence H.Tribe,The Abortion Funding Conundrum; inalienable rights, affirmative duties and the dilemma of dependence. HarvardLaw Review, v. 99,p. 330; Jeremy Waldron, Liberalrights, p. 5-10. 3 Ver Cass Sunstein, Interest groups in American public law. Stanford Law Review, v. 38, p. 72; Arlo Chase, Note. Maintaining procedural protections forwelfare recipients. Defining property for the due process clause. New York University Review of Law & Social Change, v.23; Colin S. Diver, The judge as political powerbroker: superintending structural change in public institutions, Virginia Law Review, v. 65, p. 79.

J

r-

A TRANSFORMAÇÃO

DO PRlNCÍPIO

DA LEGALIDADE

I 55

I

I A falta de conhecimento do direito, e até mesmo a tentativa de desprezo de direitos básicos e indisponíveis, por parte dos grupos de pressão, gera a cada dia leis mais complexas e obtusas, fruto de ajustes e compromissos entre os poderes sociais em disputa. É evidente que, diante disso, as características da impessoalidade e da coerência da lei - sonhadas pelo positivismo clássico - deixam de existir. A vontade legislativa passa a ser a vontade dos ajustes do legislativo, determinada pelas forças de pressão. A respeito, afirma-se que a maioria legislativa é substituída, cada vez com mais frequência, por variáveis coalizões legislativas de interesses.4 Contudo, não foi apenas a perspectiva interna da lei que mudou, deixando de ser o resultado de uma vontade homogênea e coerente para ser o resultado da participação e da pressão dos vários grupos sociais, mas também a própria noção de que o direito tem origem no Estado.5 Isso aconteceu não apenas porque o Estado renegou determinados setores da sociedade, abrindo margem para o surgimento de "ordenamentos privados" completamente destoantes dos fundamentos do direito estatal, como ocorreu nas chamadas associações de bairro das favelas do Rio deJaneiro.6 Na realidade, ao se dizer que o direito não tem mais origem apenas no Estado, alude-se aos locais que o próprio Estado deixou abertos a uma regulação específica pelas associações e pelos sindicatos. Perceba-se que, quando se afirma que alei é fruto do pluralismo das forças sociaise,muitas vezes, da coalizão dessas forças, não se nega que a sua fonte de produção

Gustavo Zagrebelsky, El derechodúctil, cit., p. 38. '~emergência da conflitividade social e o caráter da não neutralidade do direito assim como a i~pugnação da s~paração entre direito, sociedade e mercado, os quais desencadeia~, por consegumte, a problematlzação da questão inerente à legitimação social e moral do próprio fenômenojurídico, 'determinarão a superação das imagens da homogeneidade da sociedade liberal e aperda da posição central da lei, como forma jurídica e fonte do direito, que vinha ocupando no Estado legislativo'. Com efeito, a dissolução da imagem homogênea.do jurídico será a consequência das tensões a que se vê submetido o ordenamento jurídico dadas a multiplicidade e heterogeneidade das p:et:nsões sociais 9ue se dirigem ao mesmo. Deste modo, as tensões desagregadoras que ~fetamo direlto no Estado liberal se expressarão, pelo menos, em duas vertentes: desde um prisma mt~rno de perspectiva a partir da ruptura da própria concepção da lei, que de uma representação U?lvocade um conjunto de interesses abstrata e homogeneamente concebidos desloca-se em direção a um ato perrneado de interesses que estão em permanente conflituosidade e, no que co~cerne a uma vertente de caráter externo, o processo de normatividade da lei vincular-se-á não malSaos caracteres de uma codificação idealizada que pudesse abranger todas as preferências de umasociedade cada v~z mais plural, mas será concebido paralelamente aos processos autônomos de regulação social" (E cio Oto Ramos Duarte, Teoria do discursoe correrãonormativa do direito p 46). y, • 4

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batidos.

Esses ordenamentos,

como é óbvio, não são admitidos pelo Estado, devendo ser com-

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AJURlSDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

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seja o Estado, mas, quando se desloca a perspectiva do pluralismo deformação da lei para o pluralismo defonte, evidencia-se que o direito não tem mais apenas origem no poder estatal. Com isso se enterra outra marca do positivismo clássico, que via o direito na lei editada pelo Estado.7

3.2 A nova concepção do direito e a transformação do princípio da legalidade Diante do atual contexto de formação da lei e das novas fontes de produção do direito, não há mais como pensar em norma geral, abstrata, coerente e fruto da vontade homogênea do parlamento.8 Por consequência, o princípio da legalidade obviamente não pode mais ser visto como à época do positivismo clássico. Recorde-se que o princípio da legalidade, no Estado legislativo, implicou redução do direito à lei, cuja legitimidade dependia apenas da autoridade que a emanava (formalismo, estatalismo e legalismo jurídicos). Atualmente, como se reconhece que a lei é o resultado da coalizão das forças dos vários grupos sociais, e que por isso frequentemente adquire contornos não só nebulosos, mas também egoísticos,-torna-se evidente a necessidade de submeter a produção normativa a um controle que tome em consideração os princípios de justiça.9 Na verdade, ainda que não houvesse a consciência de pluralismo, somente com uma ausência muito grande de percepção crítica se poderia chegar à conclusão de que a lei não precisa ser controlada; por ser uma espécie de fruto dos bons, que se coloca

7 Considerando tudo isso,Zagrebe1skyafirma que não é possívelentender que asleise as outras fontes,tomadas em seu conjunto, constituam um ordenamento nos moldes daqueleque era pretendido pelo Estado legislativo,advertindo que a criseda ideia de Código é a manifestação mais clara dessa mudança (Gustavo Zagrebelsky,EI derechodúctil, cit.,p. 39). 8 Como diz Natalino Irti, "asleis especiaisagora estão no centro da experiênciajurídica contemporânea. As definições,enunsiadas pela doutrina do séculoXIX e das primeiras décadas do nosso,tornaram-se insuficientes.E necessário revisar as teorias das fontes e redefinir a relação entre Constituição, Código Civil e leis especiais" (Leyes especiales..., cit., p. 93). Ver G. Hermes, Grundrechtschutz durch Privatrecht auf neuer Grundlage? NJW, 1990,p. 1764; C. D. Classen, Gesetzesvorbehalt und Dritte Gewalt.JZ, 2003, p. 693. 9 Há, no entanto, quem discorde de que a atividade legislativase caracteriza comouma negociação entre grupos de interesses sectários e, assim,questione frontalmente a submissão?a lei a princípios dejustiça controlados por órgãos diversosdo legislativo,em especialojudiciárIO. Uma elaboração clássica dessa abordagem deve-se a Learned Hand (lhe Bill oi Rights). Nos escritos recentes , a versão mais forte dessa crítica é formulada por Jeremy Waldron (Lawand . disagreement). Para uma versão moderada, que aceita a existência de controle judici~, m~s~?e que ele sejarealizado de forma humilde e cautelosa,ver Cass Sunstein, One caseat a tlme:judlcla1 minimalism on the Supreme Court.

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A TRANSFORMAÇÃO

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acima do bem e do mal, ou melhor, do Executivo e do Judiciário.1O Ora, a própria história se encarregou de mostrar as arbitrariedades, brutalidades e discriminações procedidas por leis formalmente perfeitas.

portanto, ainda que se ignorasse a ideia de pluralismo,jamais se poderia concluir que o texto da lei é perfeito, e assim deve ser simplesmente proclamado pelo juiz, apenas por ser o resultado de um procedimento legislativo regular. De modo que se tomOUnecessário resgatar a substância da lei e, mais do que isso, encontrar os instrumentos capazes de permitir a sua limitação e conformação aos princípios de justiça. Tal substância e esses princípios tinham que ser colocados em uma posição superior e, assim, foram infiltrados nas Constituições. Essas Constituições, para poderem controlar a lei, deixaram de ter resquícios de flexibilidade - tornando-se "rígidas",no sentido de escritas e não passíveis de modificação pela legislação ordinária - e passaram a ser vistas como dotadas de plena eficácia normativa. A lei, dessa forma, perde o seuposto de supremacia, e agora se subordina à Constituição.ll Ao se dizer que alei encontra limite e contorno nos princípios constitucionais, admite-se que ela deixa de ter apenas uma legitimação formal, ficando amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituição. A lei não vale mais por si,porém depende da sua adequação aos direitos fundamentais. Se antes era possível dizer que os direitos fundamentais eram circunscritos à lei, torna-se exato afirmar que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais.12 Mas, se essa nova concepção de direito ainda exige que se fale de princípio da legalidade, restou necessário dar-lhe uma nova configuração, compreendendo-se que, se antes esse princípio era visto em uma dimensão formal, agora ele tem conteúdo substancial,pois requer a conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais.

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10 Note-se, porém, que existe uma importante corrente teórica que defende que, se o processolegislativomostra -se viciadopelo particularismo e pelavisãoestreita de seusparticipantes'nãohá razão alguma para crer que outros órgãos estatais, como o judiciário, cujos membros pertencemao mesmo povo que elege e é eleito para ocupar cargos no legislativo,virá a agir de formadiferentedos legisladores.VerMarkTushnet,Dilemmas ofliberal constitutionalism. Ohio StateLawJournal, v.42,p. 411-426; Paul Brest,1he fundamental rights controversy:the essential contradictionsof normative constitutional scholarship. Yale LawJournal, v.90, p. 1063-1109. 11 Ver Pietro Perlingieri, II diritto civile nella legalità costituzionale; Rolf Stürner, Einwirkungen der Verfassung auf das Zivilrecht und den Zivilprozessrecht. NJW, 1979, p. 2336; Peter Hãberle, Leistungsrecht im sozialen Rechtsstaat. Rechi und Staat - Festschrift fur K.Küchenhoff;Ingo Sarlet, Curso de Direito Constitucional, p. 169 e ss.,com Luiz Guilherme Marinonie Daniel Mitidiero. 12 Robert Alexy,Los derechos fundamentales en e1estado constitucional democrático. ~osfundamentos de los derechosjimdamentales, p. 34; U. Scheuner, Die Funktion der Grudrechte 1m Sozialstaat.Die Grundrechte als Richtlinie und Rahmen der Staatstãtigkeit. DO V, 1971,p. 505; Ingo Sarlet,A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 25 e ss.;Ingo Sarlet, Curso de direito constitucional,p.261 e ss.,com Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero.

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A JURISDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

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Por isso não há mais qualquer legitimidade na velha ideia de jurisdição voltada à atuação da lei; não é possível esquecer que o Judiciário deve compreendê-la e interpretá-la a partir dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais. A transformação do princípio da legalidade levou Ferrajoli a aludir a umasegun_ da revolução, contraposta exatamente àquela que foi criada com a aparição do antigo princípio da legalidade - que já havia provocado, com a afirmação da onipotência do legislador, uma alteração de paradigma em relação ao direito anterior ao do E~tado legislativo. Essa segunda revolução também implicou uma nova quebra de paradzgma, substituindo o velho princípio da legalidade formal pelo princípio da estrita legalidade ou da legalidade substancial. 13 Diante disso, alguém poderia pensar que o princípio da legalidade simplesmente sofreu um desenvolvimento, já que a subordinação à lei passou a significar subordinação à Constituição, ou melhor, que a subordinação do Estado à lei foi levada a uma última consequência, consistente na subordinação da própria legislação à Constituição, que nada mais seria do que a "lei maior". Contudo, essa leitura constitui um reducionismo do significado da subordinação da lei à Constituição ou uma incompreensão das tensões que conduziram à transformação da própria noção de direito. Na verdade, a subordinação da lei à Constituição não pode ser compreendida como uma mera "continuação" dos princípios do Estado legislativo, 14pois significa uma "transformação" que afeta as próprias concepções de direito e dejurisdição.

3.3 Compreensão, crítica e conformação da lei Se a lei passa a se subordinar aos princípios constitucionais de justiça e aos direitos fundamentais, a tarefa da doutrina deixa de ser a de simplesmente descrever a lei. Cabe agora ao jurista, seja qual for a área da sua especialidade, em primeiroJugar compreender a lei à luz da Constituição, em especial dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais. Essa compreensão crítica já é uma tarefa de concretização, pois a lei nã~ é m~s objeto,15 porém componente que vai levar à construção de uma nova norma, VIsta~ao como texto legal, mas sim como o significado da sua interpretação e, nesse sentIdo, como um novo ou outro objeto. A obrigação do jurista não é mais apenas a de revelar as palavras da lei, mas a de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e aos

13 14 15

Luigi Ferrajoli, Derechos jimdamentales, cit., p. 53. Gustavo Zagrebelsky,EI derecho dúctil, cit., p. 34. Luigi Ferrajoli,Pasado y futuro...,cit., p. 18.

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direitoS fundamentais. Aliás, quando essa correção ou adequação não for possível, só lhe restará demonstrar a inconstitucionalidade da lei - ou, de forma figurativa, comparando-se a sua atividade com a de um fotógrafo, descartar a película por ser impossível encontrar uma imagem compatível. Não há como negar, hoje, a eficácia normativa ou a normatividade dos princípios de justiça. Atualmente, esses princípios e os direitos fundamentais têm qualidade de normas jurídicas e, assim, estão muito longe de significar simples valores. Aliás, mesmo os princípios constitucionais não explícitos e os direitos fundamentais não expressos têm plena eficácia jurídica. 16 Tal tomada de consciência é muito importante para se concluir que tais princípios e direitos conferem uma dinâmica unidade e harmonia ao sistema,17 não dando alternativa ao juiz e ao jurista senão colocar a lei na sua perspectiva. Vale dizer que as normas constitucionais são vinculantes da interpretação das leis.18 O Estado Constitucional exige a compreensão crítica da lei em face da Constituição, para ao final fazer surgir uma projeção ou cristalização da norma adequada, que também pode ser entendida como "conformação da lei". Essa transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de reconstrução - e não mais de simples declaração, revelação ou descrição -, confere-lhe maior dignidade e responsabilidade,já que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, ou seja, aos projetos do Estado e às aspirações da sociedade.19 16 VerKomesar,Takinginstitutions seriously:introduction to astrategyfor constitutional analysis.University ojChicago Law Review, v.51; Adler, Rights against rules:the moral structure ofAmericanconstitutionallaw. Michigan Law Review, v. 97, n. L 17 Luís Roberto Barroso,Fundamentos teóricosefilosóficosdo novodireito constitucional brasileiro.A nova interpretação constitucional, p. 29. 18 "Segundo certas doutrinas, as Constituições não são mais que um 'manifesto'político cujaconcretização constitui tarefa exclusiva do legislador: os tribunais não devem aplicar as normasconstitucionais - carentes de qualquer efeito imediato -,mas apenas as normas que são afirmadaspelas leis.Pois bem, um dos elementos do processo de constitucionalização éprecisamente a

difusão, no seio da culturajurídica, - independentemente

ou de seu conteúdo normativo

- é uma norma jurídica

genuína,

(Ricardo Guastini, La "constitucionalización" dd ordenamiento jurídico: el caso italiano. Losfundamentos de los derechos fundamentales, p. 53). . 19 Como diz Ferrajoli, "formamos parte do universo artificial que descrevemos, mas contnbuímospara construí-lo de forma muito mais determinante do que pensamos. Por isso, d~pendetambém da culturajurídica que osdireitos,segundo a belafórmula de Ronald Dworkin, sejamlevadosa sério,já que não são senão significadosnormativos, cuja percepção e aceitação social Como vinculantes é a primeira e indispensável condição de sua efitividade" (Luigi Ferrajoli, Derechos fundamentales, cit., p. 55-56); ver Bhagwat, Hard cases and the (D) Evolution of constitutional doctrine.Connecticut Law Review, v. 30. vinculante e suscetível de produzir

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da ideia oposta, ou seja, da ideia de que toda norma constitucional

de sua estrutura

efiitosjurídicos"

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NO ESTADO CONSTITUCIONAL

3.4 Da legalidade formal pelas regras à legalidade substancial pelas normas: a nova concepção das normas O estatalismo legalista do positivismo clássico do Estado Liberal de Direito expressava -se mediante regras, de modo que norma jurídica era expressão sinônima de regrajurídica. Os princípios não eram tematizados no campo das normas propriamente ditas e eram vistos apenas como fundamentos para as normas. Imaginava-se que a interpretação de uma norma levaria sempre à declaração do seu significado intrínseco e admitiria apenas uma única resposta correta. A teoria do direito de novecentos presenciou uma radical modificação nesse cenário. Ao mesmo tempo em que se passou a dissociar texto e norma, outorgando-se relevo reconstrutivo da ordem jurídica à atividade interpretativa, também se submeteu o legislador à Constituição, especialmente aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais encartados nas constituições do pós-guerra. Vale dizer: se antes o princípio da legalidade impunha-se apenas pela forma de que revestida a legislação, hoje a legislação vale na medida em que substancialmente esteja de acordo com a Constituição e com os direitos fundamentais nela recolhidos. Mas não só. Na cultura jurídica de Oitocentos, seja na tradição romano-canônica (com a École de l'Exégese e com a Begrijfsjurisprudenz), seja na tradição do Common Law (com a analyticaljurisprudence inglesa), imaginava-se que a interpretação das normas admitia tão somente uma única resposta correta. E certo que, ainda em Oitocentos, a França presenciaria o advento da Escola da Libre Recherche Scientijique, a Alemanha a Escola da Freirechtsbewegunge os Estados Unidos a sociologicaljurisprudence,movimentos que tiveram em comum a acentuação da possibilidade de a norma admitir mais de uma interpretação.2o Foi só no século passado, porém, que esse debate realmente ganhou grande impacto e gerou uma nova teorização a respeito da tipologia das normas. De um lado, dentro do campo da cultura germânica, no último capítulo da sua Reine Rechtslehre, Kelsen trata do fenômeno da interpretação e admite claramente que o direito aplicável a determinado caso concreto constitui uma "moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação". 21De outro, dentro do âmbito da cultura inglesa, Herbert Hart, no sétimo capítulo do seu 7he concept of law, sustenta que a open texture de determinadas normas faria com que certos casos não encontrassem uma única resposta correta, sendo oportuna nessas hipóteses uma verdadeira criação judicial do direito por parte do juizY 20 Sobre a Libre Recherche e a Freirechtsbewegung, Karl Larenz,Metodologia da ciênciado direito, p. 77-83; sobre a sociologicaljurisprudence, Guido Fassõ, Storia della Filosofia dei Diritto, p. 258-261; Oliver Wendell Holmes, "Ibe Path ofthe Law'; Harvard Law Review, n. 10. 21 Teoria pura do direito (2. ed., 1960), trad. João Baptista Machado, 8. ed. São Paul0: Martins Fontes, 2012, p. 390- 391. 22 Ibe ConceptofLaw (1961), 3. ed. Oxford: Oxford University Press,2012, p.124 e ss.

A TRANSFORMAÇÃO

DO PRlNCÍPIO

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É exatamente a partir desse momento que os princípios jurídicos reivindicam um papel normativo e ingressam na pauta do debate jurídico: em uma primeira frente, no âmbito da teoria do direito, com a publicação de dois trabalhos críticos de Ronald Dworkin ao pensamento de Herbert Hart, em que os princípios aparecem corno meios capazes de iluminar o juiz para obtenção de uma única resposta correta, visando-se à redução dos espaços de discricionariedade judicial;23 em uma segunda frente, no campo do direito constitucional, com a publicação de dois trabalhos de Robert Alexy em que se delineia o conceito e sustenta -se a natureza principiológica dos direitos fundamentais.24 A literatura acumulada sobre o assunto é imensa, inclusive na doutrina brasileira.25 No entanto, independentemente do contexto em que apareceram e do propósito que então perseguiam, é certo que o debate contemporâneo da teoria do direito e do direito constitucionale, portanto, também do processo civil- inquestionavelmente inclui a análise do conceito, da função e da eficácia dos princípios jurídicos. N averdade, por força da inclusão dos princípios jurídicos como espécies normativasao lado das regras, a teoria das normas acabou experimentando um interessante refinamento e um amplo desenvolvimento para bem além da dicotomia princípios e regras. Dominar essa nova tipologia das normas é de fundamental importância para a compreensão do modo pelo qual se tem de trabalhar com o direito no Estado Constitucional, inclusive para adequada interpretação e aplicação do princípio da legalidade, na medida em que sem uma apropriada compreensão a propósito do conceito,da função e da eficácia das normas e de como devem ser interpretados os textos apromoção do império do direito converte-se em uma desastrada e enganosa ilusão. As normas podem ser separadas em dois grandes grupos: normas deprimeiro grau, que têm por objeto o comportamento humano, e normas de segundo grau, que têm por objeto outras normas. No primeiro grupo alocam-se os princípios, as regras e os 50breprincípios.No segundo, os postulados normativos hermenêuticos e aplicativos. 26 . As normas de primeiro grau são normas que incidem e devem ser aplicadas dIretamente sobre o comportamento humano. São normas de primeiro grau aquelas que preveem imediatamente um estado ideal de coisasque deve ser promovido, isto é, ~mafnalidade (princípios) ,imediatamente um comportamento que deve ser observado, Istoe,prescrevem uma conduta (regras) ,e que atuam outorgando valores e influenciando

23 Ronald Dworkin, "Ibe Model ofRules", University ofChicago Law Review, 1967. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, 1977. Sobre o assunto, ainda Cláudio Michelon' Pri~cípios e coerência na argumentação jurídica, Direito e interpretação -'Racionalidades e ins~ ItlUlções, p. 261 e ss. • 24 Robert Alexy, "Zum Begrijf des Rechtsprinzips'; Argumentation und Hermeneutik in der JUrtsprude~z,Rec~tstheor~e,.1979; Robert Alexy, 7heorie der Grundrechte, 1986 (há tradução para oportugues, Teorza dos dtrettosfimdamentais, trad. Virgílio Afonso da Silva,2008). 25 Com amplas referências bibliográficas, por todos,Humberto Ávila, Teoria dosprincípios. 26 Partimos aqui da conhecida proposta de Humberto Ávila, Teoria dosprincípios.

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AJURlSDIÇÃO

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o significado dos princípios e das regas (sobreprincípios). São normas de segundo grau aquelas que jitndamentam e estruturam a aplicação de outras normas - por essa razão, também são chamadas de metanormas,já que se situam em um plano acima ao de outras normas. Essas normas podem servir para jitndamentar a aplicação de determinada alternativa de aplicação normativa em detrimento de outra (postulados hermenêuticos, como o postulado da unidade do ordenamento jurídico, dentro do qual se insere o postulado da coerência) e podem servir para estruturar a aplicaçãode outras normas diante de antinomias contingentes, concretas e exteriores (postulados da ponderação, da concordância prática, da proibição de excesso, da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade).27

3.5 O problema da compreensão do direito por meio dos princípios É claro que a compreensão do direito também por meio dos princípios, como proposta no item anterior, implica ruptura com o positivismo do Estado liberal, que se expressava tão somente a partir de um direito constituído por regras.28 N a linha do positivismo clássico, o juiz, ao aplicar a norma, deveria -apenas revelar o seu próprio texto, não determinando nem mais nem menos em relação àquilo comandado de forma precisa pela regra jurídica. A ideologia da aplicação ou a declaração da regra que prescrevia exatamente aquilo que deveria serfeito ou não, própria da jurisdição daquela época, é refratária àpromoção gradual de determinado estado de coisas que caracteriza a metodologia dos princípios, o que obviamente reconhece maiores poderes à jurisdição.

O positivismo clássico, temendo que os princípios pudessem provocar uma profunda imprevisibilidade em relação às decisões judiciais - o que também acarretaria incerteza quanto ao significado do direito -, concluiu que a atividade com os princípios deveria ser reservada a um órgão político,já que não se amoldava com a função que era esperada do juiz, isto é, com a simples aplicação do ditado da regra produzida e acabada pelo legislativo. Porém, as Constituições que seguiram a Segunda Guerra Mundial instituíram uma série de princípios materiais de justiça. Tais princípios logo foram atacados sob o argumento de que, por muitas vezes expressarem aspirações éticas e políticas mediante fórmulas não precisas,29 constituíam normas incompatíveis com segurança do Humberto Ávila, Teoria dos princípios, p. 102-109 e 163-165. Ver Antonin Scalia,1he role of law as a law of roles. lhe University ojChicago Law Review, v.56, p.1175; Kathleen M. Sullivan,1he Supreme Court, 1991 Term - Foreword:The justices of rules and standards, cit.,p. 22. 29 Sobre a legitimidade dos princípios constitucionais,ver Ana Paula Costa Barbosa,A 27

28

legitimação

dos princípios

constitucionais fimdamentais.

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DA LEGALIDADE

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direito, especialmente com a necessidade de certeza jurídica. 30Nessa mesma linha, houve também quem atribuísse aos princípios um significado meramente político, dizendo que esses somente poderiam se expressar como direito por meio das leis .

.



infraconst1tuClOnars.

31

No entanto, o Estado contemporâneo, caracterizado pela força normativa da Constituição,32 obviamente não dispensa a conformação de toda a legislação infraconstitucional à Constituição, especialmente aos princípios constitucionais, e sabe ue isso apenas pode ser feito com o auxílio da jurisdição. 33Não há qualquer dúvida, ~oje,de que toda norma constitucional, independentemente do seu conteúdo ou da forma da sua vazão, produz efeitos jurídicos imediatos e condiciona o "modo de ser" das demais normas do ordenamento jurídico. 34 30

No quadrantejurídico norte-americano esseé o pano de fundo dos debates entre origi-

nalistas, aquelesque acreditam que o texto constitucional deveserinterpretado em conformidade como sentido de suas palavras ao tempo em que foram editadas, e não originalistas, para quem

aconstituiçãodeve ser lida segundo o melhor sentido que possa ser dado às suas disposiçõesna atualidade(verl\1ichael Perry,1he legitimacy of particular conceptions of constitutional interpretation.Virginia Law Review, v. 77, p. 669-719); e entre interpretativistas, que defendem que asdúvidasinterpretativas sobre a Constituição devem ser solucionadasapenas dentro dos quatro cantosdo texto constitucional, e não interpretativistas, que afirmam que só é possível definir o sentidocontrovertido das cláusulasabertas da Constituição com amparo em princípios evalores quetranscendemo próprio texto (verJohn Hart Ely,Democracyand distrust, p.l). 31 Gustavo Zagrebelsky,EI derecho dúctil, cit.,p.119. Esse foi um debate particularmente importantena Itália, onde a obra fundamental no sentido da superaçãoda ideia do caráter exclusivamentepolítico dos princípios constitucionais deveu-se aVezioCrizafulli (La costituzione e le suedisposizioni di principio).

VerKonrad Hesse,A.força normativa da Constituição. Prova disso é que a maioria das experiências constitucionais posteriores à Segunda GrandeGuerra adotaram alguma espéciede sistema de controlejudicial de constitucionalidade dasleis,como ocorreu, imediatamente ao pós-guerra, na República Federal da Alemanha e na Itália.Talsedeu,na década de 1970,na Península Ibérica; na década de 1980,naAmérica Latina; nadécadade 1990,no Leste Europeu e na África do Sul; apenas para citar os países ocidentais. Deve-seressaltar,no entanto, que mesmo no país que tem o mais assentado sistema de controle judicialde constitucionalidade das leis, os Estados Unidos da América, não são desprezíveis asvozescontrárias ao modelo (ver Mark Tushnet, Taking the constitution away from the courts). NoBrasil,em tom crítico ao instituto do controle judicial de constitucionalidade das leis,ver MartonioMont'Alverne Barreto Lima,Jurisdição constitucional:um problema da teoria da democraciapolítica. Teoria da constituição, p.201-254. Sobre o assunto,igualmente, Cláudio Mello, DemocraciaConstitucional e Direitos Fundamentais; Conrado Hübner Mendes, Controle de Constitucionalidadee Democracia; Constitutional Courts and Deliberative Democracy. 34 No Brasil,essaquestãoremete aoconhecidoternadaeficácia,aplicabilidadeeefetividade dasnormasconstitucionais,sobre o qual se destacam as obras deJosé Monso da Silva (AplicabiItdade das normas constitucionais), Luís Roberto Barroso (O direito constitucional e a efttividade de suasnormas) e Ingo Wolfgang Sarlet (A tjicácia dos direitosfimdamentais). Em língua portuguesa, 32

33

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I í

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AJURISDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

3.6 Princípios constitucionais,jusnaturalismo

e positivismo critiCQ

Como os princípios normalmente aludem aos direitos humanos e aos princípios materiais de justiça e, a partir daí, revelam valores que devem conformar a realidade e orientar a compreensão e a aplicação das leis, é possível encontrar no direito através dos princípios algo parecido com o que se propõe no direito natural. Ou para ser mais claro: a relação que o intérprete faz, através da sua argumentação, entre a lei e o direito natural, pode ser comparada com a que se estabelece entre a lei e os princípios.3s Não é errado pensar que as normas constitucionais refletem uma "ordem natural", desde que a essa expressão se atribua o significado de situação histórica e concreta de uma sociedade pluralista e participativa que conduziu a uma "concordância" em um momento de cooperação.36 Mas é evidente que a ideia de direito por princípios não tem nada a ver com o direito natural nos moldes em que ele é tradicionalmente concebido. 37 A sua relação de parentesco está no fato de que os princípios positivaram em várias oportunidades o que o direito natural afirmava sobre os direitos do homem. Se a Constituição é uma criação política, é evidente que os direitos se fundam em algo que foi elaborado pela vontade humana e não na natureza das coisas.38 Portanto, a compreensão da lei a partir da Constituição expressa outra configuração do positivismo, que pode ser qualificada de_positivis~o crítico, não porque atribui às normas constitucionais o seu fundamento, mas SIm porque submete a legislação a princípios materiais de justiça e a direitos fundamentais, permitindo que seja encontrada uma norma jurídica que revele a adequada conformação da lei.

3.7 Princípios constitucionais e pluralismo Os princípios expressam concepções e valores que estão indissociavelmente ligados ao ambiente cultural.39 Mas, como a sociedade evolui paulatinamente, os

não há como deixar de referir a obra de José Joaquim Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador. 35 Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil, cit., p.116. Idem, p. 115. Brian Bix define a teoria tradicional do direito natural pelas seguintes concepções básicas: o direito natural é imutável ao longo do tempo e não difere entre distintas sociedades; todas as pessoas têm acesso aos standards deste direito superior pelo uso da razão; somente leis justas "realmente merecem o nome" direito, e "na própria definição do termo direito" existe inerente a ideia e o princípio de escolha do que é justo e verdadeiro (Naturallaw theory.A companion to philosophy oflaw and legal theory, p. 223-240). 38 Roberto Gargarella, La justicia frente aI gobierno, p. 67. 39 Essa afirmação destoa da noção de princípios de Ronald Dworkin. Segundo esse autor, um princípio é um standard que deve ser observado, não porque ele irá promover ou assegurar uma 36 37

A TRANSFORMAÇÃO

DO PRINCÍPIO

DA LEGALIDADE

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65

rineípios devem ser redimensionados nessa mesma intensidade e velocidade. Não fosse assim, seria falso que o princípio adquire substantividade a partir do seu contato com a realidade. Aliás, se o conteúdo dos princípios não sofresse mutação com o tempo, a Constitui~ão resta:ia ~gessada à letra das suas normas ou à interpretação que um dia a elas f 01 confenda.

