Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas [1, 2 ed.]
 9786588990223, 6588990227

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Vitor Cei André Tessaro Pelinser Letícia Malloy Andréia Delmaschio

(organizadores)

notícia da atual literatura brasileira: entrevistas

Cousa

2019

Copyright © by Os organizadores Copyright © 2020 by Cousa para a presente edição Editor Saulo Ribeiro Assistente editorial Gabriel Nascimento Projeto gráfico, diagramação e capa Luana Dias Ilustração da capa Luciano Cardoso Revisão Os organizadores e Wladimir Cazé Conselho Editorial Eduardo Fausto Kuster Cid (IFES) Graziela Menezes de Jesus (UFES) Henrique Antônio Valadares Costa (USP) Marcos Alexandre do Amaral Ramos Junior (UFES) Maria da Conceição Silva Soares (UERJ) Rodrigo Leite Caldeira (UFES) Wilson Coêlho Pinto (UFF) 2ª edição Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

N912 Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas / Organizado por Vitor Cei ... [et al.]. Vitória: Cousa, 2020. 494 p. ISBN: 978-65-88990-22-3 1. Estudos Literários 2. Entrevistas I. Cei, Vitor II. Pelinser, André Tessaro III. Malloy, Letícia IV. Delmaschio, Andréia V. Título CDU 89.02(047.53)

IMPRESSO NO BRASIL |2020| Editora Cousa | Rua Gama Rosa, 236 Centro Histórico de Vitória, ES - CEP 29.015-100 www.cousa.com.br | facebook.com/editoracousa

SUMÁRIO

5 | Mapeando a pluralidade da produção literária brasileira – Rita Olivieri-Godet 7 | Apresentação – Fabíola Padilha 10 | Prefácio – Os organizadores Ada Lima | 13 Adilson Vilaça | 18 Alberto Lins Caldas | 23 Alberto Pucheu | 26 Aline Bei | 40 Aline Dias | 42 Aline Prúcoli | 45 Amarildo João Espíndola | 50 Ana Martins Marques | 56 Anaximandro Amorim | 58 Andréia Delmaschio | 67 Andressa Zoi Nathanailidis | 76 Antônio Cândido da Silva | 80 Antônio Torres | 82 Bernadette Lyra | 87 Caê Guimarães | 90 Carola Saavedra | 98 Casé Lontra Marques | 103 Cesar Carvalho | 107 Chacal | 112 Clóvis Da Rolt | 114 Daniel Munduruku | 122 Dau Bastos | 126 David Rocha | 137 Diva Cunha | 144 Eduardo Martins | 154 Elizeu Braga | 156 Ely Macuxi | 160 Erlon José Paschoal | 173 Evando Nascimento | 188 Everton Almeida Barbosa | 192 Fabio Daflon |197 Gustavo Bernardo Krause | 203 Gustavo Felicíssimo | 207 Hélio Rocha | 211 Herbert Farias | 216 Hudson Ribeiro | 219 Jacques Fux | 222 Jarid Arraes | 226

Joanim Pepperoni | 232 João Almino | 238 João Claudio Arendt | 243 Johann Heyss | 247 Jorge Elias Neto | 255 Jorge Nascimento | 265 Keila Mara Araújo Maciel | 279 Larissa Gotti Pissinatti | 284 Marcus Vinicius de Freitas | 288 Maria Amélia Dalvi | 295 Mariana Lage | 306 Marília Carreiro Fernandes | 317 Marina Moura | 321 Miguel Nenevé | 327 Mônica de Aquino | 330 Natalia Borges Polesso | 336 Nelson Martinelli Filho | 340 Nilza Menezes | 346 Pádua Fernandes | 350 Pâmela Filipini | P. F. Filipini | 355 Paulo Caetano | 358 Paulo Roberto Sodré | 365 Rafael Iotti | 373 Raimundo Carvalho | 376 Ravel Giordano Paz | 385 Reinaldo Santos Neves | 389 Renato Gomez | 398 Renato Noguera | 400 Ricardo Lísias | 405 Rodrigo Caldeira | 412 Ronald Augusto | 416 Rosivan dos Santos | 421 Rubens Vaz Cavalcante | Binho | 423 Saulo Ribeiro | 426 Sérgio Blank | 429 Suely Bispo | 432 Vanessa Prieto | 439 Vicente Franz Cecim | 446 W. B. Lemos | Esperando Leitor | 452 Wilberth Salgueiro | Bith | 461 Wilson Coêlho | 470 Wladimir Cazé | 486

Mapeando a pluralidade da produção literária brasileira Rita Olivieri-Godet1 As entrevistas reunidas neste volume manifestam a pluralidade e a vitalidade da produção literária brasileira no momento atual. Conscientes dessa heterogeneidade, os responsáveis pelo projeto de mapeamento da criação literária contemporânea entrevistaram autores pertencentes a gerações diversas, oriundos de diferentes regiões do país, adeptos dos mais diversos gêneros literários. A lista dos entrevistados incorpora nomes já consagrados e legitimados pelo sistema literário nacional. Abre espaço, no entanto, para a inclusão de um número significativo de escritores iniciantes, ou em processo de reconhecimento, ou ainda de escritores que ocupam um espaço periférico, cuja recepção das obras permanece circunscrita a uma comunidade ou à região de sua produção. Diante de um universo tão amplo, o mapeamento efetuado, apesar de ambicioso, deve ser encarado como uma amostragem dos mapas possíveis e iluminadores dessa diversidade, sem pretender, contudo, representar a totalidade. O projeto destaca-se pela qualidade e a coerência das reflexões propostas aos autores, incitando-os a fornecer elementos esclarecedores sobre um conjunto de componentes que configuram a recente realidade literária brasileira, ampliando, dessa forma, o horizonte de leitura das obras. As questões propostas buscam esclarecer o processo de criação literária dos autores, inserindo-o no contexto mais amplo de sua produção. Por esse motivo, elas são abrangentes, incitando os escritores a se pronunciar sobre diferentes aspectos: as relações entre o itinerário de vida e a trajetória literária; as opções temáticas e formais que orientam seus projetos literários; as fronteiras entre ficção e realidade, ou os lugares fronteiriços entre línguas e culturas diversas; além de levá-los a se exprimir a respeito do diálogo intertextual e intersemiótico que estabelecem com a produção literária e artística, brasileira e estrangeira. A transfiguração, na escrita, dos espaços geográficos e memorialísticos constitui outro dado que ajuda a traçar o perfil da obra de cada autor. Os escritores são unânimes em constatar uma mudança no campo da produção e da recepção da literatura brasileira contemporânea, assinalando, por um lado, a efervescência da atividade editorial, devido ao surgimento de muitas editoras independentes e ao recurso à informática como suporte. Destacam também a agitação midiática de eventos e prêmios literários. Divergem, no entanto, quanto à avaliação desses fenômenos. Para alguns, eles seriam motivos de inquietação, uma vez que interfeririam na qualidade das obras ou manifestariam o interesse superficial de um público mais interessado na vida do que na leitura das obras dos autores, uma espécie de espetacularização do fenômeno literário. Assim, a qualidade do texto literário não seria mais um parâmetro para o mercado editorial. Outros, no entanto, os interpretam como 1   Professora Titular de Literatura Brasileira na Université Rennes 2, França. Pesquisadora laureada do Institut Universitaire de France.

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passos importantes para a democratização dos espaços literários, destacando igualmente o papel da universidade na transfiguração da produção literária. Por fim, quando convidados a se posicionar sobre o contexto atual do Brasil e do mundo, os escritores entrevistados abraçam uma análise distópica. Isso não os impede, no entanto, de continuar lutando contra moinhos, que não são mais de ventos, mas de fantasmas bem reais da barbárie, inaugurando visões e novas linguagens artísticas, por múltiplos caminhos, no moto-contínuo do fazer literário.

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Apresentação Fabíola Padilha2 Desde seu surgimento, na segunda metade do século XIX3, até os dias de hoje, a entrevista vem confirmando o pressuposto inalienável de sua longevidade: o desejo de acesso à vida das escritoras/dos escritores de nossa estima (para me restringir ao campo que nos interessa, a literatura). Um curioso fenômeno ocorre então na dinâmica desse desejo: queremos, no íntimo, que as palavras da/o autora/autor, satisfazendo à demanda da entrevistadora/do entrevistador, produzam efeito de impacto e fascínio semelhante ao que nos despertou a obra literária. A equivalência almejada ratificaria assim a devotada admiração, afastando qualquer risco de desapontamento e qualquer suspeita de indesejadas garatusas e aleivosias que pudessem ameaçar e até, em alguns casos, destruir a natureza e o grau do sentimento envolvido na relação entre leitora/leitor e autora/autor. No fundo, nós, leitoras e leitores, queremos ser surpreendidas/surpreendidos com respostas que, admitamos, corroborem a nossa visão de mundo, as ideologias que alimentam e sustentam nossa maneira de nos posicionar no contexto social ao qual pertencemos e os valores que reputamos fundamentais para uma vivência ética em sociedade. Queremos, enfim, nos deparar com uma imagem “melhorada” de nós mesmos, num exercício de projeção narcísica do qual muitas vezes não nos damos conta. Ao mesmo tempo, para que a identificação com a autora/o autor se estabeleça, para que a imagem idolatrada seja crível, não extrapolando seu metro humano, contamos também divisar certas fragilidades nessa portentosa figura, mas apenas o suficiente para não abalar o todo do edifício que imaginariamente erigimos – idiossincrasias da exigente comunidade de leitoras e leitores. Habitante do “espaço biográfico”4, a entrevista assoma como modalidade fagocitária, capaz de incorporar qualidades de gêneros afins, como “biografia, autobiografia, história de vida, confissão, diário íntimo, memória, testemunho” (ARFUCH, 2010, p. 151). Na cena ritualizada em que se alternam perguntas e respostas, desenha-se o perfil da escritora/do escritor, cujo acúmulo de biografemas é confrontado com outros tantos vestígios de uma vida interpelada. A expectativa do retrato decalcado repousa não raro na exemplaridade.   Doutora em Estudos Literários pela UFMG, com pós-doutorado na USP. Professora Adjunta de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa na UFES.

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  Refiro-me especificamente às entrevistas cujo veículo de difusão é o jornal. Cf. a respeito: LEJEUNE, Philippe. A imagem do autor na mídia. In: ______. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Org. Jovita Maria Gerheim Noronha; trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 192-204; ARFUCH, Leonor. Devires biográficos: a entrevista midiática. In:______. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, p. 151-207.

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Expressão que dá título ao livro de Leonor Arfuch, o “espaço biográfico” emerge como um amplo território de circulação do autor na contemporaneidade, considerando as implicações e responsabilidades de seu trânsito nesse contexto. Atualmente, esse espaço comporta várias modalidades biográficas, incluindo, como destaca Arfuch, “biografias, autorizadas ou não, autobiografias, memórias, testemunhos, histórias de vida, diários íntimos – e, melhor ainda, secretos –, correspondências, cadernos de notas, de viagens, rascunhos, lembranças de infância, autoficções, romances, filmes, vídeo e teatro autobiográficos, a chamada reality painting, os inúmeros registros biográficos da entrevista midiática, conversas, retratos, perfis, anedotários, indiscrições, confissões próprias e alheias, velhas e novas variantes do show (talk show, reality show), a videopolítica, os relatos de vida das ciências sociais e as novas ênfases da pesquisa e da escrita acadêmicas” (ARFUCH, 2010, p. 60).

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A fala viva, direta, ou sua simulação, quando transcrita, como é o caso aqui, posto que preserva sua condição dialógica essencial e as marcas de uma certa informalidade característica do tête-à-tête das conversas, a fala viva, direta, ou sua simulação, como eu ia dizendo, ao performar a narração oral, evoca o sabor das histórias que legavam ao ouvinte algum saber útil para sua vida. Porém, mais do que compor um quadro harmônico a emoldurar a nitidez imperturbável de um rosto, a entrevista outorga um infra-saber sobre a autora/o autor. A totalidade, como sabemos, inexiste. E se a sobrevivência de todo indivíduo, o que resta após sua morte, manifesta-se nas narrativas apócrifas que surgem depois do último sopro vital, é justamente a corporeidade de sua incompletude o que nos torna – leitora/leitor e autora/autor – íntimos, próximos, ainda que seja uma intimidade experimentada ilusoriamente. Nossa precariedade cúmplice confirma, e nisso consiste seu caráter paradoxal, o afeto endereçado ao modelo de nossa eleição. A “substância viva da [sua] existência” concorre para nos locupletar, nos irmanando na carência de sentido como condição de toda existência humana. A entrevista enseja, pois, “um saber sobre a vida”: “Desacertos, infortúnios, tropeços, desenganos, a vida como um padecer. Mas também – e quase prioritariamente – os acertos, sucessos, virtudes: a vida como cumprimento, como realização” (ARFUCH, 2010, p. 159). De índole fundamentalmente interativa, a entrevista mobiliza um circuito onde proliferam e deambulam traços subjetivos compartilhados. Num espectro mais amplo, todavia, ela se expande e recorta um “pecúlio comum” que orienta esta notícia da atual literatura brasileira e que dá contornos a um extenso painel histórico a ostentar, em sua sinuosa e intrincada urdidura, a realidade de um país – o Brasil – assombrado hodiernamente pela destruição de suas bases democráticas, desde a gênese tão frágeis, tão débeis. Passado quase um século e meio da publicação de “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade” (1873), de Machado de Assis, as cores do país que vestiam as formas literárias comprometidas com a construção de uma literatura independente, plataforma estética e política submetida ao crivo de Machado, cedem espaço a outra paleta. O “sentimento íntimo” expresso aqui nas entrevistas com escritoras/escritores brasileiras/brasileiros noticia um país de cor local sombria, lúgubre, cinza. As respostas às indagações sobre “a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos” – e que grassa não só no Brasil, mas ainda em diversos outros países do mundo – testemunham a defraudação do “auriverde pendão de minha terra”, o símbolo pátrio servindo hoje para agasalhar simpatizantes que surfam nessa onda. “Onde estava guardada tanta monstruosidade”?, pergunta a entrevistadora/o entrevistador. Para a grande maioria das escritoras e dos escritores, aos quais muitos de nós, leitoras e leitores, se alinham, a lastimável constatação de que a caixa de Pandora foi aberta, liberando e autorizando a propulsão ao ódio, desafia qualquer investida voltada à compreensão deste triste fenômeno. Mas se, por um lado, aturdidos quedamos sem uma explicação satisfatória diante de um estado de coisas cuja complexidade resiste a simplificações argumentativas tendentes à elucidação de suas causas, por outro lado, percebemos o fôlego e a disposição da literatura no seu empenho interventivo na realidade, na sua capacidade de resistência por meio do estímulo à reflexão e ao exercício crítico, no seu destemido atrevimento em abalar as bases dos discursos autoritários que inten8

tam silenciá-la e controlá-la. Se não há garantia de que a literatura possa mudar o mundo, talvez suas potenciais qualidades, quando empregadas em benefício da crítica ao status quo, contribuam para alterar o modo de percepção da realidade, ao multiplicar suas possibilidades de entendimento e de discernimento. Reside aí uma certa esperança (a cautela reforça a consciência de que o êxito não é previamente assegurado): a de que, despidos de uma cegueira voluntária e seletiva, que segrega e tenta desqualificar pobres, negras e negros, índias e índios, homoafetivas e homoafetivos, mulheres (em geral) e imigrantes, estejamos de fato aptos a reconhecer a importância de toda vida humana e o legítimo direito de cada indivíduo a uma existência digna. Fôlego e disposição que encontramos igualmente afirmados e corroborados no concerto orquestrado nas páginas seguintes, do qual fazem parte escritoras e escritores oriundas/oriundos de inúmeras regiões e cidades brasileiras. De diversificadas idades, etnias, preferências sexuais e visões de mundo, as autoras e os autores entrevistadas/entrevistados abordam temas heteróclitos que vão desde o método, o estilo e as opções formais e temáticas que norteiam o projeto literário de cada uma/um, o momento inaugural do ofício de escritora/escritor, as dificuldades de publicação e de distribuição, a recepção da obra, a opinião sobre a produção dos pares, a contribuição de festivais e feiras literárias tanto para a divulgação do trabalho de novas escritoras e novos escritores como para o fomento à leitura no país, a importância dos prêmios literários, os planos atuais e futuros, passando por questões como o machismo, o racismo e formas outras de preconceito e intolerância que recrudescem incontinentes em nossa sociedade, até a indagação acerca da influência da internet, a publicação em suportes digitais, o engajamento de escritores em redes sociais, a manutenção de blogs e o impacto das novas tecnologias no ato de criar. Além desses, outros temas, não menos relevantes, discutidos aqui abarcam ainda a literatura indígena, a literatura surda, a literatura infantil, a literatura infanto-juvenil e a literatura de cordel. Temas guiados pelas mãos de quatro competentes entrevistadoras/entrevistadores: André Tessaro Pelinser, Andréia Delmaschio, Letícia Malloy e Vitor Cei5, que nos conduzem neste passeio pelos meandros da outridade em suas múltiplas configurações. Se o que anima e sustenta o caráter relacional das interações humanas é a possibilidade de acolhimento do absolutamente outro, fica o convite para que embarquemos juntos, pois, nesta abertura dialógica.

Dos quatro, a escritora e professora Andréia Delmaschio experimenta as duas posições: a de entrevistadora e a de entrevistada.

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Prefácio Este livro apresenta o resultado de três anos de trabalho no projeto intitulado Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas, idealizado e coordenado pelo professor Vitor Cei, da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, e realizado com a participação dos professores André Tessaro Pelinser, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Letícia Malloy, da Universidade Federal de Alfenas – Unifal/MG, e Andréia Delmaschio, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo – IFES. A proposta foi concebida, originalmente, como atividade prática da disciplina “Literatura em Devir”, ministrada por Vitor Cei no curso de Licenciatura em Letras – Português da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, em Porto Velho, no primeiro semestre de 2016. No início de 2017, transformou-se em projeto de extensão interinstitucional e ganhou amplitude nacional, como esforço colaborativo voltado ao mapeamento de diferentes expressões da literatura brasileira produzida na atualidade, partindo da perspectiva dos próprios escritores. Por meio da realização de uma série de entrevistas com autores de todas as regiões do país, procuramos ofertar subsídios para uma futura história da vida literária das últimas décadas, consolidando um material de referência destinado tanto aos atuais quanto aos futuros leitores e pesquisadores da literatura brasileira. Com isso em mente, convidamos a participar oitenta e um escritores brasileiros, representantes das cinco regiões do país, originários de dezessete estados, do Distrito Federal e de um país estrangeiro, hoje residentes em doze estados brasileiros, no Distrito Federal e em três países estrangeiros. Sob a perspectiva geracional, foram contemplados artistas nascidos entre as décadas de 1940 e 1990, que vêm publicando desde os anos 1970 e que continuam em atividade. Apesar do expressivo número de autores participantes do projeto, temos ciência de que a reunião desses oitenta e um nomes não representa de maneira inconteste o vasto campo da atual produção literária brasileira. Trata-se, na verdade, de fragmento demonstrativo da diversidade de projetos estéticos e inquietações relativas ao fazer literário, representados por figuras reconhecidas pela crítica especializada e pelo público de maneira geral, assim como por nomes que, com maior ou menor impacto, começam a se lançar à cena literária. Coletâneas como esta costumam reunir escritores que são considerados pelos organizadores como os mais importantes ou emblemáticos, endossando assim uma hegemonia, ou, diferentemente, motivando uma certa reconfiguração do cânone. Na contramão dessas tendências, buscamos uma perspectiva multicultural avessa a hierarquizações, incluindo nomes que até então eram mantidos em círculos restritos, devido à limitação de meios para alcançar o público-leitor. Ao agrupar os diferentes autores por ordem alfabética e não por outros critérios, procuramos escapar aos parâmetros de legitimação mais correntes, rompendo com a linearidade cronológica comum à historiografia tradicional, bem como com a inclinação a enquadrar as mais variadas manifestações literárias por região ou gênero literário. 10

Dessa forma, buscamos oferecer ao leitor uma visão do conjunto da literatura brasileira produzida hoje, por meio de entrevistas online estruturadas a partir de um roteiro previamente estabelecido, com um misto de questões gerais e específicas, enviadas e recebidas por e-mail. De um lado, elaboramos perguntas com o intuito de lançar luz sobre o processo criativo dos autores e suas opções estéticas, além de temas e traços marcantes em suas obras. Indicam-se, assim, caminhos interpretativos ou futuras possibilidades de abordagem. De outro lado, foram privilegiadas questões que perscrutam os posicionamentos dos escritores frente à arte literária produzida na contemporaneidade, bem como à sociedade e à política no Brasil e no mundo. Embora tenha sido feito um esforço por reunir um conjunto de entrevistas representativo da diversidade cultural, de gênero e étnico-racial do país, reconhecemos que a pequena presença de escritoras mulheres e LGBTI, assim como de escritores negros, indígenas e surdos neste volume é mais um dado a compor o panorama da atual realidade das letras brasileiras. Após séculos de colonialismo, escravização, preconceitos, submissão, rechaços econômicos, exclusão educacional e apagamento cultural, cada um dos grupos ditos minoritários encena hoje, com sua ausência dos espaços de representatividade, entre eles a instituição literária, o drama de um país que ensaia e reensaia a sua saída do lodo histórico. Esse dado é significativo sobretudo num momento como este, em que os grupos hegemônicos, nem sempre afeitos à apreciação de bens culturais, mais uma vez tentam reconduzir esses grupos a situações de silenciamento. Como compilação de entrevistas, este livro é bastante diversificado. O leitor irá se deparar aqui não apenas com o grande leque ideológico que resulta do conjunto dos pensamentos expostos, mas também com diferentes registros formais: há respostas curtas e outras longas; algumas objetivas, outras eivadas de subjetividade; há ainda aquelas elaboradas com detalhamento e apuro linguístico, por entrevistados que cultivam o vernáculo, contrastando com as respostas de autores que transgridem, intencionalmente ou não, a norma padrão. Foi franqueada aos autores plena liberdade no uso desse espaço. Como se trata de profissionais da linguagem, a priori conscientes das opções de estilo, no trabalho de revisão optamos, em resolução conjunta, por respeitar ao máximo o modo de escrita de cada entrevistado. Diversamente da proposta de Machado de Assis no ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade” (1873), ao qual o título deste livro faz referência, não almejamos, aqui, indicar os caminhos que a literatura brasileira deve seguir, tampouco oferecer qualquer diretriz para o campo literário nacional. Não ignoramos, todavia, o fato de que uma compilação como esta poderá se configurar, ao longo das experiências de leitura, como engrenagem nos processos de legitimação de determinados nomes e obras. A partir de um conjunto sistematizado de questões, direcionadas a autores amplamente reconhecidos, assim como a outros ainda situados às margens do meio literário hegemônico, almejamos oferecer a atores implicados na produção e na difusão do pensamento a possibilidade de registrar a posição do intelectual contemporâneo frente a temas candentes de nossa época, que reverberam de diversas formas na literatura. Pretendemos que este material, primeira parte dos resultados de uma pesquisa em pleno desenvolvimento, some-se a outros trabalhos que vêm sendo 11

desenvolvidos no país, sobretudo nas universidades públicas, como uma espécie de mapeamento in progress da atual literatura brasileira, como registro documental de uma época e de parte de seu pensamento, constituindo uma fonte direta para pesquisas, atuais e futuras, acerca do que hoje se pensa e se escreve no Brasil. Por fim, deixamos registrados os nossos sinceros agradecimentos aos escritores que dedicaram seu tempo a responder às nossas perguntas: Ada Lima, Adilson Vilaça, Alberto Lins Caldas, Alberto Pucheu, Aline Bei, Aline Dias, Aline Prúcoli, Amarildo João Espíndola, Ana Martins Marques, Anaximandro Amorim, Andréia Delmaschio, Andressa Zoi Nathanailidis, Antônio Cândido da Silva, Antônio Torres, Bernadette Lyra, Caê Guimarães, Carola Saavedra, Casé Lontra Marques, Cesar Carvalho, Chacal, Clóvis Da Rolt, Daniel Munduruku, Dau Bastos, David Rocha, Diva Cunha, Eduardo Martins, Elizeu Braga, Ely Macuxi, Erlon José Paschoal, Evando Nascimento, Everton Almeida Barbosa, Fabio Daflon, Gustavo Bernardo Krause, Gustavo Felicíssimo, Hélio Rocha, Herbert Farias, Hudson Ribeiro, Jacques Fux, Jarid Arraes, Joanim Pepperoni, João Almino, João Claudio Arendt, Johann Heyss, Jorge Elias Neto, Jorge Nascimento, Keila Mara Araújo Maciel, Larissa Gotti Pissinatti, Marcus Vinicius de Freitas, Maria Amélia Dalvi, Mariana Lage, Marília Carreiro Fernandes, Marina Moura, Miguel Nenevé, Mônica de Aquino, Natalia Borges Polesso, Nelson Martinelli Filho, Nilza Menezes, Pádua Fernandes, Pâmela Filipini, Paulo Caetano, Paulo Roberto Sodré, Rafael Iotti, Raimundo Carvalho, Ravel Paz, Reinaldo Santos Neves, Renato Gomez, Renato Noguera, Ricardo Lísias, Rodrigo Caldeira, Ronald Augusto, Rosivan dos Santos, Rubens Vaz Cavalcante, Saulo Ribeiro, Sérgio Blank, Suely Bispo, Vanessa Prieto, Vicente Franz Cecim, W. B. Lemos, Wilberth Salgueiro, Wilson Coêlho e Wladimir Cazé. Aos pesquisadores que contribuíram para a publicação deste livro, em especial Fabíola Simão Padilha Trefzger e Rita Olivieri-Godet, somos gratos pelos generosos textos de apresentação. A Saulo Ribeiro, editor, saudamos pela acolhida entusiástica da proposta. Agradecemos ainda aos professores e estudantes que nos auxiliaram na condução de algumas das entrevistas registradas aqui: Adolfo Oleare, Aline Aguiar, Aline Maiara Nascimento, Ana Maciel, Carla Piovesan, Carolina Lobo, Carolina Moser, Claudete Rodrigues, Cleiza Souza, Debora Priscila Gutierrez, Débora Viana, Eduardo Freire, Elianeide Nascimento, Erlândia Ribeiro, Geysse Menezes, Habacuque Amorim, Helen Ribeiro, Heloisa Siqueira Correia, Isabelle Kaiola, Joyce Rolim, Julie Dorrico, Laura Moreira, Laureane Antunes, Luana Pagung, Luana Gabriela Paslawski, Lucineia Ferreira, Lurriene Gutierres, Maíssa Feliciano, Michele Lemes, Nilian Guimarães, Pâmela Melo, Rita Maciel, Sara Pereira dos Santos e Valteir Oliveira. Vitor Cei André Tessaro Pelinser Letícia Malloy Andréia Delmaschio Primavera de 2019 12

Ada Lima Nasceu em Areia Branca (RN), em 1984. Vive em Natal (RN). Entrevista concedida a André Tessaro Pelinser e Letícia Malloy em março de 2019.

Cada escritor possui um método e estilo de trabalho próprios. Tanto em seu livro de estreia, Menina gauche (Flor do Sal, 2008), como em sua segunda obra, Águas (Flor do Sal, 2011), predominam poemas sintéticos. Já nos trabalhos divulgados recentemente em seu blog, observam-se textos mais extensos. Em que medida essas características guardam relações com seu processo criativo ao longo do tempo? No passado, havia um esforço formal de concisão e síntese que agora não se faz mais necessário? De fato, alguns poemas publicados no meu blog são mais extensos do que os que compõem Menina gauche e Águas. Porém, ainda escrevo textos curtos, que não foram publicados sequer no blog. Então, o que vem ocorrendo de uns anos para cá é que continuo escrevendo poemas sintéticos, mas também tento fazer outros mais longos. Em geral, os textos mais curtos não decorrem de um esforço formal; na verdade, eu sou, naturalmente, muito sintética, e isso ocorre não só quando escrevo poemas. Um exemplo disso é que, quando escrevi minha dissertação e minha tese, a orientação que eu recebia com mais frequência era a de desenvolver mais o texto. Coincidência ou não, desde que precisei investir mais nesse aspecto, isso começou a aparecer também nos poemas. Então, o que posso dizer é que a extensão dos meus poemas é algo mais intuitivo do que calculado e, provavelmente, ela sofre influência de outras práticas de escrita que eu venha desenvolvendo no momento. Mas, no fim das contas, em geral, tenho mais facilidade para “enxugar” do que para expandir os textos, porque essa tende a ser a minha forma de me comunicar: falando pouco e indo direto ao ponto. Nos poemas de Águas (2011), nota-se a presença de um sujeito cindido entre as possibilidades de expansão oferecidas pelo mar e a retração para o mundo interior. Assim, observam-se textos como aquele em que se deseja transformar um caderno cheio de versos “em um barquinho / e navegá-lo / em alto mar // o vento no leme”, e outros em que se declara que “Agora / que tudo é silêncio // adormeço / ouvindo / o barulho das ondas // o mar é / dentro de mim.” Você poderia falar um pouco sobre as opções temáticas que norteiam seu projeto literário? Penso que eu não tenha um projeto literário. Quando publiquei o Águas, escolhi um tema porque eu resolvi me desafiar a fazer algo diferente do que se vê em Menina gauche, que nada mais é do que uma reunião dos diversos poemas que eu publiquei em meu primeiro blog, no qual não havia a preocupação com a construção de uma narrativa. Até hoje, não sei dizer por que o tema “água” veio à tona. Talvez eu tenha acabado puxando algo de que gosto e que está relacionado a parte das minhas vivências em cidades litorâneas. Mesmo assim, a segunda parte do Águas ainda resvalou em temas aleatórios. Essa despreocupação com a montagem de uma narrativa por meio de vários poemas permanece. Escrevo sobre o que 13

sinto vontade no momento. Em Águas (2011), é possível perceber a recorrência de imagens relacionadas às águas e ao mar, bem como uma intensa carga de lirismo, isto é, uma constante expressão da subjetividade do eu-poético. Em um dos poemas, por exemplo, leem-se os seguintes versos: “As conchas / eram minhas caixas de música // a canção do mar dentro.” Em que medida esses versos sintetizam sua relação com a poesia? Anos após a publicação de Águas, o mar continua sendo uma fonte para a criação de imagens poéticas? Após a publicação de Águas, tendo me desprendido do desafio de escrever vários poemas sobre um tema específico, as fontes de imagens poéticas voltaram a variar bastante. Elas vão desde cenas do cotidiano até notícias que me afetem mais profundamente, passando pelas mais diversas memórias – nesse sentido, o mar ainda pode vir a ser evocado. Mas uma coisa que permanece é o tom muito subjetivo. Talvez esse “olhar para dentro” muito intenso decorra da minha introspecção. Você publicou seu primeiro livro bastante jovem. Desde então, tem mantido o blog Escritos de Ada, em que divulga sua produção mais recente. Em sua trajetória literária, houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Lembro-me de ter começado a escrever no início da adolescência. Quando eu estava no ensino médio, a escola promoveu um concurso de poemas durante uma feira cultural e científica e eu resolvi participar dele. Fiquei na segunda colocação e isso me fez pensar que talvez eu levasse jeito para a escrita. Daí em diante, alternei períodos de escrita frequente com outros de pouca ou nenhuma produção. Com a explosão dos blogs, percebi que poderiam ser um suporte interessante por me permitirem não só armazenar os textos, como também divulgá-los (embora eu não os divulgasse muito...). Inclusive, foi por causa do meu primeiro blog (que não existe mais) que um colega da faculdade descobriu meus textos e comentou sobre eles a meu pai, que, à época, tinha planos de lançar uma editora e acabou inaugurando-a, meses depois, com o lançamento do Menina gauche mais outros dois livros (O pastoreio do boi, de Márcio Simões, e O poema do caminhão, de Sebastião Vicente). Mas ainda não consigo me definir, de fato, como “escritora”, talvez porque minha produção seja muito irregular. Seu livro de estreia, desde o título, guarda relação com a obra de Carlos Drummond de Andrade, como você mesma clarifica na orelha do volume. Drummond ainda é mencionado em seu blog, ao lado de Fernando Pessoa e Manuel Bandeira, como parâmetro de qualidade, em uma postagem de 2010. Ao longo de sua trajetória artística, o que motiva e como se dá e a construção de interlocuções com textos de outros autores da tradição literária brasileira ou estrangeira? Com quais outros escritores você procura estabelecer diálogos poéticos? Percebo que a construção de interlocuções é mais forte, ultimamente, com textos de mulheres, tanto pelo contato com o feminismo quanto por acontecimentos, no âmbito mais íntimo, que estão na raiz da minha identificação com o eu-lírico nas obras das poetas que acabaram se tornando minhas favoritas (Ana 14

Cristina César, Adélia Prado, Sylvia Plath). Não é que eu busque estabelecer um diálogo direto com elas – até porque isso seria pretensão demais –, mas penso que os textos que alguém escreve carregam, em maior ou menor medida, a influência das obras admiradas. As escritoras que mencionei nos oferecem um olhar para dentro, se não delas, de um eu-lírico muito mais voltado para si mesmo do que para o que está fora, e eu, desde que comecei a escrever, ofereço um olhar muito subjetivo das minhas relações com o mundo e comigo mesma. Outra coisa que posso destacar é o fato de eu sempre ter pensado que tudo, mesmo o que se considere mais simplório, possa ser mote para a arte, e isso está na raiz do meu encanto com Manoel de Barros, por exemplo. Então, meus diálogos são mediados muito mais pela identificação pessoal com o que leio do que pela vontade de confrontar perspectivas ou modos de escrever que não me agradem. Você nasceu em Areia Branca e desde 2000 reside em Natal. De alguma forma, essa experiência de trânsito do interior para a capital do estado participa de seu processo criativo? Não consigo perceber, em meus poemas, pistas que indiquem a construção de uma narrativa relacionada a esse trânsito. Também nunca tentei usar essa experiência como mote para meus poemas. Lembro apenas de uma crônica, escrita em 2010 para o jornal no qual eu trabalhava, em que se vê um confronto entre o mar da capital e o mar da minha cidade natal. A julgar por essa única ocorrência, penso que, de fato, a mudança para a capital não participe do meu processo criativo. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. Dos brasileiros contemporâneos, tenho acompanhando com atenção Ana Martins Marques. A obra mais recente dela, O livro das semelhanças, me tocou muito, e penso que isso se deva tanto ao lirismo dos poemas quando ao fato de boa parte do livro evocar o que sinto e penso com relação ao ato da leitura. Esse tema me é muito caro porque, além de eu gostar de ler, sou também professora da área de Práticas de Leitura e Escrita, e, por esses dois motivos, tendo a me comover quando um poeta versa sobre a própria escrita ou a leitura. No mais, tenho pouco a comentar sobre poetas contemporâneos, porque acompanho muito pouco esse cenário, muito mais por falta de organização do meu tempo para buscá-los do que por falta de interesse (e não tenho um pingo de orgulho de ser tão relapsa quanto a isso). Dos brasileiros que leio há tempos, continuo sentindo um carinho especial por Manoel de Barros, Ana Cristina César e Adélia Prado, e acho difícil explicar por que eu sempre os revisito. Talvez seja porque, em se tratando de arte, sentir acaba sendo mais importante do que sondar os motivos pelos quais agarramo-nos a esta ou àquela produção. Uma afirmação repetida com certa frequência assegura que a graduação em Letras não oferece estímulos à atividade criativa, ou pior, elimina dos alunos o interesse pela escrita literária. A despeito disso, muitos escritores da 15

geração mais recente da literatura brasileira têm formação acadêmica na área. Como graduada em Letras e escritora, de que modo você avalia essa percepção? Antes de qualquer coisa, penso que seja importante pensar no propósito de uma graduação. Licenciaturas em Letras formarão professores, e bacharelados, pesquisadores. Então, não é objetivo de uma graduação em Letras formar escritores (de modo que é mais salutar não entrar num curso como esse com tal perspectiva); tampouco se pode, também, trabalhar a Literatura de modo tão relapso a ponto de diminuir o interesse do graduando por tal campo. Nesse sentido, minha graduação em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) me possibilitou o contato com autores que eu não conhecia e que hoje figuram entre meus favoritos, a exemplo de Manoel de Barros, Ana Cristina César e Jorge Luis Borges. Uma vez que nossas leituras e nossa percepção sobre a linguagem influenciam a nossa produção, penso que, sem a passagem por Letras, minha escrita seria outra (se melhor ou pior, é impossível oferecer uma resposta com altíssimo grau de certeza, mas prefiro apostar que houve ganhos). Quais as facilidades e quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? Eu não tenho ideia de como esteja o mercado em termos de dificuldade ou facilidade de acesso de novos escritores às grandes editoras. Quando publiquei meu primeiro livro, anos atrás, foi por uma editora pequena, a Flor do Sal, cujos idealizadores, meu pai e minha madrasta, tiveram acesso (e nem foi por mim, conforme já comentei) ao material que eu publicava no meu blog. Com relação ao segundo livro, cheguei a receber proposta de uma editora de fora do Rio Grande do Norte, mas eu não tinha dinheiro para bancar a minha parte e, mais uma vez, a Flor do Sal me publicou. Então, nas duas ocasiões, tive o privilégio de não precisar bater nas portas de vários editores, não me estressar com os trâmites complicados da publicação, nem gastar dinheiro com isso. Resumindo, tive sorte. Hoje, estou escrevendo alguns poemas que talvez, um dia, eu reúna em livro, mas não tenho isso como meta em curto prazo, de modo que não tenho procurado informações acerca do mercado editorial. O que tenho visto, pelo menos aqui em Natal-RN, é a busca pela publicação independente, na forma de fanzines ou de edições impressas em gráficas locais, com a ajuda de financiamentos coletivos, especialmente na forma de vaquinhas online. Essas publicações vêm sendo divulgadas, principalmente, nas redes sociais e em eventos culturais tais como saraus, promovidos, também, de modo independente, com pouquíssimos recursos financeiros, por grupos de poetas. Para saber se esses autores escolheram, de bom grado, o caminho da publicação independente ou se foram levados a isso pela dificuldade de acesso a editoras maiores, eu teria de conversar com eles. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? No momento, estou escrevendo poemas que pretendo, talvez, reunir em um livro, mas não tenho ideia de quando nem como farei isso. Já cheguei a publicar alguns no meu blog, o Escritos de Ada. Não tenho projetos envolvendo outros gêneros literários. 16

Em um dos poemas de Águas (2011), lê-se: “Sirenas loucas gritam / fúrias trovejam // eu emudeço.” Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Embora não seja essa a questão proposta por seu poema, gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: pode o artista calar diante de tal contexto? Onde você acredita que estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Tanta monstruosidade existe desde sempre e talvez pareça mais frequente e intensa, agora, por estes fatores: a internet – e, no bojo dela, as redes sociais – nos bombardeia com informações demais o tempo inteiro, amplificando nosso acesso a todo tipo de coisas, inclusive as que nos afetam negativamente; cada vez mais pessoas se sentem legitimadas a falarem o que pensam, alegando “liberdade de expressão”, uma vez que figuras públicas, incluindo políticos eleitos pelo voto popular, vêm propagando preconceitos sem constrangimento; e, na esteira dessas ações que fomentam discursos de ódio, vêm também reações que parecem mais numerosas e assertivas, em parte também pela possibilidade de divulgá-las e organizá-las mais facilmente via redes sociais. Então, penso que não exista apenas uma onda reacionária detonada por um acontecimento pontual, mas um estado reacionário latente que, volta e meia, se torna mais visível e parece mais esmagador do que outrora, e para o qual também há reações que o mantém sob os holofotes. Uma vez que os monstros sempre estiveram à solta e não haja como aprisioná-los em definitivo, não alimento esperanças quanto a um futuro melhor, embora tente (muitas vezes sem sucesso) focalizar as coisas boas para não esmorecer. Nesse contexto, a arte é uma ferramenta muito poderosa de resistência, seja por permitir a elaboração das angústias, seja por, indo além da esfera pessoal, fomentar a denúncia e a reflexão. Além disso, há o efeito, no leitor, de se sentir representado por mais alguém que, diante de um cenário tão ruim, lhe faz coro. Então, o artista que não se cala diante das ondas reacionárias reforça as lutas contra elas. Penso, contudo, que devamos ter o cuidado de não impor pautas aos artistas. Nem todas as pessoas têm o ímpeto de fazerem, da sua produção artística, reação ao que as revolta. Então, mais salutar do que criticar quem aparentemente não se posiciona por meio da arte é divulgar quem, de bom grado, escolhe fazê-lo. Digo “aparentemente não se posiciona” porque, muitas vezes, a intenção do autor nos escapa. Leitores enxergam um poema com as lentes que escolhem, de modo que certas críticas passam ao largo da nossa percepção e outras são vistas por nós porque queremos vê-las. Assim, no contexto político em que estamos, um texto sobre o silêncio diante da inquietude que consome alguém por dentro pode acabar sendo visto como crítica social. Digo isso porque o poema que serve de mote à pergunta que respondo agora já foi lido por pelo menos três pessoas como um texto sobre opressão e nosso silêncio diante dela. Então, no fim das contas, a reação a monstros por meio da arte acaba sendo construída, em muitos casos, mais pelo leitor do que pelo próprio artista.

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Adilson Vilaça Nasceu em Conselheiro Pena (MG), em 1956. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei entre fevereiro e março de 2019.

Francisco Aurélio Ribeiro, no artigo “Adilson Vilaça, o autêntico contador de causos”, publicado no Gazeta Online em 11 de outubro de 2018, avalia que você é “herdeiro da tradição literária de índios, africanos e europeus, autêntico contador de ‘causos’”. Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Tirante uma e outra aventura em mimeógrafo, eu me iniciei no mundo impresso da literatura em 1979, no livro Poesias – Movimento Literário Universitário. O dito movimento reunia em verso e prosa oito “escritores” da Universidade Federal do Espírito Santo, com a chancela do Diretório Central dos Estudantes. Eu fazia parte do ruidoso movimento estudantil, como fui parte daquela centelha literária, na condição de poeta. Dos cinco poemas estampados no livro, todos contaminados pela tensão social que caracterizaria minha obra, um deles já nasceria com fatura estética bastante apurada. O poema “Lenda indígena”, que remete à rendição dos Krenaks, meus ancestrais paternos, tematiza a precariedade de uma Nação que se funda sobre os ossos e banhada no sangue dos vencidos. Adiante, em 1980, eu participaria de uma publicação intitulada e resultante do II Concurso Universitário de Contos, patrocinado pela Universidade Federal do Espírito Santo. Eu vencera o concurso, e o livreto reunia os dez primeiros contos classificados. Meu conto “Boca de forno” andarilhava pela cidade com um torneiro mecânico à cata de emprego (eu fui torneiro mecânico!), cuja agonia se somou à de outros desesperados, entre eles um batedor de carteiras e um camelô que vendia panaceias ao público atraído pela jiboia que sustentava o espetáculo; e, com isso, o sustentava – tudo acaba numa delegacia de polícia, com a ordem restabelecida. Em 1983, eu venceria um concurso de contos patrocinado pela UFES/Fundação Ceciliano Abel de Almeida, com a reunião de 18 contos sob o título A possível fuga de Ana dos Arcos. No ano seguinte, a FCAA publicou o livro. Nele, eu já me vi emoldurado no universo de minha produção literária: prosador, narrador da tensão social que martiriza os brasileiros, em especial a imensa e amorfa categoria dos vencidos. No livro em questão aflora a violência, em três camadas expressivas da discriminação: a racial, a social e a de gênero. Estabelecidos o conteúdo e o fundo, resta dizer que minha prosa sempre buscou a inovação da forma, seja pela fusão com a poesia, seja pela arquitetura que modelaria alguns de meus romances. Seu primeiro livro, A possível fuga de Ana dos Arcos (FCAA, 1984), recebeu o Prêmio Geraldo Costa Alves de 1983, concedido pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Desde então você já publicou mais de 40 títulos, incluindo romance, novela, conto, crônica e ensaio. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Complemento revelando que eu me percebi escritor – melhor, contador de 18

estórias – quando percebi o mundo. Minha avó Krenak (Maria ou, na língua Borun, denominada Ak, a Terra) era preciosa contadora de estórias; e também minha avó galega era excelente narradora (do lado materno, sou descendente da Galícia Espanhola; neto de Efigênia Vilaça, ou, em galego, Ifixênia Villacis) – ambas as avós eram analfabetas, já meus avôs eram mortos quando nasci. Aos cinco anos de idade, eu comecei a escrever as minhas primeiras estórias, que seriam lavadas pela chuva e levadas pelo vento, quando eu nem sequer era alfabetizado. Eu aprendera a desenhar o alfabeto em letras maiúsculas e escrevia intermináveis estórias no chão de minha rua, num tempo em que a vida ainda não era pavimentada. Muitas pessoas se reuniam para assistir à escrita – quase todos eram igualmente analfabetos – e, depois, ouviam a estória. Eu podia iniciá-las, por exemplo, com JBRNOTS ou UHLQMZ ou quaisquer dessas variações, porque desconhecia o truque de formar sílabas, de criar palavras. Quando encerrava a garatuja, eu caminhava até o início dela e começava a “leitura”. O público me acompanhava, as pessoas que sabiam ler silenciavam, animando a minha imaginação. Eu criava as estórias, eu as semeava no chão da rua, o público aplaudia ao fim, o vento as apagava e a chuva conduzia os restos das letras estilhaçadas para o rio. Eu sempre preferia esperar a chuva a ter de apagar a garatuja. Assim, a minha escrita era ritmada por tempo, vento e chuvaradas. Mas eu somente iria me considerar um escritor aos meus 28 anos, depois que o livro de contos A possível fuga de Ana dos Arcos foi publicado, após vencer um concurso no ano anterior. Em seguida, fiz melhor, fiz pior; avancei, recuei. Ao conhecer Walter Benjamin, mais do que qualquer outro escritor ou pensador – embora muitos tenham sido importantes em minha trajetória –, eu encontrei a bússola. Com ela, creio que dificilmente irei me perder. As teses de Walter Benjamin ajustaram-me em definitivo com a história dos vencidos. Você é originário de Conselheiro Pena (Cuparaque), no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Passou a infância em Ecoporanga, no noroeste capixaba, e radicou-se em Vitória a partir de 1977.  Podemos perceber influências dos espaços geográficos/ culturais na formação de sua obra, especialmente em livros como Cotaxé (1997; Chiado, 2015), Carminda (Chiado, 2017) e Cartas Fantasmas (Chiado, 2018). Por gentileza, explique como se dá essa influência. Sim, claro. Embora tenha saído de Cuparaque (Kuparak, onça pintada), minha terra ancestral, antes dos dois anos de idade, minha família levou consigo o imaginário de dois mundos – o Krenak, o galego. Levou também, nesses intangíveis baús, a formação mineira. Foi uma migração em bando, das duas famílias, cuja saga eu a recupero no romance Carminda (Chiado, 2017). Descobri-me humano rodeado por esse legado. E Ecoporanga, no Noroeste capixaba, território Contestado entre Minas Gerais e Espírito Santo, foi palco de encantos, mas também de uma violência extremada, que marcou a minha infância. Lá se fundou o Estado de União de Jeovah, que existiria de 1950 a 1954, com capital em Cotaxé (antiga aldeia dos Cotochés, hoje distrito de Ecoporanga). Estado provisório com hino, bandeira, justiça e milícia, União de Jeovah, que nasceu sob a égide de uma ampla reforma agrária, foi fundado pelo baiano Udelino Alves de Matos, que tinha como braço direito e armado Jorge Come-Cru, um Pojichá, povo aparentado dos Krenaks. Chegamos à cidade logo depois da derrota dos jeovenses. Pistoleiros contratados por fazendeiros adversários dos jeovenses, mais os policiamentos de Minas 19

Gerais e do Espírito Santo, patrulhavam a cidade e protagonizavam escaramuças e assassinatos diariamente. Sucedeu ao fim dos embates para derrotar o Estado de União de Jeovah, um levante camponês – após migrar em levas para a região atraídos pela radical reforma agrária jeovense, eles se recusavam a devolver os lotes de terras. A resistência estendeu-se à condição de revolta, que somente cessaria em 1962 – evidentemente, com a rendição camponesa. Escrevi sobre esses eventos históricos nos romances Cotaxé (aventura jeovense) e Cartas fantasmas (levante camponês, espécie de continuidade de Cotaxé). Mineiro, afeiçoei-me ao Espírito Santo e à sua História irremediavelmente. Hoje, posso dizer, sou um mineiraba. Entre os anos de 1980 e 1983, você venceu três concursos literários no Espírito Santo. Em 2000, recebeu do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo o Prêmio Almeida Cousin, pelo conjunto de sua obra.  Em que medida os prêmios literários auxiliaram no reconhecimento da sua literatura? Como você vê a recepção de sua obra? Bem, quando jovem, eu demarquei o crivo de que somente publicaria quando o meu texto passasse por exímia avaliação. Assim aconteceu: assinando como anônimo, fui apreciado por um júri acadêmico e respeitável, além de um crítico literário e do contista João Antônio, nacionalmente conhecido. Os dois concursos anteriores não se destinavam à publicação de livro do vencedor; aliás, suas exigências para inscrição foram de exígua quantidade de textos. Então, o concurso para publicação de livro tornou-se, naquele tempo, ambicionada meta. Os concursos deram-me o brevê: era tempo de voar! A premiação à minha obra, com o “Almeida Cousin”, foi também importante; porque me abriu porta para ser membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, assinalando o reconhecimento pela pesquisa histórica que fundamenta parte significativa de minha produção. O conjunto da obra também me conduziu à Comissão Espírito-Santense de Folclore e à Academia Espírito-Santense de Letras, na cadeira de número 13. Recebi do governo capixaba a Comenda “Rubem Braga”, nosso exponencial cronista, assim como recebi a Comenda “Renato Pacheco”, pelo Instituto Histórico e Geográfico ES – o brilhante e saudoso professor de História Renato Pacheco indicou-me para o “Almeida Cousin”, convidou-me para o IHGES e honrou-me com sua comenda. Todo reconhecimento é importante; porém, nenhum deles equivale à sensação de mais uma obra concluída! Este é o grande, insubstituível e verdadeiro prêmio. São os livros que nos levam ao público – dois de meus livros de contos (A possível fuga de Ana dos Arcos e Identidade para os gatos pardos) foram adotados em vestibulares da UFES, alguns dos romances foram reeditados e Cotaxé alcançou a quinta edição. Então, sempre é tempo de reiniciar a jornada de Sísifo: meditar enquanto se desce a ladeira, como propõe Albert Camus, e empreender, até o alto da ladeira lenta, como propõe Drummond, “a luta mais vã”, que é a de lutar com as palavras. Bom mesmo foi na infância, quando os meus textos prescindiam da palavra escrita. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Tenho no prelo, como se dizia, um livro sobre o folclore capixaba, escrito 20

com o tom entre reportagem e crônica. Com a minha concepção, minha pesquisa e meu texto, trata-se de uma realização do Instituto Modus Vivendi, com apoio da Lei Rouanet. Nas duzentas e algumas páginas da obra, belas imagens colorem a resistência de manifestações da cultura popular, portanto, de um povo que se opõe a simplesmente consumir a suposta programação “cultural” que lhes é empurrada pela goela. Ainda: trabalho um novo romance – no momento, é oportuno não divulgar o título. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Estamos numa longa transição. Nomes como Drummond, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Antônio Callado, Cecília Meirelles, Clarice Lispector e tantos outros se foram num comboio que deixou a guarda aberta. Faltam-nos peças para reposição. Com a guarda aberta, avança um bando desordenado. Estou nesse roldão. Quais os principais desafios para a edição e recepção de novos escritores no Brasil de hoje? As editoras são o espelho da acomodação geral. Apostam em vendas e no lucro imediato; tal opção impõe que somente ofertem ao público consagradas obras de domínio público, algumas dilaceradas por sínteses barateadoras. Contudo, a crise que se gerou é transitória; para vencê-la, o remédio é produzir ininterruptamente, exercer a autocrítica da produção, visando à persistente melhoria da fatura estética. Como você avalia hoje a relação da mídia corporativa com a produção literária brasileira? Você considera que as elites políticas e econômicas reprimem a difusão da literatura e de outras formas de manifestação do pensamento combativo, como as ciências, a filosofia e as artes? Na quase totalidade de sua programação a mídia corporativa opta pela mediocridade. Um público acrítico e consumista é o ideal para mover a engrenagem do dinheiro. Portanto, o afastamento da criticidade é arma das grandes corporações e das elites políticas e econômicas. Mas devemos fazer o bom combate: produzindo e combatendo justo aquilo que elas endeusam, atuando em favor dos vencidos, que elas exploram e hipnotizam. Como você vê o cenário atual do Jornalismo Literário no Brasil?   É um defunto insepulto. Finge sobreviver, mas, em larga escala e qualidade, é apenas um retrato na parede das redações. Torcemos para que se reanimem em tempos de qualquer Páscoa! Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como 21

desfecho do atual estágio da humanidade? Quando emburrecido, o homo sapiens é um animal muito, muito perigoso. Infelizmente, as propostas humanistas à esquerda fracassaram na indicação de caminhos ou de como fazer a caminhada. A liberdade e a dignidade humana pairam por um fio. Os desvios da esquerda, encantada com estilos de vida que são conquistas da exploração contínua ou de corrupção imediata, abriram a Caixa de Pandora da barbárie – porque as esquerdas deixaram de ser alternativa ao fascismo financeiramente gordo e extremadamente obscurantista para se prostituírem com suas vultosas migalhas. Resta-nos o bom combate: manter livre o espírito crítico, produzir sempre, acreditar que a humanidade, por mais hipnotizada que esteja, será capaz de se reencontrar com a liberdade consciente, que dá sentido à aventura humana.

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Alberto Lins Caldas Nasceu em Recife (PE), em 1957. Vive em Paris (França). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2019.

Autor de contos, romances e poemas, você afirma que não é escritor ou poeta, mas um “poemata” que usa a escrita como arma de guerrilha. Quais são as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? “projeto literário” pra mim sempre foi um “projeto político”, mesmo sabendo q a literatura e toda arte é feita pro senhor, pro divertimento do senhor, pro passatempo do senhor, pro enriquecimento do senhor. ela é essencialmente inútil pra outra coisa, qualquer coisa q não seja servir. ela é e sempre foi uma coisa pro patrão. é dele e para ele. lutar por uma mudança nesse estatuto seria impossível porq a literatura está encravada e é parte essencial do projeto escravista, no projeto colonial, no projeto burguês, mercantil, financeiro: ele é a língua sempre serva, sempre nula e incapaz de atingir as coisas. não passa de uma pequena masturbaçao. um leitor é uma das coisas mais perigosas q existe. quem está lendo essas primeiras linhas já notou q há algo diferente (ele erra demais, escreve como um analfabeto). é em parte a impotência do leitor em minar a língua do senhor. ele crê em deus, na família, na gramática, na lógica do estado, da metafísica: o leitor é uma espécie de fascista q usa livros “para aprender” (ele se prepara pro senhor), “para pensar” (como todo fascista ele não pensa), “para passar o tempo” (não tem o q fazer, vive no melhor dos mundos possíveis). minha ação é atingir a língua por dentro; por baixo, deformando e pondo minas q tentem, sem lugar definido, destruir o q mantem sendo ela um dos solos do horror. por isso não sou escritor ou poeta ou qualquer outra coisa parecida e por força de tanto perguntarem o q sou uso uma palavra roubada de um amigo pra dizer o q “sou”, poemata, isto é, nada. uso uma forma de escrita “esmagada” q se parece com um verso, mas q não é verso (basta estudar um pouco de poética), mas q chamo de “poema” com uma perspectiva diferente. q é sempre lido como se fosse poesia porq o leitor não consegue sair da mais tenra superfície. é apenas um tolo enfatuado. essa guerrilha inútil. o q faço nada atinge porq as forças de constituição do mundo do capital não podem e não são tocadas pela escrita, q se torna uma palhaçada, um momento da impotência q se contorce e parece dizer o mesmo. Em outras entrevistas, você relata que a partir dos 8 anos de idade começou a ler o tempo todo e, a partir dos 11, passou a escrever o tempo inteiro. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? não sou um escritor, mas um “militante de esquerda” sem partido e sem precisar de partido, q é coisa da direita. dos 7 ou 8 anos até os 11/12 anos fui um leitorzinho integrado. daí até os 29 escrevi como um imbecil no horizonte de capachismo e servidão voluntária dessa coisa gosmenta, mentirosa, policialesca, inexistente, estatal, integrada q se chama “literatura brasileira”, ou “literatura da 23

língua portuguesa”. sair desse nó só pode se dar com um curto circuito filosófico, político, estético, ético e cangaceiro. a “literatura brasileira” é uma coisinha gosmenta q sempre serviu a construção do “brasil”, q não existe a não ser enquanto uma fantasmagoria dos diversos capitais nesses últimos séculos, enganar servos q são um povo (não existe “povo brasileiro”, mas existem escravos negros/ “índios”/mulheres/brancos/crianças, trabalhador, torturadores, pobres, miseráveis) e servos de todos os feitios e matizes. isso inclui todos, pobres e ricos, brancos e negros, homens e mulheres, todos os pares fascistas tão queridos e comuns. O Movimento Madeirista completou 20 anos em 2019. Qual é a sua visão retrospectiva sobre aquele movimento? Qual o sentido do Manifesto Madeirista, lançado em 1999, para a Amazônia de hoje? o movimento madeirista (eu, carlos moreira, joeser alvares e bira) foi no tempo uma luta contra a arte e a literatura regional, brasileira, idiota de um lugar como outro qualquer com sua academia de letras, seus “escritores, poetas e artistas” idiotas, entregues ao gozo minúsculo e idiota de serem especiais, diferentes, escolhidos, representante de algo diferente, estranho, misterioso, necessário. o madeirismo fez apenas dizer isso a eles e cada um de nós continua criando até hoje o q deseja com liberdade, cada um pensando o q deseja e como deseja. eu segui minha luta contra o horror q vem desde 1988 mesmo sabendo ser uma luta q não pode atingir nada. só os religiosos acreditam q existe uma palavra de deus, o autor, e q essa palavra corresponde e atinge as coisas. são os servos perfeitos, os perfeitos leitores. Como você vê a recepção de sua obra? não é enfrentada como deve nem pode ser. e não faz nenhuma falta (recepção é algo do mercado, do senhor, da igreja, dos grupos, dos minúsculos poderes de aranha). não porq não há “obra”, mas porq ela é contra tudo q os “receptores” acreditam e duma maneira q eles consideram estranha demais, errada demais. os poucos são condescendentes, como se passassem a mão na cabeça do imbecil ou se livrarem logo duma missão. o pouco são conversas com raros amigos q sei q não leem o q escrevo ou lêem pouco dela para ter uma visão de conjunto e profundidade. desses poucos amigos dois ou três é q posso dizer q jogam bola comigo e eu com suas obras. Que autores você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura feita no Brasil como um todo: diante do panorama atual, o que você vê? não existe “literatura brasileira” ou “literatura de língua portuguesa”: tudo continua igual, o mesmo, o capachismo escondido. desde 1988 não leio “autores brasileiros” ou leio tão pouco q não faz sentido falar sobre isso (se resumem aos poucos q jogam bola comigo) nem ver nada. passei vinte anos com eles, os “clássicos da língua portuguesa” e só me puseram num lugar bem normal e perigoso. Crítico do mercado de livros, como você percebe os desafios para a edição e a recepção de novas obras literárias no Brasil de hoje? Você considera que as elites políticas e econômicas reprimem a difusão da literatura e de outras 24

formas de manifestação do pensamento combativo, como as ciências, a filosofia e as artes? acho q a resposta pode ser encontrada acima. quanto as “elites políticas e econômicas” são tudo menos elites. essa massa-dos-mesmos-q-se-dizem-elite nada reprimem porq não há nada a reprimir numa “difusão”, sempre pra uns poucos leitores, do mesmo pros mesmos. não há nenhuma repressão verdadeira e contundente, tudo frouxo e mentiroso quanto a artes e literatura, já impotentes frouxas e ridículas. não há nenhum “pensamento” combativo: o “brasil” é a terra fascista por excelência, não pensa nem pode pensar, apenas em casos raros usar a serva de ouro q é a razão (principal instrumento da ciência - q não pensa nem existe e foi construída pra isso). reprimir ou não reprimir é o mesmo movimento-de-inércia. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você avalia esse dado? nada mais patético (pathos como catástrofe, passividade, sofrimento, assujeitamento e sentimentos, emoções, vidas doentes, danificadas.) q a poesia. tão patética q quando vale a pena, não é poesia, é outro engano. a poesia é a servidão da língua no seu maior grau, a escrita na sua servidão perfeita até mesmo quando luta para ser contra e se torna crônica. é amada por todos os tiranos, por todos os poderes, por todos os deuses, por todos os patrões, por todos os tolos (os poetas adoram dizer o contrário e exaltar as exceções duvidosas). Você costuma dizer que sua escrita expõe as “figuras do horror”, enfrentando-o. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si o horror, com matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? mas essas exposições das figuras do horror são impotentes pra lutarmos contra ela na vida. não podemos pedir da escrita o q ela constitutivamente é incapaz. q o cego veja. o solo, a “essência” da ocidentalidade (há séculos, cada vez mais, o mundo) é nazista. não são monstros, mas os normais e as normalidades. se há um momento q não seja nazista são apenas efeitos dos movimentos tectônicos do solo nazista da ocidentalidade. nenhuma novidade. ela é nazista o tempo inteiro e todos são nazistas, saibam, queiram ou não (por isso todo leitor, necessariamente, é um tipo de nazista passivo). como não existe humanidade (delírio de brancos colonizadores, burgueses felizes com uma falsa unidade e patrões com uma razão pra exploração) o “desfecho” será a obviedade do solo nazista ser levada até as últimas consequências e depois arrefeça e depois se torne novamente explicitamente nazista, até o fim da ocidentalidade, da cristandade, do mundo da maneira q existe há tão poucos séculos. PS: desculpe a escrita não poder ser mais radical. o corretor automático não me deixa fazer o q desejo. esse não é o programa q uso, mas um programa substituto q inda não sei como se desliga o corretor patrão. 25

Alberto Pucheu Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1966. Vive entre o Rio de Janeiro e o Vale do Socavão (RJ). Entrevista concedida a Vitor Cei e Adolfo Oleare em junho de 2019. Publicada na Caliban, junho de 2019.

Você tem produzido, dirigido e filmado documentários e entrevistas com poetas como André Luiz Pinto, Annita Costa Malufe, Leonardo Fróes, Marília Garcia e Vicente Franz Cecim. Também fez uma entrevista poética por escrito com Manoel de Barros. Além disso, já concedeu mais de vinte entrevistas a professores, estudantes e jornalistas. Como você avalia a importância do registro de conversas com os escritores da atualidade? Gostaria de fazer uma distinção entre os documentários. Os com a Marília Garcia e com a Annita Costa Malufe foram conversas que nós, do meu Grupo de Pesquisa (com alunos de graduação, pós-graduação, professores e poetas), tivemos com elas e filmamos, em uma mesma sala neutra. O com o Leonardo Fróes (feito também com Sergio Cohn e Gabriela Capper) e o com o Vicente Franz Cecim (feito com Danielle Magalhães), na tentativa de filmarmos os poetas em seus ambientes poético-vitais – Leonardo em seu sítio em Secretário e Vicente na Amazônia – são bem diferentes dos anteriores. Não à toa, a semelhança dos títulos: Leonardo Fróes: um animal na montanha e Vicente Franz Cecim: um animal na floresta. Os outros 4, André Luiz Pinto: Prazer, esse sou eu, Tatiana Pequeno: muambas e bombas para o nosso tempo, Bruna Mitrano: a 70km do mar e Danielle Magalhães: carta aos sobreviventes compõem o projeto “Autobiografias poético-políticas”, querendo propor uma evidenciação e uma leitura possíveis de uma das forças da poesia de nosso tempo do Rio de Janeiro. Apesar de eu não aparecer neles, é um projeto que tem uma concepção ensaística. Eu os fiz todos no começo de 2019. Ainda queria fazer mais um dessa série, conduzido por minha voz, a juntar passagens dos quatro. Esses vídeos têm por objetivo mostrar algo de nossa poesia a um público maior do que o que atinjo com meus ensaios, de modo que o público possa ter um encontro direto com poemas e com poetas falando. Em todos os vídeos, sobretudo nos 4 últimos, sou eu quem escolho os poemas, sendo que nos 3 últimos utilizei exclusivamente poemas então inéditos das poetas, que eu li primeiramente no Facebook e me impressionaram muito. Pena que Manoel de Barros não esteja vivo para participar dessas conversas filmadas, no grupo do Leonardo Fróes e do Vicente Franz Cecim. Seria lindo: Manoel de Barros: um animal no Pantanal. Pensei muito sobre isso. Pena também que Fernando Ferreira de Loanda não esteja mais entre nós; adoraria fazer um com ele também, quem sabe em sua casa na Penha, quem sabe intitulado: “Fernando Ferreira de Loanda: Kuala Lumpur” ou “Fernando Ferreira de Loanda: os cornos da lua”. Sobre Manoel de Barros, entretanto, além de resenhas e da entrevista, escrevi dois ensaios, enquanto dos outros dois eu havia escrito apenas resenhas de alguns de seus livros para jornais de ampla circulação, buscando igualmente divulgar a poesia deles. Conheci a poesia do Manoel de Barros em fins dos anos 80 e foi um acontecimento 26

para mim. Então, nos anos 1990, fiz essa entrevista por escrito com ele. Acho as conversas faladas ou escritas importantíssimas para o nosso tempo. Posicionando-se entre o coloquial e o ensaístico, entre o afetivo e o teórico, entre o diário e o poético, elas permitem uma reflexão da poesia, com uma liberdade de pensamento e uma proximidade afetiva que favorecem muito quem escuta. Tem um tom nas conversas que nem o ensaio, nem os poemas, nem as aulas permitem. Elas são também um modo de pensamento singular, um estilo de dizer as coisas, um gênero possibilitador. No caso dos vídeos, eles permitem tanto essa reflexão quanto a mostragem dos poemas lidos por poetas. Todos os vídeos que fiz foram muito vistos. O do Leonardo Fróes foi um acontecimento; acho que havia uma expectativa há longo tempo represada sobre a poesia dele, que merecia há muito ser muito mais lida e comentada. Ele mesmo me disse que foi depois do filme que saiu uma matéria longa no Globo sobre ele, citando, diga-se, o filme, ele foi eleito o escritor do ano pelo respectivo jornal, foi convidado para a Flip, para Inglaterra... Tudo muito bonito. Tenho adorado fazer esses filmes amadores, em que, salvo o do Leonardo, preparo e realizo praticamente tudo sozinho (re-estudo a obra, preparo a condução da conversa, escolho os poemas, filmo, cuido do som, edito etc.), tentando a um só tempo criar um arquivo de certa poesia contemporânea, com seus poetas, que me concerne de perto e divulgar essa poesia, intervindo, ainda que minimamente, na dinâmica do nosso tempo. Danielle Magalhães tem me ajudado muito nessa empreitada, me ajudando a filmar com uma segunda câmera em muitos desses documentários. Vem mais coisa por aí, espero... Ao menos, já sei quem é o próximo poeta que quero filmar, em torno do que quero que a conversa gire, o poema escolhido etc. Como todo o processo de filmagem é bem amador e mesmo precário sempre dá um frio na espinha a possibilidade de tudo dar errado, de o foco sair errado e estragar tudo (minha câmera não tem foco automático para filmagem). Até agora, mesmo quando aconteceram erros técnicos (e foram muitos), acabo procurando dar uma solução qualquer que se sobreponha ao erro, não o deixando aparecer, mas eles insistem em aparecer... rs... No pré-escrito do livro Pelo colorido, para além do cinzento (Azougue, 2007), lê-se que as obras dos grandes pensadores do Brasil, como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, manifestam a correlação entre o poético e o sociológico, o histórico ou o antropológico, acionada para pensar sincreticamente o nosso país. E propõe-se uma nova exploração: “a miscigenação entre o poético e a teoria literária, entre o poético e a crítica, entre o poético e o filosófico”. Em contrapartida, ainda predomina a visão da filosofia contra a poesia e a literatura, o filósofo contra o escritor. Autores como Antonio Candido e Paulo Arantes afirmam que a filosofia sempre ocupou um lugar subalterno na evolução de conjunto da cultura nacional. Para eles, a literatura, mais do que a filosofia, seria o fenômeno central da vida do espírito no Brasil. O que você pensa a esse respeito? Ou: como você concebe a relação entre verdade e poesia no Brasil? Desde quando ingressei na faculdade, a questão que me interessa é a da relação entre poesia e filosofia. Quando passei a publicar livros e dar aulas, vi que tinha um espaço de atuação para realizar justamente aí uma intervenção, pequena que fosse, no nosso campo aqui no Brasil. Defendida em 1999, minha Tese de 27

Doutorado se intitulava Intervenções na relação entre poesia e filosofia. Poderia dizer que tudo o que eu sempre quis fazer foi essa intervenção de modo a criar indiscernibilidades entre poesia e filosofia, propondo um modo de atuação do pensamento e, sobretudo, da escrita entre nós. Em 1998, organizei o livro Poesia (e) filosofia; por poetas-filósofos em atuação no Brasil, que foi editado pela 7 Letras e, em 2018, teve uma reedição pela Editora Moinhos, de Minas Gerais; depois, vieram os meus livros autorais, de ensaio. Seja abordando Platão, Aristóteles, Montaigne, Schlegel, Nietzsche, Deleuze, Derrida, Agamben, seja abordando a crítica de, por exemplo Antonio Candido, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Eduardo Portella, Roberto Corrêa dos Santos e outros críticos e poetas-críticos, seja abordando a poesia contemporânea, meu desejo acaba sendo pensar esse intervalo entre poesia e filosofia, poesia e crítica, ao mesmo tempo que pensar certa poesia contemporânea. Sempre quis ler os filósofos antigos como poetas contemporâneos e os poetas contemporâneos como pensadores efetivos, dando-lhes seriedade maior. Não tenho dúvida de que há em nossa poesia muito a ser pensado, muito de inesquecível a ser resguardado, muito a ser com ela criado, em uma só palavra, para usar o termo que você usou, há um posicionamento poético quanto à verdade que nos é da maior relevância e do qual não podemos, de jeito nenhum, abrir mão. Agora mesmo acabei de organizar uma antologia para uma revista que busca ser uma antologia de poesia de intervenção no tempo e reveladora de muito de nossa história e de nosso momento. E apenas com poetas vivos. Não podemos abrir mão da poesia nem da literatura para pensar o Brasil e o mundo. Historicamente, nossa poesia e nossa literatura de modo geral são mais potentes e assíduas do que nossa tradição estritamente filosófica, mas acho que tem uma geração se fazendo na filosofia de grande capacidade de pensamento. Tive professores aqui no Rio de Janeiro como Rosângela Araújo, Carmen Lucia Magalhães Paes, Clauze de Abreu, Roberto Machado, Gerd Bornheim, José Américo Pessanha, Carneiro Leão, Gilvan Fögel, que me marcaram muito, todos sempre abertos para a poesia e a literatura e as artes, pensando-as... É uma geração e tanto, que, formando a minha geração aqui no Rio de Janeiro, muito nos instigou a fazer o que hoje podemos fazer. Tenho um agradecimento imenso a todos eles e elas e a outros e outras ainda. É uma geração que, em sua grande maioria, escreveu muito menos do que poderia, mas deixou um legado imenso com suas aulas. Temos de pensar também que, quando comecei a estudar filosofia na graduação, havia uma precariedade editorial imensa na área, contraposta a quase que exclusiva coleção Os Pensadores, organizada pelo José Américo Pessanha, anteriormente mencionado. De lá para cá, o salto foi gigantesco, bem como o acesso a livros de todo o mundo. Temos hoje uma movimentação grande na filosofia, com filósofos de alta qualidade, alguns ambicionando um voo nacional e internacional de pensamento. Como nossa tradição poética e literária são muito fortes, penso que, seja na crítica, seja na filosofia, temos muito a fazer com elas. Mas, mesmo quando não explicitado por mim, o que me move é uma busca pelo desguarnecimento das fronteiras entre poesia e filosofia, poesia e crítica, poesia, crítica e filosofia... Cada escritor possui um estilo e um método de trabalho próprios. Em sua obra, notamos uma movimentação em busca de experimentações que circulam entre o fazer poético e o filosófico. Você poderia comentar sobre as opções 28

formais e temáticas que norteiam seu projeto de desguarnecimento de fronteiras? Acrescentando ao falado anteriormente, poderia ainda dizer que, se houvesse poesia de um lado e filosofia (ou crítica) de outro, tudo o que sempre quis, e continuo querendo, fazer é me colocar de diversos modos e em diversos graus exatamente nas imensas possibilidades que há entre as duas, onde não é possível pensar a exclusividade de uma nem de outra, nem da crítica. Vejo, entretanto, que isso foi feito desde sempre. Em Platão, por exemplo, é isso que está lá; pena que o modo majoritário de se lidar com ele foi por uma caricatura malfeita e mal lida, manualesca mesmo, da expulsão dos poetas da cidade. Meu próximo livro de ensaios, que faço no momento, se intitulará Espantografias: entre poesia e filosofia, chamando de espantografias essa pluralidade de escritas que, realizadas desde o espanto ou assombro e desde a aporia, garantem um desguarnecimento de fronteiras. Poderia dizer que a essas diversas indiscernibilidades entre poesia e filosofia (e o que mais do assombro e da aporia provenha) eu chamo agora de espantografias. Gostaria igualmente de trazer diretamente também a política para essa dimensão do assombro. Hannah Arendt dá duas indicações breves a respeito disso, mas, até onde conheço, não desdobra essa possibilidade. Penso que, teórica ou criticamente, tenho conseguido avançar nisso via poetas atuais como Danielle Magalhães e Tatiana Pequeno, que se utilizam da palavra assombro vinculando-a à política de nosso tempo. Quem acompanha a sua obra, em poesia e ensaio, pode perceber uma característica marcante: a releitura sistemática de outras vozes, mostrando que a poesia é feita de alteridades. Em que medida a docência e a atividade de pesquisa participam da organização dos diálogos que você busca travar com diferentes facetas da tradição literária? Que valor tem a origem não-conceitual do conceito para a sua escrita? Sim, a poesia é feita de alteridades, desde alteridades, em alteridades, para alteridades, de diversos outros que nos compõem e a compõem. Isso está colocado desde sempre e ao longo de nossa tradição (Homero, Platão, Keats, Nietzsche, Emily Dickinson, Rimbaud, Pessoa, Mário de Andrade, Heidegger, Barthes, Foucault, Agamben...). Poderia ir mais longe e dizer que poesia é alteridade. Há igualmente uma ética e uma política dessa(s) alteridade(s). Em um momento histórico como o que vivemos, em que o que se quer é a destruição do outro em um verdadeiro alocídio, em que o poder se confunde plenamente com uma necrocracia estupidamente literal, em que as instituições não funcionam normalmente nem protegem o cidadão – antes, é o contrário, o que ocorre –, não é pouca coisa a defesa da poesia pela defesa radical da alteridade. É uma defesa poética, ética, política. Desde que comecei a dar aulas na UFRJ, a docência se misturou igualmente ao filosófico, ao crítico e ao poético. Como não? A docência também é um exercício de alteridades; lemos outros escritores, tentamos pensar outros escritores, conversamos fantasmaticamente com eles, temos de falar deles para outras pessoas, tentamos pensar em frente aos outros e com os outros tentando trazê-los para o campo da leitura, do pensamento e da criação, o que não é fácil. Pelo outro e para o outro, somos levados a pensar o que não pensaríamos. Você usou a palavra diálogos e ela é perfeita. Não à toa, sobretudo com Platão e a partir dele, o diálogo é um dos modos determinantes do que chamei de espantografias. Não o único, mas um 29

dos mais determinantes. Assim como a entrevista, ou a epistolografia (em seus diversos modos renovados), o diálogo se coloca através da linguagem entre duas ou mais pessoas. Por isso, eles são modos paradigmáticos. É nesse entre que sempre estamos, escutando, falando, escrevendo, estudando, conversando. Nesses modos de escrita, a alteridade se coloca já no princípio de tudo. No princípio é o dois, não o um. E isso já é política. À frente do monólogo ou do solilóquio, o diálogo, a entrevista, a carta, a poesia, o que vem com o outro a nos compor e transformar. Melhor do que isso: mesmo no monólogo e no solilóquio, o que vem com o outro a nos compor e transformar. Afinal, se aprender a falar nos é naturalmente dado, a língua que aprendemos a falar, qualquer que seja, vem de fora, é histórica, social, política. Para mim, o conceito não é nada mais do que uma palavra que recebeu uma carga maior de pensamento propiciada por uma sintaxe singular de uma determinada escrita pensada. Essa palavra que vibra mais do que outras se articula com outras que também chamam atenção pela intensidade de sua vibração. Mas quem permite essa vibração é a singularidade da sintaxe criada. Muitos conceitos me parecem provir de uma esfera não conceitual, bem como uma esfera não conceitual necessita igualmente do conceito para se pensar. Como tenho trabalhado com o espanto ou assombro, por exemplo, se ele pode ser lido como um conceito em Platão (pode?) e Aristóteles que origina a filosofia e faz com que, de certo modo, o poeta e o filósofo sejam o mesmo, tal termo já se faz presente de modo muito intenso, por exemplo, em um poema do Arquíloco a partir do eclipse, quando nem havia o termo filosofia ainda. Nesse sentido, Arquíloco faz, anacronicamente, um poema filosófico antes de a filosofia existir e a filosofia só nasce historicamente como uma possibilidade da poesia. Poderia dar diversos outros exemplos. No que me concerne, você mesmo usou em algum momento o termo do desguarnecimento das fronteiras, mostrando a dimensão poeticonceitual que há nele. Em sua trajetória literária, você acumula uma significativa produção poética. A coletânea A Fronteira Desguarnecida (Azougue, 2007) reúne quase todos os seus primeiros livros de poesia. Mais recentemente, você reuniu poemas em Mais cotidiano que o cotidiano (Azougue, 2013) e Para que poetas em tempos de terrorismos? (Azougue, 2017). Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um poeta? Antes de começar propriamente a resposta, informo apenas que o Para que poetas em tempos de terrorismos? ganhou edição portuguesa, pela Editora Exclamação, em 2019. Pois bem... A poesia se dá a partir de um desconforto, de uma inviabilidade, de uma impossibilidade, de um impasse, de uma sensação de se ter ido demasiadamente longe na vida ou, ao menos, para não parecer algo do âmbito do heroico, que, de fato, não é, de se ter atingido um ponto qualquer na vida em que a vida não consegue mais se fazer simbolizável. Se não se foi longe, foi-se longe o suficiente para o que se era capaz de ir. Esse é um ponto sem retorno. Há um momento trágico mesmo, de não se conseguir falar o que se vive, o que se pensa, o que se passa, o que se vê, o que se sente, quem se é... Algo como um desmoronamento. Diante desse impasse, naufragamos no insuportável ou conseguimos uma saída qualquer suportável dentro desse insuportável que jamais nos abandona. A poesia é essa saída, não do desamparo, não do insuportável, não do 30

impossível, mas sim no desamparo, no insuportável, no impossível. Já foi dito muito belamente que a poesia talvez tenha a ver com a transformação de nossa impotência em nossa impossibilidade, fazendo com que, sem sairmos do impasse, saímos de uma paralisia triste para um movimento (menos triste, quem sabe, mais alegre) impossível. Em tal momento, com toda a demanda pessoal que surge em conhecer as palavras de quem, ao longo da tradição de diversas línguas e tempos históricos, já passou por isso, e também de muitos outros que nem se colocaram essa questão, mas lidaram com a vida, com os afetos, com a linguagem e com o pensamento de modo muito radical, descobre-se, talvez, nessa entrega a essas alteridades que passarão a nos compor, poeta. Essa descoberta não é ainda a última etapa ou a decisiva para se tornar poeta: é preciso afirmar essa condição, confirmá-la até o limite que se lhe é permitido. Ou, talvez, ao menos, encontrar outra possibilidade qualquer melhor do que a que anteriormente se vivia. Miguel Sanches Neto, na apresentação do livro Mais cotidiano que o cotidiano (2013), avalia que sua poesia se apropria das ferramentas da crônica para penetrar a linguagem viva de uma cidade, o Rio de Janeiro. Em que medida o choque com a cidade alimenta a sua produção? A atualidade social do Rio de Janeiro tem impacto sobre a sua atividade poética? A apresentação do Miguel Sanches Neto é muito boa. Eu a pedi a ele porque, sem que eu o conhecesse pessoalmente e nem mesmo por mensagens ou conversas, ele havia escolhido um poema meu – inédito – para aparecer em um jornal com um breve comentário dele (a história aqui seria longa, mas não a vou contar). Quando li aquilo, um poema inédito meu publicizado por ele no Suplemento de Minas Gerais com um pequeno texto muito bom dele, me surpreendi muito e então o convidei a, a partir do pequeno texto, fazer a apresentação do livro que continha o tal poema, o mais cotidiano que o cotidiano. A cidade está presente desde o começo dos meus livros. A cidade aberta é o título do primeiro livro, de partes de outros livros etc. “Sebastianópolis” foi um poema significativo para mim, entre outros. A cidade está por todos os cantos dos livros publicados. Mais do que a cidade como referente, o que também há em meus poemas, sempre busquei, sobretudo, uma sintaxe urbana, uma sintaxe que trouxesse nela a sonoridade da cidade, e afetos e pensamentos possíveis provindos dela e para ela. Eu queria uma poesia que, por sua sintaxe, trouxesse a cidade no corpo, nos nervos, no coração, na boca... Esse aspecto urbano de minha poesia sempre foi um aspecto político, ainda que isso possa ter ficado mais visível, mais evidente, em 2010, quando foi publicado no “Prosa&Verso”, do jornal O Globo, no sábado imediatamente anterior ao domingo da votação do segundo turno que elegeria Dilma Rousseff em seu primeiro mandato, o “Poema para ser lido na posse do presidente”, saído, depois, em 2013 no mais cotidiano que o cotidiano. Junto com outros, como Para que poetas em tempos de terrorismos?, considero aquele poema como um dos mais importantes entre os que escrevi. Neles (e em outros), estão algo de nosso tempo, nossa cidade, nosso país, nosso mundo, nossa política, nossas vidas. Para muitos, as jornadas de 2013 foram um marco a afetar politicamente a poesia. E estão certos. No meu caso, a poesia já vinha nesse caminho e o poema de 2010 é, para mim, um marco importante no caminho de minha poesia, que radicaliza a evidenciação da política na poesia antes de 2013. 31

Como você avalia a recepção da sua obra? Essa é uma pergunta para mim muito difícil de responder, que, mesmo tendo sido feita com a maior das boas vontades intelectuais, respondê-la é enfrentar muitas dificuldades, parecendo-me uma tarefa capciosa (digo, só para ficar mais claro: a resposta, não a pergunta). Estou muito próximo do que faço para poder pensar isso com a seriedade que tal questão requer. Minha poesia e minha crítica ou teoria tem recebido vários ensaios e resenhas ao longo de décadas de sua existência, bem como uma dissertação ou outra. Muitos de tais textos são muito bons, excelentes mesmo, pensando o que faço ou pensando com o que faço, o que me alegra muito. Ao mesmo tempo, sempre acho que meu trabalho teve um caminho criticamente periférico em minha geração, correndo por fora do que então era considerado mainstream, e mesmo nas gerações seguintes. Quando se pensa geracionalmente, a expectativa é que haja algo predominante nessa geração e, infelizmente, as pessoas acabam buscando ou querendo criar uma estrela geracional. Ao menos, foi assim. Sempre fui contra isso. Hoje, com a falência da crítica nos grandes jornais, com a variedade de revistas online, de blogs, de pontuações de quem quiser no Facebook, a movimentação parece-me diferente. Não temos de lidar com uma ou duas estrelas, mas com constelações que se fazem e se desfazem, com pontos soltos no universo da poesia, com uma via láctea de poetas. Honestamente, acho que minha poesia, se for lida em termos de geração, requisitaria uma outra leitura dos anos 1990. Talvez por isso ela se encontre mais com quem veio depois de seu ponto de partida. Eu mesmo não realizo criticamente marcos geracionais, preocupando-me sempre, muito, com a singularidade de cada trabalho a partir do qual escrevo ou, no máximo, com agenciamentos possíveis que jamais querem determinar a exclusividade de uma determinada época, mas, no máximo, dar a pensar possibilidades do nosso tempo. Ler ou pensar poeta a poeta tem sido uma tentativa constante minha. Minha vontade, entretanto, ao tentar responder essa pergunta é devolvê-la a vocês, para que eu possa escutar uma resposta a ela de quem pode dá-la bem melhor do que eu: “como veem a recepção de minha obra?” [espaço para a resposta de vocês, Vitor e Adolfo]. Tem também outro tipo de recepção que vem me alegrando muito, essa recepção de artistas, que não falam sobre nossos poemas, mas que fazem coisas com eles. Recentemente, Letrux abriu o show Línguas & Poesias com o meu poema “É preciso aprender a ficar submerso”, falando-o ao som de piano e vibrafone, com muita beleza e elegância (https://www.youtube.com/watch?v=e5mrt0EnKRo). Em um evento no CCBB sobre a Tropicália, entre o show de Pedro Luiz e o de Tom Zé, Paulo Sabino, organizador e apresentador do evento, falou o mesmo poema em público, para um público de umas 2 mil pessoas. Há mais tempo, a artista plástica Danielle Fonseca fez um vídeo artístico de grande beleza com o mesmo poema, o “É preciso aprender a ficar submerso” (https://www.youtube.com/watch?v=jGwY2daOJGs). Esse vídeo foi muito visto, circulou muito pela internet. Essas interpretações do poema são verdadeiramente bonitas e talvez tenham feito desse poema (junto com outras leituras críticas dele) meu poema mais conhecido. Danielle Fonseca também fez um belíssimo vídeo com o meu poema “Para que poetas em tempos de terrorismos?” (https://www.youtube.com/watch?v=pAeHBkTBxBw). No filme “Meu nome é tumulto”, Paulo Sabino leu também o “Para que poetas em tempos de terrorismos?” em pleno Largo da Carioca (https://www.youtube.com/ 32

watch?v=v1-Oi9ec_GU). Roberto Corrêa dos Santos no auditório da Caixa Econômica fez uma belíssima conferência dramatizando textos meus e de Barthes (https://www.youtube.com/watch?v=kPrl527vT2s)... Essas coisas todas, e outras, essas apropriações artísticas são todas muito bonitas e me enchem de alegrias. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Sempre estou escrevendo alguma coisa. Como viver sem escrever (e sem fazer outras coisas)? No momento, escrevo o livro de ensaios mencionado, Espantografias: entre poesia e filosofia, que vai bem avançado, bem como escrevo ensaios sobre os e as poetas que compõem o projeto dos documentários, o Autobiografias poético-políticas. Desse projeto, já escrevi um ensaio intitulado “André Luiz Pinto: Prazer, esse sou ele” e “Tatiana Pequeno: uma poesia política do assombro”. Um livro de poemas vai se fazendo com calma, sem pressa nem título ainda, mas com alguns poemas. Em uma viagem que fiz há pouco mais de um ano à Tailândia, Vietnã e Camboja, tirei várias fotografias e, ao longo da viagem, fiz um longo poema, ainda inédito. Estou fazendo um vídeo com algumas dessas fotografias e um pedaço relativamente pequeno do poema. No momento, aguardo apenas um amigo músico me enviar o desenho sonoro que está compondo. Essa primeira versão terá uns 10 minutos, mas desejo que venha uma segunda, talvez, com o dobro do tempo, ou quase isso. Até agora, o título é: “Por amor (o inconsciente ótico)”. Fora isso, quero dar continuidade ao projeto dos documentários com poetas, que se tornou um desafio lindo para mim e um modo de pensar a poesia sem propriamente escrever, dando voz e imagem a outros e outras poetas. Já estou articulando para o próximo ser em torno do poema “Protesto”, escrito em 1956, do Carlos de Assumpção, tão pouco conhecido e hoje com 93 anos. Ele já aceitou por esses dias e espero que, tudo dando certo, o encontro ocorra agora em julho. Vamos torcer. A responsabilidade é imensa, pois é um poema magnífico e pouquíssimo conhecido. Gostaria que outras pessoas pudessem ter acesso a ele. Acho mesmo necessário que isso aconteça. Já o divulguei nas redes sociais, e muita gente gostou imensamente e compartilhou o poema postado. Em sua trajetória acadêmica e ensaística, você tem pesquisado a poesia contemporânea com amplitude e consistência. Livros como Que porra é essa – poesia? (Azougue, 2018) e apoesia contemporânea (Azougue, 2014) analisam a poesia brasileira contemporânea a partir do estudo de alguns dos seus efeitos, privilegiando as obras de poetas que refletem sobre a articulação entre poesia e contemporaneidade. Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo poética – brasileira contemporânea. O que você vê? Que autores você tem lido? Tenho lidado mesmo muito com poesia contemporânea; lido muito, escrito muito sobre ela, feito documentários, organizado dossiês, antologias, dado aulas, orientado dissertações e teses, participado de bancas, participado de leituras etc. A qualidade da poesia atual é imensa e sua variedade também enorme. Impossível a uma só pessoa, ou mesmo a muitas, dar conta de tudo o que vai ocorrendo. Esse ano fiz o projeto “Autobiografias poético-políticas”, que me levou a filmar poetas, como já mencionado. Ao mesmo tempo, penso em fazer um livro 33

sobre tais poetas que filmei. Já escrevi dois ensaios: “André Luiz Pinto: Prazer, esse sou ele” e “Tatiana Pequeno: uma poesia política do assombro”. Gostaria de conseguir escrever sobre os novos poemas, inéditos, da Bruna Mitrano e da Danielle Magalhães, os que escolhi para o filme. Sobre a Danielle, já escrevi anteriormente “Danielle Magalhães: um elogio ético e político da poesia”, publicado na revista portuguesa Caliban (jan. 2017) e, mais recentemente, um ensaio inédito, que vai compor o livro Espantografias: entre poesia e filosofia, a partir de seu poema “terror”, publicado por ela no livro Quando o céu cair. Gostaria, entretanto, de escrever sobre seus poemas inéditos, bem como sobre os inéditos da Bruna, presentes no documentário já mencionado, a partir do projeto que levou os filmes a serem feitos. Se vou conseguir, são outros quinhentos. É possível que não. Resumidamente, esse projeto tem dois vetores, no que toca a poesia feita no Rio de Janeiro: 1) uma passagem da poesia da Zona Sul para a Zona Norte, Zona Oeste ou periferia de modo geral, ou uma passagem da poesia realizada por embaixadores, funcionários públicos ou profissionais liberais economicamente favorecidos para uma classe média baixa, para pessoas pobres que moram na periferia e mesmo em favelas, levando ao que chamo de Geração Lula, a geração que pôde estudar graças ao projeto educacional inclusivo realizado pelos governos do PT – os documentários buscam flagrar o nascimento disso em poesia, indo de poetas anteriores até poetas da geração Lula, mas com esse fio condutor implícito, desde o primeiro, entre eles e elas; 2) poetas que usam elementos autobiográficos e familiares de tal modo que esse autobiográfico familiar já se coloca como político. Além disso, nesses últimos meses, li e procurei muita poesia, pois fui convidado por uma ótima revista de ampla circulação a fazer uma antologia. Para isso, reli muita coisa e li muita coisa nova em livros, revistas online, blogs, na internet de modo geral. Vi e ouvi muita coisa no Youtube também. Surpreendi-me muito com algumas descobertas. Alguns poetas negros que eu desconhecia que começaram suas obras ali na virada dos anos 1950 para os 1960, ou seja, enquanto a poesia concreta começava com seu projeto vanguardista, utópico, em diálogo com a propaganda, lidando com Brasília, pleiteando a morte do verso, com uma internacionalização do Brasil, tais poetas, que ficaram esquecidos para a história recente de nossa poesia, faziam uma poesia fortemente histórica. Não uma poesia que tinha Brasília como uma de suas referências, mas uma poesia que poderia ter sido feita pelos operários que trabalharam para construir Brasília, ou tendo-os, por exemplo, como sua referência. Para mim, tem um marco importantíssimo aí; como também na virada dos anos 1970 para os 1980 em que eles e outros se organizam nos Cadernos Negros e no grupo Quilombhoje. Para isso, Cuti, também poeta, foi uma figura determinante. Em termos da divulgação de seus trabalhos, eles não ultrapassam o círculo do movimento negro, não entrando na leitura prioritária e hegemônica, nem mesmo em outra não hegemônica ou mesmo contra-hegemônica de nossa história da poesia. Tirando antologias de poesia especificamente negra, em que antologias se encontra o poema “Protesto”, por exemplo? O poema “Protesto”, de Carlos de Assumpção, foi uma revelação para mim; por sua grandeza incomensurável, ele deveria ser um marco histórico de nossa poesia e de nossa sociedade. É preciso com urgência recuperar esse poema e esse poeta. Eu o incluí em tal antologia e estou combinando com o seu Carlos de Assumpção de filmá-lo em julho, conversando com ele sobre o respectivo poema, a época em que ele foi feito (1956), 34

a época em que ele foi divulgado (1958) e os motivos pelos quais ele só chegou a livro nos anos 1980. Poemas como “Disfarce”, de Oswaldo Camargo, e “Banzo”, de Eduardo de Oliveira, me chamaram imensamente atenção, ainda que não tenham entrado na antologia, pois, infelizmente, eu já a tinha fechado quando cheguei a eles; quer dizer, o Eduardo de Oliveira já é falecido, mas o Oswaldo Camargo, com “Disfarce”, eu o teria dado um jeito de incluir. Nesse sentido de ter chegado tardiamente, ao menos para o tempo de tal antologia, que sairá em agosto, gostei muito de ter conhecido a poesia de Elizeu Braga, de Rondônia, com seu caráter altamente performático da poesia oral, bem como as minas dos slams (duas delas estão na antologia). Há uma força política da poesia muito grande aí. Tem algo muito forte acontecendo na cena da poesia oral pelo Brasil todo. A poesia das mulheres jovens hoje é um caminho totalmente incontornável. Fiz questão de mencionar esses nomes que, salvo Carlos de Assumpção com seu poema magnífico, não chegaram ao meu conhecimento a tempo de entrarem na antologia. Tento assim divulgá-los minimamente por aqui; e seguirei tentando. Quanto aos que aparecerão na antologia, poderão ver em agosto, o que evidenciará um pouco do que tenho lido. Tenho lido muito também poesia e filosofia gregas antigas para o livro que faço como resultado de minha pesquisa no CNPq e na FAPERJ, o já mencionado “Espantografias: entre poesia e filosofia”. Em Que porra é essa – poesia? (Azougue, 2018), lê-se que o discurso corrente tenta convencer o público da “inocuidade maciça da escrita poética”. No Brasil, livros de poesia têm um alcance bastante limitado em termos de público. Como você avalia essa questão? O pior é que, durante um bom tempo, houve essa posição provinda de certa crítica também, ainda que uma crítica, apesar de um pouco midiática e com certa ressonância acadêmica, totalmente desinteressante, autocentrada, arrogante, egoica, cega para a poesia contemporânea, ou melhor, míope para ela. A poesia talvez não tenha muito como mudar seu alcance público. A poesia escapa a toda a máquina econômica, capitalista, liberal, ultraliberal, midiática..., a poesia escapa a toda e qualquer máquina de poder, retirando, também disso, seu vigor, sua intensidade. Mesmo que a internet tenha possibilitado um fluxo bem maior no trânsito entre poemas, poetas, críticos, coletivos, performers, oficineiros de poesia e certo grupo, ainda restrito, de leitores, parece-me que, para a poesia ter um alcance maior, seria necessário um empenho público efetivo e eficaz, o que não há a menor chance de acontecer. Apesar de tudo isso, a poesia é uma das coisas mais radicalmente necessárias entre todas as que existem, é decisivamente preciso que haja a poesia, que ela seja feita, criada, que ela esteja por aqui e por todos os lugares como um amplo arquivo histórico e atual disponível para quem ainda quer e pode se espantar com a vida, com os acontecimentos, com os afetos, com o pensamento, com a política, para quem ainda lida com o mundo via seus impasses, para quem ainda quer sentir e pensar o mundo tendo a alteridade e os excluídos dos poderes e por eles aniquilados como quem tem a maior importância, para quem se recusa a ficar anestesiado e governado pelas mídias, pela propaganda, pelos poderes econômicos, pelos fascismos, pelos fundamentalismos, pela necrofilia, pela necrocracia, pelo alocídio etc., oferendo, ao mesmo tempo, outras possibilidades. Nesse ponto, a universidade pública tem um papel fundamental a 35

cumprir, como, com todas as dificuldades, vem, de algum modo, cumprindo. Mas é preciso mais, bem mais. A poesia deveria fazer parte da formação da pessoa, do cidadão, ser lida em casa, ser dada na escola, ser encontrada nas ruas, estar no meio do caminho para que qualquer um se esbarre com ela... Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, seja para promover a própria obra ou a dos pares, seja para engajar-se politicamente. Você também é bastante ativo nas redes sociais, escrevendo em verso e em prosa sobre temas diversos e fazendo postagens frequentes sobre literatura e política, divulgando lançamentos de livros ou denunciando tragédias ambientais como a de Mariana. Como vê essa face do autor contemporâneo? O que mudou na literatura após o advento da internet? Nas redes sociais, lemos novos poemas de poetas atuais; foi assim que li, pela primeira vez, alguns dos novos poemas, inéditos, entre outros, de Tatiana Pequeno e Bruna Mitrano, que me chamaram imensamente a atenção e estão nos documentários, bem como inúmeros outros poemas de poetas de todo o Brasil. Os filmes, muito mais vistos do que meus ensaios são lidos, também são colocados nelas. Nelas, divulgo poesia que acho relevante e que me dá vontade de divulgar. Nela, nascem muitos dos meus poemas ou postemas (poemas-postagens-pós-poemas), que são muito mais lidos nas redes do que em livros. Você menciona o caso de Mariana. Sim, eu havia um dia postado sobre Mariana. Antes ou depois, sobre o atentado na boate de Paris. Antes ou depois, sobre um acontecimento político ou outro. Fui me dando conta de que tais postagens poderiam se juntar e começar a virar um poema. Fui juntando-as, elaborando-as, trabalhando-as, acrescentando coisas, mais coisas... Assim nasceu o poema “Para que poetas em tempos de terrorismos?”. E diversos outros. As postagens nascem como comentários, como poemas ou como postemas, vão virando aos poucos poemas que vão sendo trabalhados para além das próprias postagens ou ali mesmo no espaço de composição delas. Pela internet, temos acessos a poemas e livros de todo o mundo, a vídeos de performances de poemas, palestras etc.; pelas redes, divulgamos vídeos de poetas. Essa geração mais nova, que chamo de Geração Lula, também é a geração da internet. Eu gostaria de ler algum estudo entre os governos PT e a internet. Deve haver tal estudo, mas não fui ainda atrás deles para ver as correlações existentes. Certamente, poetas mais jovens se beneficiaram imensamente dessas duas fontes, da educação inclusiva dos governos PT e da internet. Eu me informo hoje também pelas redes sociais. Salvo raras exceções, não vou diretamente aos jornais, mas vou às redes sociais e a partir dali vou lendo coisas, matérias de jornais, poemas, textos sobre política e outras coisas que sejam do meu interesse. Na internet tem muito a ser lido, muita coisa, caso saiba procurar o que de fato interessa. Com Flavia Trocoli, organizei um número de uma revista e de um periódico acadêmico sobre Kafka, com textos de Agamben, Butler, Stephanes Moses, Filipe Pereirinha, Michael Löwy, Carla Rodrigues, Piero Eyben, Claude le Manchec, Ricardo Timm de Souza e Marcio Selligmann em pouquíssimo tempo, em menos de um dia, poderia dizer. Os contatos são muito rápidos de serem feitos, favorecendo muita coisa, bem como as trocas de modo geral. Hoje, ajuda muito se o poeta e o crítico estão de algum modo ligados nas redes sociais. Claro que nada disso é obrigatório, mas ajuda, sendo também um modo favorecedor de divulgação e de intervenção 36

de poesia e de política. Outro dia conheci os vídeos de Elizeu Braga, postei, você mesmo, Vitor, me mandou uma entrevista que havia feito com ele, me colocou em contato com ele e, ao mesmo tempo, me convidou para essa conversa. Tudo quase imediatamente. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos o que você chamou, em Kafka poeta (Azougue, 2015), de dimensão kafkiana da vida: “uma atmosfera em que cotidiano e pesadelo se misturam, em que o desconforto absoluto com a burocracia em seus excessos lógicos e racionais, mas sem fundamento nem finalidade, predomina, subjugando ao extremo cada um de nós, ao não querer nos deixar qualquer alternativa para ela, ao querer, parafraseando o próprio escritor, ter tudo em seu poder”. Essa onda reacionária que vemos despontar traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos, e busca reduzir o outro – especialmente as minorias – à insignificância, cerceando a sua potência: “terrorista, hoje, é o outro”, lemos em Para que poetas em tempos de terrorismos?. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: de onde veio tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? O que pode a poesia contra a barbárie? Outro dia, no para mim comovente Democracia em vertigem, filme de Petra Costa, vi e escutei Dilma Rousseff dizer que era Joseph K., mas com advogado. Quando a presidenta, provada inocente por todas as instâncias posteriores que investigaram o caso, foi deposta à força por essa quadrilha que inclui a maior parte do Congresso, empresários, militares, a grande mídia e o STF, em um grande acordo nacional, ela terminou seu discurso de despedida citando Maiakóvski. Não é pouca coisa isso. Pensem bem – não é pouca coisa isso. Uma presidenta que, injustiçada, se despede citando Maiakóvski e depois menciona Kafka não é pouca coisa. Alguém precisa escrever sobre isso, pensando esses vínculos, essas citações literário-políticas no contexto em que se inscreveram. Ninguém ficou convencido de Dilma ter cometido qualquer infração, muito menos merecedora de impeachment. Antes, ficamos convencidos de que Dilma talvez fosse das poucas pessoas efetivamente honestas na política, dessas que se recusam a sujar as mãos, sendo ainda uma mulher, tendo sido exatamente por isso que a depuseram. Quando se depõe uma presidenta sem motivos justos, por desfaçatez criminosa, para bloquearem a Lava Jato apoderando-se dela e por misoginia, tudo passa a ser permitido. Naquele fatídico 17 de abril, o dia em que testemunhamos o pior do Brasil, muito pior do que o pior que podíamos imaginar, o atual presidente do Brasil, o então deputado Jair Bolsonaro, aliando-se a Eduardo Cunha (que começou o processo de impeachment por vingança ao PT por três de seus deputados terem votado contra sua inocência no Conselho de Ética), votou a favor do impeachment, defendendo publicamente, com um aparato midiático criado para publicizar ao máximo o impeachment, ninguém menos do que o coronel Ustra, o “pavor de Dilma Rousseff”, ou seja, o torturador da presidenta em tempos ditatoriais. Ele ter saído dali em liberdade mostra o erro de nossa muito precária democracia, que não limita aqueles que a querem destruir. Houve um conluio e uma permissividade para essa destruição. A grande mídia criou o ódio ao PT, Lula foi injustamente preso e impossibilitado de concorrer à presidência, Haddad (um gentle37

man honestíssimo e repleto dos melhores desejos, com posições de centro-esquerda com ênfase na educação) foi tratado pela grande mídia como tão extremo quanto Bolsonaro, de quem, entretanto, numa estratégia de amaciante de roupas, nunca foi dito ser de extrema-direita (contrariamente a toda mídia internacional)... Ou seja, o que estamos vivendo é decorrente da criação desse acordo nacional, que incluiu a grande mídia, mesmo a que hoje se opõe a Bolsonaro. Tudo isso fez com que perdêssemos qualquer limite, que o ilimitado de tudo poder se tornasse possível e, com ele, a crueldade maior. Bolsonaro é o deslimite, é a necrocracia, é o alocídio, é a pulsão de morte, a destruição, o aniquilamento de qualquer diferença no poder maior do país. Saliento aqui que não estou falando por metáforas, mas literalmente. Hoje mesmo, 36 kg. de pasta de cocaína foram encontrados no avião presidencial, em escala na Espanha. Com Bolsonaro, com as fake news da grande mídia e do WhatsApp e com o grande acordo nacional, veio junto o então desconhecido Witzel, que atira com snipers de helicóptero sobre favelas, que diz querer, se não fosse a ONU, jogar mísseis em favelas para matar traficantes e quem mais, e tantos outros. Pergunto-me porque Witzel não diz querer jogar míssel no tal avião presidencial pego com 39kg de cocaína hoje. Ou seja, a grande mídia, com o tal acordo nacional, gerou isso tudo, a Globo, é preciso dizer, gerou isso tudo, com seus aliados, incluindo a suposta Justiça, incluindo Sergio Moro, um dos maiores destruidores hoje do nosso país. Os vazamentos do The Intercept estão provando isso, com provas que Sergio Moro nunca deu para prender Lula. Está claro que o objetivo da Lava Jato se tornou prender Lula e tentar acabar com o PT. No Brasil, essas instâncias de poder criam a opinião pública, que as segue. Foi assim com a ditadura, foi assim com Collor, foi assim com o antipetismo, foi assim com Moro, a quem antes das eleições Bolsonaro prometeu um ministério e vaga no Supremo... Alinhada à força incomensurável do capital, a força centralizada da mídia no Brasil é infinitamente maior do que a da educação. Se você destitui uma presidenta sem motivo, prende o maior presidente que o país já teve sem motivo justo, diz que uma pessoa extremamente honrada e brilhante (Haddad) é igual a um fascínora (Bolsonaro), você permite tudo, você dá como exemplo o mais nefasto, estimulando-o, autorizando-o. Vejam o aumento do número de mulheres assassinadas nos primeiros meses do governo Bolsonaro; vejam o número de índios assassinados nos primeiros meses do governo Bolsonaro; vejam o número de lideranças sociais e políticas assassinadas no início do governo Bolsonaro; vejam quem matou Marielle Franco... é só ver, está tudo aí, evidenciado, sem qualquer pudor. Acho que um governo tem a função de, melhorando a vida das pessoas mais necessitadas, dando atenção a elas, levar as vidas em uma direção de menos fome, de menos sofrimento, de mais inclusão econômica, social, educacional, cultural.... O governo PT conduzia a população nessa direção e, com isso, conseguia direcionar o país para algo melhor do que sempre havia sido. No Brasil, isso não é suportado pelas elites, que deram o golpe, tirando do poder um partido que há décadas não conseguiam vencer nas eleições. Desde então, esperado ou não, o pior foi fabricado e, além de fabricado, autorizado. É o que vivemos hoje. Mesmo que tente a todo custo resguardar alguma esperança, não espero muito do futuro. A curto prazo, não. Nem sei se a médio prazo. Sendo inteiramente impotente, a poesia nada pode contra a barbárie, a poesia não pode absolutamente nada contra a barbárie, a poesia é impotente quanto à barbárie, senão ser um 38

arquivo disponível a todos e a cada momento de posições que querem desarmar a barbárie, em nome de um mundo que favoreça as alteridades, as diferenças, os impotentes, os matáveis, os que podem ser presos, os subjugados, os miseráveis, os silvas, todos que se encontram fora da lógica dos poderes soberanos. Isso ela pode. Só isso. Nada mais do que isso.

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Aline Bei Nasceu em São Paulo (SP), em 1987. Vive em São Paulo (SP). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2019.

O peso do pássaro morto (Editora Nós, 2017) tem um estilo incomum: romance estruturado em forma de versos brancos e livres. Micheliny Verunschk, na orelha do livro, afirma: “Dona de uma narrativa que mescla densidade e leveza, a prosa de Aline é simultaneamente claridade de vidro e ponta aguda de faca”. Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Tem muito mistério no meu processo criativo. Sou mais instintiva do que técnica e quando escrevi o Pássaro, com esse estilo que antecede e ultrapassa o livro, foi como me jogar no abismo, eu não imaginava o que poderia acontecer. A única coisa que defini foi: quero escrever um livro sobre perdas. E quero uma mulher como protagonista, também sabia que fatiaria a história pelas idades. De resto, fui descobrindo na página. Na dedicatória do meu exemplar de O peso do pássaro morto, você deseja que meu “encanto com este Pássaro não respeite o tempo do relógio”. A relação com o tempo é importante no livro, que conta, em primeira pessoa, a trajetória de uma mulher dos 8 aos 52 anos. Como você define a sua trajetória literária em relação ao tempo do relógio? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Houve, sim. Tive dois começos na Literatura. No primeiro eu era criança, e decidi escrever um livro de poemas para salvar meu pai de uma crise financeira, não sei o que me deu, de novo o mistério. O segundo foi na faculdade de Letras, eu era do centro acadêmico e comecei a produzir textos para a revista do curso. A partir disso eu me senti escritora. Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher, o que tem gerado uma série de dramas e tragédias pessoais e sociais, algumas delas tematizadas em sua ficção – como o estupro sofrido pela protagonista aos 17 anos de idade. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? Percebo especialmente quando publico, o livro ou um texto, e recebo o feedback de outras mulheres: as fichas vão caindo a partir dessa experiência de troca com as leitoras. Muitas escritoras têm mantido atividade constante na internet, seja para promover a própria obra, seja para expressar engajamento político. Antes da publicação de O peso do pássaro morto, você divulgou continuamente sua produção poética em blog. A divulgação de textos nesse espaço influenciou em alguma medida seu processo criativo? Não. Eu publico para ir formando meu núcleo de leitores. 40

Como você avalia a recepção de sua obra? Que papel as redes sociais têm no processo de reconhecimento de seu trabalho? Em que medida o Prêmio TOCA (2017) e o Prêmio São Paulo de Literatura (2018) influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Tem sido positiva, mesmo quando é negativa. Gosto muito de ler e ouvir sobre a experiência de leitura das pessoas, o livro vai ganhando tantas camadas. Quanto aos prêmios, sou muito grata. Mas procuro não pensar nisso quando estou produzindo. Quais os principais desafios para a edição e recepção de novos escritores no Brasil de hoje? Publicar é só o primeiro passo. Depois que o livro está no mercado, virão novos desafios que exigirão uma dedicação e uma resiliência do autor parecida com a de escrever. Para mim, é como um filho. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? É difícil porque estou no turbilhão. Isso é uma pergunta para ser respondida daqui alguns anos, é o tempo que faz uma obra. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Gosto muito quando a poesia vai para a rua, em saraus e slams. Acho que nesses eventos ela ganha a potência da música. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Estou escrevendo meu segundo. Tenho também um projeto mensal no Teatro Cemitério de Automóveis chamado Jazz Poetry, são leituras de textos autorais ao som de jazz. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? A monstruosidade estava guardada? Para mim, ela sempre esteve por toda parte. Me diz, quando o mundo foi um lugar menos cruel de se viver?

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Aline Dias Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES), em 1988. Vive em Vila Velha (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em janeiro de 2012. Respostas revistas pela autora em novembro de 2018.

Quem és tu? De onde vens? Leão com ascendente em Áries e lua em Touro. Isso significa que eu levo em conta o posicionamento dos astros no momento do meu nascimento e acho que isso influencia minha personalidade explosiva (Áries) e egocêntrica (Leão), mas dulcíssima (Touro). E, aliás, quem és tu é muito complicado. Sou filha do @ zeducoelho e fui da “rádia” e sou também um monte de coisas, ao mesmo tempo em que eu acho um absurdo ter que ser obrigatoriamente uma coisa só. E eu venho de Cachoeiro de Itapemirim, modéstia à parte. Cada escritora possui um modus operandi, por assim dizer... Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Ontem, e com 8 anos de idade. É porque não tem um me perceber escritora inaugural. Cada dia a gente inaugura um dia… Não tem um processo só, também. A coisa começa e termina, se reinventa. O processo se reinventa. Tem um processo pra cada texto, tem um jeito novo que é velho, um jeito velho que é novo, o canibalismo cotidiano, as trocas. Eu não escrevo hoje como escrevia em 2012. Eu não tenho hoje as prioridades que tinha quando lancei o Vermelho, mas talvez tenha as mesmas de quando ganhei um concurso de redação falando sobre a importância do café em 1997. Ou talvez as prioridades venham de antes. Eu sempre gostei de observar, de ouvir histórias, de contar histórias, de me aprofundar. Eu me vejo mais contadora de história do que criativa. Mais fazedora de pontes. Invento, sim. Gosto de narrativa e criá-la me é muito natural, mas para mim são caminhos. Tipos de caminhos que a gente vai pisando. Ou talvez o meu processo de escrita seja como o meu processo de alimentação (são duas necessidades fisiológicas). Por que você escolheu a ficção erótica como gênero literário para o seu romance de estreia? Foi a ficção erótica que me escolheu. Eu sou só um canal. As histórias vieram na cabeça e eu tinha que escrever, sem muita escolha. Essas coisas entalam se a gente não escreve. Aí é o terror! Mas a coisa de ser o de estreia foi uma coisa que eu pesei muito. A primeira versão de Vermelho foi escrita entre 2007 e 2008 e eu demorei a achar que aquilo ali dava um livro. Eu achava que era um conto. Depois eu fui revisando, cortando coisa, acrescentando coisas, corrigindo, tirando passagens óbvias... O Saulo, da Cousa, leu e falou que achava que dava para publicar. Eu falei para ele que achava meio estranho meu primeiro livro ser um livro que parece ter sido escrito por um homem, sendo eu mulher. Fiquei com medo da reação das pessoas e de a minha talvez carreira de escritora ficar marcada de cara e eu ser 42

sempre “escritora de texto erótico”, porque não é só isso que eu escrevo. E aí foi uma escolha mesmo. Eu poderia ter juntado vários contos, várias crônicas, montado primeiro um livro-coletânea-de-mim-mesma. Achei que as pessoas iam gostar de ler mais isso do que as outras coisas que eu escrevi. E aí se tem sexo ou não tem sexo na história, é conseqüência da existência do Giordano. Porque não dava pra contar essa história sem o erotismo.     Na verdade eu nem escolhi, foi o acaso quem fez isso por mim. Eu só aceitei.   O narrador de Vermelho (Cousa, 2011) diz que se o protagonista Giordano não escrevesse sobre si mesmo não tinha mais sobre o que escrever. E no início do livro aparece uma personagem sobre a qual não se sabe se o nome é Aline ou Alice. A história é baseada em experiências pessoais? Não. Mas alguns personagens são baseados em pessoas que eu conheço. Eu botei meu nome na história porque enquanto escrevia não conseguia me enxergar ali de jeito nenhum e queria me colocar mais. Agora eu até acho que era e que o Giordano era mais eu com meus medos do que todas as mulheres do livro. O livro Além das Pernas (Pedregulho, 2015) apresenta 26 contos sobre mulheres e suas vidas amorosas e sexuais. Explique essa passagem de um protagonista masculino para uma série de vozes femininas. Quando a gente vai criando coragem, a gente vai sendo mais verdadeira com a gente mesma. Ou quando a gente é mais verdadeira consigo, a gente cria coragem. Foi só coragem. Veja, você lê muito mais protagonistas homens do que mulheres (considerando lei da oferta), então me parece que eu entendia que histórias masculinas são universais, e femininas não tanto. Mas isso é uma besteira. Além das Pernas teve prefácio de Bernadette Lyra e foi leitura obrigatória em disciplina oferecida pela professora Maria Amélia Dalvi no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFES. Como você avalia a recepção de sua obra? A Bernadette e a Maria Amélia são duas pessoas muito generosas. Eu vejo muita gente comentando “Aline, você escreveu isso pensando em mim”, e isso é a melhor parte. Umas coisas muito íntimas falando com tanta gente. Eu gosto que as pessoas se apropriem dos textos, e gosto de me apropriar dos textos dos outros. Acredito na escrita enquanto vínculo – ela me salvou da solidão. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Escritoras maravilhosas, mas a maior parte ainda muito preocupada mais com o próprio rabo do que com ser legal. Ler precisa ser legal para a gente ter leitor. Eu vejo muito grupinho de um elogiando o outro e acho isso uma grande babaquice. Acho que precisamos democratizar os espaços literários, acho que o direito ao livro tem que ser universal. Que o direito ao discurso tem que ser universal. Para mim é muito fácil, eu sou escritora de classe média que sempre teve comida na mesa, estudei nas melhores escolas, convivi a maior parte da minha 43

vida com intelectuais, como eu. Mas se eu falo só com intelectuais eu não falo com ninguém. O que eu vejo é muita reclamação e pouco pé no chão. Pé no chão literal, eu digo. Você é bastante ativa nas redes sociais e escreve no blog Samba pras Moças. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? Não sei. Eu comecei a publicar fanfiction na internet com 14 anos, antes disso eu nem tinha olho pra reparar o que era a literatura sem internet. Posso fazer um discurso sobre a história e encher de blablabla, mas seria desonesto. Não tenho vivência. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil Pessimismo e covardia. Você está escrevendo algum livro no momento? Sempre. E sempre mais de um, e sempre alguma outra ideia na cabeça.

Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Não estava guardada, não. Só não estava sendo vista por homens brancos de classe média. Agora, pelo menos, as coisas estão expostas pra todo mundo e eu não pareço mais maluca falando sozinha. Estou inclusive aliviada. Alguma consideração final? As pessoas gostam de ler, elas só precisam achar coisas que falem com elas. Esse monopólio branco hétero cristão já deu. Livros sobre escritores frustrados, já deu também (inclusive o meu).

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Aline Prúcoli Nasceu em Vila Velha (ES), em 1984. Vive em Rive, distrito de Alegre (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2019.

Paulo Roberto Sodré, no posfácio de Pustulâncias: menina bruta (Cousa, 2017), avalia que o modus operandi subliminar do livro inclui a alegoria, a “fernandopessoana concepção do fingimento”, a paródia, a ironia, o deslocamento e a “subversão dos horizontes de expectativas do leitor”. Como você recebe essa leitura? Que opções formais e temáticas norteiam seu projeto literário? estou de acordo com a afirmativa feita por Sodré, uma vez que, em meus livros, o jogo entre algumas pessoas do meu discurso (eu, tu, ela – ou, ainda, enila, neila, ilena, etc.) se faz bastante notório. no entanto, enquanto em uma perspectiva “fernandopessoana” devemos pensar a produção de personas a partir da ideia de heterônimos (diferentes biografias) e mesmo da ideia de ortônimo (o Fernando Pessoa em si, se é que isso existe), em minha escrita o que se desenvolve, se me permitem o neologismo conceitual, é uma espécie de “ortoheteronomia”, isto é, ao mesmo tempo em que partem de minha primeira pessoa, as vozes registradas em meus livros desdobram-se como flagrantes de outras possibilidades de existência bio/gráficas. quanto às “opções formais e temáticas que norteiam meu projeto literário”, eu diria que não há projeto ou algo do tipo. a escrita sempre se faz livremente e quase que sem revisões. nesse sentido, um possível tema, ou temas afins (o humano e suas questões mais dolorosas) também se faz notar na própria estrutura, sempre irregular, fragmentada, caótica, tal como sou, e tal como parece ser o humano em suas dimensões político-sociais. No texto da orelha de Pustulâncias, sem identificação de autoria, lê-se que o livro é a prova de que Aline nunca desistiu, ainda que muitos torcessem contra: “tudo começou com um não, mas há de terminar com Amor”. Seu segundo livro, Temporária (Cousa, 2018), que, pelo formato, também pode ser utilizado como um calendário, brinca com a passagem do tempo. Como você define a sua trajetória literária, considerando o tempo cronológico e os obstáculos? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? eu não saberia definir a minha trajetória literária, já que nunca tive a pretensão de ser escritora e já que os livros foram acontecendo sem muita dedicação de minha parte. o primeiro livro nasceu como um susto. era, inicialmente, apenas um registro angustiado de quem precisa organizar algo dentro de si para compreender melhor os seus próprios fantasmas e a sua própria violência. em nossa sociedade, o “não” está para todos os que nascem nas periferias e em condições de subalternidade, mas há quem queira mudar essa realidade e eu me considero como parte desse conjunto de pessoas que quer dar a essas “maiorias excluídas” a oportunidade de começar com um “sim”, ou, enquanto isso ainda não for possível, tentar, ao menos, ajudar a construir um horizonte que proporcione experiências 45

menos degradantes e desumanas a essas pessoas. ainda acho que talvez eu faça mais atuando como professora, não sei. afinal, a difusão da literatura, assim como de outras artes, acontece sempre a duras penas em nosso Estado e também em nível nacional. quanto ao tempo, acredito que o título do meu segundo livro resuma bem o modo como me sinto diante da cronologia, da aparente linearidade temporal: sou temporária. por mais que eu tente, devido às demandas do trabalho, por exemplo, sinto dificuldade de me organizar a partir do calendário convencional em que os dias se sucedem de um início arbitrário para um ponto final também arbitrário. há em meu modus operandi uma irregularidade e um apreço muito forte pelo acaso. e eu gosto muito de viver a sensação de que estou fora do tempo, fora do lugar, sempre do lado de fora de qualquer tipo de convenção arbitrária e limitadora. quanto aos obstáculos, são meus companheiros. (rs) eles se fazem notar de várias maneiras desde que comecei a escrever com alguma regularidade (em 2013), a começar pela própria falta de tempo “ocioso” que eu gostaria de ter para me dedicar realmente à escrita. há ainda a dificuldade com relação às plataformas de registro textual – o “word”, por exemplo, que não admite com facilidade o registro de estruturas mais “dinâmicas”, plásticas. inicialmente, eu via tudo isso como obstáculo sim, porém, hoje entendo que (e)laborar nas/as “brechas” de tempo que restam, quando sobra alguma disposição, considerando e respeitando cada frase que chega como um atropelo, evitando as revisões, alterações e cortes, bem...talvez tudo isso seja a marca da minha escrita. Neila, o nome da narradora de Pustulâncias, é um anagrama do seu nome. Paulo Roberto Sodré, no posfácio do livro, avalia que seu texto propõe um “jogo com autoficção posta de ponta cabeça”. Em Temporária, há um jogo entre as três pessoas do seu discurso: eu, tu, ela. Você poderia nos falar acerca do que significa a presença da autoficção e/ou da figura autoral na sua literatura? Por que embaralhar as fronteiras da ficção e da realidade? Como você lida com as personae que se mesclam e alternam na sua escrita? acredito que toda escrita seja, em alguma medida, autoficcional. a palavra “autoficção”, para mim, é muitíssimo misteriosa, pois eu nunca consegui pensar a realidade e a ficção como espaços separados ou distintos. nesse sentido, a única resposta possível para a pergunta “por que embaralhar as fronteiras entre ficção e realidade?” é: porque nunca consegui identificar tais fronteiras. além disso, o termo “realidade” também me parece escorregadio, vago e, por vezes, impossível. daí minha afinidade com Alain Badiou, que afirma, em seu livro Em Busca do Real Perdido, que “o Real nunca é encontrado, descoberto, inventado, mas sempre fonte de uma imposição, figura de uma lei de bronze.” as palavras “real” ou “realidade”, usadas em oposição às palavras “ficção” ou “mentira”, sempre fizeram validar “o caráter intimidante” do Real. daí o menosprezo que, por oposição, direcionamos à ficção. em se tratando da minha escrita, a ficção (o que está nas páginas?) e o real (o que está fora das páginas?) se confundem completamente e têm a mesma importância para mim. Historicamente, nota-se o silenciamento da voz e a repressão do corpo da mulher. Suas obras, especialmente o livro-objeto Anatomia (Cousa, 2018), 46

expõem o desejo feminino. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? o machismo afeta a minha produção porque me afeta. minha escrita torna-se reflexo do que experimento “do lado de fora” dos meus livros. a mulher que goza e que fala abertamente de seu gozo é uma mulher para sempre maculada. historicamente, as mulheres que lidavam com os mistérios do corpo e da ânima, as mulheres que “cavalgavam” durante o ato sexual (tal como Lilith), forçando o homem a se retirar de seu “lugar” de dominação sempre foram julgadas, taxadas de perigosas, impuras e “masculinas” no sentido da não-passividade, e, portanto, sempre foram apontadas como mulheres diabólicas ou mulheres não dignas de amor (ainda que consideremos apenas o amor romântico). daí a importância de afirmamos que o amor está também no prazer, no ato de permitir que o outro seja livre para gozar como quiser, para ser o que quiser. o anatomia é um gesto de amor, antes de mais nada. um convite ao ir e vir dos corpos em gozo. o machismo, que agora tem se manifestado também em tons azul-viagra-patriarcal e rosa-goiaba-submissa, é o inquisidor de nossa geração, pois continua a vigiar, a punir e a odiar o gozo do outro (esse poderoso gesto de comunhão). acho que, no limite, o que se pretende evitar ao impedir o gozo (especialmente o das mulheres) é a união, o primeiro passo para a formação de uma coletividade, de um comunismo. não sei, posso estar enganada, mas talvez a insistência na manutenção do individualismo redundantemente egoísta seja um novo formato da tão antiga instituição prisional. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? acabo de “finalizar” mais um livro, cuja linguagem também apresenta algumas inovações (caso consideremos o que venho produzindo). e esse é um livro-álbum de foto/grafias. há imagens no sentido dicionarizado do termo (as fotografias), e há pequenos textos. porém, antes de mais nada, em sua unidade, acho que seria mais correto dizer que há ali um trabalho com a plasticidade das linguagens. Como você avalia a recepção de sua obra? os três livros têm sido muito bem recebidos. imaginei que o primeiro, especialmente, pela “vulgaridade” da escrita, fosse ser criticado negativamente, porém, até então, os comentários são unânimes quanto aos elogios que expressam. o segundo, o temporária, para além do conteúdo, e assim como o anatomia, tem sido elogiado pelo formato. porém, sinto que a produção artística de Vitória tem muita dificuldade de avançar para além das divisas do Estado, e mesmo da ilha. ainda são poucas as formas de se fazer essa travessia, embora o potencial dos artistas de Vitória – e do Espírito Santo –, na minha opinião, seja enorme. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? sinto um alento muito grande por um lado, e, por outro, uma certa angústia. nutro forte apreço pela produção contemporânea brasileira (e estrangeira), pois encontro escritos que em nada “perdem” para a produção canônica no 47

sentido da qualidade do aspecto estético-estrutural dos textos, bem como no da construção de críticas contundentes e muito corajosas. porém, é bastante evidente que avançamos para um momento histórico de total falta de incentivo à leitura e de um desmonte da estrutura educacional (que abarca tanto o nível básico quanto o superior), a começar pela desvalorização da cultura e pela precarização dos sistemas educacionais, por meio da quase que total falta de investimentos em projetos capazes de movimentar os meios de produção e difusão artísticos. Quais são os principais desafios para a edição e a recepção de novos escritores no Brasil de hoje? Você considera que as elites políticas e econômicas reprimem a difusão da literatura e de outras artes? acho que em minha resposta anterior já respondo a essa pergunta em parte. sim, acho que há um mecanismo até bastante explícito (basta que se queira enxergar) criado para dificultar a difusão da literatura e de outras artes. a elite (política) sabe do poder transformador que a arte exerce sobre um indivíduo e, não à toa, combate suas manifestações como se estivesse combatendo um verdadeiro inimigo (e está certa por pensar assim). afinal, nada como manter indivíduos alienados, que mal compreendem um discurso político de alguns minutos proferido em um Jornal Nacional da vida, por exemplo. nada como manter os indivíduos encarcerados em suas redes sociais para que possam continuar a realizar o serviço voluntário de compartilhamento de clichês, incoerências e mensagens sem qualquer tipo de criticidade. essa massa de manobra é diariamente treinada para odiar a arte, odiar a leitura e, agora, também, para odiar e criminalizar os professores. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? acredito que a origem do racismo, do fascismo, da misoginia, da homofobia (do preconceito de maneira geral) seja a ignorância. a sensação de que tudo estava trancado a sete chaves em algum lugar ou momento da História e de que agora veio à tona, surpreendendo a todos, em minha opinião, é ilusória. acho que se há ignorância, há perversão, medo, violência. afinal, o que foi o Holocausto? o que foi a caça às “bruxas”? o que foi o extermínio de tantas comunidades indígenas? o que foi o apartheid e todo o processo absurdo de escravidão dos homens e mulheres do continente africano? compreende? monstruosidades sempre aconteceram, porque sempre existiu muita ignorância. e, em se tratando do Brasil, hoje, se há um Governo e uma política que, por um lado, autorizam e estimulam o preconceito e a violência e, por outro, inviabilizam o combate à ignorância (ao não investir em políticas públicas que visem a efetiva melhoria da qualidade do ensino), o resultado é o que vemos hoje: a crescente onda de violência que assola a todos nós. eu sinceramente não saberia identificar a circunstância em que essa onda nasceu, mas acredito que o ódio (ódio às pequenas conquistas alcançadas por uma camada e por alguns grupos da população, bem como o medo de perder toda uma 48

estrutura secular de privilégios) é o que alimenta essa onda de violência. ainda que eu saiba do poder de destruição que uma onda desse tipo tem, conto, com algum resto de esperança, que, assim como outras, essa onda também perca força gradativamente e simplesmente desapareça.

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Amarildo João Espíndola Nasceu em em Guaratuba (PR). Vive em Brasília (DF). Entrevista concedida a Vitor Cei em setembro de 2018. Publicada na RE-UNIR, v. 5, n. 2, 2018.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida como língua de uso do povo surdo do Brasil com a promulgação da Lei de número 10.436, de 24 de Abril de 2002. Passados 16 anos, você percebe alguma mudança significativa na postura dos estudantes e profissionais em relação ao interesse pelo estudo de Libras? Esse processo de reconhecimento da Libras como língua foi resultado de um movimento político nacional da Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS) e das associações de surdos brasileiras em favor do reconhecimento e da valorização em lei. Apesar de existir língua de sinais desde que existem surdos, somente a partir da década de 60 do século passado ela passa a ser estudada do ponto de vista científico. Aqui no Brasil a Libras já era falada nas comunidades surdas, mas ainda não possuía um aparato legal. Após o reconhecimento em lei, as consequências têm sido cada vez mais positivas. Atualmente temos o Decreto 5626/05, que regulamenta a lei de Libras, e o artigo referente à acessibilidade na comunicação de pessoas surdas. Todo este aparato legislativo contribui significativamente para a institucionalização da Libras em universidades, escolas e órgãos públicos, de maneir geral. Dessa forma, cada dia mais se percebe um crescente interesse de estudantes e profissionais pela aprendizagem dessa forma peculiar de comunicação, o que provocou também uma demanda profissional por professores de Libras e tradutores e intérpretes de Libras. Além disso, nota-se um interesse por parte dos ouvintes que eu diria quase etnográfico ou cultural pela comunidade surda e sua singularidade comunicacional. Na dissertação de mestrado de Larissa Gotti Pissinatti, Representações linguístico-culturais do povo surdo na literatura surda (UNIR, 2016), a autora afirma, com base em estudo de Cláudio Mourão, que, assim como existem diferentes perspectivas sobre o que é literatura, não há um único conceito definidor de “literatura surda”. Ciente dessa dificuldade, ou impossibilidade, pergunto: quais são as principais características da literatura surda? Que elementos a aproximam ou afastam do restante da produção de literatura brasileira contemporânea? A literatura surda possui como principais características a visualidade e o uso de elementos culturais da comunidade surda na trama, ou seja, é de uma ética e estética visuais que estamos falando quando nos referimos à literatura surda. Apesar de um dos grandes entraves linguísticos da pessoa surda ser a modalidade escrita das línguas, a comunidade sempre teve, ao longo de sua existência, uma literatura construída por meio de gestos, teatro visual, língua de sinais, artefatos culturais e caricaturas viso-espaciais, que eram repassadas de uma geração para outra dentro da comunidade. Assim, o que vem ocorrendo nas últimas décadas é 50

a possibilidade de transcrição da literatura surda, ou por meio da adaptação da literatura ouvinte com componentes culturais surdos (gravada em Libras ou escrita em Língua Portuguesa), ou por meio da escrita da Libras, em linguagem direta com a comunidade surda. Como você define a sua trajetória na área de Libras? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se interessou pela literatura surda? Eu nasci ouvinte e aos sete anos, por conta de uma pneumonia e do tratamento com uso de antibióticos, fiquei surdo. A partir daí, enfrentei idas e vindas a consultórios médicos e fonoaudiológicos em busca da suposta cura para a surdez, contexto sustentado por médicos, fonoaudiólogos e, consequentemente, por minha família. À medida que cresci, especialmente na pré-adolescência, dei-me conta de que o mundo não era composto somente por pessoas ouvintes, e muito menos somente por falantes da Língua Portuguesa. Ao encontrar pela primeira vez adolescentes surdos que utilizavam a Língua Brasileira de Sinais – Libras, fui completamente atraído por essa língua e pela cultura surda. No entanto, minha família adiou esse encontro por mais algum tempo. Somente aos 12 anos pude, de fato, ter contato com pessoas surdas e aprender a Libras. Desde então, definitivamente, me senti com amigos, e melhor, amigos surdos. Minha identidade surda começou sua construção, ampliaram-se a minha autoestima e o meu empoderamento como sujeito surdo, não assujeitado ao mundo ouvinte, diferente do percurso que vinha fazendo até então. Sentia-me livre e completo, pertencente a uma comunidade com seus pontos e contrapontos. Passei a conviver com amigos surdos, me aprofundei em Libras, formei-me no Magistério e, posteriormente, comecei a trabalhar como professor de crianças surdas. Em 2008, fui selecionado para o curso de Letras-Libras. Ali, meu percurso científico-acadêmico dentro da Libras ganhou corpo. Deparei-me com diversas pesquisas e pesquisadores que trabalhavam com essa temática e suas particularidades; dentre elas, tive contato com a incipiente produção literária escrita da comunidade surda e me senti impelido a contribuir com esse nicho, tão pouco valorizado pela sociedade em geral, mas de grande valor ético, estético, identitário e cultural. Além do mais, o fato de residir na Região Norte me fez entrar em contato com fundamentos culturais literários das comunidades surda e ouvinte locais (professores, intérpretes, pesquisadores) que influenciaram diretamente a nossa produção artística. Cada escritor tem método e estilo próprios. O reconto e a tradução adaptada dos cânones da literatura universal são práticas recorrentes no ensino de Libras e no mercado editorial da literatura surda. Seu livro Curupira surdo (AICSA, 2016), escrito em coautoria com Larissa Gotti Pissinatti e Elielza Reis da Silva, não foge à regra, pois é uma adaptação do folclore brasileiro. Que concepções de tradução/adaptação orientam seu trabalho? Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam o seu projeto literário? Olha, antes de falar da literatura surda, é preciso falar da comunidade surda. Essa comunidade teve sua língua de sinais proibida no mundo por quase um século. Até o século XV, os surdos não eram considerados capazes de aprender, por isso não tinham acesso à escola. Assim, a inserção do sujeito surdo no mun51

do escrito foi ocorrendo paulatinamente, devido à imposição de uma comunidade que se considerava superior (a ouvinte) sobre outra (a surda). Nesse itinerário histórico, a comunidade surda foi sendo tomada pelo ambiente cultural ouvinte e com ela veio sua literatura. Apesar de a comunidade surda ter o seu jeito genuíno de produzir literatura, somente por meio do acesso à cultura do outro, de seus valores e letras, é que se deu início a esse processo de desenvolvimento por meio da escrita. Sendo assim, a literatura surda escrita é, em sua maior parte, uma transposição da literatura ouvinte. No entanto, não se trata de uma mera tradução ou cópia. No caso do nosso livro Curupira Surdo, a história foi totalmente ressignificada. Mantivemos o mote principal da relação intrínseca do curupira com as questões ambientais, mas acrescentamos os recursos culturais surdos para que essa história fizesse sentido também para as crianças surdas. A floresta foi atravessada, digamos assim, pintada por ingredientes culturais visuais e linguísticos da Língua Brasileira de Sinais (Libras), que, para além do Curupira, era uma prática utilizada pelos animais da floresta, tendo, inclusive entre eles, uma arara-intérprete, elemento cultural da comunidade surda. E foi o fato de os caçadores terem visto o uso daquela língua que os espantou e provocou uma atitude reflexiva sobre o ato de exterminar os animais. Em suma, a adaptação, o reconto e a reconstrução da literatura por meio da cultura surda é um estilo estético visual intercultural que diz de uma passagem entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte. Como você analisa a recepção da obra Curupira Surdo entre surdos e ouvintes, crianças e adultos? Eu fiquei bastante surpreso e satisfeito, pois tanto o público infantil quanto os profissionais da educação acolheram muito bem a obra. Curupira Surdo trata de um tema pertinente à educação, trazendo elementos tanto ecológicos, quanto inclusivos, temáticas atualíssimas e indispensáveis à formação do sujeito. O fato de ser uma adaptação de um tema literário da comunidade ouvinte e ser retratado por meio de uma ótica visual acrescenta uma singularidade, ao mesmo tempo em que promove a verdadeira integração entre surdos e ouvintes com elementos biculturais e bilíngues. Os surdos se identificam com a obra por conter aspectos de sua língua e de sua cultura, e os ouvintes por tratar-se de tema da literatura infantil articulado com as questões prementes do meio ambiente, consequentemente, do cuidado com o planeta, assim como do cuidado de si e das gerações futuras. Tanto adultos quanto crianças se interessam pela obra graças a sua temática, pela facilidade de inserção em temas tão fundamentais da formação humana que o contato com ela proporciona. O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura, dependente, logicamente, da tarefa educativa de formar leitores. Como você compreende o papel da literatura na formação de crianças surdas e ouvintes? Sendo professor e autor de literatura infantil, quais são as suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar com Curupira Surdo e outras obras infantis? Realmente, o Brasil tem sérios problemas no que diz respeito ao acesso à literatura de maneira geral. E quando se trata do leitor surdo, esse acesso é ain52

da mais prejudicado, pois a comunidade surda, em sua maioria, se comunica por meio de uma língua que apresenta muitas dificuldades para se escrever e fazer parte dessa seara do mundo escrito. Sendo assim, a comunidade surda se vê obrigada a adentrar um mundo literário que não está registrado em sua língua, em sua cultura. Muitas vezes, a produção literária em outra língua, em outra cultura, não faz tanto sentido para as crianças que ainda estão em processo de formação identitária e cultural. Sendo assim, no caso dos surdos, resta-lhes um acesso ainda mais restrito, por meio de uma literatura adaptada da literatura ouvinte. Atualmente acompanhamos o crescimento da produção literária voltada para o público infantil, que concorre com a tecnologia digital, mas tem aberto cada vez mais um espaço para esse objetivo. Acredito que a literatura é fundamental ao desenvolvimento cognitivo, linguístico, emocional e educacional de toda e qualquer criança, pois ela se encontra numa fase em que o mundo da imaginação ganha mais importância do que a realidade. Trazendo-se temas da realidade nua e crua sem utilizar-se de uma linguagem infantil, da fantasia, da imaginação, dificilmente se conseguirá acessar a subjetividade e o interesse das crianças. Esse é o princípio básico de um trabalho pedagógico com crianças a partir da literatura. No caso da literatura surda, é fundamental que inicialmente o professor permita que as crianças folheiem o livro à vontade, conversem entre si a respeito da temática e tentem contar, cada uma à sua maneira, o que sentem e pensam do que trata o livro. Em seguida, o professor, de preferência um professor surdo ou fluente em Libras e conhecedor da cultura surda, pode contar também a história por meio da Libras, abrindo uma discussão sobre os elementos apresentados, reconhecendo sempre o ponto de vista dos alunos. Nesse momento, pode-se abrir espaço para discutir as temáticas ambientais e inclusivas colocadas no livro. Em seguida, incentiva-se os alunos a pintarem o livro com suas cores prediletas, acrescentando sua marca, sua singularidade à obra. Como você avalia os escritores surdos brasileiros? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura surda como um todo, incluindo escritores ouvintes: o que você nota? Como falei anteriormente, é preciso contextualizar o autor surdo antes de rotulá-lo como um simples adaptador de obras da literatura ouvinte. Eu acredito que os escritores surdos conseguiram resistir a um modelo de opressão linguística e cultural que, sem sombra de dúvida, acarretou também uma problemática em sua produção literária. Dessa forma, os surdos pertencentes a uma “tradição oral” em língua de sinais tiveram sua literatura desconsiderada e desvalorizada ao longo do tempo. A iniciativa de produzir textos a partir da língua do outro foi como uma espécie de capoeira, uma luta negra que se revestiu de dança para sobreviver. Logo, a literatura surda brasileira tem seu nascedouro em uma espécie de “dança” com a cultura ouvinte e com a língua portuguesa, mas no fundo o que se busca é a afirmação cultural e, portanto, visual, da comunidade surda por meio de elementos integradores com a comunidade ouvinte. Desde a década de 1990, quando se iniciaram os estudos sobre Libras, o interesse do mercado editorial aumentou e o número de publicações na área se multiplicou, possibilitando que haja a circulação em outros espaços que não se53

jam somente o da comunidade surda. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores surdos no Brasil de hoje? O grande desafio que está colocado é como produzir literatura surda diretamente em língua de sinais ou em escrita de língua de sinais e ainda assim alcançar esse mercado editorial que costumeiramente se produz na língua portuguesa. A partir do momento em que a comunidade surda tem acesso a um mundo letrado, institucional, a produção literária surda alcançará seu registro e sua memorização, mas o grande desafio diz respeito também a uma questão linguística e cultural, ou seja, em que língua será feito isso e se o mercado reconhece as especificidades de desenvolvimento da comunidade surda, abrangendo suas peculiaridades de produção, a importância do uso de imagens, por exemplo, da visualidade, da língua de sinais (falada e escrita), etc. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Sim, estou produzindo um novo livro de literatura surda infantil, conjuntamente com pesquisadores da área de surdez da Universidade de Brasília (UnB). Atualmente sou professor assistente do Instituto de Letras da UnB, responsável pela disciplina Libras, e tenho interagido com diversos pesquisadores das áreas de Linguística e Educação, com pesquisas na área de Libras e educação de surdos, inclusive com interesse na produção de literatura surda para o público infantil. Historicamente, mulheres, surdos e demais minorias sempre sofreram opressão. O preconceito presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? O que vocês pensam acerca da constante tentativa de autoafirmação da voz poética da mulher, do surdo e de outras minorias? Nós vivemos em uma sociedade carente de significantes relacionados à pluralidade e ao reconhecimento da dignidade e valorização da diferença. Mulheres, negros, surdos, indígenas, pobres, entre outros, sofrem cotidianamente com atitudes preconceituosas de grupos majoritários e que fazem parte dessa tessitura de poder. Com certeza, todo esse paradigma de discriminação acaba por construir uma realidade baseada em falsos argumentos e pseudoautoridades, interferindo na produção escrita de minorias, pois em primeiro lugar precisam se defrontar com estigmas e desconfianças de toda ordem, inclusive de sua competência. Eu considero que somente por meio de um movimento de resistência, luta e independência, poderemos reconstruir uma autoridade, no sentido bom do termo, e uma autorização comunitária para podermos produzir em condições de igualdade, e não em uma relação opressiva. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes autoritários, fascistas, racistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Para mim, também é difícil compreender. A pergunta é complexa e requer uma resposta complexa em pouco espaço. O que posso refletir a respeito desse 54

assunto é que estamos vivendo um verdadeiro retrocesso que impactará inclusive o processo de desenvolvimento que as minorias vinham construindo mundo afora. Anteriormente, vivenciamos um acréscimo de grupos minoritários em relações de poder um pouco mais igualitárias, com regimes políticos mais próximos da democracia, negros disputando o poder com brancos, a mulher avançando cada vez mais rumo ao direito às suas peculiaridades e a comunidade LGBT promovendo um debate intercultural internacional sobre seus direitos de pertencer sendo diferentes, entre outros. A comunidade surda, da mesma forma, desde o século passado veio num crescente movimento de resistência, com construções tanto do ponto de vista linguístico (estudos acadêmicos sobre as línguas de sinais, legislações de reconhecimento e regulamentações dessa língua e das comunidades que a utilizam), quanto do ponto de vista educacional, com propostas de escolas mais inclusivas não-homogeneizadoras, verdadeiramente bilíngues e biculturais, com o acesso mais facilitado às políticas públicas, assim como com o fortalecimento de federações internacionais e nacionais, bem como a constituição de associações de surdos nos mais diferentes recantos do país. Acredito que isso veio incomodando muitos fascistas, ditadores e preconceituosos de maneira geral, que em nome da “família”, da religião e do bem-estar ferem, discriminam e matam. Estamos num momento em que a expectativa com relação ao futuro da humanidade começa a viver um retrocesso, mas espero que essa onda de retrocessos seja acalmada com uma onda maior ainda de força, resistência e luta, com muito valor à vida e ao amor mundi, no dizer de Hannah Arendt.

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Ana Martins Marques Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1977. Vive em Belo Horizonte (MG). Entrevista concedida a Vitor Cei, Aline Maiara Alves do Nascimento, Carolina Moser de Mendonça e Joyce Rolim França em março de 2016. Publicada na REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS, v. 3, n. 14, 2016.

Qual o procedimento para a criação de suas obras literárias? Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Não tenho propriamente um método de escrita. Ando sempre com um caderninho na bolsa e vou fazendo anotações de coisas vistas, lidas, ouvidas. Os poemas vão sendo escritos aos poucos, a partir dessas anotações de cenas, versos, citações. Às vezes passo muito tempo sem escrever. Às vezes retomo coisas escritas há anos e recupero um verso, uma imagem, que vão servir de ponto de partida para um poema. Alguns poemas tomam poucas horas para serem escritos, outros ficam anos à espera (e às vezes não encontram nunca solução). É um método bem pouco metódico, como vocês podem ver. Depois disso, há ainda uma outra fase, que diz respeito à seleção dos poemas, ao arranjo dos textos para formar um livro. Considero que essa etapa também faz parte da “criação literária”; ela é ao mesmo tempo uma operação de leitura e um novo processo de escrita, porque a ordem em que os poemas aparecem num livro pode alterá-los significativamente. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se considerou escritora? Acho que o caminho se fez gradualmente. Escrevo poemas desde criança, mas demorei bastante para publicar: só fui lançar meu primeiro livro com mais de trinta anos. Não sei dizer em que momento passei a me considerar escritora, na verdade nem sei se me considero escritora. Prefiro pensar que sou alguém que escreve, alguém para quem a leitura e a escrita têm um papel cotidiano e importante. Mas escrever é um ofício estranho, instável; depois de escrever um poema, nunca sei se serei capaz de escrever novamente. Você está escrevendo algum livro no momento? Vou lançar agora, em abril, pela Luna Parque, uma pequena editora dos poetas Marília Garcia e Leonardo Gandolfi, um livrinho escrito em dupla com o Marcos Siscar. Foi um processo de escrita bem diferente: nós fomos trocando poemas e tentando escrever a partir das palavras um do outro. Agora não estou escrevendo nada específico; continuo com meu método pouco metódico de fazer anotações, esboçar poemas, retomar textos antigos, mas um novo livro deve demorar. O que caracteriza um bom escritor? Não sei, acho que não há uma característica prévia que defina um bom escritor. Talvez, ao contrário, seja a capacidade de fazer com a língua, com as palavras, coisas ainda não caracterizáveis, dar forma a sentimentos, imagens, pensa56

mentos que ainda não encontraram forma. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Acompanho a poesia feita hoje no Brasil com bastante interesse e tenho a impressão de que a poesia brasileira tem atualmente uma vitalidade incomum, com um grande número de publicações, novos autores, revistas eletrônicas, pequenas editoras, eventos literários, novas traduções e projetos de divulgação (como a ótima coleção Leve um Livro, de Belo Horizonte, capitaneada pelo Bruno Brum e pela Ana Elisa Ribeiro). Embora procure acompanhar a produção contemporânea, acho que não saberia propor um panorama ou algo assim para “pensar a poesia atual como um todo”: existe hoje uma grande diversidade de vozes e de poéticas, e isso obviamente torna mais difícil a tarefa da avaliação crítica. Apesar disso, acho que é possível indicar algumas linhas de força: a presença de poetas que promovem uma conexão da palavra com o corpo e a voz (como o Ricardo Aleixo), muitos deles fazendo uso do vídeo e da internet; a predominância do verso livre, mas também o recurso à métrica e ao verso regular (como fazem, com efeitos diferentes, Paulo Henriques Britto e Glauco Mattoso); a presença forte de referências à imagem e à visualidade (artes plásticas, fotografia, cinema...); o recurso à narratividade e a relação com o ensaio, como no caso da poesia de Marília Garcia... Se em outras épocas era possível identificar projetos ou movimentos coletivos mais ou menos claros, hoje parece necessária uma atenção crítica mais individualizada, que procure avaliar o que está em jogo em cada poeta; no limite, em cada poema. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Tenho a impressão de que as possibilidades de edição se ampliaram significativamente. Há hoje muitas pequenas editoras e revistas literárias que publicam novos autores, além das possibilidades de autopublicação e de divulgação proporcionadas pela internet. Talvez o grande desafio ainda seja a distribuição dos livros, e também o espaço reduzido dedicado à literatura na imprensa tradicional.

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Anaximandro Amorim Nasceu em Vila Velha (ES), em 1978. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2019.

Cada escritor tem método e estilo próprios. Bernadette Lyra, no prefácio de Breviário do Silêncio (Cousa, 2018), afirma que você “parece construir os poemas com uma engenharia coesa e aproximativa”. Descreva as opções formais e temáticas que norteiam sua poesia e sua prosa. Em primeiríssimo lugar, e, acho que este é o ponto nodal da coisa, sou um indivíduo fortemente influenciado pela língua e pela cultura francesas. Assim, afirmo que sou, antes de mais nada, um escritor cartesiano. A “Engenharia do Breviário”, título do belo prefácio da minha amiga e confreira Bernadette Lyra, ilustrou muito bem o meu fazer literário, que, se pudesse ser resumido em uma palavra, a melhor delas seria: metódico. Sou um autor que tem um “projeto literário” e, sim, ele é sério, meticuloso e se coaduna totalmente com meu propósito de vida. Só isso já dá uma dimensão daquilo que me proponho fazer. Minha escrita, portanto, é fruto de grande reflexão e, claro, de um esforço enorme para equilibrá-la com os afazeres quotidianos. Formalmente, tenho, basicamente, duas frentes: poesia e prosa. Já me aventurei na dramaturgia, tenho roteiros de teatro, curta, argumento para longa; porém, sou um operário do poema, da crônica e do romance. Reputo isso a uma questão de gosto, mas, também, às muitas leituras durante minha constituição literária. Quanto à primeira, sempre fui um adepto do verso livre, ainda que eu me aventure, de vez em quando, no soneto, uma espécie de fetiche para mim, autor que tanto preza, dentre outros matizes, a estética do texto. Do ponto de vista temático, eu me divido em três vertentes: intimista (poesia); bairrista (crônica); universal (romance). No caso da primeira, sempre vi a poesia como um mergulho no self. Ela é uma forma de traduzir em palavras imagens inconscientes. Sim, minha poética é imagética, personalíssima, com o cuidado para não cair em lugares-comuns e fórmulas repetidas. Na crônica, sinto uma liberdade muito grande em transitar entre o literário e o não literário. Ela é bairrista porquanto ser impossível dissociar o conteúdo desse gênero literário da realidade palpável, no que, como capixaba, antes de tudo, jamais seria honesto se tentasse um olhar demiurgo. Ademais, creio ser aí um perfeito espaço para cantar as belezas do nosso Espírito Santo, sempre na “periferia da literatura” brasileira. Quanto ao romance, vejo nele um lugar de evasão, quando posso ir além das minhas fronteiras. A complexidade desse gênero me convida à ousadia. Você publicou seu primeiro livro em 1994 e, em 25 anos, já publicou 9 livros. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? O que mudou em seu modo de conceber a literatura? Tenho a crença de que nós autores nascemos predestinados (gauches na vida!). Eu sempre gostei de ler, mas, mais precisamente, eu sempre amei as 58

palavras, sempre quis inventar minhas próprias histórias, dar vazão ao meu imaginário... mas, tenho a certeza de que o escritor nasceu, oficialmente, no dia 14/05/1994, na Feliv (Feira do Livro) 94, lançando, precocemente, aos 15 anos, um cândido livreto de poemas, Brasil de Ontem, Hoje e Sempre, pontapé inicial de uma trajetória que continua, até hoje. Claro que lançar-se tão cedo teve suas vantagens e desvantagens. Começo por estas: a imaturidade do material. Brasil de Ontem, Hoje e Sempre (1994) e Asas de Cera (romancete que lancei no ano seguinte, mas que, hoje, reclassifico como infantojuvenil) são livros claramente adolescentes. As vantagens, porém: constituir-se autor, ao longo do trajeto, algo que só se faz com o tempo. Nessa caminhada, eu pude rever, muitas vezes, o meu papel de escritor, mas, sobretudo, vê-lo amadurecer enquanto conhecia pessoas, obras e instituições. Mas, admito que o fato de cursar Letras (Português-Francês) na Ufes foi fundamental para dar o “acabamento” que me faltava. A vida depois da luz (Leya, 2015) e A história de um sobrevivente (Edição do autor, 2010) são relatos autobiográficos de uma experiência de quase morte após um grave acidente de carro em setembro de 2009. Você já explicou, em várias ocasiões, que escrever as obras foi como livrar-se de um fardo, que a escrita ajudou-o a superar o trauma. Podemos dizer que essas narrativas tem alguma semelhança com a “literatura de testemunho” dos sobreviventes de eventos traumáticos como guerras e ditaduras. A propósito, Primo Levi afirmou que depois de Auschwitz não se pode escrever literatura senão sobre Auschwitz, mas que o verdadeiro testemunho seria dado somente por alguém incapaz de testemunhar (a vítima fatal), o que configura um paradoxo. A psicanálise, por sua vez, mostrou a presença constante das lacunas em qualquer escrito de teor testemunhal. Como você avalia essa simultânea impossibilidade e necessidade de narrar o trauma? A história de um sobrevivente e A vida depois da luz são variações sobre o mesmo tema (o gravíssimo acidente de carro do qual fui vítima, há uma década). As diferenças básicas entre os dois são duas: primeiro, o decurso de tempo, depois do fato (um ano, no primeiro, cinco anos, no segundo). Isso é algo de bastante relevância. Se eu reescrevesse o livro, mais uma vez, uma década depois, ele seria outro; o segundo, é o tratamento. A vida depois da luz é um livro de uma casa internacional, a portuguesa Leya e, para ser lançado, a editora exigiu uma série de modificações na forma. O conteúdo, obviamente, versa sobre o mesmo. Afirmo serem os dois livros exemplos de uma “literatura de testemunho”, pois eles têm elementos comuns com o gênero: a pressuposição do trauma, o revivê-lo na escrita (e também na leitura). Consigo, no entanto, entender Primo Levi: toda narrativa pressupõe recorte e, de fato, é impossível dar conta de todos os detalhes. Escrever, mesmo a respeito de algo real, é fazer ficção e é aí que eu creio ser possível tal “paradoxo”, pois, ao mesmo tempo em que eu sou persona, também sou personagem. A “verossimilhança” acaba sendo um substrato do palpável reduzido a termo e, se me permite citar mais um autor, Barthes, o pacto subjacente entre o leitor como reconfigurador do texto permite levar tal estado de coisas para ainda mais além! A (minha) verdade, no entanto, está lá, como essência.

