História da literatura e ciência da literatura
 9788542104790

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walter benjamin história da literatura e ciência da literatura tra d u ç ã o p o sfá cio

helano ribeiro

manoel ricardo de lima

C o p y rig h t d a tradução © 2 0 16 H elano R ibeiro D o original alem ão “ Literaturgeschichte und Literaturwissenschaft” em Gesammelte Werke II. Frankfurt am Main: Zweitausendeins, 2011. p. 244-249. T odos os direitos desta edição reservados a V iveiros de C astro E d itora Ltda. Este livro segue as norm as do A cordo Ortográfico da Lín gua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. Coordenação editorial Isad o ra Travassos Produ ção editorial E d uard o Süssekind R o d rigo Fontoura V icto ria Rabello R evisão T ito L ívio C ru z R om ão

C IP -B R A S IL . C ATALO GAÇÃO N A PU BLIC AÇÃ O SIN D ICA TO NA CIO N A L DOS E D ITO RES DE LIV R O S, RJ

B416I1 Benjamin, Walter História da literatura & ciência da literatura / Walter Benjamin ; tradução Helano Ribeiro ; Manoel Ricardo de Lima. -1. ed. - Rio de Janeiro : 7 Letras, 2016. Tradução de: Literaturgeschichte und literaturwissenschaft i s b n 978-85-421-0479-0 1 . Literatura - História e crítica. 2. Ensaio alemão. I. Ribeiro, Helano. II. Lima, Manoel Ricardo de. III. Título. 16-34375

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2016 V iveiros de C astro E d itora Ltda. R u a V isco n d e de P irajá, 580/sl. 320 - Ipan em a R io de Janeiro -

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Sumário

Literaturgeschichte und Literaturwissenschaft (1931)

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História da literatura e ciência da literatura (1931)

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POSFÁCIO

Ler com Walter Benjamin Manoel Ricardo de Lim a

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Literaturgeschichte unú Literaturwissenschaft (1931)

história da literatura e ciência da literatura (1931)

Immer wieder wird man versuchen, die Geschichte der einzelnen Wissenschaften im Zuge einer in sich geschlossenen Entwicklung vorzutragen. Man spricht ja g ern von autonomen Wissenschaften. Und wenn mit dieser Formei auch zunachst nurdas begriffliche System der einzelnen Disziplinen gemeint ist - die Vorstellung von der Autonomie gleitet doch ins Historische leicht hinüber undführt zu dem Versuch, die Wissenschaftsgeschichte jeweils ais einen selbstandig abgesonderten Verlauf aufierhalb des politisch-geistigen Gesamtgeschehens darzustellen. Das Recht, so vorzugehen, mag hier nicht debattiert werden; unabhàngig von der Entscheidung über diese Frage bestehtfür einen Querschnitt durch den jeweiligen Stand einer Disziplin die Notwendigkeit, den sich ergebenden Befund nicht nur ais Glied im autonomen Geschichtsverlaufe dieser Wissenschaft, sondern vor aliem ais ein Element dergesamten Kulturlage im betreffenden Zeitpunkte aufzuzeigen. 10

Frequentemente se procurará apresentar a história das diferentes ciências no contexto de um desenvolvi­ mento fechado em si. Fala-se facilmente em ciências autônomas. E ainda que, de início, a fórmula remeta apenas ao sistema conceituai das diferentes disciplinas - a ideia da autonomia desliza sem dificuldade para o histórico e conduz à tentativa de representar a história da ciência sempre como um decurso autonomamente isolado, independente, destacado de todo o cenário político-intelectual. O direito de assim proceder não precisa ser debatido aqui; independentemente da decisão sobre esta questão, existe, para um recorte através de cada estágio de uma disciplina, a necessi­ dade de mostrar a constatação resultante não apenas como componente do decurso histórico autônomo dessa ciência, mas, sobretudo, como um elemento de toda a situação cultural no respectivo momento. Se, como demonstraremos a seguir, a História da