Q

Os princípios muitas vezes são fruto do pluralismo e marcados pelo seu caráter aberto.41 Bem por isso são avessos à lógica que governa a aplicação das regras e à hierarquização. A ideia de que um princípio prevalece em absoluto sobre o outro, em

situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque ele é uma exigência de justiça ou equidade ou de alguma outra dimensão da moralidade (Takingrights seriously,cit., p.22). Argumentos de princípio justificam uma decisão política demonstrando que a decisão respeita ou assegura algum direito de um indivíduo ou de um grupo (idem, p. 82). Um direito contra o Estado deveser um direito a fazer alguma coisa mesmo quando a maioria pensa que seria errado fazê-la, e ainda quando a maioria estaria em pior situação pelo fato de tal coisa ter sido feita (idem, p.194). Nesse sentido preciso, princípios opõem-se a valores que, na definição de Habermas, devem ser entendidos como "preferências compartilhadas intersubjetivamente" ("valores expressam preferênciastidas como dignas de serem desej adas em determinadas coletividades" - Jürgen Habermas, Direito e democracia, cit., p. 316). Para Dworkin, princípios não expressam concepções e valores, mas conceitos e direitos. 40 Lembre-se que, mesmo nas jurisdições que trabalham com precedentes obrigatórios,não senega a possibilidade da sua revogação diante da transformação da realidade, dos valores sociais e da concepção geral do direito. Nos Estados Unidos, "há muito são enfatizadas as possibilidades de mudança e desenvolvimento no direito que são of~recidas pela revogação de precedentes em situações apropriadas. Nas palavras do Justice Field: 'E mais importante que a Corte esteja certa sobre considerações posteriores e mais elaboradas sobre os casos do que coerente com declaraçõesanteriores'. O Justice Cardozo observou que 'todo o tema da jurisprudência é mais plástico, mais maleável, as formas menos definidas, os limites entre o certo e o errado menos previsíveis e constantes do que a maior parte de nós ... está acostumada a crer"'. No original: "jurists have emphasizedthe possibilities for change and growth in the law that are offered by overturning precedent in appropriate instances. In the words ofJustice Field: 'It is more important that the courtshould be rightuponlater and more elaborate consideration of the cases than consistentwith previous declarations'.Justice Cardozo observed that'the whole subject matter ofjurisprudence is more plastic, more malleable, them olds less definitively cast, the bounds of right and wrong lesspreordained anu constant, than most ofus ... have been accustomed to believe"'(Margaret N. Kniffin, Overruling Supreme Court Precedents: Anticipatory Action by United States Courts ofAppeals, Fordham Law Review, 1982, p. 55). 41 Novamente, é importante ressaltar que a afirmação de que os princípios são frutos do pluralismo não se aplica ao modelo dos princípios de Ronald Dworkin. Em Dworkin, os princípios revelamo que há de comum a todos e não a divergência entre grupos. Habermas aborda o ponto comexatidão: "Qyando Dworkin entende os direitos fundamentais como princípios deontológico do direito e Alexy os considera como bens otimizáveis do direito, não estão se referindo à mesma coisa.Enquanto normas, eles regulam uma matéria no interesse simétrico de todos; enquanto valores,eles formam, na configuração com outros valores, uma ordem simbólica na qual se express~ a identidade e a forma de vida de uma comunidade jurídica particular" (Direito e democracia, clt.,p.317-318).

j

66

I

AJURlSmçÃo

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

uma perspectiva abstrata, afronta a condição pluralista da socieda~e. 42 O~ p'r~ncípios, por essa razão, devem conviver: a sua pluralidade, e a consequente lmp~sslb~dade de submetê-los a uma lógica de hierarquização absoluta, espelha o respel~~ mutuo que deve haver entre diferentes modos de vida em uma sociedade democratlca.

42

Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil, cit., p. 124. Ver Gisele Cittadino, Pluralismo, p. 77 e ss.

direito ejustiça distributiva,

4 o controle

da constitucionalidade pelo juiz singular no direito brasileiro

SUMÁRIO: 4.1 Ql.ralquer juiz, no sistema brasileiro, tem a obrigação de controlar a constitucionalidade da lei - 4.2 Outras formas de controle da constitucionalidade da lei - 4.3 O juiz_e o controle da constitucionalidade da falta de lei.

4.1 Qya1querjuiz, no sistema brasüeiro, tem aobrigação de controlar a constitucionalidade da lei É necessário frisar que a transformação da concepção de direito obviamente repercutiu sobre a função do juiz e, portanto, exige uma nova conceituação de jurisdição - tarefa que será empreendida mais tarde. O constitucionalismo contemporâneo depende do controle jurisdicional da lei. Não é por outra razão, aliás, que Riccardo Guastini afirma que a rigidez da Constituição e a sua garantia jurisdicional são "condições necessárias" para se pensar na "constitucionalização do ordenamento jurídico".! O juiz não é mais a boca da lei, como queria Montesquieu, mas o projetor de um direito que toma em consideração a lei à luz da Constituição e, assim, faz os devidos ajustes para suprir as suas imperfeições ou encontrar uma interpretação adequada, podendo chegar a considerá-la inconstitucional no caso em que a sua aplicação não é possível diante dos princípios de justiça e dos direitos fundamentais.2 No direito brasileiro o controle da constitucionalidade pode se dar mediante ação direta ou no curso de qualquer ação voltada à solução de um conflito de interesses.3

1 2

211 e ss.

Riccardo Guastini, La "constitucionalización" . ." cit., p. 50. Ver Antonio Manuel Pena Freire, La garantía en el Estado constitucional

de derecho, p.

. 3 O controle da constitucionalidade também pode ser feito por meio das técnicas da Interpretação conforme a Constituição e da declaração parcial de nulidade (ou de inconstitucio-

68

I

A JURISDIÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

A ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual é da competência do STF (CF /1988, art. 102, I, a), podendo ser proposta por qualquer um dos elencados no seu art. 103: "I - o Presidente da República; II - aMesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - C?overnador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da Repubhca; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confede.ração si~dic::I ou entid~de de classe de âmbito nacional". 4 Julgado procedente o pedido na açao dIreta, os efeItos da sentença estendem -se a todos e, assim, são ditos erga omnes. Nesse caso a lei declarada inconstitucional é extirpada do sistema jurídico. 5 Mas como dito, a constitucionalidade da lei também pode ser controlada incidentalm:nte em qualquer process06 e, por isso, pelo próprio)uiz de .prir:neir~ grau de jurisdição. Esse julgamento incidental~dec~arando o~ nã~ a lllconst1tuClonalidade da lei, projeta-se apenas sobre as partes, Isto e, tem a'plicaça~ so~ent.e ao cas_oconcreto. Portanto, o eventual julgamento incidental de lllconstltuclOnalidade nao gera a nulidade da lei. A lei não é eliminada do sistema e, assim, não se torna sem efeito para os demais cidadãos, podendo ser aplicada em outros casos concretos.

?

Exemplificando, poderíamos considerar a ação, dirigida a um juiz de primeiro grau, em que o contribuinte pede a anulação d~ débit~ tri~utár~o alegando a inconstitucionalidade de lei federal, e a ação direta de lllconstltuclOnalidade, apresentada ao STF, em que se pede a declaração de inconstitucionalidade dessa mesma lei federal. No primeiro caso os efeitos da decisão ficam limitados às partes e, no-segundo, os efeitos da decisão se projetam sobre todos. De modo que dois juízes de primeiro grau podem divergir sobre a constitucionalidade de uma lei. É por isso que a Constituição Federal, no seu art. 1.0~, IH, b, afirma que cabe ao STF julgar, mediante recurso e~ao:rdinário, ~s caus~s de~ldid.as em única ou última instância, quando a decisão recornda declarar a lllconstltuclOnalidade

nalidade) sem redução de texto (art. 28, parágrafo único, da Lei 9.868/1999), seja na forma direta, seja na-forma incidental (ver o Capítulo 5). 4 Deixe-se claro que, além da ação direta de inconstitucionalidade, pod~m ser propostas a ação declaratória de constitucionalidade (arts. 102, I, a, e 103, da CF e Lei 9.868/1999), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, 9 2.°, da CF e arts. 12-A a 12-H da Lei 9.868/1999), a ação de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, 9 1.0, da C~ e Lei 9.882/1999) ação direta de inconstitucionalidade interventi;:a (art. 36, IH,. da CF e Lei 12.562/2011) e, ainda, mandado de injunção (art. 5.0,LXXI, da CF: conceder~s~-a man~a~o de injunção sempre que a falta de norma regulamentado~a to~ne i~viáve~ o exefC1~1O~o~ dlrelt?:, e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes a naCIOnalidade, a soberarua e a cldadama ). 5 Ver Teori Albino Zavascki, Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 6 Sobre a possibilidade de o STJ examinar a inconstitucionalidade da lei em r~curso especial, ver Andréa Leonardo Coimbra,Arguição de inconstitucionalidade em recurso especzal.

~

~

O CONTROLE

DA CONSTITUCIONALIDADE

PELO ]m2

SINGULAR

I

69

de tratado ou lei federal. É certo que a questão de constitucionalidade somente será apreciadapelo STF se a part~ pr:j~di~ad.a ~ecorrer. De qualquer maneira, a parte terá aoportUllldade de chegar ao orgao JunsdIclOnal responsável pelo próprio julgamento da ação direta de inconstitucionalidade. A EC 45, de 08.12.2004, introduziu no art. 102 da CF parágrafo que exige para o conheci~~nto do :ec~rso extrao~d~ná~io a demonstração da "repercussão geral' da controverSla constltuclOnal. A eX1gencIa da demonstração da relevância e da transcendência da questão constitucional debatida como condição de admissibilidade do recurso extraordinário conspira para a realização do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, estimulando a compatibilização vertical das decisões judiciais, prestand~ h~~:~a~em ao valor da igualdade e perseguindo a racionalização da atividade JudIcIarIa. Qyando a causa chega ao STF em razão de recurso extraordinário, o controle da constitucionalidade continua sendo incidental ao julgamento da causa. Porém, a ideiade que a decisão proferida em razão de recurso extraordinário interessa apenas às partes tem sido repensada. Isso ocorreu,inicialmente, após a fixação do entendimento de que, após o Supremo ter declarado, na via incidental, a inconstitucionalidade de uma lei, os demais tribunais estão dispensados de observar o art. 97-da-CfS (reserva deplenário), podendo a inconstitucionalidade da lei, nesse caso, ser reconhecida pelos órgãos fracionários de qualquer tribunal. Recentemente, surgiu no STF orientaç,ão que nega expressamente a equivalência entre controle incidental e eficácia da decisão restrita àspartes do processo. Entendeu-se que a decisão tomada em recurso extraordinário, _quandoproferida pelo Plenário da Corte, embora produzindo coisa julgada limitada àspartes, tem eficácia vinculante em relação aos seus fundamentos determinantes.9

7

Ver Luiz Guilherme

Marinoni e Daniel Mitidiero, Repercussão geral no recurso extra-

ordinário, p. 5 -6. 8 Art. 97 da CF /1988: "Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de leiou ato normativo do Poder Público". 9 "Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, em recentes julgamentos, vem dando mostras de.queo papel do recurso extraordinário na jurisdição constitucional está em processo de redefi01Ç~O, de modo a conferir maior efetividade às decisões. Recordo a discussão que se travou na Medida Cautelar no RE 376.852, de relatoria do Min. Gilmar Mendes (Plenário, por maioria,DJ 27.03.2003).Naquela ocasião, asseverou Sua Excelência o caráter objetivo que a evolução legislativa :em e:r:pres:~ndo ao recurso ex,rraordinário, como medida racionalizadora de efetiva prestação JUrISdiCIOnal (Rc12. 986, reI. Mm. Celso de Mello,Iriformativo (STF) 379,07-11.03.2005). Por suavez,também são dignas de nota as palavras do eminente Min. Gilmar Mendes no RE 376.852/ "Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que caracteriza orecursoextraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo oude.defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem c?nstltucional objetiva.Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vemconferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). Nesse

se:

I

70

I

AJURlSDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

Isso ficou ainda mais claro com o julgamento da Rcl4.335, finalizado ~r=:2014, ~ue reconheceu a eficácia obrigatória dos fundamentos determinantes de dec1sao profenda pelo STF em controle incidental.

r

Como não há motivo para dar a um juiz de primeiro grau ou a um tri~unal estadual ou regional federal a possibilidade de contra:i~ o STF,. a E~, 45/2004 mseriu na Constituição Federal o art.103-A, cuja redaçao e a segumte:. Art.lO~-~. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou p~r ~rovocação, n:e~lante ~eC1S.aode dois terços dos seus membros, após reiteradas deClsoes sobre r:naten~ CO?st1:uclOnal, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa ofic1al,tera efett~ vmc~lante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração ~ública ~l~eta e indireta nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder a sua reV1saoou cancela~ento, na forma estabelecida em lei. ~ 1.0A súmula terápor objetivo a validade, a interpretação e a ificácia de normas determinadas, ace.rc.adas ~uai~ h~ja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a admm1straçao publica que :c~r:te _grave insegurança jurídica e relevante multiplicaçã? de proc~ssos sobre ~uesta? ~dentica. ~ 2.0 Sem prejuízo do que vier a ser estabeleCldo em le1, a aprovaçao, reV1saoou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem prop0l"aação direta de inconstitucionalidade. ~ 3.0 Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que,julgando-a proce~ent:, anulará o at? admin~strativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determlllara que outra seja profenda com ou sem a-aplicação da súmula, conforme o caso" (grifos nossos).

Esse dispositivo confere ao STF poder para editar súmula que vincula os demais órgãos do Poder Judiciário. 10Nessa situação, ~ind~ ~ue a norma, pro~lar:n~da incidentalmente inconstitucional pelo STF, não sep ehmlllada da ordem Jund1ca, deixa-se claro que ela não poderá ser aplicada pelos demais ó~gãos juri~dicio~~s. Caso isso venha a ocorrer, caberá reclamaçãoll ao STF, que entao anulara a deC1~ao, determinando que seja proferida outra com a observância ~a.súr:nula que_defimu: inconstitucionalidade da lei questionada. Esclareça -se que o JUlZslllgular nao podera declarar a constitucionalidade da lei quando a súmula vinculante a houver declarado inconstitucional, como também não poderá declarar a sua inconstitucionalidade quando a súmula a houver declarado constitucional. sentido, destaca-se a observação de Haberle segundo a qual 'a função da Consti~ção na proteção dos direitos individuais (subj.ec~ivo,s)é ape?as uma f~c~ta do recurso de am~ar?, dotad? de.~:~ 'd 1 função' subjetiva e obJet1va, conS1stlndo esta últ1ma em assegurar o d1re1to constltuCl ~p ~ , (Pete'r Haberle O recurso de amparo no sistema germânico, Sub ]udice 20/21, 2001, p. o b~etlvo '. . ...." (STF 33 (49)). Essa orientação há mUlto mostra-se dommante tambem no duelto amencano , RE 376.852,reLMin. Gilmar Mendes, D]U24.10.2003, p. 65). 10 Ver Lei 11.417/2006, art. 2.°, 93.°. 11 Ver Lei 11.417/2006, art. 7.°.

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o CONTROLE

DA CONSTITUCIONALIDADE

PELO JUIZ SINGULAR

I 71

Considerando-se a orientação que admite que a decisão tomada em sede de recurso extraordinário tem efeito vinculante, poderia parecer restar sem sentido falar em "súmula vinculante". Haveria a falsa suposição de que, tendo a decisão do recurso extraordinário efeito vinculante, não haveria necessidade de súmula vinculante. A verdade é que o núcleo essencial ou a ratio decidendi das decisões proferidas em recursOSextraordinários podem ser facilmente extraíveis dos seus acórdãos. Nesses casos, não havendo dificuldade para delinear a ratio decidendi, tem a decisão efeito vinculante. Qy.ando, ao contrário, embora o Supremo tenha decidido várias vezes acerca da questão constitucional, a ratio decidendi ou o núcleo essencial da decisão permanece indecifrável e obscuro, surge a necessidade da súmula vinculante. Ou seja,quando a ratio decidendi for clara, o efeito vinculante daí decorre sem que seja preciso editar súmula vinculante; na outra hipótese, sendo a ratio decidendi complexa e obscura, aparece a imprescindibilidade da súmula para definir os contornos exatos e precisos da figura que terá efeito vinculante.

O fato de as decisões tomadas pelo Supremo - em sede de controle direto ou de controle incidental- terem efeito vinculante não retira a importância do controle realizado pelos juízos inferiores. Esses colaboram para a interpretação constitucional até o pronunciamento da Suprema Corte. A partir daí é que não mais podem decidir em sentido contrário. Esclareça-se que a eficácia vinculante das decisões proferidas em recurso extraordinário dá força obrigatória aos motivos determinantes ou à ratio decidendi da decisão, viabilizando o alcance da estabilidade imprescindível à racionalidade de qualquer sistema que dá aos seus juízes o poder de realizar o controle da constitucionalidade diante dos casos concretos. Não há como atribuir esse poder aos juízes sem vinculá-los às decisões da Suprema Corte. O controle difuso exige que os precedentes da Corte que dá a última palavra acerca da questão constitucional sejam obrigatórios. Não se trata de mera opção técnica, ainda que ótima à eficiência da distribuição da justiça, mas de algo que, quando ausente, impede a própria racionalidade do controle de constitucionalidade. 12

,

4.2 Outras formas de controle da constitucionalidade

da lei

Ao lado da declaração de inconstitucionalidade, foram desenvolvidas outras duastécnicas de controle da constitucionalidade. Trata-se das chamadas interpretação conjàrmea Constituição e declaraçãoparcial de nulidade sem redução de texto. Há semelhança entre as técnicas da interpretação conforme e da declaração parcial de nulidade sem redução de texto. O STF chegou a equipará-las.u A Lei

3.ed.

I

1

M'

12

13

Ver, para maior aprofundamento,

Luiz Guilherme Marinoni, Precedentes obrigatórios,

Ver ADln 319, Pleno, reL Min. Moreira Alves,D]30.04.1993; RT] 13 7/90.

in. Moreira Alves,

ADI-MC

491, rel.

72

I

AJURlSDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

9.868/1999 fez referência a ambas, sustentando a sua autonomia. Diz o art. 28 parágrafo único, da Lei 9.868/1999, que "a declaração de constitucionalidade ou d~ inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal'. A interpretação conforme a Constituição não constitui método de interpreta_ ção, mas técnica de controle de constitucionalidade. Constitui técnica que impede a declaração de inconstitucionalidade da norma mediante a afirmação de que esta tem um sentido - ou uma interpretação - conforme a Constituição. A decisão salva a constitucionalidade da-norma, cuja interpretação suscitada é reconhecida incompatível com a Constituição.



Por outro lado, há casos em que uma norma pode ser utilizada em face de situações diversas, uma em que se apresenta inconstitucional e outra constitucional. Qyando se impugna a aplicação da norma em determinada situação, o Tribunal, ainda que reconheça sua inconstitucionalidade nessa situação, pode admitir a sua aplicação em outras. Nestes casos há declaração parcial de nulidade sem redução de texto. A nulidade, bem vistas as coisas, é da aplicação da norma na situação proposta . Exemplo claro de aplicabilidade da técnica da declaração parcial de nulidade sem redução de texto se dá nos casos de leis que criam ou aumentam tributo. Tais leis, diante do princípio da anterioridade - de matriz constitucional (art. 150, lII, b, da CF) -, não podem ser aplicadas no mesmo exercício financeiro, embora possam e devam ser aplicadas no exercício financeiro seguinte. Frise-se que não se reduz a validade do dispositivo, que resta com plena força normativa, mas o seu âmbito de aplicação. Qyando se afirma, na ação de inconstitucionalidade, a invalidade da norma em relação a certa situação, o Tribunal pode reconhecê-la, afirmando-a, mas ao mesmo tempo reconhecer a sua aplicabilidade a situações diversas e, por isso mesmo, preservar o seu texto. Portanto, em caso de interpretação conforme, reconhece-se a inconstitucionalidade da interpretação suscitada, mas se afirma que a norma pode ser interpretada de forma constitucional, enquanto que, na declaração de nulidade parcial sem redução de texto ,reconhece-se a inconstitucionalidade da norma na situação alegada, admitindo-se a sua aplicabilidade em outras situações. Assim, o que diferencia tais técnicas é a circunstância de que a inter~re~aç!o conforme exclui a interpretação proposta e impõe outra, conforme à Const1tUlçao, enquanto a declaração parcial de nulidade revela a ilegitimidade da aplicação da norma na situação proposta, ressalvando a sua aplicabilidade em outras. Ou melhor: a distinção está em que em um caso discute-se o âmbito de interpretação e, no outro, o âmbito de aplicação. No primeiro exclui-se possibilidade de interpretação, fixando-se a interpretação conforme com a Constituição. A questão diz respeito ao âmbito de

O CONTROLE

DA CONSTITUCIONALIDADE

PELO JUIZ SINGULAR

I

73

sua aplicação. Nega-se a aplicação da norma em determinado local, ressalvando-a ara outroS. p A interpretação conforme e a declaração parcial de nulidade sem redução de texto sãoempregadas, especialmente, em sede de ação direta de inconstitucionalidade. Po'm nada impede que sejam utilizadas no controle incidental. Como a interpretação re , conforme e a declaração parcial de nulidade permitem à parte prejudicada chegar ao STF mediante o recurso extraordinário (art. 102, lII,da CF), é certo que esse Tribunal, também nessas modalidades de controle incidental, poderá dar a última palavra.

4.3 O juiz e o controle da constitucionalidade

da falta de lei

Se há normas que violam os princípios de justiça e os direitos fundamentais, existem também omissões, ou ausência de normas, que agridem esses mesmos princípios e d"1re1tos.14 Por isso, não há razão para entender possível o controle da constitucionalidade dalei ejulgar inviável o controle da constitucionalidade da falta de lei. 15 Ora, se o juiz deve controlar a atividade legislativa, analisando a sua adequação à Constituição, é pouco mais do que evidente-que a sua tarefa não deve se ater apenas à lei que viola um direito fundamental, mas também à ausência de lei que não permite a efetivação de um direito desse porte. As omissões que invalidam direitos fundamentais evidentemente não podem servistas como simples opções dolegislador, pois ou a Constituição tem força normativa ou força para impedir que o legislador desrespeite os direitos fundamentais, e assimconfere ao juiz o poder de controlar a lei e as omissões do legislador, ou constituirá apenas proclamação retórica e demagógica. A omissão constitucional não diz respeito apenas à hipótese em que a norma constitucional outorga ao legislador dever de legislar. O Estado tem dever de tutelar osdireitos fundamentais. O legislativo, assim, tem dever de tutelar normativamente os direitos fundamentais, independentemente de norma constitucional que assim afirme.16

14 Ver Flávia Piovesan, Proteção judicial contra omissões legislativas; Luciane Moessa de Souza, Normas constitucionais não regulamentadas. 15 Sobre o tema da inconstitucionalidade por omissão, é interessante consultar Jose Julio Fernandez Rodriguez, La inconstitucionalidad por omisión (Teoria general Derecho comparado. El casoespaiio!);Jorge Pereira da Silva, Dever de legislar eprotecção jurisdicional contra omissões legis-

lativas - Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade

É certo que seria possível chegar

por omissão.

uma omissãoinconstitucional. Mas é também verdade que a ausência de lei, nesses casos, se não suprida pelojUiz,implica negação dos direitos fundamentais. O que ocorre nesses casos é que a ausência de açãodo legislador caracteriza obstáculo indevido à satisfação do direito fundamental assegurado pelaConstituição. Em tais hipóteses, o direito constitucionalmente declarado, para ser satisfeito, 16

à conclusão de que aí não existe propriamente

74

I

AJURISDIÇÁO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

Veja-se que um direito fundamental pode depender de uma regra. que lhe dê proteção. Nessa hipótese,configurando-se a omissão legislativa,há verdadeIra omissão de proteção, devida pelo legislador. Essa omissão pode ser reconhecida judicialmen_ te, quando o juiz deverá suprir a omissão e dar proteção ao direito fundamental. O problema que pode existir, nessa ocasião, relaciona -se com a "forma" me~iante a qual o juiz determinará a proteção. Para a tutela de direito fundamental, o legIslador tem, em princípio, ampla margem de manobra entre as proibições de insuficiência e de excesso. Outra é a margem liberada para a intervenção judicial. O juiz não tem poder para escolher a "forma" de proteção dos direitos fundamentais, mas para controlar a insuficiência de proteção a esses direitos. Assim, no controle da falta ou da insuficiência de tutela normativa, o juiz não pode avançar além do mínimo necessário ao alcance da proteção suficiente. Por outro lado, a supressão da omissão da regra processual é ainda mais fácil de ser assimilada. Considerando-se a natureza instrumental da regra processual, percebe-se sem dificuldade quando a sua ausência ou insuficiência impede a efetiva tutela do direito material. Como o discurso processual, relativo à aplicação da regra de processo, recai sobre o discurso que evidencia as-necessidades de direito material particularizadas no caso concreto, basta concluir se o legislador processual deixou de editar regra imprescindível à tutela do direito. Em caso pesitivo, a técnica a ser utilizada, que obviamente deve ser idônea à proteção da necessidade de direito material evidenciada na fundamentação, deve ser a que causa a menor restrição possível à esfera jurídica do demandado. Assim como o controle da constitucionalidade da regra positiva é imprescindível a qualquer juiz, o controle da omissão que impede a efetivação de um direito fundamental deve ser utilizado portodos os magistrados. Aliás, como o direito fundamental à tutela efetiva incide sobre o próprio juiz, seria completamente irracional dele retirar a possibilidade de dar utilidade à tarefa que lhe foi atribuída pela Constituição.17

exige a sua implementação por determinados mecanismos institucionais. É ne~essário prov~re~~se meios para alcançarem-se os fins buscados pela normajusfundamental. Em V1rtude dos p~mclplOs da legalidade (art. 5.°, II, da CF) e da separação de p.oderes (art. ~.o da CF), cab~ a~ legls~ado.ra prioridade no estabelecimento desses meios. Só por. ISSO.faz ,sentIdo fal~r em o.mlss~o,1egI~lat~~ nessas situações. Nada obstante, a prioridade do legIslatIVOe apenas przma jacu, POlSe atnbuld ao Judiciário uma regra genérica de competência para dar efetividade aos direitos (art. 5. °,XJJ0I, da CF - "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"). 17 Ver Luiz Guilherme Marinoni, in: Sarlet, Marinoni e Mitidiero, Curso de direito constitucional, cito

s a ~

5 A teoria dos direitos fundamentais SUMÁRIO:5.1 Introdução - 5.2 Conceito de direitos fundamentais - 5.3 As perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais - 5.4 Amultifuncionalidade dos direitos fundamentais - 5.5 As eficácias horizontal e vertical dos direitos fundamentais - 5.6 Eficácias vertical, horizontal e vertical com repercussão lateral - 5.7 Direitos fundamentais e democracia. O problema do controle do juiz sobre a decisão da maioria.

5.1 Introdução. Compreendido o direito no Estado constitucional, isto é, a rigidez da Constituição, a plena eficácia jurídica das suas normas, a função unificadora da Constituição, a subordinação da lei às normas constitucionais, a imprescindibilidade de controle jurisdicional da constitucionalidade da lei e de sua omissão, assim como a transformação do conceito de interpretação, do princípio da legalidade e da ciência do direito, resta agora tratar da função que foi emprestada aos direitos fundamentais, construindo-se uma teoria que faz de tais direitos não só um suporte para o controle das atividades do Poder Público, mas também um arsenal destinado: (i) a conferir à sociedade os meios imprescindíveis para o seu justo desenvolvimento (direitos às prestações sociais); (ii) a proteger os direitos de um particular contra o outro, seja mediante atividades fáticas da administração, seja através de normas legais de proteção (direitos à proteção); e (iii) a estruturar vias para que o cidadão possa participar de forma direta na reivindicação dos seus direitos (direitos à participação). O desenvolvimento das várias teorias dos direitos fundamentais,1 concebidas por inúmeros juristas, conduziu a questões bastante intricadas, como as da eficácia imediata dos direitos fundamentais sociais e da eficácia direta dos direitos fundamentais sobre os particulares.

I Conforme salienta Peter Haberle, a "ciência do direito constitucional é exercida, sobretudo, no âmbito teórico. Ela possui a tareJa de delinear um sem número de propostas teóricas para a cOmpreensão geral e especial dos direitos fundamentais e de seus métodos de utilização" (Die Wesensgehaltgarantie des art. 19 Abs. 2 Grundgesetz. 3. ed. Heidelberg: Müller, 1983,p. 83).



r

.~-

76

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A]URISDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

Por outro lado, para se compreender o que o juiz faz quando decide - se atua a vontade da lei etc. -, é necessário entender, além da concepção de direito do Estado Constitucional, a função dos direitos fundamentais materiais. Mas, como a adequada prestação jurisdicional depende da universalidade do acesso à justiça, do plano normativo processual, da estrutura material da administração da justiça, bem como do comportamento do juiz, também é preciso pensar na relação entre o direito fundamental à tutela jurisdicional e o ''modo de ser" da jurisdição, ou melhor, entre o direito fundamental

processual do particular

e a capacidade de o Estado efetivamente

prestar a

tutela jurisdicional.

O "modo de ser" da jurisdição influi sobre o resultado da sua atividade. Isso porque não basta dizer que ajurisdição implica conformação da lei à Constituição de acordo com as peculiaridades do caso concreto, se ojuiz não pode, por exemplo, utilizar um meio executivo imprescindível para a prestação da tutela jurisdicional. Sem essa possibilidade, como é óbvio, o Judiciário não pode responder ao direito fundamental processual do particular ou se desincumbir do seu dever de dar tutela aos direitos. Ou seja, não há mais como conceber ajurisdição em uma dimensão que ignore a sua dinâmica processual, pois o bom resultado da sua tarefa é indissociavelmente ligado ao "meioinstrumental" (técnica processual, estrutura fática, comportamento dos auxiliares judiciários e do juiz) como qual trabalha.