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A Máquina do tempo e outras histórias (Pedregulho, 2014) reúne crônicas e contos publicados em revistas, jornais e blog entre 2002 e 2012. Em que medida o exercício de publicação constante em suportes digitais e impressos contribui para o seu fazer artístico? Desde muitos anos eu compreendi ser impossível prescindir da internet. O dito “virtual” já é parte desse mosaico que compõe o humano, neste mundo do Contemporâneo. Assim, desde quando o digital começou a “engatinhar” no Brasil, a partir dos anos 1990, eu percebi que era possível (e necessário) usá-lo a meu favor. A internet é, sem sombra de dúvidas, o maior, melhor e mais eficaz meio de publicação; o mais democrático; e o mais interessante: ele permite a interação no dito “tempo real”, com o retorno do leitor e até a fidelização de um público. Coisa impossível de se imaginar vinte, trinta anos atrás! Paralelamente, a publicação em periódicos ainda tem uma importância muito grande. É como se o impresso “sacramentasse” o que foi publicado em meio online. Real ou virtual, porém, vejo a constância da minha publicação como um importante exercício de prosa. Contribuir para esses veículos de comunicação, além de ser uma forma de me fazer ler por um grande número de pessoas, é, também, um canal para o escritor estar sempre “em forma”, mas, também, “atento” ao que se passa à minha volta. É impossível fazer arte sem estar conectado com o que me circunda. Sua obra é reconhecida no Espírito Santo e alcançou expressividade no cenário nacional. Para citar apenas dois exemplos, em 2015 você foi laureado com a Comenda Rubem Braga, maior distinção concedida a um escritor no Espírito Santo, outorgada pela Assembleia Legislativa. E seu livro A vida depois da luz já vendeu mais de 2.000 exemplares. Como você avalia a recepção de sua obra? Eu fico muito feliz em ver que aquele trabalho que começou ali, em 1994, esteja rendendo frutos. É muito difícil ser escritor no Brasil, principalmente, se você não está no eixo Rio-São Paulo. Que eu me lembre, além de mim, só mais dois escritores capixabas conseguiram emplacar livros fora do ES: Bernadette Lyra e Reinaldo Santos Neves. Na última apuração, A vida depois da luz já havia chegado aos 3 mil exemplares! Parece pouco, mas, para o Brasil, isso já é considerado best seller! A “Comenda Rubem Braga” foi uma surpresa! Não esperava por ela, que foi motivo de muita felicidade, visto ter-me sido outorgada em uma Casa que representa, em última análise, o povo capixaba. Foi assim que me senti: como se meus conterrâneos me dessem um presente. Fora alguns estudos que começam a aparecer, gente interessada em ler o meu trabalho com mais acuidade. Engana-se, no entanto, quem acha que eu me deixo embriagar por tudo isso: reconhecimento é fruto de um trabalho árduo. Ele não vem “do nada”. Foi como disse, eu tenho um “projeto”. E vou fazer uma confissão: a despeito de tudo, eu ainda me sinto como aquele menino de 1994. Há, ainda, muito a chegar, muito a conquistar, mas, principalmente: muito a escrever! Estou só na metade. No mais, escritor serve para isso: para produzir. Há coisas acontecendo, a coisas a acontecer... Há muito o que se fazer! Em que medida a experiência como docente de língua francesa participa 60

da organização dos diálogos que você busca instaurar com certas facetas da tradição literária? É, simplesmente, impossível dissociar o francês não apenas da minha obra, mas, de mim, como pessoa. Devo muito a esse idioma maravilhoso, minha grande paixão, uma das minhas razões de viver, totalmente coadunado com meu projeto literário, de tal arte que, sim, posso me autoafirmar um franco-brasileiro! Dedico-me ao estudo da língua e da cultura francesas desde os meus onze anos de idade; cresci com os dois sistemas, com as duas culturas e, por conseguinte, com as duas literaturas. Assim, o diálogo é total. Além disso, os estudos de ensino de língua estrangeira (ou “língua alvo”, como eu prefiro) dão conta de que é impossível descontextualizar o aprendente de sua própria cultura, mesmo porque, uma língua é mais que um emaranhado lexical. Dessa forma, tento, cada vez mais, estabelecer um diálogo entre as duas tradições (inserindo, obviamente, nós, autores brasileiros do Espírito Santo, nesse contexto). Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Desde a primeira metade do ano passado, tive a honra de descobrir Antonio Dias Tavares Bastos (1900 – 1960), o “Charles Lucifer”, no Mapa da Literatura do escritor Reinaldo Santos Neves, no site Estação Capixaba. Bastos foi um “capixaba de coração”, pois, nascido em Campos dos Goytacazes/RJ, produziu grande parte de sua obra em solo espírito-santense... em francês! Um homem de grande importância, não só pela sua qualidade literária, mas, também, por ter traduzido para o francês autores como Drummond, Bandeira e até a capixaba Haydée Nicolussi! Assim, estou fazendo um trabalho de resgate da vida e obra desse importante escritor, terminando a produção de uma biografia literária e a revisão da tradução do livro de estreia do autor, Ballades Brésiliennes, de 1924, escrito em Vitória e lançado em Paris. O título provisório da obra é: Ballades Brésiliennes: Tavares Bastos e uma “literatura menor”, termo, esse, explicado ao longo do meu estudo. Pretendo lançá-lo neste 2019. Concomitantemente, trabalho em um livro de poemas, cujo título provisório é Corpo de fuga. Como indicado pelo título, o mote da obra é a questão do corpo e das corporalidades. Para isso, tenho mergulhado frugalmente na obra de Jean-Luc Nancy. Disse, frugalmente, que fique claro, com medo de ficar teórico demais. Não se trata de um artigo, mas, de um livro de poesia. Tenho que ter cuidado para não tolher minha liberdade criativa. Basicamente, o livro vai se compor de duas partes: “O corpo”, em que eu escolhi poemas com uma pegada mais erótica, sensual; e “A fuga”, mais existencial. Quero, justamente, trabalhar essa dicotomia entre o sacro e o profano, dada pelo corpo (objeto do desejo/morada do espírito) e, de posse desse entendimento, trabalhar todas as questões possíveis (o corpo, o “não-corpo”, a reificação do corpo...). Também ando desenvolvendo um romance, com título já definido: Moça do tacho de água fervendo. Trata-se de um romance-ensaio, em que me debruço, ao mesmo tempo, sobre dois assuntos: a figura (mítica) da heroína brasileira Maria Ortiz; e a questão da historiografia como peça de ficção. Sou fascinado por essa mulher, a primeira heroína da História do Brasil, cujos registros datam até mesmo antes de Dandara, mas que, por ser capixaba, cai na invisibilidade. Fiz uma 61

pesquisa histórica no Arquivo Público e na Internet e cheguei à conclusão de que não houve, exatamente, uma Maria Ortiz, mas várias, em épocas próximas e com nomes parecidos. Isso, para um escritor, é algo simplesmente fantástico! Por fim, tenho pronto o meu primeiro livro na área da linguística, com título bem elucidativo: Quem tem medo dos verbos em francês? Um guia rápido e prático de montagem. Trata-se de um trabalho sem precedente no Brasil, voltado para alunos brasileiros de FLE (Francês Língua Estrangeira). Não é um guia de conjugação, mas, um manual de montagem, com todas as principais regras explicadas, em língua portuguesa, e farto em exemplos traduzidos. Já tem editora! Só falta lançar! Seu currículo inclui a participação como membro de várias associações literárias e científicas: Academia Espírito-Santense de Letras, Academia Jovem Espírito-Santense de Letras (fundador), Academia de Letras de Vila Velha/ES, Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, União Brasileira dos Escritores, Academia Cachoeirense de Letras (correspondente) e Associação dos Professores de Francês do Estado do Espírito Santo. Qual é a importância dessas instituições para o fomento da literatura brasileira como um todo e para a sua obra em particular? Ter participado da Academia Jovem Espírito-santense de Letras (Ajel), como membro fundador, inclusive, foi uma questão de sorte. Fomos caudatários da Academia Capixaba dos Novos (ACN), tendo resgatado, no início dos anos 2000, aqueles ideais de, então, cinquenta anos atrás. Em minha opinião, a Ajel foi o que de mais importante houve naquela década, servindo como uma grande “escola” para nós. Para mim, especialmente, ela serviu, também, como uma antessala para a Academia Espírito-santense de Letras (AEL), ainda que as duas instituições fossem independentes. Entrar na AEL foi, além da realização de um sonho, um ato de muita responsabilidade. Vejo instituições como ela e também como o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES), além das outras instituições de escol, citadas na pergunta, como de congregação e fomento à Cultura, um valor primordial para mim. Engana-se quem pensa que o labor literário é solitário. Estar em contato com pessoas que comungam dos mesmos valores é primordial, seja para o engrandecimento artístico, seja para o desenvolver da escrita. Tenho percebido, aliás, um boom de Academias, pelo Brasil afora. Só no Espírito Santo, contando estaduais e municipais, temos vinte e duas. Acho um número expressivo, sobretudo para um estado “pequeno”. Sempre acreditei nessas instituições pois sei que não só elas, mas, também, o próprio perfil do acadêmico mudou muito ao longo dos anos. Outrora um “galardão” para autores, ditos, “notáveis”, têm as academias se tornado grandes instituições culturais, com expressividade de produção, seja coletiva ou individual e com uma certa participação de jovens, nos níveis estadual e municipal, principalmente, o que é sintomático de uma renovação. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? 62

É difícil ter uma opinião sobre a escrita e os escritores contemporâneos, dada a impossibilidade de uma digressão histórica. Estou, também, inserido nesse contexto. Porém, consigo perceber alguns traços comuns: um deles é a fragmentação. O texto literário anda perdendo sua característica “homogênea”, “hermética”, para se tornar mais híbrido, mais fluido. Outra, uma certa unificação da linguagem, coisa que, creio, vem muito do advento da internet, portanto, da facilidade de intercâmbio entre os autores. Por fim, tenho percebido, justamente por conta da própria internet e da facilidade em publicar até em impresso (ao menos, se se pensar nas últimas décadas), um aumento do que chamo de “novas vozes”, feitas por autores negros, autores homossexuais, autoras mulheres, enfim, todos aqueles que não comungam de uma característica comum com a dos ditos “canônicos” (em geral homens, brancos, heterossexuais). Há, aliás, publicações em profusão e, mesmo no Espírito Santo, já se torna difícil acompanhar tudo o que se lança. Claro, há também bastante coisa de gosto duvidoso, mas, sempre foi assim em todas as décadas, em todos os séculos. Por isso a necessidade de uma digressão histórica: só o tempo para mostrar quem será lembrado e quem será esquecido. Desde 1994, quando você começou a publicar, até hoje, o cenário literário e o mercado editorial brasileiros passaram por mudanças significativas, mas alguns impasses permanecem – como o do reduzido número de leitores. Quais os principais desafios para a edição, a publicação e a distribuição de obras literárias no Brasil de hoje? Eu me lembro que, quando lancei meu primeiro livro, Brasil de Ontem, Hoje e Sempre, em 1994, usava-se fotolito para se compor um livro. Dependendo da obra, era coisa de mês para aprontar tudo e um sacrifício para se rodar. Hoje, faz-se tudo em questão de semana, quiçá de dias ou, até mesmo, na hora! O setor evoluiu de forma tal que, afirmo, publicar nunca foi tão fácil. Há, inclusive, maneiras de se publicar gratuitamente, seja por meio de editais, seja por meio de editoras on demand. Isso significa: o sonho do livro se tornou mais rápido, barato e acessível. O grande gargalo, no entanto, está na distribuição. Os livros dos ditos “capixabas” não contam com um esquema profissional de colocação em livraria. Resultado: o autor, quando consegue chegar lá, fica, em geral, no fundo da loja, em uma prateleira escondida, “guetizado” com a “pecha” de “capixaba” (na minha opinião, “literatura capixaba” não existe, pois somos todos brasileiros). Isso, quando a livraria nos quer, pois, recentemente, descobrimos que o regulamento do ICMS possui dois dispositivos que funcionam como uma verdadeira barreira à venda, apenando o livreiro com multa, por questões de obrigação acessória. Ou seja: é difícil chegar à livraria, é difícil vender e, ainda por cima, o livreiro leva uma multa... por vender os nossos livros! Não é desestimulante? Mais ainda é ser escritor em um país de semianalfabetos, com professores e escolas sucateados e cujo ensino de literatura acaba se tornando uma tortura para o jovem que, grosso modo, não consegue ver sentido no ambiente escolar. As bibliotecas, quando existem e são usadas, o são como o lugar do “castigo”, tornando-se, assim, verdadeiros “calabouços”, dentro dos quais o aluno tem como “pena” a leitura. Tudo isso cria um círculo vicioso que afasta o jovem do livro, em geral, e, pior ainda, dos nossos livros, naturalmente mais prejudicados por esse 63

estado de coisas. Quanto ao mercado editorial, duas vertentes são notórias: a das grandes cadeias e a dos “pequenos”. Arrisco dizer que a verdadeira literatura (aquela que contém esmero no trabalho da palavra) se encontra nestas. Aqui, no Espírito Santo, editoras como a Cousa e a Pedregulho vêm fazendo um trabalho primoroso na descoberta, edição e até reedição de autores, muitos, inclusive, lidos e estudados nos ciclos acadêmicos. Quanta ironia: as gigantes, responsáveis pelo fechamento de tantos “pequenos”, andam apresentando rachaduras no casco. Ao que parece, o público leitor brasileiro continua pequeno em número, mas grande na sua exigência. Entre 2003 e 2005, no canal DTV, você foi apresentador do primeiro programa local dedicado à literatura produzida no Espírito Santo, chamado Jovens Escritores. Recentemente você lançou, na plataforma Wattpad, o romance A Obscuridade. O que mudou na sua literatura depois dessas experiências com jovens escritores e com novas plataformas de divulgação? Eu sempre percebi a importância que as mídias têm em nossa Era Contemporânea, também apelidada de “Mundo da Informação”. Sobressair-se em um emaranhado de autores e obras é algo difícil, assim, torna-se imprescindível saber dominar os códigos midiáticos. Jovens Escritores, assim, foi uma experiência e tanto, porque me fez, em primeiro lugar, aprender esses códigos e, em segundo lugar, acompanhar de muito perto o que se produzia em literatura em nosso Estado, hábito, aliás, que tento manter até hoje. Fora tratar-se de algo de que muito gosto, o “jogo do ganha-ganha”. Era um trabalho muito gratificante, o de promover os meus colegas escritores, gente, muitas vezes, que nunca havia se mostrado para uma câmera. Ciclo fechado de muito aprendizado. Publicar no Wattpad se trata de uma outra experiência. Se, há uma década, a televisão, sobretudo a cabo, ainda detinha uma importância maior, hoje, esse conteúdo migrou por excelência para a internet, seja em plataformas como a streaming, para vídeos, ou colaborativas, como o Wattpad. Trata-se de uma modernização do negócio do livro, que fez uma fuga bem sucedida do esquema das grandes livrarias, subvertendo a equação: muitas editoras possuem “olheiros” ali e muita coisa ganhou o papel. Sou um autor “antenado” nessas novas mídias e publicar A Obscuridade nesse esquema foi, antes de tudo, uma forma de experimentar. Deu certo: enquanto respondo a esta entrevista, o livro alcançou 1,7k de acessos, em um mês e meio, nada mal para um autor, digamos, “desconhecido” do “grande público”. Em seguida, posso dizer que usar o Wattpad foi, também, uma forma de “protesto”. O livro conta uma história totalmente original, de uma cultura distante, nos moldes de um roteiro de cinema. Ele foi resenhado por autores renomados, como o Professor Francisco Aurélio Ribeiro, Presidente da AEL, e o escritor espanhol Pedro Sevylla de Juana. No fundo, sempre acreditei no potencial desse escrito. Bati às portas de quatro grandes editoras brasileiras. Ninguém quis o livro. Pois é... Muitos escritores têm tido engajamento político constante nas redes sociais. Você mantém atuação discreta no Facebook, utilizando-o majoritariamente para a divulgação do seu trabalho. De modo geral, como você analisa a 64

atuação de escritores contemporâneos em redes sociais? Sou totalmente a favor do engajamento político do artista. Somos a “antena da raça”, como diria Pound, e entendo que não existe intelectual “isento” – e essa é a beleza da coisa: poder buscar quem melhor traduza sua cor política, qualquer que ela seja. Pluralismo, em última análise, é democracia, com tolerância, acima de tudo. Você diz que tenho uma atuação “discreta”. De fato, discrição é meu modus vivendi, o que não significa que eu, também, não faça a minha militância. Prefiro-a, no entanto, nos meus escritos. Sou, antes de tudo, um humanista: minha primeira formação é em Direito e, desde o início do curso, trilhei a seara dos Direitos Humanos, com inspiração em João Baptista Herkenhoff. A Cultura, para mim, é premissa básica e, como professor, sou um entusiasta da Educação como vetor de mudança. Não posso compactuar de ideias fascistas, preconceituosas e não inclusivas. Sou totalmente contrário à “escola sem partido” e, sobretudo, a essa demonização da figura do educador. Quanto à internet, não condeno quem use as redes sociais, como o Facebook, por exemplo, de forma combativa. Prefiro usá-las de forma mais “institucional”. Tenho a crença, no entanto, de que lá não é o melhor lugar para o embate. Primeiro, pela platitude das redes. É muito difícil desenvolver qualquer assunto de maior profundidade e, não raro, a maioria dos interlocutores lança mão de “achismos”, o que cria conflitos estéreis. Não gosto disso. Não sou do embate, sou do debate. Em segundo lugar, prefiro fazer uma política crítica, apartidária, mas, sobretudo, deixando-a como legado nos meus escritos, lócus da minha militância. Quem me lê com regularidade sabe disso. Nos últimos anos, a crescente polarização política observada na sociedade brasileira mobilizou debates sobre o lugar da arte, com destaque para forças interessadas em controlar e censurar manifestações artísticas e culturais. Pensando como escritor e advogado, que você diria sobre a relação entre as artes e o aparato judicial do Estado? Em 1857, o francês Gustave Flaubert foi processado pelo seu célebre romance Madame Bovary. Ele não foi o primeiro escritor a sofrer nas mãos da censura (Charles Baudelaire o seria, por As flores do mal, por exemplo), mas, na minha opinião, foi o caso mais sintomático de tentativa de controle da linguagem literária pelo Direito – e de como isso é impossível. Jules Senard, advogado de Flaubert, não só desarmou a acusação do Procurador Imperial Ernest Pinard, como provou que uma leitura açodada, fragmentada e que despreza o projeto do autor pode se tornar uma arma para o preconceito e para a ignorância. É por essas e outras que creio que nosso Brasil do século XXI se parece demais com a França do século XIX: uma sociedade dominada por um conservadorismo hipócrita, um senso exagerado de religiosidade, um machismo exacerbado e a crença de que o Estado pode regular qualquer coisa, incluindo a arte. É incrível como não aprendemos com os exemplos da História: nossa Constituição de 1988, promulgada após 21 anos de autoritarismo, condena veementemente a censura e celebra a liberdade de expressão (vedando o anonimato e dando garantias à intimidade, à dignidade do cidadão). Chega a ser paradoxal esse “vento de mudança” para uma “extrema-direita”. 65

Isso afeta sobremaneira a interpretação da norma. E vejo, de forma preocupante, toda tentativa de controle do fazer artístico, pois ela traz, subjacentemente, uma ideologia dos grupos dominantes, que pretendem ditar o que é “arte” e “não-arte”. Assim foi o caso, por exemplo, do Reich Nazista. Nós, artistas, somos os primeiros a sofrer esse estado de coisas. Falo como autor. Como advogado, não vejo outra maneira senão lutar usando o aparato jurídico vigente. O problema todo é: e se um dia não tivermos esse aparato? Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho para o atual estágio da humanidade? Voltaire botou na boca de Cândido, na obra homônima, a seguinte frase: “se este é o melhor dos mundos, então, qual será o pior?”. Além de trazer a marca da ironia do autor, a afirmativa resume a problemática básica da obra: a natureza humana é boa ou ruim? Atormentado por essa contradição, Cândido prefere “cultivar seu jardim”, ótima sugestão para os dias de hoje, em que a maioria das pessoas parece ter, dentro de si, descampados desoladores. Entendo essa frase, dentre tantas possibilidades, como se a busca do conhecimento fosse a única (ou melhor) forma para se aperfeiçoar essa natureza. O mundo parece experimentar uma espécie de “guinada para a direita”. Não quero parecer maniqueísta, mas a ascensão de governos assim parece ter chancelado o discurso preconceituoso de certos elementos que não se sentiam autorizados. Claro, há, também, atrocidades históricas proporcionadas por governos de esquerda, com fartura de exemplos. Mas, pensando no caso brasileiro, especificamente, é como se o discurso liberal não se coadunasse com a pauta dos Direitos Humanos, gerando distorções incríveis! Some-se a isso a platitude do discurso, proveniente da imaturidade política do brasileiro. Pronto: parece que temos, aí, os ingredientes necessários para destilar todos os ódios seculares sobre os quais foi construída a sociedade brasileira. As redes sociais, por seu turno, amplificaram esses discursos. É de se relembrar que virtual não é antônimo de real, mas, sim, o real potencializado. Se a internet tem no acesso democrático o seu lado bom, ela tem, nas suas tantas nuances, o lado ruim de se tornar território de enfrentamento, pois duvido que alguém consiga catequizar alguém por lá (talvez sim, mas, muito pouco). Assim, a miséria da natureza humana, o lado feio do homem aparece potencializado, por trás da falsa impressão de proteção que dá uma tela de computador. Felizmente, como disse, sou um “humanista”. Não tenho a ingenuidade inicial de Cândido, mas concordo com ele que a melhor forma de buscar esse “lado bom” do humano seria “cultivando seu jardim”. Como escritor, tento fazer a minha parte, com minhas leituras e com meus escritos. Ainda acredito no livro como a melhor ferramenta para a humanização, na educação como forma de realização dessa humanização e na cultura como princípio. Sigo tentando, como meus colegas de escrita, fazer a diferença. Sim, no fundo, no fundo, eu acredito no humano. Por enquanto. 66

Andréia Delmaschio Nasceu em Vitória (ES), em 1969. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em março de 2017. Publicada no Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 11, n. 21, 2019.

Cada escritora possui um modus operandi, por assim dizer... Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora de verdade? Meu modus operandi é aproveitar todo o tempo livre que tiver, no miolo da rotina com aulas e filhos e afins, para escrever. Daí resulta que raramente consigo trabalhar num texto por muitas horas seguidas, sem interrupção, quase sempre tendo de anotar ideias nos cantos de papel ou mesmo ditar trechos inteiros ao gravador do celular. Não acredito que ter muito mais tempo livre me trouxesse, automaticamente, melhores condições de escrita, porque a parte técnica do trabalho demanda sim reescrita, reestruturação, reelaboração, mas ela se alimenta da vida, então a situação de quem escreve é, até certo ponto, paradoxal. É claro que as experiências também demandam uma reelaboração, mas esta não se faz somente de olho na letra do texto. De modo geral eu já me adaptei a essa vida de escrever mentalmente enquanto dirijo e de aproveitar as madrugadas de insônia diante do PC. A verdade é que, hoje, ou é assim ou é de modo nenhum, e ficar sem escrever nunca me passou pela cabeça. Como tenho sido, até agora, eminentemente cronista e contista, não me é impossível ir planejando, esboçando, registrando e revisando, aos poucos e sempre. Quanto à outra pergunta, aos nove anos eu tive pela primeira vez a certeza de ter escrito algo diferente das cartas que minha mãe me ditava, para os parentes distantes, e que invariavelmente se iniciavam com “Saudações a todos”, e das redações obrigatórias das aulas de Língua Portuguesa. O texto que escrevi era algo que eu imaginava que os meus colegas gostariam de ler. Era um conto de ficção científica intitulado “O dia em que a gravidade acabou na Terra”, de exatas onze páginas datilografadas (lembro que os últimos parágrafos saíram em vermelho, porque o lado preto da fita tinha acabado). Aquela velha máquina de escrever, meu pai tinha recebido como pagamento de uma dívida. Era daquelas cujas teclas exigiam muita força nos dedos – ou então ela já estava meio enferrujada pela falta de uso, não sei. Para mim ela era como um baú do tesouro, era o meu playground. Numa metáfora que faz mais sentido para as crianças de hoje, aquela máquina de escrever era o meu Xbox. Eu não devia ter deixado que aquela história se perdesse vida afora. Imagine que peça curiosa ela não seria hoje! Acontece que, desde essa época, eu já tinha o hábito de queimar originais. Até hoje conservo essa mania, apago diligentemente todos os rastros deixados até a publicação de um texto. Quando dei por terminado o trabalho, os meus dedos brancos de menina magrinha doíam, mas foi assim que, na minha cabeça, começou a se formar a noção de literatura. Melhor dizendo: a ideia de que eu também podia escrever, o que significa muito, muito mais do que se pode imaginar, para uma criança edu67

cada por pais não alfabetizados, ex-agricultores empurrados para as palafitas dos subúrbios de uma cidade toda ela suburbana, e em pleno domínio da ditadura militar no Brasil. Nessa época eu já tinha acesso aos clássicos que os meus irmãos mais velhos apanhavam emprestados na biblioteca do ginásio. Quando li Dom Casmurro e O tronco do ipê, percebi que eu mesma não vinha fazendo um grande trabalho, rs, mas isso não me inibiu. Pelo contrário: eu começava a ter consciência do que significava a passagem do tempo, no que toca à escrita. Esse foi um momento inaugural para mim, bem na intimidade da minha relação com as letras. No mais, o caminho continua, desde então, se fazendo, gradualmente. Quando pintar um último degrau (não no sentido de um desenvolvimento qualitativo, que não creio nessa curva inequívoca na prática da escrita, mas na vida mesmo), então será a hora de entornar tudo de volta para adubar a terra. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? No caso do seu Aboio de Fantasmas, qual é a relação do blog com o livro? Eu penso que só com um tempo maior de afastamento a gente vai poder avaliar de fato a transformação que a internet tem representado, nessas últimas décadas, para as artes em geral e para a literatura especificamente. Sem falar nas mudanças em outros campos de interesse para a humanidade. Porque nós estamos presos a esse tempo – que já vai longe, é verdade – cuja superação só se pode considerar por meio de uma verdadeira mudança de paradigma. Assim, não temos como considerar, compreender e avaliar o que se passa de fato – no entanto estamos aqui, dando a nossa contribuição. De todo modo, no caso de quem escreve ficção (uso o termo no sentido geral de criação ficcional, texto literário em prosa), o que percebo de mais impactante é o fato de podermos publicar um texto imediatamente após a escrita – ou mesmo concomitantemente a ela, a depender do caso. Isso significa poder ter uma resposta também imediata. Por um lado, cria-se uma aceleração estimulante no tempo do processo que vai da escrita à leitura, o que pode significar aumento da demanda, incremento na discussão das ideias e, inclusive, ampliação do desejo de continuar produzindo, por parte do escritor. No entanto trata-se de uma faca de dois gumes, porque está claro que escrever mais e mais rápido vai interferir diretamente nos modos de reflexão e de expressão, como eu declarei anteriormente sobre as condicionantes do meu próprio processo de escrita. Todavia não é um processo que se deva refrear, é claro; porque é o que há, é o que pode ser neste tempo em que vivemos. No caso do blog Aboio de fantasmas, que inaugurei há quase dez anos, ele surgiu justamente da necessidade que eu tive, num período de grande turbulência na minha vida pessoal, de dar a ler com rapidez, e justo porque necessitava de estímulo para continuar escrevendo. Assim, eu o criei como um blog de crônicas, que com o tempo foi assumindo novas facetas, mas todas elas dentro do campo literário, como a poesia e a novela dividida em capítulos. O Aboio chegou a ser bastante acessado, na época em que eu postava diariamente, e foi justo a aceitação do público o que me deu a ideia de, posteriormente, publicar algumas daquelas crônicas no papel. Daí resultou o Aboio de fantasmas, meu segundo livro de crônicas. A autoficção (gênero que se tornou uma forte tendência na literatura 68

contemporânea) é um elemento bastante presente em seus livros. Tanto Aboio de Fantasmas (2014), narrado em primeira pessoa, quanto Tem uma lua na minha janela (2015), que apresenta diálogos entre seus filhos gêmeos Francisco e Flora, embaralham as categorias de biografia e ficção. Como você lida com a fronteira entre a ficção e a realidade? Essa pergunta é excelente. E muito difícil de responder, porque o caso talvez não seja exatamente de ter de lidar com essas fronteiras que você nomeia, mas antes de perguntar-se se elas de fato existem. Mais: se elas existem, por que é que as criamos e mantemos? Por que sentimos necessidade dessas delimitações? Eu também não sei responder, mas penso que reelaborar o vivido, para falar de um modo bastante simples de uma operação que de simples não tem nada, é uma necessidade que todos temos. Como diz Antônio Cândido, em “O direito à literatura”, todo ser humano sente a necessidade de fabular. Alguns fazem fofoca, mentem sobre os acontecimentos que vivenciam no dia a dia, para se vangloriar ou despertar a piedade dos demais; outros produzem memes, piadas, e assim por diante. Dessa mesma necessidade de reelaboração das experiências felizes ou dolorosas surgem os escritores. Os puristas não vão aceitar o que direi a seguir, mas eu não vejo uma diferença radical entre um modo de fabulação e outro. Vejo, sim, a diferença que existe na elaboração, no estilo ou como queiram chamar, que se baseia, entre outros elementos, no tempo dedicado ao trabalho de escrita, num certo cultivo da sensibilidade e no domínio mais, ou menos vasto, dos materiais que constituem o idioma. Principalmente neste último elemento, que, longo prazo, resulta da prática daqueles outros dois, mas que sozinho também não será suficiente para que alguém escreva uma obra de interesse. Não se deve, contudo, esquecer que, no fundo, há sempre uma base material que envolve e condiciona escritor e escrita. Trata-se de um trabalho a cujo desenvolvimento nem sempre são ofertadas as condições mínimas. Por outro lado, condições máximas, digamos assim, muitas vezes minam, paradoxalmente, algumas das fontes de reflexão que podem funcionar como motor da escrita. É o caso das experiências dolorosas, a que me referi acima. Esse pensamento faz retornar à primeira pergunta que você me dirigiu, sobre modus operandi... Assim, se o maior problema do homem é ele mesmo, há uma parcela de experiências que não pode ser sufocada por quem escreve. Toda fantasia necessita, em menor ou maior grau, de materiais e ferramentas conhecidos e palpáveis. Que base maior pode haver, para a criação literária, que a experiência do próprio escritor? E aí você me pergunta sobre a minha autoficção... Como costuma mesmo acontecer, no início eu não sabia que estava fazendo autoficção; eu só fazia. O professor Wilberth Salgueiro, na apresentação do Aboio de fantasmas, denomina-o “livro de memórias”, o que de fato é, e não é. Pode-se muito bem escrever sobre uma estada em Marte sem que se tenha estado lá; não contudo sem que se tenha realizado uma pesquisa com o material escrito sobre Marte ou, mais importante e usual: sem que se conheça muito bem um outro lugar qualquer, cujas idiossincrasias se possa aproveitar numa reelaboração escrita em que aparecerá, ao final, um lugar que será denominado “Marte”. Ou seja, algum nível de experiência é preciso que se tenha, o que não significa que tenha de se tratar, inequivocamente, de uma experiência de nível físico ou sensorial. Eu creio mesmo que é possível escrever bons livros apenas com base na leitura de bons livros. Isso também é experiência. 69

Porém, de um modo geral eu tendo a acreditar que tanto mais interessante para outros humanos se torna um texto literário quanto mais experimentador nos dois sentidos (físico, pessoal e como leitor) for aquele que escreve. Mas aqui já caminhamos para um terreno de nuances muito sutis, que demandam uma exemplificação mais farta. Assim, o que acontece no Aboio de fantasmas, tanto quanto no meu terceiro livro de crônicas, intitulado Tem uma lua na minha janela, é esse aproveitamento de um conjunto de experiências de observação e memória: físicas, psíquicas, sensórias, emotivas e também literárias (os jogos intertextuais estão presentes todo o tempo, de modo consciente ou não). Já o Tem uma lua é resultado de uma experiência que ainda me fascina, e que, para mim, é perene. Trata-se da reelaboração, em pequenas crônicas, de diálogos com crianças e de conversas ocorridas entre elas, uma fonte inesgotável de poesia e de questionamentos sobre o ser. É um livro acerca do qual eu colho sempre respostas muito positivas. As pessoas se sentem estimuladas inclusive a fazer o mesmo tipo de registro, atentando mais para a conversa dos pequenos, em que habitam o poeta e o filósofo que viemos perdendo pelo caminho. Como você define a sua obra? Eu labuto diariamente com o material expressivo de que disponho, tentando ampliá-lo na medida do possível, e luto todos os dias, também, contra as imposições de um mundo que quer nos enclausurar no universo do trabalho, ao mesmo tempo em que nos distrai de toda tarefa mais lúdica e lenta, que exija tempo, dedicação, algum grau de recolhimento e mesmo de solidão, como é a escrita. A minha produção é o resultado possível dessa luta e dessa labuta. Hoje eu não conseguiria defini-la de outro modo. Como você vê a recepção de sua obra? A recepção é um caso complicado de se avaliar. Raramente alguém diz “não gostei do seu livro”, não é mesmo? E tem um outro aspecto: à exceção dos livros de crítica literária, que são originariamente minha dissertação de mestrado e a tese de doutoramento, publicados respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro (Entre o palco e o porão. São Paulo: Annablume, 2004 e A máquina de escrita (de) Chico Buarque. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014), os meus demais livros (biografias, contos e crônicas) foram todos publicados em Vitória-ES. Os três livros de crônicas foram contemplados com o Prêmio Secult, um importante meio de publicação para quem vive no Espírito Santo. Contudo, a circulação dessa produção, que é anual, acaba ficando restrita ao próprio estado, devido à ausência de divulgação e distribuição fora daqui. Considerada essa dificuldade de circulação, em geral fico muito contente em colher comentários de leitores de círculos variados... Como leciono na graduação e no mestrado de Letras, acabo tendo um público interessado, e de certo modo especializado, que lê, comenta, recomenda... Fora desse pequeno universo privilegiado de leitores, é sempre uma surpresa feliz conhecer alguém que leu e que diz ter sido tocado por um texto meu. Além disso, eu jamais digo não aos convites para participar de círculos de leitura de textos meus, para dar palestras, oficinas ou bater papo com alunos de quaisquer níveis de escolaridade. Desse modo eu 70

tento auxiliar na ampliação dos modos e canais de recepção. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Por um lado, os tentáculos de um mercado viciado e, aparentemente, inflado – mas que é sempre um mercado. Onde a palavra-chave é lucro, a preocupação com a elevação dos níveis de produção só interessa na medida em que a demanda exija isso. Eu mesma, por razões ideológicas, não me furto a reconhecer no meu trabalho de escrita o fato de ele ser um produto – mas ele pode ser um produto que se faz meramente para vender, somente para lucrar... ou não. Se um escritor publica um texto que corresponde aos seus anseios e ainda por cima consegue viver desse trabalho, está mais que certo. Afinal, nós vivemos numa sociedade capitalista. O problema que vejo é reduzir-se a literatura a um produto como outro qualquer. Com isso eu já não concordo. Apenas de um determinado ponto de vista a escrita é um trabalho como os demais. Considerada a recepção e outros elementos que a envolvem, temos de levar em conta também uma certa especificidade que faz da arte um produto diferencial. É uma dimensão que seria lamentável que se perdesse completamente. Porém, se há hoje claros sintomas dessa produção viciada, que traz no seu rastro, entre outros “fenômenos”, o do autor como celebridade, suspeito que o descaso com a educação, no Brasil, seja uma das razões, porque afinal a preparação de leitores passa por aí. Por outro lado, percebo uma crise de quê e como dizer, provavelmente também resultante, longo prazo, desse contexto de sucateamento da educação, mas cujas origens têm de ser estudadas de modo mais detido. Qualquer afirmação sobre isso feita durante uma curta entrevista como esta seria leviana. Dos resultados dessa crise, porém, eu falo como alguém que tem participado, nos últimos anos, de bancas de avaliação de contos, romances e livros infantojuvenis para publicação em prêmios de abrangência nacional. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Do mesmo modo que acontece com a prosa, na poesia brasileira atual também há muita gente escrevendo sem publicar, enquanto há outros que, ao contrário, seria melhor que não publicassem e dedicassem, talvez, um tempo maior à maturação da própria escrita. Ocorrem fatos muito curiosos nessa área, como pessoas “publicando-se” praticamente sem escrever. Imagine que até o presidente ilegítimo (Michel Temer) se condecorou poeta, com uns versos que dão até vergonha. Eu amo a poesia, mas é um território em que a ilusão, melhor dizendo, o delírio de simplicidade que o formato verso oferece faz com que algumas pessoas se enganem muito. Nada tenho contra que cada um escreva o que quiser, como quiser, onde quiser... Mas aí eu também vou reafirmar o meu direito de leitora: não gosto de perder tempo com pós-neo-parnasianos, a pieguice romântica me entedia e a auto-ajuda em versos me irrita do mesmo modo que poetas natimortos, incensados nas fraldas, e egos maiores que as obras. Mas tenho conhecido muita coisa boa, principalmente poetas mulheres apresentadas a mim por amigos e por meus jovens alunos através da internet. Algumas dessas poetas são letristas de 71

bandas que fazem um belo trabalho com o verso, acompanhado ou não de instrumentos musicais. Você considera importante que uma professora de literatura também seja escritora? De modo algum. São tarefas muito distintas. A um professor é indispensável conhecer aquilo que ensina. Entretanto, no caso da literatura, abranger essa produção na totalidade é uma tarefa impossível, por razões óbvias de amplitude do universo já existente, além da constante renovação da produção – mesmo que se considere apenas o cânone de um determinado país ou idioma. Para além disso, conhecer não é a única tarefa de um professor de literatura, que se desdobra em crítico e – creio estar aí o seu papel principal – em pedagogo: saber acolher, criar empatia para poder conduzir e orientar, despertando assim o interesse do aluno pela literatura – é isso o que diferencia, no fundo, um professor de um mero sabedor e reprodutor de conteúdos. Juntamente com isso eu destacaria a capacidade de leitura crítica de texto e de mundo, algo que também não basta que o professor mesmo exercite, mas que é fundamental que mostre aos seus alunos como fazer. Algo sem quê, mais uma vez, o professor será antes um replicador de ideologias, algo a que, de verdade, nunca escapamos completamente, é sabido, mas contra quê o embate deve ser diário. Quanto a escrever, aí já são outros quinhentos. Eu sinto que quem escreve experimenta um outro lado da textualidade, que pode até abrir possibilidades de um entendimento maior de certas instâncias da escrita. Porém, daí a fazer com que isso reverta em ganhos para uma turma de educandos, não creio que seja um caminho inequívoco. Alterando um pouco a sua pergunta, eu posso inclusive formular uma outra, que parece ter uma resposta mais fácil: um escritor será melhor professor de produção de texto que um professor que não escreve? Não obrigatoriamente. Alguns relatos que tenho colhido mostram mesmo o contrário. E pelas mesmas razões que aleguei antes, sobre os traços que eu acredito que deve ter um bom professor. Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever e podem se tornar escritores? Um professor, em qualquer nível da educação, costuma conviver com os alunos durante anos. Se ele não estiver ali somente aguardando a hora de ir embora ou a data da aposentadoria (esse termo antiquado no Brasil pós-golpe), ao certo consegue perceber muita coisa. Percebe-se quando um aluno tem uma vida tão conturbada que dificilmente algo que você diga em aula oferece a ele um antídoto, ainda que temporário. Percebe-se também, ao contrário, quando aqueles momentos que ele passa ali, podendo fruir uma arte, que é a literatura, talvez sejam o refúgio necessário a um cotidiano repleto de impedimentos e tribulações difíceis de imaginar, mesmo para uma mente criativa. Às vezes a gente erra na percepção, também. Para o bem e para o mal. Em meio a isso tudo, desde que a oportunidade de ter contato com, tanto quanto de elaborar uma escrita criativa, lhes seja dada, muitos alunos terão a sua iniciação na escrita literária nas aulas de Língua Portuguesa – não tenho a menor dúvida. Devemos apenas ter cuidado para, no rastro de um talento que se revela, 72

não nos esquecermos de que o nosso papel, como professores, não é o de descobrir futuros talentos para a literatura, mas o de auxiliar e incentivar os pequenos talentos de superação das dificuldades básicas com o aprendizado do idioma, que a maioria dos alunos traz. É por esses alunos, mais que tudo, que trabalhamos. Eu me sinto infinitamente mais realizada quando percebo uma pequena melhora naquele que traz grandes dificuldades, do que quando noto em sala um aluno promissor. Estes necessitam um pouco menos do professor que há em nós. Ambas as situações são perceptíveis com muita frequência na vida de quem já leciona há quase trinta anos, como é o meu caso. O que você está escrevendo no momento? Acabo de ser contemplada com o prêmio Secult-ES para publicação de um livro infantojuvenil. É a minha estreia nessa seara, embora os personagens e narradores que com mais afeto alentei, na minha ficção, tenham sido sempre crianças. Até o final do ano, pretendo finalizar um romance que venho trabalhando no modus operandi formiga há alguns anos, já. Penso que essa minha primeira narrativa de maior fôlego seja aquilo a que se chama mais inequivocamente autoficção, e tem me dado muito trabalho, tanto pela constante reescrita que o texto me solicita, quanto pelo fato de envolver eventos e pessoas que eu tenho que retirar daquele planeta imaginário, de que falei antes, para conduzi-los até um planeta real, na narrativa. Ou será o contrário? Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? O verbo afetar foi muito bem escolhido para essa pergunta. Quero entendê-lo aqui em suas diversas acepções, para poder formular a minha resposta. O fato de vivermos em uma sociedade machista afeta a mulher desde o seu nascimento, quando ela começa a ser tornada mulher. Ser cobrada no sentido de assunção daquilo que a sociedade determina que deve compor esse papel e enredada na infinita rede de idiossincrasias que o compõem no imaginário dos homens (e das mulheres) num mundo assim já é um peso demasiado grande. Daí decorre a série de injustiças e violências, de todos os tipos imagináveis, a que nós, mulheres, somos submetidas cotidianamente, em todas as instâncias e cenários sociais, com agravo para as mulheres negras, as mulheres pobres e as homoafetivas. Eu poderia falar sobre isso durante horas e não esgotaria o rol de exemplos de situações discriminatórias com que me deparo no dia a dia, e que afetam a mim ou às mulheres com as quais convivo. Porém nesta ocasião eu gostaria de destacar um aspecto específico, que a sua pergunta tangencia: assim como acontece nas demais áreas de atuação, também na literatura, é claro, é preciso matar um leão por dia. Primeiro porque escrita é pensamento, e a parcela mais tacanha da nossa sociedade continua esperando da mulher que ela pense diferente do homem em vários aspectos, para dizer o mínimo. Daí resulta que parte do público leitor se encaminhe para os textos escritos por mulheres esperando encontrar algo como o que se chamou, um dia, a “escrita feminina”, ou o tal “universo feminino” – esse 73

país não constava do meu Atlas. Ainda por cima, muitas mulheres, por razões as mais diversas, ajudam a compor o painel opressor sobre outras mulheres mais ativas, sobre aquelas que não se submetem às normas patriarcais (que em tudo coincidem – quanta coincidência! – com as imposições do mercado, aquelas feitas pelo universo da moda, por exemplo, que dita comportamentos e modos de consumo etc.) Além do mercado, têm um papel muito importante na reprodução desse esquema repressor as religiões em geral, em especial as de expressão fundamentalista, e a escola. Justo a escola, que poderia ser o lugar de uma educação libertadora, por ser um tentáculo do estado ou do mercado, além de receber, direta ou indiretamente, a influência das religiões dominantes, é sexista e, obviamente, reproduz a sociedade machista em que nos debatemos aqui fora. Num país como o nosso, as escolas em geral ensinam às crianças, desde a mais tenra idade, que há universos e papeis reciprocamente excludentes para homens e mulheres. E isso segue assim em todos os níveis da educação. Vou dar apenas alguns singelos exemplos do que observo no cotidiano dos meus filhos: a escola adota uniformes diferenciados para meninas e meninos; meninas e meninos seguem em filas diferentes (já é bastante impressionante que em algumas escolas ainda sigam em filas, hasteiem a bandeira e cantem o hino nacional!) no deslocamento entre os espaços dentro da escola. Apenas mais um detalhe, para não alongar muito esta resposta: os pais dos coleguinhas dos meus filhos, quando dão festas de aniversário, convidam apenas os meninos para as festas dos meninos (que costumam ser um jogo de futebol) e apenas as meninas para as festas das meninas (que costumam ser decoradas, em cor de rosa, com a inovadora temática da princesa). Assim sendo, se você me pergunta como o machismo afeta a minha escrita, eu tenho de responder que o machismo afeta, deturpa, estraga e diminui a vida das mulheres. Se a escrita passa pela vivência, então ela deve carregar as marcas de todo esse histórico de opressão, nas suas formas e nos seus conteúdos. Faço só mais este adendo sobre o assunto: a professora Maria Amélia Dalvi (UFES) tem realizado uma importante pesquisa sobre a presença feminina em um certo âmbito da literatura, que é a crítica literária acadêmica. Analisando o número de mulheres e homens ingressantes nos programas de pós-graduação em Letras da universidade em que atua e comparando-o com o objeto de estudo escolhido (obras de autores ou de autoras), a pesquisadora concluiu que mesmo as pesquisadoras mulheres, que são maioria nos cursos de mestrado e doutorado, demonstram pouco interesse pela literatura feita por mulheres, sejam estas últimas brasileiras ou estrangeiras, clássicas ou contemporâneas, incluídas ou não nos cânones correntes. Enfim, a luta é constante e seu território é vasto... Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como 74

coda do atual estágio da humanidade? São perguntas que eu mesma me faço todos os dias: o mundo piorou rapidamente ou eu é que estava dormindo? Creio que eu não estivesse dormindo, mas sim que o agravamento dos quadros de intolerância, violência e ameaça à vida em geral tenham se tornado mais visíveis nos últimos anos, em diversos níveis, espalhando-se por inúmeros pontos do globo, o que indica sim uma nova onda. Uma nova onda de pensamento e atitudes velhas, que muitos de nós, talvez ingenuamente, imaginávamos, ao menos em parte, superados. Eu não sei de alguém que consiga explicar muito bem de onde vêm, volta e meia, no percurso da história humana, essas ondas, mas, na minha modesta, porque limitada, análise, nunca desprezei o aspecto ideológico (essa palavra cujo sentido a direita, no Brasil, vem tentando esvaziar). Se o capital é internacional, alguns aspectos da ideologia dominante também o são. Assim se dá que o mal rompa as fronteiras continentais, que ele vença as barreiras dos idiomas... O mal tem livre circulação no mercado. Todos os dias, quando desperto, me vêm à lembrança, imediatamente: a ameaça de uma guerra nuclear, a situação política do Brasil e o meu próprio envelhecimento, que se insinua. Não necessariamente nessa ordem, rs. Não é fácil olhar para trás e ver que, há algum tempo já, vínhamos pregando, por exemplo, a ideia da solidariedade em substituição ao conceito inadequado de tolerância... Que nos alegrávamos em pensar a hospitalidade como um valor importante a reger as novas políticas de imigração entre os povos, para agora termos de retroceder ao apelo mais elementar de respeito à vida. Fome, guerras, desrespeito aos direitos das minorias, ataques cruentos a etnias fragilizadas ao longo do processo de mundialização do capital, com o retorno de movimentos fundamentalistas, nazistas e de matizes neofascistas compõem o quadro que temos de enfrentar hoje, sem saber ao certo como. Como resultado da sanha dominadora do império estadunidense, no Brasil, como vem ocorrendo em diversos outros países da América Latina, a frágil democracia pela qual tanto se lutou, de um golpe foi lançada na lata do lixo, da maneira mais inescrupulosa e cínica, por uma casta política representante das elites e do mercado, que em 2016 tomou de assalto o poder, depois de ter sido rechaçada nas urnas por quatro eleições consecutivas, em que o povo, por meio do voto direto, escolheu o Partido dos Trabalhadores para representá-lo. Enfim, imaginar-me saindo do mundo e deixando às novas gerações tão duro legado entristece e angustia, mas todos os dias é preciso seguir fazendo, seguir falando, escrevendo, lutando.

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Andressa Zoi Nathanailidis Nasceu em Vitória (ES), em 1980. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2017.

Você concluiu três graduações: primeiro em Direito, depois em Música, com habilitação em Piano, e por fim em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Também cursou especialização, mestrado e doutorado na área de Estudos Literários. Como se realiza essa conexão entre outros saberes e a literatura? Esta é uma pergunta bem difícil... Mas, vamos lá! Eu diria que a literatura é o ponto de encontro dessas três áreas pelas quais transitei em minha formação. A cada dia, uma conexão diferente se mostra a meus olhos, seja por meio de um relato ou testemunho cuja cobertura não seria possível na imprensa oficial, seja na poesia que volta e meia encontro na letra de alguma canção, ou nas representações sociais, que descortinam nosso país e o mundo, denunciando a realidade de grupos minoritários, muitas vezes ignorados por parte das camadas mais abastadas, negligenciados pela lei. A literatura, creio, conecta todos os saberes... Na medida em que exercitamos a literatura – seja como autores ou como leitores –, compreendemos melhor o nosso próprio meio, aprendemos a refletir, a questionar... Enfim, ganhamos mais força face à tarefa de assumir melhor as rédeas de nossa própria vida. Isso me lembra e faz concordar com os dizeres de Antonio Candido, quando afirma que “a literatura deveria ser um direito garantido a todos os cidadãos”. Cada escritora possui um modus operandi, por assim dizer... Fale sobre o seu processo criativo e o seu método de escrita. Escrevo geralmente à noite, em momentos de insônia. Gosto do silêncio da noite, acho que a escrita flui melhor. Geralmente o que escrevo tem a ver com fatos transcorridos... Não exatamente comigo. Pode ser, como também pode não ser. Sou curiosa e muito observadora. Volta e meia vejo histórias que me chamam à atenção. Busco o cerne dessas histórias... Às vezes, eu as registro integralmente, utilizando-me de nomes fictícios; outras vezes, deixo a imaginação fluir por completo... E das histórias reais, surgem novas histórias. É um exercício constante de memória e criatividade. Seu livro Ζωή (vida) reúne textos de várias épocas e registra diversas etapas da trajetória de vida de um ser humano. Em que momento da vida você se percebeu uma escritora de verdade? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Sempre gostei de escrever. Era uma das minhas “brincadeiras” favoritas, quando criança. Escrevia cartas para os coleguinhas, escrevia diário, inventava histórias em quadrinhos e tinha um caderno de poemas. Aos 15 anos, comecei a participar de concursos literários e antologias. Participei de vários pela Câmara Brasileira dos Jovens Escritores (CBJE). Depois disso, não parei mais... As coisas 76

foram acontecendo de forma natural... Ζωή (vida) chegou em 2014, com registros que vão desde essa época, até períodos mais atuais. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Vejo uma enorme tendência à subjetividade, aos escritos de si. Uma literatura pautada em experiências individuais, de base testemunhal e, às vezes, confessional. Não vejo muito engajamento, muita preocupação com o cenário político social – a não ser na chamada “literatura marginal”, em que a experiência pessoal se dá lado a lado a um descaso profundo do Estado perante as pessoas que falam desse determinado lócus. De modo geral, percebo, ao contrário, uma necessidade dos sujeitos de compreenderem a si mesmos, seus problemas, suas reflexões, seus fluxos sentimentais. Mas é bem difícil a gente interpretar o que acontece em nosso próprio tempo. Acredito que uma definição mesmo do que seja a natureza dessas nossas produções é algo que só virá à tona, com precisão, daqui a muitos anos. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você percebe esse problema? É algo que me entristece. Mas vejo como uma questão cultural. O Brasil não é um país de leitores e, sob esse aspecto, a poesia é ainda mais “marginal”. Acredito que, como a música erudita, a poesia não tem muito público porque as pessoas desconhecem. Não é porque não gostam, mas porque desconhecem. Cabe a nós difundirmos e estimularmos a leitura, para que esse cenário um dia possa vir a mudar. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

O Brasil vive um momento político complexo. Fazer qualquer coisa por aqui tem se tornado algo difícil. Infelizmente, não temos uma tradição que busca o valorizar da cultura e, hoje em dia, esse cenário está ainda pior. Temos tido enormes cortes nas leis de incentivo à cultura; com isso fica difícil publicar. O custo para publicações independentes é alto. Muitas editoras priorizam autores já conhecidos. Quando o autor não tem condições para arcar com os custos da publicação, geralmente opta por algum tipo de acordo junto às editoras. Mas aí, acaba que o lucro repassado ao escritor é muito pequeno. É difícil! O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? Considero a internet uma importante ferramenta, com aspectos positivos e negativos para a literatura. Por um lado, ela estimula a criatividade. É frequente ver pessoas comuns utilizando-se de suas redes sociais para brincar com as palavras, escrevendo minicontos, crônicas ou poemas. A internet tem disso... Aguçar a criatividade! Propõe a utilização da hipermídia, propicia também o diálogo com outras artes. Vídeo, Texto, Foto, Música, Desenho... Várias linguagens unidas que despertam autores e leitores, viabilizando textos instigantes. Pela internet, a possibilidade de exer77

cer a publicidade de livros impressos também aumentou muito e hoje atinge um número maior de pessoas. A compra e a troca de livros são constantes... Surgem os chamados vlogs literários, em que as pessoas resenham obras diversas e se relacionam, unidas pelo apreço à literatura. Acho isso tudo muito bom! Mas vejo também pontos negativos nesse processo. Como numa “terra de ninguém”, proliferam na internet, também, obras comerciais. Com linguajar pobre e pouca ou nenhuma preocupação estética, essas obras atingem um contingente massivo de pessoas, que aderem a esse tipo de leitura por ser, geralmente, de mais “fácil” compreensão. Outro aspecto que considero negativo (e de solução bastante complicada) é a questão dos direitos autorais. Hoje em dia, qualquer pessoa digitaliza um livro por completo e disponibiliza ao download. É difícil estabelecer esse controle. Você considera importante que uma professora de gêneros textuais também seja escritora? Não sei se é importante, mas tenho vivido experiências interessantes nesse sentido. Eu virei uma espécie de “guru”, “conselheira para assuntos literários”. Os alunos me perguntam sobre a qualidade dos textos que produzem, querem saber como fazer para publicar, quais são as leis de incentivo e se vale ou não à pena publicar de forma independente. Dentro das minhas possibilidades, eu ofereço a orientação e busco estimulá-los à escrita estética. Organizo um sarau a cada seis meses, quando os alunos têm a oportunidade de apresentar e representar as próprias produções... Poemas, contos e crônicas. Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever e que podem vir a ser escritores? Sim! É interessante como se dá. Os alunos, geralmente, são muito tímidos para essas questões. Há muita gente que escreve... Diuturnamente. Seja na intenção de se tornar um autor, ou mesmo sem saber “por quê” e “para quê” escrever. Mas escrevem. Independentemente das exigências da disciplina. Escrevem porque gostam. E, nesse sentido, são comuns algumas situações: fim de aula... 22h50... Todos já desceram. Enquanto estou arrumando o meu material para ir também, chega um aluno e me pergunta: posso te mostrar uma coisa? E quando vou ver... Lá está um poema ou um conto. Produções excelentes! Você está escrevendo algum livro no momento? Sim. Tenho um romance, praticamente finalizado. Acabo de escolher o título, que será: Ponto Cruz. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje?  Vivemos, sem dúvida, um tempo de extremos, polarizações. É algo realmente que emana “ventos” de medo e incerteza face a qualquer olhar um pouco 78

mais crítico. Acredito que as essências (des)humanas sempre estiveram presentes nos homens. Mas isso tudo é potencializado em função de uma realidade globalizada na qual o fluxo de informações é muito intenso, amparado e ratificado por um cenário tecnológico de “relativo” fácil acesso às pessoas.  A migração dos pensamentos para o ambiente digital é uma realidade. Todos, de alguma forma, são influenciadores, formadores de opinião.  Essa é  uma característica de nossa época-espetáculo. Aquilo que eu vivo ou penso só ganha sentido perante o olhar do outro... Se for lido, testemunhado pelo outro lado da tela. De modo que, absolutamente, tudo é proferido e escancarado, numa espécie de terra de ninguém onde tudo ou quase tudo encontra-se no campo das possibilidades: virtudes e defeitos; posicionamentos políticos e sociais...  Numa miscelânea ou torre de Babel que reverbera o que há no humano, inclusive suas desumanidades. O que antes ficava restrito a determinado grupo de pessoas no mundo real, hoje se torna público e maximiza seus efeitos e discursos perante a vida real... é a palavra carregada de ideologia e dialogia... Percebendo esse contexto, alguns grupos buscam se fazer majoritários, exercendo dominação sobre outros, na mesma medida em que buscam também, no ciberespaço, agrupar um número maior de adeptos ou seguidores, atingindo mais força discursiva. É uma realidade violenta e ao mesmo tempo performática, um caminho complexo que envolve o discurso e a tentativa de convencimento. Por ser um não-lugar múltiplo em sua essência, muitos conservam face a ele a noção de impunidade, e é aí que tudo se vê e se faz, abertamente. Alguns exemplos, no entanto e felizmente, nos mostram que a lei de alguma forma se faz presente ali. Lembro agora de uma dentista no Tocantins que foi presa por postar mensagens de cunho racista. É um tempo de velocidades, difícil de acompanhar, em função de nossas próprias identidades, múltiplas e ao mesmo tempo fragmentadas. Um tempo perigoso, em que aqueles que conseguem uma articulação maior, inclusive para o mal, podem se tornar dominadores, podem manipular.  Por tudo isso é preciso estar atento.  

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Antônio Cândido da Silva Nasceu em Humaitá (AM), em 1941. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Erlândia Ribeiro e Vitor Cei em agosto de 2016.

Cada escritor tem um modus operandi, por assim dizer... Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Comecei a fazer poesia por volta dos quatorze anos. Mas só tive coragem de publicar, no jornal, quando eu já estava nos trinta e poucos anos. Quanto ao meu processo criativo, eu sou rigoroso naquilo que faço. Posso não agradar, mas tenho a certeza de que, ao publicar um livro, eu evoluí. Não me julgo, ainda, um escritor de verdade. Há muito que aprender e melhorar. Ter a oportunidade de escrever em uma coluna de jornal (eletrônico ou impresso), nesse caso, o Gente de Opinião, permite atingir um considerável número de leitores. Você aborda variados temas em suas crônicas, indo da política à prosa poética. Como você enxerga essa liberdade de escrita? Como é a sua relação com os leitores? Ter a oportunidade de mostrar o seu trabalho é bom para o escritor, e o Gente de Opinião nos oferece essa possibilidade de chegarmos a um seleto grupo de leitores, mas não nos garante atingirmos todas as camadas sociais, que é o que deseja qualquer escritor. O site nos oferece a liberdade de escrever sobre qualquer assunto, mas, na prática, com exceção de raríssimos comentários, você não sabe se agradou ou não. Por outro lado, isso é bom porque nos leva a procurarmos ser melhores. Você está escrevendo algum livro no momento? Estou terminando o meu sexto romance e, dos treze livros escritos, tenho apenas cinco publicados. Nas terras do até que enfim trata da migração de um grupo de paranaenses, no início de 1972, para as terras do Projeto Integrado de Colonização Ouro Preto e, a meu ver, deve cair no agrado dos meus leitores. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Infelizmente, não tenho as qualidades do meu xará Antonio Candido, um dos maiores críticos literários da nossa literatura. Quanto à poesia atual, o que posso dizer é que poesia é criação e arte e, como toda arte, cada um faz a sua e deve ser feita sem a pretensão de agradar a todos. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? No ato de escrever, a literatura foi beneficiada pela facilidade de buscar informações, como, por exemplo, saber o tipo de roupa usada no século passado para ser descrita em um romance que se está fazendo. Mas a grande mudança está 80

na acessibilidade de divulgação e comercialização, no surgimento do e-book e na facilidade de se baixar livros livres de direitos autorais. Como você avalia a recepção da sua obra? Madeira-Mamoré – O Vagão dos Esquecidos, Vila Amazônia e Diaruí já ultrapassaram as fronteiras de Rondônia. Já os remeti, a pedido dos interessados, para trabalhos em mestrados e doutorados para as cidades de Manaus, Belém, Guajará-Mirim, João Pessoa, Assis-SP e São Paulo-Capital. Os livros citados, também, fazem parte do acervo da Biblioteca de Washington (https://catalog.loc.gov). Pesquisa por SILVA – Antônio Cândido. Como você define sua obra? Precisando melhorar, sempre. Como você vive o ato de recitar? Para bem recitar, entre outras coisas, procuro assumir o papel de um ator na interpretação de uma cena. Senão será apenas a leitura insossa de um texto sem graça.  No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Experimente chegar a grupo de pessoas e dizer: ...no meio do caminho tinha uma pedra. Ou: Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Você verá que todo mundo completará o poema. Acontece que além do pouco incentivo ao hábito da leitura, é difícil para o brasileiro sacrificar um almoço para a sua família para comprar um livro que, diga-se de passagem, custa muito caro. Como foi o processo de se tornar membro da Academia de Letras de Rondônia e da União Brasileira de Escritores – UBE? Fazer parte desses grupos já bastante conceituados é algo muito significativo ou faz parte de um processo a que o escritor está sujeito? Além de estar no lugar certo e na hora certa devo, em muito, à generosidade dos meus confrades. No mais, Olavo Bilac devia estar certo quando disse: “É claro que sou imortal. Não tenho onde cair morto.”...

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Antônio Torres Nasceu em Junco, atual Sátiro Dias (BA), em 1940. Vive em Itaipava, distrito de Petrópolis (RJ). Entrevista concedida a André Tessaro Pelinser e Letícia Malloy em julho de 2018.

  Cada escritor possui um método e um estilo de trabalho próprios. Em sua ficção comparecem com igual ênfase espaços urbanos e rurais, os quais são abordados por um viés crítico que frequentemente explora os deslizamentos de uma realidade sobre a outra. Tal característica se faz bastante evidente, por exemplo, na imagem do homem do campo que migra para a cidade e depois retorna para o interior, tal como é proposto em Essa terra (Ática, 1976) e retomado em O cachorro e o lobo (Record, 1997) e Pelo fundo da agulha (Record, 2006). Levando-se em conta esses elementos, que parecem um motivo constante em sua ficção, você poderia nos falar um pouco sobre as opções temáticas que norteiam seu projeto literário? É uma longa história. Que começa numa noite perdida nos confins do tempo, lá pelo ano de 1973. Era uma sexta-feira, e eu, recém-casado com a Sonia, que é carioca, estava de volta a São Paulo, pela quinta vez, e desta para trabalhar numa trepidante agência de publicidade situada num prédio imenso da Avenida Paulista. E já tendo publicado um segundo romance. Naquela noite ela me pediu para lhe contar como tinha sido a minha infância. Enquanto puxava pelas minhas memórias, via sinais de enternecimento em seu rosto. No sábado, logo ao acordar, fui direto para a máquina de escrever, diante da qual iria passar a maior parte do dia até chegar ao ponto final de um conto intitulado “Segundo Nego de Roseno”, que, na segunda-feira, seria submetido à avaliação de um contista, o Wladyr Nader, à época editor do caderno Folha Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo. A semana foi passando sem um telefonema do Wladyr, e o seu silêncio parecia dizer tudo. Até chegar o outro sábado e eu ser surpreendido com a publicação do conto na Folha, o que levou um amigo pernambucano, Aluízio Falcão – também jornalista, também redator publicitário, também escritor – a me visitar. Para me dizer que a partir daquele conto eu tinha o patriótico dever de escrever um romance ambientado no Nordeste. Numa tarde em que eu não conseguia ter ideia alguma para um anúncio de mais um torno, mais um forno, mais um volks, por causa do barulho das obras do metrô na Paulista, desci doze andares até o bar na galeria daquele mesmo edifício. E lá, enquanto bebia alguma coisa, observava os operários em seu trabalho. Resolvi me aproximar de um deles, para tentar saber de onde tinha vindo. Resposta: do Nordeste. Como eu. E o trabalhador ao lado. E mais outros. Como em todo lado, eu sabia: para pegar no pesado nas ruas, nas fábricas, na construção civil. E eu com as mãos numa máquina de escrever, numa sala refrigerada, para vender o que eles produziam a derramar suor por todos os poros. Senti-me no centro de um paradoxo. Regressei ao batente com uma história na cabeça: a de um conterrâneo meu que, depois de muitas idas e vindas de São Paulo deu um adeus ao seu ir-e-vir 82

enlaçando o pescoço numa corda. E aí, em vez de encarar o job (com perdão pelo jargão publicitário) mais urgente à minha espera, bati a seguinte frase: “Se estiver vivo, um dia ele aparece, foi o que eu sempre disse”. Guardei-a no bolso, certo de que tinha achado o começo do romance que o nordestino Aluízio Falcão havia me cobrado. E que iria me levar de volta duas vezes à terra em que nasci, em busca da história daquele homem. Mas ninguém viria a me contar nada. Aos poucos, fui compreendendo que a negação dos fatos é que era o fato principal. Porque o sonho do lugar era partir. Aquele que partiu, voltou e se matou, matou o sonho de todos. Portanto, o  Essa terra tem a sua gênese num conto memorialístico, passa pelo fantasma de um suicida, o que me acarretou perturbações, a ponto de ir parar na psicanálise. Entendo que foi o sinuoso processo da sua realização o que norteou o que viria a resultar num projeto (involuntário) de uma trilogia.                  Em sua obra é possível perceber um intenso trabalho com a linguagem, em busca de potencializar a imagem poética do texto. Em  Essa terra  (1976), desde o primeiro capítulo esse interesse fica evidente em trechos como: “Naquela hora eu podia fazer uma linha reta da minha cabeça até o sol e, como um macaco numa corda, subir por ela até Deus – eu, que nunca tinha precisado saber as horas.” Anos depois, o mesmo procedimento reaparece em sua literatura infantil, como se verifica em Minu, o gato azul (Rocco, 2007), cujo protagonista apenas fingia dormir, “para assuntar os acontecimentos, enquanto bolava uma nova aprontação.” Em que medida esses procedimentos dizem de seu processo criativo? Você poderia comentar algumas das opções formais adotadas em seus textos? Imagino que esses procedimentos se originaram na minha infância rural, quando uma vizinha costumava animar a roda em torno de um pé de fogão a dedilhar uma viola, enquanto, para espantar o medo da noite, cantava rimances que sabia de cor, como o do Pavão misterioso, o de Canção de fogo, A chegada de Lampião ao inferno, e por aí ia. Naquele mundo agrário e ágrafo, vivia-se no reino da oralidade. Deve ter sido naquelas memoráveis noites que a poesia e a música começaram a me dar régua e compasso. Vivo o tempo todo buscando para o meu texto a invisível corrente rítmica de que falava Octavio Paz, para quem a linguagem nasce do ritmo. Daí me considerar um romancista que escreve de ouvido – um ouvido que procura se afinar tanto ao som dos violeiros e sanfoneiros nordestinos, quanto do piano de Thelonious Monk, Tom Jobim e Mozart, do trompete de Miles Davis, do violão do nosso Baden Powell etc, como é audível na trilha sonora de um romance chamado Um táxi para Viena d’Áustria.       Sua trajetória literária é marcada sobretudo pelo gênero romance, mas recentemente passou a incluir também literatura infantil, crônica, memória e perfis. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? O desejo de escrever começou na escola, entre cantorias de hinos ufanistas, leituras em voz alta de textos em verso e prosa e exercícios de redação, que a professora chamava de composição escolar. Ela também ensinava a escrever cartas e não demorou a me pôr num palanque a recitar o  auriverde pendão da minha terra e suas divinas promessas da esperança. No princípio, eu queria era 83

ser poeta. Cheguei mesmo a rabiscar os meus poemas, que escondia dos adultos. Mais adiante, já no ginásio, um professor me aconselhou a desistir da poesia e a tentar a ficção. Levei o seu conselho a sério e cá estou, com 11 romances, um livro de contos – Meninos, eu conto – e mais algumas coisinhas na bagagem. O meu caso com a escrita foi o de um amor à primeira leitura.           Hoje você faz parte da Academia Brasileira de Letras, seu trabalho é reconhecido nacional e internacionalmente, recebeu importantes prêmios e foi traduzido para diversos idiomas. É sabido que  Essa terra  (1976) alcançou sucesso imediato, mas uma carreira como a sua não se constrói a partir de um único livro. Como você avalia a recepção da sua obra, no Brasil e no exterior? Os eventos e prêmios literários têm papel de destaque nesse sentido? Entrei na literatura pela porta dos fundos. Era um estranho no ninho, sem nenhum compadre a quem recorrer. Mas, mesmo publicado por uma pequena editora, o meu romance de estreia teve a sorte de causar impacto junto à crítica – que o considerou a revelação daquele ano de 1972, como foi escrito com todas as letras no jornal O Estado de S. Paulo –, e ao público. Isso me levou, a partir do passo seguinte, a cair numa grande editora. E fui em frente. É preciso considerar os fatores que foram determinantes para essa escalada: primeiro, a existência de críticos literários operantes em praticamente toda a imprensa brasileira, com colunas semanais, ou até diárias, e que eram muito lidas. Esses críticos desempenhavam o papel de intermediários entre os autores e os leitores, e a eles devo muito. Segundo: cresci junto com a minha geração – uma geração bem lida, da Manaus de Márcio Souza à Porto Alegre de Moacyr Scliar, e da qual, entre muitos mais, sobressaem os nomes de Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, Nélida Piñon, João Ubaldo Ribeiro, Ana Maria Machado, Raduan Nassar, Oswaldo França Júnior, Roberto Drummond, Wander Pirolli, Marina Colasanti, Luiz Vilela... Foi essa geração que ganhou o país, falando em tudo quanto era canto, principalmente nas universidades, de forma um tanto mambembe, em nada se assemelhando aos grandes eventos de hoje, mas com muito calor, muita energia. Agora, a espetacularização a que estamos submetidos parece trazer mais espectadores do que leitores. A minha impressão é a de que o público de hoje está mais interessado em ouvir os escritores do que em lê-los. Mesmo assim, sobrevivemos, ainda que a remar contra as marés da globalização. Seus dois primeiros romances,  Um cão uivando para a lua  (Edições Gernasa, 1972) e Os homens dos pés redondos (Francisco Alves, 1973) foram muito bem recebidos pela crítica, mas foi com Essa terra, de 1976, que sua obra obteve o reconhecimento decisivo. Nesse romance observam-se características próprias da contemporaneidade, como a fragmentação dos episódios, resultante do constante e por vezes repentino movimento do foco narrativo entre o presente, o passado e mesmo por tempos indeterminados. Com que autores você procurou dialogar, ao longo de seu percurso, para explorar procedimentos formais característicos das literaturas contemporâneas?  Assim como Guimarães Rosa e William Faulkner dialogaram com James Joyce, eu venho tentando dialogar com esses três, e Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, mais os nossos poetas modernistas, e Scott Fitzgerald, 84

Carson McCullers, Juan Rulfo e Boris Vian – o moderníssimo autor de A espuma dos dias –, João Cabral de Melo Neto e Allen Ginsberg, sem esquecer o poeta português Alexandre O’Neill, que foi o meu tutor literário nos anos em que morei em Portugal, de 1965 a 1968. Esses são alguns dos meus santos de cabeceira.   Ainda no que se refere ao espaço, você é originário do interior da Bahia e lá optou por situar algumas de suas histórias mais marcantes. Isso fez com que sua obra seguidamente fosse associada ao sertão e, com isso, à tradição regionalista. Embora fundamental para a literatura brasileira, essa tradição nem sempre foi bem vista pela crítica literária nacional. Você sempre procurou enfatizar que o conjunto de sua obra também explora outros espaços, porém nunca negou as relações com o sertão. Como você avalia, hoje, possíveis associações entre sua escrita e espaços e temas comumente vinculados à tradição regionalista? Dos meus 11 romances publicados até agora, quatro têm cenários urbanos, dois, da História – Meu querido canibal e O nobre sequestrador –, e cinco, rurais. Esses cinco mostram um mundo rural em contraponto com o urbano, com todo o conflito de valores que isso acarreta. Nunca vim ao teclado dizendo que vou escrever um livro assim ou assado. As ideias vêm e me levam, com um pé na tradição e outro fora dela. O Brasil continua tendo como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e a outras artes, o que coloca como imperativa a tarefa de educar e formar público. Qual o papel da literatura nesse desafio de formar a criança e o futuro adulto leitor? Como autor de romances para o público adulto e de literatura infantil, quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar livros como os seus? Adoraria saber se ainda se pratica hoje o método de alfabetização da escola do meu tempo, com leitura em voz alta. Jamais me esqueci do dia em que uma professora pôs um livro intitulado Seleta Escolar sobre a mesa, pôs os seus alunos em fila, para cada um deles ler uma página daquela antologia. Para mim caiu o começo de Iracema, que me levaria a sonhar com verdes mares bravios, pois eu vivia num sertão onde nem rio havia. Educadores do Brasil: ler é criar.    Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. O quadro atual é o seguinte: mais editoras do que livrarias, e mais autores do que leitores. O que por si só já causa inquietação. Na medida do possível, tenho acompanhado os novos valores que vêm surgindo, e faço isso até para não perder a dicção da contemporaneidade. É animador ver tanta gente escrevendo, em toda parte.       Desde 1972, quando você começou a publicar, até hoje, o cenário literário e o mercado editorial brasileiros mudaram consideravelmente, mas alguns impasses permanecem. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? 85

Diante da crise em que o país está mergulhado, com livrarias fechando e editoras pondo o pé freio, chego a me perguntar: - Publicar agora para quê? Para quem? Muitos escritores e intelectuais têm mantido atividade constante nas redes sociais, sobretudo para expressar engajamento político. Você mantém atuação discreta no Facebook, utilizando-o majoritariamente para a divulgação do seu trabalho. Por quê? Como avalia essa face do intelectual contemporâneo? Éramos um país de milhões de técnicos de futebol. Com as redes sociais, nos tornamos extremados comentaristas políticos, a transformar qualquer debate em embate. Num ambiente tão radicalizado, acho melhor seguir o conselho do finado Ernest Hemingway: “Quando a maré estiver braba, dê um mergulho, e deixe a onda passar”.   Logo após o lançamento de Pelo fundo da agulha (2006), em entrevista concedida à Revista Previ, você afirmou ter tentado, naquele livro, “fazer uma reflexão sobre este crepúsculo do mundo em que vivemos. Um mundo pós-utópico, pós-modernista, pós-tudo. Entendo que por trás dos impasses do personagem Totonhim não estão apenas os meus próprios. Nem apenas da minha geração. O que me parece é que de repente nos vemos todos – jovens, adultos e velhos – numa espécie de encruzilhada do tempo, em busca de uma saída para o futuro. E onde está esta saída? Eis a questão.” Mais de uma década depois, foi possível vislumbrar alguma saída? Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como saída do atual estágio da humanidade? O que estamos assistindo é de estarrecer. Não há como fugir desta dura realidade: regredimos. Perigosamente. E o pior é que não está dando para vislumbrar saída alguma. Façamos coro, a bilhões de vozes, com Oscar Wilde: “Um mapa-múndi que não inclua a utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras onde a humanidade está sempre aportando (...) O progresso é a concretização de utopias...”. Seu último romance data de 2006. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outros gêneros literários? Estou envolvido no projeto de um romance, iniciado há mais de seis anos, e que tem sofrido interrupções brutais, ditadas pelos quefazeres cotidianos. Espero terminar este com água na moringa para seguir em frente. Afinal, como dizia o meu finado amigo Alexandre O’Neill, “folha de terra ou papel, tudo é viver, escrever”.  

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Bernadette Lyra Nasceu em Conceição da Barra (ES), em 1938. Vive entre Vitória (ES) e São Paulo (SP). Entrevista concedida a Vitor Cei e Andréia Delmaschio em março de 2018. Publicada na Fernão, n. 2, 2019.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário? Gosto de pensar que as ideias vão brotando das formas. Acredito na força das palavras, das frases, da pontuação, dos parágrafos, de todo esse arsenal que é a matéria de expressão com que conta a literatura. Mas, acima de tudo, o que mais persigo é o ritmo. A narrativa vai surgindo e se acomodando ao longo do encadeamento da escrita. Então, quando vejo, lá está pronta uma história. Por isso, meu trabalho é escrever, cortar e reescrever. Isso leva algum tempo e demanda um certo investimento. Sobretudo porque, além de tudo, eu tenho mania de síntese. E tenho paixão pelo que é essencial. Talvez essas minhas opções sejam as de uma contista, não sei bem, não gosto de cristalizar o que escrevo em caixinhas de gêneros literários bem determinados. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? A respeito desse momento inaugural, só sei que ao escarafunchar a memória vou me apropriando de certas lembranças. Sempre fui tida como uma criança cheia de “invencionices” estranhas, de tanto que me aprazia narrar as coisas de minha imaginação. E acredito até que, antes mesmo de aprender a ler e escrever, eu já me deliciava em usar as palavras para criar histórias. Depois, nem se fala! Incentivada pelo meu avô materno, que era autodidata e tinha uma estante coalhada de revistas e livros, comecei a ler tudo que me caía nas mãos e continuei a ler muito mais. Daí a escrever foi uma consequência natural do desenvolvimento de minha trajetória. Mas não posso deixar de mencionar Guilherme dos Santos Neves, um professor que tive e que foi quem, pela primeira vez, ao ler uma pequena redação minha feita para uma prova ginasial me falou: “Menina, você é uma escritora”. E eu acreditei! Você é uma das escritoras capixabas mais (re)conhecidas. Memórias das Ruínas de Creta (A Lápis, 1997) foi indicado ao Prêmio Jabuti, alguns de seus contos foram publicados em coletâneas estrangeiras, você ocupa a cadeira número 1 da Academia Espírito-Santense de Letras e um prédio do Departamento de Línguas e Letras da UFES recebeu o seu nome. Como você vê a recepção da sua obra? Saber que tenho leitores e que o que escrevo desperta reconhecimentos, muito me honra e me enche a alma de alegrias e mimos. Mas, estou sempre pronta a aceitar o que der e vier. Fazer elogios ou deselogios é uma prerrogativa dos leitores e da crítica. Escritores escrevem. E só podem contar com os riscos. 87

Grande parte da sua ficção é protagonizada por mulheres e aborda facetas do dito “universo feminino”. Qual o papel do escritor e da escritora diante de uma realidade como a atual, em que, no mundo inteiro, ascende uma onda de pensamentos e sentimentos reacionários, expondo matizes neofascistas, racistas, misóginos e homofóbicos? O mundo anda mesmo de cabeça para baixo, parece que houve uma inversão de tudo que a civilização pretendeu construir para a garantia de uma convivência minimamente pacífica entre as criaturas. Diante dessa convulsão, o que pode um escritor ou uma escritora fazer a não ser resistir em sua humildade e transcrever com palavras o ato de possuir, encarnar e descarnar a sua própria voz, pondo-a a serviço daquilo em que acredita e que crê ser demarcatório entre humanidade e desumanidade? De que modo a sua vasta experiência como professora se entrecruza com o trabalho de escrita? É muito bom ser professora. Conviver com o pensamento de gente de todas as espécies e de todas as idades é uma oportunidade inigualável para quem, como eu, se aventura na floresta da inclusão de todas as experiências, na vontade (nem sempre bem-sucedida) de compartilhamento com outros seres do mundo. De toda maneira, agradeço aos deuses por essa dádiva de poder participar do rico banquete das diferenças no meu dia-a-dia entre alunas e alunos. Você percebe que trabalha de modo diferente quando cria um personagem masculino? Como surgiu a ideia de criar uma personagem sem definição de gênero, no livro Tormentos Ocasionais (Companhia das Letras, 1998)? A personagem principal de Tormentos Ocasionais pode ser dita como sendo a própria linguagem. Aqui, uso linguagem no sentido que Humberto Maturana dá a esse tão desgastado termo, quando diz: “Vivemos todos na linguagem, a qual se fundamenta nas emoções”. Ou seja, no caso deste meu citado romance, a personagem é a impossibilidade letal de estabelecer contato efetivo, de trocar afetos com as coisas do mundo, que atormenta a narradora, quando esta tenta registrar com palavras o caos da memória. Quanto ao fato de criar personagens, o que me interessa são as fissuras que nelas aparecem, tanto de masculinidade, quanto de feminilidade. Talvez as personagens femininas sejam mais determinantes, pois me são muito próximas em suas condições historico-culturais, porém não quer dizer que eu trabalhe com literatura de guetos. Em livros como A panelinha de breu (Estação Liberdade, 1993) e A Capitoa (Casa da Palavra, 2014)  você reinventa a vida e a obra de diversas personalidades históricas, como Maria Ortiz e Luisa Grinalda. Por que embaralhar as fronteiras entre ficção e realidade? Não tenho problemas com a chamada realidade, desde que fique claro que, para mim, a ficção literária é uma realidade também. E nessa outra realidade da ficção, não lido com pessoas, lido com personas, que nada mais são que uma variante da personalidade, às vezes bem diferente daquela que uma pessoa tenha, seja ou que tenha sido. Assim, Maria Ortiz e Dona Luiza, essas duas mulheres entre tantas outras que habitam meus contos e romances, são o resultado 88

de uma série de escolhas e de lampejos que têm mais a ver comigo e com minha imaginação de que com as figuras históricas. São personas que se movem em meu universo ficcional particular. Não importa que tenham ou não existido na chamada vida real. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Certa vez, em entrevista publicada na antologia Musa paradisíaca, o poeta e jornalista Carlos Ávila, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais (1995/1998), afirmou que o convívio literário hoje, no Brasil, está muito disperso e fragmentário. A partir dessa constatação, talvez eu possa dizer o quanto é difícil pensar a literatura brasileira atual como um todo. A produção literária brasileira enfrenta muitos problemas, que, para além do provincianismo ou do protetorismo, passam também pelas dificuldades econômicas dos setores ligados à literatura, tais como edição, distribuição, divulgação e venda de livros. Sem falar no descaso com a educação em nosso país, sobretudo com a formação de leitores. O que posso dizer é que não existem suficientes permutas, convívios, contatos e outras formas de conhecimento que seriam capazes de desenvolver uma zona de avaliações, trocas e emulações mais seguras para que eu responda a essa pergunta. Os escritores estão em uma espécie de “tocas” individuais e particulares. Grupos, movimentos, qualquer coisa que cheire a coletivos? Nem pensar! Mas os componentes da tribo continuam a escrever, valentemente. No mais, em termos de estilo, de preferências por temas, de gêneros ou mesmo de técnicas, creio que tudo anda como antes: cada qual faz o que sabe e fala do que mais lhe apetece. Você está escrevendo algum livro no momento? Esta é minha vida: estou sempre escrevendo ficção. Tenho livros prontos que espero publicar ainda neste ano de 2018. Alguma consideração final? Agradeço a paciência e a generosidade dos entrevistadores pela inclusão de minha fala neste espaço aberto a confissões, opiniões e contradições de quem ainda escreve e faz literatura nesses nebulosos tempos da contemporaneidade.

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Caê Guimarães Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1970. Vive em Vila Velha (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em agosto de 2017.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre o seu processo criativo na escrita de poemas, contos e crônicas. No meu caso varia de acordo com o formato do texto. Só fiz crônicas por encomenda, durante sete anos para jornal e esporadicamente para sites e revistas. Quando publicava periodicamente tentava variar a temática, ora abordava algo pessoal transformado em sentimento universal, ora algum fato do cotidiano com abordagem pessoal, e aí lançava mão do jornalista que fui – e talvez ainda seja. É a única forma de escrita em que penso previamente no leitor, crônicas são publicadas em periódicos e por isso me preocupava sempre em ser entendido pelo leitor médio também. No caso de prosa e poema, a coisa muda de figura. Mas há outra variação. Algumas vezes fico dias, semanas ou meses pensando em um tema. Noutras o tema vem e me fisga de maneira inarredável. Reescrevo muito, principalmente em prosa, então a lapidação da gema sempre é um trabalho extenso que requer sucessivas versões. Comum aos três há a necessidade de estar em silêncio, preferencialmente isolado, sem som ao redor. Alguns poemas nascem da ideia, do logos. Outros nascem de uma linha melódica imaginária, como uma música silenciosa. No meu flerte com o haicai e a poesia concreta, procedo da mesma maneira, ainda que o exercício de concisão seja maior. Na forma mais usual, poemas versificados, vario bastante a temática e o estilo da escrita. Produzo poemas longos e curtos, mais ou menos rimados – utilizo muito rimas internas, interpolações, jogos de espelho onde sílabas e palavras trocam de lugar e consequentemente de significado e importância. Escrevo na primeira pessoa lírica, escrevo poesias com conotação social e política, utilizo bastante a natureza, principalmente o reino animal, como elemento metafórico, e sou fiel aos meus arquissemas, ainda que busque sempre subvertê-los. Por isso a profusão de palavras que me compõem ancestralmente, como caminho, lâmina, vidro, sangue, mar, asfalto. Manoel de Barros dizia que cada poeta tem seus arquissemas, e eles nem são tantos assim, 15 ou 20. E que tudo que fazemos são variações em torno desses arcabouços do espírito. Concordo com ele. Em gênero, letra e verso. Na prosa curta e longa trago sempre à baila situações autobiográficas mescladas à pura invenção. O percentual de uma e outra em cada texto varia, mas sempre há situações e personagens muito calcados em coisas que vi, vivi e ouvi. E sempre corto muita coisa. Cortar é escrever. Mas há algo em comum na minha relação com prosa e poesia. Mantenho-me em estado alerta constante de captação, se é que posso chamar assim. Acho que poetas e escritores estão sempre escrevendo. A vida como ela é torna-se, assim, a maior fonte de inspiração. Traduzi-la, ou subverter suas interpretações predeterminadas, é o que me interessa. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em 90

que momento da vida você se percebeu um escritor? No princípio era o leitor. E o leitor se fez verbo. Mas até se dizer escritor, o verbo foi severamente atritado à pedra bruta. Ambos saíram um pouco mais lapidados. Comecei a ler influenciado por minha avó materna, Carmen, argentina e leitora compulsiva. Ao mudar para o Brasil, ela mergulhou na literatura brasileira, já que veio para ficar, aqui teve três filhas, uma penca de netos, e morreu em 1985. Minha avó viveu conosco até meus quinze anos de idade, logo, foi uma referência que perpassou minha infância e boa parte da adolescência, pois eu nasci em 1970. Mas o hábito da leitura, e o posterior hábito da escrita, surgiram sem que eu me desse conta. Tentei tocar instrumentos musicais e adoraria saber desenhar e pintar, o universo da pintura principalmente me fascina. Mas tais tentativas sempre foram frustradas. Até que, já no entorno de 18 anos percebi que, a despeito de não ser aceito pelas manifestações que havia escolhido para me manifestar – ou pensava serem genuínas em mim –, já havia sido escolhido. E aí não havia nada a fazer. Isso foi em torno de 1989. Havia entrado na universidade. Foi neste período que comecei a levar a sério a escrita. Mas, até publicar meu primeiro livro, em 1997, foram 8 anos. E, até me dizer escritor, coloque na conta ao menos mais 5 ou 6. Muitas vezes fico espantado com a facilidade com que as pessoas se dizem escritoras. Sempre levei tão a sério e tenho tanta devoção por este ofício, talvez por isso só tenha conseguido me dizer escritor depois de estar seguro de ter um projeto literário. Ficar na espuma da vontade não faz de alguém um poeta, um escritor. Não basta querer. Este é um longo processo que passa por muita, muita leitura. E páginas e mais páginas atiradas ao cesto de lixo. Esta dedicação implica em tentativas e erros. Até que algo se consolide de verdade na escrita de quem se pretende escritor/poeta. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Listas são sempre cruéis e injustas. Você acaba deixando muita gente relevante e boa de fora. Então, sem citar nomes, vejo um panorama rico em diversidade de forma e conteúdo. E uma presença feminina como nunca antes. Nos anos 90, quando lancei meu primeiro livro, o número de mulheres que se colocavam como escritoras era ainda menor. Não consigo especular se naquele tempo havia a mesma quantidade de mulheres escrevendo sem mostrar seus trabalhos, talvez intimidadas por ambientes muito mais misóginos e machistas, ou se hoje há, proporcionalmente, um número maior de mulheres colocando seus trabalhos para o público. Vejo também uma presença forte, potente e muito bem representada de vozes da periferia. Vozes que se organizam em saraus, em publicações fora do mainstream das editoras, e com uma qualidade incrível. E aí reside o grande barato, não são apenas mais mulheres e negros excluídos dos núcleos de decisão dessa sociedade escrota escrevendo. Tais escritos têm revelado coisas muito boas, do contrário seria apenas uma pequena conquista política. Por outro lado, e isso independe de ser homem ou mulher, branco ou negro, as facilidades de divulgação e exposição, quer seja a ditadura do linotipo que tornava as pequenas edições inviáveis, quer seja as redes sociais e sua capilarida91

de tremenda, têm feito com que um número maior de pessoas publique. E nessa febre, alguns poetas/escritores publicam mais do que leem. Urgência na criação não deve ser revertida em pressa na publicação. Do contrário o risco é cair na vala comum da vaidade. E fazer algo menor, como quem compulsivamente tenta se manter em evidência no ranking de likes de uma rede social. E isso é deprimente. Agora, se por um lado há muita facilidade em divulgar, e um número razoável de bons escritores no país todo, há também os que enfileiram clichês obra afora. Bons e maus escritores sempre existiram, infelizmente com a balança pendendo sempre para a segunda categoria, muitas vezes uma categoria de segunda. O critério da escolha estará sempre a cargo do leitor, e ainda que às vezes as obras de bons escritores demorem mais a ganhar divulgação, leitores e comentadores do que as obras de um escritor mediano ou medíocre – vá lá, isso é uma merda, mas faz parte do jogo –, o tempo é sempre o grande crivo, separa joio e trigo, aquilo que ficará e aquilo que se evanescerá no raiar da próxima novidade. Mas é preciso fazer uma ponderação sobre uma tendência recente que me incomoda. O escritor Marcelo Mirisola fez referência a isso dia desses nas redes sociais, republicando um comentário dele mesmo postado há um ano [e incorporado a artigo publicado no fanzine tr3sdois, n. 03, de 17 de agosto de 2017]. Ele diz que “sintoma não tem nada a ver com obra e qualidade nem faz diferença numa sociedade onde todos – repito: todos – são doentes, paranóicos, viciados e psicopatas”. Ele vai além, com “os chapeiros e os frentistas cumprem suas rotinas sem afetação, eles não precisam anunciar a toda hora que são chapeiros, frentistas e pessoas aparentemente banais... Então desconfie toda vez que aquele ‘artista’ se queixar da vidinha miserável em público, a obra dele com certeza é menor que o sintoma, não valorize a doencinha nem dê comida aos macacos”. Concordo com a frase e vejo com muito enfado essa onda de autocomiseração pública nas redes. Não vejo tal coisa acontecendo na música, ou nas artes cênicas e plásticas, mas na poesia e na literatura, essa moda pegou. Vejamos até quando vai. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Publicar hoje é muito simples. Como disse acima, a possibilidade de fazer tiragens pequenas e sustentáveis, quer dizer, você gera uma graninha que banca a tiragem inicial e outra já com a venda dos livros, não tem mistério algum. O grande desafio ainda é fazer com que o livro chegue ao leitor. Peguemos o exemplo de Vitória, ou melhor, da região metropolitana da Grande Vitória, seis municípios e em torno de 1 milhão e 800 mil habitantes. Quantas livrarias há nesta região? E no resto do Espírito Santo? Cidades com 180 mil habitantes sem uma livraria sequer. Ou cidades com 350, 490 mil habitantes com três ou quatro livrarias, sendo que destas 75% são grandes redes que vendem DVD, action figures e uma coisa ou outra de papelaria. O que temos aí? Uma tragédia repetida em todo Brasil. Aliás, o número de livrarias cai no mundo inteiro, e em velocidade vertiginosa. Você pode dizer, “ah, mas tem as redes sociais”. Sim, tem e elas são ocupadas por escritores. O Vácuo, meu livro mais recente, lançado em 2014 pela Editora Cousa, só pousou em uma prateleira de livraria agora, e no café/bar da própria editora. Não valeria a pena o esforço de levar o livro, colocá-lo à venda por consignação e esperar a boa vontade – inexistente – e o preparo – idem – de livreiros, 92

ou melhor, de balconistas que vendem livros, para que um ou outro exemplar seja vendido. Fazemos então, como disseram o poeta Wladimir Cazé e o escritor e editor Saulo Ribeiro, uma literaluta. E é luta pegada, judô ou jiu-jitsu. Você tem que literalmente pegar o leitor, jogá-lo ao chão e imobilizá-lo. Mas ainda assim, na iminência da finalização por chave-de-braço ou estrangulamento, ou ainda por um ippon, a quantidade de leitores ainda é infinitamente menor do que a capacidade instalada por metro quadrado de bons poetas e escritores. Mas, ainda que nossos quimonos estejam eventualmente rotos e nossas mãos cheias de esparadrapos, continuaremos fazendo isso. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Acho que respondi, ao menos parcialmente, no que disse acima. Claro, no caso da poesia ainda é pior do que no da prosa. As editoras, exceção feita às valentes pequenas grandes editoras, não têm interesse em publicar poesia, ou ao menos a poesia contemporânea, ou aquela que não se tornou cânone ou clássico. Em certa medida existem mais poetas do que leitores de poesia. O exagero aí é válido. Levando em conta que mercadologicamente a literatura é a prima pobre das artes em geral, a poesia é a prima mais pobre da prima pobre. Minha aposta é nas tiragens pequenas e no velho esforço de levar o livro ao leitor, esforço muitas vezes prazeroso, como participar de saraus e encontros literários, desde que estes tenham a lucidez de aproximar o escritor/poeta dos leitores. Não é de todo errado afirmar que historicamente, no Brasil, a poesia chegou às mãos do grande público por meio das canções da MPB. E veja, Vinícius de Moraes, poeta, dedicou-se quase integralmente a escrever letras e compor canções. Os Secos e Molhados fizeram músicas com poesias de Bandeira, Cassiano Ricardo, Fernando Pessoa e Julio Cortázar. Os letristas do Clube da Esquina colaboraram, em canções com alta sofisticação poética. Antes deles, Torquato Neto dedicou-se a esse formato de escrita. Como não chamar Sérgio Sampaio, Luiz Melodia e Walter Franco de poetas? E o Leminski, poeta, flertou e flanou pelos mesmos caminhos. Capinam, Bernardo Vilhena, Geraldo Carneiro. Há hoje bons letristas na MPB, e poetas participando desse processo. Mas para o grande público, para a massa monotemática, as boas letras de canções pararam nas mortes de Cazuza e Renato Russo, o que é injusto. Não tenho elementos concretos para afirmar que uma quantidade menor de lixo musical como a que vemos hoje tocar na maior parte dos rádios e dos programas de televisão tenha influência direta no desinteresse do público por poesia, mas acho que este é um tijolinho na ereção desta torre nefasta. E há, também, todo um apelo do audiovisual, potencializado pela portabilidade plena que leva as pessoas a ler menos e, consequentemente, ler menos poesia. Por outro lado, penso que os poetas precisam fazer um mea culpa. Tornaram-se inacessíveis e distantes durante algum tempo. Como se o labor poético fizesse de alguém uma pecinha de cristal que se abstém do toque por medo de quebrar, o que é uma grande bobagem. Hoje vejo poetas mais expostos, colocando seus trabalhos nas ruas, nas redes, dando a cara a tapa em saraus e rodas de leitura, enfim, em uma relação muito mais orgânica com o leitor do que a do janota que se isolava em um hermetismo que, vezes sim, vezes não, escapava da vida real e caía nas pautas do caderno e nos toques impressos pelas velhas olivettis e nas 93

primitivas impressoras matriciais. Você tem publicado no Facebook e feito algumas experimentações com áudio e vídeo, além de imprimir poemas em camisetas. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet e das novas tecnologias de informação e comunicação? Na literatura – incluo aqui poesia e prosa – que sei fazer e faço não houve influência direta. Busco sempre novas formas, por isso há no meu trabalho uma mudança constante. O que mudou foi a velocidade da divulgação, a possibilidade de compartilhar a escrita com um número de pessoas infinitamente maior. E, com isso, a consequente formação de circuitos, de troca de informação com outros escritores. O lance das camisetas (a série Afetos Concretos no site O Torso Camiseteria) tem a ver com isso, brincar com novas plataformas e fazer com que a poesia ganhe a rua – e o torso – das pessoas. Mas uma coisa não muda com toda essa gasolina azul enfiada no motor da literatura: com ou sem Facebook, o que é bom permanece, o que é modismo explode e mingua e o que é ruim não encontra espaço para além de alguns likes e uhus e ooohhssss efêmeros. O que mais mudou, na verdade, é a capilaridade, a velocidade com que se divulga uma obra ou projeto específico. Aí você vê que há em todo o Brasil um público, se não ávido em sua maioria, ao menos bastante curioso por conhecer a produção contemporânea. E isso faz com que o diálogo entre escritores e poetas seja muito mais intenso. No que isso vai mudar a forma como escrevemos? Só o distanciamento histórico poderá responder. Como você vive o ato de recitar? Na verdade eu leio meus poemas, não recito. Gosto de ouvir leituras, acho que elas obedecem a um tempo interno do escritor, diferente da récita, algo que sempre contém uma teatralização que me incomoda. Todo respeito a quem recita, mas, na minha opinião, o que interessa, o texto e sua variante falada, muitas vezes ficam diminuídos diante das possibilidades técnicas de quem recita. Talvez seja trauma dos famigerados jograis da infância. No meu caso há algo curioso. Tinha pavor de palco, tablado, microfone, qualquer coisa que remetesse a algo teatral, ou à necessidade de ser ator, ao dizer meus poemas. Acho que a primeira vez em que falei poemas em público foi alguns anos pós estrear em livros. Nos últimos 7 ou 8 anos, intensifiquei bastante minha participação em saraus, rodas de leituras e eventos afins. Com o passar do tempo, o pavor deu lugar a uma atividade muito prazerosa. Fui por outro lado me soltando, e hoje consigo ler com a mesma voz interna que me move no ato da escrita. Sei quais são os poemas que rendem boa leitura e aqueles que só funcionam bem quando lidos. Rompido esse lacre, participo sempre que posso ou sou convidado, ou ainda nos microfones abertos. É uma forma muito potente de seduzir novos leitores e/ou criar outras camadas de entendimento e transcendência naqueles que já conhecem o meu trabalho. Mas um sarau tem que ser algo dinâmico e plural. Quando é arrastado, monótono, até os poetas vão para o lado de fora beber uma cerveja. Como você define a sua obra? Sempre trabalhei com um léxico beatnik aderido a um jogo melódico provençal. Desde sempre criei estruturas aliteradas, interpoladas, sobrepostas. 94

O flerte com haicais e poesia concreta – ou de inspiração concreta – é a hora em que descanso carregando versos. Faço poemas melopaicos escritos com técnica de fluxo de consciência, que é usada na prosa. Vivo me provocando novas possibilidades e sigo tentando domar este sem fim de possibilidades chamado linguagem. Nunca me vi afunilando por um estilo, quer dizer, por uma maneira de fazer poemas. Poetas e escritores precisam estar sempre muito atentos às armadilhas da conformidade, da fórmula dominada, da zona de conforto. Imprimi em meus textos uma visão nada ou pouco metafísica do corpo. A carne se torna um receptor de forças, potências, fraturas. Este é um sentido funcional, mas também é um sentido erótico. Como disse em uma entrevista ao blog Livros por Lívia, há coisa de três anos, no erotismo a nossa carne sorri. Há um componente de ironia também, sempre presente no que faço. É o olhar de quem reconhece o engodo da existência e do modelo de civilização que criamos e no qual habitamos. Meu interesse é traduzir isso, formatar a minha visão disso. Faço isso escrevendo, o que me dá imenso prazer. E quero que o maior número possível de pessoas tenha contato com essa visão particular de mundo. Escrevi certa vez que “não há lado de dentro ou lado de fora da jaula. Tudo é dentro e estamos todos dentro dela”. Em toda minha trajetória abordo os mesmos temas: morte, solidão, solitude, ausência, memória, incapacidade de comunicar. Trato a natureza como a extensão das forças e potências às quais me referi ao falar do erotismo. Falo de transcendência. Da experiência de estar vivo, ou melhor, da vida vivida como processo e experiência. Isso se reflete também na prosa, no Encontro Você no 8º Round, meu primeiro romance recém-terminado – uma narrativa na primeira pessoa em um jorro de fluxo de consciência que pode ser chamado, sob alguns aspectos, de prosa poética –, e em alguns contos que venho produzindo. Mas continuo sendo, como disse Nelson Rodrigues, “um menino curioso olhando pelo buraco de uma fechadura para ver o que está do lado de lá”. E o que trago dessa mirada? A encenação e velha tragédia humana, todos nós assolapados pela finitude, engessados na impossibilidade de comunicação, frustrados por nossas incompetências e fracassos, paralisados por um país em frangalhos, uma colônia com a pior classe dominante do mundo (apud Darcy Ribeiro) e com pessoas cada vez mais ensimesmadas. O que pretendo, ao escrever, é colocar na roda a minha visão disso tudo, e o quanto tudo isso me fascina e espanta. Seu primeiro livro de poesia, Por Baixo da Pele Fria (Massao Ohno, 1997; Cousa, 2017), foi traduzido para o catalão em 2013. Como foi a sua participação no trabalho de tradução? Joana Castells, a tradutora de Por Baixo da Pele Fria, vinha trabalhando em coisas minhas de maneira esporádica desde 2009, a princípio em parceria com o tradutor Joseph Domenech Ponsatí. Em 2011 ela me hospedou em sua casa. Dessa semana de convivência e leituras ela me propôs selecionarmos poemas de várias fases para uma coletânea. Faríamos uma série de plaquetes. Essa ideia durou até que Joana inscrevesse um projeto de tradução em edital da Fundação Biblioteca Nacional para estrangeiros interessados em autores brasileiros. Uma exigência do edital é que o trabalho a ser traduzido já tenha sido publicado em português. Aprovado, o livro foi lançado em edição bilíngue com o título Per Sota de La Pell Freda, literalmente Por Baixo da Pele Fria, em 2013 pela Coubert Edicions, de Girona. 95

Participei intensamente da tradução, esse processo foi muito prazeroso. Tenho bom domínio do espanhol, mas o catalão foi uma novidade, ainda que com cara de “já te vi”. A língua parece um amálgama das outras latinas, há palavras exatamente iguais ao português, por exemplo. No começo do trabalho gravei a leitura de todos os poemas do livro e enviei para Joana. Ela queria ouvi-los na voz do autor, como que tentando entranhar-se ainda mais nas nuances, imagens, ritmo e intensidade de cada poema. Traduzido o livro, tivemos longas conversas via Skype para fazer ajustes e adequações. Um exemplo é o poema “O Pênalti”, em Catalão “El Penal”. Nele, a imagem do jogo infantil de cabra-cega foi adaptada. O verso “Apertar o nó para fazer enxergar melhor a cabra-cega” foi traduzido por “Estrènyer el nus pequè s’hi vegi millhor na gallina cega”. Nossa cabra cega, para eles, é galinha cega. Como você vê a recepção de sua obra, no Brasil e no exterior? Naquela perspectiva da literaluta, percebo que meu trabalho circula bem em algumas rodas de leitores e poetas de diferentes estados: Rio, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Brasília. Quando isso acontece, o trabalho provoca o diálogo. Acho que esse é um bom parâmetro de avaliação da recepção. No exterior, apesar de alguns ruídos com a editora, o Per Sota de la Pell Freda segue seu rumo. E foi alvo de um artigo da própria Joana Castells na revista Poetari. Você está escrevendo algum livro no momento? Finalizei o Encontro Você no 8º Round, meu primeiro romance. Estou na fase de releitura e revisão final. Estou organizando uma coletânea pessoal de inéditos e dispersos chamada Esconda os Dentes, Não. E comecei a arranhar a superfície de um livro de contos com o título provisório de O Indivíduo que tem um Só Paletó, título reprisado de uma canção da iconoclasta banda Lordose pra Leão. Eventualmente você ministra oficinas de produção de texto e poesia. Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever e que podem vir a ser escritores? Lá se vai mais de meia década desde a última oficina que ministrei. Esses encontros de produção de texto são geralmente curtos. Logo, é difícil ter uma amostragem ampla das inclinações ou talento espontâneo dos alunos. Percebe-se, sim, aqueles que lêem, os que têm alguma referência. Dá pra apontar quem tem a mão pra coisa, o talento, mas muito por cima. Alguns alunos demoraram a se soltar, por timidez natural ou qualquer outro motivo, e podem ser potencialmente os mais afeitos à coisa. Mas daí a dizer se alguém pode se tornar escritor vai uma distância enorme. Tornar-se escritor e poeta é também uma construção árdua, demanda tempo, trabalho, dedicação, muitas horas/leitura. Ninguém se torna poeta e escritor só por querer ser. Há que conquistar isso. Principalmente com uma puta entrega pessoal. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma 96

circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? A monstruosidade sempre esteve guardada no fundo de cada alminha humana. O que acontece ciclicamente ao longo do processo histórico é que essas forças nefastas se acomodam, intimidam, para depois se mover e assanhar. Acho que saímos de alguns anos em que se dizer reacionário, conservador, racista, fascista, misógino e homofóbico causava um ligeiro constrangimento. Mas as tais forças conservadoras perderam a vergonha de dizer o que são. Portanto, não vejo um ponto crucial, mas a velha dança do eterno retorno. O que acontece hoje, e isso representa uma puta diferença, é o quanto tudo está exposto. As mesmas redes sociais às quais me referi perguntas acima servem de ferramenta para a divulgação de poesia e prosa, mas também servem como instrumento de manifestação de todas as fobias e hipocrisias da sua pergunta. O ser humano é o mesmo de sempre no que tange sua capacidade de odiar o que lhe é diferente. Hoje, apenas mostra mais isso. E mostra com maior amplitude e potência. Creio que nossa coda será voltar à própria cauda. Mordê-la e começar tudo de novo. Vamos repetir essa sílaba posterior ao núcleo, como uma gagueira maldita que asperge veneno. Mas, aqui e ali, temos toda a possibilidade de criarmos oásis de afeto no deserto, ilhas de compreensão no oceano. Ainda que seja absolutamente inútil e não faça nenhuma diferença.

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Carola Saavedra Nasceu em Santiago (Chile), em 1973. Vive em Colônia (Alemanha). Entrevista concedida a Vitor Cei, Luana Pagung, Andréia Delmaschio e Carla Piovesan em maio de 2018. Publicada na Antares: Letras e Humanidades, v. 11, n. 22, 2019.

Cada escritor tem método e estilo próprios. A sua obra se pauta na experimentação da linguagem e na investigação de aspectos composicionais do romance. Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Eu vejo o romance como uma máquina, um mecanismo que, a cada livro, eu investigo, observo, esmiúço um pouco mais. Fico ali, trocando as peças de lugar, reorganizando sua estrutura até que ela funcione da melhor maneira possível. Nesse sentido a pergunta que me faço não é “o que narrar?” no sentido da história a ser contada, mas “como narrar?”, como narrar de modo a recriar no romance o mistério da nossa própria (in)comunicação. Ou seja, como narrar a vida da forma mais próxima possível da sua irrealidade. Para isso trabalho quase sempre com narradores não confiáveis, até porque a ideia de uma verdade “única”, acessível não passa de ilusão. Tudo é versão, tudo é subjetivo, estamos dentro dos acontecimentos, jamais fora deles. Então eu me interesso em intensificar esse aspecto, em torná-lo o eixo da narrativa. Agora, é claro que a história também interessa, os personagens, me preocupo que eles funcionem, que seu sofrimento seja verossímil, verdadeiro, se não houvesse esse desejo teria preferido escrever ensaios. Em resumo, busco um equilíbrio entre esses dois extremos (o romance experimental e a narrativa linear, tradicional) Você estreou com o livro de contos Do lado de fora (7Letras, 2005). Em 2018, chegou às livrarias Com armas sonolentas, seu sexto livro e quinto romance depois de Toda terça (2007), Flores azuis (2008), Paisagem com dromedário (2010) e O inventário das coisas ausentes (2014), todos publicados pela editora Companhia das Letras. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Há dois momentos inaugurais. O primeiro é o Toda terça, meu primeiro romance. Eu me vejo como romancista, é o formato que mais me interessa (apesar de ser uma entusiasmada leitora de contos), a escrita do Toda terça foi um esforço intelectual e artístico imenso, eu estava ainda tateando, não sabia exatamente como escrever da forma que eu queria, como passar da ideia para algo mais concreto, assim, foi um livro muito difícil, muito sofrido. Mas quando ficou pronto, foi muito bonito, porque naquele momento eu finalmente entendi quem eu era, que tipo de escritora eu era, o que eu queria fazer. Porque até então eu sabia que queria ser escritora (soube desde que aprendi a ler), mas não tinha encontrado ainda o formato. Um segundo momento inaugural foi agora, com a escrita do último livro Com armas sonolentas. Até então eu vinha trabalhando de uma forma bem racional, sabendo exatamente o que eu pretendia fazer, onde queria chegar, 98

até então tudo era muito pensado, muito planejado. Neste livro agora, o processo de escrita foi outro, trabalhei num espaço do não-saber, do mistério, do inconsciente, eu não sabia com clareza o que estava criando, que máquina era aquela, e o livro foi se dizendo na medida em que eu escrevia. De certa forma, abrir mão do controle foi como voltar ao início, a esse momento do não saber. O resultado é um romance muito diferente de tudo o que eu já fiz, com um espaço grande para o fantástico, o sonho, o inconsciente, a desrazão. Você nasceu no Chile, em 1973, e mudou-se para o Brasil aos três anos de idade. Morou na Espanha, na França e na Alemanha. Tem fluência em quatro idiomas, mas escreve ficção em português. Gostaríamos de saber como você compreende e experimenta o tema desta edição da Antares [onde a entrevista foi originalmente publicada]: “Estéticas diaspóricas em literatura: corpos, existências e linguagens em trânsito”. De que modo as migrações interferem em sua existência, em sua linguagem e estética literárias? Trata-se de uma pergunta muito difícil de responder, mas vou tentar me aproximar de alguma forma. Acho que a sensação de não pertencimento foi um dos motivos de eu ter me tornado escritora, esse lugar indefinido, sempre em trânsito, que me fez olhar com mais atenção ao que me rodeava, desde criança, uma atenção de observador. Ao mesmo tempo, uma angústia enorme, porque eu me sentia extremamente só (do lado de fora). Eu me perguntava, quem sou eu se não pertenço realmente (e ao mesmo tempo, sim, pertenço!) a nada disso? A escrita (em língua portuguesa) foi a forma que encontrei para construir uma identidade, um chão onde pisar, um lugar onde me sinto “em casa”, bem no estilo a língua portuguesa é a minha pátria. Obviamente é uma construção, mas toda identidade é sempre uma construção. Como isso interfere em termos estéticos e de linguagem no meu trabalho? Difícil dizer, em termos concretos, falar e ler em outros idiomas, me permitiu ter acesso a obras que não estão ou estavam traduzidas, e a literatura é sempre uma janela para o mundo lá fora.  Pensando em sua trajetória de publicações, como você avalia a abertura do mercado editorial brasileiro para novos escritores? Quais são os principais desafios para a edição de novas escritoras no Brasil de hoje? Acho que vivemos um momento muito difícil, por um lado a crise econômica que afeta diretamente o mercado editorial, e por outro o problema da representatividade na literatura brasileira, na qual mulheres, negros, indígenas, pobres e todo o Brasil fora do eixo RJ-SP está sub-representado, tanto em termos de autores quanto de personagens. Nesse sentido, acho o trabalho coordenado pela professora Regina Dalcastagnè de máxima importância. Há muitos dados ali que devem ser pensados a fundo por todos nós que trabalhamos com literatura. E o que mais me chama à atenção é o fato de quase nada haver mudado nos últimos 30 anos. Para dar só um exemplo, segundo os números atuais, entre 2005 e 2014, somente 29,4% dos romances publicados foram escritos por mulheres (entre 1990 e 2004, eram 27,3%, ou seja, um crescimento mínimo!). A pergunta é: por quê? Porque a mulher ganha menos? Porque é menos lida? Porque tem que cuidar sozinha dos filhos e da casa? Porque não tem apoio? Porque é menos considerada pelos prêmios literários? 99

O leitor tem um papel significativo em suas narrativas, sendo convidado a compreender o fazer literário através do divã, das cartas ou do gravador. Não obstante, como lemos em Flores azuis, “sem nunca alcançá-lo realmente”. O que você espera do leitor? Ou, para usar um conceito de Wolfgang Iser, quem é o seu leitor implícito (estrutura do texto que antecipa a presença do receptor)? Sim, o leitor é importantíssimo, ele é uma espécie de coautor; sem ele, sem sua contribuição, o texto não funciona. E o que eu faço é intensificar ainda mais esse papel, ou seja, se ele não unir os diversos fios soltos, não há enredo, ao menos não um enredo identificável, há apenas fragmentos. Seus livros já foram traduzidos para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. Como foi alcançar o mercado editorial para além do Brasil? Como você vê a recepção de sua obra, no Brasil e no exterior? Foi uma experiência riquíssima porque nos obriga a olhar para o leitor permeado por um idioma que não é o nosso, por uma visão de mundo às vezes muito distante, e perceber que mesmo assim a mágica funciona, há uma ponte que se estende. Fora isso, o que essas traduções me deram, e não só as traduções, mas também as viagens literárias que elas possibilitaram, foi uma visão mais geral, mais panorâmica do meu trabalho, o que me ajudou muito a compreender por qual caminho eu queria seguir, dali em diante. Desde o início, sua produção literária recebeu avaliações positivas. Você recebeu o Prêmio APCA de Melhor Romance por Flores Azuis, e o Rachel de Queiroz, na categoria Jovem Autor, por Paisagem com dromedário. Ambos também foram finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura e do Jabuti. Com o conto “Fragmentos de um romance”, fez parte da antologia Os melhores jovens escritores brasileiros, publicada pela revista literária inglesa Granta e, no Brasil, pela Alfaguara. De que maneira as premiações influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Como você avalia o papel dos prêmios literários no cenário brasileiro? As premiações são importantes, não por elas terem um valor em si mesmas (quase sempre é uma questão de sorte, de estar no lugar certo na hora certa), mas pelo que elas proporcionam: convites para eventos, mais leitores, interesse de editoras fora do país, interesse maior dos grandes jornais etc., o que, por sua vez dá ao escritor melhores condições para trabalhar no próximo livro. Entre 2005 e 2006 você publicou microcontos no blog Escritoras Suicidas. Em 2012 manteve uma coluna no jornal Rascunho e, desde 2016, mantém uma coluna na revista Pessoa. Em que medida a obrigatoriedade de manter um exercício de reflexão constante em um espaço como o de um blog, jornal ou revista, pode contribuir para o fazer artístico? Não vejo isso como uma obrigação, escrevo sempre por prazer, por vontade de dialogar. Mas como é algo que pode tirar um tempo precioso que deveria ser dedicado ao livro, me dedico a esse tipo de texto somente na entressafra, nesse espaço de renovação de ideias entre um livro e outro. Contribui para o fazer artístico no sentido em que me ajuda a aprofundar certas ideias e a pensar de modo mais eficiente a literatura que quero fazer. 100

“O trabalho do tradutor é um dos mais ingratos que existem”, você afirma em “Bestiários” (Rascunho, n. 14, fevereiro 2012). Você vê traços em comum entre a tradução (como você a pratica) e a escrita autoral? O bom tradutor é sempre um escritor, não há um sem o outro. Não adianta falar uma língua, e até mesmo compreender uma cultura, se não formos capazes de pensar em termos de um fazer literário. Claro que o tradutor está preso a um texto, mas isso não significa que não haja liberdade. Basta comparar várias traduções de um livro num mesmo idioma. Agora, quando digo que é um trabalho ingrato, me refiro à remuneração. É um trabalho que exige uma preparação complexa, de muitos anos (você tem que, no mínimo, dominar a língua e a cultura da qual traduz, além de um manejo literário do próprio idioma), e se paga um valor baixíssimo em troca, por isso costumo falar que a tradução é um crime que não compensa. O inventário das coisas ausentes (Companhia das Letras, 2014) tem histórias paralelas – podemos considerá-las contos e microcontos? – que interrompem a narrativa central do Caderno de Anotações (se é que podemos falar de “centro” na narrativa). Quais são os papeis que essas histórias paralelas exercem na (des) continuidade do romance? A ideia é recriar na primeira parte (Caderno de anotações) o processo criativo de um escritor. Quando começamos a pensar num livro, reunimos muitas ideias, às vezes muitas histórias possíveis, imagens que rondam a nossa mente, diálogos etc. Mas quando passamos a escrever o livro em si (quando passamos para a ficção), tudo aquilo que planejamos acontece de outra maneira: personagens que nos pareciam importantíssimos desaparecem, enquanto outros, que estavam em silêncio até então, vêm à tona. O Inventário é um livro sobre isso, sobre o mistério da criação, e se faz a pergunta: como surge a ficção? O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Gostaríamos que você comentasse sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. Acho a literatura contemporânea incrível, tem muita, mas muita gente escrevendo coisas de altíssimo nível; o problema é que a crise pode, cada vez mais, apertar o funil que já é bastante estreito, e aqueles que estão começando e não se encaixam nas exigências do mercado terão cada vez mais dificuldades. Minha esperança, em termos gerais, são as pequenas e médias editoras, talvez com mais liberdade para outro tipo de aposta. Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher. Em abril de 2018 você iniciou uma nova coluna na revista Pessoa sobre as vozes femininas que estão fazendo a literatura brasileira. Como o machismo presente em nossa sociedade afeta a sua escrita? Sim, o machismo me afeta das mais diversas formas, não só a mim, mas a todas as mulheres que escrevem: para começar, nos afeta em nossas escolhas literárias: se eu cresço num mundo em que o cânone é predominantemente masculino, a visão de mundo que me é passada pela literatura é uma visão masculina. 101

E se escrevo a partir do que li, é claro que vou reproduzir de alguma forma essas leituras. Minha principal questão é como falar daquilo que foi silenciado, o corpo da mulher, por exemplo. A literatura raramente fala do desejo feminino (ela é quase sempre objeto), de gravidez, parto, aborto, menstruação, menopausa, amamentação, relação mãe e filha, ou seja, temas que são parte do mundo da mulher. Meu livro agora, o Com armas sonolentas, é minha tentativa de encontrar respostas para isso, como falar da mulher, do corpo e do desejo da mulher a partir de uma tradição literária em que as mulheres são minoria. Seus romances abordam a ausência de amor, ou o amor como força desestruturadora, a dificuldade de formar vínculos afetivos e o processo de falência da comunicação interpessoal. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? A monstruosidade está guardada em nós, sempre em nós, essa é a nossa maior tragédia. Rousseau acreditava no mito do bom selvagem, ele achava que o ser humano era bom por natureza e que a sociedade o corrompia. Já Freud inverte essa equação e diz que o ser humano (assim como a natureza) é amoral (capaz das coisas mais horríveis); como ele funciona no âmbito da linguagem, é a sociedade que controla seus impulsos. Eu concordo totalmente com Freud, claro. Só que, como ele mesmo diz, os mecanismos sociais nem sempre funcionam (basta pensar nas guerras do século XX, nas ditaduras latino-americanas). Quanto a haver um marco, nós não mudamos, o que mudou foi a força das coisas, tudo agora é mais urgente (o aquecimento global, o uso das mídias sociais, etc.) Então nosso dever é nunca esquecer, nunca esquecer quem somos, do que somos capazes. É preciso cada vez mais lembrar e lembrar (e tornar consciente), porque só a memória e a consciência podem nos salvar de nós mesmos.

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Casé Lontra Marques Nasceu em Volta Redonda (RJ), em 1985. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei entre agosto e setembro de 2017.

Você escreveu a seguinte dedicatória no meu exemplar do livro Saber o sol do esquecimento (Aves de Água, 2010): “Para o Vitor, estes possíveis gestos de luta”. Em que medida a ideia drummondiana de “lutar com palavras”, que poderíamos denominar como uma “poética do obstáculo”, descreve o seu processo criativo? Quais são as opções formais que norteiam seu projeto literário? A luta mencionada na dedicatória diz respeito a uma prática que, a partir da experiência com a palavra, procura propiciar outros percursos para a vida, agindo de dentro, claro, do acontecer da vida. O que me movimenta para a escrita (ou: o que me movimenta na escrita) é a possibilidade de pulsação e, também, de perturbação que há na experiência com a palavra – uma experiência marcada pela abertura, pelo inacabamento. As opções que exploro buscam se aproximar de formas de algum modo voltadas para a indelimitação. Isso me mostra que caminho em direção ao informe e/ou ao desconforme – incomodado com fronteiras. Para fôlegos inesperados (e inquietos) surgirem, quem sabe. Fôlegos que venham a dar corpo a insurreições esquivas, tanto quanto a nuances o mais possível versáteis, advindas do tensionamento, às vezes até do esgarçamento daquilo que desertifica o desejo. Mares inacabados, sua obra de estreia, foi publicada pela Flor&Cultura em 2008. Desde então você publicou mais nove livros. Como definir a sua trajetória literária? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Antes de a escrita emergir em mim como uma urgência, era o convívio com o desenho que me amparava, isso ainda bem jovem, no início da formação escolar. O interesse pelas artes visuais como que me conduziu ao encontro com a literatura, que ocorreu somente na adolescência. E foi fulminante: as palavras me pegaram mesmo pela garganta. Desde então, parte significativa do meu esforço de estar na vida é dedicado a preparar o corpo para a escrita – a preparar um corpo com e a partir da escrita, deparando não poucos tumultos. Mas também algumas sutilezas. Você publica poemas na internet e disponibiliza seus livros para download gratuito. O que mudou na (e para a) poesia depois da internet? As novas tecnologias exercem alguma influência ou interferência em sua escrita? A internet facilita a edição, até mesmo a autoedição – o que, para mim, é alentador. Além disso, ela também permite uma divulgação mais abrangente de um texto que ganha a rua. Mesmo que seja uma rua flutuante... Com as redes sociais, isso se potencializa: há possibilidades amplas de contato. Amplas, porém voláteis, acrescento. Ainda assim, por um momento, o texto talvez circule por onde jamais o faria, alcançando uma pessoa num local imprevisível. Meu processo de escrita é constituído por premências que a presença da internet pouco modifica. 103

Mas o ato de levar o texto para outras pessoas, sim: esse ato é bem diferente por causa dela. Contudo, o que me agrada de fato é a multiplicidade de meios – impressos e digitais. Um detalhe antes de terminar: eu mesmo suspeito do tom eufórico contido em certas ideias acima. Não dá para esquecer que a internet sempre foi uma arma de guerra (e permanecerá sendo). Seus livros têm textos de apresentação de renomados professores e críticos literários. Como você avalia a recepção de sua obra? Bom, os primeiros livros que publiquei receberam contribuições dessa natureza – o que me alegrou, pois já era uma espécie de diálogo com pessoas admiradas. Mas há volumes sem qualquer texto que não o literário (escolha manifesta nas edições mais recentes). E há de vez em quando a feliz surpresa dos comentários espontâneos de quem compartilha sua leitura diretamente comigo. Tudo isso é animador, uma vez que redimensiona a solidão – sem a reduzir, contudo. De todo modo, desconheço o alcance do que venho escrevendo. Porém, penso que seja bem restrito. Ou não: é bem restrito, ponto. No entanto, aceitando o desafio de avaliar tal situação de modo menos ralo, o que acredito ser importante, em qualquer instância, são os enigmas da vivência com o texto, melhor, com a ambiência instaurada pelo texto. Apesar dos obstáculos, há pessoas que se preocupam com as palavras ao mesmo tempo que se procuram nas palavras. No mais, continuar perto da escrita me traz o gosto de um agradecimento – que demora na boca. Alguma vida afinal irrompe. Mesmo com todo o desespero, uma vida afinal irrompe. E cruamente se torna palpável. Como você vive o ato de recitar? Há recriação no ato de recitar? Quando me convidam para ler em algum evento, eu vou. Mas o que me motiva aí é o intuito de contribuir para a propagação da literatura. Há pessoas que querem (e merecem) ter acesso a criações não asfixiadas pela letargia imposta diariamente; por isso toda ação nesse sentido me seduz. Agora, sendo sincero: não tenho uma estética para isso. Minha relação é com a escrita, a palavra grafada – suas modulações, deslocamentos, percursos, encruzilhadas. Mas reconheço a potência da leitura num contexto público, claro. Então, quando o faço, tento ao menos não enfraquecer a força que talvez haja no texto, resguardando, numa hipótese otimista, os vestígios de sua voltagem... Quanto a haver recriação, respondo: sim. Um sim bem vasto. Pois texto nenhum se mantém inerte – cada leitura (pública ou não, silenciosa ou não) proporciona uma performance diversa: sempre. Sua matéria é movediça. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? O que mudou depois da criação do projeto editorial Aves de Água? Começarei de trás, da segunda pergunta. E vou esclarecer o que é a Aves de Água. Antes de ser um projeto editorial (de existência quase fantasmática), Aves de Água é uma amizade. Acontecimento inesperado, portanto. E um entusiasmo comum. Enfim, o que mudou desde então? Pude conhecer o sabor de confeccionar um livro – sem prazo nem pressa... Agora, a primeira pergunta: que pergunta! O desafio talvez seja o de enfrentar as várias estratégias, os numerosos dispositivos que repelem uma atividade incômoda. Abordando o assunto a partir 104

do chão, o desafio, inicialmente, é não esmorecer. Nem desistir – principalmente por dentro, no silêncio tumultuado de nossas células. Ao confrontar aquilo que em nós nos amordaça, uma faísca às vezes se solta. Daí para frente, uma maneira de alimentar isso é estabelecer relações de partilha: com o recurso que houver – papel, voz, pixel... Mesmo que só com as paredes. Por fim, aproveitando ainda a questão, quero falar da força que faz parte do gesto de publicar, mais precisamente do que há de incorrigível na cambaleante responsabilidade que é publicizar um texto de alguma forma – ou, melhor: de disseminar palavras, escritas e ditas. Ou só ditas (ou só escritas...). Não sou de cultivar certezas. Mas uma eu tenho nutrido todos os dias: sem a literatura, minha vida seria outra. Sequer chegaria a ser o que eu chamo de vida, evento cuja manifestação transborda a subsistência orgânica. Ela, a literatura, não depende de mim, claro. Não precisa do que eu talvez faça, muito menos do que deixo de fazer. Com esse pensamento no corpo, creio que, ao se tornar público, um texto participa e, inclusive, propulsiona um movimento vital, aquele que permite a existência, precária também porque polimorfa, da literatura. E onde vai dar esse movimento? Concretamente, vai dar em alguém – no coração, nos pulmões, no estômago, enfim, na carne de alguém que, sem a energia provinda daí, definharia. Venho compreendendo a literatura como cuidado. As palavras passam fisicamente de uma criatura para outra: seus fluidos, seus fluxos se transmitem por meio de uma contaminação nada vaga. Você está escrevendo algum livro no momento? Estou às voltas, mais uma vez, com um trabalho que tende ao fluxo, ainda que perpassado por descontinuidades, disjunções, rupturas. Tenho tateado uma sintaxe obstinadamente inclusiva, mas ao mesmo tempo entrecortada – que vai se ramificando também a partir de rasuras. Há em mim algo que me chama para uma concisão desmedida, porosa. Que atrai detritos de frases. Noutras palavras: atrai seres próximos do inominável, com seus nódulos e vazios... Uma minúcia proliferativa (com gosto pela sinuosidade) conduz muito do que escrevo. Que escritores brasileiros contemporâneos você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Quem pesquisa com alguma paciência encontrará poéticas inusitadas, até mesmo divergentes. Claro que numa primeira camada de visibilidade prospera uma dicção majoritariamente indolor (ou mercadologicamente salubre). Contudo, há textos desestabilizadores quase que em todo canto – expondo, sob prismas imprevistos, uma combatividade arredia a categorizações. E incluo nesse cenário produções (também elas diversas) que vêm pensando a literatura de agora com coragem. Aliás, revistas de iniciativa independente realizam um trabalho de guerrilha já nem tão subterrâneo, em múltiplas plataformas, o que se soma à teimosia, imprescindível, das pequenas editoras ou, ainda, à atuação de coletivos, com propostas e conquistas integrativas. Para além desse vocabulário bélico, algumas pessoas – apesar de toda a catástrofe que é um país – encontram energias para prosseguir lendo. E lendo (ou ouvindo) propositalmente aquilo que as revira... Isso não atingiu a mídia monopolista, que prima pela homogeneidade ou, pior, pela inofensividade. As casas de grande porte continuam a conservar uma linha 105

editorial afeita menos a livros que a planilhas, sem dúvida. Mas existem, insisto, criações indóceis, que, mesmo atualmente, recusam a domesticação, a cooptação: criações que fazem a apatia derreter atrás dos olhos, entre os ouvidos, depois dos dedos. Ou debaixo dos dentes. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Tento abordar a questão por uma perspectiva complexa, devido à variedade de manifestações poéticas que nos rodeiam. A poesia cantada, por exemplo, participa da vida de muita gente, seja entoada como que apenas para si, no decorrer de um gesto despreocupado, seja reproduzida amplamente por meios técnicos, gerando receitas bombásticas. Há ainda a poesia visual do pixo, onipresente na rotina urbana... No entanto, entendo que a pergunta trata de uma modalidade específica de poesia, ainda assim buscarei expandir a mirada, ciente das estatísticas relacionadas à leitura no país, nada amistosas. Enfim, a poesia se poliniza de modos muitas vezes imperceptíveis. É uma atividade clandestina. Seu público, portanto, não se deixa contabilizar facilmente, já que age entre frestas. Um poema passa de boca em boca, de mão em mão – como medir seu alcance? Os registros habituais obedecem a critérios que a poesia repele ou turva. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho para o atual estágio da humanidade? Até poucos anos atrás, talvez os embates inerentes a qualquer sociedade desigual, que jamais arrefecem de fato, não precisassem se explicitar tanto, devido à eficácia da violência estruturante. Depois que grupos sociais ancestralmente estigmatizados atingiram alguma mínima dignidade, como que vieram à tona brutalidades não adormecidas, mas, às vezes, dormentes. Isso se percebe bem no país hoje: a mínima dignidade (não morrer de fome, por exemplo) já foi intolerável. No entanto, a situação é planetária. E o acirramento do capitalismo financeiro – com a informatização das transações em escala global – não hesitaria em fabricar danos, pois a assimetria de forças somente cresce. Cada vez mais a riqueza se acumula na mão de menos pessoas. E o ódio pavimenta o sistema, a face operacional do sistema; ele, o ódio, une, é necessário recordar... A destruição segue massiva, com a benção das multinacionais. O colapso ocorrerá: ambiental, mas não só. Alguma consideração final? Sim, uma: sobre a desimportância de constituir obra, algo bem distinto da ação de elaborar — e até da de tornar público — um texto... Obra, que obra? O que favorece a vida, nesse caso, é escrever, escrever por escrever até, sem destino, cotidianamente, escrever fora de hora, se for o caso, escrever porque sim, porque não, escrever canibalizando o próprio ato de escrever.

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Cesar Carvalho Nasceu em Pompeia (SP), em 1949. Vive em São Paulo (SP). Entrevista concedida a Vitor Cei em abril de 2017.

Você publicou Proesia (Edição do autor, 2013), seu primeiro livro de poesia, aos 64 anos de idade. Esse foi seu momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Comecei a escrever poesia no final dos anos 70, quando estava, então, com 30 anos. Comecei por brincadeira, muito em função das conversas que tinha com alguns amigos da Universidade, a maioria apaixonada pelos poetas concretistas que eu conhecia há muitos anos. Na verdade, meu primeiro contato com a poesia concreta se deu ao vivo, com um deles, Décio Pignatari, que, em 1967, lecionava na Faculdade de Ciências e Letras de Marília. Não cheguei a ser seu aluno. Fazia Ciências Sociais e ele dava aulas para o curso de Letras, mas, naquela época, a vida universitária era muito diferente. Professores de várias áreas compartilhavam conversas, não só entre eles, mas também com os alunos. Lembro, inclusive, um episódio que, de certa forma, marcou bastante minha formação poética. Foi quando me encontrei, num ponto de ônibus, em Marília, com o Décio, e ele fez um longo comentário sobre o filme de Stanley Kubrick, 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Depois de ouvi-lo, li praticamente tudo o que os concretistas haviam escrito, o que me foi muito facilitado porque a biblioteca da Faculdade tinha todo esse material. Mas, nem por isso, comecei a escrever poesia. Pelo contrário. Achava o ofício poético algo muito distante, feito para poucos. Aquela ilusão comum aos jovens que consideram os poetas pessoas especiais, frequentadores do Olimpo. Só anos depois, já professor universitário, quando lecionava na mesma faculdade onde iniciei meus estudos, é que passei a escrever poesias. Mas, como disse, por brincadeira. Não considerava meus poemas dignos desse nome, apesar de um de meus amigos, Uilcon Pereira, dizer o contrário; “Cara, deixe de frescuras, você escreve bem. Vá em frente”. Isso o Uilcon me dizia quando eu tinha perto de 30 anos, e eu não acreditava. Precisei maturar bastante para tomar coragem e virar, de fato, um poeta e publicar meu primeiro livro. Isso em relação à poesia, porque, como escritor, já tinha vários trabalhos realizados: crônicas, contos, etc. Lavras ao vento, pá (Benfazeja, 2017) foi lançado em um sarau, em São Paulo. Como você vive o ato de recitar? O lançamento de Lavras ao vento, pá foi interessante porque aconteceu junto com o lançamento da Virada Poética, o sarau ao qual você se refere. Há alguns meses, um amigo que administra uma casa de cultura, o 38 Social Clube, havia me pedido para organizar um sarau. Hesitei bastante porque sei das dificuldades de se produzir qualquer evento e, depois, a quantidade de saraus que existem em São Paulo é enorme. Então, pensava, pô, mais um sarau! Maturei a ideia durante alguns meses, coincidentemente com a produção de Lavras ao vento, pá, até que cheguei a um formato que, penso, é bem diferente do dos saraus existentes. Virada Poética foi então formatado como um evento que busca um diálogo 107

entre a poesia e outras artes e, ao mesmo tempo, pretende traçar um panorama da poesia contemporânea definindo um tema para cada edição. Agora, confesso, sinto-me mais à vontade como apresentador do evento do que como um poeta que goste de recitar. Adoro ler poemas em voz alta, mas uma leitura solitária. Diante do público, ao ler um poema, fico meio envergonhado e nunca satisfeito com o resultado. Mas, por outro lado, ouvir os poetas lendo seus poemas me deixa feliz e aprendo um monte com essa prática. Daí que, além de fazer a curadoria da Virada Poética, frequento, o máximo que posso, outros saraus. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você percebe esse problema? Está aí uma questão difícil e estranha. O público que lê e compra livros de poesia é limitado, bastante limitado, mas, por outro lado, a quantidade de pequenas editoras que surgiram nos últimos anos dedicadas à poesia é enorme. Algumas delas, inclusive, crescem e, aparentemente, se sustentam financeiramente. Mas, quem compra seus livros? Mesmo durante os saraus, quando livros são lançados, a quantidade de exemplares vendidas é ridícula. E, atente, o público dos saraus é um público aficionado pela poesia. Não é estranho? Mas, mesmo diante destas limitações, o poeta tem que insistir. Publicar seus livros, participar de saraus divulgando seus poemas, mesmo que, como eu, não se sinta à vontade recitando, e ampliar o círculo de amizades com poetas e escritores. Não vejo outra maneira de superar essas limitações. Como você avalia a recepção de sua obra? Bem, num país onde deixou de existir crítica literária fica difícil para o autor saber como sua obra é recepcionada. O que nos resta? Os comentários esporádicos de um ou outro leitor que, por acaso, leu sua obra e, gentilmente, fala se gostou ou não. Mas isso é pouco. Para o autor, o mais importante é ter uma análise crítica de seu trabalho. Como conseguir isso? Não faço a menor ideia. Mas, repito, o poeta, o escritor, o literato, tem que insistir e publicar, publicar e publicar. Quais os desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? Publicar hoje está aparentemente fácil. As mudanças tecnológicas do setor gráfico permitem que livros sejam publicados num custo acessível. Essa facilidade permite, claro, que muita coisa ruim seja publicada. Mas, esta não é a questão. O principal desafio para o novo escritor brasileiro é deixar de ser um diluidor dos procedimentos poéticos e tentar criar novos procedimentos. Não é uma tarefa fácil para o autor. Tudo, aparentemente, já foi produzido. Todos os limites já foram superados. Então, hoje, ser inovador é uma árdua tarefa, talvez até impossível, mas há que se tentar. Afinal, se tudo já foi feito, porque, então, continuar escrevendo? O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Tanto na poesia, quanto na literatura, vejo que o autor brasileiro trabalha incansavelmente na busca por novas formas de expressão. Há excelentes traba108

lhos nesse sentido. Para mim, a atual configuração poética e literária é uma página em branco. Explico. O branco é a cor que condensa todas as cores. A poesia e a literatura hoje estão nessa categoria. Há um universo infinito de possibilidades para a criação artística, mas esta depende da pesquisa, da leitura e de muito trabalho, além da inspiração e da criatividade necessárias. Bem, como você pede para não citar nomes específicos, fico por aqui. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? Para mim a internet criou novas possibilidades artísticas. Na verdade, acredito, permitiu que novas formas de combinações poéticas e ou literárias, novas linguagens, se formassem. Essas possibilidades todavia ajudam o autor a desenvolver sua escrita, mas ele corre o risco de ter seu trabalho vulgarizado, se não se detiver criticamente sobre esse novo perfil digital. Isso do ponto de vista da criação. Por outro lado, facilitou o acesso a informações que, antes, eram muito difíceis de se alcançar. Por exemplo, os escritores africanos. Graças à internet, hoje temos acesso a esse universo e podemos conhecer poetas que jamais conheceríamos se dependêssemos de suas publicações pelas editoras nacionais, ou por meio das escassas informações que nos chegam pelos outros veículos de comunicação. A internet tem também seu lado democrático. Qualquer um pode escrever e publicar. Claro, a avaliação crítica desse material torna-se difícil. Vez ou outra você consegue ler algum texto interessante, bem elaborado, seja poesia ou narrativa ficcional, mas e daí? Em quê isso pode contribuir para o desenvolvimento da linguagem artística? Não, não sou pessimista. Acho que essas publicações digitais acabam, por fim, gerando algo produtivo. Ainda não temos como sabê-lo, afinal, tudo isso é muito novo e estamos vivendo um período de transição em que os valores éticos, morais e sociais estão sendo questionados, derriçados e diluídos. O que vem a partir daí, só o tempo nos dirá. Como foi a experiência de escrever crônicas e outros textos para a coluna radiofônica Estação Raul, transmitida pela rádio UEL FM? Comente a adaptação dos textos para o livro Toca Raul (Edição do autor, 2014). A experiência com o Estação Raul foi um presente dos deuses. Sabe aquela coisa que, do nada, acontece? Foi assim. O Gabriel Giannattasio, amigo e professor de História da universidade de Londrina, UEL, um cara inquieto, sempre em busca de novos horizontes, resolveu apresentar um projeto de pesquisa e extensão tendo como foco a obra de Raul Seixas. Para quem desconhece o jargão acadêmico, explico: projeto de extensão é quando sua realização se dá envolvendo membros de fora da academia. No caso do Estação Raul, a pesquisa que se desenvolvia transformava-se em programas de rádio curtos, de cinco, seis minutos. E com uma estrutura formal básica, texto seguido de música do compositor. Entrei no projeto por acaso. Estava com dificuldades pessoais e não queria comprometer-me com mais uma atividade, além das muitas que tinha. Mas, olha só como é o destino. Por isso que falo ser um presente dos deuses. Um dia o Gabriel me convida para emprestar minha voz para um de seus programas. – Só a voz, né, Gabriel? – Sim, só a voz, responde ele. E eu vou. Fiz o que tinha que ser feito, isto é, gravei o programa e começamos a conversar. Tinha curiosidade em saber 109

de mais detalhes. Durante a conversa, perguntei, inocente, se eles tinham algum programa em que a música “O conto do sábio chinês” seria tocada. Gabriel foi rápido. Convidou-me a escrever para o projeto e, bem, o resultado foi o livro que você citou, o Toca Raul. A liberdade que tínhamos para desenvolver o projeto era ilimitada. Nosso limite era o tempo de cada programa, que não deveria ultrapassar os cinco, seis minutos. No começo, um ou outro atingia três, quatro minutos, e poucos ultrapassavam o limite. Isso foi no começo, porque, nos dois últimos anos, depois que entraram no ar as três últimas temporadas, os programas mantiveram o patamar dos doze, treze minutos. Foram as temporadas em que se explorou intensamente a crônica radiofônica e as histórias ficcionais, dentre elas Conversas na Estação, rádio novela que encerrou o projeto Estação Raul e gerou o livro Toca Raul. E aí você me pergunta sobre o processo de adaptação dos textos radiofônicos para o texto impresso. O que posso dizer sobre isso? Quase nada, e por uma simples razão. Ao escrever, busco, sonho antigo de escritor, chegar a um estilo mais próximo da oralidade. E, nesse sentido, a experiência do escrever para o Estação Raul foi excepcional, porque permitiu-me trabalhar intensamente nessa questão. A partir daí, fui capaz de perceber, inclusive, quando o texto soava muito literário, e quando fluía. No primeiro caso, o texto era refeito. Quando decidi reunir todos esses trabalhos: crônicas, contos, novela e ensaios, num único volume, não tive nenhum problema em copiar e colar (rs). Todavia, não quero com isso dizer que meu texto atingiu seu objetivo. Acredito que não. Quando releio um ou outro, sinto que ainda falta muito para aproximar-se da musicalidade oculta pela palavra, mesmo em prosa. Quando trabalhava como professor, você percebia de imediato aqueles alunos que tinham talento para escrever, ou seja, que já eram escritores e prescindiam da academia? Pergunta difícil. E difícil por uma peculiaridade que tem a ver com o tipo de aluno que eu tive ao longo dos anos. Ministrei aulas em cursos de Ciências Sociais e Publicidade. Em ambos, meus alunos desenvolviam apenas textos técnicos e, pode-se dizer, distantes da boa escrita. Uma das poucas vezes em que tive contato com textos não acadêmicos vindos de alunos foi marcante e assustador. Limito-me a narrar os fatos. Um aluno do curso, que por acaso eu conheci no bar que frequentávamos depois das aulas, escrevia poesias. De alta qualidade. Sensibilidade poética a mil. Ano seguinte matriculou-se no curso e, à medida em que se envolvia com as leituras acadêmicas, diminuía sua produção poética, até que ela desapareceu. Depois de formado, tornou-se um excelente pesquisador. Não sei se escreve prosa acadêmica tão bem quanto escrevia suas poesias, pois não conheci esse seu outro lado. Mas, pela qualidade de suas poesias, seu texto deve ser, no mínimo, bom. Esse fato lembrou-me de uma frase que li há algum tempo e que, talvez, tenha alguma relação: “o intelecto mata a vida”. Se mata a vida, não sei, mas a criatividade artística, com certeza. Você está escrevendo algum livro no momento? Continua a escrever poesia com frequência? 110

No momento escrevo um livro, um romance. É um trabalho em processo. Uma experiência meio arriscada: publicar à medida em que se escreve. Disponibilizo os capítulos na coluna Pequenas Mentiras, que tenho no portal Sigamais [https://www.sigamais.com]. É uma distopia. Um índio, acompanhado de seu parceiro, chega à cidade grande em completa ignorância do que é a chamada vida civilizada. E aí ocorre seu périplo. Sua alegria e sua tristeza. Seu envolvimento com a vida política. Já prontos, à procura de editora, tenho dois originais. Um, Raul e Eu, é a história de um sujeito que vive como se fosse o compositor Raul Seixas. Em seu imaginário, as histórias repetem as peripécias de vida do Maluco Beleza, nosso ídolo pop, expressas em sua biografia e letras de música. O outro, Histórias de Quem, é uma seleção de contos. Quanto à poesia, meio constrangido, confesso: estou em crise. Depois de Lavras ao Vento, meu segundo livro de poemas, fiquei me perguntando no que eu estaria contribuindo para nossa linguagem. Em que medida eu não estaria repetindo tudo aquilo que já tinha sido feito. Não tenho essa dificuldade com a narrativa ficcional. Nela há a possibilidade de infinitas combinações estruturais, garantindo, dependendo da criatividade do escritor, uma experiência única com a palavra. E na poesia? Aparentemente tudo já foi feito. Que formas a nova sensibilidade pede para que se possa construir uma poesia significativa enquanto experiência de linguagem? Essa é uma questão que me angustia. E que torna o fazer poético um processo complexo. Um constante mergulho interior. Pesquisas constantes. Enfim, um ofício ardiloso. Talvez, por isso mesmo, fascinante. Alguma consideração final? Quero agradecer a oportunidade que você me deu para expor minhas angústias enquanto escritor e poeta. Um amigo psicólogo, há tempos, me disse que o segredo do processo terapêutico é fazer com que o paciente fale, fale, fale (rs). Expor minhas angústias literárias e poéticas e falar um pouco de minha produção textual, acredite ou não, tem esse efeito terapêutico. Torno-me mais atento. Me desperto. Então, caro amigo, obrigado.

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Chacal Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1951. Vive no Rio de Janeiro (RJ). Entrevista concedida a Vitor Cei em outubro de 2017. Publicada no jornal Rascunho, n. 217, maio de 2018.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Você poderia comentar sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário? O mínimo múltiplo comum. Amor/humor. Abrir espaço para o erro. Ler com o leitor. Quais os principais desafios para a edição de poetas no Brasil de hoje? O que mudou depois que você ajudou a fundar Colaboratório, experiência gráfica de autogestão? O principal desafio será sempre chegar ao leitor. Para isso temos que superar o pouco caso de editores, professores, mídia e academia com a poesia. Mas poeta é bicho tinhoso. Vive da adversidade. Que escritores brasileiros contemporâneos você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Muita diversidade. Tenho lido andre dahmer, roberto correia dos santos, angélica freitas, ana martins marques, regina azevedo. Leio menos poesia do que deveria. Ler, pra mim, é muito oneroso. Gosto de ouvir e estar junto. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado, em termos de público. Ou, como você mesmo já disse, “poesia é uma mercadoria sem valor de mercado”. Como você vê essa questão? Acredito que é no mundo todo. Poesia não é nada popular. É para poucos. Tem mais gente escrevendo que lendo. Mas é só botar uma melodia por trás e você tem um sucesso. Você sempre recusou a poesia grafocêntrica e se associou aos happenings e performances artísticas subversivas, dos anos 1960 em diante. Recitar é recriar? Recitar é o nome escolar de falar um poema. Batatinha quando nasce. Falar um poema é potencializar sua força de expressão/comunicação. Você reuniu suas poesias completas em Belvedere (1971-2007) e Tudo (e mais um pouco): poesia reunida (1971-2016). Podemos esperar mais algum livro? Sempre. No dia 19 de agosto de 2017, você escreveu em seu perfil da rede social de Mark Zuckerberg que “O Facebook é um aleatório, democrático, intenso centro cultural, apesar do zuck, que o explora comercialmente e pensa que pode dizer o que você pode ou não dizer”. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? 112

As pessoas tomaram mais gosto em ler e escrever. O público de poesia, grosso modo, aumentou bastante. O problema é o excesso que dificulta o senso crítico. Acho legal fazer algumas pausas para meditação diariamente. Para digerir o que se consome na rede, na infovia. Em 2016 você adotou o lema “ocupar e resistir”, apoiando as ocupações nas escolas públicas de todo o Brasil e do Rio de Janeiro, particularmente no Colégio Estadual André Maurois. Os alunos reivindicavam melhores condições de ensino, justas e adequadas, com segurança, equipe de limpeza e professores (ativos e inativos) com salários em dia. Como a poesia pode ajudar nessa causa? Poesia é resistência? Sim, de modo amplo. A resistência do ser, atropelado pelo ter, pelo parecer dos dias que correm. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como saída do atual estágio da humanidade? A propriedade é uma coisa muito violenta. Por ela se luta, se mata, se devora. O capitalismo é um sistema autofágico e genocida. A exclusão social gerada pela concentração de renda é uma agressão ao estado de bem estar social. O neoliberalismo atual, fase terminal do capitalismo, é a caixa de pandora. O último suspiro de uma experiência genética que não deu certo: o homem. Mas é claro, a luta continua até o fim.

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Clóvis Da Rolt Nasceu em Bento Gonçalves (RS), em 1976. Vive em Jaguarão (RS). Entrevista concedida a André Tessaro Pelinser e Letícia Malloy em setembro de 2017. Publicada na Letras Raras, v. 7, n. 1, 2018.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Em seu trabalho, é possível perceber uma característica marcante, a que poderíamos nos referir como uma “poética da descrença”, que bem poderia ser ilustrada pelos seguintes versos de um poema que lemos na seção “Comboio das imagens”, de A orientação das serpentes (Modelo de Nuvem, 2016): “Em algum lugar um corpo sumirá na penumbra, / mais uma lágrima se juntará ao álbum de família: / será judeu, muçulmano ou cristão? / Em vão espero a chuva construir desvios / para outro século.” Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? O fazer poético, no meu entendimento, se dá numa constante revisão dos percursos trilhados por um autor. Digo isso no sentido de sugerir que não penso em temáticas ou opções formais que sejam especificamente minhas, que sirvam para tudo o que fiz ou farei daqui para adiante. Há sempre o risco de cairmos em maneirismos quando somos tentados pela “fórmula” que funciona. Sou movido por desacomodações, observo as coisas à minha volta, tento significá-las pela via poética. Nesse sentido, todas as opções são válidas, todos os temas estão disponíveis. A poesia depende sempre de um momento, de uma ênfase, de uma urgência. E isso pode não encaixar-se no que foi construído (formal ou tematicamente) dentro de uma trajetória. O que me parece é que, por uma questão condicionante que lhe é própria, a poesia acaba revelando a singularidade de escolhas de quem a produz. De um modo muito genérico, posso dizer que tenho um interesse pela construção da linguagem poética, seu caráter de revelação, as relações que conduzem o seu dizer e o seu fazer, a metapoesia. Enfim, tenho interesse por aquilo que torna a poesia possível. Em um dos poemas dispostos na seção “Inventário das distâncias”, de A orientação das serpentes (2016), o eu-lírico afirma: “Preciso reinventar a palavra que apodreceu / sem ter sido digerida, / refazer o caminho que me envelheceu / antes que eu pudesse ser sábio.” Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? A poesia é notável por seus contrastes: por um lado, pode não alcançar o que promete; por outro, pode atingir o que nunca pretendeu. É trabalhoso lidar com esta maleabilidade da poesia, com sua natureza escorregadia e imprevisível. Assim, cada poema é um recomeço, algo que se revela num estado originário, sobre o qual nada se sabe. Eu nunca sei por onde começar. Nunca sei quando surgirá outro poema. Mas, paradoxalmente, sempre há o próximo poema... É como se cada poema fosse do “Gênesis” ao “Apocalipse”: cabe tudo dentro dele. Este é o dilema com o qual todo poeta tem que lidar, pois o poeta é alguém que faz escolhas com a linguagem. Em geral, todas as palavras utilizadas num poema estão indexadas 114

nos dicionários da língua em que foi escrito. Mas a poesia não é apenas um amontoado de palavras. Consiste, antes, numa ignição simbólica tornada possível pelo encontro criativo das palavras, especialmente quando o inesperado salta deste encontro. Meu processo gira em torno da palavra, do enunciado, das fraturas do sentido, da temporalidade do que se enquadra no discurso poético. Em sua trajetória literária, você publicou o livro de poemas Canção de vidro (WS Editor, 2004), em seguida participou do Grupo Neblina, do qual resultou o volume coletivo intitulado Calendário – antologia poética do Grupo Neblina (Edição dos autores, 2006), e recentemente voltou à poesia com A orientação das serpentes (2016), que foi finalista do Prêmio Açorianos de Literatura em 2016. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Creio que tudo foi acontecendo sem premeditação, mediante um acúmulo de experiências, de interlocuções com pessoas que partilham interesses literários e de inserções na linguagem poética (lendo poemas, analisando estruturas e formas, estudando questões filosóficas, comparando estilos e dicções). Nunca foi meu interesse ser um “profissional” da escrita. Almejo tão somente dar uma resposta, para mim mesmo, para o espanto e a estranheza que é existir. Escrever é reaprender a olhar para o mundo deixando de lado tudo o que os outros fizeram você acreditar que o mundo era. É como trocar de pele, reformular aparentes certezas, redesignar o que se julgava sabido. Assim, penso que há um momento em que você percebe que se esvaziou de conteúdos alheios. No meu caso, foi neste momento que a poesia parece ter se instalado com mais maturidade. Você é também artista plástico, tendo realizado exposições individuais, muitas vezes com obras marcadas por uma reflexão sobre a própria linguagem. As artes plásticas desempenham alguma influência em sua aproximação ao objeto literário? Minha atividade nas artes plásticas foi exígua, fragmentária e pouco consistente. Por isso mesmo, abandonei esta atividade. Em arte não há nada mais desolador do que não forjar uma linguagem; nada mais perturbador do que querer dizer alguma coisa sem ter algo a dizer (ou não saber como dizer dentro de uma forma artística). Arte é forma. Só há arte onde se elabora uma forma nova, inaugural, que rompe com o que já conhecemos e sabemos. Por isso mesmo estamos presenciando tantos engodos artísticos no mundo atual, cujo âmbito estético, de um ponto de vista criativo, opera na lógica do insight. Os artistas não se empenham mais na construção de uma linguagem; visam apenas o estalo de uma ideia momentânea e o imediatismo de uma encenação de valor. O banal foi elevado à condição de memória e de registro cultural. Sou uma pessoa muito marcada pela visualidade. Talvez, de algum modo, isso esteja presente em meus poemas. Além disso, foi por meio das artes plásticas que o fenômeno artístico instalou-se como uma necessidade vital para mim. Como você avalia a recepção de sua obra? Fale-nos um pouco sobre a recepção de sua obra poética e, se possível, sobre a recepção de seus trabalhos em artes plásticas. Ser finalista do Prêmio Açorianos de 2016 influenciou o re115

conhecimento da sua literatura? Para ser sincero, não costumo me ater a essas questões. Eu sequer posso dizer que tenho uma “obra”, pois esta palavra sugere um peso muito grande, que beira uma consagração à qual não faço jus. Quem tem uma obra é João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Lygia Fagundes Telles... Publico pouco, num ritmo lento, sem cobranças. Gilles Deleuze dizia que não possuía “conhecimento de reserva”, que sempre que precisava escrever sobre algo, punha-se a estudar. Essa ideia me atrai. Estou sempre concentrado no que tenho que estudar hoje para produzir alguma coisa. Mas há autores que, ao contrário, assinam contratos com editoras já prevendo o intervalo “necessário” entre um trabalho e outro, tudo pautado por estatísticas de consumo do mercado editorial. Isso é horroroso. O que publiquei até hoje circulou num âmbito mais regional, no interior do Rio Grande do Sul. Se há uma recepção, penso que ela se manteve num âmbito mais localizado. Não ligo muito para divulgação, recepção e visibilidade. Eu apenas escrevo; o destino da escrita não depende de mim. O livro A orientação das serpentes acabou tendo um pouco mais de visibilidade. Isso certamente se deve ao fato de ter sido publicado por uma editora de Porto Alegre e da indicação ao Açorianos. Recentemente, uma resenha sobre o livro foi publicada na Revista Filosofia (Ed. Escala, nº 130). Também em função deste livro, dois ensaios me foram encomendados para publicação em dois volumes sob organização da Profa. Ana Haddad Baptista, da Universidade Nove de Julho. A Profa. Ana ainda adotou o livro para trabalhar com seus alunos numa disciplina de literatura contemporânea. Durante alguns anos, você foi colunista de um jornal de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, redigindo crônicas e textos de opinião densos, capazes de desacomodar o leitor. Em que medida a obrigatoriedade de manter um exercício de reflexão constante em um espaço como o do jornal pode contribuir para o fazer artístico? Fui colunista durante seis anos, assinando uma coluna semanal. Esta inserção no jornal – que foi totalmente voluntária – ensinou-me que este veículo tem um ritmo, uma forma e uma natureza muito peculiares. O colunista é alguém que esperamos ansiosamente ler; queremos saber o que ele pensa; temos a necessidade de conferir qual é a sua avaliação sobre um “tema quente” sobre o qual todos estão falando. Sabemos que um colunista é bom quando compramos (ou assinamos) um jornal somente por sua causa, ou quando ficamos ansiosos pela próxima coluna, como se um oráculo nos falasse e nos ajudasse a abrir os olhos. Entretanto, o colunista é alguém que fica muito exposto e que, muitas vezes, corre o risco de tornar-se repetitivo diante dos temas e ênfases que adota em sua escrita. O colunismo não dá muito espaço para experimentações, já que sua natureza reside numa comunicação mais direta, opinativa e persuasiva. Talvez os leitores já esperem do colunista este tipo de dinâmica. A experiência da escrita, quando feita com prazer, responsabilidade e compromisso ético será sempre um fermentário de ideias que podem ser trabalhadas em diferentes gêneros e canais de circulação. Você é originário da Serra Gaúcha, localizada no nordeste do Rio Grande do Sul, e há alguns anos se mudou para o sul do estado, para a região dos pam116

pas. Em sua produção poética anterior e posterior à experiência de mudança, podemos verificar uma constante: sua poesia se caracteriza por um tom ácido e, às vezes, desiludido com a humanidade. Você percebe alguma influência dos dois espaços geográficos na formação dessa sua visão? Pessoas são pessoas em qualquer lugar. Onde quer que estejamos, sempre nos envolverão as mesmas questões. Porém, os lugares, os contextos e as variações territoriais exprimem singularidades que se conectam a um drama humano maior. De fato, a própria humanidade – este termo é muito vago e impreciso – não me dá muitos motivos para ser otimista. Creio que essa tônica de algum modo se dilui no que escrevo. Não creio, contudo, que a poesia seja eficiente para delatar ou corrigir o que somos. Ela mostra, propõe, interroga, funciona como um alerta; mas se descambar para o moralismo e a prescrição, corre o risco de se tornar panfletária. E não há nada mais detestável do que uma poesia que almeje ser um recurso à correção ou à indução de comportamentos. Acredito que minha mudança para o pampa gaúcho acabou me inserindo, inevitavelmente, em um novo cenário humano, social e cultural. Contra isso não há formas de blindagem. E nem deveria haver. Portanto, aproveito a desacomodação causada pela mudança para redescobrir a extensão do meu fazer poético, pois a todo momento sou confrontado por ela. Desde 2011, você atua como professor na Universidade Federal do Pampa, campus Jaguarão. Em que medida a experiência de residir em uma cidade fronteiriça do país, a maior proximidade com a língua espanhola e os diálogos com traços da cultura uruguaia participam de seu fazer artístico? As fronteiras são espaços singulares, de onde brotam fenômenos culturais sui generis. No caso dos intercursos entre Jaguarão (Brasil) e Río Branco (Uruguai), há um dinamismo sociocultural que se verifica, dentre outras situações, nos fluxos humanos e comerciais em torno da Ponte Mauá; na linguagem escrita e falada que, muitas vezes, mescla estruturas linguísticas do português e do espanhol; nas oscilações referentes ao câmbio do dólar (em função da zona de freeshops instalada em Río Branco); no trânsito de conteúdos estéticos (música, televisão, carnaval, imaginários contextuais) e nas disputas simbólicas que parecem gerar uma “terceira margem” – numa alusão ao texto de Guimarães Rosa e ao próprio rio Jaguarão. Sem dúvida, há uma dimensão positiva nestes intercursos, que, inclusive, pode ser elaborada artisticamente. Mas a fronteira aqui enquadrada, há que se registrar, é também marcada por abandono, carência de recursos e descaso das instâncias governamentais. Do ponto de vista da criação, é impossível ficar indiferente a um espaço onde as formas de mestiçagem cultural fazem parte do cotidiano. Entretanto, não me vejo, ao menos neste momento, elaborando tais formas a fim de alçá-las a uma linguagem poética. Também não penso em produzir uma poesia que nasça da “obrigação” de escrever sobre este contexto. Digo isso porque pode haver uma expectativa de que um autor, pelo fato de viver numa fronteira, tenha que, necessariamente, tomá-la como objeto de criação. Sou movido por aquilo que a poesia demanda de mim. É ela quem está no comando. Se, de algum modo, a fronteira aparecer em minha escrita futura, será através de um percurso de amadurecimento e não apenas como uma encenação ou uma apropriação forçada. 117

Você poderia nos falar um pouco a respeito de seu processo de reflexão sobre a docência – principalmente a docência voltada à arte – em uma Universidade situada na fronteira com o Uruguai, distante de centros culturais e acadêmicos hegemônicos brasileiros? A universidade pública brasileira está em franca decadência. Parece-me que ela perdeu o seu sentido de necessidade e o seu compromisso educativo. Trata-se de uma questão não apenas da instituição, mas de uma crise no modelo formativo e nas bases conceituais e filosóficas da educação superior. Não percebo em nossas universidades um sentido profundo de “formação” para a vida e para a autonomia do indivíduo. Muitas universidades existem hoje para cumprirem a função de centros de assistência social, onde a produção do conhecimento, a pesquisa, o pensamento e a reflexão crítica sobre as ciências, as artes e a cultura converteram-se em extravagâncias. Uma evidência disso é a irrelevância do Brasil no cenário acadêmico internacional, com raras exceções (raras mesmo!) em algumas áreas. Sem dúvida, isso fica mais claro diante do colonialismo acadêmico que impera no Brasil, cuja lógica acentua ainda mais as diferenças entre os centros hegemônicos e as periferias. O sistema de seleção do alunado (ENEM, SISU) é, por si só, um estímulo à manutenção deste desequilíbrio. Em suma, melhores notas nestes processos de seleção garantem vagas nas universidades centrais. Candidatos à docência, muitas vezes, se negam a prestar concursos em locais afastados de um centro mais estabelecido. Há uma mística de que as universidades periféricas – no caso da Unipampa a fronteira é um elemento paradigmático – são indutoras de progresso e desenvolvimento, mas o que percebo depõe contra essa visão. Com a vinda da universidade, a cidade de Jaguarão foi tomada por uma especulação imobiliária sem precedentes; o transporte público é precário; não há postos de trabalho para os alunos que optarem por trabalhar ou estagiar em um turno; as opções de lazer e sociabilidade são exíguas; os equipamentos artístico-culturais são poucos e falta-lhes qualificação e profissionalismo; o afastamento geográfico pode ser até um fator de entrave à pesquisa e à formação de parcerias por parte dos docentes; paradoxalmente, os veículos oficiais da universidade não podem cruzar a fronteira, caso planejemos alguma atividade pedagógica ou intercultural com o país vizinho. Algumas pessoas veem este quadro como uma oportunidade para reinventar as relações internas do mundo acadêmico, através de uma esfera política mais endêmica que atua na criação de um discurso de “resistência da periferia”; outras o encaram idilicamente, às vezes até romanticamente, como um traço distintivo de uma universidade pública instalada no “interior profundo” do Brasil, este interior que precisa ser elevado a uma condição de progresso. Como não sou ufanista e não nutro utopias transformadoras, prefiro pensar nos impactos práticos e concretos que esta condição causa em minha atividade docente. Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, seja para promover a própria obra, seja para engajar-se politicamente. Você se mantém afastado das redes desde o princípio. Por quê? E como vê essa face do intelectual contemporâneo? Poucas coisas me interessam no mundo virtual, da tecnologia e da internet. Trata-se de um mundo paralelo, holográfico, meio fantasmagórico. Tenho um certo temor em relação ao futuro, quando teremos desmantelado por completo a 118

noção de uma esfera privada em favor de uma vida despersonalizada, onde tudo terá se tornado público (no pior sentido deste termo), inclusive a intimidade de cada um. Muitas pessoas acreditam que as redes sociais as “individualizaram”, deram-lhes uma “voz”, uma plataforma de discurso e intensificação de identidades. É o contrário: o que as redes sociais fazem é gerar uma massa paranoica, desfigurada, hiperfriccionada e sempre prestes a se manifestar – ainda que, na maior parte das vezes, esta massa diga apenas frivolidades, já que a precipitação e a displicência estão em seu DNA. E a massa – não nos esqueçamos do alerta de Ortega y Gasset – é um monstrengo social. Não tenho interesse em participar das agruras, das disputas e do jogo de cena das redes sociais. Se engajar-se politicamente significa perder horas com postagens que expõem ameaças, estimulam a perseguição e disseminam o ódio, então, isso não me interessa. Não vejo engajamento político nisso: vejo histeria coletiva. Em certa medida, o intelectual público – aquela figura que líamos, que esperávamos ansiosamente ouvir numa entrevista ou numa palestra, aquela figura cujas ideias constituíam um horizonte – definhou paralelamente à ascensão de uma massa opinativa parasitária que, sob o pretexto de defender a “diversidade de ideias”, vem instituindo formas autoritárias de representação da realidade e de construção de um debate público. Atualmente, como pode o intelectual público manter-se relevante? Como isso pode acontecer se, na esfera intelectual (hoje a esfera da mídia), ele tem que disputar espaço com celebridades, adolescentes descoladinhos que fazem macaquices diante de uma câmera (os chamados youtubers), influenciadores digitais com seu arsenal de receitas prontas para tudo, produtores de banalidades e líderes religiosos donos de redes de comunicação? Um fenômeno paradigmático deste mundo das redes sociais é o fato de que, hoje, mede-se a extensão, a abrangência, o impacto e a relevância das ideias e do pensamento pela quantidade de “likes” que eles podem gerar. Assombroso! O mundo das redes sociais é o mundo da superfície, da opinião, da autofagia. Enfim, eu detestaria ter “seguidores”. Quem tem seguidores é o Dalai Lama, o Papa... Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo poética – brasileira contemporânea. Penso que há, de um lado, a literatura; e, de outro, o meio literário. São duas coisas distintas. O meio literário é corporativo, exclusivista, esotérico. Você nunca consegue saber o que seus integrantes estão arquitetando. Mas isso não me preocupa. O que me interessa é a literatura, a criação, o labor de pessoas que podem estar no mais completo anonimato e, ainda assim, produzindo trabalhos de qualidade. No momento atual, percebo a atuação de um dogma literário que vem sendo instituído nos últimos tempos, o qual direciona temas, abordagens e parâmetros para a efervescência do mercado (tanto financeiro quanto das ideias). Minha relação com a literatura não é técnica nem cerebral, é intuitiva e emocional. Meus filtros e detectores servem para a criação de um valor individual. Nunca indico livros e leituras a ninguém: cada um que descubra o que lhe apraz. Acho extremamente enfadonhos os círculos de debate literário. Não tenho conhecimento suficiente acerca de tudo que se produz no Brasil em termos poéticos. Há 119

muita gente escrevendo e publicando, há várias editoras, patrocínios, canais de divulgação... É quase impossível acompanhar isso tudo, nem tenho a pretensão de fazê-lo. Penso que o principal desafio da literatura brasileira atual é manter um nível aceitável de leitura e de hermenêutica do texto literário diante de um país semiletrado, no qual, cada vez mais, cresce o analfabetismo funcional e despenca a qualidade da educação básica. No momento, no âmbito da poesia, estou lendo os Poemas Reunidos de Ivan Junqueira (Record, 1999) e o livro Ignorância do sempre de Juliano Garcia Pessanha (Ateliê Editorial, 2006). Em 2014, você editou por conta própria Universo, um pequeno volume composto de um único poema que percorre todas as páginas, à maneira de um verso sem fim. Por outro lado, seu livro seguinte, editado pela Modelo de Nuvem, foi finalista do mais importante prêmio literário do Rio Grande do Sul. Quais são os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? O principal desafio é manter-se íntegro e honesto consigo mesmo diante das investidas de um mercado editorial para o qual a qualidade do texto literário deixou de ser um parâmetro. Evidentemente, não se pode generalizar, pois há boas editoras e bons profissionais (editores) que fazem um trabalho bastante sério. No mundo atual, é relativamente fácil publicar. Você pode editar por conta própria; há verbas disponíveis através de leis de incentivo à cultura ou patrocínio privado; há quem publique através de financiamento coletivo (crowdfunding). Já há produtores culturais e agentes literários especializados no suporte aos novos escritores. Os meios digitais – importantes neste caso – possibilitaram publicações mais baratas e de circulação mais abrangente. Outro desafio, além do exposto acima, consiste em destacar-se num cenário hipersaturado do ponto de vista da produção de ideias e de pensamento criativo. O mundo atual desvaloriza a experiência pregressa, o cultivo de uma trajetória e o amadurecimento que se associa ao estudo, ao aprimoramento e à autossuperação (aquilo que um dia definiu-se como Bildung). Veja-se, por exemplo, o caso da dupla Neagle, que são dois primos que venderam milhares de exemplares na recente Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Sua experiência, do alto de seus dezenove anos de idade, consiste na publicação de vídeos no Youtube em que passam o tempo fazendo malabarismo com garrafinhas de água... Em outro poema de A orientação das serpentes (2016), lemos os seguintes versos: “Este é um tempo em que abutres / pairam sobre o mundo, / escandalosamente desejosos / de nossa carne desumana.” Como se não bastasse abutres pairarem sobre o mundo, a carne que eles almejam é desumana. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? A monstruosidade é constitutiva do mundo humano em todos os tempos e épocas. Não é prerrogativa do momento atual. Poderíamos escrever uma história da humanidade pelo viés da violência, da morte e do mal. Tal história deman120

daria muitos volumes impressos. O século XX (para ficar em apenas um século!) presenciou guerras mundiais, genocídios (judeus, armênios, tutsis...), perseguições, sistemas políticos totalitários. O ser humano não tolera a paz. O amor é pesado demais para a nossa espécie. O diálogo, para nós, tem a forma de uma bola de demolição. É sempre mais simples, portanto, resolver os dilemas humanos com uma ogiva nuclear. Assim, não sei se entendi bem a pergunta, pois ela fala de uma circunstância que “vivemos hoje” e, no meu entendimento, o que vivemos hoje é uma extensão ou um desdobramento do que temos plantado por séculos de soberba e vaidade. Diante deste quadro, não ouso propor qualquer caminho ou conduta que possam nos livrar de tanta desolação. Mas penso, todavia, que se faz urgente resgatar um sentido de espiritualidade diante do mundo, uma espiritualidade que possa nos confrontar com nossa impotência, que nos reconecte à natureza e à ecologia, que nos fale do profundo da vida, enfim, uma espiritualidade que seja capaz de nos despertar e iluminar diante da casuística materialista do mundo contemporâneo. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outros gêneros literários? No momento, trabalho em um livro de poemas que pretendo publicar em 2019. Por meio destes poemas, pus-me a refletir sobre a comunicação humana, o diálogo, o discurso, o argumento, e sobre aquilo que torna esses elementos tão contraditórios e explosivos. Também estou trabalhando em um livro que resulta de um projeto de pesquisa cadastrado junto à Unipampa, no qual estou analisando o processo de rejeição ao monumento a Nossa Senhora de Caravaggio ocorrido na cidade de Farroupilha-RS. Este projeto tem previsão de encerrar-se em 2018 e, portanto, poderá ser publicado também em 2019. No âmbito literário, exercito-me exclusivamente na poesia.

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Daniel Munduruku Nasceu em Belém (PA), em 1964. Vive em Lorena (SP). Entrevista concedida a Vitor Cei e Julie Dorrico em outubro de 2017. Publicada na Voz da Literatura, n. 5, setembro de 2018.

Você é um escritor premiado que publica desde os anos 1990, reconhecido pela militância no movimento em defesa dos povos indígenas, mas também pela promoção da literatura indígena no país. Como você define a sua trajetória literária? O que o levou a começar a escrever? Houve algum incentivo no início da sua carreira? Sou um fazedor de coisas. Não tenho e nunca tive a intenção de ser um escritor que se senta na escrivaninha para compor belas poesias apenas por mera distração ou na tentativa de dar uma resposta às angústias pessoais. Sou e sempre fui coletivo (como um ônibus). Algumas vezes fui passageiro, outras, o cobrador, mas gosto mesmo é de dirigir. Assumo riscos e vou para a estrada mostrar minha competência, adquirida pelo pertencimento a um povo, mas também pelo constante aprendizado acadêmico, pelo esforço profissional e pela criatividade que me cabe. Nunca fui incentivado a nada. Apenas segui o fluxo que a vida me apresentava e fui aprendendo a dominar os códigos, as letras, os sons e as palavras. Claro que reconheço a presença dos ancestrais em minha herança literária e é a eles que distribuo minha gratidão. Considerando que existem diferentes perspectivas sobre o que é literatura, em diferentes tempos e espaços, como você define a literatura indígena? Que elementos a diferenciam das demais literaturas produzidas no Ocidente? Que função você identifica nela? Costumo dizer que faço literatura e não teoria literária. Sou um fazedor que pensa as coisas quando elas se apresentam. Dentro dessa perspectiva, tenho pensado a literatura indígena como um elemento aglutinador, um instrumento capaz de oferecer um outro olhar para a sociedade brasileira. Também por isso a penso para além da cultura escrita. A escrita é apenas mais um dos elementos formadores da cultura, como são os cantos, as rezas, as danças, as histórias tradicionais. Tudo isso está sob o grande guarda-chuva da oralidade que se distribui generosamente entre as outras manifestações culturais. Nesse sentido, a literatura indígena tem uma “pegada” mais oral e talvez seja por isso que a maioria dos escritores indígenas recontam histórias tradicionais: por entenderem que dessa forma estarão alimentando a memória ancestral. Somos alimentos dos deuses. Esta é a função da literatura indígena. A publicação da sua última obra – Memórias de índio: uma quase autobiografia (Edelbra, 2016) – nos leva a refletir sobre os estudos críticos em torno da autobiografia indígena como um gênero que mescla as pessoas eu/nós numa narrativa de cunho coletivo, entrecortada pelas histórias singulares da vida do narrador, sem a linearidade da vida pessoal, mas do que ela julga importante 122

dizer a partir de uma fala coletiva. Nesse sentido, você poderia explicar por que define suas memórias como uma “quase autobiografia”? Porque ela ainda está se escrevendo. Todo dia aprendo coisas novas e me acho relativamente produtivo. Creio que daqui a alguns anos terei que dar continuidade a esse livro, para atualizá-lo. Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. As crônicas, em seu livro, possuem um limite bem curto, e logo passamos à próxima memória. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário? Nunca pensei em formatos literários. Sou levado pelo que quero dizer na hora em que estou escrevendo. Às vezes penso num projeto novo a partir de uma ideia que ocorreu ou de uma ausência temática que percebo durante uma conversa, uma palestra ou um sonho. Não tenho estratégias e nem sou disciplinado a ponto de ficar uma parte do dia entregue à criação literária. Vou escrevendo... e pronto. Daniel, você cita, em Memórias de índio, o momento inaugural em que você percebeu que seria escritor e também a primeira vez que se assumiu escritor (na recepção do hotel). Você poderia falar um pouco sobre esses momentos tão caros a um artista? Isso aconteceu de fato comigo. Sempre me apresentei como professor em todos os hotéis e isso não causava nenhum estranhamento. Um dia resolvi dizer que era escritor e isso foi um susto, porque minha cara de índio não combina com o ser escritor. Acho que isso foi tão assustador que eu resolvi que assustar seria uma boa forma de curar a ignorância das pessoas. Por isso sou assustador... Como você avalia a recepção de sua obra? Acho que minha obra é muito bem recebida, normalmente. Claro, há pessoas que desconhecem totalmente o que já produzi, mas as que a conhecem são pessoas fiéis e alimentam minha sensação de estar num bom caminho. Há as que conhecem e a distorcem por pura ignorância, mas isso não me entristece e sim alimenta meu espírito. Hoje, no Brasil, podemos perceber um crescente número de escritores indígenas. Mas também vemos escritores não indígenas buscando elementos tradicionais da cultura ancestral para criarem obras de ficção, sendo que muitos desses escritores têm recorrido a pesquisas antes de concluir suas obras. Qual é a sua opinião sobre esses novos escritores? Acho que todas as pessoas que desejarem trabalhar a temática indígena de forma literária têm mesmo que se atualizar. As informações que normalmente se tem dizem respeito a uma visão antiga, antiquada e preconceituosa. O mínimo que se pode desejar de um escritor honesto é que ele procure em fontes confiáveis para poder construir seus personagens respeitando suas culturas, seus pertencimentos. Claro que um personagem indígena pode ter todos os problemas identitários e pode fazer parte de um enredo que discuta algumas destas questões. Enfim, não quero ser o censor de ninguém. Peço apenas que tenham cuidado. 123

Como você avalia os escritores indígenas contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura indígena atual como um todo: o que você vê? Há uma boa safra se delineando. São os que estão experimentando a universidade e extraindo dela a essência com a qual construirão sua participação na sociedade. Tenho bons sentimentos que me dizem que logo teremos novos escritores indígenas permeando a sociedade brasileira com textos criativos, inovadores e comprometidos. Creio que esta será a marca da próxima geração de escritores e escritoras indígenas. É importante que assim seja para que haja um avanço nos debates e discussões nacionais. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores indígenas no Brasil de hoje? O mercado editorial depende muito das compras governamentais. Infelizmente isso foi diminuindo nos últimos anos e o atual governo golpista está dilapidando toda a política pública de incentivo à leitura que marcou as administrações anteriores. Os livros de temática indígena precisam desse incentivo para poderem ser publicados. A lei 11.645/08 foi fundamental para o surgimento de novos escritores indígenas, porque exigia professores leitores. Com a tal paralisação da educação, teremos um retrocesso que desencadeará um retorno à ignorância e ao preconceito. Portanto, temos que lutar para derrubar essa corja e eleger alguém realmente comprometido com a educação e a formação de cidadãos conscientes. Você escreve no blog Mundurukando e grava vídeos em seu canal no YouTube. O que mudou na (e para a) literatura indígena depois da internet e das novas tecnologias de informação e comunicação? Disse anteriormente que meu conceito de literatura vai além dos textos escritos. As coisas são complementares e acredito muito no poder de atualização que nossa gente carrega em seu gene. As novas tecnologias vieram somar. Também por isso muitos escritores indígenas irão surgir, como já está acontecendo. As tecnologias vieram para revelar o que somos enquanto povos. Temos que fazer uso delas de maneira consciente e positiva. Há séculos as populações ancestrais do Brasil resistem a “projetos de morte” e lutam contra as tentativas de fragilizar a proteção ambiental das florestas. Atualmente, presenciamos o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o massacre das populações indígenas, especialmente no Noroeste do país. Soma-se a isso a ascensão, em nível internacional, de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Nunca fui profeta do apocalipse. O que vejo é uma tentativa de manter o status quo onde uns mandam e outros obedecem. As mentes poderosas do planeta estão usando uns imbecis para criar a discórdia e fazer as pessoas acreditarem que a economia e a religião salvarão o mundo. Pura ilusão. É tudo uma maquinação armada para frear o avanço dos direitos humanos, a divisão equânime das riquezas e a construção de uma sociedade global e igual. Tudo o que está sendo disseminado de ódio é apenas uma forma de desviar a atenção das pessoas dos 124

reais interesses que estão em jogo. Desde quando discutir o nu artístico entrou na pauta brasileira? Desde quando o casamento gay foi um problema? Desde quando a religião foi matéria de discussão no STF? Desde que começaram a descobrir que o povo estava empoderado. O que condena o Lula não é o suposto desvio que cometeu, mas o fato de ter dado casa, água encanada, universidade, saúde e escolaridade para o povo pobre do país. A partir desse momento começaram a criar as cortinas de fumaça para desviar a atenção do povo de suas reais necessidades. Tudo está ligado a tudo. Só não vê quem não quer.