5.2 Conceito de direitos fundamentais A Constituição confere dignidade e proteção especiais aos direitos fundamentais, seja afirmando que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5.0, ~ 1.0, da CE), seja inserindo-os no rol das denominadas cláusulas pétreas (art. 60, ~ 4.0, da CF), protegendo-os assim não apenas do legislador ordinário, mas também do poder constituinte reformador.2 Os direitos fundamentais

podem ser vistos nos sentidos material eformal. catalogados sob o Título II da nossa Constituição, embaixo da rubrica "Dos direitos e garantias fundamentais". Porém, admite-se a existência de direitos fundamentais não previstos nesse Título.3 Tais direitos seriam fundamentais porque repercutem sobre a estrutura

Nesse último sentido, pensa-se nos direitos fundamentais

2

Ingo Wolfgang Sarlet, Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988.

Revista de Direito do Consumidor, v. 30, p. 98 e ss. 3 Ver STF,ADln 939-7/DF,j.15.12.1993,rel.Min. Sydney Sanches,D]18.03.1994declarando a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 3/93, que instituiu o Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras, por lesão aos seguintes direitos fundamentais: anterioridade tributária (art. 150, III, b, CF) e imunidades tributárias (art. 150, VI, b, c, d, CF). Para caracterizaçãode direitos fundamentais dos contribuintes, Humberto Ávila,SistemaConstitucional Tributário.

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A TEORlA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

I

77

básica do Estado e da sociedade, quando se diz que possuem uma fundamenta4 lidade material. O art. 5.0 ~a CF - primeiro artigo do Título II - afirma, no seu ~ 2.0,que "os direitoS e garantIas expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Essa norma permite, por meio da aceitação da ideia de fundamentalidade material, que outros direitos, mesmo que não expressamente previstos na CF e, por maior razão, não enumerados no seu Título lI, sejam considerados direitos fundamentais. Isso quer dizer que o art. 5.0, ~ 2.0, da CF institui um sistema constitucional aberto a direitos fundamentais em sentido material. De modo que, se a CF enumera direitos fundamentais no seu Título lI,isso não significa que outros direitos fundamentais - como o direito ao meio ambiente - não possam estar inseridos em outro dos seus Títulos, ou mesmo fora dele. 5 Ressalte-se, contudo, que, para a caracterização de um direito fundamental a partir de sua fundamentalidade material, é imprescindível a análise de seu conteúdo, isto é,da circunstância de conter, ou não, uma decisão fundamental sobre a estrutura do Estado e da sociedade, "de modo especial, porém, no que diz com a posição nesse ocupada pela pessoa humana". 6

4

Ingo Wolfgang Sarlet,A pcácia ...,cit.,p. 81; Robert Alexy,Teoría de-losderechosfimda-

menta/es,cit.,p. 505. 5 Acentue-se que essa elaboração se insere em uma teoria dos direitos fundamentais istoé,na teoria d~ direit~ e, ?or isso, não tem raízes positivistas. Além disso, ainda que não s: possadesprezar a ImportanCla da filosofiapolítica para o tema, a presente abordagem não pode sepreocuparcom uma resposta axiológica para os direitos fundamentais, tentando desvendar o q.u~seria.m~ral e politicamente jus~o en:ender como um direito fundamental. A respeito, LUlglFerraJoh:~erechos~mdam~ntrles, Clt.,p. 287 e ss.Para um aprofundamento na direção ~afilo~ofi~polítIca, ver WI~ Kymlicka, ,Contemporary political philosophy;John Rawls, Political beralum, Ronald Dworkin, Freedoms law, lhe moral reading of American constitution' M. Walzer,Spheres ojjustice. ' • • 6 Ingo Wolfgang Sarlet,A pcácia ..., cit.,p. 81. Essa é uma discussão com respeito à qual fia0~acomofugir do debate filosófico-político.Ela envolveessencialmente problemas dejustifi~a~ao de direitos, ou, como geralmente se refere a literatura, problemas de fundamentação dos direJt~shumanos. Sobre o tema, ver Ronald Dworkin, Taking rights seriously, cito(especialmente o~capltulos Justice and rights,Reverse discrimination eWhat rights dowe have)' Carlos S.Nino E/lcay . th.,Human rzghts; John Rawls, Politicalliberalism " . tierechos humanos; Alan GeW1r cito(esr~Cl~r.nente a conferê~cia1he ide~ of public r~ason);Jürgen Habermas, Direito e demo;'acia, cito p clalmenteo CapItulo III, O sIstema dos direitos); Robert Alexy,Teoría de! discursoy derechos

humanos.

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I

AJURlSDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

5.3 As perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais Qyando se afirma a dupla dimensão, subjetiva e objetiva, dos direitos fundamentais, deseja-se realçar que as normas que estabelecem direitos fundamentais embora possam gerar direitos subjetivos, também fundam elementos normativo; mínimos orientadores de todo o ordenamento jurídico. 7 As normas de direitos fundamentais afirmam valores que incidem sobre a totalidade do ordenamento jurídico e servem para iluminar as tarefas dos órgãos judiciários, legislativos e executivos. Assim, implicam valoração de ordem objetiva. O valor contido nessas normas, revelado de modo objetivo, espraia-se necessariamente sobre a compreensão e a atuação do ordenamento jurídico. Qyando os direitos fundamentais são tomados como valores incidentes sobre o Poder Público, importa especialmente a atividade de aplicação e interpretação da lei, uma vez que essa não pode ser dissociada de tais direitos. Além disso, uma importante consequência da dimensão objetiva está em estabelecer ao Estado um dever de proteção dos direitos fundamentais. Esse dever de proteção relativiza "a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos (Austrahlungswirkung) sobre toda a ordem jurídica".8 Diante dele, fica o Estado obrigado a proteger os direitos fundamentais mediante prestações normativas (normas) e fáticas (ações concretas). A norma de direito fundamental, ao instituir valor, e assim influir sobre a vida social e política, além de tratar das relações entre os suje~tos privados e o Estado, regula as relações que se travam apenas entre os particulares. E nessa última perspectiva que se pensa na eficácia dos direitos fundamentais sobre os particulares.9

7 Na dicção de Konrad Hesse, em seu significadojurídico-objetivo, os direitos fundamentais são "elementos da ordem jurídica total da coletividade" (Elementos ... , cit.,p. 240). Como explica Vieira de Andrade, os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, mas valem juridicamente também do ponto devista da comunidade, comovaloresou fins(José CarlosVieira de Andrade, Os direitos fundamentais (na Constituição Portuguesa de 1976), p. 144-145). 8 Gilmar Ferreira Mendes,Âmbito de proteção dos direitos fundamentais e aspossíveis limitações. Hermenêutica constitucional e direitosfundamentais, p. 209. 9 Como escreveCanaris em Grundrechtswirkungen und Verhaltnismassigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, frequentemente, no direito privado, defrontam-se interesses que podem ser garantidos como direitos fundamentais. Caso o legislador proteja um titular de um direito fundamental, ele por conseguinte intervém, muitas vezesao mesmo tempo, na posiçãode outro titular de direito fundamental. O exame constitucional,

por consequência, orienta-se tipicamente em duas direções; por um lado a proteção não deve se reter atrás do mínimo constitucional exigido; por outro lado, não deve ser "excessiva", ou seja, excedente ao proporcional e ao necessário, intervindo nos direitos fundamentais de outros sujeitos privados - ooDie

verfassungsrecht1ichPrüFunggeht folglichtypischerweisein zweiRichtungen: einerseitsdarfder Schutz nicht hinter dem verfassungsrecht1ichegebotenen Minimum zurückbleiben,andererse1ts

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5.4 Amultifuncionalidade

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dos direitos fundamentais

Neste item não há mais preocupação em afirmar que geralmente convivem na norma de direito fundamental, as perspectivas objetiva e subjetiva, mas sim de~ar claro que uma mesn:a norma d~ di:ei:o fund~~entalalém de poder ser pensada nessasduas perspectIvas - pode lllstltulr um dIreIto fundamental dotado de diversas funções.Como adverte Konrad Hesse,o sentido complexo dos direitos fundamentais como elementos da ordem objetiva, pode se ver reduzido quando esse significado entendido como o estabelecimento de "uma ordem de valores objetiva", pois uma compreensão limitada ao aspecto "ordem de valores" pode ocultar a multiplicidade de funções e conexões que ,envolvem os direitos fundamentais. lOPortanto, o que interessa, nesse momento, e destacar a chamada multifuncionalidade dos direitos fundamentais e a importância de uma classificação que considere as funções que essesdireitos podem assumir. H

é

~ ~e entre as mais import~ntes cla~sific~ções funcio~ais estão as de Alexy e Canotilho, des:aca-se: no B_rasll,.a.classIfica!a~ empreendlda por Ingo Wolfgang Sarlet. Essa~ t~es classlficaçoes dlV1dem os dlfeltos fundamentais em dois grandes grupos: os dIreItos de defesa e os direitos a prestações. Os direitos fundamentais foram vistos, à época do constitucionalismo de matriz liber,al-?urguesa, apena~ co,~o o direi:o de o particular impedir a ingerência do Poder Publico em sua esfera JundIca, ou seja, como direitos de defesa. Porém, passam aserrele~antes, agor~, os cham~~os direitos a prestações, ligados às novas funções do E~tado dIante ~a sOCledade. E e Justamente em relação aos direitos a prestações que eXIstealguma dIferença entre as classificações. Canotilho divide o grupo dos direitos a prestações, inicialmente em direitos a~~cessoe utili:ação d.e~restaçõ~s do Estado. Esses são divididos em direitos originanas a p:estaçoe~ e dIreIto~ den;:ados a prestações. Aludindo ao direito originário a prest:çoes, explIca Canottl~o: Afirma-se a existência de direitos originários a prestaçoes ~uando: (1) a partIr da garantia constitucional de certos direitos (2) se :ec~~hece: sl~ultanean:e~te, o d~ver doEstado na criaçãodos pressupostos materiais tn?l~penSaveIs ao exercI CIOefectIvo desses direitos; (3) e a faculdade de o cidadão eXlgl:,~e forma imediata, asprestações constitutivas dessesdireitos. Exemplos: (i) a partir do dIreito ao trabalho pode derivar-se o dever do Estado na criação de postos de trabalho e a pretensão dos cidadãos a um posto de trabalho?; (ii) com base no direito

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darfnicht'.'b "n" d . h .mehral s enor 1: d erlich . und verhaltnisma£ig, in die Grundrechte des d ~ erma.t,lg, ;~ er.en~nvatrechtssubjekt eingreifen"(Claus-Wilhelm Canaris, Grundrechtswirkungen und verhã1trusm.' . k'eltspnnzlpm ... dernc. h terlich en An wendungundFortbildungdesPrivatsrechts r S asslgJU

,1989).

10Konrad Hesse, Elementos ... , cit.,p. 243. . 11 Sobre o assunto, ainda, Virgílio Afonso da Silva, Direitosfiundamentais

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A TEORlA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

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essencIal,res tr' lçoes - e lj.cacla. .G - .

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A]URISDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

de expressão é legítimo derivar o dever do Estado em criar meios de informação e de os colocar à disposição dos cidadãos, reconhecendo-se a estes o direito de exigir a sua criação?" .12Ao tratar dos direitos derivados a prestações, Canotilho esclarece que, "à medida que o Estado vai concretizando as suas responsabilidades no sentido de assegurar prestações existenciais dos cidadãos (é o fenômeno que a doutrina alemã designa por Daseinsvorsorge), resulta, de forma imediata, para os cidadãos: - o direito de igual acesso, obtenção e utilização de todas as instituições públicas criadas pelos poderes públicos (exemplos: igual acesso às instituições de ensino, i~al acesso aos serviços de saúde, igual acesso à utilização das vias e transportes públIcos); - o direito de igual quota-parte (participação) nas prestações fornecidas por estes serviços ou instituições à comunidade (exemplo: direito de quota-parte às prestações de saúde, r . alid ez.)" 13 às prestações escolares, às prestações d e relOrma e lllV

Como se vê,os direitos derivados são aqueles que pressupõem o cumprimento das prestações originárias. Isso fica bem claro, no escrito de Canotilho, a partir de referência ajulgado que, em Portugal, declarou inconstitucional norma que pretendeu revogar parte da lei que criou o "Serviço Nacional de Saúde':: "A.partir do mo.mento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as t~ef~s cOnS1:ltuclO~almente lI~~ostas para realizar um direito social, o respeito constltu.C10nal desse deIXa de conSIStir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social" .14 Após tratar dos direitos ao acesso e utilização das prestações do Estado (subdivididos em direito originário e em direitos derivados), Canotilho prossegue em sua classificação afirmando que os direitos a prestações também devem ser vistos corno direitos à participação. Nes.se ponto Canotilho alude à necessidade de "d~~~cratizaç~o da democracia" através da participação direta nas organizações, o que eXIgma procedImentos. Diz ele: "Os cidadãos permanecem afastados das organizações e dos processos de decisão, dos quais depende afinal a realização dos seus direitos: daí a exigência ~e participação no controle das 'hierárquicas, opacas e antidemoc~áticas empresa.s';dal ~ exigência de participação nas estruturas de gestão ~os estabelecI~er:tos de.ensmo;d~ a exigência de participação na imprensa e nos meIOS de comum.caçao soclal.At:aves do direito departicipação garantir-se-ia o direito ao trabalho, a ~berda~e .d~ enslll~,a liberdade de imprensa. Qyer dizer: certos direitos fundamentaIs adqumnam maIO: consistência se os próprios cidadãos participassem nas estruturas de decisão - 'dure!; Mitbestimmung mehr Freiheil (através da participação maior liberdade)" .15

12 13 14 15

José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Idem, p. 541-542. Idem, p. 542. Idem, p. 547.

constitucional,

p. 543.

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A TEORIA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

I 81

Alexy, no entanto, divide o grupo dos direitos a prestações em direitos a restaÇõesem sentido amplo e direitos a prestações em sentido estrito. Os direitos Prestações em sentido estrito são relacionados aos direitos às prestações sociais, enapuanto os di'reItos a prestaçoes - em sentI'd o amp Io apresentam outra divisão: direitos à qroteção e direitos à participação na organização e através de procedimentos.16 Alexy ~notaque todo direito a um ato positivo, ou seja, a uma ação do Estado, é um direito a uma prestação. Dessa maneira, o direito a prestações seria a exata contrapartida do direito de defesa, sobre o qual recai todo direito a uma ação negativa, vale dizer, a uma omissão por parte do Estado.l? Mas, se a diferença entre direito a prestação e direito de defesa é nítida, os direitos às prestações devem significar, segundo Alexy, mais do que direitos a prestações fáticas de natureza social, e por isso englobar direitos a prestações de proteção - como, por exemplo, a normas de direito penal- e direitos a prestações que viabilizem a participação na organização e mediante procedimentos adequados.

É aqui que se torna interessante, até mesmo para fins didáticos, o problema relacionado ao direito ambiental. Há quem pense que o direito ambiental não é direito fundamental, apenas por não estar incluído.no Título II da Constituição Federal, o que não merece maiores considerações diante do que já foi dito quando se tratou da fundamentalidade material dos direitos fundamentais. Contudo, há outros que entendem que o direito ambiental é dependente apenas de prestações fáticas de natureza social,que assim poderiam ser enquadradas entre as prestações em sentido estrito. Acontece que o direito ambiental exige muito mais do que isso. O meio ambiente também exige medidas de proteção normativas (normas de direito material e de direito processual), fático-administrativas (como, por exemplo, a fiscalização de um guarda-florestal) e jurisdicionais, além de outras dirigidas a permitir a participação na organização e mediante procedimentos adequados (p. ex., audiência pública no licenciamento ambiental e ação coletiva).18 A classificação de Ingo Wolfgang Sarlet igualmente destaca os direitos à proteção,à participação na organização e através do procedimento e às prestações sociais (ouem sentido estrito), colocando-os como um grupo - o dos direitos a prestações - ao ladodos direitos de defesa.19 A partir da formulação de Alexy, Sarlet deixa claro que o indivíduo não possui somente direito de impedir a intromissão (direito a um não agir),mas também o direito de exigir ações positivas do Estado,lembrando que, além Robert Alexy, Teoría de los derechos fimdamentales, cit., p. 419 e ss. Idem, p. 427. 18 VerMaría Victoria Pereira Flores, EI derecho al goce de un ambiente adecuado en el marcoconstitucionaldeArgentina y Uruguay.Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, tIl,p.531-573. 16 17

19 Ver Owen Fiss, Group and the equal protection c1ause.Philosophy v.5,p.107.

1

and Public A./faires,

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I

A JURISDIÇÃO

NO ESTADO CONSTITUCIONAL

do direito às prestações sociais, há o direito às prestações de proteção,20 que podem ter natureza normativa (p. ex., normas de direito penal ou processual de proteção ao consumidor) ou fática (p. ex., atuação concreta do administrador na fiscalização dos remédios). Qyanto aos direitos de participação na organização e mediante o procedimento, afirma Sarlet que aí o problema seria respeitante à possibilidade de Se exigir do Estado "a emissão de atos legislativos e administrativos destinados a criar órgãos e estabelecer procedimentos, ou mesmo de medidas que objetivem garantir aos indivíduos a participação efetiva na organização e no procedimento".21

5.5 As eficácias horizontal e vertical dos direitos fundamentais As dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais não podem ser confundidas com as suas eficáciasvertical e horizontal. 22A demonstração das dimensõesobjetiva e subjetiva tem por fim explicar que as normas de direitos fundamentais, além de poderem ser referidas a um direito subjetivo, também constituem decisões valorativas de ordem objetiva. Por isso, é plenamente possível pensar nas dimensões objetiva e subjetiva dos-direitos fundamentais quando consideradas as relações entre os particulares e o Poder Público (eficácia vertica!)-ou apenas as relações entre os particulares (eficácia horizonta!).23 Qyando se fala nas eficácias vertical e horizontal, deseja-se-aludir à distinção entre a eficácia dos direitos fundamentais sobre o Poder Público e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Existe eficácia vertical na vinculação do legislador, do administrador e do juiz aos direitos fundamentais. Há eficácia horizontal- também chamada de "eficácia privada" ou de "eficácia em relação Ingo Wolfgang Sarlet,A pcácia ... ,cit.,p.195. Idem, p. 200. 22 Acerca do tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais vale destacar, dentre as obras doutrinárias publicadas no Brasil,Ingo Wolfgang Sarlet,Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. A constituição concretizada - Construindo pontes com o público e o privado, p. 155; Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Constituição, direitos fundamentais e direito privado; Daniel Sarmen.to, Direitosfimdamentais e relaçõesprivadas; Wilson Steinmetz,A vinculação dosparticulares a dlrelt~s fundamentais; Virgílio Afonso da Silva,A constitucionalização do direito: os direitos fundamental,s nas relações entre particulares; Thiago Luís Santos Sombra, A pcácia dos direitosfundament~ts nas relaçõesjurídico-privadas; André Rufino do Vale, Eficácia dos direitosfundamentais nas relaroes privadas. Najurisprudência, STF, RE 201819/RJ,rel. pl aC.Min. Gilmar Mendes,j.lI.10.2005, Informativo STF 405. 23 Ao menos para aqueles que aceitam a tese da vinculação imediata dos particulares aos direitos fundamentais, já que os adeptos da tese da vinculação mediata, como será ob:ervado, não reconhecem a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais nas relações entre partIculares, entendendo essa vinculação como decorrente apenas da sua dimensão objetiva. Ver João Pedro Gebran Neto,A aplicação imediata dos direitos egarantias individuais, p. 164 e ss. 20

21

A TEORIA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

I

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a terceiros" ("Drittwirkung', na expressão alemã) - nas relações entre particulares, embora se sustente que, no caso de manifesta desigualdade entre dois particulares, também existe relação de natureza vertical. A necessidade de se pensar na incidência dos direitos fundamentais sobre oSparticulares, em ve~ da sua simples incidênci.a sobre o Pod~r Público, ~ecorr: da transformação da sOCledade e do Estado.24 HOJe o Estado nao pode ma1S ser V1StO corno"inimigo", como acontecia à época do Estado liberal, pois tem a incumbência de projetar uma sociedade mais justa, regulando as atividades dos próprios particulares.De modo que os direitos fundamentais não têm razão para incidir apenas sobre as relações entre os particulares e o Estado, devendo também repercutir sobre as relações travadas apenas pelos particulares. Como escreve Vieira de Andrade, "a regra formal da liberdade não é suficiente para garantir a felicidade dos indivíduos e a prosperidade das nações, antes serve para aumentar a agressividade e acirrar os antagonismos, agravar as formas de opressão e instalar as diferenças injustas. A paz social,o bem -estar coletivo, a justiça e a própria liberdade não podem realizar-se espontaneamente numa sociedade industrializada, complexa, dividida e conflitual". Por isso"é necessário que o Estado regule os mecanismos econômicos, proteja os fracos e desfavorecidos e promova as medidas necessárias à transformação da sociedade numa perspectiva comunitariamente assumida de bem público".25

O problema que se coloca diante da eficácia horizontal é o de que nas relações entre particulares é impossível afirmar uma vinculação (eficácia) semelhante àquela que incide sobre o Poder Público.26 Realmente, há grande discussão sobre a questão daeficáciahorizontal dos direitos fundamentais, sustentando alguns que esses direitos nãotêm eficácia imediata sobre os particulares, mas sim apenas mediata- dependendo, nessesentido, da mediação do Estado. Qyando se pensa em eficácia mediata, afirma -se que a força jurídica dos preceitosconstitucionais somente se afirmaria, em relação aos particulares, por meio das 24 VerJuan María Bilbao Ubillos,~ En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? Constituição, direitosfundamentais e direito privado, p. 301- 303. 25 "Perante esta lição dos fatos,o sistema dos direitos fundamentais torna-se mais complexo ediferenciado. Por um lado, não pode pura e simplesmente remeter o Estado para a categoria fixa do'inimigo público'. Por outro lado, torna-se patente que os indivíduos não estão isoladamente Contrapostosao Estado como pressupunham as teorias liberais-burguesas. A área da sociedade deixade ser (ou de poder ser vista como) o palco de atuações individuais, à medida que se verifica ~profunda imbricação entre os interesses das pessoas e se multiplica a atividade dos grupos de Interesse- sindicatos, associações patronais, igrejas, grupos econômicos, associações cívicas, desportivasetc. - que, por vezes, dispõem de elevado poder social" (José Carlos Vieira de Andrade, Osdireitosfundamentais ..., cit., p. 274); ver D. Rosenberg, The causal connection in mass exposure cases:a "public law" vision of tort system. Harvard Law Review, v. 97; e Individual justice and COllectivisingrisk-based claims in mass-exposure cases. New York University Law Review, v. 7I. 26 Ingo Wolfgang Sarlet, Direitosfundamentais e direitoprivado ..., cit., p. 155.

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AJURlSDIÇÃO

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NO ESTADO CONSTITUCIONAL

normas27 e dos princípios de direito privado. As normas constitucionais poderiam. servir para a concretização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, porém sempre dentro das linhas básicas do direito privado.28 Mas, segundo os teóricos da eficácia imediata, os direitos fundamentais são aplicáveis diretamente sobre as relações entre particula:-es. Alén: de normas de valor, teriam importância como direitos subjetivos contra entIdades pnvadas portadoras de poderes sociais ou mesmo contra indivíduos que tenham posição de supremacia em. relação a outros particulares. Outros, chegando mais longe, admitem a sua incidência imediata também em relação a pessoas "comuns". O que importa, nessa última perspectiva, é que se dispensa a intermediação ~o legislador - e ~ssim as .regras de direito privado - e se elimina a ideia de que os direItos fundamentaIs podenam ser tomados apenas para preencher as normas já abertas pelo legislador ordinário.29 Porém, como esclarece Vieira de Andrade, "aquilo que se deve entender por mediação na aplicabilidade dos preceitos constitucionais às relações entre iguais é, afinal a necessidade de conciliar esses valores com a liberdade geral e a liberdade nego~ial no direito civil".30 Segundo o seu entendimento, não é feliz a expressão aplicabilidade mediata, que se confunde com e~cá~ia indireta, :'quando. o que se ~u~r afirmar é um imperativo de adaptação eharmomzaçao dos preceItos relatIVOSaos drreltos fundamentais na sua aplicação à esfera de relações entre indivíduos iguais, tendo em conta a autonomia privada, na medida em-que.-é (também) constitucionalmente reconhecida".3I Como já foi dito, os direitos fundamentais obrigam o Estado a prestações normativas de proteção e, assim, à edição de normas para proteger um ~articular contra o outro. Q1lando uma dessas normas não é observada, surge ao partIcular por ela protegido o direito de se voltar contra o particular que não a cumpriu. Aliás, o

27 Segundo Canotilho, para a teoria da eficácia mediata, "os di~e~tos,liberdades e g.aran:ias teriam uma eficácia indireta nas relações privadas, pois a sua vinculat1v1dade exercer-se-Ia prtma facie sobre o legislador, que seria obrigado a conformar as referidas rela~õe,~ob~d~cendo aos ~rincípios materiais positivados nas normas de direito, liberdades e garant1as (Dtretto constttucwnal, cit., p. 593). 28 José Carlos Vieira de Andrade, Os direitosfUndamentais ... , cit., p. 276-277. 29 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 593 e ss. 30 José Carlos Vieira de Andrade, Os direitosfUndamentais ... , cit., p. 289. . 31 Idem, p.290. Enfatiza-se, assim, a segunda questão geralmente enfocada peladoutnna da vinculação dos direitos fundamentais nas relações privadas: i~depen?ente~ente do mo~o d~ vinculação aceito, mediato ou imediato, é preciso analisar a medida ou mtens1dade dessa VIllCU lação (Juan María Bilbao Ubillos, -a técnica processual que se expressa através do binômio sentença condenatória-ação de execução tem ligação direta com os valores que fizeram supor que a tutela ressarcitória pelo equivalente 'poderia substituir a tutela específica do direito material.Atutela específica exige sentenças e meios executivos diferenciados. Porisso, épossívelfazer uma relação entre a-neutralidade da tutela ressarcitória pelo equivalente com a sentença condenatór-icu entre as várias necessidades de tutela dos direitos com astécnicas processuais destinadas

a permitir

aprestação das tutelas específicas.

Proto Pisani, ao alertar para a importância da distinção entre tutela específica etutela ressarcitória pelo equivalente, também a relaciona com as teorias da ação, ou, maisprecisamente, com a história das teorias da ação, dizendo que, na época em que asações eram típicas, as tutelas específicas e ressarcitórias ficavam a elas vinculadas, mas, depois da conquista da autonomia da ação - da sua desvinculação do direito material-, as tutelas específicas, porque ficaram subordinadas a uma ação autônoma e atípica - passível de ser utilizada para a obtenção de qualquer tipo de tutela-, passaram a depender apenas das técnicas processuais. 13 11 O ressarcimento na forma específica, no caso de a reparação exigir um fazer fungível, deveser prestado mediante a imposição de um fazer. Qy.ando o dano houver destruído a coisa, o ressarcimento na forma específica é prestado mediante a entrega de coisa da mesma espécie e estado da danificada. Nesse último caso, aliás, ainda que não tenha ocorrido a destruição total da coisa,será possível o ressarcimento na forma específica mediante a entrega de coisa equivalente. Ou seja, quem teve coisa de sua propriedade parcialmente ou inteiramente danificada pode postular o

ressarcimento na jàrma

específica mediante

a entrega de coisa.

Portanto, é correto afirmar que o CPC de 1973 transformou o direito à reparação do dano em direito à obtenção de dinheiro. Isso pelo motivo de que o modelo que foi por ele estruturado para o ressarcimento é completamente inidôneo para a prestação da tutela ressarcitória naforma específica, e assim para atender aos direitos que exigem tal forma de ressarcimento. 13 Andrea Prato Pisani, Lezioni di diritto processuale civile, p. 832 e ss. 12

278

I

A AÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

o

ilustre professor titular da Universidade de Florença reconhece que, diante da autonomia e da atipicidade da ação, a tutela específica pode ser requerida para a proteção de qualquer direito, mesmo os obrigacionais, e que a sua efetividade depende apenas das técnicas processuais, especialmente da" esecuzioneforzata informaspecifiea" da "tutela inibitoria", das "misure coercitive" e da "tutela sommaria".H '

Ou seja, quando Pisani argumenta que a tutela específica dos direitos não está mais amarrada às ações típicas - pois a ação autônoma abre oportunidade para a tutela específica de qualquer espécie de direito (daí a razão pela qual fala em ação atípica)_, dependendo apenas da adequação das técnicas processuais, admite que a ação, ainda que autônoma e atípica, obviamente não pode ser reduzida ao ato solitário em que se faz o pedido de tutela jurisdicional, mas concretiza-se em uma sequência de atos que dependem de técnicas processuais adequadas, como é o caso, por exemplo, das medidas coercitivas, apontadas por ele como um dos ''ponti critici" que ainda não foram solucionados, no direito italiano, para se atribuir efetividade à tutela específica.15

Porém, seProto Pisani constrói um raciocínio contemporâneo para a ação relacionando a sua utilidade com a necessidade de proteção do direito material- e, por isso, desenhando-a como um ente que se desenvolve e constitui um complexo de técnicas processuais -, acaba cometendo um erro interno ao seu raciocínio ao vincular a efetividade da ação com técnicas processuais - a" esecuzione forzata informa specifica", as "misure coercitive" e a" tutela sommaria" - e com uma única forma de tutela do direito material, a "tutela inibitoria".

Como é óbvio,Pisani raciocina como se a tutela inibitória fosse uma técnica processual, nos moldes das medidas de coerção e das técnicas processuais de execução. Na verdade,

o ilustre processualista italiano coloca a tutela inibitória no mesmo patamar das técnicas processuais, dando-lhe a mesma importância do que a essas últimas para a efetividade da ação. E é nesse ponto que é necessário discordar. A tutela inibitória não é uma técnica processual, como é a multa ou uma medida coercitiva. Se a multa é necessária para permitir a execução da decisão do juiz, essa (a decisão judicial), atrelada à multa (ao meio executivo adequado), é imprescindível para viabilizar a tutela inibitória. Melhor explicando: os meios executivos e a técnica de tutela sumária ou de antecipação da tutela são instrumentos capazes de viabilizar as tutelas prometidas pelo direito material, sendo que a tutela inibitória é apenas uma espécie entre elas.16 Enquanto sentença e multa são técnicas processuais, a tutela inibitória é uma tutela do direito.

As sentenças (condenatória, mandamental etc.) e os meios executivos sãc técnicas que servem à prestação da tutela jurisdicional. Porém, quando se pergunta sobre o significado da tutela jurisdicional perante o direito material, de nada adianta

14 15 16

Idem, p. 837 e ss. Idem, p. 837. Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processuaL., cit., p. 145 e ss.

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ber se foi proferida uma sentença x ou utilizado um meio de execução y, pois esses s~oincapazes de refletir o resultado que o processo proporciona no plano do direito sa al,mas apenas o " mouo J " ( • . ) . processu al tute Ia os . rnateri a tecmca pe Io qua Io d'lrelto . 17 diversoscasos co nfli tlVOSconcretos.

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A diferença da sentença e dos meios de execução para as tutelas é tão grande que asentença mandamental (que ordena sob pena de multa), além de idônea à tutela inibitória, também pode permitir, por exemplo, a tutela ressarcitória na forma específica- quando o dano pode ser reparado mediante um fazer. Não há como negar quea sen~e~ç~ e os meio~ d~ exe~u7~0 :~o apenas t~c~i~as para a efetiva ~restação da tutelajunsdlclOnal dos dIreItos (mlbltona, ressarCltona na forma espeClfica etc.).

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A correção é fundamental, pois é indispensável a separação entre tutela do direito etécnicaprocessual para o desenvolvimento do raciocínio preocupado em dar efetividade à primeira a partir da segunda - ou em externar, de forma crítica, a impossibilidade de seobter a efetividade da tutela do direito diante de eventual estruturação inadequada da técnicaprocessual. 18 Como se vê, a separação entre técnica processual e tutela dos direitos dá ao direitoprocessual a possibilidade de criticar a efetividade do direito de ação, que então deixade ser algo abstrato e indiferente à proteção das pessoas e dos direitos e, assim, podeser coerentemente colocado no posto de direito fundamental garantidor de todos osdireitos. Perceba-se que a conversão da tutela especifica em tutela pelo equivalente em dinheiro jaz com que a ação não tenha motivo para se diferenciar. Se as tutelas dos direitos perdem as suas características quando são transformadas em tutela pelo equivalente monetário, imediatamente deixa de existir razão para técnicas processuais diferenciadas. A-redução dastutelas dos direitos a uma única tutela (pelo equivalente) jaz com que passe a-ser szificiente um único modelo de ação - a ação que, muito mais do que autônoma, é indiferente aoque acontece no plano do direito material. A diftrenciação das técnicas processuais e,por consequência, da ação é uma decorrência da existência de distintas necessidades no plano dodireito material.

Se a ação, vista como entidade totalmente abstrata, não pode identificar as necessidades de quem a propõe, é preciso encontrar algo que seja capaz de apontá-las,pois apenas assim será possível verificar se a ação pode realmente atender aos desígnios do direito material. Ou seja, para analisar a efetividade da ação e, dessa forma, sua concordância com o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, é imprescindível tomar consciência das necessidades que vêm do direito material, as quais traduzem diferentes desejos de tutela, especialmente de tutelas específicas.

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17

Idem,p.146.

Por essa razão que é necessário pensar a técnica processual na perspectiva da tutela dos direitos, conforme Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direito. 18

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A crítica da efetividade da ação (por exemplo, da insuficiência da senten condenatória) tem como base a distinção entre tutela específica e tutela pelo eq~~ valente, uma vez que somente a partir do momento em que se constata que a tutel específica deve preferir à tutela pelo equivalente é que se pode indagar se a ação es~ adequadamente estruturada para viabilizar a obtenção das várias tutelas específicas. A sequência natural do raciocínio que vem sendo desenvolvido exigiria, à primeira vista, a imediata consideração das formas de tutela dos direitos e das técnicas processuais dispostas na legislação processual. Porém, antes de tal análise é preciso tratar de outro problema, tão importante quanto o da distinção entre tutela específica e tutela pelo equivalente monetário. Trata-se da questão da tipicidade das formas ou das técnicas processuais, que por muito tempo vinculou e subordinou a ação abstrata e atípica, engessando-a a formas pré-concebidas pelo legislador.

5.2 A ação única como decorrência do princípio da tipicidade das formas processuais O1Lando se fala em tipicidade das formas processuais se está longe do tema da tipicidade das ações. A tipicidade das ações tem a veLcom a época em que os direitos estavam subordinados à existência de ações ou dependiam de ações típicas para se realizarem.

O princípio da tipicidade das formas processuais não quer significar que as tutelas dos direitos estão subordinadas às ações típicas, mas sim que as técnicas processuais, capazes de dar corpo à ação autônoma e atípica, são apenas as que estão tipificadas na legislação. Tal princípio aceita a ideia de ação atípica, mas vincula a sua realizaçáo e desenvolvimento àsformas processuais expressamente definidas na lei. A aproximação da ação ao princípio da tipicidade das formas processuais, aqui realizada, obviamente não foi feita pela doutrina que viveu o momento histórico da afirmação desse princípio, até porque a discussão sobre a ação, no final do século XIX, era restrita ao problema da sua autonomia e da sua abstração, estando muito longe da questão relativa à sua efetividade. O princípio da tipicidade das formas processuais, em outras palavras, poderia no máximo ser relacionado com a efetividade do procedimento e das próprias técnicas processuais. Contudo, diante de uma leitura histórica e crítica desse princípio e do direito de ação, é possível dizer que a tipicidade das formas processuais constituiu a expressão do princípio de liberdade, próprio ao jusnaturalismo e ao racionalismo iluminista - garantia de liberdade totalmente compreensível em um contexto preocupado em proteger as liberdades do arbítrio dos juízes e das suas relações espúrias com o chamado Antigo Regime.19

19

Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu? ..., cit., p. 268 .

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Se o juiz dessa época não merecia qualquer confiança, e, portanto, o seu poder deveriaser nenhum20 - como disse Montesquieu21 -, era natural que o desenvolviento do procedimento ficasse atrelado às formas previstas na lei. Afinal, tal juiz :a visto como um "ser inanimado", incumbido de proclamar o "texto exato da lei". 22 Vittorio Denti, ao tratar de forma crítica da história do processo de conheimento, fez ver a razão de ser do princípio da tipicidade das formas processuais no ~stado liberal, lembrando que Chiovenda, em conferência proferida em 1901,23 insistiupara a necessidade das formas como garantia contra a possibilidade de arbítrio dOJ'uiz,deixando absolutamente clara "a estreita ligação entre a liberdade individual e' eo rigor das lOrmas processuals "24 . Seguindo essa linha, Denti advertiu que a antiga concepção burocrática da funçãojurisdicional, marcada pela excessiva racionalização do exercício dos poderes dojuiz,foi a responsável pela ideia de criar um modelo único de procedimento,25 de modo que opróprio conceito de "procedimento único" deita raízes nessa concepção primitiva e "liberal"dejurisdição. Esse conceito, como é fácil perceber, tinha razão de ser nesse momento da história, pois, se a forma protege a liberdade, nada melhor do que criar uma forma capaz de atender a todos os homens e a todas as situações, particularmente quando o Estado está proibido de se preocupar com as diferenças sociais e concretas entre osindivíduos e os bens. O procedimento único, idealizado para um mero burocrata, responsável pela aplicação mecânica da lei, culminava em uma sentença que só poderia permitir a sua declaração (no sentido lato ).Ao declarar a lei ojuiz poderia desconstituirum contrato,

20

Montesquieu

(en que/que/afon,

concluiu que o "poder de julgar" era, de qualquer modo, um "poder nulo"

nulle) (Montesquieu,Do

espírito das leis,cit.,p.160).

V. Giovanni Tarello, Storia della cultura giuridica moderna ... , cit., p. 291. 22 Montesquieu, Do espírito das leis, cit., p. 158. M. Tropper, La funcion judicial, Ética y democracia, p. 213: "Para negar que los jueces dispongan de un p.oder-discrecional habitualmente sefundamenta en una o otra de las variantes de1 silogismo judicial, cuyo origen se encuentra en Montesquieu. Esta teorÍa, portanto, no está ligada exclusivamente con la teorÍa democrática, aun si ciertas teorías democráticas se sirven de ella. No es necesario exponer la teorÍa de1 silogismo, la cual es bien conocida. Se conoce las célebres fórmulas de Montesquieu: 'Si los tribunales no deben ser fijos,las sentencias deben sedo de tal manera que sean siempre más que un texto preciso de la ley' (EI espíritu de las leyes, XI, 11). La teoría de1 silogismo ha sido retomada por Beccaria en términos muy claros. 'En presencia de todo delito, e1juez debe formar un silogismo perfecto: la premisa mayor debe ser la ley general; la menor el acto conforme o no conforme con la ley; la conc1usión sería la absolución o la condena"'. 23 Giuseppe Chiovenda, Le forme nella difesa giudiziale dd diritto. Saggi di diritto pro21

cessuale civile. 24

Vittorio Denti, I1processo di cognizione nella storia delle riforme. Rivista p. 808. Idem, ibidem.

di Diritto e Procedura Civil e, 1993, 25

Trimestrale

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condenar o réu e declarar a existência ou a inexistência de uma relação jurídica. Ness último caso a lei era declarada com a função de declarar a existência ou a inexistência d uma relação jurídica, ao passo que no primeiro ojuiz declarava a lei para desconstiu/ um contrato e, no segundo, para condenar o réu. Qyer dizer que a sentença, comI disse de maneira figurada Carnelutti,26 era sempre feita com o metal da declaraçã~ ainda que pudesse ter uma das três funções antes lembradas, isto é, ser declaratóri~ (em sentido estrito), constitutiva ou condenatória. Aliás, o Estado liberal clássic tinha a sentença declaratória (em sentido estrito) como ideal, pois por meio dela o juiz apenas declarava a existência de uma relação jurídica já formada pela autonomia de vontade.27 Na verdade, as sentenças declaratória e constitutiva satisfazem por s mesmas a tutela jurisdicional buscada pelo autor, tornando desnecessária a prática de qualquer ato de execução. A mera prolação dessas sentenças é suficiente para que a tutela jurisdicional seja integral.28

No contexto das sentenças da classificação trinária, apenas a sentença condenatória exige meios executivos para que a tutela do direito possa ser prestada. Tanto é verdade que a doutrina italiana, ao considerar o conceito de condenação, exprimiu a ideia de que a sentença condenatória constitui apenas umajàse da tutela jurisdicional, sendo a execução a responsável pela tutela do direito de crédito. 29

Francesco Carnelutti, Lezioni di diritto processuale civile, v. 2, p. 25 e ss. "Não é possível esquecer, ademais, que a escola sistemática formou-se sob a influência de um modelo de Estado de Direito de matriz liberal, o que significa que a doutrina chiovendiana de certa forma ainda estava sob a influência da orientação que inspirou os juristas do século XIX. Esse modelo institucional de Estado, marcado por uma acentuação dos valores da liberdade individual em relação aos poderes de intervenção estatal, reflete-se sobre a concepção de sentença declaratória, enquanto sentença que regula apenas formalmente uma relação jurídica já determinada em seu conteúdo pela autonomia privada" (Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória, cit., p. 240). Vittorio Denti reconhece a ligação da ação declaratória com o modelo institucional liberal: ''Altro punto che va tenuto fermo e il carattere preventivo dell'azione inibitoria. La dottrina processualistica ha, per lunga tradizione,risolto la tutela giurisdizionale preventiva nel mero accertamento, con una scelta che non ha avuto - come e stato recentemente dimostrato - soltanto carattere concettuale, poiché era condizionata dalia tendenza a delimitare rigidamente i poteri d ingerenza statale nella sfera giuridica privata. Si trattava, quindi, della adesione al modello istituzionale liberale, chiaramente presente nel maggiore teorizzatore dell' azione di mero accertamento e della sua funzione preventiva, Giuseppe Chiovenda" (Diritti della persona e tecniche di tutela giudiziale. L'inftrmazione e i diritti della persona, p. 267). V. também Cristina Rapisarda, Pr'?ftli ... cit., p. 70-72; e Premesse alio studio della tutela civile preventiva. Rivista di Diritto Processuaie, 1980, p. 128 e ss. 28 V. Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual ... , cit., p.149. 29 Crisanto Mandrioli, L'azione esecutiva. Satta também disse que a tutela do direito de crédito não está na sentença condenatória, mas sim na execução forçada sobre o patrimônio do devedor (Premesse generali alia dottrina della esecuzione forzata. Rivista di Diritto Processuale Civile, p. 368, 1932). Na mesma direção escreveu Alessandro Rasseli: "Nelle sentenze di accertamento l' attestazione autoritativa dell'esistenza di una concreta volontà di legge - che stabilisce quale sia 26 27

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portanto, se existia apenas um procedimento até as três sentenças, variava o que odiaacontecer apenas em relação à sentença condenatória. O não cumprimento da ~ondenação por parte do réu abria oportunidade ao uso de meios para a sua execução. Acontece que a sentença condenatória também foi moldada nos ares do Estado llberal,estando presa aos valores da liberdade e da segurança jurídica. 30 Por isso, as mesmas razões que levaram à definição de um único procedimento até a sentença conduziram à tipificação dos meios para a sua execução. Se a sentença condenatória é ligada às modalidades executivas tipificadas na lei, elimina-se a possibilidade de o juiz utilizar qualquer outro meio de execuão,controlando-se, dessa forma, a sua possibilidade de arbítrio. Na mesma linha, àeixando-se claro que a esfera jurídica do réu não pode ser invadida por meio executivonão previsto na lei, garante-se a liberdade ou a segurança psicológica do cidadão. Essa segurança seria derivada da "certeza do direito" ou da garantia de que somente poderiam ser utilizados os meios executivos tipificados na lei. Tal necessidade de segurança ou de garantia de liberdade é que levou a doutrina a fixar o princípio da tipicidade dos meios de execução. Aliás, há não muito tempo Mandrioli observou, no direito italiano, que "a precisa referência às formas previstas no Código de Processo Civil implica reconhecimento da regra fundamental da intangibilidade da esfera de autonomia do devedor, a qual somente latutela degli interessi delle parti in un dato rapporto giuridico - esaurisce i provvedimenti che le parti possono o vogliono chiedere al giudice, dato il modo con cui si e determinata la situazione diinsodisfazione dei loro interessi (...). T ale elemento nelle sentenze di condanna e la pronunzia sullapossibilità di un'ulteriore attivitàgiurisdizionale perassicurare la tutela degliinteressi protetti: nelle sentenze costitutive e un'ulteriore attività del giudice che addirittura realizza nella stessa sentenza quella sodisfazione degli interessi cui e stato accertato che una parte ha diritto. Q1Iesta sodisfazione e data da un cambiamento della preesistente situazione di diritto materiale"(Sentenze determinative e classificazione delle sentenze. Scritti giuridici in onore di Francesco Carnelutti, v. 2,p. 580). Cristina Rapisarda, recentemente, ao tentar classificar as sentenças a partir do efeito que é por elas declarado no plano do direito material, concluiu que determinados provimentos (odeclaratório e o constitutivo) realizam autônoma e integralmente a tutela concedida pela norma à fattispecie substancial declarada, podendo, assim, receber a designação de "satisfativos" (Pr'?ftli ... , cit.,p.231 e ss.). 30 Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória, cit., p. 342 e ss. Sobre a relação entre a segurança, a legalidade e a liberdade à época do Estado liberal, assim se expressa Tropper: "Su justificación reside en el principio de legalidad, igualmente ligado estrechamente a la concepción que se tenía de la libertad en el Siglo de las Luces. La expresión 'libertad política' tiene, en efecto, dos sentidos en esta época. En sentido amplio, es la libertad de aquel que se encuentra sometido únicamente a la ley. Es libre porque, en la sociedad, como en el mundo físico, está en posibilidad, siconoce las leyes, de saber, por lo mismo, todas las consecuencias de sus acciones y, así, de tomar decisiones con claridad. La libertad espues, simplemente, la previsibilidad o seguridad jurídica" (La función judicial, cit., p. 214).

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poderia ser invadida nos modos e através das formas tipicamente processual".31

previstas pela I. el

Em suma, a definição de uma forma processual única e invariável, caracterí t' ." e vo 1ta d a a con fieru. " segurança Jun . 'doIca,"fu n d ou-se na neces s lCa a," cer t eza d o d'ueIto '_ dade de proteção da liberdade contra o arbítrio estatal. SI

É claro que a ideia de um procedimento único também foi legitimada pela d necessidade, decorrente dos valores da liberdade e da economia liberal, de tratam es.. d'fi I erencIa. d o d os di reItos, assIm como pelo d esejo da escola (chamada sistemát'ento h~st?rico-~ogmática o~ chiove~d~ana) que se estabeleceu no início da afirmaçãol~~ dIreIto autonomo de açao, de eltmmar do processo qualquer mancha do direito material.

, . A imunizaç~o do ?~ocess? e~ relação ao direito material, proposta pelos teoncos da e~co~a ~ls.tematIca, atmgm a ação - vista como ato isolado pelo qual se pede a tutela JunsdIclOnal- e todos os demais institutos que a rodeavam, como se a ação fosse o centro do universo e as sentenças e meios de execução os seus satélit A ação, como entidade autônoma e abstrata diante do direito material, obviamen~~ era circundada por sentenças e meios de execução identificados a partir de critérios unicamente processuais. Nessa dimensão, como é óbvio, não há como pensar em efitividade da ação ou das técnicas processuais perante o direito material.

Note-se, aliás, q~e a tarefa de separar a ação do procedimento, isto é, de ver a ação apenas como ato mediante o qual se pede a tutela jurisdicional e o procedimento como o canal que leva ao julgamento do mérito, certamente contou com o auxílio da tese de que oprocesso nada tem a ver com o direito materia!.

_ Ora, se op'rocesso é totalmente ináiferente ao direito material, não há razão para ligar a açao ~oprocedzmen~o: dando-se à ação a dimensão de um instituto que se desenvolve com ajinaltdade de permztzr a obtenção da tutela efitiva do direito, e que por isso é totalmente depen~en~e das técnicas f!rocessuais.A ação somente pode ser dita dependente doprocedimento e das tecnzcas processuazs quando oprocesso, como um todo, é associado ao direito material. Ou melhor, para se falar em efetividade da ação é preciso partir da premissa, atualmente indiscutível, de que o processo deve-responder ao direito material e chegar à consequência, daí natural, de que o direito de ação, por ser a contrapartida da proibição da tutela privada, é exercido pelo autor para a obtenção da tutela efitiva do direito e, assim, inegavelmente exige procedimento e técnicas processuais idôneos. Portanto, a crítica endereçada ao procedimento único é a mesma que se pode fazer à ação que se desenvolve mediante apenas um procedimento. Se oprocedimento único é expressão de uma garantia de liberdade própria de um Estado que não mais existe, u mesmo pode ser dito da ação que somente pode ser exercida mediante um único procedimento. Prefire-se criticar oprocedimento, e não a ação, pela simples razão de que não se dá à ação um conteúdo que abarca oprocedimento e as técnicas processuais. 31 Crisanto Mandrioli, L'esecuzione specifica dell'ordine di reintegrazione lavoro. Rivista di Diritto Processuale,p. 23, 1975.

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princípio da tipicidade das formas processuais, ou a existência de um procedíJnentoúnico, elimina qualquer possibilidade de vinculação da ação com o direito ll1ateriale com o procedimento e as técnicas processuais, proibindo que se fale em "efetividadeda ação".

5.3 O escopo de tutela dos direitos A necessidade de isolamento do direito processual em face do direito material levoUa doutrina a afastar das suas preocupações a principaljinalidade dajurisdição: a tutela dos direitos. A escola processual italiana do início do século XX teve o grande mérito de reconstruir o processo a partir de bases publicistas, mas iniciou a história que permitiu aO processo se afastar perigosamente dos seus compromissos com o direito material. A ação abstrata, preocupada - de maneira excessiva - em se despir de toda e qualquer mancha de direito material, não se ligou a qualquer forma processual que pudesseindicar uma relação do processo com as necessidades do direito material. A escolaitaliana clássica não só negou à ação qualquer vínculo com um procedimento quepudesse apontar para as necessidades do direito material, como também organizouas formas processuais que necessariamente deveriam estar ao redor da ação a partir de critérios unicamente processuais. Seguindo a lógica da "neutralidade" em relação ao direito material, que já caracterizava a ação - posta no centro do sistema processual32 -, os processualistas imaginaram que deveriam criar um universo de sentenças igualmente abstrato. Tal lógicasupunha que a resposta jurisdicional ao direito de ação também deveria ser isentaem relação ao plano do direito material. Por essa razão, as sentenças obviamente nãoforam vistas como tutelas aos direitos, ou como instrumentos capazes de propiciar atutela dos direitos, mas apenas como provimentos processuais de fecho do processo. Pensou-se que o processo poderia existir sem qualquer compromisso com o direito material e com a realidade social. Porém, como não é difícil constatar, houve umalamentável confusão entre autonomia cient(fica, instrumentalidade e neutralidade do processoem relação ao direito material. Se o direito processual é cientificamente autônomo e o processo possui natureza instrumental, isto está muito longe de significar que ele possa ser neutro em relação ao direito material e à realidade da vida. Aliás, justamente por ser instrumento é que o processo deve estar atento às necessidades dosdirei tos. 33

32 Michele Taruffo, "Sistemaejunzione deiprocessocivilene!pensiero di GiuseppeChiovenda", RivistaTrimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1.133/1,168. 33 O BGH alemão já afirmou expressamente que o processo civil possui o escopo de realizaro direito material, esclarecendo que as suas normas não têm um fim em si mesmo, uma vezque são dirigidas a um fim (BGHZ 10,359) .

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mais grave é que a pretendida indiferença do processo em relação ao dire' material faz com que o sistema jurídico, que obviamente depende do processo pit que os textos jurídicos ganhem significado normativo, as normas sejam atuada~ os direitos sejam efetivados, não tenha a possibilidade de atender às necessidad reveladas pelo direito material. Ora, os institutos doprocesso dependem da estrutura n~ apenas das normas que instituem direitos, mas também dasformas deproteção ou de tut;' que opróprio direito substancial lhes confere.

No Estado Constitucional, pretender que o processo seja neutro em relaçã ao direito material é o mesmo que lhe negar qualquer significado. Isso porque se indiferente ao que ocorre no plano do direito material é ser incapaz de atender à necessidades de proteção ou de tutela reveladas pelos novos direitos e, especialmente, pelo direitos fUndamentais.

Nossa Constituição exige a colocação da tutela dos direitos como fim do pro cesso civil. Sendo o Estado Constitucional ancorado na pessoa humana e o Estad de Direito nele implicado fundamentado na segurança jurídica, a finalidade óbv colimada ao processo civil só pode estar na efetividade dos direitos proclamados pel ordemjurídica. OEstado Constitucional existe para promover osjins dapessoa humana-e isto quer dizer que oprocesso civil no Estado Constitucional existe para dar tutela aos direito

É preciso perceber, todavia, que afirmar a tutela dos direitos como escopo d processo civil obviamente não implica retroceder-à--compreensão do processo Corn simples meio para realização de direitos subjetivos, nem em negar o caráter público d processo civil. Na verdade, a postura dogmática preocupada em apontar a tutela do direitos como fim do processo visa a resgatar o devido "collegamento tra diritto 505 tanziale eprocesso",34 sem, no entanto, perder de vista o seu caráter autônomo. Nad obstante a "interdipendenza tra diritto sostanziale e diritto processuale"35 no plano d efetividade, é evidente que o processo não se confunde com o direito material. E mai como parece inquestionável, a efetiva tutela dos direitos não pode ser vista como fim estranho ao Estado. O deslocamento do escopo do processo para o seu campo, por tanto, longe de negar o caráter público do direito processual civil, visa apenas a corta os "eccessipubblicistici"36 do seu período de formação e apontar para necessidade de tutela dos direitos constituir condição de sua legitimação social. No fUndo, a colocaç da tutela dos direitos comojinalidade doprocesso corresponde, na dogmática processual civi à proeminência reconhecida à pessoa humana diante do Estado no plano constitucional.

Portanto, outorgar àjurisdição o escopo de tutela dos direitos é imprescindível para dar efetividade aos direitos fundamentais, inclusive ao direito fundamental tutela jurisdicional efetiva. Como é óbvio, essa forma de conceber a função jurisdiciona

Adolfo di Majo,La tutela civile dei diritti, p.S. Andrea Proto Pisani, Lezioni di diritto processualecivile, p. 5. 36 A feliz expressão é de Eduardo Grasso, La dottrina dd processo civile alia finede secolo,Rivista di Diritto Civile, p. 387. 34

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fazcom que a ação neutra (única) per~a ~ustentaç.ã~,já que essa ação é completamente incapazde atentar para opapel que o dIreIto hegemomco desenvolve diante da sociedade edoEstado.

5.4 Técnica processual e tutela dos direitos É preciso advertir que, além da tutela jurisdicional, os direitos encontram outrasformas de tutela ou proteção por parte do Estado. Lembre-se que os direitos fundamentais, quando enquadrados em uma dimensão multifuncional, exigem prestaçõesde proteção. Isso quer dizer, em poucas palavras, que os direitos fundamentais fazemsurgir ao Estado o dever de protegê-los. Ora, essa proteção ou tutela devida peloEstado certamente não se resume à tutela jurisdicional. O Estado, antes de tudo, tem o dever de proteger os direitos fundamentais mediantenormas de direito. É o que ocorre, por exemplo, quando se pensa na legislação deproteção ao meio ambiente e na legislação de defesa do consumidor. A norma que proíbe a construção em determinado local e a norma que proíbe odespejo de lixo tóxico em certo lugar constituem normas de proteção ou de tutela dodireito fundamental ao meio ambiente sadio. Embora o Estado tenha o dever de proteger os direitos fundamentais, o art. 5.°,XXXII, da CF não se limitou a dizer que o direito do consumidor é um direito fundamental. Ele disse que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor",deixando expresso que o Estado tem o dever de proteger, mediante normas, oconsumidor. Trata -se de um dever de proteção ou de tutela que chamamos de dever de"tutela normativa dos direitos". Porém, como a edição da norma não basta, o Estado também tem o dever de fiscalizaro seu cumprimento, impor a sua observância, remover os efeitos concretos derivados da sua inobservância, além de sancionar o particular que a descumpriu. Recorde-se das atividades dos fiscais da saúde pública e dos direitos do consumidor eda figura do guarda florestal. Temos, nesse caso, evidente proteção ou tutela administrativa. Qrando o administrador, em processo administrativo, decide que houve infraçãoa uma norma de proteção, o seu dever passa a ser- quando não lhe restar apenas o merosancionamento do particular pela conduta reprovada - o de fazer valer o desejo danorma, seja no caso de ato comissivo ou de ato omissivo. Assim, por exemplo, nas hipóteses em que o administrador determina a paralisação da construção de obra, a instalação de determinado equipamento antipoluente ou a retirada de remédio ou produto nocivo do mercado - nessas situações, a proteção, dada pela norma, é mais umavez afirmada pelo administrador. Aliás, não se pode negar que, mesmo quando o administrador impõe multa ao particular, ele presta tutela ou proteção ao direito fundamental.

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No caso em que o legislador se omite diante do seu dever de proteção norma_ tiva, o juiz deve supri -la, admitindo a incidência direta do direito fundamental sobre o caso conflitivo.37 A questão da incidência direta do direito fundamental sobre Os particulares é uma das mais tormentosas da atualidade. 38 Porém, não é preciso pensar em incidência direta do direito fundamental sobre os particulares quando se dá ao juiz o poder de suprir a omissão do dever de proteção do legislador, uma vez que nesse caso o direito fundamental estará incidindo sobre o sujeito privado mediante a participação da jurisdição, e assim a sua incidência estará sendo mediatizada pelo Estado. Nessa situação, a tutela normativa estará sendo substituída pela tutela jurisdicional. Não se quer dizer que ajurisdição, na tutela dos direitos fundamentais, apenas apareça no caso de omissão de tutela do legislador. A compreensão da tutela jurisdicional exige esforço e concentração no plano do significado normativo. As normas de proteção de direitos fundamentais, como os do consumidor e ao meio ambiente sadio, não são atributivas de direitos, mas impositivas ou proibitivas de condutas, partindo da consideração deque determinadas condutas devem ser impostas ou proibidas para que os direitos fundamentais sejam tutelados. Portanto, tais normas, quando violadas, não exigem as formas de tutela que costumam ser dadas ao cidadão diante do ilícito danoso. Como é evidente; a simples exposição à venda de produto nocivo à saúde não dá a consumidor algum o direito de pedir tutela jurisdicional ressarcitória. A única forma de tutela jurisdicional que se pode ter na hipótese de violação de norma de proteção é exatamente aquela que, de forma similar ao que acontece no plano administrativo, impõe a observância da norma ou remove os efeitos concretos derivados da sua violação. Ora, qual seria a forma de tutela jurisdicional diante da violação de norma de proteção a direito fundamental senão aquela capaz de fazer valer o próprio comando da norma descumprida? Nesse caso, a forma de tutela decorre da própria natureza da norma violada. A violação exige a atuação da norma, e não um remédio capaz de garantir proteção ao sujeito que sofreu dano, isto é, a tutela ressarcitória. Isso não significa que a violação de norma de proteção não possa acabar acarretando danos aos cidadãos ou mesmo a direitos transindividuais, como o direito ambiental. Nesse caso há duas formas de tutela ressarcitória: pelo equivalente e na forma específica. QJ.ando não há alternativa senão a consideração do valor do dano

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V. Claus-Wilhe1m Camuis,Direitosjundamentais e direito privado, cit., esp. p.101 e ss. A respeito da eficácia dos direitos fundamentais sobre os particulares, ver José Carlos Vieira de Andrade, Os direitosjimdamentais ... ,cit.,p.290 e sS.,e Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares, Constituição, direitosjundamentais e direito privado; José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, cit., p. 1.270 e SS.,e Dogmática de direitos fundamentais e direito privado, Constituição, direitosftndamentais e direito privado; Claus-Wilhe1m Canaris, Direitosftndamentais e direito privado, cit., e A influência dos direitos fundamentais ..., cit.;Jõrg Neuner, O Código Civil da Alemanha (BGB) e a Lei Fundamental, Constituição, direitos ftndamentais e direito privado; Juan María Bilbao Ubillos, En quê medida ... ,cit. 37 38

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mdinheiro ou quando o cidadão prefere o ressarcimento em pecúnia ainda que seja eossívela tutela específica, impõe-se a tutela jurisdicional ressarcitória pelo equivaknte.39 No caso de direito transindividual, sendo faticamente viável a reparação in natura, a tutela ressarcitória deve ser prestada na forma específica.4O O Estado tem o dever de tutelar ou proteger os direitos fundamentais por meio denormas, da atividade administrativa e da jurisdição. Por isso, há tutela normativa, tutelaadministrativa e tutela jurisdicional dos direitos. A jurisdição tem o dever de proteger ou tutelar todos os direitos, sejam fundamentais ou não. Porém, dizer que a jurisdição deve atender ao direito material podesignificar, simplesmente, que o processo deve acudir aos direitos atribuídos aos cidadãos pelas normas materiais, o que não expressa algo muito-relevante, a não ser umclichê que vem sendo utilizado pelos processualistas para dizer algo que é correto, porémóbvio e destituído de importância, especialmente quando se almeja uma dogmática capaz depermitir a efetiva retomada dos laços entre oprocesso civil e o direito material. Esse clichê pode ser identificado no ditado de Chiovenda, hoje celebíizado pela doutrina processual, que diz que o processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e exatamente aquilo que tem o direito de obter.Além de Chiovenda não ter construído essafrase com a mesma boa vontade e intenção dosprocessualistas que a repetem, 41 elaé insuficiente para identificar uma dogmática adequada aos nossos dias. A preocupação com a tutela dos direitos não diz respeito apenas à idoneidade doprocesso para atender aos direitos, pois é uma questão que se coloca,já em um primeiro momento, no âmbito do direito material. E, noplano do direito material, implica aáoçãode uma postura dogmática que retira ofoco das normas ditas atributivas de direitos 39 O art. 927, caput, do CC12002 afirma textualmente que "aquele que, por ato ilícito (arts. 186e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Qlrase no mesmo sentido, dizia o art.159 do CC/1916: '~quele que, por açâo ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violardireito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano". 40 Segundo Pontes de Miranda, na ação que objetiva reparar o ato ilícito, "o pedido pode dirigir-se à restauração em natura, e somente quando haja dificuldade extrema ou impossibilidade de se restaurar em natura é que, em lugar disso, se há de exigir a indenização em dinheiro" (Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, v. 26, p. 28). 41 E não vai aqui nenhuma crítica à doutrina que se vale do ditado chiovendiano. Nós chegamos a usá-lo expressamente em um dos itens do livro Tutela inibitória, ainda que assim advertindo: "Cabe lembrar, porém, que Chiovenda, apesar de ter dito que o processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e exatamente aquilo que tem o direito de obter, afirmou, nas suasInstituições, o seguinte: 'Se, por sua natureza ou por falta de meios de sub-rogação,não se pode conseguir um bem senão com a execução por via coativa, e os meios de coação não estão autorizados

na lei, aquele bem não é conseguível no processo, salvo a atuação (se possível, por sua vez) da vontade concreta de lei que deriva da lesão ou inadimplemento do direito a uma prestação; salvo, por exemplo, o direito ao ressarcimento do dano" (Giuseppe Chiovenda, Instituições de direito processual civil, v. 1, cit.,p. 290)" (Tutela inibitória, cit., p. 364).