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Dau Bastos Nasceu em Maceió (AL), em 1960. Vive no Rio de Janeiro (RJ). Entrevista concedida a Vitor Cei entre março e abril de 2019. Publicada na Voz da Literatura, n. 13, maio de 2019.

Editor chefe do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea (UFRJ), que tem publicado uma série de entrevistas com escritores, você também organizou o livro Papos contemporâneos 1 (UFRJ, 2007), que reúne entrevistas com doze poetas e romancistas renomados. Como avalia a importância do registro de conversas com os escritores da atualidade? Concordo que ninguém sabe exatamente o que quer dizer com sua ficção ou poesia, mas acontecem coisas antes, durante e depois da escrita que somente os autores viveram ou testemunharam. Esses depoimentos não podem ser tomados como fontes privilegiadas de verdade, porém dificilmente empobrecerão a visão das obras. Como atualmente o analista continua partindo do texto em si, mas pode circular livremente pelo contexto, a biografia, a vida literária, a teoria da literatura, a fortuna crítica e tudo o mais que o ajude a realizar seu trabalho, certamente gostará de poder decidir se, após formar sua própria ideia acerca do trabalho do ficcionista ou poeta a que se dedica, quer saber o que ele pensa daquilo que produz. Quem poderá negar, por exemplo, a riqueza e a importância do famoso “Diálogo com Guimarães Rosa” travado por Günter Lorenz em 1965? Essa entrevista é tão forte que, se alguém lê-la antes de conhecer Sagarana, Grande sertão: veredas e outros livros, corre o risco de reduzir sua percepção da obra rosiana basicamente àquilo que os dois interlocutores comentam. Agora, uma vez familiarizada com os escritos de um determinado ficcionista ou poeta a ponto de construir uma imagem própria de sua produção, a pessoa tem plenas condições de crivar o que entrevistado e entrevistador dizem. Na lista de entrevistas que fiz, editei ou organizei, gostaria de acrescentar a coletânea Luiz Costa Lima: uma obra em questão (Garamond, 2010), que, com suas 408 páginas, foi apresentada pela editora como a “mais extensa conversa sobre literatura já publicada no país”. Faço menção a essa grande navegação feita por dezoito pesquisadores do Brasil e do exterior pela obra daquele que é amplamente reconhecido como o maior teórico da literatura em atividade no Brasil para dizer de minha alegria de perceber que os papos com críticos, ficcionistas e poetas revelam que, a despeito de não haver mais condições de organizarmos movimentos literários e outras iniciativas de cunho coletivo, constituímos, sim, uma grande comunidade. Entre nós, as diferenças são muitas, mas tópicos realmente fundamentais – como a importância de fazermos uso otimizado do imaginário, canibalizarmos o passado e insistirmos na experimentação, por exemplo – são vistos de maneira consensual por todos, ainda que as expressões variem em função do papel que o entrevistado mais desempenha. É assim que uma fala da ficcionista Rosa Amanda Strausz se reflete numa frase proferida pelo poeta Armando Freitas Filho, que tem tudo a ver com o que a professora Leila Lehnen disse em outra entrevista. 126

Por fim, gostaria de frisar que só me interessa a entrevista literária que realmente faça jus ao gênero, ou seja, que vise à profundidade. Cada escritor possui um método e um estilo de trabalho próprios. Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Os temas brotam em função de minhas ideias fixas, às quais se somam as inquietações do momento. Os diferentes tempos se conectam entre si devido ao pasmo diante da injustiça, da violência e de outras terríveis provas da pequenez humana, a começar pela minha própria. A essas constantes se soma a mudança constante de cenários e personagens, buscada para que eu não morra de tédio e mantenha a impressão de que estou aprendendo algo sobre a vida. Uma vez que um determinado enredo se impõe como merecedor de virar romance, entrego-me a um processo de gestação sempre árduo, pois o afã de fabular e militar é mantido sob rédeas curtas, de modo a priorizar a descoberta de uma forma que, entregue ao imponderável até onde for possível, convenha ao todo. Nesse sentido, precisamos ter em mente que, depois de tudo o que se experimentou, só nos resta a coragem de apostar no inusitado, a reescrita de cada frase à exaustão e, ao mesmo tempo, a modéstia de reconhecer que, uma vez que a literatura exauriu seu repertório de recursos, nem o gol de bicicleta que algum autor venha a fazer poderá ser chamado de inaugural. Das trips, coração (Marco Zero, 1984) foi sua primeira obra publicada. Como define sua trajetória literária? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Como sabemos, todo mundo pode produzir ficção, bastando dedicar algum tempo à escrita. Na oficina Contos do Fundão, que mantenho na UFRJ, aparecem alunos dizendo que nunca colocaram histórias no papel, entretanto ao longo do semestre escrevem três narrativas curtas, em prova de que a condição de escritor realmente é universal. Aliás, nada mais anacrônico e digno de pena que autor que se acha diferenciado do resto da humanidade. Porém, caso insistamos em escrever e sobretudo reescrever, é possível que o mundo emita sinais de que está gostando do que fazemos. Foi o que me ocorreu, por exemplo, aos 23 anos, quando Das trips, coração recebeu várias resenhas favoráveis. Mas a boa acolhida de um determinado livro não garante nada. Eu sabia que só seria feliz dedicando parte de minha existência à escrita de ficção, mas fui tomado por uma crise tremenda. A saída foi fazer uma longa viagem, durante a qual consegui terminar meu segundo romance, Snif, lançado em 1987, que chegou a agradar pessoas como o escritor Herbert Daniel e alguns críticos que respeito, mas teve uma acolhida bem mais morna. A essa altura, meu deserto interior tinha se ampliado bastante, de modo que nos vários anos que se seguiram o único original que produzi ficou tão ruim que, depois de ser recusado por quase todos os editores então em atividade, simplesmente o perdi. O mais paradoxal é que eu não conseguia tocar a literatura, mas pagava as contas copidescando, revisando, traduzindo, enfim, trabalhando com texto – o que, querendo ou não, era outra forma de o mundo dizer que, na pior das hipóteses, suportava o que eu escrevia. Como meu filho era pequeno, recorri 127

à atividade leve e divertida de bolar livros infanto-juvenis, que, no entanto, estavam longe da literatura que eu pretendia fazer. Agora, que sua pergunta me leva a fazer esta retrospectiva, tendo a concluir que meu bloqueio em relação à escrita de ficção para adulto decorria de meu desprezo pelo romance dado a fórmulas e, em igual medida, de minha ignorância quanto aos caminhos percorridos pela literatura. Assim se explica que aos 30 anos eu tenha começado um mestrado, ao qual se seguiu um doutorado e até um recém-doutorado (como se chamava o pós-doc feito logo depois da titulação). Como os prazos da pós eram um tanto fluidos, investi doze anos nesses três passos, aos quais se somou o período dedicado à preparação para concurso, durante o qual continuei fazendo de tudo para sobreviver. Sem tempo para nada, comecei a acreditar seriamente que nunca mais voltaria a fazer ficção. Por essa época, meu interior trazia entre suas sombras a figura de um romancista que, anulado pelos demais papéis que me coube desempenhar, começava a ficar rancoroso. Um dos pontos altos do dilaceramento foi a publicação de minha tese de doutorado – Céline e a ruína do Velho Mundo (EdUERJ, 2003) –, que recebeu o prêmio APCA de melhor livro de ensaio de 2003. Não bastasse a trava, o ficcionista parecia suplantado pelo ensaísta. Tudo isso foi muito doloroso e só começou a mudar em 2005 – portanto, dezoito (!) anos depois do lançamento de meu segundo romance –, quando fui contratado pelo editor Alberto Schprejer para escrever Clandestinos na América (Relume Dumará). A despeito de seu jeitão de best-seller, esse romance me devolveu à condição de ficcionista. Desde então, lancei Reima (Record, 2009), Mar Negro (Ponteio, 2014) e Espiral (Ponteio, 2017), o que me devolveu alguma tranquilidade, pois vejo a produção de ficção como atividade a ser desempenhada em paralelo com aquelas que nos deem o sustento – sob pena de submetermos nossa criação a injunções mercadológicas e outras –, mas com o máximo de regularidade possível. Em que momento de sua carreira você decidiu trabalhar como ghost-writer? Conte-nos como foi essa experiência. As atividades como escritor-fantasma desempenham alguma influência em seu trabalho autoral? Nunca acreditei na possibilidade de vender muito, até porque, com exceção de Clandestinos na América, que foi encomendado, não escrevi nenhum livro pensando em bombar. Antes de virar professor – algo que só começou a ocorrer aos 39 anos, como substituto –, passei mais de duas décadas sobrevivendo do que ganhava com a prestação dos mais variados serviços editoriais. Ora revisava um livro técnico, depois copidescava um tratado sociológico, então me pediam para traduzir um livro de astrologia ou de autoajuda a partir do inglês, seguido da tradução de um romance primoroso originário da língua francesa... Foi assim que acabei funcionando também como ghost-writer, atividade que desempenhei com o descompromisso de quem presta mais um serviço e, ao mesmo tempo, o desprezo de quem trabalha para alguém que deseja tanto passar por autor, que contrata alguém para escrever. Posso dizer, portanto, que o desempenho da função não teve qualquer influência sobre meu trabalho autoral, até mesmo porque a aposta literária de quem contrata um fantasma é nula. Hoje, minha experiência como prestador de múltiplos serviços editoriais facilita a produção de textos tão diferentes quanto apresentações de novas edições de revistas, projetos de pesquisa e 128

até relatórios (como o famigerado Sucupira, da CAPES). Para não perder a chance de falar de influência, acrescento que as transformações que de fato prezo em minha ficção foram fomentadas pelo contato continuado com textos analíticos, teóricos e literários – algo que se intensificou a partir de meu retorno à universidade, à qual devo muito como ser humano, docente e escritor. Tendo crescido na zona canavieira de Alagoas, você ambientou seu último romance, Espiral, em uma cidade ficcional situada naquele estado, enquanto Mar Negro tem uma protagonista alagoana. No entanto, seus outros romances têm cenários e protagonistas de distintas cidades, do Brasil e do exterior. Qual é a influência dos espaços geográficos na composição de suas narrativas? Sou tão fiel ao romance que, mesmo sabendo da inadequabilidade de textos extensos aos tempos em que vivemos, até o presente só publiquei dois contos, mesmo assim porque dois amigos queridos (Ricardo Barberena e Vic Saramago) organizavam coletâneas e me pediram uma narrativa curta protagonizada, respectivamente, por Caio Fernando Abreu e Louis-Ferdinand Céline. Digo isso para sublinhar que minha fidelidade se limita ao gênero e até cresceu com o passar do tempo, já que uma das poucas vantagens da idade é a possibilidade de recriar o longo caminho percorrido. Não no sentido naturalista ou autobiográfico, mas naquilo que a vivência tem de convite ao enfrentamento desabusado dos enigmas que o mundo envia a essa máquina indefinível chamada mente. Em meu caso, a variação de espaço provavelmente tem como um de seus motivos o desterro: nasci em Maceió, por volta dos cinco anos minha família se mudou para uma fazenda, de onde saí para viver numa cidadezinha com o emblemático nome de Boca da Mata até os catorze anos, em seguida voltei a Maceió, para partir menos de doze meses depois para Olinda, que dividi com Recife durante quatro anos, quando embarquei para a cidade de minha predileção – Rio –, da qual me afastei por mais de cinco anos, dedicados a mochilagens e estudos na Europa e nos Estados Unidos. Assim talvez se explique tanto a multiplicidade de ambientes de meus livros quanto a escolha de Alagoas como cenário principal dos últimos. Em arte, a promessa de realização futura sempre parece despudor, mas, lançados Mar Negro e Espiral, talvez me seja permitido confessar que o plano é publicar o que tenho chamado intimamente de trilogia alagoana, de que fará parte também Morte certa, em fase avançada de escrita. Os três nascem da constatação de que as raízes me emocionam a tal ponto que quero lhes oferecer meu melhor, ou, pelo menos, o que aprendi ao longo de décadas de escrita. O mais estimulante é que, além de meu estado natal ter personalidade histórica suficiente para se bancar como espécie de pico dos paradoxos do país, encarna uma insignificância e uma decadência tais que mais parece um não-lugar. Assim, sensibiliza o alagoano que sou, mobiliza o plugado na realidade que sempre fui e tranquiliza o ficcionista em que me transformo cada vez mais. Como você avalia a recepção de sua obra? Comente a recepção de seus romances e, também, de seus textos de literatura infantojuvenil. Do ponto de vista das vendas, sou um grande desastre. Os três livrinhos que escrevi para a meninada até saíram bem, pois foram publicados pela FTD e 129

pela Salamandra, que tinham uma boa entrada nas escolas. Ganharam o selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e um deles chegou a ser escolhido pelo júri de um prêmio importante, mas teve de ser retirado do páreo. É que justamente naqueles dias o Jornal do Brasil publicou uma matéria sobre literatura para essa faixa etária em que apareceram títulos de livros ainda inéditos de quatro autores, entre os quais eu, o que, em respeito ao edital, levou os jurados a substituírem meu nome pelo do segundo colocado. Essa história não foi publicada e me chegou aos ouvidos muito tempo depois, durante uma conversa com autores e editores de que participava também um dos jurados. Como estava muito duro, minha reação foi lastimar não ter ganho o dinheiro do prêmio (atualmente, em torno de 20 mil reais). Conto o incidente para dizer que minha trajetória é repleta de incidentes que atrapalham bastante o que costuma se associar à ideia de sucesso – boa venda, admiração do grande público etc. –, ao mesmo tempo que reúne manifestações de apreço da parte de pessoas que admiro muito. Evidentemente, eu gostaria de reunir as duas dimensões. Porém, logo cedo percebi que jamais serei best-seller, tampouco tenho saco para fazer uma série de jogos necessários à manutenção do nome na fita. Isso não me faz mais puro, tampouco melhor do que ninguém. Agora, como alguém que escreveu bastante de aluguel, certamente conseguiria fazer uma série de livros eletrizantes – tipo essas bobagens publicadas nas chaves do romance policial e da literatura fantástica – e, assim, evitar reações como a do pessoal de marketing de uma grande editora que, diante dos elogios do parecerista a um original meu, disse que mesmo assim não convinha me publicar, pois eu era muito ruim de mercado e mídia. Dou total razão aos caras e acrescento que, depois que passei a contar com salário fixo, minha disposição de fazer média se reduziu ainda mais. Mesmo que tivesse uma grande necessidade de me sentir popular – o que, honestamente, não é verdade –, o contato sempre público com os milhares de alunos, técnicos e docentes de uma instituição como a UFRJ certamente a teria atenuado. Sei que, com exceção dos textos que preciso produzir como professor e pesquisador, há muito só escrevo o que realmente me interessa. De toda forma, como o ser humano é muito suscetível ao sentimento de rejeição, das poucas vezes em que me perguntei por que os editores costumam me associar a prejuízo e meu queridíssimo público é imensamente minguado, relembrei reações de aquecer qualquer coração. Refiro-me a manifestações positivas de gente como Caio Fernando Abreu (que recomendava a leitura de Das trips, coração), Gustavo Bernardo (com seus elogios a Clandestinos na América), Theotonio de Paiva (autor de uma análise fina de Reima), Edgard Telles Ribeiro, Elvira Vigna, Pedro Meira Monteiro e José Castello (que disseram coisas ótimas sobre Mar Negro), Álvaro Marins, Marcia Denser, Rosa Freire d’Aguiar e Sebastião Nunes (que curtiram Espiral), Luiz Costa Lima (autor da lisonjeira orelha de Céline e a ruína do Velho Mundo), Hans Ulrich Gumbrecht e Ivo Barbieri (entusiastas de Machado de Assis: num recanto, um mundo inteiro) e vários outros leitores que, famosos ou não, tenho em alta estima. Líder do grupo de pesquisa Literatura Brasileira Contemporânea (UFRJ/ CNPq) há quase vinte anos, você pesquisa a ficção nacional das últimas décadas. O que acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta 130

de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Vejo sinais bastante animadores, pois a própria efervescência comprova que o país nunca produziu tanta ficção. Claro, como a quantidade é grande, as porcarias abundam. Mas estão acompanhadas de livros primorosos, escritos por autores de diferentes quilometragens, cuja abordagem requer a recorrência a tudo o que sabemos sobre literatura desde a antiguidade, passando pela afirmação do gênero romance a partir da Idade Média. Pois bem: é justamente esse conhecimento, associado por Machado de Assis à ideia de consciência literária, que eu adoraria ver circulando entre todos os ficcionistas em atividade. Digo isso porque dói ver gente com uma intuição prodigiosa acreditando, por exemplo, que uma obra se faz de facilitações. Da mesma forma, os autores que me instigam e desafiam são aqueles que sabem que o tempo não está para poses, portanto não caem na tentação do narcisismo, ainda que ofereçam textos que podemos chamar de originais, nos quais entrevemos esse oceano de buscas empreendidas ao longo do tempo, nas mais diferentes latitudes. Minha visão certamente tem a ver com o salutar grau de exigência cultivado no ambiente acadêmico, porém talvez se deva muito mais ao fato de eu estar com 58 anos, portanto um tanto escaldado em relação à prosa dada à picaretagem. Meus alunos são tão livres para escolher os autores a que dedicam suas pesquisas que acontece de eu orientar monografias, dissertações e teses sobre escritores que desprezo. Agora, quando se trata de meus ensaios e minhas aulas, só pauto coetâneos que considero realmente merecedores de atenção, entre os quais se encontram desde autores que publicam com regularidade (como Milton Hatoum, Sérgio Sant’Anna e Silviano Santiago) até ficcionistas bissextos ou pouco lidos (como Eric Nepomuceno e Marilene Felinto), além daqueles cujo falecimento nem de longe afeta sua contemporaneidade, como Hilda Hilst, João Gilberto Noll e Victor Giudice. Você foi supervisor da EdUERJ e tem experiência docente na formação de estudantes de Letras para atuar no mercado editorial. Seu projeto de pesquisa atual, “A importância da universidade pública para a ficção brasileira contemporânea”, avalia que nos últimos anos o número de ficcionistas brasileiros tem crescido a grande velocidade, resultando em pluralização dos catálogos das editoras, bem como no surgimento de novos periódicos literários online. No entanto, em movimento francamente contrário, os suplementos dos grandes jornais vêm minguando ou desaparecendo. Pensando como editor, professor e pesquisador, quais os principais desafios para a edição, divulgação e recepção de novos escritores no Brasil de hoje? Quais são os papéis da imprensa, das redes sociais e da universidade na recepção da literatura brasileira contemporânea? Em 1984, quando lancei meu primeiro romance, a impressão de um livro custava uma pequena fortuna. Muitas editoras publicavam alguns títulos e já faliam. Hoje, a impressão em pequena tiragem possibilita a existência de editoras dedicadas a autores estreantes, que, como tal, dificilmente venderão muito, entretanto estão tão cheios de gás que conseguem fazer um lançamento estrondoso, cujas vendas cobrem os custos de produção. Digo isso por lembrar que minha vontade de ter o Das trips, coração nas mãos era tão grande que não 131

somente fui a São Paulo como atravessei aquela cidade sem fim numa Variant velha e quase sem freio de um amigo meu, apenas para ver o livro saindo da gráfica. Em seguida, organizei lançamentos no Rio (no Circo Voador), em São Paulo (no Lira Paulistana) e em outras capitais, sempre divulgados por filipeta, cartaz e até grafite (que deu direito a grandes carreiras, para escapar dos seguranças de determinados prédios com muros altamente convidativos). Na maioria dessas capitais, consegui juntar centenas de pessoas, atraídas pelo que então se chamava de happening. O do Rio, por exemplo, foi abrilhantado por amigos como Bráulio Tavares, Lenine, Lula Queiroga e outras atrações que depois fizeram muito sucesso. Com essa história quero sublinhar minha certeza de que autor estreante tem uma força medonha, nascida da impressão de que se encontra diante do acontecimento mais importante de sua existência. Com o tempo, percebe que foi bacana se apresentar como ficcionista ou poeta, mas a vida pouco ou nada mudou. Em meu caso, senti cada vez mais preguiça de organizar lançamento e, hoje, só faço noite de autógrafos na cidade em que moro, da maneira mais convencional possível. No presente, tenho visto muitos lançamentos vibrantes, organizados por autores jovens e suas editoras de pequena tiragem, que usam as redes sociais para fazer repercutir a notícia da estreia. Em contrapartida, quase não existem mais suplementos literários como aqueles que alavancavam as carreiras décadas atrás. É aí que se abre um espaço a ser ocupado pelos periódicos acadêmicos. Evidentemente se assume uma parte mínima da clareira surgida nos últimos anos, pois o alcance de público de uma revista como o Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, por exemplo, nem de longe se compara ao de um diário como O Globo. Além disso, o tempo do pesquisador é diferente daquele do resenhista de um suplemento semanal. Mas não há dúvida de que o desaparecimento de veículos dedicados à ficção e à poesia tem levado autores e editores a procurarem cada vez publicações como a nossa, que oferecem a vantagem suplementar de publicar textos com mais fôlego, como artigos e ensaios, além de alentadas entrevistas, muitas delas nascidas de conversas entabuladas durante eventos. Daí eu sublinhar a relevância da universidade pública e de instituições como a PUC para a literatura que se produz na atualidade. Além disso, precisamos levar em conta a importância dos blogs e outros periódicos online não universitários dedicados à literatura. Não fossem eles, e muitos autores jamais seriam conhecidos. Meu sonho é ver crescer o intercâmbio entre essas publicações e o povo da universidade (sobretudo mestrandos, doutorandos e recém-doutores), de modo que os pesquisadores tenham mais contato com o público dito não especializado e as publicações online difundam ao máximo as reflexões e descobertas desenvolvidas na academia. Não acredito que essa colaboração esbarre na ideia de que a universidade é um universo à parte, habitado por múmias, até porque é o contrário: não existe lugar mais agitado que o campus, com sua juventude sempre renovada. Talvez o maior empecilho seja o fato de os pesquisadores serem cobrados a publicar em periódicos com Qualis, o que não é, nem convém que seja, o caso das publicações não universitárias. Equacionado esse problema, creio que a parceria deslancharia maravilhosamente bem, para benefício de todos.

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Seu projeto desenvolvido entre 2012 e 2015, “A recepção da ficção brasileira contemporânea nos campi do mundo”, avalia a acolhida que a ficção nacional de nosso tempo tem merecido em universidades de diferentes países. Como você vê a recepção da literatura brasileira contemporânea no exterior? Desenvolvi esse projeto imbuído do entusiasmo com que dizíamos e ouvíamos que o Brasil finalmente era um país emergente. Durante o governo do Lula e o primeiro mandato da Dilma, o fato de sermos vistos como um povo que deixava de ser apenas fofo para demonstrar personalidade e avanço em todas as áreas fez com que eu pensasse na possibilidade de a ficção nacional de nosso tempo ser lida lá fora. Iniciei a pesquisa aqui e, em 2013, parti para um ano de pós-doutorado na Universidade de Stanford, de onde assisti às manifestações que deram início à derrocada da esquerda. A essa ducha gelada se somou a constatação de que os estadunidenses não leem literatura estrangeira, o que é compreensível, pois somam muito mais de trezentos milhões de habitantes, entre os quais o índice de analfabetismo é mínimo, numa época em que todo mundo passou da condição de receptor para a de autor (basta pensar que a própria participação em redes sociais se fundamenta na assunção da autoria). Acrescente-se ao fenômeno um dado político de longa data: por que os norte-americanos haveriam de gostar de narrativas protagonizadas por outros povos, se se sentem os verdadeiros mocinhos do mundo? Ao final do pós-doc, vi-me com uma série de entrevistas em que meus interlocutores eram unânimes em afirmar que o único espaço em que nossa literatura encontra alguma guarida nos Estados Unidos e na Europa é o meio acadêmico, onde se valoriza a diversidade e se busca, pela própria obrigação de levar longe a análise, textos menos óbvios que os best-sellers. É o que acontece também em nosso país, cujos pesquisadores de literatura privilegiam escritos que os obriguem a queimar a mufa. Mas, enfim, o mundo pouco se importa com o que nós, brasileiros, estamos escrevendo. O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa educativa de formar leitores.  Como você compreende o papel da literatura na formação da criança? E, como autor de obras premiadas e recomendadas pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar com suas obras? Como minha “carreira” de autor de narrativas infanto-juvenis durou apenas seis anos e terminou ainda em 1996, não me sinto nada autorizado a fazer sugestões aos valorosos professores encarregados da educação de crianças. Ainda mais que os três livros que escrevi para essa faixa – O Ins nunca esteve tão alegre (FTD, 1990), Pompons e azeitonas (Salamandra, 1993) e Só meu pai sente saudade (FTD, 1996) – saíram de circulação e nunca tive tempo de tentar reeditá-los. A única coisa que posso manifestar é solidariedade, pois sei que autores e professores que trabalham com literatura voltada para a meninada são muito vigiados. Talvez em provocação descabida, escrevi duas historietas que chegaram a ser elogiadas por editores que, no entanto, não se dispuseram a publicá-las: Por que não fui à escola e O apontador de defeitos. Então tive ainda mais consciência da rede de controle exercida pelos pais e diretores conservadores sobre as editoras, que se 133

veem obrigadas a publicar sobretudo os textos que um teórico como Wolfgang Iser associaria à coagulação do imaginário, quiçá maior crime que se pode cometer contra o pendor humano para a criação. Quase sempre transformam em livros aqueles escritos que, sem necessariamente serem de direita, nem por isso são menos edificantes. Instrumentalizada, pragmatizada, a literatura trai seu longo histórico de luta pela liberdade. Daí a importância de aplaudirmos os livros que conseguem driblar esse cerceamento, que, por parecer natural, pode se revelar ainda mais nefasto. Você já traduziu a prosa de autores como Oscar Wilde e Nina Berberova, além de livros como a coletânea de entrevistas O cinema segundo François Truffaut. A tradução de Kamô e a ideia do século, de Daniel Pennac, recebeu o Prêmio Monteiro Lobato da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Que concepção de tradução orienta seu trabalho? Existem traços em comum entre a tradução (como você a pratica) e sua escrita autoral? Passei a traduzir, do inglês e do francês, depois de minha primeira estada na França e nos Estados Unidos, para melhorar minha relação com os dois idiomas e, claro, ganhar um troco. Nessas condições, não parti de nenhuma concepção prévia de tradução, que pratiquei da maneira mais simples possível: entregando-me ao texto original até compreendê-lo direitinho e buscando correspondências em nossa língua que lhe preservassem, ao menos intuitivamente, o ritmo, a arquitetura e outros elementos essenciais. Na época, ainda não havia internet, de modo que, além de usarmos uns dicionários superpesados, datilografávamos (imagine o trabalho de redatilografar certas passagens!) e, caso surgissem dúvidas a serem sanadas com enciclopédias e fontes semelhantes, precisávamos ir a uma biblioteca bem servida. No Rio, temos a vantagem de contar com a Biblioteca Nacional, onde cheguei a passar jornadas inteiras em busca de luz para umas poucas passagens ou mesmo palavras. Como tradutor sem fama não pode escolher trabalho, eu traduzia o que me mandavam, de modo que certa vez me vi com um romance cujo mocinho pilotava um avião da Força Aérea americana em sucessivas missões de combate ao regime soviético. Mesmo que eu não admirasse a União Soviética, o maniqueísmo da trama me fez viver um problema propriamente ideológico. Além disso, como traduzir os nomes dos componentes elétricos, eletrônicos e sei-lá-mais-o-quê de uma cabine de avião? Comprei dicionários, contratei um consultor da Aeronáutica que levou quase todo o meu cachê e, mesmo assim, o resultado ficou péssimo. Nessa batida, posso dizer que gostei bastante da experiência, mas logo percebi que se tratava de um ofício massacrante. O indício maior de que deveria abreviar a carreira surgiu numa visita ao Sindicato dos Tradutores, onde encontrei o presidente com a coluna curva, a camisa puída e aquele olhar entristecido de quem não tem um segundo para admirar a vista da janela – pois a tradução das dez laudas diárias com que se pode levar uma vida muito modesta consome por completo o corpo e a mente. Imagino que o Google Tradutor e demais recursos oferecidos pela internet tenham diminuído bastante a faina do tradutor, que, entretanto, nunca será suficientemente valorizada. A injustiça que pesa sobre a profissão salta ainda mais aos olhos quando pensamos que a tradução requer não somente o conhecimento do outro idioma, mas um jeito de escrever tão resolvido 134

na própria língua que permita chamar o tradutor de autor. Você está escrevendo algum livro no momento? Sim, aquele que fechará a trilogia alagoana. A história se situa na época do impeachment de Collor e resgata alguns eventos marcantes do Programa Nacional do Álcool, que ao final fez afundar ainda mais meu estado, em processo que contou com a participação ativíssima de um dos piores presidentes que o Brasil já teve. Tudo se passa basicamente no campo, cenário que conheço bastante e em relação ao qual me sentia em dívida. Assim, os três livros dedicados a Alagoas fazem uso de tempos e espaços que, por assim dizer, se complementam: Espiral transcorre ao final da década de sessenta, em uma cidade pequena; Morte certa é ambientado na década de noventa, numa fazenda; Mar Negro é todo capital e privilegia o ano de 2014. Para que não se pense que se trata de romances históricos, preciso acrescentar que os personagens são todos fictícios; os fatos documentados foram escolhidos e rearranjados de modo a se submeterem à dinâmica da narrativa; a linguagem varia bastante. É justamente este último dado – quiçá o mais importante – que me impediu de buscar editor para Morte certa apenas porque o enredo já está todo no papel: se passei mais de um ano a escrevê-lo, convém que dedique um tempo ainda maior à reescrita. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? Confesso meu temor de dizer generalidades, pois as mais plausíveis hipóteses sobre nossa amarga atualidade não param de ser solapadas pelas sucessivas descobertas sobre os nexos entre motivações que costumávamos encarar como incompatíveis. Durante as Jornadas de Junho de 2013, por exemplo, vi pela televisão universitários franzinos, ligados ao movimento estudantil, carregando bandeiras com cabos de madeira maciça, com os quais tentavam reduzir as porradas que vinham levando dos manifestantes de direita. Aos poucos, notamos que o legítimo descontentamento de quem queria mais socialismo dos governos do PT havia se associado à raiva acumulada de quem não suportava que a esquerda estivesse no poder. Em seguida, vieram as revelações sobre os laços entre a dita República de Curitiba e os Estados Unidos, emergiram os bastidores da armação do golpe e não parou de surgir informação nova para a gente processar. Como imaginar, por exemplo, que a moral mais hipócrita fosse usada como cortina para um candidato assumidamente fascista chegar à Presidência e, assim, colocar em prática seu anunciado plano de destruição da democracia e dos direitos mais elementares? Como explicar que as mesmas redes sociais que associamos à ampliação da liberdade de expressão tenham sido os canais mais utilizados para se viabilizar o voto de cabresto? Enfim, nosso tempo me parece especialmente complexo, de modo que, a despeito da agilidade para lidar com o presente aprendido quando do ingresso na modernidade, creio que somente com perspectiva história conseguiremos compreender melhor o que nos atinge hoje e avistar algum norte. Talvez a única coisa que podemos dizer sem medo de errar é aquilo que 135

as artes e a filosofia martelam: o ser humano decididamente não presta, de modo que as atrocidades contemporâneas são mera atualização de horrores que atravessam os milênios. Resvalo para a obviedade, desejoso de pensar que, como todo evento pode virar matéria-prima de romance, é ótimo que muitos escritores já tenham começado a recriar a profunda crise em que nos encontramos. Minha torcida é que, com Adorno, esses companheiros pensem a arte não como imitação do existente, e sim como antecipação do desconhecido; que, com ficcionistas como Ivan Angelo, levem em conta que a ousadia formal é uma excelente aliada do exercício crítico.

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David Rocha Nasceu em Vila Velha (ES), em 1983. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em maio de 2018.

Cada escritor possui método e estilo próprios. Gostaríamos que comentasse as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. No poema “Peleja”, que abre o livro Dissonâncias (Pedregulho, 2017) (ambos os títulos, o do poema e o do livro, remetendo ao universo da música, no sentido amplo), afirma-se: “Deus não me deu talento pra cantar,/ O diabo tampouco./ Vou buscando nas palavras:/ Não é dom, é puro esforço.” Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? E por que a escolha de Dissonâncias como título? Minha escrita é em grande medida provocada pelos acontecimentos que vivencio e pela observação do cotidiano, mas há, é claro uma grande influência do que leio, essa influência se manifesta nos temas, mas principalmente no formato que eu quero imprimir ao texto, o desenho da poesia no papel. Acontece que a poesia também se impõe e se manifesta num formato livre, quando isso acontece, não tenho como determinar a forma ou um traço estilístico determinante. Não me considero um escritor, não tenho minha relação com a escrita como um ofício, por essa razão, não me sinto na necessidade de definir ou concentrar minha poesia em uma escola ou movimento. Contudo, ao dizer isso também acho importante refutar o argumento de que na arte contemporânea a regra é não ter formas e descontruir conceitos, acredito que conceitos e formas só possam ser descontruídos se antes forem assimiladas, se antes houver um esforço para entender sua construção. Abrir o livro com uma poesia que afirma meu desacerto com a palavra escrita é uma forma de me situar no universo da produção literária, é um aviso ao leitor, estou dizendo para que não me leve tão à sério, vamos conversar. Há humor, e há também muito o que dizer, e dizer pode dar muito trabalho. A escolha por essa poesia não foi aleatória, é como se dá minha escrita, é uma peleja. Como você definiria, hoje, a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? A leitura surgiu muito tarde pra mim, e a literatura mais tarde ainda. O principal, às vezes único incentivo para a prática da leitura durante a infância é escola. Onde estudei o ensino infantil não tinha biblioteca, no ensino fundamental havia uma sala que servia como depósito de livro, e jamais vi em minha casa uma pessoa lendo qualquer coisa que fosse. Foi apenas aos 13 anos que li meu primeiro livro, emprestado pela Marina, minha então professora de história; uma biografia de Sócrates, um começo em alto nível. Claro que não entendi absolutamente nada, mas a noção de desconhecimento e de ignorância, que o livro me descortinou foi muito provocador e eu descobri ali que existia alguma coisa além dos limites do meu bairro. Já aos vinte e poucos anos, fazendo a graduação em Biblioteconomia e 137

passando a maior parte do meu tempo em ambientes de bibliotecas, o livro se tornou um objeto de trabalho e também uma companhia natural. Passou a ser acessível, eu sabia onde e como encontrar. Foi nesse contexto, trabalhando durante o dia, estudando à noite e passando várias noites pela Rua da Lama (que era bem mais boêmia, barata e menos ruidosa que agora) que comecei a escrever frequentemente. Então não há um ponto de partida, fui me relacionando com pessoas, aprendendo coisas e me incomodando com muito do que via. Escrevia inicialmente sem nenhuma pretensão, escrevia, guardava, às vezes revisitava. Até que um dia ecoou o verso de um conterrâneo que dizia “um livro de poesia na gaveta, não adianta nada. Lugar de poesia é na calçada”, foi aí que criei coragem. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você percebe esse problema? A partir de inícios do século XX, terá a poesia efetivamente ocupado algum lugar de destaque no debate cultural? Acredito que existam dois pontos nessa questão. A primeira, a dificuldade de penetração da literatura no cotidiano das pessoas, a segunda, a relevância da poesia. Talvez a pergunta seja se a poesia é de fato respeitada enquanto gênero literário. Qualquer moleque de qualquer favela, qualquer trabalhador, qualquer pessoa excluída dos bens culturais produzidos e intencionalmente mal distribuídos pelo estado pode passar por uma rua e ver um grafite que também é uma manifestação artística (só não considerada arte por aqueles que acreditam que a arte deve ser elitizada e restrita aos museus e espaços formais de exposição), mas a questão é: as outras linguagens artísticas são mais acessíveis que a literatura e geralmente mais fáceis de serem absorvidas. O cinema está difundido em praticamente todo o país, o brasileiro gosta de ver filmes – os nacionais nem tanto, é verdade – e conseguem acessá-los, seja por meio da internet ou da televisão, então se há poucas salas de cinema, percebemos que ele independe de um espaço físico. Estamos cercados por música por todos os lados, em todo lugar há música. Você ouve e vai percebendo afinidades, elege seus gêneros preferidos. Mas e com a literatura? Como a literatura chega até as pessoas? Ela não chega. Se uma grande parte das pessoas acha que é chato ler, justamente por não terem a oportunidade de experienciar a leitura, o que podemos esperar que as pessoas pensem sobre a poesia? Está no imaginário que a poesia é um negócio romântico e rimado, é preciso quebrar esse muro, ver que do outro lado há poesias de doçura e poesias de luta e que são capazes de dialogar com o leitor, levá-los para espaços desconhecidos assim como fazem outros gêneros literários. Há uma frase bastante conhecida de Nietzsche que diz que a arte existe para que a realidade não nos destrua, eu me permito presunçosamente discordar. Discordo quando pensamos a arte desassociada da realidade, eu vejo a arte como representações da realidade, seja da realidade vivida ou sonhada. Boal nos diz que se o teatro não intui transformar a realidade não há porque fazer teatro. Eu acho que a poesia terá um lugar de destaque no debate cultural brasileiro quando sentirmos necessidade de “deter o sabotador que instala a bomba da fome dentro do trabalhador”. 138

Notamos que, dos três livros que lançou até agora, dois foram patrocinados pela Lei de Incentivo Cultural João Bananeira, do município de Cariacica. Você também publicou um belo livro de poemas de forma independente, pela editora Pedregulho. Quais são as dificuldades de publicação e distribuição de literatura hoje, no Espírito Santo? Ainda faz sentido a afirmação de que somos um estado prejudicado pela proximidade com o eixo Rio-São Paulo? É isso mesmo que sufoca a nossa produção e impede a sua expansão? Seremos nós “uma ilha num arquipélago chamado Espírito Santo”, conforme anuncia o último verso do seu livro de estreia? Temos importantes leis de incentivo cultural que contemplam a publicação de livros na Grande Vitória, no entanto, o que percebemos que essas iniciativas quase sempre contemplam exclusivamente a publicação de um livro impresso, do objeto livro, o que não significa promover de modo sistemático uma produção literária. Os editais são fechados e quase nunca permitem que o autor pense amplamente em todas as etapas necessárias não apenas à impressão do livro, mas a sua difusão dentro e fora do estado. Serviços como uma assessoria de imprensa, criação de ferramentas de difusão, comercialização e circulação, ficam fora dos editais e o livro muitas vezes se torna um amontoado de papel ocupando espaço no quartinho do escritor. E me refiro a Grande Vitória, o interior do estado é esquecido quando falamos de produção e acesso à cultura, a maior parte dos editais não contemplam as regiões noroeste e sul, municípios que não possuem nenhuma lei municipal de incentivo, bibliotecas públicas, teatro, o que têm é muita igreja e pouquíssima leitura. Eu não acredito que sejamos prejudicados por estarmos na posição de primo pobre, acredito que estamos prejudicados por nossa passividade e o costume de lamentar que nós capixabas não valorizamos nossos artistas, nós não valorizamos mesmo. Pra gente é ruim ver como alguns de nossos conhecidos artistas simplesmente não decolam, mas é ainda pior vê-los fazendo sucesso. Há excursões para a bienal de São Paulo, mas achamos longe irmos à bienal de Cachoeiro, nosso problema é mais cultural do que geográfico. Mas temos grandes escritores por aqui, como também temos no Piauí, na Paraíba, Alagoas, Rondônia, no país inteiro há literatura e bons escritores, muitos descobrindo novas plataformas de publicação e divulgação de seu trabalho principalmente em ambientes virtuais. É uma forma de sair da posição de refém do mercado editorial e dizer que existe, ainda que a duras penas. Parte do fazer poético presente em Dissonâncias lembra muito a faceta social e engajada do poeta Ferreira Gullar, e em um certo ponto do livro a referência é explícita. Qual é a sua relação com esse poeta e essa temática? Além de Ferreira Gullar, que outros escritores, ou mesmo que outras artes, que vivências têm sido postas em diálogo com/na sua escrita? Eu comecei várias respostas para essa pergunta, sempre titubeio pra falar do Gullar, considero sua poesia muito poderosa, muito honesta e comprometida com as questões sociais, com o humano. A influência se dá por uma ordem natural, pelo fato de ele estar em minha memória, mas isso não é evidente enquanto escrevo. 139

Ler é mais importante do que escrever e escrever é mais importante do que publicar, contudo, muitas vezes é pelo sentimento deixado por uma leitura que sinto a necessidade de escrever, não é o tema em si, mas a sensação deixada por ele. É meio confuso e quase sempre resulta em textos mais subjetivos, enquanto a observação ou a vivência da realidade concreta me desperta para questões que considero mais emergentes, por isso opto nesses casos por textos mais curtos. Escrevo livremente e depois vou tentando enxugar o texto, limitar e deixar apenas aquilo que me parece fundamental. Também costumo recorrer sempre a Álvaro de Campos, o heterônimo que considero o mais intenso, Leminski é um barato, então passeio mais pela poesia. Saindo desse campo, uma amiga me apresentou recentemente a literatura de Carolina de Jesus e Conceição Evaristo, foi a descoberta recente mais interessante e agregadora que tive. Seus primeiros poemas foram publicados em Imperfeições (JEP, 2011). Que diferenças você destacaria entre este primeiro e o seu mais recente livro de poemas? Existiria, com o tempo, uma inequívoca evolução no trabalho de escrita? Se existe, a que tipos de experiência ela se deve, no seu caso? Há um intervalo de sete anos entre Imperfeições e Dissonâncias, mas há uma grande proximidade entre esses dois trabalhos, a que os títulos também sugerem. Os temas estão colocados, há questões sociais, existenciais, há humor, um pouco de ironia, as características gerais se mantêm. A diferença está no tempo. Imperfeições é um livro que não gosto muito, foi feito com pressa, na vontade de ter um livro publicado, foi prematuro. Penso numa segunda edição para corrigir alguns textos, ajustar o formato e também o projeto gráfico. Há coisas ditas ali, não são textos aleatórios e gratuitos, mas remexer nesse trabalho é uma questão de respeito ao leitor, tentar preparar uma publicação mais cuidadosa, é respeito ao leitor e uma tentativa de chegar ao leitor. Em Dissonâncias eu reuni aquilo que considerava relevante dizer. O trabalho foi conduzido com muito profissionalismo pela editora Pedregulho, não tivemos pressa para terminar e conseguimos nos divertir durante o processo de produção. É um livro que aponta questões espinhosas, propõe provocações, podendo ser ao mesmo tempo risível. Poderia dizer que são dois livros que se complementam, embora com tempos e ritmos diferentes. O que você pensa acerca dos escritores brasileiros contemporâneos? Que autores você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Há muita coisa bacana sendo produzida, tenho acompanhado publicações de editoras mais alternativas ou que estão fora do grande eixo comercial e há escritores muito interessantes surgindo, sobretudo do nordeste. Trabalhar em uma biblioteca tem esse benefício, conseguir acompanhar um pouco do que é produzido pelo país. Minha leitura atual é basicamente de escritores brasileiros, não obedeço nenhum método de seleção, geralmente pego um livro de forma aleatória ou indicado por algum amigo. Em 2017 determinei que leria o máximo de escritores ligados ao Espírito Santo. A maior parte do que li estava em formato de fanzines e 140

folhetos e eram muito criativos. Uma característica amiúde presente nas obras que li, sobretudo em poesia, é a importância dada ao universo intimo do autor. Ao fim da leitura conhecemos mais dos seus gostos e desejos do que suas ideias. Ainda estou namorando Conceição Evaristo, relendo com calma. Conheci o catálogo de uma editora (Todavia) que pretendo explorar, trazem muitos escritores novos, pode ser uma maneira de manter conexão com o que está sendo proposto e pensado pelos cantos do país. A partir da leitura do poema que serve de pórtico ao livro Imperfeições, em que nos deparamos com o verso “(Uma gota da poesia correu pela lombada até a etiqueta de classificação)”, gostaríamos que nos falasse um pouco acerca da sua atividade como bibliotecário. De que modo a circulação por essa área ao mesmo tempo tão distante e tão afim da literatura alimenta a sua escrita poética? Estou há 13 anos trabalhando em ambientes de biblioteca e nunca tive a maturidade de separar a vida profissional da vida pessoal, pra mim está tudo entrelaçado, sempre esteve. Desde a primeira vez que entrei em uma biblioteca, ainda como estagiário, soube que era onde eu gostaria de estar, claro que as forças das circunstancias podem me levar para outras direções, mas certamente meu caminho natural vai de encontro com minha formação. O universo da Biblioteconomia é muito amplo, você deve escolher uma área de acordo com seu perfil. Circulando por diferentes bibliotecas e centros de documentação percebi rapidamente que meu perfil apontava para uma biblioteca universitária ou cultural. A vida do bibliotecário escolar é demasiado difícil, geralmente as condições de trabalho são muito ruins e o profissional precisa tirar água de pedra para conseguir tornar a biblioteca um espaço atrativo e convidativo. O que há em comum entre esses profissionais independente da área em que ele atua, é que quase sempre estamos subordinados a gestores que não têm ideia da complexidade de nosso trabalho, até entre colegas de trabalho não raro escapa um desdém. Mas é onde gosto de estar, onde me sinto a vontade, é uma espécie de maldição às avessas. E é claro que de alguma forma conflui no que produzo, muitos dos meus amigos são pessoas que circulam por esse campo, tenho meus livros em casa, eventualmente recebo amigos em casa para bebermos e lermos poesia, então minha profissão está pela casa, pelas ruas, a verdade é que sou grato e sinto prazer em estar nessa profissão. O seu livro infantojuvenil Folhas de castanheira (GSA, 2014) também pode ser considerado um livro de poemas, com imagens, versos e rimas. De que modo se diferenciam a experiência de escrever para adultos e a de escrever para crianças? Haverá mesmo uma clara diferenciação? Eu não tinha intenção de escrever um livro para o público infantil, na verdade eu nunca me saí muito bem com crianças e imaginei que não alcançaria um nível de ludicidade para conseguir criar e desenvolver uma estória que pudesse ser lida por elas. Folhas de castanheira surgiu em uma noite, estava em Colatina e tinha terminado de reler o Poema Sujo, do Gullar. Fiquei pensando no texto e no contex141

to em que ele foi escrito, daí me deu uma baita vontade de ouvir “O trenzinho do caipira”, ouvi repetidas vezes e com fragmentos do livro, a letra que ele pôs. Deitado ouvindo a canção via o menino andando por São Luis, via o homem escondido num quarto na Argentina e minha infância forçando a porta querendo que eu olhasse para trás. Eu só queria dormir, mas sabia que teria uma noite longa. Comecei a escrever pensando em uma poesia, a medida que ia escrevendo, eu ia relembrando as ruas esburacadas de Rosa da Penha, o cenário de minha infância e meus amigos velhos que já eram velhos antes mesmo de eu nascer. A escrita foi caminhando para essa linguagem que eu desconhecia e eu gostei da ideia e da sonoridade do texto. Os dias que se seguiram eu trabalhei o texto, fui escolhendo as palavras e tentando propor uma escrita que dialogasse com o leitor, que pudesse ser apropriada por qualquer pessoa, universalizar o texto, não sei se consegui. Então sobre a diferenciação entre escrever para o publico adulto e o infantil, eu desconfio que haja sim, há uma diferença por conta dos recursos necessários à uma leitura mais sensorial, não é contudo, uma diferença hierarquizada, é que somos adultos e ao escrever para crianças deixamos um pouco de nossa rabugice de lado para nos aproximarmos de nossos tempos de “brincança”. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes autoritários, racistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Eu não sei responder a essa pergunta. Estou totalmente perdido. Artaud talvez nos ajude a entender, eu não entendo. Eu vejo pessoas dizendo que uma mulher que defende direitos humanos merece ser executada, eu vejo um parlamentar adotar discurso de violência contra as minorias, reverenciar um torturador e ser o ídolo de uma legião de cristãos. Não sei se é saudável entender o que está acontecendo. No livro Dissonâncias, de 2017, o leitor se depara com diversos flashes do que se poderia chamar um registro do atual momento histórico por que passa o país, envolvidas aí questões políticas e culturais. Como no poema sem título, da página 61: “Mais um passinho pra trás./ E de passinho em passinho/ O Brasil se faz.”. Nós gostaríamos de conhecer o seu pensamento acerca de como sobrevivem, a poesia e o poeta, num momento como este. O Brasil marcha em direção ao abismo, é impossível ficar indiferente a isso. Sofremos um golpe que destituiu a primeira presidenta eleita do país, estamos com um vampiro na presidência, e há um acordo declarado com parlamentares, com Supremo, com tudo. Tudo para manter os privilégios e o poder de um grupo político. Temos pautas sérias que nunca avançam, como a liberação da maconha para uso recreativo, descriminalização do aborto, voto facultativo e tantas outras questões atravancadas por falta de debate, por covardia e principalmente por representar um risco aos interesses de grupos políticos. 142

Agora, como sobrevivem a poesia e o poeta num momento como esse? Num momento em que a arte é demonizada, a maior bilheteria do cinema nacional é de um filme que conta a história de um pastor que é dono da segunda maior emissora de televisão do país. O que nos resta fazer é ir para o debate e combate, usar nossa literatura como instrumento de grito e buscar meios de intervenção. Ainda que saibamos das nossas limitações, só podemos seguir a diante para superar esse filme de terror a que já cantava Sérgio Sampaio.

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Diva Cunha Nasceu em Natal (RN), em 1947. Vive em Natal (RN). Entrevista concedida a Letícia Malloy e André Tessaro Pelinser em maio de 2018.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Em seu trabalho, é possível perceber uma opção temática marcante, relacionada à problematização de valores da sociedade patriarcal e à reflexão sobre o lugar da mulher nessa sociedade. Você poderia falar um pouco sobre as linhas de enfrentamento do tema em sua obra? Além disso, poderia comentar as opções formais que norteiam seu projeto literário? Em um dos poemas dispostos em Palavra estampada (CCHLA, 1993), leem-se os seguintes versos: “Aflita / com as mãos molhadas / entro no poema / não tenho amigo / a ciência / com que secas o afeto / sou antes / um lenço / torcido de tanta dor”. Em que medida esses versos dizem de suas relações com o processo criativo? Anos após a publicação de Palavra estampada, o embate persiste quando da entrada no poema? Em Resina (Uma, 2009) você apresenta uma seção de poemas que procura dialogar com a obra de João Cabral de Melo Neto. Em um deles, lê-se: “Larga do meu pé, João, Juan, Joan / larga o meu tendão de Aquiles / cachorro magro, nordestino. / Larga da minha escrita frouxa / que não tem facas / na boca. / Larga de mim que me afino / larga roupa em corpo mínimo.” Já no poema “Ronda matutina”, de Dádiva (Una, 2017), apresentam-se referências a autores que vão de Gonçalves Dias a Cecília Meireles. O que motivou e como se deu, ao longo de sua trajetória artística, a construção de interlocuções com textos de outros autores da tradição literária brasileira? Como você define sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? (A entrevistada optou por reunir em uma só resposta as quatro primeiras questões.) A poesia tinha um projeto para mim. Ela me inventou. Pôs palavras em minha boca, papel e lápis em minha mão e ordenou: escreve! Obedeci. Desde que me lembro, escrevo, compulsoriamente, dias mais e dias menos; nunca parei. Não lembro o que escrevia, quando menina, muitas décadas atrás. Imagino que eram divagações a correrem frouxas, ao sabor dos sentimentos, talvez queixas ou anotações sobre o cotidiano, sonhos, não sei. Sei que escrevia. Onde encontrasse papel branco eu tinha algo a dizer. Fui uma menina como as outras das décadas de 1950/60 do século passado, nascida e criada numa cidade pequena e periférica do país, limitada à casa 144

e ao colégio de freiras, onde estudei 14 anos. A rua ainda não era espaço para as mulheres. Mamãe conservadora, dizia: “meus bodes estão soltos, quem quiser que prenda suas cabras.” Daí vêm, sem dúvidas, as sementes de minha revolta contra os direitos dos homens e as injustiças cometidas contra as mulheres. Consciência sedimentada aos poucos nas experiências ingratas do cotidiano restritivo e patriarcal. Essas inquietações teriam naturalmente que vir à tona nos textos poeticamente: Minha mãe diz que eu sou da pá virada da vida torta Os modelos dela são outros: Santa Terezinha do menino Jesus Santa Rita de Cássia, santas Fora as santas domésticas que foram sacrificadas no dia-a-dia e ninguém viu sangradas com galinhas maceradas em vinha d’alhos postas a dormir no sereno para secar os odores enfurnadas como bananas verdes esfregadas nos ladrilhos claros dos banheiros costuradas em botões de quatro furos esbofeteadas e sacudidas como colchões e almofadas para desprender o pó das horas Secaram todas nos linhos brancos dos lençóis bordados ao morrer, não morreram entregaram a alma a Deus que provavelmente não as perdoou pelo gasto inútil que fizeram dos seus talentos (Canto de Página) Os poemas estão aí. Dizem coisas; cada um procura neles o que deseja. O desejo do poeta é falar com o leitor. Sussurrar a seu ouvido, acordá-lo. Poema não é manifesto; sua zona de atuação é mais sutil. Houve um tempo em que me vi coagida, por mim mesma, a escrever poesia engajada. As palavras travavam e engessavam o poema. O poema é um campo de batalha feroz, mas a luta é íntima – entre as tensões do eu e as tensões da língua, que não se dobra a certos interesses, mas pode ser seduzida pelo ritmo, pelas imagens e até pela rima. O poema é uma aliança que vai além das motivações pessoais do poeta e dos leitores e une, num círculo perfeito, a terra e o céu: “Procuro na realidade essa ponte de inserção da 145

poesia que é também um ponto de interseção, centro fixo e vibrante onde se anulam e renascem sem tréguas as contradições.” (Octávio Paz, Signos em Rotação). Quando descobri o prazer de ler, não tinha livros que despertassem meu interesse, muito menos orientações sobre leituras. A biblioteca do colégio era bonita por fora, belas e fornidas estantes de madeira de lei, com portas de vidro fechadas, como se guardassem obras raras. Uma aluna das classes mais adiantadas e de confiança das freiras guardava a chave e fazia a seleção dos livros a emprestar. Porém não havia obras notáveis, nem de literatura brasileira, nem da estrangeira. Lembro que os romances de José de Alencar, que já tinham naquela época mais de um século, li de uma vizinha amiga. Machado de Assis, nem pensar! Era demasiadamente irônico e crítico, podia envenenar a cabeça das moças. E Monteiro Lobato, proibido. Era comunista, diziam. Não era uma biblioteca, era um conjunto de livros piedosos e romances edulcorados escolhidos a dedo para educar as futuras mães de família. Talvez houvesse livros de poesia do século XIX, não lembro, mas estes eu tinha em casa, restos da biblioteca de meu avô materno, que escrevia sonetos, letras de música e tocava vários instrumentos. Além dessa herança, na estante da sala de visita de casa, havia vistosas coleções de volumes encadernados, com letras douradas no dorso, que decoravam o ambiente. Esses volumes, maçudos e solenes, não seduziam adolescentes, e sobreviveram incólumes até que as traças reescrevessem suas histórias. Anos mais tarde, me dei conta de que, entre aqueles livros, havia clássicos da literatura universal, mas, provavelmente, eu não estava preparada para eles. Natal só teve biblioteca pública no final de 1969 e não tínhamos as facilidades de hoje oferecidas pela internet, mas creio que se lia bem mais e melhor. Eu lia, quase por compulsão, o que conseguia. Sem qualquer critério, mas com imenso prazer. A escrita foi vício inato: aprendi a ler e comecei a escrever. A vida só adquiria sentido quando rabiscada, rascunhada e reescrita. Essa mania passou a chamar a atenção: minhas composições colegiais foram notadas. Decidi ser jornalista, mas resolvi fazer o curso de Letras antes, para aprofundar os estudos sobre a língua portuguesa e as literaturas correspondentes. O problema é que os cursos de Letras e de Jornalismo eram cursos estaduais e funcionavam precariamente: sempre em crise, greves e manifestações na luta pela federalização. No entanto tive notáveis professores, que, mesmo isolados na província e trabalhando em vários estabelecimentos ao mesmo tempo, eram estudiosos e antenados com o mundo intelectual. Cito dois nomes relacionados a minha área de interesse: o professor de Teoria Literária, Eulício Lacerda, e a professora de Literatura Portuguesa, Irma Chaves. Entre pessoas que foram importantes em minha formação, lembro o poeta e jornalista Luís Carlos Guimarães, que conheci ainda adolescente. Generoso e amigo, Luís Carlos sempre me incentivou, deu dicas importantes e emprestou livros. Berilo Wanderley, sensível e estudioso, que conheci um pouco mais tarde, que me abriu sem reservas sua biblioteca. Djair Dantas, com quem casei aos 21 anos, culto e ambicioso intelectualmente, assim como o seus amigos Paulo de Tarso Correia de Melo e Moacir Cirne. Lembro também Luís Damasceno, que trabalhava na Livraria Universitária e indicava livros essenciais para nossa formação intelectual. O desejo da escrita cresceu comigo. Ter acesso aos bons livros me deixou 146

ansiosa, sequiosa e ambiciosa – perdoem a rima. Aos 23 anos fiz concurso para professora do curso de Letras da UFRN. Passei, e entrei em pânico. A responsabilidade era imensa e eu acabara de me formar. Salvou-me a paixão pela literatura e o gosto de aprender e ensinar. Dediquei-me incansavelmente a estudar e fui aluna com meus alunos. Até hoje, me pego, recitando um soneto de Sá de Miranda, poeta que viveu entre 1480 e 1558 e foi considerado o introdutor em Portugal do “Dolce Stil Nuovo” cultivado por Dante e Petrarca: “O sol é grande, caem co’a calma as aves Do tempo em tal sazão, que soi ser fria. Esta água que d’alto acordar-me-ia? Do sono não, mas de cuidados graves Ó cousas todas vãs, todas mudaves! Qual é tal coração qu’em vós confia?” [...] (Sá de Miranda). Essa poética, que se afina ressoa em Camões e é reescrita por Fernando Pessoa, em heterônimas vozes, que Sofia de Melo Breyner e tantos outros poetas e poetisas aparam e distribuem pelos países de formação portuguesa, é a tradição secular que burilou a língua e, burilando-a, preparou a sensibilidade e o gosto dos leitores. Eu, que começara a faculdade com um cadernão de versos, deixei que se perdesse o cadernão. Me segurei. Fiquei contida à espera que as águas se acalmassem e a terra assentasse lá dentro. Meus primeiros textos foram movidos pela inspiração, essa musa que sopra onde quer. Eu não tinha consciência do trabalho com a linguagem, exigência fundamental para a feitura da boa poesia. Foi o exercício cotidiano e sistemático com a poesia portuguesa que me ensinou a respeitar a secular dama grega e começar a entender seus mistérios. Porém, o magistério com a literatura portuguesa não me afastou da poesia brasileira, que eu lia sempre que podia, e cada vez melhor, porque já tinha os olhos bem treinados. Com o tempo fui ampliando meu repertório de leituras, conhecendo novos poetas, inclusive os de minha terra natal, descoberta que foi fundamental para minha vida: eu tinha família e raízes literárias, um lar entre os meus. O percurso de minha lírica, brasileira e nordestina, foi, originariamente romântico. Ela foi influenciada pelos poemas do livro de Português do colégio, por alguns raros textos encontrados nas coleções de livros para a juventude e, principalmente, nos volumes antigos de meu avô, como disse anteriormente. Entre os poetas românticos e os modernistas, conheci alguma coisa dos parnasianos, como Olavo Bilac, que sinceramente nunca me entusiasmou. A grande descoberta poética de minha vida foram os textos de Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Carlos Drummond. O refinamento sutil de Cecília, a simplicidade e o despojamento de Bandeira e a desencantada ironia de Drummond me deixaram suspensa do chão. Porém, minha aprendizagem da literatura brasileira não foi uma aprendizagem didática, por etapas e com profundidade. Eu lia os poetas que conseguia encontrar. Mais tarde, fui preenchendo os vazios, pesquisando e elegendo minhas 147

preferências, mestres a serem reverenciados e imitados. São muitos poetas, que até me arrisco ao nomeá-los, cometendo injustiças. Passei pelos simbolistas e acompanhei a evolução para a poesia moderna, indo além das paixões primeiras até Murilo Mendes, Ferreira Gullar, etc. João Cabral foi uma equação difícil de resolver, principalmente para quem se descobriu como poetisa na poesia romântica: “À sombra das bananeiras/ debaixo dos laranjais”. Para enfrentar o gume frio da navalha de O engenheiro, é preciso couro curtido. Mas reconheço que A educação pela pedra era necessária à nossa poesia, que oscilava entre o lirismo derramado e a piada/paródia da Semana de 22. Li, reli e continuo relendo dos poetas universais aos regionais com imenso prazer. A ausência sistemática das poetisas, que raramente apareciam nos manuais e antologias de literatura, a princípio me parecia ser normal. Aos poucos, porém, fui abrindo os olhos e questionando: por que as mulheres escrevem tão pouco? A rebeldia adolescente evolui e reflete sobre a opressão mascarada e sentimental exercida sobre o sexo feminino, conscientização que encontra em 1968 seu lema: “Não ao não” ou “É proibido proibir.” As perguntas começam a se desdobrar: Para que, para quem e sobre o que devem escrever as mulheres? “Sobre o que quiserem e como quiserem”, responde Adélia Prado, no volume Bagagem, de 1974, ao tematizar o cotidiano feminino e abrir espaço para novas poéticas. Quando Ana Cristina César criticou em “Literatura e mulher: essa palavra de luxo” (1979) os temas refinados e raros, como os preferidos pelas poetisas Cecilia Meireles e Henriqueta Lisboa, a mineira Adélia já tinha levantado sua bandeira. As mulheres escreviam há muito tempo, desde que começaram a ser alfabetizadas; mas o processo foi lento e elitista e controlado pelos interesses da sociedade patriarcal. Deveriam elas ser educadas? Por quê? Para quê? O Rio Grande do Norte e a literatura potiguar têm a honra de ter sido o berço da mais importante intelectual brasileira do século XIX, Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885). Nísia é uma das primeiras a defender, através da imprensa e em vários livros, o direito das mulheres à educação. A escritora, militante, chegou a fundar, no Rio, um colégio para moças, Colégio Augusto, com um currículo considerado avançado por incluir disciplinas como o Latim. As propostas pedagógicas do colégio, investindo na formação intelectual das alunas, renderam à educadora uma acirrada campanha pela imprensa e talvez tenham sido o motivo de sua mudança definitiva para Europa. Foi a luta de mulheres como Nísia Floresta que abriu os caminhos à educação feminina. Tenho consciência de que retomo um fio e dou continuidade a uma voz. Se invoco um poeta ou outro ao sabor dos versos, num diálogo infindo, estou reverenciando os mestres, circunavegando na pátria letrada. A relação estabelecida com eles e elas é, às vezes, tranquila e agradecida, outras conflituosa, e inclui apropriações indébitas. Porém já não digo a Cabral que entro no poema com mãos trêmulas e molhadas; vou com os estandartes hasteados, que drapejam nos poemas cabralinos publicados em Resina (2009). Cecília e Bandeira são santos padroeiros, com culto e veneração. Outros musos sobem e descem dos altares e estão sempre presentes no coração e na memória, para a alegria cotidiana de quem vive de poesia. A poesia é minha religião – no sentido etimológico da palavra religare: que ergue a ponte entre o alto e o baixo –, caminho que leva às fontes do sopro divino. Emprestada, doada, refeita esta voz é minha e agora é minha vez de falar: 148

Ia com a mala na cabeça Para onde ia? Ia com as amigas chegadas e partidas Para onde ia? Ia nova, ia velha, viajante com malas pesadas ia Para onde ia? Ia nem contente ou triste Indo passando e sorrindo Para onde ia? Ia ligeira, apressada ou devagar caminhando Para onde ia? Ia incerta da estrada mas em caminhar seguia Para onde ia? Certa que para chegar há que partir algum dia Para onde ia? (Dádiva) Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você discorresse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção poética brasileira contemporânea, especialmente em face da escrita feminina. Estou sempre lendo, como já disse anteriormente, mas não sou fiel a ninguém, nem à literatura brasileira. Minha vida-severina de professora já acabou há muito tempo, então me dou o prazer de ler o que me apetece. Leio poesia sempre, porque é meu vício maior, às vezes volto aos mestres e outras faço incursões ligeiras ou prolongadas pelos novos livros que alcanço aqui no meu país Natal. Nós, mulheres, destravamos a língua, como destravamos o corpo, na segunda metade do século passado, depois daquele ano que não acabou, 1968, e subimos ao palco. A produção poética feminina é extensa e apropriou-se, há décadas, dos temas proibidos, interditados. Não paramos mais de falar e escrever o que inquieta a plateia e estimula os sentidos. Urge descobrir novas estratégias construtivas para trazer a vida, com todas as suas contradições, à cena do texto sem cair nos perigos do fácil consumismo, que transforma tudo em mercadoria. Sou leitora, poetisa e pesquisadora das escritoras de meu estado, e reverberam em nossos textos poéticos as questões fundantes de um novo feminismo, que tenta harmonizar o céu, a terra, a água e o ar. 149

Amanheço atenta às necessidades do mundo onde mora a dor alheia o que fazer da minha alegria Amolo os instrumentos de corte e sutura exercito os dedos em exatos movimentos Farei a escrita do dia decidida reescreverei sem medo a própria vida (Dádiva). Como você avalia a recepção de sua obra? Gostaríamos que você comentasse a recepção de sua obra poética tanto por parte da crítica acadêmica quanto do público-leitor de modo geral. Câmara Cascudo dizia que o autor potiguar, raramente, ia além do Forte dos Reis Magos. E complementava o mestre com experiência e bom humor, que: “Natal não consagra nem desconsagra ninguém.” Publico aqui, em editoras locais, que não têm circulação, nem visibilidade lá fora. Sou bem recebida por conterrâneos e grata pela estímulo, que me faz desejar escrever mais e melhor. Tenho orgulho de pertencer à literatura potiguar, que honrosamente, começa com uma mulher da importância de Nísia Floresta e também dos meus companheiros e companheiras de ofício. Mas como eles, estou ilhada pelo Atlântico. Divulguei meus primeiros livros, Canto de página, (1986), Palavra estampada (1993), Coração de lata (1996) e Armadilha de vidro, (2004) enviando pelo correio vários exemplares para professores e escritores de fora. Canto de página foi lançado em Brasília, em 1987 e Palavra estampada no V Seminário Nacional Mulher e Literatura realizado aqui em Natal. O volume Resina (2009) foi lançado nesta cidade, por ocasião do XII Seminário Nacional Mulher e Literatura, em que fui a poetisa homenageada, e o IV Seminário internacional Mulher e Literatura, que homenageou a escritora portuguesa Maria Teresa Horta. A participação nesses eventos dedicados à produção feminina nacional deu visibilidade à minha obra no âmbito acadêmico. Aproveito para ressaltar o sistemático trabalho desenvolvido pelo Grupo de Trabalho (GT) a Mulher na Literatura, desde meados da década de 1980, resgatando e divulgando a produção feminina brasileira. Esses grupos de estudo e pesquisa também estimularam a autoestima das escritoras, incentivando-as a escrever e publicar suas obras. A criação da Editora das Mulheres, em Florianópolis (SC), por Zahidê Muzart, uma das lideres desse Grupo, recuperou do tempo e do esquecimento obras perdidas e lançou nomes novos. Quanto à pretender atingir o grande público, é missão quase impossível, porque a poesia é “inutensílio,” como a chamou Paulo Leminski, arte sem lugar na sociedade consumista. A saída é voltar à lição camoniana, dada nos idos de 1500, quando a poesia era Arte Maior: “Transforma-se o amador na coisa amada, por virtude de muito imaginar: Não tenho logo mais que desejar, pois em mim tenho a parte desejada.” (Luís de Camões, soneto nº IV) 150

Você é membro da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Que avaliação crítica você faz a respeito da contribuição da Academia para a divulgação do trabalho de escritores potiguares e para o fomento à leitura no país? A Academia Norte-rio-grandense de Letras, por ser uma instituição sem renda própria, enfrenta muitas dificuldades financeiras para se manter e sobrevive, basicamente, das contribuições estatutárias e do aluguel do espaço para eventos, como lançamentos de livros e outras atividades relacionadas à cultura do estado. Promove, periodicamente, mesas-redondas e palestras com debates e discussões sobre seus patronos e acadêmicos. Entre outros projetos, temos a “Academia para Jovens” envolvendo escolas públicas e privadas. Publica trimestralmente uma revista, com artigos escritos pelos acadêmicos e outros pesquisadores, e participa também da publicação de livros de seus sócios. Como você experimenta o ato de recitar? Recitar é recriar? “Recitar” e “declamar”, segundo o Dicionário Houaiss, são palavras sinônimas, e ambas significam dizer em voz alta, clara, lendo ou não, modulando a voz, dramatizando o conteúdo com gestos e expressões faciais. Compreendo recitar como “interpretar,” recriar, arte que exige do ator ou da atriz qualidades especificas para o palco. A mera leitura de textos literários, poéticos ou em prosa, sem um exercício de voz e gestos, postura e outras técnicas, pode “matar” o texto. Eu, pessoalmente, não me atrevo a leituras de poemas, nem meus, nem alheios. Só faria com muito treinamento. Em sala de aula, quando ensinava, li muitos poemas e trechos em prosa por necessidade do ofício, mas sempre consciente das limitações e dos riscos a que submetia o texto, vítima fatal de uma leitura malfeita. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novas escritoras no Brasil

As novas escritoras têm tudo o de que precisam para escrever bem. Primeiro, podem estudar, e escrever não é mais proibido. Segundo, têm acesso fácil às obras literárias, quer seja do modo tradicional, por meio dos livros de papel, quer seja através das mídias eletrônicas. Seus horizontes estão abertos e sem limites. Porém, o grande desafio é fazerem de modo novo um secular ofício. Para isso devem procurar orientações criteriosas e talvez, quem sabe, cursos especializados. Devem ler textos de alta qualidade, estudar os processos literários, e acompanhar, passo a passo, a dificílima caminhada intelectual da mulher para chegar onde chegou. Conhecer nossa história, feita de imensas lutas e derrotas seculares, é imprescindível, para valorizarem o que conseguimos. Devem também lutar por mais direitos e não se perder em banalidades cotidianas da mídia online. Escrever levada por impulsos emocionais é ficar no primeiro degrau da poesia lírica, ensinou Fernando Pessoa em sua obra crítica. Tocar de ouvido é improvisar, não ter raízes – passadas, presentes, muito menos futuras. Vamos comparar: uma bailarina ensaia no mínimo oito horas por dia: um músico não fica atrás em seu exercício cotidiano e profissional. Como escrever sem praticar? A paixão pelo ofício é fundamental, mas sem o exercício, a técnica adquirida pelo estudo, não há arte que resista. Para dar à luz um bom poema, têm-se que gestá-lo nove meses, como a um filho, e embalá-lo até que aprenda a andar com os próprios pés.

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Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? Em dezembro de 2017, lancei o volume Dádiva, aqui em Natal, reunindo textos poéticos dos últimos anos. Em 2014, publiquei, pela Revista da Academia Norte-Rio-Grandense-de Letras, número 40, um conjunto de poemas, intitulado “Avessa paisagem”. Tenho também escrito alguns textos para a citada revista sobre autores do estado. Além disso, espero dar continuidade a alguns projetos pessoais, mas prefiro não falar ainda sobre eles, porque sou supersticiosa. Como pesquisadora de literatura do Rio Grande do Norte, pretendo escrever sobre o tema “mulher e poesia”. Nosso estado é muito rico em poetisas que estão em plena atividade, com muitos livros publicados. Essa produção me interessa muito. Gostaria de escrever sobre elas: afinal faço parte dessa história. Tenho já vários livros publicados sobre literatura potiguar em parceria com a escritora Constância Lima Duarte. São eles: Iniciação à poesia do Rio Grande do Norte (1999); Literatura feminina do Rio Grande do Norte: de Nísia Floresta a Zila Mamede (2000); Literatura do Rio Grande do Norte: Antologia (2001); Revista Via-Láctea 1914-1915 (2003); Escritoras do Rio Grande do Norte (2013). Enfim, aqui me inscrevo e assino embaixo: O corpo marcado pelo tempo está pronto O osso desencarnado do tempo está pronto O nervo tenso do tempo está pronto Os músculos elásticos querem pular para onde? (Dádiva). Seus textos poéticos têm sido objeto de análise no âmbito acadêmico especialmente pelo viés temático relativo à mulher e a suas relações com o próprio corpo, com a família, com elementos do cotidiano e com a memória de afetos e de mágoas. A partir de sua trajetória de reflexão sobre questões de gênero, gostaríamos que você nos ajudasse a compreender um pouco o momento que vivemos. Atualmente, no Brasil e no exterior, observa-se a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? O fato de tematizar a condição feminina, restritiva e limitadora em nossa sociedade patriarcal, não me dá fundamentação teórica suficiente para falar sobre essa onda de intolerância e fascismo. A “memória de mágoas e afetos” está inscrita na pele, ainda lateja: mas essa “monstruosidade” – ”fascismo, misoginia e homofobia” – é uma surpresa angustiante. Sempre tive convicção de que vivia 152

numa sociedade conservadora, elitista e preconceituosa, mas aparentemente cordial: “cada um conhecia o seu lugar,” como ouvia dizer. Convivi de perto com as “Irenes pretas”, as “Irenes boas”, nem sempre de bom humor, que de sol a sol, batalhavam nas cozinhas alheias. Conheci seus filhos e sobrinhos, também pretos com as barrigas inchadas de vermes sem escolas nem sonhos, além do prato de feijão e farinha no almoço. Porém, a onda reacionária e obscurantista é muito grave e não é um fenômeno nacional. Para discuti-la, é exigido um aparato teórico de cientistas políticos e sociais que não domino. Mas não podemos ignorar que, dentro de nós, convivem o “sapiens e o demens” (claro x escuro), em constante batalha, desde o início dos tempos. Entre unir e desunir, aceitar e rejeitar, compreender e condenar, é mais fácil escolher o caminho mais curto, que leva ao caos. [...] Uma poetisa russa feita de neve e dor me disse coisas ferozes e belas que somos de outro barro outras mulheres de Lot riu de boca fechada passou-me a perna com pernas fortes: não há nada de novo sob o sol só a dor humana renovada (Dádiva)

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Eduardo Martins Nasceu em Recife (PE), em 1962. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei, Aline Aguiar, Carolina Lobo, Pâmela Melo e Valteir Oliveira em abril de 2016.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Quando penso, falo ou escuto poesia, prefiro falar em estilo e, certamente, isso é uma conquista do escritor. Escrever é um ato de sofrimento, é quando “uma faca só lâmina”, como diria Cabral. Nesse sentido, não acredito no acaso. Só muito suor e lágrima serão capazes de construir a grande obra. Em que momento da vida você se percebeu um escritor de verdade? Ainda não me percebi dessa forma, pelo menos naquela em que acredito. Veja bem, minha crença é na mentira ou parte dela. Pessoa fala em fingimento, prefiro mentira mesmo. Você está escrevendo algum livro no momento? Nunca parei de escrever, escrevo quase todos os dias. Estou preparando para abril a edição em livro do A palavra falta (poemas) e ainda este ano um livro de artigos intitulado Do outro lado da ponte também tem poesia (ensaios sobre poetas de Pernambuco), em parceria com a professora Elisabete Sanches. Além desses dois livros, também está no forno um livro de poemas que escrevi em São Paulo, o Depois da Pauliceia e outros poemas desvairados, e um livro de textos que escreveram sobre o meu trabalho como poeta (mas este é, na verdade, uma insistência de colegas). Por fim, preparo a publicação da minha tese de doutorado intitulada Os caminhos movediços de Bandeira. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Não vejo muita coisa e vejo muito gato sendo enfiado como lebre num saco onde só cabem javalis. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Em 1980 participei de um movimento que teve repercussão nacional, o Movimento de Escritores Independentes, que debatia e criou uma rede alternativa de confecção, venda e divulgação do livro em vários estados brasileiros, e que foi muito forte em Pernambuco. Discutíamos muito essa questão, mas acho que hoje parte do foco dela se perdeu, com o fortalecimento da internet e dos meios digitais de editoração. Minha época e minha geração foi a do livro mimeografado. Acho que hoje o grande desafio não é mais a edição, e sim a qualidade do que se está 154

editando. Acho que nunca se produziu tanto livro para tão pouca qualidade, tenho dó das árvores. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? Como disse, a internet encurtou distâncias e facilitou caminhos, mas propiciou a redução na qualidade do que se publica. Como você vê a recepção de sua obra? No sentido mais comezinho que esta palavra possa ter, não tenho uma obra ainda. Como você define a sua obra? Como disse, não considero uma obra a publicação de alguns livros. Você considera importante que o professor de Literatura também seja escritor? Definitivamente, não. Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever, ou seja, que já são escritores e prescindem da academia? Isto é muito complexo, ainda não tive alunos me mostrando. Como você vive o ato de recitar? Como vivo a poesia, com muito prazer e pouca folga. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Não temos público e não teremos tão cedo. O Brasil brinca de fazer educação e formar leitores e a maioria dos nossos políticos é mal-intencionada, o que, colocando em um caldeirão, não resulta em grande coisa.

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Elizeu Braga Nascido na comunidade ribeirinha de Tacoã (RO), em 1985. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei e Erlândia Ribeiro em agosto de 2016. Publicada na Caliban em julho de 2019.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer... Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor de verdade? Então, acho que foi quando eu era menino, na vila de Tacoã, onde nasci, aqui no baixo Madeira, o universo das histórias cheias de realismo fantástico que minha vó, minha mãe e minhas tias contavam, os velhos que sabiam versos de cabeça e faziam desafios no final do dia na beira do rio. Carreguei isso comigo pra cidade, a vida urbana que todos os dias se dedica a endurecer a gente, fui aprendendo a enxergar a poesia na cidade, porque nunca me desfiz dos olhos daquele menino assombrado que, ao chegar na cidade, teve de negar sua origem, sua memória, porque, segundo os entendidos em progresso, o ribeirinho é subdesenvolvido. A poesia me atraía porque eu lembrava daqueles poetas que, através de seus versos, me faziam enxergar o mundo, escrevi meu primeiro poema na sala de aula, com 13 anos, eu estava triste, e escrevi como num transe, aquelas palavras que pareciam ferver dentro de mim, pus pra fora, então gostei, senti um alivio, parecia que a tristeza tinha passado ou já não era tão triste, a sensação de que o mundo podia caber dentro de mim, então comecei a escrever como um doido, estudava em um colégio interno, andava com uma pochete cheia de poemas escritos a mão, e vinha uma vontade de mostrar, e ao mesmo tempo um medo, mas eu mostrava, lia, e o pessoal gostava, e eu continuava. Um professor de português me aconselhou Manuel Bandeira, eu li, até então eu não era de ler, mas Manuel Bandeira me atravessou. Enfim, acho que essa resposta está muito longa, passei por muita coisa na vida, poesia foi algo que eu sempre pratiquei por teimosia, pensei que ia chegar um momento em que eu ia desencanar, arranjar um emprego e buscar ser alguém na vida, fui bastante aconselhado, mas fui teimando. Você poderia explicar como foi o processo de criação e edição artesanal da sua obra Mormaço (Edição do autor, 2016)? O que representou para você esse processo coletivo, em que houve oficinas de confecção das capas em conjunto com o público? O que foi mais significativo: o resultado ou o processo como um todo? Então, pra mim tudo é processo, sabe, o resultado pode ser o processo de algo que ainda não iniciou, e não o fim. Adorei compartilhar o processo do Mormaço, mostrar para as pessoas como é fazer um livro, como é mágico, e também prático. A proposta também vem com a ideia de mostrar para as pessoas, principalmente quem escreve, como elas podem produzir seu próprio livro. A ideia surgiu por conta do primeiro livro, o Cantigas, lançado em 2015. O processo artesanal 156

das capas foi um pouco diferente do Mormaço, e durante a feitura do Cantigas eu pensei: “o próximo livro vou lançar dentro de uma proposta onde eu possa convidar as pessoas a verem e participarem do processo”. Acho que compartilhar é uma das coisas boas que a poesia ensina pra gente. Como você define a sua obra? Em processo, caminhando, de essência inquieta, ligada na minha alma, minha memória, com indignação e amor-coragem. Como você vê a recepção de sua obra? Bom, estou bem feliz. Ano passado lancei o Cantigas, foram feitos trezentos livros. Já estão todos circulando, lancei na Arigoca, depois no Peru, dentro do Colóquio de Literaturas Amazônicas, então fui para a Balada Literária em São Paulo, e o livro foi indicado pelo site Livre Opinião entre os vinte e cinco melhores lançamentos de 2015. Do Mormaço, lançado este ano, foram feitos cento e cinquenta livros, que já saíram todos, preciso fazer mais. Estou feliz com a saída dos livros, a demanda de pedidos, mas ainda rola uma inquietação, eu preciso me organizar, produzir mais livros, distribuir, fazer parcerias e apresentar, dizendo os poemas. Enfim, sou minha própria editora, e isso me dá liberdade e também responsabilidade. Como você vive o ato de recitar? Pra mim é como um ritual, sabe, como se eu pudesse evocar, chamar pra fora o que está dentro de mim. A poesia é uma força imaterial que atravessa o tempo, quanto mais você se alimenta mais ela pode mexer com você. O poema é uma maneira de registrar essa força imaterial, então tem o processo de colocar o poema dentro da gente, tem vezes que o poema atravessa a gente de uma vez só e parece que quer ficar morando no peito, ardendo como uma chama, e quando você declama, ele queima, acende, espanta, então tem todo um outro processo, de voz, corpo, olhos, é a força tomando conta, e o corpo vira um instrumento. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Acho que são leituras, a poesia escrita, literária, sim, está distante do público, os livros, os autores contemporâneos, a literatura na escola virou uma matéria chata, e o livro é muitas vezes um objeto de tortura para castigar o aluno, e na academia parece que o povo se ocupa de cultuar os últimos pavões vivos. Mas eu acredito que a poesia é uma força que está na rua e também dentro de nós, o poeta tem de ser mais do que um escritor de poemas, tem de ser um praticante da poesia. e praticar poesia é propor maneiras, ações, é burlar o sistema engessado e propor medidas que se desloquem e dialoguem com a realidade e saiba enxergar com sensibilidade onde é possível incendiar ou contribuir com uma mudança, porque uma coisa é certa, tem de mudar o sistema educacional, tem de parar de ser um recrutador de zumbis, que vivem repetindo a ladainha da desesperança, as bibliotecas nas escolas tem de funcionar como um espaço de cultura, com oficinas de livros, rodas de leitura, conversa com autores, rodas de conversa sobre temas tabus, a literatura e as outras artes em geral servem para dar autonomia de 157

pensamento ao indivíduo, porque mexem na sensibilidade, e esse sistema coloca a gente em um estado anestésico, para que possamos aceitar a tragédia como fatalidade e o convívio social como um campo de disputa, com isso não podemos ser omissos, e a arte não pode ter o mesmo papel de uma igreja, que é contribuir para o estado anestésico de alienação, a arte tem que ser questionadora e a poesia sem anestesia. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Tem muitos, né? Os que eu conheço, eu acho incríveis, inspiradores, pessoas com o discurso poético dentro da realidade. Vale a pena citar Marcelino Freire, Mel Duarte, Maria Rezende, Mariana Felix, Emerson Alcaide, Bob Baq, Eliaquim Rufino, Samuel Borges, Luna Vitrolira, Pedro Bomba, Allan Jones, Debora Arruda, Nicolas Nardi, Diego Moraes, Carlos Moreira, Alberto Lins, Joezer Alvarez, Binho, Dom Lauro, Angelica Freitas, Aline Bei, Carolina Rodrigues e muitos mais. Galera que tem uma pegada de alma na escrita e com isso acaba mexendo com o tempo, com esse, com o que passou e com o que vai chegar. E também vejo a galera muito na correria, produzindo o próprio trabalho, circulando e propondo, participando das ocupações nas escolas, levantando movimentos em periferia, não posso deixar de citar o Sérgio Vaz e a Eliza Lucinda, verdadeiros guerrilheiros dos livros, da literatura, da poesia, poesia na prática. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? As distâncias ficaram menores, o tempo parece que deu uma acelerada, acho que rola uma independência maior, o contato entre os que escrevem, as pontes entre os estados, a internet é uma ferramenta revolucionária, olha essa nossa conversa, por exemplo. A internet é uma ferramenta, ainda estamos aprendendo como se movimentar por ela, é importante aprender como potencializar a literatura e a leitura e a escrita através dela e as práticas poéticas. A internet é uma ferramenta que conecta utopias, mas também difunde o ódio. E já tem um tempo que a internet pauta a televisão. Mas ainda rolam os embates das narrativas. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Muito discurso de ódio não resiste ao vento da varanda de casa. Penso e tenho a esperança numa coisa, o movimento, a certeza de que as coisas se movem me dá esperança de viver. E se existe uma certeza, é essa, estamos nos movendo. Mesmo parados, sentados, o planeta se movimenta, a luz muda, a gente sente e se mexe. Acredito que esse avanço do movimento fascista é uma reação ao avanço do movimento de descolonização. É o patriarcado rachando e o machismo ficando nu. A reação de um monstro se sentindo acuado é gritar e atacar. 158

Precisamos ver o livro como um objeto mágico, não como uma ferramenta de tortura. A poesia deve ser encarada como atitude. E a rua se pauta nas experiências revolucionárias. As batalhas de rima, as oficinas, os slams, os grafites, o hip hop, os saraus e casas coletivas, a galera que se junta e ocupa as praças. Que estão propondo na prática o exercício de uma sociedade que se relacione bem melhor.

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Ely Macuxi Nasceu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), em 1961. Vive em Manaus (AM). Entrevista concedida a Vitor Cei, Luana Pagung e Julie Dorrico entre outubro e novembro de 2017. Publicada no Correio da Cidadania em dezembro de 2018.

Cada escritor possui um estilo e método de trabalho próprios. Você poderia comentar as opções formais que norteiam seu projeto literário? Minha rotina de trabalho não deve ser diferente da da maioria dos escritores, mantenho a porcentagem de 90% de trabalho e 10% de inspiração. Rotineiramente escrevo uma ou duas laudas por dia, mas existem momentos em que eu tenho que responder aos meus personagens e fico um ou dois dias escrevendo. Como venho da tradição oral, estou sempre atento às histórias que são contadas, delas retiro personagens e enredos. Muitas dessas histórias vêm em sonhos e, assim que desperto, faço o registro. A partir daí, inicia-se o processo de ordenamento e tradução do sonho para, então, fazer a síntese da história; em seguida, amplio em capitulo, tentando visualizar o início, o meio e o fim da história... Convencido de que a história é razoável e coerente, elaboro alguns diálogos, colocando os nomes dos personagens e suas características físicas e psicológicas, os contextos, paisagens... Enfim, é uma produção literária comum a quem escreve e quer transmitir mensagens. O tempo de elaboração e conclusão dos meus textos é aberto e não corresponde a uma sistematização cronológica, metódica de pesquisar e escrever. Escrevo nos momentos livres, já que me dedico à docência e a assessorias antropológicas no Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Amazonas – CEEI/AM. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Quando vivia na aldeia, a língua portuguesa e sua escrita era um símbolo de desejo, sonhava em falar e escrever como os brancos (não índios) que por lá estavam. Nesse momento da vida, ainda não imaginava o que ela representava para a integração e o aniquilamento de nossa cultura tradicional. Posteriormente, entrei na igreja católica, na condição de seminarista, passando a ter acesso aos conhecimentos, tidos como universais, a ciência e a filosofia. Nesse processo, dois aprendizados: ler e escrever. Não servia para ser padre, era muito rebelde, disse-me o reitor. Então, fora da vida religiosa, fui ser professor de História e Filosofia, o que me obrigava a escrever e contar histórias. Paralelamente, atuava na organização do Movimento Indígena Organizado, elaborando e negociando a documentação de nossas pautas por demarcação e homologação das terras indígenas. Numa dessas viagens, em São Paulo, encontrei o Daniel Munduruku, que me convidou para contar uma “história de índio” em um evento literário e, neste, havia um representante da Editora Paulinas – que gostou tanto da história e convidou-me para publicá-la. Desse dia em diante, começaram a me chamar de escritor. 160

Considerando que existem diferentes perspectivas sobre o que é literatura, em diferentes tempos e espaços, como você define a literatura indígena? Que elementos a diferenciam das demais literaturas produzidas no Ocidente? Que função você identifica nela? As primícias sobre as diferentes perspectivas do que vem a ser Literatura no ocidente também se aplicam à realidade indígena, sendo difícil enquadrá-las conceitualmente em sistemas ou correntes literárias. Falamos de uma realidade antiga – a presença indígena na literatura –, mas de um movimento relativamente novo no contexto da literatura brasileira, pensada e escrita por autores de origem indígena. Não sabemos exatamente qual é o seu papel, nem de que corrente ela se aproxima em um quadro conceitual mais geral dentro da Literatura. Mas creio que os críticos literários devem ter algumas preocupações ao tentar enquadrá-la em algum sistema, ou estrutura, como entender que se estão analisando textos escritos por representantes de povos, de diversidades, com concepções de mundo e de escrita completamente diferentes dos da cultura geral brasileira. Que existem outros tipos de simbolismo e grafias, outras formas de registrar as histórias, além da oralidade e da escrita que se convencionou no ocidente. É fácil perceber isso nos vestígios deixados pelos antepassados indigenas, nas pinturas corporais, nos desenhos que enfeitam nossas malocas, formas e estéticas da cultura material. Considerando que uma das dimensões da Literatura é expressar os valores e verdades de seu tempo, recebendo o corolário ideológico de seus contextos, interesses de seus produtores e divulgadores, em muito depende das versões de quem conta e como se contam as histórias. Assim, é preciso considerar – salvaguardando os ideários e as boas intenções de muitos escritores e correntes literárias – que houve muitas produções que distorceram nossas histórias, traduzindo-as como mitos, lendas ou parlendas, naturalizando-as como folclore; outros, maldosamente, traduziram-na como ficção e magia... Equívocos que alimentaram preconceitos e discriminações ao longo do tempo, reificação de imagem de povos detentores de cultura primitiva, moradores de ocas, caçadores, coletores, falantes de línguas estranhas, eternos moradores das florestas. Assim, o movimento que hoje é denominado “Literatura Indígena” é uma forma de expressão de um coletivo de escritores de origem indígena cuja função é dialogar com a sociedade nacional por meio da escrita, levando ao conhecimento de todos histórias mais reais sobre nossos povos, nossos conhecimentos desenvolvidos ao longo de séculos, filosofias e ciências, formas coerentes e consistentes de adaptabilidades aos ecossistemas, sociabilidade entre todos os seres, assim como a harmonização entre cultura e natureza, enquanto formas simétricas de complementaridade social e espiritual. Podemos, assim, dizer que a Literatura Indígena é diferente por abranger textos escritos por autores indigenas, mas sobretudo por trazer entre suas linhas a mensagem de vozes ancestrais, ensinamentos, conhecimentos, valores, riqueza cultural que orienta a forma de viver de 305 povos que, hoje, sobrevivem no Brasil. É uma Literatura de resistência, porque escreve sobre um segmento estigmatizado historicamente, violentado em seus direitos de povos tradicionais que continuam sofrendo com as invasões de suas terras, destruição de seus ecossistemas... A Literatura Indígena é filosófica, porque escreve sobre modelos de homem e de sociedade, valores, ética nas relações entre os seres vivos; é uma cultura 161

literária porque expressa, pela escrita, formas variadas de linguagens, estéticas, paisagens, histórias e poesias. O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa educativa de formar leitores. Como você compreende o papel da literatura na formação da criança? E, como autor de literatura infantil, quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar com suas obras? Considero fundamental a presença da literatura na vida da criança, pois delas é que vêm as primeiras compreensões mais sistematizadas do mundo, das pessoas, manifestações de sonhos e desejos. Creio que o hábito da leitura na infância ajuda a despertar, na criança, o senso crítico, além de auxiliar o aprendizado, tornando-as criativas e seguras, no escrever e no falar, nos modos de se colocar no mundo. Nesse primeiro momento, dizem os especialistas, a base do pensamento é a linguagem, e a literatura fornece à infância alimentos primordiais para seu desenvolvimento: “palavras significantes e imaginação”. Em suas leituras, as crianças ressignificam a história e as personagens, reinventam e dão uma tradução muito particular que as ajudam a enfrentar seus medos e a realizar seus desejos... Tamanha responsabilidade deveria sensibilizar os governos e a sociedade em geral para o comprometimento com a oferta e a promoção da leitura. Infelizmente, sabemos que isso não é prioridade enquanto política pública, limitando-se a ações pontuais ou de parte dos segmentos que trabalham com literatura, mas sem continuidade e acompanhamento em longo prazo... Democratizar o acesso à leitura ou formar leitores é um processo embrionário que deveria começar nos lares, aperfeiçoado e motivado nas escolas e em cada canto de rua, das pequenas e grandes cidades. No entanto, isso seria resultado de uma política que enxergasse, na cultura e na educação de qualidade, uma necessidade, tal qual o alimento que supre a fome e garante a vida. Não enchemos a barriga, mas alimentamos a alma, a criatividade, os sonhos, desejos, liberdade, comprometimentos sociais, cidadania... Destaca-se, no entanto, que em contexto indígena existem especificidades, diferenças quanto ao entendimento do que vem a ser criança, relacionado às concepções de mundo, cosmologias de cada povo. O universo da criança é amplo e contínuo, como as florestas, rios e montanhas, considerando os lugares de aprendizagem, ritos, regras, lazer e trabalho. Na escrita, o simbólico se dá por meio das imagens criadas na oralidade, histórias contadas, percepções que ela retira dos vários eventos de que participa em sua casa, nas festas, nas brincadeiras e rituais – que começam antes mesmo dela nascer – nas rezas, nos cantos, conversas e resguardos. O espaço de aprendizado dos primeiros anos de vida é a sua casa, sua centralidade, onde se aprende a língua, valores e verdades de sua cultura. A aldeia, ou maloca, é a extensão de sua casa, onde todos cuidam, ensinam e vigiam. Embora existam povos que já estão mais ocidentalizados, sofreram a intervenção cultural dos não indigenas, aldeamentos aonde a cidade já chegou a seus terreiros, sua formação e educação já são escolares e não se diferenciam muito das de uma criança da cidade. Outra realidade são as famílias de indígenas que vivem na 162

cidade, no urbano. O esforço destas é o como manter a tradição cultural indígena em ambiente onde a língua de dominação é a língua portuguesa. Nesses contextos apresentados, enfrentamos outros desdobramentos, quanto à idade certa para a criança ir à escola, a idade para aprender outras línguas... Aos colegas professores sugiro leitura, como acabamos de registrar. Sem leitura, não temos nada a ensinar. Literalmente, para nós, professores, a leitura tem que ser nosso alimento diário. Através dela pode-se aprender sobre as histórias, a diversidade e a especificidade dos povos indigenas, no Brasil. Quanto à leitura de minhas obras, sugiro que não se perca a fluência, o ritmo, o humor que tento dar aos enredos. Não são histórias de medo, terror, e sim de estripulias, molecagem, diversão e alegria, bem próprias do mundo da criança. O curumim gosta do engraçado, gosta de sorrir, de se alegrar. Se os educadores conseguirem, antes de começar a contar a história, fazê-lo viajar em seus imaginários para dentro das florestas, das aldeias, sentirem o cheiro das árvores e flores, o barulho dos rios, os assobios dos pássaros, entre outros animais, as crianças poderão usufruir de ricas experiências sensoriais que as ajudarão a compreender e a enxergar que as histórias de curumim são boas e são legais, ensinam a brincar e ter responsabilidades. Histórias que aprendi e vivi na minha maloca enquanto curumim, no Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima. No livro Ipaty: o curumim da selva (Paulinas, 2010), as ilustrações de Mauricio Negro compõem perfeitamente com a obra. Após essa experiência, você percebe mudanças em sua maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Realmente, o livro editado e publicado pela Editora Paulinas é uma graça dos deuses. Fiquei muito feliz com o sucesso que essa obra obteve... Passados mais de cinco anos da publicação, ainda hoje recebo cumprimentos... Sempre agradecendo ao Mauricio Negro que compôs e propôs uma leitura do texto através das imagens, permitindo uma feliz simbiose, uma perfeita tradução entre o imaginário indígena contido no texto e sua significação visual, tendo como fundo a paisagem das serras de Roraima. Uma das peculiaridades da literatura infantil e que a diferencia: a ilustração, a “representação imagética”, outro olhar sobre o texto. Essas visualizações, as cores e personagens induzem a um primeiro olhar e condicionam outros, possibilitando leituras e interpretações novas. Por isso, a necessidade de uma perfeita simbiose entre o texto e a ilustração. Tal experiência enriqueceu minha percepção do simbólico. A relação da escrita e da imagem em texto tido como infantil permitiu observar outras situações de realidades que se fundem, permitindo enxergar horizontes mais amplos de compreensões e percepções, tornando mais lúdicos e poéticos a forma literária da escrita e da aprendizagem da língua. Porém, entendo que essa relação é complexa e de difícil sistematização, uma vez que falamos de duas realidades distintas. Uma vez editadas e submetidas a edições e traduções, podendo ser a realidade simplificada, ou mesmo distorcida, somente para atender às ansiedades mercadológicas, afastando-se do conjunto escrita-imagem-realidade como primazia da estética dos livros indigenas. Não foi o caso do Ypati: O Curumim da Selva.

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Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você comentasse suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo de autoria indígena – contemporânea. Certamente não tenho fundamentos suficientes para falar sobre o panorama atual da literatura brasileira e sua importância na reflexão sobre a conjuntura nacional em que vive o Brasil hoje. Proponho fazer apenas relatos de algumas impressões, sem aprofundamentos e discussões mais qualificadas sobre o assunto. Atualmente, reduzo minhas leituras às referências bibliográficas do Curso de Antropologia Social – PPGAS/UFAM, que voltei a frequentar; aproximando-se da literatura, porque um texto etnográfico tem que ser bem escrito, visando a levar informações a um público sobre a cultura e a tradição indígena na cidade de Manaus/AM. Dentre eles: Louis Dumond, O individualismo: uma perspectiva antropológica da sociedade moderna; Philippe Descola, La selva culta: simbolismo y praxis en la ecología de los Achuar; Edgardo Lander, A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais... Meu entendimento é de que a literatura se apresenta como registro, recriação ou reprodução da realidade social, estando a reprodução da realidade calçada sobre a perspectiva do autor em um processo dialógico entre ficção e realidade. Não há dúvida que na literatura está o verdadeiro arcabouço intelectual da humanidade, o deleite da leitura, a imaginação, a criatividade, a interpretação, sendo o alicerce de todos os elementos que levam à produção de conhecimento intelectual. Porém, essas referências não estão soltas no mundo de forma aleatória; ao contrário, são elaborações históricas e ideológicas que retratam visões de mundo e suas fronteiras nacionalistas, globalizações comerciais e mercadológicas. A realidade é mais perversa do que os enredos e personagens de nossas histórias fantásticas, vinda de nossas florestas e aldeias. O que vejo é que no Brasil não existe uma política pública que possibilite às editoras e aos escritores um equilíbrio de compra, venda e distribuição de livros. Certamente, se houvesse essa preocupação, haveria contrapontos ao controle que exercem meia dúzia de empresas/editoras sobre o mercado editorial brasileiro. A produção, a venda e a distribuição de livros brasileiros seguem a lógica internacional de mercados, acelerando a entrada e a saída do país no mercado globalizado do livro e uma aproximação de mão-dupla entre os escritores brasileiros e estrangeiros. Esses empreendimentos comerciais no universo da literatura impõem limites, controle sobre o que deve ser produzido ou não. Agem para direcionar e impor a “boa literatura”, os “bons escritores”, elegendo quem deve ser ou não premiado, constituindo “ranqueamento” do que deve ser comprado ou não... Ieda Magri (UERJ), em “O mapa da literatura brasileira atual no contexto da América Latina” (Revista Educação Pública, 2013), comenta que a “autonomia hoje está fortemente ameaçada de uma maneira totalmente nova pela interpenetração do mundo do dinheiro no mundo da criação artística” e que “o domínio ou o império da economia sobre a pesquisa artística ou científica exerce-se também no interior mesmo do campo através do controle dos meios de produção e de difusão cultural e mesmo das instâncias de consagração”. Felizmente, concluía a autora: [...] alguma literatura não precisa de defesa porque o mercado se 164

interessa por ela e rege, inclusive, sua produção; entretanto, alguma outra literatura precisa de defesa porque o mercado não está interessado em sua produção e difusão. Essa literatura outra continua sendo escrita, mas nem sempre pode ser publicada e raramente atravessa os muros nacionais, ficando pouco tempo nas livrarias antes de ser destruída. (MAGRI, 2013, s. p.). O comentário acima é para ajudar a pensar o contexto em que “Literatura Indígena” se estabelece no enredo da literatura brasileira. A literatura produzida por autores indigenas é tão antiga quanto o movimento do indianismo, consagrado na literatura brasileira. Porém, somente nos últimos dez anos ganhou notoriedade nacional, obtendo atenção do poder público, de organizações não governamentais e, sobretudo, do mercado editorial. Ressaltando todo o seu apelo em defesa da causa das minorias, reconhecimento cultural, políticas afirmativas dos povos indigenas, são poucos os escritores indigenas que publicaram mais que cinco livros no Brasil; somente três escritores receberam prêmios nacionais e dois foram contemplados com premiações internacionais. Embora haja uma exceção, autor que publicou, por seu esforço e mérito, mais de 50 títulos, num período de dez anos. A maioria de nós, de regiões periféricas, ainda mingua atrás de quem publique nossos textos e os considere como literatura. Isso tem ocorrido em função da lógica apontada acima: o mercado. Que priorizam ações – publicações, divulgações, promoções e eventos literários – em regiões onde o poder aquisitivo de suas populações permite a aquisição de livros. Possivelmente deva haver outras explicações e recortes para explicar a atenção e o interesse do mercado editorial por temas ligados aos povos indigenas. Mas acompanhei alguns processos que nos dão um entendimento desse processo. Após décadas de intensas lutas e organização dos povos indigenas pela demarcação e homologação de suas terras, respeito à cultura e suas línguas, o Estado Nacional Brasileiro reconheceu os direitos e destacou, na Constituição Federal do Brasil de 1988, um conjunto de artigos específicos em proteção à cultura indígena. Dessa forma, construiu um conjunto de políticas afirmando esses direitos, dentre as quais a política de Educação Escolar Indígena, destinando aos seus membros todo o processo de elaboração, produção e divulgação de seus referenciais pedagógico, didático e técnico. Nesse universo, o livro didático e paradidático. Abriram-se, dessa forma, no Ministério da Educação e Cultura (MEC), licitações públicas para editoras interessadas em prestar serviços ou venda de livros para as escolas indígenas. Em seguida abrem-se linhas de apoio financeiro no Ministério da Cultura – MINC (Editais) para apoio a publicação de livros com temática indígena e afrodescendente; apoio a empreendimentos literários, feiras e mercados de livros... Em 2008 foi criada a Lei nº 11.645, que torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados. Assim, passa a existir a necessidade de novas edições de livros didáticos em todo o país. Por último, o MEC lançou o Programa Nacional do Livro Didático Indígena – PNLDI, ainda em fase de conclusão. As médias e pequenas editoras, “de olho no filé”, não pensaram duas vezes e saíram publicando a toque de caixa textos escritos por autores indígenas; 165

nesse processo de descobrimento, perceberam que a literatura também tinha um apelo mercadológico interessante, o simbolismo indígena, temas ligados a diversidade cultural, índios defensores da natureza; a ideia de vitimização de seus membros; habilidade nos discursos e nas contações de histórias. Em seguida, constituíram-se premiações nacionais, stands e seminários de literaturas indígena na Feira Nacional do Livro Infanto-juvenil-FNLI/RJ, financiaram premiações regionais, nacionais e internacionais de livros, injetaram recursos para enviarem escritores indígenas às feiras além-mar: Bolonha, Frankfurt, França... Bem, vocês podem perceber que a história é longa e difícil de sintetizar. Que tudo isso teria que acontecer enquanto proposito comercial é indiscutível, afinal, nós indigenas que escrevemos e publicamos livros queremos também ganhar dinheiro, destaque, notoriedade nacional e até internacional. Afinal como qualquer outro escritor, trabalhamos muito para estar no estágio cultural e social em que nos encontramos. Mas, então o que nos faz diferente de outros escritores? A cultura indígena e seu universo simbólico diferenciado? Diferente de quê? Eis aí o peso de nossos textos, tidos como expressão indígena. Os escritores indigenas têm que ter a responsabilidade de não cometer os erros do passado, o cuidado para não “folclorizar” ou infantilizar nossas histórias, sendo elas expressão do nosso cotidiano, de crenças e valores de nossos povos. Os termos resistência ou diversidade cultural não são apenas conceitos que justificam a especificidade dos textos indígenas, palavra da moda, mas uma literatura que expressa realidades distintas, de riquezas de conhecimentos e costumes; mas também, histórias de sofrimento, espoliação, expropriação, extermínios, etnocídios e apropriação de seus territórios, por mineradores e fazendeiros. Mas, onde é que ficam os indigenas – os aldeados – nesse enredo que estou descrevendo? O que é a Literatura Indígena – era a pergunta inicial – se quem escreve, escreve do centro do Rio de Janeiro, São Paulo, Manaus, Belém? E como fica a divisão de benefícios, advindos das histórias tradicionais, elaboradas e construídas coletivamente? A quem realmente pertence o direito autoral? Muitas teses e dissertações já foram escritas sobre a “Literatura Indígena”. Quais delas se refeririam as obras literárias produzidas coletivamente no interior dos cursos de formação de professores indigenas? Quem é que vai publicar as dissertações e teses que estão sendo defendidas e refletem sobre nossas realidades? Alguém poderia perguntar, com menos deslumbre, que implicações esse tipo de literatura tem para as crianças aldeadas, falantes de suas línguas e praticantes de suas culturas? Quais são os crivos e os controles sobre referenciais genéricos e homogeneizadores contidos nessas obras que também estão chegando às aldeias, impostas pelo PNLD, editoras e distribuidoras de livros? O debate entre oralidade e escrita em contexto indígena já é uma questão superada ou existem desdobramentos nos encontros interculturais, onde a cultura majoritária se impõe? Estamos falando de povos tradicionais, povos espoliados e negados na história deste país; não custa lembrar que o principal mecanismo de integração e pacificação dos povos indigenas foi a escrita, através das escolas e igrejas que promoviam a civilização e o letramento em língua portuguesa, uma literatura que a desvirtuava e impunha a cultura de seus colonizadores, modificando hábitos e costumes. Advêm desse processo a insegurança e o medo, incertezas nesses povos 166

quanto aos seus referenciais de mundo, suas tradições e língua. Esse é o lado perverso da integração. Creio que são questões que precisam ser discutidas, pensar mais, antes de encontrarmos um lugar distinto ou mais confortante no conjunto da literatura brasileira. Hoje, no Brasil, podemos perceber um crescente número de escritores indígenas. Mas também vemos escritores não indígenas buscando elementos tradicionais da cultura ancestral para criarem obras de ficção, sendo que muitos desses escritores têm recorrido a pesquisas antes de concluir suas obras. Qual é a sua opinião sobre esses novos escritores? Seria bom que os referidos escritores assumissem a condição indígena, adotassem uma de nossas culturas e defendessem nossas causas, por demarcação e vigilância de nossas terras, qualidade no atendimento à saúde e à educação, desenvolvimento sustentável para nossas comunidades. A Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tribais, adotada em Genebra em 27 de junho de 1989, reconhece a autodeclaração como um elemento definidor da identidade de pertença. Ou seja, aqueles que se sintam contemplados podem requerer sua condição indígena, desde que passem a morar numa comunidade e os demais o reconheçam como membro da comunidade e do povo. Ou seja, nossa concepção de mundo é que todas as pessoas tenham acesso aos bens; não pensamos enquanto indivíduos, mas como seres coletivos, inclusive à cultura. Se o autor pretende usar nossas referências para criar suas obras, que tome cuidados com algumas condições para não reproduzir ou transformar nossa cultura em folclore; deve dialogar com representantes do povo de quem ele está tirando as referências, ter anuências, muito cuidado como se fala e como se escreve sobre os povos indigenas. O que não pode é um cidadão se apropriar de referências indígenas sem nenhuma autorização, sobretudo quando se tratar de conhecimentos tradicionais. Se assim o fizer, viola o bem público de um povo, é crime de lesa-cultura, passivo de punições judiciais, além de ferir princípios morais e éticos. Isso não é certo. Mas a questão chama atenção para uma das especificidades da “Literatura Indígena”, o sentido de pertença étnica. Nosso texto fala de nossas histórias, nossos heróis e mitos de criação, nosso cotidiano, sociabilidades. Falamos que ela é uma literatura de resistência, porque tentamos fazer dela uma ferramenta de promoção da cultura indígena, registro de nossos conhecimentos, divulgação de nossas crenças, ciências e filosofias, denúncias e reinvindicações de direitos acessam as políticas públicas. Como alguém que não seja indígena e não acredita em nossas verdades defenderá nossos valores? Como o racismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? No Brasil, o racismo é filho da ignorância e do desconhecimento. A educação e a literatura não deram a chance ao povo brasileira de conhecer as reais experiências produzidas pelos povos indígenas ao longo de milhares de anos. Pelo contrário, influenciadas pelas concepções coloniais, de negação e expropriação de territórios e bens culturais, forjaram imagens e concepções negativas, estigmatizando esses povos como gente primitiva, selvagem, feia, bêbada, esperta demais, 167

pitiú, suja, entre outros perjúrios – preconceitos hoje mantidos por políticos ligados à bancada ruralista, representante do agronegócio no Congresso Nacional. Sabemos que em setores específicos da economia e da política brasileira esses atos de negação e perseguição não são atos de antipatias, discordância e desarmonia entre indivíduos... É muito mais sinistro, pois são estratégias de poder e de controle social, cuja finalidade é o assédio sobre seus territórios e riquezas. Tratam como primitivos e dão a conotação de preconceito para escamotear e justificar a insaciável fome por madeira, minério e pastos. O estado nacional, em seus ideários de pacificar e integrar os povos indigenas à comum-união dos brasileiros, juntá-los aos coletivos de pobres e miseráveis nas cidades brasileiras, mantendo a política do “tutelamento” e da dependência, sem gerar a autonomia e a segurança que viriam com a demarcação e a homologação das terras indigenas. Infelizmente, a perseguição e a morte se acentuaram nos confrontos entre índios e não índios, poucas divulgados na mídia nacional e nas redes sociais; as elites, sobretudo a do agronegócio, mantém seus aparelhamentos bélico, militar e cartorial em seus projetos de extermínios. As estratégias vão do confronto direto, com assassinato e criminalização de lideranças indígenas, expulsão dos povos indigenas de seus territórios, cooptação de lideranças e desenvolvimento de projetos desenvolvimentistas a persuasão através de escolarização e projetos sociais. Esse é o quadro de fundo disso que recebe o nome de preconceito ou discriminação. Então, meus caros, escrever e divulgar, dentro desse contexto, é muito complicado. Lamentavelmente, chamar alguém de índio, na maioria dos lugares, ainda é uma ofensa de morte. Afinal, ninguém quer ser primitivo ou selvagem. Paradoxalmente a essa realidade, em outros contextos, ser indígena, pintar o rosto, colocar um cocar e colar, pintar a cara de urucum e jenipapo dá o maior ibope. Por isso é que se vê muita gente fazendo uso desses ornamentos, até altas autoridades políticas e literárias; outros se apropriam indevidamente, para ganhar prestígio e dinheiro, simbolismo que encanta boi e carnavais. Seria a literatura uma dessas passarelas? Depende de qual literatura estamos falando, quem fala ou de quem fala... Assim, o racismo ou preconceito atrapalha a Literatura Indígena? Depende do contexto, ou para que fim essas obras se destinem. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores indígenas no Brasil de hoje? Para quem mora no eixo Rio-São Paulo, nenhum, a não ser os problemas naturais de promover e divulgar as obras. O quadro de recessão econômica pelo qual passa o Brasil não é dos melhores e tem dificultado a publicação de novas obras e sua divulgação no país... Para nós, indígenas que vivemos na região norte do país, a situação é bem pior. Longe dos grandes centros, não temos visibilidade, não temos como publicar novos textos, não participamos das feiras nacionais, portanto, não vendemos... Há dois anos estamos tentando congregar um conjunto de escritores indigenas, através de uma associação denominada: Associação dos Escritores e Artistas Indígenas – Wewa’á –, na tentativa de articular e buscar apoios para publicação e divulgação de textos indigenas. Não é só uma questão de preconceito regional por parte dos promotores de incentivo à cultura, mas a falta de uma 168

política cultural, de produção de leitores, de incentivo à leitura nos estados e municípios... O Wewa’á tem por objetivo promover oficinas técnicas de leitura e produção de textos literários, promover intercâmbio entre escritores, realizar a feira do livro indígena no Amazonas – Flifloresta –, buscar canais de interlocução com os governos e editoras e negociar os textos escritos por autores indígenas... Você está escrevendo algum livro no momento ou possui projetos que envolvam outras linguagens? Escrever é nosso oxigênio, ou escrevemos ou morremos. Para nós, indígenas que vivemos na cidade, a escrita e a literatura são nossos tacapes e bordunas; ela realmente pode se tornar um instrumento de promoção e defesa de nossas culturas. Mas, como um animal feroz, a escrita precisa ser domada, trazida para o nosso convívio como uma parenta próxima. Por enquanto, ela é apenas esperanças, uma possibilidade que precisa ser mais bem apropriada, discutida, compreendida, para que seus efeitos ajudem a fortalecer nossos ideários coletivos enquanto povo e não estejam a serviço da colonização e da integração. Hoje estou escrevendo um texto denominado O Segredo do Mindu, que reflete a relação entre homem e natureza na Amazônia, traduzindo a ideia de que os dois polos são causa e efeito da mesma humanidade... Destaca-se que o Instituto Wewa’á promove shows, recital de poesias e exposição de artes indígenas, produção e venda de artesanatos. Como militante político da causa indígena, estou sempre envolvido com outras linguagens... Há séculos as populações ancestrais do Brasil resistem aos “projetos de morte” e lutam contra as tentativas de fragilizar a proteção ambiental das florestas. Atualmente, presenciamos o desmonte da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o massacre das populações indígenas, especialmente no Noroeste do país. No Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? São muitos temas, questões que hoje colocam a humanidade ocidental sob suspeição: e agora, Mané? Ou Melhor: “E agora, José / A festa acabou, / a luz apagou / o povo sumiu, / a noite esfriou, [...] José, para onde?”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, musicada pelo compositor e cantor brasileiro Paulo Diniz. As perspectivas são as mais catastróficas possíveis, que vão da crise do capitalismo, tecnologias e excesso de quinquilharias e lixo a uma possível terceira guerra mundial. Crises sociais e ambientais, controle e manipulação de todas as ordens, de genomas, células, sementes, princípios e valores, tudo relativizado sob a égide do capital e do mercado... Diriam os escatológicos: é o fim dos tempos. Neste momento em que escrevo estas palavras, escuto nos noticiários que mais um maluco, nos EUA, entrou em uma Igreja e fuzilou 26 pessoas. Outro dia, um outro maluco ateou fogo numa creche, vitimando crianças; matam-se jovens, crianças, mulheres, negros e índios. Naturalizou-se e nem assusta mais... Somos vítimas desse contexto de barbárie. Evidente que precisaríamos de mais tempo para tratar de tais questões. Posso dizer, sem medo de errar, que a humanidade chegou a esse estágio de extremos paradoxos porque os doutos da dita civilização nunca quiseram conversar e 169

ouvir os povos indígenas, nosso ancestrais, nossos sábios... Na verdade, amigos, a humanidade sempre foi assim, desde que o mundo é mundo. As muitas tentativas de controlar e enclausurar o ser humano e suas tendências nunca funcionaram a contento. Em algum momento, os elos que amarravam e orientavam comportamentos e convivências, nos territórios e temporalidades, foram sendo superadas pela ideia de individuo, de pessoa que a polis ou estado orientava, dominação e controle de seres sobre outros seres, esquizofrenicamente, até sobre a natureza, sem o medo de o céu desabar sobre suas cabeças. O asqueroso Tracoar dominou mentes e desejos. Faminto, extermina, quebra, envenena, queima, destroça, mata tudo que encontra a sua frente. Esse asqueroso verme tem o poder de encantar e persuadir, convencendo e carregando para sua enorme boca os desejos e esperanças. Os engolidos, por sua vez, são transformados em vermes menores e, excretados, contaminam outros, produzindo mais alimentos para as bocas grandes. Ou seja, no ocidente, aqueles que geram a violência semeiam divisões e desperdícios, germinam os desejos e a vontade de poder em suas crias, retroalimentando as condições e produções de suas espécies. Esse é um contexto de difícil solução, cuja solução levará algum tempo, certamente séculos para que se encontre alguma saída para se evitar males maiores. Os Povos Indigenas fizeram outras opções sociais, estabeleceram regras coletivas de convivência e sobrevivência, mantiveram-se vivos e prósperos ao longo dos séculos e continuamos nos reproduzindo, em que pesem todas as perseguições que continuamos sofrendo. Nossas questões não são essas trazidas pelo mudo civilizado, cartesiano, racionalista, científico e capitalista. Escolhemos outro caminho, outra forma de viver que não gerasse pobreza e miséria entre nós. Nossa existência é marcada pelo bem viver e pelo conviver. A expressão indígena andina Sumak Kawsay, que significa Viver Plenamente, tornou-se mundialmente conhecida como “Bem Viver” e expressa uma alternativa ao catastrófico desenvolvimento atual e às crises que hoje o homem e as mulheres enfrentam. A simplicidade do Sumak Kawsay vem dos seus princípios, que começam na vida cotidiana e acabam por mudar tudo, pois é o próprio sentido da vida, buscando “estar bem” com quem somos, com os que nos rodeiam e com quem nos nutre, a Natureza, que se expressa. Os 13 princípios da busca de equilíbrio são: saber nutrir-se do que é são, saber beber sentindo o fluxo da vida, saber dançar em conexão com o Universo, saber dormir entre um dia e outro, saber trabalhar alegremente, saber estar em silêncio meditativo, saber pensar com a mente e o coração, saber amar e ser amado, saber escutar a si, aos outros e à Mãe Terra, saber falar construtivamente, saber sonhar para ter uma melhor realidade, saber caminhar sentindo-se acompanhado pelas boas energias e saber dar e receber. Como é comum nas lógicas indígenas, a passagem de cada ser pelo mundo é vista em longo prazo e o sentido de comunidade é sempre presente. Honrar os bens comuns – sejam eles materiais ou sutis, como a água ou o ar, e os ritos e a cultura, é parte integrante do sentido da vida. Toda essa busca do essencial, desde as coisas mais simples, como os 13 princípios, até o vínculo sagrado com a Natureza, dá à vida um sentido de certo e errado, de importante e desimportante, que nos faz buscar a plenitude, naturalmente. O menos é mais e o simples é o caminho. O Bem Viver torna-se político quando expande sua lógica para o sistema 170

econômico, que deve ter bases comunitárias e ser orientado pelos princípios de solidariedade, de reciprocidade e de corresponsabilidade, tudo isso só sendo possível em processos políticos de participação plena, de decisões compartilhadas. As Constituições do Equador e da Bolívia, ao incorporarem a ideia do Bem Viver como base, inauguraram no mundo algo novo: os direitos da Natureza, onde os humanos não são o mais importante, mas mais um elo da Teia da Vida. Esse fazer parte, ao contrário de limitar nossa existência, a dignifica, por nos fazer ser aquilo que é nossa missão: jardineiros(as) da vida, cuidadores(as) da Terra. Escritores, poetas, ilustradores da boa vida. Nós, povos indígenas, continuamos balançando nossos maracás, realizando nossos rituais, parishara, tomando nosso pajuarú, nosso caxiri, comendo nossa damorida, fumando nossos cigarros, fazendo festas e batendo nossos pés no chão; com os braços levantados, tentamos segurar o céu, para ele não cair sobre nossas cabeças. Devemos também agora fazer literatura, decantar e encantar através da poesia, remédios para combater o feroz Tracoar, barbárie que come e destrói a própria espécie, a paz e a esperança no mundo. Vamos nos juntar e ajudar a segurar o céu para que ele não desabe sobre nós. Alguma consideração final? O antropólogo João Pacheco de Oliveira refere-se ao contexto atual dos povos indigenas no Brasil como povos do contato. Ele se refere a uma realidade já dita há muito tempo, de que não existem e nunca existiram povos “puro sangue”, sem influência e empréstimos culturais. Desde os primórdios, o contato “interétnico” é uma constante entre todos os povos, trazidos pelas guerras intertribais, relações comerciais e políticas. Fredrik Barth, na perspectiva da cultura, vai falar da etnicidade e fronteira étnica para compreender que somente no encontro entre as culturas é que se podem afirmar a identidade, as diferenças e especificidades. Isso para comentar que uma das maiores agressões que se fez ao povo brasileiro foi a tentativa de apagar as memorias e referências indígenas de sua cultura. O processo de embranquecimento e apagamento dessas memórias via aculturamento preconizava o afastamento da cultura primitiva e o surgimento de novas categorias regionais, como bugre, caboclo, ribeirinho e, mais recentemente, homens da floresta. Essas acomodações satisfizeram os defensores, que pregavam o fim da “raça indígena” via integração. Colocaram até a data dos anos 2000 como referência. Mas nada disso aconteceu e a história demostrou que era impossível exterminar os povos indigenas. Pelo contrário, muitos povos começaram a ressurgir e pedir o reconhecimento enquanto povos indigenas por todas as regiões do Brasil. Hoje já não se pode negar sua presença em todos os estados da federação. São muitas as contribuições que os povos indigenas têm ofertado à cultura brasileira na alimentação, no vocabulário, nomes de cidades, ruas, pessoas, escolas, na cultura material e espiritual, remédios, nas danças e festejos comunitários... Agregamos valores a um importante setor da economia das cidades, o Turismo, na produção e venda de artesanatos; geramos renda e riquezas. A literatura indígena tem que ter a missão, o compromisso de levar ao conhecimento da sociedade brasileira a existência e permanência desses povos 171

no território brasileiro, demostrando que são povos, nacionalidades com cultura e línguas diferenciadas, com ricas e interessantes experiências sociais, cheios de sabedorias, de filosofias e ciências que precisam ser socializadas com todos os brasileiros. Não somos pobres coitados, vítimas, ignorantes, miseráveis. Menos ainda, descendentes de culturas mortas, subcultura, folclore, lendas, magia. Não somos canibais, feras, bêbados e intrusos. Somos povos, gente, inteligente e perspicaz como qualquer ser humano. Não somos índios ou indígenas, somos povos Ticuna, Povo Kaigangue, Povo Wapixana e Povos Macuxi, Povo Tuyuka, que segundo dados do Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 2010 são de 896,9 mil indígenas, representando 305 povos, com cerca de 274 línguas faladas.

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Erlon José Paschoal Nasceu em São Paulo (SP), em 1953. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em junho de 2018.

Você é um artista que transita por muitas linguagens e sempre atuou em diferentes frentes da cultura: dramaturgia, tradução, magistério e gestão cultural. Como essas facetas dialogam no seu dia a dia? O diálogo entre elas tem influência sobre a sua escrita? Quais são os trânsitos entre áreas e as opções formais que norteiam seu projeto estético? Tive duas formações que se desenvolveram paralelamente. Frequentei uma escola de teatro em São Paulo, porque pretendia me tornar ator, e estudei Letras Português-Alemão na USP, motivado pela montagem de um texto de Bertolt Brecht que ocorreu ao término do curso de teatro, no final dos anos 70, no qual fiz o personagem principal. Tratava-se de O Preceptor, um texto muito pertinente na época, pois colocava em debate o papel social do intelectual, do professor, em um regime de cerceamento das liberdades individuais. Brecht havia adaptado o texto da obra homônima de J.M.R. Lenz, publicada em 1774. Essa obra, aliás, foi minha primeira experiência de tradução, lançada pela Editora Paz e Terra, com estudos críticos e materiais para uma montagem, além de um quadro comparativo com a adaptação feita por Brecht em 1950. Um de meus professores na universidade, Willi Bolle, tinha um interesse especial por esta obra e, quando soube de minha experiência de encenação, propôs que fizéssemos o trabalho em parceria. O livro foi publicado em 1983 e abriu caminho em minha vida de professor de língua portuguesa e literatura no segundo grau e de montagens teatrais como ator e diretor, para mais uma tarefa que se mostrou logo de início desafiante e prazerosa, e que se adequava às minhas outras atividades e até mesmo as completava, pois era possível perfeitamente administrá-las, por serem compatíveis, e dividir o meu tempo de modo a poder dar conta de tudo, quando necessário. Nos anos seguintes passei a lecionar também a língua alemã e disciplinas diversas em cursos de teatro, tais como Interpretação, Literatura Dramática e História do Teatro. Com o tempo, traduzir, ensinar, orientar, montar, ler, escrever e encenar passaram a ser a minha profissão, como ações que se superpunham, se complementavam e se influenciavam mutuamente. Mais adiante agreguei uma nova função – a de gestor público na área da cultura –, por força das circunstâncias, das causalidades, que muitas vezes norteiam nossa vida, e por interesses pessoais. A produção cultural em um país tão desigual e em uma realidade muitas vezes adversa me impulsionou a buscar formas de elaborar e efetivar políticas culturais mais amplas, mais estruturantes e mais democráticas. Pude colaborar em projetos significativos na História recente do país, sobretudo atuando no município, no Estado e no Ministério da Cultura. Após 2003, a Cultura passou a ser considerada pela administração pública uma das áreas estratégicas de desenvolvimento, na medida em que fortalece as tradições, a capacidade criativa, o equilíbrio das relações sociais e os impulsos inovadores de uma comunidade, de um Estado e de um país. Ficou evidente 173

que o conceito de desenvolvimento calcado única e exclusivamente em índices e dados econômicos era unilateral e insuficiente para fazer frente à complexidade da vida moderna. Movido por essas ideias e concepções, fui me aperfeiçoando e me aprofundando cada vez mais neste mundo estimulante de projetos e ações de largo alcance social. Afinal, as necessidades humanas de agregação e manifestação individual e coletiva de sonhos e de reflexões sobre a vida em todas as suas dimensões, através de linguagens artísticas, impõem-se hoje de forma tão imperiosa quanto a agenda ambiental fundamentada no equilibro sustentável e em uma visão responsável do futuro. Contribuí também, nestes anos todos, de 1996 até hoje, para a fundamentação do potencial de geração de trabalho e renda da atividade artística e criativa, tema de políticas específicas em todo o mundo, área conhecida hoje como economia criativa. Aliás, continuo acreditando que a cultura tem um papel estratégico na construção de um Estado socialmente mais justo e igualitário. Não é algo meramente decorativo, ornamental, mas a base da elaboração e da revalorização da identidade, fundamental para o desenvolvimento socioeconômico e capaz de gerar trabalho, redistribuir renda e atrair capitais para o Estado, sejam eles econômicos, culturais ou sociais. Você já traduziu obras de autores como Lutero, Goethe, Hölderlin, Schopenhauer, Kafka, Klaus Mann, Heinrich Mann, Woyzeck, Ernst Cassirer, Brecht e Thomas Bernhard, entre outros. Que concepção de tradução orienta seu trabalho? Até que ponto é realmente possível traduzir? Que experiências se tira de traduzir textos de literatura e filosofia, por exemplo, entre idiomas de culturas tão diferentes quanto o são o português e o alemão? Nesta minha trajetória já traduzi em torno de 40 obras, publicadas por editoras diversas. Para muitos, o tradutor não passa de um simples decodificador passivo, que deve se submeter ao autor em função de um conceito de obra original, com uma aura quase sagrada. Vale lembrar que os conceitos de autoria e o de originalidade literária são, por si só, temas complexos e relativamente recentes, remontando fundamentalmente ao século XIX. Nesse contexto é importante ressaltar que o tradutor literário é também um autor, o autor de sua própria tradução, uma autoria garantida pela lei de propriedade intelectual. O conceito de tradução se modificou através dos séculos, mas sempre oscilando entre dois polos: o da fidelidade ao texto e o da interpretação do tradutor. São conceitos curiosos, bem semelhantes aos de uma relação afetiva: ou você é fiel ou comete traição, traindo o autor ao se envolver com outras palavras. Daí que a falsidade, a traição e a infidelidade seguem sendo até hoje os piores crimes do tradutor. Mas ao longo dos anos aprendi o óbvio: só podemos traduzir o que compreendemos, num exercício profundo de assimilação e recriação de concepções, numa tentativa ousada e desafiadora de expressar outros mundos em nossa língua. A verdade provavelmente está no meio-termo, porque todo tradutor oscila também, grosso modo, entre dois polos: a modéstia, própria de sua posição de servidor, de submisso, de escritor oculto atrás do grande autor, e o orgulho produzido pela consciência de sua condição de criador, de alguém que produziu uma obra própria. O ideal pretendido, sem dúvida, é manter sempre um equilíbrio entre es174

ses dois extremos. Para Goethe, traduzir é um mal necessário para a evolução da própria humanidade, e o impasse de quem traduz é constatar que a tradução é impossível, porém necessária. O fundamental, obviamente, é conhecer bem as duas línguas; e não apenas no sentido técnico-gramatical, mas ter sensibilidade para captar o espírito (Geist), a alma da língua. É preciso acima de tudo ser um bom leitor e um bom escritor, mesmo que jamais se publique um livro. Para Guimarães Rosa, traduzir é conviver, e poderíamos acrescentar: é compartilhar a autoria, é sentir-se co-criador das situações e dos personagens que compõem a obra e, sobretudo, das opções feitas para expressá-los. A todo momento, aliás, o tradutor se vê forçado a tomar decisões, a fazer escolhas que determinarão a qualidade e o estilo final da obra. Para isso, é preciso também bom gosto, criatividade e um profundo senso de responsabilidade. O mais difícil será sempre traduzir o indizível, o não-dito, a alusão, a metáfora, reconstruir e fazer sua a grande viagem da literatura advinda de outra cultura, de outra língua. Assim, temos de nos envolver inteiramente com cada texto, temos de gostar dele, de fazê-lo nosso enfim, mas sem jamais querer corrigir o autor, nem melhorá-lo, e muito menos explicá-lo. Toda tradução tem uma vida curta; enquanto a obra vive para sempre, a tradução dura no máximo algumas gerações. De qualquer modo, toda tradução, para mim, é um grande desafio. Ao sentar-me diante do original com a missão de vertê-lo na minha língua, tenho sempre a sensação de que serei incapaz de realizá-lo, mas, ao chegar ao fim, além do alívio, sinto o prazer de ter conseguido unir um pouco mais duas culturas, contextos e sensibilidades tão diferentes que acabam assim se ampliando, se enriquecendo. Nós trabalhamos sempre num terreno limítrofe, lidamos a todo momento com a impossibilidade, tentamos dizer o indizível, repetir o irrepetível com outros códigos linguísticos e culturais. Para isso é preciso muita obstinação, paciência e coragem, além de sensibilidade literária. Recorro por fim a Jorge Luis Borges, que, em uma palestra feita na USP em agosto de 1984, afirmou que “Não há diferença entre escrever e traduzir, já que a única boa tradução é aquela feita por um escritor. A tradução literal é a mais infiel de todas, pois dá somente o sentido, e não o essencial, que é a linguagem, o ambiente das palavras e, sobretudo, as cadências, o ritmo. Portanto é preciso haver uma recriação do texto ou, talvez, uma criação diferente, mas que também seja única.” Entre as décadas de 1980 e 1990 você escreveu, dirigiu e atuou em um bom número de peças de teatro (algumas delas em parceria com Margareth Galvão) em Vitória, onde vive até hoje. Fale um pouco sobre como você percebia a vida cultural na capital do Espírito Santo naquele tempo de abertura política e de lutas pela reconquista de um estado de direito. Havia uma maior efervescência cultural? Quando, no final da década de 80, cheguei a Vitória vindo do Rio de Janeiro, onde tive o prazer de morar por algum tempo, deparei-me com inúmeras surpresas agradáveis. Uma delas foi conhecer o Teatro Carlos Gomes, o primeiro espaço cultural que visitei na cidade. Num dia comum, à tarde, solicitei aos responsáveis permissão para percorrer os espaços internos no teatro. Deslum175

brei-me com a simplicidade e a beleza arquitetônica do conjunto. Caminhei lentamente pelo palco e parei por algum tempo ali, em silêncio, tentando imaginar o quanto aquele espaço guardava de vida, quantas situações humanas já haviam sido representadas sobre aquele piso de madeira. Os palcos dos teatros mais antigos possuem sempre uma aura especial e mantêm uma atmosfera de intensidade emocional raramente encontrada em outros ambientes. Nesses momentos entendemos a origem ritualística e sagrada da atividade teatral, além da magia da metamorfose do ator. Lembrei-me, ali, da bronca dada por Pina Bausch em dois indivíduos, alheios ao ensaio, que riam e falavam alto no palco do Teatro Municipal de São Paulo, em certa ocasião. A renomada coreógrafa alemã exigiu silêncio e respeito naquele espaço que é, ao mesmo tempo, de exibição total e de extrema intimidade, onde o falso e o verdadeiro se fundem numa harmonia lúdica mantida inalterada ao longo de milênios. Anos depois tive o prazer de pisar novamente o palco do Teatro Carlos Gomes, ora como ator, ora como diretor ou coordenador de Teatro da Escola de Teatro e Dança Fafi, em peças marcantes para todos os envolvidos – atores e público –, tais como Atrás da Vitória e Ainda bem que aqui deu certo, ambas escritas em parceria com Margareth Galvão; a ópera Dido e Enéas, de Henry Purcell; As cadeiras, de Eugène Ionesco; O muro, de Silvio Barbieri, Gianni Schichi, de Puccini, entre outras, e em eventos culturais diversos, como gestor cultural e como diretor da FAMES. O teatro sempre foi, para mim, um local de diversão, entretenimento, trabalho, exercício lúdico e encontro com as forças criadoras, seja no palco ou na plateia. Diferentemente do cinema, por exemplo, no teatro o público participa ativamente do ritual e compartilha sensações e conhecimentos mediante um contato transformador direto, sem intermediários, quando se trata de um um bom texto e de um bom espetáculo, feito por bons atores, é claro. Desde o final da adolescência, o teatro é parte integrante de minha vida, primeiro como ator, depois como diretor, dramaturgo e professor. Portanto sair de casa, ir ao teatro, sentar-me na penumbra daquele espaço mágico, ser capaz de apreciar a beleza implícita na metamorfose do ator, comover-me com a precisão de seus gestos e a leveza de seus movimentos, exercitar a sensibilidade, o raciocínio e o senso crítico, tudo isso foi e continua sendo, para mim, uma experiência prazerosa, intensa, instigante, estimuladora do convívio social e absolutamente insubstituível. A princípio, após meus primeiros anos em Vitória, onde cheguei em 1987, me ressenti da falta de equipamentos culturais e de espaços de troca de ideias e experiências entre produtores e criadores afins, além da quase ausência de material crítico sobre o que se produzia. O fato é que se lançavam livros, montavam-se peças, apresentavam-se shows, faziam-se exposições, gravavam-se CDs, rodavam-se filmes, organizavam-se concertos, festivais... e não havia nenhuma discussão, nenhuma avaliação crítica, nenhuma repercussão efetiva, como se a arte não passasse de uma atividade desprovida de sentido e de finalidade, incapaz de gerar riquezas em todos os sentidos, de contribuir efetivamente para o aperfeiçoamento das relações sociais e para a evolução espiritual do povo. Afinal, o exercício do senso crítico é fundamental para o desenvolvimento cultural de uma comunidade. Em meio a tudo isso, percebia também um fenômeno curioso: as pes176

soas com uma formação cultural significativa – profissionais liberais, professores, publicitários, jornalistas etc. –, e sobretudo os artistas, de maneira geral, não cultivavam a arte local, chegando muitas vezes até mesmo a menosprezá-la, reproduzindo, portanto, mesmo que involuntariamente, a postura habitual de nossas elites político-econômicas. É óbvio que o elogio indiscriminado a tudo o que é local denota, além de ignorância, um ufanismo patético e anacrônico. Por outro lado, às vezes realmente é difícil distinguir os amadores dos profissionais, os oportunistas dos competentes, como em qualquer outra atividade. Mas não ver valor em nada, nem em ninguém, absolutamente não corresponde à verdade; ignorar permanentemente o que se produz a nossa volta também não é uma atitude sensata. Ora, um artista que não consome o produto artístico e nem estimula através de seu comportamento a prática da arte é algo que merece uma reflexão. Segundo os chineses, as condutas corretas se disseminam numa sociedade através de exemplos que, com o tempo, passariam a ser seguidos por uma parte cada vez maior da população. Afinal, o mínimo que se espera de um artista é que ele valorize a arte. Além disso, um “movimento cultural” só se torna possível mediante o intercâmbio constante e a integração de todos os criadores culturais de uma dada comunidade, em nome de um objetivo comum, independentemente de suas singularidades e opções. Havia também uma preocupação excessiva com a “identidade”, algo que, para mim, nascido em São Paulo, nunca havia sido uma questão a ser discutida continuadamente. Tinha a impressão de que se assemelhava a um sentimento de inferioridade que acabava determinando também os juízos de valor da maioria das pessoas, sempre depreciando e menosprezando as criações locais. Ora, a consciência da própria identidade – pessoal, étnica, cultural – pressupõe a consciência daquilo que nos diferencia de outras pessoas, outras etnias, outras culturas. Não se trata de conservá-la tal como foi ou é, mas de garantir que continue existindo e se transformando, pois ela se fundamenta na inovação, na criatividade e na assimilação contínua de inúmeras influências. Não é apenas herança do passado, mas um projeto de presente e de futuro. Essa lacuna, como traço da cultura local, acarretava consequências negativas para quem precisava ser reconhecido em sua própria comunidade para poder alçar voo. Isso é algo que infelizmente se mantém, em maior ou em menor grau, até os dias de hoje. De qualquer modo, o que melhor caracteriza a identidade é a sensação de fazer parte de um grupo, de compartilhar com ele muitas coisas em comum. Portanto, a identidade não é algo a ser “encontrado”, mas a ser constantemente construído. Ou seja, o maior desafio é participar do desenvolvimento global sem perder as suas próprias raízes culturais. Percebia por fim com certo desapontamento que o consumo, a fruição do produto artístico era algo cultivado por poucos na cidade e no Estado, e que não havia na gestão pública quase nenhum interesse em se investir na mudança desta realidade pouco sensível à arte. Vale mencionar que havia em Vitória na época dois equipamentos culturais muito receptivos e importantes, duas referências marcantes da cena cultural: o Centro Cultural Carmélia M. de Souza, que com o passar do tempo foi sucateado e infelizmente se encontra fechado até hoje, e a Escola de Teatro e Dança Fafi, com seus cursos de qualificação profissional, diversas oficinas e inúmeras atividades artísticas, sempre repletas.

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O que mudou dali por diante, no que toca, por exemplo, aos anseios, por um lado, e aos apoios, por outro, a que se desenvolva em Vitória um projeto relacionado ao teatro ou a outras artes, como a música, o cinema, a literatura? Como sabemos, o Estado do Espírito Santo era praticamente dominado pelo crime organizado até 2003, o que acabava determinando também a quase inexistência de políticas públicas abrangentes e inclusivas, sobretudo na área da cultura. Houve, depois disso, a tentativa de se construir uma sociedade democrática e mais igualitária, com ênfase na diversidade cultural e nas possibilidades de se implementarem políticas públicas que a valorizassem e a fortalecessem. Ora, um dos traços mais marcantes do Espírito Santo é justamente a formação múltipla, multifacetada, em função das inúmeras etnias que se encontram na base de sua história e de sua configuração como Estado. Assumir a diversidade, portanto, é assumir a própria condição de existência, a história e as heranças, a maneira de ser, de pensar e de agir e, obviamente, as contradições, que são, no fundo, a mola propulsora que impulsiona o indivíduo e as comunidades a transformar e a recriar os seus valores e o seu universo simbólico, a partir de linguagens e manifestações culturais das mais diversas origens e matizes. Num mundo globalizado, no qual prevalece o poder econômico em todas as suas ramificações, é imprescindível e necessário criar mecanismos de defesa da diversidade humana e cultural, fonte da beleza e criatividade, e do prazer de se viver em sociedade. Depois de mais de uma década extremamente rica em políticas públicas e em investimentos em projetos estruturantes e abrangentes, com consequências bastante positivas para o fortalecimento e a evolução das atividades artísticas e culturais – por exemplo: projetos públicos como a Rede Cultura Jovem, Cultura Presente, a criação e a implementação do Fundo Estadual de Cultura, o Programa de Desenvolvimento da Cultura Capixaba, Mostras permanentes de Audiovisual, uma política de Editais ampla e permanente, o Catálogo de Música do ES e a aprovação dos Planos Municipal e Estadual de Cultura, ao lado de festivais de teatro, dança, música e cinema com relevo para a parceria público-privado –, o país, o Estado do ES e a cidade de Vitória entraram em um processo de desmanche e sucateamento dos investimentos na área da cultura e queda na produção artística, como um dos resultados nefastos do golpe jurídico-midiático desferido em 2016. Temos em Vitória, por exemplo, inúmeros equipamentos culturais desativados ou completamente deteriorados, como o Forte São João e o Clube Saldanha da Gama, o Mercado da Capixaba, o Edifício das Fundações (com o térreo ocupado pela Galeria Homero Massena) e o antigo Arquivo Público na cidade Alta, o antigo Hotel Majestic, o Teatro Galpão, o Cais das Artes, com obras inacabadas, a Fábrica de Ideias e o Centro Cultural Carmélia M. de Souza. Em compensação a cidade ganhou dois novos espaços importantes: o Centro Cultural SESC Glória, com uma programação permanente em várias linguagens artísticas, e o Palácio da Cultura Sônia Cabral. E, infelizmente, as perspectivas imediatas não são as melhores. O momento agora é de retomada de temas, propostas e ações relevantes para a recuperação da prática democrática e da ênfase na atividade cultural como sendo fundamentais para o desenvolvimento do país. Afinal, as artes e a cultura são fatores de aprimoramento social e econômico, e revelam sobretudo o manancial criativo do universo simbólico de um povo. A cultura tem assim um papel 178

estratégico na construção de um Estado socialmente mais justo e igualitário. Não é algo meramente decorativo, ornamental, mas a base da elaboração e da revalorização da identidade, fundamental para o desenvolvimento socioeconômico e capaz de gerar trabalho e redistribuir renda. É no universo da cultura que se encontram os elementos estratégicos para entender o movimento das sociedades, para requalificar as relações entre as pessoas, para o crescimento de cada um de nós no tempo e no espaço, e também para projetar novas utopias. As condições atuais do país exigem de todos nós um trabalho árduo e constante para manter as conquistas feitas no setor cultural ao longo da História e assim projetarmos coletivamente uma cidade, um Estado e um país que acreditamos ser o melhor e o mais justo para todos. São bastante reconhecidas as relações do teatro com a política, no sentido mais amplo do termo. No seu modo de ver, que papel teriam, no atual momento de crise política, de valores e de ameaça ao estado democrático de direito, os diversos “atores” envolvidos com o teatro? O que pode verdadeiramente a arte em momentos de resistência? De fato, é praticamente impossível separar o teatro da atividade política. Na Grécia antiga, o teatro ocupava o espaço público por excelência, visando à abordagem e à discussão de temas relevantes para a vida social e para a polis. Brecht, no início do século XX, fez do teatro um espaço de discussão política e de transformação da sociedade. Ambicionou fazer do teatro uma das formas mais eficazes para a educação crítica e social do homem, não só nos espaços destinados aos espetáculos teatrais, mas também em escolas e instituições similares. Antonin Artaud e mais tarde Grotowski idealizaram o teatro como um laboratório de exposição da alma humana, com todas as suas contradições. Para esses e tantos outros encenadores, o teatro seria então o espaço da celebração social, do compartilhamento lúdico de ideias e sensações. Assim, a possibilidade de transformação inerente a ele contagiaria os espectadores e exaltaria a sua percepção de ser social. Nas décadas de 60 e 70, inúmeros grupos colocaram em cena a realidade social e política brasileira, tornando os palcos uma ágora de reflexão acerca de nossos caminhos e descaminhos. Na última década, a retomada do teatro grupal e dos coletivos artísticos, sobretudo em São Paulo e Minas Gerais, deu novo fôlego a essa atividade milenar, redimensionando-lhe a força e a complexidade estética. Um efeito procurado hoje pelas produções teatrais é causar um certo desconforto no público, um distanciamento crítico das referências à realidade circundante presentes na representação. Há ainda outra via através da qual esse mesmo efeito é alcançado: espetáculos que se utilizam da intersecção de diversas formas de expressão artística, propondo um diálogo entre formas de expressão diversas. Isso vale também para a mescla de gêneros no teatro moderno, no qual o trágico se mistura com o cômico e com o grotesco, o cômico com o dramático, o dramático com o farsesco e assim por diante, sem fronteiras definidas. Hoje, em nosso mundo globalizado e interconectado, repleto de barbáries e genocídios, onde o trágico é sempre contaminado pelo grotesco e o cômico pelo riso fácil, é preciso reconstruir a percepção dessas duas perspectivas de se confrontar com a vida. Com as novas mídias e os mundos virtuais, o teatro ocupa ago179

ra um espaço diverso na sociedade moderna. Vivemos um momento de reconstrução de sua função nesta sociedade com tantas ofertas de consumo. Afinal, se não se tornar um local de reflexão sobre a existência e as possibilidades de mudança da vida e da sociedade, mesmo para um pequeno público, acabará sendo consumido como um entretenimento vazio, feito com técnicas apuradas e embrulhadas para presente por novas tecnologias a seu serviço. Vitória, por sua vez, tem pouca tradição teatral. A importância dada à atividade teatral por parte da maioria é quase imperceptível. As possibilidades de estudar, se formar e se aprimorar nessa atividade, é menor ainda em todo o Estado. Muitos o veem como fruto da vaidade supérflua de uns poucos, ou talvez como uma atividade obsoleta, que nada tem a ver com a economia de mercado, base da vida moderna. Aqui, o teatro é praticado por poucos e visto por uma minoria. Sua importância social é muito pequena, embora possa cada vez mais se tornar um local de estímulo à reflexão sobre a realidade social. Para isso falta, sobretudo, o interesse por temas de relevância política e de abordagem crítica das relações sociais. Como o país ingressou em uma bifurcação perigosa de desmanche do Estado de Direito e de criminalização de movimentos sociais e da arte dita engajada, é preciso, mais do que nunca, criar, produzir, encenar, escrever e refletir sobre este momento histórico de declínio, de banalização das atitudes cínicas e canalhas na condução da vida pública. O Brasil continua tendo como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e a outras artes, o que coloca como imperativa a tarefa de educar e formar público. Você tem experiências múltiplas nas áreas de gestão e produção cultural, com passagens pela Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Vitória, Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo e Ministério da Cultura do Brasil, tendo atuado, neste último, como Coordenador de Projetos Internacionais. O que mudou, de lá para cá? Haverá, hoje, perspectivas nessa área? Quais são as dores e as delícias de se trabalhar com política cultural em nosso país? Na realidade houve avanços expressivos nas duas últimas décadas e retrocessos profundos nos dois últimos anos. Há pressupostos na gestão pública da cultura que devem nortear a execução de políticas, programas e projetos. Afinal, uma sociedade que ambiciona modernizar-se e evoluir não pode dar-se ao luxo de desconhecer a importância e a necessidade do incentivo à atividade cultural, em todos os seus níveis e setores. Portanto, cabe à administração pública estabelecer diretrizes gerais que promovam, em curto e longo prazos, a emancipação cultural do município. Somente por meio de metas objetivas e consistentes, de medidas efetivas, é possível desenvolver uma vida cultural autônoma, que esteja em sintonia com o mundo, mas dotada, ao mesmo tempo, de forças e características próprias. Além de gerar avanço social, de estimular o espírito crítico, de fomentar a criatividade e disseminar o senso de justiça democrática, na medida em que assegura a todos o direito de acesso aos bens simbólicos produzidos pelo conjunto da sociedade, a atividade cultural gera riqueza e emprego. A indústria do entretenimento está entre os cinco maiores agentes econômicos do mundo moderno. A produção artística será, no próximo século, uma das megatendências, que terá 180

não só uma enorme importância econômica e social, mas será também o elemento diferenciador da imensa quantidade de etnias e povos existentes num planeta globalizado. É preciso então preparar-se para o futuro, adequar-se às exigências impostas pelo avanço tecnológico acelerado e pelo encurtamento cada vez maior das distâncias, e qualificar-se para atuar nesse novo quadro de maneira apropriada e competente. Sem dúvida, todas as mudanças profundas e de caráter duradouro necessitam de tempo para se efetivarem, sobretudo no caso de uma cidade com contradições e contrastes tão evidentes como Vitória, e como talvez a maioria das cidades brasileiras. Portanto, seria pertinente investirmos a nossa energia na elaboração, no planejamento e, obviamente, na execução de ações culturais que criem condições favoráveis para a produção e o consumo da arte; que valorizem a sua própria história; que fomentem a participação de todos os setores da sociedade e assegurem aos indivíduos o direito de se exprimirem. Cultura é um processo vivo que se faz em conjunto e para o qual cada cidadão e cada grupo social contribui com suas ações e atitudes. Da confluência de propósitos é possível forjar a nossa evolução cultural e levar o município a ocupar o lugar que lhe compete no cenário nacional. Tudo o que se fez em Vitória nos últimos anos é muito, se comparado ao descaso com que comumente foram tratados os setores da Cultura e Educação em nosso país no passado, mas é pouco, se confrontado com as reais necessidades e carências da maioria da população. Aliás, é inconcebível que no mundo moderno estes dois setores tão afins – cultura e educação – atuem de maneira tão desintegrada como até agora, sem quaisquer programas conjuntos. Há, portanto, muito a ser feito e um longo caminho a ser percorrido para que se possa recuperar o tempo perdido e incluir o maior número possível de pessoas num processo de avanço cultural que se impõe como condição básica de sobrevivência, num mundo cuja principal moeda corrente, no futuro, será o produto cultural, resultado da criatividade, do discernimento e das aptidões de cada povo e de cada comunidade. Vivenciamos, nas últimas décadas, o início de um processo de mudança de paradigmas e de metas. Uma dessas mudanças foi inverter a lógica da exclusão – não apenas dar um prato de comida a quem tem fome, mas trabalhar objetivamente para que milhões de brasileiros que viviam à míngua também tivessem acesso àquilo que consideramos essencial para o desenvolvimento humano e a construção de um cidadão: boa educação, assistência médica básica, infraestrutura mínima no tocante à moradia, possibilidades de se manifestar e produzir culturalmente. Dentre as inúmeras formas de emancipação, de atividades que visam à socialização do indivíduo, uma das mais efetivas, das mais prazerosas, das mais agregadoras é, sem dúvida, a atividade artística. A longa experiência com a produção e a gestão cultural me faz inevitavelmente voltar sempre ao mesmo tema: a transversalidade da cultura e sua importância para o desenvolvimento humano e social neste século. Como sabemos, cultura é um processo contínuo de transformação e desenvolvimento no qual cada indivíduo, cada comunidade retrabalha seus valores e recria seu universo simbólico a partir de linguagens e produções herdadas de seus antepassados e/ou criadas por seus contemporâneos. A gestão pública da cultura precisa, por isso mesmo, estar preparada para formular e executar programas que abranjam setores e temas 181

fundamentais, como o fomento e o acesso à produção da cultura, a economia da cultura, a diversidade e a riqueza de expressões. A arte, em todas as suas modalidades, deve ser considerada, nesses programas, como uma força mobilizadora capaz de desenvolver a criatividade, gerar riquezas simbólicas e materiais e promover a inclusão social. Há quase sempre uma dificuldade estrutural em instituir tais programas, na medida em que a administração pública se constitui quase sempre de estruturas de poder compartimentadas e quase autônomas. A transversalidade e o conceito de governabilidade, voltado para o bem público a partir da consideração das questões imediatas e futuras, é novo no Brasil, pelo menos na prática. Prevalece ainda a ideia anacrônica do poder personalizado, onde o que importa são os donos das propostas, e não a importância e a execução dos programas. Isso obviamente torna difícil a concretização de ações transversais, que, por sua vez, pressupõem uma mudança de postura, decisões compartilhadas e disposição para a mudança efetiva e profunda, não apenas de fachada e de nomenclatura. Os investimentos públicos ainda precisam ser mais bem qualificados, a fim de poderem atender às demandas do mundo moderno, sobretudo num país com tantas contradições e com um fosso de apartheid social gigantesco como o nosso, no tocante à distribuição de riquezas e de conhecimentos. O gestor público é um promotor e um agente de mudanças, na medida em que tem de executar políticas que são o resultado do estudo e da observação do meio social e da população, a cujo serviço ele está. Parece utópico afirmar isso num país com uma classe dirigente muitas vezes ligada a crimes e falcatruas – com inúmeras exceções, é verdade –, e tão distante do bem comum e da necessidade de implementação de programas abrangentes de desenvolvimento humano, social e econômico. A questão da ampliação do acesso à produção e à fruição cultural continua sendo um tema fundamental nas políticas culturais, em um país democrático. Infelizmente o país passa agora por um retrocesso, de desmanche acelerado e de desconstrução veloz de inúmeras políticas inclusivas. Nesse sentido, o trabalho será ainda maior para as gerações futuras. A qual dessas áreas de atuação arroladas acima você tem se dedicado atualmente? Em quais desejaria atuar mais? Está escrevendo algum livro no momento? Tem traduzido? Há projetos para a área cênica? Tenho me dedicado à gestão de projetos culturais através de um Instituto localizado em São Paulo, oficinas e palestras variadas nas áreas de teatro e literatura, pequenas traduções (fiz há pouco a tradução de dois contos constantes no livro Sete x Um, lançado pela Editora Cousa), muitas leituras sobre História, Economia e Sociologia, numa tentativa talvez vã de entender melhor o Brasil, e me ocupo também com a escrita de uma peça teatral, A Reforma. Escrever para teatro não é uma tarefa fácil. A dramaturgia, o texto escrito para ser encenado, tem se transformado significativamente, ao longo das últimas décadas. As influências são diversas, sobretudo se considerarmos que a dramaturgia reflete o comportamento humano em seus mais variados matizes. Para o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, o teatro deveria não somente reproduzir a realidade de uma determinada época, mas sobretudo estimular no espectador novas 182

percepções da realidade e reflexões que o levassem a transformá-la. Para isso, o autor poderia servir-se também de textos clássicos, sempre atuais por sua força de tradução do imaginário do homem ocidental. Reconstruir o diálogo com o público em um mundo repleto de alternativas de entretenimento, lazer, novas mídias e consumo artístico é, sem dúvida, o grande desafio da dramaturgia atual. Mas de qualquer modo as cenas vão se sucedendo em um cenário de ruínas, escombros e construção no qual a reforma física vai se consolidando como uma metáfora de todas as reformas de que o país e a nação brasileira necessitam. Por fim, preparo o projeto de encenação de um texto meu já publicado, “Roda da Fortuna”, parte integrante do livro O Mendigo e O caçador e Outras Peças, que lancei em 2000 pela Editora Flor&Cultura. Trata-se de um espetáculo de 75 minutos de duração, repleto de surpresas, sensualidade e bom humor. Os personagens centrais – Darlene e Reinaldo – cantam, dançam e entretêm o público com uma história inteligente, criativa e bem-humorada. Em sua luta incessante para se livrar dos fantasmas do passado, Darlene reencontra Reinaldo e a verdade reaparece de maneira surpreendente. “Roda da Fortuna” é um texto atual e moderno, dotado de uma estrutura dramatúrgica dinâmica e de uma leveza que conduz o público a se divertir, sem fazê-lo parar de pensar. O cinismo, a hipocrisia e a desfaçatez dos personagens, proferindo suas mentiras sinceras, remete a inúmeras personalidades da vida pública brasileira e estimula no espectador a busca de valores éticos necessários à convivência humana saudável, em contraposição à vileza de caráter ostentado pelos dois personagens. A moral hipócrita, o descalabro na vida pública, a falta de solidariedade, a predisposição ampla e irrestrita à corrupção, os escândalos nossos de cada dia, a inadimplência ética divulgada em suas várias modalidades pela imprensa que, por sua vez, está comprometida até o pescoço com toda sorte de tráfico de influências da pior espécie, sem falar no incesto e nas tragédias farsescas desencadeadas pelo instinto sexual. “Roda da Fortuna” estimula a reflexão sobre todos esses temas de maneira sutil e divertida, dando assim ao teatro capixaba uma dimensão nacional. Espero enfim conseguir montá-la neste ano. Que autores você tem lido? A partir de um recorte pessoal, que escritoras ou escritores recomendaria a quem quer ampliar o conhecimento do que se vem produzindo atualmente na literatura brasileira? No último ano tenho lido muitos livros de Sociologia e História, em uma tentativa de compreender melhor as mudanças e os retrocessos ocorridos na realidade brasileira após o golpe de 2016. Neste ano vivenciamos um golpe brando, baixo, sujo, cruel, desferido por quadrilhas de bandidos diversos, envolvendo políticos, juízes, empresários e a mídia hegemônica sórdida, manipuladora e mau caráter. Ao contrário do anterior, este golpe foi acompanhado de perto por toda a mídia internacional e por todo cidadão brasileiro que se interessa pelo futuro de seu país, através das redes sociais e das agências de notícias alternativas. Esta nova conjuntura, aliás, faz uma enorme diferença entre os dois golpes, pois a desfaçatez, o cinismo, a hipocrisia e a arrogância infame dos golpistas atuais puderam ser acompanhados online em todos os seus detalhes, ficando assim registrados para as futuras gerações. 183

No momento presente, a coisa pública parece ter se tornado um grande manancial de despojos dos quais todo tipo de pessoa da pior espécie quer se apropriar: de juízes infames a pastores bandidos; de empresários inescrupulosos a políticos corruptos, oriundos de algum filme de terror de quinta categoria. É assombroso como muitos dos que usurparam a presidência e o governo se comportam: mais parecem gângsteres, agindo com empáfia e sem qualquer pudor de mostrar suas intenções malignas e nocivas ao desenvolvimento igualitário do país. Valores como “igualdade social”, “desenvolvimento regional”, “justiça social” e “democracia para todos”, entre outros, parecem ter sido jogados na vala crivados de balas. Neste contexto li a obra Brasil: uma Biografia, de Lilia Schwarz e Heloisa Starling, escrita em um estilo envolvente a partir de recortes temáticos, fundamentada por uma pesquisa rigorosa. Seguiram-se A Elite do Atraso, de Jessé Souza, A Era do Capital Improdutivo, de Ladislau Dowbor, O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, a análise da desigualdade econômica e a distribuição da riqueza na visão de um economista, e reli Rumo à Estação Finlândia, de Edmond Wilson, um excelente crítico literário e conhecedor de política a História, que narra num tom jornalístico os primórdios da revolução russa. Li também A Arte no Século XXI - A Humanização das Tecnologias, organizado por Diana Domingues e formado por textos de autores diversos, abordando a criação artística e as novas tecnologias em um mundo cada vez mais digital. Fruto do momento atual pelo qual o Brasil está passando nesta realidade pós-golpe, minhas leituras têm se resumido quase que unicamente a análises críticas da sociedade contemporânea. Fale-nos um pouco acerca da escrita da peça O mendigo e o caçador, texto de humor refinado e que faz tanto sucesso entre leitores das mais diferentes faixas etárias. Qual o segredo para se tocar a alma de crianças e jovens com um texto dramatúrgico, em tempo e lugar tão poluídos pelo excesso do apelo das tecnologias mais variadas, externamente atraentes e nem sempre fundadas em conteúdos de real interesse? A ideia do texto surgiu depois que assisti ao filme O Sacrifício, de Andrei Tarkovski, que lida com temas metafísicos, tais como a perda da espiritualidade no mundo moderno, a partir da história do protagonista, um jornalista e ator aposentado. Um filme lento, de difícil assimilação, repleto de simbolismos, entre eles a presença constante de um carteiro que visita sempre o protagonista e fala de vários temas, citando constantemente Nietzsche. Um carteiro que trazia notícias diversas naquela realidade ameaçada pela destruição nuclear e carente de valores foi o meu ponto de partida para ambientar uma história na periferia de uma grande cidade, tendo como protagonista um mendigo, para quem o mundo quase acabou e que o via desta perspectiva... de quem está fora dele ou pelo menos quase fora dele. Depois disso surgiram os outros dois personagens: um caçador de mendigos, que sai todas as noites com uma faca, um cantil e um fuzil automático, vestido com uma roupa de safári e gravata para caçar mendigos que, segundo ele, infestam as cidades e ameaçam as pessoas de bem. E, por fim, o carteiro, trazendo notícias e reproduzindo pensamentos de Schopenhauer, um autor que na época 184

eu estava lendo, e cujas reflexões me pareceram bastante adequadas àquela circunstância tragicômica e antinaturalista, embora a primeira notícia que ele traz em uma carta endereçada ao mendigo seja uma parábola escrita por Franz Kafka. Os comentários feitos pelo carteiro, contrapondo realidade e sonho, vigília e sonho, dor e prazer, vida e sonho, e o mundo como representação, adquirem um ar de total irrealidade, sendo ao mesmo tempo, naquele contexto, bastante críticos. Esse choque sutil mediado pelo caçador, que impõe, aos gritos, a realidade cruel em que vivemos, feita de dúvidas, injustiças, medos e misérias, cria o humor não de quem gargalha, mas de quem ri discretamente. Penso que essa mistura de irrealidade, crueza, nonsense e humor atraiam muito os jovens e até mesmo crianças, mesmo tendo um final patético e exagerado, com o caçador acertando um tiro na cabeça do carteiro e com o mendigo andando em círculos com a bicicleta do carteiro, pedalando cada vez mais rápido e soltando gritos de uma alegria louca, ao som de trovões, chuva torrencial, raios e relâmpagos. Como o texto apenas mostra de maneira crítica e distanciada uma situação extrema com muito senso de humor, creio que essa mistura toque a sensibilidade de pessoas de diferentes faixas etárias, sobretudo em nosso mundo digital dominado pelas novas tecnologias e repleto de ofertas de passatempos, distrações e entretenimentos. Creio até mesmo que, com o tempo, as pessoas vão necessitar disso, e que o teatro, por mostrar o humano representado de maneira tão direta, tão corpórea e tão próxima, será procurado cada vez mais. No conto “Correspondências”, do livro Espelhos da alma, o personagem Rui envia cartas a si mesmo, criando assim uma espécie de duplo ou alter ego. Num mundo desencantado, desacreditado das possibilidades de afirmar e exercitar valores como a solidariedade, àquele sujeito solitário resta apenas o recurso extremo à escrita das cartas para si. Paradoxalmente, apenas de si ele aguarda a “ajuda desinteressada” que sabe ser necessária a toda a humanidade. Mais que a subjetividade de uma divisão identitária, estará esse texto questionando também uma certa derrisão social e política? Gostaríamos que comentasse esse aspecto da sua narrativa. O Espelho da Alma é um livro de contos que tratam de temas diversos, tendo como pano de fundo a realidade psicológica do autor, suas preferências literárias e seu respectivo diálogo intertextual com obras e experiências que povoam a sua memória. Ao abordar esses temas, imaginei levar o leitor a pensar sobre si mesmo e sobre as situações inusitadas neles apresentadas, sem perder de vista o que há de mais essencial na vida, aquilo que nos move e que nos faz acreditar que vale a pena viver e existir. Nesse contexto prevalece, em todos os contos, a busca incessante de uma verdade interior, de uma tentativa de compreender a complexidade do mundo e de um sentido para a própria existência. No final da década de 80, quando me mudei para Vitória, depois de passar dois anos no Rio de Janeiro, tinha o hábito de escrever muitas cartas para amigos que moravam distante. Como morei em várias cidades após deixar São Paulo, minha cidade natal, a maneira que encontrei de manter o contato relativamente constante com eles foram as cartas. Vale lembrar que o e-mail, a internet e o celular para uso público é algo bem recente na História da comunicação social. E essas cartas com seu ritmo lento de escrita, passaram a se tornar, para mim também, 185

uma forma de refletir sobre a realidade e os fatos nelas narrados. E, quando preparava esse livro, pensei em utilizar de alguma forma parte dessas cartas, selecionando-as e fazendo os recortes e inserções que julgava necessários. Daí para configurar o duplo – tão presente na literatura, sobretudo em Jorge Luis Borges, a quem tanto admiro –, foi um passo inevitável. O estar só sabendo-se acompanhado; a dificuldade de compartilhar integralmente todos os pensamentos e sensações com outra pessoa e a certeza de ter encontrado alguém neste mundo com o qual é possível vivenciar todas as aspirações e desejos; a dissolução gradual de valores e condutas essenciais a uma vida coletiva saudável e justa e a necessidade de criar um mundo cada vez mais calcado na solidariedade e na divisão igualitária das benesses da sociedade. Um embate, enfim, com o princípio da realidade resolvido através da imaginação ativa, resgatando aí um conceito criado por Jung. Naturalmente as interpretações são variadas e creio que a verdadeira obra de arte sempre deixa em abertas ao leitor inúmeras possibilidades de compreensão daquela realidade narrativa. Espero ter obtido esse resultado. Repleto de referências implícitas e explícitas a pensadores e escritores que fizeram a história do pensamento ocidental, o Espelho da alma reflete sobre o homem atual e a sua trajetória no planeta, sobre o ser e seus anseios indizíveis, carências e frustrações e, ao mesmo tempo, sobre a responsabilidade do indivíduo vivendo em grupo. Diante dessas considerações, somos tentados a perguntar: não funcionariam, em certa medida, os contos de Paschoal, para ele, como as cartas de Rui, por ele escritas e a ele mesmo endereçadas? Os contos presentes no livro abordam sem dúvida meus anseios, meus medos, meus desafios, meus desejos íntimos, meus pesadelos e meus sonhos. O conto que dá título ao livro, por exemplo, foi fruto de uma experiência muito enriquecedora que tive junto ao grupo UDV (União do Vegetal) nos arredores de Vitória, ao ingerir o chá ayahuasca, preparado com o cipó mariri e folhas de chacrona. Os efeitos tão diversos e tão profundos me impulsionaram a registrar, logo após o término de cada sessão, as sensações e percepções provocadas por ele. Com esse material, oriundo de meu inconsciente e da ampliação da percepção da realidade provocada pelo chá, elaborei uma moldura narrativa e, a partir daí, as associações de ideias e pensamentos suscitados por aquelas “viagens” foram se juntando até se tornarem um “conto”. Nesse sentido, vocês têm razão; os contos não deixam de ser uma espécie de reflexão em voz alta, uma tentativa de compreender a si mesmo e aos próprios pensamentos, uma forma elaborada de lidar com os desejos profundos e com o sentido da própria existência em um mundo contraditório e, por vezes, cruel e indiferente. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes fascistas, racistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? 186

O momento histórico atual exige posições firmes e claras, pois vivemos novamente em tempos sombrios, no Brasil, depois da tentativa frustrada de construir uma democracia sólida e participativa, atropelada bruscamente por um golpe baixo e sujo. Com o golpe vieram à tona preconceitos e atitudes ultrajantes de nosso passado escravocrata, jogando o país em um estágio civilizatório anterior, escancarando a podridão oculta na vida brasileira e enaltecendo atitudes infames, desrespeitosas, agressivas e cínicas. As quadrilhas de bandidos golpistas assumidos impuseram mudanças que deterioram as relações trabalhistas, desmontam a economia e infectam de morte a Previdência, espinha dorsal da justiça social. Com a execução do golpe criminoso, associada ao incitamento ao ódio e à violência, executado pela mídia manipuladora e mau caráter, a vida pública brasileira virou um vale-tudo, uma “suruba” geral, como afirmou o Caju [codinome de Romero Jucá na planilha da Odebrecht],  e contaminou e contamina as relações sociais. Um retrocesso ético, político e econômico com consequências inimagináveis para as futuras gerações. O caos, a desordem e o desmanche dos direitos sociais podem levar a conflitos ainda mais sangrentos. Ao mesmo tempo, capatazes e algozes togados, medíocres, vigaristas, fraudulentos e mesquinhos ganharam notoriedade por perseguirem de maneira criminosa e insana um estadista respeitado em todo o mundo e, com ele, toda a oposição. Pariram assim uma nova ditadura jurídico-midiática, comandada por quadrilhas da pior espécie.  Enquanto isso o desmanche dos direitos sociais, da democracia, do Estado de Direito e dos investimentos públicos continua a todo vapor!

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Evando Nascimento Nasceu em Camacã (BA), em 1960. Vive no Rio de Janeiro (RJ). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em maio de 2017 e publicada na revista A Palo Seco – Escritos de Filosofia e Literatura, v. 9, 2017.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário? Gostei dessa pergunta sobre o modo operatório. A escrita é antes de tudo uma operação inventiva, um trabalho. Isso implica tanto um prazer quanto evidentemente uma forma de sobrevivência. Para mim os dois estão ligados. Não que eu viva diretamente do que escrevo, mas sem escrever eu simplesmente não sobreviveria. É uma das atividades que me dão mais prazer e gosto pela vida, a despeito de tudo. Não creio que tenha uma opção formal consciente, nem muito menos um projeto literário em sentido estrito. O fato é que escrevo desde muito jovem. Escrita ensaística e escrita ficcional. As duas para mim são invenções em sentido forte. Posso a cada etapa ter um projeto específico, mas não um único projeto, que tenha norteado minha prática de escritor desde o início. Há um dado aleatório no que faço. E isso para mim é tanto uma felicidade quanto um infortúnio, inseparavelmente... Uma felicidade pelo lado aventuroso. Um infortúnio porque muitas vezes posso me perder “no meandro de minhas inscrições” – estou citando uma frase de meu próximo livro. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? É difícil dizer quando tudo iniciou, se houve um ponto exato de partida. Desde criança, quando comecei a ler, intuitivamente alguma coisa no ato de escrever e publicar me fascinou. Lia-se muito lá em casa, e em algum momento devo ter me perguntado de onde vinham aqueles livros e revistas, que passavam de mão em mão. Lembro de “cometer” meu primeiro poema aos oito anos, uns versinhos para uma prima, que era meio amiga, meio namoradinha, se isso é possível nessa idade. Em torno dos treze, catorze anos escrevi um pretenso romance, na máquina de escrever Olivetti Lettera de meu pai. Tinha o datiloscrito até quando fui fazer mestrado no Rio, aos 22 anos, mas numa de minhas mudanças, perdi, o que até certo ponto lastimo. Até certo ponto: seria bom ter um registro do que me ocorria como literatura, mas, por outro lado, certamente era apenas um pastiche do que lia na época: Machado, Amado, Veríssimo e Alencar, além dos romances infanto-juvenis de que gostava bastante: A Ilha do tesouro, Robinson Crusoé, Huckleberry Finn, entre outros. Depois de uma adolescência bastante voltada para a escrita ficcional, a leitura e o desenho, continuei escrevendo basicamente contos na vida adulta. Todavia, o envolvimento com a escrita acadêmica me absorveu bastante, e so188

mente em 2008 vim a publicar meu primeiro livro de ficção, o Retrato desnatural (ed. Record), um livro que me deu e continua dando muitas alegrias. Como professores e orientadores, temos notado um interesse crescente dos estudantes mais jovens, especialmente nos cursos de Letras, pela sua produção ficcional. Como você vê a recepção da sua obra? Quais são as dores e as delícias de se publicar ficção num país que parece ter um número cada vez mais reduzido de leitores? Fico feliz em saber desse interesse. Até onde posso ver, a recepção de meus três livros ficcionais publicados tem sido muito boa. Todos tiveram resenhas em periódicos variados (Folha de S. Paulo, Estado de Minas, O Globo e o extinto Jornal do Brasil, entre outros). Há também um bom número de artigos universitários, todos de grande qualidade. O livro Cantos do mundo foi finalista do antigo Prêmio Portugal Telecom, disputando na categoria contos com Sérgio Sant’Anna, João Anzanello Carrascoza e Dalton Trevisan, que acabou vencendo. Tenho recebido também diversos comentários de leitores não especializados, que prezo muito. Esse lado da resposta explícita é realmente prazeroso. E não precisa ser elogio, a crítica bem fundamentada me seria também bastante útil, embora ainda não tenha havido. (Creio estar preparado para quando vier – risos.) O sofrimento maior é saber que o número de leitores num país gigantesco como o Brasil é mínimo. Isso dói demais. Mesmo os autores que ganham prêmio e estão o tempo todo na mídia não vendem tanto quanto seria de esperar. A internet poderia ter ampliado o número de leitores qualificados, se nossa educação escolar fosse boa, mas tal não é o caso. Assim, acaba-se escrevendo mais por amor à arte e à vida reinventada através desta. No momento, escrevo praticamente todos os dias. Costumo passar do ensaio à ficção, conforme o interesse e a vontade. Mantenho também um diário ficcional, cujo título é Vital, e em algum momento penso em publicar trechos, talvez na internet, não sei. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, se preferir afastar a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Não tenho resposta para essa pergunta. Há um número muito grande de poetas e ficcionistas no Brasil, e somente alguém que se dedique a ler sistematicamente esses autores e autoras pode avaliar de forma correta. Minhas leituras de autores contemporâneos, brasileiros ou estrangeiros, são erráticas e vão acontecendo conforme a curiosidade. Prefiro não citar nomes para não ferir vaidades que acaso venha a esquecer. Um fator positivo: minha impressão geral é que há cada vez mais mulheres escrevendo e publicando. Isso ajuda a ampliar o cânone, que até recentemente se restringia aos homens, as escritoras aparecendo como exceção da regra. Você concorda com que se utilize a expressão “literatura pensante” para designar a sua ficção, como você mesmo o fez com a obra de Clarice Lispector? Até que ponto o fato de ser pesquisador, tradutor e divulgador do pensamento derridiano deixa marcas na sua produção ficcional? Quando inventei essa expressão “uma literatura pensante”, em torno de 189

1992, ao começar a escrever minha futura tese de doutorado, a qual se tornaria o livro Derrida e a literatura, tinha em mente autores e autoras que faziam um tipo de literatura muito próximo do ensaio. Em 2012, quando reuni minhas reflexões sobre Clarice Lispector, achei natural dar o subtítulo de “uma literatura pensante” ao livro que publiquei então pela Civilização Brasileira. Nada tenho contra utilizarem a expressão para o que faço ficcionalmente, e pelo menos um leitor já o fez numa excelente resenha sobre os Cantos profanos: João Cezar de Castro Rocha, um dos melhores críticos da atualidade. Seria pretensioso de minha parte autointitular o que faço dessa maneira, mas, se outros o fizerem, decerto terão boas razões para isso. Realmente não sei até que ponto minhas leituras e traduções de Jacques Derrida deixaram marcas no que escrevo. Com certeza deve haver e haverá sempre muitas. Mas minha consciência a esse respeito é pequena. Quando escrevo ficção, me deixo guiar pela intuição e pela imaginação, como também por certo senso de realidade. As referências filosóficas de Derrida e de outros pensadores entram como algo que faz parte de meu trajeto, jamais como “teses” ou “conceitos”. Tenho horror à “literatura filosófica”, que acho entediante. A literatura tem seu próprio modo de ser pensante, sem ter que recorrer aos métodos e maneiras da filosofia. E não só a literatura: as artes são também pensantes, como desenvolvi num artigo que pode ser lido na internet, na revista Celeuma, da USP. Um dado curioso: apenas no momento da redação do livro me dei conta de que o adjetivo já se encontrava em Clarice Lispector – O mistério do coelho pensante é uma linda história infantil. De que modo a sua vasta experiência como professor se entrecruza com o trabalho de escrita? Ser professor me ajudou a ficar próximo daquilo que amo: a literatura. Tenho muita curiosidade científica, mas seria um melancólico se tivesse que passar horas num laboratório, por exemplo. Preparar aulas sobre ficção e poesia apenas reforça tudo o que faço como inventor ficcional. Sobretudo quando a turma se interessa pela invenção literária, só há convergência, jamais atrito. Dialogar com jovens sobre literatura e filosofia é maravilhoso, desde que estejam motivados. No mundo inteiro parece estar ascendendo uma onda de pensamento e sentimentos reacionários, expondo matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Indagações fundamentais, porém, irrespondíveis de maneira simples. Não faço ideia de quando isso tudo começou, mas não há dúvida que a aceleração do mundo digital, a partir sobretudo do final dos anos 1990, ajudou bastante. Com a Web, parece que os neofascistas se sentiram protegidos para dizer e praticar barbaridades. Algumas políticas governamentais surgiram para coibir os casos extremos, mas é difícil estabelecer um limite preciso entre liberdade de expressão e violência contra a alteridade. Sou a favor de um máximo de liberdade com responsabilidade. Para isso ocorrer, é preciso uma educação de qualidade, real190

mente libertadora. Penso que o escritor e a escritora, ao exercerem seu ofício com o máximo de empenho, já dão uma contribuição para esse processo educacional. Mas isoladamente se pode muito pouco. Seria preciso surgir cada vez mais associações de reflexão, fóruns de debate qualificados, a fim de dar conta da maré montante de neofascismos. Há que se criar modos de resistência não partidários, já que, um pouco em todo o planeta, os partidos se encontram chafurdados na corrupção. Ainda acredito no esclarecimento e no acesso à informação responsável como modos de resistência ética e política. Como você avalia o momento político que vivemos hoje no Brasil, e que auxílio o pensamento da desconstrução pode nos dar numa circunstância como esta? A resposta anterior se desdobra nesta: o pensamento desconstrutor pode, sim, ajudar a refletir sobre as formas mais adequadas de lidar com as diferenças e as alteridades, as alteridades de fato diferentes. Em abril último [2017], realizou-se na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, um colóquio internacional [A solidariedade dos viventes e o perdão: Jacques Derrida/Evando Nascimento: questões de ética, política e estética], a partir de um livro que publiquei no ano passado na França com textos de Derrida e meu, La solidarité des vivants et le pardon (Hermann, 2016) Para começar, a própria UERJ, uma das melhores instituições de ensino do país, se encontra numa situação deplorável, com atraso de salários e de verba para manutenção. Realizar esse evento já foi em si um ato de resistência, e por isso escrevi um texto-manifesto, publicado no Suplemento Pernambuco (2017), um dos melhores em termos literários: “Colóquio Derrida na UERJ: Um encontro solidário”. O tema do perdão é essencial para se rever o passado, recente ou remoto. E Derrida ajuda a perceber que o perdão nada tem a ver com anistia, esquecimento ou reconciliação. Perdoa-se para se libertar do ódio, mas não para esquecer o mal feito. Em breve, será publicado o livro do colóquio, que espero seja muito útil para um país com um passado e um presente tão turbulentos como o nosso. Você está escrevendo algum livro no momento? Tenho um novo livro de contos, já enviado a uma editora, A desordem das inscrições. Mas ainda assim terei muitos contos inéditos, porque eles me ocorrem e eu os escrevo, depois é que os seleciono para um volume específico. Iniciei também um projeto de fôlego, que seria um romance em torno de um pintor, mas ainda é algo incipiente e pode levar alguns anos, daí prefiro não falar a respeito. Adoro escrever, mas não tenho pressa em publicar. Sempre tive inéditos, alguns deles talvez para sempre... Alguma consideração final? Apenas o agradecimento por terem se interessado em fazer esta entrevista comigo. Considero esse projeto da maior relevância e, portanto, lhes desejo coragem e empenho para levá-lo adiante.

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Everton Almeida Barbosa Nasceu em Cuiabá (MT), em 1980. Vive em Tangará da Serra (MT). Entrevista concedida a Vitor Cei em abril de 2018.

Cada escritor possui método e estilo próprios. Aclyse Mattos, na contracapa de Norte (Carlini & Caniato, 2016), afirma que “Musicalidade e narrativa se entrelaçam”. Marta Helena Cocco, no prefácio do mesmo livro, afirma que na “sonoridade dos textos, encontro o músico”. Considerando que você também é músico e coordena um projeto de extensão universitária com música e poesia (Poesia Corpo & Cordas), poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu processo criativo? Explique como ocorrem os trânsitos que você promove entre essas diferentes linguagens. Confesso que a sonoridade e a musicalidade foram alcançadas, no caso dos poemas, com menos técnica e mais intuição, mas acredito também que as tenha internalizadas, pelo fato de já ser músico, ser um leitor atento a esses aspectos e, talvez, pela cultura apreendida. O nordestino é um ser de ritmo e afinação, pelo menos aqueles com quem convivi mais. No momento da composição, então, a musicalidade acompanha a intenção da mensagem, como se fosse a única forma com a qual consigo concretizar aquele conteúdo. Também confesso que, quando li as palavras de Aclyse e Marta, fiquei um pouco surpreso, porque a minha intenção inicial era dar um caráter de narrativa, prosaica mesmo, aos poemas, com exceção de alguns poucos. Pode ter sido isso o que o Aclyse captou: na minha intenção de ser prosaico e narrativo, não consegui anular a musicalidade presente na minha forma de me expressar. No mais, poderia falar de como sinto a força das vogais, de algumas consoantes e, principalmente, de como as nasais dão um tom de acalanto e conforto em certos momentos, mas isso também me parece internalizado na minha dicção. Apesar de ter dito que alcancei a forma mais com intuição do que com técnica, posso dizer que essa dicção alcançada foi amadurecida ao longo de muito tempo, pois minhas tentativas de escrever vêm desde a adolescência, e só aos 35 é que me arrisquei a expor meus textos. O mais interessante, e foi isso o que me deu mais ânimo para persistir, é que consegui chegar num ponto desejado por mim justamente quando optei por falar das memórias de meus pais. Foi como um encontro, um “desatar de nó”. Algo que me permitiu pensar que eu realmente teria algo a dizer e, por isso, não considero minha poesia como experimental, inovadora, revolucionária, mas considero sim que ela traz uma forma de olhar diferente, baseada na experiência quase perdida, para mim, do universo do sertão paraibano. Esse sertão eu não vivi fisicamente, mas ele faz toda a diferença em minha vida. Supostamente, eu deveria me sentir desterrado, sem identidade, por não me adaptar a muitas tendências da sociedade contemporânea, em especial à fluidez das identidades e convicções, mas o sertão vivo na memória de meus pais acabou me dando um ponto de equilíbrio, a partir do qual posso me entender e entender o mundo, sem me deixar levar por aquilo que não julgo necessário, optando por uma vida que só a experiência da seca e do trabalho duro poderia conformar.

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No poema “Grande tempo”, de Norte, lemos que o pai do sujeito poético “Lia livros, tinha um violão, / repetia os repentistas das feiras”. De que modo o repente influenciou a sua escrita? Se influenciou de alguma forma, imagino que seja como disse antes: pela internalização da musicalidade nordestina. Não tenho dificuldade, por exemplo, em identificar ou produzir ritmo conforme a distribuição da acentuação num verso. Consigo fazer poesia metrificada e rimada, mas optei pela sem rima, “moderna”, como diz meu pai. Tenho vontade de escrever poemas no estilo dos repentes, mas não me propus a fazer isso ainda, talvez porque uma ideia mais clara não tenha surgido. Procuro dar corda para a intuição, para que a ideia de um poema surja a partir de uma experiência. Não tenho pressa de escrever e, muitas vezes, também não tenho tempo. O Norte foi escrito ao longo de 5 anos, pelo menos. Planejo um dia poder me dedicar mais à arte do que tenho dedicado agora. Norte tem ilustrações de Francisco de Assis Pereira de Araújo que remetem às xilogravuras dos cordéis. Após essa parceria, você percebe mudanças, em seu texto poético, quanto à maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Acredito que os poemas têm um pouco do teor narrativo que apresentam os cordéis e as xilogravuras. Acho que já opero essa relação entre imagem e linguagem verbal, pois em meus poemas tento produzir imagens nítidas, preto-no-branco, com contorno definido. Francisco é meu primo, nasceu no sertão, diferente de mim, que nasci na cidade. É arquiteto, desenhista e pintor. Quando vi alguns de seus quadros, me deu a impressão de que ele fazia com a pintura e o desenho o mesmo que eu fazia com as palavras: tentar encontrar uma forma de conciliar internamente o sertão e a modernidade. Mas isso é impressão minha. Por isso também o convidei para ilustrar o livro. Nossas perspectivas, para mim, eram parecidas. O primeiro desenho que eu vi foi o da lamparina, para o poema Ladainha. Foi o melhor sinal de luz que eu poderia ter dele. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Desde a adolescência tentava escrever, mas os poemas eram mais textos reflexivos ou confessionais. Eu não tinha o insight artístico, literário. Este me veio como leitor, já cursando Letras na Universidade Federal de Mato Grosso, nas aulas de literatura. Levou um tempo ainda para que eu percebesse as nuances, os jogos, as entrelinhas da linguagem literária. Nesse tempo, estava mais envolvido com música e, por isso, os primeiros textos com caráter mais artístico foram letras de música. Dentre essas, no entanto, considero muito poucas como tendo um mínimo de qualidade artística. Fiz parte de um grupo vocal, o Candimba, durante dois anos, e devo muito a essa experiência minha percepção musical, minha consciência sobre a voz e seus efeitos. Trabalhei também na direção musical de uma companhia de teatro de Cuiabá, o grupo Mosaico, durante um ano e meio, mais ou menos, entre 2003 e 2004. Nesse período, compus músicas para uma peça infantil, que considero boas. Ao mesmo tempo, comecei a trabalhar, dando aulas, e a fazer mestrado, o que tomou meu tempo para criação. Comecei a me dedicar à profissão 193

de professor e deixei a criação de lado, mas a necessidade de escrever e tocar sempre permaneceram latentes. Por ocasião de um prêmio literário da extinta livraria Adeptus, em Cuiabá, no fim de 2008, decidi que iria me inscrever e, dependendo do resultado, ou desistiria de uma vez da criação, ou continuaria e investiria nisso. Recebi uma menção honrosa por um poema curto, que já trazia o tema do Norte. Foi nesse momento que decidi continuar a escrever e que veio a ideia do livro. Passei, então, a fazer um exercício quase diário de escrita, até começarem a aparecer poemas com mais qualidade. Entre o prêmio da Adeptus e o prêmio Mato Grosso de Literatura, ainda se passaram 7 anos e um doutorado. A maior parte dos poemas de Norte foi escrita durante o doutorado, influenciada pelas reflexões e leituras que fiz naquele momento. Concluído o doutorado, estava pronto para publicar o Norte, quando a Marta Cocco me incentivou a inscrevê-lo no prêmio, que eu não esperava ganhar. Confesso que os prêmios e o reconhecimento de alguns amigos e colegas me animam mais a crer que posso seguir adiante com a criação. Como você avalia a recepção de sua obra? Ser o vencedor do Prêmio Mato Grosso de Literatura 2016, na categoria Revelação, influenciou o reconhecimento da sua literatura? Na verdade, não. Hoje vivemos tempos diferentes e, se você não faz o trabalho de promoção e divulgação de sua criação, o reconhecimento mais amplo dificilmente virá. A premiação auxilia, mas Mato Grosso, por exemplo, é um estado de pouca recepção à literatura e, mais ainda, a poemas. Ainda estou por fazer este trabalho, depois de 2 anos, porque ainda me dedico mais à minha profissão de professor do que à criação artística. Como você experimenta o ato de recitar? Recitar, em sala de aula e fora dela, é recriar? Para recitação e outras performances, me considero tímido. Estou mais para Drummond do que para Mano Melo. Não sou uma pessoa muito performática, mesmo na música. Quando recito em sala de aula, é para tentar fazer com que meus alunos entendam melhor um poema, mas, ainda assim, recito com moderação. Acredito que o próprio ato de ler é recriar, e recitar é uma forma de ler. Alguns poemas de Norte trazem uma imagética religiosa que inclui Deus, Jesus Cristo, santos, padres, pai-nosso, cruz, reza e bendição. Como a religião influencia a sua escrita? Em que medida a relação entre arte e religiosidade presente no seu trabalho se relaciona com a tradição cordelista? São temas que fazem parte das memórias de minha família e, por isso, teriam de fazer parte do livro necessariamente. Fui muito católico até uma certa altura de minha adolescência, tocando muito na igreja e em encontros da Pastoral da Juventude em Cuiabá. Hoje ainda sou religioso e a religião foi uma das coisas que me fez voltar a criar, porque me deu um sentido para a existência. Quando trago os elementos religiosos para a criação artística, é porque, assim como a musicalidade, eles fazem parte da minha forma de lidar com o mundo. Não posso negá-los. A presença da religião tem mais a ver com isso do que com a tradição cordelista, mas compartilha com esta a cultura religiosa do sertão e seus elementos.

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Você está escrevendo um segundo livro? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Já tenho alguns poemas escritos e a ideia de um novo livro, mas ainda não está concluído. Talvez leve mais uns 2 anos... Tenho planos de fazer o mesmo exercício de criação com a música e acredito que o estilo, inicialmente, vá tender à sonoridade nordestina de alguma forma. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Há tanto que considerar em relação a isso que fica difícil responder de forma sucinta. Escolheria como fator importante, dentre tantos outros possíveis, a disputa de espaço com outras informações e produções com maior poder de divulgação e aceitação. Na dinâmica social, tem funcionado o automatismo da comunicação, combinado à intenção de alcance de mercado. O que promove o alcance de mercado: o que pode ser consumido de forma imediata e rápida; o que alimenta a vaidade, a ostentação, o privilégio, a riqueza material; o que não questiona assuntos sérios e básicos como a presença da barbárie nos elementos que sustentam hábitos cotidianos; o que não te force a parar para pensar em todas essas coisas... Tudo o que exige concentração, paciência e reflexão, não tem muito alcance de mercado no nosso contexto. Obviamente, dizemos isso quando desejamos que, de alguma forma, a poesia alcance o povo, como as telenovelas alcançam. Certamente, é menos fatigante sentar-se ao final do dia para ver telenovela, rir e se emocionar um pouco. Ler um poema dará sono, sem dúvida. Ler qualquer coisa que ofereça um pouco mais de dificuldade de compreensão dará sono. Se eu entendo a poesia e a arte como expressões que não são apenas entretenimento, tenho que admitir que elas não terão espaço num contexto que valoriza e promove o entretenimento. Esse fator é, a meu ver, preponderante, mas se associa a outros, como a falta de educação para recepção da arte, por exemplo. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? É sempre difícil falar de unidades. Na verdade, não acredito nelas, mas apenas em discursos sobre unidade. O que percebo, como aspecto recorrente, pelo menos do que conheço, é uma ausência de perspectivas sobre o futuro, o nonsense, os deslocamentos e trânsitos e as crises de identidade. Esses aspectos na arte são perfeitamente compreensíveis, dadas as condições em que vivemos. Na poesia, como tema, vejo que a metalinguagem, a poesia que fala de poesia e nela se encerra, também é recorrente. O verso curto, desmembrado, as remanescências do poema-pílula... Meu texto, em relação ao que se produz hoje, sem dúvida tem cara de conservador. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como 195

coda do atual estágio da humanidade? O mal e o bem estão sempre à espreita, prontos a se manifestar quando as condições estão favoráveis. Acredito, no entanto, que é mais difícil não ser reacionário e fascista. A boa literatura, ao longo da história, só nos dá exemplos disso: da disputa pelo poder, da afirmação de si e de seu grupo sobre os outros, da vontade de posse sobre a mulher, da demonização do que é diferente. Ou é isso, ou é lamentar-se/reclamar o vencido pelo sofrimento causado a si, assumir-se marginal, diferente, ainda que entre as diferenças haja semelhanças. Em parte, posso dizer isso como nordestino, cuja cultura sofre também preconceito... A circunstância que vivemos hoje, para mim, foi sempre a predominante, ainda que em alguns momentos não se mostrasse como tal. Ela, agora, só está mais evidente e, por isso, aparenta ser mais ameaçadora. Considerando que algumas conquistas sociais são bem recentes, com menos de 100 anos, arrisco a dizer que o tempo que passou não é suficiente para uma mudança de comportamento dos que têm maior tendência ao fascismo, porque certos aspectos culturais perduram no âmbito privado, resistindo até que ganhem espaço para se manifestar novamente, de forma semelhante a como tentam fazer as culturas marginalizadas, embora estas tenham raros momentos de liberdade. Não colocaria um marco, ou, se colocasse, seria muito para trás na história, seguindo o que diz o Walter Benjamin sobre a extinção da sabedoria: é um processo que se desenvolve junto com a evolução secular das forças produtivas, não é uma característica moderna, recente. Para mim, tudo se dá por uma profunda falta de sabedoria, que a literatura, infelizmente, não tem se proposto a tratar. Nesse quadro, decidi ter esperança, não como falsa utopia, nem por ingenuidade, mas porque a falta de esperança corrobora o estado de barbárie, alimentando-o. Ela nos impediria de agir de forma sensata ou necessária quando tivéssemos oportunidade, já que tudo estaria perdido mesmo.

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Fabio Daflon Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1954. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em abril de 2018.

Cada escritor possui um estilo e um método de trabalho próprios. Em sua obra, é possível perceber uma característica marcante, denominada por Lívia Corbellari, no blog Livros por Lívia, “poética marinha”. Leitmotiv, o oceano aparece nos títulos e poemas dos livros Mar ignóbil (Paco Editorial, 2010), Mar sumidouro (Cousa, 2013) e Vagalume-farol (Scortecci, 2016). Você poderia comentar as opções formais e temáticas que norteiam sua poética? Sou capitão-de-mar-e-guerra médico da reserva da Marinha do Brasil desde 2005, fiz 219,5 dias de mar no Contratorpedeiro Mato Grosso, quando estive embarcado como médico de bordo, convivi com marinheiros, li toda obra de Moacir Costa Lopes, o ficcionista do mar e mares mais rasos ou profundos desde a adolescência habitaram meus sonhos, seja como pesadelos em águas poluídas (Mar ignóbil) ou em ideais de águas limpas, quando penso em navegação ou na ética do desejo. Conheço bastante o vocabulário naval, participei de exercícios de guerra no mar, com submarinos simulando ataques e exercícios de tiro de canhão ou míssil. Creio que essa vivência me influenciou tanto quanto os sonhos e pesadelos. Vivi mares agitados e viagens em regime de cruzeiro e frequentei muitos portos onde vivi e colhi estórias. Sonho em escrever um romance com personagens marinheiros e suas relações com o amor e o mar, carreira, no ambiente complexo da vida em um navio. Quanto à poética marinha, já explicada em parte, e os aspectos formais diria que só após fazer o curso de especialização em Estudos Literários na Universidade Federal do Espírito Santo é que tive coragem para escrever e publicar poesias, isto é, sem dialogar com a tradição eu não seria poeta. Paul Ricoeur escreveu que “Quando a utopia não dialoga com a tradição há crise.” Procuro ler os poetas contemporâneos, porém mais que os poetas que cultivam a forma (soneto, haicais, gazais, etecetera), estudei bastante no Pequeno Dicionário de Arte Poética, de Geir Campos, fazendo exercícios ao ler a proposta formal de um tipo de poema ou versificação. Tive alguma dificuldade em escrever versos livres, mas no livro Mar sumidouro escrevi muitos. E é um livro apreciado por professores doutores e leitores com alguma experiência em ler poesia. Creio que a forma é importante, compus alguns poemas concretos, mas preciso estudar melhor as proposições formais concretistas dos irmãos Campos, como tenho escrito bastante isso, infelizmente, vem sendo adiado. Entre os poetas contemporâneos que aprecio estão Bruna Beber, Casé Lontra Marques e a poeta mística Mariana Ianelli, cujos livros Fazer silêncio, Almádena e Treva Alvorada me impressionaram muito. Como você define sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Quando você se percebeu um poeta? Enquanto estudante de medicina e médico residente, tendo me formado em 197

1978 pela Faculdade de Ciências Médicas da UERJ e feito residência em pediatria no Hospital Universitário Pedro Ernesto, daquela faculdade, em 1980 publiquei um ensaio histórico de cem páginas sob o nome Título Provisório – movimento estudantil na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ –, onde resgatei aspectos importantes da história daquela escola médica. Em 2012 fui convidado pelo Presidente da Associação de Ex-alunos para republicar, e o fiz sob o mesmo título, porem com o subtítulo: imprensa e movimentos estudantis na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ 1964 a 1968, proêmios de 1935 a 1964. Trata-se de uma edição revista e ampliada, então com mais de trezentas e cinquenta páginas, tendo ao final de 2017, ano da publicação do livro, a satisfação de receber o Prêmio Imprensa da Diretoria da União Brasileira de Escritores, RJ. Mas preciso retornar um pouco, após 1980, só voltei a publicar em 2002, livro em coautoria com meu pai, Alberto Daflon, sob o título Vento Passado – memórias do recruta 271 -, um livro sobre as aventuras de guerra do pai, livro de humor em sua maior parte, a despeito do trágico ambiente da Segunda Grande Guerra, cujas guerras navais estudei bastante em curso da Escola de Guerra Naval. Depois vieram os livros de poesia de temática marítima, já citados em sua primeira pergunta, e o livro Estrela Miúda – breve romance infinito –, um romance memorialístico publicado em 2011, sobre a superação de um luto. Como você avalia a recepção de sua obra? O livro de poemas Mar sumidouro foi muito bem recebido por leitores qualificados, professores universitários doutores em letras, como Alexandre Moraes, da UFES, poetas como Casé Lontra Marques e o Saulo Ribeiro, editor da Cousa, acha-o muito bom. Marcus Salgado, professor doutor da UFRJ reputa o Vagalume-Farol, uma pérola, este mesmo professor escreveu uma resenha elogiosa sobre o Mar ignóbil, tenho procurado construir uma obra. Desde 2015, quando me aposentei também como médico no Ministério da Saúde, me dedico à vida de escritor como ofício. Procuro fazer minha parte, me inscrevo em concursos importantes aqui e em Portugal, enfim preciso acreditar no valor do que faço, mesmo porque os leitores possíveis tem apreciado meus livros de poesia ou não. Você está escrevendo algum livro no momento? Mandei para uma editora sob o título Maré Seca um livro de poemas, trata-se de um concurso com promessa de publicação da obra vencedora. Mas com base no livro Os quatro gigantes da alma, de Emílio Mira y Lopes, um médico psiquiatra que atuou no serviço de saúde do Exército Republicano durante a Guerra Civil Espanhola, decidi escrever livros sobre tais gigantes, segundo Lopes eles seriam o Amor, o Dever, a Ira e o Medo, mas acrescentei mais quatro gigantes o Humor, que motivou a escrita do livro Sovacos: poesia sob os braços; além de outros já prontos: O sal do destempero, sobre a Ira; Bico de Papagaio, sobre a dor; sendo os outros dois gigantes além da dor e do humor, introduzidos por mim, o Pensamento (Cabeço) e o Desejo (O gume sensual), sem o qual a luxúria não existiria e nem o amor como o concebemos. Note-se que o único gigante considerado pecado capital presente é a Ira. Criei, assim, uma cosmologia pessoal de poeta, que apesar da minha filiação à tradição judaico-cristã e ao racionalismo 198

grego, me obriga a ver o mundo de forma desejosa, irado, amorosamente, com medo e por aí afora. Algo que me dá a oportunidade de pensar originalmente, ao menos para mim, os problemas da existência. Publicarei de forma independente este ano o livro Mar raso, que contém poesias com intenção de mensagens mais diretas aos leitores, os três primeiros versos do livro são estes: “Tudo que me torna raso/me alegra como um mar/que dá pé”. Tenho também um livro de crônicas sob o título O físico do rolo, e um de contos sob o título Aqui se faz, aqui não se paga, cujas publicações não priorizo. Entretanto, o livro de poemas Um sol para Valentine, que é dedicado à musa Valentine Kraft, estou trabalhando para publicar, como vê tenho escrito. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Quais são os principais desafios para edição e divulgação de poesia no Brasil de hoje? O principal desafio é o de estarmos em um momento culturalmente muito pobre. No meu caso já tive livro publicado por Edital da Secult-ES, caso do Mar sumidouro; na medida das possibilidades tenho publicado com recursos próprios em edições relativamente pequenas, o que dificulta a divulgação. Mas essa é a realidade a ser encarada e a ser superada. Não há quase nada na mídia que se importe com cultura de boa qualidade. Pouco se faz em crítica literária, já foi melhor. Como você experimenta o ato de recitar? Recitar é recriar? Sim, por ser representar, e às vezes descobrimos a força do poema ao recitar. Tenho recitado na Academia de Letras de Vila Velha, da qual sou membro desde outubro de 2017, com resultados bons na interação com o bom público que lá comparece, sempre entre trinta e cinquenta pessoas. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que comentasse sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. Considero Ana Paula Maia a melhor romancista da geração Zero Zero, ótima contista também, seu conto “Javalis nos quintais” é uma obra prima. Ana tem a linha de escrever sobre a violência nos ambientes de trabalho, seu livro Carvão animal, por exemplo, é um livro sobre bombeiros; Carola Saavedra com seu livro Flores azuis – um romance epistolar – é uma ótima escritora e, além disso, interage com o passado como o fez em seu livro Inventário das coisas ausentes, alguns autores que não vou citar são apelativos e produzem um falso naturalismo, essa recitação dos dramas humanos de forma anódina me incomoda, às vezes são bem escritos, mas não transmitem emoção, não falam da dor de viver, das angústias dos personagens, nem do que as causa. Isso me preocupa. Li muitos livros que mudaram a minha cabeça pela mensagem ou carga dramática, não vejo isso na literatura romanesca contemporânea. Seu livro mais recente, Sovacos: poesia sob os braços (Edição do autor, 2017), apresenta poemas erótico-cômicos que tratam especialmente das axilas das mulheres. Nesses tempos de ferrenhos embates ideológicos entre machismo e feminismo, como está sendo a recepção do livro? E como o machismo presente 199

na sociedade brasileira afeta a sua escrita? Na guerra dos sexos ninguém vai sair vencedor por haver muitas reconciliações. Não gosto ou não entendo o feminismo queer nem da extrema vulgaridade de algumas mulheres, o feminismo é sempre bem-vindo, embora em momento de radicalização onde os homens melhores também pagam um preço alto pelo machismo de outros, inclusive dos feminicidas. O Estado do Espírito Santo é um dos que mais mata mulheres e isso faz parte da cultura capixaba. Algo que deveria ser explorado por um romancista da terra; sou carioca. Sou médico, então trato qualquer pessoa com respeito em conversações e debates. Acho o machismo hediondo, acho uma mulher que desautoriza o pai diante dos filhos igualmente hediondo, acho uma mulher castradora algo terrível. Em um dos poemas do livro Vagalume-Farol escrevo o verso “Na mulher não se bate nem quando ela pede”. Aqui me refiro a conteúdos sádicos e masoquistas da relação homem mulher, que continuam a existir, embora criticáveis ou condenáveis. Minha preocupação é muito maior com a violência doméstica ou com os suicídios de homens eventualmente abandonados ou “traídos” do que com o feminismo que tem lá seus exageros eventualmente, mas que nós homens face às violências cometidas contra as mulheres precisamos aprender a conversar com calma, sem agredi-las nem cometer autoagressão. Ambiguidades muito grandes nas relações de gênero sempre são complicadas, os consultórios de psicologia estão cheios de pessoas “bem resolvidas”. Existem coisas engraçadas como em um folheto do Movimento Machista Mineiro, um movimento folclórico, cujo estatuto tinha dois artigos apenas: Art. 1 º - O homem tem sempre razão. Art. 2 º - Em casos de dúvida consulte-se o Artigo 1º. Não há como não rir e nem levar a sério. O humor é essencial à saúde humana. Rir com e do nosso próprio sofrer. Penso também que a música contribuía muito em ajudar a sofrer um luto amoroso, hoje já não há mais canções com letras que nos ajude a sofrer lutos amorosos. Mesmo no livro Sovacos: poesias sob os braços há poemas sobre separação e perda; creio ter assim humanizado minha dor em relação aos meus problemas amorosos, porque ao escrevê-lo foi em um momento de um divórcio recente. O machismo, o sexismo e a misoginia têm causas na ontogênese masculina e na cultura, em forma plena ocorre em psicopatas, mas podem advir da história patológica pregressa dos indivíduos o que não o justifica e deve ser combatido e reprimido com constrangimento daquele que os exercitam independentemente das suas razões. As tensões entre vida e política se manifestam em vários de seus versos, abordando desde temas gerais, como a corrupção, como por exemplo, “a cada falcatrua de qualquer corrupto / que não fará do povo um corpo inepto” (Vagalume-farol, p. 191), a tópicos específicos, como no poema “Oceanário da Lama do Espírito Santo”, que critica o crime da Samarco e da Vale contra o Rio Doce: “oceanário da lama, rejeito industrial, / empresa irresponsável, sob impunidade, / e um ar irrespirável a causar-nos mal”. (Vagalume-farol, p. 190). Você se considera um poeta engajado? É possível desvincular a produção literária de um ato político? 200

Sou um homem preocupado com o tempo. Se me fizessem a pergunta “Por que você escreve?”, responderia que “Escrevo para conversar com o tempo.”. Existe o poema ocasional ou de ocasião, Drummond escreveu vários, como, por exemplo, o poema Stalingrado, mas não se pode dizer que Carlos Drummond de Andrade tenha sido um poeta engajado. Em A rosa do povo assumiu posições mais socializantes. É impossível desvincular a produção literária de um ato político. Tudo é político. Carlos Fuentes, em um dos seus contos do livro Todas as famílias felizes, pergunta aos personagens: “Que história é essa de não falar de amor?”. Vagalume-Farol é o mais político dos meus livros de poesia. A função ontológica da poesia não pode e nem deve ser esquecida e isso é político. O livro Vagalume-farol poetiza a “Extinção dos vaga-lumes pelo homo sacer”. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que podemos esperar como coda do atual estágio da humanidade? Vários pontos: (1) A queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real, que também pode ser chamado de fim das utopias; (2) A perda do elo de solidariedade entre as pessoas, quando se vê às vezes pessoas incapazes de socorrer um amigo naufragado em uma poça; (3) Os problemas de agressão à ética quando a esquerda assumiu o poder no Brasil; embora seja mérito da esquerda todas as melhorias sociais legais, o Sistema Único de Saúde, por exemplo, é uma elaboração da esquerda carioca. (4) O Presidencialismo de coligações que fez emergir corruptos e facínoras de toda ordem ao poder; (5) No Brasil, a agressão à classe média, em grande parte eleitora do PT, que deixou de votar em seus candidatos por conta de ser responsabilizada pelos problemas nacionais, enquanto os propinodeutas petistas angariavam dinheiro para os cofres pessoais ou do partido, rompendo com a promessa de ética na política; mais anteriormente, a tolerância de Leonel Brizola que impediu a polícia de atuar em áreas que o tráfico de drogas se agigantava – apesar da qualidade da polícia ser questionável e a formação de policiais precisa melhorar em muito –; (6) A insolvência do mercado de trabalho e sua incapacidade de responder com empregos dignos à juventude. (7) Aqui na Ibero-américa, a fronteira do Brasil com os países maiores produtores de drogas do mundo ou de contrabando de armas, como o Paraguai, a Bolívia e a Colômbia. O que nos faz questionar em que bases poderíamos discutir a legalização as drogas, sendo uma espécie de quintal. (8) O capitalismo selvagem praticado com voracidade inigualável levando a crises econômicas subentrantes. (9) A falência do ensino básico com advento de violência de alunos contra professores; (10) Em certa a desautorização às vezes burra do pátrio poder, o que 201

prejudica a função paterna; a desestruturação das famílias com aumento da prostituição praticável e saída de jovens moças de casa, o amor e o sexo sem compromisso ou honestidade de propósito mesmo como folguedo apenas; a gravidez precoce, etecetera; (11) A questão do Eterno presente, quando as pessoas não dialogam mais com o passado. (12) Uma direita perversa e corrupta no Brasil e no mundo. Exemplo maior é o filme O capital, do diretor Costa Gravas. (13) As guerras que desestabilizaram o mundo e já fazem a quantidade de refugiados ser a décima nona população do planeta. Mas eu recomendaria dois livros fundamentais à compreensão da realidade do mundo, o primeiro Conflito de fundamentalismos, do paquistanês Tarik Ali; e o segundo A desordem mundial, do brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, recentemente falecido. Ninguém previu a queda do Muro de Berlim, não sei o que podemos esperar para o futuro. No Brasil de hoje, muito menos. Quanto às questões de gênero e a homofobia acho que a geração dos anos sessenta do século XX, não aquela europeia que gerou a luta armada, mas a americana que propôs a liberação dos costumes desde Woodstock, deu uma contribuição irreversível em relação à liberação, creio ser momentâneo e superável, embora sofrido, esse momento. Embora ache que cada sujeito possa gostar ou desgostar de alguém ou que o caráter de cada um independe dessa problemática, porque há pessoas boas e ruins entre negros, brancos, judeus, argentinos, homossexuais e heterossexuais, (não tenho consideração por bissexuais porque envolvem pessoas que não sabem da vida privada deles, como esposas e filhos, em minha opinião ambiguidade tem limite), transexuais, muçulmanos, cristãos, umbandistas, ateus, agnósticos, sendo que ninguém é obrigado a achar todo mundo gente boa para caramba! Mas o que eu penso das pessoas não me dá o direito de discriminá-las nem me obriga a conviver com ninguém. Quanto à tolerância, Amoz Oz em seu livro Fanatismo defende a ambivalência como a possibilidade de se pôr no lugar do outro e assim dialogar, um escritor em seus personagens normalmente faz isso.

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Gustavo Bernardo Krause Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1955. Vive no Rio de Janeiro (RJ). Entrevista concedida a Vitor Cei e Eduardo Freire Ribeiro em abril de 2016. Respostas revistas pelo autor em janeiro de 2017. Publicada na Clareira - Revista de Filosofia da Região Amazônica, v. 4, 2017.

Há vários anos assistimos no Brasil à discussão em torno do problema de uma filosofia nacional, e da necessidade de afirmação de uma linguagem nacional no âmbito da filosofia. Muitos autores gostariam de falar em uma filosofia brasileira do mesmo modo que falamos em uma filosofia francesa, em uma filosofia alemã ou inglesa. Quais seriam as características do filosofar brasileiro?  A filosofia no Brasil ainda se encontra fortemente preocupada em criar e legitimar a disciplina “filosofia” na universidade. Essa preocupação não ajuda a formar uma filosofia brasileira, antes atrapalha um pouco. O filósofo brasileiro mais citado no exterior nem nasceu no Brasil nem é muito lido pelos brasileiros. Falo de Vilém Flusser, que nasceu em Praga, mas viveu no Brasil por 30 anos e começou a publicar sua obra entre nós, em português. Ele reconhecia dois grandes pensadores no Brasil: Vicente Ferreira da Silva e João Guimarães Rosa. Esse reconhecimento já indica o quanto a nossa filosofia se confunde e se mescla com a nossa literatura, o que nos leva à pergunta seguinte.   Você concorda que alguns escritores brasileiros, tais como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Gustavo Bernardo são capazes de expressar intuições filosóficas ligadas às suas respectivas épocas? Antonio Candido e Paulo Arantes afirmam que a filosofia sempre ocupou um lugar subalterno na evolução de conjunto da cultura nacional. Para eles, a literatura, mais que a filosofia, seria o fenômeno central da vida do espírito no Brasil. O que você pensa a esse respeito? Uma bela pergunta!, mais ainda por me colocar na companhia dos dois maiores escritores brasileiros! Ainda poderíamos trazer para grupo tão seleto Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector: ambos também filosofaram em verso e prosa, sem sombra de dúvida. Nesse sentido, concordo com Candido e Arantes, e acrescento: a vida do espírito no Brasil resiste através da literatura. As obras desses quatro autores, em que pesem as grandes diferenças, têm em comum o refinamento filosófico no mais alto grau. Na verdade, não me vejo ao lado deles, se até hoje ainda não sei se sou escritor, apesar dos onze romances que publiquei, mas reconheço que me inspiro neles desde sempre, principalmente no maior de todos: Machado de Assis. Meus narradores são variações atualizadas dos narradores machadianos: todos sempre tentam se duplicar e assim pensar não para frente nem para trás, em linha, mas sim “para dentro”, formando espirais lógicas que chamo de “reviravoltas aninhadas”. Qual o procedimento para a criação de suas obras literárias? Comente sobre o seu processo criativo. 203

Escrevo desde criança, sem parar. Escrevo todo dia, de preferência pela manhã. Não espero nem busco inspiração, não acredito nela, apenas na transpiração. Por isso, também, não confio nas primeiras coisas que escrevo, o que me obriga a reescrever várias vezes cada texto, tanto faz se de ensaio ou de ficção. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se considerou escritor? Mal aprendi a ler, desejei ardorosamente entrar dentro dos livros, virar um personagem! Como isso não era possível, passei logo a querer estar na outra ponta, ou seja, no lugar do escritor. Já que não podia ser personagem, precisei me contentar em ser escritor. No entanto, até hoje não me apresento como “escritor”. Se me perguntam a profissão, respondo, com orgulho: “professor”. Professor eu sou, e bem razoável. Mas os leitores é que me dizem, a cada livro, se consegui me tornar escritor, pelo menos naquele livro. Continuo dizendo que, quando crescer, quero ser um escritor (apesar de já estar com 60 anos de idade). Continuo tentando ser um escritor, mesmo já tendo publicado 11 romances e 12 livros de ensaio. Como você vê a recepção de sua obra? Qual é a sensação de ir a uma livraria ou biblioteca e encontrar um livro seu? Ou ainda, qual é a sensação de encontrar alguém lendo um livro seu? Bem, adoro ver um livro meu na prateleira de uma livraria, mas isso é menos comum do que eu gostaria. Cada vez mais as livrarias mostram apenas os best-sellers, e meus livros nunca atingiram esse status. Entretanto, como quase todos os meus livros vendem sempre, consideram-me um “long-seller”, o que também é bastante bom. Por isso, talvez, a minha emoção maior se dá quando descubro um livro meu no sebo, melhor ainda se for num sebo na calçada, no meio de uma praça pública. Fico, claro, fascinado em ver alguém lendo um livro meu, mais ainda se esse alguém me manda uma carta (como antigamente) ou me escreve um email, me dizendo o que achou da leitura. Portanto, meus amigos entrevistadores de tão longe, aguardo ansioso o comentário de vocês sobre um ou mais de meus livros! Ao ler o conto-ensaio “O milagre menor do corvo de Poe”, imaginamos um fascínio pela eternidade, partindo das palavras ditas no texto. A eternidade, o nada, o não-tempo, o não-lugar. Colocando tais expressões ao lado do livro A ficção de Deus, perguntamos: você busca, como escritor, o eterno e o nada na literatura? Sem dúvida, escrevo buscando alguma transcendência, escrevo para ir aonde não posso ir, escrevo para que pelo menos as minhas palavrinhas me superem. Cada personagem que crio me transcende, me torna outro, “me outra”, como queria Fernando Pessoa. Busco sempre esse outro inacessível, inominável e inefável. Claro, quem pode ser o Inteiramente Outro senão o personagem dos personagens, aquele a quem chamaram de Deus porque não podiam dizer o nome? De algum modo, eu, que não acredito, que me considero ateu, procuro tanto Deus como aqueles que acreditam. Como você vê a produção de contos atualmente no Brasil? E a recepção desse gênero literário pelo público? 204

Vivemos, já há algum tempo, um paradoxo: enquanto a quantidade de escritores, poetas, contistas e romancistas, cresce cada vez mais, diminui, na mesma velocidade e proporção, o número de leitores. É muito bom que mais gente escreva, mas é muito ruim que menos gente leia – principalmente, que as próprias pessoas que escrevem estejam lendo menos. Isso nos leva a uma espécie de endogenia perigosa: escrevemos para nossos pares, escrevemos para nossos coleguinhas, não simplesmente para quaisquer leitores. Isso me assusta tanto que acabo fugindo da pergunta, como devem ter reparado. Quanto aos romances, você acredita que o público está preparado para receber novas obras, como Nanook, ou vê a sociedade muito ligada aos cânones de eras passadas? Como qualquer escritor, não sou o melhor juiz da minha obra. Feita a ressalva, devo dizer que não me considero um autor inovador, como o foram Machado de Assis e Guimarães Rosa. Embora eles me inspirem muito, não creio que tenha chegado sequer aos pés deles. Tento contar uma história cada vez de um jeito ligeiramente diferente, mas retomando sempre os cânones passados. Feita a autocrítica, no entanto, lembro que a obrigação da originalidade era do romantismo, uma variante do realismo burguês que gostava de fingir que era revolucionária, não o sendo de modo algum. Na literatura como em toda arte, o presente não é necessariamente melhor do que o passado. Nenhum dramaturgo superou Sófocles, assim como nenhum romancista superou Cervantes ou Machado. Dada esta aula pedante, porém, creio que Nanook até merece a deferência que vocês me fazem, porque nesse romance tentei combinar ficção e filosofia com o máximo de leveza – e, por enquanto, acho que consegui! Você considera importante que o professor de literatura também seja escritor? Sim. Não um grande escritor, que isso quem decide são os outros, mas, simplesmente, escritor. Acredito num único método de educação: o do exemplo. Só ensina a ler quem lê muito e mostra para seus alunos o que está lendo e como está lendo. Só ensina a escrever quem escreve e reescreve muito, e mostra para seus alunos todo esse processo. Se o professor de literatura apenas “manda” ler, mas não mostra que leu e que o fez de maneira entusiasmada, o que ele ensina é o desprezo pela leitura e pela literatura. Se o professor de redação apenas “manda” escrever para meter a caneta vermelha no texto do aluno, ele ensina apenas a desescrever. É lamentável que os nossos cursos de Letras não se espelhem nos demais cursos universitários de artes: enquanto quem faz música toca um instrumento, quem faz teatro sobe no palco, quem faz dança, dança muito, quem faz Letras costuma parar de escrever, envergonhado. Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever, ou seja, que já são escritores e prescindem do estudo universitário? Não. Isso, acho que só o tempo percebe. Como professor, invisto mais atenção naqueles que demonstram mais dificuldade. Escritores devem se descobrir sozinhos, me parece. Por outro lado, não se aprende a escrever, principalmente ficção, na universidade. Samba não se aprende na escola, já dizia o sambista. Na 205

verdade, samba, arte e literatura nunca se aprendem, estão sempre se aprendendo. Que técnicas você usa para incentivar os seus alunos a escrever? Só uso dois métodos: o velho método do exemplo e o novo método da provocação. Mostro o que estou lendo e escrevendo, sempre. E faço perguntas em cascata, às vezes irônicas, sempre provocativas. A escola como um todo também faz muitas perguntas aos alunos. Entretanto, essas perguntas costumam ser falsas perguntas, porque quem pergunta já sabe a resposta. Tento fazer perguntas, inclusive e principalmente nas provas, para as quais eu mesmo não sei as respostas, perguntas que correspondem às minhas inquietações e ansiedades. O que me interessa é o raciocínio, a exploração da dúvida, não a resposta supostamente “certa”. No Brasil, a literatura tem um alcance bastante limitado em termos de público. Qual conselho você deixa àqueles que anseiam pela carreira de escritor? Primeiro, não recomendo seguir a carreira se deseja ganhar dinheiro. Aliás, não recomendo seguir carreira nenhuma apenas com essa meta em vista. Ganhar dinheiro é consequência, ou não. Não controlamos a recepção do nosso trabalho. Segundo, recomendo resistir a cada recusa de original, a cada crítica negativa, a cada silêncio mortal, a cada gozação ou humilhação. Finalmente, recomendo insistir, escrevendo e reescrevendo sempre, produzindo material para perturbar toda semana um editor novo até que alguém publique o seu texto, os seus poemas, o seu romance.

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Gustavo Felicíssimo Nasceu em Marília (SP), em 1971. Vive em Itabuna (BA). Entrevista concedida a Vitor Cei em julho de 2019.

Você escreve principalmente poesia, ficção e crônica. João Filho, no texto da orelha de Carta a Rubem Braga (Mondrongo, 2017), afirma que “Gustavo Felicíssimo faz da crônica um tipo de nomadismo”. Em Outros Silêncios (Mondrongo, 2011), na “Nota do Autor”, você diz que devemos nos amalgamar ao haicai “como se acompanhássemos naturalmente o fluir do tempo”. Em que medida essas assertivas dizem de seu processo criativo? Descreva as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. Sempre que me definem em relação à literatura, afirmo que antes de tudo sou escritor, pois não me vejo limitado por esse ou aquele gênero. Minha trajetória se resolve, antes de tudo, como poeta, mas em parelho à poesia, que é o gênero que mais devo ter estudado e escrito, sempre produzi a crítica, a escrita ficcional e a crônica. Os estudos que empreendi me levaram a uma consciência literária que me deixa confortável em todos esses gêneros, para os quais, acredito, tenho algum talento. Então, quando João fala sobre esse “nomadismo” da minha crônica, ele, que me conhece muito bem, está apontando que dentro desse gênero vou com fluência do biografismo à crítica literária, da história à filosofia, da metafísica à boemia e ao futebol. Meu intuito é o mesmo sempre, como tratar de temas relevantes e agradáveis, mantendo certa tensão, lirismo e o equilíbrio estético. Esse “amálgama”, que você extrai de minha nota ao Outros Silêncios, nada mais é que a consciência literária, algo que se forja com o fluir do tempo, como cito no mesmo texto. Resumindo: entendo que literatura não se faz com achismos ou tiros no escuro, mas com labor, conhecimento e, claro, algum talento. Em entrevista concedida ao projeto “Como eu escrevo”, do José Nunes, você afirma que “Felizmente fui capaz de frear o ímpeto de me publicar muito jovem, o que ocorreu apenas às portas dos meus 40 anos”. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? O gosto pela leitura veio antes da escrita. E a escrita se fez como descoberta. Assim, minha trajetória literária se inicia com o leitor que sempre fui desde muito jovem. E esse leitor, ao longo do caminho, em algum momento começou a rabiscar versos sem qualquer pretensão. Mas, quando penso a respeito de um momento inaugural, lembro sempre do dia em que uma antiga namorada me deu um caderninho, sugerindo que eu anotasse ali o que escrevia. Um caderninho sucedeu o outro, e outro e outro. Logo eram muitos, onde eu escrevia freneticamente. Deles, quase nada utilizei, mas tudo serviu como exercício e, também, para o desenvolvimento do gosto pela escrita. Entretanto, imagino que minha alma foi salva de um infarto fulminante no dia em que ganhei aquele primeiro caderninho. Foi depois dele que desconfiei poder, algum dia, me tornar escritor.

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Você já publicou artigos em revistas, jornais e sites literários, dentre os quais A Tarde, O Escritor (UBE), Cronópios e Zunai, além de ter sido editor do SOPA e da TOCAIA. Em que medida a obrigatoriedade de manter um exercício de reflexão constante em um espaço como o de periódicos pode contribuir para o fazer literário? Publicar todo tipo de texto nestes locais que você cita e em outros reprimiu em mim o ímpeto de me lançar em livro antes do momento que julgava o mais adequado. Mas, observe: minha necessidade era a de escrever, publicar sempre foi algo secundário, mas que sempre entendi como uma forma de me colocar a prova. Dos retornos que recebia fui tirando aquilo que julgava útil para o meu amadurecimento. Sua obra já foi contemplada com muitos prêmios literários. Como você avalia a recepção de sua obra? Em que medida os prêmios literários influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Sem falsa modéstia, não me dizem nada. Até porque nunca venci um prêmio realmente importante ao ponto de influenciar em algum reconhecimento que minha obra (se é que tenho uma) teve. Me orgulho mais, ou mais especificamente, de alguns trabalhos acadêmicos que foram escritos sobre alguns livros meus e, também, por ter dado alguma colaboração à obra de alguns escritores ao longo do tempo. Em Carta a Rubem Braga (Mondrongo, 2017), fica evidente a intertextualidade com o cronista capixaba. Edson Kenji Iura, no texto da orelha de Outros Silêncios (Mondrongo, 2011), afirma que “Gustavo Felicíssimo soube plasmar todas as influências recebidas de baianos como Afrânio, Oldegar Vieira, Gil Nunesmaia e Abel Pereira”. Com que outros escritores você procura estabelecer interlocuções? Como lidar com esses autores que, a um só tempo, fornecem inspiração e impõem o peso da tradição? Sou daqueles escritores que dialogam com a tradição, o que o amigo Wladimir Saldanha, a partir de Harold Bloom, chama de “underground estético”. Para alguns escritores, entre os quais me incluo, fugir do vale-tudo culturalista é uma questão de sobrevivência. Desse modo, o diálogo e até mesmo a busca pela emulação de autores referenciais não é uma opção, mas necessidade e princípio. Assim, em Outros Silêncios utilizo formas características da literatura japonesa; em Blues Para Marília o cariz mais acentuado que busquei foi o do blue note, o lamento e reminiscências; Desordem, já a partir do título, traz um diálogo intenso com Gullar, que é o meu poeta favorito, o que mais me influenciou, e que, justamente por isso, é a obra em que reúno parte da minha produção imersa na metalinguagem e na metafísica existencialista. Tais vertentes, a meu ver, são para o poeta a alma da poesia, tal como Platão descreveu, no Fedro, a alma humana. Em Procura & Outros Poemas, livro que está em 3ª edição, utilizo uma forma fixa incomum, a Retranca, que é uma forma poética toda vazada em octossílabos, criada pelo poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo, seguramente uma das montanhas da poesia brasileira, mas que ainda não tem o merecido reconhecimento, como tantos, aliás. É claro que para isso dar certo o escritor precisa ter talento, domínio das formas utilizadas e leitura de autores referenciais, mas, sobretudo, é necessário 208

clareza sobre o fazer literatura, pois ao mesmo tempo em que nos aproximamos disso tudo, precisamos de boa dose de consciência literária para imprimir um dictum particular, senão vira cópia, como foi o caso de um dos mais recentes premiados no Jabuti com um livro de poesia. Você tem organizado e participado de festivais e feiras literárias. Que avaliação crítica você faz a respeito da contribuição desses eventos para a divulgação do trabalho de novos escritores e para o fomento à leitura no país? Tenho dúvidas se esse tipo de evento dá conta do fomento à leitura no país, para mim este é um papel, em primeiro lugar, da família, depois da escola. Fora disso é balela. Também não se divulga novos escritores. Para esses eventos o que interessa são os medalhões. O que vejo é que há uma forma mercantil de entretenimento que envolve o livro, onde quem realmente ganha é quem mais pode investir para se destacar na fauna de editoras ávidas por mais mercado. Agora, melhor estar numa feira de livros que no show do Safadão. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Embora exista um mau gosto generalizado grassando parte importante do todo, eu vejo um país com ótimos escritores, sejam eles poetas ou ficcionistas. Mas como vivemos um tempo pobre de reais valores, isso não é visto pela sociedade em geral. Pensando como escritor e editor da Mondrongo, quais são os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? Para a edição não há desafio algum. Eu já editei autores considerados iniciantes, cujos livros venceram ou foram finalistas de importantes prêmios literários. O desafio é fazer o livro circular para um público maior. Precisamos dar um salto e a internet é uma ótima aliada. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? O problema é que no Brasil, quando uma pessoa encana de ser artista e descobre não ter talento pra nada, ela logo entende que a poesia é a sua tábua de salvação, enquanto, no máximo, o que a poesia pode fazer é salvar-lhe a alma. E aí fica aquele vale tudo, aquela coisa chata de um monte de poeta preguiçoso, que não estuda e acha que o modernismo salvou a poesia brasileira. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Estou sempre criando. E dado à gaveta quase tudo que escrevo. Mas, apesar disso, tenho pronto um livro de contos, o meu segundo livro de crônicas e ao menos três livros de poesia, um deles, nascido a partir de uma investigação que fiz sobre o mito de Phaêton, filho de Hélios (o Sol) e de Climene, uma Oceanide. Trata-se do que chamamos de um poema-livro. O que o leitor verá nele não é uma 209

tentativa de interpretação do mito, mas uma criação baseada em uma possibilidade diversa do original, relatado em tom dramático por Ovídio em suas Metamorfoses, tendo em vista uma questão que me assaltou quando travei contato com a história. Perguntei-me: e se o vaidoso Phaêton não tivesse morrido após ser fulminado com um raio por Zeus, o que lhe poderia ter acontecido? Chama-se Oratório das Águas e está entregue agora a um ilustrador. Se tudo der certo sai ainda em 2019. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Todo tipo de preconceito e belicismo são condenáveis em qualquer instância. Mas sua pergunta suscita em mim alguns pesares, pois se já fui militante de esquerda, hoje sofro a desilusão por ter visto o partido ao qual dei alguma colaboração se aliar ao que há de pior na política brasileira. Ao mesmo tempo vi a esquerda submergir ideologicamente e moralmente. Daí que, se por um lado não tenho predisposição para bancar o paladino da moralidade, tampouco me deixarei identificar com posturas duvidosas. Por isso resolvi me resumir à minha família e ao meu trabalho. Minha questão agora é meramente livresca.

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Hélio Rocha Nasceu em Lábrea (AM), em 1965. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei, Claudete Rodrigues, Helen Ribeiro, Lurriene Gutierres e Rita Maciel em maio de 2016. Respostas revistas pelo autor em em setembro de 2018.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Desde criança, gostava de histórias, fossem elas lidas ou simplesmente contadas por um narrador, especialmente ao cair da noite. Quando aprendi a ler, nos reuníamos, meus irmãos e eu, à luz de lamparina, para as leituras da noite. Até hoje me lembro de uma história sobre a onça e o macaco. Essa história estava na contracapa de uma cartilha de alfabetização, se é que me lembro bem. E na escola, eu sempre me saía bem ao escrever histórias, ou, como diziam, composições textuais. Lembro a professora colando figuras no quadro e pedindo para que escrevêssemos uma composição. Sempre me dava bem; escrevia rápido e saía pela janela para brincar... Sempre fui imaginativo, como toda criança. Aos doze aos de idade, tínhamos um diário, um relicário em que fazíamos perguntas e os amigos respondiam, uns às perguntas dos outros. No meu diário registrava os acontecimentos do meu dia a dia. Brincadeiras, brigas, surras, banhos, escola, tarefas, revoltas, fofocas sobre namoros, paixões platônicas e sonhos de conhecer o mundo e escrever contra as mazelas sociais. Fui criado em lar cristão, vendo meu pai, e principalmente minha mãe, lendo a Bíblia e as revistas semanais da Igreja. No lar em que cresci, fazíamos leituras bíblicas antes do café da manhã, do almoço e da janta. Fazíamos a oração e cantávamos um hino em agradecimento a Deus pelo pão, etc. Até hoje faço isso na minha casa, quando posso. Acho que não é bem se perceber como escritor, pois não me vejo assim. Penso que todos nós, professores, somos escritores. A diferença está em quem se projeta para além de seus escritos através da publicação, da divulgação desses textos. Nunca escrevi sem qualquer base histórica, social e antropológica. Meu objeto é o homem, a Amazônia, o humano e o não humano, os demais animais. Gosto de romances, mas com um pé na história, na geografia e no social. Não escrevo para satisfazer o leitor, muito menos para instruí-lo, escrevo para apresentar-lhe os mundos a partir do meu olhar de amazônida. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

A falta de políticas públicas voltadas para a editoração de obras de novos autores. O descaso da própria Universidade com as letras, com a cultura da palavra, com os inúmeros registros historiográficos da Amazônia, em especial. Há uma espécie de alienação em relação a essa questão. Ninguém escreve para guardar na gaveta. Escrevemos para que leitores devorem esses textos e emitam suas opiniões, algo ainda incomum em Rondônia, mesmo no curso de Letras, mesmo entre os professores de literatura ou estudos linguísticos. Há certa resistência, eu 211

diria mesmo que há um preconceito geográfico muito grande em nossa instituição. Isso se estende por toda a região. Nem mesmo a Editora da UNIR, a EDUFRO, lança editais para processo seletivo de textos, crônicas, obras poéticas, etc. para publicação. É uma espécie de miopia, de segregação e de alienação. Pessoas com falta de visão e, também, de viagens, são colocadas como diretores, etc. de espaços que podem e devem valorizar e oportunizar a produção intelectual e cultural de novos escritores, principalmente na Amazônia, onde se carece de muitas bibliotecas com livros bons e de leitores ávidos por uma boa dose de conhecimento e diversão literária. Como cegos ou colonizadores míopes, esses diretores, etc. olham para seu próprio umbigo e condenam a instituição e o alunado e até professores e pesquisadores a permanecerem “À margem da história”. Se queres publicar, deves se dirigir a outros centros, a outras instituições e a pessoas críticas e conscientes do valor de escrita. Você está escrevendo algum livro no momento? Sim, sempre estou escrevendo, anotando ideias, traduzindo relatos e tentando publicar. Há dois livros no forno e estou traduzindo um relato de viagem – In the Amazon jungle, de um escritor sueco que morou em Benjamin Constant, no Amazonas, em 1910. Como você define a sua obra? Histórica e Literária, pois procuro trazer cenas históricas para o texto que escrevo. Um exemplo é o Gaivotas, outro é o romance Maciary. Coronel Labre, que deve ser lançado em maio aqui em Porto Velho, apesar de ser uma biografia crítica, apresenta trechos memorialistas da minha infância. Seu livro Gaivotas traça uma relação intertextual com o discurso histórico de autores que retrataram a região Amazônica, tais como Márcio Souza, H. M. Tomlinson, A. R. P. Labre e Anthony Smith, dentre outros. Você vê traços em comum entre a pesquisa acadêmica e a escrita ficcional? Sim. Todo escritor é imaginativo, mas também um leitor viciado em livros. Leio de tudo. Dos gibis às biografias de vultos históricos. Do mau texto ao excelente; do patético ao cômico, etc. O Gaivotas, por exemplo, nasceu de leituras de viajantes estrangeiros pela Amazônia. Também da observação atenta das atividades sociais nos espaços públicos, como no conto “Dany”. Entrelaço personagens históricos com ficcionais. Não acredito em uma separação clara entre a história dos vivos e dos mortos, dos históricos e dos ficcionais. Tudo é representação. Para mim, meus personagens são seres vivos espalhados não apenas na minha mente, mas no contexto urbano ou rural, fluvial, etc. Converso com eles quando estou em devaneios oníricos. Eles me respondem, me dão pistas, dizem-me como estão, para onde vão e me guiam... Posso influenciá-los também. Da minha pesquisa historiográfica para a disciplina que ministro no mestrado – Historiografia Amazônica – nasceu o Maciary e parte do Gaivotas. Do meu resultado de pós-doutorado vai nascer o romance do Coronel Labre. Ele está me incomodando para dar-lhe forma... Mas no momento estou com traduções. Vou escrever nas férias. Você vê traços em comum entre a tradução (como você a pratica) e a 212

escrita autoral? Sim. Todo entendimento é tradução. Só compreendemos algo, só internalizamos esse conhecimento se o traduzimos para nosso o espírito. Eu preciso aprender ouvindo vozes, auscultando mortos. No processo de tradução, no atravessamento de culturas – esses rios quase intransponíveis – o ideal é que ouçamos o narrador da obra traduzida. Claro que temos que ter em mente a cultura alvo, mas ela já deve ser nossa conhecida. Já aconteceu de você achar algum texto intraduzível? Não. Trechos, sim. Expressões, sim. Aí deve-se colocar uma nota explicativa. Isso também é tradução, se pensarmos em entendimento, compreensão ou tentativa de – da outra cultura. Você considera importante que o professor de Literatura também seja escritor? Seria o ideal. Não há literatura sem esse produtor de tramas... Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever, ou seja, que já são escritores e prescindem da academia? Nem tanto. Gosto de me surpreender, por isso peço aos alunos que, ao final de cada aula, produzam um pequeno apanhado de ideias do que estudamos no decorrer da tarde. (Minhas aulas são nesse horário). Além de evitar o plágio – uma doença entre escritores noviços – é um exercício de apreensão do narrado e uma prática escritural necessária. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Um risco para a literatura, não apenas a nacional. Com o advento da Internet, alastraram-se os plágios. Todos os escritores procuram estímulos – isso não falta –, mas a tendência é a repetição, é o simulacro. Não há mais o que dizer? Acho que sim, se cada escritor seguir seu coração, seu tempo, sua paixão, sua razão e emoção. A Literatura sempre esteve em crise, e não é agora que vai se curar. Escrever também é um exorcismo. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Como leitor assíduo de relatos de viajantes estrangeiros ao Brasil e, em especial, à região amazônica, desde Carvajal (século XVI), e lendo também os relatos e crônicas dos viajantes dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX e, nos últimos 5 anos, trabalhando a tradução de alguns relatos, afirmo que todos esses viajantes trazem maior ou menor quantidade de assertivas preconceituosas em relação aos nativos e suas culturas. 213

Darcy Ribeiro, em O processo civilizatório: etapas da evolução sócio-cultural (1978), divide, a partir da bibliografia à disposição na época, a história humana em três etapas gerais da evolução: a Selvageria, a Barbárie e a Civilização, cada uma dessas etapas se dividindo igualmente em três idades: a Inferior, a Média e a Superior. A partir dessas divisões, Darcy elabora o seu estudo da evolução sócio-cultural ameríndia. Com essa digressão, quero mostrar que nós, brasileiros, herdamos a tradição da civilização europeia que é, por nós mesmos, considerada – e isso tem uma história registrada e repassada nas instituições de ensino, etc. –, como a corrente principal ou central da “evolução humana”. Por tudo isso, eu mesmo, enquanto estudioso de narrativas de viajantes estrangeiros e de outras produções que tenham como ambiente a região pan-amazônica, meço, ou nós mesmos, brasileiros, medimos os outros povos, principalmente os ameríndios, à medida da cultura europeia ou estadunidense. Como alguns antropólogos e historiadores, acredito que, para muitos de nós, o sentido do progresso consiste em fazer, transformar, amalgamar, deixar, forçar, etc., o nativo amazônico, principalmente (digo isso porque me autodenomino amazônida), caboclo, mais parecidos com aos europeus ou estadunidenses, por acreditarmos que, do ponto de vista político, social, industrial e ideológico, essas culturas são modelos. Além disso, os melhores estudos sobre a dita evolução cultural corroboram esse ponto de vista. É necessário, a meu ver, um grande esforço mental, um demorado exercício de humildade, de fé também, de vigor do pensamento, por parte do intelectual colonizado amazônida, para fazer um mergulho nesse “passado” construído em narrativas sobre esse Novo Mundo (invenção europeia), sobre as Amazônias, para que, a partir daí, possamos refazer nosso processo e ou progresso intelectual, sabedor dessas “amarras” e “retratos”, essas representations construídas até o presente sobre nós e, o que é ainda mais perturbador, por acadêmicos e estudiosos brasileiros. Como um insider, como um caboclo que estuda e pensa, escreve e leciona sobre as Amazônias, tenho que ter todo um cuidado discursivo para enxergar essas construções depreciativas, racistas, minimizadoras das culturas caboclas, do homem nativo, do pensar dos indígenas, de todo esse mundo que passou e ainda passa por genocídios, etc. Essas monstruosidades estão guardadas nos relatos, nos romances, nas artes, nos documentos, enfim, estão em nossas mentes, em nossos modos de ser e de dizer; arraigados em nossos cérebros, em nossas vontades de imitação do outsider.  Penso que os relatos de viagem, como fonte documental de olhares e pinturas sobre o Brasil e sobre a Amazônia, de onde eu falo, são fontes das mais diversas teorias, das racistas às de extermínio desse Outro violado e visto como indivíduo sem cultura, ou, como dizem os primeiros viajantes, “sem fé, sem lei, sem rei”. Eu mesmo já ouvi colegas de trabalho falando depreciativamente sobre os nativos amazônicos. “Não sabem ler, não são isso ou aquilo...”, sempre se aucongratulando de que eles, sim, são o “modelo” de cultura, de homem, de sujeito.  Essa onda reacionária aumentou em termos de divulgação, creio eu, devido às novas tecnologias da informação. Entretanto, já estão postas desde a carta de Caminha, desde Colombo, de Padre Samuel Fritz (como de todos os missionários de ordens religiosas diversas); Agassiz, Humboldt, Condamine, Spix e Martius, e mesmo os repórteres investigativos que escreveram relatos de viagem sobre Rondônia e Acre, etc. reafirmam a feiura, a burrice, a fala de higiene, o atra214

so cultural, e por aí vai... dos nativos da Amazônia.  Nenhum desses viajantes, me parece, querem ou se veem na obrigação de viver como um amazônida, de ser um amazônida, mas tão somente de escrever SOBRE o nativo e seu “mundinho” primitivo. Aos seus olhos capitalistas, tudo que não é asfalto, prédios, represa, soja, gado, pastagem, etc. lhes causa ira. Tomados pelo sonho de acumulação de riquezas, etc. contribuem com o discurso progressista firmado contra a Natureza, isto é, na exploração de todos os recursos materiais, imateriais, etc. Assim é que o mundo do Outro, do viajado, do nativo, é invadido, detonado, depreciado, violado, desmoronado. Construir e repetir ad aeternum assertivas contra esse Outro, menor, eterna criança, etc. é o mote desses viajantes míopes às crenças, aos valores, à cosmogonia e cosmologia desses milhares de nativos amazônidas. Falo sempre sobre as Amazônias, é verdade. Sobre o que mais eu deveria falar senão sobre mim mesmo e meu tempo, meu mundo, meus ais e meus pensamentos? É preciso pensar o Self construído a partir de cacos de espelhos desses outros mundos, europeus e ou estadunidenses, colocar-se de fora desse quadro, desse paradigma de pensamento, voltar às raízes de seu próprio povo, como diz Frantz Fanon. Como Memmi, acredito que vivemos ainda precedidos pelo retrato desse outsider que se julga protótipo europeu, etc... Acolher o Outro e escutá-lo; aprender com ele a simplicidade, talvez, da vida, pode nos ajudar a viver melhor. Tolerância até que o outro se torne COMO eu... não é a saída ideal para uma better life.

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Herbert Farias Nasceu em Vitória (ES), em 1966. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em junho de 2019.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário? Em geral minhas narrativas chegam de modo inesperado, a partir de um insight ou mesmo de um sonho. Às vezes as cenas e personagens ficam armazenados durante anos, repetindo-se obsessivamente até que eu os ponha para agir. Gente que conheci há muito tempo e que se torna personagem em conexão com algum acontecimento surgido num estalo, num momento em que não esperava. Algo bem caótico. Talvez por isso eu não consiga manter uma disciplina, um modus operandi propriamente, agindo ao sabor do acaso. Mas meu ponto de vista para esses personagens surgidos “do nada”, ou o destino que lhes dou, é sempre temperado pelo descrédito, todos eles são o contrário do bom moço, até onde percebo não há propriamente heróis nas minhas histórias. No máximo, anti-heróis. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Comecei a escrever para tentar melhorar meu vocabulário e de repente comecei a gostar do rumo que cada narrativa tomava. Minhas primeiras tentativas foram na poesia, mas considerei meus versos um completo e risível fracasso. Daí parti para a prosa. Meu pensamento na época: se conseguir ser poético nas histórias que contar, será lucro. Caso não consiga, espero ao menos divertir meus leitores. Isso já ia lá pelo primeiro período de Letras, eu tinha 26 ou 27 anos. Seus três livros de contos – Itinerário de uma ausência (Secult, 2009), Mecanismos precários (Secult, 2010) e O sismo particular (Secult, 2014) – foram publicados pela Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo, depois de ganharem prêmios de incentivo e difusão de obras literárias inéditas de autores residentes no Estado. Quais são os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? Como você avalia a importância de prêmios literários e leis de incentivo à cultura? Na época não publicaria nada se não fossem os editais. Até então era preciso publicar a expensas próprias, que eu não tinha, ou me candidatar a prêmios de mil ou dois mil reais, de alguma empresa privada. Não me disponho a escrever um livro por tão pouco. Sou um operário da palavra, apesar da pouca frequência com que escrevo. Um operário digno do seu sustento, como assegura o texto bíblico. Não aspiro a viver de literatura, infelizmente, mas creio que o ato de escrever, pelo trabalho que requer, deve receber uma contrapartida decente. Os títulos dos seus três livros fazem referência a ausência, precariedade e catástrofe, enquanto os enredos dos contos estabelecem uma relação 216

entre abismo, criação, esterilidade e ruína. O entrelaçamento desses topoi remete ao fenômeno do niilismo, palavra-chave de parte das minhas pesquisas. Grosso modo, eu considero que somos niilistas toda vez que lamentamos a ausência de sentido do mundo, e que somos antiniilistas toda vez que somos capazes de atravessar o niilismo, criar valores e desenvolver formas de vida em que se verifique uma plena afirmação da imanência. Como você situa sua obra a partir dessa perspectiva? Meus personagens são sempre um deboche do otimismo, uma distopia multifacetada e em gotas. Sempre que imagino um personagem, uma situação, um ambiente, caso eles já não me cheguem deteriorados, distorcidos pelo próprio curso que assumiram na origem, quando me chegam, eu trato, no decorrer da história, consciente ou inconscientemente, de remeter ao degredo da esperança suas aspirações mais nobres. É certo que assim eles me agradam mais, mas também me parecem mais humanos, mais verossímeis. Como você avalia a recepção de sua obra? Sou suspeito para opinar, pois sou um péssimo comunicador e divulgador do meu trabalho, embora queira ser lido. Sou péssimo com redes sociais e eventos. Talvez seja o caso de contratar alguém para fazer essa anunciação. Aceito sugestões, rs. Mas em geral o que percebo é que o autor capixaba precisa ser conhecido fora do estado para que seu trabalho seja fruído por leitores além dos familiares e alguns amigos. Que autores brasileiros contemporâneos você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Identifico-me com a violência de Rubem Fonseca e Marçal Aquino. Também aprecio os traços sórdidos das narrativas de Pedro J. Nunes e os personagens turvos de Saulo Ribeiro, dois escritores capixabas de raro talento. Infelizmente, por falta de tempo não tenho acompanhado o panorama geral, pois concilio a literatura com atividades como a revisão textual de livros e trabalhos acadêmicos. Sempre estarei em déficit com as minhas ambições de leitura, um dia ainda me conformarei com isso. De que modo a sua experiência como professor se entrecruza com o trabalho de escrita? Só exerci o magistério por dois anos, 2013 e 2014, no ensino fundamental e no EJA. Mas muitos dos alunos e colegas com quem dividi o espaço da escola disciplinar, como é predominantemente a nossa escola, me inspiraram a escrever linhas nada libertadoras ou otimistas. Você está escrevendo algum livro no momento? Sim, a pouco e pouco está sendo gestado outro livro de contos. Também tenho anotações para dois romances de ficção científica, ainda bem embrionários. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. 217

Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Sempre foi necessário ao poder escolher inimigos para a destilação do ódio bem aplicado ao controle dos súditos, como bem ilustrado nos dois minutos de ódio, de 1984, de Orwell, só para ficarmos com um exemplo. Antes as bruxas, depois os judeus, hoje os homossexuais, amanhã talvez os velhos, como os odeiam os jovens gangsters de Laranja Mecânica. Mas sempre, em qualquer era, não importe quem mande, os pobres.

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Hudson Ribeiro Nasceu em Vitória (ES), em 1961. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em abril de 2018.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Polígrafo, você escreve poemas, contos, crônicas e ensaios filosóficos. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário? Há uma relação intrínseca entre conteúdo e forma, os poemas quando exigem ser expressos, surgem com uma urgência de um náufrago, mesmo que depois ocorra a lapidação, a nervura vem como um raio, os contos e as crônicas exigem uma maior elaboração, mesmo que a ideia originária surja de modo semelhante aos poemas, demandam uma lapidação mais demorada. Em relação aos ensaios filosóficos, é um labor embasado no rigor acadêmico; mesmo que ocorram licenciosidades poéticas, o vigor do pensar, capaz de propiciar uma análise com alguma agudeza, transita no horizonte mais ortodoxo do que os outros estilos escritos. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Penso que escrever é expressar algo de inusitado que se capta quando não estamos seguindo a multidão. A sensação de ser um estranho no ninho trago em mim desde muito pequeno. Embora não tenha deixado de viver a vida em cada uma de suas fases, sempre me desdobrava entre o eu que agia e o eu que observava. O escrever surgiu como consequência dessa dinâmica de ser sociável, mas cultivando a insociabilidade. Africanta: ser negro (Edição do autor, 2015) é a única obra publicada em que você se afirma explicitamente como autor negro e faz uma elegia à herança cultural africana. Como se deu o processo de assunção dessa identidade? Há tempos que eu vinha pensando em escrever uma obra onde eu assumisse a minha identidade afrobrasileira, que se formou ainda no ano de 1976, em uma viagem que fiz ao Rio de Janeiro e pude observar como, naquele estado, o assumir a negritude era uma questão de identidade levada muito a sério. Depois a urgência da participação da luta política com viés ideológico/econômico tornou-se primordial, devido aos anos de chumbo em que o pais vivia, isso por volta de 1978. No final de 2015 foi possível realizar o meu ideal em forma de uma seleção de poesias com a temática africana, e em forma de prosa, com o romance Kilombo Asé, ainda inédito. Como o racismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? Ser negro no Brasil é ser oprimido por algo que oficialmente não existe, pois, para o senso comum, vivemos em uma democracia racial, então, se o racismo não existe, como posso falar que sofro as suas opressões? Por conseguinte, todas as vezes que me debruço para escrever, seja em qualquer estilo literário, 219

como também, acerca de qualquer eixo temático, sou cônscio de que estou usando a sofisticação do discurso literário como algo raro em um país onde o comum é o fato de pessoas da mesma cor que eu estarem sendo exploradas em serviços subalternos, ou vagando pelas ruas, sem teto, sem nome, ou apodrecendo nas infectas prisões. Como você vê a recepção de sua obra? O mercado capixaba, mais até que o brasileiro de modo geral, ainda é muito reticente com obras de escritores locais. Penso que atinjo os meus propósitos quando pessoas de reconhecido gabarito intelectual elogiam as minhas obras, o que me incentiva a prosseguir na caminhada. Quanto ao público no geral, as minhas obras se ressentem de serem profissionalmente divulgadas. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, se preferir afastar a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Ressoando o que se passa com as artes em geral, vivemos um tempo onde a obra artística se parece cada vez mais com vender sabonete. É muito complexo expressar o pensamento mediante a palavra escrita, em um tempo onde a palavra escrita perdeu o seu vigor; então, vemos muitas obras em um desespero dantesco, tentando, ao invés de realizar uma reflexão acerca do que se passa nesse tempo tão exíguo, pela sua celeridade, refletirem como espelhos fiéis o que se passa nesse tempo tão exíguo, pela sua celeridade. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Sem dúvida é a distribuição, pois como o Sampaio já alertava: “um livro de poesia na gaveta não adianta nada”. Os editais da cultura se configuram apenas como verniz, quando incentivam a publicação de obras em concursos cada vez mais raros e excludentes, mas nada dizem sobre a distribuição. Outro fator é o citado acima: há uma concordância de que a literatura deve refletir o tempo hodierno, mas apenas no sentido de reflexo, e não de reflexão. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Você acha que, no país, a poesia deixou de ocupar um lugar de destaque no debate cultural? A poesia mesmo, penso que nunca ocupou um lugar de destaque, o que de fato ocorreu foi uma época em que os poetas ganharam maior destaque na imprensa, mas como uma imitação do que se passava em países europeus, o que nunca se traduziu como uma predileção do povo em cultivar a leitura da poesia. Você está escrevendo algum livro no momento? Estou debruçado, dentro do meu limitado tempo, em um texto que não sei se será teatro ou romance, com o título provisório de Cena Urbana. E, também, estou selecionando alguns poemas para a elaboração de dois livros. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda 220

reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade?  Para tentar responder à questão proposta, lanço mão da abordagem dialética e compreendo essa onda reacionária que assola o mundo, e principalmente o nosso país, como uma das facetas do sistema capitalista em sua fase de especulação financeira. Historicamente o confronto ideológico ocorre semelhante ao movimento de uma gangorra: ora a estabilidade econômica propicia contextos democráticos (lembro-me da ascensão de Carter e do desmonte das ditaduras latino-americanas), ora a crise econômica se torna terreno fértil para a propagação de ideias retrógadas (faço referência aqui à geopolítica atual, sob o comando do governo Trump). O grande diferencial dessa onda reacionária para as do passado é, sem dúvida, a onipresença da virtualidade, o que facilita a inversão de valores, garantida pela celeridade e anonimato da propagação dessas ideias, enquanto as ideias de cunho progressista são tratadas como inexistentes, por não se utilizarem dos mesmos métodos de propagação. Desse modo não há um marco crucial; podemos comparar essa conjuntura com uma gestação que nunca se finaliza, posto imbricar-se em outra sucessivamente, ou seja, enquanto as ideias revolucionárias não forem apropriadas pelo povo, viveremos em processos imperfeitos em sua carência de finalização. Penso, também, que o atual momento nos desafia a elaborar novas teorias acerca de “quê” e de “como” fazer para combater de forma eficaz essa onda reacionária; uma dica foi dada acima: é urgente tornar a propagação das ideias progressistas algo tão efetivo como são as assertivas conservadores. Alguma consideração final? Parabenizar a todos vocês pela iniciativa, pois creio que a esperança, se vigora, é em trabalhos como esse. Nesse sentido a ação é virótica. No devagar e sempre, como riscar um fósforo molhado, carece contundência e elegância para combinar serenidade e firmeza na medida certeira.

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Jacques Fux Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1977. Vive em Belo Horizonte (MG). Entrevista concedida a Vitor Cei, Débora Viana, Elianeide Nascimento, Geysse Menezes e Maíssa Feliciano em maio de 2016. Publicada na Labirinto, v. 25, 2016. Respostas revistas pelo autor em março de 2019.

Jacques, você é graduado em Matemática, com mestrado em Ciência da Computação e doutorado em Literatura Comparada, que são áreas bem distintas. Como você estabeleceu essa conexão entre a matemática e a literatura? Eu sempre gostei de ler, e um dos meus grandes ‘heróis’ literários era o escritor argentino Jorge Luis Borges. Eu lia seus textos, não entendia nada, mas adorava os mundos, as lógicas e os paradoxos que ele inventava e recriava. E eu sempre desconfiei que ele usava conceitos matemáticos em seus trabalhos. Até que um dia tomei coragem e resolvi fazer uma disciplina eletiva na pós-graduação em Estudos Literários. E foi uma alegria! Descobri que o mundo poderia ser bem maior e mais encantado do que aquelas notas horríveis que eu sempre tirava em matemática. Nessa disciplina também conheci o grupo de escritores e matemáticos franceses – Oulipo! Li pela primeira vez Georges Perec (não entendi nada), mas me apaixonei. E percebi que poderia continuar brincando com matemática de uma forma mais leve através da literatura desses grandes autores. Qual o procedimento para a criação de suas obras literárias? Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Quando eu decido escrever sobre algum tema, pesquiso muito. Leio teses, artigos científicos e livros de ficção e não ficção sobre o assunto. Algumas vezes converso com amigos para saber se eles têm referências e sugestões. Aí começo a escrever com uma ideia crua do que vai ser o livro. O mais legal é que, mesmo tendo um projeto, mesmo com diversas anotações e com uma estrutura (matemática) bem engendrada, não há muito controle de nada. O livro vai caminhando por veredas inimagináveis... algumas ideias não dão certo, outras ficam horríveis, muitas dão até vergonha. Em vários momentos sinto que está péssimo, que é necessário escrever de novo, jogar tudo fora. E aí o livro vai surgindo, bem diferente do que tinha imaginado. Essa é a beleza (e o sofrimento) da literatura. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se considerou escritor? Lancei minha primeira ficção em 2012. Antiterapias surgiu das ideias teóricas estudadas durante meu doutorado, e acreditava que partindo desse novo conhecimento poderia trazer algo diferente na literatura. Após a escrita do livro, e me ludibriando, sonhando e torcendo para que meu texto tivesse algum valor literário, fui em busca de editoras. Momento terrível, já que a maioria delas nunca me respondeu. Isso dá uma desanimada e uma raiva danada! Mas eu continuei tentando, e resolvi publicar o livro numa editora independente, que cobra, e muito, pelos seus sonhos e desejos. Depois do livro ser publicado, e ninguém ler, já que 222

a distribuição dessas editoras é bem pequena e talvez só seus amigos próximos tenham tido acesso ao livro, você fica sem saber se seu livro é bom, se pode continuar tentando escrever. Aí você sofre ainda mais. Como nunca desisti, e acho que nunca desistirei, inscrevi minha ficção em todos os concursos literários e acabei ganhando, talvez, o maior de todos. Foi uma imensa alegria! Esse prêmio me possibilitou ser lido, procurar uma editora maior para publicar meus novos textos, e me chamar (e começar a me enxergar) como um escritor debutante. No jornal O Globo do dia 10 de janeiro de 2014, o escritor e editor Mario Alex Rosa afirmou que em seu livro Antiterapias (Scriptum, 2012) você se apropria de textos de outros escritores, mantendo o domínio da autoficção. Seu livro Brochadas: confissões sexuais e invenções literárias (Rocco, 2015) segue a mesma lógica, ou seja, mantém influência de outros textos no domínio desse processo de escrita? Se sim, quais são eles? Essa questão da “apropriação” é um recurso literário já usado por Borges, Perec e muitos outros. Com a utilização de outros textos, eu imagino criar uma cadeia, uma rede, um entrelaçamento entre obras, autores e ideias que enriqueceriam meu texto. O Brochadas é repleto de citações, invenções e adulterações de filosofias, momentos históricos, biográficos e literários de inúmeros escritores. Quanto mais você perscrutar, mais e mais vai descobrir as brochadas, falhas e impotências da literatura francesa, inglesa, argentina, brasileira e judaica com quem o livro dialoga. obra?

Brochadas é considerado um romance ousado. Como você define essa

Acho que falar sobre um tabu é sempre complicado e delicado. É algo que atinge a virilidade e a vergonha do homem, e incomoda bastante as mulheres, também. Por isso, apesar de normal e comum, é um pouco “ousado” enfrentar e encarar tal “limitação”. Além disso, o livro apresenta uma pesquisa grande e profunda sobre o “cheiro” e os desencontros por conta dele, algo extremamente delicado. Há, ainda, uma voz feminina forte, elaborada e sutil, que pretende abalar as estruturas falocêntricas e machistas da nossa comunidade. Definiria como uma obra literária rígida, comprometida, vigorosa, pujante e claramente paradoxal! Para o homem, na maioria das vezes, assumir que brochou é um tabu, mas seu livro trata o tema com humor. O que te deixou tão à vontade para escrever sobre esse assunto? Acho que meus trabalhos têm algo que ainda é pouco trabalhado na nossa contemporaneidade literária brasileira: humor comprometido com o rigor e com responsabilidade literária e estética. É necessário rir, debochar, depreciar, mas sempre com qualidade, compromisso e obstinação linguística, estrutural e teórica. Além disso, sou o maior especialista em brochadas teóricas e empíricas do mundo! Isso não é para qualquer um! (Se alguém quiser compartilhar esse meu título, será um grande prazer passar o cajado (mole) para ele/ela.) Após a obra Antiterapias, pela qual você foi premiado, como está a 223

recepção de Brochadas? Como disse, com o prêmio do Antiterapias pude publicar por uma grande editora e começar a ser lido. Mas, mesmo com essa distinção, a visibilidade ainda é uma guerra. O Brochadas está circulando, foi bem falado, resenhado, discutido, mas ainda quero (ou sonho) com mais. Brochadas fala sobre todas as brochadas históricas, literárias, analíticas, mitológicas, religiosas, eruditas e banais, mas o título, acredito, leva a “crítica” a imaginar que é um livro “menor”, “escrachado”, algo de que discordo. Mas a recepção está boa, sim, os escritores é que nunca estão satisfeitos. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Acho que tem muita gente boa e comprometida escrevendo. Gosto de muitos livros de novos autores que ando lendo. Mas é tudo muito cruel e injusto. Há inúmeros outros fatores para o “sucesso” de um livro e de um escritor. Coisas que não dependem somente da qualidade literária do trabalho. Você está escrevendo algum novo livro? Sim. Acabo de finalizar um livro e vamos ver o que será da minha vida! A crise está afetando tudo. A venda de livros diminuiu e, com isso, as editoras estão publicando cada vez menos literatura brasileira contemporânea. Mais uma guerra para tentar vencer. Você tem alguma sugestão para quem deseja ser escritor? Ler muito, muito, muito! Ficção, não ficção, artigos, teses, receitas de bolo, bulas de remédio, literatura em línguas que não conhece, autores de quem não gosta, inimigos literários. Ser bastante cara de pau. Inscrever-se em todos os concursos. Brochar, brochar muito. O tempo todo, mas continuar escrevendo. Só é escritor quem não pode, não é capaz, não tem como desistir, mesmo diante dos fracassos e desilusões diárias. Após escrever duas obras de autoficção (Antiterapias e Brochadas), em Meshugá (José Olympio, 2016) você reinventa a vida e a obra de diversas personalidades históricas no intuito de desvelar os mistérios da loucura – especificamente do “judeu louco”. No entanto, por mais que deseje ser fiel à história biográfica e canônica, o narrador ficcionaliza a vida desses personagens e acaba se metamorfoseando em todos eles. Por que embaralhar as fronteiras da ficção e da realidade? O objetivo é misturar, enganar e trapacear o leitor com fatos biográficos, estudos acadêmicos e com muita ficção. O narrador, ao entrar na cabeça dos seus personagens, quer compreender a loucura. Quer entender um pouco mais dos atos extremos que esses personagens “reais” realizaram. Quer se consubstanciar e se metamorfosear com seus heróis. Essa é a beleza da literatura: as possibilidades artísticas e infinitas. E o embaralhamento de gêneros, de conceitos e de ideias!  Desde o início, sua obra recebeu avaliações positivas. Sua pesquisa de 224

doutorado sobre literatura e matemática foi contemplada com o Prêmio Capes de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2010, Antiterapias venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2013, Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor recebeu Menção Honrosa no Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2014, e Meshugá: um romance sobre a loucura, venceu o Prêmio Manaus de Literatura em 2016. De que maneira as premiações influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Como você avalia a recepção de sua obra para além dos prêmios literários? De fato, minha carreira só “decolou” por conta dos prêmios literários, em especial o Prêmio São Paulo. Porém, mesmo com esses “selos”, o caminho é difícil, árduo, e não se pode deixar de trabalhar e estar sempre atento aos seus escritos e à divulgação. O que quero é fazer com que a minha literatura chegue aos olhos do leitor – e, então, ele pode gostar ou não do trabalho. Acredito que faça parte da “tarefa do escritor contemporâneo” essa nova batalha, esse corpo a corpo. Vivo jogando “garrafas ao mar” – com qualidade e toda minha alma e esforço – e torço para que elas sejam recuperadas/recebidas por bons leitores. Em Nobel (José Olympio, 2018), o narrador autodeclara-se “reles escafandrista literário”, ou, ainda, “Um dos piores copistas da história literária”, por praticar a escrita de si a partir da leitura da tradição literária – a interpretação de si mesmo se daria a partir do encontro com os outros escritores, seus antecessores. Como lidar com os autores que, a um só tempo, fornecem inspiração e impõem o peso da autoridade? Esse é um conceito bem borgiano. Adoro. Acho incrível podermos escrever com esse “peso”, com esse volume de clássicos e histórias e belezas. O escritor contemporâneo precisa abraçar, se metamorfosear e se tornar um amálgama de tudo, de todos, e tentar – mesmo a duras penas – surgir com algo diferente, singelo, sensível. Usufruir de formas, palavras e imagens que resgatem o passado benjaminiano, mas que vislumbrem um futuro ainda não redescoberto. Em Antiterapias, o narrador já sonhava com o prêmio da Academia Sueca, finalmente conquistado em Nobel. Surpreendendo a todos – leitores, autores e editores –, o prêmio Nobel de Literatura de 2018 foi cancelado devido às denúncias de escândalos sexuais divulgadas. Num singular caso em que a vida imita – e endossa! – a ficção, Jacques Fux foi o único agraciado com o prêmio em 2018 (ainda que no âmbito ficcional). O que você achou disso? Sensacional, não? O narrador do Nobel escancarou os jogos políticos, sexuais e mesquinhos da Academia – e do mundo acadêmico. Ele se colocou no meio da polêmica, abraçou seus obscenos colegas e reivindicou um lugar no Olimpo. Fez um discurso sem papas na língua e recebeu o grande prêmio da Literatura. Nada mal, não é? Acho que a ficção compreende e explica muito mais o mundo e esse “real” inacessível do que as outras “ciências”. Espero que o Nobel seja lido e interpretado por esse momento histórico e de peculiar importância.

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Jarid Arraes Nasceu em Juazeiro do Norte (CE), em 1991. Vive em São Paulo (SP). Entrevista concedida a Luana Pagung e Vitor Cei em outubro de 2017. Publicada no livro Direitos Humanos às bordas do abismo (Praia Editora, 2018).

Cada escritora possui método e estilo próprios. Você poderia comentar sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário e, também, descrever o seu processo criativo na escrita de narrativas, poesia e cordel? Como ocorrem os trânsitos que você promove entre essas diferentes linguagens? Acho que a prosa e os cordéis têm em comum um maior planejamento do que as poesias. Quando decido escrever prosa ou cordel (o que é sempre uma decisão prática, organizada, com uma ideia já estruturada na cabeça), eu apenas crio um hábito de escrita com horários mais demarcados, com um tempo de duração mais definido. Nesses dois casos, eu “funciono” melhor assim. Então eu me sento, começo a escrever e termino. Com a prosa, claro, esse tempo até o término é mais longo, e a prosa envolve constantes revisões, mas com o cordel é bem mais simples. Provavelmente por causa da minha profunda familiaridade com o cordel, eu tenho muita facilidade em escrevê-lo. Daí eu escolho um domingo para escrever entre 5 e 10 cordéis novos, me sento e só levanto quando termino. Geralmente é rápido, só demora mais quando vou escrever cordéis biográficos, porque preciso trabalhar com datas, nomes de pessoas e lugares reais, o que é mais difícil de rimar. Já a poesia é muito mais espontânea, depende de algo que vejo, sinto ou penso, e que “de repente” me chega iniciado. Não gosto de chamar isso de inspiração, acho que é um processo natural do cérebro, o de juntar referenciais, informações, de elaborar sentimentos, pensar sobre as coisas e transformar tudo isso em poesia, que é uma intenção sempre presente. Desses três estilos, a poesia é a mais pessoal, a que mais revela sobre mim, e é a que escrevo a qualquer momento. Vendo série, no táxi, trabalhando, de repente, ou de acordo com meu humor, etc. Você teve forte contato com a literatura desde a infância e começou a publicar seus escritos aos 20 anos. Como se deu a passagem da leitora para a escritora? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Acho que o caminho foi gradual, porque eu passei por estilos diferentes de escrita até encontrar, mais ou menos, o que quero fazer principalmente. Digo “mais ou menos” porque não pretendo escolher um caminho só e abandonar os outros, acho só que é algo que depende do momento que estou vivendo. Eu comecei escrevendo adolescente, mas tudo era muito exercício, muito cópia dos poetas que eu lia, e depois, aos 19/20 eu comecei a escrever o que eu chamo de “textos de opinião”, sobre Direitos Humanos, na internet. Foi isso que abriu as portas para as outras formas de escrita, porque foi um processo de aprender a compartilhar com o mundo e perder o controle sobre o que eu escrevia. Em seguida veio o cordel, depois a prosa, depois a poesia. Então foram estágios necessários, partindo de onde eu me sentia mais segura, até um ponto em que eu sou mais pessoal.

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Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher, especialmente da mulher negra. No caso do cordel, o espaço das mulheres é ainda mais restrito. Como o machismo e o racismo presentes na sociedade brasileira em geral, e no meio cordelista em particular, afetam a sua escrita? Qual é a importância da tomada desse espaço por uma mulher? O machismo afeta minha escrita me tornando muito consciente do que faço, muito preocupada com o aspecto coletivo do que faço. Eu tenho total consciência do que eu represento, sobretudo quando consigo abrir espaços, conquistar coisas inéditas. Então meu trabalho é coletivo, é pensado para o coletivo, é pensado para que outras mulheres consigam colher vantagens a partir do que eu lutei, publiquei, discuti, etc. Também tem a questão das histórias, da minha visão de mundo, das minhas experiências pessoais. E isso é algo que todo escritor experiencia e escreve a partir de, por mais que negue. As coisas que escrevemos (todos nós) estão empapuçadas da nossa visão de mundo, dos nossos sentimentos, do lugar de onde viemos, da nossa cultura, família, ou seja, de quem somos. Então a obra de um homem não é menos política porque ele pensa que não. É tanto quanto a minha. A diferença é que não me faço de sonsa e sei. Então faço o exercício de pesquisar, refletir, de criar personagens que não sejam estereótipos ou clichês que revelam meus preconceitos. No caso da poesia, elas estão explicitamente falando de questões sociais e políticas que muitas vezes fazem parte da vida de muitas e muitas mulheres (e homens também, claro): loucura, abuso, identidade, a relação com o corpo, as portas fechadas. Aliás, essas portas fechadas são o maior exemplo de como o machismo afeta meu trabalho. Porque mulheres são menos convidadas, menos premiadas, menos reconhecidas, menos publicadas. Lógico que isso me afeta. Sei disso e luto contra isso o tempo inteiro. Por isso criei o Clube da Escrita Para Mulheres. No seu trabalho, como local de fala e objeto de escrita, abordar a pauta das mulheres negras surge como uma presença marcante. Em suas obras, tanto nos cordéis (como Heroínas Negras Brasileiras, Pólen, 2017) quanto no livro As Lendas de Dandara (Editora de Cultura, 2016), o resgate do papel das mulheres negras na história do Brasil é um importante mote. Você também foi responsável por criar o Clube da Escrita Para Mulheres, em 2015. Como surgiram essas ideias e como foi o processo de pesquisa para esses trabalhos? Qual é a importância da abordagem literária de questões étnicas e de gênero? Hoje vejo que As Lendas de Dandara e Heroínas Negras Brasileiras, além dos cordéis, foram estágios que precisei viver, na minha literatura, para comunicar de onde eu venho e quem eu sou. A ideia deles surgiu porque eu precisava escrever o que eu gostaria de ter lido quando adolescente, quando a literatura entrou com força total na minha vida, e também agora. Porque ainda agora esse tipo de obra não é publicada e encontrada. Então fiz, porque não tinha muitas outras alternativas, levando em consideração essa coceira política e coletiva que carrego comigo. Já o Clube da Escrita Para Mulheres nasceu da necessidade de me fortalecer e fortalecer outras. Porque, como eu disse, mulheres são menos publicadas, menos premiadas, menos convidadas para eventos. Mulheres enviam menos ori227

ginais para editoras, se autopublicam menos. É uma questão de autoestima, de autopercepção que é distorcida pelas lentes do machismo que colocam na gente. O Clube tem essa proposta de escrevermos juntas, trocarmos apoio. A gente faz exercícios técnicos de escrita, também criamos livremente, trocamos opinião sobre o que a outra escreveu, debatemos sobre o mercado editorial, os prêmios e eventos, e isso tem criado uma rede de muito fortalecimento. O Clube completa 2 anos agora em outubro de 2017 e já rendeu muita publicação. Em zines, em antologias, pela internet e, também, um romance, o Beijos no Chão, da Dani Costa Russo. A Dani começou como participante do Clube, depois de nove meses publicou seu livro e agora é uma das coordenadoras do projeto. Acho que esse exemplo explica muito bem o que o Clube é. Você possui uma coleção especial de cordéis para o público infantil. Quais foram as suas motivações para preparar um conteúdo voltado para crianças, que aborda as diversidades social, étnica e de gênero? E quais são as especificidades no preparo do texto para esse público? Quando eu era criança, eu tinha uma relação muito próxima com os livros. Aprendi a ler em casa, porque minha mãe lia para mim e comigo. Mas as histórias eram de princesas europeias, loiras, magras. Ou eram fábulas também europeias. Claro que eu não sabia dizer que a origem disso tudo era a Europa, mas eu sabia que nenhum personagem se parecia comigo e soube, aos poucos, que nada do que era africano chegava até minhas mãos. Então com os cordéis quis criar as histórias que eu não li quando eu mais precisava delas. Meninas que não querem ser princesas, ou princesas de cabelos crespos mágicos, bailarinas gordas, histórias que tem uma origem africana, enfim. São só outras histórias que possibilitam que as crianças se enxerguem muito mais nesses mundos fantásticos. Isso faz muita diferença. E eu não tento fazer nada muito diferente em termos de linguagem, porque eu não convivo muito com crianças, mas eu não acho legal subestimá-las. Escrevo com palavras acessíveis, mas não trato as crianças como incapazes de entender, questionar ou até pesquisar no dicionário (como eu fazia), a depender da idade. Você começou a publicar seus escritos no blog Mulher Dialética, e depois passou a colaborar em outros sites, como o Blogueiras Feministas, o Blogueiras Negras e a Revista Fórum. As novas tecnologias exercem alguma influência ou interferência em sua escrita? O que mudou na (e para a) literatura com o advento da internet? Acho que o que muda é que eu sei que não dependo de ninguém para publicar o que escrevo. Sei que posso criar um blog, publicar um e-book, fazer um vídeo lendo, uma live nas redes sociais, e que minhas obras chegarão até as pessoas. Mesmo que a editora x ou y, que o mercado merda (porque é uma merda) tente me barrar. Hoje não tenho essa dificuldade de forma tão intensa, porque há editoras interessadas no meu trabalho e que querem me publicar. São editoras menores, muitas vezes temos alguns problemas de distribuição, mas já estou nas livrarias e sei que se eu mostrar meu livro de contos (já escrito) ou de poesias (terminando de escrever), tenho editoras que gostariam de me publicar. Porém, se elas deixassem 228

de existir, se de repente eu ficasse novamente sozinha, eu teria a internet, faria projetos, criaria rodas de conversa no parque. Eu me faria ser lida de qualquer jeito. Mas isso é uma característica minha e que tento transmitir para outras pessoas, essa coisa de não depender das autoridades literárias, de não esperar pelo mercado, mas de tentar construir novas lógicas. Entre 2013 e 2016 você foi colunista da Revista Fórum, escrevendo no blog Questão de Gênero e publicando matérias sobre Direitos Humanos e temas afins. Em que medida a obrigatoriedade de manter um exercício de reflexão constante em um espaço como o da revista pode contribuir para a escrita literária? Eu acho que esse tempo em que passei escrevendo sobre Direitos Humanos teve um ponto positivo e um ponto negativo: o positivo é que eu cresci muito como ser humano, como pessoa; meu caráter se expandiu, melhorou, me tornei alguém muito mais empática, muito mais compreensiva e interessada no outro, em ouvir o outro. O que certamente é uma vantagem para escrever, porque você cria personagens melhores, mais reais, mais diversos, mais complexos e mais humanos. O lado negativo é que a escrita mais criativa ficou muito de lado. Eu tinha prazos para cumprir, era meu trabalho, e eu tinha que ficar o tempo todo no modo reação. Acontecia uma desgraça e eu ia lá falar minha opinião sobre ela. Era um tanto tóxico, mentalmente exaustivo, acabava com a saúde. Mas foi um período que me abriu muitas portas, que me trouxe a coragem de compartilhar o que eu pensava e escrevia com o mundo. Foi nesse trabalho que aprendi que o que você escreve, uma vez publicado, não te “pertence” nunca mais. Vira interpretação, sentimento e opinião dos outros. Ser escritora é fazer as pazes com isso e encontrar beleza nisso. Como você experimenta o ato de recitar? Recitar é recriar? Não me acho muito boa em recitar, mas tenho me exercitado porque quero que meu livro de poesias seja mais do que palavras em páginas de papel. Acho que recitar dá uma vida e uma potência muito grande para o que você escreveu. É pela voz que você sente a intenção, o sentimento, a dor, a força. Não sei se é recriar, mas é abrir muito mais o seu íntimo. Quais são os principais desafios para a edição de novas escritoras e cordelistas no Brasil de hoje? O maior desafio é que as editoras são cheias de gente machista e racista, que só publica os conhecidos, os nomes já estabelecidos, e quando publicam pessoas novas, largam essas pessoas (e suas obras) às moscas. Tenho amigas que foram publicadas por grandes editoras, mas que foram praticamente abandonadas, sem nenhum tipo de promoção, publicidade, apoio. É ridículo. E no caso do cordel, ele só é reconhecido quando vira livro. Ninguém se importa com a tradição dos folhetos e da autopublicação – óbvio, não é lucrativa para o monopólio de certas editoras. Então é muito difícil que você encontre o cordel em pé de igualdade com outros estilos literários. Os principais desafios são impostos pelo mercado, pelas editoras, pelas curadorias preguiçosas. Essa é a verdade. Choram, reclamam que está ruim, mas se publicassem coisas diferentes, que não fosse esse mais do 229

mesmo vergonhoso, quem sabe despertassem o interesse de mais pessoas, né? Já deu, gente. Melhorem. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Há outras cordelistas mulheres que você gostaria de recomendar, assim como autoras negras? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais, inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo poética – brasileira contemporânea. Eu tenho lido autoras independentes, tenho lido principalmente mulheres, e feito o exercício constante e ininterrupto de comprar livros de autoras, em qualquer estilo que seja. Eu sento no chão das livrarias, diante da estante de poesia, e cato os livros que são de poetas mulheres – porque é muito difícil encontrá-los. Eu publico no meu Instagram todas as leituras que faço, os livros que encontro, porque acredito na importância de apoiar, divulgar, promover. Eu também coleciono literatura africana, saio procurando, pesquisando. Toda mulher negra que publique um livro e eu saiba disso, vou apoiar, vou comprar. Posso gostar ou não, mas vou apoiar. Até porque gostar é subjetivo. Nesses últimos meses, li muitos livros (e e-books) de contos e poesias, porque estava escrevendo um livro de contos e estou agora terminando meu livro de poesias. Então gosto de entender o que tem sido publicado, o que as pessoas curtem ler, quais são os temas da poesia contemporânea. Recomendo as independentes: Dani Costa Russo, Pilar Bu, Lâmia Brito, Carina Castro, Luiza Romão. Recomendo a Aline Valek, que faz um trabalho independente impecável, mesmo já sendo publicada por editora grande. Recomendo editoras pequenas, como a Pólen, a Urutau, a Malê. Recomendo cordelistas como a Salete Maria, projetos de cordel online como o Um Repente Por Dia. Aconselho que me sigam no Instagram e assinem minha newsletter, que eu faço uma chuva de livros que nem sempre são lidos (outros bastante populares) e tendo dar prioridade às mulheres. Leio homens também, principalmente os independentes, os negros, os que escrevem coisas que me tocam. Ainda estou refletindo sobre tudo que tenho percebido, sabe? É gritante que a poesia brasileira hoje – publicada por grandes editoras – é branca, escrita por pessoas brancas. É gritante que se publica quem se conhece, quem está “nos meios”, quem é indicado. Quem não sabe disso, gente? Acho inquietante que tudo me pareça tão parecido, como se poesia boa tivesse que se enquadrar numa fórmula, ou num estilo único, e todo o resto é ruim. Esses dias falei, no Twitter, que tem livro de poesia que eu leio e que eu entendo o mais absoluto e desconcertante nada. Não gosto. Quero que a literatura converse comigo, exponha meus podres, me desgrace a cabeça. Gosto de compreender, gosto que a literatura seja feita para ser lida, não para ser exibida hermética e intocável. Foda-se isso. Mas é o que falei: vai lá na Livraria Cultura, por exemplo. Procura mulher na estante de poesia. Procura gente negra. Você vai ter que fazer como eu: sentar no chão e gastar umas duas horas procurando, folheando. E vai sair de lá com uns dois livros, porque parece que você já tem tudo. É um porre. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? Agora estou trabalhando no meu primeiro livro de poesias (que não são 230

poesias de cordel). É um livro muito pessoal, pesado e político. Tenho um livro de contos pronto, que ainda vou decidir o que fazer com ele e quando. E, claro, o cordel sempre está no quadro. As pessoas lêem meus cordéis, compram demais, usam em escolas, querem muito, me chamam para eventos, oficinas, então o cordel é a constância na minha vida. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Bom, acho que estou tão confusa quanto qualquer outra pessoa sensata. Não tenho a resposta, tenho muito mais perguntas. Mas sei que é consequência dos nossos avanços. A gente caminha dois passos e volta um, sempre foi assim, não ouso dizer que sempre será. Mas é isso, a gente luta por direitos, por melhorias, por diversidade, por liberdade, e os reacionários reagem, querem impedir. Pior é que são mesmo maioria, porque é cômodo pensar o mesmo de sempre, continuar acreditando naquilo que foi ensinado por nossos avós, pelos anos 40, pela televisão, por certas revistas. É cômodo. É mais trabalhoso refletir, se abrir para o diferente, pesquisar de verdade, estudar, se confrontar com o monstro dentro de si. E esse monstro está dentro de todos nós, sabe? Mesmo de quem se diz pró-mulher-LGBT-negros-pessoas-com-deficiência-etc. É um exercício constante. E quem tem o poder, quem está fazendo as leis, bom... não quer se exercitar, né? Quer ganhar a grana fácil, roubar a grana fácil e fazer coisas que atendem aos seus próprios interesses. É claro que religiosos querem que o país vire uma teocracia. Imagina o quanto de dinheiro que não vão ganhar, mais do que já ganham? É assustador, principalmente porque percebo uma certa passividade das pessoas que não concordam com os retrocessos. É que estamos todos tão perplexos. Estamos todos aprendendo também. Eu não sei, eu só espero fazer minha parte de alguma forma.

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Joanim Pepperoni, PhD Nasceu em Polentawood, Terra da Cocanha, em 2009. Vive em Polentawood, Terra da Cocanha. Joanim Pepperoni, PhD é o pseudônimo de um escritor da Serra Gaúcha que não deseja ser identificado. Entrevista satírica concedida a Vitor Cei e André Tessaro Pelinser em junho de 2017. Respostas revistas pelo autor em julho de 2019.

Enquanto preparamos a edição deste livro, Joanim Pepperoni, PhD completa dez anos de existência. Primeiro apareceu o blog A Terra da Cocanha (2009), depois os livros independentes A fantástica máquina de ensacar berros (2013), Viagem à roda do Rio Tegão – seguida de A lenda da polenta (2014) e A revolta do moinho: ou A guerra da polenta ou O levante das espigas (2016). Como você vê a recepção da sua obra? E o que você tem a dizer aos atuais críticos literários e aos futuros historiadores da literatura que possam estudar a sua obra? Se meus livros fossem comestíveis, eu não venceria distribuí-los, já que todo mundo gosta de uma boquinha livre, especialmente aqui na Terra da Cocanha... Na verdade, hoje eu não me importo com a recepção e com a crítica. Sem falta de modéstia, posso dizer que poucos entendem o que rebato com as minhas obras. Há muita sutileza em cada palavra escolhida, em cada personagem, em cada fala e em cada poema. Não é fácil destrinchar tudo sem o contexto de criação e sem os referentes. Por isso, apenas escrevo e procuro combater os vícios cocanheses e as barbaridades que vejo no meu entorno. Vocês são os primeiros críticos ou historiadores que se debruçaram com seriedade sobre a obra - mas não pensem que vão se alçar à fama com isso... Fama em literatura é caminho para a fome. Quanto ao futuro, eu não tenho bola de cristal para adivinhar o que vai acontecer. Talvez minha produção seja esquecida, talvez seja vista como politicamente incorreta, talvez ganhe uma edição de luxo... Não sei mesmo. Parafraseando a Cemilha Magreles: Eu como porque a polenta é frita e a minha mesa está repleta. Não sou gordo nem sou magro: sou atleta. Irmão das coisas gordurosas, eu sinto fome de torrresmo. Atravesso noites e dias à mesa. Se me empanturro ou só belisco, se emagreço ou me esbaldo, — não sei, não sei. Não sei se belisco ou me farto. 232

Sei que como. E a comida é tudo. Tenho molho de asa de perdiz. E um dia sei que comerei tudo: — mais nada. Quem é Joanim Pepperoni, PhD? De onde vem? Uai, eu sou Joanim Pepperoni! (risos) O primeiro nome foi escolhido pelos meus pais com base em uma pesquisa na árvore ginecológica da família. Gianni era como se chamava o meu pentavô paphlagônio, um primo-irmão de terceiro grau do navegador genovês Marco Pollo. Aí, de Gianni para Joanim, bastaram algumas gerações, algumas certidões de nascimento e alguns trocadilhos. O sobrenome Pepperoni remonta praticamente às origens da humanidade, a um mil-avô meu, embora seja mais conhecido hoje como variedade de pizza. E PhD é minha titulação acadêmica: sou especialista em Antropolentologia pela ETCETERA.   Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor de verdade? Al primo canto, não gosto do termo modus operandi aplicado à literatura, porque aqui na Terra da Cocanha as coisas do espírito já são por demais operacionalizadas. Prefiro o termo modus criandi ou o modus pensandi ou até o modus philosofandi. Com isso quero sugerir que penso muito para criar e até filosofo quando o cérebro ajuda. Então, eu não me considero um sujeito que opera um instrumento de escrita, mas sim um criador de enredos, fatos e palavras. Às vezes, chego a me tornar incomunicável, tamanha a desautomatização que inflijo à linguagem cotidiana da Terra da Cocanha. Por exemplo, quando digo “polênhta” (polenta, em português), não me refiro exatamente ao alimento que aqui sobeja e é superfaturado em restaurantes. Refiro-me a uma cultura inteira, desde a linguagem e a gastronomia, até a economia, a religião e as práticas sexuais. O mesmo vale para “mêscola” (colher de pau), cariola (carro-de-mão), tuque-tuque (pequeno trator), etc. Mas essas palavras não são polissêmicas em sua origem, porque o cocanhês nativo (da gema do ovo de perdiz) não pratica a plurissignificação, a ambiguidade, a polivalência. Quando um cocanhês vai colher uvas, ele usa a cariola para transportá-las. E ele também transporta galinhas mortas e esterco nessa mesma condução. Trata-se de apenas uma prática incorporada ao seu “modus fazendi”: transportar coisas... Todavia, eu escrevi, numa biografia ainda inédita, que o Seu Raul Randon, empresário local, se fez de galinha morta para andar de cariola! Viu o que é a riqueza dessa linguagem? Em segundo lugar, acho que minha criatividade não é tudo o que a crítica literária e os historiadores da literatura afirmam. Harold Bloom, por exemplo, afirmou para a Falha de São Paulo que eu seria um “gênio da ironia”. Acho esse tipo de colocação meio despropositado e – sejamos sinceros – pura bajulação. Eu escrevo poemas, lendas, peças teatrais, romances de aventura, biografias, relatórios de pesquisa e ponto final. O meu momento inaugural ainda está por ser 233

inaugurado, ou seja, se eu conseguir terminar minha próxima obra, que se passa 140 anos no futuro, aí sim! Mas com essa crise toda, nem o Sartori está obrando direito. Finalmente, quero dizer que gosto muito de escrever, tomar vinho colonial e comer pinhão assado na chapa do fogolare (fogão a lenha).  Como você define a sua obra? Eu sinceramente não saberia definir minha obra com uma única palavra. Talvez cômica, cítrica, gástrica, picante, burlesca, ácida, cáustica, macarrônica, pilhérica, acre, corrosiva, sardônica, viperina, trocista, cínica, escarninha, chistosa, jocosa, hilariante, bufa, faceciosa, pândega, foliã, dionisíaca, magana, galhofeira, chalaça, caçoísta, brejeira, gaiata, traquina, matreira, perversa, velhaca, acintosa, capciosa, sestrosa, ferina, cavilosa, marau, oblíqua e dissimulada... Por que você escolheu a poesia satírica como gênero literário para o seu livro de estreia? Ainda bem que você percebeu que os poemas são satíricos... (risos) Tem gente aqui que acha que o livro é apologético! Mas, falando sério, escolhi a sátira para o meu relatório de pesquisa porque na Terra da Cocanha é tudo tão sério que quase nada pode ser levado a sério. É tudo tão disparatado aqui, que “só rindo mesmo” (como disse um personagem do Rubem Fonseca), para não sair correndo. Mas em vez de sátira menipeia, eu decidi fazer sátira melopeia, para ver se esse povo aprende a rir um pouco de si mesmo, sem perder o ritmo do trabalho. Uma de suas quadrinhas diz que “Na Terra da Cocanha, o que um Nane faz, outro Nane copia e um terceiro desfaz”. A fantástica máquina de ensacar berros copia ou desfaz? Você está me acusando de alguma coisa? Olha que te boto um processo em cima! Mas, falando sério, aqui na Terra da Cocanha existe o costume de se desfazer tudo o que é alheio e superestimar o que é próprio. Por exemplo: quando você compra um auto novo, o vizinho da frente não fala mais contigo, o de cima compra um igual, e o de baixo risca ele na primeira oportunidade. Isso é algo muito diferente de colar na prova ou cobiçar a mulher do Nane. A minha Fantástica máquina de ensacar berros oscila entre a mímese, a mimese e a diegese, cuja discussão pode ser resumida, segundo a Wikipédia, da seguinte forma: “quando  o sub-cortex é exposto a certas substâncias, o efeito psicodélico e alucinógeno no cérebro é bastante similar com visões distorcidas da realidade, que pode surgir em casos psicóticos mais graves”. Capisci?! O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Olha, eu acho que pouca uva e muita saúva os males do país são. Confesso que não conheço muito bem a literatura do Brasil, porque a Terra da Cocanha sofre muito com uma prisão de ventre que impede a comunicação com os países vizinhos. Todavia, temos ótimos poetas, prosadores e plagiadores. Temos até gente que já ganhou o Prêmio Açude, o Prêmio Cágado e o Prêmio Méscola de Ouro. 234

Há também um culto muito grande ao renascentista Dante Alighieri, tanto é que existem aqui verdadeiros imitadores da sua arte literária – gente, enfim, que faz romaria até o seu busto que fica na praça de mesmo nome. Assim pelo menos as pombas lhe dão uma trégua. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Os desafios são falta de editoras públicas com bom conselho editorial e amplo alcance de distribuição dos livros. Eu, por exemplo, sou autor de 4 livros que eu mesmo escrevi, editorei e paguei para a Editora Cantina do Frei publicar. Porque sou contra a comercialização de livros ruins, distribuí todos os exemplares gratuitamente. Não concordo com esse negócio de publicar livrinho de vampiros, ir até as escolas fazer os bambini comprar e oferecer “palestra” de graça como contrapartida. Isso aí é pura falcatrua, falta de seriedade na profissão! O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? A internet já terminou? É que você disse “depois”... (risos)  Na minha opinião, a Internet é uma praga e uma bênção, ao mesmo tempo. Praga no sentido de que ela suporta todo tipo de diarreia mental; bênção, porque não gasta papel para a publicação. Por falar nisso, a Terra da Cocanha é pródiga em nanetecnologia. A seguir, apresento uma vintena de verbetes oriundos do universo tecnológico cocanhês. Trata-se da TECNANEPÉDIA: Enciclopédia da Nanetecnologia (TNP-TC). T: significa “tulha”, medida local correspondente à medida universal de peso “@” (ex: nane_tamancaTgmilho.grao.tc) .grao.tc: complemento do domínio na intermilho .mil: arquivo com extensão “milho” .nan: arquivo com extensão “nane” .pai: arquivo com extensão “paiol” .pal: arquivo com extensão “palha” .pol: arquivo com extensão “polenta” .ppr: arquivo com extensão “pepperoni” .sab: arquivo com extensão “sabugo” .tc: significa “Terra da Cocanha” (o mesmo que .br, .ar, .pt) Caruncho: o mesmo que “vírus” Depto. de TM: responsável pelo setorde Tecnologia do Milho nas instituições cocanhesas E-milho: milho eletrônico E-sabugo: sabugo eletrônico Gmilho: provedor de acesso ao paiol de milho Hotmilho: provedor de serviços de e-milho Intermilho: o mesmo que “internet” LP: Long Polenta Marco Polenta: grande investidor na área de transportes Milho Gates: ingênuo da naninformática Milhocão: empresa de telefonia da TC Milhonet: provedor de acesso ao milharal 235

Milhonauta: o mesmo que “internauta” Milhorecords: gravadora de LPs Moinho Buck’s: editora de propriedade do Frei Nane Milhosoft: gênio da nanetecnologia No saco: corresponde à expressão “em anexo” (ex: Envio-lhe, no saco deste e-milho,...) Nono Milhinux: gênio do softwear público cocanhês O Polenteiro: pasquim que divulga a ideologia cocanhesa Polentacane: empresa de telefonia da TC Polentacom Formaio: empresa de telefonia da TC Polentanet: provedor de acesso à panela de polenta Polentês: linguagem milhonauta derivada do Polentalião P.S.: Polentae Scriptae (o mesmo que Post Scriptum) Saboogle: sítio de buscas no depósito de sabugos Sabugo: o mesmo que “torpedo” SMS: Serviço Móvel de Sabugos Telemilho Sabular: o mesmo que “telefone celular” Telemilho: empresa de telefonia da TC Undermilho: o mesmo que “underline” Yaboogo!: provedor de serviços de e-sabugo. Você está escrevendo algum livro no momento? Sim, estou escrevendo. Trata-se de um romance que se passa no futuro, por volta do ano 2157. A ideia é imaginar como será essa Terra da Cocanha na era pós-polenta brustolada (assada). Por exemplo: o fogolare ainda estará nas cozinhas, mas com o aquecimento global a polenta será brustolada pelos próprios raios solares refletidos na chapa de aço; a cariola será movida por resveratrol enriquecido, obtido a partir das sementes de uva que percorreram o sistema digestivo humano; o tuque-tuque será adaptado para uso aéreo, sem nenhum tipo de combustível, movendo-se no espaço apenas com a combinação engenhosa entre a levitação e rotação da terra; o vinho colonial será produzido tanto com uvas de videiras bicentenárias, quanto de outras matérias-primas, como pneus velhos, plástico bolha, água do Rio Tegão, esterco, etc. A nanetecnologia, enfim, perpassará a obra. E o personagem principal será um descendente meu, o também pesquisador Joanim Pepperoni Xº, PhD.  Você vive no mundo ficcional da Terra da Cocanha, paródia da Região de Imigração Italiana no Rio Grande do Sul. Ainda que a sua obra tenha como destaque essa região, nos últimos anos você tem usado o Facebook para satirizar eventos e personagens polêmicos da política brasileira, dedicando poemas ao ex-presidente Michel Temer, ao presidente Jair Bolsonaro e ao Ministro Sérgio Moro. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: de onde surgiu tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? 236

Como disse o filósofo cocanhês Jamyé Paviânico, “as coisas são o que são pelo tempo que elas forem. Nem mais, nem menas (sic)”. Claro que isso é um grande sofisma, porque a afirmação vem bem ensaboada de paralogismo, e sobre o tema, como costuma dizer o referido filósofo, poder-se-ia discorrer longamente e até produzi ensaios que ninguém lerá. Mesmo assim, penso que não há outra forma de as coisas serem, e os entes e os seres precisam entender isso. Vejam bem: eu sou um ente por fora com ser por dentro e não consigo ficar apático diante das barbaridades que acontecem neste mundo. Bestemar não adianta, até porque não passa de uma prática cocanhesa ordinária, apesar de ser condenada pelos padres. Por isso, é necessário ampliar com criatividade um “porco dio!”, um “porca madona” etc., e deles fazer algo, como um poema, que de fato possa intervir proativamente na sociedade. Aqui na Terra da Cocanha, o mafioso Bolsonaro teve 90% de votos válidos em algumas localidades. Esse dado é de caírem os pinhões do bolso! Significa que minha cabeça, junto com meus capeletti, está a prêmio, porque eu não votei nele e até participei de protestos do “Ele nom”. É impossível um PhD como eu, que já comeu a polenta que o capiroto cozinhou, ficar alheio ao livre avanço do fascismo. Moro e Dallagnol são da mesma cepa bolsonariana: são oportunistas, imediatistas, machistas, misóginos, homofóbicos, diabólicos, fascistas. E afirmo isso sem nenhuma sombra de dúvida. Eles são uma trinca mafiosa. Como ressurgiu esse movimento fascista? Bem, em minhas escavações antropolentológicas tenho encontrado muito farelo de polenta varrido pra debaixo do tapete e que fica ali sempre na iminência de sujar a casa de novo. Acho que é isso que aconteceu no Brasil: o cisco não teve o tratamento adequado. E não estou dizendo que o problema é o farelo em si. O problema está em quem mora na casa e não teve o cuidado de evitar que os farelos se formassem e fossem, por alguém mais descuidado ainda, varrido pra debaixo do tapete. Minhas escavações mostram que teremos dias muito difíceis pela frente...

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João Almino Nasceu em Mossoró (RN), 1950. Vive em Brasília (DF). Entrevista concedida a André Tessaro Pelinser e Letícia Malloy em abril de 2018.

Cada escritor possui um método e um estilo de trabalho próprios. Em sua ficção, são recorrentes tanto a apresentação de um espaço narrativo que remete à cidade de Brasília quanto de personagens que a habitam ou para lá convergem. Levando-se em conta esses elementos, que parecem consistir em um leitmotiv de sua obra, você poderia nos falar um pouco sobre as opções temáticas que norteiam seu projeto literário? Poderia, também, comentar algumas das opções formais adotadas em seus textos? Vivi em muitas cidades; para ser exato, em 14, até o dia de hoje. Talvez por isso mesmo, em vez de variar a localização das histórias de minha ficção, busquei um ponto de referência. Fazia sentido que fosse no Brasil, e Brasília me foi conveniente por várias razões. Podia se prestar a ser um Brasil de brasis, era uma possibilidade de cruzamentos. Ali eu podia situar personagens vindos de várias partes do país. O tema da utopia sempre me interessou, e Brasília partia de uma concepção utópica que podia ser contrastada com a utopia não realizada ou com a evolução da cidade espontânea e real. Brasília podia ser também uma metáfora do mundo moderno, com todas as suas contradições. Creio, porém, que mais importante do que a localização das histórias é a criação de um universo ficcional, que é revisitado a cada livro a partir de determinada perspectiva. Procurei desenvolver uma linguagem adequada a cada um dos romances, às técnicas neles empregadas e a seus narradores. Apesar disso, é possível dizer, creio, que existem opções formais que perpassam todo o meu trabalho de ficção. Tento extrair poesia das palavras, mantendo a fluidez da prosa e uma escrita concisa, enxuta e precisa, que diga mais, com menos. Procuro fazer com que as metáforas ou metonímias agreguem significados e não sejam meros ornamentos. Finalmente, busco introduzir elementos de verossimilhança, mesmo quando o contexto mais geral é de fantasia. Em seu primeiro romance, Ideias para onde passar o fim do mundo (Record, 1987), o narrador manobra o leitor, fazendo-o crer que não possui muita clareza quanto à condução da narrativa. Já no primeiro capítulo, ele afirma querer “Escrever sem saber o quê, escrever espontâneo. Era isso que eu queria. Sem saber o fim nem o começo da história...”. Logo em seguida, talvez se contradiga: “Queria inventar uma história, fantasiar o real, o da cidade e o de cada personagem. Mas os fatos me antecipam e enchem rapidamente estas páginas.” Em que medida essas passagens dizem de seu processo criativo? Talvez façam parte da série de engodos que aquela narrativa empreende e a que se refere a crítica literária Walnice Nogueira Galvão. Acho necessários dois processos que podem parecer divergentes, e são complementares. Uma vez concebidos um narrador e alguns personagens, procuro construir um plano o mais detalhado possível, tendo, porém, plena liberdade 238

para refazê-lo, o que ocorre a partir de ideias que surgem do ato de escrever, do encadeamento mesmo das palavras e das exigências dos personagens. Por isso levo muito tempo reescrevendo. Antes de lançar seu primeiro romance, Ideias para Onde Passar o Fim do Mundo, que completou trinta anos em 2017, você publicou quatro obras de não ficção. Entre os estudos de ciência política e a produção literária, houve um momento inaugural, ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? O que mudou de lá para cá em seu modo de conceber a ficção? A ficção estava lá no início, antes dos textos de não ficção. Estes foram escritos com urgência, como parênteses na escrita de ficção, ou por obrigação acadêmica. A ficção exigia de mim um rigor formal próprio, que levou mais tempo para ser alcançado da maneira que me parecesse satisfatória. Era mais vital e por isso mesmo mais difícil. Creio que meu modo de conceber a ficção não mudou de maneira fundamental, mas o projeto ficcional em si, tal como pensado no início, sofreu transformações. O primeiro romance centrava num personagem diferente cada um de seus capítulos maiores (há também capítulos menores, de transição). Eu tinha a ideia de escrever vários outros romances, cada um tendo como narrador um daqueles personagens do primeiro livro. Haveria, por exemplo, um romance da Berenice, a personagem nordestina, outro da profetisa Íris Quelemém, um terceiro de Cadu, o fotógrafo responsável pela foto a partir da qual o romance se estrutura, e assim por diante. Cadu de fato voltou como narrador de meu quarto romance, O livro das emoções. Mas já a partir do segundo romance me dei conta de que não seguiria exatamente aquele plano inicial. De alguns personagens, me distanciei. Outros perpassaram mais de um romance (foi, aliás, o caso de Íris e Berenice), vistos em cada um deles de forma diferente. Além de ser escritor de ficção, você possui vários escritos sobre ciência política e atua na área da diplomacia. Você identifica diálogos entre essas atividades e sua escrita literária? São linguagens muito distintas uma da outra. Mas não deixa de haver alguma reflexão política no pano de fundo de alguns de meus romances. Um ou outro personagem (uma professora de filosofia, em As Cinco Estações do Amor; um especialista no Islã, em Enigmas da Primavera) pode inclusive recorrer de maneira direta ou irônica a algum conhecimento sistematizado. Mas procuro evitar que suas informações ou reflexões sufoquem a narrativa, para que o ensaio, se houver, esteja subordinado à ficção, diluído na narração e nos diálogos. Dito isto, há quem tenha procurado traçar paralelo entre meus ensaios – neste caso incluindo também os ensaios literários – e minha ficção. Desde o início, sua produção literária recebeu avaliações positivas, com prêmios como o do Instituto Nacional do Livro, o Casa de las Américas e o Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. De que maneira as premiações influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Como você avalia a recepção de sua obra para além dos prêmios literários? 239

As premiações podem ter aumentado minha autoconfiança, embora eu escreva por necessidade, ou seja, porque não poderia deixar de escrever. Quanto à recepção além dos prêmios literários, a crítica tem sido positiva. No caso do meu romance mais recente, Entre facas, algodão, houve também uma reação espontânea do leitor comum, que me escreve através do Facebook ou de minha página Web. Mas nenhum de meus livros foi um best-seller. O que mais vendeu, As cinco estações do amor, está, no momento, fora de catálogo. Se as traduções forem outra medida da recepção, este romance está bem situado ao lado de Cidade Livre, que teve traduções para o inglês, o francês e algumas outras línguas. Samba-Enredo, O Livro das Emoções e Enigmas da Primavera também foram publicados em tradução. Em 2017 você publicou Entre facas, algodão (Record), romance que recupera paisagens rurais do Nordeste brasileiro comumente associadas ao Regionalismo literário. Em entrevista ao Correio Braziliense, você menciona que, no início da carreira, evitou esse caminho por certo receio de fazer algo menor, ou menos importante que aquilo que já havia sido feito por alguns dos mais destacados escritores brasileiros. Como foi assumir essa relação com a tradição regionalista? Mais do que isso, como lidar com a filiação a uma vertente que, embora reconhecidamente fecunda, acumulou largo espectro de considerações depreciativas por parte da crítica literária brasileira? Meus romances, desde o primeiro, tiveram personagens nordestinos, e o desejo de situar histórias principalmente no Nordeste também estava presente lá no início. O problema que eu enfrentava era o de como revisitar a paisagem nordestina ou homenagear os grandes nomes de sua literatura, como Graciliano e João Cabral, sem repetir o que já havia sido feito e sobretudo sem cair no lugar comum. Levou tempo para que eu entendesse como isso seria possível. Requereu – digamos – destemor e maturidade. Era um encontro marcado e inevitável que eu tinha comigo mesmo como escritor. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre as suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. Para mim a criação literária é principalmente um trabalho solitário, que pode – reconheço – se alimentar de leituras e de diálogo. Estou sempre relendo algum clássico. Entre os brasileiros, nunca me canso de Machado, Graciliano e Clarice. E não só para entender o Brasil. São autores de dimensão universal. Também me interesso pela produção literária brasileira contemporânea, que alarga minhas percepções. Acabo de ler Machado, de Silviano Santiago. Entre os estrangeiros, tenho lido alguns contemporâneos ingleses, como quase tudo de Edward St Aubyn. de hoje?

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Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil À parte a autopublicação ou a publicação pela internet sem grandes

critérios, os desafios são grandes, mas não sei se são maiores do que há décadas atrás. Salvo exceções, que vêm da sorte, de oportunidades extraordinárias e de alguns poucos concursos, é sempre difícil para quem está começando. Acho que ainda existe um papel de grande importância para os editores, que têm a responsabilidade e também o interesse de descobrir novos talentos. Tenho visto surgirem pequenas editoras que procuram fazer um trabalho de qualidade. Vencer os desafios depende, claro, da qualidade do que se está produzindo, do aproveitamento das oportunidades que surgem e da sensibilidade dos editores. Nos últimos anos, a crescente polarização política observada na sociedade brasileira mobilizou debates sobre o lugar da arte, com destaque para forças interessadas em controlar o discurso artístico. Como você observa a relação entre a arte e o aparato judicial do Estado? Deve haver uma ética artística? Essas questões podem ser consideradas de vários pontos de vista. O artista poderá ter um comportamento julgado por outros como ético ou não. Ele próprio poderá julgar ocupar a posição eticamente correta. Sua arte pode ou não conter uma dimensão ética. O artista também pode, através de seu trabalho ou à margem dele (por exemplo, emitindo opiniões), exprimir posições que considere terem uma dimensão ética ou que assim sejam entendidas por outros. Além disso, em nome da ética, setores do Estado ou da própria sociedade podem querer controlar a expressão artística. Sabemos, por outro lado, através da história, que não necessariamente as intenções dos artistas correspondem à apropriação de suas obras pela crítica ou pelo público. Sobretudo o sentido que fica dessas obras para a história muitas vezes independe das ações, posições ou opiniões dos artistas. Tomemos o caso da literatura. Seria um equívoco analisar a obra modernizadora de Céline à luz de seu apoio ao governo de Vichy; ou a obra de Pound por suas simpatias fascistas – nos dois casos, posições eticamente condenáveis. As opiniões e ideias reacionárias de Balzac não impediram a apropriação de sua literatura pela esquerda, que soube valorizar o realismo de seus romances. Mesmo no caso de autores que pretendem imprimir claramente um cunho ético e político à sua obra, sua eficácia e alcance podem ser maiores em decorrência de uma descrição contundente dos fatos ou do confronto da realidade objetiva com a fabulação, do que de uma mensagem dirigida pelo autor ou pelo narrador. A arte escapa a quaisquer controles, porque o inconformismo é de sua essência. O artista pode ter de responder perante o tribunal da ética e até mesmo ser encarcerado por crimes comuns. Mas é um equívoco julgar a obra de arte por motivos externos, sejam eles de ordem ética, política, biográfica ou comportamental relativa a seus autores. A ética artística é a da plena liberdade. Ponto! Enigmas da primavera (Record, 2015) envolve a Primavera Árabe e os protestos de julho de 2013 no Brasil, mostrando-se atento a anseios e desafios da contemporaneidade. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava 241

guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Esta onda reacionária libera o que estava reprimido e ainda vivo em alguns setores da sociedade. É uma reação a distintos movimentos da história, alguns próximos, outros recuados no tempo. Faz 50 anos da grande revolução dos costumes simbolizada por 1968 em várias partes do mundo. Vivemos uma reação a alguns daqueles ideais. No Brasil a onda conservadora se fortalece com os escândalos de corrupção, está calcada no moralismo e se fortalece com avanços de algumas seitas religiosas. Confio que haverá antítese aos atuais excessos e que no final poderá haver progresso, com a ressalva de que essa aposta não deve levar a uma postura conformista. Diante dos riscos, que são reais, aumenta a responsabilidade do político, do artista e do cidadão em geral. Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, sobretudo para expressar engajamento político. Você mantém atuação discreta no Facebook, utilizando-o majoritariamente para a divulgação do seu trabalho. Por quê? E como avalia essa face do intelectual contemporâneo? O que quero dizer de maneira mais refletida é o que meus livros dizem. Dizem às vezes com tristeza, com angústia, com dúvidas, com sentimentos misturados, com contradições. Prefiro concentrar na literatura minhas energias criativas. De maneira acessória, tenho um site onde coloco informações sobre os livros (por exemplo, resenhas). Uso o Facebook em substituição ao blog que não tenho. Nele posso anunciar uma palestra ou uma participação em algum evento literário. Gosto de fotografar e ponho, de vez em quando, alguma de minhas fotos no Instagram. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? Publiquei dias depois de meu sétimo e mais recente romance, Entre facas, algodão, um pequeno livro de ensaios sobre a Utopia de Thomas More. Mas é no romance, na narrativa longa, que me sinto mais realizado. Tomo notas e faço leituras para um próximo romance.

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João Claudio Arendt Nasceu em Cunha Porã (SC), em 1970. Vive entre Caxias do Sul (RS) e Três Lagoas (MS). Entrevista concedida a Vitor Cei, Cleiza Souza, Michele Lemes, Nilian Guimarães e Sara Pereira dos Santos em maio de 2016. Publicada na Leitura, v. 2, n. 57, 2016. Respostas revistas pelo autor em outubro de 2017.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer... Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Posso afirmar que o meu processo criativo é contínuo, ininterrupto. Mas isso não significa que eu escreva o tempo todo... Explico: a leitura, o olhar atento ao entorno, a contemplação e até uma certa alternância de humor fazem parte do processo criativo como um todo. O ato de criação, para mim, não é apenas aquele reservado a registrar algo no papel ou na tela do computador, pois sentir, ver e pensar já são atitudes de criação. Não digo que houve um momento único que possa ser considerado inaugural para minha escrita. Acho que tive uma iniciação gradual, desde a infância, na convivência com livros, que sempre despertaram a minha curiosidade, e com as muitas histórias contadas no ambiente familiar. Tive uma infância pobre no campo, mas nunca faltou o alimento intelectual. Os meus pais possuíam alguns livros, eram leitores e sempre incentivavam o estudo. E há outro aspecto muito interessante nesse contexto familiar, que são os jogos de linguagem: a família inteira sempre foi dada aos trocadilhos, às ironias, às ambiguidades, aos travalínguas, ao verbo lúdico em suma. E eu acho que foi dessa forma que desenvolvi a intimidade com a linguagem. Mas só me percebi como escritor no momento em que entendi que, com a linguagem, eu poderia criar tanto os meus abismos, quanto as minhas pontes para andar sobre eles. Você se inspira em algum cânone da literatura brasileira? Eu tenho meus amores na literatura brasileira, especialmente na poesia. Gosto muito de alguns românticos e simbolistas. Mas é entre os modernistas que estão os meus eleitos: Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar, por exemplo. Dos alemães, gosto muito do Rainer Maria Rilke. E de Portugal, fico com Fernando Pessoa. Você está escrevendo algum livro no momento? Continua a escrever poesia com frequência? Na verdade, eu não tenho em mente “escrever livros”. Eu escrevo poemas que podem ser reunidos em forma de livro, a partir de uma seleção posterior. Geralmente, redijo aquilo que rumino mentalmente e sinto durante alguns dias... Tenho material para dois ou três livros, inclusive de poesia infantil. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira 243

atual como um todo: o que você vê? É difícil responder a essa pergunta... Mas eu vejo muita ansiedade por parte dos escritores para publicarem suas produções. Não consigo imaginar que alguém tenha “conteúdo” para escrever e publicar dois ou três livros por ano – livros que sejam realmente bons. Claro que há a produção por encomenda, os surtos criativos, os projetos coletivos. Mas eu acredito no “tempo de gaveta”, na avaliação por pares, na discussão dos textos etc. Poucos são os escritores que viveram de direitos autorais e conseguiram produzir obras que resistiram ao “tempo de prateleira”. poesia?

Como você avalia a recepção de sua obra? A que público se volta a sua

Minha recepção é bastante regional e eu não esperava nada diferente, tendo em vista a abrangência das editoras. Também não invisto muito numa carreira literária, não fico bajulando leitores ou editores. E a carreira acadêmica, o ganha-pão, tem me tomado grande parte das energias, com aulas, coordenação, orientações, publicações etc... O livro Quadros berlinenses tem uma boa recepção por causa do formato bilíngue e já foi mencionado por críticos na Alemanha. O Plural da ausência teve resenha e artigo em periódicos acadêmicos no Brasil, e foi leitura obrigatória para o vestibular da Universidade de Caxias do Sul, em 2013. Não fazer uma carreira literária meteórica como certas figuras que conheço e ter uma recepção regional não me incomoda. Muito pelo contrário. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Acho que o desafio está em fazer boa literatura. O papel aceita tudo, e editora qualquer um pode contratar. Você considera importante que o professor de Literatura também seja escritor? Não vejo relação de dependência entre as duas coisas. Conheço ótimos professores de literatura que nunca redigiram um verso sequer e se satisfazem com a interlocução dos alunos ou de outros leitores. Um médico não precisa sofrer da mesma doença dos seus pacientes, para ser um bom médico... Um professor de literatura deve gostar, basicamente, de três coisas: literatura, alunos e ensino. Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever, ou seja, que já são escritores e prescindem da academia? Ninguém deveria prescindir de formação acadêmica, nem mesmo o pedreiro. O meio acadêmico é hoje o melhor espaço de formação intelectual e pode ser também o espaço ideal para a formação do escritor. A universidade possibilita aprofundar conhecimentos e dá acesso a um tipo de (con)vivência que não existe fora dela. Os alunos, mesmo os talentosos para a escrita, quase sempre são imaturos e precisam de lapidação. Em seus livros Plural da Ausência (Biblioteca Pública Municipal Dr. Demétrio Niederauer, 2009) e Quadros Berlinenses (Maneco, 2013) podemos ler 244

muitos haicais e poemas curtos. Por que a preferência por essa forma poética? Em Quadros berlinenses, predominam os haicais. Mas, em Plural da ausência, há apenas alguns. Do ponto de vista formal, eu gosto de ler e escrever poemas curtos, como o haicai ou o dístico, o terceto e a quadra, em razão do trabalho de síntese que eles requerem. O haicai sempre busca expressar uma relação com a natureza, as estações do ano, as fases da vida, a transitoriedade etc., e como eu sou muito bucólico, contemplativo e imagético, ‘o haicai / bem como luva / me cai...’ Como foi a experiência de escrever Quadros Berlinenses, livro bilíngue, em coautoria com a tradutora Sarita Brandt? Qual foi o modus operandi da tradução da língua portuguesa para a alemã? Na verdade, eu escrevi os poemas durante o outono, entre setembro e dezembro de 2011, em Berlim. Mas foi em janeiro de 2012 que eu e a Sarita Brandt nos reunimos para acertar e discutir a versão dos poemas para o alemão. Todavia, ela acabou assumindo mais do que a tarefa, às vezes, mecânica da tradução, porque muitos poemas precisavam ser afinados com a cultura alemã. Quem trabalha com tradução de poesia sabe do que estou falando. Tanto é, que a tradução levou quase doze meses, entremeada que foi de conversas por Skype e tentativas fracassadas de chegar a versões satisfatórias. Em suma, o que inicialmente deveria ser tradução transformou-se em autoria. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Essas questões são difíceis de responder em poucas linhas. Mas, como professor, eu diria, de modo bem sintético, que vacilamos ao não darmos a devida atenção ao papel da linguagem na educação infantil, básica e superior. Nós nos constituímos cidadãos à medida que a linguagem nos insere e nos situa na sociedade, na cultura e na história. E é com a linguagem que também atuamos sobre elas. Como pesquisador, eu diria que a História é cíclica. Basta olharmos para trás, que veremos, logo ali, as coisas acontecendo como já haviam acontecido antes. Cada geração traz consigo valores que deram sentido à geração anterior, e eles são acionados como forma de defesa em momentos de crise. Não existe ruptura total, nem pode haver, porque isso significaria o aniquilamento de uma geração. A geração que hoje defende o regime militar, que manda fechar exposições de arte e que não aceita a diferença é a que nasceu durante o regime militar e que agora se encontra no auge da sua atuação política, econômica e social. E ela não foi perseguida, torturada e censurada como a geração que a antecedeu... Como poeta, eu obviamente poderia dizer que nos falta literatura. Mas não é isso. O escritor e a literatura não estão a serviço da sociedade, e sim da linguagem, a qual, como eu disse anteriormente, nos insere e nos situa na sociedade, na cultura e na história. A literatura – ou a arte em geral – não transforma 245

pessoas más em seres bons, demônios em anjos, e assim por diante. Conheço gente que escreve ou dá aula de literatura agindo de forma intolerante e mesquinha ao defender valores que julga ideais para o mundo que sonha construir (para si, obviamente!). Se haverá desfecho para o que estamos vivendo agora? Eu diria que isso não é o começo, mas sim o fechamento de um ciclo. Como disse Ferreira Gullar, “Caminhos não há, mas os pés na grama os inventarão”.

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Johann Heyss Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1968. Vive em Montevidéu (Uruguai). Entrevista concedida a Vitor Cei e Luana Gabriela Paslawski em fevereiro de 2019.

Você é thelemita, numerólogo, músico, tradutor e escritor, circulando por muitas linguagens. Como ocorrem os trânsitos que você promove entre diferentes expressões artísticas e suportes? Cada área artística pode ser considerada uma linguagem: a música é uma linguagem, a literatura é outra, e dentro de cada uma dessas linguagens há vertentes e ramificações. Da mesma forma, cada idioma é uma linguagem (com seus dialetos e sotaques), e além de ser fluente no inglês, estudo espanhol e holandês, confirmando meu padrão de multiplicidade. Acho que o que me impulsiona a isso é o gosto por aprender na prática, o gosto por pisar em terrenos novos e desconhecidos. Sempre tive admiração especial por artistas que se arriscam em mais de uma mídia, como Yoko Ono, David Bowie, Laurie Anderson, Aleister Crowley, artistas que correm riscos, que rompem barreiras estéticas e sabem fazer a alquimia de transformar chumbo em ouro. Na música, por exemplo, lancei cinco discos, e todos são bem diferentes entre si, ainda que todos se conectem por meio de minhas peculiaridades estéticas. Na literatura procuro seguir pela mesma lógica, já que meu primeiro livro de ficção, A fada do dente, é uma narrativa irônica sobre magia; o segundo, Às vezes o buraco é mais embaixo, é uma história violenta e crua de sedução, amor e ódio; e o terceiro, Crianças do abismo, é um romance onírico, de estilo melancólico e poético. Acho que no final tudo se resume ao meu desejo de não me repetir, de estar sempre me renovando. Leïlah Accioly, no texto da orelha do livro Às vezes o buraco é mais embaixo (Patuá, 2017), descreve seu estilo como “Estética do choque forjada à pólvora substantivada”. Suas poesias e narrativas têm linguagem ao mesmo tempo pop e simbólica, com temáticas que variam do ocultismo ao erotismo, passando por magick, comportamento juvenil, dramas psicológicos, drogas e violência. Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Meus poemas (e canções) são o que escrevo de mais confessional e autobiográfico. Alguns leitores pensam que meus livros de ficção são baseados em situações reais, como se eu usasse um alter ego, mas, pelo menos até agora, isso não aconteceu. Claro que uso cenários que conheço bem e muitas vezes moldo a ficção a partir de fatos reais vividos por mim ou por pessoas conhecidas, mas isso é bem diferente de escrever me baseando em fatos reais. E mesmo em meio a esses cenários e situações conhecidas, sempre acrescento muita fantasia e sempre misturo muito as coisas. Minha opção formal tem sido sempre misturar polos opostos e experimentar novos caminhos e estéticas, e minhas opções temáticas estão vinculadas a um olhar profundo sobre os indivíduos. Nunca me interessei em escrever sobre o Zeitgeist ou sobre coletividades. Tenho mais interesse em me aprofundar bem em poucos personagens, e me atrai mais a exceção do que a regra. 247

Isso faz com que eu opte instintivamente por temas e personagens mais incomuns e até mesmo exóticos. Nos anos 1990 você se tornou escritor e músico, sendo que a primeira fase de sua carreira foi voltada para livros sobre ocultismo e numerologia. Recentemente, passou a se dedicar a ficção e poesia: Maremoto Ignoto (Amazon, 2014), A fada do dente (Amazon, 2015), Às vezes o buraco é mais embaixo (Patuá, 2017), Crianças do abismo (Kotter, 2018) e As águas-rubis (Patuá, 2018). Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Desde muito criança eu já escrevia poemas e contos, e compunha canções. Era rato de biblioteca e tinha (tenho) fetiche por livros e discos. Minha memória começa por volta dos três anos de idade, quando já queria ser músico, pois a música foi a primeira linguagem artística que me atingiu em cheio e a que exerço com mais facilidade. Absorvi muita informação da minha irmã mais velha, que já era uma adolescente roqueira quando eu nasci. A estética do pop rock dos anos 1970 teve um impacto definitivo em mim e está na essência dos conceitos e estéticas que persigo, mirando na mistura de polos opostos para produzir resultados inesperados e sempre interessado em androginia, confronto e provocação. David Bowie e Ney Matogrosso eram meus modelos masculinos e o clima libertário pré-AIDS era o ambiente do meu imaginário, que naturalmente se rompeu com o surgimento da epidemia no início dos anos 1980, quando eu ainda era criança (sou de 1968). Tudo o que eu escrevo é contaminado de alguma forma por esses elementos. Aprendi a ler aos quatro anos e inicialmente só consumia revistas em quadrinhos, mas logo me apaixonei por poemas e narrativas curtas e, assim, pelos livros, a partir do acesso às revistas femininas da minha irmã mais velha e aos cadernos de poemas que minha mãe escrevia. Por volta dos sete anos de idade, conheci na escola Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, e então comecei a escrever meus próprios poemas. Foi também quando cismei de ser ator. Curiosamente, acabei me formando em Artes Cênicas pela UFF (fiz o Curso de Formação de Atores com Alice Carvalho), mas jamais peguei o diploma, jamais exerci, não me considero ator. Por outro lado, nunca completei o estudo formal nos ramos em que de fato atuo, Música e Letras (apesar de ter começado ambos os cursos). Na escola, ganhei algumas vezes o primeiro lugar em concursos de poemas e de redação e quase publiquei um livro independente aos treze anos. Nessa época, entrei em contato com Ferreira Gullar (de cuja poesia era e sou grande admirador) e Marina Colasanti (estava impressionado com seu livro Zooilógico, do qual ainda gosto muito) em busca de prefácios ou comentários positivos para incluir no livro que eu pretendia publicar. Ambos me receberam muito bem e concordaram em escrever notas curtas sobre meus poemas. O livro não saiu porque eu, muito ingênuo, entreguei dinheiro vivo na mão de um “editor” de fundo de quintal que simplesmente sumiu em seguida. Isso teve seu lado bom, já que os poemas eram constrangedores. O pior foi perder os textos do Gullar e da Colasanti (que apontavam o meu potencial com simpatia, sem propriamente elogiar os poemas imaturos). Na verdade, recuperei há pouco mais de um ano uma cópia xerox do texto do Gullar e compartilhei no meu Instagram — muita gente não acreditava na minha história, o que até compreendo. 248

Aposto que Marina Colasanti vai se lembrar caso lhe perguntem se ela se recorda de, no início dos anos 1980, ter recebido em seu apartamento na Rua Nascimento Silva, edifício 7, um gorducho míope de treze anos metido a poeta — ela não deve ter recebido muitas crianças de treze anos pedindo seu aval para um livro de poemas precoce(s). Nunca parei de escrever poemas, mas só em 2014, após muito enxugar e lapidar, cheguei ao meu primeiro livro do gênero, Maremoto Ignoto, que até o momento só saiu em versão digital, mas será publicado em formato físico e versão bilíngue. Com o estudo de artes cênicas em cursos livres também a partir dos treze anos, comecei a escrever peças de teatro, mas nada que valha a pena montar ou publicar. Aos vinte e poucos anos comecei a escrever o que viria a ser Crianças do abismo, meu terceiro romance. Mas foi também nessa época, em meados da década de 1990, que surgiu a oportunidade de publicar livros sobre esoterismo por uma grande editora, a Record. Desde os quinze anos eu vinha estudando ocultismo e magia, especialmente oráculos e técnicas de autoconhecimento, e assim fui me especializando em numerologia e em tarô (principalmente o de Thoth). De forma muito espontânea, começaram a surgir convites para palestras, cursos e consultas, e durante uma década este foi meu trabalho principal. Os cursos que eu ministrava exigiam apostilas, que foram a origem dos meus primeiros livros. Minha intenção não era me dedicar a esse ramo literário. Todos os meus quatro livros nesta área foram escritos por encomenda da editora, com direito a adiantamento. Outros tempos do mercado editorial brasileiro... Havia uma coleção chamada Iniciação, da editora Nova Era, um dos selos do Grupo Editorial Record, e Ligia Amaral Lima, autora do livro sobre runas dessa coleção, me apresentou ao editor da Nova Era, Nelson Liano Jr., que estava procurando alguém para escrever Iniciação à numerologia, meu primeiro livro, publicado em 1996. No ano seguinte, lancei as sementes da minha carreira de tradutor a partir deste mesmo livro, ao fazer sua versão para o inglês. Eu ofereci meu texto em inglês para a editora americana Samuel Weiser, hoje Red Wheel Weiser, que contratou o livro para lançá-lo dezoito meses depois. Ao saber que eu vendera os direitos da minha própria versão em inglês do livro, Silvia Leitão (que foi editora da Nova Era por muitos anos) me chamou para integrar a equipe de tradutores do selo. Pouco depois comecei a traduzir também para a Harlequin, que era um dos selos do Grupo Record, e passei a escrever bem menos, já que na Harlequin eu traduzia em média um livro por mês e não me sobrava tempo. Por outro lado, o período de três a quatro anos que passei trabalhando para a Harlequin me ajudou a alcançar algo que faltava na minha narrativa: estrutura. Eu tinha boas ideias e imagens, mas não sabia contar uma história, e nesse sentido trabalhar para a Harlequin, naquela dinâmica de traduzir um livro por mês, foi uma forma de aprender na marra. A fada do dente foi o primeiro experimento no qual uso uma técnica de narrativa pop a serviço de temas inesperados ou mesmo antipop no sentido de impopulares ou desconhecidos, buscando assim a contradição andrógina do confronto de opostos que norteia o meu fazer artístico. No segundo romance, Às vezes o buraco é mais embaixo, eu radicalizo mais um pouco no trato com esse confronto estético, e, no terceiro, Crianças do abismo, levo o embate ao extremo. As águas-rubis é totalmente orgânico, os poemas brotaram nos últimos quatro, cinco anos a partir de experiências e reflexões. Antes dele, lancei um livro com 249

um poema para cada arcano do Tarô de Thoth que será relançado este ano pela Presságio Editora. Autor de O tarô de Thoth (Nova Era, 2006), primeiro livro brasileiro sobre o tarô de Aleister Crowley e Frieda Harris, você também escreveu Aleister Crowley: A biografia de um mago (Madras, 2010). Qual é a importância de Thelema em sua vida e obra? Você acha possível seguir a fórmula “Faz o que tu queres deverá ser o todo da Lei”? Thelema foi um verdadeiro divisor de águas na minha vida. Romper de maneira clara e definitiva com os velhos cultos e aceitar Thelema aos vinte e três anos me deu a liberdade de ser quem sou e viver como vivo. Antes eu não conseguia isso, ainda vivia preso a conceitos judaico-cristãos que seguem comandando a sociedade ocidental. Sim, acho possível seguir a fórmula Do What Thou Wilt, é o que venho fazendo desde então, e acho que isso tem me ajudado a direcionar bem minha vida. Não abro mão de ser extremamente eu mesmo, o que não significa necessariamente que alcancei, descobri e vivencio plenamente minha Verdadeira Vontade, mas significa que, pelo menos, estou seguindo em direção a ela. Penso que a ideia de sermos obrigados a fazer aquilo que essencialmente queremos fazer e o conceito de saber distinguir isso do mero desejo de fazer sintetizam a busca pelo autoconhecimento, que é, por sua vez, a busca pelo sentido da vida: cada um de nós é uma peça única e específica na engrenagem do todo, por isso só quando somos extremamente nós mesmos, cada um em sua individualidade, é que a engrenagem do todo funciona. Por isso a Verdadeira Vontade está em conformidade com o Universo, por menos que os humanos possamos entender o processo de modo pleno através do raciocínio lógico. Em vídeo postado no seu canal do YouTube no dia 23 de maio de 2018, para divulgar o lançamento de Crianças do abismo, você explica que passou décadas escrevendo o livro, que deveria ter sido o seu primeiro romance. Você justifica que o longo processo foi devido à necessidade de alguns saltos estéticos na maneira de apresentar a narrativa. Como se deu essa viravolta ou salto qualitativo? O conteúdo abordado na obra – magick, magia sexual, magia negra – tem alguma influência nisso? Entre 2003 e 2013, o excesso de trabalho como tradutor literário não me permitiu burilar meu texto autoral, mas simultaneamente me ensinou a construir uma narrativa, algo que até então eu não conseguia fazer de modo satisfatório. Escrevi A fada do dente e Às vezes o buraco é mais embaixo ao mesmo tempo, entre 2014 e 2015, procurando contar as histórias de forma bem direta e objetiva, sem maiores arroubos estilísticos. Foi quando consegui ter olho crítico na medida para voltar a Crianças do abismo. Cortei vários trechos, reescrevi e rearranjei o texto até chegar ao resultado publicado, que abriga os arroubos estilísticos que evitei nos dois primeiros, mas sem deixar de contar uma história com começo, meio e fim — ainda que o romance não siga essa ordem. Sim, o tema apresentado, magia sexual, também teve influência no tempo que levou para o livro ficar pronto. Não queria apresentar o assunto de maneira folclórica e muito menos “ensinar” nada. Foi preciso mais maturidade e experiência para alcançar essa visão.