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para jogar luz so~re. a esftra das tutelas, local em. que se encontram asformas de tutela oude proteção que os dzreztos reclamam quando são vzolados ou expostos a ameaças de violação.42

As formas de tutela são garanti9as pelo direito material, mas não equivale aos direitos ou às suas necessidades. E possível dizer, considerando-se um dese~ n volvimento linear lógico, que as formas de tutela estão em um local mais avançad . é preciso partir dos direi:os, passar pelas suas necessidades, para então encontrar ~~ formas capazes de atende-las.

Assim, por exemplo: a Constituição Federal afirma que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (art. 5.0,X),e que "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além ch-indenização por dano material, moral ou à imagem" (art. 5.°, V). Nesse caso, a Constituição garante de maneira expressa váriasformas de proteção ou de tutela aos direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.43

Ou seja, tais normas não se limitam a atribuir ou a proclamar direitos, mas consideram as suas necessidades e afirmam as formas imprescindíveis à sua proteção. Q1lando a Constituição diz que tais direitos são invioláveis, afirma que eles exigem uma forma de proteção jurisdicional capaz de impedir a sua violação. Mas, além disso, confere a tais direitos, no caso de violação, indenização, deixando claro que eles devem ser protegidos ou tutelados mediante ressarcimento nos casos de dano material e moral.

Perceba-se, porém, que a primeira parte do inc. V do art. 5.0,_ao dizer que "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo", garante uma forma de proteção ao direito que não se confunde com a inibitória ou com a ressarcitória pelo equivalente. Trata-se da tutela ressarcitória na forma específica, já que destinada a repararo dano de modo específico, e não mediante ,o pagamento do equivalente em dinheiro ao seu valor. 44

42

Adolfo di Majo, Forme e tecniche di tutela. Processo

e tecniche di attuazione

dei diritti,

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1,p.ll e ss. 43 V. Sérgio Cruz Arenhart,A tuteia inibitória da vida privada.

44 Muito embora a reparação do dano não seja plena, seja porque a publicação ou a transmissão podem não atingir todos aqueles que tiveram ciência do fato danoso, sejaporquetal ciência não elimina a dor moral gerada pela imputação ofensiva,o certo é que a tutela colaboro para a reparação do dano, que ficaria sem tutela adequada caso somente pudesse ser sancionado em pecúnia. Lembre-se, para exemplificar,que, de acordo com o artigo120 croCPC italiano,nos casos em que a publicação da sentença puder contribuirpara reparar o dano, ojuiz, a requerimento da parte, poderá ordená-la aos cuidados e às expensas do sucumbente, mediante a inserçãopor extrato em um ou maisjornais por ele designados. A doutrina italiana entende que a publicação da sentença, prevista no referido artigo120, assim como a publicação da retificação relativaa notícias veiculadaspor meio de periódicos, colaboram para reparar o dano. Como percebeu Grazia Ceccherini (Risarcimento dei danno e riparazione infOrma specijica, p. 72), o recurso a formasde

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Como se vê, a postura dogmática preocupada com as tutelas é atenta para asforrnasdeproteção ou de tutela dos direitos. Ela não está preocupada em saber se os cidadãos

têmeste ou aquele direito, ou mesmo com a identificação de direitos difusos e coletivos. de tutela dos direitos", a atribuição de titularidade de um direito fica na dependência de que lhe seja garantida a disponibilidade de uma forma de tutela que s~ja.adequada à necess~d~d~ d~ s~a proteção. Ou :nelhor, o sujeito sÓé titular de um dIreIto, ou de uma poslçao JundIcamente protegIda, quando esse direitodisponha de umaforma de tutela que seja adequada à necessidade de proteção queesta posição exija.45 Como está claro, há aí um proposital desvio de rota dirigido apermitir a diferenciação entre a atribuição - ou, como dizem alguns, aproclamação - de

É que,na perspectiva das "formas

direitos e a existência de "posiçõesjurídicas protegidas".

Note-se que ter direito à imagem é algo muito diferente do que ter uma forma detutela adequada à sua proteção, como a tutela inibitória. Ter direito ao meio ambiente sadionão quer dizer ter direito à tutela ressarcitória na forma específica. O direito doconsumidor deve ter ao seu dispor a tutela capaz de remover os efeitos concretos derivados do ato que violou a norma de proteção, e assim por diante. Ademais, a questão das formas de tutela, por dizer respeito ao plano do direito material, não deve se confundir com o problema de se saber se o processo civil é capaz dedar efetividade aos direitos, ou melhor, às formas de tutela prometidas pelo direito material. Pergunta-se sobre as formas de tutela na esfera do direito material, portanto antes de se analisar a efetividade do processo. Aliás, caso a questão das "formas de tutela"pudesse ser confundida com a da "efetividade do processo", estaria negada a obviedade de que apergunta sobre aforma de tutela é um degrau que necessariamente serultrapassado para se chegar à prob!ematização da efetividade do processo.

deve

O processo deve se estruturar de maneira tecnicamente capaz de permitir a prestação das formas de tutela prometidas pelo direito material. De modo que, entre astutelas dos direitos e as técnicas processuais deve haver uma relação de adequação. Mas essarelação de adequação não pergunta mais sobre asformas de tutela, porém sim a respeito das técnicas processuais. Ou melhor, quando se indaga sobre a efetividade do processo já se identificou a forma de tutela prometida pelo direito material, restando verificar se as técnicas processu-

ais são capazes de propiciar a sua efetiva prestação. Não é por outro motivo que não se pode misturar tutela inibitória com sentença mandamental ou tutela ressarcitória pelo equivalente com sentença condenatória. Também por essa razão não há como deixar deconstatar que a tutela antecipada não é uma técnica processual, mas a antecipação da forma de tutela capaz de atender ao direito material. Na realidade, como agora é tutelalato sensu específicasé, sem dúvida, mais adequado, eportanto preferível em relação a uma sentença que se limite a condenar o autor do dano ao direito da personalidade ao ressarcimento em dinheiro (LuizGuilherme Marinoni, Técnica processuaL, cit., p. 434 e 55.). 45 Adolfo di Majo, La tutela ... , cit., p. 43 e 55.



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fácil perceber, há uma técnica para a antecipação da tutela. Assim como a sentença e os meios executivos servem para viabilizar a tutela final, a decisão antecipatória e Os meios executivos a ela adequados têm o objetivo de permitir a antecipação da tutel a. ~ando se propõe o binômio técnica processual-tutela dos direitos não se qUe simplesmente reafirmar a velha estória da necessidade de adequação do processo ao direito material. Deseja-se, isto sim, a partir de uma postura dogmática preocupada com as posições jurídicas protegidas e com asjôrmas de tutela necessárias para lhes dar proteção - e não mais apenas com as normas atributivas de direitos -, chegar a Uma verdadeira análise crítica da ação e do processo, mediante a verificação da idoneidade das técnicas processuais para prestar asjôrmas de tutela prometidas pelo direito material.

Deixe-se claro que o significado de "técnica", aqui empregado, está muito longe daquele que se costuma atribuir à "técnica" despreocupada com a realidade da vida. Ao se falar em técnica processual, não se pretende - nos termos das teorias ditas tecnicistas - elaborar um sistema imune ou neutro, como se o processo civi não fosse destinado a atender aos conflitos dos homens de carne e osso. Ao inverso a única razão para relacionar a técnica processual e as tutelas dos.direitos é demons~ trar que o processo não pode ser pensado de forma isolada ou neutra, pois só possui sentido quando puder atender às tutelas prometidas pelo direito material, para o que é imprescindível compreender a técnica processual (ou o processo) a partir dos direitos fundamentais e da realidade do caso concreto. De modo que, ao contrário das doutrinas e dos sistemas desprovidos de paixão pelo homem e pela vida, e que procuram encontrar sustentação em conceitos abstratos que tanto são melhores quanto mais "limpos e transparentes" - isto é, neutros -, a nossa teoria não tem outra preocupação a não ser evidenciar a falácia da teoria processual clássica, que ignorava a própria razão de ser da jurisdição, da ação, da defesa e do processo.

O Novo CPC em parte atendeu à necessidade de estruturação da técnica processual à luz do discurso da tutela dos direitos, na medida em que em várias passagens alude ao conceito de tutela do direito e às suas formas para promover uma adequada ancoragem do processo civil em relação ao direito material (por exemplo, arts. 139, VI e 498). Em pontos cruciais, porém, continuou insistindo na alusão às velhas categorias privatistas das prestações de fazer, não fazer, entregar coisa e pagar quantia como eixo para viabilizar a prestação da tutelajurisdicional dos direitos (por exemplo, arts. 497 e 498 -nada obstante o parágrafo único do artA97 tenha bem apreendido a necessidade de trabalhar com os conceitos ligados à tutela dos direitos). Essas categorias, porém, nada obstante possam designar os comportamentos que são devidos para realização de determinadas prestações, nada dizem a respeito da natureza da tutela do direito que deve ser prestada e, portanto, de como o processo tem de se organizar do ponto de vista técnico para bem fazê-lo - vale dizer, não tem o condão, por exemplo, de circunscrever o debate processual à ameaça de ilícito, como é capaz de indicar ao invés a utilização do conceito de tutela inibitória. Por essa razão, o discurso preocupado em relacionar técnicas processuais e tutela dos direitos em nada se confunde com o surrado esquema das prestações de dar, fazer e não fazer como meio de promover

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relacionamento entre o direito material e o processo em termos de efetiva tutela ~isdicional- imaginá-lo constitui ingenuidade indesculpável ou escuso comproJ 'sso com um modo totalmente ultrapassado e seletivamente inefetivo de encarar ~rocesso civil. Daí a razão pela qual o ideal teria sido permear textualmente todo o NovaCódigo de Processo Civil a partir da categoria da tutela do direito.

5.5 As tutelas jurisdicionais dos direitos Como é intuitivo, a forma ideal de proteção do direito é a que impede a sua violação.Ter direito, ou ter uma posição jurídica protegida, é, antes de tudo, ter direito auma forma de tutela que seja capaz de impedir ou inibir a violação do direito. Essa formade tutela é importante, sobretudo, para os direitos não patrimoniais, isto é, para osdireitos que não podem ser reparados por um equivalente monetário. Não há como pensar em direito à honra ou à intimidade sem tutela inibitória. 46 Domesmo modo,o direito ambiental simplesmente não existe na ausência dessa forma detutela. Não há exagero em dizer que tais direitos dependem da tutela inibitória. Issoporque, como dito no item antecedente, as normas atributivas de direitos nada valemsem a disposição de formas de tutela dos direitos.Uma norma que atribui ou afirmaum direito inviolável obviamente só tem sentido quando tem ao seu lado uma formade tutela capaz de impedir a violação. Não é por outra razão que a Constituição Federal afirma que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" (art. 5.o,X), e que "todos têmdireito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo eessencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade odever de defindê-lo epreservá-lo para aspresentes efuturas gerações" (art. 225, caput). A tutela inibitória não depende do direito processual para existir. Ela decorre dodireito material; não há direito que, quando ameaçado de lesão, não detenha uma formade proteção contra a sua violação. E isso fica mais evidente em se tratando de direitosnão patrimoniais, como o direito ao meio ambiente. É equivocado imaginar que asjôrmas de tutela dos direitos dependem doprocesso.47 Alegislaçãoprocessual apenas institui procedimento e técnicas processuais que sejam capazes deviabilizar a obtenção da tutela do direito prometida pelo direito material. Ou seja, a legislaçãoprocessual deve se preocupar com os procedimentos e as técnicas proces46 V. Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória, 4. ed., cit.; Luiz Guilherme Marinoni, Tutelainhibitoria: la tutela de prevención del ilícito. Revista de Derecho Procesal (Argentina), 1999, n, 3,p. 557- 57 4; Luiz Guilherme Marinoni, La prueba en la acción inhibitoria. La prueba - HotnenajeaI maestro Hernando Devis Echandía, Bogotá: Universidad Libre, 2003, p. 313-332. 47 V.Luiz Guilherme Marinoni, La efectividad de los derechos y la necesidad de un nuevo procesocivil. Libro deponencias deI II Congreso Internacional de Derecho Procesal. Lima: Universidad deLima,2002,p. 94-103.

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suais - por exemplo, técnica antecipatória e sentença mandamentaltutelas dos direitos - v.g., tutela inibitória.

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A tutela inibitória é uma forma de proteção do direito material e pode ob' var impedir ou inibir a violação do direito, a sua repetição ou a continuação de ~et atividade ilícita.48 m

A exposição didática recomenda acompanhar a trajetória dos atos de agressdos direitos. Se a tutela inibitória se destina a impedir a lesão do direito, o próXi~ passo na visualização das formas de tutela deve parar no instante em que um ato vio uma norma, mas não acarreta um fato danoso. E aqui nos encontramos novament em situação que exige uma reelaboração dos conceitos da dogmática clássica.

Trata-se da necessidade de repensar o conceito de ilícito civil e,especialmente de tutela contra o ilícito. O ilícito civil tem sido pensado como o ato contrário a0direit que produz dano. O elemento dano, em outras palavras, vem sendo exigido com um componente essencial para a configuração do ilícito civil. Argumenta Orland Gomes, por exemplo, que "o ilícito civil só adquire substantividade se é fato danoso".

Note-se que há aí uma mistura entre o ato contrário ao direito e o dano o uma falta de distinção entre o ato em si (o ilícito) e a sua consequência (o dano). Ne sempre o ato contra o direito e o dano ocorrem no mesmo instante, sendo possív que o dano surja após a prática do ilícito, sendo até mesmo frequentes os casos e que o dano se intensifica com o passar do tempo. Aliás, é possível que exista ato.con trário ao direito que não provoque dano. O dano não é apenas -uma consequência mas na verdade uma consequência eventual do ilícito. 50 Por isso, não há como neg a separação entre ilícito e dano.

O que seria possível dizer é que o dano, apesar de não se confundir com o a contrário ao direito, é imprescindível para se outorgar tutela ao direito. Na verdade, entendimento de Orlando Gomes evidencia a confusão entre o conceito de ilícito os pressupostos para a tutela ressarcitória. Segundo Orlando Gomes, "não interess ao direito civil a atividade ilícita de que não resulte prejuízo. Por isso, o dano integra -se na própria estrutura do ilícito civil. Não é de boa lógica, seguramente, introduzi a função no conceito. Talvez fosse preferível dizer que a produção do dano é, ante um requisito da responsabilidade, do que do ato ilícito. Seria este simplesmente conduta contrajus, numa palavra, a injúria, fosse qual fosse a consequência. Mas, e verdade, o Direito perderia seu sentido prático se tivesse de ater-se a conceitos puros"

48 Sobre o tema da tutela inibitória, v. Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória, c Sérgio Cruz Arenhart, Perfis da tutela inibitória coletiva. 49 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 314. 50 Aldo Frignani, L'injunction nella common law e l'inibitoria nel diritto italiano, p. 42 ss.; Cristina Rapisarda, Projili ... , cit., p.108 e ss. 51 Orlando Gomes, Obrigações, cit., p. 313.

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23e

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Orlando Gomes supõe que o conceito de ilícito que não considera o dano é um"conceito puro". Essa sua conclusão parte da premissa de que "não interessa ao direitocivil a atividade ilícita de que não resulte prejuízo". Porém, o que diz Orlando Gomes é que o ilícito que não gera prejuízo não abre oportunidade para a tutela ressarcitória.~~mo a proteção ou a tutela ressarcitória devem ser buscadas por meio doprocesso C1VI1, afirma -se, em outros termos, que o ilícito não danoso não deve ser objetode preocupação do processo civil, ou ainda que jamais haverá interesse de agir emuma ação civil voltada a proteger um direito contra a prática de um ilícito que nãoproduziu dano. Acontece que Orlando Gomes, além de colocar um elemento que diz respeito à configuração do direito à tutela ressarcitória no conceito de ilícito, deixando de distinguirilícito de tutela do direito, traz um problema mais grave, uma vez que o dano é imprescindível apenas para uma das tutelas do direito, isto é, para a tutela ressarcitória. Ora,não é possível admitir, dentro da realidade contemporânea, que o ressarcimento seja a única forma de tutela contra o ilícito.

É certo que a admissão de outra forma de tutela contra o ilícito implica superaçãode um dogma que vem desde o direito romano.52 A assimilação entre ilícito edano é o resultado de um processo histórico que levou a doutrina a admitir que a tutelacontra o ilícito seria apenas o pagamento do equivalente ao valor da lesão ou, quando muito, a aceitar que determinados danos poderiam ser reparados in natura. Contudo, na dimensão do Estado Constitucional, em que avulta o dever de o Estado proteger os direitos fundamentais mediante a proibição ou a imposição de condutas, a n~cessidade .de tutela contra o ilícito exige uma nova postura dogmática, voltada a expltcar a necessidade de outraforma de tutela, derivada da existência de normas características a um Estado ciente do seu dever de proteção.

de natureza protetiva,

Lembre-se que o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais, entre outras maneiras mediante a instituição de normas de proteção. Por isso, edita normas que proíbem ou exigem condutas para dar proteção ao meio ambiente ou aosconsumidores, por exemplo. Parte-se da premissa de que determinadas condutas comissiva~podem gerar danos, ou que certas práticas ou condutas são imprescinàíveis parase eV1tarem danos ou prejuízos. As normas que proíbem a construção ou o despejo de lixo em determinada zona,exigem a instalação de equipamento antipoluente e impedem a venda de produtoou remédio com determinada composição, objetivam dar proteção aos direitos fundamentais. São normas proibitivas ou impositivas de condutas, tendo a finalidade deproteger os direitos fundamentais. A violação dessas normas expõe os direitos funda~entais aos prejuízos que o legislador deseja evitar quando estabelece proibições ouImposições. De modo que, contra a violação da norma, deve existir uma forma

52

Ovídio Baptista,jurisdição

e execução na tradição romano-canônica.

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de tutela do direito que é por ela protegido ou uma forma de tutela que faça atu , . d . d . Id ato propno eseJo a norma VlOa a.

A prática de ato contrário a uma norma de proteção, ainda que não traga dan exige uma forma de tutela jurisdicional do direito e por isso, obviamente, não pode s~ indiferente ao processo civi1.Não há como admitir, no Estado constitucional, que a Únicr .fUnção doprocesso civil contra o ilícito continue a ser a de dar ressarcimento pelo dano. Nu~ Estado preocupado com aproteção dos direitos fundamentais, oprocessocivil também de ser utilizado como instrumento capaz de garantir a observância das normas de prote :: para o que a ocorrência de dano não tem importância alguma. f ,

Nesse caso só há interesse na tutela do direito quando os efeitos concretos da ação ~cita perduram no tempo. Qy.ando da violação da norma não decorrem danos ou efeItos concretos configuradores de uma situação antijurídica,~obviamente não h~ qu~quer interesse na prov:oc~çã? .da jurisdição. Esse .interesse, no caso em que nao ha dano, reclama a tutela JunsdIClOnal para que os eJettos concretos do ilícito sejam removidos ou eliminados.

É o que ocorre, por exemplo, no caso de exposição à venda de produto nocivo ao consumidor ou de remédio com composição capaz de causar dano à saúde, ou mesmo de venda de produto ou de remédio desprovido das informações necessárias ao seu uso ou ingestão. Nessas hipóteses, qualquer ente legitimado à defesa do direitos transindividuais53 pode pedir a tutela de remoção dos efeitos concretos do ilícito, requerendo, como técnica processual, a busca e apreensão dos produtos ou dos remédios.

Não existindo dano, mas uma simples situação antijurídica, a tutela jurisdicional deve estabelecer a situação que lhe era anterior. Daí por que essa forma de proteção do direito constitui uma tutela jurisdicional de remoção do ilícito, a qual também é uma tutela específica, na medida em que não se conforma com a transformação do direito em dinheiro.54



A tutela de remoção do ilícito é imprescindível para a jurisdição dar atuação específica às normas de proteção dos direitos fundamentais. Aliás, sem esta espécie de tutela jurisdicional, o dever de proteção estatal aos direitos se tornaria impossível e o direito de proteção normativa dos direitos fundamentais quase que inútil.

Porém, a tutela de remoção também é imprescindível aos direitos individuais. Basta lembrar, por exemplo, das situações em que produtos evidenciam contrafação de marca comercial ou em que cartazes publicitários configuram concorrência deslea Nessas hipóteses, ainda que os ilícitos possam ter gerado danos, e para eles a tutela ressarcitória seja adequada, isso obviamente não basta, uma vez que não elimina a necessidade da tutela de remoção do ilícito. 53 Art. 5.o da LACP e art. 82 do CDC. 54 V. Luiz Guilherme Marinoni, Técnica

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cit.,p. 268 e ss.

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A tutela de remoção, em vez de remediar o dano, elimina a suafonte, 55impedindo o prolongamento da situação antijurídica que expõe o titular do direito violado a danoS.Assim, não importa se algum dano já foi produzido, pois há sempre interesse el11 remover a situação que constitui a sua causa, ou melhor, que abre oportunidade aeventuais outros danos. Enquanto a probabilidade da prática de ato contrário ao direito é pressuposto da tutela inibitória,56 para a tutela de remoção basta a ocorrência da violação da norma,sendo desnecessário cogitar, em relação a ambas as tutelas, não apenas sobre aprobabilidade e a ocorrência de dano, mas também a respeito de culpa ou dolo, até porque~ exigênc~a.d? ~;emento subjetivo se presta apenas a legitimar a imposição dasançao ressarCltona. A passagem do ato contrário ao direito ao fato danoso faz a ponte entre a tutelade remoção do ilícito e a tutela ressarcitória. Porém, é preciso separar o dano, o ressarcimento e as duas formas de tutela ressarcitória. Qy.em sofre um dano tem direito aoressarcimento, mas pode se valer, conforme a sua situação concreta, de uma das duasformas de tutela ressarcitória. A tutela ressarcitória pode ser prestada pelo equivalente ou na forma específica. Ao se admitir que os bens jurídicos podem ser reduzidos a pecúnia, há assimilação entre ressarcimento e pagamento de dinheiro e, dessa maneira, falta de motivo para apreocupação com uma forma de tutela capaz de permitir a reparação in natura. Porém, há direitos que, pela sua natureza, não podem ser transformados em dinheiro. É o caso, por exemplo, do direito ao meio ambiente sadio. A própria Constituição Federal afirma, em seu art. 225, que o "meio ambiente ecologicamente equilibrado" deve ser preservado "para as presentes e futuras gerações". Não há como dar tutela ao meio ambiente, preservando-o para as presentes e futuras gerações, mediante o ressarcimento pelo equivalente. Isso seria o mesmo do que aceitar que, no lugar do meio ambiente sadio, a sociedade pode se contentar com dinheiro. Na realidade, seria o mesmo que admitir a expropriação do direito ao meio ambiente. Daí a imprescindibilidade da tutela ressarcitória na forma específica. Enquanto atutela ressarcitófÍa em pecúnia visa a dar ao lesado o valor equivalente ao da diminuição patrimonial sofrida ou o valor equivalente ao do custo para a reparação do dano,ou ainda pode constituiruma resposta contra o dano acarretado a um direito 55João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, p. 411 e ss. 56 No que diz respeito à tutela inibitória, é preciso esclarecer que a invocação de dano é desnecessária, uma vez que basta a demonstração de ameaça de ato contrário ao direito. Porém, comoo dano pode se associarcronologicamente ao ato contrário ao direito,vindo ambos a ocorrer nomesmo instante, é inegável que o autor pode alegar e demonstrar a probabilidade de dano para caracterizar defirma

mais fácil a ameaça.

Eissoquando para aimposição da sançãoressarcitórianão for dispensada aculpa,como acontecenos casos de responsabilidade sem culpa. Si

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não patrimonial (a chamada indenização por dano moral), a tutela ressarcitõria fOrma espec(ftca objetiva estabelecer a situação que existiria caso o dano não houvess ~ e SI produzido.58

A prioridade do ressarcimento na forma específica é imposição que deco do próprio direito material. Na realidade, se o lesado tem direito ao ressarcimen: cab~-lhe escolher a forma de ~eparação~ que pode ser na forma e~pecífica ou pel eqUIvalente. Apenas quando, dIante da sItuação concreta, o ressarClmento na for '1 ou con figurar uma c. m espeCl'fic' ca lOr ImpOSSlVe lorma exceSSIvamente onerosa é que ressarcimento deverá ser pelo equivalente monetário. Isso quer dizer que, nos casa em que a tutela ressarcitória na forma específica for concretamente possível eI somente será excluída por opção do próprio lesado ou quando o ressarciment~ n forma específica, ainda que possível, não for justificável ou racional em vista da su excessiva onerosidade. Deixe-se claro, contudo, que se o lesado sempre tem a opção d ressarcimento na forma específica, o legitimado à tutela dos direitos transindividuais dela não pode abrir mão em troca de ressarcimento em dinheiro.

Ademais, o ressarcimento na forma específica pode ser cumulado com o res sarcimento em dinheiro, uma vez que o primeiro, em determinadas situações, pod representar apenas parte da integralidade do ressarcimento. Assim, por exemplo, n caso de corte indevido de árvores. Se é possível determinar o plantio de árvores seme lhantes às indevidamente cortadas, isso certamente é incapaz de ressarcir a totalidade do dano, pois as árvores.e o próprio ecossistema estariam em uma situação divers caso o dano não houvesse sido produzido. Em um caso. como esse, o ressarcimento na forma específica deve ser cumulado com o ressarcimento em dinheiro.

O ressarcimento na forma específica pode ser prestado não apenas por mei de um fazer, mas igualmente mediante a entrega de uma coisa capaz de substituir destruída ou a roubada. Note-se que a tutela ressarcitória na forma específica obje tiva proteger o direito mediante uma reparação que se aproxime da reconstituição do estado que era anterior ao dano, tendo como oposto o ressarcimento, que dá a lesado um valor em dinheiro equivalente ao da lesão. De modo que o ressarcimento na forma específica não depende apenas de um fazer, pois também pode ser prestado com a entrega de coisa.

58 Ao tratar da tutela ressarcitória na forma específica, o 9 249 do CC alemão fala em obrigação de reconstituir a situação que existiria caso o dano não houvesse ocorrido. Se a tutel ressarcitória na forma específica deve proporcionar um resultado equivalente ao da situação que existiria caso o dano não tivesse acontecido, pode não ser suficiente o restabelecimento da situação que era anterior ao dano, pois o dano primitivo pode ter acarretado outros, com acontece quando se pensa nos "lucros cessantes". Como o bem protegido deve ser integralmente tutelado, é necessário que se estabeleça uma situação equivalente à que existiria caso o dano nã houvesse sido praticado. Se isso não fir possível, a tutela ressarcitória na firma específica deverá se cumulada à tutela ressarcitória pelo equivalente (Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual .. cit., p. 426 e ss.).