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Em entrevista concedida ao projeto “Como eu escrevo”, de José Nunes, você afirma que suas maiores inspirações na literatura são Clarice Lispector e Charles Bukowski. Com que outros escritores canônicos você procura estabelecer interlocuções? Como lidar com esses autores que, a um só tempo, fornecem inspiração e impõem o peso da autoridade? Clarice Lispector e Charles Bukowski são tão diferentes quanto possível em termos estilísticos, o que confirma minha tendência a misturar polos extremos. Contudo, ambos têm em comum o foco nas profundidades do indivíduo e um latente desamparo enquanto seres humanos, enquanto parte da humanidade, aspectos com os quais eu me identifico muito. Hermann Hesse teve impacto gigantesco em mim, especialmente Demian, que li lá pelos dezessete, dezoito anos e já reli umas duas ou três vezes. Oscar Wilde é outro gigante que me influenciou demais, especialmente [O retrato de] Dorian Gray. Quando descobri Aleister Crowley como escritor, lá pelos vinte e poucos anos, foi outra reviravolta estética e conceitual na minha cabeça. Caio Fernando Abreu, Guimarães Rosa, James Baldwin, E. M. Foster e Henry James também são escritores a quem devo muito. Quanto à poesia, Ana Cristina Cesar, Cecília Meireles, Ferreira Gullar, Drummond, Baudelaire, T. S. Eliot, Fernando Pessoa e Maiakóvski são poetas que leio e releio desde garoto. Mais recentemente, descobri Herberto Helder e de imediato vi que é um poeta imenso. Não sinto o peso da autoridade de nenhum deles — embora reconheça que esse peso e essa autoridade existam — porque não pretendo repeti-los ou superá-los. Meu caminho é único, como deve ser o de qualquer artista, para o bem e para o mal. Reconheço a inspiração, mas abomino a imitação. Minha melhor homenagem a esses ídolos é não imitá-los, não tentar repeti-los. Você é tradutor do inglês para o português desde 2000 e já tem mais de cinquenta traduções literárias publicadas por diversas editoras. Que concepção de tradução orienta seu trabalho? Existem traços em comum entre a tradução (como você a pratica) e a sua escrita autoral? Como tradutor, procuro “ouvir” a voz do autor e imaginar como ele ou ela diria seu texto em português brasileiro. Busco respeitar ao máximo essa voz. É terrível quando o tradutor usa sua própria voz no texto traduzido ou tenta corrigi-lo de alguma forma (a não ser no caso de erros de digitação). Claro que frequentemente é preciso adaptar o texto — como diz o ditado, “traduttore, traditore” —, mas procuro ser o mais fiel possível ao espírito do original. A conexão que existe entre a tradução como a pratico e minha escrita autoral é que, como mencionei, foi traduzindo ficção comercial, voltada para as grandes massas, que aprendi a estruturar minha narrativa. Autor reconhecido internacionalmente, você teve obras traduzidas para o inglês, alemão, francês, russo e tcheco. Como você vê a recepção de sua obra, no Brasil e no exterior? Meus livros voltados para o esoterismo não são livros óbvios e nem muito “fáceis” em comparação com outros livros do ramo, então não posso esperar que sejam best-sellers. Considerando-se isso, acho que eles têm sido bem recebidos. Em 2017, foi publicada no Brasil uma nova edição de Iniciação à numerologia, e os demais também terão novas edições mais adiante. Contudo, não lançarei mais 251

nenhum livro sobre esoterismo. Já compartilhei o que eu tinha para compartilhar sobre numerologia e tarô; meu foco agora é escrever romances, poemas, contos e biografias. Eventualmente (e não necessariamente) meus livros abordarão o mundo da magia e do ocultismo, mas com tratamento de ficção. Meus livros de ficção têm sido bem recebidos, todas as resenhas publicadas foram positivas e, considerando-se que no Brasil se lê tão pouco e que sou novato no ramo da ficção, não posso nutrir grandes expectativas. Por isso mesmo estou trabalhando na tradução para o inglês e para o espanhol do meu segundo romance, pois acredito muito no potencial pop das minhas narrativas e não tenho dúvida que elas alçarão voos maiores ao alcançar os públicos desses idiomas. Historicamente, presenciamos um silenciamento das vozes das minorias. Como o machismo e a homofobia presentes na sociedade brasileira afetam a sua escrita? A minha existência sempre foi um constante confronto com o machismo e a homofobia. Sou bissexual assumido desde muito jovem, e ainda na adolescência adotei um visual extremamente andrógino, pós-punk. A primeira vez na vida que me entrevistaram foi aos dezessete anos, em um jornal de bairro de Niterói, onde eu morava na época, apenas por causa da polêmica que eu provocava ao sair pelas ruas maquiado, com os cabelos descoloridos (como os mantenho até hoje) e até de vestido. Sempre me identifiquei como homem cis, nunca pensei ou quis ser mulher, mas meus modelos de homem eram David Bowie, Ney Matogrosso, Boy George. Tudo que eu escrevo traz em sua essência um chute no queixo do conservadorismo. Sou um homem casado há quase vinte anos anos com um homem negro, sou vegetariano há trinta e um anos e me sustento como freelancer me equilibrando entre traduções literárias e técnicas, aulas de inglês e consultas e aulas de numerologia e tarô, logo creio que podemos dizer que eu nado contra várias correntes. Todavia, curiosamente, as coisas fluem naturalmente para mim. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Acho particularmente lamentável, pois a poesia brasileira é de enorme qualidade. Acho que o idioma português favorece muito mais a criação de poemas do que o inglês ou o espanhol, por exemplo, idiomas que conheço. O vocabulário, os fonemas, os tempos verbais, tudo no português facilita a escrita de um texto mais melodioso, mais sonoro e mais amplamente significativo. Mesmo entre pessoas que considero inteligentes e cultas observo que há pouco interesse por poesia. Por outro lado, há muitos poetas e várias editoras publicando poesia, então talvez o problema não seja falta de público, e sim fazer a poesia encontrar seu público. Seja como for, acho inacreditável o baixo interesse pela poesia em um país que tem poetas como Ana Cristina Cesar, Gullar, Cecília Meireles, Hilda Hilst, Drummond e Murilo Mendes, entre tantos outros. Diante do panorama da literatura e da cultura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem acompanhado? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção artística – sobretudo literária – brasileira contemporânea. 252

Existe uma efervescência ainda restrita, mas muito resistente no meio literário. Tem muita coisa boa sendo produzida, mas, infelizmente, pouco divulgada e consumida. Acabei de ler Aqui, no coração do inferno, de Micheliny Verunschk, que é um livro muito profundo e ao mesmo tempo muito fácil de ler, não é um livro abstrato, ele tem uma urgência de comunicação que vem bem a calhar no momento histórico atual. Não quero com isso desmerecer textos mais rebuscados e herméticos que também amo e continuo consumindo como sempre. Apenas vejo em textos mais urgentes uma ponte imediata com o público mais jovem, que é o público que precisa ser conquistado agora com livros mais acessíveis. Só assim esse público poderá, mais adiante, expandir suas escolhas de leitura. Outros livros excelentes lançados neste século e que considero exemplos do vigor da literatura brasileira contemporânea são Enfim, imperatriz, de Maria Fernanda Elias Maglio, Extemporâneo, de Alexey Dodsworth, e Tecelã de sonhos, de Angela Dutra de Menezes. Minha principal inquietação é a de presenciar a asfixia da literatura, algo que considero uma das necessidades humanas básicas, por parte do Estado (sobretudo o governo atual, capaz de em um só mês retroceder décadas). Os Correios são um dos principais instrumentos dessa asfixia, que considero proposital: é uma empresa que faz de tudo para inviabilizar as pequenas editoras, que são justamente as que ousam publicar os autores mais interessantes. Sem literatura, sem música, sem artes, sem filosofia, o ser humano deixa de exercer seu real papel (ou deveria eu dizer Verdadeira Vontade?) enquanto espécie. Sou totalmente favorável ao fomento estatal das artes e da literatura, que não deveriam ser abordadas através de uma lógica comercial. A maioria dos países desenvolvidos e de cultura forte (ou talvez todos) têm políticas de fomento para as artes. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Estou escrevendo um romance e um livro de contos ao mesmo tempo, e também traduzindo Às vezes o buraco é mais embaixo para o inglês. Após o inglês, vou verter o mesmo livro para o espanhol com a ajuda de uma amiga tradutora uruguaia. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos, que motivaram a sua recente mudança para Montevidéu, capital do Uruguai. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Primeiramente, eu queria esclarecer que minha mudança para Montevidéu não foi motivada pela deprimente explosão de racismo, fascismo, misoginia e homofobia que vocês mencionam. Apesar de ser uma pessoa bastante racional, eu tenho uma intuição, um instinto que sempre me guiou por mudanças cujo alcance só se revela depois de um tempo. Por exemplo, uma viagem de quinze dias para Nova York, em 1997, virou uma temporada de um ano: eu cheguei para passear e em uma semana arrumei trabalho e moradia, e resolvi ficar. Foi isso que me impulsionou à fluência no inglês e me levou a ser tradutor e professor de inglês, de 253

onde tiro a maior parte do meu sustento. Na época, ao embarcar para passar quinze dias na cidade, eu não podia imaginar a reviravolta que estava para acontecer na minha vida pessoal e profissional. Da mesma forma, dois anos atrás fiquei sabendo de uma nova lei, um acordo entre o Uruguai e o Brasil, que permite que cidadãos de um país possam tirar o visto de residência permanente para o outro, e algo por dentro me disse: vai. O motivo formal era, e ainda é, estudar espanhol para passar a trabalhar também neste idioma como tradutor, professor e escritor. Mas quando eu e meu marido recebemos nossos vistos, em agosto de 2018, a ameaça do fascismo já era nítida e percebi que havia um motivo maior para sair imediatamente do Brasil. Ou seja, não vim para o Uruguai por causa do resultado das últimas eleições, mas agradeço muito aos meus instintos por terem farejado a decadência com antecedência e levantado acampamento a tempo. Quanto à monstruosidade, penso que ela faz parte do ser humano e só uma autocrítica ampla e impiedosa por parte da nossa espécie poderá impedir a destruição da civilização. Mas esta é uma resposta racional, porque não consigo entender de fato como uma quantidade tão grande de pessoas pode ser racista, homofóbica ou simplesmente má. Talvez seja resultado de Verdadeiras Vontades não cumpridas, essa deturpação, esse desvio que gera seres humanos completamente desprovidos de empatia. Não sou otimista quanto ao futuro e nem dá para ser, mas às vezes penso que talvez estejamos inevitavelmente destinados a chegar a esse estágio de máxima civilização — ainda que pareça que vai demorar um pouco. Uma pessoa cumprindo sua Verdadeira Vontade é uma pessoa que não atravessa a órbita de outra estrela, ou ser humano, como entendemos em Thelema. Se nenhuma estrela atravessar a órbita da outra, tudo se ajeita.

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Jorge Elias Neto Nasceu em Vitória (ES), em 1964. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2019.

Na segunda estrofe de “Régua quebrada”, um dos poemas de Rascunhos do absurdo (Flor&Cultura, 2010), lê-se que “Versejo com apetite./Cato palavras de aluvião./Sou sapo de língua comprida catando mosca”. Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? Descreva as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. Meus poemas se alimentam do “estalo da palavra”. Emprenhar-se de miudezas; deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros. E quando a luz se aperceber, desmembrada pelo estalo da palavra, jogar-se nos trilhos para salvar a flor. Não é a toa que considero que o melhor do que escrevi, principalmente nos meus primeiros livros, seja o verso que motivou o poema, ou aqueles poemas que já nasceram prontos, com poucas palavras, enxutos, com palavras irremovíveis. Na verdade, costumo brincar que sou um poeta pretensioso, não quero deixar um poema como legado, mas, sim, uma palavra. Quando escrevi o poema “Régua quebrada”, quis dizer do valor que dou ao verso livre, sem rima, sem métrica, mas assim mesmo melodioso, completo em sua função de gerar emoção. Tenho inúmeras situações que exemplificam a metáfora do sapo guloso do poema. Embora a metapoesia não seja uma constante nos meus escritos, você foi capaz de pinçar meu “segredo” ao olhar para a régua quebrada. Engraçado, olhando agora me lembro de um dado do inconsciente, uma historinha, uma pequena digressão... Não gostava de matemática, detestava conta e tabuada. Tinha um professor que tinha a mania de me bater na cabeça com uma régua. E um dia revidei com minha régua de madeira na cabeça dele... E a régua se quebrou… rsrs. Naturalmente, as opções temáticas e, principalmente formais, mudaram, ou foram sofrendo ajustes ao longo dos anos. E este é um aspecto que norteia minha postura analítica no que diz respeito ao que já publiquei. Trabalho o poema, confesso que até com certa impaciência, e incompetência mesmo, somente até tê-lo impresso no livro. Daí por diante o poema se torna “imexível”. Quem escreveu Rascunhos do absurdo não foi o mesmo poeta que escreveu Cabotagem. Existe um hiato de anos entre os dois livros. Já não sou mais 255

o mesmo poeta. Considero um desrespeito, uma mentira, impor ao poema impresso uma nova configuração, uma nova palavra, ou seja, qualquer tipo de retoque. Passo a ser leitor e crítico de meus poemas publicados. Faço isso consciente de que posso estar mantendo imperfeições estéticas. O que ficou como característica fundamental foi a tentativa de captura das palavras e das imagens, algo próprio de todo poeta. Uso muito o celular – já cansei de “perder” versos que tentei memorizar –, ele me permite gravar ou usar o bloco de notas em qualquer lugar. Fico o dia todo no hospital ou consultório, tenho que usar então do recurso que tenho mais próximo para escrever meus poemas. Depois vem o processo artesanal, trabalhar com fragmentos, se deixar guiar pelo poema que se constrói e empaca feito mula, dizendo: põe um ponto aí camarada, eu já disse o que queria! Para toda a minha escrita, mesmo em meus livros temáticos, parto de uma visão existencialista de mundo, de olhar para o absurdo, o absurdo da consciência e da morte, de uma busca do ideal que não alcanço como homem. Uma busca pela verdade oculta, um sentido de responsabilidade pela consciência herdada com o nascimento, uma tentativa de diálogo com o leitor-poeta e o leitor anônimo. Uma busca de emoção e de incitar reflexão. Quero propor ao leitor um enfrentamento consciente do absurdo. Tento escrever pelos homens de meu tempo, colocar as minhas, as nossas angústias, mesmo que de certa forma já as tenha elaborado um pouco – inclusive com a ajuda dos meus escritos – ao longo dos anos. É certo que produzi livros temáticos e inusitados, como foi o caso do Breve dicionário poético do boxe, mas para o leitor, o escasso leitor de poemas, o traço existencialista é facilmente identificável. Daí vêm as variações, que muitas vezes me angustiam pela perceptível recorrência temática e por palavras repetidas e exaustas. E isso me faz sentir o temor do dia fatídico para todo poeta... É quando ele diz: acabou a inspiração, o jeito é requentar alguns poemas... Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Sempre existiu algo estranho que eu não sabia nominar. Tive uma infância bem solitária. Fui um gordinho em um momento em que não existia a epidemia atual de obesidade. Isso me fez ser muito tímido. E como minha família não fosse muito sociável, aprendi a brincar sozinho, vivia criando histórias e lendo revistas em quadrinhos e os livros que minha mãe comprava. Tive uma avó que recitava poemas em cordel; tive um irmão hippie que teve uma vida fantástica; um poeta que tentei imitar. Não brincava no recreio, ficava desenhando e lendo um livro que consegui com os melhores poetas românticos e parnasianos. Comecei então a escrever poemas. Ganhei um prêmio com um samba em homenagem à Bahia. Depois veio a MPB, que tomou minha vida. Chico Buarque, Clube da Esquina, Cartola. Veio meu primeiro grande poeta: Vinicius de Morais. Então, uma pausa de vinte e cinco anos. Estudo e música. Passei a tocar choro, samba e MPB com meus amigos, a compor algumas músicas que tive medo de cantar para os outros. 256

Durante todo esse período eu escrevi regularmente, mas apenas artigos científicos. O “momento inaugural” foi em 2002, quando decidi escrever um poema para servir como epígrafe de minha dissertação de mestrado. Escrevi e relembrei o prazer da escrita poética. E o convencimento, deixo por culpa, conta e risco do professor José Augusto Carvalho e do poeta Miguel Marvilla. Na apresentação de O ornitorrinco do pau oco (Cousa, 2018), você afirma que ao reler uma definição do Breviário da composição, de Emil Cioran, descobriu-se um “pessimista entusiasmado”. No mesmo texto, menciona a morte de Deus, as distopias e as barbáries políticas. Em Breviário dos olhos (Edição do autor, 2017), um poema pergunta: “Restará sempre a dúvida: / em que pernas / poderemos apoiar / esta existência sem sentido?” O entrelaçamento desses topoi me remete ao fenômeno do niilismo, palavra-chave das minhas pesquisas. Eu considero que somos niilistas toda vez que lamentamos a ausência de sentido do mundo e somos antiniilistas toda vez que somos capazes de atravessar o niilismo, criar novos valores e desenvolver formas de vida em que se verifique uma plena afirmação da imanência. Como você situa sua obra a partir dessa perspectiva? Escrever é terapia. O que tento fazer, uma disposição inocente e ambiciosa, é estender esse processo de desbravamento tentando atingir o leitor. Tento fazer como se minha escrita dissesse não só de minhas angústias e reflexões pessoais, mas também as de meu tempo, dos homens de meu tempo... Percorri vários caminhos ao longo dos últimos anos, por ser uma pessoa não religiosa oriunda de uma família ligada à religião, vivenciei todos os conflitos referentes à relação com o Deus cristão e com a morte absoluta. Aprendi sobre niilismo negativo, niilismo positivo e fui tentando me situar no mundo. Quando li Cioran, obtive muitas respostas para meus questionamentos e passei a me identificar com a ideia de pessimista entusiasmado. Depois fui aprender que talvez estivesse mais próximo do realista entusiasmado de Suassuna. Aprendi que muito ocorreu no século XX – perdemos a inocência –, mas nada foi capaz de alterar a condição primeira da existência consciente: o desejo de transcendência da alma. Para tentar responder sua pergunta faço uso de um texto que escrevi quando de minha entrada na Academia de Letras no qual, como ateu, tento argumentar sobre o tema da imortalidade. “E como reagir quando Albert Camus nos lança na face que ‘A razão não explica tudo, mas não existe nada além da razão’.” Isso atordoa. E resplandece perante os nossos olhos – a Morte. O que faz a consciência com sua extrema maleabilidade, sua capacidade de se moldar perante o abismo? O que faz, como se justifica o indivíduo, em especial aquele mais cético e realista, aquele que se intitula um homem do absurdo, com sua existência lançada no rosto? E o poeta responde a Albert Camus: Parte-se do esquecimento. 257

Caminha-se para o esquecimento. Disso dou testemunho. Tamanha consciência da morte vindoura nomeia encantamentos em cada trecho de aurora. E, se, em algum momento, falta ao punho o sustento, recolho-me ao verso que apoia. Eis a dura lida que ao poeta condena. Mas apesar do tormento da finitude certa, tem no poema – pulsão de vida – rumo ao esquecimento. Escreveu Sénancour, na carta XC de seu livro Obermann: “O homem é um morredor. Pode ser, mas pereçamos resistindo, e, se é o Nada o que nos é reservado, façamos que seja com justiça”. “Alteremos esta sentença”, nos diz Sénancour, de sua forma negativa para uma positiva, dizendo: “E se é o Nada o que nos está reservado, façamos que isto seja uma injustiça, e terás a mais firme base de ação para quem não pode ou não quer ser um dogmático”. “Escrever para não morrer, [...], ou talvez mesmo falar para não morrer é uma tarefa sem dúvida tão antiga quanto a fala”, nos diz Foucault. Desde os tempos da Grécia Antiga, a prática da leitura e da escrita tinha o caráter eminente de produção de kléos (Glória). Fala-se, ou escreve-se, na Grécia, para se produzir a glória incontestável dos heróis, e a sua propagação nada mais é do que um modo de imortalização, ou melhor, de perpetuação do herói, para além de sua própria morte. Mas o homem absurdo, é, e sempre será, inconcluso, e adentra-se na imortalidade transitória das letras. Ludibria os tempos por saber ser mais durável o papel que a carne. Vida e morte são o continuar dos passos o ir e vir para não se sabe onde. A única diferença é que, no fim, não se poderá mais contar os passos... Em suma, minha visão, oriunda de uma vivência acadêmica, se aproxima muito da visão de Affonso Romano no poema “as cinco mortes de um homem”. Convivo diariamente com a morte, ela faz parte de minha vida como médico intensivista e cardiologista; conscientemente não vislumbro nada além da morte. Não cultivo uma visão proselitista, não advogo que todos sejam ateus, respeito e entendo a necessidade de um deus, de uma religião. Mas tenho meu olhar particular para a vida. Fui brindado com a vida consciente. Sou um animal com uma responsabilidade. Minha insignificância é relativa. 258

Não acredito na transcendência, ela é irrelevante no que diz respeito a minha tomada de atitude, ao que baliza moral e eticamente minha vida. Mas correndo o risco de parecer um paradoxo, não vejo que os homens, em geral, possam viver harmoniosamente sem um deus, algo com a potência de lhe “presentear” com a transcendência. Tenho uma visão cética em relação à postura humana para com o planeta. E digo mais, os artistas atuais, como toda sociedade e governo, não tomaram consciência do quão anacrônicos são em relação ao mundo atual. Pois o desejo de transcendência através da obra é um anacronismo dos artistas que ainda não se vestiram da roupagem fluida da transitoriedade pós-moderna. Sua obra já recebeu comentários de autores como Caê Guimarães, Carlos Nejar, Francisco Aurélio Ribeiro, Ivan Borgo, José Augusto de Carvalho, Miguel Marvilla e Ruy Espinheira Filho, dentre outros. Como você vê a recepção de sua obra? O primeiro comentário que ouvi sobre meus escritos foi feito pelo linguista José Augusto de Carvalho. Já me referi a este fato anteriormente. Ele me disse: “Jorge, você tem que escrever poemas, você é um poeta. Você tem que publicar, existe muita coisa pior que isso publicada por aí”. Baita elogio vindo de um profundo conhecedor de nossa língua, um homem de uma sinceridade que aprendi a admirar com o passar dos anos. Miguel me abriu as portas, publicou meus dois primeiros livros, foi meu “ídolo de corpo presente”. Tive muita sorte de poder conhecer e conviver, seja pessoalmente ou virtualmente, com grandes leitores e poetas. O que ficou evidente, após o pontapé inicial com o apoio de Marvilla e José Augusto Carvalho, é que os primeiros comentários favoráveis sobre meu trabalho ocorreram graças à divulgação na internet. Foi através do meu blog que conheci vários poetas em todo o Brasil e que me convidaram para enviar coletâneas para diversas revistas eletrônicas. Dentre elas eu destaco a “Diversos afins”, de Fabricio Brandão e Leila Andrade, e o Portal Eletrônico “Cronópios”, inicialmente comandado pelo Pipol e Edson Cruz. Somente após alguns anos, comecei a ter algum contato com escritores capixabas, principalmente por intermediação da escritora Jô Drumond e do nosso romancista Reinaldo Santos Neves. Também não posso deixar de agradecer ao poeta Sérgio Blank e à Diretora e Bibliotecária Rita de Cássia, que me abriram as portas da Biblioteca Pública Estadual. O meu maior interlocutor, e que me ajudou muito no meu início, foi Gustavo Felicíssimo; ele foi meu interlocutor diuturno, tecendo críticas e comentários pertinentes sobre meus escritos. Além disso, fui mal acostumado pelo professor José Augusto de Carvalho a ter o seu olhar e revisão sobre tudo o que escrevo. Sou muito grato por ter prefácios escritos por grandes autores nacionais, como Ivo Barroso, Carlos Nejar e Ruy Espinheira. É uma felicidade e uma responsabilidade. O meu contato com alguns dos que escreveram sobre meus livros veio 259

após meu ingresso na Academia de Letras. Lá conheci o incansável e prolífico Francisco Aurélio, o adorável Ivan Borgo, que também me presentearam com prefácios e resenhas. Quanto a Caê Guimarães, eu não imaginava outra pessoa para escrever a apresentação do meu Breve dicionário do boxe, um poeta que admiro e praticante desse esporte. Penso que para uma pessoa não oriunda do meio literário devo me sentir recompensado por ter obtido textos elogiosos e bem fundamentados escritos por autores que admiro. Você já lançou edições independentes e publicou por editoras independentes como Cousa, Mondrongo e Patuá, além da extinta Flor&Cultura. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? Desde o lançamento de meu primeiro livro tenho observado uma mudança significativa no que diz respeito ao mercado editorial. Creio que o principal problema é com a distribuição dos livros, com a carência de leitores. Tem ocorrido um incremento significativo no número de editoras que se propõem a editar livros com baixo custo, com pequenas tiragens. Este mercado foi impulsionado para interligação midiática; à medida que migramos do email para o blog, a chegada do Facebook e do Twitter, a intercomunicação ficou mais fácil, a divulgação inicial de poemas e poetas ficou mais fácil. Meu caso é um exemplo disso, criei um blog por sugestão de Miguel Marvilla, através do blog estabeleci contatos com Gustavo Felicíssimo, da Mondrongo, que me sugeriu algumas revistas eletrônicas, dentre elas o Portal Cronópios, participei de um coletivo no Cronópios que me abriu as portas para publicação pela Patuá, do guerreiro Eduardo Lacerda. Logo em seguida, Gustavo abriu a Mondrongo, que publicou meu livro Cabotagem. E, por fim, meu último livro, que foi lançado pela editora Cousa, de Saulo Ribeiro, que acabou tendo a intermediação de Eduardo Lacerda, da Patuá. Acontece que esta democratização para por aí. Mas lanço um olhar crítico, nem um pouco corporativista, sobre esta questão da edição de livros de poemas. Em primeiro lugar vejo uma enormidade de publicações sem qualidade; são pessoas que tentam realizar um sonho de publicar seu livro e, muitas vezes, caem na malha de editoras que não levam em consideração a qualidade do texto, trata-se apenas de uma relação comercial. Existe uma outra fatia grande do bolo, e esta me preocupa mais, que é composta por poetas que mergulham nas mídias de um maneira obsessiva e se acreditam grandes poetas e se associam visando a que prevaleça esta ideia. Estes autores têm uma necessidade de valorização não de sua obra, mas de sua imagem. Algo que me importuna muito. O escritor não pode se permitir ser transformado em imagem. E a forma mais eficaz para isso é se propor à desconstrução como homem. Considerar que o mais relevante é sua obra, e não ele. Não advogo o extremo, sugiro a passagem por um processo de limpeza e relativização da relevância. Que isso se faça sem que, necessariamente, adote-se uma postura como um novo Igitur. Para mim, a obra é muito mais importante do que o autor. Já conversei sobre este tema em uma entrevista que dei ao Hilton Valeriano em 2010. Um dia desses, comentei sobre isso com o professor José Augusto Car260

valho e ele me retrucou: a obra é sempre mais importante que o autor, mas é a importância do autor que dá importância à obra... E, por fim, é claro que existe a boa poesia, escrita por poetas que a cultivam com muito trabalho, e se deparam com uma peneira, ou melhor um funil, que não depende apenas da qualidade poética de sua obra. De todo modo, a distribuição segue sendo o tendão de Aquiles. Inúmeros poetas, poucas editoras, pouquíssimos leitores, nenhuma distribuição. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Sim. Tenho quatro livros finalizados. Dois deles foram enviados para apreciação das editoras: Manual para estilhaçar vidraças e A arte do zero. Os outros dois dependem de um projeto gráfico. O primeiro, Quadras capixabas, é um livro de quadras no qual procuro falar sobre o Espírito Santo (pessoas, lugares e fatos históricos). Pretendo que seja ilustrado e com um apêndice que traga informações complementares para cada tema abordado. O objetivo, se eu conseguir levar o projeto adiante, seria um livro para distribuição gratuita nas escolas primárias e secundárias do estado. O segundo livro, eu denominei Cristo de pão, é um livro que traz todos os poemas nos quais abordo a relação do homem com deus. Este será um livro bilíngue (português-francês), com edição e ilustração feitas por minha filha, Lorena Elias. Já se encontra traduzido (com a ajuda do professor José Augusto Carvalho). Quanto aos projetos em andamento, são vários, só não sei qual finalizarei. Tenho um livro de ensaios e um livro de crônicas. Também estou escrevendo dois livros de poemas, o primeiro eu chamei de Sonetos em crise, como o nome diz, é um desafio de retornar aos primórdios de minhas leituras... Tentar um livro de sonetos. O segundo é um livro de poemas sem um tema específico, seguindo minha característica da qual tratei na primeira resposta: os poemas “da hora”, os estalos da palavra que me ocorrem, fruto de minhas vivências pessoais e circunstâncias, este eu denominei XXI. Também estou envolto com projetos acadêmicos, escrevendo alguns artigos científicos que abordam temas relacionados à minha atividade como médico e pesquisador. E ia me esquecendo, tive a ideia de um projeto que funcionaria como uma brincadeira de forca. Dois poetas escrevendo cada poema, tentando preencher o espaço que eu forneço como mote. Esta palavra seria o nome do poema e deveria constar no texto. A palavra seria: F__ __ __ - S__... E se me pergunta se pretendo escrever algum livro de contos ou romance... Nada feito. Costumo dizer que o olhar de um poeta costuma ser diferente do olhar de um romancista... E isto se reflete no texto. E ainda tem a questão do tempo, coisa que não tenho no momento. Na apresentação de O ornitorrinco do pau oco (Cousa, 2018), você afirma que o poeta “corre o risco de se tornar uma curiosidade em risco de extinção”. Considerando que a poesia brasileira tem um alcance bastante limitado em termos de público, como você vê essa questão da sobrevivência do poeta e da poesia? Se você vivesse no meio em que vivo, veria facilmente que o poeta já é um 261

ornitorrinco aos olhos dos filisteus. É lógico que, com o rumo tomado pelo homem, seria mais sensato falar da extinção da humanidade, quem sabe de todo o planeta. E não falo do inegável fim por um fenômeno independente da atitude humana, falo do “antropo-caos”. Mas, voltando ao ornitorrinco do pau oco, ele não deixará de existir, mas viverá na virtualidade, um território que o alimentará com cinzas, e não com o verde. Serão poucos os que conseguirão se manter autênticos e em convívio com a natureza. E, no meu entendimento, perder o contato com “elo perdido” da natureza empobrecerá a poesia. Todos os experimentos realizados, principalmente na segunda metade do século XX, por mais que tenham valor e sejam exaustivamente defendidos e propagados – veja o movimento concretista, o poema processo, a poesia visual –, são a expressão da transição binária da linguagem, um distanciamento da essência natural do existir. Não consigo ver compaixão e empatia nesta poesia. Vivemos a ditadura da visão. O que vale é o instante, o flash... Tudo isto em detrimento do efêmero. Aí se encontra o objeto desejável. Os artistas que lidam bem, que sabem buscar um nicho confortável no imediato, se enquadram no processo de criação da arte perecível. A arte que se consome fluida e desce pelo premonitório urinol de Duchamp. O artista que não se enquadra neste processo é um ser de outro tempo, um ser em extinção, um ornitorrinco que persiste, inconformado. Não que todo artista não tenha em seu íntimo esta percepção. Mas a doutrina do poder invisível, vivente no espaço fluido do tempo real da virtualidade, sabe privilegiar o artista que vislumbra no instante e no respirar ínfimo de suas obras o infinito. O espaço-tempo está sendo negociado pelo mercado, e o ornitorrinco não é uma commodity rentável para o novo deus do Mundo. Na apresentação de O ornitorrinco do pau oco (Cousa, 2018), você afirma que “Vivemos um momento neoantropofágico na poesia”. A partir dessa perspectiva, o que você acha dos poetas brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Poderia partir de uma fundamentação mais teórica, mas prefiro falar como um observador privilegiado; como um leitor com algum grau de treino; como um indivíduo que circula em vários “microclimas” onde transitam não só poetas, não só amantes da literatura, mas também indivíduos de visão prática e pragmática para o seu entorno. Confesso que chego a me surpreender com minha impaciência em ler os poetas de minha geração. Talvez seja devido ao imenso bombardeio que as mídias nos lançam na cara diariamente. Leio muito mais filosofia, história, romances, biografias e os cânones da poesia brasileira e mundial. Dito isso, esta minha visão parte da análise de alguns poetas que tive a oportunidade de conhecer e ler nos últimos dez anos. Pensei no termo “neoantropofagismo” após ter o prazer de ler e escrever o posfácio do livro de Alexandre Guarnieri, Corpo de festim, ganhador do Prêmio Jabuti. Comecei a traçar um paralelo entre o que lia e o que vinha pensando, e muitas vezes inserindo em 262

meus poemas, sobre a transição que ocorreu na literatura a partir do século XIX. Quando observamos o EU de Augusto dos Anjos, observamos todo o estranhamento do homem da virada de século, o embate entre a ciência e a fé, até então a grande promessa de avanço exponencial da humanidade e a morte de deus dita por Nietzsche e propagada por Schopenhauer. Vivemos uma outra virada, uma nova revolução tecnológica e industrial sem precedentes na história, já descrente de Deus, da ciência, do homem. O poeta, antenado com essas circunstâncias, reedita, agora quase fazendo da palavra sua forma de autoflagelo, o antropofagismo sofrido de Augusto dos Anjos, não o festivo de Oswald de Andrade. Depois de ver o desmembramento humano na poesia de Guarnieri, comecei a observar o mesmo traço em vários poetas de qualidade de minha geração. Vi isso na poesia de Nuno Rau, Sérgio Blank, Casé Lontra Marques, Solha e vários outros. É óbvio que, como em tudo, esbarramos nas limitações da ordem de estilo e de carência de beleza e emoção em vários autores que também apresentam essa “pegada” antropofágica. Não considero que esta seja a característica pensada em grupo, mas sentida por muitos poetas. Reflete mais uma visão de Mundo do que um traço de vanguarda. É mais olhar do que estilo. Mas esta é uma vertente dentre as várias presentes na literatura de nossos dias, tão eclética e, tanta das vezes, cinza e fria. No poema “Sonho no absurdo”, do livro Rascunhos do absurdo (Flor&Cultura, 2010), lê-se que “O poeta sente o absurdo do tempo humano”. E um dos versos de “Decreto”, de O ornitorrinco do pau oco, diz que “O status quo deverá ser limpo com papel higiênico”. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? A poesia permite um legado sem tragédia. O poema é um esticamento da vida; um elástico transcendente, daí o lado entusiasmado ao qual me refiro quando cito Cioran e Suassuna. E o absurdo é meu mote, a herança camusiana que carrego comigo, meu pilar reflexivo. Parto desse olhar do absurdo íntimo, esse digladiar com a morte que me imponho como médico e, principalmente, homem, para dizer do “absurdo do tempo humano”. Costumo dizer que os extremos fazem parte da estatística. E não deveríamos permitir que os extremos prevalecessem... Mas não é o que observamos na história. Falar da monstruosidade é falar do Leviatã de Hobbes, assumir a essência humana. É preciso ser duro consigo mesmo, não florear muito, não divagar e fantasiar sobre o que é o homem. Não creio no homem natural de Rousseau, e sim no de Hobbes. No que diz respeito a este tema, não divago, busco ser prático e ver com o olhar não só dos vencedores, encarar as entrelinhas dos vencidos. 263

Aristóteles nos diz do animal político, Santo Agostinho fala do animal social... Eu continuo a fila, como aquela famosa ilustração na qual o Australopithecus afarensis puxa a fila até o homem moderno... animal doutrinado, animal alienado e, por fim, o animal hipnotizado... Stephen Jay Gould, famoso paleontólogo, diz ser ilusória a percepção de que a humanidade está em avanço contínuo; ele nos diz que dentro do mesmo surgem indivíduos. Mas, infelizmente, continuamos iludidos com a falsa percepção de estarmos avançando, graças às benesses tecnológicas. Vejo e busco, com extremo interesse, tentar entender a transição do século XIX para a primeira metade do século XX. Acho muito interessante ver como indivíduos brilhantes nos deram a falsa impressão de que o homem poderia fazer florescer a utopia de Morus. Darwin, Freud, Einstein, Nietzsche, Marx e Engels, Schopenhauer, Mendel lançaram o conhecimento humano em outra dimensão... E a literatura acompanhou tudo isso. Mas os fatos concretos mostraram o real potencial destruidor do homem. E porque digo tudo disso? Para dizer que estabelecer um marco para a detonação seria primeiro uma pretensão, segundo uma simplificação. Muitos dizem do movimento pendular, perfeito, é um olhar possível para esta guinada para a direita da política mundial. Mas creio que hoje lidamos com outros atores, pragmáticos e insensíveis. Fico preocupado em me estender demais se entrar na questão política nacional. Prefiro falar do que tenho observado em nível mundial. Penso que vivemos a ditadura da visão guiada, uma trama fractal de informações represadas. Surpreender com uma imagem, tocar o nicho cada vez mais distante e insensível da indignação, esse é o propósito insigne dos articuladores e dos carentes de lucidez. A imagem articulada como arma, munida de mira telescópica e dotada de todos os requintes perversos e astutos disponíveis com o avançar da tecnologia. A imagem como arma e os homens como o centro do alvo. E o resultado: a destruição, o desmantelamento da consciência. A impressão é de que desvendaram o quebra-cabeça. Conhecem de cor os encaixes e, a cada dia, desmancham e remontam as peças que nos guiam, cegos e autômatos. É o espasmo da humanidade. O Estado e Deus tornaram-se anacrônicos. O desmantelamento do Mundo que chegou autoconfiante ao século XX e passou asfixiado ao novo século.

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Jorge Nascimento Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1960. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei e Adolfo Oleare em fevereiro de 2019.

Você tem publicado poemas, escritos em jornais e textos acadêmicos. Descreva as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. Eu não tenho projeto literário. Profissionalmente, como professor de pós-graduação, devo produzir textos acadêmicos, e o que tenho feito é tratar de temas que não seriam aprioristicamente acadêmicos, como é o caso do RAP dos Racionais MC’s, tido como cultura popular e não como literatura, muito embora as faculdades de Letras hoje estejam mais abertas para esse tipo de discurso, tido como marginal. Os textos escritos para publicação no jornal Metro, que depois foram compilados no livro Visagens, formalmente deviam caber no espaço de 2.400 caracteres (com espaço), essa era a única imposição. Quanto aos temas, são variados e, agora vejo, são parte de minhas indagações sobre o Brasil, sobre o mundo, sobre fatos que me afetaram, que me motivaram a divagar sobre eles. Devido a mensagens recebidas de leitores em geral, de alunos, ex-alunos professores que diziam levar os textos para discussão em sala de aula, percebi o alcance dos textos e tive alguns cuidados com o tratamento dado a eles, tentando, muitas vezes inconscientemente, abordar os assuntos de maneira que poderíamos chamar de uma “pedagogia informal”, mas sempre opinando e deixando clara minha posição ideológica como um cidadão brasileiro. Quanto aos poemas, são exercícios de liberdade, nos conteúdos e nas formas, mas creio que as questões sociais e afetivas, com o “outro”, com o mundo, são o que aflora mais nitidamente em meus últimos escritos, que são publicados em redes sociais e, recentemente, num blog de literatura de um antigo amigo dos tempos de estudante de Letras. Racionais MC’s é literatura? Em que medida a música brasileira, sobretudo o samba e o rap, alimentam a sua escrita? RAP é literatura, samba e MPB são literatura, mas vem aquela história: literatura popular, letra de canção... No caso específico dos Racionais, o “livro” Sobrevivendo no Inferno, de 1997, entrou na lista de obras literárias na UNICAMP, o que é um reconhecimento (tardio) e (ainda) controverso. Acho que as letras de canções foram livros em que eu estudei toda a vida. Inclusive, nos anos 70 do século passado, quando eu era um menino, já eram postas letras de canções nos livros didáticos. Lembro de uma coleção da MPB, discos de vinil com encarte informativo e fotos, um amigo mais velho tinha a coleção, nos emprestava, escutávamos Noel Rosa, Gilberto Gil, Caetano, Chico, Cartola... eu lia as letras, acho que os ritmos musicais e das palavras compunham algo que me agradava e ainda agrada muito. A filosofia popular, as linguagens, as narrativas poéticas dos compositores interpretados por Bezerra da Silva, por exemplo, eram parte de um saber com o qual eu convivia, escutava e até vivia. Penso que essa relação entre memória, aprendizagem e possibilidades de expressão sempre foi intrínseca ao meu ser/estar no mundo. Então, isso deve estar presente naquilo que eu escrevo, poderíamos falar 265

de uma sintaxe da rua que, claro, vai dialogar com a literatura que acumulei nesses anos todos, como professor e leitor. Um traço da sua escrita é o uso dos chamados palavrões. Que função têm eles na sua poesia? Palavrão... um traço... Escrevo alguns deles em alguns poemas, interessante pensar que palavras que comumente remetem a um mundo arcaico em que, basicamente, questões morais são levadas para questões sexuais, de forma mais ou menos explícita, e que isso ainda pode chocar. No meu caso, uso palavrão quando as outras palavras se apequenam em seus significados. O palavrão vem da rua, do mundo, da incapacidade expressiva que se faz no xeque-mate da ideia proscrita. Daí eu achar palavrões muito expressivos. Palavrão pode ser inverso àquilo que ele inicialmente expressa, podemos chamar um amigo de “maior filho da puta” e receber de volta o abraço agradecido ao elogio. Outra coisa: desestabilizar o cartel das belas letras também é uma coisa instigante, desconstruir minimamente esses castelinhos beletristas bem-comportados, como saraus do século XIX. Mas o que eu acho que essas palavras antiliterárias podem fazer é dotar o texto poético de uma capacidade profanada e profanadora que pode ser expressiva, popular, enviesada, provinda de bocas desprivilegiadas que podem e têm muito a dizer. Dialogar com esses saberes através de uma linguagem dessacralizada pode ser poético, muito embora eu não dê tanta importância assim às possíveis recepções desses poemas. Talvez o uso dessas palavras “vulgares e desnecessárias” ateste que eu nunca fui muito obediente, linguisticamente falando, então traduzir pensamentos sofisticados através de palavras “vulgares”, ou seja, populares, é apenas uma forma de desejo comunicacional que funciona dentro de um pequeno mundo alicerçado no estatuto de certa liberdade. Lembro de um poeminha de amor que escrevi há muito tempo, se chama Réplica: Meu amor quando você me mandou pra puta que me pariu minh’alma se partiu não sabia se pegava um atalho ou te levava junto pra casa do caralho Esse texto ilustra a funcionalidade (ou a não funcionalidade) irônica dos palavrões em contraponto com clichês tidos como literários. Não vou analisar os versos, mas o leitor poderá pensar sobre o assunto. Em sua juventude no Rio de Janeiro, você foi conhecido como o poeta Jorge Makumba. Em que medida sua vivência como morador do alojamento da UFRJ nos anos 1980 marca a sua escrita? A efervescência cultural e o desbunde daquele espaço foram determinantes para a sua atividade de escritor? Em que medida Inhoaíba alimenta a sua escrita? Vêm de lá a acidez e a ironia? Vamos lá: o poeta Jorge Makumba nasce junto com a ilusão democrática criada no ocaso oficial da ditadura militar no Brasil. Recém-saído do Serviço Mi266

litar obrigatório, eu estudava (ou tentava estudar) Meteorologia. Jogávamos um futebol às sextas-feiras com alunos de outros cursos do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza. Na UFRJ, havia um professor que participava dessas peladas. Como eu usava roupas brancas e havia outro Jorge (branco, parecido com o Toni Ramos), para diferenciar, esse professor começou a me chamar de Macumba, aparentemente pelas roupas brancas (lógico que não iria me chamar de doutor). Quando depois comecei a falar e publicar Poemas, assumi o apelido pejorativo, botei um “K”, virou meu nome artístico. Há também uma versão (não confirmada) de que o apelido foi reforçado porque pegávamos garrafas de cachaça de despachos e fazíamos batidas para as festas no Alojamento, mas isso é só uma versão, o fato verdadeiro foi o descrito antes. Acredito que todas as nossas experiências, objetivas ou subjetivas, deixam um rastro que pode ser aproveitado na Poesia, na linguagem, na expressão estética, seja ela qual for... Morando em Alojamento de Estudantes, com homens e mulheres, com a proximidade do fim oficial da ditadura, conhecendo pessoas de muitos lugares do Brasil e de outros países, de diversos cursos e classes sociais (a maioria mais ou menos pobre) e com visões de mundo tão distintas, num tempo pré-aids, drogas lícitas e ilícitas rolando... Havia então um exercício de liberdades e guerras muito enriquecedor, difícil era acordar cedo para as aulas de Cálculo e Física, posteriormente as de Grego e Latim, quando fui estudar Letras. Foi um tempo muito efervescente de trocas de ideias, de leituras, naquela pobreza da qual nossa juventude desdenhava. Nesse tempo, meados dos anos 80, havia projetos culturais e eu comecei a participar de uns circuitos de poesia, algumas ligadas ao DCE (Diretório Central de Estudantes da UFRJ). E também tinha aquela história de bares cult com novos poetas. O problema é que eu ganhava aplausos dos branquinhos da Zona Sul, com seus chopes e batatas fritas, e depois ia embora tomar uma cerveja num boteco pé sujo e disputar ônibus na madrugada, sem grana e quase sempre só. Descobri de um modo penoso que aplauso não enche barriga nem dá onda. Por essa época, na Faculdade de Letras, quando estudante de graduação, ganhei uma bolsa de Iniciação Artística e Cultural (hoje extinta): a seleção foi através de poemas. Paulo Lins (autor de Cidade de Deus) e eu ganhamos. Aí participamos como monitores de uma disciplina que seria hoje uma “oficina de criação”, éramos monitores, produzíamos textos (poemas) que foram publicados. Aí a poesia me serviu, a bolsa e a vida... INHOAÍBA, onde nasci, para onde voltei aos doze anos, onde joguei futebol desde os doze anos, lugar pobre, afastado do centro, zona oeste do Rio de Janeiro, na época ainda com resquícios rurais, com áreas sem fios para soltar pipa, onde a maioria dos meninos só estudava até os catorze anos, tempo de tirar carteira de trabalho e atestado de saúde para procurar emprego, poucos tinham disposição e/ou condições de continuar estudando... O lugar é qualquer lugar, quase um lugar inexistente, mas as histórias, as amizades, a família fazem dos lugares algo que nos forma e conforma. Era um lugar de pouquíssimas opções de cultura. Estou falando de meados dos anos 70, a ignorância política, a repressão da qual não nos tocávamos bem, fim de infância, pré-adolescência, namoradinhas... Mas havia algo que acho especial, éramos um grupo de jovens muito anárquicos, questionadores práticos da moral e das leis implícitas que nos cerceavam, principalmente uns três: o beque central, o lateral esquerdo e o direito... Nesse tempo eu era o Cabeleira, lateral direito do GT. Fazíamos e falávamos muita besteira, no 267

bairro não havia tráfico, nem milícia, tínhamos que ter cuidado com algum ex-policial que não gostava de atos performáticos que poderíamos cometer: como “ordem unida”, como militares, nus, de madrugada, depois de beber alguma garrafa de alguma coisa. Tínhamos que aprender a “não dar mole ao camburão”, como registrado num verso de um poema, já que a lei da vadiagem era lei mesmo. Uns amigos estudantes rodaram e fizeram faxina na delegacia, brincavam: pode ir lá, tá um brinco... Eu me orgulhava de não ter carteira profissional assinada, andava com a carteira de estudante, depois com a identidade junto. Os policiais não gostavam de pobres que “só” estudavam, que não tinham carteira assinada. Acho que a ironia é um traço de minha persona, um ethos. Possivelmente herança de minha mãe, cearense que, por exemplo, repetia frases e contava histórias de racismos rindo, uma forma de educação, uma pedagogia. Acidez? Talvez seja uma forma de regurgitar o tanto de sacanagem que me foi e continua sendo imposto durante a vida, o racismo, o preconceito, certos momentos em que a pobreza comportada e passiva permitiu que me ferissem... Além do mais, nesse mundo doido, é difícil não ter uma visão ácida de um espaço em que as diferenças entre os seres humanos se fazem cada vez mais destruidoras, não por existirem diferenças, mas pela ideia de que temos que destruir de qualquer forma o outro, torná-lo subalterno, sendo o poder do dinheiro o facilitador dessa engrenagem, na realidade seu princípio, seu meio e seu fim. Se acidez e ironia podem ser formas de expressão crítica do mundo, ótimo, que assim seja. Após um longo intervalo, em 2005 você teve poemas publicados na antologia Instantâneo, publicada pela Secult. Depois de outro hiato, em 2018 você reuniu escritos (crônicas) publicados em jornal no livro Visagens (Cousa, 2018). Como você define a sua trajetória literária? O mais estranho é que continuo escrevendo. Publicar, porém, nunca foi uma meta. A razão? Sabe-se lá. Essa publicação da Secult, por exemplo, foi a primeira vez que tive de assinar uma autorização para publicar. Os livrinhos da UFRJ, o Morená do Alojamento, simplesmente eram feitos, faziam-se, fazíamos. Também casei muito cedo, fui pai muito cedo (25 anos), ainda morando no Alojamento, formamos uma família lá. Então, tinha que ganhar a vida, minha mulher era funcionária da UFRJ, eu vivia de bolsas, monitorias, explorações esporádicas às quais os estudantes pobres têm que se submeter, como trabalhar em empresas que contavam votos em eleições, em projetos do Governo Brizola em favelas, auxiliando em projetos educacionais em comunidades pobres... Outra coisa: nunca gostei muito do mundo das letras, dos círculos de escritores, do jogo social que se joga nesses espaços. Até hoje sou muito arredio quanto a esses lugares cult, onde temos que parecer inteligentes e cultos, e citar livros ótimos que somente nós lemos. O livro Visagens não nasceu livro, fui convidado a escrever quinzenalmente (de graça). Muitas vezes quis desistir, pensava: vou escrever de graça para os empresários? Mas a recepção, o exercício, a possibilidade de expor minhas ideias para um público bastante numeroso, eu pensava no aspecto social do negócio. Outra coisa: havia uma pequena vingança pessoal. Quando podia, ia caminhar na praia ou andar de bicicleta no calçadão pelas manhãs. Moro em um bairro de classe média em Vitória/ES, onde há muitos aposentados da empresa 268

Vale. A maioria é gente conservadora, branca, preconceituosa, classe média de pensamento mediano (claro que estou generalizando). Como o jornal é distribuído gratuitamente nas ruas, via gente pegando o jornal, pensava: se eles lerem meu texto vão detestar, disso eu gostava. Depois senti que o jornal não estava mais muito interessado em meus textos, falei sobre um ato de racismo com meninos num shopping e foi a primeira vez que o texto saiu com aquele lembrete de que as ideias expostas eram de responsabilidade exclusiva do autor. Soube depois que o shopping era do mesmo grupo econômico que edita o jornal. A gota d’água foi quando escrevi contra a criminalização dos jovens que estavam ocupando escolas, foi meu texto de despedida. Como eu disponibilizava, via site do jornal, os textos nas redes sociais, uma aluna-orientanda – Jamille Ghill – falou pra juntar e fazer uma publicação online, via Universidade Federal do Espírito Santo. Uma pessoa do SESC leu os textos e enviou para uma curadoria, os textos foram selecionados para o projeto “Arte da Palavra – Rede Sesc de Leituras”, mas havia um problema, tinha que ter o livro impresso para enviar para as cidades para onde posteriormente iríamos. O escritor Saulo Ribeiro, responsável pela Editora Cousa, então editou e publicou o livro. Mas estou juntando coisas para publicar em breve. Gostei. Mas me considero um professor que também faz, ou tenta fazer, literatura. Em uma das partes do livro Visagens, intitulada “Racismos e Violências”, você procura combater o mito da democracia racial brasileira. Como o racismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? Como é ser um professor universitário, leitor e escritor preto no Brasil? Realmente, o racismo brasileiro afetou e afeta minha vida, logo meu pensar e meu escrever. Os assassinatos sistemáticos de jovens negros de favelas, periferias e bairros pobres é uma aberração transformada em cotidiano. Isso me incomoda, me assusta, me angustia, me impele a falar e a escrever sobre. Respondendo a essas perguntas, me dou conta de que venho desenvolvendo, dentro e fora da Universidade, uma linha de pesquisa e textos que discutem, entre outras coisas, o racismo. Hoje em dia, com as redes e mídias digitais alternativas, há a visibilidade do tema, das tensões e dos fatos ocorridos. Mas agora temos um presidente da República eleito que, dentre outras tantas falas, nunca se furtou a fazer comentários racistas, e também homofóbicos e machistas. Estamos vivendo um embate no qual forças conservadoras estão tomando a dianteira, o que quer dizer que estamos regredindo em muitas áreas onde havíamos avançado nos últimos anos. Essa história da democracia racial, aliada à meritocracia, é a história que se quer vender, a naturalização da nossa inferioridade social, estética, da feiura de aparência física. Isso é um processo que vem de muito tempo atrás, aí entraram reforços tanto da Igreja como da “ciência”. A eugenia ainda é um traço marcante fundamental na forma de pensar a sociedade brasileira e os privilégios de alguns, falo isso pensando a eugenia como um padrão utópico formador de uma Nação, uma meta. Se o embranquecimento genético pensado no início do século XX fracassou, as maneiras como a escala de branquitude ainda define valores e divisões no campo social são a permanência desse substrato, ato falho na formulação de uma Nação colonizada e híbrida. O atual vice-presidente do Brasil declarou que seu neto era bonito devido “ao branqueamento da raça”. E tais proposições não são exclusividade no Brasil, mas aqui se mascaram e definem um tempo futuro 269

no qual nós, negros, possamos, através de nosso esforço e mérito, alcançar algum pequeno nirvana do capital. Como professor de uma Universidade Federal estou um pouco mais protegido, até porque nunca desejei cargos administrativos ou eletivos em órgãos de gestão superiores da universidade, se milito nesse campo – na luta contra o racismo – é como professor e cidadão, e agora como escritor, e aí também estão presentes a ironia e a acidez (tal como vocês formularam), mas via e vejo comumente nos cafés na sede da Associação de Docentes os olhares enviesados de sempre, mais ou menos dentro de padrões de civilidade num estado como o Espírito Santo. Quando fui aprovado para lecionar na Universidade, jovem de trinta e dois anos, carioca, preto, passei por diversas situações discriminatórias em muitas ocasiões. Quando fui coordenador do Programa de Pós-Graduação, por exemplo, sentia, muitas vezes, a surpresa (ou a decepção) de pessoas que tinham que resolver algum assunto comigo. Há aquela arquitetura de poder, a sala do “Chefe”. Quando a secretária branca os levava à minha sala era interessante notar a expressão na cara de muitas pessoas, eu parecia fora do lugar, meu “design” não era o de Coordenador de algo. Minha figura desmontava o sistema de expectativas dessas pessoas. O preconceito discriminatório está interiorizado, e o pior, ele se reflete e é reflexo de nossa própria histórica formação econômica, social e cultural. Independentemente da posição (professor, escritor), ser negro em espaços que foram se desenvolvendo para serem exclusivos, espaços para não negros, é, de certa forma, estar fora do seu lugar. E quando se fala de exclusividade, estamos dizendo da exclusão de muitos, desses outros aos quais, mesmo sem querer, represento. O racismo institucional, tomando aqui o microcosmo de um Programa de Pós-Graduação em Letras, é o outro lado dessa moeda de mil faces. Quando comecei a estudar e a apresentar trabalhos sobre o romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, e o rap dos Racionais MC’s, se não houve resistência, existiu certo estranhamento ligado a juízo de valor (no caso do rap) e ao fato de o livro do Paulo ser um livro de “favelado falando de favela e favelados”. A ignorância na época, falo de vinte anos atrás, também levou alguns a esse “estranhamento valorativo”, mas pesquisas, dissertações, teses foram desenvolvidas e hoje esses discursos da “marginalidade-periférica” já não chocam tanto, na UFES e em muitas instituições acadêmicas. Como eu costumo dizer, baseado na Marilena Chauí, e está escrito no livro Visagens: o Brasil é uma sociedade conservadora e patrimonialista, e cor de pele clara é ainda patrimônio. Outra parte de Visagens intitula-se “Feminicídios” e oferece reflexões sobre a barbárie das violências cometidas diariamente contra as mulheres. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? Acho que afeta a todos, ou deveria afetar. Sou o filho mais novo, acima de mim duas irmãs e depois mais uma irmã. Como meu irmão é doze anos mais velho que eu e meu pai trabalhava muito, sempre estive próximo de minha mãe e irmãs, a mais velha foi minha mãe por muitas vezes, quando a mãe de verdade, que era costureira, fazia algum outro trabalho fora de casa, dava aula de trabalhos manuais e tomava conta de uma cantina que oferecia refeições a professores em cursos de férias, no local em que meu pai trabalhava. Adulto, casei, tenho duas filhas (recentemente ganhei uma neta), escrevi inclusive um texto indagando sobre 270

o ato do parto. Creio que estar sempre convivendo com mulheres pode haver me dado um conhecimento mais próximo das dificuldades pelas quais elas passam nessa sociedade patriarcal e machista. Ouvia relatos, sabia de histórias, claro que muitas histórias eu desconheço, possivelmente minha mulher e minhas filhas não contariam para me proteger... Como ser humano e vivendo em um estado com altos índices de agressões a mulheres, inclusive feminicídios, isso me afeta, me alerta. Na divisão temática do Visagens há quatro textos sob essa rubrica, mas a violência contra mulheres negras, a violência simbólica e socialmente aceita está comentada, por exemplo, no texto “Debret no século XXI”, quando escrevo sobre uma cena aparentemente banal: um jovem casal branco que está acompanhado de duas jovens babás negras vestidas de branco, que empurram os carrinhos de dois irmãos gêmeos, os filhos do casal. Aquela cena, vista no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, disparou uma questão: parecia que estávamos no século XIX. As mulheres vivem num sistema de opressão que é terrível, onipresente. O medo do estupro faz com que seja delimitada ainda mais sua capacidade do exercício da liberdade. Claro que em cidades violentas como são as cidades brasileiras, o medo dos assaltos, das balas mais ou menos perdidas afeta a todos, mas as mulheres ainda têm que conviver com o potencial processo de violação de seus corpos que está contido na “violência”, seja urbana ou rural, mas que está associado ao fato de serem mulheres. Repito o que o Sérgio Vaz falou numa mesa da qual participamos: “Espero poder dizer um dia que não sou machista”. E, para fechar com alguma referência textual minha, cito aqui trecho de um texto chamado “Das dores do doulo”, que não foi publicado no jornal Metro, mas que foi incluído no livro, texto que foi concebido quando voltei da maternidade onde nasceu minha neta, Maria Clara: “O assassinato sistemático das mulheres que nós cometemos não é por nos pensarmos donos delas, é porque dói a consciência de saber que elas independem da gente – meros detalhes – para serem plenitude: gerar um ser em si, sofrer tanto ao concebê-lo e, mesmo assim, logo depois, botar um bico de peito em sua boca, fazê-lo sorver a si mesma... O homem que mata a mulher saiu de dentro duma, é reversão do parto, é predador do cordão umbilical, é niilista sem saber o que é isso. É burro demais. No fundo no fundo, nós, homens, que mandamos no mundo, somos projetos de projéteis, uns babacas cheios do vir a ser que, no fundo, se vangloriam de seu poder de destruir a vida. Quer ser macho, mermão? Quer ser macho, Jorge? Vai ter uma filha gordinha e linda (e ainda de parto normal)”. Entre 2014 e 2016, você foi colunista do jornal Metro – Vitória, publicando escritos caracterizados como “fragmentos da contemporaneidade”. Em que medida a obrigação ritualística de manter um exercício de reflexão constante em um espaço como o do jornal pode contribuir para o fazer literário? Nesse caso específico, o exercício da escrita sob encomenda, a obrigação de escrever foram fundamentais. Não era muita coisa: dois mil e quatrocentos caracteres, com espaço (sempre falo desse limite), daí a ideia (e a prática) da fragmentação. Então o próprio formato conciso do texto obrigou a fazer cortes, tirar conectivos, suprimir adjetivações e criar frases coordenadas que pudessem dar sentido à(s) ideia(s) proposta(s). Hoje vejo que, se não foi criado um estilo, foi havendo um modus operandi que parece caracterizar de forma similar muitos dos textos publicados. Como consta na pequena introdução do livro, a ideia não era 271

fazer literatura, era escrever para um jornal, e o jornal no dia seguinte não serve nem mais para embrulhar peixe, como ocorria na época do Millôr Fernandes. Acho que hoje só se presta como banheiro para gatos e cães de apartamentos... Era estranho, os textos poderiam ser lidos por muitas pessoas, numa época trinta mil exemplares eram distribuídos, e muitas pessoas levavam para o local de trabalho, salas de espera, ou seja, um público grande se comparado a livros, por exemplo. Com o passar do tempo, recebi dos editores mensagens enviadas por leitores. Uma senhora manteve comunicação comigo a partir da não concordância com uma opinião por mim emitida no texto. Outra coisa que me fez pensar que aqueles textos podiam ter uma durabilidade maior foi quando comecei a receber mensagens de professores, alguns ex-alunos inclusive, dizendo que levariam o texto para a sala de aula. Percebi então que aquilo era mais sério do que eu pensava a princípio, não imaginava esse tipo de repercussão. Possivelmente isso influenciou na forma como as questões seriam abordadas, mas, fora as autocensuras comuns à escrita, nunca me policiei, mas noto que houve uma preocupação na formulação dos textos. Às vezes algum assunto mais premente e que me tocava era o mote, anotava, às vezes fechava o texto dias antes do envio, tinha mais tempo para burilar, noutras, por falta de tempo ou de disciplina, escrevia no dia do envio para a edição. Possivelmente esses textos são mais “intuitivos”, mais ensimesmados, alguma reflexão filosófica, talvez a linguagem mais solta e pessoal apareça nesses textos. Há outros menos claros, mais poéticos, talvez aí aproveitasse para um exercício de catarse pessoal, não estou livre dos egocentrismos infantis. Revendo agora o primeiro texto publicado, noto, e essa foi a intenção, uma escrita que está tateando no escuro, tentando alcançar, saber um pouco dessa figura ambígua e pluridimensional que seria o leitor, a ideia seria: “Produzir sentidos na insensatez do dia a dia. Trazer ideias, tentar trocá-las pelos momentos desse desconhecido respeitável público”. Mas creio que me permiti (e me foi permitido) um exercício de liberdade, de escolher como e de que forma eu abordaria determinado(s) tema(s). Participando do “Arte da Palavra – Rede SESC de Leituras”, via que os alunos que haviam lido os textos se interessavam muito mais pelo conteúdo do que pela forma, até porque muitos deles tratam de assuntos relativos à divisão e radicalização política que precederam o golpe parlamentar-jurídico que vitimou o Brasil e ao crescimento do bolsonarismo, mas algumas pessoas me falaram também da forma, da concisão, de alguma poesia perdida entre as arestas do cotidiano. Um amigo-leitor do livro disse que um dos textos é, na verdade, um poema, isso me envaideceu. Houve alguns debates bastante acalorados também com adultos, alguns professores. Esses textos reunidos em livros permitiram que eu viajasse pela Bahia (Salvador, Feira de Santana, Santo Antônio de Jesus); Rio de Janeiro (capital e Paraty) e o sertão pernambucano (Petrolina, Araripina e Bodocó), juntamente com o escritor André de Leones, que não tem uma formação “de esquerda”, mas que também se juntava a mim na crítica ao então candidato Jair Bolsonaro. Pessoalmente, através do livro, me foi permitido viajar e trocar ideias com estudantes, professores, encontrar uma senhora camponesa lavradora, estudante da turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA), sentir a calosidade de suas mãos e degustar de seu sorriso orgulhoso por ter um filho advogado que passou “de primeira” no exame da OAB, ouvir sotaques e relatos diversos. Foi emocionante varar o sertão de Pernambuco 272

e voltar pelo Ceará (Juazeiro do Norte), passar pela Serra do Araripe e pelo Crato. As recordações de histórias de minha mãe (já falecida) brotaram junto com as lágrimas de minhas origens... Outra coisa: mesmo em textos que eu julgava simples e de fácil interpretação, algumas pessoas faziam leituras bem particulares, mais ou menos relacionadas às minhas intencionalidades primeiras, o que provou o que o Jorge Luis Borges sempre falou sobre a escrita reviver na (re)leitura por diferentes tipologias espaço-temporais de leitores. Então, acho que esses exercícios ritualísticos fizeram com que eu escrevesse um livro que, se possui algum valor, é o de retratar criticamente, de forma realista ou não, a minha visão desse Brasil tão conturbado e retrógrado de início de século XXI. Desde 2012 você coordena um projeto de pesquisa sobre a literatura espanhola e o ofício do tradutor. Que concepção de tradução orienta seu trabalho? Existem traços em comum entre a tradução (como você a pensa e pratica) e a sua escrita autoral? Embora essa parte de minhas atribuições acadêmicas esteja um tanto ausente nos últimos anos (uma colega assumiu), estou retomando um trabalho de tradução de um audiovisual. Esse projeto prevê a participação de alunos de graduação, licenciatura dupla português-espanhol. Fiz um curso de tradução há muitos anos, leio alguma coisa e, como professor de língua espanhola e literaturas hispânicas, o processo de tradução, principalmente intercultural, faz parte do trabalho com alunos, mas, dependendo do texto e dos objetivos da tradução, pode-se efetuar umas traduções mais tradicionais, vamos dizer assim. Lembro de que, em um congresso cujo tema era tradução, apresentei um trabalho intitulado “Mó mamão, só catá, demorô, ó só: traduzindo o RAP dos Racionais MC’s”. A primeira parte do título se refere a um verso de um rap. Ou seja, um texto brasileiro, cantado/ falado por jovens de periferia paulistana, merecia ser traduzido. Mas traduzido para quem? Para muitos, mas, no caso, deveria ser traduzido para a academia, já que essa sonoridade e mensagem poética não eram compreendidas na universidade, muito embora fosse a única linguagem poético-performática conhecida por milhões de jovens brasileiros. Com isso quero dizer que são muitos os processos tradutórios que necessitam ser trazidos e aqui penso na tradução de cultura para a possível valoração de suas possibilidades comunicativas. Em parceria com colegas, traduzimos e fizemos estudos introdutórios de um “entremés” – uma pequena peça teatral – de Miguel de Cervantes, chamado “O retábulo das maravilhas”. Depois traduzimos também um livro de Julio Camba intitulado A casa de Lúculo, ambos publicados pela Consejería de Educación de la Embajada de España en Brasil, este último em 2013. Numa visão ampla, estamos sempre tentando traduzir o outro, o mundo, segundo nossa percepção e, se possível (e desejável), com a participação desse outro no processo. Então traduzir pode ter mais a ver com decifrar, e a decifração dos mecanismos opressores, em níveis e formas diferentes, me estimula, daí que a tradução/decifração de textos produzidos por pessoas ou coletividades marginalizadas me atraem como ser humano e estudioso. Ensaio também a tradução de uns poetas espanhóis dos quais gosto muito, como, por exemplo, Rafael Alberti (falecido em 1999). É um trabalho artesanal que talvez não se conclua nunca, mas esses exercícios tradutórios de poesia são muito enriquecedores, pois a gente tem que adaptar palavras, ritmos, sonoridades... Mas, 273

fundamentalmente, hoje me interessam mais os textos não canônicos, como o rap latino-americano. Tenho um projeto de tradução de rap produzido em Cuba que está engavetado há uns cinco anos. A vida acadêmica, com atuação em projetos de pesquisa e extensão, os encargos administrativos, aulas, orientações, reuniões, a obrigatoriedade da produtividade de textos indexados etc., etc. nos fazem ter que fazer muita coisa ao mesmo tempo, e estou tentando diminuir o ritmo. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Não acompanho muito toda a “literatura brasileira”, uma expressão genérica que agrupa um número grande de autores, com maior ou menor prestígio. Produção e veiculação de literatura ficcional no Brasil é também uma questão de classe e, consequentemente, de raça. A professora Regina Dalcastagnè vem coordenando uma pesquisa sobre romances brasileiros publicados nas três maiores editoras do país e, dentre muitas conclusões, verificou-se e comprovou-se que tanto no que se refere a autores como a protagonistas, eles são em sua maioria homens brancos, profissionais liberais, jornalistas, professores, artistas... Ou seja, o campo da literatura é um bom local de amostragem de como a arte e a cultura brasileiras são um território pertencente às classes mais abastadas da população, está comprovado, com gráficos, números e estatísticas. Por outro lado, há um movimento de saraus populares, e temos que louvar o trabalho grandioso do poeta Sérgio Vaz, de feiras literárias de periferias e muitas outras ações, algumas provindas do movimento hip-hop, que estão, no trabalho de formiguinha, tentando criar espaços alternativos que possam oferecer a chance de, principalmente mas não somente, jovens apresentarem seus trabalhos, produzirem literatura, principalmente na área da poesia. Como tive a oportunidade de conversar com o Sérgio, ele ironicamente disse que incentiva a escrita para formar leitores que possam comprar os seus livros, quem quer escrever costuma ler... A pesquisadora argentina Lucía Tennina publicou em 2017 um livro chamado Cuidado com os poetas: literatura e periferia na cidade de São Paulo, traduzido ao português pelo professor e amigo Ary Pimentel. Nessa obra, a partir de pesquisa de campo nos saraus da Cooperifa e outros, uma das conclusões a que ela chega é que o trabalho do Sérgio Vaz (e de outros que vieram posteriormente) é uma forma inovadora de “letramento”. Isso é importante. Uma forma de pensar a produção literária dos chamados “marginais periféricos” como outra constante na equação de sempre. O campo da literatura, sua produção e veiculação, é um campo viciado. Então parece que a literatura é um privilégio de uns poucos sábios produtores para outros sabidos receptores, isso sem levar em conta as questões de contratos editoriais, distribuição, compadrio com resenhistas de grandes jornais, isto é, igrejinhas de párocos e fiéis que se conhecem há muito. É óbvio que estou generalizando, li algumas obras interessantes e robustas, como Um defeito de cor, mas, sinceramente, os dramas burgueses narcisistas e egocêntricos, essa poesia hermética de eus angustiados... Isso hoje não me diz muita coisa. Por questão de trabalhos acadêmicos, participação em bancas, li algumas obras muito boas, inclusive de autores do norte do Brasil, mas, possivelmente por cansaço e acúmulo de leituras obrigatórias, nenhuma ficou na minha cabeça me 274

dizendo coisas dignas de me fazerem pensar ou me emocionar. Repito: talvez o problema não seja com as obras, mas com esses olhos que já decifraram muitos textos, acho que um excesso deles. Participei, em 2017, de uma Comissão Julgadora regional do Prêmio SESC de Literatura. A conclusão do narcisismo egocêntrico foi fortalecida pela leitura dos livros de contos que me foram submetidos, algumas coisas mais experimentais, grande importância dada às novas mídias e tecnologias, influência de séries tipo Netflix, mas pouca efetividade comunicativa, em meu entender, na grande maioria das obras lidas. As editoras, parece, estão de olho nos “marginais periféricos”, e muitos querem deixar esse rótulo e serem considerados escritores (ponto). Reivindicação legítima, mas sinto potência nessa literatura que também dialoga, nem sempre amistosamente, como a produzida por jovens mulheres que estão ocupando esses espaços, vozes saídas de um jovem feminismo, especialmente de um jovem feminismo de mulheres negras que também querem produzir literatura e que têm em Carolina Maria de Jesus e na grande Conceição Evaristo seus pontos de partida, buscando elos de uma relação há muito desdenhada pela academia: a relação entre literatura e vida. Isso sim, isso me faz pensar e me emociona. Quais os principais desafios para a edição e recepção de novos escritores no Brasil de hoje? São muitos, a indústria do livro é ainda muito cara. Vejo jovens escritores pobres produzindo literatura, mas quais deles serão escolhidos pelos editores e editoras para serem expostos na livrarias dos shoppings ou nas glamourosas festas literárias? De vez em quando escolhem um, investem nele, depois vamos ver no que dá. Sobre a recepção? Não sei, se seu livro for escolhido por uma Secretaria de Educação, se algum produtor de programa televisivo chamar para que você fale de sua obra, se houver algum dado extraliterário que possa atrair a atenção da população para a obra, se ganhar um prêmio importante... Fico imaginando qual seria a recepção de Cidade de Deus hoje. Nessa sociedade espetacular e de celebridades efêmeras e descartáveis, acho difícil o campo literário ser disseminado sem a divisão de classes e gostos. Por outro lado, vejo jovens participando de encontros com autores, alguns lendo muito, criando sua bagagem cultural e literária, seguindo, enfrentando as vicissitudes de se entrar nesse território demarcado. Talvez daí possa haver uma ruptura mais profunda com esses espaços viciados da cultura e das artes em geral, e da literatura em particular, sem esnobismos, sem ostentação, sem modismos. Lembro de uma história contada por um escritor espanhol, que disse que uma jovem perguntou se ele havia lido um romance de um jovem escritor que estava na moda. Ele respondeu que não. A moça disse, espantada, mas como? Ele publicou há dois meses? O escritor então perguntou se ela havia lido o Quixote, ela disse que não. Ele comentou: mas foi publicado há quatro séculos. Com essa historinha quero lembrar o Borges que dizia que só o tempo constrói antologias memoráveis. O futuro então poderá responder a essa pergunta com alguma precisão e objetividade. No Brasil, a literatura em geral e a poesia em particular têm um alcance bastante limitado em termos de público. Você considera que as elites políticas e econômicas reprimem a difusão da literatura e de outras formas de mani275

festação do pensamento combativo, como as ciências, a filosofia e as artes? Como você avalia hoje a relação da mídia corporativa com a produção literária brasileira? Acho que, de certa forma, respondi a essa questão na resposta anterior. É óbvio que para tais elites o empobrecimento intelectual da população é uma droga letárgica e eficaz, e as artes, a literatura, muitas vezes, fazem com que o leitor, o espectador, possa vir a ter uma visão mais crítica de si, do mundo, do Brasil, de sua comunidade, e isso não seria bom para os que detêm o poder econômico e das mídias, que entopem as pessoas com narrativas nas quais os casamentos substituem o foram felizes para sempre. Há uns poucos dias estava assistindo a um documentário sobre uma artista popular, uma escultora alagoana, hoje com algum reconhecimento e valoração de seu trabalho. Claro que a tratam como artesã, ela era cortadora de cana desde os oito anos de idade. A entrevistadora perguntou se o mundo infantil, tão presente em seu trabalho, era parte da imaginação dela, se quando ela cortava cana ela imaginava muitas coisas. Sil da Capela, esse é seu nome, respondeu que não, que quando cortava cana sua vida era trabalhar e dormir, não tinha tempo para a imaginação. Então, como difundir arte, difundir literatura para pessoas que têm seus corpos explorados à exaustão, no trabalho, nos péssimos transportes públicos, pessoas que só têm o direito de gerir a sobrevivência. É difícil, claro que há exceções, aí essa mesma mídia corporativa vai enaltecer o esforço dessa pessoa e promover dissimuladamente a ideologia da meritocracia. Quando uma obra literária é adaptada para a TV, comumente aumenta a sua vendagem, pessoas querem saber o “final da história”. As capas do livro Cidade de Deus, depois do sucesso do filme, eram ilustradas com fotogramas dos personagens cinematográficos, os atores, e o livro teve suas dimensões reduzidas, para ficar menos grosso e palatável. No programa do Faustão, alguma vez, são mostradas obras editadas pela editora Globo, venda casada. A filósofa que participa do programa matinal é capaz de difundir esse pensamento combativo? Não sei, mas acho que estamos nesse momento histórico do Brasil caminhando para um nível de indigência intelectual cada vez mais crescente, vide o tal sertanejo universitário ou bandinhas gringas e afins consumidos e decantados pela juventude de classe média. Os polos de resistência devem então ser fortalecidos, pois nunca vi pessoas tão orgulhosas de suas burrices reiteradas coletivamente. Por outro lado, ainda há o ar blasé e superior dos sábios das palavras, dos escribas e das antenas da raça. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Estou juntando poemas velhos revistos e outros escritos nos últimos cinco anos, analisando para ver se dá para publicar, estou chegando à conclusão que sim, e tenho recebido incentivo de alguns amigos das letras para fazê-lo. Tinha uns escritos que estava produzindo há uns cinco anos, perdi grande parte em um HD, tenho fragmentos, vou ver se consigo recuperar esse material que hoje me parece bom, até por estar perdido, mas foram muitas madrugadas de escrita. Devo publicar este ano, pela EDUFES, minha tese de doutorado sobre a obra do escritor argentino Julio Cortázar, principalmente contos, e sua relação com a cidade. Dei uma atualizada e foi aprovada para publicação. Há também uma pesquisa que 276

devo terminar este ano, fruto de um estágio de pós-doutoramento no Programa Avançado em Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ – supervisionado pela Heloísa Buarque, o que gerará, entre outras coisas, um documentário sobre Inhoaíba e a relação das pessoas do bairro com o campo de futebol, que foi reduzido para a construção de uma escola. Contratei um editor para trabalhar com entrevistas e imagens que captei entre 2015 e 2017. No segundo semestre de 2019 devo exibir como parte do relatório final. Também me foram pedidos alguns poemas para um Festival Internacional de Poesia, capitaneado pelo poeta Valdo Mota. Enviei alguns poemas, fui indicado e já autorizei a publicação, mas não sei como anda a execução. Um outro projeto que me acompanha é refazer o curta “Trinta e três trinta e um”, um roteiro que foi selecionado pela Secult-ES, mas que ficou péssimo depois de produzido e finalizado, por vários fatores. Agora seria um média metragem, já que na versão ruim foi cortado muito do roteiro original. Tenho também uns contos inacabados que quero mexer e ver no que dá. Esses são os projetos, vamos ver quais vão vingar e frutificar. Vamos ver se a preguiça e o trabalho na UFES vão deixar que eles se desenvolvam. Ah... ia esquecendo, botei letra num samba. Seus textos posicionam-se contra a ascensão da onda reacionária que atualmente atinge o Brasil e o mundo, trazendo em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Sobre a última parte da pergunta, é impossível prever o que vem por aí. Acho que uma coisa que a humanidade está querendo fazer há muito, ela está conseguindo: destruir o planeta. Já as ondas neofascistas na Espanha, saudosas do Franco, os neonazistas espalhados pelas cidades não só da Europa, a fome e as guerras genocidas, são indícios de que estamos num momento histórico muito delicado. Sem o grau de intencionalidade prévia, o livro Visagens, em seu ínfimo campo de ação discursiva e sem pretensões analíticas mais profundas, acredito que acompanha esse processo de visibilidade de aberrações que viemos testemunhando no Brasil desde as manifestações de 2013. A junção de ignorâncias diversas e perversas foi gestando os monstros que estão aí, assustando o dia a dia das pretensas liberdades. Fundamentalismos vários: religiosos, raciais, sexuais, comportamentais, hoje se autoproclamam defensores de valores seculares. Um componente que, em meu entender, não pode ser desprezado é o inchaço numérico e ideológico das chamadas igrejas neopentecostais (vide a bancada evangélica). As piores são as mais fundamentalistas e excludentes, que fazem com que os que praticam outra ou nenhuma religião sejam tidos como inimigos reais e/ou potenciais. Soldados de Cristo com roupas militares camufladas fazendo “arminha” com o dedo na campanha de um candidato à presidência que elogiou torturadores num espetáculo nacional, isso é grave. Essas ideias estapafúrdias como a “ideologia de gênero” e outras aberrações tomaram o continente, são agora formulação de uma nova América Latina, alinhada com a perversão imperialista do vizinho do Norte. Não creio que essa monstruosidade estivesse tão guardada assim, logicamente que agora ela está mais visível, então formas mais arcaicas de manutenção do poder se travestem em manutenção da ordem moral e religiosa. O messianismo, 277

o clientelismo, a cooptação, entre tantos outros instrumentos antigos de manutenção do poder pelas classes dominantes, hoje possuem outros nomes, como “governabilidade”, “agronegócio”, muito parecido com o espírito desenvolvimentista ufanista e excludente da ditadura nos anos 70 do século passado, o “Ame ou deixe-o” substituído pelo “Vai pra Cuba”. Ou seja, em nome da governabilidade e do projeto de Nação, os velhos fascismos oligárquicos e corporativistas se tornam uma cartilha de slogans ufanistas tidos como verdade irrefutável por grande parte da população. Dessa forma, a ideia abstrata do totalitarismo toma corporeidade e é caracterizada como única maneira de salvação nacional. Agora, não podemos subestimar o trabalho das chamadas mídias corporativas no processo de demonização do Partido dos Trabalhadores, que esteve no governo por três mandatos antes do golpe no segundo mandato da Dilma. Por vários fatores outros, cuja origem eu não saberia precisar, foi gestado o monstro. Como cito num texto do Visagens: “Diz-se que perguntaram a Albert Einstein como seriam as armas usadas na terceira guerra mundial, ele respondeu que não tinha ideia, mas que sabia quais seriam utilizadas na quarta: paus e pedras”. Embora meu grau de pessimismo não chegue a tanto, estou muito desiludido com o futuro, pelo menos com o futuro próximo do Brasil, o que é muito chato. Agora tenho uma netinha que nasceu em dezembro de 2018, então como cidadão, pai, avô, professor, sou obrigado a acreditar ainda na possibilidade do futuro, a ter ainda esperança. Não fiz “arminha” com a mão, e minhas armas são menos letais que paus e pedras, são discurso, verbo, palavra, algum olhar, um abraço amigo, quem sabe...

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Keila Mara Araújo Maciel Nasceu em Linhares (ES), em 1984. Vive em Ilhéus (BA). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em novembro de 2017.

Cada escritor possui método e estilo próprios. Você poderia nos falar um pouco acerca das opções formais e temáticas que norteiam o seu trabalho? Sabemos que a preocupação com a linguagem, a busca por reencontrá-la, por dar novas formas à palavra e ao pensamento é o que diferencia o texto poético dos demais. Acredito que esse trato pode se dar de maneiras diferentes. O jogo com a linguagem, o experimento, a quebra e os silêncios são os maiores desafios. Minha escrita caminha com estranhamento, mas mantém fluidez na linguagem. Uma busca por reflexão que passa pelo poético, e uma poética que passa pela reflexão. Escrever foi dar crédito às palavras que há muito insistiam em mim. Os temas são vários, mas os textos em torno do tempo, da própria escrita, da condição humana e inquietações com a ordem social são recorrentes. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Desde criança, quando eu pensava numa profissão, a escrita era motivadora. Inicialmente pensei em jornalismo, desde uns 10 anos de idade. Queria liberdade para dizer, gostava de ler, de falar e de escrever. Depois descobri que no jornalismo jamais teria essa abertura. O curso em horário integral também era impossível para mim, estudante e operária. Escolhi o curso de Letras-português noturno, e me encontrei como professora e pesquisadora. Não me imaginava escrevendo poemas, até que me surpreendi acompanhando alguns pensamentos que se organizavam em versos, já com uns 28 anos. Então comecei a registrar, a reescrever, deletar muitos, insistir em outros, até encontrar uma forma para eles no papel. No poema “Adiante”, do seu livro Semblante dos dias (APMC, 2016), o leitor se depara com os versos seguintes: “nasci a saltar cercas e muros/ a atravessar estreitas frestas/ não me prenderei a amenidades/ opressoras e frágeis”. Já na apresentação, a poeta Josely Bittencourt afirma a sua poesia como “gesto de resistência”. Contra o quê resiste a sua poesia? Que experiência surpreendente é essa de ser lida, é emocionante. A poesia moderna se esforçou para afastar de si o estigma da expressão, do lirismo sem critérios estéticos sofisticados. No entanto, acredito que essa busca justa não necessariamente precisa impedir que a palavra diga, que a escrita seja uma maneira de agir e de ocupar o mundo, que seja uma forma de entender-se nas tentativas. Os textos de Semblante dos dias têm bastante das inquietações da subjetividade, principalmente nos diversos desdobramentos do “eu”. Muitas pessoas que leem o livro pensam que todos os textos são registros de experiências minhas, quando o impulso mais forte foi algo mais próximo de uma condição compartilhada, da 279

qual faço parte, no sentido de alteridade. Nesses textos, experimentei muitas existências. Esse poema tem muito do que acompanhei em mim ao longo da vida, e também encontro outras pessoas nele. Ele diz muito sobre a vida das mulheres, assim como outros poemas do livro. Concordo com a Josely Bittencourt e com o recorte da pergunta. Acredito que a capacidade de pensar e de fazer de cada ser humano deve ser afirmada e cultivada, porque as forças que regem a sociedade continuam ignorando vidas, passando por cima de pessoas e de culturas, ocultando sua importância, tirando delas o direito de existir. A literatura não pode estar alinhada com esse movimento, por isso escreveram Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Machado de Assis e Conceição Evaristo. A primeira epígrafe do livro Semblante dos dias, colhida em Virginia Woolf, relembra: “Por muito tempo na história, ‘anônimo’ era uma mulher”. Em todos os âmbitos (cultural, acadêmico, científico, literário...), sempre convivemos com o silenciamento da voz da mulher, especialmente da mulher negra. Nos seus textos, diferentemente do que costuma acontecer em grande parte da poesia produzida por mulheres hoje, não sobressaem, na voz poética, marcas de gênero, etnia ou classe. O que você pensa acerca da constante autoafirmação da voz poética da mulher, do negro e de outras minorias? Quais são as dores e as delícias de se fazer poesia nos tempos atuais e falando a partir da marginalidade que acarreta ser uma escritora capixaba? No século XXI, a leitura dos textos se ramifica por vários desdobramentos, principalmente porque a figura do autor está cada vez mais acessível ao leitor, mesmo que seja um autor iniciante. Então, saber de onde vem essa voz que fala já faz parte do ritual da leitura contemporânea. Minha escrita não tem outro caminho que não seja passar por minha existência, mulher negra, periférica, professora e pesquisadora. O mundo presente em minha escrita aparece, inevitavelmente, a partir desse olhar. No livro Semblante dos dias, são muitos os poemas que se constroem mais diretamente sobre o feminino, a exemplo de “Fluida”, “Concebido”, “Adiante”, “Involução” e “Testamento”, entre outros poemas presentes na primeira parte do livro. Sinto que faltou uma epígrafe de Estamira ou Carolina Maria de Jesus, tão importantes em minha formação quanto Clarice Lispector. Cheguei a inserir um trecho de Quarto de despejo no livro, mas, como o critério para escolha das epígrafes foi para abertura de temáticas, acabei retirando-o porque a maioria dos poemas do meu livro não se alinhavam aos mesmos temas. Porém, vejo essa falta como efeito de todo o projeto de apagamento sofrido pela intelectualidade negra no Brasil. Nós que passamos pela educação formal institucionalizada e por toda a construção simbólica na sociedade, que têm a branquitude como padrão, fomos treinadas a não nos enxergarmos como referência. Por isso muitas escritoras afirmam “eu, mulher negra escritora”, e, certamente, sem enfrentamento as escritoras negras ainda seriam totalmente excluídas dos grupos de leitura, dos livros didáticos, dos programas de curso, das festas e feiras literárias, dos congressos e das editoras. É motivo de alegria e realização por todas as mulheres que vieram antes de nós termos nossos livros publicados, lidos e vermos escritoras como Conceição Evaristo sendo homenageadas e estudadas no Brasil e no exterior. No entanto, também é cansativo ter que estar sempre em posição de trazer nossa voz como 280

experiência específica. Carolina Maria de Jesus, por exemplo, foi aceita para escrever a poética da favela, em Quarto de despejo (1960), mas a recepção foi muito menos expressiva em relação a Casa de alvenaria (1961), e a escritora foi, novamente, silenciada. Quando seremos só escritoras? Homens brancos escritores não precisam dizer “Eu, homem branco escritor”. E também mulheres brancas escritoras já não precisam dizer “Eu, mulher branca escritora”. Considero importante que os trabalhos das pessoas vindas de grupos antes, e ainda hoje, excluídos dos ambientes consagrados da cultura, arte e ciência sejam considerados em sua liberdade de falar sobre todos os temas, com destaque para o valor científico das pesquisas científicas, para o valor estético na arte e na literatura, não como ressalva. Todo conhecimento e cultura têm algo a dizer como experiência a toda a humanidade e, por terem feito isso, já são eternas as contribuições de Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Chimamanda Adichie, entre tantas a quem ainda falta visibilidade. Como você vê a recepção da sua obra? Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? A publicação do meu livro foi bastante inesperada. Enviei alguns textos que tinha há um tempo para uma editora de São Paulo, que não conhecia, e eles aceitaram. Foi enviado por impulso e recebi o aceite com um susto, rs. Daí passei a editar os textos, repensar muitas coisas, mais ainda depois da publicação. Acredito que o maior desafio de quem escreve hoje não é conseguir publicar, mas conseguir ser lido. O que se torna mais difícil ainda quando se trata de poesia. Os autores têm se organizado em grupos de escritores, em divulgações na internet, em rodas de leitura, produção de eventos e oficinas. É assim aqui no Espírito Santo também, principalmente entre os autores que estão próximos da universidade. Eu não tenho muita disposição para promover o livro. Distribuí quase todos e, de vez em quando, tenho uma surpresa boa. Na sua tese de doutoramento, defendida recentemente na UFES, com base em leituras de Michel Foucault, tanto quanto de Adorno e Horkheimer, entre outros, você afirma a potência do ensaio como contradispositivo capaz de criar novas possibilidades para a reflexão crítica e filosófica, que libertaria o pensamento das conjunturas que por tanto tempo o limitaram ao padrão das fórmulas dominantes. Como as suas leituras e reflexões críticas acerca dos modos de escrita acadêmica entram em diálogo com o seu trabalho poético? As leituras e as pesquisas sobre o ensaio estavam a todo vapor quando eu escrevi o Semblante dos dias. E era justamente esse retorno à reflexão individual que motivava minha escrita, como resposta à assimilação de conclusões já postas (impostas) e repetidas. Acho que foi com a despretensão ensaística, que admite o erro e a incompletude, que ousei escrever e publicar. Foi uma atitude de assumir as palavras que eu queria dizer. O caráter reflexivo está mais presente que o estrutural nos textos, e a maioria deles parecem aforismos, nos quais procuro palavras para trazer à experiência da leitura reflexões sobre a condição humana, a condição da mulher e a lógica absurda da ordem social.

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O que você tem lido? A partir de um recorte pessoal, que escritoras ou escritores recomendaria a quem quer ampliar o conhecimento do que se vem produzindo atualmente na literatura brasileira? O tempo para ler literatura ficou bastante reduzido nos últimos meses, devido à pesquisa de doutorado e processos seletivos para professor, mas posso destacar o prazer que tive em ler, além de literatura internacional, os livros de escritoras e escritores brasileiros: Um beijo de Colombina e Parte da paisagem, de Adriana Lisboa; Olhos d’água, de Conceição Evaristo; A maçã envenenada, de Michel Laub; Flores artificiais, de Luiz Ruffato; Ensaio geral, de Nuno Ramos, e Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outros gêneros literários? Tenho vários projetos e textos iniciados. Textos poéticos, algumas narrativas e ensaios. No entanto, não tenho previsão de término. Quero tempo para eles. De que modo a sua experiência como professora se entrecruza com, alimenta ou ilumina o trabalho de escrita crítica e literária? Vejo no trabalho diário como professora que a escrita é uma habilidade que oferece possibilidades únicas às pessoas. A produção de texto é a atividade preferida dos alunos. Eles ficam ansiosos pela “correção”, que deve ser justamente um retorno de leitura, uma crítica, a abertura de diálogo. Mas é, antes de tudo, o prazer de ser lido. O professor é um leitor de confiança. Assim deve ser. Os alunos adoram projetos em que os textos deles ganham visibilidade. Eu tenho a felicidade de dizer que meus alunos amam ler livros, leem seguidamente, alguns mais que outros, mas todos leem. Não desisto de nenhum. Para os mais resistentes, mais esforço. Vou junto à biblioteca, dou dicas, ajudo a escolher, ou dou de presente, dizendo que escolhi especialmente para ele, e é isso mesmo. É enriquecedor quando ouvimos as pessoas. A literatura não é coisa de outro mundo, está perto e pode estar em nós. Atualmente, no Brasil e em diversos outros pontos do globo, vivemos a ascensão de uma onda moralista e reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho para o atual estágio da humanidade? Está muito difícil conviver com essa crueldade crescente, que busca justificativas e encontra apoio em multidões raivosas. Estamos todos meio incrédulos, assustados, procurando algum fundamento para tanto ódio. Acredito que esses sentimentos estavam se acumulando durante as últimas décadas, principalmente quando as classes dominantes e conservadoras assistiram à consolidação dos direitos civis dos negros nos EUA, ao fortalecimento do movimento negro no Brasil e em outros países, ao aumento na visibilidade do feminismo, às mobilizações LGBT, às ainda insuficientes demarcações de terras indígenas, ao retorno a um 282

projeto democrático no Brasil e, principalmente, quando as fronteiras entre os espaços de poder e as classes sociais começaram a se tornar mais flexíveis. Os brasileiros viram um aumento de 400% no acesso de estudantes pobres à universidade, o país saiu do mapa da fome graças a políticas públicas essenciais, que surtiram efeito em diversos âmbitos da sociedade, impulsionando a economia e o aumento do salário dos trabalhadores. A desigualdade social teve leve diminuição, ainda que o efeito na vida dos mais pobres tenha sido visível e reconhecido em todo o mundo. O custo da mão de obra aumentou. Houve então uma maior aproximação dos direitos e acessos entre as classes sociais. Com isso, a pseudo-elite se sentiu prejudicada, porque seu espaço de privilégios já não era tão exclusivo. Os grupos de resistência representam essa ameaça, a mudança das estruturas. Outro agravante é o sentimento de instabilidade, insegurança, fomentado pelo sistema capitalista em seu estágio avançado, quando há uma diluição das instituições públicas, transferindo para os indivíduos toda a responsabilidade sobre direitos básicos como trabalho, saúde, moradia, segurança pública. Esse nível de liberalismo somado à escassez dos recursos naturais essenciais como a água, à competitividade do mercado, à limitação da formação educacional, ainda mais instrumentalizada que libertadora, e ao fundamentalismo religioso têm permitido o crescimento de uma onda conservadora desesperada e violenta. Esses grupos temem perder poder, temem as mudanças nas estruturas de coação que sustentam suas “necessidades” e privilégios. Os interesses desses grupos coincidem com as formas de controle do mercado financeiro e com as políticas hegemônicas. Os efeitos têm sido devastadores, desfazendo em pouco tempo o que foi construído com muita luta, após séculos de exploração, segregação e apagamento social. No momento, sinto tristeza e desânimo, pois estão formando cercos que limitam nossas ações, mas ao mesmo tempo, vejo que não há saída a não ser persistir, continuar atuando no que é possível. Mas confesso que não acredito em possibilidades de solução em curto prazo, porque esse modelo de governo, de estado, condena a vida humana ao esgotamento. No entanto, precisamos defender as políticas que permitem que lampejos de outras formas de vida sobrevivam, a exemplo das ecovilas, das pequenas propriedades agrícolas, das comunidades quilombolas e indígenas, que resistem há séculos.

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Larissa Gotti Pissinatti Nasceu em Itapira (SP), em 1979. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei em setembro de 2018. Publicada na RE-UNIR, v. 5, n. 2, 2018.

A Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS foi reconhecida como língua de uso do povo surdo do Brasil com a lei federal n. 10.436, de 24 de abril de 2002. Após dezesseis anos, você tem notado alguma mudança significativa na postura dos estudantes e profissionais em relação ao interesse e ao estudo de LIBRAS? Sim. O processo de reconhecimento da LIBRAS traz também o favorecimento de um espaço de legitimação e desenvolvimento das produções culturais do povo surdo. Com o reconhecimento da Língua de Sinais no Brasil, houve um aumento nas produções literárias do povo surdo. Além das produções, percebe-se também um aumento no número de pesquisas na área dos Estudos Surdos. A cultura em relação ao povo surdo e à LIBRAS também avançou. Esse processo foi facilitado pela inserção da disciplina de LIBRAS nas licenciaturas, favorecendo o conhecimento e o contato com a língua e as especificidades do povo surdo. Em diversas instituições a carga horária não é suficiente, mas contribui no processo de sensibilização para o conhecimento e o respeito às diferenças do povo surdo. Na sua dissertação de mestrado, Representações linguístico-culturais do povo surdo na literatura surda (UNIR, 2016), afirma-se, com base em estudo de Cláudio Mourão, que assim como existem diferentes perspectivas sobre o que é literatura, não há um único conceito definidor de “literatura surda”. Ciente dessa dificuldade, ou impossibilidade, pergunto: quais são as principais características da literatura surda? Que elementos a diferenciam da literatura brasileira contemporânea? No Brasil, as produções do povo surdo são um fenômeno recente. Por isso, o pesquisador surdo, Cláudio Henrique Nunes Mourão, diz que não há um conceito definidor de literatura surda. A literatura surda se caracteriza pelas representações dos valores linguístico-culturais do povo surdo. Nas narrativas encontramos personagens surdas, valorização das experiências e vivências do povo surdo, empoderamento do sujeito surdo em relação ao sujeito ouvinte, ênfase nas experiências visuais e na LIBRAS. Em algumas obras essas características são tão presentes que podemos considerar a obra, segundo os estudos pós-coloniais, como uma obra de caráter político, pois redimensiona o olhar do leitor conduzindo-o a perceber o surdo na sua diferença, ou seja, um sujeito com uma identidade positiva e atuante na sociedade. Como você define a sua trajetória na área de LIBRAS? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se interessou pela literatura surda? O caminho se fez gradualmente. Comecei a aprender a LIBRAS com de-

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zoito anos, no Instituto Santa Teresinha, uma escola para surdos. Nessa escola, fui professora, aprendi a interpretar, exerci o cargo de coordenadora pedagógica adjunta e durante esse período de trabalho na escola a cultura surda era muito valorizada. Foi nessa época que conheci a Literatura Surda, com professores surdos que incentivavam a leitura em LIBRAS de narrativas infantis clássicas. Comecei a trabalhar como professora de LIBRAS em 2008 e nas minhas aulas sempre realizava um trabalho com as narrativas do povo surdo. Durante meu trabalho como professora de LIBRAS sentia cada vez mais desejo de aprofundar os estudos em relação a literatura surda como objeto literário de estudo, por isso resolvi fazer o mestrado em estudos literários. O momento do mestrado contribuiu muito para situar a literatura surda no campo de estudo da literatura; além disso, embasou meu trabalho com as narrativas surdas nas aulas de LIBRAS. Cada escritor tem método e estilo próprios. O reconto e a tradução adaptada dos cânones da literatura universal são práticas recorrentes no ensino de LIBRAS e no mercado editorial da literatura surda. Seu livro Curupira Surdo (AICSA, 2016), escrito em coautoria com Amarildo João Espíndola e Elielza Reis da Silva, não foge à regra, pois é uma adaptação do folclore brasileiro. Que concepções de tradução/adaptação orientam seu trabalho? Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? A ideia da obra surgiu durante o mestrado. No momento, eu estava lendo sobre a teoria dos estudos pós-coloniais. Nessa perspectiva, a tradução se faz uma reescrita, na perspectiva que Bill Ascroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin denominam “writing itself”, ou seja, “escrita de si”. Nesse tipo de escrita, encontramos as peculiaridades culturais em uma releitura a partir de um determinado grupo cultural. É o que ocorreu com a narrativa Curupira Surdo, trazida para o contexto do povo surdo em sua adaptação cultural. Como você vê a recepção da obra Curupira Surdo entre surdos e ouvintes, adultos e crianças? Não esperava tanta receptividade. Os surdos se identificaram muito com a obra e os ouvintes também apreciaram bastante. Descobrimos o viés ecológico que a obra possibilita trabalhar. Na verdade, enquanto fazíamos apenas estávamos criando sem pensar em muita coisa. Queríamos que ficasse uma história agradável e compreensível tanto para ouvintes como para surdos. Uma preocupação do grupo era deixar nas ilustrações a possibilidade de uma leitura visual para que as crianças que ainda não sabiam ler e estavam aprendendo LIBRAS pudessem apreciar a leitura de forma visual. O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa educativa de formar leitores.  Como você compreende o papel da literatura na formação das crianças surdas e ouvintes? E, como professora e autora de literatura infantil, quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar com Curupira Surdo e outras obras infantis? Acredito que a literatura surda seja o caminho para introduzir o surdo no processo de letramento literário, partindo do que lhe é próprio e incentivando a 285

leitura de outros gêneros dentro das produções do povo surdo e, em seguida, inserindo-o na leitura do cânone. Acredito que a literatura surda tenha uma grande contribuição no processo de formação de leitores surdos. A leitura na LIBRAS e na língua portuguesa são importantes para o surdo, mas, em muitos casos, por desconhecimento dessas produções, o professor oferece apenas a leitura de obras em língua portuguesa. Além disso, a literatura surda possibilita ao surdo fortalecer seus valores e sua identidade, conhecer e ampliar o vocabulário tanto na LIBRAS como na língua portuguesa. Como você avalia os escritores surdos brasileiros? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura surda atual como um todo, incluindo escritores ouvintes: o que você vê? Acredito que a literatura surda é palco da resistência surda de manifestação e representação de seus valores linguístico-culturais. Também é um momento de apresentar a “apropriação linguística” da língua portuguesa pelo povo surdo. Interessante notar que muitas obras não apresentam a tradução em LIBRAS em suas produções impressas. A apropriação linguística é um conceito dos estudos pós-coloniais e uma atitude dos povos colonizados a fim de descolonizar os valores. Então o que percebo é um movimento do povo surdo e da comunidade surda, por meio da literatura surda de descolonização dos valores “ouvintistas”. De acordo com sua dissertação de mestrado, desde a década de 1990, quando se iniciaram os estudos sobre LIBRAS, o interesse do mercado editorial aumentou e o número de publicações na área se multiplicou, possibilitando que haja circulação em outros espaços que não sejam somente o da comunidade surda. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores surdos no Brasil de hoje? As obras são publicadas ou de forma independente ou em editoras de pouco alcance do público, ou seja, não é simples ou tão acessível comprar uma obra do povo surdo. Não pelo custo, mas pelo acesso em encontrar as editoras ou locais em que são produzidas e vendidas as obras. Isso é uma das questões. A outra é que, em geral, uma obra em LIBRAS tem um custo bem elevado, já que exige gravação e tratamento da imagem. O mercado editorial, em geral, publica em língua portuguesa. As autobiografias, por exemplo, que foram escritas por surdos, são lidas por um público pequeno de surdos, pois não há tradução disponível em LIBRAS da obra escrita em língua portuguesa. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Não. Foi uma obra em conjunto com Amarildo e estou com minha pesquisa de doutorado em andamento. Historicamente, mulheres e surdos sempre sofreram opressão. O preconceito presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? O que vocês pensam acerca da constante autoafirmação da voz poética da mulher, do surdo e de outras minorias? Apesar dos avanços que descrevemos acima e das políticas que favorecem 286

um maior respeito e valorização do povo surdo, acredito que não é tão simples ser diferente e produzir literatura em meio ao diferente. Existe muito preconceito e descrença nas produções dos grupos minoritários. A própria produção é um ato de resistência, de luta do povo surdo. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes autoritários, fascistas, racistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Vivemos um momento em que tudo é incerto, provisório, instantâneo. Em meio ao caos político, identitário, econômico das sociedades, eu acredito que a literatura seja uma resposta e um caminho para a construção de uma nova humanidade. Utopia? Talvez sim, mas, se não houver utopia nos tempos atuais, sobrevivemos? A literatura, assim como afirma Todorov, me faz sentir mais humana, me coloca frente às questões humanas e não deixa que eu me perca no caos.

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Marcus Vinicius de Freitas Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1959. Vive em Belo Horizonte (MG). Entrevista concedida a Letícia Malloy e Vitor Cei em março de 2018. Publicada na RE-UNIR, v. 6, n. 1, 2019.

Cada escritor possui um estilo e método de trabalho próprios. Em seus versos, é possível perceber duas características marcantes: uma relativa à adoção e à releitura sistemáticas de formas fixas da tradição poética; outra, caracterizada por Cláudio Murilo Leal, na orelha de No verso dessa canoa (Flor&cultura, 2005), como “linguagem descarnada”. Além disso, verificam-se em sua poesia elementos e temas recorrentes, como a contemplação das paisagens urbana e rural da Nova Inglaterra e o erótico. Você poderia comentar as opções formais e temáticas que norteiam sua poética? Em termos formais, vocês bem observam que a releitura sistemática de formas da tradição constitui um elemento central da minha poesia. Entendo que essa releitura propõe sempre uma invenção do novo sobre as formas consagradas, e não uma simples retomada das mesmas. Ao final de 2017, por exemplo, terminei um novo livro, composto de três poemas longos, no qual a terza rima é matéria de meditação e de fatura. Dizer da busca de linguagem enxuta é o mesmo que dizer poesia. Sem esse descarnamento de que fala o Cláudio Murilo, a tensão poética tenderia a se perder. Quanto aos temas, acho que o erotismo constitui uma matéria sempre presente na história da poesia, e não há nisso novidade. A Nova Inglaterra aparece muitas vezes porque a minha história pessoal foi muito marcada por experiências naquela parte dos EUA, e volta mesmo a reaparecer nesse novo conjunto, ainda inédito, que antes mencionei (risos...). Mas não se trata de uma obsessão, pois outras paisagens se cruzam igualmente nessa poética. Polígrafo, você também escreve narrativas ficcionais e ensaios críticos e teóricos. Peixe Morto (Autêntica, 2008) abrange outros gêneros, como a carta, o diário, o relato de viagem e a narrativa policial, corroborando a perspectiva de que o romance, nos termos de Mikhail Bakhtin, é um gênero em devir, dotado de uma plasticidade que o revitaliza continuamente. Você poderia comentar as opções formais e temáticas que norteiam sua prosa? A minha última coleção de poemas publicada em livro é de 2005, ainda que eu tenha feito um conjunto de poemas no Twitter, entre 2011 e 2012. É que, desde aquele momento, investi mais na prosa. E, portanto, hoje, se vocês me perguntam qual é a minha escrita de eleição, eu diria que é o romance. Acabei de dizer que tenho um livro inédito de poemas, e pareceria uma contradição, diante desse fato, dizer que prefiro o romance. Mas é fato. Como é também fato que terminei agora em 2017 um novo romance de crime, na esteira do Peixe morto, que está em busca de editor. O romance encarna o grande gênero literário dos últimos duzentos anos, e continua sempre vivo. Nesse sentido, entendo que o escritor por excelência, ainda nesse nosso tempo, é o romancista. Ser reconhecido como ro288

mancista é algo espetacular. O poeta dá ao leitor a possibilidade do autoconhecimento, mas o romancista dá ao mesmo leitor a possibilidade de conhecer o mundo e a infinita variedade de pessoas do mundo através da imaginação. Daí advém a largueza da sua empreitada. Em todos os sentidos, prosa e poesia se complementam, mas me encanta mais nesse momento o largo horizonte do romance. Como diz Vargas Llosa, seguindo Isaiah Berlin, o romance dá a ver a própria condição humana. Essa capacidade do gênero de sobreviver a tudo se deve muito à sua adaptabilidade constitutiva, como aponta Bakhtin, e que vocês bem lembraram. Por isso, tudo cabe no romance, e a minha escrita ficcional evolui consciente dessa possibilidade do gênero. Escolhi para mim um subgênero específico, a história de crime, por gosto pessoal, mas igualmente porque conjugação de conhecimento e entretenimento que somente o romance de crime possibilita falta muito à literatura brasileira, e portanto há aqui um veio enorme da invenção a ser explorado. Quanto ao ensaio, trata-se antes de tudo de uma tarefa acadêmica, mas que nem por isso me dá menos prazer. Estou agora às voltas com a escrita de um longo ensaio teórico-crítico sobre as relações entre literatura e economia, com foco nos anos iniciais da República no Brasil. Investigar um tema cultural traz também muito prazer ao escritor. Em “A poesia quer subir”, poema 4 de Redondilhas roubadas, a voz poética afirma que “Só mesmo o barro do mundo/ faz pra poesia uma casa;/ o sentido mais profundo/ nasce da matéria rasa”. Em que medida esses versos dizem das relações que você procura estabelecer entre significante e significado ao longo de seu processo criativo? Menos do que as questões do signo, penso que aqueles versos falam mais propriamente do fato de que, a meu ver, o sublime em poesia não é um dado, mas uma meta a ser alcançada através de um exercício de ascese, uma escada, no sentido platônico do termo. O conjunto das Redondilhas foi construído nessa perspectiva. De um patamar aparentemente alto no começo, o conjunto propõe um mergulho na “matéria rasa” (o que – vocês têm razão – se expressa por um retorno ao momento constitutivo da significação, e portanto a uma atenção ao significante ainda não atrelado a um signo codificado), um retorno à linguagem comum, para daí subir essa escada que, no horizonte, busca novamente um patamar alto. Se eu puder apontar um poeta brasileiro que faz esse exercício de maneira magistral, citaria Bruno Tolentino. Paralelamente, eu não sou um poeta do significante, no sentido “Manoel de Barros” do termo. Quando praticada de maneira recorrente, acho a metalinguagem uma chatice, uma chatice modernista que se revela falso brilhante, e que não tem, a meu ver, qualquer serventia literária. Em sua trajetória literária, você acumula uma significativa produção poética, reunida em No verso dessa canoa, e é um dos vencedores do Prêmio Petrobrás Cultural 2007 na categoria Literatura, com o romance Peixe morto. No prólogo de No verso dessa canoa você afirma que sua obra teve largos intervalos de interrupção, sucessivas retomadas e reescritas, marchas, contramarchas e um nítido esforço de recriação sintática. Como você define sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? E nessa trajetória, como você avalia a recepção de sua obra? 289

Eu comecei aos dezoito anos escrevendo poesia. Tentei a prosa de ficção, mas, no começo, não encontrei a forma. Ao longo dos meus vinte anos, na década de 1980, publiquei coisas esparsas, que foram reunidas na virada dos trinta anos em um duplo volume, intitulado Lírica seca/Contra-regra do jogo, publicado em 1992. Ali ficaram as gavetas da juventude, mas já se via também o interesse na retomada criativa das formas da tradição. Ao longo dos anos 1990, trabalhei com as coleções que acabaram reunidas em No verso dessa canoa, já em 2005. Dos quatro livros ali constantes, os Sonetos Eróticos foram publicados na íntegra separadamente, em 1997, em edição artesanal de 150 exemplares assinados. As Redondilhas foram publicadas esparsamente, e uma delas chegou a ganhar um prêmio literário na Nova Inglaterra (olha ela aí...). O Canto do Tordo e a Barca da Dúvida permaneceram inéditos até 2005. Mas, desde o começo dos anos 2000, com quarenta anos de idade, me senti afinal compelido à prosa de ficção, que sempre fora meu objetivo. Quando a recolha de livros de poesia saiu em 2005, eu já estava em pleno trabalho da prosa de ficção, depois de ter publicado os ensaios críticos sobre o Charles Hartt, com a alegria de ver um deles premiado com o Jabuti em 2002. O grande crítico e professor Lino Machado, lá do Espírito Santo, em conferência de apresentação de No verso dessa canoa feita à época do lançamento do livro, destacou que o sentido de fechamento de projeto daquele volume anunciava que outras formas deveriam estar para aparecer. Ele foi muito perspicaz na observação, porque eu já estava mesmo lutando para colocar de pé o meu primeiro romance. As primeiras páginas surgiram no ano 2000, quando eu ainda morava em Providence-RI, na Nova Inglaterra. Em 2004, transportei o enredo para a Belo Horizonte modernista e escrevi as primeiras vinte e cinco páginas, com elas encontrando o formato do livro. Mas as obrigações não me deixaram deslanchar. No final de 2006, uma chamada do programa Petrobras Cultural incluiu entre suas modalidades a escrita de romance. Para submeter um projeto, era necessário ter à mão vinte e cinco páginas de texto, e era exatamente o que eu tinha. Foi o empurrão que faltava, porque nada mais inspirador do que um deadline. Me candidatei e fui selecionado para escrever o Peixe, que foi terminado e publicado em 2008. Em 2009, o Peixe foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria autor estreante, e recebeu umas poucas, mas boas, críticas. Entre 2009 e 2011, voltei ao ensaio crítico-historiográfico, com Contradições da Modernidade, que saiu em 2011 pela UNICAMP, mas já com a ideia de um novo romance na cabeça. Enquanto a ideia não se desenvolvia, praticava o pentâmetro-oitavo lá no Twitter (https:// twitter.com/marcusvfreitas). Em 2013, voltei à Nova Inglaterra como professor convidado da Universidade de Massachusetts, e pensei que no isolamento de Amherst eu terminaria o romance. Tremendo engano. Avancei, mas não terminei. Em compensação, ali nasceu o poema “Meditação sob o carvalho seco”, que integra e dá nome ao livro de poesia agora pronto e ainda inédito. Entre 2016 e 2017, pude finalmente terminar o romance e o conjunto de poemas, e ainda avançar na escrita de um conjunto de crônicas ficcionais, que começaram como uma brincadeira no Facebook mas ganharam corpo e autonomia, e estão quase prontas em formato de livro, intitulado Notas de estação. O ano de 2017 foi muito ruim em termos do mercado editorial, com as editoras recusando todo projeto novo. Vamos ver se no ano corrente de 2018 esse conjunto de inéditos encontra o caminho da prensa. Publicar é necessário para seguir escrevendo, senão a gente se prende na 290

reescrita. Enquanto os livros não saem, tento finalizar o ensaio sobre literatura e economia. Preciso passar dele para retomar os romances de crime. A minha obra (nem sei se se pode falar em “obra”, mas mais propriamente em obras, uma vez que são produções variadas, cujo ciclo está longe de ser completado) tem tido aqui e ali boa acolhida, sobretudo com prêmios. Ter recebido um jabutizinho por um ensaio, e dois outros prêmios por um romance indica boa disposição crítica. Mas com certeza eu sou um autor até esse momento à margem de um sistema mais amplo de circulação da literatura. Não cabe a mim discutir os motivos ou fundamentos dessa posição. O que faço é seguir escrevendo, sempre em busca de leitores. Além dos diálogos estabelecidos com Fernando Pessoa em “Na beira do rio Providence” (Redondilhas roubadas, 1993-1998; Canto do tordo, 1997-2003), Robert Frost em “Praia de grosso cascalho” (Redondilhas roubadas, 1993-1998) e Edgar Allan Poe em Barca da dúvida (2000-2001), você retoma “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, em “Canto do tordo” (Canto do tordo, 1997-2003). Com que outros autores você procura estabelecer interlocuções? Em que medida a docência e a atividade de pesquisa participam da organização dos diálogos que você busca instaurar com facetas da tradição literária? O trabalho intelectual e acadêmico faz parte da minha trajetória de escritor, pois assim ganho a vida. Então me parece natural que as atividades ali desenvolvidas apareçam na minha escrita ficcional e poética, como componente do que sou. No entanto, faço um esforço constante para que essas matérias e sobretudo o seu estilo não se imponham à escrita literária, mesmo em relação aos diálogos com a tradição. O motivo principal dessa vigilância eu já expliquei anteriormente: entendo que metalinguagem é um desvio criativo que só serve para sugar a força do escritor. Dizendo de outra forma, meu leitor ideal, aquele que visualizo ao escrever, não é o teórico ou o crítico da literatura, ou pelo menos não quero escrever primordialmente para estes. Nesse sentido, meu herói é o Tzvetan Todorov de A literatura em perigo, que afirma preferir a literatura à crítica, porque, na contemporaneidade, a literatura fala a toda gente, e a crítica fala aos críticos. Em Barca da dúvida, você visita o relato sobre Noé apresentando a personagem bíblica como inquieta e ciosa da “(...) saúde/do exercício da dúvida” em face de comandos que não sabe classificar como divinos ou diabólicos. Além de retomar uma passagem do Antigo Testamento pela chave paródica, o mini-épico é organizado em verso livre e dividido em doze seções. Tais escolhas temáticas e formais parecem nos remeter a algumas das principais opções estéticas feitas por John Milton em Paraíso perdido. Haveria em Barca da dúvida um esforço voltado à promoção de diálogos entre uma memória de leitura e uma forma poética atualizada à concisão exigida pelo tempo presente? A pergunta de vocês já contém a resposta. Sim, a atualização das formas poéticas em face do presente constitui o horizonte geral da minha poesia, assim como da minha prosa de ficção, e a Barca não ficaria fora dessa linha. Mas, se esse procedimento remete a Milton, trata-se de um acaso das relações entre o poeta e a tradição, pois eu não sou um leitor de Milton. Não possuo mais do que a notícia escolar do poeta inglês, o qual, na loteria da nossa vida de leitor, não frequentou 291

até hoje a minha cabeceira. A partir da sugestão de vocês, vou voltar a ele com a devida atenção. Mas essas relações não são improváveis de existir, mesmo que eu não seja um leitor miltoniano, como não sou um leitor de tanta gente maravilhosa que o acaso do percurso não trouxe à minha mesa. Se nunca fui leitor de Milton, por outro lado li muito Coleridge, muito Frost, muito Pessoa, entre outros, e aquelas linhas de força atravessam esses poetas. Entre os anos de 2010 e 2012, você se valeu dos limites de espaço estabelecidos pelo Twitter para, nesta rede social, desenvolver uma forma fixa: o pentâmetro oitavo. Após as experiências de construção de versos restritos a cento e quarenta caracteres e de rápido retorno dado pelo leitor no ambiente virtual, ocorreram mudanças em seu processo criativo? Por que esse trabalho foi interrompido? De modo geral, como você analisa o engajamento de escritores contemporâneos em redes sociais? Já mencionei esse trabalho, do qual gosto muito. Não tinha na memória que cobrisse tantos anos assim, lembrava mais do momento de 2011 e 2012. Como eu gosto de formas fixas, porque elas são exigentes, criei no Twitter uma estrutura, o pentâmetro oitavo, que se constitui de um conjunto de oito versos em redondilha menor, com uma separação central, uma espécie de cesura, marcada por um sinal de dois pontos que transforma o conjunto em duas quadras colocadas em diálogo. A separação entre os versos é feita por barras transversais, para economizar caracteres, uma vez que o uso de vírgula ou ponto exige dois caracteres, e a barra apenas um. A forma é muito adequada para cobrir os 140 caracteres, e possibilita um raciocínio do tipo dispersão e recolhimento, ou de diálogo, no qual a primeira quadra constitui a proposição e a segunda a resposta. A luta é para tentar fazer que o poema tenha ao menos 138 caracteres, e que, nos melhores casos, atinja os 140 certinhos. Há um ou outro com 135 ou 136, mas são poucos, e há muitos com a marca de 140, ou seja, formalmente perfeitos. Se o leitor vai ao começo da série, encontra lá os primeiros três ou quatro pentâmetros, que são metapoéticos (ali eles eram necessários, pois a forma é específica), e depois vai surgindo uma história, um vai-e-vem do eu-lírico, historieta na qual uma índia da tribo “twitter” sempre aparece. Ao todo são um pouco mais de setenta poemas. Por que parei de fazer? Talvez porque o procedimento ficou muito repetitivo para mim. Ainda assim, considero o conjunto muito bom e um exercício sensacional. Acho que minha poesia não mudou com os tweets, mas se reafirmou. Uma hora dessas tenho de verter a série para o livro, colocá-la no papel. As redes são lugares bons para o exercício, mas há que saber o limite, pois senão você fica preso em uma malha de poucos leitores, pensando que são muitos. O livro, o verso ou o romance pode nascer no blog ou no Facebook, mas precisa sair de lá se quiser alcançar mais leitores. Como você experimenta o ato de recitar? Recitar, em sala de aula e fora dela, é recriar? Eu fui ator durante muitos anos. Falar poesia sempre foi para mim um prazer, além de ser um instrumento muito importante no ensino de literatura, pois ouvir um poema ajuda muito a compreender o seu espectro de sentidos. Não diria que é recriar, mas sim dar ao poema a sua leitura básica, o solo de onde se 292

pode começar a análise e a interpretação. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que comentasse sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. Olha, sem mencionar as tarefas acadêmicas, que obrigam à leitura de muita coisa, desde os ótimos Paulo Leminski e Orides Fontela até coisas boas e más de menos destaque, o que mais leio da poesia brasileira atual são alguns autores que, entendo eu, tornar-se-ão clássicos mais cedo ou mais tarde, ainda que o atual sistema literário não lhes dê muita bola: Bruno Tolentino, Alberto da Cunha Melo, Ivan Junqueira, Alexei Bueno. Gosto muito também de Fernando Paixão, Adriano Spínola, Cláudio Murilo Leal e Armando Freitas Filho. Os últimos dez anos têm sido a década das escritoras, sobretudo na poesia, mas é preciso ainda esperar que a poeira se assente para saber quem fica. Não há como não apostar que Ana Martins Marques veio para ficar. Em termos de prosa contemporânea, continuo considerando Domingos Pellegrini um dos maiores romancistas brasileiros de qualquer época. Marçal Aquino, Daniel Galera e Carola Saavedra frequentam a minha cabeceira, e são muito bem vindos, ao lado de Philip Roth, Vargas Llosa, Andrea Camilleri, Lídia Jorge, Haruki Murakami, para citar alguns dos meus contemporâneos favoritos. Minha inquietação maior é o fato de que a literatura brasileira ainda não se livrou da obsessão sociológica que Silvio Romero lhe impôs ao reclamar da ausência de cor local nos textos Machado. O piparote do bruxo não foi suficiente para espantar os sociólogos de plantão. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

O principal é o desafio circular de sempre: a editora quer lançar um best seller, pois afinal o lucro é legítimo e ela precisa vender livros para sobreviver; para encontrar um best seller, precisa apostar em alguém, pois os escritores famosos já têm editores, e o sonho editorial é o de encontrar o seu autor famoso antes que outro o encontre; mas, como apostar em alguém que ainda não é um best seller, pois ninguém o conhece? E assim gira a roda... Somos todos – escritores, editores, leitores e livreiros – tolhidos pela existência de um público ledor muito pequeno, que obriga as editoras a restringir as apostas, e nessa ordem de coisas o escritor novo fica em apuros, assim como muitos já calejados (risos). Somente o aumento do público ledor pode abrir mais portas para novos escritores e novas apostas. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que podemos esperar como coda do atual estágio da humanidade? Sobre os rumos da humanidade não me atrevo a palpitar. Mal dou conta do meu jardim. Tentando responder à pergunta, penso que as jornadas de 2013 no 293

Brasil, até aqui muito mal analisadas, pelo fato de que elas são encobertas pelo véu ideológico de um cabo de guerra, podem ser consideradas um ponto importante para a compreensão de algumas mudanças importantes no nosso cenário. Esse cenário, que é visto pela maioria quase pacificamente como a ascensão de uma onda reacionária, parece-me ser realmente menos espectral do que aparenta. Entendo que houve em todo o mundo, desde os anos 1960, uma hegemonia cultural do discurso de esquerda, mas que, recentemente, a direita mais cínica, atrabiliária e tosca aprendeu a usar e decidiu manipular as mesmas armas midiáticas, o que tomou ares de onda. O mundo não está mais reacionário do que antes, apenas a propriedade midiática da esquerda tem sido colocada em xeque com o uso das suas mesmas armas populistas, e isso gera um sentimento de desconforto por parte do discurso hegemônico. Note-se, por exemplo, o fato de que o conceito de “pós-verdade”, tão apropriado para descrever a ascensão de um Trump, possui sua origem na filosofia anti-humanista e desconstrucionista pós-moderna, de Foucault a Derrida. Quando Derrida diz que a língua não remete ao mundo, e sim ao sistema da língua, ou seja, que estamos num mundo de pura linguagem, ele está, sem prever, dando a um manipulador de linguagens como Trump a sua futura justificativa. Quando todos nós, na universidade, há três ou quatro décadas, passamos a usar aspas na palavra verdade – para assim desconstrui-la, como se essa negação da verdade fosse um ato político de resistência cultural contra o sistema do capital –, estávamos plantando a lógica das fake news. O que espanta o establishment reacionário de esquerda, e aqui tem-se a novidade, é a audácia dos reacionários de direita em tomar-lhes a cria, as armas midiáticas populistas, e voltá-las contra a própria esquerda e o sistema cultural. Daí o sentimento de que se está diante de uma onda, mas acho que tudo isso é menor do que aparenta ser. No fundo, essa me parece ser uma guerra cultural que não diz respeito às necessidades da maioria das pessoas. Eu, como liberal, e portanto alguém distante tanto de um lado quanto do outro desse cabo de guerra, não faço mais do que rir desses irmãos siameses, esquerda e direita, ambos reacionários, espelho uns dos outros. Para usar um exemplo distante de nós – e por ser distante pode servir de metáfora –, digo que os peruanos Ollanta Humala e Alberto Fujimori são o reflexo um do outro. Entre os dois, fico com o liberal Vargas Llosa, o maior escritor vivo, e um dos maiores de todos os tempos.

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Maria Amélia Dalvi Nasceu em Vila Velha (ES), em 1983. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei e Andréia Delmaschio em março de 2019.

Você é professora envolvida em cursos de graduação e pós-graduação, pesquisadora das áreas de Letras e Educação, escritora, militante, ativista, caminhante, mãe... Como ocorrem os trânsitos entre as diferentes atividades que você executa? Penso que a substância de que sou feita foi forjada no meu percurso educacional e na experiência de leitura literária – isso me permitiu a passagem de hominizada ao esforço contínuo por humanização: um esforço forjado nas limitações e potencialidades da concreticidade da experiência, mas, ao mesmo tempo, um esforço ao qual me convoco sempre e de novo. O que estou chamando de humanização? Fundamentalmente, a inserção na história e na cultura humanas com vistas a tornar-se alguém que sente e pensa com os Outros a complexidade do mundo; alguém que se faz na experiência de transformar de modo intencional a realidade; alguém interessado em se abrir ao diálogo – entendido aqui como alternância de vozes diferentemente posicionadas (e não como sinônimo de produção de consenso, tal como ocorreu na vulgarização dessa noção do Círculo de Bakhtin) – e também ao silêncio. Como acredito que o melhor esforço de que sou capaz passa pela educação e pela literatura, porque foram elas que me deram essa oportunidade, vejo uma unidade em tudo isso o que vocês muito generosamente mencionam. Coloco-me contra a reificação, o embrutecimento, a redução, a fragmentação, a sucessão de performances descompromissadas eticamente e assumo um posicionamento de vida a favor da humanização, da sensibilidade, da integridade, da omnilateralidade; dadas as condições objetivas de nossas vidas no momento presente, talvez eu não pudesse fazer outra coisa que não fosse percorrer um caminho na atividade política, no mais interessante sentido que sou capaz de atribuir a isso. Para mim, faço política não apenas quando explicitamente trato de temas políticos, mas também quando busco um caminho humanizador como professora e pesquisadora, como escritora, como militante/ativista, como mulher e mãe, como amiga e amante, e, claro, como caminhante e vegetariana. Respeitar as diferentes formas de vida, expandir minhas possibilidades de resistência contra a aceleração de tudo, observar atentamente o entorno mesmo em suas miudezas, exercitar um rigor amoroso com as pessoas de minha convivência, me esforçar no cultivo de uma atenção íntegra ao todo me parece algo de lúcido que eu poderia fazer neste momento de minha vida. Nem sempre “dá certo” – mas a minha vida não se mede por esse crivo, e é nessa liberdade que quero prosseguir. Em entrevista concedida a Adriana Damasceno e publicada no Portal da UFES em 11 de outubro de 2018, você afirma que iniciou sua trajetória na escrita ainda muito nova, entre os nove e os doze anos de idade. Em 2010, você foi contemplada no 1º Prêmio UFES de Literatura, na categoria poesia. Nos últimos 295

dez anos, você tem publicado livros acadêmicos de teoria, crítica e divulgação científica. Você estreou na literatura infantojuvenil com No Cangote do Saci: lendas do Brasil (Kondo Studio, 2018) e tem no prelo o livro Poema algum basta, que será publicado pela Editora Cousa. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Quem me fez “escritora” foi a primeira pessoa que me chamou assim, foi quem me deu este nome. E eu o aceitei, eu o assumi, e neste momento o carrego comigo. Como carrego, também, e há mais tempo, “leitora”. Penso que sempre escrevi, mas também sempre li – e nunca vivi a experiência de divisão clara entre leitura e escrita. Meus materiais de leitura, desde criança, são marcados com meus rabiscos, notas, apontamentos, senões, códigos – e os textos que escrevo são marcados por minhas leituras, meus devaneios, paixões e antipatias de leitora: às vezes de um jeito que, penso, só eu sei. Noutras palavras, sou bem Moderna... A história das culturas escritas em muitos momentos cindiu as experiências de ler e escrever, mas a mim elas chegaram indivisíveis: leio para continuar escrevendo, escrevo para continuar lendo. Então, não sei dizer a vocês se tenho uma trajetória, um momento inaugural e nem mesmo uma progressão gradual… Eu simplesmente não sei quem eu era antes de ler e escrever. A memória mais antiga que eu tenho é de estar sentada à mesa do café tentando decifrar como leitora uma lata de leite Ninho, para a partir disso escrever um bilhete para um tio querido, cujo apelido era Nininho. Diferentemente do que acontece com alguns outros escritores, escrever e ler nunca foi uma disciplina, um esforço, um método, um martírio, um imperativo, uma obsessão, uma dor, nada disso: sempre foi uma demanda de vida no sentido mais banal que eu sou capaz de atribuir. E ler e escrever – e talvez ensinar as pessoas a lerem e escreverem, e pesquisar sobre leitura e escrita, e dialogar sobre leitura e escrita e sobre seu ensino – para mim é algo muito banal; mas não quero que isso soe desrespeitoso, ao contrário. O que quero dizer é que não é nada de extraordinário, é que eu não consigo supor outra existência para mim que não essa. Escrevi desde sempre poemas, contos, histórias para crianças... e tenho um romance pela metade; mas só em 2018 me senti convocada pela vida a lançar poemas no mundo na forma-livro: tanto os que saíram em No Cangote do Saci (com as ilustrações e projeto gráfico de Daniel Kondo), quanto, agora, os que sairão em abril de 2019 sob o título de Poema algum basta. Agradeço essa alegria de ver meu trabalho amadurecido ao longo de um bom tempo, enfeixado em páginas, protegido por uma capa e lombada, nas mãos de outros leitores que eu sei que respeitam a história havida até ali para que aquele objeto existisse, agradeço a alegria de saber meus textos nas mãos e sob os olhos de outros escritores que sei que se alimentam de palavras alheias para continuar produzindo a humanidade em si mesmos – o que significa, é óbvio, que irão gostar de algumas coisas, vão achar outras muito ruins, vão permanecer indiferentes ou vão se sentir tocados aqui e ali, vão pensar que eu não devia ter gastado papel e cola para produzir aquilo... enfim, vão assumir um posicionamento responsivo (coisa que, em última instância, talvez sustente nosso lugar no mundo). Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu 296

projeto literário? Comente sobre a criação de sua obra poética e, também, de seu texto infantojuvenil. Meu principal projeto, hoje entendo um pouco melhor, é dizer o que penso e sinto que precisa ser dito aos outros, da melhor forma que sou capaz de elaborar naquele momento de escrita (e eventual publicação). Em relação ao livro No Cangote do Saci, tomo a liberdade de recuperar o depoimento que Daniel Kondo e eu elaboramos para a revista Voz da Literatura: Nosso livro No Cangote do Saci: lendas do Brasil, publicado no segundo semestre de 2018 pela Kondo Studio, apresenta às crianças 10 lendas brasileiras, por meio da correlação entre texto poético, texto informativo em prosa, ilustração e projeto gráfico-editorial que convida à manipulação ativa e criativa. O trabalho é fruto de uma exaustiva pesquisa que realizamos, tanto sobre diferentes narrativas populares brasileiras, quanto sobre representações visuais ou imagéticas das personagens dessas narrativas. Considerando a diversidade de fontes com que trabalhamos, de saída percebemos que tanto a descrição das personagens quanto a sequência de eventos narrativos é, em diversos casos, múltipla e até mesmo conflitante. Longe de criar uma dificuldade ou de mobilizar em nós uma postura normativa (de encontrar a versão “correta” e “oficial”), essa constatação nos deu gana de compor e apresentar as personagens à maneira de um mosaico. Foi um prazer, para nós, trabalhar nessa (re) descoberta e na reinvenção de tantos possíveis para histórias que – supúnhamos – estavam consolidadas. Juntos, definimos um corpo que nos parece representativo de distintas regiões e que alterna entre histórias muito conhecidas no país todo e outras mais regionalizadas. Foi muito difícil fazer a escolha e decidir quais lendas permaneceriam – deixamos de fora diversos textos, versões e imagens pelos quais nos apaixonamos no processo. O livro traz um poema de abertura, que convida o leitor a adentrar o universo das rodas de história, entre o entardecer e o anoitecer. Desejamos recriar um pouco esse clima, pois entendemos que a experiência da oralidade e do encontro com os outros é fundamental na constituição como leitor. Pensamos que, de um lado, é importante para o leitor-criança não apenas conhecer as lendas, mas saber também que eram contadas 297

oralmente, de geração em geração; de outro lado, é importante para o leitor-adulto, que medeia a relação da criança com o livro e com as lendas, reviver a sua memória infantil. Após este poema de abertura, na primeira parte, o leitor conhece e familiariza-se com as 10 personagens centrais (Curupira, Boto Rosa, Capelobo, Cobra Norato e Maria Caninana, Boitatá, Iara, Cuca, Pássaro de Fogo, Barba Ruiva e Saci), por meio de um processo lúdico: numa engenhosidade do design gráfico, o leitor manipula e recombina sequências de 3 lâminas de papel que contêm as sílabas dos nomes das personagens e partes de seu corpo (cabeça, tronco e membros). Já na segunda parte, o leitor lê em páginas duplas o texto informativo e o poema, ilustrados, que são dedicados a cada uma das lendas protagonizadas pelas personagens da primeira parte. Para nós, ficou claro, desde o início, que as lendas existem como um processo coletivo, sendo preservadas e recriadas à medida que são passadas de uma geração para outra; assim, constituem-se e são constituídas histórica, social e culturalmente: nesse sentido, foi uma honra participar desse processo tão longo, tão forte, tão bonito. Ao mesmo tempo, as lendas cumprem para cada indivíduo singular um papel importante, ao ajudar a elaborar temas e questões difíceis, que mobilizam dúvidas, incertezas, desejos, angústias humanas; no caso de lendas brasileiras, mobilizam questões atinentes à formação de nosso país e do nosso povo. Por isso defendemos que devam ser apresentadas às crianças, mesmo as bem pequenas – e, ao mesmo tempo, entendemos que são uma oportunidade para os adultos olharem de novo as histórias que lastreiam o Brasil. A nossa opção por evidenciar a existência de múltiplas origens e versões das distintas lendas e de permitir que o leitor também participe desse jogo criativo ativamente tem relação com a nossa compreensão de que a literatura participa do processo de humanização, ao nos colocar em contato com a complexidade, a variabilidade e beleza do mundo, da vida, dos seres (reais ou imaginários). Além disso, entendemos que a literatura cumpre um papel fundamental ao nos apresentar possibilidades múltiplas de ser, de pensar, de sentir, ou 298

seja, de produzir continuamente novos sentidos para tudo. Na seleção das lendas e personagens que comporiam a publicação, adotamos critérios. O primeiro deles foi que privilegiaríamos personagens que têm relação com a natureza... Isso em função da preocupação com o momento atual, em que recursos naturais imprescindíveis à vida no planeta têm sido destruídos pela ganância e desinformação. O segundo critério, como já sinalizamos logo no início de nosso depoimento, foi que as personagens contemplassem diferentes origens e regiões do país, de modo que tanto as crianças se sentissem representadas pelas lendas já conhecidas, quanto enriquecessem seu repertório com novas lendas. O terceiro critério foi que assegurássemos personagens do gênero feminino, pois, segundo nosso trabalho de pesquisa, na maior parte das publicações análogas as personagens femininas são pouco ou nada presentes. O quarto critério foi a diversificação das questões psíquicas de fundo nas diferentes lendas. O quinto critério foi, enfim, nosso gosto pessoal: nos divertimos produzindo este livro. Patrimônio coletivo de um povo que viveu processos complexos, difíceis e mesmo violentos, as lendas e personagens populares brasileiros trazem elementos ora cativantes e enternecedores, ora surpreendentes, ora divertidos, ora assustadores – como, ademais, ocorre nas narrativas tradicionais em quase todas as culturas do mundo. Em consonância com o acúmulo histórico dos estudos em crítica cultural, infância e formação do leitor, entendemos que contribui enormemente para a formação das crianças o contato mediado com elementos simbolicamente elaborados. Assim, esperamos que o fruto de um trabalho conjunto de muitos meses proporcione às crianças (e aos adultos!) ricos momentos de diversão, prazer, surpresa e reflexão. (Voz da Literatura, n. 9, jan. 2019). Já em relação ao livro Poema algum basta, como ainda está no prelo no momento em que concedo esta entrevista, vou falar menos. Mas penso ser importante registrar que é um material acumulado e decantado desde que ingressei na faculdade de Letras, em 2001; completa neste 2019 uma simbólica maioridade (risos). É um diálogo com dimensões da existência que vocês já elencaram na primeira questão, e uma resposta muito pessoal ao meu percurso como leitora e estudiosa da poesia de Drummond. O Saulo Ribeiro (editor da Cousa) foi de uma 299

paciência ímpar – porque há cerca de dez anos ele aguarda que eu entregasse a ele os originais definitivos desse livro. A Adriana Lisboa, que conheci ainda no início da carreira de romancista, gentilmente escreveu um texto sobre o livro. Enfim – pessoas, experiências e leituras muito importantes no meu caminho pela literatura, de alguma maneira, se entrecruzam na produção e publicação deste livro, e isso me dá uma certa serenidade. Em No Cangote do Saci: lendas do Brasil, você abraçou o desafio de escrever um texto literário infantil a partir de ilustrações feitas por Daniel Kondo. Após essa experiência, você percebe mudanças, em seu texto poético, quanto à maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Na verdade, nós fomos fazendo o livro juntos – afora isso, a editora, Vanessa Gonçalves, que tem uma experiência enorme na área (foi editora do segmento infantojuvenil da Cosac Naify), foi muito importante na mediação do processo. Tanto a Vanessa quanto o Daniel são muito experientes e reconhecidos em suas respectivas áreas, mas ainda assim confiaram muito no meu trabalho e me deram bastante liberdade. Talvez a aprendizagem mais importante dessa experiência tenha sido essa: a criação requer liberdade, e os títulos, as experiências pregressas, os prêmios, o nome são secundários, porque cada obra exige a reinvenção de seus autores. Sempre fui interessada pela interação entre linguagem verbal e visual: estudei isso no mestrado (quando me dediquei aos poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade publicados com ilustrações de Milton DaCosta) e também no doutorado (quando pensei a constituição de Drummond como poeta nacional em livros didáticos de ensino médio, de 1960 a 2010, e, lateralmente, os guias para escolhas dos livros enviados pelo poder público aos professores nas escolas... Analisei capas, cores, layouts de página etc.). Mas pensar não como estudiosa e pesquisadora, mas como co-criadora tem um sabor especial. Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher. Como o machismo e a misoginia presentes na sociedade brasileira afetam a sua escrita e o seu trabalho como educadora? E como você vê o crescente espaço feminino no campo literário? Peço licença para novamente recorrer a um depoimento já publicado, desta vez na revista ES Brasil, sobre ser mulher, professora, pesquisadora e escritora: No doutorado, tive uma professora que nos indagou sobre como nos tornamos professores e pesquisadores. O assunto parecia pesado; ela era uma grande pesquisadora e, ademais, rigorosa e polemista. Isso tudo poderia ter-nos paralisado: fez diferença o fato de que não tínhamos medo de rir em suas aulas – ela mesma era sempre a primeira a gargalhar gostosamente diante das bobagens que inevitavelmente dizíamos (ela inclusive) e, desse modo, ia nos fazendo perder o medo do ridículo, tratando-o como se fosse normal (e desejável) no processo. Conto essa historinha porque minha 300

escolha profissional – ser professora, pesquisadora e escritora – passa tanto pela imensa influência que outras mulheres professoras e pesquisadoras tiveram sobre mim; quanto passa pelo aprendizado difícil que é perder o medo do ridículo: fundamental para quem deseja para si o lugar de autoria, não apenas de textos e livros, mas de uma vida. Sempre gostei de estudar, e vi na carreira acadêmica em uma instituição pública a possibilidade de um percurso que conciliasse estudo, leitura, escrita, estabilidade profissional e intervenção social. Por meio da Iniciação Científica, da participação em eventos acadêmicos e do mestrado e do doutorado compreendi o que era o trabalho de um pesquisador e professor universitário comprometido com o interesse coletivo. [...] Na formação inicial, além do incentivo de mulheres da minha família, pude contar com professoras inspiradoras. Mesmo correndo o risco de cometer injustiças, destaco Cleonara Schwartz (supervisora no estágio supervisionado, veio a ser minha orientadora no doutorado) e de Maria Fernanda Oliveira (orientadora do trabalho de conclusão de curso, mas cuja contribuição maior foi mostrar que era possível conciliar a vida universitária com o interesse pela escola básica). Gostaria também de deixar registrada a importância que teve na minha vida a leitura de livros de mulheres muito diferentes entre si, que nunca foram minhas professoras, mas cujas reflexões me permitiram avançar, mesmo quando eu discordava completamente: a crítica literária Letícia Malard, a filósofa Marilena Chauí e a historiadora da literatura Regina Zilberman. No momento presente, preciso mencionar o companheirismo de muitas mulheres com as quais tenho o privilégio de conviver e aprender todos os dias. Sem elas todas, eu não teria me tornado a profissional – e mais: o ser humano – que sou. É difícil, mas gratificante, ser mulher na universidade, principalmente quando entendemos que é não apenas possível, mas principalmente necessária a nossa intervenção na transformação da realidade. Na graduação, éramos uma maioria esmagadora no curso; porém, no mestrado, eu era a única mulher da turma – isso evidencia que muitas não conseguem, por razões diversas, prosseguir na carreira, mesmo que o 301

desejem. Não deveria ser assim, mas, infelizmente, há uma grande dificuldade em conciliar a vida familiar e as duras exigências da vida acadêmica. Muitas vezes, as mulheres não têm o apoio de companheiros e da própria família de origem. Em algumas áreas, adicionalmente, práticas misóginas são comuns. Particularmente, tive que lidar inicialmente com alguma desconfiança por ser mulher e muito jovem – ingressei na Ufes como professora doutora aos 26 anos. Mas eu acho que a coisa mais difícil foi fazer uma graduação, um mestrado e um doutorado em que, talvez, menos de 10% de tudo o que a gente leu ou foi orientado a ler foi escrito e publicado por mulheres; foi olhar ao redor e ver que, por exemplo, nas bancas de seleção, nas comissões examinadoras, nos comitês de pesquisa, na gestão das pró-reitorias de pesquisa e pós-graduação, nos comitês de ética etc., frequentemente, só há homens ou os homens são maioria. Isso vem mudando lentamente – mas só se estivemos [sic] atentas e fortes. [...] Como mulher, tenho feito um esforço por incentivar minhas alunas e orientandas que são mães a não desistirem de estudar e não se afastarem da pós-graduação. Nas reuniões do nosso grupo de pesquisa, as crianças são bem-vindas e nas minhas aulas as mulheres podem trazer seus filhos bebês. Considerando a insuficiência de vagas nos centros de educação infantil, sem essas práticas solidárias a continuidade do estudo para muitas mulheres fica severamente ameaçada – lutamos por vagas, mas, enquanto isso, vamos encontrando as brechas. Um dia, as pessoas vão entender que sem as mulheres a ciência, a arte, a filosofia jamais avançaram – e que para isso elas não precisam replicar os problemas e defeitos de um mundo majoritariamente machista, competitivo e, em última instância, embrutecido e violento. (ES Brasil, 6 mar. 2019.) Sobre a questão da crescente participação das mulheres no campo literário eu penso que não tenho condições éticas de me manifestar sobre o campo no geral... nunca refleti de modo cuidadoso sobre isso. Só o que gostaria de pontuar é que esse crescimento não é tranquilo, nem natural, e nem se espraia por todas as dimensões igualitariamente. Por exemplo, tirando as áreas de Educação e Literatura Infantil, tradicionalmente de forte presença feminina, parece-me que haja 302

poucas mulheres editoras nas grandes companhias brasileiras. Para não dizer que não sei nada sobre isso, registro dois estudos cujos resultados publiquei na forma de ensaios, e que eu penso que contribuem para responder à questão: o primeiro, em que me dediquei à constituição do sistema literário capixaba, tomando como recorte os últimos vinte anos: DALVI, Maria Amélia. Dez escritoras contemporâneas no Espírito Santo: indagações a partir dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras. In: Arnon Tragino; Orlando Lopes Albertino; Paulo Muniz da Silva; Paulo Roberto Sodré; Pedro Antônio Freire; Sérgio da Fonseca Amaral; Wilberth Salgueiro. (Org.). Bravos companheiros e fantasmas 7: estudos críticos sobre o autor capixaba. 1ed. Campinas: Pontes Editores, 2018, v. 7, p. 379-402. O segundo, em que analisei as teses de doutorado que se dedicaram, nos últimos vinte anos, à interrelação entre Literatura e Infância; e por que menciono esse estudo? Porque emerge do corpus que quem se interessa por pensar a infância e a literatura, no contexto da pós-graduação brasileira, são as mulheres: DALVI, Maria Amélia. Literaturas e infâncias: pesquisa (d)e pós-graduação como espaço político. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, p. 153-173, 2015. Como você avalia a recepção de sua obra? Fale-nos um pouco sobre a recepção de sua obra poética e, também, sobre a recepção de seus textos acadêmicos e de literatura infanto-juvenil. Não sei dizer sobre isso, no que diz respeito a Cangote e a Poema algum basta. As pessoas que leram e vieram falar comigo ou que me escreveram disseram que gostaram – mas foram fundamentalmente amigos. Não tenho ainda um percurso tão extenso e significativo que me permita avaliar a recepção de minha obra literária. Mas quanto à produção acadêmica eu penso que ela tem sido bem recebida: sou convidada com frequência para aulas inaugurais, palestras, bancas, minicursos – então eu suponho que haja algumas pessoas interessadas no que venho elaborando. Há divergências e tensões, mas eu não as entendo como restrições ou desqualificações; pelo contrário. A gente só discute aquilo ao que dá alguma importância. Nesse sentido, posso dizer que sou muito grata a todos que me acenaram com um gesto dizendo “Continue, continue, queremos saber mais sobre isso”. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Sempre há projetos, não é mesmo? Kondo e eu, por exemplo, temos um projeto lindo de exposição relacionado ao Cangote. Quanto a novos livros, além de Poema algum basta, sai este ano o livro Escrever, imprimir, ler: objetos culturais e literatura, que é uma seleção de seis ensaios produzidos entre 2010 e 2016, e que marca meus primeiros anos no magistério superior federal. No Brasil, a literatura (especialmente a poesia) tem um alcance bastante limitado em termos de público. Ao trabalhar com projetos e programas públicos para o livro, a leitura, a literatura, a formação de leitores e a educação literária, como você pensa esse problema? Quais os principais desafios para a edição e recepção de novos escritores no Brasil de hoje? 303

Eu não endossaria com grande certeza essa ideia de alcance bastante limitado. Penso que depende de que literatura e de que poesia falamos. Mas concordo que é preciso avançar. Os estudos que realizei me fazem pensar que a grande lacuna das políticas públicas está em insistir numa relação sujeito-objeto, esquecendo-se de que fundamentalmente a leitura e a escrita são relações entre pessoas, ou, para ficarmos com o Círculo de Bakhtin, relações entre consciências. Sinto muito, mas não sei quais são os principais desafios para a edição e recepção de novos escritores no Brasil de hoje. Defendo, porém, que, no campo das políticas públicas, é preciso quebrar a lógica que concentra a produção e circulação de objetos culturais relacionados ao universo letrado na mão de poucos agentes, em poucos polos. Só para dar um exemplo, penso que não há justificativa ética plausível, por exemplo, para que os livros didáticos não sejam pensados em uma lógica colaborativa entre professores de todo o país, com a curadoria de especialistas, com direitos de reprodução abertos etc. Há desafios, também, em relação à edição e recepção dos escritores “antigos”. Muitos trabalhos de edição são lamentavelmente cheios de problemas mesmo de transcrição, a escolarização tacanha do texto literário repete clichês e estereótipos, a ausência de comunidades de leitores e de um sentido vivo para a leitura literária corrói a experiência partilhada, a vulgarização de teorias anti-intelectualistas e as pedagogias que esvaziam o corpo de conteúdos literários a serem aprendidos e ensinados drenam um tanto da potência da atividade literária. Porém, é preciso estar atento: há coisas interessantes, criativas, resistentes acontecendo ao nosso redor; há coletivos, associações, novas formas de circulação do literário... O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Prefiro não me manifestar sobre este aspecto, neste depoimento que tratei de modo tão pessoal até aqui. Penso que outras pessoas têm pensado o contemporâneo com muito mais conhecimento de causa e muito mais repertório – e nesse sentido procuro ler e ouvir, para aprender. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. No campo da Educação brasileira, em particular, vemos aberrações como o Escola Sem Partido e outros retrocessos propostos pelo governo Bolsonaro. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: qual é a causa de tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Peço desculpas, mas não acho que esta pergunta seja respondível nos limites de uma entrevista (risos). Mas eu aposto na corrosão do projeto de esclarecimento no seio de uma sociedade regida pela lógica do capital. Esgotamos, saturamos – e parimos, como sociedade, coisas terríveis. Mas, sem utopismos nem delírios inconsequentes, é preciso lembrar que a história humana é um campo 304

aberto, não é possível lidar com absolutos, imperativos categóricos. Por isso, eu aposto é na contradição do real, eu creio é na dimensão do incerto. Nada do que virá já existe. Precisamos criá-lo. Vocês, eu, e mais um monte de gentes e livros estamos aqui.

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Mariana Lage Nasceu em Patrocínio (MG), em 1982. Vive em Juiz de Fora (MG). Entrevista concedida a Vitor Cei em abril de 2018. Publicada na Voz da literatura, n. 14, 2019.

Cada escritora possui método e estilo próprios. No poema que abre Le Self Sélavy (Edição independente, 2016), lemos: “verter no papel o que reverte / o espírito e o corpo / despir a dobradura do outro / do que tiver que ser / e do que reveste o ouro”. Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? Comente as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. A escrita poética para mim muitas vezes se parece com uma experiência de transe, ou de mergulho num estado não cotidiano e não corriqueiro de percepção. Alguma amarra é solta, não de forma conscientemente conduzida, e me permito ser mais livre com as palavras e com a percepção do que há. Curioso a primeira pergunta começar com esse poema porque, com ele, aconteceu o seguinte: eu o escrevi, guardei como um rascunho e, quando o encontrei, já não me lembrava a que exatamente me referia – e, como rascunho, não tinha título. Vi alguma coisa interessante ali. Meditei sobre ele e, então, sem muitas respostas, encontrei seu lugar na abertura desse livro Le Self Sélavy, com o título tautológico de “Poema”. A ideia de reversão é muito presente no modo como concebo a filosofia, meu papel como educadora e como crítica e, também, muito presente no que percebo que a escrita faz em mim. A escrita como uma ferramenta que reverte direções ou expõe o avesso do que é possível enxergar. Meu processo criativo é meditativo e, ao mesmo tempo, brincalhão. Medito sobre as palavras, sobre seus usos comuns e tento revertê-las/os ou mesmo implodi-las. Acredito que de alguma forma assumi isso quando escolhi o título do livro-baralho como Truques, catástrofes e tropeços. A primeira palavra que surgiu para nomeá-lo foi “truques”, derivando de outra em inglês que tinha surgido antes: trickster. O trickster tem seu lugar no baralho comum na imagem do curinga. O curinga do meu livro-baralho, por sua vez, é uma carta em branco – que, a depender de como é lida, pode parecer como um engano de edição, um esquecimento, um lapso de atenção. No entanto, é o curinga. É o lugar do truque, de um engano de linguagem que não é inteiramente revelado ou consertado, porque na linguagem poética não há conserto ou sentido estabilizado unívoco, o “correto” – e tomara que permaneça assim, para o bem, acredito, de uma percepção menos tediosa da realidade, de nós mesmos e da própria linguagem. Nesse caso, truques e trickster são palavras que revelam esse anseio de reverter direções, de quebrar códigos e/ou lógicas usuais, de reverter o sentido do esperado, de andar na borda do abismo, ou de redirecionar a percepção do que vem acontecendo. Ao mesmo tempo, esse poema tautológico revela também alguns dos temas mais presentes para mim – pelo menos até agora: a relação com o outro, a atenção constante com o corpo e o espírito (entendido como uma relação com o desconhecido), a linguagem como processo de desnudamento, de si e do outro, e a confiança no fluxo do tempo como “o que tiver que ser”. Por ser mais meditativo, meu processo de escrita acaba por ser também intuitivo. A forma como cada livro surgiu e ganhou forma não foi resultado de

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uma escolha consciente, anterior e/ou exterior ao processo de feitura de cada um deles. Algo como: uma ideia surge e vou seguindo-a, maturando, investigando, experimentando, até sentir que posso parir e mudar de projeto. Mas até o último momento de um livro ir pra gráfica, ele vai sofrendo alterações, cortes, revisões, inserções etc. Às vezes as ideias vêm esparsas, sutis ou fragmentadas, outras vêm no afluxo de um projeto anterior. Sobre as escolhas formais, cabe respondê-las na próxima pergunta. Você é professora, jornalista, artista e escritora, autora de romance (No dorso do Leão, Edição independente, 2013), haikais e poemas (Haikais de (não) amor & outras coisas, Edição independente, 2015; Le Self Sélavy, 2016), livro-objeto (Truques, catástrofes e tropeços, Edição independente, 2017), tradução (Serenidade, presença e poesia, de H. U. Gumbrecht, Relicário Edições, 2016), além de textos acadêmicos, colagens (feitas sob a técnica de Soulcollage) e estêncil. Como ocorrem os trânsitos que você promove entre essas diferentes linguagens? Para cada um desses livros e produções, uma ideia surgiu e eu a segui, guiada muito pelo prazer da experimentação; ver onde poderia dar, sem muita preocupação com o resultado final. Vejo o ato de experimentar como processo e, ao mesmo tempo, como um brinquedo, um jogo, algo com o que me entreter. Sigo a ideia porque me vejo muito envolvida por ela; como se não pudesse evitá-la. Algumas delas foram levadas adiante com um impulso humorístico, outras com um impulso de transformação. O estêncil, por exemplo, é uma derivação recente (2016) de um terrorismo poético mais velhinho, o “Defina Viver”, de 2005 – talvez uma das primeiras coisas que fiz usando a palavra como método provocativo. Esse terrorismo poético é uma provocação para mim mesma, algo sobre o que meditar constantemente; um lembrete; um imperativo para o qual não tenho respostas. Ele surgiu exatamente de uma pergunta existencial e se transformou num cartão de visitas – desses colocados em balcões e que vendem serviços –, deixado de forma aleatória em alguns espaços com trânsito de pessoas, como cinemas e cafeterias. Em 2016, quando morei em Belém, ele foi pra rua como estêncil. O formato desse cartão/terrorismo poético deu lugar ao baralho; um porta cartões que se transformou num jogo de cartas. Sobre escolhas formais, os haikais, por exemplo, surgiram sem pretensão de serem um livro ou de fazerem de mim uma poeta. E aconteceu assim: eu tinha um livro de haikais do Leminski em casa, o Winterverno, uma versão fac-símile com ilustrações do João Suplicy. Por acaso, retomei-o na estante, reli e, nos dias seguintes, brincando com a forma, criei uns três haikais. Gostei do resultado e fui experimentando nesse formato. Os cartões do “defina viver” eram todos datilografados um a um, na máquina de escrever que herdei da minha mãe (e que ela ganhou quando tinha 18 anos, quando se mudou para Belo Horizonte para fazer faculdade). Na época dos primeiros haikais, segui com a máquina, datilografando-os na medida em que surgiam e postando-os no Facebook. Passado um tempo, percebi que tinha um material volumoso que poderia render uma publicação, e como todos eram bem da mesma época, num período em que estava vivendo o fim de uma relação, eles receberam esse título propositalmente nada elaborado de “Haikais de (não) amor & outras coisas”. Eles são uma brincadeira com a forma haikai; muitos deles nem chegam a ser, se pensarmos nas regras tradicionais 307

de composição. Ainda sobre escolhas formais, então, esse elemento da máquina de escrever acabou tendo uma continuidade e/ou um desdobramento no uso do carimbo tipográfico, que utilizei para fazer a primeira edição do livro-baralho Truques, catástrofes e tropeços. O impulso de produção foi brincar com a ideia de reprodutibilidade técnica – que discutimos tanto na estética, não é mesmo? –, embora seja também reprodução manual, quase fordista, que, ao mesmo tempo, dota cada peça de valor único, um valor temporal, sobretudo, de dedicação e cuidado. Então, de novo, há a presença da reversão aqui, da implosão de um princípio, ou ainda, o esgarçamento da ideia até dissolvê-la, ou torná-la sem sentido – que tipo de reprodutibilidade técnica é essa que é tão dispendiosa, que parece impessoal, mas que demanda um engajamento físico e energético para ser realizada, já que a máquina-mecânica ainda precisa da mão e do tempo extenso e atencioso da mão de obra. Uma reprodutibilidade que, no fim das contas, torna o custo do produto livro-baralho bem mais caro do que se tivesse sido impresso na gráfica, isto é, com a reprodutibilidade técnica apurada dos dias de hoje. É um gesto irônico. Quanto às colagens, penso que elas se relacionam com parte da minha formação, que é da análise de imagens e do convívio intenso com obras de arte. Vejo-as mais como exercício criativo, como formas de experimentar com a imagem e com o tempo disponível nos fins de semana, um hobby para combater o tédio ou o estresse. Comecei a fazê-las como parte da análise junguiana que fiz durante 2015. Essa técnica, no entanto, me foi apresentada enquanto morei na Califórnia, em 2014, e com a coincidência de aparecer no processo de análise pouco depois, achei que valia um experimento. Eu me identifiquei com o processo e continuei. Sobre meu “ser artista”, não sei bem. Foi relendo a pergunta que tropecei nessa palavra. Talvez “ser a artista” possa estar a caminho, mas neste momento não me enxergo assim. Sobre esses trânsitos, depois que fiz mestrado, encontrei uma forma bem resumida para descrever minha minibio: “transitando entre arte, filosofia e comunicação”. A arte para mim é o lugar da percepção sensível, da imaginação, mas também da meditação com os conceitos, em suma, com a filosofia: debruçar-se sobre as percepções sensíveis tendo como aparato palavras que têm pulsões filosóficas. A comunicação, que é minha primeira formação – graduei-me em Jornalismo –, é essa parte que me permite muitos trânsitos, entre o visual e a palavra, entre formas distintas de escrita, entre diferentes linguagens; que me permite com muito desprendimento ir atrás do que não sei e ver o que posso encontrar pelo caminho. A faculdade de comunicação me abriu para muitas coisas, uma delas foi o contato com o design gráfico (trabalhei por alguns anos como diagramadora), o que hoje me permite ter mais intimidade com a feitura de livros, com esse aspecto mais gráfico das minhas produções editoriais. E é algo que gosto bastante, e que sinto que poderia ter explorado mais, mas teve um momento em que tive que escolher e foquei na carreira acadêmica. Então, resumindo a resposta, penso que o trânsito me parece algo muito natural, enquanto a permanência numa coisa só me entedia e implode minha pulsão de vida. Tenho que encontrar um prazer no que estou fazendo, nem que seja o prazer de me sentir desafiada, senão a coisa não acontece. E muitas vezes, isso aconteceu com os artigos acadêmicos: não consigo fazer algo meramente técnico, 308

por obrigação de fazer; a intuição e a empolgação têm que vir junto. E tenho percebido que outra faceta de trabalho tem vindo nesse fluxo, a partir do envolvimento e da empolgação, que é a tradução. Cada vez que faço sinto como se desenvolvesse um novo hábito no qual gostaria de viver mergulhada com mais frequência. Truques, Catástrofes e Tropeços tem projeto gráfico de Caroline Gischewski, além de lettering e ilustrações de Roberto Bellini. Le Self Sélavy tem projeto gráfico de Ana C. Bahia e ilustrações de Fernanda Branco Polse. Após essas parcerias e experiências, você percebe mudanças, em seu texto poético, quanto à maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Quando estou fazendo um livro, gosto muito dessa possibilidade de troca com o/a designer gráfico, com a/o ilustrador/a e também com quem aparecer para fazer booktrailer – a dimensão videográfica, e em pílulas, dos livros. Prezo por essa abertura por ser o momento em que a escrita deixa de ser algo solitário. Ela possibilita que o livro se torne mais rico, pois seu resultado visual e final não é o modo exclusivo como percebo meu próprio fazer, pois com a troca poderia enxergar o que não consigo ver com a percepção exclusiva do meu umbigo. O resultado já é menos meu, e se torna algo nosso. Acho que há mudanças, sim, apesar de não saber apontá-las ou pinçá-las a fim de serem expostas com muita clareza. Talvez um bom exemplo seja o convite de parceria feito por uma amiga musicista para escrever letras de música, a Patris Rocha. Esse primeiro convite veio em 2013, na época em que fazia haikais, sem nenhuma pretensão de continuar a fazê-los ou a escrever poesias. Adorei o convite e quis experimentar como seria escrever letras de música. Ainda não cheguei a fazer, mas esse convite me abriu a possibilidade de escrever poesias mais longas que haikais, a experimentar com ritmos, repetições, os sons e as tonalidades das palavras. Outra amiga, a Fernanda Branco Polse, que ilustrou o Le Self Sélavy, também me convidou para compor com ela para seu segundo álbum. Com esse convite, quero experimentar a criação de outras imagens com as palavras, intensificar nas metáforas e pensar em outras construções e outros ritmos – algo que ainda está bem no começo. Estou separando um material para me servir de guia, em especial, cantores-compositores que estão sempre presentes pra mim, como Adriana Calcanhoto, Caetano Veloso, Björk e as irmãs Casady, da banda CocoRosie, mas há também outras referências, como um livro de entrevistas da Hilda Hilst e o próprio trabalho da Fernanda, com seu primeiro álbum Bicho Branco Polse. Sobre as mudanças na forma de escrever, penso que elas acontecem constantemente – no fundo minha satisfação com a minha escrita é temporária, mas também não brigo com o passado. Sobre isso, gosto de um trecho de entrevista da Susan Sontag para a revista Rolling Stone em que ela diz: “escrevo em parte para mudar a mim mesma, de modo que não tenha que pensar sobre alguma coisa depois de escrever sobre ela. (…) Então falar da obra fica um pouco difícil por causa disso – quando as pessoas querem conversar sobre a obra, eu já estou em outro lugar”. E sinto que escrevo como se tivesse o propósito inconsciente de mudar, deslocar, transformar determinado assunto em mim. Falo “inconsciente”, porque o objetivo principal não é me mudar, mas escrever, seguir as palavras, brincar com elas, me ocupar ou me divertir. 309

Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Acho que o começo consciente foi no segundo semestre de 2009, quando escrevi um texto e, logo depois, senti um distanciamento muito grande em relação àquilo. Uma escrita em que eu não necessariamente era eu mesma. Pensei que poderia ser um bom exercício tentar investir naquela forma bem metafórica, ensaística e imagética. Foi um longo processo, na verdade. E ao longo desses anos tenho aprendido assim: escrever e cortar, ler, ler e ler o próprio texto até a exaustão, até que as palavras que restem sejam aquelas mesmas que têm que restar. Aprendo muito com a leitura de amigos, com revisão e edição. Dois amigos com quem aprendo constantemente são o Bernardo R. B., que já revisou alguns textos meus, mas que a simples presença na minha vida já é pura poesia e que todo diálogo me inspira em pensar poeticamente, e com o Rogério Bettoni, com quem tenho muitos feedbacks de todo tipo de texto que escrevo, e a partir desses feedbacks tenho aprendido a limpar o texto, cortar os excessos e deixar as alusões ainda mais alusivas; e a confiar nos saltos. De 2009 a 2013, fiquei preparando meu primeiro livro, o No Dorso do Leão, e a partir dali fui assumindo publicamente a faceta escritora, mesmo sem saber o que viria depois. Sabia que se fosse continuar com romances ou contos, teria muito o que aprender. Já sabia que não sabia fazer bem esse modelo romance e que se acontecesse de novo seria um processo intenso de aprendizado – que teria que deixar acontecer sem pressões e sem pressa. Então, a escrita vem acontecendo como acontece e eu a sigo. Tem um “pseudo-haikai macumba” que diz algo assim: “a bicicleta é meu cavalo, sou o cavalo da escrita”. Meu aprendizado tem sido me preparar para estar cada vez menos neurótica, menos dramática, menos cheia de reticências, justificativas e quereres para que, quando ela vier, eu possa segui-la. Em especial, saber ouvir o que ela me diz. Os poemas de Le Self Sélavy fazem referências irônicas a Facebook, “divas do Instagram”, “sofá das redes sociais” e “universo atolado em selfies”. De modo geral, como você analisa o seu engajamento e o de outros escritores contemporâneos em redes sociais? A divulgação de textos nesse espaço influenciou de algum modo seu processo criativo? As redes sociais, a internet e inúmeras mudanças na comunicação que temos visto e vivido na última década inspiram muito meu papel como professora em sala de aula. É de lá que colho exemplos e sigo atenta. Claro, não apenas como fontes de informações jornalísticas, mas, em especial, de comportamentos sociais, das relações interpessoais, do que se escolhe dar mais atenção e idolatrar, do que se escolhe inviabilizar, emudecer, ignorar, do que se escolhe rechaçar. Estudei e continuo pesquisando estética e filosofia da arte; então, essas fontes são um prato cheio, para qualquer aula, desde Platão a Flusser, passando por Benjamin e Heidegger. Então, acredito que a presença do tema das redes sociais percorre esse trânsito até chegar na escrita poética e quando chega lá já se tornou deboche, como “as divas do instagram, cansadas de pousar o zeitgeist no novo milênio”. A divulgação de texto online influencia sim a escrita, mesmo que seja apenas na forma de uma faísca, um impulso para continuar a partir de retornos posi310

tivos. O livro Haikais de (não) amor & outras coisas pode ser um exemplo aqui. Os feedbacks me davam impulso para sustentar a brincadeira, até que o volume das imagens de poemas datilografados me deu um bom material para pensar numa publicação. Por outro lado, é claro, a divulgação de outros escritores me ensina muito como compor – aprender na diversidade de possibilidades. Não sei avaliar meu engajamento ou de outros escritores nas redes sociais. Há muitas formas de estar nessas redes, como o Medium, as newsletters, as revistas especializadas, os blogs dedicados ao assunto. Claro, circular nesses meios aumenta o espectro do diálogo e, para mim, o texto interessa como diálogo. Escrevemos para sermos lidos e também para pensarmos diferente – mover. Essas articulações online para se tornar visível e legível são estratégias para ter contato com quem quer nos ler. Nesse caso, as redes sociais podem ser uma ferramenta de divulgação, ou um meio de manter o diálogo aberto e acontecendo tanto com o público quanto com outros escritores e poetas. Há muitas formas de usá-las, e vejo que cada escritor vai desenvolvendo as suas. Como no Instagram, por exemplo, há perfis só para postagem de poemas, outros só com divulgação de livros; há poetas que fazem colagens, outros que não postam nada de poesia etc. Penso que não existe receita. E o uso dessas ferramentas varia muito de acordo com o que cada escritor quer em termos de retorno ou alcance. Meu uso das redes sociais não é direcionado apenas para a escrita. Neste ano, no entanto, criei uma newsletter – chamada Tonalidades afetivas – mais direcionada para divulgação de textos; um meio para me manter num certo tipo de escrita de que sentia falta, que é a crônica e o ensaio, mais livre e dialogado. Tenho visto que as newsletters estão voltando como meio de comunicação. É algo que cada um escolhe receber na caixa de e-mail e ler no tempo vago que tiver – sem correr o risco de se perder no fluxo de postagens gerais das timelines das redes sociais. Os poemas de Haikais de (não) amor & outras coisas e Le Self Sélavy fazem referência à religiosidade oriental: Buddha, dharma, maya, satori etc. Como a religião influencia a sua escrita? O Zen-budismo e o Sikh Dharma são duas vivências da espiritualidade que me atraem muito e que têm feito muito sentido na minha vida. (Já vi alguns teólogos dizendo que Sikh Dharma e Budismo não são religião, que são estilos de vida espiritual, mas não quero entrar aqui no debate específico dessa distinção entre espiritualidade e religião). Eu me aproximei do Zen em 2009, fiz algumas práticas, mas me encontrei mesmo foi na prática do Kundalini Yoga – o que me levou para uma vivência mais intensa do Sikh Dharma. Então, o Zen permaneceu como leituras e perspectivas de pensamento que me desafiam (como o koan) e tonificam meu estar no mundo, embora eu não mantenha uma prática diária zen-budista. O contrário acontece com o Sikh Dharma. Eu o conheci por meio do Kundalini Yoga e mergulhei nele completamente a partir de 2014, assumindo como parte diária da minha existência – o turbante é um símbolo disso. Sendo uma coisa que estrutura minha vida e minha percepção de mundo seria impossível excluí-la dessa escrita que passa por mim. O que consigo dizer sobre isso de maneira resumida é que o Sikh Dharma e o Zen-Budismo têm estruturas de pensamento paradoxais e enxergam a realidade de um modo nada clichê e superficial. Também me atrai nessas perspectivas 311

dhármicas o reconhecimento de que a escala do que é conhecido é muito menor do que o desconhecido. São relações com o que existe que não se resolvem na racionalidade, numa lógica cartesiana e/ou positivista, tampouco romântica ou idealista. Por isso, são tão desafiadoras e radicais. Um koan que gosto bastante é: “qual é o som de uma mão aplaudindo”. Koans são comandos sobre os quais os discípulos zen devem meditar, que não podem ser “resolvidos” com o uso do pensamento; são alcançados a partir da prática e de uma entrega meditativa. Então, penso que essas perspectivas dhármicas amplificam o que estudo e pratico como filosofia, empurram o pensamento filosófico para a borda do abismo e o questionam sobre seus limites, perguntando – quase com a faca no pescoço – se é possível ampliá-los. Penso que quando a escrita traz esses elementos é uma forma de falar dessas experiências, digeri-las ou nutri-las; meditar sobre elas até que se ouça o som de uma mão aplaudindo. Quase todos os seus livros tiveram edições independentes. Quais os principais desafios para a publicação de novos escritores no Brasil de hoje? Falando a partir da minha experiência, um desafio é a maturação da própria escrita; ter espaços de troca, feedbacks mais elucidativos, críticos, mas também atentos às características que cada escritor traz consigo ou que escolhe como vertente de investigação. O cenário pode ter mudado nos últimos anos, uma vez que hoje vemos mais espaços de escrita coletiva, de saraus, slams poéticos e oficinas criativas surgindo e se sustentando ao longo dos anos. Uma vez maturada essa escrita, sinto que os caminhos vão se abrindo. Não sei, na verdade, ainda sinto que minha escrita está maturando. Mas se olho o trabalho da Ana Martins Marques, ou do Victor Heringer, tenho uma sensação – é só uma sensação – de que quando a escrita está bem maturada, quando o estilo está ali tão particular e original, os desafios não devem ser o processo de publicação. Mas aqui já estou imaginando. Na minha experiência, fazer publicações independentes me permite experimentar e seguir com o meu ritmo em cada projeto. E essa escolha, no começo mesmo, foi bem consciente: “não vou submeter a nenhuma editora porque se receber um não vago desisto do livro”. E eu gostava do livro, mas tinha ainda muito receio se era isso mesmo que deveria fazer. Ao mesmo tempo que o lia e o achava interessante, também pensava que aquilo tudo poderia ser de uma pieguice sem tamanho, que ainda não estava sendo capaz de ver. Ao mesmo tempo, queria assumir a responsabilidade por aquilo. Mesmo que fosse um completo desastre. Era um desejo ambíguo. A vontade de investigar essa ambiguidade pode ter contribuído para levar adiante a edição independente. Vendo da perspectiva de hoje, pode ser que o desafio daquela época fosse ter confiança suficiente para seguir a intuição, e, no desenvolvimento dessa confiança e dessa intuição, tenha escolhido traçar uma rota com o apoio das leituras e retornos de pessoas em quem confiava; e não apenas submeter o texto a um editor e/ou avaliador que desconhecia. Daí nos livros que se seguiram ao No dorso do leão, a forma de publicação independente continuou como naturalidade de experimentar em novos formatos de publicação, de brincar com os papéis, os tamanhos, convidar pessoas etc. Imagina apresentar um livro-baralho para uma editora? Um dos próximos livros que estou fazendo será uma mistura de formatos, entre um jogo, fotografia e poesia. Vamos 312

ver como será, ainda está em processo. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Qual é a sua perspectiva sobre essa questão? Na maior parte da minha vida tive muito pouco contato com poesia. Os poucos poetas a que tive acesso até por volta dos trinta anos, e que sentia que mais me chamavam para o texto do que me expeliam, eram Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Paulo Leminski. Talvez a resposta para essa pergunta esteja na relação que estabelecemos com a linguagem, sobretudo, a relação que nos ensinam a ter com a linguagem – e que muitas vezes aprendemos através não do que é comunicado, mas do que é vivido. Como vivemos em sociedade a nossa relação com a linguagem? Que tipo de abertura imaginamos que ela tenha? Aliás, que tipo de abertura nos permitimos imaginar que ela tem? De que modo estamos conscientes dos usos que fazemos das palavras? Essa queda da linguagem no uso meramente técnico e/ou cartesiano, pautado pela objetividade e num falar que não gere sombra de dúvida, pode estar na raiz desse pouco acesso ou pouco apreço pela poesia. E essa mudança de comportamento ou de intensidade de atenção dada a ela pode acontecer, acredito, a partir da educação, mesmo que ela, como um projeto de nação, seja algo apenas retórico. Esse trabalho em sala de aula pode ser minúsculo em escala, mas é o que conseguimos ver de forma mais concreta em termos de mudanças individuais, que reverberam socialmente de alguma forma. Como você vive o ato de recitar? Recitar é recriar? O ato de recitar para mim é vivido como performance da fala. Não a recitação de um texto impresso, embora isso aconteça às vezes, mas sim experimentar com o jogo das palavras em voz alta na medida em que o pensamento pensa e caminha (cavalga) na voz. Gosto também da destreza das brincadeiras e jogos de palavras: as piadas internas que só fazem sentido num momento muito específico das conversas (ou de uma aula expositiva): essa possibilidade de estar muito presente e atenta ao volume da voz, ao que é dito e a como o que é dito poderia ainda dizer de outro – e assim, reverter as direções. Dar um touché, ou realizar um corte transversal. Isso me diverte. Tenho pensado que a dinâmica de sala de aula é uma performance vocal. Ainda que Paul Zumthor tenha pensado na vocalidade para as comunicações poéticas, o que ele diz sobre performance, sobre a forma (ou sentido poético) que se dá no instante da enunciação e da percepção, sobre o engajamento corporal, a presença, ou melhor as copresenças, se aplica também a esse contexto de ensino. Cada performance, como ele diz, convoca tudo em nós e coloca tudo em causa. Ela é mais um desejo de realização do que concretização de uma forma estável, permanente. Relacionando minhas pesquisas em Zumthor com as de Heidegger, a performance é a condição de abertura. Ali nada se repete de forma idêntica; e ela acontece ao mesmo tempo em que se retira. Esse nomadismo da voz pode nos fazer pensar sobre o recolhimento – seu lugar de trânsito (da voz) que aponta para um silêncio em que a linguagem repousa ou se retira após o acontecimento (poético ou apropriador). Ao mesmo tempo, ainda sobre o recitar, sim, penso que recitar é recriar. 313

A performance ativa outra forma, ainda que o texto esteja lá fixo sobre o papel. Como dizia Zumthor: “a escrita é fixa, a voz é nômade”. O volume da voz e o engajamento do corpo alteram aquilo que é comunicado, sobre isso ele insistia com frequência. Muitas vezes ler um poema em voz alta te faz de fato escutar o poema, vê-lo de outro modo, sua forma poética acontecendo para seus ouvidos. É preciso experimentar com a voz para que ela também seja um veículo mais lapidado da poesia. Ainda não cheguei lá. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras artes e linguagens? Quando terminei o Le Self Sélavy, comecei outro livro que, por enquanto, se chama 108 abismos (sobre a queda). Reformatei o texto recentemente, mas quero ter mais tempo para investigar esse tema da queda e dos abismos; ter mais referências, livros, filmes etc., para então poder avançar com a escrita. A inspiração veio de uma leitura existencial sobre essa palavra, influenciada pelos estudos em Heidegger, mas também a partir de trânsitos com o Kundalini Yoga e o Sikh Dharma. Tenho também outro livro em processo, dessa vez de contos, mas está há mais tempo parado. Ele se chama O álcool da poesia. Outro dia, relendo-o, entendi o estilo do texto, o tema principal (sua busca, digamos assim) e o que lhe dá unidade. Por outro lado, o projeto do abismo tem me ocupado mais nos últimos meses. Tenho desenvolvido também umas ideias para performances, objetos e jogos. São projetos ainda em desenvolvimento. Um deles está em fase de acabamento e se chama queda-palavra. Acredito que esse projeto vai se desdobrar em livro, livro-objeto e foto-livro, em versões variadas, mas relacionadas a partir desse objeto-jogo que está sendo finalizado no próximo mês, se tudo correr bem. Quanto aos demais em desenvolvimento, prefiro dar mais detalhes quando estiverem prontos para serem expostos e/ou publicados. De toda forma, a vertente de criação em jogo e performance também tem me animado bastante. É preciso cavar um tempo em meio aos afazeres para que a vida criativa vaze e se desdobre. Nem sempre é possível. Mas dou umas escapadas. Autores como Antonio Candido e Paulo Arantes afirmam que a filosofia sempre ocupou um lugar subalterno na evolução de conjunto da cultura nacional. Para eles, a literatura, mais do que a filosofia, seria o fenômeno central da vida do espírito no Brasil. O que você pensa a esse respeito? Primeiro, acho que é preciso entender a que eles se referiam quando diziam isso, ou que sensação (que disposição existencial – Stimmung) os motivava a pensar assim e a dizer isso. Se o que é dito implica que a literatura seria como que a casa em que, no Brasil, o espírito habita e encontra espaço, me perguntei se isso não seria uma injustiça com a canção. Não seria a canção esse habitat como espaço crítico do pensamento em suas convulsões por mudanças nacionais? Claro, toda generalização é injusta. E não sou uma estudiosa do impacto social das canções ou dos livros de literatura. Acho difícil pensar onde está a filosofia no “conjunto da cultura nacional” se ela não é pensada como instrumento da educação e se a educação também não é – quando foi? – valorizada como instrumento filosófico, de postura crítica no mundo. Aí, sim, nesse contexto, talvez a literatura seja o espaço que os escritores 314

encontraram para exercitar esse pensamento insatisfeito com a forma como as coisas são, um pensamento ansioso por transformações. Mas esse habitat seria acessado e acessível pelos leitores? Quem seriam os que têm acesso? Nessa hora, penso que algumas canções como as do Chico e do Caetano (para pensar numa contemporaneidade mínima com Candido e Arantes – mas que hoje poderíamos citar outros nomes), têm mais penetração no tecido social do que a literatura. E a canção, tenho a impressão, penetra sorrateiramente, e pode ser que plante implosões na linguagem a partir de dentro. Pode ser. Estar em sala de aula é uma experiência reiterante a cada semestre – a cada nova turma – da percepção de que o que se chama aqui de espírito não tem lugar. Podemos chamar também como uma disposição existencial diante do mundo que instaura a pergunta como um comichão permanente; o questionar que se enraíza nesse ser pensante e desejante como ferramenta e como atuação, a cada instante, diante das inúmeras pequenas opressões que vemos no dia a dia, em vários tipos de relações e em diversos ambientes sociais. Essa vida crítica do pensamento, me parece, encontra pouco lugar na existência individual, social e coletiva, como parte da formação de cada um. A educação deveria ser o lugar do espírito. Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta ou é problematizado em sua escrita? Bela pergunta. A questão das diferenças de tratamento – profissionais em especial, mas sociais como um todo – baseadas no gênero é, claro, algo que me afeta e ao qual fico bastante atenta. É algo que me irrita tanto que talvez esse seja o motivo que não o tenho levado para escrita. Faço deboches irônicos constantes durante as aulas – como, por exemplo, quando a tradição filosófica fala “homem”, é isso mesmo, não é a ser humano que ela estava se referindo ou queria dizer, como a gente tenta frequentemente “consertar” ou “atualizar” a linguagem. Penso muito sobre o lugar do feminino, do princípio feminino como parte de uma polaridade que está em tudo, mas escrevo muito pouco a respeito. Livros como Teoria King Kong, de Virginie Despentes, Argonautas, de Maggie Nelson, e Os homens explicam tudo para mim, de Rebecca Solnit, alimentam meu pensamento em torno desses lugares, dessas distinções que percebemos no dia a dia entre o que é considerado socialmente como próprio do homem (como o lugar da masculinidade) e o que é considerado socialmente como próprio da mulher (como o lugar idealizado da feminilidade); e a partir dessas distinções, em sua maior parte arbitrárias, derivam-se as diferenças de tratamento entre gêneros que menosprezam, abusam ou depreciam a mulher, ou o que parece ser entendido socialmente como feminino. Essas distinções são, traçando um paralelo, como o predomínio da linguagem técnica sobre a poesia, tamanho seu empobrecimento da realidade e reducionismo da percepção. O No dorso do leão aborda o tema do feminino; o Le Self Sélavy traz uma eroticidade feminina-masculina, oscilante. Talvez, no meu texto, eu mostre que desejo um outro feminino – sobretudo o vivo de uma forma quase queer e gosto desses trânsitos entre masculino e feminino em mim, sem ter que apaziguá-los ou resolvê-los como se fossem uma equação que precisa de uma resposta exata, reconhecida socialmente, estável e universal. Nesse sentido, preferiria ver essas energias, psiques ou polaridade do masculino e do feminino 315

como um koan. Pode ser que meu texto transpareça esse desejo de forma nada explícita, não tenho certeza. E talvez ele esteja lá como pano de fundo. Mas se for isso mesmo, o motivo pode ser que meu desejo de experimentar esses trânsitos somente seja possível mesmo no plano da vida, e menos na dimensão das palavras articuladas em discurso sobre o papel – ainda que poético. Sobretudo, não estou interessada na obviedade dessa dicotomia socialmente condicionada. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Interessante essa pergunta vir logo depois da que aborda o machismo. Na pergunta de cima, me lembrei de uma referência e não soube como incluí-la no meio do raciocínio da resposta. Há um mito babilônico datado de 1250 a.C., o mito de Marduk e Tiamat, que Walter Fink trabalha como evidência de uma crença enraizada na psique da sociedade em torno da violência redentora. Resumindo bastante: a crença de para que haja ordem é preciso investir violência contra o caos, e, nesse mito, o caos é representado pelo feminino, pela figura da mulher; e o homem, claro, é representado como o princípio da ordem e da luz. Então, não sei se é uma questão sobre onde será que essa violência estava escondida, mas: onde ela sempre esteve presente e agora não temos mais condições de fingir que não vemos? Sem querer aqui expor explicações longas sobre causas e consequências, vivemos num período histórico em que não é mais possível tapar o sol com a peneira. Não é possível dizer que não sabemos, que não imaginávamos que o que fazemos é antiético e opressor; que nunca nos ocorreu que as identidades e os modos de vida são infinitamente múltiplos e diversos e que é preciso acima de tudo assentar nossas relações em sociedade no respeito recíproco e no direito soberano à dignidade. Tenho a impressão constante de que chegamos num momento da história em que a retórica não funciona mais: todas as máscaras caíram e estamos todos de bunda de fora. Uma resposta que explica as causas disso poderia ser o excesso de informação, em que tudo e qualquer tipo de coisa vêm à tona. Então, nesse cenário, o mais digno a se fazer, ao invés de tapar o sol com a peneira ou usar a retórica para camuflar a bunda de fora, é admitir o mais claro e evidente – e começar a transformação interna que a queda das máscaras demanda como próximo passo. Aqui, gosto de pensar com Siddarta Gautama Buda: não haverá paz externa sem paz interna; similarmente, não se pode fazer transformação social e coletiva significativa sem mudança individual substancial. Comecemos reconhecendo que as máscaras caíram. E, como diria Vilém Flusser, que o espelho está virado.

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Marília Carreiro Fernandes Nasceu em Pancas (ES), em 1989. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei entre outubro e novembro de 2017.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Quais são as opções formais que norteiam seu projeto literário? A concretização das ideias se dá, geralmente, quando estou lendo teoria. Pego a ideia que surgiu em qualquer lugar e eu anotei para depois desenvolver e, com o impulso do estudo, o texto surge. Observo muito as pessoas e suas particularidades. Escuto muitas delas. Algumas eu aproveito e jogo no papel. O processo quase sempre acontece dessa forma – mesmo que o texto tome um rumo completamente diferente do seu esqueleto. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Não sei se me percebo escritora, para ser sincera. Não me lembro exatamente de quando comecei a escrever, mas foi na faculdade que os textos tomaram forma e eu fui entendendo o que gosto de fazer. Durante a graduação, finalizei meu primeiro livro, o AmorS e outros contos (um título bem juvenil, a propósito), pela Secult/ES, e, na fase da impressão do livro – na época a Secretaria era responsável por essa parte –, fui passar as férias na casa dos meus pais. Conversando com minha mãe, falei de um dos contos do AmorS, o P, sobre um pistoleiro, e ela me perguntou se eu não tinha vontade de aumentar aquela história. Daí surgiu o Opala Negra. Seu romance de estreia, Opala Negra (Pedregulho, 2013), que foi inspirado em causos recorrentes em Pancas e no noroeste do Espírito Santo, pode ser inserido na tradição literária do Regionalismo. Por que você escolheu adotar essa vertente que acumulou largo espectro de considerações negativas de parte da historiografia literária brasileira? Desde muito nova eu ouvia as lendas do garimpo. Pancas era uma vila de garimpeiros antes de se emancipar. Sempre me interessei pelas histórias dos que cuidavam das terras, conseguiam muito dinheiro com pedras preciosas e, mesmo assim, não tinham nada. Nas terras estavam essas pedras e as pessoas brigavam por isso. Para ter a terra, faziam o que fosse preciso. O mais estranho é que isso aconteceu há pouquíssimo tempo e acho que o que me impactou foi o desmembramento desses conflitos, que resultavam, sempre, em desavenças. Quando comecei a desenvolver o Opala Negra (o conto P está inteiro nele, como uma fala do Justino, o pistoleiro), resolvi tratar a pistolagem e o garimpo da forma como as pessoas da minha cidade viam naquela época, por volta de 1960. Minha mãe foi uma grande fonte de pesquisa, pois se mudou para a cidade ainda criança, lembra de muitos detalhes e pôde me ajudar na construção de algumas partes. Alguns lugares eu mantive o nome original. Todas as personagens são 317

ficcionais. A voz do texto é inspirada em minha avó, que trabalhou durante muito tempo como escrivã. Acho que tudo isso contribuiu, de alguma forma, para que o regionalismo estivesse presente no romance. Você também escreve em blogues. As novas tecnologias exercem alguma influência ou interferência em sua escrita? O que mudou na (e para a) literatura com o advento da internet? Muito é facilitado para a produção e divulgação da literatura. Entretanto, tudo é mais líquido. Eu vejo imediatismo, e muitas vezes falta um burilar antes de publicar. Tento fugir disso e fazer com que os textos que escrevo fiquem concisos, certeiros. A inspiração, se é que ela existe, está fora da internet para mim. Não consigo produzir se fico em alguma rede social, ou o que produzo a partir dessas experiências são textos quase sempre sobre a superficialidade e o vazio. A literatura, com certeza, está mais difusa. Em contrapartida, muitas vezes, descartável. Como você avalia a recepção de sua obra? Meus dois livros tiveram tiragens pequenas: do AmorS, tive acesso a duzentos exemplares; e fiz trezentos do Opala. Para um país do tamanho do Brasil, essas tiragens são pequenas, mas suficientes para um início. Os livros estão espalhados por aí, disponíveis em e-books e as críticas são boas. Mas não sei se acredito muito porque todas são feitas por conhecidos. E conhecido é sempre suspeito. Que autores brasileiros contemporâneos você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Há uma produção substancial de novos autores. É muito bacana isso, porque há uma infinidade de opções de leitura e estudo. Tenho observado, em minhas buscas, que muitos dos livros têm uma espécie de retrato do cotidiano quase sempre urbano (considero o espaço urbano um bom lugar de escrita: ele sugere encontros das problemáticas mais comuns) e, em sua maioria, narrado em primeira pessoa. Abordam, de forma branda, temas sociais e políticos. O foco é nas próprias vivências e no que se tira delas. Às vezes não sai exatamente como se ambiciona. Mas o lado bom é que sempre haverá leitor para todo tipo de texto. Agora, aproximando a pergunta, consigo citar alguns dos últimos autores que li e gostei bastante, daqui de perto: Sérgio Rodrigo, Hugo Estanislau, David Rocha, Barbara Depiantti, Lucas dos Passos, Sarah Vervloet, Wladimir Cazé, Casé Lontra Marques, Isabella Mariano, Miguel Marvilla. Rompendo pequenas fronteiras, Angélica Freitas, Conceição Evaristo, Reginaldo Pujol Filho, Milton Hatoum... a lista é enorme e atemporal. Pensando como autora e editora, quais são os principais desafios para a edição e divulgação de novos escritores no Brasil de hoje? A Pedregulho existe desde 2013. São algumas dezenas de livros publicados e muito trabalho. Há uns dois anos li uma declaração de uma grande editora/ distribuidora sobre a crise no mercado da literatura. O que aparentemente era novidade para ela, para as editoras independentes sempre foi algo que acompanhou 318

a produção literária, lado a lado. Apesar disso, vejo leitores investindo na diversidade da produção literária. As editoras independentes, que publicam cerca de duzentos, trezentos exemplares por tiragem, são responsáveis por movimentar e dar vida a grande parte do cenário literário brasileiro. Há uma força e uma peculiaridade no trabalho dessas editoras que não há [mais] nas grandes empresas do ramo. O autor iniciante, por exemplo, se reconhece no outro que acabou de ser publicado; ele vê uma possibilidade real e bem próxima de também ter o seu projeto transformado em livro. E o mais interessante é que o contato com a editora é feito no lançamento de outro autor, em qualquer evento de literatura ou mesmo até numa conversa informal de bar. Independentemente da forma, é de uma maneira muito mais próxima, leve e tão séria quanto em qualquer outra editora de grande porte. Se formos colocar na ponta do lápis, e com base na minha pequena experiência com a Pedregulho, uma editora independente ganha pouco se dispõe o seu catálogo em livrarias – o que é bom para a divulgação da editora, mas financeiramente não é a melhor saída. Muitas livrarias trabalham em regime de consignação, e daí sai uma boa grana (para elas). A comercialização é um pouco mais complicada, mas adaptável no caso das editoras independentes. Um bom lugar para venda de livros hoje é a internet – às vezes é muito mais recompensador do que a própria consignação em livrarias. Outros que auxiliam muito são os eventos, também independentes, feitos por pessoas com a mesma estrutura empresarial. As pequenas editoras ganham em muitos aspectos, como o investimento em projetos gráficos diferenciados. A Pedregulho faz questão de manter um contato direto com o autor e deixar que ele participe dos processos de montagem do seu livro. Consideramos bastante importante esse contato. É necessário que o autor veja o seu trabalho sendo valorizado antes de ser impresso. As pequenas tiragens são supervisionadas com mais facilidade e carinho. Isso, sem dúvidas, evita uma produção barata e ruim. Se você apresenta uma obra com um projeto gráfico pensado exclusivamente para ela, com certeza ganhará leitores espontâneos. A literatura feita de forma independente, para mim, é a mais valiosa de todas. As grandes empresas do mercado literário provavelmente já perderam o encanto de ver um livro pronto. A coisa ficou mais comercial. Para mim, como editora, é de disparar o coração quando um livro sai da gráfica. Você está escrevendo algum livro no momento? Tenho um projeto híbrido de conto e história em quadrinhos. É diferente de tudo o que já fiz, faz uma “colagem” de literatura e arte que eu gosto bastante. O principal objetivo é acessar diversos públicos com esse livro. Se tudo der certo, em 2018 ele sai. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Toda vez que penso nesses absurdos que acontecem no Brasil, me vem 319

este trecho de A hora da Estrela: “Pois que a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. (...) Ela falava, sim, mas era extremamente muda”. A dimensão que tomou a propagação dos discursos de ódio no Brasil é assustadora. As pessoas não utilizam o maior poder que lhes foi dado, que é formar suas próprias ideias sobre as coisas. Muitas só reproduzem o que está pronto, feito, dito, sem refletir a respeito do que gritam ou escrevem aos quatro ventos e das consequências das atitudes que tomam. Uma massa que não sabe o que busca e muito menos o que é, assim como Macabéa, a personagem com atos previsíveis, dominada, subalterna, que somente pratica a reprodução dos discursos e estruturas e que não tem a plena consciência do mundo a sua volta. Parece brincadeira, mas é cruel ver que muitas pessoas evitam pensar. E isso cria qualquer monstro. A estupidez de não abrir os olhos ou não querer se esforçar para tal revela esses personagens em todos os âmbitos. Tivemos, nos últimos tempos, uma ascensão maravilhosa de diversos grupos sociais. Da mesma forma que houve essa elevação, apareceram pessoas que usufruem de cargos consideráveis para manipular, seja por medo, por conservadorismo ou burrice mesmo, grande parte da população. Esses indivíduos combatem o novo (e, muitas vezes, benéfico para a sociedade) com a ignorância. E querem levar cada vez mais pessoas com eles. Pessoas essas que, muitas vezes, nem sabem o que querem, mas acabam indo porque é mais fácil reproduzir um discurso do que criar um.

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Marina Moura Nasceu em São Paulo (SP), em 1989. Vive em São Paulo (SP). Entrevista concedida a Vitor Cei em outubro de 2017.

No poema “Parto”, menção honrosa no concurso “Poesia à Flor da Pele”, promovido pela Geração Editorial em 2012, o eu-lírico afirma: “A poesia nasce pequenina frágil ágil / Vai crescendo entre meus órgãos dilacerados // Urra vagidos no cio da perpétua noite / Nasce escrava atrelada aos grilhões / das palavras apodrecidas no léu  do esquecimento”. Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? Comente sobre as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. O verso escolhido define muito da minha obra poética. Poesia incontida, irreprimível. É o grito, o vagido, a anunciação de mim, de meus anseios ou marcas. Ele vai num “crescendo”, assim como a poesia chega para e em mim, depois de algum processo ou fato que eu já estava digerindo surgir e querer ser externado com força. Ou após algum momento de contemplação – sobre algo que fisgou meu olhar repentinamente. Sou tomada por esse algo, quase possuída por esse algo. Escrevo num fluxo, sem pensar. Se alguma edição é feita depois, costuma ser pontual. Sobre uma palavra que esperava mas que não era bem aquela. Troco. Ou se faltou a força que desejava imprimir assim que fui tomada pela ideia. Incluo. Se há um verso que daria outro poema (isso é mais raro), reservo ou faço o texto no mesmo momento – isso acontecia mais no passado. Geralmente os poemas nascem prontos.  Sobre as opções formais, são norteadas primeiro pela intuição. Regidas geralmente pelos temas que escrevi acima. De repente sai uma coisa mais concreta. Gosto de trabalhar o simbólico, modificando a forma dos poemas a fim de remeter a imagens determinadas ou então de jogar muito sério com as palavras, formando outros sentidos por meio de leves intervenções, como se tudo estivesse muito próximo. Por exemplo: (d)existência; v.ida (esta forma roubei de um amigo poeta); ar(dor). Com relação às temáticas, bem cedo notei minhas tendências não calculadas por assuntos “malditos”, complexos, contraditórios e essenciais. Vida e morte. Dualidade. Místico com a razão. Desejo e as negociações impossíveis, impassíveis.   Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Percebi que a escrita fazia parte de mim quando notei que era a atividade que mais fazia sentido em minha vida. Não consigo ficar sem digerir impressões do mundo, e a escrita é forma de lançá-las para fora. Posso garantir que a escrita não veio da demanda do outro. O outro foi estranho para mim até bem pouco tempo. Hoje vejo o outro com curiosidade. Pessoas me interessam. A História e a construção de cada um me interessam, para além das concepções mais rasteiras. O caminho que foi se construindo é para a vida. A construção de quem 321

escreve é contínua, porque ela passa pela aquisição de conhecimentos via leitura de outras vivências (por escrita, relação ou contemplação). A inauguração de minha escrita ocorreu aos catorze anos com poemas horrorosos de amor. Digo, românticos e ponto. Que para mim são poemas frágeis. Nada é romântico e ponto, o amor dói! E é complexo. Então, fui trabalhando em cima dessa escrita para que refletisse ao máximo minhas impressões, que não eram, assim, simplesmente flores – sem espinhos, seiva, sem as mãos calejadas do processo de plantio. Poesia boa deve gritar de complexidade, deve escarafunchar feridas. E ainda assim ela pode ser de amor. Mas não me venha falar que amor é alegria e só. Segui uma fase de consumição de poetas que modificaram minha escrita, ajudando-me a descobrir como potencializá-la, a fim de que desse conta de transmitir com o máximo de força a ideia que nasceu vívida em minha cabeça. A sequência foi mais ou menos esta: Vinicius de Morais, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Baudelaire, William Blake, Ana Cristina César e hoje consumo muito Roberto Piva e fico bestificada com Luis França, um escritor fabuloso que permaneceu à sombra do reconhecimento literário por ter passado por internações e ter “ficado de fora”. Mas gostaria de saber mais sobre ele. Ana Cristina César me marcou um pouco também, com menos intensidade. Mais pela história do que pelos textos. Mesmo assim, duas vezes me disseram que eu escrevia mais ou menos como Cristina e eu chorei (porque liguei-a à figura do escritor, que está sempre tão perto da loucura e da morte...). Minha trajetória literária, no fim, foi e é contínua. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? O machismo afeta minha escrita quando o machismo me afeta. Meus textos, jornalísticos ou literários, refletem o que sinto sobre o machismo: angústia, raiva, inconformidade, e por aí vai. Fico contente com o fato de as mulheres estarem ganhando cada vez mais espaço na escrita, trabalhando o tema que entenderem da forma como entenderem. Antes eu achava que existiam muitas mulheres que “viviam experiências como Bukowski mas que por algum motivo não podiam narrá-las como ele”. Isso é tolice minha, ainda bem que mudei ao ver que as mulheres podem alcançar níveis complexíssimos na escrita e na vida. Você publica poesia e prosa em blogs e redes sociais. As novas tecnologias exercem alguma influência ou interferência em sua escrita? O que mudou na (e para a) literatura com o advento da internet? A tecnologia não muda em nada minha escrita. Escrevo em papéis, guardanapos, no celular e na própria pele quando não consigo nenhum outro “recipiente”. O que vale é a ideia, é sair – vomitar, narrar, falar, expor, botar pra fora. O processo de publicação é um passo que vem depois da escrita. E aí tanto faz se vai ser na parede, no livro, em uma revista impressa, numa tatuagem, num muro ou no meio digital. O interessante do digital é que o conteúdo fica lá, disposto, e pode percorrer caminhos inimagináveis, sendo acessado e transmitido por pessoas que não conheceriam o conteúdo se estivesse em outro meio. O digital é importante porque sustenta (guarda, documenta) e amplia poder de divulgação. E isso está ligado ao que mudou na literatura depois do advento digital, que é sua pergunta. O meio digital permite formação de redes, então há escritores que formam redes. 322

E é mágico conhecer pessoas que estão escrevendo ao mesmo tempo que você, respirando as ideias daqueles tempos, séculos, as mesmas pequenas e grandes tragédias e alegrias. Mas isso não altera sua forma de escrever. No passado, escritores trocavam cartas sobre o ato de escrever. Hoje podem escrever e-mails, isso é interessante. O perigoso é que a internet, com o “tempo rápido” que lhe é característico, talvez induza as pessoas a escreverem com menor atenção, disponibilidade ou de maneira menos derramada do que fariam por meios como cartas. Como você vê a recepção de sua obra? O que mudou depois que você coorganizou o livro Poesia Gay Brasileira, que inclui poemas de sua autoria, prefácio de Jean Wyllys e orelha de Natalia Borges Polesso? Existem escritores que gostam de escrever profundamente, fixando-se em questões tensas como a loucura, os impulsos animais, a morte, assim como existem leitores que apreciam estes temas. É o que me deixa contente, quase como a “tampa da panela”, quando pensamos em pares amorosos, seguindo o dito da avó.   Depois que coorganizei a antologia Poesia Gay Brasileira com Amanda Machado, minha percepção sobre a retratação de vivências homossexuais pela literatura, e até a percepção sobre a literatura erótica, que perpassa a pesquisa que fundamentou a antologia, esta percepção foi ampliadíssima. A “literatura gay”, assim como o sentimento e o ato, existiu desde sempre. E foi retratada por grandes autores nacionais. Foi um prazer travar contato com os autores contemporâneos. Como surgiu a ideia de publicar o livro Poesia Gay Brasileira e como foi o processo de pesquisa e seleção de autores para essa antologia? Eu e Amanda nos conhecemos em Belo Horizonte em um curso de pós-graduação em projetos editoriais. Desenvolvemos uma pesquisa sobre Literatura Gay Brasileira, envolvendo trechos de romances, contos e poesia. Algum tempo depois, quando eu já estava morando de novo em São Paulo após período em Belo Horizonte, “pilhei” Amanda a fazermos um livro. Ela abraçou a ideia e começamos a trabalhar sobre o projeto, ainda que cada uma de um Estado. Ao notarmos que era necessário fazermos um recorte, e considerando o tanto de “poesias gays” de qualidade literária que encontramos, e que permaneciam dispersas ou inéditas, resolvemos focar no gênero poesia. Também acreditamos que era o mais sensível dos gêneros, com maior potencial de sensibilizar as pessoas para o tema. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Um dos grandes desafios é a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa de formar leitores. Como você vê essa questão? A literatura pode ter um alcance limitado, mas atrai. As pessoas gostam de poesia, a recebem bem. Falta consumir. Mais do que Educação para leitura, que pode ser promovida por escolas, falta criação de oportunidades de encontro do sujeito com uma literatura que faça sentido a ele. O sujeito deve ser mordido pela literatura. Quando isso acontece, a tendência é que nunca mais este conteúdo saia dele e que a busca por novas mensagens que o toquem seja interminável. A grande pena é que existem pessoas que passam uma vida inteira sem esse contágio positivo da literatura. Não descobrem sua delícia, não notam que suas vidas estão 323

contempladas na literatura e vice-versa. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Gostaríamos que você comentasse sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo poética – brasileira contemporânea. Por muito tempo fui descrente e fiquei distante da produção de autores contemporâneos brasileiros. Bebia mais dos antigos. Um tremendo desperdício não se interessar pelos contemporâneos. Por mais que haja necessidade de triar, sempre, as produções “maciças” contemporâneas – digo, as de evidente qualidade literária, por sua força –, elas existem e podem formar um quadro interessante. Felizmente a organização da antologia Poesia Gay Brasileira levou-me a um contato mais íntimo com obras de autores contemporâneos. E fiquei entusiasmada! Há muito conteúdo de potência sendo produzido em todo o Brasil. Descobri poetas do Nordeste fenomenais. Mas não dá para restringir, os bons escritores brasileiros estão por todos os cantos, ainda bem! Porque refletem e divulgam, por meio de sua escrita, realidades regionais às vezes bastante particulares. Existem alguns poetas brasileiros contemporâneos que gostaria de mencionar, porque suas escritas me pegaram pela intensidade e temáticas retratadas – e isso estimula minha própria escrita. Samuel Malentacchi, Simone Teodoro, Paulo Fatal, Beatriz Regina Guimarães Barboza, Lisa Alves, Raimundo de Moraes. Sobre minhas inquietações. Serão lidos esses poetas? Como serão lidos? Falar de morte, maldade humana, tocar fundo em questões existenciais bastante aflitivas ou denunciar cenários de caos e opressão às vezes espanta os despreparados. Aqueles que não sabem ler nem literatura nem realidade. Tudo bem, a ignorância eu quase perdoo. O problema é que essas pessoas, rasas, preconceituosas, são as mesmas que começam a querer apagar a arte, a limitar a expressão, a questionar conteúdos literários. Isso é um absurdo. Como você vê o cenário atual do Jornalismo Literário no Brasil?   Com um pouco de tristeza. As redações dos jornais, revistas e sites têm passado por enxugamentos e desmontes cada vez mais massacrantes. No Brasil, pouco houve períodos contínuos de tempo em que o espaço (físico) de veículos de comunicação foi amplamente ocupado por matérias jornalísticas de fôlego, lidas por boa parcela de pessoas. Então o jornalista que se lança a fazer jornalismo com ferramentas da literatura hoje, que são as grandes reportagens, livros, biografias, entre outros conteúdos possíveis de se “aplicar” o jornalismo literário, este jornalista-escritor terá que enfrentar enormes desafios. Tempo, falta de subsídios para realização de conteúdo, editores desinteressados e por aí vai. Talvez as grandes reportagens que podíamos encontrar antes em revistas e jornais comecem a ser empurradas de vez para o online ou para os livros. Quando comecei a pesquisar o jornalismo literário no Brasil, por volta de 2011, lembro que um dos grandes locais que me acolheu e auxiliou as pesquisas que fiz com a colega Marina Angélica para o livro Com quantos J se faz um Jornalismo Literário foi a Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL), que recebia alunos de todo o Brasil e vivia lotada. Nos últimos anos, a instituição 324

foi sendo reduzida. Uma pena. A Academia realizava um importante trabalho de pesquisa, discussão e formação de jornalistas que iam para o mercado no mínimo com esse anseio de fazer reportagens confiáveis no conteúdo e envolventes pelo tratamento literário. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Os desafios de editar novos escritores não estão em encontrá-los nem em encontrar conteúdos interessantes, chamativos, dignos de publicação. O desafio está nos custeios de editar e publicar um livro se você não tem estrutura e verba de uma grande editora – imagino que as próprias grandes editoras tenham lá seus desafios nesse sentido também. Mas respondi aqui tendo em mente a edição “na raça”, feita por editoras menores. Como você vive o ato de recitar? Recitar é recriar? Tenho pavor de recitar. Não tenho voz, fôlego, pausas dramáticas necessárias para a leitura ficar atraente. Recito aos pobres dos meus amigos que são obrigados a me ouvir após algumas taças de vinho. Estou treinando. Parece que para mim só o escrever “já está bom, basta”. Mas não é bem assim, é importante mostrar e é interessante notar como o outro sentiu seu texto. E, sim, recitar é recriar. O poema pode se transformar na boca de um ator ou de um poeta. Tenho visto este tipo de transformação em poetas como a paulistana Luiza Romão. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outras linguagens? Por mais de uma década escrevi sem parar. Tenho duas obras registradas na Biblioteca Nacional, “desmedida” e “Amarelo-grão”. Fora elas, um tanto de poemas retidos que preciso (re)organizar. Uma produção de anos. Fico escrevendo, escrevendo e por alguns instantes esqueço que seria um bom passo mostrá-los lançando livros. Mas ando pensando, sim, em levar a público o Amarelo-grão em 2018, assim que passar um tempinho do lançamento da antologia Poesia Gay Brasileira. Também escrevo contos e crônicas. Tem um apanhado de contos eróticos que desejo revisitar em breve. Mas com relação a eles não tenho prazos definidos. Também quero voltar e editar uma série de entrevistas que fiz com um sujeito que tem uma história muito interessante. Ele foi abusado e preso na infância. Separado dos irmãos, acabou conhecendo uma moça mais tarde, quando jovem. Apaixonaram-se. O amor o retirou das ruas. Mas a mulher era sua própria irmã. E por aí vai. Historião. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Diversos ataques pseudomoralistas vêm sendo feitos às exposições e a outras manifestações artísticas em diversos pontos do país. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade?           325

A monstruosidade estava no homem, adormecida. O que a despertou é o que não sei. O homem traz em si grande potência. Por genética, por cultura ou atavismo. Parece que houve um ponto de virada de uma caminhada mais tranquila, mais pacífica, para uma fase obscura, de repressões e de burrice escancarada mesmo. Sinto que pegaram nossas enciclopédias, nossa construção, nossa história e rasgaram (a minha vontade aqui era falar que defecaram em cima). Endeusamento do Dinheiro, a divindade moderna? Pode ser, talvez as pessoas tenham se perdido nessa busca. Palavras como competitividade, status e outras do gênero nunca foram encarnadas com tanta força. Lembro-me de um dia em que estava lendo jornal em Belo Horizonte. Vi uma matéria sobre um grupo fascista que estava se formando. Coisa “boba”, mínima, grupelho de vinte. O que me impressionou foi: “por que o jornal dispôs espaço para isso?”. Chega em Berlim e fala de nazismo para você ver no que dá. Você será abominado. Os alemães sentem vergonha do nazismo. E então, dali a um tempo, faço uma corrida com um taxista nazista que fica pregando sua seitinha frágil a partir de muito ódio, como era de se esperar. E então eu chego no meu trabalho e tem uma manifestação a favor da ditadura militar – e nenhum pudor. Bem, o mundo anda com muito pudor frente ao belo e um despudoramento incrível frente ao repressivo, homofóbico, careta ou babaca. Sinal de que arte, literatura e até mesmo o que há de belo e possível na política não estão sendo absorvidos pela população. Uma população que lê é uma população que reflete, cria, vive, extinguindo a reprodutibilidade banal, esta que nos sangra, sangra, até o completo definhar de todas possibilidades de uma vivência interessante e rica na atualidade.    

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Miguel Nenevé Nasceu em Campo Alegre (SC), em 1955. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei, Debora Priscila Arevalo Gutierrez, Isabelle Kaiola e Laureane Antunes em março de 2016.

Qual o procedimento para a criação de suas obras literárias? Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Eu anoto em qualquer caderno, agenda ou computador quando observo uma situação, quando tenho uma recordação ou quando me vem algo interessante. Tenho uma caderneta somente para anotações (que ganhei de uma escritora inglesa), mas nem sempre anoto lá. Algumas coisas anoto no laptop. Depois disso, revejo, aumento, corto… revejo novamente. Às vezes compartilho o que estou desenvolvendo com gente que gosta de escrever e de ler. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se considerou escritor? Creio que tudo vem gradativamente. Sempre gostei de escrever, escrevi e publiquei textos em revistas publicadas no Instituto onde estudava ainda no ensino médio, depois em revistas de faculdades. Mas creio que nunca me considerei “escritor”. Só que houve um momento em que as pessoas começaram a me chamar de escritor. Aqui em Santa Catarina fui convidado para várias associações de escritores etc. Mas acho que não me considero um escritor, talvez a caminho de ser um dia. No Canadá, publiquei poemas e a revista que os publicou me pagou por cada poema. Aí a gente vai percebendo que alguém está pagando para ler você... Recentemente, você publicou um livro de poesias e fotografias, em parceria com a médica e fotógrafa Verônica Barreto. Comente um pouco sobre Pelos caminhos do olhar (Temática, 2015). Sim, foi bem recente. Aliás, estou agora em Santa Catarina para o lançamento do livro aqui, em duas cidades do Estado. A Verônica Barreto é uma médica de Natal (RN) que ama fotografias. Ela começou a postar fotos do Nordeste, de pôr do sol, de palmeiras etc. Isso no Facebook. Um dia eu fiz um comentário poético abaixo de uma foto de uma estrada com muitas palmeiras ao longo dela. Eu escrevi: “quando árvores elegantes batem palmas ao passante, já não importa se a estrada é torta ou a chegada distante.” Ela gostou muito deste pequeno texto e depois combinamos que faríamos um livro com fotos dela e poemas meus. Convidei-a para vir para Santa Catarina para fotografar lugares que me inspiram... e saíram muitas outras fotos e apresentei o projeto do livro para a prefeitura daqui. O projeto foi premiado, a prefeitura patrocinou a publicação do livro. E tenho recebido muitos elogios. O livro já está no Canadá, na Alemanha e nos Estados Unidos. Você está escrevendo algum livro no momento? Na realidade sempre estou escrevendo. No momento estou escrevendo contos, por enquanto isolados, mas que devem compor uma antologia.

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Como você vive o ato de recitar? Adoro recitar e mais ainda assistir a pessoas recitando bons textos. Creio que, como disse a poeta Lucila Nogueira, de Pernambuco, recitando a gente sente mais o sabor das palavras. Mesmo numa língua estrangeira. Gosto de recitar em outras línguas. Tenho vários poemas na ponta da língua em português, inglês e alemão. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Os seus livros estão voltados para que tipo de público-alvo? Tanto os livros de contos como os de poesia, creio eu, são para um público adulto e mais ainda talvez para um público infantojuvenil. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo, o que você vê? Vejo, diferentemente de alguns críticos, que a criação não parou, que há uma transformação na expressão poética, na prosa também. Há uma grande variedade de bons textos, de boas criações. Não gosto de classificar muito o que vale e o que não vale ser lido. Se o leitor gostar, que seja lido. Mas é bom sempre trocar ideias, conversar com bons leitores. Então, há sim, bons escritores e bons poetas contemporâneos. Você considera importante que o professor de literatura também seja escritor? Não acho que o professor de literatura tenha que ser escritor. Acho que tem que gostar de literatura, só isso. Tem que estimular as pessoas a lerem e escreverem. Eu parei de escrever no tempo de mestrado, quando comecei a ler muita crítica literária etc. Tendo medo de estar fora ou sem “as vestes nupciais” da boa escrita... Depois retornei. Achei bobagem ficar pensando nos críticos. Você percebe de imediato aqueles alunos que têm talento para escrever, ou seja, que já são escritores e prescindem do estudo universitário? Na realidade, não é difícil perceber quem tem talento e se dá bem na escrita. Geralmente são os bons leitores. Como disse uma poeta canadense quando perguntaram o que ajuda a pessoa a escrever: “read and read and read”. Sem ser bom leitor, não se pode ser bom escritor. Gosto de fazer uma atividade em que os alunos têm que reescrever um poema. Por exemplo, vamos reescrever “The Raven” de Edgar Allan Poe. Sai cada texto bom! Aí a gente vai vendo quem gosta, quem tem talento etc. Quais técnicas você usa para incentivar os seus alunos a escrever? Acho que já falei um pouco acima, mas vale a pena acrescentar algo. Gosto, em minhas aulas de literatura de língua inglesa, por exemplo, de provocar a imaginação e a busca de palavras. Por exemplo: Responda com rima à seguinte frase: “My friends have gone my hair is gray” Os alunos vão dando respostas criativas e interessantes , como: 328

“And I ache in the place I used to play” Ou “And I feel it is the end of the day” Ou “I want to write but have nothing to say” E assim por diante. Para a escrita de contos, às vezes dou cinco palavras e digo “faça uma historinha com estas palavras”. Ou às vezes eu digo “me fale uma palavra”. A aluna ou o aluno fala “árvore” e eu dou mais três palavras para a partir daí construir um conto. Outra técnica é dar um conto, ler junto com os alunos e depois pedir para na próxima semana eles trazerem (criarem) uma história com tema semelhante.

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Mônica de Aquino Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1979. Vive em Belo Horizonte (MG). Entrevista concedida a Letícia Malloy, André Tessaro Pelinser e Vitor Cei em junho de 2017. Publicada na revista Leitura, v. 02, n. 57, 2016 (data retroativa).

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Em seu trabalho, é possível perceber uma característica marcante, a que poderíamos nos referir como uma “poética da concisão”. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais que norteiam seu projeto literário? Meus poemas costumam começar num verso ou imagem que conduz a escrita. Às vezes, partem de algo que me mobiliza e fica comigo por uns dias; em outras, a origem é mais repentina. Mas sempre é a escrita do instante: quando há o convite do que já vinha sendo pensado ou vivido ou de alguma coisa que me toca, preciso escrever. Como na fotografia, em que se capta o momento. O que não contraria a concisão que se vê na minha poética: mesmo essa primeira escrita já passa por um controle, como na fotografia mesmo, em que se escolhe o ângulo, a quantidade de luz, o filtro, por vezes o tempo de observação e espera. A busca da concisão continua: o principal trabalho da primeira versão até a final é cortar, limpar o que não é poesia, incluir silêncios, densificar os sentidos. Escrevo também com o corpo e dados autobiográficos estão ali, cifrados, elípticos. Não mais como mera vivência, mas como matéria de uma reescritura do afeto. Em um dos poemas dispostos na seção “A dor como método”, de Fundo falso (Miguilim, 2017), lê-se que José, “para curar um problema / que se fez carne, entranhado / colocava todo dia / uma pedra no sapato”. Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? A parte do livro que este poema abre é feita de memórias da infância, ou de “memórias das memórias”, como esse poema que parte de recordações do meu pai que nos eram contadas de forma exemplar. O que no pai era ou é um percurso existencial, uma forma de superar a dureza das pedras cotidianas com outras pedras, voluntárias, num exercício ético, quero que seja em mim um exercício estético que busca, através da reescritura, ressignificar o ethos familiar. Talvez em Fundo falso meu processo criativo seja, em grande parte, a percepção da pedra, sua extração e burilamento – que para mim, como para o pai, é exercício de foco e aviso de perigo. Se em Sístole a água estava a todo tempo presente, em Fundo falso a pedra é a presença. A pedra do caminho, a educação pela pedra (título que eu adotaria se já não existisse), a reapresentação da violência e da beleza do mundo pela ótica do rigor formal. Mas que é, também, um exercício do amor, como no verso que encerra o poema. Em Fundo falso, há uma seção intitulada “A memória das mãos”, em que você retoma a imagem de Penélope por meio de uma série de poemas. Um deles é concluído com o verso “enquanto pensa: Ulisses, agora, sou eu.” Parece-nos haver, nesse verso e na apresentação de uma Penélope “insone”, “mentirosa”, 330

“paciente” e “urgente”, um esforço voltado à promoção de diálogos entre uma memória de leitura e o presente. Em que medida essa memória de leitura é ressignificada em seu trabalho? No caso dessa série, a referência me parece menos diretamente ligada às leituras que a um arcabouço mítico. O desejo era escrever a partir de uma personagem arquetípica, propondo visadas contemporâneas. Dialogo, por exemplo, com símbolos potentes do imaginário feminino, como a costura. Mesmo sem saber prender sequer um botão, a tessitura me diz algo profundo, o que talvez nos levasse para o campo da psicanálise, mas não me arriscaria nele. Borges afirma, em O ofício do verso, que há séculos três histórias têm bastado à humanidade: o Evangelho, a Ilíada e a Odisseia. A última, que traz um dos principais motivos da literatura, a viagem, é também a história de uma espera. Do papel legado à mulher por tanto tempo e que ainda cala em nós. Foi a leitura de Penélopes de outras poetas que me despertou para as minhas. E foi a personagem que me convidou para perto de outras figuras míticas, que seguem movendo minha escrita. Wislawa Szymborska é uma das autoras que me instiga a me aventurar nesse caminho, quando leio poemas como “Monólogo de Cassandra” e “A mulher de Lot”. Personagens bíblicos também são do meu interesse, acho que ainda escrevo uma série a partir deles. Gosto de exercitar olhares, de recontar histórias a partir de outros pontos de vista possíveis. É o meu exercício de narrativa dentro da poesia. Como você define sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Geralmente, nas mesas em que participo ou que assisto, a maioria dos escritores diz que começou a escrever por causa das leituras. Falam dos livros da infância e da adolescência, muitas vezes da influência de pessoas próximas. As primeiras memórias são a biblioteca do pai, ou um tio que lia histórias, uma vizinha ou cuidadora que era uma grande contadora de casos. Pra mim, é quase o oposto: minha escrita nasceu do silêncio, de tudo que eu não compreendia, das ausências. E também do encantamento com as palavras e com a forma de dizer da literatura. É lugar comum afirmar que a poesia “diz o indizível”. Esse interesse pelo que está além da fala e do olhar cotidiano foi o que me aproximou da poesia. Claro que o caminho desse processo gradual à decisão de me assumir escritora implicou uma construção deliberada, iniciada na vida adulta e que envolveu pesquisa dos meus contemporâneos, contato com artistas e críticos, interlocuções que iam sendo criadas e um exercício cada vez mais consciente da leitura e da escrita. O primeiro desejo, e que continua sendo onde mais me reconheço, foi ser poeta. Há alguns anos expandi também para a literatura infantil e para parcerias que me levam a outras artes.  Além do diálogo estabelecido com Carlos Drummond de Andrade em poemas como “José adotou a dor como método”, você faz referência a João Cabral de Melo Neto e à Poesia Marginal em “Não por acaso / o verso fácil” 331

(plaquete Cacaso não por acaso, 2009). Com que outros autores canônicos você procura estabelecer interlocuções? Ao adotar o nome José, sabia da possível associação com o José de Drummond. Mas o meu personagem é mais doméstico e entranhado, como já disse. Mesmo assim, sempre que me refiro à pedra, penso na pedra no caminho, no exercício cabralino de catar e separar, sem esquecer de deixar no poema o grão quebra-dente. Aqui, falo de duas influências mais óbvias e gerais. Apesar do poema em homenagem ao Cacaso, em que dialogo com o seu “verso fácil” que deseja reconhecer “todas as formas de delicadeza”, não posso me dizer herdeira direta da poesia marginal e do tropicalismo. Entre os autores que me influenciam, eu destacaria os principais nomes do modernismo e escritores que me conduzem ao equilíbrio entre texto passional e concisão, entre memória e filosofia, ludicidade e texto seco. Cito alguns: Sylvia Plath, Orides Fontela, Wislawa Szymborska, Jacques Prévert, Paulo Henriques Brito, Sophia de Mello Beyner e, saindo da poesia, Clarice Lispector, Ítalo Calvino, Amós Oz, Valter Hugo Mãe. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaria que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção poética brasileira contemporânea. Vejo uma produção diversificada, que reflete diferentes tendências e influências e que nos leva na direção do que se começa a chamar de “literatura expandida”. A mistura de procedimentos de diferentes artes me chama a atenção, dentre elas a mescla da poesia com as artes plásticas. Hoje é mais fácil produzir e publicar, inclusive na internet. Infelizmente, tal facilidade, que nos tira da dependência de grandes editoras, ainda encontra o gargalo da distribuição ou da necessidade de autopromoção, a exigir outros talentos dos escritores. Tenho lido muita teoria literária, literatura infantil e poesia contemporânea brasileira. Na poesia, as leituras de agora incluem Age de Carvalho, Mariana Ianelli, Laura Erber, Noemi Jaffe e Leila Danziger, que um amigo me apresentou recentemente. Estou encantada com o trabalho dela tanto na poesia, quanto nas artes plásticas. Na literatura para crianças, destaco nomes como Fernando Vilela, Renato Moriconi, Roger Mello, Wolf Erlbruch, Bruno Munari, Leo Lionni, Marina Colasanti, Jutta Bauer, Odilon Moraes. Há muitos outros que admiro, a lista é longa. Em Muitos jeitos de contar uma história (Miguilim, 2014), você abraçou o desafio de escrever um texto literário infantil a partir de ilustrações feitas por Nelson Tunes. Após a experiência de construção de um enredo baseado em uma série de imagens que não possuíam uma ordem estabelecida, tampouco elementos identificáveis claramente (o passarinho bem poderia ser a folha de uma planta...), você percebe mudanças, em seu texto poético, quanto à maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Minha poética já era influenciada pela imagem, mesmo que mental. Em Fundo falso, na parte final do livro, revelo um pouco desse processo: há um poema 332

para o Van Gogh, escrito depois de ver o filme Sonhos, do Kurosawa, e um que é uma espécie de homenagem aos irmãos Campana, dupla de designers que admiro. Escrever Muitos jeitos talvez tenha me dado mais consciência dessa relação, me levando a refletir sobre ela. Claro, uma coisa é certa imagem, de repente, me despertar para a escrita. Outra é estar com um conjunto de desenhos para os quais devo escrever um texto. O processo foi tentar levar essa experiência do livro o mais próximo possível da escrita dos poemas e de outros textos infantis, convivendo com os desenhos até que, de certa forma, eles fossem incorporados. Convivi muito com eles antes de começar a escrever, antes de perceber os personagens ali. Muitos jeitos de contar uma história (2014) apresenta um protagonista que convida o(a) leitor(a) a pensar a diferença. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? É sempre difícil analisar o momento presente. Mas arrisco algumas chaves para pensá-lo. Acho que parte da monstruosidade estava escondida na intimidade. Com as redes sociais, entretanto, todos ganham palco, qualquer absurdo reverbera. Curtidas, comentários e compartilhamentos dão às pessoas uma sensação de potência, a virtualidade as protege de confrontos reais. Sentimo-nos compelidos a ter opinião sobre tudo e a nos manifestarmos. As informações são ágeis e efêmeras, as bases dos nossos pensamentos precárias. Não há tempo para a reflexão, menos ainda para o diálogo. Junto a isso, há outro fator fundamental: a crise econômica. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, diz o ditado. E o pouco, muitas vezes, disputamos como abutres. É hora de eleger inimigos, bodes expiatórios. Políticos como Trump ganham eleitores fomentando esse tipo de ódio. Crises ajudam a tirar da pauta pensamentos de solidariedade, abrindo espaço para disputas. Voltam à cena as polarizações, o “nós contra eles”, que impedem as composições de interesses. É a lei da escassez que comanda; a lei do egoísmo. Há, ainda, um terceiro ponto que não pode ser ignorado, no caso do Brasil: a mistura crescente de religião e política, no sentido contrário à laicização conquistada na modernidade. Tal retrocesso traz para a pauta discussões de caráter moralista que não deveriam dizer respeito ao coletivo, enquanto questões urgentes da esfera pública são postas de lado. Não há nada de bom que possa vir da mistura de religião com política, a história demonstra. Por outro lado, junto a tanto retrocesso, vemos pessoas e grupos buscando reinventar a vida em sociedade. Estão mais abertos à colaboração, à construção coletiva. Acho que já não temos muito espaço para salvadores e heróis, para grandes líderes. Num mundo tão pulverizado, nossa revolução passa a ser diária, no microcosmo, nas pequenas mudanças que podemos promover no cotidiano e que começam a colocar em xeque o individualismo que o capitalismo e a tecnologia ajudaram a construir. Quero destacar que a palavra tolerância, tão usada contra preconceitos, 333

não me agrada muito; me parece, por vezes, mesquinha. A diversidade não está aí para ser tolerada, mas para ser valorizada, ela é uma das nossas riquezas. É ela que nos convida para fora de nós mesmos, que nos expande e engrandece o mundo. Mais do que pregar a tolerância à diferença, é fundamental ensinar sua valorização. Como você avalia a recepção de sua obra? Fale-nos um pouco sobre a recepção de sua obra poética e, também, sobre a recepção de seus textos de literatura infantil. Sístole, de 2005, teve uma boa repercussão, em grande parte pelo trabalho da editora. A coleção da qual o livro faz parte (Canto do Bem-te-vi) foi resenhada nos principais jornais do país. Passei a ser mais conhecida, especialmente na minha cidade, e mais presente no circuito cultural. Mesmo sem publicar um livro de poemas por tanto tempo, continuo sendo convidada para participar de periódicos, antologias, eventos. O “Prêmio Cidade de Belo Horizonte” de 2013 renovou o fôlego do trabalho. Mas divulgar a própria produção não é tão simples, minha presença em redes sociais é baixa, sou uma poeta um pouco distante da cena. Nem tanto por opção; há também a dificuldade de agir de outra forma. Gostaria de ter mais interlocução, de ficar mais próxima de escritores e amigos. Sempre que sou convidada para participar de algo ou para criar um projeto ou texto, gosto muito. Na literatura infantil ainda construo o meu percurso. O primeiro livro, Fio da Memória, foi adotado pelo programa Livros na Sala de Aula do Estado de São Paulo. Os outros livros ainda não contam com tantos leitores, em grande parte, acredito, por falta de divulgação e também pelo momento do país. Começar algo nesse contexto não é tão fácil. Sigo estudando e escrevendo, já tenho alguns originais guardados e outros projetos a desenvolver. Você tem participado de festivais e feiras literárias. Que avaliação crítica você faz a respeito da contribuição desses eventos para a divulgação do trabalho de novos escritores e para o fomento à leitura no país? Os festivais e feiras são momentos importantes de encontro, neles nascem amizades, parcerias, projetos. Temos a chance de conhecer novos autores e trabalhos, além da festa que costumam ser para quem gosta de literatura. Mas há a questão do alcance. Sabemos que ainda se lê muito pouco no Brasil. Festivais podem ajudar, mas não podem fazer tanto onde falta educação e oportunidade. Acho muito interessante o trabalho prévio de algumas feiras, como a própria Flip, promovendo atividades voltadas para a formação de leitores, como encontros com escritores e oficinas para crianças, jovens e educadores. A feira torna-se, assim, o ápice de um trabalho desenvolvido com os moradores das cidades que sediam os eventos. Admiro, também, feiras que saem do circuito e do modelo de sempre para aproximarem-se mais das pessoas, como a Flupp, a Festa Literária das Periferias, que a cada ano acontece em uma comunidade do Rio de Janeiro. Como você experimenta o ato de recitar? Recitar é recriar? Busco dizer os poemas de forma natural, dentro do que é natural no meu processo: talvez seja sempre um dizer distinto da fala cotidiana, porque passa por 334

um outro tipo de relação com o corpo, mais visceral. Muitas vezes escrevo em pé, a atitude nunca é passiva, leio o que estou escrevendo em voz alta, me levanto, mudo a forma da leitura, sinto o ritmo, caminho, vou à cozinha, volto. Acho que essa proximidade com os poemas aparece, de alguma forma, nas vezes em que me apresento. Recitar, assim, tem algo de recriação, mas também de resgate, de encontro e abismo. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Você acha que, no país, a poesia deixou de ocupar um lugar de destaque no debate cultural? Acho que o debate cultural ocorre num ambiente cada vez mais restrito. O que vale para a prosa e para as artes, em geral, mas essas têm mais alcance comercial e, consequentemente, mais visibilidade. Poesia, como vocês mesmos afirmam, tem alcance mínimo. Além do pouco que se lê no país, atribuo o menor interesse também ao nosso atual ritmo de vida, que envolve excesso de informação, relação superficial com o conhecimento, necessidade de estímulos constantes, de “alegria” permanente e rápida, sem a disposição, de muitos, de parar e se abrir para o que pede dedicação e compromisso, como a literatura. As exigências do nosso tempo puxam para outras demandas, mais ligadas ao entretenimento. Nesse sentido, artistas e intelectuais perdem espaço nos debates de questões essenciais ao país, substituídos pelo imediatismo e pela lógica empresarial. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Um grande desafio se relaciona ao tal “alcance mínimo” de que falamos: editoras precisam vender os livros que publicam e livros de poesia não costumam ser muito comerciais. As pequenas editoras têm papel fundamental para a poesia ao apostarem em autores que não são conhecidos do grande público, incluindo estreantes. As tiragens costumam ser pequenas, voltadas para um grupo de leitores específico. Em regra, não há estrutura para distribuição ampla. São editoras, essencialmente, voltadas para um mercado de nicho. Corajosas, com a paixão, tantas vezes, sobrepujando o interesse econômico, ajudam a renovar a literatura. Por outro lado, há hoje diferentes caminhos para a publicação, incluindo a internet, o que a torna mais fácil. O problema da distribuição em grande parte é superado pelos artistas que são bons no manejo das redes sociais, conseguindo construir seu espaço, chegando até leitores e interlocutores e, em alguns casos, até o mercado tradicional. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? O projeto do meu terceiro livro de poesia está bem adiantado. Afinal, estou sem publicar um livro de poemas faz tempo. Trabalho, também, em alguns originais para crianças, em verso e em prosa, além de desenvolver um trabalho a partir de fotografias de outro artista. 335

Natalia Borges Polesso Nasceu em Bento Gonçalves (RS), em 1981. Vive em Caxias do Sul (RS). Entrevista concedida a Vitor Cei em maio de 2016. As três últimas perguntas foram adicionadas em dezembro de 2016 e março de 2019. Publicada na revista RE-UNIR, v. 4, n. 2, 2017.

Cada escritora possui um modus operandi, por assim dizer. Comente sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora de verdade? Eu sempre gostei de escrever. Tenho coleções de cadernos e folhas soltas com histórias, poemas, tentativas de alguma coisa. Tenho também arquivos virtuais iniciados em 1998, nos quais não mexo. Então, escrever para mim sempre foi uma ação presente. Gosto de escrever pela manhã. Mas isso nem sempre é possível. Sou professora de inglês e doutoranda em teoria da literatura, e ser essas coisas consome muito do meu tempo. Mas se eu puder escolher, gosto de escrever de manhã. De toda forma, escrevo sempre, estou sempre anotando ideias, roubando conversas. Já disse em outra entrevista, acho que a escrita começa de verdade na escuta das coisas, das pessoas, do mundo. Então, eu me percebo como escritora desde muito tempo. Agora, ser escritora no mundo, ser legitimada por um sistema, reconhecida por pares, ter meu trabalho lido, isso é muito diferente de se sentir ou se perceber escritora “de verdade”. Você vê traços em comum entre a tradução (como você a pratica) e a escrita autoral? Eu não traduzo mais. O que me deixa muito triste. Estou distante da prática de tradução no momento. Mas, sim, dá pra ver algo em comum, porque é sempre uma escolha léxica subjetiva. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo, o que você vê? Vejo um movimento fantástico. Vejo cada vez mais editoras (sérias e não sérias) tentando suprir uma demanda de produção literária; vejo que a autopublicação está mais acessível e é uma via de combate às grandes editoras que controlam, bem ou mal, o que temos mais acesso, o que vemos mais por aí; vejo a internet como plataforma legítima do sistema literário. Enfim, vejo muita produção. No entanto, acho que ainda não somos capazes de avaliar se essa produção é de “qualidade” ou não. Com a emergência de tantas vozes, é preciso entender a relevância dessa, digamos, abertura, antes de “julgar” o que é bom ou não. Outro fator muito importante atual é a internacionalização da literatura brasileira, estamos sendo publicados e lidos fora do país, muito mais. Uma vez as pessoas só conheciam Paulo Coelho e Machado de Assis, agora, temos, por exemplo, Raduan Nassar, Lygia Fagundes Telles sendo indicados a grandes prêmios literários. Mesmo o Luiz Ruffato acaba de ganhar o prêmio Hermann Hesse na Alemanha. Isso é 336

incrível. Em 2015, estive em Paris fazendo doutorado sanduíche (graças a uma bolsa CAPES) e participei do Salon du Livre em que o Brasil era o país homenageado. Além disso, participei como autora do Printemps Littéraire Brésilien, evento que reúne escritores badalados e outros menos da literatura contemporânea. Veja, todos esses eventos apontam para um sistema literário crescente e relevante no cenário mundial. Fico muito esperançosa. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Olha, é difícil dizer. Apenas posso falar de um ponto de vista. Faço parte do corpo editorial de um selo dentro de uma editora. A gente recebe muita coisa e é complicado saber o que “pode” ser publicado. É preciso ter critérios bastante específicos quanto à qualidade do texto, mas também é preciso entender sobre o posicionamento do selo na editora, da editora no mercado, enfim. Agora, por exemplo, existe uma pequena-grande editora no Brasil hoje que se chama Patuá. A Patuá é a editora de um homem só. Eduardo Lacerda, seu dono, editor, revisor, administrador, entregador, empilhador de caixas, relações públicas e psicólogo de escritor incompreendido, faz todo o serviço sozinho. Desde a leitura de originais até o lançamento, por vezes. Enfim, os desafios para a edição de novos escritores dependem de muitos fatores, sejam de criação, de mediação, do mercado, da distribuição, da recepção. Acho que o principal desafio é entender o desafio exatamente. O que mudou na sua vida depois que seu livro  Recortes para álbum de fotografia sem gente (Modelo de Nuvem, 2013) venceu o  Prêmio Açorianos de 2013 na categoria contos? Pessoalmente, muita coisa. É bem gratificante saber que seu trabalho foi reconhecido, em alguma instância. Contudo, na época do prêmio, não saiu nenhuma resenha do Recortes, e me lembro de ler uma nota no jornal da capital daqui dizendo que não se podia encontrar o livro na feira do livro (risos). Incongruências do sistema. Ganhei um prêmio, mas a pequena editora pela qual eu tinha publicado não tinha muito alcance. Claro que o prêmio dá um respaldo junto à crítica, mas isso não garante leitores. Amora (Não Editora, 2015) apresenta trinta e três contos que tratam do homoerotismo feminino em diversas situações e fases da vida. Nesses tempos de intolerância e conservadorismo, como está sendo a recepção do livro? Maravilhosa. Tenho recebido muitas mensagens de leitores via e-mail ou Facebook, críticas, resenhas, o livro está sendo comentado, o que me enche de alegria. Em sua dissertação de mestrado, As relações de poder e o espaço urbano como região nos contos de Tania Jamardo Faillace (UCS, 2011), você afirma que a produção acadêmica e cultural feminina ainda busca estabilidade, ao mesmo tempo em que se observa um crescimento de grande impacto qualitativo nas redes de movimentos sociais, acadêmicos e políticos na área. Pensando nisso, o que mudou na (e para a) literatura de autoria feminina depois da internet? 337

Muita coisa. As redes sociais têm essa característica: dão voz e certo poder para quem não tem nem um, nem outro. Todas as campanhas e hashtags, como Minas na história, #leiamulheres, #leiamulheresnegras, etc., alavancaram essas produções que acabam sendo mais vistas e, por consequência, mais lidas, ouvidas, compreendidas e mais estudadas academicamente. Por outro lado, não há muito como prever o impacto, digo em termos de qualidade, de todo modo, acho que isso é muito positivo. Lembro do discurso da Viola Davis no Emmy de 2015, depois de ganhar o prêmio e sendo a primeira mulher negra a ganhá-lo, ela disse que a única coisa que separava as mulheres negras das brancas era oportunidade e perguntou quantas protagonistas negras as pessoas viam na TV. Por que será que só em 2015 uma negra ganhou o Emmy de melhor atriz? Protagonismo. Uma coisa que a internet oferece é o protagonismo. É possível ter uma voz ali. Para a autoria feminina em geral, esses movimentos de apoio e de conscientização fazem emergir discursos e vozes a serem ouvidas. Isso é importante. Como você vê a recepção de sua obra? Não sei direito. Não sei se alguém que esteja ainda começando possa responder essa pergunta sem cair em armadilhas. Mas eu posso dizer o que espero (risos). Espero ser lida. Esta entrevista é a prova de que, com a literatura, estou chegando a lugares que jamais imaginei chegar. Isso me deixa muito feliz e lisonjeada. Como você define a sua obra? Se a pergunta anterior era difícil, esta aqui se torna impossível de responder. Então, eu deixo pra crítica e/ou pra teoria, se um dia houver interesse em definir a minha produção, o que, honestamente, também não sei predizer. Em novembro de 2016, com o livro Amora, você ganhou dois Prêmios Jabuti e, pela segunda vez, o Prêmio Açorianos. Em maio, nós te perguntamos como vê a recepção de sua obra e o que mudou na sua vida após o Açorianos de 2013. O que mudou de lá pra cá (dezembro de 2016)? Bom, prêmios literários, apesar de terem júris técnicos, sempre têm um fator subjetivo da indicação. Recebi o e-mail de uma das juradas do Jabuti, depois da premiação, dizendo que meu livro teria sido indicado na primeira fase pelos outros jurados também. Isso me deixou muito contente. Dá pra dizer que o Amora tem agradado (e surpreendido!) muita gente, e eu fico extremamente feliz com isso. O primeiro Açorianos, lá em 2013, me deu ânimo para continuar, agora os Jabutis (Contos e Crônicas e Escolha do Leitor) e mais uma vez o Açorianos, pessoalmente, renovam a minha esperança e força na escrita. Sobre suas reverberações, acho que é cedo para avaliar, mas tenho boas expectativas. O Amora vai para a segunda edição agora no fim do ano, ou seja, já estava indo bem em termos de distribuição e alcance. Então, com a visibilidade que os prêmios oportunizam, creio que ele possa ir mais longe, tocar mais pessoas. Espero, ao menos.    Historicamente, presenciamos um silenciamento das vozes das minorias. Como o machismo, a misoginia e a homofobia presentes na sociedade brasileira afetam a sua escrita? 338

Não afetam a minha escrita. Afetam primeiro a minha vida, meu corpo, meu direito de ir e vir, de realizar coisas simples. E por isso afetam a minha escrita. Esse afeto cria sempre uma tensão. É com essa tensão que escrevo, com revolta e com medo, com um otimismo teimoso e uma vontade de luta e com um cansaço tremendo. E é com tudo isso que também deixo de escrever. Parei de escrever colunas semanais para o jornal da cidade, porque recebia muitas ameaças e xingamentos e isso estava acabando com a minha saúde mental e física. Agora, eu sei que essas questões não afetam apenas o meu processo de escrita. Elas operam em outras esferas, publicação, edição, convites, etc. Afetam outras escritoras também. Eu tenho agora uma posição relativamente privilegiada dentro do campo (trabalho com editoras de alcance, ganhei um prêmio, etc.), preciso reconhecer isso e fazer disso algo. É por isso que, como pesquisadora, me dedico ao estudo de escritoras lésbicas e suas escritas, para trazer à tona nomes e espaços pouco ou nada observados no campo. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: de onde veio tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Gostaria que alguém me ajudasse a compreender também. É difícil enxergar direito quando estamos no olho do furacão.

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Nelson Martinelli Filho Nasceu em Colatina (ES), em 1988. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em março de 2019.

Em 2010, você publicou, pelos Editais da Secult, A dupla cena, seu primeiro romance. Na contracapa, há dois comentários dos professores, pesquisadores e escritores Flávio Carneiro e Wilberth Salgueiro. Ambos destacam a força do humor na sua escrita, destaque com o qual concordamos. A que se deve essa opção? Quais seriam as suas influências ou referências, nesse ponto específico? As referências de hoje talvez se diferenciem um pouco das que eu tinha à época, mas creio que possa realizar um panorama de influências. Particularmente, o humor faz parte da minha vida há muito tempo, desde o ensino básico, pelo menos. E, com ele, a vontade de criar: jornaizinhos na escola (posso até mesmo afirmar que minha primeira experiência editorial ocorreu na quinta série), tirinhas e quadrinhos (de qualidade duvidosa em termos artísticos) colados no mural durante o recreio, histórias registradas nas páginas em branco de cadernos antigos, poemas melancólicos nas folhas do fichário. Entretanto, talvez tenha sido a internet minha principal válvula de experimentações no território do humor. Nas comunidades do finado Orkut, encontrei pares que demonstravam interesses semelhantes aos meus – majoritariamente o humor nonsense, o trocadilho e os jogos de palavras – antes ainda de ser disseminada a ideia de meme. Em uma dessas comunidades em específico propúnhamos desafios que envolviam escrever, sobretudo com base no humor, acerca de temas da literatura, da filosofia, da semântica, da morfologia e de ideias absurdas dentro de um campo lógico. O exercício era diário. Posteriormente, conheci por acaso o livro O segundo diário mínimo, de Umberto Eco, em que predominam artigos em tons de paródia, jogos de palavras, desafios a grupos de amigos – algo semelhante ao que fazíamos na internet nos anos 2000 –, e isso parecia legitimar meus interesses. Nessa linha, boa parte do desenvolvimento da minha escrita se deu naquele contexto. Também é contemporâneo a esses eventos o meu encontro com o grupo britânico Monty Python, cuja expertise residia justamente no humor nonsense. Quanto aos textos literários, fui influenciado ainda na infância pelas crônicas do Luis Fernando Veríssimo, em sua veia do inesperado, do surpreendente e, por isso, do humor. Por fim, especificamente no humor (pois poderia elencar uma imensa lista de outros nomes que me influenciaram), creio que três autores exerceram força capital sobre minha escrita: Douglas Adams, Campos de Carvalho e, claro, Machado de Assis, cada um irônico à sua maneira. Como você definiria o seu trajeto, até aqui, pela escrita ficcional e pela acadêmica? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Sem dúvidas o caminho foi gradual. Em um olhar retrospectivo, observo que desde cedo uma veia de criação e de expressão se fazia perceber, ainda que 340

tateando campos variados como os da música e do desenho artístico – este, aliás, ainda segue frustrado. Nas memórias de infância tenho muito clara, por exemplo, a vontade incontrolável de me tornar músico, estudando distintos instrumentos, da bateria ao violino, passando por piano, contrabaixo, guitarra, violão e gaita. Também guardo registros de desenhos, pequenas histórias em quadrinhos, tirinhas e personagens que criei ainda no ensino fundamental. No fim dessa etapa desse ensino, fui atropelado pela literatura – mais especificamente pelo poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe, que me empurrou para um abismo dentro do qual ainda não deixei de despencar. A partir disso, adolescente, concentrei os impulsos criativos em especial na poesia (claro, aquela poesia imatura e piegas que comumente desponta nessa faixa etária), embora paralelamente estivesse me envolvendo com teatro, cinema e, acima de tudo, lendo literatura. Na graduação, contudo, foi quando encontrei meios e condições para selecionar, organizar e elaborar melhor o material que produzia. Daí resultaram experimentações mais elaboradas, que resultaram em duas premiações em poesia e uma em prosa. Creio que tenha sido nesse período que, respondendo à pergunta, eu tenha me percebido escritor – mas não limitado ao texto literário, pois, dando continuação à pluralidade de caminhos que percorri até então para dar vazão à imponente vontade de criar, participei na mesma época de um concurso de música erudita com a composição de duas partituras para quarteto de cordas e também fui premiado. Em resumo: produzir ficção não era o suficiente. Então as experiências criativas passaram a exceder as áreas artísticas reconhecidas e, enfim, encontraram na internet um imenso terreno receptivo para todo tipo de prática que envolvesse ideias e palavras – em especial nos blogs e no Orkut. Com o avançar da graduação para o mestrado, senti reduzido o tempo e as condições para a escrita ficcional literária, mas encontrei na escrita acadêmica, com apoio da minha orientadora, a professora Fabíola Padilha, a liberdade de romper com algumas convenções ditas científicas, fazendo de gêneros como tese, dissertação e artigo científico também laboratórios de escrita criativa, que busquei associar ao desenvolvimento do pensamento crítico e teórico. Cada escritor possui método e estilo próprios. De modo mais geral, quais são as opções formais e temáticas que norteiam o seu projeto? Eu não tenho outro projeto mais básico que não seja o do humor e da surpresa. Não digo como um comediante ou como alguém que busca o riso frouxo, mas em tudo que produzo em minha vida – e em qualquer área – há sempre uma intenção de criar um efeito que surpreenda, de extrair uma ironia fina, de, talvez, romper um risinho de canto de boca. Portanto, o humor me parece preceder toda minha produção, pois é nele que reside o prazer que sinto ao iniciar qualquer projeto. Em A dupla cena, nota-se o questionamento sobre as fronteiras entre real e ficcional, entre vivido e inventado, entre personagem e autor, entre narrador e autor. Por exemplo: a Nota que abre o romance é assinada por “M.”, podendo referir tanto o nome de Miguel, personagem narrador, quanto Martinelli, sobrenome do autor. Como você lida com todas essas personae que se mesclam e alternam na sua escrita? Acho que involuntariamente sempre gostei de criar personagens, e 341

quase sempre senti que estava baseando essas criações em algo de mim mesmo, em minhas personae. O marco dessa prática certamente foi o romance A dupla cena, quando, em meus planos, desejei que o autor estivesse ali quase que onipresente e, ao mesmo tempo, dilacerado – ou estivesse em todos os lugares e em nenhum. A partir daí observei que, cada vez que dizia eu, criava uma nova persona, e isso passou a ocupar até mesmo os textos acadêmicos, como os eus que habitam artigos, entrevistas, palestras, aulas, dissertação, tese e até mesmo pareceres e arguições. Ao falar da minha produção literária, frequentemente altero fatos, mudo verdades, conto outras histórias, invento novos eus escritores. Todas as vezes que preciso assinar algo que produzi imagino um outro eu me deixando – e é uma sensação legítima, que antecede qualquer estudo ou teorização que eu tenha realizado sobre esse assunto. O que sinto, em resumo, é que sempre estou criando personagens quando preciso vestir uma pele. Outro traço a destacar seria justamente a maneira especial como você joga, em ambos os tipos de texto, com paratextos como Nota, Epígrafe, Prefácio, Apresentação, Posfácio e Orelhas. Que rendimento os paratextos podem ter na fatura de um romance e com que intuito esses jogos são estabelecidos no seu texto crítico? Em literatura, obviamente, filio-me à tradição de Borges com relação à utilização produtiva de paratextos. Ao longo do tempo passou-me a importar que todo elemento que envolve uma obra – seja ela literária ou teórico-crítica – carrega uma significação, e por isso me interessei pelo que há de possível ficcionalidade na estrutura dos textos acadêmicos. Não me parecia razoável que em nossa área de Letras, na qual lidamos diariamente com categorias da linguagem e da ficção, o produto textual se perpetuasse com pesadas cargas de convencionalidades científicas que se fundam principalmente no ímpeto positivista de ciência imparcial e impessoal. O passo inicial nessa direção foi assumir a primeira pessoa na escrita – o que surpreendentemente ainda causa estranheza entre alunos e professores. Em seguida, considerei o espaço dos gêneros acadêmicos como terrenos de criação, cujos limites poderiam ser postos à prova – com todos os riscos inerentes aos possíveis tensionamentos. E aí, conhecendo bem as normas e orientações que circundam esses gêneros (acumulando experiência na preparação e na revisão textual), utilizei-as a meu favor de modo que pudesse romper com algumas daquelas convenções e, ao mesmo tempo, dialogar com as temáticas críticas e teóricas que faziam parte do meu trabalho como pesquisador. Sinto que isso é assumir a ficcionalidade de todo discurso. A professora Camila Dalvi, em trabalho apresentado recentemente na V Semana de Letras do Instituto Federal do Espírito Santo, nomeou o seu livro como autoficção. Você concorda com essa denominação? Tendo já pesquisado, pensado e escrito bastante sobre a função autoral, você poderia nos falar acerca do que significa hoje, na sociedade em que vivemos, a presença da autoficção e/ ou da figura autoral na literatura, num tempo que, ao que tudo indica, tem solicitado aos escritores um maior engajamento em questões sociopolíticas? Você vê contradição entre essas duas opções ou linhagens? Concordar, concordo. Mas o engraçado dessa história de ler meu romance 342

como autoficção é que ele foi escrito antes de eu ter qualquer contato com esse termo e essa teoria, ou seja, ao menos em um plano consciente eu não sabia e nem tinha a intenção de produzir um texto que se denominasse autoficção, embora o processo e o resultado tenham sido similares ao que se tem publicado sob esse denominador – afinal, de fato o jogo com o eu do autor foi aparentemente intencional. Além disso, não vejo contradição ou tensão entre engajamento em questões sociopolíticas e estudos sobre autoria/função autoral/sujeito. Ao contrário, penso que é tão importante estudar as macrodimensões do coletivo quanto as micrologias do indivíduo. Não se pode negar que na individualidade também residem questões sociopolíticas (para reforçar o termo), que estudar as expressões de um sujeito também é lançar um olhar sobre a sociedade, que aquilo de mais subjetivo que podemos inferir de um texto está plenamente embebido de alteridade. Em síntese, o olhar analítico sobre a matéria egoica é uma maneira de observar um elemento da sociedade – e aí acredito que a contradição muitas vezes é apontada a partir de conflitos ideológicos e egocêntricos que podem ocorrer entre pesquisadores no sentido de resultar na deslegitimação do trabalho alheio, como se os estudos relativos à subjetividade fossem um exercício de olhar para o próprio umbigo (embora eu considere extremamente relevante estudar o umbigo). Sendo assim, repito, não vejo contradições, apenas enfoques distintos. Você hoje se divide entre as tarefas de professor, pesquisador, editor da editora do Instituto Federal do Espírito Santo (EDIFES), e ainda ocupa um cargo administrativo nessa mesma instituição. O acúmulo de tarefas ainda deixa tempo para o trabalho com a ficção? Minha passagem por áreas administrativas no Instituto Federal do Espírito Santo resultou num enorme aprendizado sobre diversos aspectos da esfera pública, como seus processos, suas organizações e seus movimentos políticos. Sem dúvidas tive um grande prazer em trabalhar na implantação da Editora do Ifes, pois pude recorrer primeiramente à minha experiência como leitor, escritor e pesquisador para definir alguns parâmetros e procedimentos na produção editorial da instituição. Em minha visão, creio que tenha sido um bom resultado. Ao assumir outro cargo de gestão no ano de 2017, por outro lado, fui paulatinamente percebendo que cada vez menos me sobrava tempo e condições para minhas leituras, para minhas aulas e para minha pesquisa, o que em um determinado momento passou a fazer muita falta. Atualmente, meu desejo é reduzir os compromissos administrativos em excesso para voltar às atividades da carreira que mais me dão prazer – e, claro, retomar o ritmo de leitura e de produção ficcional e acadêmica (o que tenho feito aos poucos desde 2018). Fale-nos um pouco acerca do seu trabalho como editor. Quais são os dores e as delícias de estar adiante de um projeto de publicação num Instituto Federal? O trabalho de editor foi o que me restou de viabilidade criativa durante o trabalho administrativo no Ifes. A possibilidade de planejar, selecionar e escolher cada detalhe de um livro transformava o processo de editoração numa busca pela realização de um trabalho que alinhasse o tratamento estético ao conteúdo escrito. Certamente um trabalho muito prazeroso no que diz respeito à produção de li343

vros, à implementação de políticas e ao planejamento de ações quanto à produção editorial, ou seja, mais uma vez o trabalho criativo norteava minhas atividades e, assim, me motivava ao trabalho. Na contramão da felicidade de editorar livros, nem sempre é uma tarefa simples lidar com autores, em especial aqueles que têm suas obras reprovadas em editais, quase sempre colegas de trabalho. Ainda que tenhamos um Conselho Editorial do qual partem as decisões sobre a seleção de originais, ser o representante da editora também coloca o editor/coordenador numa posição de maior visibilidade diante da comunidade interna, o que muitas vezes significa tornar-se alvo fácil de conflitos. Apesar de ainda muito jovem, você já leciona há mais de dez anos. Com o passar do tempo, é possível notar alguma mudança significativa na postura dos alunos em relação ao interesse e ao estudo de literatura? O que dizer mais especificamente sobre a leitura e a pesquisa em torno da poesia? E mais: lecionando, é possível identificar os alunos que têm talento para escrever e que podem se tornar escritores? Uma das minhas tônicas como professor de literatura nos últimos anos é bem simples: ter como base meu prazer na literatura e o que ela representa na minha vida. Mais do que me fixar em aulas expositivas direcionadas ao descritivismo literário, faço o que me parece mais óbvio: demonstro como o texto literário atravessa minha história e como ele tem me transformado desde a infância. Se quero que a literatura transforme a vida de meu aluno, é preciso primeiramente deixar explícito os efeitos dela sobre mim, sobre a minha formação como sujeito. Nesse sentido, tem sido fundamental ler com, ter o texto literário como norteador dentro da sala de aula. Fora isso, qualquer outra elaboração ultrapassaria os limites desta resposta – e diria respeito a perguntas-fantasma como: as pessoas leem atualmente? a escola tem contribuído para a leitura? a tecnologia tem atrapalhado a leitura? se lê mais agora ou se lia mais no passado? etc. Além disso, dentro da minha limitada percepção, a poesia na escola tem o mesmo tratamento que no ensino superior: ocupa o papel de figurante, salvo quando utilizada como mote para eventos como saraus ou no grande vale-tudo que é chamar algo de poesia. Não vejo outra saída a não ser as já conhecidas: leitura, debate, reflexão. Com isso, talvez qualquer aluno tenha a possibilidade de se tornar escritor, na medida em que o exercício básico para produzir literatura é a leitura e a (re)escrita – identificar esse aluno que demonstra os primeiros desejos pela escrita é apenas o início, o que vem depois é o apoio, o diálogo, a orientação, a ampliação de repertório. O que você pensa acerca dos escritores brasileiros contemporâneos? Que autores você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo, o que você vê? Boa parcela do que tenho lido em toda a minha formação profissional parte dos escritores brasileiros contemporâneos. É um dos principais temas de minhas pesquisas nos últimos doze anos. E o que tenho pensado é: o Brasil está repleto de excelentes prosadores. Sim, ainda temos um grande número de autores com boas histórias para contar, que criam obras que nos viram do avesso, que experimentam e continuam testando gêneros como romance, conto e novela. Às vezes, claro, alguns caem, por exemplo, na malha fina do academicismo (que há 344

aos montes), buscando surfar na onda teórica do momento. Isso com o tempo também me ensinou uma importante lição: desistir de alguns livros. E assim perdi um pouco da força de pagar para ver, de esperar uma surpresa, de dar um voto de confiança ao livro que não está convencendo. Aprendi a abandonar a leitura que não está me agradando. Já na poesia eu não vejo um cenário tão favorável. Temos, obviamente, excelentes e grandes poetas em atividade, mas ainda a grande maioria se limita a fórmulas e repetições infindáveis. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes autoritários, racistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Penso que esse tipo de onda não se dissipa, mas talvez apenas se disperse de tempos em tempos. Após o fim dos movimentos totalitários do século XX, os fascistas não deixaram de existir; eles se acomodaram em círculos menores e restritos, em conversas de mesas de bar. A onda, portanto, tornou-se subterrânea. Creio que isso tenha mudado com as novas formas de comunicação em massa consequentes de tecnologias da internet, que transportaram esses grupos isolados e restritos para o ambiente virtual, onde se encontraram, unindo várias mesas de bar em compartilhamentos até a náusea. Nisso, os discursos fascistas passaram a ser não apenas legitimados por um grande público, mas também associados a pautas promovidas pela grande mídia e por determinada parcela de políticos de oposição à esquerda. Em suma, a união dessas forças colaborou para a expansão desses discursos para grupos menos politicamente conscientes, ampliando o alcance dos movimentos reacionários. Num futuro próximo, ao que parece, a tendência dessa onda é ganhar mais força, a se comparar com outros momentos da história da humanidade, possivelmente perdendo, posteriormente, espaço para grupos progressistas em defesa de direitos democráticos. Essa dinâmica tem sido observada com a ascensão e queda de regimes totalitários, embora não garanta a repetição. É preciso luta e vigília.

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Nilza Menezes Nasceu em Mandaguaçú (PR), em 1955. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Ana Yanca Maciel e Vitor Cei em janeiro de 2016 e reescrita em outubro de 2017.

Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Eu não tenho uma fórmula de fazer poesia. Tem gente que tem uma construção através de teorias e constrói as poesias. Pessoas que trabalham métrica, rima, tantas outras coisas e tendências, aquilo que está mais no momento... Não é o meu caso. Você se recorda de algum momento do seu passado que possa sugerir quando tudo começou? Eu escrevo poesia desde sempre, acho que o primeiro livro de poesia eu tinha uns sete anos, foi a minha mãe quem comprou o livro pra mim, de versinhos. E minha mãe é uma pessoa quase analfabeta, e que vendeu ovos e me deu de presente um livro que ela tinha visto numa livrariazinha da cidade, onde a gente morava. Eu já estava na escola, tinha sete anos e já era alfabetizada, e ela achava muito bonito eu declamar, porque nós brincávamos de roda, ela achava bonito, dizem que eu declamava legal. E aí ela me comprou aquilo para que eu pudesse aprender mais versos e declamar nas cantigas de roda, nas festas e festinhas que tinham na escola. Esse foi o meu primeiro contato, era aquela coisa muito... versinhos, quadrinhas, eram sempre quadras rimadinhas... Quais os escritores que você tem afinidade ou aqueles que foram importantes para você? Nossa, será que eu vou lembrar o nome de algum desses poetas!?, érr... Eu me lembro do poema que eu declamava quando eu tinha sete ou oito anos na escola: “Tal como a chuva caída/Fecunda a terra, no estio,/Para fecundar a vida/O trabalho se inventou” (Olavo Bilac). Acho que foram as poesias cítricas escolares de Cassiano Ricardo. Foi esse contato de literatura obrigatória. O primeiro poeta que eu li, poeta de verdade, foi o Drummond. E eu não sei como, eu achei no bolso do paletó do meu pai, que era também uma pessoa quase analfabeta, um poema do Drummond. Fiquei encantada, não sei como aquele poema foi parar no bolso do paletó do meu pai. Talvez alguém na cidade tenha dado a ele, em algum bar ou em algum lugar que ele tenha ido. Foi o primeiro poema que eu li e depois, na escola, a gente foi conhecendo os poetas tradicionais. Como foi esse período de primeiro contato com a literatura? No meu tempo, quando eu estudei, a gente terminava o ciclo de quatro anos na escola, naquele tempo a pessoa recebia um diploma, ela era até professora, ela podia ensinar outras pessoas, com esse básico que hoje é nada, né? E aí, quando eu terminei, a professora da escola elogiou muito, falou para o meu pai, e

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meu pai só tinha filhas mulheres. O meu pai só tinha filhas mulheres, ele não tinha um filho homem para estudar, mudar de vida, meu pai era emigrante espanhol. Aí, a professora falou “valeria a pena investir nela, ela pode vir a desenvolver, ser uma advogada.” Encheu a bola do meu pai, aí meu pai me matriculou na escola na cidade. Nós morávamos em uma área rural, a gente andava oito quilômetros a pé, saíamos de casa às cinco da manhã para chegar à escola. E eu fui estudar na escola presbiteriana independente da Igreja Presbiteriana Independente, onde eu fiz a quinta série, depois eu fui para o Colégio Estadual. Foi nesse período que eu conheci a biblioteca, foi assim que eu aprendi a primeira palavra em inglês, a primeira palavra em francês. Aprendi o que era Educação Física, eu não sabia até então. Conheci as bibliotecas e conheci, também, Fernando Pessoa, junto com Castro Alves, junto com outros escritores, como o sertão de Euclides, eram as leituras da escola. Eu conheci Fernando pessoa e enlouqueci. Enlouqueci. Eu lia o dia inteiro Fernando Pessoa. Eu ia ler para a minha mãe aquele poema que ele fala do céu. E ela disse: “para, minha filha, isso vai te deixar louca”. Quando ela falou que aquilo ia me enlouquecer, eu tinha me perdido fazia tempo. Qual foi a sua participação no Movimento Madeirista em 1999? O Madeirismo foi um movimento para homens. Em sua obra poética é recorrente o mistério feminino, luta feminista e a liberdade. Que despertar é esse? Entre homem e mulher o que existe é diferença biológica, isto se tornou um motivo de exclusão das mulheres nos espaços hierárquicos ocupados, na maioria dos casos, por homens. Essa exclusão, essa violência, não escolhe cor ou classe social, atinge a todas. Mulher não é só lavar e cozinhar, neste caso, a literatura é uma arma, por isso, A Arma da Mulher é a Língua. Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher. Em 2016, você publicou o livro A Arma da Mulher é a Língua, com “poemas feministas”. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? Quanto ao silenciamento das mulheres, o que é historicamente e sociologicamente dado, e, que marca de forma dual as relações que se estabelecem na vida social, é uma opressão que de forma ambígua marca o movimento da vida. Porém, a vida é muito mais que esse mundo dual de relações de opressão e silenciamento. É claro que ao escrever, pelo estilo, pelas experiências, pelas opções, pela forma adotada, chamada de poemas intimistas e/ou jornalística/descritiva, as questões de gênero sobressaem. Pelo meu lugar escolhido ou imposto socialmente, as questões referentes às assimetrias de gênero se fazem presentes. Não tem como dissociar o que escrevo das vivências de pesquisa em gênero e religião que faço, onde perpassam questões raciais, econômicas, e em especial da divisão sexual do trabalho relacionado à condição feminina. Acho que escrever com essa conotação feminista, sobre a tragédia das mulheres, trazendo tensões de gênero na minha poesia, foi algo que caminhou com a minha trajetória pessoal e profissional. Pelo estilo de escrita, pelas leituras, opções pessoais, acontecimentos externos na minha vida, os familiares de trabalho cotidiano. Isso tudo evoluiu e se apresentou no fazer poético, nessa opção de escrever de mim, do 347

outro, do entorno, do imaginário... De alguma forma, o que escrevo é como o Rio de Vozes de Garcia Lorca! Não sei se foi consciente no primeiro momento, porém as escolhas de leituras somadas com as interpretações pessoais e experiências vividas formaram o tecido da minha forma de expressar. Na minha escrita, assim como nas experiências pessoais, as questões de gênero sempre foram ambíguas, tensas, entre avanços e retrocessos. Entre prática e discurso. Acho que isso aparece de forma clara em A Arma da Mulher é a Língua, onde essas ambiguidades aparecem marcando a escrita sem fazer dos discursos feministas uma bandeira, uma seita ou uma ideologia, mas pautados nessa ambiguidade do que seria ideal e de como são as relações cotidianas. Também acho que as vivências, experiências e convivências foram me dando consciência e evoluindo na produção dos poemas nessa temática da condição feminina. Acho que em A Louca que caiu da Lua, foi a tomada de consciência, para chegar a A Arma da Mulher é a Língua. Sempre digo que é com avanços, retrocessos, ambiguidades, usando o poema como narrativa e tentando colocar a poesia ali como flechadas, que resulta muitas vezes num corte seco na ideia do texto como se fosse a interrupção do gozo, a interrupção do prazer quando ocorre a violência. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo poética – brasileira contemporânea. Hoje a internet nos permite uma leitura rápida, nem sempre atenta, de muita coisa que está sendo produzida, reproduzida, e acabamos por ter uma enxurrada de informações e muitas vezes nos escapam coisas essenciais. Gosto de ler as novidades que os amigos trazem, novas descobertas. Em viagens, os poetas de cada lugar, autores e autoras que experimentam com a palavra, exercitando. Primeiramente, o autor necessita ser um leitor, então os leitores e seus exercícios com as palavras permitem a produção. Porém, gosto de retomar aos meus de sempre, Drummond, Bandeira, Quintana, Leminski, Alice Ruiz, Angélica Freitas, Elisa Lucinda, Marta Medeiros, Carlos Moreira... Tenho um acervo regional e sempre retomo algum autor por questões afetivas ou de pesquisa. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Temos pouca produção e pouca divulgação da poesia. Circula mais em espaços e grupos restritos. As pessoas falam que gostam de poesia, mas não têm clareza sobre as tantas poesias. Gostam de possibilidades de consumo no repente, na música, consomem de outras formas. A poesia acaba sendo uma arte consumida como dom, como algo divino, sentimento que não é cobrado, é dado por possuir apenas valor simbólico. Você está escrevendo algum livro no momento? No momento, estou me dedicando a uma investigação de alargamento das minhas pesquisas sobre a figura da Pombagira, personagem-entidade das religiões afro-brasileiras. É um trabalho de pós-graduação e tenho sido consumida 348

pelo tema, que também me permite pensar poesia à medida que penso o que Garcia Lorca observa como Rio de Vozes quando fala das questões culturais do sul da Espanha. A Pombagira tem de maneira muito forte a cultura espanhola na sua formação no Brasil. Apesar de ser trabalho de investigação acadêmica na área da história, das ciências da religião, é possível fazer isso com gosto de poesia, colocar poesia no trabalho. A poesia como exercício de luta cotidiana é presente o tempo todo, seja naquilo que o olhar alcança e que é causador de incômodo, seja naquilo que vivencio e causa desconforto, ou naquilo que vejo no outro. Nem sempre, tudo é um fazer poético num sentido estético, mas a luta com as palavras, aquela que Drummond disse que é a mais vã, e, no entanto, lutamos mal rompe a manhã. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Sempre menciono o escritor indiano Amartya Sen, na sua observação de que as questões da violência de gênero são um problema de saúde pública. Essa violência é histórica, porém novas descobertas, novas posições e o fato de que o assunto foi colocado na pauta de discussões, fazendo com que os violentados/ excluídos se posicionassem. Acho que causou um impacto que provocou reações. Também acho que a violência sempre esteve presente, mas de alguma forma vivemos tempos em que muito se fala sobre, e isso faz circular mais. Em alguns momentos nos parece que ocorreu até um retrocesso ou que houve, como diz Judith Butler, rumos equivocados e que precisamos retomar algumas questões. Também de repente explodiram tantas questões escondidas que se espalham dentro das questões de gênero e violência, como a diversidade sexual, e isso é tecido nas questões raciais, religiosas, que também sempre existiram mas que não estavam postas. Não sei se teremos um final, teremos transformações, mudanças. Acredito muito mais em movimentos com avanços e retrocessos circulando. Alguma consideração final? Torna-se importante anotar que não me considero tocada de forma divina, os desejos, as leituras e experiências vividas foram me levando a esse fazer. É algo exercitado, pensado, elaborado e ao mesmo tempo espontâneo, como andar, falar, porém sabendo que escrever não é um acidente apenas, é algo causado pelo desconforto, pelo estranhamento das coisas e pessoas. Os meus poemas feministas se abrem para expressões carregadas de poesia.

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Pádua Fernandes Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1971. Vive em São Paulo (SP). Entrevista concedida a Vitor Cei, Aline da Silva Aguiar, Carolina Lobo Aguiar e Pâmela Melo de Souza em junho de 2016. Publicada na revista Igarapé, v. 4, n. 2, 2016. Respostas revistas pelo autor em abril de 2019.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor de verdade? Em princípio, não acredito na categoria de “escritor de verdade”. Quem seria um escritor de mentira? E a literatura não poderia fazer uma opção pela mentira, torná-la sua verdade? Ou a literatura nos convida a ultrapassar essas categorias? Ademais, como o modus operandi é, muitas vezes, empregado no léxico criminal para os autores de ações penalmente tipificadas, creio que sua pergunta, no fundo, pode associar o crime à verdade e refletir aquelas ideias de considerar o artista um companheiro do criminoso, como em Tonio Kröger, ou até mesmo o criminoso ele mesmo – Genet, por exemplo. Isso faz sentido? Depende do contexto. Em razão de a própria noção de crime ser muito variável no seu conteúdo (abarcando desde crimes políticos a crimes contra a honra, contra a vida etc.) e em termos geográficos e históricos, não sei se é tão adequada assim. Imagino, por isso, que posso entender sua pergunta como se referindo à figura do escritor como alguém deslocado em sua sociedade, o que não é verdade em vários povos (como os tradicionais, para que a poesia oral é parte importante de sua identidade) e culturas. No Brasil, porém, creio que a poesia “de livro” tem, de fato, esse deslocamento, assim como a maior parte da literatura, tendo em vista os níveis de letramento e os ataques oficiais à educação, à ciência e à pesquisa, redobrado na administração de Bolsonaro. Fui senti-lo mais agudamente na graduação (cursei Direito), uma época em que frequentei especialmente as bibliotecas de Letras, Filosofia e Ciências Sociais. Já escrevia e, especialmente, lia e, mais importante ainda, engajava-me em determinadas questões da vida em comum. Dominar a escrita é, comumente, um processo muito gradual, e creio que fiz muito bem em estrear em livro somente neste século, depois dos 30 anos. Ruim ou não, o primeiro livro já é minha cara literária. Ao contrário de alguns que publicam jovens demais, não terei que procurá-lo em sebos para destruí-lo, tirá-lo de circulação... Algo feito mesmo por nomes consagrados – Cecília Meireles, por exemplo. Quando e por que a poesia começou em sua vida? Entrou aos 9 anos, com Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, que ganhei de presente em razão do “bom desempenho na escola”. Gostei muito. Na adolescência, fui ler o restante da obra poética dela e a de Augusto dos Anjos; depois, vieram Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, Yeats, Rimbaud, Dante etc. Por quê? Por gosto. Por ter visto na poesia uma forma de conhecimento e de ação no mundo.

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Quem foi sua maior influência para que você virasse um escritor? Em termos formais, foi Mahler, sem dúvida. A ideia de não escrever poemas isolados (ou de que os poemas só ganham realmente sentido no conjunto), e sim livros, creio que a percebi ao conhecer a obra dele, que me chamou a atenção, além disso, para a questão da heterogeneidade das vozes e dos materiais: um desafio grande para a composição e uma possibilidade de sugerir a variedade do mundo, como ele fazia, por exemplo, ao incluir música de circo ou o Frère Jacques em uma sinfonia. Já falei disso em um vídeo d’A voz do autor, na USP, a que fui convidado com Eduardo Sterzi. Você está escrevendo algum livro no momento? Um livro de poesia está em diagramação, por isso posso falar dele: Canção de ninar com fuzis deve sair pela Urutau. Outro, do mesmo gênero, que recebeu prêmio de um edital de criação da Prefeitura de São Paulo, terá que sair (está quase pronto, na verdade): O desvio das gentes. O primeiro é de poemas “brasileiros”; o segundo, como o nome indica, envolve questões mais cosmopolitas, como refugiados, guerras civis, bombas, ataques cibernéticos, bactérias. Dos outros que estou escrevendo, prefiro não falar pela razão de que sempre posso mudar de ideia, de concepção ou de título. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? O que penso pode ser visto nos vários textos que já escrevi. Eles não compartilham da visão escatológica de certos críticos, em geral mais velhos, que diagnosticam um quadro lamentável de decadência. Não escrevi sobre todos os poetas que acompanho, pois para alguns ou faltou oportunidade ou faltou clareza para que eu tentasse elaborar algo. A pergunta pede uma sucinta visão geral, que não posso dar, e sim apenas minha visão, certamente limitadíssima: observo uma certa efervescência (há muito ocorrendo, especialmente oficinas; conheci em 2015 a Oficina Experimental no Rio de Janeiro), decerto com problemas (um deles, o crônico de haver mais autores de poesia do que leitores), e notam-se alguns nomes interessantes, seja entre os que continuam crescendo ou os novos, que despontam. Para mencionar dois sobre que nunca escrevi, lembro de Ricardo Aleixo, entre os que vêm produzindo sempre consistentemente, e de Chantal Castelli, que lançou há pouco [em 2016] um segundo livro impactante [Os cães de que desistimos], depois de dezesseis anos da estreia. No caso de Aleixo, temos o escritor e performer que busca os meios de comunicação (no momento, ele tem um programa de rádio) e diferentes tipos de público, não se contentando com uma audiência convencional. Ele já se apresentou para presidiários, por exemplo. Nem todo poeta terá os talentos ou a vocação para isso, claro – eu não tenho. Por isso, devo elogiar quem possui a possibilidade de fazê-lo. Castelli, uma poeta de livro, alia catástrofes íntimas ao mundo numa ótica claramente feminina (em especial, tratando da experiência da maternidade), sem pedir licença ao mundo patriarcal para fazê-lo. Nesse último aspecto, de fato, os tempos foram alterados (mas precisam mudar mais; conheço, por sinal, alguns poetas contemporâneos bem machistas), graças ao trabalho de autoras que lutaram contra a história patriarcal da 351

poesia brasileira. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Não sei bem. Os novos escritores devem saber melhor. Vê-se que é mais fácil publicar hoje do que no passado por causa das tecnologias de impressão, que permitem que pequenas tiragens sejam econômicas (não à toa as pequenas editoras trabalham dessa maneira), e por causa da internet. Um problema é que as edições raramente apresentam boa qualidade, e os erros de (falta de) revisão muitas vezes são clamorosos. O maior desafio não é, realmente, publicar, mas ser lido depois. Decerto as pequenas editoras não servem, em geral, para resolver esse problema, pois não distribuem os livros e, às vezes, mal têm a estrutura para vendê-los. Já aconteceu de eu comprar uma obra coletiva (de que eu participava) em pré-venda, publicada no mês seguinte, junho, porém só a recebi em outubro. O estreitamento progressivo do espaço para a literatura nos meios de comunicação no país dificulta esse quadro: menos oportunidade para resenhas, mais chance de o livro ser ignorado. E o desafio de ser lido está ligado, evidentemente, à questão agudíssima do letramento no Brasil, cuja situação não melhora. Como professor universitário, trabalhei com alguns alunos que só conseguiam escrever palavras-chave. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? Poderia ter mudado em novas linguagens poéticas e em novas possibilidades de publicação. Creio que a segunda opção mostra-se mais forte no momento, apesar do desastre, em termos de mercado, que tem sido o livro digital no Brasil. O fato é que os poetas podem testar, na internet, até mesmo em redes sociais, os poemas antes da publicação impressa. Além disso, a internet oferece bibliotecas digitais e oportunidades de leitura inéditas. Como você vê a recepção de sua obra? Não sei, não penso nisso. Tampouco penso no que eu mesmo escrevi antes, na chamada “obra”. Estou sempre ocupado com o que estou a escrever no momento. Se pudesse esquecer o que já fiz seria melhor ainda, se isso não pudesse propiciar a repetição involuntária... De qualquer forma, quando publicamos, pode acontecer de tudo: o livro passar em branco, receber leituras estranhas, tornar-se objeto de indignação etc. Está no mundo, sujeito a intempéries. Deve-se aceitar esse fato, até porque supostos erros dos críticos podem ser inspiradores. O que não se deve fazer, creio, é tentar controlar a recepção: além de ser uma atitude autoritária, que pode levar a atitudes de camarilha (trocas de favores, boicotes, abaixo-assinados para “responder” a críticas etc.), essa preocupação desvia energia da criação. Creio, por exemplo, que foi muito inteligente a atitude de Machado de Assis em não entrar em polêmica com Sílvio Romero. A reputação dos críticos depende dos autores, mais do que os autores dependem dos críticos (não esquecendo, claro, as formas híbridas, em que a literatura adota formas do ensaio, por exemplo). Dito isso, só pude ficar surpreso e grato com os críticos (poucos, mas excelentes) que já escreveram sobre o que fiz. Para documentar, o primeiro foi o poeta e tradutor Sérgio Alcides, em ensaio sobre meu primeiro livro, O palco e o 352

mundo, que ele publicou originariamente na revista Rodapé e depois na sua obra de 2016 Armadilha para Ana Cristina e outros textos sobre poesia contemporânea. Como você define a sua obra? De forma alguma. Apenas escrevo. Definir é problema para o leitor ou para o crítico, se houver. Como você vive o ato de recitar? Praticamente nunca, mas gosto muito. Teria que inventar mais oportunidades. Não faço poesia visual, tudo o que escrevo é para recitar mesmo. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Desconfio da verdade disso. Acho que muitos dos netos e bisnetos de Gil Scott Heron e sua small talk, por exemplo, têm um público fiel. Em relação à poesia de livro, percebo que ela pode vender quando há algum empenho editorial, como foi o caso recente das edições póstumas de Ana Cristina Cesar (note-se que A teus pés teve uma segunda edição antes de ela morrer) e de Paulo Leminski, mas também de poetas vivos: Matilde Campilho foi a autora mais vendida da Flip de 2015, com Jóquei, mesmo sendo estreante. Arnaldo Antunes e Karina Buhr (nomes conhecidos também na área da música) vieram em seguida, também com livros de poesia. Hilda Hilst, infelizmente depois de morta, logrou o mesmo em 2018 com um livro justamente de poesia, entre todos os gêneros que ela escreveu: Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão. O alcance não será suficiente, decerto, para comprar castelos na Europa. Mas, se é essa a meta do poeta, creio que a poesia já morreu para ele. Como você vê a literatura hoje? Vejo por meio de livros impressos, revistas (algumas online; das revistas impressas em português de poesia, destaco a Telhados de vidro, que é difícil de encontrar no Brasil) e alguns sítios de escritores na internet. Creio que esses sítios, como Sérgio Alcides já alertara, não estão ainda a configurar uma esfera pública. Um sinal disso é o comportamento de certos escritores jovens, ou não tanto, que somente falam sobre a própria obra, em permanente outdoor de si mesmos, chegando a ponto de fotografar seus livros em livrarias, criticar best-sellers e se rejubilar com a eventual presença de seus títulos em listas de mais vendidos, prometer explodir a academia (porque ela não estuda sua obra) e, ao mesmo tempo, tentar ingressar em programas de pós-graduação em literatura etc. Trata-se de contradições que podem ser verificadas em certos autores de hoje, e provavelmente revelam antes as inconsistências do marketing do que a consistência literária. Dos blogues em português de poesia, prefiro o Escamandro. Em relação aos livros impressos, note-se como a literatura brasileira tem migrado para editoras menores em tamanho; por exemplo, o atual presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi, publicou pela Editora Patuá recentemente. Creio que isso indica mudanças no mercado editorial, com as crises de certas editoras grandes e redes de livrarias.

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Você gostaria de mandar uma mensagem para a nossa turma? Gostaria muito, mas não a conheço... Terei que enviar uma mensagem genérica, que sempre serve: aproveitem para ler! Depois da graduação, o tempo fica bem mais curto... Especialmente a literatura mais contemporânea de todas, que são os clássicos: “Nunca te apresentou natura e arte/ prazer, qual belo corpo em mim se viu/ guardar-me, e ora em terra se reparte”. Você já escreveu que pensa a literatura como sendo fundamentalmente política, mesmo quando trata de assuntos da esfera privada. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes xenófobos, racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Como isso afeta a sua escrita? E gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: de onde veio tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho do atual estágio da humanidade? Respondo a esta questão em 2019, depois de a extrema-direita chegar ao poder no Brasil. Escrevi um livro de poesia a partir dessas questões; posso falar dele, porque já o terminei e ele está para sair pela Urutau, Canção de ninar com fuzis (era uma das obras que me ocupavam em 2016). O livro se abre com uma cena de execução (chamo-a de “abate” para ressaltar a injustiça), que está a se preparar. Os poemas seguintes ocorrem nessa suspensão da cena, que retorna no último poema, que é um testemunho. Os poemas têm um pouco caráter de crônica dos acontecimentos no Brasil do primeiro mandato de Dilma Rousseff até a eleição da família Bolsonaro. Repressão às manifestações de 2013, a grande greve dos garis no Rio de Janeiro, a destruição do Rio Doce pela Vale, os dez anos das Mães de Maio, os crimes de policiais militares contra o pedreiro Amarildo Dias de Souza, assassinatos transfóbicos, atentados a povos indígenas, as Copas do Mundo, a retórica inimitável da família Bolsonaro entre outras coisas. No livro, há uma parte do que penso; tivemos um governo que a) fortaleceu setores de direita, que lhe eram opostos por princípio; naturalmente, quando eles se viram fortes o suficiente para governar sem o aliado provisório, derrubaram-no; b) combateu setores da esquerda que não aderiram ao governo, enquanto parte da esquerda governista encastelou-se e a direita foi para a rua fazer política, auxiliada pela grande imprensa e pelos agentes de repressão. Naturalmente, a direita brasileira permanece em sua secular tradição antidemocrática, hoje tão enraizada que se basta com golpes brancos, apoiados pelo Judiciário. A monstruosidade está relacionada à não-superação da ditadura (genocida, racista etc.), isto é, à falta de justiça de transição no Brasil, o que continua sendo um grande peso para o país – e é isso que estou estudando agora, em pós-doutorado no IEL-Unicamp.

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Pâmela Filipini | P. F. Filipini Nasceu em Rolim de Moura (RO), em 1994. Vive em Candeias do Jamari (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2019.

No poema XXV, de Ensaio sobre a Geografia dos Cernes (Temas Originais, 2017; RG Editores, 2018), lemos que “Quando te olho, já te escrevo / porque o olhar é o ensaio / da poesia”. Em que medida esses versos revelam seu processo criativo? Descreva as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. Você percebe alguma influência do espaço geográfico/cultural rondoniense na formação de seu estilo? Escrever não é somente escrever. Escrever é anterior à própria escrita. Ao ouvir uma sinfonia, apreciar uma pintura, observar o crescimento de uma planta, tilintar a cabeça ao sol, coar o café à solidão e comungar dessa solidão com quem amamos: tudo isto já é escrever. Meus temas são a solidão e a ternura. Afirmo dentro daquilo que vivo e que, por sua vez, produz aquilo que escrevo: a solidão é a verdade. Esta é uma afirmação da minha própria obra. O meu tema é a solidão. Tudo o que escrevo tem gosto de solidão. A solidão é docente tal como as composições Tábula Rasa e Frates de Arvo Part: uma substância universal que cala a mediocridade e fornece ao espírito o diálogo necessário para lecionar o silêncio em si mesmo. Tudo que escrevo verte dessa medula. Meu caminho é a prosa poética, entrar em contato com a intimidade das coisas e extrair-lhes o sumo. Todas as minha metáforas surgem a partir dessa urgência de intimidade & afeto. Eu gosto do verde de Rondônia, do azul, dos pássaros, das belas flores que nascem solitárias em meio ao mato. Estou nisto e isto está em mim. Você publicou os livros Folhas dos ossos ou o tratado das coisas insignificantes (Patuá, 2017) e Ensaio sobre a Geografia dos Cernes (Temas Originais, 2017; RG Editores, 2018). Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Minha trajetória literária é completamente solitária, árida & gradual: os erros, as reescritas, tudo culminando em um lento processo de amadurecimento e velhice interior. Perceber-se escritora é terrível! Porque quando se percebe escritora não tem mais volta. Esse assombramento me ficou consciente aos poucos. Terei de carregar este fardo pelo resto da minha vida. Só é possível lidar – aguentando o peso que a escrita me impõe. Digo isso porque não há muita coisa de bênção em enxergar poeticamente o mundo. Levo esse fardo de bom grado, e da forma mais honesta possível. Eu existo. Ocupo um espaço no mundo. Retribuo ao mundo, escrevo. Sem obrigação nenhuma. Precisamos dar conta do nosso espaço. Historicamente, presenciamos um silenciamento das vozes das mulheres, dos homossexuais e de outras minorias. Como o machismo e a misoginia 355

presentes na sociedade brasileira afetam a sua escrita? Ser poeta & escritora no Brasil é difícil, mas como dizia Spinoza: “Todas as grandes coisas são difíceis e raras”. Meus pés são raízes e não haverá homem e nem sistema nenhum capaz de arrancá-los do coração do mundo, que é onde estou plantada. É tudo que tenho a dizer. O premiado poeta Álvaro Alves de Faria escreveu os prefácios dos seus dois livros e indicou o seu nome para a editora portuguesa Temas Originais, do poeta Xavier Zarco. Como você vê a recepção de sua obra, no Brasil e em Portugal? Em que medida o apoio de Faria contribui para o reconhecimento do seu trabalho? Aqui no Brasil a recepção tem sido boa, não no sentido das vendas, mas em um campo mais profundo, o da ternura e do afeto que estes livros me proporcionam. Eu, que sou solitária até ossos, me enxerguei amando pessoas através da poesia. Conheci o Álvaro no Twitter, criamos um laço literário bastante aprofundado. A indicação à editora Temas Originais foi uma bonita surpresa, não esperava. Álvaro é imenso, e lendo seus livros tive essa confirmação. Lutou por um país que já não é mais possível. Tudo o que nos resta hoje é a Poesia. É isso ou um tiro na cabeça. Álvaro Alves de Faria, no prefácio de Ensaio sobre a geografia dos cernes, afirma que “P. F. Filipini é uma afirmação poética neste vale de lágrimas em que a poesia foi jogada por alguns irresponsáveis”. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Você considera que as elites políticas e econômicas reprimem a difusão da literatura e de outras formas de manifestação do pensamento? Dentro de mim isto é claro: se mil pessoas leem o meu livro ou se apenas uma o lê, a importância é a mesma, porque quando alguém compra um livro de poesia e se investe nele, algum muro de repressão em algum lugar é quebrado. Sempre haverá repressão. Enquanto houver gente possibilitando liberdade através da Arte, haverá gente querendo impedi-la. A poesia não tem lado, não nos esqueçamos disso. Com o crescimento das editoras independentes, o cale-se se enfraqueceu. Hoje é muito difícil calar um poeta que vive sua poesia, que é testemunho dela. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Eu vivo alheia à realidade por conta da depressão e de outros transtornos, mas dentro do meu silêncio observo muita coisa e muita gente. De um lado vejo escritores medrosos e apressados, e uma das melhores conquistas do escritor no que tange ao amadurecimento interior é – perder o medo de escrever: o medo de se atingir, o medo de doer e de sofrer e, sobretudo, o medo de que com isso consiga atingir uma alegria mais honesta. A ideia para a escrita de um livro pode surgir em um segundo, e seu 356

amadurecimento pode durar uma vida inteira. Não há razão para ter pressa, o processo de escrever é o processo de aprender a viver. Escrever não é um dom, tudo é um esforço do espírito para se chegar à intimidade das coisas. Isto requer uma reeducação do próprio enxergar. É difícil, custa tempo. Não tem a ver com manuais. Manuais tornam as coisas úteis. Com isso, em mim, duas substâncias são essenciais: a solidão para aguçar a sensibilidade e chegar às minhas próprias misérias, e o pensamento crítico para amadurecer os meus critérios de seleção daquilo que consumo enquanto arte, ou seja, ter consciência daquilo que estou consumindo. Uma consciência madura não evita as coisas superficiais, ao contrário, o espírito maduro permite transitar entre todas as coisas sem que essas coisas nos roubem de nós mesmos. Por outro lado, vejo escritores completamente lúcidos de seu ofício, que encaram de frente o fardo que é escrever & pensar. Isto me deixa especialmente alegre. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Sim. Estou trabalhando atualmente em uma prosa poética que tem como personagens duas mulheres, um mapa interior da mulher-mundo, a mulher-lésbica, a mulher-ela-mesma. Terminei meu terceiro livro de poesia depois de 350 páginas e alguns meses de total exílio. Ele é estudo íntimo e um tanto quanto filosófico do meu quintal interior, pesado, denso, que me feriu, que me alegrou. Van Gogh sempre esteve certo: a tristeza dura para sempre. Inescapável. Há também um romance filosófico sobre morte & ternura na gaveta esperando meu amadurecimento, sou pequenina demais para ele. Antes de encará-lo preciso criar em mim defesas sensíveis para não perder minha lucidez ao escrevê-lo. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Todos somos um pouco monstros. Estava ali o tempo todo. Hoje, no entanto, há formas (sobretudo as redes sociais) de ser voz tanto para o bem quanto para o mal. Como combater isso? A literatura é um dos meios mais profundos de humanização. É preciso que todos compreendamos essa banalidade do mal crua que se retroalimenta pela mediocridade, e no nosso país isto se tornou uma regra: quanto mais medíocre, mais perigoso. Hannah Arendt deixa claro: “os membros fanatizados são inatingíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte.” O que espero? Só espero ser uma pessoa melhor da melhor forma que eu puder – para mim e para o outro, porque é minha responsabilidade com a humanidade. Tenho de dar conta do meu próprio espírito. 357

Paulo Caetano Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1980. Vive em Belo Horizonte (MG). Entrevista concedida a Vitor Cei entre março e abril de 2018.

Cada escritor tem método e estilo próprios. Em seu primeiro livro de ficção, Sul do chão (Edição do autor, 2010), é possível perceber uma característica marcante de inclassificabilidade. No prefácio do livro, Gustavo Silveira Ribeiro indaga se o microcosmo que o livro oferece deve ser classificado como de contos, microcontos ou micropoemas. Como você descreve seu modo narrativo e seu processo criativo? Em primeiro lugar, agradeço pela entrevista, e parabenizo pelo projeto de pensar a literatura brasileira contemporânea. Ela é rica, diversa. As classificações tendem a engessar o objeto. O colapso das categorias soa pra mim como algo ao mesmo tempo anárquico e potente. Afinal, quem classifica é aquele que, não raro, detém o discurso. É fascinante, por exemplo, o Foucault de As palavras e as coisas lendo o Borges de o “Idioma analítico de John Wilkins” ao dizer que os animais se dividiriam em “(a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación...”. O modo como (não) categorizo as coisas tende a dizer de mim, do modo como concebo o entorno. Nesse quesito, com relação ao Sul do chão, lhe falo que foi um momento curioso preencher a lacuna “gênero” (textual) para a Biblioteca Nacional. Lá na ficha catalográfica está “contos brasileiros”, se não me falha a memória. Esse episódio, na real, desperta um tanto de ideias pra textos, projetos. Vontade de escrever contos (¿) só com fichas catalográficas (risos). Você é fotógrafo, tendo realizado a exposição individual Brechas (2016) no  Café Khalua de Belo Horizonte. Também é artista plástico, autor de obras como Natal no Bunker (2016). As artes visuais desempenham alguma influência em sua aproximação ao objeto literário? Fico lisonjeado por ser visto como artista plástico e/ou fotógrafo. Não me sinto como tal (pelo menos não no sentido profissional dos termos). O que vem pra mim é uma ideia. E ela, quando vem, chega com determinado formato, o que implica um gênero (ou discurso, etc.). Natal no bunker, por exemplo, já veio pronta, digamos assim. Foi um presente desses que caem no colo: eu estava passando pelo tradicional bairro de Santa Tereza, em BH, quando vi, no muro de uma casa de classe média, uma cerca concertina com um enfeite natalino. Achei aquilo bem paradigmático de um setor da sociedade que vive numa ambivalência curiosa: alega um amor (religioso, entre ditos semelhantes), mas que é extremamente punitivista, bélico e fechado para com grupos dissonantes. Sem contar também o fato de o mercado ter se apropriado (“domicializado”) de um objeto usado nos campos de concentração. Sobre a aproximação da Literatura com as Artes Plásticas, considero que tem acontecido uma aproximação sistemática entre elas. Há vários escritores que 358

vêm trabalhando isso. Talvez o exemplo mais significativo pra mim seja o Junco, do Nuno Ramos. Numa conversa com Wander Melo Miranda, ele colocava que parece estar havendo um alargamento da noção de Literatura. Isso porque parte considerável dos escritores se vale de modo sistemático de outras linguagens (cada um à sua maneira, obviamente; pensemos nos cartões do Guilherme Gontijo Flores, nas performances de Ricardo Aleixo, pra ficar em apenas dois exemplos). No que diz respeito ao Sul do chão, que é de 2010, considero que há algo de “imagético” ali (boa parte dos contos vieram de alguma cena que presenciei ou imaginei). Muito do que tenho pensado hoje (e espero que saia nesta década, risos) é indissociável da imagem. Não sei se é só por influência desses colegas escritores, ou se estamos num momento de virada; se estamos menos grafocêntricos; se estamos, como colocou Seligmann-Silva, numa virada biológica, o que daria novo estatuto à imagem... Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Artistas que admiro usualmente abstêm-se de se classificar. Tenho tentado fazer essa abstenção, talvez porque considero que somos um constante devir (o que acarretaria possivelmente mudanças acerca da obra); talvez porque eu considere que ainda haja uma autoridade sobre propriedade artística e intelectual, coisa que constrangeria leituras outras. O que o autor diz tende a ser levado em conta. Sobre inauguração (esse termo é bom, a propósito), lembro dum episódio na 2ª série do ensino fundamental, em 1988 (rs), quando a professora Penha, no extinto Colégio Anchieta, em BH, anunciou o vencedor do concurso de redações sobre meio ambiente (lembro disso com um sorriso, alguma satisfação, humor e carinho pela situação). Ela leu meu texto para a turma, sem me identificar, e perguntou se alguém sabia de quem se tratava. Alguns sabiam; não sei como. A professora então falou algo positivo, apontando para uma questão identitária (tipo “você é escritor”, rs, lembro que aquilo me marcou) e me deu um abraço. Por muito tempo isso alimentou meu imaginário. Quanto à minha percepção, lhe falo que isso é algo impreciso pra mim. Considero haver uma habilidade e gosto pela escrita. É um prazer, por exemplo, pensar arranjos sintáticos para criar nuances. Se isso bastar, rs, talvez possa me entender como escritor. Mas a real é que considero mais pensar a partir de ideias; mais especificamente: de discursos, gêneros, linguagens (como quiserem chamar). Explico: tenho uma ideia e ela precisa vir materializada, transposta whatever numa linguagem. A Brechas, por exemplo, para mim, tinha que vir como fotografia. Eu via rachaduras e pensava “Poxa, frestas são muito significativas, ainda mais se vistas de perto”. Já o conto que fecha o Sul do chão, por exemplo, aconteceu a partir de uma situação extremamente insólita que presenciei: um andarilho (que eu conhecia de vista do centrão de BH) ficou andando a dar estrelas. Aquilo pra mim foi como uma explosão (semântica, psicanalítica, socioeconômica, rs). Imagina a situação: geral cansada no ponto de ônibus da surrada Avenida Paraná, e aparece um figura que abre os braços e se lança a andar dando estrelas – impassivelmente (quase blasé). Provocativo é pouco pra falar desse cara. 359

Você é integrante do Coletivo Partilha, que realiza saraus com performances à luz do conceito de partilha de Jacques Rancière. Como você vê o ato de recitar? Recitar é recriar? O Partilha deve ter feito umas cinco apresentações. Dessas, participei de três. Apesar de ter uma voz preguiçosa e rouca, me atrevi a falar, a “dar um texto” (como dizem no teatro). A postura que mantive foi algo próximo àquilo que faço em sala de aula. Eu sabia que poderia caminhar nesse tom, que assim não soaria fake. No sarau da água (Funarte, 2015), por exemplo, contei o caso de uma cachoeira que estaria sendo apropriada por um condomínio fechado na grande Belo Horizonte, para depois ler os versos de uma música (“Waterfall”) de um amigo compositor, Marcel Alan. Já no sarau marginal (Parque Municipal, 2015), o qual dirigi, li um trecho de um texto do Nuno Ramos (sobre o caráter estanque da sentença judicial) para então exibir uma reportagem sensacionalista em que um indivíduo alega que colocaria fogo no ônibus (como protesto) e que isso (o incêndio) seria um poema concreto. Tendo em vista que narrar é ficcionalizar, contar algo de um ponto de vista, engendrar uma história (ainda que encontre eco no “real”), considero que isso, sim, é um ato de criação. E há de se contar também a roupa usada, o tom de voz, enfim, todo esse arranjo constitui um texto maior, o da performance. Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, seja para promover a própria obra, seja para engajar-se politicamente. Como vê essa face do autor contemporâneo? O que mudou na literatura após o advento da internet? O que vejo é a rede social como ferramenta para descentralização das possibilidades de publicação e distribuição. Há diversos autores que conseguiram projeção a partir delas. Mesmo o Instagram, que se pauta no uso da imagem, é palco para poetas (que tiram fotos de seus poemas e os postam). Então, especulo que, se antes autores costumavam entregar os originais apenas a figuras próximas avaliarem, agora a probabilidade de testarem os livros, antes da publicação de fato, com mais gente (os amigos virtuais) é maior. Imagino ainda que a leitura nas redes sociais é mais urgente também. Falo isso porque considero que o Facebook, por exemplo, é ansiogênico. As notificações incessantes, a estimulação a estar sempre atualizado e a ser o primeiro a curtir (como se fosse uma corrida) devem impactar o aparelho psíquico. Deve haver alguém da neurolinguística pesquisando isso. Poetas como Ricardo Aleixo, Tarso de Melo, Eduardo Sterzi não se furtam também a postar na rede. O último, por exemplo, se não me falha a memória, já afirmou que usa o Facebook como plataforma de ideias embrionárias. Se esses “suportes” tomaram de assalto o lugar das revistas e livros, por que não usá-los (tendo em vista algum potencial anárquico que ainda resta neles)? Contudo, vale observar que os e-books simulam o formato tradicional dos livros. (Uns até forjam o som da passagem de página!). Isso é um indicativo de que o livro tradicional, material, táctil ainda deve perdurar. E além do sensorial, ler num livro impresso é estar um pouco menos conectado ao mundo frenético e avassalador das notificações; é estar em outra temporalidade. 360

No conto “quero ser estrela quando crescer” (Sul do chão), o protagonista Alonso “descobriu que tinha cor e que por isso recebia tratamento especial”. Como o racismo presente na sociedade brasileira afeta ou é problematizado em sua escrita? Como você bem localizou, no Sul do chão, esse é o conto que tem a temática de modo explícito. Alguns dos outros contos têm marginalizados sociais distintos (a mulher, o louco...). Já comentei aqui como esse conto surgiu. E os demais vieram também de situações análogas (que me impactam, que me obrigaram a escrever, pois a ideia, a cena não cessava de retornar pra mim, quase como uma pulsão; e às vezes leva um tempo pra gente sacar que é preciso escrever, que a cena voltando não é “só” um pasmo diante do insólito do mundo). O racismo tende a me impactar como outras violências me impactam (como o genocídio de povos indígenas, a violência contra a mulher etc.). A maneira que lido com isso é por meio da palavra (seja na escrita, seja na sala de aula, indicando, analisando textos com esses temas). Considero fundamental esse gesto ainda que eu não me localize nesses grupos exatamente; a empatia é base da filosofia. E pondero que os ganhos sociais ocorrem mais efetivamente quando diferentes grupos sociais abraçam certa pauta, a qual nem sempre incide diretamente sobre eles. Você está escrevendo algum livro? Tem projetos que envolvam outras linguagens? Tenho muitas ideias. Devo ter uns quinze itens de coisas por fazer. De um modo geral, elas concernem às artes plásticas (são séries fotográficas e objetos), mas há também o projeto de um livro de poemas (de um tema, a propósito, que não me lembro de haver na poesia brasileira de modo sistemático). E na real não sei se vou conseguir efetivá-las nesta vida, rs, porque realizar demanda muita coisa (tempo, dinheiro, energia física, afetiva, cognitiva). Dou aula de Leitura e Produção Textual. Isso demanda corrigir muitos textos. Talvez eu pegue essa lista e faça um conto à la Borges, Bolaño ou Piglia... Mas já que deixei uma ponta, vou segredar um projeto aqui: a biopolítica na arquitetura. A ideia é registrar fotograficamente como a arquitetura é invadida por essa administração dos corpos (a vigilância, no caso). Um exemplo disso, em BH, é a bela fachada do Palácio das Artes que tem câmeras de vigilância. No meu Facebook há uma foto dessa bela estrutura com uma câmera pendurada. Fico imaginando a reunião da Fundação Clóvis Salgado para decidir sobre a instalação: alguém pragmático falando “não dá, não dá, tem que instalar câmera... olha só a violência... as pessoas... os assaltos... os cidadãos de bem...”, enquanto algum arquiteto ou artista da equipe fala “poxa, mas a fachada é do Niemeyer... e a propriedade artística?”. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Acho sensacional a literatura brasileira contemporânea. Sei que posso esquecer alguns nomes, mas, como indicação, vale a pena citar, para ajudar na busca que o nosso leitor aqui fará. Na poesia, acho fundamentais nomes como Alberto Pucheu, Angélica 361

Freitas, Carlito Azevedo, Eduardo Sterzi, Fabiano Calixto, Paulo Henriques Britto, Ricardo Aleixo, Sérgio Cohn, Tarso de Melo. Na prosa, sempre retorno a nomes como Bernardo Kucinski, Ligia Bojunga Nunes (mesmo sendo de literatura infantojuvenil, não posso me furtar a citar, por exemplo, o Tchau), Maria Valéria Rezende, Nuno Ramos. Bonus-track: li há alguns dias o sensacional Nuvens, da Hilda Machado. É impressionante a concatenação de cenas que ela constrói ali. Uma das coisas que me instiga no grupo citado é como, em sua maior parte, os escritores tensionam a linguagem, jogando com o desgaste da língua, incorporando a performance, as artes plásticas... Isso tudo parece ampliar a noção de texto literário. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Não sou muito entrado em questões editoriais. O que vou colocar é fruto de algumas leituras e de algumas conversas com autores e editores. Um desafio que considero para ambos é a distribuição. Fazer os livros chegarem às livrarias não é fácil. Além de o Brasil ser grande, existe um forte lobby de algumas dessas lojas. Nalgumas, gôndolas custam caro. A fatia que fica nesses estabelecimentos (usualmente entre 30% e 40% do valor do livro) é algo que chama minha atenção. Sei que todos precisam sobreviver, mas fico pensando quais outros segmentos têm tal percentual. Outra coisa que me parece ser um desafio é pensar projetos editoriais impactantes. Lembro do Wisnik certa vez dizer que no Brasil de certo modo colhemos (nós, leitores) um fruto bom por haver poucos leitores no país: diferentemente de vizinhos (como Argentina e Colômbia, onde proporcionalmente se lê mais), as editoras daqui precisam pensar em bons livros (visualmente falando), situação menos recorrente na Argentina, onde são muito mais comuns, por exemplo, edições simples de papel jornal. Vale aqui contar um breve caso: um amigo foi à Colômbia e contou que lá vendem livro pirata em semáforos. Fiquei pensando na demanda enorme do lugar, a ponto de o livro se tornar uma opção de produto a ser pirateado. Por fim, fazer novos escritores serem (mais) lidos demandaria, por exemplo, disciplinas de literatura contemporânea em cursos de Letras (ou ainda o estudo sistemático em colégios). Considero que há bons pesquisadores que trabalham com esse recorte. Na disciplina que leciono neste semestre na UEMG (Literatura pós-45 até a contemporaneidade), me valho do que escrevem Alberto Pucheu, Célia Pedrosa, Gustavo Ribeiro, Marcos Siscar. Sua exposição Brechas propõe que “Achar brechas pode ser uma saída para a reversão de uma ordem opressora”, enquanto o livro Literatura, Direito e Justiça (Crivo Editorial, 2016) discute a fragilidade da “democracia” e a lógica do Estado de Exceção. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou 362

espera como coda do atual estágio da humanidade? Não sei aonde vai dar isso. (tô rindo, mas é de nervoso). Brincadeiras (sérias) à parte, tenho algumas hipóteses para o que você coloca. Considero que a direita vem ganhando espaço, por vários motivos, com uma série de erros (em diferentes latitudes) da esquerda. Tivemos governos de (aparente) viés progressista em vários países, o que parece impulsionar também uma reação, como um ciclo. Contudo, me parece que a direita costuma ser mais pragmática para se aparelhar das instituições, firmar acordos, perpetuar-se no poder. Imagino que teremos algo assim no Brasil por bons anos. A ver. Vale a pena ressalvar que quando uso “a direita”, considero que ela é um bloco heteróclito; o fato de ser de direita não tem relação com intolerância. Me refiro aqui à ultra-direita a que você alude na pergunta. Da minha experiência de aula em escolas tradicionais de BH (duas particulares e uma pública), sinto que parte considerável dos alunos vê com bons olhos a abertura de mercado, a livre concorrência, a privatização de instituições como os Correios e a Petrobrás, enfim, ideias liberais (economicamente falando). Muitos consideram que o funcionalismo público é ineficiente e arrola benefícios em demasia, numa discrepância (salarial, por exemplo) para com o mercado. Vejo ainda que vários estudantes reagem a aulas muito ideologizadas, marcando uma posição explícita de combate. Somado a isso imagino que empresas do GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon) pululam no imaginário dos millennials. Há uns dias, escrevi um ensaio sobre um episódio da série Black Mirror em que cito o Moysés Pinto Neto (In Bruno Cava, no prelo) discorrendo sobre certo caráter progressista dessas empresas que provavelmente revitalizarão o capitalismo (e o imaginário acerca desse sistema socioeconômico) depois da crise de 2008, pois o “aceleracionismo capitalista” (típico das corporações citadas) conciliaria um espírito empreendedor com pautas progressistas (como a diversidade cultural), coloca o pesquisador. Para boa parte dos jovens liberais para quem lecionei, é um absurdo um professor de universidade pública receber um salário de 25 mil reais ou um funcionário do judiciário acumular vários benefícios de cerca de 4 mil reais cada, além do salário. Não assevero que esse posicionamento é adequado, mas ele tem ganhado espaço. Eu não usaria esse termo, “monstruosidade”, para me referir à ultra-direita (a não ser a um crime específico que tenha sido cometido). Em primeiro lugar, porque na etimologia de “monstro” há o verbo “mostrar”: o monstro é aquela figura a ser evidenciada (para o bem e para o mal). No Livro de Job, por exemplo, o Beemoth, para Deus, é exemplo de força e serenidade (em oposição às blasfêmias do personagem de Uz). E em segundo lugar, porque, com esse rótulo, cessa-se o debate. Como pacifista, acredito na troca de ideias – o que não ocorreria se um dos lados começasse a conversa chamando o outro de “monstro”. Falo isso, contudo, com certa melancolia, pois parece não haver solução para o fascismo: conversar nem sempre adianta; ignorar, idem, e matar, menos ainda (o que, reitero, abomino). E quando falo “fascismo”, não uso o termo de modo gasto como “aquele que não é estritamente do meu espectro ideológico”; uso-o como “aquele que sistematicamente aniquila o outro, a diferença”. Por fim, não sei se haverá uma coda, um arremate definitivo para as tensões crescentes atuais. E imagino que, se houver, ela não será “social” (chamemos 363

assim), mas sim ecológica. Tendo a achar que os ânimos são exaltados até um ponto em que a economia é mais intensamente afetada. Depois disso, suponho que o mercado cercaria, por exemplo, uma guerra iminente (caso ela não seja do interesse). Isso sem contar que o real é algo complexo; não acredito em teorias conspiratórias que resumem todo o agenciamento a um único ator. Os vetores são vários; as disputas, idem. Nesse sentido, inclino-me a pensar com o Viveiros de Castro, que aponta para um colapso geofísico, afinal, nós, humanos, já adquirimos o protagonismo em impactar o meio ambiente.

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Paulo Roberto Sodré Nasceu em Vitória (ES), em 1962. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei entre julho e agosto de 2018.

Cada escritor possui método e estilo próprios. Gostaríamos que comentasse as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. O poema “(...)”, que serve de introdução a Poemas de Pó, Poalha e Poeira (Secult, 2009), atesta que “Depreende-se / da superfície / uma caligrafia / espessa e áspera”. Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? Esses versos de fato contornam bem o que entendo ser meu processo criativo: observar a superfície do que está ao meu redor e ser, inesperadamente, surpreendido pelos seus abismos de encantamento, repulsa, entusiasmo ou melancolia. Por caligrafia compreendo a expressão daquilo de que não consigo escapar como observador do mundo e de seu impacto sobre mim. Não se trata, portanto, de (ou apenas de) beleza (cali) no sentido mais previsível, mas de espanto, assombro, maravilha. Sou um olhador, feito Alberto Caeiro, cujo verso emblemático me acompanha desde que o conheci (e que eu adoraria tê-lo escrito): “Sou fácil de definir. / Vi como um danado”. E o que olho, em geral, e escrevo está na ordem do espesso (por difícil de discernir) e do áspero (difícil de assumir), porque percebo especialmente e me sinto vulnerável a dois temas: a evanescência do humano e de tudo que lhe diz respeito e a homoafetividade, assuntos que me acompanham desde as primeiras leituras (foi de uma perplexidade lindíssima descobrir Em nome do desejo, de João Silvério Trevisan, e, antes, Morte em Veneza, de Thomas Mann, ou, depois, Maurice, de Edward Morgan Forster, ou “Frederico Paciência”, de Mario de Andrade, narrativas [a poesia descobri mais tarde] explicitamente dedicadas ao motivo do amor entre iguais, e dar-me conta de que se escrevia e publicava-se uma literatura acerca disso) e os primeiros textos produzidos, mesmo que mais velados inicialmente. Tratar desses aspectos da humanidade (e de mim, decerto) norteia ainda hoje minha produção. Assim, muitos temas (a viagem, o afeto familiar, a tradição literária, a transcendência) me seduzem, mas aqueles dois é que acabam atravessando todos e passando mais facilmente pelo filtro da seleção de textos que me leva a publicar um livro. Embora produza com relativa facilidade (as palavras e as frases costumam ser generosas a meu apelo), só vou adiante se um projeto se define primeiramente. Isso significa que uma ideia me chega; avalio sua relevância para mim e para quem eventualmente me leia, procurando detectar alguma utilidade em sua expressão. Neste sentido, por exemplo, perguntei-me, apesar de minha imaturidade na época, que importância teria a produção de poemas explicitamente homoafetivos no final dos anos de 1980; considerei, meio intuitivamente, meio propositalmente, que “tirar do armário” esse tipo de poesia, sem a militância e sem a obscenidade comuns na produção desse período (de que eu tinha notícia), poderia ser ao mesmo tempo um clarear de posição pessoal na comunidade e um tipo de contribuição poética e política. Assim pensando, passei a adotar o método de me centrar em um ponto temático e elaborar textos exclusivamente a partir 365

dele. Adquiri esse hábito ou esquema de produção, portanto, no início dos anos de 1990, quando publiquei Dos olhos, das, mãos, dos dentes (1992). Desde então, gosto e prefiro articular minha poesia (ou prosa, mais recentemente) nessa direção. Seus primeiros poemas foram publicados em Interiores (FCAA, 1984). Que diferenças você destacaria entre este primeiro livro e o seu mais recente livro de poemas? Existiria uma inequívoca evolução no trabalho de escrita, da juventude para a maturidade? Se existe, a que tipos de experiência ela se deve? Imagino que dois eixos se mantêm desde esse primeiro livro: o fascínio pela imagem (meus poemas se caracterizam muito mais pela busca da imagem [em geral pictórica] do que pela demanda do som ou da ideia/pensamento) e o encanto pelo tema da homoafetividade, na época (anos de 1980 e 90) ainda de difícil expressão e circulação, apesar dos esforços da geração mimeógrafo, dos poetas malditos et al. Creio que a comparação entre os primeiros livros de poemas e os últimos resultaria na conclusão de que os iniciais são caudalosamente imagísticos, o que lhes confere hermetismo, ao passo que os últimos continuam sob a diretriz das imagens, mas de modo mais contido, econômico, menos obscuro. Isso advém, penso, da leitura mais frequente de autores mais moderados e igualmente atentos às imagens, como Matsuo Bashô, João Cabral e, talvez especialmente, Roberto Almada, cujo O país d’el rei e A casa imaginária me impressionou muito na época de sua primeira edição (1986). A idade, por sua vez, também me ajuda a ser menos retumbante, indicando-me que se pode dizer (e viver) muito com pouco. Em 2012, a editora Cousa lançou Poemas desconcertantes, seguidos de senhor branco ou o indesejado das gentes, volume que é uma coletânea bastante vasta da sua poesia. Como você definiria, hoje, a sua trajetória literária de mais de três décadas? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Caramba, pensar em três décadas de “trajetória literária” quase me choca... (rs). Na adolescência, fui levado à famigerada produção de versos à flor da pele, aqueles inevitáveis como acne e pelos. Não lhes dei muita trela, embora cada poema me soasse, paradoxalmente, uma contribuição importantíssima para a humanidade, leia-se: irmãos condescendentes, dois ou três amigos também entorpecidos pela proliferação de hormônios e confusões corporais e psíquicas, um e outro vizinho distraídos. Pelo estímulo de um ou outro e, claro, por mim, acabei enviando uma das peças para a seção literária de A Gazeta no final dos anos de 1970. O editor resolveu, por descuido ou por falta de algo melhor provavelmente, publicar um poema meu intitulado, se não me engano, “Cansaço” (soube disso por acaso, molhado de banho marinho, por meio de uma amiga acomodada numa cadeira de praia colorida, numa clareada manhã de verão [acho] na Praia de Camburi). Desde então, não consegui mais ignorar aqueles versos... e procurei fazer jus à chance inimaginável que Renato Soares generosamente me deu. Guilherme Gontijo Flores (Escamandro, 22/09/2012) observou que o poeta Paulo Roberto Sodré se desdobra em diversas personae, multiplicando-se até mesmo em vários poetas em um mesmo livro. Seu movimento poético seria marcado, segundo Flores, “pela incorporação de novas vozes, tons, meneios 366

estilísticos, que vão do semiépico, passam pelo trovadoresco, até o submundo urbano e lírico, entre homens, mulheres, travestis, mas sem cair na farsa, ou na mera expressão da virtuose”. Que dimensão teria na sua obra o poeta, diante do prosador, do crítico literário ou mesmo do escritor de literatura infantil? A observação de Flores me ajudou a dimensionar mais claramente meu trabalho com as vozes e sua recepção, uma vez que, embora busque diferenciá-las na dicção dos vários tipos de poemas que escrevi, sempre me pareceram pouco distintas (aliás, Miguel Marvilla havia me chamado a atenção para isso, a propósito de De Ulisses a Telêmacos e outras epístolas, em que ele detectou pouca diferença entre as diversas vozes que compõem o conjunto de poemas de vários pais a seus filhos), talvez pela onipresença da imagem como recurso central de minha poética e pela dicção em geral melancólica dos versos. Ao afirmar isso (que Gontijo me clareou aspectos de meu trabalho), de certo modo ilustro minha atarantada convivência com as personae que me acompanham nesse emaranhado de atuações ao longo de minha vida pessoal e profissional de docente de literatura, de andarilho, de escritor e de desenhador. Misturam-se elas (embora procure equilibrar as dosagens, de maneira que o crítico, por exemplo, não fale mais alto do que as outras vozes e vice-versa); acompanham-se; enfrentam-se; ignoram-se; reconciliam-se elas nesse trajeto que luto para não redundar em esquizofrenia, mas em um prazeroso sensacionismo pessoano: “Multipliquei-me para me sentir, / Para me sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão extravasar-me, / Despi-me, entreguei-me”. Mas, confesso, apesar da vontade de ser outros, sou fundamentalmente um tímido provinciano, quase canhestro, com o rio Santa Maria fluindo modesto à margem de minha janela, no morro onde se plantou a ilha de Vitória (desculpem-me o excurso; não resisti à imagem). Gostaríamos que nos falasse um pouco acerca da sua atividade como ilustrador. De que modo a circulação por outras artes alimenta a sua escrita poética – ou vice-versa? Costumo dizer, não sem certo humor, que cometi uma traição às Artes quando optei por fazer Letras na Ufes. O pragmatismo de meu pai, Loadyr Sodré, comerciante bem sucedido em Alto Lage, Cariacica, me levou a escolher a licenciatura em Língua Inglesa, rentável num Brasil desenvolvimentista ainda sob a sombra da Ditadura Militar, em detrimento do bacharelado em Artes, muito libertário (ou escandaloso para um rapaz) para a mentalidade suburbana da época. Creio que fui leitor mais assíduo de imagens pictóricas do que de textos verbais, embora, quando force a memória (sabe-se lá o quanto de ficção há nas memórias...) da adolescência (minha infância foi delineada, além de cartilhas sedutoramente ilustradas, sobretudo por quadrinhos de O príncipe Valente e figurinhas de álbuns variados [O porquê das coisas] e da revista Recreio [aguardava ansioso seus números nas bancas], e por filmes de TV em P&B), me vem paralela e cúmplice a descoberta dos poemas escultóricos de Bilac e da voluptuosidade de Peter Paul Rubens e da narrativa densa de Lins do Rego e do cromatismo exato de Gustave Courbet. Assim sendo, talvez a ideia de “traição” seja exagerada; precisei fazer a escolha entre duas vontades: a de ver plasticamente e a de ler literariamente. A 367

graduação em Letras-Inglês ainda me permitiu levar adiante as duas atividades, desenhar (ilustrar, graças a Francisco Aurelio Ribeiro, a quem agradeço imensamente a chance de me iniciar nesse aprazível ofício) e poetar. Com a docência e a carreira acadêmica, contudo, aquela se tornou cada vez mais rareada. De todo modo, creio que as Artes (em especial as figurativas, em particular as impressionistas-pontilhistas e as fauvistas) permeiam meu trabalho verbal, na medida em que este pode ser observado como um desenho, dada a importância que a descrição, por meio das imagens, assume nos versos que venho produzindo ao longo dos anos. O livro de poemas Dos olhos, das mãos, dos dentes, publicado em 1992 pelo Departamento Estadual de Cultura do Espírito Santo, além de ser um belo experimento com variados ritmos e formas poéticas, parece-nos a um tempo ousado e tocado de enorme delicadeza no trato da temática homoafetiva. José Carlos Barcellos, no artigo intitulado “Poéticas do masculino: Olga Savary, Valdo Motta e Paulo Sodré”, alinha-o a uma via de não contestação dos “valores da sociedade e da cultura heteropatriarcais”, afirmando que “o que se marca não é a diferença ou singularidade do desejo homoerótico, muito menos uma suposta tragicidade que lhe seria inerente, mas sua naturalidade não-problemática, em meio às múltiplas circunstâncias em que se manifesta e é vivido”. Estaria você de acordo com essa leitura da proposta que realizou nesse livro singular? Conversamos, Barcellos e eu, na altura em que publicou o artigo, sobre minha concordância a respeito de sua percepção. De fato, e especialmente se comparada à de Waldo Motta, minha poesia não declara o “problema” da homoafetividade, ainda mais polêmica e difícil na ressaca da herança militar brasileira nos anos de 1980 e 1990. Disse-lhe, no entanto, que, ao colocar o amor entre iguais em sua “naturalidade não-problemática”, pretendia justamente alertar os leitores para a possibilidade de amar homoafetivamente, sem explicitar o problema, de modo que a poesia de e sobre homoafetivos não precisasse ser via de regra acusatória e “dedo em riste”. Tratar desse afeto “naturalmente”, em meio a comadres e compadres horrorizados com isso, seria uma forma de expor (e desejar e lutar por) uma possível naturalidade a ser aos poucos expressa e conquistada, como hoje, de alguma forma, a temos. Uma atitude política esquisita em relação aos textos de O Lampião da Esquina ou de Motta, mas que me pareceu possível (e, claro, em acordo com meu temperamento) na altura. Vale notar, entretanto, que há um poema no livro que adere a essa tendência militante e problemática, “De viris”, em que gloso um verso de Motta: “Não obstante, / acredito piamente no homem, sério! / mas êta rocinha à toa, ordinária!”. Você é professor da UFES desde 1989. É possível notar, a partir dessa data, alguma mudança significativa na postura dos alunos em relação ao interesse e ao estudo de literatura? O que dizer mais especificamente sobre a leitura e a pesquisa em torno da poesia? E mais: lecionando é possível identificar os alunos que têm talento para escrever e que podem se tornar escritores? O incentivo que programas, como Iniciação Científica, cursos de extensão, como Oficina Literária, ou disciplinas, como o Laboratório de Práticas Culturais: Criação Literária, têm garantido aos leitores, produtores e receptores de poesia é 368

inegável. Não percebo grande aumento no percentual de interessados. No curso de Letras, acho que o número desses agentes sempre se manteve discreto, ainda que qualitativamente seja sempre significativo. Sim, sem dúvida. Percebem-se claramente os sensíveis ao poema e a sua feitura, ainda que estes nem sempre se sintam seguros para dar continuidade a sua tendência criativa. Como isso depende muito do tempo de cada um, as orientações e dicas são dadas, cabendo a eles segurá-las ou não. O que você pensa acerca dos escritores brasileiros contemporâneos? Que autores você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? É muito difícil ter uma opinião a respeito de um quadro de produção literária num país que, passe o clichê, é continentalista. Sinto-me imensamente defasado em relação ao que se produz e se publica por aqui no estado e mais descompassado ainda em relação ao que se edita no Brasil, seja em mídia impressa, eletrônica ou digital (o que multiplica os índices de produção literária). Casé Lontra Marques, em Vitória (poesia alta e belamente abstrata); Guilherme Gontijo Flores (prosa literariamente referencial), em Curitiba; Cristino (do povo) Wapichana (contos encantadoramente étnicos), de Roraima, e João Meirelles Filho (narrativa culturalmente ribeirinha), em Belém, são alguns que tenho tido a chance de ler, cada qual com tendências muito distintas que revelam muito das linhas multiculturais de produção literária atual. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você percebe esse problema? A partir de inícios do século XX, terá a poesia efetivamente ocupado algum lugar de destaque no debate cultural? A história literária (e cultural) nos indica com muitos exemplos a constante limitação da poesia em termos de recepção. Produção de pares para pares, com algum aumento percentual aqui e ali, mas nada que retire da poesia a pecha secular de “texto para poucos”. Não vejo isso exatamente como um problema da poesia, mas de tudo e de todo produto cultural que demande tempo, sensibilidade e disposição das pessoas para, por meio deles, encararem questões que inevitavelmente colidem com sua zona de conforto psíquico, ético e ideológico. Pensando assim, há pouquíssimos receptores para conversas densas, momentos solitários e silenciosos, aspectos próprios para o ritual da leitura de poesia: suspensão de tempo, silêncio, concentração, dedicação. Do mesmo modo, há pouquíssimos receptores de muitos produtos culturais não massificados nem comerciais e fáceis, como a música instrumental, a canção popular “de raiz”, o drama cinematográfico e teatral, a pintura abstrata ou a arte performática, a fotografia autoral, a dança contemporânea, o canto coral, os folguedos etc. Cada um desses produtos também sofre a limitação de público, dada a necessidade de suspensão dos afazeres cotidianos e da imersão em reflexões e ponderações que arranham aquela zona de conforto. O importante é que cada um deles tenha seu lugar de quando em quando nos debates. E isso sem dúvida tem acontecido aqui e ali. Ana C. ou Hilda Hilst como homenageadas na Flip de 2016 e deste ano, respectivamente, é um indício desse lugar ao sol.