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Supor que a tutela ressarcitória pelo equivalente é a única resposta ao dever de araro dano, além de admitir que todo bem ou direi to pode ser expresso em pecúnia, rer duz à ideia de que o infrator pode se liberar da sua responsabilidade mediante o n co amento de dinheiro - quando então ter patrimônio seria o mesmo que ter a respa~sabilidade atenuada. Porém, o lesado não tem um mero direito de crédito sobre poatrimônio do infrator, mas sim o poder de obrigá -lo à reparação. A existência de ~ poder de obrigar à reparação implica na possibilidade de usar a ação para coagir oinfrator a fazer ou a entregar coisa equivalente à destruída. 59 Após a tutela ressarcitória, cabe analisar a tutela contra o inadimplemento da obrigação contratual. No s~stema ~ue ignora a ~tela ~specífica?a obrigação, aquele uenecessita do bem, e por ISSOrealiza o contrato,pmals tem efetIvamente assegurado ; seudireito, ao passo que o detentor do capital ou do bem possui a possibilidade de, aqualquer momento e inclusive em razão d~ uma "v.ariação de mercado" qu~ nã~ lhe é benéfica, liberar-se da sua obrigação medIante o SImples pagamento de dInheIrO. A negação de tutela específica à obrigação contratual reveste-se de evidente contradição, pois admite que as partes se obrigam ao contratar, mas, logo após, estão livrespara não atender à prestação assumida, como se o adimplemento fosse um . e nao - algo deV!'d o. 60 "deverli'vre " ou um puro ato potestatIvo A vontade das partes somente é efetivamente considerada quando o contrato produz os seus efeitos normais ou previamente desejados.6I "O credor acredita no normal desenvolvimento da relação, segundo a vontade das partes e a função econômica tida em vista no momento inicial."62 As obrigações que nascem com o contrato, como acrescenta Calvão da Silva, "nascem para_ser cumpridas, sendo o seucumprimento, sem dúvida, o essencial e principal efeito querido pelas partes ao

João Calvão da Silva, Cumprimento ... ,cit.,p.153-154jJorge Musset lturraspe, Responp. 379-380. 60 João Calvão da Silva, Cumprimento ... , cit., p.173. 61 Por isso mesmo, entendemos que a tutela inibitória também é uma forma de proteção contra o inadimplemento. "Diante de certas obrigações, é possível pensar em violações suscetíveisde se repetirem no tempo. Ou me1:hor, na hipótese de obrigação dita de 'trato sucessivo', aobrigação pode ser violada por atos suscetíveis de repetição. Ainda que possa haver interesse emimpedir a violação quando a obrigação exige somente uma prestação, o fato é que, no caso deobrigação que exige prestações periódicas, torna-se mais fácil, diante do inadimplemento de uma primeira prestação, demonstrar a probabilidade do inadimplemento da seguinte. Não há cabimento em não admitir a tutela jurisdicional anterior ao inadimplemento, entendendo que o contratante somente pode agir após a violação da obrigação. Isso seria o mesmo que supor que o contrato é suficiente para impedir a violação. Ora, assim como a lei, o contrato obviamente não é capazde impedir a violação do direito. Dessa firma, impedir a tutela inibitória do i~adimplem=nt~ 59

sabilidadpordaiios,

também é negar valor ao direito ao cumprimento da obrigação na for~a e:,pecífica, aceltando~se n~o so a desconsideração do contrato, como também a transformação da obngaçao de prestar em obrzgaçao de pagar o seu equivalente" 62

(Técnica processuaL.,

João Calvão da Silva, Cumprimento

cit., p. 397-398). ... , cit., p.147.



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concluírem o contrato. Daí poder falar-se do programa obrigacional como progr . . d o cre d ar nesse programa como mteresse . d e cumpnmento e d o mteresse existe ama . nCla do cumprimento".63

O pagamento do equivalente, como resposta jurisdicional ao não CUm . menta da obrigação contratual, supõe a obrigação como um poder do credor o patrimônio do devedor, e não a obrigação como um direito à prestação. Por issore inexistência de tutela específica contra o inadimplemento nega a própria nature,a da obrigação, cujo fim é o de dar ao credor uma prestação, e não a de lhe conferir liza valor em dinheiro.64 !ll

S!{I-

N a sociedade de massa, em que é imprescindível a proteção da posição do COnsumidor, não há como deixar de conferir ao jurisdicionado a tutela do adimplemento na forma específica para se garantir o bem objeto do contrato ou o bem tal Comofoi contratado, sem VÍcios ou defeitos.

Lembre-se que, além de o inadimplemento poder ser total ou parcial, ele pode ser imperfeito. As duas primeiras hipóteses dizem respeito, respectivamente, ao não cumprimento da obrigação na sua totalidade e em parte, enquanto a última se refere ao cumprimento imperfeito da obrigação, isto é, ao cumprimento realizado com VÍcios

Os arts. 18, 19.e20 do CDC tratam dos chamados VÍcios de qualidade e quantidade dos.pro.dutos e dos serviços, ou seja, dos VÍcios ou imperfeições no cumprimento das obrigações de entregarproduto e prestar serviço. A responsabilidade pelos VÍcio inerentes aos produtos ou serviços deriva da obrigação do fornecedor em assegurara cumprimento perfeito, colocando o produto ou o serviço no mercado com a qualidade e a quantidade garantidas.

Qyando a obrigação é cumprida de modo imperfeito, surge ao credor o direito de exigir a correção do defeito no cumprimento (a sanação do VÍcio,a complementação do peso ou medida, a substituição do produto ou a reexecução do serviço - arts. 18, 19 e 20 do CDC). O direito a essa tutela se funda na própria obrigação, ou melhor, na garantia de qualidade que lhe é inerente.

Nos casos de inadimplemento total e parcial, assim como nos de adimplemento com VÍcios de quantidade e qualidade, há direito à tutela do adimplemento na forma específica, seja com o fim de obrigar ao adimplemento - diante de inadimplemento total ou parcial-, seja com o objetivo de permitir a sanação do VÍcio, que pode se dar até mesmo mediante a substituição do produto ou a reexecução do serviço. A tutela do adimplemento na forma específica cabe no caso de obrigação de fazer (prestar serviço) e de entregar coisa (entregar um produto). Mas, no caso de cumprimento imperfeito de obrigação de entregar coisa, a tutela do adimplemento da 63 64

Idem,p.187. Idem, p. 173-174.

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obrigaçãode entrega de coisa pode ser prestada mediante uma técnica processual que i1Ilponhaum fazer (sentença que ordene um fazer sob pena de multa, por exemplo). 65 Qyando a obrigação não puder mais ser cumprida, a tutela deverá prestar o equivalente ao valor da prestação inadimplida. Note-se, porém, que essa tutela se diferencia da tutela pelo equivalente ao valor do dano. A primeira tem a ver com a obrigaçãoinadimplida e a segunda com o dano. Por isso, a primeira é tutela da obrigação peloequivalente ou tutela pelo equivalente ao valor da obrigação e a segunda é tutela ressarcitária pelo equivalente. Além disso, é preciso perceber que nem toda tutela prestada em dinheiro é tutelapelo equivalente. Qyando alguém se obriga a pagar quantia em dinheiro, a tutela que confere pecúnia ao outro sujeito do contrato obviamente não é tutela pelo equivalente, mas sim tutela do adimplemento na forma específica. Tudo isso indica que o direito à tutela específica da obrigação.decorre do próprio direito material. A ideia de que a tutela específica não é devida às obrigações, mas apenas aos direitos reais, é devedora da época das.aç'ões típicas ou da fase em que a proteção dos direitos reais era mais incisiva do que a das obrigações, o que ocorreu por uma série de motivações políticas e econômicas, que faziam entender que o cumprimento do contrato não possuía a mesma importância da tutela dos direitos reais.A separação entre tutela específica e tutela pelo equivalente a partir da relação direitosreais-obrigações não tem qualquer sentido na sociedade contemporânea, uma vezque, conforme dito acima, o credor de uma obrigação não tem apenas direito de crédito sobre o patrimônio do devedor,m-as sim direito à presta(ffão por ele prometida. Contudo, não há como deixar de mencionar as tradicionais tutelas específicas voltadas à obtenção da coisa com base no direito à posse, no domínio e na posse esbulhada, assim como as tutelas de manutenção de posse e interdito proibitório. No caso de obrigação de entregar coisa móvel, ocorrida a tradição simbólica, mas não entregue a posse concreta do bem, a tutela a ser exigida não é de adimplemento da obrigação, mas sim de imissão na posse da coisa com base no direito à posse - derivado do documento que expressou a tradição simbólica. Tratando-se de coisa imóvel, é possível que alguém tenha o direito de haver a posse da coisa de quem se obrigou a transferi-la. Nesse caso, o titular do direito à posse - que pode ser o adquirente - tem direito à tutela de imissão na posse. A exi65 Éoque ocorrequando,em razãodevíciodo produto, abre-seoportunidade para opedido desubstituição das partes viciadas do bem. Lembre-se que o consumidor, em caso de vício de qualidadedo produto, deve reclamar a substituição das partes viciadas e, se não for atendido,pode pedir aojuiz, por meio de ação, que tais partes viciadas siljam substituídas (art. 18 do CDC). Pedir a substituiçãodas partes viciadas do produto implica em solicitar um fazer.Desse modo, embora a obrigaçãooriginária não sejade fazer,admite-se que o consumidor requeira, com base no art. 84, ~ 4.°, do CDC, ordem de fazer sob pena de multa.

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gência da imissão na posse depende da existência de obrigação de traniferência daPosse e,portanto, de direito àposse.

A coisa também pode ser pedida com base no domínio. O proprietário sem posse pode pedir a coisa contra o possuidor que não é proprietário. A tutela objetiv a coisa com base no domínio, mas somente pode ser concedida quando o réu exerc a posse de forma injusta. Tal tutela é pedida pela ação tradicionalmente conhecida como reivindicatória.

Q.yando o possuidor tem a sua posse "roubada" ou esbulhada, cabe-lhe a tutel de reintegração na posse. Essa tutela permite ao autor recuperar a posse de que fo privado pelo esbulho. Além da tutela de reintegração de posse, há a tutela de manu tenção de posse e a tutela de interdito proibitório, tidas como tutelas possessórias A manutenção de posse é devida ao possuidor que tem a sua posse turbada, ao pass que o interdito proibitório se destina a impedir moléstia à posse.

Até agora se falou apenas das tutelas jurisdicionais dos direitos que não de pendem de sentenças autos suficientes, mas sim de sentenças que necessariamente s relacionam com meios de execução para prestar a tutela do direito material. A distinção entre sentença autossuficiente e sentença não autossuficiente, realizada por doutrina de relevo,66 permite o isolamento das sentenças que não são, por si, suficientes par a tutela dos direitos - porque necessitam de meios de execução para que o direito possa ser efetivamente tutelado -, das sentenças em que a tutela do direito se "exaur frutuosamente".67 Trata-se da separação entre as sentenças condenatória, mandamental e executiva, de um lado, e as sentenças declaratória e constitutiva, de outro.

Como é evidente, as sentenças declaratória e constitutiva não podem se enquadradas na classificação das tutelas dos direitos, umavez que, assim como a sentenças condenatória, mandamental e executiva, constituem técnicas para a tutel do direito material.

O problema é que, se as tutelas dos direitos podem ser facilmente separada das sentenças condenatória, mandamental e executiva, o mesmo não acontece quan do se está diante das tutelas declaratória e constitutiva e das sentenças declaratória constitutiva. Isso porqtte,se não existe tutela condenatória, mandamental e executiva há tutela declaratória e tutela constitutiva. Ou melhor: as sentenças declaratória constitutiva prestam tutelas declaratória e constitutiva.

Se alguém pode ter, no plano do direito material, direito à tutela pelo equivalente ao valor do dano ou da obrigação, e, no plano do direito processual, direito à técnic condenatória, isso não significa que não se possa ter direito a uma tutela do direito

66 Alessandro Rasseli, Sentenze determinative ..., cit., p. 580; Salvatore Satta, Premes generali..., cit., p. 368; Crisanto Mandrioli, L'azione esecutiva, cit., p. 310; Cristina Rapisard Projili ... , cit., p.136. 67 A expressãoé de Mandrioli (L'azioneesecutiva, cit., p. 310).

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Uepossa ser prestada mediante uma sentença satisfativa, cujo nome seja idêntico do direito material.

;0 da tutela devida na órbita

O fato de não ser possível obrigar alguém a reconhecer uma relação jurídica OUa desconstituir um contrato, ou mesmo a circunstância de não ser possível constituir determinadas situações jurídicas fora da jurisdição, obviamente não interfere no problema,68 pois não descarta a possibilidade de alguém ter direito e pretensão àstutelas declaratória e constitutiva no plano do direito material e, assim, exigir tais tutelas,por meio da ação, mediante as técnicas processuais das sentenças declaratória econstitutiva.

5.6 A influência da tutela do direito sobre a ação Vistas as formas de tutela imprescindíveis para que as pessoas possam ser consíderadas como titulares de um direito ou de uma posição juridicamente protegida, importa relacioná-las com o direito de ação.69 Ter direito a uma forma de tutela do direito é simplesmente ter direito material,pois ninguém tem direito sem ter à sua disposição formas de tutela capazes deprotegê-lo diante de ameaça ou de violação. Mas a pretensão i tutela do direito é umapotencialidade, no sentido de que não precisa ser exercida ou reconhecida para serdita existente. Todos têm direito à tutela jurisdicional inibitória em caso de ameaça de violação.Do mesmo modo, toda e qualquer pessoa tem direito a ser ressarcida se a sua integridade física for atingida por um ilícito danoso, ou todo titular de um direito obrigacional, em caso de inadimplemento, tem o direito ao cumprimento da obrigação -obviamente quando isso for faticamente possível, ainda que, na outra hipótese, tenha o direito ao equivalente em pecúnia ao valor da prestação obrigacional inadimplida. Porém, para que o sujeito possa obter uma dessas formas de tutela do direito material, deve exercer o direito de ação. O direito de ação não se confunde com o direito e com a pretensão à tutela do direito, pois essa última é uma potencialidade que,para ser exigida, depende da ação e diante dela pode ser reconhecida ou não. Qrando a ação é proposta, formula-se o pedido e são expostos os fundamentos de fato e de direito que o embasam. O autor, ao realizar o pedido, apresenta a sua 68 v., nesse exato sentido, Ovídio Baptista da Silva,Processo e ideologia, p.l71 e ss.;Daniel Mitidiero,Polêmica sobre ateoria dualista da ação.Revista de Direito Processual Civil, v.34,p.693. 69 Sobre o indevido esquecimento do direito material ou da pretensão de direito material dianteda pretensão processual,anotou H6lder: "Por meio da ação o demandante não exigenada dodemandado,mas sim do órgão estatal provocado.Exige o demandante dojuízo. Entretanto, o demandantetambém exigealgo perante o demandado. No processo, apretensão de direito material não desaparece. Ela desempenha uma júnção de grande importãncia sual Mas essa verdade jói desconsiderada pela doutrina dominante"

Ansprüche.AcP, v.93, p. 9 e ss.).

nas sombras da pretensão proces-

(Über Ansprüche und Einreden

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pretensão à tutela jurisdicional do direito e, no mesmo momento, pede a sentença que reputa capaz de prestá-la, requerendo, por exemplo, tutela inibitória e sentença mandamental (ordem sob pena de multa).

Ao pedir determinada tutela jurisdicional do direito, o autor espera Um provimento que, apreciando o mérito, a reconheça. Ou melhor, a pretensão à tutela jurisdicional do direito não se contenta com qualquer sentença de mérito, porém só com a sentença de procedência; a sentença de improcedência não presta tutela jurisdicional ao direito.

Daí a distinção entre a ação e a pretensão à tutela jurisdicional do direito. O direito de ação tem como corolários o direito de influir sobre o convencimento do juiz e o direito às técnicas processuais capazes de permitir a efetiva tutela do direito material. É o direito à ação adequada, garantido pelo art. 5.°, XXXV, da CF. O autor tem o direito de exercer a ação que lhe permita obter - em sendo o caso - a tutela jurisdicional do direito. Mas isso não quer dizer que a ação adequada seja dependente da existência do direito material, uma vez que todos têm direito à ação adequada à tutela do direito, sejam ou não titulares do direito material reclamado.

Mas, embora a ação seja independente do reconhecimento da pretensão à tutela do direito, é evidente a sua influência sobre aquela. Ao propor a ação, o autor afirma o direito e a existência de uma situação de ameaça ou de lesão. Com base em tais afirmações, que configuram a causa de pedir, pede a tutela do direito (pedido mediato) e a técnica processual (pedido imediato) que reputa adequada à sua prestação. Porém, cabe-lhe demonstrar a relação de adequação dessas afirmações com a tutela do direito e a espécie de sentença reclamadas. Vale dizer que, das afirmações de direito e de lesão ou ameaça, deve logicamente decorrer a tutela do direito solicitada.

A ação adequada é a ação conformada a partir da pretensão à tutela do direito. Ou melhor, assim como existem várias formas de tutela dos direitos - como a tutela inibitória etc. -, devem existir ações adequadas para a viabilização de cada uma dessas tutelas. O ponto mais im portan te para a construção da ação adequada é o da tu tela do direito. O1J.ando, por exemplo, pede-se tutela de remoção do ilícito, a causa de pedir não deve se referir a dano e a culpa, ou mesmo a probabilidade de dano, limitando-se a deixar claro que foi praticado um ato contrário ao direito que produziu efeitos concretos que devem ser removidos. Ou seja, a tutela do direito requer a exposição da causa de pedir que com ela é compatíveL Nesse sentido, a causa de pedir e o pedido de tutela do direito têm importância para a definição dos limites da cognição judicial, bem como dos pressupostos da técnica antecipatória e da adequação dos meios executivos.

A ação, garantida de forma abstrata e atípica pela Constituição, concretiza-se no momento em que se volta à tutela de uma situação concreta. Como é evidente, essa concretização nada tem a ver com a ideia de proteção concreta ou de ação que requer uma sentença favoráveL A concretização aquireclarnada diz respeito à necessidade de a ação se adequar à tutela da situação conflitiva concreta. Trata-se, em outraspalavras,

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nãodeabrir mão da ação abstrata e atípica, mas a ela acrescentar oplus, também garantido pela Constituição, de adequação à tutela do direito material e do caso concreto. Nessa linha, parece desnecessária

e até mesmo forçada a tese de que a ação,

quando concretizada, passa a ser uma demanda.70 Se é a demanda, e não a ação, que possuipartes, causa de pedir e pedido, e que conduz à obtenção da tutela jurisdicional dodireito, não há qualquer diferença entre a ideia de demanda e de "ação adequada". De modo que se teria de concluir que o direito de ação garante a "demanda adequada",quando o objetivo da distinção seria apenas o de manter desligado o direito de açãodo direito material e do caso concreto.71 Acontece que, como demonstrado, a separação entre os planos do direito de ação e do direito material, que ninguém mais contesta, não elimina, mas na realidade impõe a aproximação da ação com as tutelas prometidas pelo direito material e com o caso concreto. A ação garantida pela Constituição concretiza-se a partir da tutelajurisdicional do direito que constitui objeto do pedido.72 Vale dizer: a dimensão da extensão da cogniçãodojuiz, dos limites do debate e da produção probatória, assim como a definição daespéciede sentença e do meio-executivo idôneos - que são as características que tornam a açãoadequada -, dependem da natureza da tutela do direito. 70 Eduardo Couture,ao inserir a ação no gênero direito de petição e frisar a sua importância comogarantia constitucional, alertou para-a impropriedade de distinguir ação de demanda. Eis o quedisse o saudoso processualista uruguaio: "El derecho de demandar (rectius: el derecho a promovery llevar adelante el proceso) es,justamente, la acción. Todo sujeto de derecho tiene, como tal,junto con sus derechos que llamamos, por comodidad de expressión, materiales o sustanciales (enel ejemplo,la propriedad), su poder jurídico de acudir a la jurisdicción.Denominamos acción a este poder jurídico, y el derecho de demandar no es sino el ejercicio concreto del derecho de acudir ala jurisdicción, ya que el proceso civil se halia regido por la máxima nemo judex sine actore. La acción civil se hace efectiva mediante una demanda en sentido formal, y ésta no es sino el ejercicio de aquélla. No creemos que quede, dentro de la estructura del derecho, luego de haber distinguido entre el derecho material y el derecho procesal de acción, sitio para un tercer derecho, queno sería otra cosa que la acción puesta en ejercicio. Vn tercer poder jurídico intermedio, entre elderecho material y el derecho procesal, ya sea que se incluya en el primero, ya sea que se incluya eu el segundo, constituye un innecesario desdoblamiento" (Fundamentos ... , cit., p. 73-74). 71 Por outro lado, se a demanda é compreendida apenas como o primeiro ato da ação, o conceito nada acrescenta, pois não elimina a tese de que a ação é exercida para viabilizar a obtenção da tutela jurisdicional do direito e, portanto, deve ser uma ação adequada à tutela do direito. 72 Sobre a questão da tutela jurisdicional, ver, no direito brasileiro, Luiz Guilherme Marinoni, Tutela cautelar e tutela antecipatória;Antecipação de tutela; Tutela inibitória; Tutela especifica; Técnicaprocessual e tutela dos direitos; Sérgio Cruz Arenhart, Tutela inibitória da vida privada; Pe7fis da tutela inibitória coletiva; Daniel Mitidiero, Antecipação da tutela; Flávio Yarshell, Tutelajurisdicional; Alvaro de Oliveira, Teoria eprática da tutelajurisdicional; Cândido Rangel Dinamarco, Tutela jurisdicional. RePro, v. 81, p. 54 e 55.; Leonardo Santana de Abreu, Direito, ação e tutela jurisdicional, p. 135 e 55 •

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A AÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

5.7 Tutela jurisdicional do direito e tutela jurisdicional

A tutela do direito é prestada, assim como a modalidade de sentença que adev acompanhar é entregue, apenas quando o juiz reconhece a procedência do pedid de tutela do direito. Na hipótese de improcedência, não se presta - nem se poderi - a tutela do direito. Também por uma razão lógica, a negação da tutela do direit impede a concessão da modalidade de sentença postulada. Ora, se uma espécie d sentença é requerida para permitir a efetividade da tutela do direito, é natural que não prestação da tutela elimine a possibilidade - e por que não se dizer a necessidade - de se outorgar a sentença solicitada.

Assim, por exemplo, se o pedido de tutela inibitória é julgado improcedente não se concede uma sentença mandamental. Nessa hipótese, como não há tutela d direito, e sim declaração de que o autor a ela não tem direito, a sentença é declaratória negativa.

A sentença que julga improcedente o pedido não presta tutela do direito a réu. Isso apenas poderia acontecer se o réu formulasse pedido de tutela do direit (mediante, por exemplo, reconvenção, art. 343) ou quando houver contraditório prévio e efetivo sobre determinada questão prejudicial apreciada incidentemente na sentença (art. 503,91.0). Como em regra ele apenas oferece contestação (art.335), pleiteando a não concessão da tutela requerida pelo autor, não há como pensar que a sentença de improcedência lhe presta tutela ao direito material.

Porém, há casos - das chamadas "ações dúplices" - em que o simples debate d determinada questão, pela natureza da relação jurídica posta em juízo, e em que o ré pode formular pedido de tutela jurisdicional do direito ao invés de simplesmente s defender do pedido feito pelo autor. Assim, por exemplo, na ação de exigir contas, n ação possessória e na ação revisional de aluguel. Na ação de exigir contas (arts.550e ss.), dada a natureza comum da questão posta em juízo, define-se simultaneamente direito de haver contas e o correlato dever de prestá-las. Nas ações possessórias (art 554 e ss.), o réu pode, na contestação, além de apresentar defesa ao pedido, formula pedidos de tutela possessória e de tutela ressarcitória em face do autor. Nessa açã o réu não está limitado a poder se defender, tendo a possibilidade de contra-atacar, pedindo a tutela jurisdicional possessória em seu favor. Na ação de reintegração d posse, por exemplo, o réu pode negar o direito do autor à reintegração e, ainda, pedi tutela de manutenção de posse sob o argumento de que a sua posse foi turbada pel autor. Na ação revisional de aluguel, da mesma forma, o réu pode não apenas se de fender do pedido de revisão formulado pelo autor, mas também pedir, em seu favo a revisão do contrato de aluguel (arts. 68/70, Lei 8.245, de 1991). Se, por hipótese o autor-locatário pede a redução do valor do aluguel, o réu-locador, além de se de fender, argumentando que o aluguel não deve ter o seu valor reduzido, pode :únd pedir que seja estabelecida outra periodicidade ou fixado indexador diverso para reajustamento do aluguel. Nessas situações excepcionais, em que o réu não apena

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sedefende, a sentença obviamente pode prestar tutela jurisdicional do direito ao réu, negando-a ao autor. Até aqui se falou de tutela do direito ou de tutela jurisdicional do direito material Contudo, como? autor i~ega~elmente exerce o s~u direito d~ ~ção - prati~a~do t~d~s atoSnecessárlOs para mflUlr sobre o convenCImento do jUlZ e tendo a dIsposlçao oSdasas técnicas processuais capazes de lhe permitir alcançar a tutela de direito alto jada _ ainda que a sentença seja de improcedência, é evidente que essa sentença ~: presta tutela jurisdicional, não im~o~ta~do se não co.nc~d~ ~ tutela do direit~. E.m outraspalavras, épreciso ter presente a dlstznçao entre tutela Junsdtetonal e tutela do dlrezto.

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Ou seja, o juiz, ao proferir a sentença, qualquer que seja o seu resultado, necesariamente confere tutela jurisdicional ao autor e ao réu.A sentença de improcedência ~á tutela jurisdicional ao autor e ao réu. A sentença de procedência presta a tutela jurisdicional do direito solicitada pelo autor e tutela jurisdicional ao réu.

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Vale dizer que não se aceita aqui a ideia de que a tutela jurisdicional somente é outorgada pela sentença favorável ou a afirmação de que a tutela jurisdicional apenas é concedida quando a sentença é procedente. A tutela jurisdicional é a resposta da jurisdição ao direito de participação em juízo das partes -:-é ao mesmo tempo a ~e~posta e a norma de encerramento do direito ao processo justo das partes. Mas o jUlZ apenaspresta a tutela jurisdicional do direito quando a sentenç~ é de procedên~i~. Isso porque a tutela jurisdicional é apreordena~ã~ de um pr?ce.sso justo, subs~ancIalizado pelodireito de participação das partes em jUlZO,pelas tecmcas proceSSUaiSadequadas paraa condução do processo e por todos os direitos fundamentais que ~ comp~em, e é também a resposta da jurisdição ao direito de ação, mas não é reconheCImento de que uma das partes tem razão do ponto de vista do direito material. Perceba-se que para uma necessidade de direito material há uma forma de tutela idônea Cp. ex., ressarcimento pelo equivalente). Com o exercício da ação, essa forma de tutela é requerida mediante o pedido, que também indica uma sentença adequada (p. ex., condenação). Porém, a tutela do direito somente é concedida, e a sentença requerida outorgada, quando o pedido de tutela é acolhido, isto é, quando a sentença é de procedência - nesse caso há tutela jurisdicional do direito. Contudo, a forma de tutela do direito solicitada, muito mais do que apontar para a sentença devida, constitui a base para a construção da ação adequada. Dito de outro modo, o pedido detutela do direito éparâmetro que permite tornar o processo rente às necessidades do direito material, viabilizando a sua adequação ao caso concreto.

5.8 O exercício da ação para a obtenção da tutela do direito Ao propor a ação, o autor formula o pedido, afirmando a prete~são de tutela jurisdicional do direito. Porém, após apresentar o pedido, o autor contznua atuando, ouseja,prossegue exercendo poderes efaculdades com ofim de convencer ojuiz da existência dodireito material e com afinalidade de obter a tutela do direito.

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autor, ao exercer tais poderes e faculdades, pratica atos processuais concre_ tos, fazendo alegações, produzindo provas, participando de audiências, tudo Com a finalidade de obter o reconhecimento da sua pretensão à tutela jurisdicional do direito. Mas o exercício da ação também se estende a eventual requerimento de tutela satisfativa ou cautelar mediante provimentos provisórios de cognição sumária (arts. 294 e ss.), pois mediante a sua concessão se antecipa a tutela do direito material ou se assegura a possibilidade de sua obtenção ao final do processo. Da mesma forma, a utilização de meio executivo adequado igualmente é imprescindível para a efetiva prestação da tutela jurisdicional do direito. Ou melhor, o exercício da ação, além de implicar prática de atos voltados a influir sobre o convencimento do julgador (exercício do direito ao contraditório e do direito àprova, arts. 7.°, 9.° e 10) e de viabilizar o controle sobre a sua correção(dever defimdamentação comodever de diálogojudicial, arts. 11 e 489, ~ 1.0), concretiza-se no uso de técnicas processuais capazes de propiciar a efetiva tutela do direito material.

Deixe-se claro, porém, que, se o autor exerce a ação para obter a tutela jurisdicional do direito, isso não quer dizer que a sentença que não reconhece a pretensão a tal tutela deixa de responder ao direito de ação. Como demonstrado nos dois itens antecedentes, o direito à ação adequada não depende do reconhecimento do direito material.

Contudo, nessa nova perspectiva em que a ação é vista, surge uma nova questão, cuja solução pode impor a negação de validade, diante da-atual realidade normativa brasileira, de todas as teorias que até o momento trataram da ação. O problema, em poucas palavras, consiste em saber se o direito de ação é apenas o direito a uma sentença demérito.

Há alguns anos, quando as sentenças se resumiam a declarar, constituir e condenar (classificação trinária), a única sentença que não era bastante à tutela jurisdicional do direito era a condenatória. A sentença condenatória não prestava tutela ao direito material, restringindo-se a exortar o réu a observar o direito do autor. A condenação, ao impor a sanção executiva, abria oportunidade à propositura da ação de execução, fazendo surgir uma artificial necessidade de duas ações para a obtenção de apenas uma forma de tutela jurisdicional do direito (uma ação condenatória seguida de uma ação executiva, cada qual dando lugar a diferentes processos, para obtenção da reparação de um dano, por exemplo).

Como é óbvio, ninguém possui, no plano do direito material, pretensão à tutela condenatória. Aliás, tal suposição, por si só, é uma heresia, pois a sentença condenatória não é uma forma de tutela do direito. Há contrariedade entre sentença e forma de tutela. A sentença é uma técnica processual a serviço da efetiva prestação da tutela do direito. Ou seja, assim como técnica processual e tutela dos direitos estão em campoS distintos, sentença e tutela dos direitos não têm a mínima condição de se misturar na mesma massa, porque simplesmente pertencem a planos distintos.