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Você acaba de ser contemplado com o prêmio Secult para a publicação de um romance. Como é escrever ficção (e poesia) no Espírito Santo? Quais os meios mais eficazes para publicar e distribuir, nesse contexto ao mesmo tempo tão próximo do ainda chamado eixo Rio-São Paulo, e tão diverso dele? Como você vê a recepção da sua obra no lugar em que vive e trabalha? Brinquei uma vez numa palestra, afirmando que sou uma espécie de escritor “oficial”, porque até a publicação por conta própria de Poemas desconcertantes (2012), todos os meus livros haviam sido publicados por instituições como a Ufes (pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida), o Departamento Estadual de Cultura (DEC, atual Secult) e o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Isso me garantiu alguma visibilidade, limitada por certo, já que se trata de poesia, aqui no estado. Lembro-me de que nos anos de 1990 e 2000 especialmente quis muito ser publicado (e ainda desejo, claro, mas sem a mesma ansiedade e urgência) em São Paulo (onde desenvolvi mestrado, doutorado e estágio de pós-doutoramento) ou em Lisboa (onde estive por conta de uma bolsa de doutorado sanduíche) e Santiago de Compostela, onde galego e português se irmanam linguisticamente. Ironicamente, tive um livro editado em São Paulo, mas um ensaio (adaptação da dissertação de mestrado), e outro em Santiago de Compostela, mas também um ensaio (tradução para o galego de minha tese de doutorado). Nenhum trabalho literário (à exceção de um poema, “Onde Froidmond”, publicado no blog de um amigo de Lisboa, João Henriques, que o postou gentilmente) teve a mesma sorte dos livros acadêmicos. Diante desse quadro, não me queixo, mas me surpreendo. Depois dessa experiência curiosa, outra ainda ocorreu: recebi um convite para publicar alguns poemas na revista Hétérographe: Revue des Homolittératures ou Pas, de Lausanne, Suíça, pelo intermédio gentilíssimo de Maria Ana Ramos, docente da Universidade de Zurique. Sempre pensei em traduzir alguns poemas para o inglês ou espanhol, língua de que gosto muito, nunca havia pensado no francês... e, no entanto, eis alguns poemas em francês. Surpreendeu-me (não me queixei da sorte, e agradou-me, decerto) imensamente essa publicação inesperada. Passadas essas experiências, deixei de lado a edição extramuros de meus livros e passei a curtir mais estreitamente os “poucos” leitores de meus trabalhos, em geral, receptores que respeito muito, o que me satisfaz muito como escritor. Acho um privilégio ser lido de alguma maneira em meu estado e ser nele, imagino, respeitado, sobretudo considerando a “aspereza” temática de meus textos. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes autoritários, racistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Responder a essa questão requer uma reflexão filosófica, psicanalítica e antropológica a que minha alçada de pessoa de algum modo pessimista e em certos casos desinteressada de labirintos de pensamento e teorização não faz jus. Contudo, não posso deixar sem alguma consideração, por leve (e polêmica) que seja, essa preocupação que vocês trazem, porta-voz de uma inquietação que perturba um não pequeno número de pessoas, ainda que reduzido diante do imenso 370

número de indivíduos que compõem certo senso-comum conservador: heteronormativo, cisgênero, patriarcal e sobretudo numa síntese – em vez de usar termos como misógino, xenófobo, racista, LGBTQIfóbico etc. – narcísico (isto é, o que não reconhece senão a si mesmo [gênero, cultura, raça etc.] como possibilidade de ser e estar no mundo). Para evitar páginas de resposta – e correndo o inevitável risco do laconismo –, lanço mão de relato breve de um trajeto que talvez explique minha posição destituída em parte de otimismo em relação à evolução da civilidade. O contato com duas ideias me impressionou de tal modo, ao longo de minha formação como leitor e como cidadão, que não consigo, por mais que tente, deixá-las de lado quando me vejo diante da necessidade de explicar, ao menos para mim, os caminhos e descaminhos das pessoas na história. A primeira é a da oscilação ou revezamento entre o que Georg Wilhelm Friedrich Hegel considerou tese e antítese, cuja síntese se tornaria inevitavelmente tese a provocar indefinida e sazonalmente antíteses e teses no pensamento e, por conseguinte, na ação dos indivíduos. A segunda, mais assustadora, é a (suposta) lupinidade da natureza humana, segundo Thomas Hobbes: o homem é o lobo do homem, em variados níveis, do mais sutil (competitividade inconsciente entre afetos, por exemplo) ao mais evidente (disputa bélica derivada do desejo compulsivo de poder). Por mais que eu procure evitar especialmente esta ilação, registrada no longínquo século XVII inglês, e por mais que algumas pessoas se revelem mais pessoas do que lobos na história das personalidades e das comunidades, ao fim e ao cabo, nas situações-limite (e é aqui que nos revelamos de fato, sem os frágeis ou relativos vernizes civilizatórios [exemplificados pelas ações que assumimos em guerras, conflitos urbanos e domésticos a que assistimos todos os dias]), o instinto de sobrevivência ou de demarcação territorial (como fazem instintivamente os animais que iniludivelmente somos) e o profundo narcisismo que nos emoldura acabam por nos fazer decidir por ações muitas vezes nefastas e monstruosas. Esses esquemas que identifico na sucessão de iluminações e obscurantismos ao longo dos séculos é que explicam para mim essa onda de reacionarismo a que assistimos, ainda perplexos (e que surpresa deveríamos sentir diante da inequívoca lupinidade de nossa natureza, cuja animalidade procuramos recalcar – mas sem superá-la – o tempo todo em nossa formação?), no cotidiano, nos noticiários, na ficção. No Brasil, após vinte e um anos de governos fascistas e – passe o pleonasmo –, autoritários (1964-1985), conseguimos relativizar a herança maldita com quase quinze anos de governos não autoritários, ainda que conservadores, e com doze anos de governo de dimensão mais esquerdista, menos conservadora (20042016), se considerarmos o perfil de um país visceralmente cristão, leia-se: patriarcal, heteronormativo, branco, capitalista. Após esses anos todos, não surpreende que uma onda contrária, abafada durante cerca de trinta anos, se anime e ganhe força e ameace a iluminação social que obtivemos nesse período – em que pesem os limites e equívocos desse projeto político –, quando fizemos os direitistas conviverem com ideias e ações em tudo contrárias a seus desejos e valores. Além disso, num país de profundas e extensas carências, é inevitável que pessoas busquem sustentar sua esperança irrisória em programas de evangelização que cobram dízimos para aplacar aquelas necessidades de pessoas sem acesso 371

algum à informação correta e crítica capaz de elucidar seus direitos e deveres e de lhes garantir equidade social. Em vez disso, mergulham essas pessoas seus passos em doutrinas religiosas pervertidas que, aqui e além, ampliam a fonte do conservadorismo no Ocidente cristão e no Oriente religioso, baseada nos livros bíblicos que alimentam cristãos, judeus e muçulmanos, além de outras vias religiosas de matriz patriarcal que recrudescem a raiz dos grandes problemas sociais da contemporaneidade: a fobia ao diferente religioso, social, ideológico, cultural, político, sexual, racial etc. Nesse sentido, somos aqui no Brasil (e no mundo) os estrangeiros (índios, afrodescendentes, esquerdistas, ateus, mulheres, LGBTQI, portadores de necessidades especiais et al.) a forçar numa comunidade narcísica (ariana, nacionalista e integralista) nossa presença complexa, difícil, problemática. Se tolerada por algum tempo, em um determinado tempo será contida ou banida, como mostram tristemente os anais dos séculos em que a humanidade se debate. Por mais que lutemos, impeçamos, adiemos, conversemos, negociemos, em um algum momento Marine Le Pen, Heinz-Christian Strache ou Donald Trump ou outro perverso conseguem, com o aval daqueles que não compreendem o mundo senão pelo olho míope de seu umbigo estrito e lupino, a cadeira do poder, seja por quatro anos, seja por vinte, seja por sabe-se lá quantos anos. Assim, a pergunta “onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje?” pode ser respondida sem nitidez e arriscadamente a partir de nossa natureza/cultura mesma. A outra questão (“O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade?”) eu respondo com aflição e, ao mesmo tempo, sem perplexidade: não sei, porque, por um lado, parece inevitável que figuras nefastas consigam, em algum momento, se aproveitar da insanidade de uma comunidade, letrada ou não, para impor suas ideias malditas, porque excludentes e totalitárias. Por outro, ainda que a partir do recalque do lupino e do narcísico em prol de um ideal de civilidade, pode ser que consigamos ao menos evitar mais catástrofes, como a da Síria e a da ameaça norte-coreana. É um alento saber que na contramão da lupinidade, a poderosa Alemanha merkeliana, por exemplo, consegue alguma atenuação no tratamento de estrangeiros, desculpando-se sempre pelo horror de que seus antepassados foram agentes anos atrás. Mas o que ouço constantemente, mesmo entre refinados e aparentemente tolerantes indivíduos, é um indisfarçável uivar contra o diferente. Não sei se conseguiremos escapar algum dia disso.

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Rafael Iotti Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1992. Vive em Caxias do Sul (RS). Entrevista concedida a André Pelinser e Letícia Malloy em outubro de 2017 e publicada na Re-Unir, v. 5, n. 1, 2018.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Em muitos de seus poemas, a intensidade do efeito nasce da apresentação de imagens do cotidiano, de realizações banais e de atividades mínimas. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? A poesia, diferente da prosa, é um estado de êxtase. Eu não a controlo, não a manipulo e não tenho a menor ideia de como conseguir isso. Dizendo de outro modo, a poesia me vem, quase como um fantasma, algo etéreo, e a minha única função é transformar aquilo em linguagem. Sendo assim, não tenho opções. Nem estéticas, temáticas, éticas etc. É claro que esse espírito, que talvez nem seja meu, é guiado pelas minhas sensações mundanas: o que eu vi, o que eu li, o que eu senti etc. Mas isso, pra mim, a feitura, o guiamento que se dá, é completamente inconsciente. A publicação de seu primeiro livro se deu já com o selo de uma editora que se destaca no cenário editorial brasileiro, a 7Letras. Em sua trajetória literária, houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Eu publicava alguns poemas dispersos na internet, em alguns blogs que me convidavam, algo assim. Mas eu acredito que a editora 7Letras não tinha o menor conhecimento disso. Uma noite, depois de finalizar e revisar o livro, enviei o original para o e-mail deles. No dia seguinte, me responderam que queriam editar. Sobre quando me tornei escritor, é uma pergunta difícil. Acho que já nasci amaldiçoado. Mas eu percebi que precisava disso, da literatura, que não era uma coisa passageira, e sim vital, no final da minha adolescência. Ali eu tive a certeza que viveria e morreria disso. Em um dos poemas dispostos na seção “Poemas insensíveis”, de Mas é possível que haja outros (7Letras, 2017), o sujeito poético confronta arte e ciência, assegurando que, se esta explicasse tudo, os poetas “não se espantariam. / eles, tirado o peso de codificar o mundo / no outro dia / bendizendo os cientistas, / distribuiriam seus currículos / em companhia.” Em que medida esses versos – e, em especial, a ideia de peso – dizem de seu processo criativo? Não sei o que é um escritor de verdade, tampouco sei o que é, de fato, poesia. Mas sei o que não é. E, para mim, quem chegou perto disso, perto dessa chama, teve que conviver com esse peso que é transformar as coisas em linguagem. Muitos enlouquecem, são alcoólatras, loucos e viciados. Se por algum momento pudessem esquecer isso, trabalhar num emprego formal, com horas fechadas, talvez fosse uma forma de salvação. Ou de viver com mais saúde. Talvez o que eu fale pareça não ter sentido, e é justamente isso que é enlouquecedor.

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Em outro poema de seu livro de estreia, a voz poética retoma ações cotidianas de Hemingway, Tolstói, Nabokov e Miller e imagina: “talvez algum dia depois de pisar em muita rua / acender muitos cigarros ou não / algum dia quem sabe eu saiba o que eles souberam”. Em outro texto, no fim do livro, são mencionados Borges, Stevenson e Dickens. Trata-se de uma retomada consciente da tradição literária, que chama à atenção, inclusive, por não recorrer a escritores predominantemente conhecidos pela poesia, tampouco a brasileiros. Como lidar com esses autores que, a um só tempo, fornecem inspiração e impõem o peso da autoridade? Assim como os pais, em um determinado momento, é preciso matá-los. Simbolicamente, claro, porque esses escritores já estão mortos. Mas todo mundo tem influências, e está tudo bem. Leio muitas coisas que me influenciam, e falo abertamente. Não tem por que esconder, mas esses autores, especificamente, não conversam comigo. Talvez Tolstói e Borges. Os outros estão aí por acaso. Você se mudou de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, para Porto Alegre. Posteriormente, retornou da capital do Estado para Caxias do Sul. Em Mas é possível que haja outros, nota-se que a experiência de trânsito entre metrópole e cidade do interior se faz evidente em apenas um poema. Apesar de pouco explorada enquanto tema, em que medida essa experiência de trânsito participa de seu processo criativo? Esse livro reúne poemas que eu comecei a escrever em 2010, quando morava ainda em Caxias. Realmente, essas mudanças físicas e espaciais não entraram muito no livro; mas estou escrevendo um romance em que isso está presente. Quero criar uma cidade fictícia que reúna a metrópole e o interior. Não estou seguro se vai ser algo bem feito. Possivelmente não. Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, seja para promover a própria obra, seja para expressar engajamento político. Antes da publicação de Mas é possível que haja outros, você divulgou continuamente sua produção poética no Facebook. Que papel a rede social teve no processo de reconhecimento de seu trabalho? A divulgação de textos nesse espaço influenciou em alguma medida seu processo criativo? Comecei escrevendo na internet; e continuo lá. A internet me deu algumas amizades, outras inimizades e por aí vai. É um espaço interessante, apesar de ter coisas ruins. Mas faz parte. O papel da internet é, também, de divulgação, conhecimento, apesar de eu não ter tino nenhum de auto-marketing. Pelo contrário, cada vez arrumo mais brigas e desavenças pelas redes. Um dos poemas de Mas é possível que haja outros apresenta Cassandra, uma menina de rua desprovida de olhinhos de criança, para quem a praça não é pracinha. Seu olhar pula de pessoa em pessoa, sem descanso, e o poema termina sem oferecer qualquer tipo de alento ou expressão de solidariedade. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como 374

esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Realmente não sei. A miséria humana não tem fim. Não sei se a monstruosidade estava escondida; desde criança ouço que a vida é uma merda, que um dia as coisas vão melhorar, mas não melhoram nunca. Cada vez tenho mais dificuldade em entender por que aceitamos estar onde estamos. Tenho um pouco de dificuldade, também, em me manter vivo. Risos. A poesia, a literatura, pra mim, é um motivo. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira – sobretudo poética – na contemporaneidade. Dentre todas as literaturas, a brasileira é uma que não me diz muito. É claro que existiram escritores geniais: Guimarães Rosa, Campos de Carvalho, Simões Lopes Neto, Hilda Hilst; e, na poesia, pelo menos uns cinco ou seis gênios absolutos, como Drummond, João Cabral, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Manuel Bandeira etc. Hoje em dia admiro dois escritores, meus amigos: Rafael Escobar, que publicou seu primeiro livro agora, Elogio dos tratados sobre a crítica dos discursos (Libretos), e o Marco de Menezes, pra mim o maior poeta gaúcho e, possivelmente, brasileiro vivo. Gosto também da Veronica Stigger, Fabiano Calixto e Carlito Azevedo. Uma afirmação repetida com certa frequência assegura que a graduação em Letras não oferece estímulos à atividade criativa, ou pior, elimina dos alunos o interesse pela escrita literária. A despeito disso, muitos escritores da geração mais recente da literatura brasileira possuem formação acadêmica na área. Como graduando em Letras e escritor, de que modo você avalia essa percepção? A literatura, pra mim, é mais do que uma disciplina ou curso de graduação ou qualquer coisa do gênero. Acho que é possível, ao se depararem com escritores geniais, com um processo de estudar realmente a obra, destrinchar certas coisas, que as pessoas se intimidem, parem de escrever etc. Fazem bem. Já existem muitos escritores ruins com vastíssimas obras por aí. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Interesse, eu acho. A 7Letras é uma das poucas editoras que têm interesse nos escritores novos, não publicados etc. Existem outras, claro, mas acho que há um desinteresse total, principalmente dos leitores. Participei por um tempo de um grupo de leitura de escritores brasileiros: só liam quem publicava por grandes editoras ou tivesse ganhado algum prêmio. É isso, no fim. Ganhe prêmio, escreva o que manda o regulamento e seja feliz. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? Sim, um romance. Tenho outro livro de poemas ganhando corpo, também. Mas acho que já falei demais. 375

Raimundo Carvalho Nasceu em Pirapora (MG), em 1958. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em abril de 2019.

Cada escritor possui método e estilo próprios. Por favor, comente as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. Procuro sempre escrever sobre algo que me diz respeito. Persigo um pensamento, uma ideia, uma imagem e só paro de pensar nisso quando consigo transformar esse pressentimento em poema, ou em um texto qualquer. Não tenho uma ideia preconcebida do que vou escrever, mas, analisando em retrospectiva, dá pra perceber algumas constantes, como um texto mais enxuto, certo cuidado com a sonoridade e alguma agudeza. Tento não só falar do que me vem à cabeça, mas tento também refletir um certo ar do tempo. O poeta que me habita é um ser eternamente jovem e não corresponde completamente à minha personalidade civil, nem a maturidade emocional e intelectual duramente conquistadas por mim. Por isso, esse poeta às vezes me desagrada, às vezes me convence, mas quase nunca tenho ímpeto de defendê-lo; prefiro deixá-lo à deriva, condição única de sua existência. Você estreou na poesia com Sabor plástico (1983), depois lançou Brinde (1990), Conversa com o ciclope (1997), Circo universal (Dimensão, 2000), em coautoria com Ivan Luís Mota e ilustrações de Demóstenes Vargas, e Balada do Velho Chico (Autêntica, 2016), também ilustrado por Vargas. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Digamos que a “cena primitiva” que marca o meu imaginário de escritor se deu por volta de doze anos, quando eu ainda morava na pequena e distante Pirapora, em Minas. Aconteceu que a minha vizinha de frente havia se convertido ao protestantismo e resolveu jogar fora, na rua, um exemplar sem capa de Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado, que recolhi e li avidamente. Aquilo foi uma revelação para mim e, como consequência, comecei a escrever o meu próprio romance, criando personagens a partir de pessoas e fatos que eu conhecia. Preenchi páginas e páginas de um caderno e depois me cansei daquele mundo que eu criara e o deixei de lado. Mas o gosto de escrever ficou. Tempos depois, quando estudava em um colégio interno, por insubordinação, escrevi um poema, em lugar de uma redação, na aula de Português. O caso chegou à diretoria. Fui chamado para uma conversa particular. Achei que era o meu fim ali. Para minha surpresa, o padre-mestre, depois de uma leve e protocolar reprimenda à minha recusa em escrever a redação solicitada, fez uma crítica muito elogiosa do meu escrito e o selecionou para ser publicado na revista anual do Colégio. A partir daí, por causa de um simples poema, minha vida melhorou bastante em qualidade naquela instituição. Passei a merecer a atenção dos professores e do próprio diretor que me facultava a entrada em seus aposentos, onde eu podia ouvir música à vontade e era frequentemente orientado sobre leituras de livros da biblioteca. Ainda 376

interno, um dia mandei um poema para uma revista da capital, que era vendida nas bancas, e para minha surpresa ele foi publicado. Era o ano de 1977. A revista chamava-se Poesia e era dirigida por um poeta chamado Márcio Almeida. Anos depois, em 1980, quando, já morando em Belo Horizonte, entrei pra Faculdade de Letras, tive um poema premiado em primeiro lugar no concurso anual da Revista Literária que o publicou. Os treze anos que passei em Belo Horizonte foram bastante fecundos do ponto de vista da minha criação poética. Participei intensamente da cena udigrudi belorizontina. Sabor Plástico e Brinde, além do poema longo Catábase que publiquei na revista Fahrenheit 451, recriam poeticamente o clima angustiante e desbundado em que vivia imersa a juventude daquela época. Vem dessa época a minha ojeriza à poesia bem comportada dos poetas do mainstream literário. Minha persona poética forjou-se, portanto, nessa recusa em escrever bonito, pra agradar ou ensinar. Após as parcerias com Demóstenes Vargas em Circo Universal (Dimensão, 2000) e Balada do Velho Chico (Autêntica, 2016), você percebe mudanças em sua maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Primeiramente, é preciso que eu diga, que, desde muito cedo em Pirapora, eu me aproximei do cinema. Quando em BH, esse convívio se intensificou. Eu era figurinha fácil na sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, onde tive acesso à cinematografia europeia clássica. Também convivi de perto com jovens artistas plásticos, para alguns dos quais escrevi textos, recebendo em troca obras que até hoje conservo comigo. Porém, o que mais me marcou nesse processo de interação entre poesia e imagem foi a leitura e o estudo que fiz da obra de Murilo Mendes, que resultou numa dissertação de mestrado e no livro Murilo Mendes: o olhar vertical. Li com vagar toda a obra do Murilo e devorei os livros de sua biblioteca pessoal sobre artes plásticas, aos quais tive acesso na UFJF, para onde me desloquei durante um mês, para pesquisar o acervo do poeta recentemente doado àquela universidade. Tudo isso, de certa forma, me preparou para algo que aconteceu muito naturalmente. Conheço Desmóstenes desde quando éramos crianças em Pirapora. Fui aluno de sua irmã mais velha no curso primário em Pirapora e ficamos muito ligados na juventude em Belo Horizonte. Acompanhava com interesse a sua carreira de artista plástico e gráfico e os temas de sua arte não me eram estranhos. Quando ele me convidou pra escrever o livro sobre o circo eu já estava, de algum modo, treinado pela leitura de imagens que eu vinha exercitando esporadicamente com outros artistas e com a leitura e estudo da obra muriliana. Com Circo Universal tive a oportunidade de trabalhar por encomenda e de usar os recursos técnicos da poesia, desligados da ideia de uma poesia fruto de vivências psíquicas subjetivas. Os textos nasceram da interação da pesquisa bibliográfica com a leitura das imagens que paralelamente Demóstenes ia produzindo e, também, é claro, da memória afetiva de minhas experiências com o circo na infância. Com Balada do Velho Chico, acho que conseguimos radicalizar um modus operandi que já se mostrara bem sucedido com o Circo. Antes do livro em papel propriamente dito, produzimos três aplicativos para tablet e smartphone com uma equipe de jovens programadores do laboratório multimodal da UFMG, orientados pelo prof. Chico Marinho. Trata-se de um trabalho experimental unin377

do animação, artes plásticas, música, texto e mecanismos de interação lúdica (linguagem de jogos), aproveitando as potencialidades da touch screen daqueles aparelhos. A ideia era a de que esse trabalho seria apenas o início de um processo da produção de imagens técnicas e artísticas para fins educacionais que proporcionasse, ao mesmo tempo, informação e fruição estética. Esse trabalho circulou por algum tempo na internet, mas seus objetivos maiores foram sufocados pelas intempéries políticas que assolaram o país e inviabilizaram o uso criativo, na educação, das tecnologias digitais disponíveis. Nesse sentido, o livro Balada do Velho Chico é um retorno ao analógico, ao sistema tradicional de interação texto/ imagem, depois de um mergulho nas virtualidades do mundo digital. No entanto, algo desse rico processo está ali no DNA dessa obrinha. Como você vê a recepção de suas obras autorais e traduções? O que mudou depois que Circo Universal ganhou a chancela de “Altamente Recomendável”, conferida pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, recebeu o prêmio Malba Tahan e passou a figurar entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti? Primeiro, é preciso dizer que as minhas traduções são também autorais e que eu as considero como obras minhas, e que nelas realizo plenamente a minha condição de autor. Para falar da recepção da minha obra, penso, no entanto, que devo observar cada gênero em particular. Quanto à poesia, a sua recepção se deu no contexto de sua perfomance. Meus livrinhos de poesia tiveram pequenas tiragens artesanais e alguns dos meus poemas figuram em antologias, teses, livros e revistas. Creio que é uma poesia de circulação restrita, e que deve muito ao modo como se fazia poesia nos anos 80. No que se refere ao livro Circo Universal, o mais significativo não foi o prêmio da FNLIJ, mas a sua recepção pelos professores de arte, pelos artistas e pelos estudiosos do circo. Fizemos um livro sobre o circo, para a criançada, mas, na época, ainda carente de estudos sérios sobre o tema, em catálogo, acabamos por suprir uma demanda que nem estava no nosso horizonte imediato. Esse livro, publicado em 2000, teve várias reimpressões e em 2012 teve a sua segunda edição. Muitas escolas, Brasil adentro, possuem exemplares dele em suas bibliotecas. Balada do Velho Chico, meu segundo livro no domínio infantil, está tendo também uma ótima recepção e já foi adquirido por duas importantes prefeituras, a de Belo Horizonte e a de São Paulo, o que redunda em boas vendas, permitindo às editoras a continuidade do trabalho de edição desse tipo de produção, que só se sustenta pela existência dos editais de aquisição de obras para as escolas públicas. Outro detalhe que permite perceber a boa recepção destas duas obras é que já perdi a conta de quantas vezes liberei a publicação de trechos delas em livros didáticos. No que se refere à minha produção ensaística, meu livro sobre Murilo Mendes, mesmo sendo editado pela Edufes, circula por aí, ajudado pela força de difusão dos sebos virtuais. Sorte semelhante tiveram os livros coletivos de eventos que coorganizei na Universidade. Alguns desses textos circulam também na internet, o que facilitou bastante a sua recepção pelo público interessado. Por último, ressalto a minha tradução das Bucólicas, que saiu em 2005, fruto de minhas pesquisas de doutorado. Para mim, essa publicação teve um impacto muito positivo e pouco esperado. Fiz uma tradução e um estudo visando a um público mais amplo, formado por leitores de literatura e poesia em geral, e não a um público 378

restrito de estudiosos de literatura clássica. O interessante é que estes últimos receberam muito bem o meu trabalho, que acabou por se tornar uma referência importante no campo, sendo constantemente citado em artigos, dissertações e teses, quase sempre de modo muito positivo. Nesse sentido, sou grato aos estudiosos de cultura clássica da Universidade de São Paulo, que primeiro, e imediatamente, reconheceram o valor de minhas traduções poéticas e da minha reflexão teórica sobre o fazer tradutório, algo antes impensado num campo pouco afeito a discussões que tocam o contemporâneo. Destaco também a ótima recepção de Por que calar nossos amores, coletânea de poemas homoeróticos latinos, tanto pelo grande público que praticamente esgotou a primeira edição, bem como pelos especialistas que escreveram resenhas para importantes jornais e sites de grande circulação. Considero esse trabalho, que realizei com a colaboração de importantes estudiosos e tradutores, como um dos mais relevantes da minha produção. Acredito que legamos à cultura de língua portuguesa algo inédito, em seu conjunto, em outros contextos culturais e linguísticos. Que eu saiba, não há nada parecido com a nossa antologia em inglês, francês, italiano, espanhol ou alemão. O Brasil continua tendo como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e a outras artes, o que coloca como imperativa a tarefa de educar e formar público. Qual o papel da literatura nesse desafio de formar a criança e o futuro adulto leitor? Como autor de literatura infantil, quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar livros como os seus? Primeiramente, é preciso dizer que a literatura não pode ser isolada das outras artes ou mesmo das outras linguagens. A literatura não tem nenhum papel mágico a ser desempenhado fora do embate entre as várias linguagens que compõem o imaginário e o caldeirão cultural da sociedade. É necessário que a escola seja esse espaço de interação entre as várias modalidades de linguagem e saberes. A literatura como fetiche de seres iluminados nada serve ao processo educativo. É importante que ela ocupe seu devido lugar discursivo de força desideologizante, capaz de oferecer alternativas interpretativas dos fatos de natureza social e individual. Não cabe à literatura ensinar nada a ninguém. Ela, junto com as outras artes como o cinema, o teatro, as artes plásticas, a música etc., é uma reserva de liberdade do ser humano. A literatura não pode ser capturada pela máquina repressiva que funda o espaço escolar. Essa é uma contradição que não deve ser lamentada, mas bem-vinda, desejada mesmo. A literatura infantil tem esse desafio e o enfrentamento dele é o que a dignifica. Tornar a escola também um espaço de liberdade é uma consequência muito positiva quando os educadores e educandos se engajam nos processos artísticos em si mesmos, e não como meio para obtenção de resultados exteriores a eles. No que se refere ao último item da pergunta, creio que podemos inverter a questão: o que os autores podem aprender com os educadores para serem melhores escritores de literatura infantil? Digo isso porque acho muito importante que os autores vão às escolas e conversem com os alunos e os professores. Há muito o que aprender com as crianças e os seus mestres a respeito do modo de expressão adequado a cada faixa etária e os assuntos e temas a serem abordados. Tive muita sorte com o Circo Universal, porque fui convidado para falar em várias escolas, ocasião em que pude observar o resultado do trabalho prévio feito pelos professores com o livro, antes da minha visita. O que 379

tenho a dizer, portanto, eu aprendi com eles: é que a leitura de livros de literatura infantil deve acontecer no contexto de um projeto escolar mais amplo que englobe as várias disciplinas, permitindo ao aluno interagir com o livro sob vários pontos de vista e desenvolver atividades ligadas não só à leitura e à escrita, mas também ao corpo, à oralidade, ao teatro e a tantos outros saberes desenvolvidos na escola. Você trabalha com a tradução poética de poesia latina clássica e já traduziu obras como Metamorfoses, de Ovídio, e Bucólicas, de Virgílio. Recentemente, coorganizou e cotraduziu a antologia Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina (Autêntica, 2017). Também já traduziu textos contemporâneos, como o ensaio “Variações sobre as bucólicas”, de Paul Valéry. Sabemos que algumas de suas referências na teoria da tradução vêm de Manuel Odorico Mendes, Paul Valéry, Walter Benjamin e Haroldo de Campos, entre outros. Você poderia esmiuçar um pouco mais as opções temáticas e a linha teórica que norteiam seu trabalho como tradutor? Basicamente, sou um tradutor de poesia clássica latina. Essa é uma atividade totalmente atrelada à minha atividade de professor de latim na Universidade. Quando tive de escolher um objeto de pesquisa para o meu doutorado, me deparei com um campo muito pouco explorado e, ao mesmo tempo, muito importante, ou seja, o campo da tradução poética das obras clássicas, dominado, majoritariamente, pelas traduções de teor filológico. A tradução poética, quando existia, não era objeto de reflexão ou comentário. No entanto, isso não significa que não tenha havido tentativas bem-sucedidas de tradução poética no campo da poesia clássica latina. Porém, foi preciso recuar até o século XIX, até à figura de Odorico Mendes, exemplo eloquente de poeta-tradutor, consciente de sua prática inovadora, sobre a qual refletiu nas inúmeras notas que acompanham o texto de suas traduções. Foi essa articulação entre teoria e prática que mais me interessou em Odorico Mendes e que, de certa forma, eu quis reintroduzir no século XX, dominado pela filologia no campo da poesia clássica. Facilitou-me enormemente a tarefa o contato com a obra e o pensamento de Haroldo de Campos. Através de Haroldo, cheguei a todos esses outros teóricos citados acima. Não foi à toa que preferi cursar meu doutorado no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, do qual Haroldo de Campos foi um dos fundadores. Como Haroldo, estou muito atento ao aspecto icônico da linguagem poética e quando traduzo procuro realçar esse lado, dotando a minha tradução das qualidades que caracterizam o original como um poema. Ou seja, a ideia é traduzir um poema compondo um outro poema, que é outro, mas que guarda com o original uma relação de homologia e convergência. Em seu relatório final de pós-doutorado, Metamorfoses em tradução, lemos que “O trabalho de tradução pressupõe uma dimensão pulsional, um corpo a corpo com a linguagem, um enfrentamento letra a letra que permita entreouvir a voz refugiada na escritura”. Haverá traços em comum entre a tradução (como você a pratica) e a escrita autoral? Sim. Como disse anteriormente, considero-me tão autor das traduções quanto dos poemas que cometi de lavra própria, porque me envolvo inteiramente na atividade de traduzir, e nela imprimo a minha subjetividade e as marcas de 380

minha corporalidade. Ao traduzir, faço escolhas, tenho insights, me movo entre errâncias, rasuras, apagamentos e realces. O fato de meu texto partir de outro texto em nada diminui a minha responsabilidade de autor, já que todo texto se origina, em grau maior ou menor, de outro texto. Seguindo, pois, as pegadas de Paul Zumthor, é possível ouvir a voz do tradutor entremeada com a voz do autor do original, numa espécie de dueto em uníssono, encenado pela escrita. Em Murilo Mendes: o olhar vertical (EDUFES, 2001), livro que resulta da sua dissertação de mestrado, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, você analisa minuciosamente as diversas relações perceptíveis entre a obra do grande poeta mineiro e as artes plásticas, destacando a auto-reflexividade, a intertextualidade e a intersemiose. Seu texto expõe então a rede dessa vasta recorrência imagética, reafirmando, na esteira de Luciana Stegagno Picchio, a tentativa, por parte do poeta, de decifrar um universo cada vez mais complexo. Até que ponto aquele tipo de relação com uma certa imagética, característica desse que parece ser um dos seus poetas de predileção, influencia ou se relaciona com a sua própria produção poética e as suas opções como tradutor de poesia? É muito difícil descrever com precisão a influência da obra de um poeta da qualidade de Murilo Mendes na vida e na obra de um poeta, leitor de sua obra, uma vez que o nome Murilo Mendes abriga uma multiplicidade de autores e de obras complexas e discordes. Então, primeiramente, reconheço em mim, muriliamente falando, uma abertura para tudo que vai na contramão da lógica, do consenso burguês e da estreiteza moral. Comungo com Murilo o fascínio pelo sagrado e pelo absurdo. Esse pano de fundo difuso, mas poderoso, fundamenta muitas das percepções e concepções que desenvolvi a partir do convívio com a obra dele. Não acredito em relações intertextuais epidérmicas ou programáticas. Isso para mim cheira a literatice, epigonismo desmascarável já numa primeira e superficial leitura. O contato com a obra de Murilo Mendes me facultou, sobretudo, uma visão alternativa aos falsos dilemas impostos por certas correntes de pensamento: nacional x estrangeiro, ateísmo x religiosidade, clássico x moderno, lirismo x participação, subjetividade x objetivismo, poesia x prosa, ciência x arte etc. Esse exercício constante de liberdade me marcou profundamente, e acredito que o meu trabalho reflete esse ponto de partida e deve ser compreendido a partir dessa perspectiva. Você é professor da UFES desde 1993. A partir de então houve alguma mudança perceptível no interesse dos alunos quanto ao estudo de literatura e de tradução literária? O que dizer mais especificamente sobre a leitura e a pesquisa em torno da poesia e da tradução de poesia? Sim, venho notando um interesse crescente por parte dos alunos pela tradução poética, pela reflexão que ela suscita e pelos reflexos desses estudos no próprio entendimento do que seja a poesia. Falando especificamente dos Estudos Clássicos no Brasil, podemos dizer que houve uma verdadeira revolução na virada do milênio. Ainda há nele o predomínio das traduções filológicas, aquelas unicamente interessadas em apresentar uma leitura linear do conteúdo das obras, mas cada vez mais os trabalhos acadêmicos em nível de mestrado e doutorado, sem 381

perder o rigor da pesquisa filológica, são acompanhados de traduções poéticas cuidadosas no resgate ou na reinvenção da forma do original. É muito interessante perceber que essa movimentação no interior de um campo antes tão pouco afeito a mudanças hoje alimenta o mercado editorial brasileiro de novas traduções dos clássicos gregos e latinos. E ainda há muitas obras poéticas a serem traduzidas ou retraduzidas dentro de padrões estéticos compatíveis com a natureza artística dos originais. Temos que avançar um pouco mais agora numa abordagem crítica que valorize o trabalho do poeta-tradutor, não mais como uma mera reprodução de conteúdo, mas como obra criativa que revela ou realça os modos de significação da obra original. A tradução poética deve suscitar uma discussão de caráter estético, para além de qualquer preocupação de checagem de uma leitura sinótica fiscalizadora dos erros e desvios da tradução. Para ler criticamente uma tradução é preciso que abandonemos essa atitude melancólica de pensar a tradução sempre em desvantagem em relação ao original. Essa mudança permitiria alargar o uso das traduções poéticas no ensino de literatura como um objeto global, que ultrapassa os particularismos das línguas e literaturas nacionais. Olhando um pouco para trás, me agrada ver que consegui contribuir, diretamente, na formação de bons tradutores literários de poesia latina como Guilherme Gontijo Flores, João Paulo Matedi, Guilherme Duque e Rafael Cavalcanti do Carmo. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. No seu modo de ver, alguma vez, a partir do século XX, a poesia ocupou um lugar de destaque no debate cultural? Se não, por que não? Bem, eu gostaria primeiro de discordar da afirmação que antecede às questões colocadas. Precisemos, antes, qual tipo de poesia tem alcance limitado em termos de público. Trata-se da poesia consumida em livro, poesia escrita, feita por poetas e para poetas, geralmente. Muito dificilmente neste tipo de produção o poeta assume uma voz pública, quase nunca se dirigem ao homem comum. Poesia letrada para homens letrados, que vivem ilhados numa sociedade de tipo tradicional e ágrafa. A única possibilidade de circulação mais ampla dessa poesia é quando seus poetas adquirem uma posição de destaque maior, sua produção é assimilada ao sistema educacional e vira matéria de estudo na escola básica e secundária. Esse tipo de poesia acaba se restringindo ao puro deleite de alguns privilegiados das classes médias cultas ou caem na pura irrelevância. Ainda bem que há outros tipos de poesia e de poetas. Basta pensarmos na relevância da canção para a formação cultural da juventude urbana brasileira e mesmo nas disputas de rimas dos rappers e o envolvimento do público nessas competições. Nessa esteira, há que se notar uma intensa movimentação de poetas nas periferias das grandes cidades. De um modo geral, esses agitadores culturais são homens e mulheres pobres, negros, trabalhadores que fazem uma poesia de comunicação direta com o seu público. Lembremos também a existência de uma poesia popular tradicional ainda muito viva e de grande penetração nas comunidades rurais. Enfim, o sucesso ou fracasso da poesia não deve ser medido pelas vendas ou não dos livros de poetas editados pelas grandes editoras, mesmo porque, hoje, com o advento da internet e das redes sociais, alargou-se bastante o campo de ação e de fruição da poesia. Pensando um pouco sobre os mais de 500 anos de história do Brasil, dá pra perceber que, desde o início, a poesia exerceu um papel importante no processo de 382

colonização. A obra de Anchieta é testemunho disso. Outros grandes poetas, em outros momentos da história, assumiram uma voz pública: Gregório de Matos, o Boca do Inferno, na Bahia, os poetas árcades mineiros, o romântico Castro Alves e o modernista Carlos Drummond, só pra citar alguns expoentes, atestam a enorme influência da poesia na vida nacional. No final da década de 60 até os anos 80, a poesia marginal tornou-se um forte instrumento de resistência ao regime militar. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção poética brasileira contemporânea. Sou um leitor voraz de poesia. Leio tudo o que me chega às mãos, fico horas numa livraria lendo os livros de poetas que nunca vou comprar. Procuro não ter uma visão diacrônica da poesia. Leio sem pensar muito no tempo da escrita. Penso mais no tempo da leitura. Daí que para mim a ideia de uma poesia contemporânea não tem muito apelo. Vejo pouca coisa realmente memorável num conjunto muito amplo de obras de poetas ainda vivos. Poderia citar outros nomes também, mas agora me vêm à memória os nomes de Glauco Matoso, Waldo Motta e Ricardo Aleixo. Por mais que escrevam bem, não me interessam poetas cujos versos apontam para uma visão conformada da existência. Não tenho tempo para fruir os dissabores da vida burguesa dos intelectuais de classe média alta e culta, assim como não me interessa o puro ativismo, desempoderado de imaginação ou que desdenhe das matrizes culturais formadoras do nosso ethos. Gostaria que a poesia brasileira fosse a antecipação festiva de nossa libertação como povo autônomo e criativo e assim fosse capaz de estimular as forças transformadoras já latentes nos indivíduos e grupos que formam essa comunidade humana tão singular que é o Brasil e os brasileiros. Enfim, por uma poesia crítica e propositiva. Que seja ao mesmo tempo crítica da realidade e que aponte para uma realidade nova a ser conquistada, tanto através da palavra presentificante da poesia, como através da luta política emancipatória dos grupos sociais dominados. Você está escrevendo ou traduzindo algum livro no momento? Tenho algumas estórias e poemas infantis aguardando um momento mais favorável para serem publicados. Continuo escrevendo poemas, mas sem nenhuma intenção imediata de publicação em livro. Estou também empenhado em concluir a tradução das Metamorfoses, de Ovídio, da qual venho, desde algum tempo, apresentando trechos esparsos, com comentários, dentro do fluxo de minhas atividades acadêmicas. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Particularmente, nunca alimentei ilusão em relação a para qual viés ideológico tende a massa composta de trabalhadores desorganizados e a classe média, 383

sempre sujeita às mais vis manipulações, nestes tempos de redes sociais, de fake news, disseminadas por robôs eletrônicos, a partir de vários e distantes pontos do globo. Essa onda reacionária é alimentada por essa corrente e fortalecida e direcionada por pesquisas de dados subtraídos aos próprios usuários da rede. Para mim, o mundo continua reacionário como sempre foi. Para o gay, para o pobre, o negro e mesmo para as mulheres a realidade sempre foi fascista. O fascismo impregna toda a estrutura de poder. O problema é que, com o advento das redes sociais, as pessoas não mais se pejam de serem racistas, machistas ou homofóbicas. Como contraposição a isso tudo, sempre há a possibilidade da revolta, seja do indivíduo, seja de segmentos sociais com ethos revolucionário. Só haverá futuro se houver transformação e derrota das forças reacionárias. 

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Ravel Giordano Paz Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1972. Vive em Campo Grande (MS). Entrevista concedida a Vitor Cei em fevereiro de 2019.

Você iniciou sua carreira na área de Letras em 1992, quando ingressou na graduação da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Em 2006, você concluiu o doutorado na USP e dez anos depois sua primeira obra ficcional foi publicada. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Minhas ambições literárias são antigas, mas todas as minhas tentativas anteriores a meu primeiro livro foram frustradas, por isso cheguei a pensar que nunca publicaria ficção. Creio que escrevi Os meninos da colina por uma demanda íntima, motivada por um sentimento nostálgico em relação à adolescência, e também para pôr no papel um projeto justamente desse período, que naturalmente ganhou outra forma. Creio que só constatei que tinha alguma mão para a escrita ficcional quando concluí o livro. Mas claro que minha habilidade com a escrita foi testada e aprimorada em outros exercícios, principalmente na crítica literária, que não considero diametralmente oposta à escrita ficcional. Ramiro Giroldo, na apresentação da orelha de  Os meninos da colina (Nankin, 2016), afirma que você é “Dono de uma simplicidade calculada e de muito natural dicção”. E Volmir Cardoso Pereira, na apresentação da orelha do romance  Pustulário ou O rol dos omissos  (Nicanor Coelho, 2017), afirma que em sua narrativa “a linguagem elevada se esborrachou no fundo do poço”. Você poderia descrever as opções formais e temáticas que norteiam seu estilo literário? Gosto muito dessas duas descrições de meu estilo, ou estilos, já que de um livro para o outro existe uma diferença significativa, no sentido de uma maior experimentação e “desconstrução” dos códigos literários. De fato, no primeiro livro tentei escrever de uma forma que mimetizasse a realidade e a linguagem dos personagens da maneira mais “natural” possível, apesar de uma ou outra brincadeira metalinguística, e também sem recair num estrito naturalismo. Tentei, na verdade, uma aliança de prosaísmo chão e dicção clássica, como acredito que há em autores que admiro muito, como Machado de Assis e Eça de Queiroz. No segundo, essa orientação permaneceu até certo ponto, mas muito mais atravessada por um impulso transgressor, tanto temática quanto estilisticamente. Creio que aí as influências modernistas e pós-modernistas (e/ou pós-modernas) pesaram mais. Ramiro Giroldo também afirma que “Se a vasta experiência de leitura de alguns autores resulta em pedantismo, Ravel consegue fazer sua pesada bagagem parecer leve e fácil de carregar”. E Volmir Cardoso Pereira acrescenta que “Ravel Giordano Paz é da patota de Sérgio Sant’Anna, Rubem Fonseca, Antônio Torres, Luiz Ruffato” e “emula o estilo machadiano sem a reverência besta e 385

leso-lúdica”. Com que outros escritores canônicos você procura estabelecer interlocuções? Como lidar com esses autores que, a um só tempo, fornecem inspiração e impõem o peso da autoridade? Vou começar a responder essa pergunta pelo fim. Minha relação com a tradição literária é muito inspirada, mais uma vez, por Machado de Assis, em quem eu vejo uma espécie de reverência irreverente, marcada pelo reconhecimento mas também liberdade em relação aos “antecessores”, para falar com Harold Bloom. Por outro lado, não tenho, sinceramente, a pretensão de ombrear com os autores que mais admiro, como é o caso dos que já citei. Nas literaturas brasileira e portuguesa (que considero até certo ponto indissociáveis), além de Machado e Eça devo citar Lima Barreto, Aluísio Azevedo (minhas narrativas são muito marcadas pela espacialidade, e considero o Naturalismo quase uma sina da ficção brasileira), Mário de Andrade e, mais recentemente, Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (cujos dois primeiros romances estudei no mestrado). Gostaria muito de incluir Clarice Lispector e Guimarães Rosa nessa lista, mas não me atrevo a isso. Entre os autores estrangeiros, eu citaria Balzac, Maupassant, Tchekhov, James Joyce (por mais tímidas que sejam minhas experimentações) e Kurt Vonnegut, que eu emulo francamente em vários momentos. Mas também tenho muita influência de autores não-canônicos ou não estritamente literários. Por exemplo, da subliteratura de faroeste (queria ter publicado meu segundo em formato de bolso, como os antigos bolsilivros do gênero), de MPB, punk rock e quadrinhos. Acho que isso ajuda a “relaxar” um pouco minha relação com os clássicos. Estou, atualmente, apaixonado pela obra do austríaco Thomas Bernhard, mas é um contato muito recente para que eu possa falar em influência. O romance juvenil Os meninos da colina foi ilustrado por Daniel Shaman. Após essa experiência, você percebe mudanças, em seu texto, quanto à maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Bem, eu sempre penso minhas histórias visualmente, em vários sentidos. As ilustrações do Shaman, inclusive, foram feitas a partir de esboços meus, o que não diminui o mérito dele, que acrescentou detalhes riquíssimos, principalmente na capa. O mesmo se deu na capa do segundo livro, que eu arte-finalizei e editei em imagens internas. E nele há um pequeno “mapa” do lugar onde ocorrem fatos importantes no enredo. Fiz esse desenho (no Paint Brush) porque percebi minha própria dificuldade de me situar no espaço dos acontecimentos, então achei válido compartilhar o elemento facilitador com o leitor. Mas penso que o ideal é que o autor possa prescindir de tais recursos, o que naturalmente depende da sua habilidade descritiva. Por outro lado, não vejo motivos para interditos a respeito. Como você vê a recepção de sua obra? Enquanto produção escrita, a recepção de meus livros foi muito escassa até agora, em parte, acredito, por meu relativo desinteresse ou inabilidade em angariar críticos na academia. Ambos os livros tiveram apenas uma resenha cada, publicada em meu próprio blog (além de uma bela carta de uma psicanalista, sobre o primeiro, que pretendo publicar em breve), e das quais eu gostei bastante, apesar de algumas discordâncias que, naturalmente, não fiz questão de indicar. Tenho tentado fazer meus livros chegarem ao leitor comum, e entre estes a recep386

ção tem sido muito boa, principalmente do primeiro livro, que tem sido trabalhado por alguns professores de ensino médio locais. Gosto muito de conversar com esses leitores. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? Estou finalizando uma coleção de contos, escrita meio que num surto ao longo dessas férias. Gostaria muito de escrever um mangá (produção que tem me interessado muito), ou algo experimental entre um texto literário e um mangá, mas por enquanto não fui capaz de dar desenvolvimento a esse projeto. Quais os principais desafios para a edição e recepção de novos escritores no Brasil de hoje? Em relação ao primeiro aspecto, creio que o principal desafio é romper com o semimonopólio das grandes editoras e distribuidoras no que diz respeito aos espaços nas livrarias, que além de tudo são poucas. O que significa que o grande desafio é chegar ao grande público. Percebo que isso depende de diversas políticas e estratégias às quais sou um pouco avesso, então me contento em ter poucos e bons leitores. Outro desafio é romper certa dependência com esquemas oficiais ou semioficiais, como a publicação em livros didáticos ou a adoção em escolas. Ao mesmo tempo, há um problema na formação de leitores ao qual as escolas há muito não conseguem responder, por motivos vários e complexos, deixando os jovens leitores à mercê de autores ruins, como os dessas “sagas” que estão na moda. Por outro lado, creio que há um contexto favorável a organizações e produções independentes, inclusive valorizando o formato virtual, o que eu acho extremamente válido e necessário. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Tenho lido muito poucos autores contemporâneos. Ano passado assisti a algumas rodas promovidas pelo Sesc e procurei ler, antes ou depois, os autores que as integraram. Percebo que há uma busca de apuro estilístico aliada a certa dificuldade em mergulhar de forma viva e intensa no real da vida, que para mim é a verdadeira substância do literário. Por outro lado, há a chamada literatura marginal, em que o problema me parece o oposto: certa precariedade no trato com a linguagem e um “cotidianismo” um tanto ralo. A força de um Lima Barreto, por exemplo, não estava apenas no coloquialismo (numa escrita, aliás, marcada por ranços academicistas), mas também numa grande pulsão imaginativa. Mas claro que não posso generalizar. Em Campo Grande, mesmo, há autores que admiro e que inclusive têm me influenciado. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como 387

desfecho do atual estágio da humanidade? De novo, vou começar pelo fim. Acho o quadro atual muito complexo e imprevisível, por mais que tenhamos tendência a profetismos baseados em nossas experiências históricas. Ao mesmo tempo, não há só coisas ruins no horizonte, mas também acenos para transformações substancialmente positivas. Eu diria que nós vivemos dois grandes impasses atualmente. Primeiro, a dificuldade de lidar com a emergência de alteridades diversas, sobretudo quando essas emergências trazem consigo sismos econômico-sociais, como é o caso dos neonomadismos gerados pelas transformações e tensões geopolíticas. Segundo, a imensa dificuldade (espero que não impossibilidade) de perceber que chegamos ao limite de um modelo de relação extremamente exploratório com a natureza e nossos semelhantes. Nem as condições objetivas, nem o estado atual de nossa consciência ética permitem a manutenção desse modelo. Creio que esses dois impasses têm muito a ver com a emergência desses neofascismos, e também a falta de resposta a eles por parte das principais ideologias em voga na atualidade. No nosso caso, há não apenas o ranço de uma experiência autoritária recente mas também os limites de uma esquerda que não se renovou, e quando adentrou num nicho importante do poder, o Executivo, não encarou problemas fundamentais como as estruturas fundiárias e urbanas, a imensa precariedade da educação básica e a escalada da violência. Mas na raiz de tudo, em minha opinião, há questões antropológicas, se posso falar assim: de um lado a herança do niilismo europeu fomentando um estado de desespero quase sempre inconsciente, e de outro concepções e práticas religiosas mistificadoras que, de tão falsas, não respondem minimamente a esse desespero, gerando demandas de “soluções finais” como as que vemos espelhadas na intolerância de alguns evangélicos (não todos, é preciso sublinhar). No fim, tudo aponta para o mesmo lugar: o medo. Medo da morte, do outro, da natureza. Precisamos sair de nosso estado de ignorância em relação às raízes desses medos, e é nisso que a arte e a literatura podem contribuir de forma mais significativa. É claro que também é preciso combater de forma concreta a violência, a desigualdade social etc.; mas tudo vai ser paliativo se não se aliar a um processo que só o autoconhecimento pode trazer.

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Reinaldo Santos Neves Nasceu em Vitória (ES), em 1946. Vive em Vila Velha (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei entre maio e agosto de 2018 e publicada na Fernão, n. 1, 2019.

Segundo parte da crítica, a intertextualidade, a metalinguagem e a ironia são importantes recursos da sua ficção. A partir deles a sua obra se vincularia a várias tradições: greco-latina (A ceia dominicana), medieval (A crônica de Malemort, A folha de hera e A longa história), portuguesa (As mãos no fogo e Má notícia para o pai da criança), shakespeariana (Muito soneto por nada) e contos de fada (Kitty aos 22). A reescrita do chamado cânone literário seria o seu modus operandi – ou não? Comente as opções formais que norteiam seu projeto literário. A opção formal, no caso de Malemort, foi uma escolha lógica. Tendo resolvido escrever um romance ambientado na Idade Média, criei um personagem para ser especificamente o narrador da história, no que segui o exemplo de Thomas Mann no romance O eleito; e, nesses termos, julguei importante ser fiel, tanto quanto possível, à mentalidade e à linguagem da época, e, para isso, fiz o que se tornaria uma característica de meu trabalho, sobretudo com o advento da internet: a consulta a fontes de pesquisa. Assim, cada projeto literário tem sido abordado com a preocupação primeira de conciliar linguagem narrativa e trama. No caso de A ceia dominicana, por exemplo, não é à toa que o subtítulo seja Romance neolatino: como escrever o que seria uma releitura brasileira do Satyricon de Petrônio sem usar uma linguagem baseada e inspirada no latim? Já em Sueli, a metalinguagem mostrou ser a maneira certa de contar uma história sobre a invenção de um romance. E a ironia inaugurada em As mãos no fogo, tornada autoironia em Sueli, serviu à perfeição para contar uma banal história de amor. De qualquer modo, o que me guia como ficcionista é a possibilidade de renovar a tradição. Essa premissa básica, que a princípio surgiu por acaso e aleatoriamente, tornou-se uma definição de meu trabalho literário: é assim que me vejo como escritor e é assim que gosto de ser escritor. No entanto, como cada projeto é um projeto, o diálogo com a tradição se faz em diferentes escalas. Na Ceia o diálogo com Satyricon é completo, assim como em cada um dos nove contos de Má notícia, todos eles releituras de romances versificados – peças da literatura oral ibérica que os portugueses introduziram no folclore brasileiro (um deles, o da “Donzela que vai à guerra”, serviu de mote a Guimarães Rosa para Grande sertão). Mas a tradição em Sueli, por exemplo, se constrói por meio de referências e associações – não há nenhuma fonte tradicional específica com que o romance dialogue a não ser, e de passagem, Giacomo Joyce. O mesmo ocorre nas Mãos no fogo, onde a intertextualidade é referencial, pois opera com citações da lírica popular ibérica do século XVI em diálogo com a narrativa, e na Longa história, onde um repertório de dezenas de histórias consolida a trama linear, que é minha. Por outro lado, em Muito soneto o que há de shakespeariano ali se restringe ao trocadilho do título e ao formato do soneto inglês, sem quartetos nem tercetos, enquanto em Kitty só se 389

aproveitam, da história de Cinderela, a ementa e o sapato. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Comecei a brincar de escrever por volta dos nove anos de idade e nunca mais parei. Já então me alegava escritor, e para isso servia de prova uma série de contos inspirados em filmes americanos: contos policiais, de piratas, de faroeste. Boa parte dessa “produção inaugural” foi preservada. A partir daí a brincadeira foi se tornando mais séria e mais complexa, até que, já adolescente, dediquei-me à busca obsessiva de um estilo próprio, busca que, a longo prazo, redundou no meu primeiro romance, publicado em 1971. Queria, portanto, desde cedo, ser escritor (vide trechos do diário de 1964 na coletânea Psicanálise e arte, publicação da Escola Lacaniana de Vitória, 2017), mas só me percebi realmente escritor com a publicação de Reino dos medas, que, ironicamente, logo depois renegaria. No conto que dá nome ao seu livro Mina Rakastan Sinua (Cândida, 2016), o leitor se depara com a seguinte descrição: “o grande escritor municipal, se por um lado é grande, ou seja, é bom escritor, e sabe disso, por outro só é conhecido e respeitado dentro dos limites do próprio município: seu nome, à medida que se afasta do polo municipal e se aventura pelo território de outros municípios da província, ou de outras províncias do país, ou de outros países do continente, perde cada vez mais em força e significado até se tornar apenas um a mais dentre bilhões de nomes anônimos no catálogo demográfico do planeta.” Até que ponto se pode pensar numa identificação autoirônica entre esse narrador e o autor Reinaldo Santos Neves? Em entrevista concedida ao site Panela Literária, em 2011, você afirmou que, mesmo depois de exposta a todos os públicos, no Brasil, a sua obra continuava sendo ignorada pelo meio acadêmico. E hoje, como você avalia a recepção dos seus livros? Quais são as dores e as delícias de se publicar ficção num país que parece ter um número cada vez mais reduzido de leitores? A identificação autoirônica procede. Esse conto, embora publicado em 2016, foi escrito em 2007, e inspirado em episódio que vivenciei pessoalmente. O que quis dizer na entrevista para o site Panela Literária foi que, mesmo após ter publicado dois romances por uma grande editora nacional (Bertrand Brasil) e vê-los distribuídos em livrarias de todo o Brasil, a resposta de crítica (no caso, resenhas jornalísticas) e de público foi insatisfatória. Sinto-me muito feliz, por outro lado, com a resposta da crítica acadêmica local, sobretudo da UFES, e me agrada ser um escritor municipal respeitado no município. A falta de leitores é conjuntural num país falido educacional e culturalmente. Em termos nacionais, devo dizer que me coube a consagração de ser qualificado como escritor maldito, no sentido de talentoso, mas pouco reconhecido, e, como tal, incluído no Amaldicionário da Literatura Brasileira, organizado online pelo paulista Joca Reiners Terron. Você foi pioneiro, no Brasil, em algumas experiências literárias. Uma delas diz respeito à tradução (em algum momento você afirmou preferir o termo “transposição”) de A crônica de Malemort (Cátedra, 1978) para o inglês, surgin390

do assim An Ivy Leaf, que é depois trazido de volta para o português, resultando em A folha de hera (Secult/BPES, 2010). Gostaríamos que nos auxiliasse a refletir sobre que teorias da tradução embasam esse trabalho. Como se dão essas traduções? De que tipo de liberdades usufrui um escritor que traduz e retraduz o seu próprio texto? Deve-se confiar menos numa suposta fidelidade de tradução e retradução feitas pelo próprio autor do que em outras? Publiquei um ensaio (coisa rara em se tratando de quem) na revista Contexto, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFES (n. 12, 2005), tentando, com a ajuda de Gérard Genette (Palimpsestes), entender e explicar o romance bilíngue A Folha de hera, projeto de tradução circular que traduz ampliando e retraduz recriando. Nelson Martinelli Filho analisa o processo em apêndice publicado no segundo volume da Folha de hera. Teorias da tradução, desconheço todas. Sou um artesão como escritor e como tradutor. Valho-me de intuição e instinto. A liberdade que me permiti ao traduzir Malemort para o inglês médio foi total, tanto que gerou um novo romance, daí a necessidade de retraduzi-lo de volta ao português. Minha diretriz, ao traduzir do inglês para o português, foi trabalhar as possibilidades literárias (semânticas, léxicas e sintáticas) do inglês médio com vistas a criar uma linguagem literária própria em português. Ou seja, de certa forma vesti a camisa do tradutor medieval, que, traduzindo do francês, por exemplo, sofria do texto-fonte interferências que o levavam a incorporar à sua tradução as mais estranhas e até ridículas soluções (do tipo que, por incrível que pareça, ainda hoje vemos em legendas de filmes exibidos, por exemplo, na Netflix). Trabalhei, portanto, com o erro e o equívoco inconscientes dos tradutores medievais, incorporando-os conscientemente – e, portanto, erros não mais – à linguagem literária do romance. Creio que não seria um bom tradutor de textos alheios justamente porque seria tentado a “melhorar” o texto original. Em suma, toda tradução é, em princípio, falha, nem sempre por culpa do tradutor, mas das naturais diferenças de índole entre as línguas, que impedem uma tradução ao mesmo tempo fiel e literária. Mas defendo que todo autotradutor tem o direito de traduzir seu próprio texto da maneira que possa melhor soar na língua de destino e também suprimir e acrescentar o que quiser. No meu caso, sendo a Hera um romance bilíngue, com as duas versões de cada volume finalizadas ao mesmo tempo, a autotradução levou, muitas vezes, a alterações no texto-fonte em função de dicções surgidas no texto traduzido. Você já afirmou, em diversas ocasiões, que literatura e engajamento não podem conviver numa obra, que o autor que inicia a escrita de um romance motivado por uma ideologia ou uma causa já começa o jogo perdendo. No seu modo de ver não há, na história da literatura, exemplos que contradigam esse binômio literatura/ideologia, a priori reciprocamente excludente? Ficou claro que você refere critérios de valor; ainda assim, perguntamos: como se explicaria que a obra de um “neorrealista” como Jorge Amado já tivesse sido traduzida para próximo de cinquenta idiomas? Quando trato de engajamento e literatura, falo não só como escritor, mas também, e talvez principalmente, como leitor. Desde o início de minha carreira de leitor incomodava-me sobremodo ver num livro um personagem – geralmente o protagonista – sendo elogiado e paparicado pelo próprio narrador. Um deles era 391

Pedrinho, da série do Picapau-Amarelo, de Monteiro Lobato, que, de resto, tanto prazer de texto me deu em criança. O mesmo valia para heróis de histórias em quadrinhos. Fui leitor empolgado de quadrinhos, mas nunca dei a menor bola para os super-heróis, nem para os personagens super-heroicos, perfeitos em tudo. Essa é, aliás, uma das razões por que a literatura norte-americana moderna, com raras exceções, não me atrai: o culto ao herói (ou anti-herói, no caso apenas o outro lado da mesma moeda) está enraizado no cérebro americano, junto com uma bola de beisebol, e não é à toa que a palavra carinhosa do pai americano para o filho seja campeão. É por esse mesmo viés que avalio aquelas obras de ficção politicamente engajadas, em geral de abordagem maniqueísta, nas quais o autor toma óbvio partido por alguns personagens em detrimento de outros. A coisa torna-se praticamente alegórica: de um lado as figuras do Bem, de outro lado as do Mal. Acresce que, preocupado com defender teses e causas, quaisquer que sejam, políticas ou não, o autor engajado costuma negligenciar o tratamento da linguagem. Assim, para dar um exemplo, entendo que quase toda a literatura sobre o período da ditadura militar, com raras e louváveis exceções, é desprovida de qualidade genuinamente literária. O grande romance, na minha opinião, ambientado nesse período é Um novo animal na floresta, de José Carlos Oliveira, que, além de exímio mestre da língua, trabalhou a situação política da época com total isenção de espírito, primeiro porque sabia que era essa a sua opção preferencial como escritor, segundo porque convivia, e até com certa intimidade, com pessoas de um e de outro lado, e as estudava e as entendia, e terceiro porque conhecia o ser humano essencial, cada qual com sua parcela de médico e de monstro, o que, em conjunto, lhe permitiu criar personagens redondos e não estereotipados como a maioria dos colegas que trataram do assunto. Mas, sim, há autores que trabalham sua tese e sua causa com tal discrição e com tal competência literária que o leitor nem nota que está lendo um romance engajado. José Lins do Rego e Graciliano Ramos são dois ótimos exemplos. No caso acima referido, de Jorge Amado, de que só li o romance (aliás piegas, outra coisa que me incomoda em literatura) Capitães de areia, não foi Gide que disse que a verdade nunca está com a maioria? E não estamos assistindo hoje à invasão dos mega-sellers, que dominam o mercado e infantilizam e até lobotomizam os leitores do mundo inteiro com obras, em sua esmagadora maioria, que sempre contam (e mal) a mesma história? Para finalizar, peço licença para citar o que, por coincidência, muito a propósito, Oscar Gama Filho disse recentemente sobre mim nesse mesmo contexto: “E para quem deseje posições sociais ou políticas engajadas, é bom lembrar que o autor viveu num tempo de ditadura militar, terrorismo e censura federal. Descrever e ridicularizar foi a saída. Rindo, ele castigou os costumes: ridendo castigat mores.” (Caderno Pensar, A Gazeta, 20 de maio de 2017.) Foi o que fez, por exemplo, Petrônio em relação ao regime tirânico de Nero. Qual a sua posição sobre o atual panorama político brasileiro? De que modo os acontecimentos desse campo o tocam ou mobilizam? Até que ponto, no seu modo de ver, os escritores têm colaborações a dar para as discussões, os movimentos e as possíveis mudanças nessa área? Sempre achei que o pior tipo de brasileiro é o político profissional, com raríssimas exceções. E o que estamos vendo é o resultado de décadas seguidas 392

em que o povo brasileiro tem sido “representado” pelos seus maiores inimigos: os políticos têm sido e continuam e continuarão sendo, cada um deles, nosso inimigo público número um. Não tenho esperanças de ver um dia uma classe política honesta e competente governando e legislando realmente em nome e benefício da sociedade brasileira. Quanto à participação dos escritores, sim, claro, a eles e a toda a sociedade cabe participar na busca de meios para desmantelar a quadrilha de que é composta a política organizada no Brasil. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Citarei Borges em resposta: “Johnson observa que nenhum escritor gosta de dever algo a seus contemporâneos; Hawthorne ignorou-os até onde lhe foi possível. Talvez tenha feito bem; talvez nossos contemporâneos se pareçam – sempre – demais a nós mesmos, e quem esteja em busca de novidades as encontrará com mais facilidade nos antigos. Hawthorne, segundo seus biógrafos, não leu De Quincey, não leu Keats, não leu Victor Hugo – que tampouco leram uns aos outros.” Creio que uma das frases do trecho citado, levemente editada, serviria para definir a minha posição: “talvez meus contemporâneos sejam diferentes demais de mim mesmo”. É o que sinto, mas é o que outro, melhor e mais imparcial que eu, Gilbert Chaudanne, também sente: “Na literatura brasileira, Reinaldo é um caso um pouco singular, com sua fleuma britânica e sua ironia francesa ele tem uma certa dificuldade para se reconhecer nos adeptos tropicalistas da busca do coqueiro perdido.” A citação de Borges está no volume II da Obra Completa. A de Chaudanne foi publicada no Caderno Pensar de A Gazeta, 10 de maio de 2014. Se, porém, reduzirmos a questão à poesia, posso declarar que a minha posição continua a mesma de sempre: os poetas brasileiros estão entre os melhores da literatura mundial. Que palavras você diria aos jovens que pretendem se aventurar na carreira literária? Escolha entre escrever uma obra idiota que possa ser um best-seller e escrever uma obra de qualidade que o torne um grande escritor municipal. Em 2015, teve lugar uma polêmica em torno da indicação do seu romance Kitty aos 22: divertimento (Flor&Cultura, 2006) por uma professora do Ensino Médio numa escola de Vitória. Consta que o pai de uma das alunas teria questionado o conteúdo “imoral” da narrativa, por achá-lo inadequado para uma adolescente. Após isso, ao menos outros dois eventos de teor parecido se deram no ES: o primeiro foi a reprovação de um livro infantil adotado por escolas da Serra, uma paródia de contos de fadas clássicos, em cujo clímax o pai propõe à filha que, juntos, matem a mãe e a menina assuma o lugar da matriarca. A filha, horrorizada, rechaça a proposta do pai malvado, o que dá um desfecho moral à história, como é de praxe nesse tipo de literatura – algo que parece não ter ficado claro para os críticos do livro, que por fim conseguiram censurá-lo, retirando-o de circulação. O segundo acontecimento girou em torno da adoção de O Diário de Anne Frank em quadrinhos por uma escola particular também em Vitória: em 393

meio a um texto e uma ilustração que lidam magistralmente com uma matéria que é pungente, no nível individual, e importante, no sentido histórico, alguns pais de alunos pinçaram o termo técnico “vagina”, usado pela protagonista, e também este lhes pareceu imoral. Como você recebeu a crítica ao seu romance? Que significado teria, hoje, esse incômodo que o texto literário volta e meia causa em pessoas que não circulam com facilidade pelo universo ficcional, por falta de hábito ou carência na formação? É possível ver algo positivo nesse incômodo provocado pela literatura num público que parece jamais ter sido a ela apresentado antes, nem na família, nem na escola, e que de repente se arvora em censor? Aproveito a pergunta para estender-me um pouco mais sobre a questão do livro Kitty aos 22. Não foi essa a primeira vez que Kitty esteve no pelourinho da censura. Em crônica na Gazeta Online de 1º de agosto de 2011, o escritor (hoje Secretário de Cultura da Prefeitura de Vitória) Francisco Grijó escreveu: “Recebi um e-mail de um amigo que, preocupado com o vestibular da filha, questionou-me a razão de a Ufes exigir a leitura de um livro como Kitty aos 22: Divertimento, de Reinaldo Santos Neves. Antes que eu pudesse responder – em defesa da obra em si, a qual considero um primor –, ele afirmou que havia ‘textos mais representativos na literatura brasileira e com linguagem mais adequada’.” Salto um ou dois parágrafos e prossigo a citação: “No livro Kitty aos 22, cuja personagem central é uma deliciosa burguesa um tanto fútil que não sabe exatamente o que quer da vida, seria inadequado, por exemplo, fazê-la pronunciar expressões como ‘por obséquio’ ou ‘muito agradecida’. Ou seja: aos 22 anos, o uso de gírias e de expressões de baixo calão é tão corriqueiro quanto passear num shopping. E escritores de qualidade fornecem qualidade a essa linguagem – esse é seu trabalho, afinal. E o narrador da história, mesmo não tendo 22 anos, representa bem esse universo.” E finaliza: “Tenho pensado na idéia de que a literatura é sacralizada demais. Permite-se ao cinema uma corrupção lingüística que, quando dirigida à literatura, causa escândalo. Ao teatro e às letras de música, idem. Mas a literatura parece aprisionada em seu cárcere de bons modos, virtude e preconceito. Kitty é uma vítima, mesmo aos 22 anos, quando tudo é permitido.” Passo agora ao caso Ulisses, de James Joyce. A primeira edição inglesa desse romance, uma das obras-primas definitivas da literatura universal, foi publicada em 1922, em Paris. Por que Paris? Por questões de censura. A edição britânica só seria lançada em 1936. Nos Estados Unidos o livro esteve no índex de obras proibidas durante onze anos. Até os exemplares adquiridos na França por particulares eram confiscados pela alfândega americana. Finalmente, em 1933, em veredito histórico, o juiz John Woolsey derrubou o embargo e a primeira edição americana foi imediatamente publicada pela Random House. Vejamos alguns dos argumentos do juiz Woolsey, extraídos de um dentre vários links da internet que contêm a íntegra da decisão. A intenção: “A reputação de Ulisses no mundo literário justificava minha decisão de empregar todo o tempo necessário para convencer-me inteiramente da intenção com que o livro fora escrito, pois desde logo, em todos os casos em que um livro seja tachado de obsceno, primeiro se deve determinar se a intenção do autor ao escrevê-lo foi o que comumente se chama pornografia, isto é, tê-lo escrito 394

com o propósito de explorar a obscenidade. Em Ulisses, apesar de sua inusitada franqueza, não encontro em nenhum lugar o propósito explícito do sensualista. Sustento, portanto, que não é pornográfico.” A técnica: “É exatamente porque Joyce se manteve leal à sua técnica, sem tentar fugir a suas necessárias implicações, mas sim tratando honestamente de contar com plenitude o que seus personagens pensam, que Joyce foi objeto de tantos ataques e que a finalidade por ele perseguida tem sido com frequência mal entendida e mal interpretada. Pois seu propósito de realizar sincera e lealmente o objetivo proposto exigiu que ele usasse incidentalmente certas palavras que em geral são consideradas indecentes. [...] As palavras tidas como indecentes são velhos termos saxões, conhecidos por quase todos os homens e, me arrisco a dizer, por muitas mulheres, e são as palavras que empregaria natural e habitualmente, creio eu, a classe de pessoas cuja vida física e mental Joyce está tratando de descrever. Que a alguém agrade ou não uma técnica como a que usa Joyce é questão de gosto pessoal e sobre isso toda discussão é inútil. Mas pretender submeter esta técnica aos pontos de vista de outras técnicas me parece absurdo.” Conivência: “Em muitas passagens [o livro] me soa desagradável, porém, embora contenha muitas palavras consideradas vulgarmente indecentes, nada achei que denote conivência com essa imoralidade. [...] Cada palavra do livro contribui como uma peça de mosaico ao quadro que Joyce está tentando oferecer aos leitores.” Opção de recusa: “Para evitar contatos indiretos com essas personagens [de Joyce], qualquer pessoa pode recusar-se a ler Ulisses, o que é bastante compreensível. Mas, se um verdadeiro artista da palavra, como Joyce sem dúvida o é, tenta traçar uma imagem real da classe média mais baixa de uma cidade europeia, será que se deve proibir o público americano de ver essa imagem?” Diante dessas ponderações jurídicas de oitenta e cinco anos atrás, avançadas opiniões, mas lúcidas, para a época, que paralelos se podem traçar entre o caso Joyce e o caso Kitty? Em primeiro lugar, a intenção. Não houve, da parte do autor do romance Kitty aos 22, nenhuma intenção de explorar o erotismo e a obscenidade com objetivo de lucro. Toda a minha obra é testemunha de meu total compromisso com o lado literário e não com o lado comercial da literatura. Cada livro que escrevo é um projeto literário, e como tal concebido e executado como um todo. Em segundo lugar, a técnica. Quando me proponho a escrever uma história, não me preocupo apenas em contar a história, mas sim com a forma como contarei essa história, ou seja, a técnica que, na minha opinião, melhor se adapte a essa história. Exemplo da minha fidelidade à criação literária é o romance A crônica de Malemort, ambientado na Idade Média europeia. Atento ao literário, criei um personagem da mesma época especificamente para narrar a história, o que me permitiu recuperar literariamente a linguagem narrativa medieval. Ora, no caso de Kitty aos 22, foi essa a preocupação que tive ao cogitar escrever a história: como narrá-la. A pesquisa que fiz na internet foi ampla: quis conhecer não só como pensavam e como se comportavam os jovens brasileiros de início do terceiro milênio, mas também a linguagem (ou linguagens) que usavam, e, a partir dessa pesquisa, imitar essa linguagem da mesma forma como imitei a linguagem medieval no romance Malemort. 395

Em terceiro lugar, a conivência. O romance Kitty, longe de ser pornográfico, é, na minha opinião, até mesmo moralista. Não há conivência (mas sim preocupação) do autor com o vazio em que se afunda hoje a juventude (e os adultos, aliás, também). Aliás, meu próximo romance, a ser lançado brevemente, pode ser descrito como um libelo contra a humanidade. Mas, só pelo subtítulo, Deus está doente e quer morrer, já está fadado a ser objeto da sanha crítica da ignorantzia brasileira, principalmente de fanáticos religiosos. Em quarto lugar, a opção de recusa. O psicólogo, escritor, poeta e ensaísta Oscar Gama Filho proferiu em novembro de 2017, na Biblioteca Pública Estadual, uma palestra sobre o patrulhamento que vem sendo exercido (e ampliado a olhos vistos) sobre as artes em geral, inclusive a literatura. Nessa ocasião, Oscar veio em defesa do romance Kitty aos 22 frente à atitude do pai de uma aluna do ensino médio municipal de Vitória, que entrou com um processo no Ministério Público Estadual contra uma professora de português por ter adotado o romance para leitura da turma. Em sua apresentação, que engloba toda uma psicanálise do problema, Oscar referiu-se a Kitty aos 22 como vítima no caso em questão, até porque a Constituição Federal garante a liberdade de expressão no Brasil. Não podemos nos esquecer, porém, de que há uma segunda vítima no caso Kitty: a professora que adotou o livro supostamente pornográfico para leitura pelos alunos. Uma súmula da palestra de Oscar foi publicada no Caderno Pensar de A Gazeta em 4 de novembro de 2017, sob o título “A psicanálise do leitor”. Num dos tópicos de sua palestra, Oscar lembrou o fato óbvio de que ninguém é obrigado a ler Kitty, se não quiser fazê-lo. E, no caso da adoção do romance em sala de aula, reconheceu o direito garantido a qualquer pai de proibir que sua filha leia determinado livro, mesmo que adotado por um professor. Citando Oscar: “Certamente ao pátrio poder cabe decidir o conhecimento a que os adolescentes terão acesso.” Mas acrescenta: “Limites são fonte de segurança e de convivência social, mas a proteção em excesso pode desproteger [crianças e adolescentes] de um mundo convulsionado e caótico, em que o nível de informação molda a capacidade de sobrevivência de qualquer ser humano.” Ou seja, o que cabe a um pai fazer numa situação como a do caso Kitty? Simplesmente proibir professora e colégio de impor à filha a leitura de livro que considere nocivo à formação moral dela. Este é o limite de seus direitos como pai e como cidadão, pois não lhe cabe impedir que os demais alunos leiam o livro se os respectivos pais não virem aí nenhum problema. No entanto, tal é a insegurança que esse tipo de atitude truculenta gera hoje em dia no Brasil que as pessoas de bem e de bom senso, mesmo sendo contrárias a ela, não se manifestam, mas silenciam, deixando que o linchamento moral de uma obra e de uma professora sigam o seu triste caminho. A ignorância, a intolerância, o preconceito, o fundamentalismo religioso, o moralismo cego, a imposição de ideias por via de ameaças e constrangimento estão regendo as normas da sociedade brasileira. Isso só pode piorar cada vez mais. E quanto à justiça brasileira, será ela pusilânime diante de situações como a que estamos vivenciando nos dias obscurantistas de hoje? Poderá todo e qualquer ignorante dar palpite em arte e literatura e apelar à justiça para que seu palpite prevaleça sobre o pensamento dos que não concordam com ele? 396

O segundo caso refere-se a uma história infantil em que um pai se apaixona pela filha e quer ser seu amante. A hipocrisia está por trás do escândalo levantado pelos moralistas de plantão, haja vista que se trata de situação mais do que corriqueira na sociedade brasileira de hoje – e bem se sabe a medida de omissão com que as autoridades responsáveis lidam com o problema. O que não sei se foi mencionado na ocasião é o fato de que a história se inspira em tema do chamado romanceiro tradicional, uma série de narrativas populares em verso que os portugueses trouxeram para o Brasil. Eu mesmo publiquei uma coletânea de contos inspirados em narrativas desse tipo, um deles, “Silvaninha ou Má notícia para o pai da criança”, tratando do mesmo tema da história infantil em questão. Esses contos (em número de nove) fizeram parte do Projeto Nosso Livro em sua primeira versão, e foram publicados em setembro de 1996 como encarte do jornal A Gazeta, com belas ilustrações (inclusive de caráter erótico) de Attilio Colnago. Apesar da ampla divulgação, na época não houve histeria, nem gritaria, nem processos protocolados no Ministério Público, sinal de que, nesse particular, a sociedade de então estava bem menos doente do que a de hoje. Da mesma forma, e mais remotamente, quando surgiram, no século XV e seguintes, essas histórias tradicionais, criadas pelo próprio povo, nenhuma Inquisição tratou de proibi-las. As variantes de cada romance se multiplicaram pela voz do povo até que, a partir do século XIX, começaram a ser recolhidas e publicadas por sóbrias instituições antropológicas como valioso acervo de literatura oral, e daí estudadas tanto em forma como em conteúdo. Isso se deu não só em Portugal como no Brasil – e no Espírito Santo. Em sua apresentação à coletânea do Projeto Nosso Livro, o professor Paulo Roberto Sodré, doutor em Literatura Portuguesa, ensina: “O autor detecta nelas, as personagens, o calcanhar-de-aquiles e lhes dá uma dimensão mais que humana, arquetípica. O pai amante dos tenros seios da filha; o marido traído que reverencia a esposa morta; ou o filho que hesita entre o amor de sua mãe e o de sua mulher formam uma galeria de indivíduos atemporais. Todos representam ideias e conceitos consagrados de todas as épocas da história humana: todos são símbolos dos desconfortos da psique do homem.” Ou seja, romances versificados populares ou romances eruditos em prosa, trata-se de textos que tentam compreender, através da ficção, a alma humana, cada dia mais desumana. Como pode alguém em sã consciência ser contra isso? Por fim, a palavra vagina. Uma só consideração: o que fariam esses inimigos da literatura se se montasse no Brasil a peça “Monólogos da Vagina”, escrita e representada por mulheres, peça que tanto sucesso alcançou no primeiro mundo a partir de 1996? Queimariam o teatro, certamente, e alegariam legítima defesa da honra – e quem sabe a Justiça aceitaria redondamente o argumento?

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Renato Gomez Nasceu em Santo André (SP), em 1984. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei, Aline Maiara, Carolina Moser e Joyce França em março de 2016.

Qual o procedimento para a criação de suas obras literárias? Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Minha escrita é de cunho experimental. Pesquiso, estudo e pratico. Em meu primeiro livro, Aliterações, estudei o uso desse recurso que batizou o livro; no segundo, Entre o concreto e o abstrato, trabalhei o Concretismo e, em Versos Naturais, os Haicais. Dessa forma, meu processo criativo é estudado e as obras são compostas por poemas com base nesse estudo, estabelecendo essa linha de proximidade entre cada poema. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se considerou escritor? Sempre gostei de escrever, mas acredito que o marco inicial foi quando comecei a escrever para os zines na Universidade, foram as primeiras publicações de meu trabalho. Como você define a sua obra? O que você procura desencadear, propor, proporcionar através de suas poesias? Como disse anteriormente, minha poesia é experimental e, a partir disso, a proposta é, como a própria palavra diz, experimentar, portanto bebo em várias fontes e falo de vários assuntos, desde os sentimentos até a sociedade, desde um soneto até o verso livre. Portanto, a proposta fundamental é experimentar o mundo através da poesia e a poesia através do mundo. Como você vive o ato de recitar? Recitar ainda é um pouco complicado. Pra mim depende muito da receptividade do público. Há determinados eventos em que o público não está ali pra ouvir poesia. Mas quando o público é receptivo o ato de recitar é prazeroso e torna-se uma mistura de poesia e teatro. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Nesse contexto, como você vê a recepção de sua obra? Já tenho um pequeno público consolidado e fiel, porém é realmente pequeno perto do número de pessoas que são atingidas pelas minhas publicações nas redes sociais ou mesmo nos saraus, por exemplo. Sua poesia tem uma forte relação com a visualidade. Qual é a influência do movimento concretista na sua poesia? Minhas referências vêm dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, de Décio Pignatari, Leminski e Arnaldo Antunes, ou seja, o concretismo está dire398

tamente presente na minha poesia, embora eu experimente outros formatos e influências. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Acho que atualmente a poesia está seguindo o fluxo da era digital e invadindo as redes sociais, porém devido ao imediatismo desse canal e à resistência dos leitores ao “textão”, a poesia torna-se cada vez mais sucinta. Outro fator que chama a atenção é que temos um número considerável de escritores, porém os leitores estão diminuindo, além do fato de poucos escritores prestigiarem o trabalho dos demais, ou seja, nós, os escritores, não estamos nos lendo. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Hoje em dia publicar um livro não é difícil, o problema está na fase de venda. A distribuição para os grandes centros é inviável, a não ser que se consiga lançar por uma editora grande logo de cara, o que é praticamente impossível. Dessa forma, nos meus livros concentrei a venda aqui na cidade, o que foi bem penoso. As pessoas não gastam dinheiro com livros de autores novos/locais, preferem um best-seller ou até um livro novo de um autor famoso. O principal desafio de um novo escritor hoje é chegar ao público. Algum livro e outro autor já te fez pensar: “Uau, algum dia quero escrever algo assim”? Sim. Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino.

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Renato Noguera Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1972. Vive em Duque de Caxias (RJ). Entrevista concedida a Vitor Cei em setembro de 2017 e publicada no livro Ética, Estética e Filosofia da Literatura (ABRALIC, 2018).

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Você poderia comentar as opções formais que norteiam seu projeto literário? Primeiro, grato pelo convite e oportunidade de registrar o meu trajeto. Eu trabalho em horários variados. Eu vivo com uma adulta e duas crianças. A dinâmica de escrita é no escritório da nossa casa, não tenho uma rotina exata. Mas, geralmente estabeleço uma dinâmica de ficar no escritório, dividir a sequência e escrever por partes. A minha preferência é por horários em que todas pessoas da casa estejam dormindo. Minha opção de escrita tem relação com a jornada do herói. Mas, também com um safári existencial em que a comunidade é constitutiva do sujeito. Como você define sua trajetória filosófico-literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? O meu finado pai foi militar de carreira, mas abandonou a Marinha brasileira para vender livros. Então, desde criança eu vivi rodeado por livros, eles entravam e saíam de casa. Minha mãe sempre foi muito interessada em arte e cultura, um exemplo de leitora para os seus dois filhos. Eu fui aluno do Colégio Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro, uma instituição com várias unidades e bibliotecas convidativas, território que frequentei com avidez. Na universidade, iniciei duas graduações, Filosofia e Educação Artística – nome do curso na época –, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), respectivamente. Na UFRJ, cursei uma oficina de criação literária com Maria da Graça Cretton, uma das precursoras no Brasil dessa modalidade de curso. Na UERJ, fui aluno do premiado escritor João Gilberto Noll numa oficina de escrita. No período do curso eu tinha entre dezenove e vinte e dois anos. Nessa época, eu percebia-me como um interessado na arte da escrita. Mas foi somente em 2009, com o nascimento da minha primeira filha, que eu voltei a me dedicar à escrita. Eu tinha o interesse adormecido, tinha escrito e deletado muita coisa. O nascimento de Olivia Griot foi fundamental para repensar o que eu queria escrever. Em 2012, lancei Nana & Nilo: aprendendo a dividir e dediquei para Olivia, que contava com três anos. Eu me voltei para a literatura infantil, cinco anos mais tarde Maria Griot nasceu e dediquei o livro Nana & Nilo na cidade verde (2016) a ela. As duas griôs foram fundamentais na minha redescoberta como autor de ficção. Eu fiz contrato com uma editora antes do nascimento da Olivia, mas, foi de um livro acadêmico e de caráter didático voltado para cursos de licenciatura, Aprendendo a ensinar: uma introdução aos fundamentos filosóficos da educação, editado pela Ibpex. A minha (re)descoberta como escritor de ficção nasceu com as 400

minhas filhas. Vale a pena registrar que a minha formação filosófico-literária durante a graduação passou pela leitura assídua de nomes nacionais como Clarice Lispector, Machado de Assis, Lima Barreto, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Na filosofia propriamente dita, estudei formalmente filosofia alemã moderna, com muita dedicação a Schopenhauer e Nietzsche. Porém, cabe registrar que desde os dezoito anos eu participo formalmente do Movimento Negro (MN), aos treze e catorze anos já tinha participado de festividades do MN na companhia da minha mãe. Porém, foi em 1991 que estive na reunião de fundação do Coletivo Nacional de Estudantes Negras e Negros (CENUN), no 40º Congresso Nacional da União Nacional de Estudantes (UNE), em Campinas. É interessante notar que foi no MN que conheci Frantz Fanon, autor que passou a ser lido nos anos 1960 e celebrado na academia apenas no início do século XXI. No MN conheci o paradigma afrocentrado. A incursão em autores africanos e autoras africanas foi decisiva para minha formação. Eu tive a oportunidade de ter contribuições de mentores como Abdias do Nascimento e Azoilda Loretto Trindade. Em outras palavras, o caminho foi gradual e com acontecimentos-chave, como os nascimentos das minhas filhas. Há vários anos assistimos no Brasil à discussão em torno do problema de uma filosofia nacional, à necessidade de afirmação de uma linguagem nacional no âmbito da filosofia, que nos permita falar em uma filosofia brasileira do mesmo modo que falamos em uma filosofia francesa, em uma filosofia alemã ou inglesa. Quais seriam as características do filosofar brasileiro? Eu penso que existe uma síndrome do leão que perdeu a juba e passou a se enxergar como um cachorro amarelo. Conhece essa história? Era uma vez um leão que teve a sua juba cortada, foi lançado entre cachorros e começou a latir. O que quero dizer com isso? Afirmar que não existe uma filosofia brasileira é um tipo de epistemicídio. Ou seja, uma recusa em considerar e reconhecer a produção nacional. A respeito das características do filosofar brasileiro, a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) publicou uma série de matérias em 2017. Eu pude contribuir com um artigo intitulado Filosofando com sotaques africanos e indígenas, onde coloco que o entrave para reconhecimento da filosofia brasileira está na recusa dos elementos africanos e indígenas que são indispensáveis para que o fazer filosófico não se torne uma empobrecedora leitura restrita de influências e contribuições europeias e estadunidenses para a filosofia brasileira. Exemplo do que eu proponho é o livro Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba, que foi organizado por Wallace Lopes e reúne uma autora e oito autores, contando com o organizador. Penso que é controverso apontar as características do “filosofar brasileiro”. Em certa medida, as filosofias alemã e francesa, assim como a estadunidense, têm seus expoentes e períodos em que encontramos determinadas escolas e linhas muito influentes. Penso que no Brasil precisamos fazer essa história; mas, vejo que temos autorias contemporâneas que não estão oficialmente catalogadas. A finada filósofa Lélia Gonzalez faz belos debates através da noção pretoguês, uma linguagem portuguesa preta que pode inaugurar conceitos de filosofia. Essa 401

história está por fazer. Autores como Antonio Candido e Paulo Arantes afirmam que a filosofia sempre ocupou um lugar subalterno na evolução de conjunto da cultura nacional. Para eles, a literatura, mais do que a filosofia, seria o fenômeno central da vida do espírito no Brasil. O que você pensa a esse respeito? Eu penso que Candido e Arantes estão parcialmente corretos. Porque durante um bom tempo a filosofia ficou nesse “lugar subalterno”. Eu concordo que a literatura parece ter assumido esse papel de fenômeno central da vida do espírito no Brasil. Mas suponho que a filosofia esteja cada vez mais apta a dividir esse papel com a literatura. Tenho a impressão de que as filosofias que colocaram isso em cena são aquelas marcadas mais pelas matrizes culturais africanas e indígenas do que as mais conhecidas, calcadas em contextos de repertórios europeus e estadunidenses. No início de sua trajetória acadêmica, você pesquisava autores e temas da tradição ocidental, especialmente Schopenhauer. Porém, em suas principais obras literárias e filosóficas você se afirma explicitamente como autor negro e faz uma elegia da herança cultural africana. Como se deu o processo de assunção dessa identidade? Em certa medida, penso que todo autor branco também faz essa vinculação, ainda que seja pelo silêncio. Por exemplo, considerando o privilégio da branquidade, uma pessoa branca não é definida pela sua cor/raça. Tem o direito de ser um indivíduo. Enquanto as pessoas negras são sempre descritas a partir de seu pertencimento étnico-racial. As notícias sobre a eleição do presidente estadunidense Barack Obama no final de 2008 e início de 2009 diziam coisas do tipo: “o primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América”. Mas não foi dito sobre Donald Trump coisas do tipo: “o 44º presidente branco dos Estados Unidos da América”. Peggy McIntosh se tornou uma referência com o livro White Privilege: Unpacking the Invisible Knapsak, uma tradução livre poderia ser a seguinte, Privilégio branco: desembalando a mochila invisível. Neste ensaio, McIntosh traz cinquenta situações diárias de privilégio branco. Coisas como: “Posso ter certeza que meus filhos receberão materiais curriculares que atestam a existência da raça deles”, “Posso me dar bem em uma situação desafiadora sem que digam que o crédito é da minha raça”, “Nunca sou chamado a falar em nome de todas as pessoas do meu grupo racial”. Por que fiz esse preâmbulo? Para explicar que não apenas uma autoria negra e uma autoria indígena partem de seus pertencimentos étnico-raciais. Mas, as autorias brancas também partem. Mas, não precisam falar isso, não são questionadas. Digo isso compreendendo que não é um assunto simples e que causa muito incômodo. Mas, esse é o ponto. Dito isso, afirmo que não poderia ser diferente, sou um autor negro, ou melhor, um negro autor. Assim como grandes ícones da literatura europeia são brancos autores. Como o racismo presente na sociedade brasileira afeta a sua escrita? É impossível não estar afetado pelo racismo. O racismo é um sistema estruturante no Brasil e em todas as sociedades multirraciais. Penso que uma das implicações desse modelo estrutural de funcionamento das relações sociais 402

interfere no desejo de desanimalização e dexotização das personagens negras. As personagens brancas vivem os dramas sem que suas performances passem pela racialidade branca explicitamente. Procuro fazer uma literatura em que a cosmovisão seja afroperspectivista, afrocentrada e as personagens estejam naturalizadas. Seu projeto literário Nana & Nilo foi selecionado pela Bolsa de Fomento à Literatura do Ministério da Cultura. Quais são os principais desafios para a edição de literatura infantil no Brasil de hoje? Como você avalia a importância de leis de incentivo à cultura? Os desafios são muitos, ainda mais considerando o fenótipo dominante das minhas personagens. Mas, além dos desafios, quero comentar a importância de leis de incentivo à cultura. Elas são indispensáveis para o fomento de iniciativas literárias e artísticas em geral. Ser selecionado no contexto desse edital foi muito importante para a divulgação desse trabalho. Diante do panorama da cultura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido/ouvido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção cultural – sobretudo literária – brasileira contemporânea. Eu vou fazer uma formulação panorâmica. No Brasil, a cena literária é muito instigante. Para dizer a verdade, sempre foi. Cabe um relato sucinto. Eu comecei a participar de um grupo de leitura formado por amigas da Carla, minha esposa. Por razões de agenda, neste segundo semestre de 2017 o grupo está de férias. Mas, foi muito importante para ter contato com muitas autoras estadunidenses contemporâneas. Na cena brasileira, Conceição Evaristo é um dos meus xodós. Ana Maria Gonçalves, com o romance Defeito de cor, é um impacto. Eu tive a oportunidade de conhecer Conceição Evaristo no final de 2009, Ana Maria Gonçalves conheci numa parceria de trabalho em abril de 2017. Gosto também de Ana Paula Maia, fiquei surpreso com De gados e homens. O seu romance mais recente já está na fila de leituras. Lógico que gosto de outros nomes. Mas essas três têm sido muito relevantes. Fora da literatura, no campo das Artes Visuais gosto de Adriana Varejão e estou encantado com Rosana Paulino. São duas artistas contemporâneas que fazem a minha cabeça. Eu falaria por horas, na área teatral tem a atriz premiada Grace Passô, que me deixou estonteado ao lado do jovem ator Felipe Soares. De que modo a sua vasta experiência como professor se entrecruza com o trabalho de escrita? Eu não tenho uma reflexão sobre isso. Mas, sem dúvida, a atividade docente impacta na escrita. Eu preciso escapar do tom didático na escrita. O ensinamento da experiência professoral é não escrever ficção como se professor fosse. Você está escrevendo algum livro no momento? Eu estou finalizando dois livros no momento, ambos previstos para 2018. Nenhum dos dois é de ficção. Um deles é voltado para o público em geral, traz assuntos como psicanálise, mitologia e filosofia sem contraindicação para não 403

acadêmicos. O outro é mais voltado para a formação docente. Eu tenho planos de ficção para adiante. Por enquanto projetos ainda sendo fecundados. A maioria nem está em gestação ainda. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Penso que é difícil fazer uma análise muito genérica. Vamos pensar com um tipo de “tese”. Nós não enxergamos com os olhos. Uma especulação no campo da teoria da recepção explica bem o que somos nesse aspecto. Exemplifico: se assistirmos uma palestra de alta gastronomia com um chef do sexo masculino, branco e de nacionalidade francesa teremos um tipo de opinião. Se a palestrante for uma mulher negra e com sotaque nordestino, a impressão da plateia será diferente. Porque não enxergamos o conteúdo descolado da forma. A forma está comprometida pelas políticas de exclusão, pelas políticas de privilégio. Em se tratando do que podemos chamar de um modo geral de conservadorismo de direita, percebo paradoxos nacionais bem curiosos. Parte da Direita é liberal somente na área político-econômica, mas conservadora no que diz respeito aos costumes. A Esquerda aparentemente seria o inverso disso. Pois bem, penso que a sociedade brasileira sempre foi conservadora. A mentalidade é patrimonialista, de um imaginário racialista, racista, heteronormativo, sexista, misógino, classista e adultocêntrico. Nós enxergamos através dos olhos com tudo isso. O Estado brasileiro escolheu excluir a população negra depois da “abolição” e criou leis para que somente imigrantes europeus brancos viessem para o Brasil. Penso que existe uma ideia muito difundida, a “ideologia da tribo eleita”, isto é, apenas alguns herdarão o paraíso. Só alguns humanos direitos merecem o céu. Os outros devem queimar no inferno. Um inferno que não é simbólico; mas, um estado de coisas infernal. Essa mentalidade está na base das políticas de ódio e exclusão. Penso que o estágio atual da humanidade é o acirramento desse imaginário. Nós precisamos abandonar a utopia messiânica de que no futuro alguns serão salvos e os maus serão derrotados. Precisamos parar de dividir a humanidade em alguns “mais humanos” e “sub-humanos”.

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Ricardo Lísias Nasceu em São Paulo (SP), em 1975. Vive em São Paulo (SP). Entrevista concedida a André Tessaro Pelinser e Letícia Malloy em dezembro de 2017. Respostas revistas pelo autor em dezembro de 2018. Publicada na revista Voz da Literatura, n. 10, 2019.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Em seu trabalho, é possível perceber algumas características marcantes bastante atreladas às poéticas da contemporaneidade, como a fragmentação narrativa, o diálogo com novas mídias e o aproveitamento de experiências do cotidiano. Você poderia nos falar um pouco sobre as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Em primeiro lugar e há já bastante tempo estão para mim as questões formais. Procuro pensar nelas com intensidade e oferecer para mim mesmo diversos desafios. Embora não seja uma tarefa fácil: a linguagem é porosa, traiçoeira e falha. Como ao mesmo tempo é muito prazerosa, é o tipo de trabalho que gosto muito de fazer. Preciso evidentemente buscar algum tipo de correspondência (não sei se essa palavra é a melhor, acho que não...) entre as ferramentas formais que vou utilizar e a narrativa que será produzida por elas. Aqui, aliás, já não sei se a palavra “narrativa” também é a melhor. Olha aí o problema da linguagem insuficiente… A propósito, peço que essa entrevista seja publicada com a data. Eu estou muito concentrado em compreender como posso evitar fazer a arte curvar-se a uma representação da realidade. Não é isso o que eu quero. Portanto, não posso descuidar desse tipo de preocupação. Acho que a literatura pode ainda produzir muita coisa nova se deixar para trás a ideia de representação, buscar explorar a dificuldade conceitual que existe no interior do termo “realidade” e com isso produzir objetos que possam residir nessas dobras. Acho que aqui pode residir uma possível força nova para a atividade de criação. Nas suas obras, também chamam atenção os narradores, que seguidamente refletem, em ritmo frenético, sobre a sua própria situação e sobre o ato da escrita. Até que ponto esses elementos dizem de seu processo criativo? A autorreflexão faz parte da constituição do próprio narrador, pois não pretendo neutralizá-lo. Não quero neutralidade em nenhum aspecto da minha criação. Acho que não é possível, na verdade, qualquer tipo de neutralidade. O que se pode fazer é criar uma máscara em que, através de alguns recursos narrativos já conhecidos, sobra a impressão de que o narrador é uma figura equidistante entre a obra e o leitor. Não é. Ele é tão artificial quanto qualquer criação e qualquer leitura. Por isso prefiro expor o narrador frágil, construído através da linguagem, ainda mais frágil que ele. No que se refere à sua trajetória literária, houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu 405

um escritor? Comecei a publicar muito cedo, aos vinte e quatro anos. Não acho isso bom nem ruim, simplesmente é como se deu para mim. Do mesmo jeito, não tenho nenhum problema com os meus primeiros livros. Gosto deles, inclusive. Mas com quarenta e dois anos tenho quase dez livros publicados, o que significa que de fato passei por várias fases. No meu caso, inclusive, acho que a palavra “crise” é mais adequada que “fase”, mas as duas significam que com o passar do tempo tive diferentes impressões. O que não mudou para mim foi sempre a dificuldade de expressão e um estranhamento com a linguagem. Hoje, não vejo nenhuma necessidade de ser “escritor”. O que eu desejo é poder continuar criando algo novo todos os dias. Outro dia, por força da situação, estive em um evento em que algumas pessoas que publicaram livros se manifestaram. Pareciam deslumbradas com o fato de serem “escritoras”. Afirmavam inclusive a alegria de poder se cercar de amigos também escritores, em um grupo alegre e animado. Fiquei pasmo. Achei uma graça aquela felicidade juvenil. Mas prefiro manter uma relação tensa com todas as instâncias da produção e circulação artísticas. Então, não consigo me colocar à vontade com isso de ser “escritor”. Alguns de seus textos geraram controvérsias que extrapolaram o âmbito literário. Como você avalia a recepção de sua obra? Em que medida a inclusão de seu nome na lista de vinte melhores jovens escritores do Brasil, publicada pela revista Granta em 2012, e os prêmios literários influenciaram o reconhecimento da sua literatura? Vou começar pelo final, porque a pergunta é sintomática: curiosamente, muitos intelectuais do meio acadêmico acham que eu ganhei muitos prêmios. Ao contrário, ganhei pouquíssimos: uma vez fiquei em terceiro lugar no extinto Portugal Telecom e depois ganhei um prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte. Nada mais. Tenho muita dificuldade para frequentar espaços do establishment literário, não consigo agradar maiorias e muito menos cumprir certos protocolos. Dessa forma, por que o meio acadêmico acha que eu ganhei prêmios? Porque esse lugar estuda muito meus trabalhos e me dá muita atenção. Aqui já se vê que meio acadêmico e establishment literário não são a mesma coisa... A recepção da minha obra, portanto, é essa: muita atenção do meio acadêmico e uma certa repulsa, mal disfarçada, do establishment. Estou razoavelmente satisfeito com isso. A publicação de Diário da Cadeia (Record, 2017) faz parte de um projeto literário mais amplo, que, pelo uso de pseudônimo, de certa maneira dissocia a autoria daquele livro da figura pública de Ricardo Lísias. Recentemente, no Facebook, você comemorou que a Festa Literária de Cachoeira, na Bahia, respeitou o seu desejo e separou os seus livros “dos do pseudônimo”, ao passo que a Livraria Martins Fontes, em São Paulo, acabou dispondo esse livro e o restante do seu trabalho na mesma prateleira, contrariamente ao que você queria. Por que você sentiu essa inquietação? Não seria uma maneira de controlar a recepção da obra? Na verdade, minha irritação se deve exclusivamente ao problema judicial. Se não tivesse havido ingerência jurídica sobre o projeto, até hoje ninguém 406

saberia que sou o criador do “Eduardo Cunha (pseudônimo)”. Talvez desconfiasse, mas a revelação se deu exclusivamente por conta de uma ação na justiça conduzida pelos advogados do ex-deputado federal. A ação foi bem sucedida em primeira instância exclusivamente porque esses advogados ocultaram do juízo uma série de informações. Quando essas informações (sobretudo o caráter ficcional da obra, que estava expresso no exemplar do volume) chegaram à justiça, permitiu-se que o livro fosse distribuído sem nenhuma ressalva. Já perdi a conta de quantos recursos ganhei. Ontem mesmo, aliás, a 1° turma do Supremo Tribunal Federal confirmou, por unanimidade, a decisão da ministra Rosa Weber a favor do livro. Ou seja: houve uma medida de censura que modificou meu trabalho. Isso independe tanto da minha vontade de criação quanto do empenho de interpretação dos leitores. Algumas livrarias evitaram identificar o livro comigo, talvez por respeitarem minha opção autoral e reconhecerem o abuso da ação na justiça. Outras, porém, incorporaram o livro à minha obra. Pior que essas sem dúvida são aquelas que até hoje não vendem o livro, por receio sei lá eu do quê. O romance Divórcio (Objetiva, 2013) teve sua recepção marcada por algumas polêmicas. Logo em seguida, você publicou a série de e-books Delegado Tobias (E-Galáxia, 2014), que explorou os limites da autoficção, incluindo a criação de um perfil fictício no Facebook e a incorporação das reações do público à narrativa. A Polícia Federal chegou a abrir um inquérito contra você, o qual também acabou sendo posteriormente ficcionalizado. Em que medida a recepção de Divórcio desencadeou um desejo de explorar mais detidamente a autoficção? Além disso, você considera que ainda persiste, no âmbito da crítica especializada ou fora dele, certa confusão entre escritor, autor e narrador? Seus livros contribuem para diluir essas fronteiras ou para explicitá-las? São muitas questões em uma só, vou tentar lidar separadamente com cada uma delas. A recepção do Divórcio foi de fato marcante. Eu imaginava algumas das reações, mas em nenhuma hipótese a forte tentativa de despolitização que o livro sofreu. Muita gente simplesmente ocultou que o livro se refere ao jornalismo cultural. Não é um livro sobre adultério, mas sim um livro sobre adultério ocorrido no Festival de Cannes para que um jornal soubesse antes dos outros quem iria receber o prêmio principal. Isso está claro no livro, mas muita gente oculta. Ou melhor: isso aconteceu mais durante o lançamento e nos meses seguintes. Hoje o romance é bem mais aceito. Como o livro foi alvo de muita fofoca, resolvi assim fazer um trabalho sobre fofoca. Para mim os e-books da série Delegado Tobias eram sobre fofoca. Mas me enganei: eles diziam respeito às instituições brasileiras. Fiquei bastante perplexo quando a notícia do inquérito chegou. É uma confusão que impressiona até hoje. Eu acho que a confusão entre escritor, autor e narrador ainda existe, sim, mas dá para colocar no meio disso outras confusões: com personagens, obras, realidade etc. No meio especializado (o acadêmico) isso ocorre menos, ainda que ocorra. Fora dele, é algo quase incontrolável, embora eu ache que esteja aos poucos diminuindo. Acho que não apenas os meus, mas muitos livros estão ajudando a fazer com que as pessoas parem de ficar vidradas nessas confusões e por fim construam seus sentidos para a arte com que se defrontam. 407

O efeito de autenticidade e a autoridade do narrador costumam ser associados às origens do gênero romanesco a partir da análise de textos como Robinson Crusoé (1719). Três séculos depois da divulgação do romance de Daniel Defoe, é possível verificar que parte da crítica literária continua a ler a partir dessa chave. Isso é observado na recepção de Divórcio em razão de certa tendência a indagar se o que o narrador relata sobre a esposa corresponde à realidade. Como você analisa a permanência desse tipo de leitura em face do romance e, especificamente, em relação a Divórcio? Sim, isso aconteceu. Há, como está embutido na pergunta, um aspecto regressivo nesse tipo de leitura. Algumas pessoas, com ou sem um doutorado, recusam-se a enxergar qualquer literatura que não seja a mimética. Para esse tipo de leitor, a literatura representa a realidade e pronto. Nada além disso poderá existir. Há nisso tudo uma segunda consequência: qualquer aspecto político possível do texto literário fica reduzido, para não dizer completamente apagado. No caso do romance Divórcio isso é muito claro. Houve uma série de tentativas de despolitizar o livro, sobretudo com a operação que a pergunta descreve. E as leituras continuaram: “se for tudo verdade, então esse livro não serve para nada, já que é antiético.” Não sei muito bem o que isso quer dizer, mas foi falado muito mais de uma vez. Até hoje muita gente se recusa a aceitar que Divórcio é uma denúncia sobre o jornalismo ainda praticado no Brasil e no mundo. Não é literatura de representação da realidade, mas de intervenção na realidade. Algo interessante de analisar seria a origem do discurso despolitizador da literatura. Nas últimas décadas, é provável que você tenha sido o escritor que mais protagonizou embates judiciais desencadeados pela ficção. Como vê a relação entre a arte e o aparato judicial do Estado? Deve haver uma ética artística? No mundo inteiro a arte sofre assédio, muitas vezes jurídico. No entanto, há limites e ponderações. No meu caso, acho que uma parte dos problemas se dá por certas “particularidades” da sociedade brasileira e consequentemente de seu poder judiciário. Sendo claro: o caso com o Delegado Tobias jamais poderia ter acontecido, foi um engano triste e sintomático. Quanto a Diário da cadeia, parte dos problemas se dá por conta de o livro lidar com alguns políticos que tentam instrumentalizar o poder judiciário. Como não podem praticar assédio diretamente à figura do artista, fazem de forma indireta, como se dissessem: quem tentar me incomodar através da literatura vai ser processado. Enfim, deveria haver algum tipo de mecanismo do poder judiciário que evitasse esse tipo de coisa. Quanto à proibição do livro por um mês, isso eu acho lamentável e inadmissível. Acho no geral que o poder judiciário deveria se afastar da arte. Há muita jurisprudência nesse sentido, mas acredito que deveria haver algo mais concreto e radical, do tipo: “Isso é arte, então o poder judiciário não tem nada a dizer”. Um juiz muito conservador nos Estados Unidos, muito mesmo, defendia esse princípio e dizia que, quanto à arte, se não houver dinheiro público, o artista que faça o que bem entender. Quanto à segunda pergunta, não a compreendi muito bem. No geral, “ética” é um conceito que impõe limites. Arte não pode ter nenhum limite, portanto são dois campos que não se tocam. 408

A vista particular (Alfaguara, 2016) tem como personagem principal um artista plástico que faz do cotidiano brasileiro de violência e abusos a matéria-prima de suas obras. Porém, as demais personagens parecem não perceber o absurdo da situação e a força da crítica. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Seria muito arriscado responder diretamente a essa pergunta. Ou melhor: só acho possível uma resposta incompleta, já que não vejo chance de enxergar com clareza nem o que está acontecendo e muito menos onde tudo isso pode chegar. Acho que o único aspecto claro da realidade contemporânea é que o pensamento regressivo chegou a espaços de poder em muitos lugares do mundo. Sabe-se por exemplo que muitos ingleses logo após aprovar nas urnas a saída da União Europeia foram à internet para descobrir o que afinal de contas é União Europeia... Não acho por exemplo que as redes sociais são a origem e o maior responsável pelo que está acontecendo. Enfim, elas tiveram excelente papel durante a Primavera Árabe, por exemplo. Infelizmente, muitos países árabes tiveram depois um retorno à velha ordem. No recente filme de João Moreira Salles, o extraordinário No intenso agora, há a sugestão de que grupos regressivos sempre reagem a qualquer movimento de conquista mais visível. A todo grande levante se sucede uma manifestação conservadora. A propósito, vejamos sobre isso o que aconteceu depois das belas Jornadas de Junho de 2013 aqui no Brasil. Acho que nesse momento vivemos riscos gigantescos. Donald Trump por exemplo está minando os já bastante frágeis acordos de paz entre Israel e a Palestina. Há poucos meses, gente com cartazes louvando o torturador Brilhante Ustra resolveu aparecer na Câmara Municipal de São Paulo. Enfim, parece que o pior do ser humano decidiu aparecer tudo junto, de uma vez só e com bastante potência. Não sei onde isso vai terminar. Mas posso dizer que o meu lugar eu conheço: estou contra todo esse discurso regressivo, contra os ataques aos acordos de paz, contra a dissolução dos acordos em defesa do meio ambiente e contra a destruição de todos os poucos e tímidos direitos que tínhamos conquistado. E sobretudo torço para que quando isso passar, não reste a ruína dos nossos prédios e, mais ainda, a nossa. Acho possível sim... Como se sabe, uma onda ultraconservadora está chegando ao poder em vários países. Por aqui, já derrubou tudo... Talvez estivéssemos despreparados para enxergar as coisas em sua dimensão real. Ou será que vivemos um típico mecanismo de negação? De uma forma ou de outra, e com amargura, agora estou na resistência. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. Há alguns anos, eu lia regularmente o que era publicado. Mas não faço 409

mais isso. Os motivos são vários: necessidade de buscar outras tradições, falta de tempo, gosto pela não-ficção, filosofia e livros de geopolítica. Mas não a decepção, já que do que escolho, tenho achado coisas muito boas. Recentemente, li a poesia de Marilia Garcia, que é excelente. Um livro de Paloma Vidal, Plano de voo, também me impressionou muito, bem como o volume de contos de Allan da Rosa, Reza de mãe. Acho que há uma produção interessante surgindo no contraponto ao establishment. Esse, para ser sincero, decepcionou-me um tanto. Dos lançamentos mais badalados, gostei bastante de Pai, Pai de João Silvério Trevisan. Quanto às inquietações e estímulos, não sei muito bem o que dizer. O barco vai andando, muita coisa acaba sendo publicada sem que a gente possa alcançar. Não tenho nenhuma empolgação: ainda enxergo muito bom comportamento, falta de ousadia e alguma acomodação aos moldes que o establishment pede. Por sua vez, esse inchaço tem oferecido espaços paralelos muito estimulantes. Outro volume que me agradou muito foi Sessão, de Roy David Frankel. Vivemos um grande momento da poesia brasileira, eu acho. Você tem participado de festivais e feiras literárias. Que avaliação crítica você faz a respeito da contribuição desses eventos para a divulgação do trabalho de novos escritores e para o fomento à leitura no país? São muitos eventos acontecendo por todo o Brasil e eles são muito diferentes. Para os mais famosos e muito ligados ao establishment, nunca fui convidado. Tenho a impressão de que resta para eles uma obrigação de boas maneiras no trato das ideias que não parece ser o que os organizadores identificam em mim. Se fosse convidado, aceitaria, desde que eu pudesse falar o que quisesse. No final das contas, não seria nada muito diferente do que falo aqui. Há eventos organizados por bancos, por exemplo. Têm um bom café e trazem críticos importantes. Estive duas ou três vezes nesses e foi muito produtivo. O público era o especializado. Eventos em universidades são os que geram a melhor discussão. Gosto muito deles, embora não haja o mais remoto sinal de cachê. Não me importo. Também fui a várias “festas”, “bienais” e “feiras” pelo Brasil. São encontros muito variados. Posso testemunhar ótimas discussões, bem como sair com a impressão de que me levaram para o lugar errado. Estive em uma feira impressionante no interior da Bahia, cheia de estudantes e professores, com perguntas complexas e muita atenção do público. Por sua vez, fui a uma feira em uma grande capital. No evento, havia apenas uma pessoa na plateia: o organizador. No geral, acho-os muito importantes e é preciso que haja cada vez mais. Dali sai algo para o livro. Os livros precisam circular. Lancei meu primeiro livro muito jovem. Desde então e muito aos poucos comecei a ir nesses eventos. Devo ter quase vinte anos participando deles. Quanto aos autores, notei uma mudança radical na tendência. Antes, os escritores, como grupo coeso, faziam questão de representar o papel de transgressores. Faziam cara de bravos, iam bêbados, diziam não se preocupar com política e muitas vezes eram grosseiros. Não digo todos, é óbvio: sempre há quem não se preocupa com o grupo. Mas se houvesse uma característica marcante, era essa. De uns tempos para cá, isso mudou: agora estamos na era do moço bem comportado e ético. São engajados, falam de política (sempre de um jeito comedi410

do), nunca desrespeitam ninguém, preocupam-se com o que o público vai pensar deles e há até os veganos. Dizem também que a literatura lhes deu muitos amigos. Nenhum dos dois grupos incomoda, de forma concreta, nenhum poder estabelecido. Vez ou outra, porém, testemunho alguém mandando a letra e tentando agredir de fato o establishment. Aí vale a pena. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Se do ponto de vista da edição estivermos pensando na possibilidade de publicar, acho que as facilidades hoje são muito grandes. Com o barateamento dos meios de produção, os autores parecem conseguir ultrapassar com mais facilidade a tradicional barreira do primeiro livro. Há também meios virtuais, embora esses últimos não sejam bem utilizados ainda em sua especificidade formal. Confesso, porém, que não sou muito íntimo desse aspecto da literatura. Por sua vez, se edição quiser dizer a publicação de algo novo, pessoal e com força estética, acho que nada mudou. Os projetos mais persistentes e complexos continuam encontrando as resistências de sempre: o meio literário brasileiro continua com suas preferências voltadas para uma literatura “meio-termo”, sem grandes radicalismos. Talvez seja assim no mundo inteiro (deve ser), mas aqui isso é mais forte por conta das próprias opções da sociedade brasileira: um lugar em que não se resiste a quase nada, vide a passividade com que a população está assistindo à perda de todos os seus direitos. No caso, a literatura brasileira contemporânea não é uma literatura que, no geral e dadas as exceções de sempre, resista à sociedade. Ao contrário, está afinada a ela. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outros gêneros literários? Exatamente na noite do segundo turno da eleição presidencial, a data da nossa catástrofe, comecei um diário. Ele será feito e refeito até o final do novo governo. Chama-se Diário da catástrofe brasileira. O primeiro volume está disponível na Amazon.

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Rodrigo Caldeira Nasceu em Diamantina (MG), em 1980. Vive em Vila Velha (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei em maio de 2018.

Cada escritor possui um estilo e método de trabalho próprios. Em sua obra, é possível perceber uma característica marcante, a que poderíamos nos referir como uma “poética do desassossego”, que bem poderia ser ilustrada pelos seguintes versos de “Identidade”, do livro Inventário dos olhos (Secult, 2014): “Não é alguma nem nenhuma poesia. / Poesia aqui é desassossego / algum desassossego”. Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? Comente as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. Todo poema é o resultado de um desassossego. É esse incômodo primeiro com algo que me conduz ao poema, ou melhor, que me leva à necessidade de fazê-lo. Esse processo antes da escrita propriamente dita, como que um ruminar de ideias, é muito importante para o meu processo criativo. Por vezes antecede em muito o momento de sentar e transpor para o papel o poema pensado. Nesse momento, um novo desassossego costuma se revelar, que é o de encontrar a melhor forma, disposição e ritmo dos versos para realizar o poema necessário, aquele que de algum modo não queremos deixar apodrecer nas gavetas. Neste poema “Identidade”, por exemplo, o desassossego é o resultado da angústia com três grandes poetas: Drummond, Pessoa e Adélia Prado. Em termos formais minha poética é notadamente tributária do modernismo, ou seja, alicerçada em versos livres e uma disposição que obedece a um ritmo de leitura. Quanto às temáticas que norteiam meu projeto literário, penso que duas me são particularmente caras: a memorialista e a crítica social.   Além dos diálogos estabelecidos com João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, em sua dissertação de mestrado, Waldo Motta, em sua monografia de especialização, e com a poesia atribuída a Gregório de Matos Guerra em sua monografia de graduação, com que outros autores você procura estabelecer interlocuções? Em que medida a atividade de pesquisa participa da organização dos diálogos que você busca instaurar com facetas da tradição literária? Em termos de diálogos poéticos, certamente minha luta maior se resume ao enfrentamento diuturno com Cabral e Drummond. Outros autores, como por exemplo Ferreira Gullar, Adélia Prado e Fernando Pessoa, também estão no meu rol dialógico, mas, penso, sem a mesma força comunicativa dos dois primeiros. Como pesquisei no mestrado a influência que Drummond exerceu sobre o primeiro livro do Cabral, Pedra do Sono, foi inevitável pensar nesse processo a influência dos dois sobre a minha poética e daí também perceber a urgência primeira de todo grande poeta em romper com certa tradição literária. Na orelha de Inventário dos olhos, Saulo Ribeiro revela que o embrião do livro foi a Obra Complexa, reunião de vários poemas escritos no período em 412

que vocês estudavam História na UFES. Como você define sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Quando você se percebeu um poeta? Saulo Ribeiro foi o meu primeiro leitor. Até então o meu exercício poético era restrito à solidão da escrita e o diálogo amiúde com os poetas Daniel do Carmo e Juca Lima. É curioso pensar que nos conhecemos no dia em que estava com os poemas impressos e ele demonstrou interesse em ler. Isso ocorreu provavelmente em 1999. Se pensarmos que só venho a publicar parte daqueles poemas em 2014, quando da edição do Inventário dos olhos, já temos aí um bom diagnóstico da minha trajetória literária. O momento inaugural ocorre anos antes, provavelmente aos dezesseis anos, quando passei um ano morando no Pará e fui apresentado a grandes autores por uma tia que tinha uma pequena, mas seleta, biblioteca. Naquele momento, a escrita me pareceu o melhor caminho de me expressar, e a poesia o gênero inevitável. Como você avalia a recepção de sua obra? Não sei se posso falar em recepção, visto que a única crítica à minha obra foi feita apenas pelo Wladimir Cazé no posfácio do Inventário dos olhos. Alguns leitores têm me manifestado certo apreço pelo livro, mas é difícil avaliar isso como recepção. Você está escrevendo algum livro no momento? Sim. Em conjunto com o Poemínimos, que são 100 plaquettes que estou compondo manualmente com uma máquina de escrever Olivetti Roma, também estou trabalhando em dois livros de poemas (O Lutador e iPoema) e um romance, ainda sem título. Pensando como escritor e fundador da editora Cousa, quais são os principais desafios para a edição e divulgação de novos escritores no Brasil de hoje? Penso que não há grandes desafios em termos de edição e divulgação para os autores se não considerarmos apenas o livro impresso como suporte. Com as redes sociais e a internet ninguém pode reclamar que não tem divulgação. Pequenas editoras como a Cousa existem nos quatro cantos do país, dando oportunidade para novos autores. Pelo contrário, penso que na verdade o grande desafio hoje é emergir um centímetro acima desse mar de escritores. O que ocorre, me parece, é que há uma falsa expectativa quanto à existência de um público leitor para novos escritores. Há sempre uma desconfiança com o novo. Por isso que para mim este me parece ser um problema superado, desde que sua expectativa esteja alinhada à realidade desse universo literário, restrito a um público muito pequeno. Ademais, creio que há um público leitor que está distante do livro enquanto objeto físico, mas que está lendo muita poesia. Talvez mais do que outras gerações. Penso que há nessa percepção de falta de leitor um anseio geracional de que a leitura propriamente dita só seja efetiva se realizada em um livro impresso. Se considerarmos que grandes editoras publicam em média edições com 3.000 cópias e que há nas redes sociais pessoas cujos textos – poemas ou não – são lidos/ compartilhados por um número maior do que esse, temos que repensar o conceito de leitor, sobretudo, desvinculando-o do objeto livro, que muitas vezes, não passa 413

de um fetiche. Entretanto, o livro impresso jamais será substituído, mas é preciso compreender que conhecimento e cultura e, por consequência, “leitores”, também coexistem em outras plataformas. Evidentemente que não estou ponderando questões de ordem estética e qualidade, até porque um poema não pode ser melhor ou pior do que outro só porque está (ou não) impresso em um papel pólen bold 90g e escrito em Garamond 12.5. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Vejo com serenidade, pois sei que isso é mais o resultado de uma falta de cultura de leitura do que propriamente um problema de gênero literário. Ou, como respondi anteriormente, talvez a noção acadêmica de alcance não esteja considerando o fenômeno de uma geração que lê em outras plataformas mais do que no livro impresso. Ademais, se estiver certo em meu argumento, acredito que a poesia, proporcionalmente, é muito mais lida hoje do que a prosa. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que comentasse sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. O panorama atual da literatura brasileira me parece uma Torre de Babel. Pelos aspectos que apontei em outras respostas quanto à quantidade de livros e de novos autores, tentar condensar um escopo apenas de escritores diz mais sobre o que não se leu do que propriamente do que se tem lido. Evidente que tem como pensar, também, em um panorama construído por força e influência do capital financeiro-cultural arregimentado pelas grandes editoras, universidades e mídia. Enquanto leitor, não tenho me prendido a apenas um gênero. Muito pelo contrário. Recentemente um livro que me surpreendeu foi O sol na cabeça, de Geovani Martins. Mas penso que minhas inquietações enquanto poeta têm ainda dialogado fortemente com certa tradição e buscado uma voz própria, que talvez seja similar a alguma produção contemporânea, mas que não consigo identificar nesse ou naquele autor. Como você experimenta o ato de recitar? Recitar é recriar? Com certo incômodo. Para alguns autores sei que o ato de recitar acaba se tornando uma outra criação, pela potência cênica. Mas, comigo, não percebo ganho algum sobre o que está escrito. No poema “matéria de poesia”, lemos: “não quero essa poesia capitalista / regada de sonho e fantasia // quero o poema / escarrado das entranhas / aquele que a gente cospe nas ruas // a poesia analfabeta do trabalhador / talhada no papel em letras de calo [...]”. Em que medida esses versos dizem das relações que você procura estabelecer entre poesia, sociedade e política? Como afirmei na primeira pergunta, a crítica social é um tema caro na minha escrita. Inevitável, diria. E, nestes termos, é difícil separar o estético do ético. O grande desafio é não fazer do exercício poético apenas um ato político. A história literária comprova o quanto o abandono do rigor estético pode ser fatal para a resistência de uma obra ao julgamento histórico. 414

Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Seus poemas reverberam essa barbárie. Em “tempo de morte”, lemos os seguintes versos: “é tempo de morte / tempo de morrer de medo / de fechar as janelas e as portas / tempo de se fechar em grades / tempo de blindar o corpo”. Já em “a cidade”, o sujeito poético pensa a “pretensa civilidade expressa em fúria / universo em constante devastação [...] a barbárie trafega em alta velocidade”. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Como estes poemas citados remetem a um período muito anterior ao momento atual, acredito que os monstros já estavam por aí. Penso que toda ruptura abrupta do Estado Democrático de Direto abre cicatrizes perigosas e que naturalmente ódios, preconceitos e fobias repetidos à exaustão pela grande mídia em algum momento poderiam nos levar a esse estado perigoso de cisão. Não acredito em apenas um marco como detonador. Gosto de pensar que há uma forte tributação histórica disso tudo que estamos vivendo por nunca termos, de fato, curado a cicatriz escravocrata pela qual o Brasil moderno se ergueu. Sobre o atual estágio da humanidade, espero o que a história já nos ensinou: que seja apenas um ciclo. A questão, agora, é só de saber qual será a duração desse ciclo. Espero que o Brasil, havendo eleições livres e democráticas em outubro, possa já no ano que vem iniciar um novo ciclo de resgate e aprimoramento de valores éticos e solidários tão caros às sociedades modernas e que por aqui estava tão no nascedouro que facilmente conseguiram assassinar.

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Ronald Augusto Nasceu em Rio Grande (RS), em 1961. Vive em Porto Alegre (RS). Entrevista concedida a Vitor Cei entre julho e agosto de 2018. Publicada na Texto Poético, v. 15, n. 26, 2019.

Cada escritor possui método e estilo próprios. Em sua coluna no Sul 21, publicada em 12 de fevereiro de 2018, você afirmou que “a poesia que na verdade funciona está quase sempre a um passo da intransitividade, da impertinência, da opacidade, da marginalidade, enfim, de um pathos que se nutre de professar nenhuma profissão”. Em que medida essa descrição caracteriza as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Meu livro Confissões aplicadas  (2004) está repleto de poemas cuja relativa incomunicabilidade – que marca parte da minha produção – aparece bastante contida ou quase anulada. No entanto, ainda sou “cobrado” pelos poemas menos aderentes a uma vocação mimética ou referencial. Os poemas desta vertente ainda são entendidos, me parece, como peças mal resolvidas e/ou herméticas. Na realidade, poemas com tais características indicam apenas uma forma de representação do signo estético-literário. Representam uma dimensão ou possibilidade. As linguagens às vezes se apresentam mais ou menos opacas. Sim, isso acontece. A opacidade mais radical transmite uma informação estética diferente e que é específica a esta condição (ou tensão) da linguagem, isto é, tratase de um trobar clus em relação a um trobar, por assim dizer, mais aberto à esperança do leitor. Se essa pequena distinção não for levada em consideração, então a poesia do Mallarmé de Un Coup de Dés (1897) poderá ser considerada estando muitos furos abaixo, por exemplo, da poesia de Morte e vida severina (1967) de João Cabral de Melo Neto. Entretanto, nenhum desses modos discursivos é superior/inferior ao outro. Apenas nos deparamos frente a duas tendências de agenciamento da função estética da linguagem. Em suas obras percebemos um intenso exercício com a linguagem e uma preocupação com a forma poética. Homem ao rubro (Pró-Texto, 1983), seu livro de estreia, apresenta uma ruptura com a linguagem “culta” do “homem branco”. Já no terceiro livro, Puya (Edição do autor, 1987), notamos um diálogo significativo com a poesia concreta. No seu último livro, À Ipásia que o espera (Ogum’s, 2016), encontramos o tradicional tema do amor. Como você define a sua trajetória literária? Meu percurso poético apresenta um relevo acidentado. Há irregularidades provenientes de um desejo de experimentação. Depois de Puya, por exemplo, alguns poetas e amigos me diziam que eu jamais faria poemas discursivos. Esse é o problema da concepção ou da crença de que o que moveria o artista seria a busca de “método e estilo próprios”. Pode ser que um ou outro artista dê crédito a essa ilusão, que é do mesmo naipe da ilusão de uma “vida de coerência”. Me interessa é a diversidade de experimentos com a linguagem. Drummond tem esse traço, ele é político e simbolista, pois logo se entedia com os acontecimentos e, mais tarde, 416

escreve poemas de corte concreto. Joan Brossa é o mestre dessa visão que rompe com a resignada coerência estilística; ele fez tudo ao mesmo tempo: poesia visual, teatro, poemas versilibristas, poemas em forma fixa, instalações, prestidigitação etc. Seu trabalho é reconhecido no país e alcançou expressividade no cenário literário internacional, com publicações de poemas em periódicos nos Estados Unidos e na Alemanha. Como você avalia a recepção de sua obra, no Brasil e no exterior? Aparentemente, a boa recepção ao meu trabalho no exterior se deve justamente à distância do analista das nossas quizilas particulares. Embora essas quizilas sirvam subsidiariamente ao estudo das forças em conflito, em alguma medida críticos e teóricos de outros países não ligam muita importância às polêmicas que, em muitos casos, justificam apenas essa ou aquela reputação literária. Em relação ao país, meu trabalho começa a ser lido com mais cuidado só na última década. No RS, por exemplo, depois de trinta e tantos anos de atividade, só em 2017 meus livros entraram nas listas de leitura do curso de letras da UFRGS. No artigo “Capítulos em defesa da (im)pertinência da poesia” (Sibila, 2009), você afirmou que o grafocentrismo superestima a poesia a partir de dois vieses antagônicos: por um lado, a poesia seria “drogadição anestésica de fundo alienante”, por outro, seria perigosa e revolucionária. Depois de quase dez anos, como você vê essa questão?   Me parece que essa tensão ou disjunção permanece, mais ou menos, do mesmo jeito. Talvez até se apresente mais carregada em suas tintas, pois a sofreguidão com que hoje opinamos sobre todos os temas – escritores, leitores e seguidores –, nas redes sociais, acaba por fazer triunfar um clima generalizado de ativismo ético-político, em que parece imperioso assumir uma posição doa a quem doer. Ter uma opinião e escrever um poema comprometido com uma causa, hoje, são gestos que quase não se distinguem. Diante disso, um poema que aparentemente não dá a menor bola para representatividades ou que põe em dúvida o real enquanto objeto de mera análise política e social é lido como coisa elitista e alienante.  Desde os anos 1970, assistimos no Brasil à discussão em torno do problema de uma literatura negra, ou da necessidade de afirmação de uma linguagem literária afro-brasileira. Você tem recusado a filiação estrita a este ou a qualquer outro rótulo. Por exemplo, no poema “após a vírgula”, do livro Empresto do visitante (Patuá, 2013), a voz poética faz uma crítica à demarcação acadêmica da literatura negra: “literatura, negra / afrobrasilianische dichtung afro- / brazilian literary movement // nem sempre consegui me entender / com a sua quizilância / conciliar seu orçamento / ao sarro dessa sarna / com que até aqui / muito bem me desavim // digamos para todos os efeitos que / mesmo não tendo transmigrado à áfrica / eu tivesse passado o dedo pelo mapa”. Como você se situa no movimento de consolidação de uma vertente negra na literatura brasileira? Tenho escrito muito sobre isso. O fundamental é não perder de vista nessa discussão um dos termos do conceito, a saber, a literatura – e aqui encareço a 417

acepção artística contida em sua área semântica. E, sendo literatura, suas determinações se apresentam por meio da linguagem como um jogo equívoco que nomeia e transfigura o real. As relações entre um poema e seu tempo não se prestam a mero reflexo de realidades sociais dadas. O escritor se dirige aos seus contemporâneos, entretanto isto não significa que ele, em seu pensamento criativo, se reconheça contemporâneo ou sintonizado com seus destinatários. Vale dizer, o mundo representado é, a um só tempo, emoldurado e sacudido pela linguagem. As imagens do objeto literário são lacunares, servem de recortes possíveis e de transfigurações desobedientes do mundo tanto vivido quanto representado. Entretanto, é necessário fazer o comentário crítico a uma espécie de efeito legitimador que – no respeitante a uma descrição-legitimação dessa literatura – visa a transformar em paradigma aquelas obras em que se observa, em primeiro plano, à maneira de um pórtico, a afirmação da identidade, ou de um nós demasiadamente comprometido e, de resto, difícil de verificar, mas indispensável em termos de demanda de um grupo diante de uma situação político-social conflituosa e/ou desfavorável. Um efeito observável nesse esforço de legitimação, de vez e voz a serem conquistadas, talvez seja o seguinte: o escritor negro que se apresenta à discussão é tolerado como útil depoente; seus escritos se revelam como meras provas, documentos, literatura como testemunho, misto de verismo e depoimento correto: lugar de fala estetizado. Não obstante o que quer que o escritor realize deva ser chamado em princípio de – pausa para a palavra a seguir – arte, restam, ainda assim, aqui e ali, análises e intervenções que insistem em colocar sua criação artística a serviço de “causas e compromissos históricos”. Pode-se argumentar que o que vem após a palavra arte, isto é, “de matriz africana”, “negra”, “feminina”, é que rende assunto a essa espécie de fogo amigo. O que parece ser fundamental admitir é que, antes de qualquer coisa, literatura negra só pode ser mesmo literatura, isto é, uma forma de discurso que tem sua autonomia parcial conectada criticamente às determinações e contradições do campo estético em sua relação não causal com a sociedade. Se meu trabalho for analisado por uma óptica, digamos assim, “conteudística”, talvez ele não se revele tão convincente e útil, mas isso pouco me importa. Minha trajetória até agora tem sido bastante plural e se, em algum momento, ela for aprisionada ou demarcada, não será, espero, por minha culpa, mas por culpa desse ou daquele leitor aferrado ao seu intento interpretativo. Um bom poema não admite solução, essa é a minha divisa. No dia 09 de novembro de 2017, você escreveu em seu perfil no Facebook que gostaria de ser convidado “para falar, entre outras coisas, sobre a grande diversidade de vozes e linguagens que negros e negras estão trazendo para a literatura ainda defendida como coisa universal, mas que na verdade é branca e autocentrada em seus enjoamentos de classe até a raiz dos cabelos”. Como o racismo presente na sociedade brasileira afeta ou é problematizado em sua escrita? Me afeta como homem, como pessoa e, de maneira indireta e não documental, vai acabar aparecendo de um jeito transfigurado na minha condição de poeta. A propósito de coisa parecida, Octavio Paz escreve que a vida não explica diretamente o poema e o poema tampouco explica a vida, pois há algo que está apenas no poema e que não está na vida do poeta. Por outro lado, tem coisas que só cabem na vida do sujeito, coisas que nenhum símbolo dá conta de traduzir. 418

Para alguns pode parecer difícil acreditar, mas a poesia tem seus limites, felizmente ela não é uma panaceia. Minha poesia também tenta reagir à inflação branca na literatura. Tem branco demais empatando a nossa passagem. Entretanto, essa mesma vertente negra, na medida em que se afirma como ruptura perante o sistema canônico, eventualmente oblitera vozes que desbordam, aqui e ali, do tom e dos estilemas esperados para um “autor negro”. Por isso aprecio antes o idiossincrático do que o gesto de “cerrar fileiras”: Arnaldo Xavier e Edimilson de Almeida Pereira, por exemplo, operam esse tipo de gesto. Em outras palavras, gosto de me sentir implicitamente, e não superficialmente, um poeta negro. Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, seja para promover a própria obra, seja para engajar-se politicamente. Como vê essa face do autor contemporâneo? O que mudou na literatura após o advento da internet? Até onde consigo pensar a respeito, entendo que a internet não mudou substancialmente minha poesia. Com relação à literatura em geral, acho que uma reação às vanguardas de 50/60, que ocorre a partir de década de 90 vindo até aqui, se materializa numa defesa da comunicabilidade em prejuízo da experimentação. Os escritores não toleram mais o exílio da literatura e da poesia da cultura pop. Em parte, a internet é instrumentalizada na perspectiva de tornar a literatura mais familiar aos seguidores. Para mim, a proximidade com o leitor é corruptora. Leitor e facefriend são, hoje, uma coisa só. Desde 2013 você é colunista do jornal online Sul 21, redigindo textos de opinião densos, às vezes polêmicos, capazes de desacomodar o leitor. E também tem publicado artigos e resenhas em jornais como Diário Catarinense, Correio do Povo e Zero Hora. Em que medida a obrigatoriedade de manter um exercício de reflexão constante em um espaço como o do jornal contribui em seu processo de composição literária? São coisas diferentes e que atendem a determinações particulares. Os artigos e ensaios representam o meu desejo de leitura crítica em sentido quase filosófico, isto é, de ler de um modo em que eu me veja implicado tanto na denúncia às imposturas como na valoração dos gestos inventivos. Um exercício de análise em que me proponho a pensar na desmesura, correndo riscos. A poesia também é risco. As duas atividades implicam o fortuito e o forçoso, mas na poesia o fortuito (un coup de dés) tem uma presença mais decisiva. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária – sobretudo poética – brasileira contemporânea. Sou um leitor de poesia, essencialmente. Sobre a prosa contemporânea não sei o que dizer. Então, posso apresentar uma lista precária de poetas de que gosto muito. O contemporâneo é sem margens, portanto muita gente ficará de fora. Esses poetas, agora-agora, inquietam e estimulam minha poesia: Eliane Marques, Marcelo Ariel, Alex Ratts, Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira, Leo Gonçalves, Guellwaar Adún, Anelito de Oliveira, Alex Simões, Jorge Fróes. Paro 419

por aqui. Esses poetas me estimulam a realizar um objeto verbal que seja capaz de produzir o mais genuíno prazer estético no leitor. Seus poemas colaboram para que as intervenções artísticas e culturais provoquem choques de pensamento. Seus poemas me dão esperança de voltar a fazer poesia, mas uma poesia que não tenha nada que ver com a poesia pó de arroz, essa poesia de homem branco que, em boa medida, é levada a cabo por muitos dos meus contemporâneos. Você está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos que envolvam outros gêneros literários? Sempre estou escrevendo um livro. Determinadas sequências de poemas se configuram em um livro em processo. Dois livros de poemas devem ser publicados em breve. Tenho um livro de contos sem previsão de publicação. Gostaria de publicar um livro reunindo meus poemas visuais. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? A questão exige uma análise vastíssima. Entretanto, minha interpretação não ultrapassa os limites do bom senso que concorda que estamos, por um lado, correndo um risco de retrocesso e, por outro, que já estamos imersos nele. Há pessoas com mais experiência do que eu e com instrumental teórico mais eficiente do que disponho para fazer uma análise radical e justa da coisa. Não obstante o meu crescente pessimismo, temos de reagir e lutar para que esses tempos violentos e monstruosos (intoleravelmente humanos) não durem muito.

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Rosivan dos Santos Nasceu em Paulo Afonso (BA), em 1996. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei, Cleíza Souza, Michele Batista, Nilian Guimarães e Sara Pereira dos Santos em abril de 2016.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor de verdade? Eu escrevo, geralmente, quando não há mais solução para a vida. Nesses momentos de angústia, de raiva, de anseios, é que ocorre a produção em mim. Quando estou bem e escrevo, não gosto. Acho chato. Eu me percebi escritor quando fiz meu primeiro livro, aos quinze anos. Imediatamente peguei o manuscrito e o queimei. Você se inspira em algum cânone da literatura brasileira? Não há uma pessoa que escreva que não tenha suas referências. O movimento modernista, mesmo com os pontos falhos, mais que expostos, creio que representa melhor nosso espírito e, por estar mais próximo de nós, é o que mais me influencia. Você está escrevendo algum livro no momento ou continua a escrever poesia com frequência? Como disse, a escrita para mim se dá como um vômito. E preciso vomitar sempre pra não me tornar mais amargo do que já sou. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Eu acho maravilhosa essa maximização da escrita, que deixou de ser fruto de uma elite que não tem o que falar, pra passar a ser a voz do povo. Que continuemos neste rumo! Como você vê a recepção de sua obra? As suas poesias são voltadas para qual público? É muito estranho pensar que as pessoas gostam do que escrevo. Sou escritor egoísta, escrevo de mim, para mim. Se a alguém interessa é porque deve parecer comigo. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Acho que hoje está muito fácil. Desafios havia no passado. A questão é que o povo quer nome reconhecido. Isso está mais ultrapassado que as obras de Lobato. 421

Como você vive o ato de recitar? Ao contrário de muitos, odeio saraus e afins quando é pra recitar algo meu. Prefiro declamar Rimbaud em alto e bom som. Se a poesia não me agrada, vou pra casa aflito. Qual o significado do título do livro “ode à nação”? Quer algo mais clássico que a estrutura de minha poesia? Inspirações Drummondianas. Qual o objetivo de escrever um livro que aborda questões sociais, que causam repúdio ao serem abordadas, como homofobia e racismo, entre outros? Se nós, escritores, artistas em geral, não falarmos, quem falará? Nasci engajado e, ao contrário de Maiakovski, morrerei assim. Por que o livro tem como marca este tom irônico e subversivo do autor? A ironia é minha métrica, a subversão minha rima.

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Rubens Vaz Cavalcante | Binho Nasceu em Porto Velho (RO), em 1959. Vive em Porto Velho (RO). Entrevista concedida a Vitor Cei, Laura Maria Moreira, Habacuque Amorim e Lucineia Ferreira em maio de 2016. Respostas revistas pelo autor em março de 2019.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor de verdade? O meu processo é simples: escuto o que as pessoas dizem na rua, no trabalho, no lazer e transfiguro a lírica que habita essas vozes. Para ser sincero, nem sei se me sinto um escritor de verdade. Mas escrevo desde a adolescência e a poesia sempre me seduziu como leitor e como escrevinhador. Você está escrevendo algum livro no momento? Escrevi O Menino e o Rio recentemente. Publico quase que diariamente nas redes sociais. Participo da escritura do livro do mundo. Não o livro do mundo de Mallarmé, acredito. Mas o do mundo líquido e virtual que nos frequenta.  O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? O tema do meu doutorado é justamente a atual poesia brasileira. Estou trabalhando com a poesia nacional produzida no encontro dos milênios, seus temas e suas formas. O que eu estou vendo é que na contemporaneidade há espaço para todas as tendências: as tradicionais, as continuadoras do modernismo e a poesia de invenção e experimentação. Não existem escolas organizadas, como acontecia em outros períodos da literatura: não existem projetos coletivos e sim individuais. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Na verdade, os desafios não mudaram muito: editoras que apostem no novo, público leitor de poesia, espaços para as atuações poéticas etc. Por outro lado, hoje, a expansão das tecnologias digitais permite a qualquer um colocar sua produção na rede social e ser lido. Editoras versus produção digital caseira. Em seu artigo “Norte da produção cultural na região Norte: música e literatura”, publicado em maio de 2012, pode-se observar a dificuldade que existe no reconhecimento da música e da literatura regional. É possível dizer que apesar da falta de divulgação, falta reconhecimento da população local? Acho que primeiro teremos de romper com o conceito de regionalismo, no sentido de que somos lidos somente pelos leitores locais. Estamos num processo de globalização e mundialização, plugados a um universo cibernético, em que o 423

tribal universalizou-se e a forma de ler e escrever é outra. Não se pensa mais em textos, mas em hipertexto. Somos seres reais e virtuais em um único e mesmo gesto. Não há mais lugar para nostalgia. Como você vê a recepção de sua obra? Penso, e isso pode ser um auto ilusionismo, que tenho um público que me lê nas publicações quase diárias do que publico na rede. Os meus livros estão esgotados, o que não quer dizer muita coisa. Como você define a sua obra? Não sei ao certo. É difícil definir a própria obra. Mas sempre penso nela (a obra) como micronarrativas poéticas. São poemas “Totem”, palavra sobre palavra. Um tipo de orgia entre o som e o sentido. Como você vive o ato de recitar? Já fui um recitador performer. O corpo como repositório da poesia. Mas, agora, a voz e a memória começam a me trair. Então, desenvolvi a arte de ler poemas sem empolgação. Sentado, com os textos em riste, leio como se estivesse numa roda de amigos ou na cozinha de casa. Mas o palco ainda me seduz. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? É uma contradição. Hoje, produzimos muito mais livros de poemas, mas os leitores aumentaram numa proporção menor. A vantagem é que a poesia está impregnada na urbanidade que nos cerca: nas letras de alguns compositores, nos outdoors, nas propagandas, nos grafismos, nos grafites em prédios e muros etc. Fazemos uma leitura, ainda que panorâmica, em movimento. Parece que não temos mais tempo de sentar e ler um bom livro de poemas. As antologias traduzem essa ideia graficamente. Todo mundo diz que gosta de poesia, mas nem todos que dizem gostar leem. Você poderia nos falar um pouco a respeito de seu processo de reflexão sobre a docência em literatura – principalmente a docência voltada à poesia – em uma Universidade situada na Amazônia Ocidental, distante de centros culturais e acadêmicos hegemônicos brasileiros? Acredito que ensinar sobre a poesia é diferente de ensinar com poesia. Sobre a poesia temos muita coisa escrita, mas, sobre ensinar com poesia, quase nada. Minha reflexão parte, então, dessa aparente obviedade. Desse modo, foco bastante na formação de leitores da poesia. Professores e alunos. A poesia como o repositório sentimental e criativo da humanidade. A linguagem poética atemporal. O signo sendo ressignificado na linha do tempo. Não se é regional ou universal pela territorialidade e sim pelo olhar perto ou distante que o poeta lança. Penso que viver a poesia já é ensiná-la. A academia pode vir a ser uma referência de fundamentação teórica, mas ela pode ir bem mais longe, sendo um espaço de debate permanente e de pesquisa e extensão qualificada. Ligar a Universidade e a comunidade pelo viés da interação social.

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O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa educativa de formar leitores. Como você compreende o papel da literatura na formação da criança? E, como autor de literatura infantil, quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar com suas obras? A literatura infantojuvenil é básica na construção do leitor literário. Além de ser uma modalidade de gênero que mistura prosa e poesia na sua contação de estórias, ela é suporte de experimentações das mais diversas formas de expressão artística. Acredito que tudo começa por ela. Berço do lirismo e do sublime. Aprender ou reaprender a ler e sentir o lúdico é o que precisamos. Trabalhar com minha obra é simples. Basta ser leitor de poesia e saber brincar de desfazer sentidos. Ensinar com poesia sobre a poesia. Metaensinar. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? O homem achou que seria possível conquistar a paz com guerras. Conseguiu apenas despertar os monstros alojados em nós. E são esses monstros que nos infernizam diariamente, por fora e por dentro, anulando em grande parte nossa capacidade de conviver com a diferença. Estamos frágeis em relação ao mundo doente de desrespeitos, injustiças e violências que nos cercam. A ruptura foi causada pelo choque de diferentes culturas e ideologias em desalinho de propósitos e, mais ainda, o desejo incontrolável de posse e poder. Não somos sociáveis o quanto afirmamos. O “eumismo” nos representa quase sempre. Não espero muito, mas espero um novo “olhar o mundo”. Precisamos. Não acredito que a poesia possa nos salvar de nós mesmo. Mas ela pode ser o arco, a flecha e o alvo na melhora das relações interpessoais. Um início de caminhar. Precisamos voltar a pensar “como gente”.

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Saulo Ribeiro Nasceu em Vila Velha (ES), em 1977, mas cresceu em Pedro Canário (ES). Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei e Andréia Delmaschio em setembro de 2017.

Polígrafo, você escreve romance, conto, peça de teatro e roteiro cinematográfico. Quais são as opções formais que norteiam seu projeto literário? Eu vejo tudo como palavra e ritmo. No cinema e no teatro há o trabalho do ator, diretor, cenário, e isso transforma o texto. No conto e no romance, a relação com o receptor é direta, papel e olho. Ali tem um “eu” a ser lido. Fora disso, não há um eu. Há um “nós”. Isso diferencia as coisas e as modifica no processo, transforma a palavra e o ritmo. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Eu fui chamado de escritor antes de me considerar um. E a palavra soava estranha. Temi muito isso. Demorei a assumir. Meu primeiro contato foi com o teatro. E ali eu não me via como escritor, me via como um técnico do espetáculo. Comecei a esboçar as primeiras prosas em blog com pseudônimo. Creio que isso foi fundamental para meu processo de escrita. De repente, quase ao mesmo tempo, ganhei o prêmio UFES com um conto e o edital de romance da Secretaria de Cultura. Não que qualquer prêmio faça de você escritor, ainda mais esses de alcance regional (ou alguns ditos nacionais sem a menor projeção, feitos por editoras obscuras e associações mequetrefes). Mas comecei a aceitar melhor a ideia naquele curto período entre 2008 e 2009. Você escreve em blogs e, com o Projeto Cousa Digital, disponibilizou livros para leitura online e gratuita. O que mudou na (e para a) literatura depois da internet? As novas tecnologias exercem alguma influência ou interferência em sua escrita? A internet deu voz a muita gente, trouxe muito texto ruim e a melhor literatura ao mesmo tempo. Fez uma multidão se intitular escritor, poeta. Não sei se isso é bom ou ruim. Talvez seja positivo. Preciso de mais tempo pra ter uma visão clara disso tudo. Os deuses morreram e não surgiu mais ninguém pra ser divindade. É doloroso um altar vazio. Mas, claro, pode ser apenas a dor de um membro fantasma. Enquanto os ufanistas descrevem Vitória como “cidade presépio” e “ilha do mel”, os enredos de Diana no Natal e Ponto Morto, ambientados na capital do Espírito Santo, descrevem-na como uma cidade sombria e habitada por personagens marginalizadas.  O contraponto é intencional? Explique sua perspectiva sobre essa questão. É sim. Há muita dor na ilha. Muito cinza. Ilha do cachorro louco, ilha do 426

fel. O poeta Waldo Motta já denunciou a legião de eguns que assombra esse lugar buscando justiça. Vitória ainda está suja do sangue dos que tombaram para que ela tivesse esse nome. Vitória é a derrota de muitos. Como você avalia a recepção de sua obra? Tenho uns cinco leitores na academia e uns cinco na porta dos bares. Gosto disso. Sinceramente, publicar livro de ficção e ter dez leitores de verdade é um feito e tanto. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Tenho visto grandes livros e grandes narradores. E todos sem leitores. Pensando como escritor e editor, quais são os principais desafios para a edição e divulgação de novos escritores no Brasil de hoje? A coisa mudou. É muito complicado criar uma estratégia nacional de difusão para a literatura de ficção e poesia. Editora nenhuma consegue dar conta disso. A luta está se tornando regional, usando muita comunicação e associação da literatura a festas, eventos, tomando a rua... E os movimentos regionais precisam se unir nacionalmente. Literatura virou luta de solo, perto. Literaluta. Precisamos pensar assim. Projetos como a circulação de escritores do SESC, por exemplo, podem dar gás a uma tentativa de nacionalizar a difusão. Você está escrevendo algum livro no momento? Há cinco anos o mesmo (risos). Ganhei uma bolsa Funarte, já transformei ele em roteiro de cinema... Mas está quase pronto. Lanço em breve. É um romance de estrada: Os incontestáveis. Dois irmãos num Opala 74 rodando as estradas do contestado, MG-ES, falando besteira em busca de um passado perdido na poeira. Tenho que me defender por estar em mora. Em 2013 minha filha veio viver comigo. Cuidar de uma criança pequena, trabalhar e escrever um livro não é nada simples. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Sempre existiu tudo isso guardado nessas almas. E eles sempre mandaram no mundo sem precisar afirmar seu comando. Acho que quando eles são afrontados, a reação vem. E se torna mais clara, mais visível. E deveras mais violenta. Vai ser uma luta cada vez mais complicada. Alguma consideração final? Sim. Antevejo tempestades. Mas algum alento. Estou vindo de um processo de oficinas com jovens assentados do MST no interior do Espírito Santo. Eu, o Gustavo Binda e a Natielly Nobre organizamos um livro com a produção deles. 427

Existe uma juventude organizada e pronta para contrapor o fascismo. E com total compreensão do momento histórico que vivemos. Quero também agradecer a oportunidade de falar sobre questões tão importantes levantadas nesta entrevista.

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Sérgio Blank Nasceu em Cariacica (ES), em 1964. Faleceu em Cariacica (ES), em julho de 2020. In memoriam. Entrevista concedida a Vitor Cei, Debora Priscila Arevalo Gutierrez, Isabelle Kaiola e Laureane Antunes em março de 2016. Respostas revistas pelo autor em fevereiro de 2019.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você percebeu a escrita como profissão? Meus poemas e meus livros foram escritos há alguns anos. Geralmente são resultado de reflexões, sentimentos e dores de um jovem cheio de perguntas e poucas respostas. Trabalho feito como uma espécie de colcha de retalhos cerzida por citações, cultura pop, flashes cotidianos e afins.  Durante a adolescência exercitei a escrita em sala de aula. Percebendo assim uma saída para a timidez: a poesia. Depois procurei ficar próximo ao meio cultural de minha cidade. Buscando oportunidades de publicação junto à Universidade. Editei meu primeiro livro alternativamente com esse aval. Depois de muito tempo sem lançar nenhuma obra, você está envolvido em algum trabalho relacionado à literatura? Sempre fiz trabalhos paralelos ao ofício da poesia. Coordenando oficinas literárias, projetos de incentivo à leitura e produção de livros.  Como você define a sua obras? Elas são carregadas de ambiguidades e trocadilhos. Por que a escolha desse tipo de escrita? Fui considerado “pós-moderno” pela crítica local desde o início. Mas essa definição se expandiu com o tempo. Me considero apenas mais um autor contemporâneo. Como você vive o ato de recitar? Não tenho talento para recitar poesias. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? A poesia brasileira está bem viva e atuante. Aqui no Espírito Santo passamos por um ótimo momento de renovação com jovens talentos. de hoje?

Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil

Pequenas editoras estão se especializando para a grande demanda da nova literatura brasileira. Estou otimista nesse sentido. 

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Atualmente, a falta do hábito de leitura nas pessoas, principalmente pelo avanço das tecnologias, tem desanimado muitos poetas, pois o público está cada vez mais ausente. O que você pensa a respeito? O público para a poesia sempre foi seleto e fiel. Temos a tradição das parcerias musicais. Confio nessa forma de trabalho: poesia e música. Qual foi o incentivo para lançar em 2011 o livro Os dias ímpares, publicado pela editora Cousa? O projeto do livro Os dias ímpares (contendo meus cinco livros) foi uma proposta espontânea de jovens editores (Editora Cousa). Devolvendo ao mercado minha obra. Apresentando minha poesia para novos leitores. Incluindo uma fortuna crítica que localiza esses livros no universo poético produzido nas últimas três décadas. Como você reagiu quando o professor Jorge Ribeiro apresentou a você a ideia do documentário sobre sua vida? O documentário Risque o meu nome do mapa traz um olhar afetuoso sobre meu percurso literário. Também feito por uma nova geração admiradora de poesia e artes. São brindes que recebo e busco compartilhar com os sensíveis, antenados e amantes de cultura. Em seu novo livro, Blue sutil (Edição do autor, 2019), lê-se que “Gostaria de escrever um poema sobre a elegância dos elefantes, o exercício sutil do espreguiçar dos gatos, o mistério dos átomos, o silêncio das células, os olhares de soslaio, o sotaque dos anjos. Rabiscar versos sobre a cor da minha sombra na tarde suave. Mas uma cãibra insiste em doer no coração suburbano e periférico. Espalhando afiados e pontiagudos pontos-de-interrogação”. Em que medida essas palavras dizem de seu processo criativo após esse hiato de duas décadas? Descreva as opções formais e temáticas que norteiam seu novo livro. O livro Blue sutil traz um namoro tímido com a prosa. Não tenho simpatia pela expressão prosa poética. O que se aproxima talvez de uma definição seria “poemas em prosa”. O livro nasceu despretensioso e se impôs. São anotações e breves comentários sobre memórias afetivas e perguntas sem respostas. Procurando ser econômico no vocabulário. Talvez um flerte com a pureza da crônica. Parece complicado? Mas não é. Muitos escritores têm mantido atividade constante nas redes sociais, seja para promover a própria obra, seja para engajar-se politicamente. Você não era muito ativo na internet, mas nos últimos anos começou a postar poemas e textos na internet, alguns deles incluídos em seu novo livro. Por quê? E como vê essa face do escritor contemporâneo? Utilizo as redes sociais apenas para o trabalho de divulgar cultura. Mais especificamente a agenda cultural da Biblioteca Pública do Espírito Santo. Os textos assinados por mim foram inevitáveis com o tempo. Estão no livro. Exibir minha literatura online foi uma boa experiência. Mas não pretendo dar continuidade a essa prática. 

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Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade?  No meu cotidiano percebo há cerca de duas décadas um namoro das novas gerações com a barbárie. Sou cético com relação à “nova” Humanidade, relacionamentos descartáveis, frios, sexo self service, indiferença, desdém. Muita informação fácil e desperdiçada. Procuro combater com minha suavidade. E me refugio no silêncio.

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Suely Bispo Nasceu em Salvador (BA). Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei entre outubro e novembro de 2017. Publicada no Correio da Cidadania, em 12 de janeiro de 2019.

Você provém de uma dupla formação acadêmica: é graduada em História e mestre em Estudos Literários. Além disso, trabalha como atriz de teatro desde 1994, tendo feito, em 2016, o seu primeiro trabalho na televisão, na novela “Velho Chico” (Globo, 2016). Há um diálogo entre essas diferentes funções e formações, no ato da escrita? De que modo o entrecruzamento de diferentes pontos de vista auxilia no enriquecimento da poesia? O diálogo existe, sim, porque para mim uma coisa não exclui a outra. Em uma entrevista, eu já cheguei a dizer que a poeta é um dos meus personagens. De fato, a minha relação com a poesia se aprofundou a partir do teatro, com a minha experiência no grupo Guardiães da Poesia, com a atriz Margareth Maia, no início dos anos 90, na UFES. Então, o diálogo começou ali. Uma atriz que participava de um grupo de teatro, que trabalhava, encenava poemas. Em 1996 escrevi meu primeiro poema, mas sempre digo que não foi uma coisa planejada. Aconteceu inesperadamente. Depois o mestrado e a pesquisa sobre o poeta Solano Trindade. Eu já recitava os seus poemas e utilizava-os nas oficinas de teatro que ministrava. Quando a dissertação ficou pronta, o meu orientador, professor Jorge Nascimento, observou que a minha dissertação era muito histórica. Então, realmente, eu não separo as coisas e tudo acaba se complementando. Diferentes pontos de vista sempre enriquecem. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu uma escritora? Acredito que o momento inaugural na escrita de poemas se deu, como já falei, inesperadamente, e nesse momento claro que ainda não me considerava escritora. Escrevia esporadicamente. Era sonho e intuição. Perdia o sono e só voltava a dormir depois que escrevia. Hoje entendo que o meu caminho se fez gradualmente, e no início eu não tinha muita consciência, mas o bom é que comecei a guardar os escritos. Agora me recordo que, quando eu era criança, a professora de português falava que eu escrevia muito bem. Nessa fase também gostava de escrever e a primeira coisa que escrevi eu chamei de desenho-novela (risos). Eu queria imitar as fotonovelas que eu lia muito, aquelas histórias românticas... eu tinha uns nove ou dez anos e escrevia e desenhava nos cadernos. Essas lembranças estão vindo há pouco tempo e acho muito engraçado. Nessa época gostava de ler os romances de Jorge Amado e na adolescência adorava Machado de Assis. Não sei quando exatamente eu comecei a me considerar escritora. Acho que foi mais a partir do reconhecimento das pessoas. Antes de publicar poesia, eu já tinha sido publicada na área de História, artigos, e o primeiro livro que publiquei foi Resistência negra na Grande Vitória: dos quilombos ao movimento negro 432

(2006), que teve muitos problemas de revisão, e atualmente estou finalizando uma segunda edição revisada e ampliada desse livro. Mas só comecei a me considerar poeta quando decidi publicar Desnudalmas, em 2009, e só em 2016 veio o segundo de poesia: Lágrima fora do lugar, sete anos depois. Nesse ínterim fiz o mestrado, escrevi a dissertação, (escrevi também muitos poemas que estão em Lágrima nessa fase do mestrado), publiquei alguns artigos nesse período, roterizei e criei um espetáculo poético sobre o escritor Miguel Marvilla, em 2014. César Huapaya classifica Um recital para Miguel Marvilla como espetáculo-conferência. Fui publicada em 2015 numa coletânea de artistas negras feministas eróticas, em São Paulo, junto com escritoras e desenhistas de todo o país, o coletivo Louva-deusas. Um livro lindo! Adoro essa publicação. Neste ano de 2017 fui homenageada pelo coletivo Afro-tons, com a publicação da coletânea de jovens escritoras e desenhistas negras, com o livro denominado de Zacimbas a Suelys. Assinei o prefácio do livro Amorodé – poemas afro-brasileiros, de Marcos Cabral. Um livro com poemas só sobre orixás. Achei uma ideia fantástica e o autor no final do ano passado me convidou para escrever o prefácio. No dia 25 de novembro de 2017, alguns dos meus poemas, que foram traduzidos para o francês, pela atriz Rosi Andrade, serão recitados em praça pública, num evento que combate a violência contra a mulher, em Paris. Então, o caminho foi se construindo gradualmente e o reconhecimento também. As coisas foram acontecendo, e coisas maravilhosas, graças a Deus. A coletânea de poesia e prosa de mulheres negras capixabas intitulada De Zacimbas a Suelys (Edições Me Parió Revoluções, 2017) presta uma homenagem a você, evidente a partir do título. Ali, seu nome é alinhado ao da princesa angolana escravizada no século XVII e trazida ao norte do Espírito Santo, que hoje é considerada, pelo movimento negro, símbolo de luta e resistência. Como historiadora, que tal lhe parece essa homenagem? Por que a história de Zacimba Gaba é praticamente desconhecida, mesmo entre os habitantes do estado em que ela viveu, não fazendo parte sequer das aulas de História do Ensino Fundamental? Bem, eu nunca esperei tanto, mas já que aconteceu o sentimento de gratidão é incomensurável. Foi uma emoção muito grande no lançamento. Na verdade encaro como uma grande responsabilidade, pois é uma representação simbólica muito forte esse alinhamento, como se eu fosse o símbolo máximo na contemporaneidade para essas novas artistas negras no Espírito Santo. É muita responsabilidade! Sempre faço questão de lembrar de escritoras negras contemporâneas que começaram antes de mim, como a dramaturga Vera Viana e Elisa Lucinda. Assinei a orelha do livro e lá afirmei que somos as guerreiras do nosso tempo, como foi a quilombola Zacimba Gaba. Essa é a identidade que nos une. Agora, sobre o desconhecimento da história da Zacimba Gaba, sabemos que a História que aprendemos nas escolas brasileiras é eurocêntrica, não só a História, as outras disciplinas também. Todo o ensino se dá sob essa perspectiva a partir da Europa, apesar da lei 10.639/03, que instituiu o ensino da história da África e da cultura negra no Brasil, essa prática continua. Sendo assim, figuras como Zacimba Gaba e tantas personagens negras tornam-se invisíveis. Já passou da hora de mudar essa perspectiva, mas infelizmente pra complicar vivemos um momento de retrocessos e isso tem se refletido na educação. 433

Como você vê a recepção de sua obra? No geral sinto que a recepção é positiva, mas não sei se consigo dimensionar isso. A partir do momento que você lança um trabalho, as pessoas podem gostar ou não. Na verdade não me preocupo muito com isso. O que sinto é que o público é muito carinhoso comigo. Às vezes me surpreendo quando vejo algum artigo que se refere a mim e eu nem estava sabendo, que coloca meu nome ao lado de Elisa Lucinda, Bernadete Lyra, Deny Gomes. Quando cheguei de Salvador, essas mulheres foram as primeiras referências de escritoras no ES. Outro dia vi no Google um jovem poeta lá em São Paulo me citando como uma de suas referências. Este ano a professora Joana D’Arc Herkenhoff escreveu um artigo que faz parte da sua pesquisa de doutorado e lá está: “A poesia afro-brasileira de Suely Bispo”. Grande honra! Ela que escreveu a biografia do Miguel Marvilla e me conheceu quando foi me assistir na estreia do recital sobre ele. Eu realmente não tenho a dimensão, nem nenhum controle sobre isso, mas percebo que o saldo é positivo. Ainda bem! Em todos os âmbitos (cultural, acadêmico, científico, literário...), sempre convivemos com o silenciamento da voz da mulher, especialmente da mulher negra. Nos seus textos, em contrapartida, o leitor se depara com uma constante autoafirmação da voz poética da mulher negra. Quais são as dores e as delícias de se produzir uma obra poética nos tempos atuais e falando a partir da tripla marginalidade que significa ser mulher, negra e capixaba? Realmente a situação da mulher negra na sociedade é a de maior opressão e discriminação, ainda maior que a do homem negro. Dados estatísticos comprovam. Não é uma condição fácil e romper com isso muito menos. Eu penso que essa autoafirmação de ser mulher negra está mais evidente em alguns poemas como “Oxum” e “Filha de Iansã”. Ainda tem mais outros que se referem à identidade negra, como “Negra alma”, “Corpos assinalados” e mais alguns. Eu até gostaria de escrever mais sobre o tema, mas ao mesmo tempo quero falar de outras coisas também. De qualquer forma, é uma mulher negra que se afirma quem está falando e que se permite falar do que quiser. Gosto quando a Joana D’Arc Herkenhoff afirma que muitos pertencimentos identitários entrelaçados são confrontados a se manifestar na minha poesia: ser mulher, ser negra, ser poeta. O ser erótico também está muito presente na minha obra. Acho que Herkenhoff me define muito bem quando diz: A poesia de Suely encarna a vibração autêntica de um viver poético transitivo, transcultural, em travessia para o outro. [...] relacionar a poesia de Suely ao conceito de literatura afro-brasileira não lhe reduz o alcance, mesmo se consideramos que ambos os livros não se restringem a essa dimensão. Significa, antes, reconhecer o mérito da sua poesia encarnar de tal modo a negritude que ela não é mero acessório ou adorno étnico, mas parte epidérmica de sua obra, como o é em sua vida.

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Poderia haver melhor definição? A delícia de tudo isso é realmente ter uma voz, apropriar-se de um discurso ancestral e se permitir dizer e expressar tanta coisa. Sair do campo da invisibilidade a que tentam nos confinar. Isso pra mim é muito caro, até porque sou uma pessoa de natureza tímida, mas é prazeroso falar, mesmo das coisas mais difíceis. Fico feliz também por ver que tantas mulheres estão nesse movimento aqui no Espírito Santo e em todo o Brasil. É certo que temos que romper muitas barreiras, mas ser mulher, ser negra ou ser capixaba não deve ser um limite. Acho que o mais difícil vem quando decido publicar e ter que lidar com a parte pragmática do ofício. Desnudalmas foi mais fácil porque fui aprovada pela Lei Vila Velha. Lágrima fora do lugar foi publicado sem patrocínio. Quando vi que não tinha sido aprovada num determinado edital, pensei: nem assim calarão a minha voz. Eu vou publicar de qualquer jeito. E assim foi. Mais uma vez contei com a boa sorte de ter uma editora como a Cousa, que deu um tratamento especial à obra, que teve uma edição primorosa, e o livro é um sucesso. Então, não me deixo abater pelos nãos, mas tenho que admitir que não é fácil. No livro Lágrima fora do lugar (Cousa, 2016), você faz uma singela homenagem ao ator e poeta pernambucano Solano Trindade. Existe uma influência desse a(u)tor sobre o seu trabalho? Com que outros autores(as) brasileiros(as) você procura dialogar? Como eu sempre digo, Solano Trindade faz parte da minha vida. Essa relação começou a se estreitar a partir de 2004, quando fiz um recital na semana da consciência negra, com poemas como os de Cruz e Souza, Waldo Motta, Elisa Lucinda e Solano Trindade. Em oficinas de teatro utilizei a sua poesia e no ano do centenário, em 2008, fiz homenagens a ele no Estado. Depois veio o mestrado. Tudo isso eu conto na dissertação. É uma relação de identidade com esse autor que fala de coisas tão familiares como o ser negro, crítica social, mulher negra. Ele está inserido dentro da chamada Literatura afro-brasileira, e eu certamente sigo os seus passos. O fato de ele ter sido ator é outro fato que nos identifica. A família mantém vivo o seu legado no Embu das Artes (SP), com atividades no Teatro Popular Solano Trindade, e em 2016, foi emocionante fazer o lançamento de Lágrima fora do lugar nesse espaço também. Em Lágrima fora do lugar, além de Trindade, acontecem diálogos com outros escritores, como no poema “Lágrimas inconscientes”, que faz referência explícita ao conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. Também Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade. Até com John Donne, que é um autor inglês com quem tenho menos familiaridade, dialoguei. Confesso que a princípio tive medo de parecer pretensiosa, mas depois relaxei porque sei que tudo aconteceu de forma muito natural. São autores que foram impactantes para mim. Sinto falta de dialogar mais com as mulheres. Lembro que este ano, ao reler Hilda Hilst, isso aconteceu, e escrevi um poema que se refere claramente a essa escritora que admiro tanto. Em Lágrima tem também o poema “Orides”, dedicado a Orides Fontella e Alexandre Moraes. Tem ainda o poema “Dolly”, em que eu cito o meu amigo José Carlos Perim, o Zeca Perim, que faleceu em 2016. Ele também era escritor, mas publicou apenas Afrodite, a ilha, um livro de contos. Os poemas engraçados que escrevi foi 435

ele que me inspirou. Acho “Dolly” um poema engraçado. E também “Alma de Calcinha” veio de uma provocação que ele me fez. Este ano já escrevi um poema pensando nele. Poucas pessoas sabem que ele também escreveu poemas para mim. São poemas belíssimos, em que ele me transformou em musa. Nós tivemos uma breve, mas significativa correspondência literária. Na apresentação ao livro Desnudalmas (GSA, 2009), o ator e diretor de teatro Paulo DePaula observa: “a sensibilidade da poeta se mistura à religiosidade e se envereda pela mitologia yorubá e através dela expõe a exuberância do sensualismo físico”. Lendo os poemas, no entanto, o leitor se depara com uma religiosidade que extrapola o âmbito dos signos yorubá, como no poema “Johrei”, ou nos versos de “Axé e luz”, em que a voz poética se autodenomina “negra espírito japonês”. Esse ecletismo ainda guia a sua existência? Como se dá a ligação entre o yorubá e o johrei? Sim, o ecletismo me guiará sempre. Sou uma pessoa de mente aberta. Como já disse em outra entrevista, o Renato Santos me definiu como uma pessoa transcultural. E sou mesmo. Em termos religiosos fui criada como católica, estudei até em escola de freira. Quando entrei na universidade tive um período agnóstico, mas depois me aproximei das religiões afro. Queria ser do candomblé, acho linda a religião, os mitos, gosto de ir, de ver, do batuque, das danças, da comida e nunca vi o diabo por lá. Vi orixá, que é outra coisa. Mas senti o chamado espiritual do Johrei, que é uma prática oriental de origem japonesa. As práticas litúrgicas são diferentes, mas a ligação pra mim se dá através da ideia de ancestralidade, que é muito forte tanto nas religiões de matriz africana, como nas religiões orientais que cultuam os antepassados. Religião deve ser religação com o divino, mas a forma como isso se dá depende da cultura de cada povo. As diferenças culturais devem ser respeitadas e as escolhas religiosas de cada um também. É o que penso. Aos observadores exógenos, como eu, uma das belezas e forças das religiões de matriz africana parece ser justamente o não apagamento da sensualidade, a presença do corpo no culto. Esse traço vai de encontro, por exemplo, ao que acontece nas religiões de origem europeia e nas seitas neopentecostais que hoje se alastram pelo país, encabeçando uma verdadeira jornada inquisitória de apelo moralista contra manifestações artísticas em que são retratados aspectos da sexualidade humana. Ainda que haja fortes indícios de um fomento financeiro de origem política patrocinando-a, uma grande parte da população tem aderido a essa ideologia e propagado-a de diversos modos, especialmente por meio dos multiplicadores clássicos das ideologias, como a família, a igreja, a escola e as outras mídias. Que sensação têm hoje, no Brasil, os adeptos de religiões africanas? Como trabalhar com o corpo, matéria-prima do teatro, num contexto tão pobre e reacionário como este? Não é apenas sensação, é uma triste realidade o preconceito, a discriminação, a intolerância e a perseguição às religiões de matriz africana. É uma total falta de respeito. A sensação só pode ser essa. Quanto ao papel do artista nesse contexto, o que posso dizer é que nós continuaremos e resistiremos. O nosso trabalho é expressivo e criativo. Reflexivo também. Quem é artista vai continuar criando, independentemente de qualquer 436

coisa. Algumas poucas vezes, tive que tirar a roupa em cena. Recordo que há cerca de dez anos fiz isso na peça Flor de Nanã, do diretor César Huapaya, com o Teatro Experimental Capixaba. Nunca aconteceu nada de mais. No máximo algumas pessoas se retiraram silenciosamente da plateia. Isso acontecia mais em cidades do interior. Se fosse hoje acho que seríamos apedrejados. O que você tem lido? A partir de um recorte pessoal, que escritoras ou escritores recomendaria a quem quer ampliar o conhecimento do que se vem produzindo atualmente na literatura brasileira? No início deste ano eu reli Da morte. Odes mínimas, de Hilda Hilst, e pela primeira vez li O Caderno Rosa de Lori Lamby, que achei muito divertido. Se ela estivesse viva seria apedrejada também. De certa forma, ela foi na sua época, porque esse livro não teve uma boa recepção. Mais do que erótica, literatura obscena. Quero dar sequência lendo mais a sua prosa, pois sempre li a poesia. Gosto muito dela. É uma das minhas preferidas. Este ano li muito os autores do Espírito Santo: Sérgio Blank, Alexandre Moraes, Caê Guimarães, Lucas dos Passos, David Rocha, Fabrício Fernandes, Eduardo Madeira, Waldo Motta leio desde sempre e volta meia. Miguel Marvilla e Marcos Tavares também. Aline Dias, Sara Vervolet, Brunella Brunello. Admiro muito essas jovens escritoras. Quero pesquisar mais Vera Viana e as Zacimbas, como me refiro às escritoras do livro De Zacimbas a Suelys. Tem muita gente produzindo, não sei se dou conta de indicar, mas em Literatura negra Conceição Evaristo é uma grande referência contemporânea. Edimilson de Almeida Pereira, Ele Semog, Hélio de Assis são poetas de que gosto muito. Na dramaturgia, Aldri Anunciação, que ganhou o prêmio Jabuti com Namíbia, não!. Lázaro Ramos, Ana Maria Gonçalves são nomes de destaque atualmente. Mas tem muito mais gente. Você está escrevendo algum livro no momento? Quais são os seus projetos para a área cênica? Atualmente estou finalizando a revisão do livro A resistência negra na Grande Vitória: dos quilombos ao movimento negro – 2ª ed. Revisada e ampliada. Esse livro, que foi publicado em 2006, mais de dez anos depois busquei dar a nova cara do movimento negro local, principalmente o movimento de mulheres negras, de jovens e dos estudantes negros na Universidade Federal do ES. Foram os setores que responderam às solicitações para trazer as informações mais atuais. Esse livro já está quase indo para editora. Poemas inéditos tem vários e um novo livro de poesia deve acontecer, mas ainda vou esperar de um a dois anos para publicar. Sonho transformar em livro a minha dissertação do mestrado A importância da obra de Solano Trindade na Literatura Brasileira. Tenho um livro infantojuvenil também para publicar. Na área cênica, quero continuar com Um recital para Miguel Marvilla por tempo indeterminado, mas penso também em nova peça. Tenho uma ideia fantástica que devo colocar em prática brevemente, pelo menos começar a pesquisa. Mas quando está no plano das ideias eu não falo. Sempre penso retomar Shakespearianas, meu primeiro trabalho solo, porque o público que me assistiu naquela época (anos 90) sempre pede para eu voltar. 437

Atualmente, no Brasil e em diversos outros pontos do globo, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como desfecho para o atual estágio da humanidade? O mundo virtual é como o mundo real. Ainda que haja muita confusão mental e manipulação, penso que o que tem se mostrado atualmente sempre esteve lá: o fascismo, o racismo, o machismo, a homofobia e todo tipo de discriminação. O ponto de deflagração é a própria globalização, os avanços tecnológicos e a velocidade da informação, que não permite mais que as coisas fiquem ocultas. Os atores sociais que lutam pelas conquistas dos seus direitos e buscam seus espaços de visibilidade. Ao mesmo tempo em que houve avanços, por outro lado vem a reação conservadora. Vivemos na era da visibilidade, da exposição excessiva. Hoje todo mundo tem que aparecer, nem que seja mostrando o que tem de pior. Todo mundo tem opinião, mesmo sobre assuntos que elas não dominam, mas tem que se expor. As pessoas perderam também o pudor, perderam a noção de espaço privado e espaço público. Não existe mais essa separação. O mundo virtual é só o reflexo do real. As novas tecnologias são os novos brinquedos da humanidade. Fica todo mundo fascinado olhando para as telas de computadores e celulares. Sempre brinco dizendo que de tanto se olhar pra essas telas, as cabeças ficarão quadradas. De certa forma, isso já acontece. A onda reacionária e o comportamento intolerante demonstram que as visões estão se estreitando. Não posso adivinhar qual vai ser o desfecho dessa história, mas se continuar do jeito que está, com certeza não será dos melhores. O caminho para um bom desfecho passa sobretudo pela educação e a recuperação de valores morais e éticos, para que a humanidade possa se reeducar e aprenda a se ter um equilíbrio nisso tudo, com base no respeito ao outro e à sua diversidade. Seria muito bom não só para os seres humanos, mas para o planeta inteiro, que a mentalidade, os sentimentos e o comportamento avançassem na mesma proporção das tecnologias. Eu não vejo outra saída.

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Vanessa Prieto Nasceu em Ji-Paraná (RO), em 1979. Vive em São Paulo (SP). Entrevista concedida a Luana Pagung e Vitor Cei em setembro de 2017 e publicada na Revista Científica/FAP, v. 16, n. 1, 2017.

Você é atriz, dramaturga, produtora, escritora e se autointitula uma artista multimídia, que transita por muitas linguagens. Quais são as opções formais que norteiam seu projeto estético e como ocorrem os trânsitos que você promove entre diferentes expressões artísticas e suportes? Bem, acho que preciso rever o termo multimídia na minha descrição, já que ele é usado para definir obras que misturam diversas linguagens e artistas que na mesma obra misturam muitas mídias. Eu sou uma artista que passeou com uma história por algumas linguagens: teatro, literatura e agora cinema. Estou roteirizando O Silêncio em apuros para longa de animação dentro de um edital do Fundo Setorial do Audiovisual – Prodav 04/2014. Em um futuro não tão breve teremos um filme. Meu desejo inicial sempre foi ser atriz, mas percebi ao longo da minha trajetória que eu me interessava muito pelo todo, não apenas pelo trabalho de interpretação. Mas pela criação como todo, pela dramaturgia, pela realização das obras. Eu me tornei uma artista que executa muitas funções por necessidade mesmo, por falta de oportunidade de trabalho como atriz. Mas antes de me formar como atriz, fiz faculdade de Imagem e Som na UFSCar. Então, já existia um desejo misturado ali. Ser atriz ou ser diretora, roteirista, produtora? Como eu não costumo terceirizar meus sonhos, resolvi produzir minha carreira, produzir meus próprios espetáculos de teatro. Então, abri minha empresa e comecei a idealizar projetos culturais, captar patrocínio, executar o projeto, prestar contas. Tudo isso em parceria com Edinho Rodrigues. O meu filho primogênito foi O Silêncio em apuros (teatro), depois veio Lampião e Lancelote, depois Toro Negro (espetáculo de flamenco), depois A árvore Berenice, depois o livro O Silêncio em apuros. Agora estou produzindo o longa de animação do Silêncio. O resultado estético de qualquer das obras que escrevi, idealizei ou produzi é uma decorrência do processo de construção delas, não é uma escolha anterior. Está mais ligada à necessidade do conteúdo, da mensagem que quero falar, do que ao meu desejo por uma forma. É como se eu deixasse o projeto me dizer o que ele quer ser, pra onde ele quer ir. E falando sobre O Silêncio em apuros, foi importante aceitar que cada linguagem transformaria a história. São obras independentes decorrentes de uma mesma ideia e premissa. Sua trajetória artístico-literária teve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Eu comecei a escrever dando aulas de teatro para crianças da comunidade de São Carlos dentro de um projeto de musicalização infantil da Universidade Federal de São Carlos: além de dar aulas, eu dirigia, construía cenário, pensava figurino e escrevia as histórias para os meus alunos encenarem. Então, comecei na 439

dramaturgia por necessidade do trabalho de professora. A ideia inicial do Silêncio nasceu nesse momento. Depois caí em São Paulo, meio que por acidente, pra ficar três meses, e nunca mais saí. Depois de oito meses em São Paulo, eu prestei o vestibular da Escola de Arte Dramática da USP e passei. Em 2004, eu comecei a estudar teatro. Em 2006, já tinha DRT de atriz e diretora, passei num teste de novela do SBT. Em 2006, fiz o último longa do Carlão Reichenbach, Falsa loura. Em 2007, fiz O Sítio do Pica-Pau Amarelo na Globo. Parecia que eu teria uma carreira em ascensão. Mas depois disso tudo começou a dar errado pra mim, como atriz. Eu não passava em testes, não era nem chamada para testes de filmes, de novelas e de séries. Eu me tornar escritora, e posteriormente ser indicada ao Jabuti de literatura infantil, só aconteceu porque me tornei uma atriz desempregada. O fato de você ter sua origem em um estado que recebe pouca visibilidade na cena cultural influenciou no seu percurso e no seu estilo? No meu percurso, sim. Nasci em Ji-paraná em 1979, depois morei em Porto Velho. O fato de ter nascido num estado que na época tinha pouca oferta de cultura – tanto no ensino como no consumo – me obrigou a sair da casa de meus pais aos catorze anos. Eu já queria ser atriz e minha mãe me deixou ir atrás desse sonho. Hoje em dia, não acho que seja necessário partir de Rondônia. Já vejo em Rondônia um movimento de arte e cultura crescendo, gostaria de fazer parte dele. Ainda não consegui, mas tenho esse desejo. Produzir coisas com artistas de RO. Não sei se ser de Rondônia influenciou no meu estilo. Mas sei que influenciou na minha temática: nasci e morei sempre em lugares silenciosos. Aprendi a valorizar o silêncio, muito. Eu o amo profundamente como se fosse uma pessoa mesmo. É engraçado isso. Hoje moro na Av. Paulista e isso é uma questão. Minha grande preocupação com Rondônia é o avanço das igrejas evangélicas (as mais fundamentalistas) e como isso pode tolher um pensamento crítico e a liberdade de expressão. Além de o estado se tornar um grande curral eleitoral, a exemplo do que tem acontecido na política do Rio de Janeiro. Acho muito perigoso misturar religião com política, pastores candidatos, ou secretários de cultura que querem levar a mensagem do evangelho para a comunidade. Isso me preocupa e já vi que está acontecendo: na última visita a Rondônia, fiz algumas reuniões para falar com secretários de cultura das cidades, sobre ideias para as políticas públicas de arte e cultura, e percebi isso. Como você vê a recepção de seu trabalho e de suas obras? O Silêncio em apuros (teatro) foi um projeto polêmico. Recebemos muito espaço na imprensa, acredito que pela temática da poluição sonora, pelo reconhecimento da nossa diretora. Recebi menção honrosa no Prêmio Nascente da USP pela dramaturgia. Mas, quando o espetáculo ficou pronto, a crítica especializada dividiu sua opinião sobre ele, alguns críticos amaram, como os críticos da Veja, da Folha e de outros portais, mas um crítico muito importante para Teatro Infantil detestou a montagem, o meu texto e o meu trabalho como atriz. Foi muito difícil pra mim, me senti humilhada publicamente com a agressividade da sua escrita. Depois disso perdemos o patrocínio da Bauducco para a circulação no interior de SP, fizemos só mais uma temporada num teatro da prefeitura e o Silêncio se foi... Ainda tenho o cenário e figurinos guardados, não me pergunte por quê... Acho que 440

o sonho de levar a peça pra Rondônia, para minha cidade natal. O que mudou depois que Lampião e Lancelote venceu os prêmios Bibi Ferreira, APCA e Qualidade Brasil – 2013 e O Silêncio em apuros foi indicado ao Prêmio Jabuti 2016? O Lampião e Lancelote foi um projeto que eu idealizei e em que atuei. O texto é do Fernando Vilela e do Bráulio Tavares. O seu sucesso é fruto de um coletivo de artistas. Os prêmios nos possibilitaram continuar com o espetáculo por mais três anos. L & L é um dos espetáculo mais premiados da história do teatro. Recebemos onze prêmios (entre eles o prêmio FEMSA) e vinte e duas indicações. Foi um projeto muito especial. Mas o que mais me alegrava nesse projeto era ver o teatro lotado todos os dias. Isso pra mim é o maior prêmio de todos. Sou uma artista popular, o que mais me interessa é esse contato com o público. Eu me realizo nesse lugar, na casa cheia. Não tem preço ver o teatro do SESI – Paulista lotado, o Santa Isabel, em Recife, lotado. Passamos por nove capitais. O sucesso de Lampião e Lancelote me deu credibilidade como uma realizadora cultural na classe teatral, como idealizadora. Apesar de poucas mídias terem me dado o crédito por isso. Como intérprete, novamente a crítica – o mesmo crítico e seu companheiro – me avaliou mal. O Silêncio em apuros é uma produção independente, publicada com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura do Governo de São Paulo e com o patrocínio de uma empresa química multinacional. Quais são os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? O principal desafio é conseguir que uma editora queira publicar sua história. Eu fui rejeitada por duas editoras, e não fui contemplada em dois editais em que me inscrevi. Acho que os jovens autores precisam se auto-editar, tentar editais e prêmios para publicação. Provavelmente, irão receber melhor do que através de uma editora. Meu mentor literário, Roberto Taddei, me ensinou que os desafios de qualquer autor são primeiro ser publicado, segundo ser comprado e terceiro ser lido. Editando meu livro de forma independente com as leis de incentivo, consegui resolver dois desses problemas. Eu editei o livro – com uma equipe coordenada por Paula Casarini e supervisão de escrita criativa de Roberto Taddei – e distribuí gratuitamente para bibliotecas e instituições públicas. Espero que os livros tenham encontrado leitores curiosos onde quer que eles estejam. Como você avalia a importância de leis de incentivo à cultura e programas de ação cultural? São fundamentais para desenvolver nossa cultura e arte, além de formar mercado de trabalho para os artistas que vivem sempre no limiar da escassez de recursos e de dificuldades financeiras. Não é nada fácil ser artista no Brasil e, neste momento histórico, ainda tem sido pior, além de enfrentarmos muita burocracia pra trabalhar com as leis de incentivo, somos chamados de vagabundos por grande parte da nossa sociedade, que acredita que estamos apenas sugando do Estado. Eles ignoram que cada 1 real investido em cultura e arte pelo Estado gera mais 7 reais na economia direta e indireta. A Inglaterra, por exemplo, já anunciou que investirá fortemente na indústria do entretenimento porque é uma indústria 441

limpa, que gera muita riqueza. Os artistas não são inimigos do povo. O Silêncio em apuros foi inspirado na peça homônima de 2011. As ilustrações de Marina Faria,  feitas com aquarela e lápis de cor, compõem perfeitamente a obra. Após essa experiência, você percebe mudanças em sua maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? Sim. Ela deu a cara para os personagens. Agora estamos trabalhando juntas no desenvolvimento do longa de animação O Silêncio em apuros, e os personagens que vejo enquanto escrevo são bem parecidos com os do livro. Mesmo sendo outra linguagem, eu me inspiro nos desenhos dela. Marina ilustra além da história, desenha o que não está dito. Por que você escolheu o silêncio como tema do seu primeiro livro? O Silêncio tem uma mensagem que vai além da questão da poluição sonora, de respeitarmos o espaço sonoro dos outros. Existe uma mensagem sobre diálogo e coexistência entre diferentes. Agora no filme, apareceu um subtema que é a superação. Os personagens precisam revisitar seus fracassos. O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa educativa de formar leitores. Como você compreende o papel da literatura na formação da criança? E, como autora de literatura infantil, quais são suas sugestões aos educadores que pretendem trabalhar com suas obras? A minha sugestão é que construam livros com as crianças, com histórias e desenhos, encadernem como puderem, mas permitam que elas tenham essa experiência de fazer um livro. Acho que o interesse pelo objeto livro aumentará muito. A narrativa é fundamental para entendermos o mundo. A criança começa a entender seus funcionamentos internos se vendo representada nas histórias. Diante do panorama da literatura e da cultura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem acompanhado? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção artística – sobretudo literária – brasileira contemporânea. Confesso que estou mais conectada com o cinema neste momento. Tenho me debruçado mais sobre roteiros do que livros. Artisticamente/politicamente, minha inquietação tem sido conseguir sobreviver a esse momento histórico. Minha grande questão é como dialogar com quem pensa diferente sem entrar no campo da dramatização, sem a polarização do nós contra eles. Tem sido difícil manter a delicadeza nestes tempos. Você está escrevendo algum livro no momento? Possui projetos que envolvam outras linguagens? Tenho uma nova história, O caderno de receitas, que também iria estrear como teatro e depois virar livro. Mas não consegui captar patrocínio com a crise e com tantos projetos de atores globais sendo realizados no PROAC-ICMS de SP. A oferta de projetos aumentou muito. O PROAC-ICMS é vítima do seu próprio sucesso: funcionou tão bem nos primeiros anos que agora tem muito projeto para 442

pouca verba. Uma fila gigantesca para avaliação e aprovação. Desisti de produzir, momentaneamente. Mas transformei a história em argumento de cinema e estou esperando a resposta de um edital. Historicamente, presenciamos um silenciamento da voz da mulher. Como o machismo presente na sociedade brasileira afeta o seu trabalho em geral e a sua escrita literária em particular? O machismo é tão opressor e começa tão cedo que eu mal entendia o que estava em jogo ao longo da minha trajetória pessoal e profissional. Hoje, com trinta e oito anos, eu já consigo identificar claramente. No âmbito pessoal, meus irmãos sempre tentaram me proteger, mas me tolheram muito no que se referia à minha sexualidade, a meu comportamento social expansivo. Numa cidade pequena como Ji-Paraná, ou até Porto Velho, diziam coisas como “Você vai ficar mal falada se fizer isso, ou aquilo, com os meninos. Se você se comportar assim”. O machismo já começava ali, bem cedo. Numa mistura de desejo de proteger, mas também de reprimir a sexualidade feminina. Quando as meninas começam a se tornar mulheres, principalmente. Coincidiu que esse foi o momento em que mudei para Ribeirão Preto, fui morar com minha irmã mais velha, Daniela Prieto, e sempre fomos cúmplices para nos defendermos de julgamentos como esses. Minha irmã desbravou muitos caminhos para mim, ela sofreu mais com o machismo da nossa família do que eu. Ainda no âmbito pessoal, me relacionei estavelmente por sete anos com um parceiro que me incentivava muito a produzir meus projetos, a ser empreendedora, e me dava muito apoio para que isso acontecesse. Mas, por outro lado, me atrapalhou muito a carreira de atriz com ciúmes de cenas românticas, ou qualquer cena que me expusesse de forma sensual. Por ironia da vida, e inicialmente com o meu apoio, ele se tornou diretor de cinema. Repensou sua postura e, anos depois, me pediu desculpas por isso. Agora ele entende a verdadeira natureza e importância do trabalho do ator. O que estava em jogo ali era o desejo de ter a mulher sob controle, de reprimir o feminino. Mesmo com pouco espaço para a subjetividade da personagem, fazer uma personagem tão erótica como Sarita Del Ciel na série Zé do Caixão foi uma libertação pessoal. Libertação da preocupação do julgamento da minha família e da sociedade. Foi um marco da minha liberdade para ser sensual o quanto eu quiser, o quanto o personagem pedir. O corpo é meu e eu não o escondo mais. Existe um tipo de misoginia muito específica com mulheres que tenham sex appeal. Hoje isso já é reconhecido como uma forma de capital social. Garotas que tenham capital erótico normalmente sofrem bullying na escola, dos meninos e até de outras garotas, quando não são vítimas de violência e difamação. Quando crescem, podem ser constantemente desqualificadas no trabalho, sofrem questionamentos de como atingiram tal posto, são caluniadas, acusadas de terem saído com seus chefes. Quando não são realmente assediadas por eles. Peço desculpas se isso soa como um autoelogio, mas sempre ouvi que era uma mulher atraente. Sempre dancei e pratiquei muitos esportes, então acabei desenvolvendo um corpo atlético. O ponto que quero ressaltar aqui é que sofri assédios morais de professores na faculdade – tanto na UFSCar quanto na USP – e eu nunca entendia o porquê. Eu era desqualificada intelectualmente, porque 443

o meu estereótipo não era de uma aluna “estudiosa/inteligente” e sim da “loira burra”, da garota vulgar. Quando chegou o momento de trabalhar como atriz era esse tipo de personagens que me ofereciam. Eu fiz várias personagens: a burra, a fútil, a vulgar. Mas aquilo me incomodava muito. Hoje, eu sei que aquilo já era a representação da mulher sendo deturpada. Uma vez, numa reunião de um trabalho de publicidade, eu questionei a diretora de marketing de uma grande empresa de telefonia por causa disso. Um grupo de atores e atrizes faria vídeos cômicos pra internet. Os personagens que me foram destinados eram: a namorada que não sabe ler mapas; a menina que está correndo no parque, torce o pé e o galã aparece para ajudar e a gostosa que saía com o chefe. Ela me perguntou o que eu achava e eu disse: “entendi que eu sou a burra, a frágil e a interesseira”. Continuei: “eu leio mapas melhor do que o meu namorado, por que a mulher tem que fazer a personagem da burra? Se nós invertermos vai ficar até mais engraçado...”. Ela acatou essa mudança, pelo menos. Confesso que eu sentia tanta insegurança de ser rotulada que esse julgamento me travava muito nos momentos de atuar personagens assim. Nesse ponto, o livro O capital erótico, da socióloga francesa Catherine Hakim, me ajudou a entender o porquê. Esse livro é resultado de uma pesquisa de doutorado e sua tese é que atributos como beleza, charme e sex appeal podem ser um trunfo para o sucesso profissional, tanto para o homem quanto para a mulher. Ela constatou que um dos poucos ambientes em que isso não se aplica é justamente no meio acadêmico, no mercado intelectual e na crítica. Eu desconfio que sofri uma certa “perseguição” da crítica por estar numa posição de liderança dentro dos meus trabalhos: eu produzia, escrevia e atuava em O Silêncio em apuros. Hoje concordo com todas as deficiências dramatúrgicas apontadas pela crítica e que cometi um erro ao usar o programa do espetáculo para textos de agradecimentos e homenagens. Eu me envergonho por ter ignorado isso. Acredito que por ter me sentido em tantos momentos desqualificada, desenvolvi uma persona (ou personalidade?) que precisa sempre se autoafirmar, e isso ficou muito claro na minha escrita no programa do espetáculo. Mas, agora, vendo tudo com distância, e após ler muitos livros sobre feminismo, entendo que o incômodo da crítica também passava pelo fato de ser mulher (com sex appeal) e estar numa posição de comando. Por mais que a qualidade do meu trabalho – como atriz e dramaturga – possa ser questionável e questionada a qualquer momento, existia uma agressividade excessiva na escrita do crítico e eu atribuo isso a uma forma de misoginia, sim. Eu me pergunto e me perguntei qual o problema de eu ser a protagonista do espetáculo que eu produzi e que eu escrevi? Eu só comecei a produzir para poder atuar. O meu grande aprendizado no Silêncio (teatro) é que o acúmulo de funções e de preocupações, atrapalha meu trabalho como atriz e que eu precisaria ter uma equipe mais confiável e mais tempo de preparo. Em Lampião e Lancelote, a história continuou. O mesmo crítico de teatro, e também seu companheiro, fizeram revisões negativas do meu trabalho como atriz. Ressaltando o fato de que eu era a idealizadora do projeto, mas destoava do restante do elenco. Eu novamente concordei: em meu segundo espetáculo profissional, eu não poderia estar no mesmo nível de atores tão experientes como Cás444

sio Scapin, Luciana Carniele, Daniel Infantini e Leonardo Miggiorin. É um risco trabalhar com atores tão experientes como eles, porque existe uma grande chance de você ser o ponto fraco da peça. Mas não me arrependo dessa escolha. Aprendi muito e cresci muito ao longo dos três anos de temporada do espetáculo. Minha questão é que escrevi uma carta em resposta ao crítico – no espaço para comentários do portal do Estadão onde a crítica foi publicada – e minha resposta nunca foi aceita. Eu me senti silenciada, sim. Dois anos depois, esse mesmo crítico de cinema fez uma avaliação positiva do meu trabalho como atriz em Zé do Caixão. Mas não se deu ao trabalho de colocar meu nome, apenas me chamar pelo nome da personagem. Eu reconheço o lugar do ator como coautor de uma obra, mas me pareceu que, aos olhos dele, eu agora estava no lugar certo: comandada, e não comandante. Bem, quando fui indicada ao Jabuti de literatura infantil, foi uma redenção. Eu finalmente estava sendo respeitada pelo meu trabalho. Eu acredito que todas as críticas que recebi me fizeram refletir e estudar muito dramaturgia. E que passar por tantas provações fez com que eu duplicasse o cuidado com meu trabalho e com a escolha da minha equipe. É triste dizer isso, mas escrever se tornou pra mim um lugar de libertação, porque só importa o que eu tenho pra dizer e o como eu digo. Não importa como eu aparento. É como se eu pudesse me libertar da minha imagem e dizer “você pode me ouvir um momento, por favor?”

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Vicente Franz Cecim Nasceu em Belém (PA), em 1946. Vive em Belém (PA). Entrevista concedida a Heloisa Helena Siqueira Correia e Vitor Cei em outubro de 2017 e publicada na revista Labirinto, ano XVII, v. 27, 2017.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Você poderia comentar as opções formais que norteiam seu projeto literário? É bem simples: eu simplesmente sinto a Realidade do que escrevo – não a realidade da Vida no que escrevo – a Realidade do que escrevo. Tentarei ser mais claro: eu creio na Realidade do que escrevo. À medida que as Palavras vão saindo pelas minhas mãos elas vão se tornando Realidades para mim. Claro que para isso é preciso abandonar completamente todas as noções que foram criadas sobre a Literatura – a Literatura constituída ao longo dos séculos, pela Cultura, por essas noções, a Literatura que não é para ser vivida como o Real – é para ser lida. Isso não serve para mim. Eu preciso criar realidades verbais onde possa existir. Nelas, o que chamamos vida real está presente, claro. Embora, por ser metamorfoseada em Verbo, seja uma literatura, a que sai através de mim, mais próxima da inconsistência dos sonhos. Cada vez mais, ao longo desses quase quarenta anos de Viagem a Andara, cada vez mais, quando estou escrevendo um livro, eu escrevo menos e leio mais enquanto escrevo: as Palavras vão saindo pelas minhas mãos e vou as lendo, isto é: ao lê-las, tornando-as realidades, vou vivendo essas realidades. Este fragmento de Na Penumbra Andara: o Livro, a vida, que abre Ó Serdespanto, falou disso onde se lê: alguém vive, alguém escreve Esse é o ponto de partida, o ponto de chegada. algo está se movendo, então. Está? Se, quem? E o que é, esse algo? A vida. E, nela, alguém, que escreve. E o que escreve, o Livro, é a Ponte, entre a vida-lá e o vivendo a vida aqui, em mim: alguém, que escreve. O Livro é a vida? Não, o Livro não é a vida. É a outra vida. Mas sendo outra vida é a vida num rumor que se arrasta paralelo, ao lado dela. Aquele que escreve é real, mas o personagem que cria não é real. À divindade agrada o jogo de criar, a criatura é o seu gosto de brincar, diz Angelus Silesius. Está em Silencioso como o Paraíso, livro de Andara. 446

Assim, também. A vida vivida é real, mas a vida-escrita não é real. Para que serve então a vida-escrita? - É um instrumento, para ver, tentar abrir, dobra a dobra, insistindo, a vida real E por que alguém escreve? - Para isso, o que foi dito acima, tentar abrir, dobra a dobra, insistindo Como você define sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Esse início pode ter sido não um, mas vários, que foram se somando. Um deles veio quando eu, pouco além de um menino, lia livros de ficção. Eu reagia aos autores não permitirem aos leitores ser mais do que passivos receptores da obra – onipotentes, eram os autores que determinavam tudo. Nesse primeiro início, eu me disse: se um dia for um escritor vou deixar o leitor participar da obra, ser tão criador dela quanto eu. E quando escrevi o primeiro livro de Andara, A asa e a serpente, o livro termina – abrindo-se para um reinício – justamente oferecendo, antes desse reinício, dois finais, para o leitor escolher um deles, ou escolher, ludicamente, os dois. O segundo início deve ter se dado quando comecei a ouvir minha mãe, Yara Cecim, contar as histórias – míticas, mágicas – da Amazônia, onde ela e eu nascemos. Contava para dormirmos, eu e meus irmãos, Paulo e Elizabeth – não os Contos de Fadas, de Andersen, Perrault, dos quais gosto muito, mas contava – como as mães contam ou leem – elas ainda fazem isso? – contos de fadas para os filhos, antes de dormirem. Quanto a isso devo dizer que os livros visíveis de Viagem a Andara oO livro invisível são contos de fadas para adultos – e, certamente, para as crianças também. Ou apenas para as crianças que adormecemos dentro dos adultos que achamos ter nos tornado? Mas, antes desses dois inícios, suspeito mais que a Literatura começou em mim foi no instante em que nasci na Vida Visível, passei a existir em Ente humano. A gente, suspeito, não nasce propriamente no que sentimos como Vida, mas em uma forma de Literatura em que acreditamos profundamente como realidade. Lembro Shakespeare dizendo: “somos feitos do mesmo estofo de que são feitos os sonhos”. Ele não estava se referindo somente aos homens, mas a isso tudo que chamamos Vida – seus insetos mínimos, suas Estrelas imensas. E nós, homens, no meio disso tudo, sonhando-nos existir, como tudo se sonha existindo. A respeito de sua obra in progress Viagem a Andara, iniciada em 1979, seus leitores sabem que Andara nasceu como uma metáfora da Amazônia e se expandiu para outros lugares e tempos, tornando-se universal. Como você apresentaria Andara hoje a um leitor que apenas se iniciou na leitura de sua obra? Não sei se sei responder a isso. Primeiro vamos corrigir: Andara não é uma metáfora da Amazônia – Andara converte a Amazônia em uma metáfora da 447

Vida. Inicialmente, temos a palavra Andara. O que é Andara? Uma viagem se faz andando, então: Viagem a Andara? Simples assim? Algo que vem do verbo andar? Mas sendo Literatura – não para mim, que creio em sua realidade, mas para o leitor a quem se convencionou o papel de ler – a Viagem não está acontecendo de fato – somente no como se. Então, estamos em uma Viagem ao andasse. Avançamos através de uma hipótese. Não há passos de pés humanos, há passos-palavras, me saindo pelas mãos. Esse é o Tempo de Andara – chamo de Tempo da Hipótese: Andara existe no Tempo da Hipótese, o tempo do andasse, andaria, no tempo de um houvesse andado, de um andara – Andara. Assim, Andara é a Vida no como se da Literatura. Isso é contrário ao que eu disse acima? Não. E por quê? Eu suspeito que a Vida e a Literatura são um como se. Possivelmente o Mesmo – no sentido Uno em que Tudo seja necessariamente um Como Se. Por dentro, então, Andara é isso. Uma hipótese, um como se. Por fora ela é mais simples – ou era para ser –, é apenas a Amazônia transfigurada em um lugar chamado, que chamei: Andara. Um lugar que nasce bem pequeno, apenas um pequeno lugar na margem de um rio sonolento entre as árvores – mas depois foi crescendo tanto, de livro para livro, que se tornou grande como a Amazônia, e crescendo mais, crescendo sempre, grande como o Cosmos – e crescendo mais ainda, hoje, dentro de Mim, Andara tem dentro de Si todo o Cosmos. Mas não parou aí – do lugar visível que aparece nos livros visíveis de Andara, os livros que escrevo de Andara, avançou até se perder na Invisibilidade, no que já não se sabe onde se está – e deu origem a oO livro invisível de Andara – o livro que nãoescrevo, e que é nãoliteratura – ou é literatura fantasma, que – sendo inexistente – existe em seu não existir – se semeia no Imaginário do Leitor. Mas será somente nesse Imaginário que existe – como se o Imaginário não fosse o como se de Tudo que consideramos que é – no sentido de Algo mais real do que as realidades que percebemos, humanos – quem sabe tendo a ver com o que Suhrawardi percebeu como o Imaginal? – que eu só descobri após quase três décadas fazendo a Viagem a Andara. Essas perguntas não deveriam me ser feitas, porque quanto mais surgirem respostas – mais perguntas surgirão. Por exemplo: é O livro invisível não escrito que dá origem aos livros visíveis escritos de Andara, ou são os livros visíveis escritos que fazem surgir a miragem de um livro invisível? A proposta de uma literatura fantasma permanece em sua obra hoje? Por que a opção pela escritura, narradores e personagens invisíveis? Já quase posso dizer que sei, além do mero dizer que suspeito, que nós – homens e Universo – somos e nãosomos – que tudo é nãosendo ou nãosendo é – a ordem não fará uma perceptível diferença. É esse o estofo de que somos feitos, de que falou Shakespeare. Mas falar disso com as palavras dos dias, as da rotina, as habituais, não consegue dizer muita coisa. Posso tentar a resposta com um Canto de Andara, do livro Oniá? Suspeito de Si pois poderia nem ter sido o que é, 448

um homem, não poderia? suspeito de Si, pois poderia ser, em uma Floresta Sem Frutos por onde não passam os homens, a Raiz de uma Árvore de Treva, não poderia?

Mistério e luzes,

longe

suspeito de Si, em seu Jejum de Ninho Branco, aguarda que a Ave da VoOz lhe diga

tu és Tu

Qual o sentido para a Amazônia de hoje, do Manifesto Curau que você lançou em 1983? O mesmo de quando foi escrito, em 1983 – agravado. A violação da Amazônia avança ferozmente, sempre. Por isso, depois do primeiro veio um segundo manifesto, vinte anos depois. Mas é o mesmo Manifesto Curau, atualizando-se, denunciando os acontecimentos à medida que os anos passam – Testemunha de um Massacre. Ele é uma defesa poética/política da região – que eu chamo de a Floresta Sagrada. Porque também mais do que suspeito, sei que a Natureza é o Invisível se revelando, visível para os nossos olhos. Na Natureza, o Mistério Original se mostra cotidianamente. Ainda que velando Sua Essência. E o Manifesto Curau se resume, também – em sua essência – à frase que o encerra, conclamando a um Início de insurreição cada vez mais urgente: “nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor”. Nos anos 1970, você realizou filmes em super-8. Depois ficou trinta anos sem filmar, apenas escrevendo Andara. Em 2009, voltou a filmar, já fazendo filmes digitais, que estão disponíveis no YouTube e no Vimeo. Quais são as opções temáticas e formais que norteiam seu projeto estético cinematográfico? Há relação com a sua obra literária? Sim. Nunca tentei saber exatamente qual, mas deve haver – há, porque chamo esses filmes de KinemAndara – significando: Cinema de Andara. Mas me doei mais à literatura do que ao Cinema. Em 1980, sua segunda obra, Os animais da terra, recebeu o prêmio 449

Revelação de Autor da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1981, A noite do Curau, versão concentrada do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, foi Menção Especial no Prêmio Internacional Plural, no México. Em 1988,  Viagem a Andara recebeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA. Em 2014, Breve é a febre da terra recebeu o Prêmio Haroldo Maranhão de Romance, do Instituto de Artes do Pará. E, não sendo um prêmio, mas tendo considerável relevância, em 2001 a crítica portuguesa consultada sobre os melhores do ano apontou seu livro Ó Serdespanto como o segundo lançamento mais importante de 2001. Como você avalia a importância desses prêmios literários? Dependendo de quem lê o livro e atribui a ele o prêmio, esse prêmio terá ou não valor. No caso do Grande Prêmio da Crítica da APCA, foram quinze críticos votando a favor do livro, porque o prêmio só é atribuído se houver unanimidade. Por isso, antes de mim, na década de 80, só havia sido dado a Cora Coralina, Mário Quintana e Hilda Hilst, e depois de mim, em 1982, a Manoel de Barros. E entre esses críticos, além de serem muitos, estava Leo Gilson Ribeiro, e para mim bastaria para o prêmio ter muito valor. Você tem alguns livros publicados apenas em Portugal. Quais os principais desafios para a edição e leitura de obras literárias no Brasil? O Brasil sabe muito pouco o que é Literatura. Então, como saberia o que já nem é mais Literatura, como saberia o que é a Viagem a Andara – e um Livro Invisível. Andara saiu da Literatura e suas convenções, já é Escritura – foi o que os críticos portugueses, consultados pelo jornal Público, souberam ler em Ó Serdespanto. Quais escritores brasileiros contemporâneos você tem lido? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Prefiro continuar vendo na Literatura feita no Brasil, entre os imediatamente anteriores aos atuais, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, na ficção, e Manoel de Barros e Jorge de Lima, na poesia, e, entre os atuais, venho acompanhando aqueles que são inventores de linguagens – na ficção, me ocorrem agora três geo-grafias literárias brasileiras: Carlos Nejar, no extremo Sul, Carlos Emílio Correa Lima, no Nordeste, e Arthur Cecim, aqui no extremo norte, na Amazônia. Como você avalia a recepção de sua obra no Brasil e em Portugal? Suspeito que os editores me temem, porque não podem ler o signo $ na minha literatura. Mas ela é muito bem recebida, embora por poucos, porém suspeito que seria bem mais se as tiragens e a distribuição dos livros fossem maiores – mas jamais meus leitores serão multidão, porque Andara é literatura para iniciados – e nunca se soube de uma multidão de iniciados, não é? Você está escrevendo algum livro no momento? Não. Talvez deva parar de fazer a Viagem a Andara. Mas após dezessete livros duramente, muito dificilmente publicados, escrevi ainda três, inéditos, que reuni no volume Oniá um Lugar cintilante. Um editor leu e quer lançar no início de 2018.

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Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes fascistas, que se manifestam perversamente, de todas as formas. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? O homem é o pior inimigo de si mesmo. O que nos deixa uma única saída: para nos livrarmos do nosso pior inimigo, precisamos nos livrar de nós mesmos. Podemos tentar ir no sentido oposto, porque o homem também é o único amigo de si mesmo. O que nos levasse a uma outra saída: para que essa Amizade se realize, o homem precisa retornar a si mesmo. E agora? Entendo que as duas saídas nos levariam à Mesma Saída: um profundo sentimento de Unidade. Tomo Andara como referência. No primeiro caso, Andara nos mostra no livro K O escuro da semente o humano se despojando progressivamente de si mesmo, lançando o H da palavra humano para o fim da palavra: umanoH, e, assim, libertando o Um que em nós está oculto. No segundo caso, o Um, que é chamado Uno por Plotino, nas Enéadas, se manifestasse entre nós se fôssemos capazes – e sei que penso diferentemente do que se pensa – de, enfim, ver a Semelhança na Diferença. Alguma consideração final? Apenas esta: o homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante sua queda que descobrirá sua leveza possível.

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W. B. Lemos | Esperando Leitor Nasceu em Brasília (DF), em 1972. Vive no Rio de Janeiro (RJ). Entrevista concedida a Vitor Cei entre fevereiro e março de 2019.

Em seu trabalho, é possível perceber uma característica marcante, a que poderíamos nos referir como uma “poética da emulação”, para usar um conceito de João Cezar de Castro Rocha. No prefácio de Rasga-mortalha. Poemas dos outros (Circuito, 2014), Castro Rocha afirma que “o autor de Rasga-mortalha aprendeu a transformar a apropriação do alheio em meio próprio de lidar com a urgência da leitura”. E acrescenta: “Leitura da tradição literária – vale a pena acrescentar, especialmente hoje em dia”. Na orelha do mesmo livro, Italo Moriconi endossa: “os poemas de Lemos destacam-se ainda pelo corpo a corpo bastante singular e rico que travam com a tradição literária”. Em que medida a atividade de pesquisa participa da organização dos diálogos que você busca instaurar com facetas da tradição literária? Risível ou não, sou um tipo de dependente químico-literário. Sem muito exagero, enfrento dificuldades em reconhecer fronteiras nítidas entre vida e literatura. O que talvez signifique que, ainda que outras fontes vitais – experienciais: afetivas, psíquicas (neuróticas, traumáticas), sociais, histórico-pessoais etc. – alimentem minha escrita e possibilitem que algo transmutado, do que fui e sou, perpasse os versos ou a prosa que escrevo, minha escrita resultou fundamentalmente da conversa-enfrentamento que, desde que comecei a ler e, só muito depois, a tentar escrever, me propus estabelecer com o pensamento estético, teórico e filosófico de outros criadores, fossem poetas, ensaístas, ficcionistas ou dramaturgos das mais variadas épocas e geografias. Tanto quanto me permitiram meus limitados esforços. Fui, e ainda sou, um aprendiz de artista filho da instituição pública de ensino e pesquisa. Sem os recursos a que tive acesso ao dispor da interlocução com os professores-pesquisadores, por exemplo, da UERJ, não teria a chance de almejar criar. A meu ver, criação e pesquisa são indissociáveis. E se Moriconi também diz que sou poeta “amadurecido na busca de linguagem própria”, devo e preciso reconhecer que esse amadurecimento se deu no âmbito de cuidadosa investigação crítica (leia-se nisso, igualmente, um ininterrupto embate pessoal com os autores lidos) da relevante herança do trabalho criativo-especulativo de muitos artistas-pensadores que me antecederam. A cada um deles (alguns serão mencionados no decorrer de minhas respostas), aceno minha indisfarçável gratidão. No poema “Antipoética”, lemos: “Ao invés da vulgar e surda loquacidade – / a sempre reeditada algaravia lapidar / do nada mais a dizer sobre o dito –, / apenas um improdutivo (e indigno) silêncio”. Em que medida esses versos dizem de seu processo criativo? Comente as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário. No centro do paradoxo desses versos está o ideal estético que, embora deseje, não consegui adotar de todo, do contrário teria abraçado mais definitiva452

mente a mudez. Se, no entanto, não silenciei em absoluto – como, contraditoriamente, em fala versificada, pretendi –, ao menos tenho tentado dizer apenas o que me parece imprescindível, com o uso mais econômico possível da palavra, sobre o que, à minha escrita, apresentou-se inevitável como matéria. Essa tendência à afasia afeta minhas “opções formais”. Disciplino a limitada liberdade que me concedo. Com frequência, dedico semanas ou meses de trabalho continuado a um poema. Não o abandono até experimentar a sensação-certeza de que não há nada mais a lhe desbastar. No uso dos recursos do verso livre ou na opção pelo poema em prosa, adoto como divisa primordial o que disse Octavio Paz, isto é, que o poema é feito de palavras necessárias e insubstituíveis, concepção que afeta formas e temas. Esse rigor determina a medida do verso e a extensão de um conjunto deles. Além disso, delimita seu teor. Empenho-me em descobrir como cada poema deve respirar, já que não adoto, de modo voluntário, o verso convencionalmente metrificado, embora às vezes ouça algo de seu eco no que escrevo. Quando elejo uma inquietação e decido dar-lhe tratamento literário, permito que o objeto de meu cuidado desenvolva certo caráter autônomo. Esse procedimento possibilita que vários dos aspectos da questão a serem abordados, em um poema ou em uma sequência deles, sejam sugeridos pelo próprio (i)material originário que, de início, tenho ao alcance das mãos. Talvez possa afirmar, como o saudoso Ivan Junqueira, que, de certo modo, “Não sou eu que escrevo o meu poema: / ele é que se escreve e que se pensa”. No processo de elaboração do Rasga-mortalha, percebi, a partir de certo ponto, que o princípio ordenador do que estava escrevendo tinha como núcleo a experimentação de múltiplas formas de alteridade, ou seja, de maneiras de despersonalizar-me. A partir de então, dediquei-me radicalmente aos consequentes desdobramentos. O livro ia chamar-se simplesmente Poemas dos outros, mas depois preferi que a expressão se tornasse subtítulo, a funcionar adicionalmente como síntese alusiva aos alicerces do embate com mortos que também travo ali, conforme o título pode sugerir. No próximo livro, em desenvolvimento, algumas escolhas temáticas derivaram dos experimentos que tenho feito com colagem. Neles mesclo materiais provenientes de fontes díspares. Para dar apenas um exemplo, em um dos poemas promovo a simbiose entre narrativas lendárias medievais sobre o judeu errante e o genocídio promovido nos campos de concentração nazistas. Você é ator formado pela Casa das Artes de Laranjeiras – CAL, tendo também estudado na Escola de Teatro Martins Pena, e desenvolve uma contínua performance interativa em que a persona literária “Esperando Leitor” transita pela cidade do Rio de Janeiro – especialmente pela Lapa – distribuindo fragmentos literários para que quem quer que seja decida ler ou escutar. Quem é Esperando Leitor? Como ele nasceu? Costumam fazer-lhe com frequência essas perguntas. Talvez eu pudesse dizer que ele é um heterônimo meu, um personagem, ou um bobo sem corte. De si, quando lhe perguntam o que é, sempre diz que é uma pessoa. Esperando, entretanto, é um palhaço. Um palhaço leitor, adoecido e curado, e vice-versa, pelo literário, obcecado em sua intervenção urbana diária, que assume a forma de uma 453

contínua e peripatética prática disseminadora da leitura e discussão de todas as formas e todos os exemplos relevantes de literatura, como se consultasse e revelasse oráculos. Passei por um processo de (de)formação em palhaçaria, paralelo ao período em que me dediquei aos estudos de teatro, com um aprendizado em que colaboraram, por exemplo, os palhaços Ana Luísa Cardoso e Marcio Libar, renomados na arte clownesca. Nesse percurso, foi igualmente fundamental a possibilidade de ter visto, nos últimos dez anos, na cidade do Rio de Janeiro, a trabrincadeira de palhaços de todo o mundo, nas várias edições do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro. Enfim, acredito que dei à luz Esperando (inversão trocadilhesca) devido à minha profunda e extrema necessidade de estabelecer contato e comunhão com o outro, mínima que seja, e sob qualquer circunstância, no cotidiano da pólis. A palavra literária, escrita-falada, sob a forma de dádiva ofertada por um palhaço, foi o meio que encontrei. Afinal, como percebeu Henry Miller: o palhaço é um poeta em ação. Como você define sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Quando você se percebeu um poeta? Se o mínimo percurso que fiz já se pode chamar de trajetória, defino-a como adiada, em seu começo, e, quando iniciada, tardia. Em seguida, quase sempre prestes a ser abortada. Decorrência de minha descomunal e permanente autocrítica, também derivada da moléstia diagnosticada (inventada?) pelo Sr. Dr. Bloom, a bendita angústia da influência, de que devo ter sido vítima hipocondríaca anos a fio. Em suma, um trajeto episódico e lacunar. Lembro-me de um marco: ter publicado um misto de poema em prosa e primeiro capítulo de romance (interrompido) em uma das edições da revista de poesia Inimigo Rumor, nº 17, em 2004/2005. Algo ali deve ter chamado a atenção do poeta, e editor da Inimigo, Carlito Azevedo. Foi uma espécie de confirmação pública de que eu poderia escrever algo que valesse a impressão. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Um dos grandes desafios é a democratização do acesso à literatura e, por consequência, a tarefa de formar leitores. Em que medida as atividades de Esperando Leitor contribuem para essa tarefa? Infelizmente, não disponho de meios para avaliar com precisão a repercussão da mediação literária que realizo, mas posso dizer que várias centenas de pessoas leram, pela primeira vez em suas vidas, um fragmento de uma série de autores, ao recebê-lo de minhas mãos. Que dezenas de leitores se emocionaram e refletiram sobre um poema em minha presença. O desafio e a tarefa a que você se refere eu os assumi quixotescamente, feito uma espécie de missionário, excêntrico e profano. Desde então, já se passaram dez anos. Durante esse tempo, tenho me proposto a enfrentar esse desafio desempenhando a respectiva tarefa de modo a apresentar o ler como forma de vida ou de respiração. A leitura como vivência de uma segunda natureza, como modo de existir mais e melhor e de interpretar vivências, como maneira de conviver com o outro, compartilhando pensamento e afetos. 454

Atuo em espaços públicos e privados os mais diversos (galerias de arte, museus, cinemas, teatros, centros culturais, praças, supermercados, escolas, restaurantes, livrarias, shoppings, meios de transporte etc.), mas em especial nas ruas, ao andarilhar pela cidade. Além de ter como ponto fixo um local em que há circulação intensa de pessoas, uma ágora contemporânea, na Lapa, centro da boemia carioca, conhecido como Escadaria Selarón. Distribuo trechos de poemas, dramaturgia, contos, crônicas, romances e ensaios, de autoria de quase duas centenas de escritores, de todas as localidades/ nacionalidades e épocas, desde a Antiguidade à pós-modernidade contemporânea. Entre as dezenas de prosadores brasileiros lidos e discutidos, estão mestres como Machado de Assis, Rosa, Graciliano, Clarice, Murilo Rubião, Nelson Rodrigues, Suassuna e Millôr. Quanto aos tantos autores de língua estrangeira, sempre reproduzidos a partir das melhores traduções disponíveis na atualidade, são distribuídas partes de obras de Platão, Diógenes, Epicuro, Nasrudin, Salomão, Santo Agostinho, Shakespeare, Cervantes, Montaigne, Dostoiévski, Nietzsche, Tchekhov, Kafka, Freud, Beckett, Pirandello, Hermann Hesse, entre muitos outros. No território da poesia estrangeira: Catulo, Camões, Whitman, Rimbaud, Baudelaire, Eliot, Pessoa, Florbela, Maiakóvski, e. e. cummings, Szymborska, Czesław Miłosz, Borges, Dylan Thomas, Emily Dickinson, Brecht, Octavio Paz, Nicanor Parra, Paul Auster, Pizarnik etc. Entre os brasileiros, já clássicos: Augusto dos Anjos, Drummond, Murilo Mendes, Cecília, Cabral, Jorge de Lima, Bandeira, Vinicius e companhia. Para além deles, priorizo nossos poetas contemporâneos, entre os quais: Gullar, Piva, Leminski, Adélia, Manoel de Barros, Lêdo Ivo, José Paulo Paes, Augusto e Haroldo de Campos, Waly Salomão, Angélica Freitas, Ivan Junqueira, Carlito Azevedo, Renato Rezende, Eucanaã Ferraz, Claudia Roquette-Pinto, Leonardo Fróes, Geraldo Carneiro, Paulo Henriques Britto, Ana Martins Marques, para citar apenas alguns poucos. Empenho-me ao máximo para que ocorram belos encontros entre todos os tipos de leitor e os autores que mais marcaram minha formação, alguns dos quais visível ou invisivelmente presentes no que já escrevi. Você tem participado de uma série de saraus no Rio de Janeiro. Como você vive o ato de recitar? Recitar é recriar? Sua percepção é mais que pertinente. Dizer (viver) um poema, tornar-se seu intérprete, dar-lhe vida física audível e visível, envolve a experiência de tornar próprio o alheio. Esse pacto é possível, claro, devido à fusão provisória entre as duas sensibilidades passionalmente envolvidas, a do poeta e a do leitor/ator. Mas ao mesmo tempo em que dá vez à voz do outro, isto é, uma habitação à dicção e à visão de mundo presentes nos versos (re)ditos, aquele que personifica a autoria, ou veste uma máscara lírica, também, com um modo singular de leitura, atualiza o poema, ou seja, em alguma medida e de algum modo, o recria. Empresta-se alma renovada a uma escrita no espaço-tempo de uma audiência, e ocorre um encontro vital, graças à possibilidade de ultrapassar fronteiras, mesmo a da morte, que o registro gráfico-artístico da palavra detém. Acrescento ainda: dedico-me a interpretar (ser) os poemas que gostaria de ter escrito.

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Rasga-mortalha. Poemas dos outros tem ilustrações de Rodrigo Barrales. Após essa parceria, você percebe mudanças, em seu texto poético, quanto à maneira de pensar e criar relações entre imagem e linguagem verbal? “Autênticas iluminações”. Essa foi a expressão empregada pelo crítico João Cezar de Castro Rocha para referir-se às aquarelas que Barrales compôs. Deu-se o mais harmônico diálogo entre palavra e imagem. Costumo dizer que, se os poemas não forem considerados lá grande coisa, o livro valerá pela imensa beleza plástica do trabalho de Rodrigo. O encontro de linguagens nutriu-me, creio. Como decorrência, no mínimo, indireta, em meu próximo livro exploro certas aproximações entre artes, por exemplo, em dois conjuntos de poemas. Em um deles, arrisco-me em uma conversa com a pintura de Frida Kahlo e, em especial, com o seu diário pictórico. Noutro, meu embate será com a obra de Aleijadinho. Tenho descoberto modos pelos quais, a partir de arranjos verbais, posso dispor da palavra para também me aventurar a pintar e esculpir. Como você avalia a recepção de sua obra? Para um estreante, aprendiz de feiticeiro, talvez meus começos tenham recebido até mais atenção do que mereçam. Em especial, se considerarmos o panorama em que, nos últimos anos, os suplementos literários têm sido extintos. Tenho consciência de que um primeiro livro de poemas, de um nome desconhecido e com uma tiragem inexpressiva, não pode mesmo esperar muito mais, além de alcançar um certo número, limitado, de leitores, próximos ao autor, e de talvez iniciar participação em um diálogo, já em andamento, há muito, entre outros poetas. Como minhas pretensões nem podiam ser maiores, foram satisfeitas a contento. Fiz com que meu livro chegasse às mãos de outros autores, críticos, teóricos, professores, jornalistas etc. “O poema quer o Outro, precisa desse Outro, precisa de um parceiro. Ele o procura, ajusta-se a ele”, foi o que disse Paul Celan em sua célebre palestra sobre literatura, intitulada “O meridiano”. O ambicionado “Outro” é o leitor, especializado ou não (a adequação, penso, diz respeito, aos modos como o leitor se apropria do poema). E reconheço que minha poesia anseia por leitores atentos e rigorosos, detentores de percepção aguda e amplo repertório de leitura. Experimentei a alegria de ver que ela alcançou alguns com essas características e foi bem recebida por nomes como Antonio Carlos Secchin e Adriano Espínola. O Antonio Cicero, poeta que admiro, por exemplo, publicou um de meus poemas em seu prestigiado blog, o Acontecimentos. Tive poemas do livro publicados na Zunái – Revista de Poesia e Debates, editada pelo poeta Thiago Ponce de Moraes, e, a convite do acadêmico Marco Lucchesi, poemas, ainda inéditos em livro, integrando uma das edições da Revista Brasileira (ABL). Ao mais, foi fonte singular de prazer ter uma extraordinária resenha, de autoria de Juliana Bratfisch, na revista Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea (UFRJ). Não menciono nada disso por vaidade ou algo que o valha, mas por gratidão mesmo, por uma atenção inesperada. E devido ao significado que semelhante reconhecimento adquire no íntimo de alguém que descobriu a literatura em uma biblioteca pública, em minúscula e faminta cidade sertaneja, e que em sua infân456

cia jamais imaginou que daria uma entrevista que viesse a fazer parte de um livro, por ter escrito outro. Quais são os principais desafios para a edição e divulgação de novos escritores no Brasil de hoje? Certamente, o principal desafio, fonte de muitos dos demais, é o referente à quase inexistência de leitores de verdadeira e relevante literatura, de um modo geral, e de literatura brasileira, em especial. Sendo menor ainda o número de leitores da produção literária contemporânea, e ainda menor o de poesia. Se não há leitores interessados, não pode haver mesmo mais farto interesse editorial em novos nomes. Identifica-se aí um círculo vicioso, não? Ele só pode ser rompido por intermédio de, entre outros fatores, ininterruptas políticas de estado. Como o atual desinteresse pelo literário se tornou possível? Cismo que – fruto de funestas e metódicas políticas públicas, continuadas governo após governo, articuladas a interesses empresariais e corporativos privados ainda mais perniciosos – as causas dessa situação catastrófica, de fomentada indigência e inanição espirituais, mais ainda, de planejado genocídio cultural, correspondem ao irrestrito sucateamento do sistema público de educação, por gerações; aos numerosos e sucessivos equívocos cometidos na elaboração dos parâmetros curriculares do ensino infantil, fundamental e médio (e de seus equivalentes anteriores); à mercantilização e instrumentalização do ensino privado; ao empobrecimento da formação humanística em todos os níveis de ensino; à formação deficiente, propositadamente precarizada, dos professores, associada à péssima remuneração destes, que, nos primeiros estágios da escolaridade infantojuvenil, poderiam incentivar ou gerar o prazer na, da e pela leitura; entre outros aspectos relacionados ao fator educacional. Sem um sistema de ensino público que priorize, como deveria, desde as fases iniciais, a formação humanística e artística e o desenvolvimento das capacidades de reflexão e expressão críticas – recursos formadores do tipo de subjetividade necessária à saudável cidadania –, não há nenhuma chance de que se dê qualquer importância à leitura de literatura, pois desaparecem até mesmo as competências necessárias para que ela possa ser assimilada e apreciada. Outras instâncias cooperam para o agravamento desse quadro. Numa visada histórica, percebe-se, sem muito esforço, que as mais diversas instituições sociais, há tempos, incentivam e promovem a industrialização e comércio massivos do que de pior se produz no domínio dos bens culturais. Eis a esfera mais ampla em que está contido o círculo vicioso que mencionei. As várias mídias de maior alcance – imprensa, rádio, cinema, TV, HQ, games, internet etc., primeiro em sucessão, conforme surgiam, depois em simultaneidade –, quase desde sempre, piorando década após década, encarregaram-se de irresponsavelmente propagar, quando pouco, o mal da mediocridade. Milhares de toneladas de lixo imaterial. Talvez se possa falar em condicionamento do gosto, via hiperestímulo adoecedor. Afirma-se, sadismo cruel e hipócrita, que esse é o tipo de dieta circense de que “o povo gosta”. É o que ocorre quando qualquer preocupação ética, e estética, desaparece, ou apenas é subordinada (ou subordina-se) a prioridades econômicas. Uma das consequências desse panorama é que mesmo um autor brasi457

leiro contemporâneo – seja um ficcionista como Raimundo Carrero, ou um poeta como Paulo Henriques Britto, ou um filósofo como Benedito Nunes, por exemplo –, por mais extraordinário que seja, pode criar beleza, pensar sobre a existência ou acerca de seu país, por uma ou duas gerações, sem que quase ninguém tome conhecimento disso, exceto uma elite minoritária de letrados, quando muito. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a literatura brasileira atual como um todo: o que você vê? Gostaríamos que você comentasse sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária brasileira contemporânea. No decorrer de minha formação, ou seja, nas últimas três décadas, fui leitor assíduo de literatura contemporânea brasileira, primeiro de prosa, em seguida também de poesia. Contrariamente ao que, de quando em quando, declara parte da crítica, ou mesmo alguns escritores, minha experiência de leitura me faz afirmar que, em momento algum, a produção brasileira mais recente deixou a desejar, a quem estivesse disposto a lhe voltar alguma boa vontade. Ler tal produção sempre foi, e continua sendo, estímulo ininterrupto, uma das formas de alimentar minha alma. Vejo trajetórias extraordinárias, infelizmente, desconhecidas de um público leitor mais abrangente. Não me furto a mencionar nomes. É até justo que eu destaque escritores que, conforme minhas preferências pessoais, e exigência crítica de um leitor cada vez mais experiente, foram e são, a meu ver, expoentes, leitura inspiradora. Acompanhei, com paixão, parte do percurso maduro de escritores como Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Sérgio Sant’Anna etc. Encantou-me, depois, descobrir e conviver com obras de Márcia Denser, João Gilberto Noll, Rubens Figueiredo, Luiz Rufatto, Evandro Affonso Ferreira e Alberto Mussa, autores que merecem atenção semelhante à que poderia ser dada aos que primeiro enumerei. E continuo atento e curioso quanto ao cenário atual, o que me proporcionou, recentemente, a alegria de ler Elvira Vigna e o fascínio pela prosa de Victor Heringer. Isso, no universo da prosa. No que se refere à poesia, não quero me repetir, mas, entre os poetas contemporâneos já mencionados em outra parte da entrevista, dos quais, por lhes apreciar a obra, distribuo fragmentos da escrita, realço os nomes de Ivan Junqueira, Antonio Cicero, Leonardo Fróes, Eucanaã Ferraz, Claudia Roquette-Pinto, Angélica Freitas, Geraldo Carneiro, Paulo Henriques Britto e Ana Martins Marques. Todos merecedores de muito mais leitores. Na condição de entusiasta da literatura – não só – brasileira do meu tempo, o que mais me inquieta é perceber que os leitores de livros, em número cada vez mais reduzido, têm sido há muito estimulados, pela publicidade da parte decadente e inescrupulosa do meio editorial, quase que exclusivamente a preferir quaisquer tipos de best-sellers estrangeiros de péssima qualidade. Perturba-me, tanto quanto, constatar o empobrecimento propositado do literário em função das solicitações banais do mercado da arte, e, por exemplo, ver que contistas e romancistas se dispõem a escrever com o intuito prioritário de ter seus escritos adaptados para outro meio (televisão, cinema ou o que seja), ou que poetas não se incomodam – pelo contrário, até mesmo se empenhem – em produzir poemas 458

ralos e banais (do tipo que possa ser melhor apreendido quando recitado em saraus), isto é, mais facilmente digeríveis e vendáveis, nesse contexto em que a poesia é o mais desprestigiado dos gêneros. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Diversos ataques pseudomoralistas vêm sendo feitos às exposições e a outras manifestações artísticas em diversos pontos do país. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Monstruosidade. Parte dela, sinto dizer, creio que já estava, em graduação variável, nas entranhas humanas de muitos. Não apenas nas dos nossos (estranhos) semelhantes, mas em nossas próprias vísceras, o que se evidencia quando, mesmo supondo-nos imunes, tendemos a reagir com violência e preconceitos análogos. A palavra que você empregou, monstruosidade, lembrou-me o romance mais lido de Conrad. Não tenho a pretensão de me arvorar em comentarista sociopolítico, mas intuo que, sem dúvida alguma, os acontecimentos de nossa recente história nos devem “conduzir ao coração de [mais e mais] imensas trevas”. Desde 2013,  acompanho, com bastante atenção, o gradativo desenrolar das situações das quais ainda estamos vivenciando os desastrosos resultados. Mais que isso, participei como pude – nas ruas, até expondo minha integridade física, ao lado de estudantes, professores, artistas, ativistas etc. –, de inúmeros protestos (sob a múltipla condição de militante literário, aluno de pós-graduação da UERJ e servidor público do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro). No contexto que você descreve, não sei se consigo identificar apenas um único marco. Ouso dizer que a condução coercitiva do ex-presidente Lula, realizada à margem da lei, seria um ponto de inflexão importante, pois uma das mais gritantes evidências de que já estávamos (e há algum tempo, sem que se admitisse) sob mal disfarçado estado de exceção. Outro marco, arrisco afirmar, e tão expressivo quanto o primeiro, foi a deposição, inconstitucional, da presidente Dilma Rousseff. Ambos os eventos – os mais relevantes entre muitos outros ocorridos no período –, devido ao seu múltiplo simbolismo, não deixaram dúvida quanto ao fato de que estávamos sob o mais violento abuso do arbítrio autoritário e totalitário; de que as instituições ditas democráticas estavam desmantelando-se; de que o império de forças desregradas (economicistas, policialescas, militarizadas etc.) se estabeleceria, em detrimento do estado de direito. Como decorrência do continuado descrédito institucional, da falência dos pactos, da morte do direito, do exercício arbitrário da força, tem-se a gestão e o inevitável parto da monstruosidade, manifesta sob as mais aberrantes formas individuais e sociais. O ápice desse horror crescente: o assassinato de Marielle Franco. Na data em que escrevo, um ano após a morte da corajosa ativista, uma hipótese (empreguemos um eufemismo irônico), cogito, é incontornável: a de que várias instâncias dos poderes públicos do estado brasileiro (em níveis municipais e estaduais, em certas regiões) estejam, no mínimo, sob maior influência, quando não sob controle, de diversas forças paramilitares privadas. Não haveria tanta 459

novidade no fenômeno. O que se ressalta agora é sua dimensão. Quanto às minhas expectativas – no que diz respeito aos antagonismos político-ideológicos, aos extremismos expostos nos conflitos humanos –, a partir do constatável não apenas no Brasil, mas em número cada vez maior de países, sem desejar ser um arauto do caos, não espero nada muito diferente do bastante previsível. Temos vítimas, bodes expiatórios, ameaças de morte, condenações judiciais políticas e autoexilados. Aguardemos, em larga escala, o agravamento radicalmente opressivo do que já vigora: o acirramento do controle, da repressão, da ilegalidade e da injustiça; a ampliação das desigualdades, da miséria e do extermínio; a legitimação oficializada de racismos, de preconceitos, de discriminações abjetas, da xenofobia e de novas formas de fascismo etc. Em suma, o retorno, falsamente autorizado pela manipulação econômico-demagógica da democracia, de autoritarismos e totalitarismos. Entretanto, não quero que, aqui, minhas palavras remetam apenas a certo e justificável desespero. É perceptível que estou sob o impacto dessas ocorrências. E sob circunstâncias em que a reflexão, às vezes, caminha junto à impotência. Ainda assim, persisto em tentar compreender o que me cerca. Por isso, Vitor, já que você solicitou minha colaboração reflexiva, quero finalizar compartilhando parte do pensamento que mais tem me proporcionado esclarecimento sobre o presente. E alguma esperança. Livros sempre me mobilizaram. São meras sugestões de leitura àqueles que, por acaso, vierem a ler esta página: René Girard (Eu via Satanás cair como um relâmpago e A rota antiga dos homens perversos), Giorgio Agamben (O tempo que resta), Hans Jonas (O conceito de Deus após Auschwitz) e Simone Weil (Sobre a supressão geral dos partidos políticos e “A pessoa e o sagrado”). Esses autores, em especial, têm sido, digamos, meus lúcidos interlocutores nesse nosso tempo de mulheres e homens partidos.

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Wilberth Salgueiro | Bith Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1964. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em fevereiro de 2019.

Cada escritor possui método e estilo de trabalho próprios. Em sua obra poética, é possível perceber algumas forças e formas marcantes, dentre as quais destacamos o humor, além da predileção formal por sonetos e haicais. Você poderia esmiuçar um pouco mais as opções formais e temáticas que norteiam seu projeto literário? Tenho, já de há muito, evitado fazer poemas tipicamente “líricos”, ou seja, que falem de algo que, vindo da vida do poeta, só ele mesmo consegue entender em plenitude. São em geral poemas vagos, herméticos, que buscam elaborar em versos alguma experiência singular e secreta do sujeito. Não digo que isso seja ruim, nem que não sejam bons poemas. O que tenho tentado fazer, no entanto, é bem distinto disso: procuro poemas claros, que, mesmo partindo de mim, sejam compreendidos por muitos. Daí, procuro falar do mundo, das coisas, dos problemas, de tudo o que não é somente da minha própria vida. Para isso, tenho cada vez mais optado por poemas “narrativos”, que contam algo. Mas, ao mesmo tempo, busco que os versos não sejam um mero disfarce para um longo parágrafo, como acontece na maioria dos casos (e, repito, isso não impede que versos que sintaticamente componham uma prosa linearizada não possam ser bons e excelentes versos; daí, tanto se falar na técnica do corte). Em síntese, de quando comecei a fazer poemas até hoje, a guinada veio se dando na direção de uma poesia mais social, mais comprometida, mais engajada (sem temor do termo). Formalmente, digamos, gosto de elaborar sonetos, com versos regularmente metrificados e com rimas toantes (ou, como dizia Décio Pignatari, rimas imprevisíveis). Você publicou, como Bith, Anilina (Edição independente, 1987), Digitais (Portopalavra, 1990), 32 poemas (Edição independente, 1996), Personecontos (Flor&Cultura, 2004) e o infantojuvenil O que é que tinha no sótão? (Secult, 2013). E, assinando Wilberth Salgueiro, O jogo, Micha & outros sonetos (Patuá, 2019), além de extensa produção ensaística, com diversos livros de crítica literária. Como você define a sua trajetória literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Sobrevive nos cursos de Letras, incrivelmente, uma lenda que diz que, ali, se entra poeta e se sai crítico (teórico). Como costumo dizer, nesses casos, citando Drummond, “se se partiu, cristal não era”. Noutras palavras, entendo que essa condição anfíbia de poeta/escritor e professor/crítico/teórico é extremamente saudável. Estou com Terry Eagleton que, já no início de Cómo leer un poema, diz: “La idea de que los teóricos de la literatura acabaron con la poesía porque, con sus marchitos corazones y sus hipertrofiados cerebros, en realidad son incapaces de detectar una metáfora, por no hablar de una emoción sincera, es uno de los más 461

obtusos tópicos de la crítica de nuestra época”. Cresci numa família pobre – e sem leitores ou parentes “intelectuais”. De cinco filhos fui o único a terminar o ensino médio (antigo científico e segundo grau) e, por extensão, o ensino superior. Por algum mistério, desenvolvi o hábito de ler, até com algum grau patológico de excesso – talvez exatamente por isto: como uma intuitiva atitude para me tornar algo diferente do que eu via ao meu redor. Lembro que, aos sete anos, fiz um poema para minha mãe. Aos poucos, e à medida que me transformava num leitor cada vez mais compulsivo, ia arriscando versos. Na adolescência escrevi (e li!) bastante. Adulto, na universidade, diversifiquei meus interesses, fui me profissionalizando e tomando gosto pelas formas fixas e rimas toantes. Gosto de saber, previamente, que o poema deve “caber” num certo cálculo. Isso pode causar horror em alguns poetas e mesmo críticos. A mim me apraz. Nisso, penso feito Cabral, que numa entrevista citou Robert Frost (cito de memória): “Para mim, escrever em verso livre é como jogar tênis sem rede”. Em termos objetivos, foi na UERJ, durante o curso de Letras, trocando figurinhas com os colegas que, como eu, curtiam literatura, que essa figura de “escritor” me pareceu possível. Os poemas de Anilina (meu livro de estreia, aos vinte e três anos) foram feitos praticamente todos durante o curso, nas salas de aula, nos bares, nos ônibus. Em Personecontos (Flor&Cultura, 2004), você cunhou o neologismo que dá nome ao livro para definir algo como uma mistura de diferentes gêneros ou tipos textuais: são ficções (microcontos) em forma de sonetos, em sua maioria com catorze versos decassílabos, heroicamente metrificados. Esses poemas, que de início (a partir de 1998) circularam por e-mail entre um grupo cada vez maior de destinatários, estabelecem um jogo de máscaras (personae) em que entram os nomes de diversos amigos do autor. Em que medida esses jogos trazem para o campo dos versos a presença da figura autoral, motivo tão caro à autoficção que irá se desenvolver, na prosa, também a partir dessa época? Evidentemente que, com múltiplas variações (históricas, estéticas), o que se chama hoje de autoficção sempre ocorreu. Por que em poesia se tem um tal de “eu-lírico”? É porque, exatamente, conforme a tradição hegeliana, ali se disfarça um sujeito, uma persona, uma máscara. (Não ignoro, como já disse, as especificidades da autoficção contemporânea.) Quando publiquei Personecontos não se falava (ou muito pouco), entre nós, esse termo. Para mim, os jogos onomásticos que Machado faz em e com Memorial de Aires e o protagonista (em cujo nome José da Costa Marcondes Aires ecoa Joaquim Maria Machado de Assis), e que Guimarães Rosa faz no sumário de Tutameia (inscrevendo ali ludicamente suas iniciais JGR) e quando cria heterônimos anagramáticos como Soares Guiamar, são modalidades sofisticadas de autoficção. Ou seja, os modos que o sujeito tem para se inscrever na obra são inúmeros. Gosto quando a autoficção se confunde com o testemunho, de pendor histórico. Nos versos de Personecontos, “heroicamente metrificados” (!), sim, o autor se camufla sem cessar. Mas a ideia é dar voz aos personagens que por lá se espalham. Embora não sejam estritamente engajados (como também não são as obras de Machado e Rosa), muitos dos seres reinventados no livro pertencem a uma classe média baixa ou miserável à procura de algo que não sabem bem o quê 462

(nessa direção, o livro tem algo da errância pós-moderna). São músicos, aidéticos, bêbados, marginais, professores, esportistas, funcionários públicos, escritores, porteiros, sem-teto, enfim, uma galeria que, embora ganhe um tom exótico nos versos, está aí ao nosso lado, no ramerrão do dia a dia do trabalho e da vida. No livro Poema-piada, breve antologia da poesia engraçada feita por Gregório Duvivier e lançada pela UBU em 2017, um texto seu figura entre os de outros autores brasileiros que lidaram com diferentes tipos e níveis de humor na sua produção poética, em várias épocas e registros, como é o caso de Gregório de Matos, Oswald de Andrade, Mário Quintana, Hilda Hilst, Glauco Mattoso, Paulo Leminski, Cacaso, Chacal e o próprio antologista, que, além de humorista, também é formado em Letras. No Prefácio, Duvivier refere o seu Forças e formas como “um livro especialmente precioso”, a partir do qual ele pôde re(descobrir) a poesia das décadas de 1970 e 80. Que importância tem a força do humor para a sua obra como um todo, e que influências a poesia daquelas décadas marcou nos trabalhos de Bith e de Wilberth Salgueiro? A alegria é a prova dos nove, já dizia Oswald, aquele do “amor / humor”. Acho surpreendente que, sendo o humor (em sentido lato) onipresente em nossas vidas, haja tão poucos estudos (relativamente a essa onipresença) sobre ele. Fiquei bem feliz quando li a generosa alusão do Gregório Duvivier ao meu livro – que, de fato, tanto privilegia poemas que buscam o riso, quanto busca uma linguagem que dê prazer. No artigo “A arte é alegre?”, Theodor Adorno, sempre muito rigoroso com/contra o recurso do humor como uma espécie de maquiagem que pacifica os graves conflitos humanos, responde que a arte é alegre quando faz pensar (e o exemplo maior para ele é Beckett). Intuitivamente, e depois de forma mais consciente, acho que me aproximei do humor, fazendo poemas e pesquisando o conceito teoricamente, por isso mesmo. Se o humor pode ser e é profundamente reacionário, autoritário, estereotipado, desrespeitoso etc., por outro ele aciona, quando revolucionário, democrático, imprevisível, crítico etc., elementos adormecidos em nossa vida tão brutalizada, mecanizada, anestesiada, conformada, passiva. Algum teórico já disse que podemos conhecer o caráter de uma pessoa pelo tipo de humor que ela demonstra ou de que ela gosta. Sim, é uma frase de efeito e genérica, mas que tem sua razão. No campo ensaístico e na atividade docente, o humor (apesar da aparente complacência que têm com ele) ocupa um lugar rebaixado. Há uma “ideologia da seriedade”, que se traveste em modos de falar, de vestir, de se comportar, que tem sido hegemônica. Uma besteira dita de terno e uma coisa bacana dita de sandália têm recepções curiosas: escapar dessa grade é uma das tarefas do humor. Obviamente, não defendo a piada, a festa, as blagues, as sandálias por si só. Repito, o humor que presta é o que faz pensar. Nos meus limites, é o que tento fazer, lecionando, escrevendo – vivendo. Boa parte dos poemas e poetas da excelente antologia do Gregório Duvivier estão no livro Forças & formas. Digo isso para confirmar a importância que tiveram em minha formação estes poetas de 1970 e 80. O “poemão” (Cacaso) da poesia marginal foi para mim uma verdadeira Bildung. Apesar de eu mesmo não fazer poemas daquele jeito (versos livres, curtos, brancos, debochados, alguns desbundados etc.), não concordo em absoluto quando Merquior os chama de “des463

cerebrados”. Há que se ter em mente que cânone e margem são termos relativos, que se deslocam, e que cada poema tem sua técnica e seu modo de absorver a história. A questão do “valor estético” é das mais complicadas no mundo das letras. Não podemos querer “avaliar” Chacal como se Cabral fora. E vice-versa! Você costuma dizer que Manuel Bandeira é seu poeta preferido do coração, e que João Cabral de Melo Neto é o preferido da cabeça. Entre os dois estariam Carlos Drummond de Andrade e Paulo Leminski. Na narrativa, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Reinaldo Santos Neves subintitulam seu livro Prosa sobre Prosa (EDUFES, 2014). Com que outros autores canônicos você procura estabelecer interlocução? Estes sete já são uma baita plêiade, não? Mas, claro, há inúmeros outros. Sou meio Zelig (personagem de Woody Allen, que se “metamorfoseava” nas pessoas de que se aproximava), nesse sentido: quando estudo/leio muito um autor (de que gosto), tendo a colar nele, vira o favorito, o da hora. Para ficar apenas nos brasileiros e consagrados, gosto de Mário de Andrade e Clarice Lispector, Nelson Rodrigues e Luis Fernando Verissimo, Graciliano Ramos e Augusto de Campos, Lygia Bojunga e Rubem Braga, Rubem Fonseca e Paulo Henriques Britto. São muitos mundos. A gente não dá conta de tanto. Desde 2015, você escreve no jornal Rascunho a coluna “Sob a pele das palavras”, com análise de poemas. Em que medida a manutenção da frequência de um exercício de reflexão num espaço como o de um jornal literário pode contribuir para o fazer artístico? Como acontecem as trocas, o diálogo entre o trabalho crítico e o ficcional, na leitura e na escrita? Escrever em um jornal que tem cerca de quatro mil assinantes (na versão impressa) e trinta mil acessos mensais na internet, portanto com um público bastante heterogêneo, e com espaço limitado a cerca de duas páginas, me exige um imenso trabalho de condensação, de ir ao ponto, de dizer como, formalmente, aquele tal poema se realiza (como história e forma se indissociam, diria Adorno). Em aulas e palestras, podemos “desperdiçar” alguns minutos, algumas palavras. No jornal, não. Menos é mais. Ou seja, contra a tagarelice, o remédio é a síntese, a precisão. Desse modo, a coluna me ensinou (lição que vem do haicai) a dizer o máximo em cápsulas, em pílulas. Cito Lemisnki: “[...] observe-se / a mais estrita disciplina / a sombra máxima / pode vir da luz mínima”. Penso que a escrita desses ensaios no jornal me fez rever a minha prática em sala de aula. É muito difícil ser claro (que não se confunde com superficial, no sentido de ligeiro e simplório). Tem muito sujeito que se acha complexo e é confuso. Você é professor da UFES desde 1993. A partir de então houve alguma mudança significativa na postura dos alunos com relação ao interesse pela literatura? O que dizer mais especificamente sobre a leitura de poesia? Minha resposta imediata, intempestiva, seria, sim, houve um aumento do desinteresse pela literatura. A despeito de estatísticas, e de estudos que não faço (acerca de leitura e afins), no entanto, tendo a achar que sempre (ou: desde que estou nessa vida de leitor, professor, escritor) foi assim, ou parecido. Nos anos 1980, quando estava na graduação, já reclamávamos da pouca leitura, em geral. E 464

de poesia então, cáspite, só os tais iniciados (“poetas escrevem pra poetas”, truísmo que sobrevive). Fato é que a internet e a tecnologia em geral seduzem, e a literatura vai ficando ao largo, para a tribo. A leitura continua, mesmo nesses meios; a literatura, e a boa literatura (seja lá o que for isso), nem tanto. Temo que estejamos caminhando para um tempo e mundo em que a literatura tenha cada vez menos importância. Acho que não chegaremos a decorar livros, como na perspectiva catastrófica de Fahrenheit 451, de Bradbury, mas a concorrência do visual, do rápido, do pronto, da imagem é avassaladora. Quanto à poesia, especificamente, deve sobreviver por causa dos... poetas. (Com a ajuda institucional da escola e dos professores.) Ninguém, quase ninguém, exceto os poetas, quer saber de poesia. O mundo anda brutalizado, veloz, imediatista, insensível, burro mesmo. A tendência (oxalá esteja errado!) é que a tribo fique cada vez mais rarefeita. De vez em quando pergunto em sala, à queima-roupa, para a turma (turmas de Letras, registre-se!), qual foi o último livro inteiro de poesia que leram, e o conjunto das respostas desanima: poucos se lembram ou “sabem” responder. É algo melancólico. Os alunos, os leitores em geral preferem a prosa ao verso. Essa preferência tem motivações que não cabem discutir aqui, mas tendo a crer que o excesso de metáforas, de hermetismo, de preciosismos linguísticos espanta esse leitor que quer algo que entenda, algo linear, uma historinha. No Brasil, a poesia tem um alcance bastante limitado em termos de público. Como você vê essa questão? Você acha que, no país, a poesia alguma vez, a partir do século XX, ocupou um lugar de destaque no debate cultural? Não, a poesia nunca teve um papel fundamental na história do país, e talvez do mundo. Queria não achar isso, mas é o que sinto e sei. No debate cultural, claro, a poesia participa, com o cinema, o teatro, as artes em geral, da luta cotidiana. Salvo engano, os últimos livros de poesia na lista dos mais vendidos (nas últimas décadas!) foram O amor natural, de Drummond, Toda poesia, de Leminski, e agora uma poesia de autoajuda de Bráulio Bessa. É, óbvio, muito pouco. Os poetas costumamos viver numa redoma. Nós nos encontramos em livrarias, lançamentos, saraus, bares, em ambientes afins. E às vezes nos iludimos. Mas a vida é real e de viés, disse o bardo baiano. As pessoas não são poéticas. (Mas a poesia tem uma aliada de força: a música. Pela música, com ela, a poesia vai mais longe, alcança mais gente, por via desse demônio de muitas cabeças chamado indústria cultural.) De todo modo, a gente vai levando, sem conformismo, na resistência, mas não só resistindo, porque apanhar cansa. Há que se atacar, avançar, enfrentar: apesar dos termos bélicos, a guerra aqui é cultural, de palavras, de símbolos, de formação, de esclarecimento, de sensibilidade. Você é professor titular da UFES desde 2014, foi coordenador do GT Teoria do Texto Poético, da Anpoll, no biênio 2014-15, e desde 2007 é bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Esse reconhecimento institucional do seu trabalho como 465

professor e pesquisador contribui também para o reconhecimento da sua produção literária? De certa forma, sim. Pertenço a uma geração que, desde os anos 1980, de maneira progressiva, veio se constituindo simultaneamente como artista e intelectual, poeta e professor, escritor e teórico. Ana Cristina Cesar, naqueles idos, já disse “Agora eu sou profissional”, e Flora Süssekind percebeu a dimensão simbólica que tal frase carregava, meio que separando/distinguindo gerações e décadas. Obviamente há poetas de toda espécie e em todos os lugares e com as mais variadas formações, de eruditos a populares. Mas boa parte dos poetas que consegue acesso e circulação nas mídias está hoje radicada na universidade. Devo dizer, também, que se acontece algum “reconhecimento” da literatura devido ao fato de se ter uma carreira docente, isso não significa ou legitima que essa literatura seja, digamos, boa. O convívio com os pares – que também são professores e poetas – fica bem bacana, exatamente porque a conversa sobre poesia e literatura transita de um lado a outro, da crítica à criação, sem que saibamos em que lado estamos. Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre suas principais inquietações e estímulos em face da produção poética brasileira contemporânea. Tem tanta gente escrevendo poemas que é, evidentemente, impossível acompanhar. Sábia, e ironicamente, Iumna Maria Simon diz, numa entrevista, quando lhe falam algo do tipo “você sempre cita só Waldo Motta e Cláudia Roquette-Pinto como poetas contemporâneos ‘importantes’”, e ela retruca “mas precisa de mais?”. Com a internet, então, parece que a vontade de mostrar (o “impudor de publicar”, dizia Cabral) proliferou. A partir da coluna no jornal, chega para mim uma boa quantidade de livros de poemas, cujos autores na maioria das vezes eu não conheço. Adotando um sentido mais largo para o termo “atual” da pergunta, acho que, ao listar aqui alguns dos quarenta e dois poetas que analisei (até janeiro/2019) no Rascunho, respondo um pouco: Adriana Lisboa, Alberto Pucheu, Alice Ruiz, Alipio Freire, Angélica Freitas, Antonio Cicero, Augusto de Campos, Bruna Beber, Chacal, Cláudia Roquette-Pinto, Elisa Lucinda, Fabio Weintraub, Glauco Mattoso, Leila Míccolis, Lino Machado, Miró da Muribeca, Nicolas Behr, Paulo Henriques Britto, Ricardo Aleixo, Ricardo Corona, Ricardo Silvestrin, Sérgio Vaz, Waldo Motta. São poetas de idades e gerações diferentes, mas todos produzindo no mesmo tempo; são, portanto, contemporâneos entre si. Decerto, por esse brasilzão, há incríveis poetas publicando, e dos quais jamais saberemos nem sequer os nomes. Em um artigo de meu recente Poesia brasileira: violência e testemunho, humor e resistência (2017), digo às tantas que, em termos panorâmicos (!), a nossa produção poética contemporânea tem se marcado por ser ensimesmada, desengajada, desengraçada e autotélica. Eu gostaria que houvesse uma reviravolta nessa hegemonia e que nossa produção fosse o avesso disso, ou seja, preponderantemente social, engajada, humorada e centrífuga. Os poemas que escolho para analisar atendem a esse meu desejo.

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Pensando como autor e diretor da EDUFES, quais são os principais desafios para a edição e divulgação de novos poetas no Brasil de hoje? Sem querer ser pessimista, mas para os novos poetas tudo é um desafio. Na verdade, mesmo para os “velhos poetas” é também difícil. Um ou outro poeta, que tenha conseguido estabelecer um nome na crítica e no mercado, consegue alguma facilidade. No entanto, estes são a minoria da minoria, são os “neymares”. A poesia tem muito poucos leitores, mas demasiados autores. Há até poetas que leem bem pouco ou nada de poesia. Acho que, a despeito do desgaste do termo, a busca do “novo” ainda é o que há. Cada poeta tem de se esforçar (isto é, ler muito, pesquisar) para fazer o que não fizeram. Se tiver algo diferente a mostrar pode ser um possível passo para que esse novo poeta consiga um editor. Hoje, como se sabe, com a tecnologia ao alcance, os custos de produção de uma publicação baratearam bastante. Daí, há editoras, e muito boas editoras (também há as apenas caça-níqueis), que publicam o livro de novatos mediante encomenda. Não é o ideal pagar para ser publicado, mas esperar o reconhecimento pode significar o anonimato infindo. E há os concursos por aí afora: muito concorridos, sempre, mas que asseguram ao vencedor a legitimidade já na saída. (Estive na comissão julgadora de Poesia do Prêmio Paraná 2018, com Ricardo Silvestrin e Marília Garcia, e houve 960 inscritos na categoria, para indicar apenas um vencedor.) Por fim, como disse, hoje, para alimentar um pouco a nossa vaidade, há a internet e os blogs e o Facebook etc., em que podemos divulgar o que fazemos. Se o fetiche do livro impresso não for incontornável, a divulgação apenas online pode ser, e tem sido, um caminho viável e legítimo. Você está escrevendo algum livro no momento? Sim, sonetos, sempre. Tenho apenas poucos avulsos, soltos, pois tenho preferido elaborar séries, que são atualmente as seguintes: “Sonetos eróticos do Cadu”, “Sonetos engajadíssimos”, “Objeitos”, “Uns filmes transformados em sonetos” e “Uns livros transformados em sonetos”. Tenho cerca de quarenta já prontos, outros iniciados. Mas o trabalho na universidade só deixa pouquíssimo tempo para esse delicioso exercício que é fazer um soneto. Mas, de som a som, vamos compondo. Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? A monstruosidade sempre esteve aí, ao nosso lado, em geral disfarçada. No conhecido texto “Educação após Auschwitz”, Adorno alerta para o fato de que, enquanto as condições que propiciaram a existência daquela barbárie perdurarem, as múltiplas formas de violência continuarão seu ofício devastador. E as tais condições – antes, durante e após Auschwitz (em graus variados, é certo) – se reproduzem e se reinventam assustadoramente. O filósofo alemão insiste em que o talvez único caminho – educativo – para a mudança desse quadro terrível seja o esclarecimento dos homens, para po467

der amenizar o medo e o obscurantismo que pairam sobre nós. No entanto, cruel e ironicamente, aqueles que mais necessitam dessa carga e desse exercício de autorreflexão constituem um imenso e hegemônico grupo de semiformados que se recusam e/ou não alcançam compreender o mundo em bases (mais) civilizadas. Para complicar, e Adorno aqui recorre a Freud, a angústia acumulada, resultado do mal-estar gerado pela impossibilidade de realização plena dos desejos, explode de muitas maneiras, desde um ressentimento internalizado a agressões físicas, desde a adoção de posições políticas conservadoras e retrógradas a atitudes grosseiras e “racistas, fascistas, misóginas e homofóbicas”. Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? Penso que o mundo (e, com seus particulares, o Brasil) vive numa espécie de movimento de maré, de sístole e diástole, de forças centrípetas e centrífugas. Há explicações diversas, a partir de muitas perspectivas epistêmicas, mas continuo com a filosofia de Adorno. Para ele, a democracia promete (sabemos que retoricamente) um modo de funcionamento que leva a crer numa felicidade futura e próxima. Como a felicidade jamais chega (porque o modus faciendi capitalista impede; e o modo comunista é impedido de acontecer), o sujeito se sente enganado e passa a agir “contra” aquilo que o enganou. Muito (não totalmente, é óbvio) da força conservadora vem desse desengano. Como as promessas de felicidade se confundem com o ideário das esquerdas, quando elas não se realizam, por motivos complexos que não cabem em poucas linhas, a onda retrógrada, conservadora, direitista, raivosa, ressentida vem à tona, e aquelas “condições da barbárie”, um tanto reprimidas, retornam com força. Noutras palavras, o próprio sistema capitalista engendra pequenas marolas de felicidade, que logo viram espuma. Em reação (organizada ou não), prevista pelo sistema, as pessoas se insurgem – ou acham que se insurgem – contra o vigente e apoiam aquilo que lhes parece, no momento, oportuno. No caso brasileiro, por exemplo, não há dúvida de que o golpe (travestido de capa jurídico-constitucional), com o apoio maciço e espetaculoso da mídia, quis passar para o “povo” que aquele governo de esquerda não estava cumprindo o que prometera, inclusive agindo contra todos os princípios éticos que defendia. Sem a devida possibilidade de contraposição efetiva do governo acusado (de pedaladas e que tais), que poderia esclarecer boa parte das acusações sofridas, criou-se e se fortaleceu uma imagem de “corrupção da esquerda” que, inevitavelmente, fez desenterrar aquelas condições adormecidas de obscurantismo e alienação, tragicamente disfarçadas em patriotismo, fé e honestidade. O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade?  Se a lógica das marés estiver certa, quem sabe assistamos – não sei daqui a quanto tempo – a um retorno de políticas hegemônicas de esquerda, sociais, socialistas e mesmo comunistas, no sentido mesmo teórico de diminuição radical das diferenças materiais, inclusive em relação a propriedades privadas e meios de produção. Entretanto, toda a força do regime capitalista atua em sentido contrário, ou seja, tenta impedir a diminuição das desigualdades, difundindo o mito 468

da meritocracia e do empreendedorismo, que seduzem, como as mortíferas sereias, trabalhadores incautos (ainda que tantas vezes bem-intencionados; mas que agem, na prática, contra a própria classe). Hoje, em 2019, o quadro político está bem tenso, com perspectivas ruins para transformações sociais e econômicas que atuem, efetivamente, para a melhoria das condições de vida da massa dos cidadãos. Resistir é e sempre foi necessário. Mas essa resistência deve ter no horizonte, para evitar renovados malogros, o controle de duas instâncias que detêm um poder contra o qual resistir se confunde com o tornar-se mártir: o Estado e a Mídia. Lutar contra esses dois poderes, e querer vencer, é como nadar a contrapelo de um gigantesco tsunami.

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Wilson Coêlho Nasceu no Baixo Guandu (ES), em 1959. Vive em Vila Velha (ES). Entrevista concedida a Andréia Delmaschio e Vitor Cei em julho de 2019.

Você é um artista que transita por muitas linguagens e sempre atuou em variadas frentes da cultura: poesia, prosa, teatro (mais de 20 peças escritas e/ou montadas), crítica, tradução, magistério e gestão cultural. Como essas facetas se relacionam, hoje, no seu trabalho? A lida com tantas diferentes áreas tem influência sobre a sua escrita criativa? E ainda: que opções formais e temáticas norteiam o seu projeto estético, que já resultou em 19 livros publicados? Não sei diferenciar o ontem do hoje, no que diz respeito a essas diversas linguagens da cultura e da arte que influenciam o meu trabalho, aliás, a minha vida, considerando que sempre fui um leitor voraz de todos os estilos, principalmente a literatura clássica. Ainda criança, como obrigatório na minha formação, eu lia a Bíblia, mas – no paralelo – Dostoiévski, Wilde, Flaubert, Tolstoi, Balzac e tantos outros. Obviamente, também cumpria meu papel de leitor de acordo com as exigências de minha escola, mas, apesar de também gozar dessas leituras “obrigatórias”, não eram os meus livros prediletos. Quando tinha 15 anos, eu morava numa cidadezinha no interior de Minas Gerais, onde apenas 800 habitantes residiam na área urbana. E não havia nada, nenhuma livraria e nem uma banca de revistas. Mas além dos livros eu também lia muitos gibis, comprados no trem de passageiros que passava 4 vezes por dia na cidade, duas subindo do Espírito Santo para Minas Gerais e duas fazendo o sentido inverso. Numa conversa com o vendedor da “livraria” do trem, descobri que tinha uma distribuidora em Vitória, no Espírito Santo, acho que se chamava Alfredo Copolilo. Escrevi para lá e acabei recebendo de graça toda semana dezenas de revistas, pois das que não eram vendidas devolviam apenas as capas para as editoras. Através dessas revistas, consegui endereços de diversas pessoas com as quais eu fiz amizade e estabeleci uma correspondência que durou anos. Teve até uma americana que me dava um trabalho louco para traduzir tanto o que escrevia para ela quanto o que dela recebia. Mas era um exercício agradável. Numa dessas revistas fiquei sabendo de uns cursos por correspondência do Instituto Hollywood. Convenci a meu pai a me pagar um curso de fotografia. Ainda durante o curso, ganhei uma câmera fotográfica, era uma Agfa Sanfona. Literalmente, disparei a fotografar. Como não tinha onde revelar, descobri que podia transformá-la num ampliador. Assim, improvisei uma câmara escura e montei um laboratório em casa, onde depois de fotografar, podia revelar as fotos. Não era como hoje, no digital, e nem como em algum tempo atrás que você comprava o revelador e o fixador já prontos. Eu tinha que ir à farmácia e comprar miligramas de hydroquinone, hipossulfito, nitrato de prata, brometo de potássio e tantos outros elementos para eu montar os banhos com as minhas fórmulas e revelar as fotos. Nesse sentido, eu me sentia uma espécie de alquimista, aliás, era um prazer inenarrável. Primeiro, totalmente no escuro, revelar o filme. Depois, colocá-lo para secar. Após algum tempo, colocá-lo no ampliador e, em segundos, com um toque da luz, gravar uma cena no papel fotográfico, ainda invisí470

vel. Na sequência, pegar esse pedaço de papel fotográfico nas mãos, mergulhá-lo no revelador e esfregar os dedos nesse papel até ver surgir a imagem e, inclusive, definir naquele momento a tonalidade da foto, se mais clara ou mais escura, num laboratório com apenas uma pequena luz vermelha. Tinha uma coisa que me encantava. Depois do negativo revelado e seco, eu usava um grafite para fazer os retoques, o que equivale hoje ao Photoshop. O negativo era posto sobre a luz e uma lente de aumento poderosa numa haste flexível, usada para aumentar a área do negativo. Começando com o grafite mais duro para o retoque médio e o mais macio para finalizar. Precisavam ser constantemente apontados para manter as pontas extremamente afiadas. Tudo isso eu fazia de uma forma muito primária e sentia necessidade de ter acesso a equipamentos mais sofisticados. Daí, consegui arrumar um emprego na cidade vizinha, no Foto Brasil. A princípio, combinei com o dono que trabalharia meio expediente para não interferir na minha escola. Pedi para trabalhar apenas em troca de algum material que eu precisasse e, obviamente, que me desse acesso ao laboratório para eu explorar minhas experiências particulares. Assim foi, e ainda melhor, pois eu trabalhava tirando fotografias para documentos e acabei, na falta de algum profissional, fotografando alguns casamentos, aniversários, eventos etc., e tinha em troca, não somente o material fotográfico como filmes e papel para as revelações, como também acabou me dando uma grana de vez em quando. Fora de meu horário de escola e do trabalho, eu me dedicava a fotografar. Subia morro, descia vales, embrenhava-me no mato para encontrar motivos para fotografar. Nessa época, consegui comprar uma outra máquina, uma Yashica Mat 124g, que era o modelo da que eu trabalhava no Foto. Nessas andanças para fotografar, descobri paisagens maravilhosas à margem do Rio Doce, com muitas águas e pedras. Numa dessas aventuras, desbravando um matagal me deparei com diversas mulheres nuas tomando banho no rio. Apesar de maravilhado com o visual, senti uma espécie de vergonha e tentei manter-me em anonimato, até que em algum movimento me descuidei e minha presença foi descoberta. Ao contrário do que eu imaginava, as mulheres não escandalizaram e nem me reprimiram e, inclusive, fui convidado a me aproximar. Essas mulheres eram prostitutas que de vez em quando tomavam banho nesse lugar do rio que era praticamente deserto e ninguém frequentava. Quando contei os motivos pelos quais eu estava ali se colocaram totalmente solícitas e fizeram questão de serem fotografadas, com a condição de que, reveladas as fotos, eu deveria ceder-lhes algumas cópias. Tirei diversas fotos, desde as improvisadas quanto as posadas. Uma das fotos, na hora em que fui revelar, me chamou muito a atenção. Era a de uma morena com os cabelos negros e longos, quase chegando nos quadris, lembrando uma índia, e tinha como fundo a pedra da Lorena que é uma lenda indígena. Por acaso, quando eu coloquei o negativo no ampliador e, na medida em que eu tinha a imagem dela projetada na prancheta e que deveria pegar o papel fotográfico, vi um caco de vidro ondulado na mesa, de mais ou menos dez centímetros, que me parecia o pedaço de vidro de uma báscula. Peguei esse vidro e coloquei embaixo da luz do ampliador que projetava a foto da mulher. Foi um efeito fantástico e acredito que nesse momento tive o meu primeiro contato com algo que um pouco mais tarde, lendo Breton e vendo Dalí, pude “entender” o surrealismo. Na verdade, tinha que manter essas fotos a sete chaves, tanto do pessoal do Foto quanto da família, diga-se de passagem, protestante. Mas por que falei de fotografia? Na ver471

dade, quando comecei a responder esta questão eu nem mesmo sabia o que dizer, mas agora acredito que até inconscientemente eu tenha a escrita influenciada pela fotografia que, por sua vez, me leva ao cinema e, obviamente, ao trem com suas janelas que são uma sucessão de fotos que me transportam a muitos lugares. Vejo minha escrita meio assim, começando numa câmara escura, depois um processo de retoque no negativo para passar pelo revelador e, depois, ficar um tempo no fixador. Há outros momentos que antecedem a esse processo, que é escolher o lugar, os personagens e o fundo, abertura do diafragma etc. Acho que faço um pouco disso aí na escrita em si. Também não posso negar que, independente das “origens”, o fato de eu lidar com diferentes áreas no dia a dia tem influência sobre a minha escrita criativa. Quanto às opções formais e temáticas que norteiam o meu projeto estético, de certa forma, não tenho como precisar. Talvez seja como viajar de trem. Claro que as viagens são quase sempre uma fábrica de histórias, mas eu me refiro à de trem porque sou filho de ferroviário e passei toda a infância e adolescência usando esse transporte praticamente todos os dias, principalmente porque sempre moramos em cidades muito pequenas e tínhamos que ir para a escola numa mais próxima. Então, na relação com as opções da forma e temáticas, posso dizer que sinto uma necessidade imensa de viajar e para isso preciso descobrir alguns motivos ou até inventá-los. Saudade de alguém, um lugar para conhecer ou alguma coisa para rever. Escolho a cidade, compro a passagem, embarco e, no mais, as outras coisas se completam com os personagens companheiros de viagem. Mas também tem as viagens em que tudo está de certa forma programado, inclusive, usando o trem para fazer um discurso. No fundo, também é sempre uma vontade de resolver ou criar problemas. Enfim, o trânsito por todas essas linguagens se deu durante todo o meu trajeto como pessoa e como artista, apesar de essa fronteira não ser muito bem definida, levando em conta uma certa incapacidade que tenho para desassociar um do outro. Assim, a criação é resultado dessa dialética, ou seja, dessa “oposição” que, às vezes, me provoca pela vontade de falar de minha inquietude, outras, pela sobrevivência material e intelectual e, quase sempre, para me manifestar existencial e politicamente. De certa forma, todas essas facetas têm uma relação direta com o meu trabalho, considerando que minha passagem por cada uma das linguagens, além de deixarem seus traços, também me servem de elementos para o diálogo entre as artes. Mas no que diz respeito à influência que essas áreas possam exercer sobre minha escrita criativa, se ela acontece, acredito que seja de maneira bem indireta, pois em alguns casos eu escrevo para colocar as coisas em questão e, de algum modo, como uma tentativa de desconstruir e até me distanciar de certos princípios. Não que eu sempre tenha êxito nisso, mas trata-se de uma tentativa permanente. Imagina escrever um poema a serviço do crítico! Por outro lado, também me pareceria muito estranho fazer uma crítica de arte de acordo com o gestor ou mesmo como professor! Penso na crítica como possibilidade de colocar o pensamento em crise diante de uma obra a partir dela mesma e não para legitimá-la ou o contrário. E a criação, diga-se de passagem, me parece que é a partir de um nada e, diante daquilo que não existe, tentar dar existência. E, assim, não tenho um projeto estético como um “crime premeditado”. Talvez eu seja relaxado nesse quesito. Lembro de Ezra Pound quando disse que para todo poema tem que ter uma técnica, mas assim que o poema está pronto essa técnica está morta e não serve para o próximo. Da mesma forma, 472

no que diz respeito ao ato de escrever, tanto as opções formais quanto as temáticas não são uma constante e cada obra acontece de uma forma. Como você define a sua trajetória mais especificamente literária? Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se percebeu um escritor? Minha trajetória literária começa quase como a de todo mundo, ou seja, na leitura. Como eu já disse, comecei a ler com seis anos de idade. Tive sorte de nascer numa casa que tinha biblioteca, não sei se feliz ou infelizmente, só de literatura clássica, nacional e universal. Desde sempre, ou seja, desde que aprendi a ler, eu gosto de escrever, mesmo sem nenhum propósito além do ato mesmo. As pessoas que em geral não liam, quando me viam lendo não davam muita importância ou só me achavam um sujeito estranho. A princípio, os livros da escola e, inclusive, fora dela, como era o que eu fazia na igreja para brincar com aquelas coisas chatas do evangelho. Como também já afirmei, eu li muito a Bíblia, inclusive, toda e diversas vezes. Seus personagens me inspiraram muito e, por isso, eu escrevia para diabo e fazia sátiras. Mas gosto de contar a história de um amigo de meu pai, recém convertido ou caído na armadilha da igreja evangélica, ao me perguntar sobre o que eu lia. Quando eu disse que havia acabado de ler Crime e castigo, de Dostoiévski, O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e alguns outros contos do escritor irlandês, ele ficou assustado. Disse que era muito perigoso para a minha idade – nessa época eu tinha uns nove anos –, pois para ele o livro continha cenas e situações horríveis. Mais assustado ele ficou quando eu lhe disse que tinha lido um livro muito pior e que só ele continha muito mais injustiças, crueldade, sexo, assassinatos, traições e tantas outras coisas que nem todas as obras juntas de Dostoiévski e Wilde não dariam conta. Obviamente que tive de matar sua curiosidade sobre esse livro e confessar que era a Bíblia Sagrada. Daí em diante eu lia muito, acho que nunca mais passei nem um dia longe dos livros. No sentido da escrita, nunca me dei conta de um momento inaugural. Aprendi a ler e escrever com aulas particulares aos cinco anos e, logo em seguida, aos seis, entrei para uma escola “singular”, ou seja, todos os alunos do 1º ao 4º ano estudavam numa mesma sala, e a professora, como uma espécie de maestro dando a lição para o tenor, contralto, soprano, barítono, ela dizia, agora o 1º ano, esse exercício para o 2º, o 3º leia não sei o quê e o 4º responda as questões do livro tal etc. No meio dessa zorra toda aconteceu que, mesmo eu estando no 1º ano, acabava lendo coisas das turmas mais avançadas e até mesmo fazendo exercícios de outros anos. Numa dessas, inclusive, aconteceu de eu escrever um poema que não era para os da minha turma, mas que a professora gostou e não podia ser aceito etc. Ademais, tomei gosto mesmo pela escrita e independentemente da escola comecei a guardar uns escritos, tanto de poemas quanto de histórias curtas. Com mais ou menos uns 12 ou 13 anos criei um jornal chamado “Fatos e Boatos”. Eu gostava muito de ouvir rádio e percebi que, de vez em quando, rádios diferentes falavam da mesma notícia. Comparando as rádios com o que as pessoas falavam nas ruas resolvi escrever esse jornal comentando tanto as divergências de informações de uma rádio para outra, assim nos comentários das pessoas. Esse jornal foi de apenas 5 edições de quatro páginas. A primeira, toda escrita à mão e, as outras, datilografadas numa Remington. No mais, vivi uma febre adolescente 473

de escrever poesia, ora por alguma paixão, ora por algum surto existencial, sem contar com os panfletos no movimento estudantil. Voltando à fotografia, também gostava de escrever sobre as fotos que eu tirava. No início, era só para classificar, depois elas começaram a gerar em mim a necessidade de fazer observações e comentários que depois viraram histórias. As fotos das prostitutas, como eu contei anteriormente, foram muito interessantes porque na época eu estava lendo Decameron, de Giovanni Boccacio, e tinha acabado de ler Trópico de câncer, de Henry Miller. Lembro bem desses autores e títulos porque eu acabei fazendo analogias entre essas personagens da ficção e as da realidade. De 1978 a 1980 convivi com muitos amigos que gostavam de poesia e vivia intensamente a boemia. Daí, entre uma poesia e outra de Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Drummond etc, também recitávamos nossas “criações”. E foi mais ou menos assim que comecei a guardar e selecionar uns poemas para compor o Deixem-me falar, publicado em 1981, quando eu tinha 21 anos, com uma tiragem de 1.000 exemplares. Vendi todos os livros de bar em bar, de mão em mão e, de certa forma, comecei a conhecer e conviver com alguns escritores tanto conhecidos como desconhecidos, a exemplo de Murilo Rubião, Adão Ventura, Alberto Renart, Evaldo Martins, Danilo Horta, Isaias do Maranhão, Roberto Drummond, Fernando Tatagiba, Cairo Trindade, Elisa Barreto, Hernâni Donato, Paulino Rollim de Moura, Fábio Lucas, Plínio Marcos, Artur Gomes e tantos outros. Depois vieram alguns outros e eu vivi muitos anos de literatura, vendendo meus livros em bares e eventos. Mas eu sempre li grandes escritores e isso sempre me fez ter dificuldades de me considerar mesmo um escritor, sem falsa modéstia, até hoje. Sempre que perguntam pela minha profissão, eu respondo escritor, mas no fundo eu fico em dúvida e me acho atrevido. Na verdade, sempre viajei muito, e a primeira vez que eu me anunciei como escritor foi num hotelzinho em Divinópolis. Na hora de preencher a ficha de hóspede eu não tinha nada para colocar na profissão, estava desempregado e tinha saído de um banco, mas bancário não é profissão e muito menos ex. Lembro de Divinópolis por ser uma cidade em que me aconteceu algo muito interessante que me marcou, mas que não cabe relatar aqui. Mas independentemente desse “sentir-se” escritor, tenho quase trinta livros escritos, dezenas de outros projetos, entre literatura, teatro e cinema, além de traduções. Mas no que diz respeito ao me perceber como escritor, não sei bem ao certo, mesmo depois de ter publicado livros e ganhado alguns prêmios. Na segunda vez que eu me anunciei como escritor foi num outro hotel, agora em São Paulo, quando havia perdido minha carteira de identidade e para me hospedar apresentei minha carteira de membro do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, inclusive, assinada por José Louzeiro e Fernando Gabeira. Eu também havia me filiado à UBE de São Paulo, mas nunca tinha dado uma “carteirada” antes. Ainda muito jovem, por diversas vezes você abandonou alguns postos de trabalho burocrático para se lançar especialmente na aventura de viver da literatura. Qual era a situação do país nessas ocasiões? Que frutos você colheu da experiência como “poeta marginal”? Em 1977, eu havia passado num concurso para trabalhar na administração da Companhia Vale do Rio Doce, no Ed. Fábio Ruschi, em Vitória. Por diversas vezes, os aprovados fomos chamados para reuniões e sempre foram proteladas 474

as contratações, até que num dia fui convocado a comparecer e me deram um documento para que eu me apresentasse numa determinada data para começar a trabalhar. Fiquei sabendo que o concurso tinha sido cancelado e que só aproveitariam 8 dos candidatos aprovados. Eu tinha me classificado em 3º lugar e acreditava que era esse o motivo para eu ser chamado entre os 8, mas fiquei sabendo que os chamados não tinham nada a ver com o lugar da aprovação, mas que foi feito um acordo com algumas pessoas por causa de parentesco e/ou tráfico de influências. Rasguei o documento e abdiquei desse trabalho. Acho que isso foi em meados de janeiro de 1978. Logo em seguida, surgiu um concurso no Banco Nacional. Passei em primeiro lugar e, por sorte, antes mesmo da data prevista para iniciar, fui contratado na primeira semana depois do resultado, devido a um funcionário que sairia de férias e eu ficaria em seu lugar. Assim, meu primeiro emprego foi no Banco Nacional, em 1978, e em pouco menos de 3 anos eu já tinha ganhado duas promoções e chegado à subgerência. Por uma série de questões, eu não queria aquilo e me sentia sufocado. Apesar de ter muitos amigos e compartilharmos de programas interessantes, eu não conseguia me adaptar àquele ambiente. O banco era da família Magalhães Pinto, diga-se de passagem, Magalhães Pinto foi um dos principais envolvidos no Golpe de 64, e eu estava envolvido com o movimento sindical e nas ruas. Eu comecei trabalhando em Vitória, na agência da Rua Duque de Caxias e, depois, fui transferido para Belo Horizonte, para uma agência no então recém inaugurado BH Shopping, no bairro Belvedere. Se hoje eu tenho horror a shopping center, imagina na época, um banco no meio de lojas com aquela luz estranha onde nunca se sabe se é dia ou noite, além do cheiro de clínica. Logo que fui promovido a subgerente, pedi demissão por desespero e, apesar de muitos escritos guardados, ainda não tinha um projeto de edição, acho que nem pensava nisso, apesar de algumas publicações esparsas em periódicos de cidades de interior. Voltei para Vitória e não sabendo fazer nada, não tinha uma profissão, não era estudante – aliás, aos 17 anos eu terminei o científico em Aimorés, no Estado de Minas Gerais. E não tinha nenhuma preocupação em fazer um curso superior, não pensava numa profissão. Logo que cheguei em Vitória, em contato com antigos colegas bancários, fui convidado para trabalhar no Banco Safra e no Banco de Crédito Nacional. Sem ter o que fazer e com problemas financeiros, tive uma recaída e acabei aceitando a proposta do BCN, que, além de me pagar mais, ainda me ofereceu o cargo de chefe de cadastro. Fiquei apenas seis meses e pedi demissão. Montei uma escola de música e foi nesse momento também que lancei meu primeiro livro. Meses depois, deixei a escola com os meus sócios e nunca mais voltei. Voltei para Belo Horizonte, morei em pensões, hotéis, repúblicas, até que aluguei um apartamento. Assim que meus livros acabaram, tive uma outra recaída e acabei aceitando um convite para trabalhar no Banco Agrimisa. Paralelamente, comecei a trabalhar na peça Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri, com o grupo teatral Contra Vento e Maré, e fomos para um festival numa cidade do interior de Minas Gerais. Fiquei uns dez dias fora e, quando voltei, a chefia do Banco me chamou para conversar, pois eu era lotado na sede administrativa. Não deu outra, também tinha seis meses de carteira assinada e pedi demissão. Mas acho que sempre gostei mesmo de aventuras e não foi por acaso que saí de casa num gesto mesmo de abandono, ou seja, quando morava em Aimorés e viajei para ver o resultado do concurso da CVRD, estava decidido a 475

não mais voltar. Fechei uma porta atrás de mim sem olhar para trás e sem saber o que viria pela frente. Foram minutos que duraram horas o tempo em que fiquei na estação ferroviária esperando o momento do embarque. Eu acho que esse foi o momento mais difícil, depois, os outros foram consequências e acredito que eu estava mais “calejado”. A situação do país nessa época estava bem pior do que hoje, embora o clima seja parecido. Mas não tinha para onde correr. A gente tem medo do que não está acontecendo ou do que está prestes a acontecer, mas quando você está no meio da coisa, não tem mais medo e se tiver não faz diferença. No meio da confusão, a vida é lutar ou lutar. Fora disso, a única opção seria a mediocridade e a alienação, mas eu já havia desde cedo rompido com essa possibilidade. Lembra do filme Pai patrão, dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani? Ver o mundo comandado por pai, patrão, deus, coronel e qualquer autoridade para mim era a mesma coisa. Então, ser poeta para mim foi mais que escrever poesia, foi uma forma de encarar a mim mesmo e de sobreviver na resistência, principalmente, sendo “marginal”, tendo em vista que até como escritor eu não tinha patrão, ou seja, uma editora. Apesar de muitas dificuldades e sofrendo repressões, inclusive tendo sido detido diversas vezes por estar envolvido com movimentos políticos e sociais, vejo como uma espécie de herança positiva o que pude colher na experiência. Há muitas tristes lembranças também, até mesmo de companheiros que se foram, tanto dos que morreram quanto dos que sucumbiram, mas hoje eu faço um balanço e tenho certeza de que eu tinha mesmo que ter estado ali, testemunha do meu tempo, e poder contar a história do nosso ponto de vista, como perdedores. Para entender onde e por que perdemos. Por outro lado, também posso comemorar o fato de ter vendido, entre livros e poemas-pôsteres, mais de 200 mil exemplares, do início dos anos 80 a meados dos 90. Seu trabalho como diretor é reconhecido no Espírito Santo e alcançou expressividade no cenário internacional. Em 1987, você conquistou o 1º Lugar no VIII Concurso Capixaba de Dramaturgia, promovido pelo Departamento Estadual de Cultura do Espírito Santo, com o texto Antonin Artaud - Atos de Crueldade. Em 2013, o Collège de Pataphysique de Paris lhe concedeu a Ordre de la Grande Gidouille, láurea concedida anteriormente apenas a Pablo Picasso, Louise Bourgeois e Oscar Niemeyer. Como você vê a recepção do seu trabalho com teatro? Essas premiações promoveram mudanças? Na verdade, preciso me utilizar da tautologia para responder a essa questão do meu trabalho no teatro, ou seja, ele tem uma boa recepção, mas somente para quem o assiste. É que está cada vez mais difícil levar o público capixaba ao teatro. Mas fora daqui tenho tido algumas experiências interessantes, inclusive, no último 10 de julho, estreou no Museu de Arte de Mercedes, na província de Buenos Aires, na Argentina, um texto meu sobre Artaud, montado pelo grupo El Negro Olmedo. Publiquei na Utopía y Praxis Latinoamericana: Revista Internacional de Filosofía Iberoamericana y Teoría Social, na Venezuela, além de ser citado em algumas outras de Cuba, México, Chile etc. O meu grupo, o Tarahumaras, foi tema e objeto de estudo da francesa Catherine Faudry em sua dissertação, na Universidade Stendhal, Grenoble-France, intitulada Théâtre au Brésil: Explotation des Tendances Actueles dans la Recherche d’une Communication Avec le Public. Participei de diversos festivais como oficineiro, palestrante e crítico, como no ENTE476

POLA – Encuentro de Teatro Popular Latino-Americano, de San Salvador de Jujuy, na Argentina, no ENTEPOLA de Santiago de Chile, o Festival de Teatro Clásico Adaptado, que acontece em Mar Chiquita, na Argentina e em alguns outros. Uma das experiências mais fantásticas tivemos numa das participações em Santiago de Chile, apresentando a obra Para acabar com o julgamento de deus, num campo de futebol, para uma plateia de mais de 8 mil pessoas. Há muitas outras. Quanto às premiações, não creio que tenham promovido mudanças, pelo menos não consigo ver isso, exceto a do Collège de Pataphysique de Paris, considerando que me colocou em contato com pessoas importantes, tanto do ponto de vista político quanto artístico, inclusive, entre outros três, essa comenda em meu favor foi votada por Umberto Eco e Dario Fo. No Brasil, o teatro tem um alcance bastante limitado em termos de público. Que razões explicam esse afastamento do público? Haverá saídas, em curto e longo prazos? Nem sei se é um afastamento, considerando que para afastar primeiro você tem que estar próximo. E acho que não é o caso do Brasil, um país que começa com um governo criando o povo. Há grandes teatros por aí, inclusive na Amazônia, que são verdadeiros templos, mas que foram construídos para os barões assistirem as óperas europeias. A falta de público ou desinteresse do povo pelo teatro no Brasil são históricos e têm uma série de questões. Muitas das vezes esses espaços suntuosos inibem as pessoas que foram “educadas” a vida inteira para sentirem que esse lugar não lhes pertence. Outras vezes os preços são proibitivos. E, ainda, grande parte dos repertórios falam de coisas que não lhes provoca interesse. Sem dizer do descaso dos meios de comunicação em divulgar esse teatro não como um sabonete, não como um produto, mas abrir espaço para um debate sobre os processos e meios de criação, recursos, opções temáticas, estéticas etc. Uma forma de popularizar no bom sentido, no de fazer da arte um tema familiar entre as pessoas e não como um mero produto de entretenimento e/ou de falsa ostentação de conhecimento. Não dá para dizer se haverá saídas em curto e longo prazos, mas acredito que somente os artistas poderão reverter esse quadro – não falo em artistas isolados, mas um movimento consciente e resistente de que fazer arte numa sociedade burguesa, reacionária e conservadora é fazer guerrilha. Aliás, numa sociedade como essa, onde a arte só tem valor quando “embeleza” o sistema ou quando é um bom “investimento”, fica até suspeito o artista que obtém algum êxito. A despeito do que chamamos acima de “reconhecimento”, no texto intitulado “A imagem e a semelhança”, do livro de ensaios Maomé vai a Montaigne (Cousa, 2010), você afirma a inexistência do teatro capixaba. Poderia desenvolver a ideia para o leitor de dentro e o de fora do ES? Essa questão é muito simples. Quando afirmo que não existe o teatro capixaba o faço em primeiro lugar para nos livrar desse pseudobairrismo, ou seja, esse fazer de conta que amamos o Espírito Santo – aliás, se fosse mesmo verdade nem precisava de adesivos dizendo isso. Numa lógica imediata, só existe teatro quando existe público, não apenas como espectador, mas como mantenedor do ator tanto material quanto espiritualmente, através da crítica, do debate etc. Por 477

outro lado, como distinguir um teatro capixaba? É aquele que fala de congo e de moqueca? E o povo que mora no norte do estado que não conhece o congo e nunca comeu moqueca não é capixaba? Quando falamos em teatro japonês, imediatamente nos lembramos do Nô ou do Kabuki, do teatro indiano, nos vem o Kathakali, da Indonésia, o teatro de Bali, e até aqui na América Latina você até pode dizer do Inti Raymi (que em quéchua quer dizer “festa do sol”) como um teatro peruano ou inca ou cusquenho. Qualquer um desses teatros, apresentados em qualquer lugar do mundo, poderiam ser reconhecidos como “originários”. Não quero desmerecer o teatro que se faz no Espírito Santo, mas só não o entendo como capixaba porque não há nenhum elemento que o distinga do que se convencionou por teatro, esse cometido no ocidente em geral. Da mesma forma, não gosto dessa ideia de ser escritor capixaba por esses e outros motivos. Na apresentação de seu livro Dionisismos (1991), o pintor francês radicado em Vitória Gilbert Chaudanne, que assina diversos prólogos a livros seus, além de ilustrar alguns, afirma haver “uma grande mudança [...] no plano da [sua] escrita” naquele começo de década. Ao ler o livro, notamos especialmente a força de uma prosa poética repleta de um antilirismo ácido, rascante. Considerando-se que o autor é mais um leitor entre os leitores dos seus escritos, fale-nos de como você percebe essa transformação, e a que se deve. Essa suposta “grande mudança” só se dá mesmo no plano da escrita, considerando que o ácido já estava lá, desde o princípio. Mas é óbvio que o acúmulo de leituras e experiências tanto no campo das artes quanto na vida faz-nos desenvolver técnicas, mesmo que momentâneas, no processo de criação. Para perceber essa transformação, às vezes, tenho que provocar uma espécie de distanciamento para que eu possa estranhar o que escrevi. Essa distância me ensina isso. É comum eu me identificar com algo que escrevi, mas apenas na vontade ou na ideia, pois aquele que escreveu já é um outro, às vezes mais ingênuo e ao mesmo tempo mais corajoso ou sonhador. Decifra-me ou te devoro. Estamos sempre diante da esfinge. Então, o que vejo de mudança talvez seja numa espécie de cuidado com a linguagem, mas ao mesmo tempo uma preocupação que a mesma não seja refém de maneirismos e que a vontade seja engessada pelo “método”. Por outro lado, antigamente, mesmo que inconscientemente, eu poderia estar em busca de um estilo ou um gênero de escrita, mas hoje isso não me interessa mais. Não tenho essa preocupação e, às vezes, agrada-me a desconstrução como uma tentativa de criar a partir de um não-pensar, uma busca da con-fusão, um lugar no caos onde as coisas estranhas se fundem. Mas isso não tem nada a ver com o que dizem por aí do pós-dramático ou da performance, considerando que seriam outras camisas de força. A experiência com a linguagem parece ainda mais radical no livro de contos A palavra criatura (1994). Ali o leitor se depara com um curioso rearranjo da morfologia e da sintaxe do português, numa escrita repleta de humor e ironia, como no excerto: “Atravessa a avenida devolta ao monturo proximicasa. Necessário encontrar o sacolixo que na anterinoite havia depositado junto a tantosoutros. Anrã. Chegaria bastante atrasado no trabalhárduo, mas desculpensaiava uma desculpequeninha para não desacreditar superio478

res. Pensava – trejeibocando – dizer que acoradara com muita doricabeça e indisposição. Vrrruuummm. Ufa. Acreditava ficarjusti, pois todos conheciam de perto sua antiga sofrenxaqueca. Não tinha grandes preocupações relativemprego.” Gostaríamos de saber acerca das possíveis influências de outros autores sobre essa guinada radical na sua escrita. Não sei de imediato dizer das influências de autores em especial por não me lembrar do que estava lendo na época. Mas desde criança eu sempre brinquei muito com as letras, desde trocadilhos até charadas, passando pelas palavras cruzadas. Olhando para trás posso até imaginar alguma influência da poesia concreta, do cordel, da Geração Mimeógrafo e alguns autores como Alfred Jarry, Antonin Artaud, Mallarmé, Qorpo Santo, Guimarães Rosa, Torquato Neto, Leminski, Cacaso, Chacal, Nicolás Behr e mesmo alguns poetas contemporâneos com quem tive contato, como Cairo Trindade, Eduardo Kac, Wilcon Pereira, Isaias do Maranhão, Sebastião Nunes, Artur Gomes e tantos outros. Além de vivermos na noite, nos bares vendendo livros, recitando, tocando ou cantando, era muito comum participarmos de encontros de poetas em diversas partes do Brasil. Cairo Trindade, integrante do grupo Gang, por exemplo, quando o conheci, em 1984, na Bienal do Livro em Ibirapuera, tinha lançado uma coletânea pela Codecri, intitulada Antolorgia poética. Cheio de malabarismos poéticos, depois, mais tarde, no Rio de Janeiro o encontrei organizando a coletânea Poezya contemporrânea. Teve um outro poeta maluco do Paraná, que também estivemos juntos em alguns encontros, que inventou o “meio soneto”. E ele dizia que, para ser um grande poeta, deveria saber escrever um meio soneto (de cabeça para baixo, composto de dois tercetos e dois quartetos). Caso contrário, o sujeito podia até ser um grande poeta, mas seria um grande poeta que não sabia escrever um “meio soneto”. Enfim, éramos um bando que costumava se encontrar para mostrar as criações, discutir e muitas e muitas vezes varávamos as noites nos bares ou mesmo da casa de alguns de nós às 7 ou 8 horas da manhã. Nessa época também havia dezenas e dezenas de jornais e revistas de poesia em todo o Brasil, que nos chegavam fora do circuito comercial – aliás, tenho ainda muitos desses periódicos em casa. Nesse caso, toda essa questão da linguagem é resultado do acúmulo dessas leituras e experiências da escrita sem nenhuma preocupação estética para além de uma rebeldia anárquica. Nessa obra específica, A palavra criatura, eu quis usar um pouco disso para fazer ironia e, ao mesmo tempo, dizer de algumas coisas que me incomodavam. Você já traduziu obras de autores como Antonin Artaud, Fernando Arrabal e Michel de Ghelderode. Que concepção de tradução orienta seu trabalho? Até que ponto é realmente possível traduzir? Que experiências se pode retirar de traduzir dramaturgos de diferentes idiomas, no seu caso o francês e o espanhol? Minha relação com a tradução também posso dizer que é precoce e por acaso. Acredito que meu primeiro processo de tradução começa aos 6 anos de idade. Meu pai era telegrafista da Companhia Vale do Rio Doce e morávamos numa casa na beira da linha, da estrada de ferro, uns trezentos metros aproximadamente do Posto Telegráfico, que nem era considerado uma estação, embora fosse uma parada para embarque e desembarque de passageiros. Ele sempre levava uma garrafa de café para o trabalho e, num determinado dia, depois do expediente, chegou em casa, tomou um banho e jantou. Ao descobrir que havia esquecido a garra479

fa e, para que pudesse levar o café na manhã seguinte, mandou que eu fosse buscá-la. Fui até o Posto Telegráfico, usando uma lanterna, pois não havia energia elétrica. Logo que abri, localizei a garrafa e, por ter sentido sede, resolvi acender o lampião para procurar um copo e ir até ao filtro. Enquanto eu bebia água, o telégrafo começou a funcionar e receber uma mensagem sonora e também através de uma fita de papel, parecida com um rolo da máquina de calcular, embora bem mais estreita. Mesmo nas vezes que eu estive no Posto, raramente eu via as mensagens chegando pela fita de papel, pois meu pai entendia o código Morse de ouvido e não necessitava da impressão. Mas por não trabalhar à noite, deixava o aparelho ligado para que as mensagens fossem impressas para serem lidas no dia seguinte. Fiquei encantado com aquilo, pois era a primeira vez que eu presenciava todo esse movimento sozinho. Nunca tinha percebido a beleza daquele som, no meio do mato, no silêncio da noite, interrompido apenas por algum pio de coruja ou algum outro pássaro. Ademais, esticava a fita e ficava tentando entender aquela sequência de pontos e traços e traços e pontos. No meio disso tudo, me distraí e coloquei o copo molhado em cima da fita que desenrolava em cima da mesa. Fiquei maluco, guardei o copo, enxuguei a mesa e rasguei a parte da fita que havia molhado e a atirei na lixeira. Apaguei o lampião e saí com a garrafa numa das mãos, a lanterna na outra e um puta medo no peito, um sentimento de culpa, porque eu sabia que aquilo não ia acabar bem. Dito e feito, no dia seguinte, quando meu pai descobriu me deu uma bronca muito agressiva e humilhante. Fiquei muito puto e disse para mim mesmo: “vou aprender essa porra!” Lá em casa tinha um telégrafo ligado a uma caixinha de som com bateria e um manipulador, o aparelho de onde se toca para emitir o sinal curto do ponto e o longo do traço. Fui à biblioteca e encontrei um manual com o código Morse. Em pouco tempo aprendi a entender todo o som do telégrafo, sem precisar da maldita impressão. Houve até momentos em que meu pai, sabendo que eu havia aprendido o código Morse, me deixou telegrafar no Posto. Acho que esse foi meu primeiro ato de tradução. Um tempo depois, mais ou menos dos onze aos quatorze anos, morei numa cidade em que estudava com muitos pomeranos. E eu ficava invocado quando eles conversavam entre si na sua língua. Esses pomeranos viviam na área rural e, nessa época, eu e alguns amigos que moravam na área urbana criamos uma espécie de sociedade secreta, construímos uma sede no meio do mato, próximo de uma cachoeira e até fizemos umas carteirinhas. Lembrei que havia visto na biblioteca lá de casa uns dicionários e, dentre eles, um guarani-português-guarani. Combinei com as amigos dessa “sociedade secreta” e começamos a estudar e tentar falar em guarani entre nós quando estávamos próximos dos pomeranos. Óbvio que não conseguíamos entender a gramática e traduzir frases, mas palavras que davam conta de combinarmos algumas coisas como tomar banho no rio, jogar bola etc. Tomamos gosto pela coisa e ficamos muito tempo nos comunicando assim em quase todos os lugares, até que acabamos desistindo porque os pomeranos também já não falavam sua língua em nossa presença. Foi uma espécie de pacto silencioso. Interessante que até hoje me recordo de algumas dessas palavras. Nessa mesma época, meu pai fazia um bacharelado em teologia e, a princípio, me colocava para passar a limpo seus trabalhos e, depois, me colocou para pesquisar mesmo e escrever umas monografias. Acho que isso também contribuiu muito para o meu ateísmo, mas o que sei é que em meio das apostilas do curso eu acabei me metendo com um monte de termos 480

em hebraico e aramaico que me deram muito trabalho. Não necessitava traduzir textos de uma forma direta, mas organizar as ideias referendando conceitos nessas línguas. Foi também nessa época que, conforme eu já disse, me correspondia com uma americana e fazia minhas peraltices para traduzir do português para o inglês e vice-versa. Nesse caso, tive até alguma facilidade, pois estudava inglês na escola, pois era disciplina obrigatória. Mais tarde, quando comecei a me envolver com o teatro e pesquisar Artaud, tive que aprender espanhol e, depois, francês. O espanhol foi autodidata, mas o francês eu estudei na Aliança Francesa. O espanhol foi importante para mim porque além de conviver com diversos músicos do Chile, Argentina, Peru, Bolívia, Equador e Venezuela, inclusive, os do Tarancón, Raíces de América e outros numa época em que morei em São Paulo, também toquei num Canto Latino, um bar em Belo Horizonte e participei de festivais de teatro em alguns países da América Latina. Quanto ao francês, as traduções de Antonin Artaud, Fernando Arrabal, Michel de Ghelderode e alguns avulsos publicados por aí e outros inéditos aconteceram, a princípio, por necessidade e, depois, por prazer. Comecei a traduzir Artaud para poder discuti-lo no teatro com pessoas que não liam em francês e acabei utilizando para fazer uma montagem de Pour en finir avec le jugement de dieu (Para acabar com o julgamento de deus), além de publicar e dividir com outras pessoas a obra desse artista que muito aprecio. Com Arrabal, foi mais ou menos igual, com a diferença de que havia tradução de algumas de suas obras, mas com que eu não concordava, e traduzi para montagens com o Grupo Tarahumaras e para outros grupos daqui e de outros estados, considerando eu ser o responsável pelos seus direitos autorais no Brasil. No caso de Michel de Ghelderode, também foi por não concordar com uma versão adaptada que estava na SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e que um grupo capixaba quis montar. Há muita coisa inédita, inclusive, de Arrabal e de Artaud. Quanto à concepção de tradução que orienta meu trabalho de tradução, acredito que Omnis Traductor Traditor, ou seja, que todo tradutor é um traidor, mas – de certa forma – tento conciliar a condição de imoral com a necessidade. Conforme Manuel Bandeira, “a tradução de um poema deveria conformar-se absolutamente, primeiramente, com a idéia ou emoção que constitui o poema e, depois, com o ritmo verbal em que essa idéia ou emoção está expressa, ou seja, na medida em que deveria conformar-se relativamente com o ritmo anterior ou visual, mantendo as imagens próprias quando fosse possível, mas mantendo-se sempre fiel ao tipo de imagem.” Assim, no caso da poesia, me esforço ao máximo no sentido de tentar garantir uma certa “fidelidade”, contrariando a ideia de tradução como traição. Embora também existam riscos, acredito que na prosa seja um pouco mais fácil, dependendo também do autor. Por exemplo, imagina traduzir a prosa de um Guimarães Rosa ou um James Joyce. Mas, de certo modo, acredito sim que é possível realmente traduzir, levando em conta a tradução também como uma espécie de recriação ou transposição em termos de classe gramatical de uma língua para outra numa tentativa de garantir uma semelhança de sentidos. As experiências que retiro no ato de traduzir do francês e do espanhol se dão no mínimo de duas maneiras, uma que é o idioma, outra que é o autor, considerando que Artaud não é só francês, assim como Arrabal não é só espanhol, considerando que ambos só podem ser vistos a partir de seus contextos e suas relações com diversos movimentos culturais, estéticos e, obviamente, políticos. Fora do francês e do espanhol, 481

também estudei grego e alemão, mas foi por pouco tempo e apenas para tentar me aprofundar mais em alguns conceitos da filosofia, mas não domino nenhum dos dois nem na leitura, nem na escrita e muito menos na fala. Está escrevendo algum livro no momento? Tem projetos para o teatro, a crítica, a tradução? Sim, neste momento, estou escrevendo dois romances, um sobre um jovem que, depois de muitos anos viajando, volta para a sua cidade, mas ela naufragou e ele sai a sua procura e tenta reconstruí-la a partir da memória. Outro, sobre a trajetória de um filho que, depois de ver o pai falar mal da revolução cubana tendo nas mãos uma revista com a foto de Fidel Castro na capa, resolve conhecer Cuba e começa a estudar espanhol a partir da música Guantanamera, de José Martí. Para o teatro, estou organizando um ENTEPOLA – Encuentro de Teatro Popular Latino-Americano para janeiro de 2020, em Vila Velha, um Festival Nacional de Teatro de Rua, para maio de 2020, em Baixo Guandu. Também estou fazendo um projeto para o edital Iberescena, para montar Carta de Amor (como um suplício chinês), de Fernando Arrabal, com uma co-direção de um espanhol, uma atriz colombiana e um técnico argentino. Ademais, estou com Os últimos dias de paupéria, texto de minha autoria em que também assino a direção, sobre vida e obra de Torquato Neto, que, inclusive, está em cartaz e estamos convidados para apresentar num festival na Argentina, no mês de outubro próximo. Quanto à crítica, estou sempre escrevendo sobre um livro, um espetáculo, um filme etc. e, atualmente, organizando uns textos para compor o Livro das contradições. E estou traduzindo A arte e a morte, de Antonin Artaud. O que você pensa acerca dos escritores e dramaturgos brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos para pensar a literatura e o teatro brasileiros atuais como um todo: o que você vê nesse cenário? É muito difícil ou quase impossível responder a essa pergunta, primeiro, porque o que nos chega nem sempre representa o que o autor brasileiro está produzindo, considerando que estamos vivendo um momento em que os críticos de arte são animais em extinção, depois, porque por motivos óbvios a mídia a serviço da indústria cultural filtra e define o que quer divulgar. Mas, do que tenho visto, tem se publicado muito no Brasil. Isso é muito bom porque hoje, tendo em vista a falência de muitas grandes editoras, abriu-se um espaço para pequenas editoras que, de certa forma, não são comerciais, embora as mesmas sofram muito por não terem a capacidade de distribuir. Quanto à qualidade, acredito que estamos vivendo um momento bastante confuso e é óbvio que a literatura e a arte em geral não passariam impunes. Tenho lido muitos livros dos autores contemporâneos, do nosso tempo, mas confesso ter tido problemas com os autores “contemporâneos”, esses que apenas reproduzem esse estágio atual de nosso modelo social que parece querer levar à risca a ideia do laisser-faire, como se cada um de nós fosse uma livre iniciativa de mercado, num mundo sem memória, desprovido de história e individualista no sentido de culto ao ego, ou seja, uma negação da individualidade que está na relação com o coletivo. São raros os livros que ao fecharmos a última capa nos deixam alguma coisa, uma palavra, uma ideia ou mesmo um problema. 482

Parece que estamos vivendo um vazio de significados, e tem muita gente fazendo uma espécie de literatura self. Mas acredito que nesse volume de produção também o tempo haverá de separar o joio do trigo e, quem sabe, a própria falta de perspectiva seja a possibilidade de provocar uma necessidade de criar algo, não apenas para preencher o vazio, mas para dar-lhe um sentido mais vivo e, no mínimo, romper com essa apatia que domina a sociedade. Digo isso mais em relação à literatura, porque na dramaturgia há questões ainda mais complicadas, considerando que a mesma tem sofrido quase um abandono e que, na maioria das vezes, tem se escondido à sombra de supostas adaptações dessa literatura que critico, tirando dela tanto o seu poder literário quando sendo incapaz de se afirmar como dramaturgia. Mas também confesso que tenho lido boa literatura, inclusive de algumas pessoas do Espírito Santo, mas prefiro não dizer os nomes para não gerar ciúmes. Já até escrevi sobre alguns e vou escrever sobre outros. Só estou um pouco sem tempo no momento. O que vem a ser o teatro para você, hoje? Qual a sua real importância? Daria algum conselho aos jovens que se aventuram por essa seara, seja na escrita ou na atuação? Embora o teatro seja uma atividade cujo início é desconhecido, de certa forma ele é praticado desde os primórdios da vida humana, considerando ser uma das principais formas de comunicação entre os homens, desde a possibilidade de contar histórias e transmitir valores e produzir significados, até mesmo na época em que os seres humanos ainda não possuíam a habilidade da comunicação verbal. Mas a origem da palavra “teatro” é grega, que vem do vocábulo théatron, que significa ver ou enxergar, e que estabelece o lugar físico do espectador. Obviamente, o teatro passou por diversas transformações, inclusive algumas positivas, na medida em que ampliou espaços de atuação e possibilitou ao ator (que nasceu hipocritès, ou seja, fingidor) novas experiências no mundo da pesquisa e da interpretação. Desgraçadamente, nos dias de hoje, o teatro não goza uma presença efetiva nos programas culturais da população, tendo se tornado, no sentido quantitativo, uma arte minoritária, às vezes, como diria Brecht, no sentido qualitativo, uma “missa noturna da burguesia” e, outras, como mero entretenimento. Não que isso o tenha reduzido a uma arte insignificante ou que esteja “acabando”, mas a sua capacidade de repercussão na vida social tem se mostrado cada vez mais insuficiente. São muitos os motivos, mas – de imediato – posso imputar essa realidade teatral aos que apregoam os mitos do tradicionalismo greco-europeu reeditado pelos capitalistas, um pacto secreto com os burgueses, ou seja, esses que têm no espetáculo um mero objeto de comércio num sistema numérico de troca, onde – de um lado – o espectador dá o seu dinheiro ao teatro e – do outro – exige uma peça regada a choro, suor e saliva, ou, caso contrário, que seja bastante “engraçado” e que em momento algum lhe possibilite o senso crítico. Quer dizer, uma possibilidade de chorar identificado com um personagem isolado da vida ou rir do “outro” que o mesmo espectador ridiculariza e/ou explora. Sempre na condição passiva e, de qualquer forma, que seja um processo que propicie a catarse ou possa fazer-lhe “esquecer” os problemas da vida. Também há aqueles que se creem uma avant-garde acima do bem e do mal e que imaginam um teatro que não tem nada a ver com as questões sociais, exceto quando por uma “nova” estética ad referendum da 483

dominação, ou seja, conforme definições daqueles países (ou grupos econômicos dominantes) que fazem um discurso hegemônico, visando a manutenção e garantia das velhas ideologias liberais, diga-se de passagem, disfarçadas de neo-liberais. E, em nome de uma estética, desenvolvem apenas um teatro fisiológico, egocêntrico, narcisista e descomprometido com a reflexão histórico-social e, quando muito, socorrem-se de cartilhas da moda, como fizeram com Grotowski e seu teatro pobre, Artaud e a crueldade, Barba e o antropológico, também como muitos fazem agora de Thies-Lehmann com o pós-dramático, o performático, de não sei quem etc. Não se trata de satanizar esses teóricos, considerando que cada um deles tem a sua contribuição na pesquisa teatral, mas o que incomoda é assistir que a maioria os utiliza como uma mera substituição de estilo ou uma mistificação da realidade. Por todos esses motivos é que, paradoxalmente, o teatro continua mais importante do que nunca como um ato de resistência, considerando que existem grupos, diretores e atores que, mesmo sendo a minoria, vão na contramão dessa história. Se é para deixar uma mensagem aos jovens, eu diria que faz-se necessário trabalhar por um teatro que seja verdadeiro, não como um fim em si mesmo, mas um teatro em processo, um teatro que se constrói com a humanidade a partir da subversão das relações cívicas e que não se submeta ao controle de quem patrocinou ou pagou um ingresso. É preciso resgatar aquele vocábulo théatron, que significa ver ou enxergar, não como um mero exercício de voyeurismo para o espectador, mas que ele possa se ver em cena com todos os seus problemas, todas as suas contradições e que essas contradições o incomodem e o despertem para contribuir com a coletividade em prol de um mundo melhor. É preciso um teatro em que – antes mesmo da presença de atores, diretores, dramaturgos e atravessadores de produtos culturais – exista a vida, não escamoteada, mas com todos os seus conflitos e necessidades de redefinir as relações humanas. Um teatro em busca do tempo perdido, não aquele dos que choram a saudade de uma imagem de infância, mas aquele da consciência do que foi construído e como foi construído para que se possa negar e até implodir os edifícios que já não nos comportam e muito menos nos atendem em nossos sonhos e anseios de liberdade. Com esse espírito e essa disposição, acredito que seja na escrita ou na atuação e até na encenação, teremos uma aventura prazerosa não apenas no entretenimento, mas também na possibilidade de contribuição revolucionária por um mundo crítico e com a inteligência a serviço de todos. Nada mais oportuno do que encerrar com uma ilustração de Bertolt Brecht, quando afirma que “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.” Atualmente, no Brasil e no exterior, vivemos a ascensão de uma onda reacionária que traz em si matizes racistas, fascistas, misóginos e homofóbicos. Gostaríamos que você nos ajudasse a compreender: onde estava guardada tanta monstruosidade? Houve um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje? O que você imagina ou espera como coda do atual estágio da humanidade? Na verdade, não acredito que o racismo, o fascismo, a misoginia e a homofobia que vivemos atualmente, tanto no Brasil quanto no exterior, sejam alguma coisa nova. Por um lado, creio que tudo isso sempre esteve aí, não no sentido de 484

que “sempre foi assim”. Não se trata de um niilismo imobilista. Digo que “sempre” esteve aí, considerando que nosso modelo civilizatório (sifilizatório, como dizia Darci Ribeiro) está nas doutrinas judaico-cristãs, principalmente, agora neste estágio do capitalismo. Talvez o que tenha mudado seja o contrário disso, ou seja, o fato de uma parcela da humanidade ter compreendido melhor o mundo. Essa suposta maior compreensão sobre o mundo pode ter desagradado a outra parcela que domina, e esta, por sua vez, por não admitir mudança e sentido-se ameaçada em seu poder, tem a necessidade de mostrar as garras ou libertar a serpente de seu ovo. Obviamente, e o mais complicado, é que essas ações reacionárias quase nunca são cometidas diretamente por essa parcela minoritária e dominante, considerando que ela prepara tão bem seus soldados dentre os próprios dominados que estes até acreditam terem autonomia e poder de decisão. Como dizia Marx, numa sociedade dividida em classes, o pensamento dominante é o pensamento da classe que domina. Também não consigo visualizar um ponto ou marco crucial para a detonação de uma circunstância como esta que vivemos hoje, principalmente no Brasil. Mas isso eu falo como um cidadão inventado e alfabetizado de acordo com os códigos europeus. Nesse sentido, um ser fora de lugar e sem passado. Talvez, se eu fosse um Kaxinawá ou um Inca, por exemplo, pudesse afirmar que o ponto ou marco crucial foi o instante da colonização e todo o processo que dela se desdobrou. Ouvi Fernando Arrabal dizer algumas vezes que a imaginação “es el arte de organizar recuerdos”. Assim, as imagens que consigo formar não me parecem muito boas, principalmente porque não vejo qualquer possibilidade de mudança sem um acirramento das contradições. É uma questão de consciência de classe para uma luta assumida e sem trégua.

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Wladimir Cazé Nasceu em Petrolina (PE), em 1976. Vive em Vitória (ES). Entrevista concedida a Vitor Cei, Laura Maria Moreira, Habacuque Amorim, Lucineia Ferreira em junho de 2016.

Cada escritor possui um modus operandi, por assim dizer. Fale um pouco sobre o seu processo criativo. Houve um momento inaugural ou o caminho se fez gradualmente? Em que momento da vida você se considerou escritor? Como acho que são duas perguntas distintas, vou começar respondendo a segunda. Desde criança sempre tive muito contato com livros, revistas e jornais em casa, e o interesse pela leitura e pela escrita surgiu naturalmente. Lembro de começar a escrever histórias em quadrinhos, por puro exercício lúdico, e de em algum momento passar a escrever textos mais longos, mas sem maiores pretensões a não ser me divertir. Depois de muita leitura de Monteiro Lobato no fim da infância, descobri no começo da adolescência o Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. E logo passei para Dom Casmurro, de Machado, para a poesia de Manuel Bandeira, para Rubem Fonseca etc. A necessidade de me expressar por meio da escrita nasceu dessas leituras iniciais e com o tempo se tornou algo mais sério e fundamental, levando-me a escolher a profissão de jornalista. Não sei se hoje poderia me considerar escritor, pois essa afirmação talvez implicasse numa relação profissional com a atividade literária, o que não é uma realidade para mim (sou empregado público federal). Diria que sou um escritor não-profissional: a literatura tem uma presença central na minha vida, estou o tempo todo pensando em literatura e eu a considero minha principal atividade, mesmo quando estou me dedicando muito mais à leitura do que à escrita propriamente dita, como é o caso atualmente. Já quanto ao processo criativo (o modus operandi da pergunta), a quebra da rotina costuma ser a mola propulsora mais frequente para o nascimento de um texto novo. Também me inspiram ocorrências do dia-a-dia, fatos históricos, lugares, minha mulher e música. Em geral o texto começa com uma anotação breve, uma associação de ideias ou de palavras, que depois será ampliada e reelaborada exaustivamente, até que um resultado satisfatório seja alcançado. Alguns textos exigem mesmo uma pesquisa aprofundada em textos alheios, o que permite descartar definitivamente aquela ideia convencional da “inspiração poética”. Sua poesia é herdeira tanto da tradição modernista quanto da literatura de cordel. Como você define a sua obra? Trabalho com literatura de cordel, mas considero o cordel um gênero poético ou modelo formal como qualquer outro, à disposição do poeta tanto quanto, por exemplo, o haicai, o poema-piada, o poema visual, o poema sonoro ou o soneto. Acho um exercício bem interessante seguir uma forma literária fixa preexistente, como é a do cordel. As estruturas básicas da literatura de cordel (geralmente composta em estrofes de seis, sete ou dez versos, de sete ou dez sílabas, com variações a partir desses modelos) permeiam o inconsciente coletivo brasileiro há 486

muitíssimo tempo. No século XVI, quando era proibido publicar livros aqui e poucas eram as obras impressas que vinham de Portugal para a Colônia, quase toda a poesia brasileira se resumia a essa narrativa oral rimada e narrativa que remonta à Idade Média, com o romance de cavalaria ibérico ou o cantar de escárnio. Para poetas que produzem numa época em que a poesia tem audiências cada vez menores, é vantagem tática poder lançar mão de uma forma literária que apresenta as palavras ao leitor ou ao ouvinte numa estrutura formal com a qual ele, por antecipação, já está relativamente familiarizado (isso também acontece no rap, por exemplo). Considero o cordel uma expressão popular dinâmica, que se transforma para acompanhar a época atual. Na minha escrita, a poesia de cordel, sem perder as características poéticas que lhe são próprias, se investe da variedade de influências que recebi em minha trajetória de leitor e escritor de poemas (das várias gerações modernistas brasileiras e seus desdobramentos às letras de canções da música popular). Tento fazer um cordel que tenha as minhas influências, que não siga totalmente a forma tradicional. Que possa incluir elementos que extraio dos poetas modernistas, como a rima toante de João Cabral de Melo Neto. O cordelista tradicional não aceita a rima toante. Descobri depois que na Idade Média a rima do romanceiro, que foi o tipo de literatura oral que depois deu origem ao cordel brasileiro, era frequentemente toante também. Às vezes, quando mostro um cordel que escrevi para um cordelista tradicional, ele não aprova; quando mostro para um poeta erudito ou acadêmico, ele também não se interessa. O cordel que eu faço fica numa fronteira, ele não é considerado nem cordel pelos cordelistas, nem poesia pelos literatos. E essa é uma experiência que me interessa, de um objeto híbrido, inclassificável. Desde que comecei a ter contato com poesia eu sempre gostei de poesia experimental, do concretismo e outras produções de vanguarda, mas logo descobri que não queria escrever assim, porque, de certo modo, não tão é difícil escrever de forma hermética, escrever uma literatura para iniciados. Eu queria escrever uma literatura que tivesse essas referências todas que tenho, de arte de vanguarda, mas que também fosse acessível a uma pessoa que não é iniciada, que meu poema pudesse ser lido por uma pessoa que não tenha o hábito de ler poesia. Claro que sem abrir mão da qualidade. É um equilíbrio complexo, que tem que ser buscado, entre inovação, experimentalismo e, ao mesmo tempo, comunicabilidade e simplicidade. O que eu busquei até agora com meus livros, seja de cordel, seja de poesia foi isso: explorar as minhas experiências com poesia modernista, poesia de invenção, concretismo, poesia marginal e poesia brasileira dos anos 90, e fundi-las com a minha subjetividade. Você vê traços em comum entre a tradução (como você a pratica) e a escrita autoral? Ainda me considero um tradutor iniciante, inédito, já que nada do que traduzi foi oficialmente publicado. Essa situação deve mudar agora em 2016, com a publicação de um livro do poeta colombiano Rómulo Bustos Aguirre, traduzido por mim, e de um livro de contos do argentino Luciano Lamberti, traduzido a quatro mãos por mim e pelo poeta Rafael dos Prazeres. Minha relação com a tradução literária vem desde cedo, do contato com o trabalho de Augusto e Haroldo de Campos, que além de serem poetas se dedicaram intensamente à tradução de poesia, em publicações bilíngues sempre acompanhadas de uma reflexão sobre o fazer 487

tradutório e os variados graus de invenção e criação que ele envolve. Assim, de certa maneira, por causa desses poetas-tradutores, ler poesia sempre esteve muito próximo de pensar sobre tradução. Mas só vim a despertar para o exercício da tradução literária muito recentemente, depois de viagens à Argentina e à Colômbia, para participar de festivais de literatura. Ao conhecer o trabalho de inúmeros poetas e escritores hispano-americanos, decidi traduzir alguns deles para melhor compreender seus textos. Voltando dessas viagens, comecei a estudar espanhol seriamente, e até comecei o curso de Licenciatura nesse idioma na Universidade Federal do Espírito Santo. Para mim, a prática de tradução funciona ao mesmo tempo como um exercício de interpretação mais aprofundada dos textos lidos e como uma forma de escritura que enriquece meu trabalho literário pessoal. Com essa mesma preocupação, fiz meu mestrado na Ufes, concluído em 2016, sobre a presença das ideias de interpretação e tradução em dois contos do argentino Ezequiel Martínez Estrada, e como parte da pesquisa traduzi esses dois contos (“Marta Riquelme” e “Un crimen sin recompensa”). A pesquisa sobre diversas linhas de reflexão teórica a respeito da tradução literária me levou a constatar que, como a pergunta sugere, existem, sim, traços em comum entre a escrita autoral e a tradução. A grande diferença é que o tradutor cria o texto traduzido não a partir de sua própria imaginação, mas a partir de outro texto preexistente (o original). Enquanto o escritor ou poeta de um texto original, em tese, não tem limites definidos para o que ele pode executar na página em branco, o tradutor deve se ater às restrições impostas pelo texto preexistente, por sua forma, seu tom, seu conteúdo, caso contrário o produto de seu trabalho não será uma tradução, mas um pastiche, uma recriação, um novo texto. O tradutor trabalha, por assim dizer, não com a página em branco, mas com a página já preenchida. Seu livro Macromundo (2010) é uma espécie de continuação de Microafetos (2005), que ganhou uma segunda edição em 2015. Podemos esperar uma trilogia? Esses livros foram escritos praticamente ao mesmo tempo. Foi a minha primeira experiência em poesia, minha iniciação, minha aprendizagem do verso, minha oficina de criação. À medida que ia escrevendo os poemas, ainda sem saber se eles dariam num livro ou que título teria esse livro, eu mantinha a preocupação de que houvesse uma temática comum a todos eles, queria me ater a uma certa estética. Quando fui lançar o primeiro livro, tive que selecionar o material para ele. Depois, com o material que sobrou, acrescentei mais uns textos novos e fiz Macromundo. Se o primeiro livro tinha sido em torno da ideia de “micro”, o segundo seria o avesso disso, dando continuidade à mesma poética, mas com outro foco. Procurei, com Microafetos e com Macromundo, manter uma estética que permeasse todos os poemas, que fosse herdeira de tudo o que eu li e gostei, mas também que tivesse a minha personalidade, o meu toque na mistura que faço de alguns elementos. Pego um pouco do humor de Leminski, um pouco do “coisismo” de Manoel de Barros, da secura de João Cabral de Melo Neto, um pouco daqui e dali, e tento montar um poema que seja como os deles, mas sem me limitar à linguagem desses poetas. Dentro dessa proposta, escrevi uns duzentos poemas, dos quais foram selecionados para publicação, nos dois livros, um total de setenta e nove textos. Por ora, acredito que esse projeto está esgotado. Penso que os dois livros poderiam ter sido um só, mas na época não tive oportunidade de fazer isso. 488

Um dia quero em vê-los editados no mesmo volume, cairia muito bem. Como você vê a recepção de sua obra? Depois de três anos sem publicar e sem ter livros disponíveis para venda e para circulação, eu já tinha quase esquecido das surpresas que um escritor tem diante das leituras variadas que são feitas a partir de seu trabalho. Recentemente, Microafetos foi reeditado pela Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo, e desde então tenho recebido comentários interessantíssimos de leitores que não conheceram a primeira edição. Um jovem poeta de Belo Horizonte, por exemplo, fez uma associação entre a primeira estrofe do livro e as atuais ocupações de escolas por estudantes secundaristas, algo que jamais teria passado pela minha cabeça. Algo que me deixa muito satisfeito é ouvir comentários de alguém que não tem o hábito de ler poesia, leu meu livro e diz que gostou ou entendeu alguma coisa. Escrever é como lançar ao mar uma mensagem na garrafa, e é uma grande satisfação quando ela encontra um leitor atento, que percebe e destaca o humor presente no livro, como Roberto Amaral (http://pierremenardiando.blogspot.com. br/2016/05/os-microafetos-de-wladimir-caze.html), ou que consegue enxergar uma narrativa comum subjacente a todos os poemas, como Pedro Demenech (https://pedrodemenech.wordpress.com/2016/05/12/microafetos-de-wladimir-caze-para-tempos-cibernetios/). Registros de recepção como esses são para mim um grande incentivo a prosseguir na dura lida com as palavras. Você está escrevendo algum livro no momento? Estou, já há bastante tempo, às voltas com um experimento de ficção em prosa poética. Conta a história de um habitante do sertão nordestino que migra para uma grande metrópole pós-industrial. Inicialmente essa foi a forma que encontrei para digerir os três anos e meio que vivi em São Paulo, aquela cidade antropofágica zoofantástica. Mas, com o avançar da escrita, o projeto se tornou mais complexo e ambicioso, abarcando temas como migrações, urbanidade, violência e questões ambientais. Já tenho várias páginas escritas, estou sempre pensando sobre esse livro e lendo coisas relacionadas a esse projeto. Tenho pesquisado, de forma muito livre e indisciplinada, sobre a história das migrações nordestinas para São Paulo, a história de São Paulo, a história das secas, a história do Nordeste... São pesquisas que me dão elementos para a escrita, mas ainda estou, aos poucos, desenvolvendo o texto da maneira como tenho em mente. Quais os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje? Prefiro me restringir à publicação de poesia, que acompanho com mais atenção. Como o público de poesia é minúsculo, as grandes editoras, com raríssimas exceções, não investem na publicação de novos autores, apenas nos consagrados. Assim, a publicação de poesia se tornou um negócio restrito a um grupo de pessoas, que montam revistas, jornais e editoras de pequeno porte para veicular toda uma produção de qualidade que existe hoje no país. Esse fato não é necessariamente ruim para a poesia, pois, sem a preocupação de agradar a um público e a um mercado, sem visar lucro, os poetas têm total liberdade de ousar. Como não depende de vendagem, não depende do gosto do leitor, a poesia fica livre para 489

se reinventar e manter em voga o seu princípio básico, que é a inovação. Com as novas tecnologias e o barateamento dos custos de edição, esta deixou de ser uma preocupação inibidora ou paralisante. O desafio maior está em distribuir e fazer essa poesia chegar a seus potenciais leitores ou ouvintes interessados, daí vale recorrer a todos os meios disponíveis, como, por exemplo, a internet, os saraus e a troca de livros com outros escritores. O que você acha dos escritores brasileiros contemporâneos? Ou, afastando a pergunta de nomes específicos, para pensar a poesia brasileira atual como um todo: o que você vê? Quem acompanha a poesia contemporânea com atenção percebe que ela não pode ser sintetizada numa única definição, num rótulo. Ela é muito diversificada, múltipla, existem diversas vertentes que correm em paralelo e que convivem harmonicamente ou desarmonicamente: vertentes mais clássicas, formalistas, vertentes derivadas do concretismo, da poesia marginal. Existem poetas contidos, cerebrais, e outros extravagantes, delirantes, na linhagem de Roberto Piva, ou uma poesia experimental, conceitual, feita por poetas que também são acadêmicos, ou ainda a poesia lírica, que permanece através dos tempos e é praticada até hoje. Fala-se muito em marasmo ou decadência da literatura, mas isso não é verdade. Quem procurar bons autores vai encontrar muitos, no romance, no conto, na poesia. Eu poderia citar inúmeros poetas jovens em atividade, não só nos costumeiros centros de produção literária (São Paulo, Rio, Porto Alegre, Curitiba etc.), mas em estados como Ceará (Flavio Caamaña), Piauí (Adriano Lobão Aragão, Demetrios Galvão), Maranhão (Reuben da Cunha Rocha), Espírito Santo (Lucas dos Passos, Rodrigo Caldeira) e Bahia (Sandro Ornellas). Como você vive o ato de recitar? Recitais de literatura são um tipo de evento indispensável à maneira como a literatura contemporânea circula, porque, nesses eventos, mesmo quem não costuma ler livros de escritores não-consagrados acaba por ter algum contato, ainda que rápido, com o trabalho de um autor, ao escutar um trecho de um poema ou um parágrafo de um conto, e, assim, pode vir a se interessar em conhecer melhor aquela obra. O recital é um momento de expressão artística e de divulgação de um trabalho. Para mim, a possibilidade de oralização de meus textos influencia a própria escrita, pois no momento da criação já procuro dar a eles uma musicalidade e uma sonoridade a ser explorada na leitura em voz alta. Isso é óbvio no caso da literatura de cordel, mas também se aplica a tudo o que escrevo: uma certa cadência da oralidade comanda o ritmo das palavras no texto. Percebemos que você é um escritor engajado politicamente, tanto nos livros quanto nas redes sociais. Repetindo a pergunta de Hölderlin, adaptando-a para o contexto atual: para que poetas em tempos de indigência?  Não me parece que os livros que publiquei até agora manifestem claramente questões políticas ou sociais. O crítico Malcolm McNee destaca essa característica na leitura que faz de Microafetos e Macromundo, da qual eu incluí uma citação na contracapa da segunda edição do primeiro livro. McNee escreve: “Esquivando-se explicitamente de questões de lugar e identidade, a poética ambiental de Cazé convoca a existência primordial em escala microscópica 490

e cósmica” (tradução minha de um trecho extraído do livro de 2014, The Environmental Imaginary in Brazilian Poetry and Art, ou “O imaginário ambiental na poesia e na arte do Brasil”). Em Microafetos e Macromundo, a presença da natureza não é colocada (pelo menos não explicitamente) em termos de preocupações ambientais ou ecológicas, o que seria uma possível leitura política. É claro que o próprio fato de escrever poesia já é por si só uma ação política, considerando que a poesia se faz com uma certa desautomatização da língua e da linguagem que permite lançar novos olhares sobre as coisas e o mundo. Ao subverter o que o fascismo da língua nos “obriga a dizer” (Barthes), a poesia faz emergir um tipo de pensamento que, sendo imprevisível, tem um caráter político, de contestação da evidência imediata, de subversão do óbvio. Porém, nos meus livros, se alcancei algum êxito nesse intento, ele está mais no nível da forma e da linguagem, não tanto no da temática dos poemas. Nas redes sociais, em tempos “normais”, por assim dizer, tendo a fazer poucas postagens sobre política, e muito mais sobre literatura, música, tradução e as outras duas ou três áreas do saber que me interessam. É a urgência do momento atual que me obriga a modificar esse meu comportamento das redes, e acredito que foi isso o que vocês viram na minha linha-do-tempo. Estamos vivendo um golpe parlamentar, orquestrado durante todo o ano de 2015, com a participação de políticos corruptos, da mídia e de setores do judiciário, do empresariado e do capital financeiro, com o objetivo de interromper a normalidade institucional para suspender as investigações contra a corrupção e levar ao poder um projeto derrotado nas eleições de 2014, um projeto neoliberal, conservador, retrógrado, com certo viés autoritário. É uma situação inaceitável. Num momento desses, é crucial tomar um posicionamento e propagar o máximo de informação possível, para tentar levar as pessoas às ruas e conter as tentativas de legitimação a posteriori desse governo provisório ilegítimo. A poesia, a arte e a cultura sempre serão meios de mobilizar a sensibilidade, de resistir culturalmente à indigência política e intelectual que ameaça varrer do mapa conquistas democráticas essenciais alcançadas pelo país nas últimas décadas.

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Esta obra foi composta na tipografia Directa Serif, de Ricardo Esteves, corpo 10/ 14 e impressa em Papel Pólen Soft 80gr na cidade de Vitória no mês de agosto de 2020.

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