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A pessoa, no plano do direito material, pode ter pretensão à tutela ressarcitória, as jamais pretensão à tutela condenatória. Contudo, justamente porque aquele ~e tem pretensão à tutela ressarcitória pode exercer pretensão à tutelajurisdicional ;essarcitória, não há racionalidade em lhe dar o direito de obter apenas uma sentença ondenatória. Como essa sentença não é capaz de proporcionar o alcance da tutela ~essarcitória, a ação que culmina na sentença condenatória é uma ação inefetiva, mutilada, caduca ou "pela metade", estando muito longe de ser uma ação adequada à tutela do direito material. A doutrina processual clássica construiu a necessidade de duas ações (ação condenatória + ação de execução) para a obtenção de uma única forma de tutela prometida pelo direito material. A sentença condenatória foi vista como uma resposta ao direitode ação em razão de uma forma equivocada de se relacionar a técnica processual coma tutela dos direitos. O direito de ação não pode se contentar com a condenação, uma vez que essa, na hipótese de não ser adimplida pelo réu, exige a prática de atos de execução capazes de permitir a tutela do direito. Ou melhor, a pretensão ao ressarcimento pelo equivalente não é satisfeita pela condenação, razão peia qual a ação que a veicula deve prosseguir para permitir o alcance da tutela do direito material. Frise-seque apretensão à tutela do direito pode ser satisfeita apenas quando o réu observa voluntariamente a sentença condenatória, o que equivale a dizer que não é a sentença que prestaa tutela do direito. É por essa razão, a propósito, que o Novo Código de Processo Civil disponibilizou um procedimento ordinário - que é o nosso procedimento padrão para a tutela jurisdicional dos direitos - cujo início ocorre com apropositura da ação e c~jofim tendencia1mente se dá com a realização do direito reconhecido na senten-çamediante o seu cumprimento. A necessidade de duas ações para o alcance de uma única tutela de direito foi negada pelo Novo CPC.As sentenças que reconhecem a exigibilidade das prestações de fazer, de não fazer e de entrega de coisa têm executividade intrínseca (arts. 536 e 537),ao passo que a sentença que reconhece a exigibilidade do dever de pagar quantia certa depende apenas de requerimento, dispensando a ação de execução (art. 513, ~1.0).Tais sentenças, embora não autossuficientes - como as se-ntenças declaratória e constitutiva -viabilizam o próprio cumprimento no mesmo processo em que prolatadas. Portanto, considerando-se a teoria da ação, é importante deixar claro que a açãonão se exaure com a sentença de procedência e, por isso, o direito de ação não pode maisser visto como direito a uma sentença de mérito. Frise-se que, se a sentença não é voluntariamente adimplida, "a ação continua a ser exercida" em nome do alcance da "tutela do direito material'. Ojuiz aoprolatar a sentença de mérito não cumpre e acaba oofíciojurisdicional- o seu ofício termina apenas quando essa é devidamente cumprida. O direito de ação é o direito à ação "capaz depermitir" a obtenção da tutela do direito. Por ser o direito a uma ação "capaz depermitir', o direito de ação não exige uma sentença de procedência ou que a execução satisfaça o direito material. Nesse sentido, é um direito abstrato e não um direito concreto.Trata-se do direito a uma ação

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que, na hipótese de sentença de procedência, permita propiciar a efetiva tutela do direito material.

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Por isso mesmo, não há como pensar em julgamento da ação. O que se julga como é evidente, é a pretensão à tutela jurisdicional do direito. A ação é exercid~ para permitir o julgamento do pedido e o reconhecimento da pretensão à tutela jurisdicional do direito, assim como para exigir o uso dos meios executivos capazes de propiciar a obtenção da tutela do direito reconhecida pela sentença como devida ao autor. A ação é meio - meio adequado à tutela da situação carente de proteção evidenciada pelo caso concreto.

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o direito de ação como direito ao procedimento próprio à participação e ao plano do direito material. O direito de ação como direito ao processo justo

Como a ação exige técnicas processuais capazes de permitir a tutela do direito material, e por isso não há mais como submetê-la ao princípio da tipicidade das formas processuais, é chegado o momento de iniciar a investigação da relação de adequação entre a ação e as tutelas jurisdicionais dos direitos.

Neste momento importará o direito ao procedimento, compreendido como via capaz de garantir os direitos à participação e à efetividade do direito material. Vale dizer: como direito ao processo justo (art. 5.°, LIV, da CF). Objetiva-se demonstrar que o autor tem o direito de participar de forma plena no processo - influindo sobre o convencimento do juiz, atuando para obter a tutela do direito e controlando a racionalidade da atividade estatal- e, por consequência, o direito ao procedimento idôneo às necessidades do direito material.

A participação efetiva tem relação com a possibilidade de alegar, provar, participar da produção da prova, falar sobre o seu resultado e controlar a racionalidade da resposta ao pedido de tutela jurisdicional do direito. O direito de participar- que cabe ao autor através da ação e ao réu da defesa - está ancorado na ideia de que, quando se objetiva uma decisão estatal, é imprescindível abrir aos interessados a oportunidade à participação, direito que decorre da própria noção de democracia, ou melhor, de legitimação do poder mediante a participação democrática. Essa possibilidade de participação é outorgada ao autor que se denomina direito ao contraditório, que nada mais é do que às partes a possibilidade de atuar no processo com o objetivo jurisdicional, dialogando ao longo de todo o procedimento com nos rumos do processo e no conteúdo da decisão judicial.

e ao réu mediante o o direito que confere de obter uma tutela o juiz a fim de influir

O contraditório é garantido no art.5 .0,LV, da CF, que diz que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Como o contraditório é um direito que pertence às partes, é equivocada a sua expressão nos termos ditados,

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orno se tivesse maior importância ao réu ou vínculo mais intenso com a defesa. Note-se que o art. 5.°, LV, da CF alude a "meios e recursos a ela [defesa} inerentes".

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Na verdade, o contraditório não se liga apenas à defesa, mas sim à possibilidade,conferida a ambas as partes, de influir sobre o desenvolvimento e o resultado doprocesso. 73Ou seja, deriva do contraditório o direito ao uso dos meios adequados para influir sobre o convencimento do juiz, como os meios de prova. Fala-se, nessa dimensão, em direito à prova, reconhecido no direito estadunidense como right to evidence.74 Ainda, rigorosamente, o direito ao contraditório, embora seja titularizado pelas partes, tem como destinatário o próprio juiz, que tem o dever de dialogar com aspartes e de decidir levando em consideração apenas o material fático-jurídico já submetido ao debate processual (art. lO) -isso quer dizer que o juiz é um dos sujeitos do contraditório. O juiz em um processo pautado pela colaboração é um juiz que o conduz em uma posição isonômica pelo diálogo com as partes, ocupando uma posição assimétrica apenas no momento em que decide e impõe a tutela jurisdicional (art. 6.0).75 O fato de o juiz ser destinatário do direito ao contraditório autoriza a sua inserção como um dos seus sujeitos - ele éparte no contraditório justamente porque participa do diálogo em que esse se consubstancia no processo.76

Embora a norma constitucional garantidora do contraditório aluda a "meios" e "recursos" inerentes à defesa, o certo é que o direito à prova e o direito ao recurso podem ser limitados em face de certas situações. O direito à participação no processo e suas decorrências incidem sobre o legislador,obrigando-o a traçar normas que deem às partes oportunidade de participar, o que não quer dizer, como é óbvio, que essa participação deva ser ilimitada. O direito à participação no processo incide sobre o legislador ainda a fim de viabilizar ao juiz adequada participação no processo, instrumentalizando-o com poderes que abram oportunidade para a efetiva tutela dos direitos. Nessa perspectiva, os arts. 5.0, 6.°, 7.°, 9.°,IO,entre outros, constituem respostas do legislador ao seu dever constitucional de Cf Nicolà Trocker, Processocivile e costituzione, p. 371. Como escreve Vigoriti, "a estreita conexão entre as alegações dos fatos, com que se exercem os direitos de ação e de defesa, e a possibilidade de submeter ao juiz os elementos necessáriospara demonstrar o fundamento das próprias alegações, tornou clara a influência das normas em tema de prova sobre os direitos garantidos pelo dueprocessoflaw. E a mesma conexão impôs o r~conhecimento, em nível constitucional, de um verdadeiro e próprio direito à prova (right to evzdence)em favor daqueles que têm o direito de agir ou de se defender em juízo" (Garanzii1costituzionali deiprocessocivile, p. 86). 75 DanielMitidiero, Colaboraçãonoprocessocivil, p. 81; Fredie Didier J únior,Fundamentos doprincípio da cooperaçãono direitoprocessualcivilportuguês, p. 48; Leonardo Cunha,A atendibilidadedosfatos supervenientes noprocessocivil, p. 78; Lorena Barreiros, Fundamentos constitucionais doprincípio da cooperaçãoprocessual, p. 183 e 309; Artur Carpes, Ônus dinâmico da prova, p. 38; Eduardo Cambi, Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo,p. 116. • 76 Para uma interessante crítica a respeito, Lúcio Delfino e Fernando Rossi,Juiz contradItar?, Revista Brasileira deDireito Processual,p. 229-254, n. 82. 73

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desenhar uma ação capaz de outorgar tutela adequada, efetiva e tempestiva mediante processo justo - isto é, mediante um processo capaz de viabilizar uma participação equilibrada de todos os seus sujeitos.

Ademais, o direito ao contraditório e seus corolários igualmente incide sobre o juiz, que tem o dever de interpretar os dispositivos processuais à luz do direito de ação como direito ao processo justo - vale dizer, como direito capaz de permitir a adequada participação das partes e a adequada percepção do seu próprio papel na direção do processo.

Porém, quando se pensa na incidência da garantia de participação sobre ojuiz ou no caso concreto, torna-se evidente a necessidade de vincular o direito de participação com a situação de direito material. A aferição do direito de participação no caso concreto deve ser feita a partir da tutela jurisdicional do direito almejada, sendo esse o seu parâmetro de adequação.

O autor não tem o ônus de jazer alegações e produzir provas sobre pontos que não importam para o juiz se convencer de que a tutela do direito deve ser concedida. Mas, para que a tutela do direito possa ser efetivamente prestada, também não sepode permitir ao réu alegar eprovar em torno de questões não relativas à situação de direito substancial objeto de tutela, o que afasta do juiz, por-consequência lógica, a possibilidade de conhecê-las, gerando-lhe o dever de não conhecer de alegações impertinentes e de proibir a.pmdução de provas ao seu redor (art. 367, parágrafo único).

A restrição da cognição judicial às questões que dizem respeito à espécie de tutela do direito ambicionada em juízo é fundamental para a efetividade das tutelas dos direitos e ponto a ser observado para o delineamento dos procedimentos especiais. Determinadas formas de tutela do direito necessitam de procedimentos que excluam a discussão de certos pontos, sob pena destes serem. utilizados para impedir a obtenção da própria tutela.

Assim, por exemplo, o procedimento da ação possessória, ao impedir o réu de se defender alegando questões relativas ao domínio, constitui um procedimento cuj cognição judicial fica restrita ao terreno da posse (art. 557). Entende-se que o réu não pode se defender alegando o domínio, pois se isso fosse viável não seria possíve outorgar efetividade à tutela jurisdicional da posse. O mesmo se passa atualmente com a ação que visa à prestação da tutela inibitória ou da tutela de remoção do ilícito no procedimento comum: em ambos os casos, diz acertadamente o parágrafo único do art. 497 que "para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo".

A ação de remoção, ainda que posterior à prática do ato contrário ao direito não obriga o autor a alegar dano e culpa, pois através dela não se objetiva obter res sarcimento,mas somente a remoção dos efeitos concretos do ato ilícito (não danoso) Porém,justamente porque não importa se o ato ilícito provocou dano é que se impede

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oréu de alegar que isso não ocorreu ou poderá ocorrer e, por consequência, também aojuiz de indagar ou determinar prova sobre a questão do dano e da culpa. A restrição da possibilidade de discussão de uma questão é legítima quando necessária parapermitir a t~t~l~ jurisdic~onal que decorre ~o ~ireito ma~erial. A tutela juris~~ional de remoção do IlíCIto deflm da norma de dIreito matenal que proíbe a pratIca de determinada conduta - por exemplo, a norma que proíbe a venda de produto nocivo à saúde do consumidor. Como da razão de ser dessa norma - do seu desejo de dar proteção ao direito do consumidor - decorre a necessidade de remover os efeitos concretos do ilícito, e para tanto importa apenas saber se a norma foi agredida, e não se a violação da norma gerou dano ou o fato danoso - que é uma consequência meramente eventual do ilícito (ato contrário ao direito) -, é evidente que o juiz, para prestar a tutela jurisdicional prometida pelo próprio direito material, não pode permitir o debate sobre o dano e a culpa, lembrando-se, aliás, que essa última é apenas um critério para a imputação da sanção ressarcitória ou para a definição da responsabilidade pelo dano, e, assim, não tem relevância quando se deve ter em conta apenas o ato contrário ao direito. Portanto, a restrição da possibilidade de "discussão" não implica, por si só, lesão ao direito de participação. Ao contrário,-admitir que oprocesso seja congestionado por questões múltiplas, sem nenhuma conexão com a tutela jurisdicional pretendida e seus pressupostos, é que impede que ajurisdição seja exercida de modo-a cumprir com a sua missão diante do direito material. Daí a legitimidade da restrição no debate nas ações que visam à tutela inibitória e à tutela de remoção do ilícito.

5.10 O direito à técnica processual adequada à tutela do direito e ao caso concreto O direito de ação tem como corolário o direito às técnicas processuais adequadas à tutela das várias necessidades do direito material. Entre essas técnicas estão não só osprocedimentos construídos para permitir o acesso da população economicamente menos favorecida à jurisdição (Leis dos Juizados Especiais - Leis 9.099/1995, 10.25912001 e 12.15312009)77 e os procedimentos voltados à tutela de específicas situações de direito substancial (por exemplo, procedimentos das ações possessórias) e dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos (por exemplo, Lei da Ação 77 A universalização do acesso à justiça tem a ver com a necessidade de se conferir ao cidadão não dotado de recursos a possibilidade de pedir a proteção jurisdicional dos seus direitos. Para tanto o legislador institui procedimentos que têm a missão de atender causas de menorvalor econômico e com conteúdos que presumivelmente sejam próprios às pessoas de menor poder financeiro (Lei 9.099/1995, art. 3.°; Lei 10.259/2001, art. 3.°), tornando-os mais informais e céleres, e dispensando, em determinada medida, as custas processuais (ver arts. 13, 14, 31, 35,43, 54 e 55 da Lei 9.099, de 1995 e arts. 8.°,9.°,10,13,16 e 17 da Lei 10.259/2001). Ver, ainda, Lei dosJuizados Especiais da Fazenda Pública (Lei 12.15312009) .

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Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor, Título III),78 mas especialme as técnicas de distribuição do ônus da prova (arts. 373), as técnicas de antecipa~~ da tutela (arts. 294 e ss,)/9 as técnicas de julgamento imediato do pedido no todo Ou em parte (arts. 355 e 356) as sentenças diferenciadas (mandamental e executl'v , a,arts 139 IV 497 e 498) e os vários meios de execução (multa busca e apreensão e ' , , ,Outros arts. 139 IV 536 537e538). ' " '.' . _ . " E preClsolevar e.mconslderaçao a~peculzarz~ades do caso concreto p~a se distribuir de forma adequada o onus da prova. EXIstem baSIcamente duas maneIras de fazê-lo' ' d 'd' . ' ON C " d e manelrafixa e e maneIra znamzca. ovo PC alça mao . . '( R o)' _ dessas duas tecnicas d e d lstnbUlçao art. 37?, e seu 'j 1. ,Partmdo-se da p,resunçao de que normalmente quem ~e?a det~r~lln,ado fa~o t~m ,n:elhor ac:sso as fontes de ~r?va, a regra no processo CIvilbrasileua e a da dzstrzbuzçao fixa do onus da prova, tradIClOnal em nosso processo civil: quem alega tem o ônus de provar (art. 373, distribuição que pode ser objeto de inversão quando presentes determinados pressupostos legais, art, 6. o, VIII, do CDC). Pode ocorrer, porém, dessa presunção não se verificar e de a parte que alega o fato não ter acesso às fontes de prova, que de outro lado são facilmente acessíveisà parte contrária. Nesse caso, o juiz deve aplicar a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova, que parte justamente do pressuposto que a prova das alegações incumbe a quem tem melhores condições de provar (art. 373, S 1,0). De outra parte é preciso considerar que o tempo necessário para o 'uiz a u , J P rar a verdade das alegações de fato e formar a sua convicção pode obstaculizar a efetiva t' - d tut 1 . d ' d d d tut e1a d o d.IreI't orna t en'alA . an eClpaçao a e acontraopengo enva o a emora . . , . I:' 'd d dI' (' 'b' , ' ),. d o processo ob~etlva propICIar a eletlvl a e a tute a preventIva 1m ltona ,ISto e, . . 1 ' d a tutela que tem por fim eVItar a VIOação do dIreito, assim como a efetividade das o' l' , . '. _' , ' propnas tute ,a~~ostenores ao ato contrano ao dIreIto (de remoça0 do ilíCIto) e ao dano (r,essarCltona), E interessante destacar que, antes da Constituição de 1988, a ideia de que o direito de ação garantia o direito à tutela preventiva não era clara. Ou ao menos não se admitia que as liminares cautelares ou de determinados procedimentos especiais, como a do mandado de segurança, constituíam manifestações imprescindíveis à realização do direito de ação.

78 Para a tutela desses direitos é fundamental dar legitimidade à propositura da ação coletiva a determinados entes, como as associações, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Procon (CDC, art, 82), bem como estender os efeitos das sentenças a toda a coletividade (direitos difusos), aos grupos (direitos coletivos) e aos detentores de direitos individuais homogêneos (CDC, art,l03), 79 Essas técnicas estão presas aos seguintes pontos: (i) universalização do acesso àjustiça; (li) tutela jurisdicional dos direitos transindividuais e individuais homogêneos; (iii) cognição judicial adequada das diferentes situações de direito material; (iv) realização concreta da tutela jurisdicional; e (v) distribuição do ônus do tempo do processo,

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Aliás,essa posição chegou a ser expressa pelo Supremo Tribunal Federal mesmo apósa Constituição d: 1~8~, o que tor~a a ~uestão,ainda ~ais. neb~losa. Torna-se importante f~zer refe~e?~la a cele~re açao dIreta de mCO?stltuclOn~~ade propos::a contra a medIda proVIsona - depOIStransformada em leI - que prOlblU a concessao ' o' 1 d d d deliminar e a execuçao provlsona nas açoes caute ,ares e nos man a os e segurança d'd 1 1 d t bil' .'" °d 1 cujospe 1 ossevotassemcontraopano eesa lzaçaoeconomlCamstltulopeo GovernoCollor,queimpediuquefossemfeitossaquesacimadedeterminadaquantia nascontas correntes e de poupança. O S T 'b al F d al d li' b' , upremo n un e er nao conce eu a mmar- que o ~etlvava a susdI:' d d'd ' , ' 'd d' t ' t'tu pensão os eleItos essa me 1 a prOVIsona - requen a na açao Ire a d e mcons 1 cionalidade, argumentando que a solução do problema estaria no manejo do sistema de controle difuso da constitucionalidade, deixando-se ao juiz a possibilidade de controlar a constitucionalidade da medida provisória diante das circunstâncias do casoconcreto. Embora essa solução não nos pareça acertada, o que importa, nesse momento, é outro aspecto da questão, expressamente consignado no voto proferido pelo Ministro Moreira Alves, nesses termos: "A inovação que a atual Constituição introduziu no inciso XXXV do art. 5.0 [alusão expressa à ameaça a direito: 'a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito'] dificilmente poderá levar à conclusão de que a lei não poderá restringir a utilização de medidas liminares porque, com isso, se estaria suprimindo parcialmente uma das espécies de processo (o processo cautelar) e, portanto, de certa maneira, excluindo da apreciação d p d J d' ., ' d' . C I: ' - h do' d d Ü o er u lClano a ameaça ao lr,elto. om eleIto, para que na? ,?uvesse UVI a e quea vedação da exclusão da apreclação por parte doPoderJudlclario alcançava não ' , ". 1 d (1 - d d' , ) bo d" apenas o dIreIto ja VIOa o esao e rrelto, mas tam em o lrelto apenas ameaçado (dO '1' d d d d o' o que a margem mc USlvea açoes como as e man a o e segurança, d ec1aratona, 1 t'" 1 'd t . d" re a lvasa ameaça aposse,paraaque es que conSl erames acomo lrelto,açoesessas quenão pertencem ao âmbito do processo cautelar), esse inciso da atual Constituição mencionou, expressamente, a ameaça a direito. Mas, com isso, teria impedidn que se restringisse o uso de medidas liminares ou de procedimentos especiais outros, desde que não se obstasse a que, no mínimo por ação ordinária, o Poder Judiciário apreciasse lesão ou ameaça a direito, pois o que é vedado é excluir de apreciação, é eliminar, não admitir, privar, o que não sucede, evidentemente, sepor meio ordinário se admite tal apreciação". 80 A ideia que parecia evidente ao Ministro Moreira Alves é, insustentável na atualidade. Afirmou o Ministro que com o art. 5. o ,XXXV, "o que é vedado é excluir de apreciação, é eliminar, não admitir, privar, o que não sucede, evidentemente, se por meio ordinário se admite tal apreciação". Ora, a norma do art. 5. o, XXXV, não teve apenas a finalidade de proibir a exclusão da apreciação de lesão e de ameaça a direito, mas especialmente o objetivo de outorgar ao cidadão o direito às técnicas necessárias para que a sua ação possa viabilizar a efetiva tutela do direito material. Ou seja, como a norma constitucional

80

STF,ADln

2361DF, acórdão de 05,04,l990,p,

80-81.

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não apenas garante o cidadão contra a possibilidade de exclusão, mas essencialmente o Seu direito à tutelajurisdicional efetiva, a interpretação conferida pelo Ministro Moreira Alves ao art. 5.°, XXXV, está muito longe da concepção contemporânea de ação. O raciocínio é muito simples: se a ação deve garantir a proteção jurisdicional contra a ameaça de violação, e a sentença ou a tutela final- ou ainda o "meio ordinário" como prefere o Ministro Moreira Alves - não é capaz de tempestivamente propiciar ~ apreciação da cifirmação da ameaça, uma vez que se teme que o ilícito seja praticado de forma iminente e, portanto, antes que sepossa chegar aofim do processo ou à sentença, é pouco mais do que evidente que a única forma de se permitir a proteção jurisdicional contra a ameaça se dá mediante liminar ou mais precisamente através da técnica da antecipação da tutela (arts. 294 e ss.). Contudo, a técnica da antecipação fundada em perigo não é necessária apenas para dar ao juiz oportunidade de apreciar a ameaça de lesão de modo tempestivo, mas também para permitir a tempestividade da tutela de remoção do ilícito e até mesmo da tutela ressarcitória. A remoção do ilícito é necessária quando um ato ilícito produz efeitos que se prolongam no tempo, como ocorre no caso de exposição à venda de produto nocivo à saúde do consumidor. A tutela de remoção se volta contra a conduta que viola a norma mas não produz dano, sendo imprescindível para atuar o desejo de proteção da norma violada, exatamente o de evitar a prática da conduta presumida pela norma como capaz de produzir dano. Como a prática de uma conduta proibida pode trazer danos imediatos, não há como esperar o término do processo para se obter a apreciação_da afirmação de violação da norma, restando a técnica antecipatória como única alternativa para a tempestividade da tutela jurisdicional. Já a antecipação do ressarcimento na forma específica poderá ser necessária para evitar o agravamento do dano que se busca ressarcir através da ação. Assim, por exemplo, quando alguém polui um rio e o dano pode aumentar com o passar dos dias e das horas. De outra parte, o ressarcimento do dano pelo equivalente, ou seja, a antecipação de soma em dinheiro em ação ressarcitória, não poderá ser descartada quando o autor precisar imediatamente de verba alimentar - alimentos indenizatórios - para suprir uma necessidade primária, seja relativa à saúde, seja ao sustento pessoal ou dos filhos. Por sua vez, a tutela cautelar tem a finalidade de assegurar a efetividade da eventual tutela final do direito. Tal tutela é necessária para garantir que a eventual tutela do direito seja prestada de forma efetiva ao final do processo. Por outro lado, a técnica de antecipação da tutela com base em abuso do direito permite a distribuição do ônus do tempo do processo, impedindo que esse corra em prejuízo do autor e em benefício do réu. Essa técnica não se relaciona com o perigo de dano em razão da demora, mas apenas com o ônus do tempo. A norma que trata da tutela antecipatória em caso de abuso do direito de defesa viabiliza a distribuição do ônus do tempo do processo de acordo com a tradicional

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regra que divide o ônus da prova, considerando os fatos constitutivos e os fatos iIIlpeditivos, modificativos e extintivos. Isso quer dizer que, se o autor desincumbiu-se do ônus da prova dos fatos constitutivos, mas o processo deve prosseguir para elucidaruma defesa inftndada que alega fato impeditivo, modificativo ou extintivo, nãohá racionalidade em obrigar o autor a continuar suportando o ônus do tempo do processo. Em um caso como esse, a tutela deve ser antecipada, pois o tempo para a produção de prova, em nome de uma defesa indireta infundada, constitui uma dilação desarrazoada. Se, após a produção da prova, a defesa de mérito indireta for acolhida, atutela antecipada será revogada. Note-se que, como também ocorre com as sentenças e meios executivos, a técnicaantecipatória possui íntima ligação com oplano do direito material e com asparticularidades do caso concreto. A tutela antecipatória contra o perigo de dano exige que o juiz se convença da probabilidade do direito. Porém, essa só pode ser identificada com base na tutela pretendida e nos fundamentos invocados para a sua obtenção. De modo que o direito de obtera antecipação da tutela não se contenta com a mera constatação de probabilidade ou de"ftmus boni iuris': como se uma ou outro fissem destituídos de conteúdo. A probabilidade somentepode ser compreendida apartir das diferentes necessidades do direito material (tipos detutela e variedade dos seus pressupostos). Ou seja, a tutela antecipatória contra o perigo requer a compreensão da natureza da tutela que se deseja antecipar e dos pressupostos invocados para a sua obtenção. A urgência necessária para a antecipação impõe a análise da tutela requerida no plano do direito material (inibitória ou de remoção do ilícito, por exemplo) e dos seusfundamentos (seguindo-se o exemplo, probabilidade de vir a ser praticado ato contrário ao direito ou probabilidade de ter sido praticado ato contrário ao direito). Diante dessas considerações, torna-se claro que a antecipação da tutela cfeveser analisada apartir da natureza da tutela de direito requerida através da ação, e não como se fosseuma simples técnica de aceleração doprocesso, indiferente aoplano do direito material. Por outro lado, a própria noção de" urgência" (art. 300) evidencia a característica de"adequação concreta" da técnica antecipatória, pois dá ao autor o poder de requerê-la confirme as necessidades do caso conflitivo. Na verdade, as noções de "urgência" e de"evidência" apontam em si mesmas para uma necessidade de atribuição de significado posterior, diante do caso concreto. Ou melhor, ainda que tais noções possam ser dotadas de significado em abstrato - pois se pode conceituar o que é fundado na urgência ou na evidência -, elas somente servem para permitir a identificação de uma ocorrência no casoconcreto. Nesse sentido, portanto, tais conceitos podem ser vistos como de significado a ser concretizado. Contudo, é importante frisar que tais técnicas não apenas contêm conceitos indeterminados, mas podem ser utilizadas diante de qualquer situação conftitiva concreta. Nesse sentido, a técnica antecipatória é atípica .

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NO ESTADO CONSTITUCIONAL

.la técnica de antecipação da tutela, em tese, pode se valer das expressõe de dano", "perigo na demora" ou "ineficácia do provimento final", poré~ ~er parte de um procedimento especial, reservado para uma específica situação de direito substancial. Nesse caso, a técnica antecipatória, ainda que dependente das circunstâncias do caso concreto, somente pode ser utilizada em face da situação de direito substancial própria ao procedimento especial que a instituiu. ",0

Tal técnica antecipatória, entretanto, não é uma resposta ao direito à técnica processual adequada ao caso concreto,já que não pode ser utilizada para dar efetividade a qualquer ação, mas apenas à ação que pode ser estruturada com base no procedimento especial que prevê apossibilidade de antecipação da tutela. Note-se que a restrição da tutela antecipatória, ou a sua instituição em um procedimento especial, de certaftrma retoma a ideia de ação típica,já que o legislador passa a viabilizar a oportunidade de antecipação da tutela apenas para determinada situação de direito substancial

Isso não quer dizer que a instituição de procedimento especial não seja algo adequado para determinadas situações de direito material. O procedimento da ação de reintegração de posse, por exemplo, prevê a possibilidade de liminar, mas deixa claro que ela independe de qualquer alegação de receio de dano. Nesse caso, a previsão da possibilidade de antecipação da tutela, independentemente de perigo de dano, decorre das particularidades da própria situação de direito substancial, que impõem um procedimento especial 81

Porém, a ação atípica- capaz de dar proteção a qualquer situação - apenas tem sentido quando conjugada às técnicas processuais capazes de permitir a efetiva tutela do direito material~Vale dizer: técnicas processuais igualmente atípicas. Assim, não há racionalidade em viabilizar a liminar no mandado de segurança, instituído para a tutela dos direitos ameaçados ou violados por ato de autoridade pública,82 e a negar no procedimento em que se busca a tutela dos direitos ameaçados ou violados por ato de particular. A lógica do mandado de segurança somente teria sentido em uma dimensão em que importassem apenas os direitos de liberdade e fossem temidos somente os atos do Estado. Acontece que, na sociedade contemporânea, aqueles que frequentemente ameaçam ou violam os direitos fundamentais - como o direito ambiental e o direito

81 Isso porque se presume que os direitos à reintegração e à manutenção de posse trazem em si a urgência. Ou seja, quando tais direitos são evidenciados, ainda que sumariamente, logo após a violação do direito (a turbação ou o esbulho), presume-se a necessidade de sua realização urgente. É por esse motivo que: a tutela antecipatória, nesses casos, exige que a ação tenha sido proposta dentro de ano e dia. E que, se a ação foi proposta depois de ano e dia, há a presunção contrária, isto é, de que não há necessidade de tutela imediata do direito. 82 Segundo o art. 1.0, caput, da Lei 12.016/2009 (Lei do Mandado de Segurança), "conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso do poder, qualquer pess~a fisica ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, sej de que categoria for ou sejam quais forem as funções que exerçà'.

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por exemplo - são os sujeitos privados. Contra eles, portanto, devem der ser utilizadas técnicas tão eficientes quanto aquelas previstas no procedimento

do mandado

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e segurança.

83

83 ''A lógica subjacente à afirmação de que o mandado de segurança é a tutela do particularcontra o Estado deita raízes em uma visão superada das relações entre o Estado e oparticular. O mandado de segurança, visto como instrumento de tutela das liberdades públicas, tem íntima correlaçãocom os valores liberais, que expressavam uma compreensível preocupação com a ingerênciado poder político sobre a vida das pessoas. Atualmente,já operada a transformação que culminou na criação de um novo 'Estado de Direito', não há mais razão para contrapor o indivíduoao Estado, mas sim para zelar por sua justa inserção na vida social e pelo exercício concreto dosnovos direitos. Como o objetivo do Estado não é mais apenas proteger os 'direitos naturais e imprescritíveis do homem', ocorreu o abandono da política inicial de mera defesa das liberdades, tendoo Estado passado a interferir sempre de modo mais incisivo na esfera dos particulares para asatisfação das necessidades sociais. Essa mudança de escopos do Estado deveria estar refletida nãosó na predisposição das tutelas jurisdicionais, mas sobretudo na mentalidade dos processualistas,que necessariamente devem pensar o direito processual à luz dos valores-do Estado em que vivem.Não é apenas o Estado que atenta contra os direitos dos particulares, como não são somente as'liberdades públicas' que necessitam de tutela jurisdicional célere e efetiva. Basta lembrar os direitos difusos e coletivos, cuja efetiva e concreta realização é muito importante para o Estado contemporâneo alcançar seus fins. A 'ideia' de que o mandado de segurança somente pode ser utilizadocontra o Estado esteve presente no veto ao art. 85 do CDC,que assim estabelecia: 'Contra atosilegais ou abusivo~ de pessoas físicas oujurídicas que lesem direi to líquido e certo, individual, coletivoou difuso, previsto neste Código, caberá ação mandamental que se regerá pelas normas eleido mandado de segurança'. Essa norma foi vetada com base na seguinte fundamentação: 'As açõesde mandado de segur:mça e de habeas data destinam-se, por sua natureza, à defesa de direitos subjetivos públicos e têm, portanto, por objetivo precípuo os atos de agentes do Poder Público. Porisso, a sua extensão ou aplicação a outras situações ou relações jurídicas é incompatível com suaíndole constitucional. Os artigos vetados, assim, contrariam as disposições dos incs. LXXI eLXXII do art. 5. ° da Carta Magna'. Esse veto não tem qualquer sustentação jurídica, pois não há qualquer razão para se pensar que o procedimento do mandado de segurança não possa ser utilizado contra o particular. A proposição que admite o uso do mandado de segurança apenas contra atos do Poder Público somente pode fixar como premissa a tese absurda de que apenas os agentes do Poder Público são capazes de cometer atos que justifiquem o emprego de um procedimento célere e expedito. Imaginar que o processo é uma arma contra o Estado constitui uma ideiasem qualquer coerência com os postulados da moderna doutrina do processo, atualmente tãopreocupada com a adequação das tutelas às diferentes situações de direito substancial e com aefetividade dos novos direitos. Na verdade, faltou vontade política para se munir o consumidor de um instrumento efetivo para a tutela dos seus direitos e, dessa forma, é possível dizer que o veto constituiu uma armadilha conservadora. Aliás, já se disse que, quanto mais intensamente umalei protege os interesses populares e emergentes, maior é a probabilidade de não ser aplicada. Lembre-se de que a intenção do art. 85 não era simplesmente predispor um 'mandado de segurança' para a tutela individual do consumidor em juízo, mas também tornar viável o uso do mandado desegurança para a tutela dos direitos difusos e coletivos desconsiderados pelo particular. O veto do art. 85 reflete uma total incapacidade de compreensão da necessidade de tutela jurisdicional c~leree efetiva para a proteção dos novos direitos" (Luiz Guilherme Marinoni, Tutela inibitória,

Clt., p. 299-300).A

tese que ora se propõe elimina problemas

como esse, pois, se o autor tem o direito à

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As alegações de fato formuladas no processo pelas partes podem também se caracterizar do ponto de vista do comportamento das partes ou do ponto de vist probatório de diferentes maneiras, o que pode determinar a necessidade de adequa~ ção concreta do processo para bem atendê-las. A desnecessidade de prova diversa da documental para o julgamento do feito - ou mesmo a desnecessidade de qualquer prova para tanto - pode determinar o julgamento imediato do pedido (art. 355,1). Pode ocorrer, igualmente, que apenas parte da causa esteja madura para julgamento, enquanto o restante depende ainda de prova para o esclarecimento das alegações de fato. Nesse caso, é certamente injusto do ponto de vista da gestão temporal do processo fazer com que a parte espere para ver julgado aquilo que já se encontra incontroverso, atrelando-se necessariamente o seu enfrentamento ao amadurecimento da causa como um todo.84 Por essa razão, o novo Código viabiliza a tutela definitiva da parcela incontroversa da demanda, abrindo oportunidade para um julgamento parcial de procedência do pedido ou de parcela do pedido (art. 356). O juiz, mediante a sentença, aprecia o pedido do autor e, ao reconhecê-lo como procedente, presta a tutela jurisdicional do direito material. As sentenças se diferenciam exatamente para possibilitar a adequada e efetiva prestação da tutela jurisdicional dos direi tos, classificando-se em declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental e executiva. O-autor requer a sentença declaratória quando necessita obter, como bem jurídico, a declaração da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica, porque pairava sobre ela uma situação de incerteza ou dúvida objetiva. A sentença constitutiva cria, modifica ou extingue uma situação jurídica. Por isso é dita positiva e negativa - essa última também chamada de desconstitutiva. A sentença que interdita o demente é constitutiva positiva, ao passo que a sentença que anula um contrato é constitutiva negativa. A mera prolação das sentenças declaratória e constitutiva é suficiente para atender ao direito material, ao passo que as sentenças condenatória, mandamental e executiva se ligam a meios executivos, visando com isso à tutela do direito.

A sentença condenatória impõe o cumprimento de uma prestação de pagar quantia, abrindo oportunidade para o autor requerer a execução no caso do seu inadimplemento. A sentença de condenação, ao determinar o cumprimento, já cria os pressupostos que viabilizam a sua execução. Em razão da sentença condenatória, a jurisdição fica autorizada a praticar atos executivos, o autor fica investido do poder de requerer a execução e o réu fica submetido ao poder executivo da jurisdição. A exe-

técnica processual adequada ao caso concreto, sempre lhe serápossível exercer a ação com técnicas processuais idôneas, pouco importando se estiverem expressamente previstas apenas em procedimento especIa voltado para outra situação específica. 84 Amplamente, Luiz Guilherme Marinoni, Tutela antecipatória,julgamento antecipado e execução imediata da sentença; Abuso de defesa e parte incontroversa da demanda .

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utividade da sentença condenatória é extrínseca, justamente porque apenas permite ~adoção das técnicas executivas para a obtenção da tutela do direito. Outras sentenças, embora também dependentes de meios executivos, têm executividade intrínseca, ou seja, prestam a tutela do direito mediante determinada modalidade executiva. Basicamente, essas modalidades executivas podem atuar sobre avontade do demandado, visando convencê-lo a cumprir, ou substituir a sua vontade, atuando em seu lugar para que a tutela do direito seja prestada. Vale anotar, como exemplos, a multa - que visa convencer ao adimplemento - e o desfazimento de obra -que remove algo que não deveria ter sido feito (arts. 536 a 538). As sentenças de executividade intrínseca são ditas mandamental (atuam sobre avontade mediante meios como a multa) e executiva (substituem a vontade mediante meioscomo a busca e apreensão e o desfazimento de obra). Embora as duas sentenças nãosejam autossuficientes- como as sentenças declaratória e constitutiva - e tenham executividade intrínseca, a sentença mandamental atua para convencer o demandado ea sentença executiva de modo a substituir a sua própria vontade. As sentenças de executividade intrínseca, embora no atual sistema processual possam se relacionar com o inadimplemento de prestações obrigacionais, têm o seu devido lugar diante dos deveres legais. Q1Iem viola dever legal de não fazer ou de fazernão se torna devedor de uma prestação em face da sentença de procedência. A sentença que reconhece dever de fazer ou não fazer deve atuar para eliminar os efeitos concretos deixados pelo fazer ou não fazer ilícito, sem ter que condenar o demandado aremover o ilícito ou a desfazer algo que não deveria ter feito. O mesmo ocorre diante dos direitos reais. A sentença que julga procedente a ação de reintegração de posse não faz do esbulhador um devedor de prestação de entrega de coisa. Daí porque a sentença deve determinar a reintegração, a ser cumprida por oficial de justiça. A tutela jurisdicional do direito, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais execuçãoe menos declaração. A sentença condenatória não contém execução - é uma declaração que abre oportunidade à execução. Trata-se, assim, de técnica processual que constitui uma fase da tutela jurisdicional do direito. Ao contrário, as sentenças mandamental e executiva prestam a tutela do direito. Ao impor a multa para evitar a violação de direito, a sentença mandamental presta tutela inibitória. A sentença executiva, ao determinar busca e apreensão para a remoção da situação ilícita, presta tutela de remoção do ilícito. Por todas essas razões que se está falando em direito à tutela jurisdicional adequada ao caso concreto. A ação atípica e abstrata apenas poderá constituir um direito capaz de dar efetividade ao direito material, deixando de ser uma mera proclamação retórica, caso permita ao autor, durante o seu exercício, a utilização das técnicas processuais adequadas à situação concreta.

É por isso que o direito de ação depende da possibilidade do uso de técnicas adequadas de distribuição do ônus da prova, de técnicas de antecipação de tutela,

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de julgamento imediato do pedido no todo ou em parte, das sentenças e dos meio executivos idôneos qualquer que seja a situação coriflitiva concreta.

5.11 O direito à construção da ação adequada ao caso concreto

A ação é um direito que concentra uma série de posições jurídicas, Cornoo direito de influir sobre o convencimento do juiz, para que o direito material sej reconhecido e realizado. A ação, muito mais do que um simples direito de pedir a prestação jurisdicional, é um direito de agir diante da jurisdição para obter a tutela jurisdicional. Nesse sentido, a ação - como também acontece com a defesa - realiza-se com base no direito de participação, expressão de um princípio político fundamental do Estado Constitucionaloprincípio-democrático. O direito à participação, imprescindível à legitimação do próprio poder jurisdicional, ajunta-se ao primitivo direito de ir a juízo para dar conteúdo ao direito contemporâneo de ação.

Mas, para que o autor possa participar adequadamente, atuando de modo a realmente poder exigir a efetiva tutela do direito material, há a necessidade de que o procedimento aberto à participação seja estruturado de maneira idônea. Ou melhor não basta imaginar que a proclamação do direito de ação e do direito à participação é suficiente para legiti~ar a proibição da tutela-privada e do monopólio estatal d distribuição de justiça. E preciso que o autor possa se valer das técnicas processuais hábeis_à-efetiva tutela do direito material.

A ideia de que o cidadão tem um direito de ação que se apresenta como espéci do direito de petição - que, por ser inseparável de toda organização em forma d Estado, se exerce indistintamente diante de todas e quaisquer autoridades85 - serv apenas para expressar o direito de ação como garantia formal e por isso foi importante em determinado contexto histórico, em que era imprescindível delimitar a liberdade do cidadão diante da autoridade estatal.

Lembre-se que essa teoria foi desenvolvida por volta de 1940, época de ina creditáveis violências aos direitos de liberdade não apenas na Europa, mas também no Brasil. Nesse momento era importante afirmar o direito de ação como garantia formal contra o Estado, tendo chegado Couture a dizer que "el derecho depetición e un precioso instrumento de relación entre elgobierno y elpueblo". 86

A teoria de Liebman, isto é, a teoria das condições da ação, que durante muito tempo gozou dos favores do direito positivo brasileiro, veio à luz nesse mesmo pe ríodo. Vale a pena destacar que Liebman se transferiu para o Brasil um pouco ante da segunda guerra mundial em razão dos horrores do fascismo e do nazismo. Ao retornar à Itália, após o término da guerra, Liebman escreveu o texto publicado so o título "L'azione nella teoria deIprocesso civile", representativo da aula inaugural d 85 86

Eduardo Couture, Fundamentos Idem, p. 77.

... , cit.,p. 75.

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disciplina de direito processual civil da Universidade de Turim, proferida em 24 de ovembro de 1949.87 Embora esse texto contenha argumentos que já haviam sido por ~leantecipados em trabalhos publicados na Itália (1936),88 no Uruguai (1940)89 e no Brasil(1945,1946 e 1947),90 é óbvio que todas as suas ideias estavam mergulhadas nas preocu~ações que, em 1949, ainda pulsavam daquele lamentável momento da história. E importante registrar, aliás, que em 1949 já estava em vigor a Constituição daRepública Italiana de 1948, que afirmou, no seu art. 24, primeira parte, que "tutti possonoagire in giudizio per la tutela dei propri diritti e interessi legittimi". Liebman disse,no seu texto de 1949, que o direito do cidadão ir ajuízo simplesmente afirmandoa existência do direito material nada mais era do que o reflexo da instituição dos tribunais por parte do Estado, encontrando base na referida norma da Constituição italiana. Liebman concluiu, inclusive citando Couture, que esse direito abstrato e genérico teria um lugar bem definido no direito constitucional, desenvolvendo uma função de grande importância.

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Porém, ao contrário de Couture,-Liebman elaborou dois direitos de ação, sendo umfundado na Constituição e outro no CPC italiano. Após admitir a relevância do direito de ação de base constitucional, Liebman advertiu que, na sua extrema abstração eindeterminação, esse direito não tem relevância alguma na vida e no funcionamento prático do processo. Foi então que apontou para a necessidade de a ação ser condicionada aos requisitos do interesse de agir (art. 100 do CPC italiano),91 da legitimação para a causa (art. 81 do CPC italiano)92 e da possibilidade jurídica do pedido.

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Liebman, ao destacar a base constitucional do direito de ação, concordou com ateoria de Couture, vendo-o como uma garantia do cidadão diante do Estado. Atualmente, porém, o direito de ação está muito mais ligado à necessidade de efetividade natutela dos direitos do que à garantia de apreciação de qualquer afirmação de direito. A ação não pode mais ser pensada como mera garantia formal, pois deve dar ao autor não apenas a chance de reclamar diante do juiz, mas também a possibilidade de atuar diante da jurisdição para obter a efetiva tutela do direito material.

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Daí a imprescindibilidade de retirar do direito de ação o direito de influir sobre o convencimento do juiz e de utilizar o procedimento e as técnicas processuais Enrico T ullio Liebman, L'azione ..., cit., p. 22 e ss. Enrico Tullio Liebman, Opposizioni di merito nel processo di esecuzione, p.166 e ss. 89 Enrico Tullio Liebman, Concepto de la acción civil. Revista deI Centro de Estudiantes deDerecho, 1940, p. 217 e ss. 90 Enrico T ullio Liebman, O despacho saneador e ojulgamento do mérito. Revista Forense, v.l04, p. 216 e ss.; Processo de execução, p. 95 e ss. e 127 e ss.; O despacho saneador ..., cit., p. 107 e 87

88

55. 91

"Art. 100. Para propor uma demanda ou para contestar a mesma

énecessário ter interesse."

92 ''Art. 81. Fora dos casos expressamente previstos na lei, ninguém poderá 'tutelar no processo' lfar valere nel processo) em nome próprio direito alheio. "

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adequadas ao plano do dIreIto matenal. Portanto, enquanto o drrelto de ação n época das teorias de Couture e de Liebman, tinha a natureza de um direito a um ~ã~ fazer, no sentido de não permitir ao Estado excluir da apreciação do Poder Judiciário! uma afirmação de direito, ou de um direito a um fazer que seria a mera apreciação do pedido de tutela jurisdicional, atualmente ele exige do Estado uma série deprestações comoa ediçãodeprocedimentos etécnicasprocessuais idôneas às variadassituações dedireito substancial (devida pel~ legislad~r)', assim ~omo a compreensão,- por fa~te dajur~sdição -, das normas processu~zs e da próprza funçao dofrocess~ afartlr do dlrelto,materzal eda sItuação concreta, obvzamente que sempre apartIr dos dIreItosfundamentais processuais,

A ideia de Liebman, de estabelecer um direito de ação apartado do direito de ação de base constitucional, relacionando-o com as chamadas condições da ação, t~ve.o mérito, de demo,nstra: que o direito de aç~~ não p~de se desligar do plano do duelto matenal e das sltuaçoes concretas. A poslçao de Llebman, portanto, pode ser considerada como uma tentativa de vincular o direito abstrato de ação com o direito material.

Com a sua teoria, Liebman quis dizer que a ação, por ser proposta diante de uma situação de direito material determinada e individualizada, deve conter certos requisitos, isto é, o interesse de_agir, a legitimidade para a causa e a possibi,l.idade jurídica do pedido.

Note-se que a teoria de Liebman objetivou dar utilidade à ação, pois, na sua concepção, a ação para a qual bastava a mera afirmação de um direito era dotada de uma abstração e generalidade que a tornavam uma simples decorrência da capacidade jurídica. . d aque t en h a li ml't ad 00 di reI't o A con t ecequeo d'IreI't ocon d"IClOna(1' o d eaçao,am t' 1 d d t d r t' . tA 'd o dir el't o ma t'en ai,nao ab strato d e açao sem orna-o epen eu_e a ele lva eX1sencla 'd dP 'b 'l'd d d d ti I t p J sepreocupouem d araoCl a aoa OSSI11 a e eexerceraaçao emo oarea men e ouer - 1 J d" L' b . , , d di' d" d ob ter a tutela aOseu Irelto, le man JamaIs procurou extraIr o relto con IClOna o de ação as técnicas processuais adequadas ao direito material, mas apenas limitar a abstração e a generalidade do direito de ação fundado na Constituição. 1\ L' b b' - d d" "al d litud lvlas le man tam em nao eu ao ueIto constltuclOn e açao a amp e . " 'd dAli" d'd capaz d e garantIr as teclllcas processuaIs a equa as. as, caso tIvesse preten 1 o di' .' al d d' A1 d d d' 't t al extensao ao relto constltuclOn e açao, nao po ena te- o separa o o IreI o condicionado, atribuindo ao direito de base constitucional afunção de mera garantia . '. d de Ir ajUIZOou epropor a açao. A teoria de Liebman, ao individualizar duas ações, teve a preocupação de, sem abrir mão da garantia constitucional de ir a juízo, impedir que a ação fosse utilizada de forma indiscriminada. Como dito, essa teoria esteve atenta ao art. 24 da Constituição italiana - que garante a todos o direito de ir a juízo - e aos arts. 81 e 100 do CPC italiano, que afirmam, respectivamente, que o autor deve ser legitimado para a causa e ter interesse de agir. Não foi por outro motivo que Liebman afirmou que ,K



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III

DA AÇÁO ABST~TA

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(AÇÁO úNICA) À AçAO ADEQ]JADA

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a"açãofundada no CPC devena cumpnr certos requlSltos para ser admIssível, os quaisrepresentariam laços entre o direito de ir ajuízo e a situação conflitiva concreta. A nossa história é diferente, pois não há uma teoria brasileira que parta do ordenamento jurídico nacional. Ao contrário, o CPC de 1973, hoje revogado, é que seinspirou na teoria de Liebman. Este CPC instituiu três condições para a ação, seguindo exatamente o modelo inicialmente traçado por Liebman - embora esse, poucotem~o ,a.ntes d~ e~i~ão do CP~ de 1973, houve~se excAluídod~s condições da açãoa possIbü~dade jundICa do pedIdo como categona autonoma, mserindo-a no interesse de agIr,

O Novo CPC não fala em condições da ação, Apresenta o interesse e alegitimidadecomo requisitos para a apreciação do mérito. A existência da ação obviamente nãoé subo~dinada a estes requisit~~. Aliás,:e o Cp'~ dissesse~ue a aç~~somente existe quandoestaopresentes as suas condlçoes ou taIs requIsItos, estarza admltmdo que a ação fundada na Constituição somente serve para garantir a invocação da atividade jurisdieional,constituindo-se apenas no ato introdutório da ação e de instauração doprocesso, Porém, a norma constitucional (art, 5.°, XXXV, da CF) institui o direito fundamentaI à tutela jurisdicional efetiva e, dessa fOrma, confere a devida oportunidade daprática de atos capazes de influir sobre o convencimento judicial, assim como a possibilidade do uso das técnicas processuais adequadas à situação conflitiva concreta. A ideia de separar a base constitucional da base processual da ação, supondo quea primeira se destina apenas a garantir um direito de liberdade ou de ir a juízo, implicanegar que a Constituição garante a efetividade da tutelajurisdicional. Não há como admitir,noEstado Constitucional, que o direitofundamental à tutela jurisdicional efetiva possase limitar ao ato que instaura oprocesso, como se essedireito fundamental pudesse ser apenaso direito depropor a ação ou depedir a tutela jurisdicional, O direito fundamental à tutelajurisdicional efetiva é o direito de agir emjuízo em busca da tutela jurisdicional ,h' J ' , " , . • . .' , , !!.letIvaaOdIreIto materzal, e ISSOesta a qutlometros de dIstanCIa dos antIgos conceItos de d' , d' " d d' ' d d' I ' 'd" I lrelto e Ir aJUIZOe e lrelto epe Ir a tute ajUrzs mona. 0mo o d~reito de ação é exercido diante de uma situação de direito material, a ,. legItImIdade e o mteresse são elementos capazes de demonstrar a adequação da ação ,. aop ano concreto. ervem para Impedir que a ação se desenvolva de forma arbitrária , . '1 _ _ ' , , e mutl e, por essa razao, sao requlSltos para ojulgamento dopedido e não elementos t 't t' d A L' b O' b'" d' ~ons_ I u IdvOSa açlao'dco~o prodPos le ~~n. ~ S~j:, Pdorque o ~e~l:amdlmpe lrrq~e açao se esenvo va e lOrma esnecessarla,a alençao esses reqUIsItos eve ser lelta ,;; - d o autor, sem tomarem conta as provas pro d UZI 'd as no processo. 93 segund o aay.rmaçao

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93 É equivocado admitir uma sentença de extinção do processo quando o juiz pode reconhecer,apartir das provas produzidas, que o autor não é o titular do direito material (legitimidade paraa causa?) ou não pode exigir o pagamento de uma dívida por não estar vencida (ausência de Interesse de agir?). A racionalidade do reconhecimento de inexistência de condição da ação está em impedir o seu desenvolvimento inútil, com gasto de tempo e de dinheiro sem razão de ser.

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A AÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

Se o direito de ação é marcado pela sua relatividade histórica e,portanto, a SUaCo ceituação deve considerar os valores do Estado, osprincípios constitucionais e a legisla ~ .,.{; ., I', e natura I que, após a sua compreensão à Iuz d a Constituição, asça In J raconstztuczona identificação seja feita a partir da legislação processual. Diante dos avanços da legisla ~ processual, torna-se imprescindí,,:el reco~struir o concei~o ~e ação ..N~ realidade, é cheg~d o momento de elaborar um concezto genuinamente brastlezro de dzrezto de ação.

Para tanto, é imprescindível lembrar as normas processuais que consistem er cláusulas gerais antecipatória e executiva - que dão às partes e ao juiz ampla latitude d poder para a utilização das técnicas antecipatória e executiva conforme as necessidade dos casos -, ou seja, as normas infraconstitucionais mais comprometidas com o direit fundamental de ação do ordenamento brasileiro. Os arts. 83 e 84 do CDC, além d objetivarem a efetiva tutela do consumidor, destinam-se a viabilizar a tutela dos dire tos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Ambos são voltados à tutela especifi do consumidor e à tutela especifica e adequada dos direitos transindividuais (diftsos coletivos) e dos chamados "direitos individuais homogêneos", característicos ao Estado e sociedade contemporâneos. Por sua vez, as normas dos arts. 139, IV, e 497,498,536,537 538 do novo CPC, na mesma linha da do art. 84 do CDC, prendem-se à necessidad de instrumentalizar a ação de modo a lhe permitir alcançar a tutela especifica dos direito

Tais normas têm amplitude enorme, cobrindo quase. a totalidade das novas nece sidades de tutela jurisdicional. Abrangem a tutela dos direitos difusos, coletivos e indivi duais homogêneos e a tutela especifica dos direitos individuais, deixando escapar apenas tradicionais formas de proteção dos direitos individuais.

Diz o art. 83 do CDC que, "para a defesa dos direitos e interesses protegidos po este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequad e efetiva tutela". Cabe decompor a norma em duas partes para demonstrar com maio precisão o seu significado. Em primeiro lugar é preciso olhar para a sua parte final, que fala em "adequad e efetiva tutela". A preocupação é com a adequada e efetiva tutela dos direitos. A aç deve abrir oportunidade para a obtenção da tutela do direito material, e não apen viabilizar o julgamento do mérito, como pensa ser essencial o conceito clássico d direito de ação. Como é óbvio, não se quer afirmar, com isso, que a ação só exis quando a tutela do direito for prestada, ou quando a sentença reconhecer a existênc do direito material, mas sim que a ação deve se realizar mediante um procedimento adequado e,no caso de reconhecimento do direito material, permitir a utilização d meios executivos idôneos à sua efetiva tutela.

Além disso, a primeira parte do art. 83 afirma que, para a adequada e efeti tutela dos direitos, "são admissíveis todas as espécies de ações". Portanto, desde logo tem

Por isso, o juiz apenas deve aferir as condições da ação com base na afirmação do autor. Assi por exemplo, se o autor afirma que o direito material objeto de tutela pertence a outra pessoa,h ausência de legitimidade para a causa.

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DA AÇÃO ABSTRATA E UNIFORME

(AÇÃO úNICA) À AÇÃO ADEQUADA

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odado de que o art. 83 admite a existência de várias "espécies de ações': todas decorrentes do direitojimdamental à tutela jurisdicional efetiva (CF, art. 5. o, XXXV) . Alguém poderia supor que, quando a norma aceita a existência de "espécies deações", refere-se, por exemplo, às ações de conhecimento, execução e cautelar e às açõesdeclaratória, constitutiva, condenatória, mandamental e executiva, tomando comobase, respectivamente, os processos (de conhecimento e de execução) e as sentenças(declaratória etc.). Mas o intuito da norma vai muito além, pois, quando fala em "ações capazes de propiciar' a efetiva tutela dos direitos, expressa a necessidade de a ação se estruturar demodo a viabilizar a prestação da tutela do direito, valendo-se do procedimento, da técnica antecipatória, da sentença e do meio executivo adequados. A "a.ção capaz de propiciar" é a ação adequada à tutela do direito, que deve ser uma ação que culmine emuma sentença idônea à prestação da tutela jurisdicional do direito. Contudo, a estruturação técnica da ação depende da espécie da tutela de direito desejada, já que é a tutela do direito que influi sobre a estrutura da ação. As ações sãotantas quantas forem as necessidades do direito material, uma vez que devem se diferenciar na medida dos resultados que são objetivados no plano do direito material. A ação, porque tem de ser capaz de dar tutela efetiva ao direito, garante o procedimento, a técnica antecipatória, a sentença e os meios executivos adequados. A sentença é apenas um dos corolários da ação, podendo ser aferida como idônea apenas a partir do que se deseja na esfera do direito material. De modo que não é correto afirmar que a "ação mandamental" (por exemplo) é capaz de propiciar_a-efetiva tutela do direito, mas sim que a tutela re~sarcitória na forma específica (ainda, por exemplo) exige uma modalidade de ação que incorpore a sentença mandamental. Ou seja, a espécie de sentença não permite a identificação ou a qualificação de uma ação,pois essa obviamente não se caracteriza apenas pela sentença. A ação é estruturada, e assim combina com certa sentença (por exemplo, mandamental), em razão datutela almejada no plano do direito material (por exemplo, ressarcitória na forma específica ou inibitória). . A norn:a do art. 83 do CDC, portanto, aofalar de ações capazes depropiciar a tutela efetzva dos dzreitos, quer dizer que o autor tem o direito de propor uma ação estruturada comtécnicas processuais capazes depermitir o efetivo encontro da tuteltrdo direito material. Como a ação é o agir para a obtenção da tutela do direito, ela não se exaure comojulgamento do mérito e, assim, não pode ser indiferente aos meios de execução da sentença, pois esses são imprescindíveis para a efetiva tutela do direito material. Como o autor não pode se dar por satisfeito quando é proferida uma sentença de proce~ência que necessita ser executada, é fácil entender por que o direito ao meio executIVOadequado é corolário do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva . A ação adequada ao plano do direito material, contudo, está muito longe da ação concreta, isto é, da ação que depende de uma sentença favorável. Não há dúvida de



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A AÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

que o direito de ação é da titularidade de quem recebe, ou não, uma sentença favorável O direito de ação, nesse sentido, é totalmente abstrato em relação ao direito material.

Mas esse grau de abstração não responde ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, pois dele decorre o direito a uma ação que seja estruturada de forma tecnicamente capaz de permitir a tutela do direito material, ou seja, o direito à ação adequada à tutela do direito material. O direito à ação adequada, embora independente de uma sentença favorável ou da efetiva realização do direito, requer que ao autor sejam conferidos os meios técnicos idôneos à obtenção da sentença favorável e da tutela do direito. O autor deve poder agir pelos meios técnicos adequados à tutela do direito material e, por isso, tem o direito ao procedimento adequado à situação substancial afirmada, ainda que a sentença sejade improcedência. Da mesma forma, tem o direito ao meio executivo idôneo para o caso de vir a ser proferida a sentença de procedência, embora isso não signifique que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva lhe garanta a satisfação do direito material, uma vez que o uso do meio executivo adequado nem sempre lhe proporcionará a satisfação do seu direito. Basta pensar na hipótese em que o demandado não tem patrimônio para suportar a execução e assim, satisfazer o direito de crédito do autor. A efetividade da tutela jurisdicional possui limites relacionados com o patrimônio e a liberdade do réu, pois a realização do direito material pode encontrar obstáculos na falta de higidez patrimonial e na impossibilidade de coerção da vontade.

Mas o direito à ação adequada também é algo completamente distinto do direito de ir ajuízo ou do tradicional direito abstrato de ação. O direito abstrato de ação, visto como garantia de liberdade, tem um valor muito reduzido no Estado constitucional. Garantir que o Estado não vai excluir da apreciação judiciária ou negar o direito de ir a juízo significa quase nada quando se vê o direito de ação como direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, do qual decorrem vários direitos ao autor e uma série de deveres prestacionais ao Estado. O direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva obriga o juiz a garantir todos os seus corolários, como o direito ao meio executivo capaz de permitir a tutela do direito, além de obrigar o legislador a desenhar os procedimentos e as técnicas processuais adequadas às diferentes situações de direito substancial.

Como mera garantia de liberdade, o direito abstrato de ação poderia, no máximo, impedir o legislador de excluir uma lesão ou ameaça a direito da apreciação do Poder Judiciário e proibir o juiz de deixar de julgar. Além dessas possibilidades serem quase cerebrinas no Estado Constitucionale estarem, de qualquer forma também abarcadas pelo direito fundamental de ação -, tal conceito impediria que oauto se valesse do direito constitucional de ação para agir adequadamente em juízo em busca da efetiva tutela jurisdicional do seu direito. Ou melhor, o direito constitucional de ação,em termos de garantia de efetividade da tutela jurisdicional, simplesmente não existiria

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