Wenn, wie imfolgenden dargelegt wird, die Literatur­ geschichte mitten in einer Krise steht, so ist diese Krise nur Teilerscheinung einer sehr viel allgemeineren. Die Literaturgeschichte ist nicht nur eine Disziplin, son­ dem in ihrer Entwicklung selbst ein Moment der allgemeinen Geschichte. Das zweite ist sie gewifi. Aber ist sie wirklich das erste? Ist Literaturgeschichte eine Disziplin der Geschichte? In welchem Sinn das zu verneinen ist, wird sich im folgenden ergeben; es ist nicht mehr ais billig mit dem Hinweis zu beginnen, dafi sie áurchaus nicht, wie ihr Name vermuten liefie, von Anfang an im Rahmen der Geschichte aufgetreten ist. Ais Zweig der schõngeistigen Ausbildung, eine A rt angewandter Geschmackskunde, stand sie im achtzehnten Jahrhundert zwischen einem Lehrbuche der Àsthetik und einem Buchhãndlerkatalog. Ais erster pragmatischer Literarhistoriker tritt im Jahre 1835 Gervinus mit dem ersten Bande seiner „Geschichte der poetischen

Nationalliteratur

der Deutschen“ hervor. E r zahlte sich der historischen Schule zu; die grofien Werke sind ihm „historische Ereignisse, die Dichter Genien der Aktivitãt

Literatura se encontra em meio a uma crise, esta nada mais é que fenômeno parcial de uma crise muito mais geral. A História da Literatura não é ape­ nas uma disciplina, mas, em seu próprio desenvolvi­ mento, um momento da História Geral. Sem dúvida, a História da Literatura é tal momento. Mas será realmente uma disciplina? A História da Literatura é uma disciplina da História? Adiante, verificaremos em que sentido a resposta é negativa; nada mais óbvio que começar com a indi­ cação de que ela, ao contrário do que seu nome faria supor, não surgiu, absolutamente, desde o início no âmbito da História. Com o ramo da formação profis­ sional beletrista, uma espécie de Estética Aplicada, situava-se, no século

XVIII,

entre um manual de

Estética e um catálogo de livreiros. Em 1835, Gervinus surge como o primeiro historia­ dor literário pragmático, apresentando o volume inicial da sua “Geschichte der poetischen Nationalliteratur der Deutschen” [História da Literatura Nacional Poética dos Alemães], Reconhecia-se como perten­ cente à Escola Histórica; as grandes obras são para ele “eventos históricos, os poetas, gênios da atividade, e os juízos sobre eles, repercussões públicas de grande

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und die Urteile übersie weittragende õffentliche Nachwirkungen. Diese Analogie zur Welthistorie bleibt so innig mit der individuellen Haltung von Gervinus verquickt wie sein Verfahren, die fehlenden kunstphilosophischen Gesichtspunkte durch ,Vergleichung( der grofien Werke mit ,verwandten zu ersetzen. “ Das wahre Verhãltnis zwischen Literatur und Geschichte konnte dies glanzende aber methodisch naive Werk sich nicht zum Problem machen, geschweige denn das von Geschichte zu Literaturgeschichte. Überblickt man vielmehr die Versuche bis zur Jahrhundertmitte, so zeigt sich, wie durchaus ungeklàrt die Stellung der Literaturgeschichte, sei es in, sei es auch nur zur His­ torie geblieben war. Unter Münnern wie Michael Bernays, Richard Heinzel, Richard M aria Werner trat a u f diese erkenntniskritische Ratlosigkeit der Rückschlag ein. M ehr oder weniger vorsàtzlich gab man die Orientierungan der Geschichte auf, um sie mit einer Anlehnungan die exakte Naturwissenschaftzu vertauschen. Wàhrend vorher selbst bibliographisch gerichtete Kompilationen eine Vorstellung vom Gesamtverlaufe erkennen liefien, ging man nun verbissen a u f Einzelarbeit, a u f das „Sammeln und Hegen“ zurück. Allerdings hat diese Zeit positivistischer Doktrin eine Fülle

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alcance. A analogia com a História Mundial perm a­ nece tão intrinsecamente amalgamada à postura individual de Gervinus quanto seu procedimento de substituir os aspectos filosófico-artísticos ausentes por uma comparação’ das grandes obras com outras ‘afins’”. Essa obra brilhante, mas ingênua metodica­ mente, não pôde tomar para si a verdadeira relação entre Literatura e História como um problema, e muito menos aquela relação existente entre História e História da Literatura. Se, ao contrário, lançarmos uma vista de olhos sobre as tentativas feitas até mea­ dos do século, mostra-se, então, quão indefinida per­ manecera a posição da História da Literatura, seja na História, seja com relação à História. Entre homens como Michael Bernays, Richard Heinzel e Richard Maria Werner, surgiu a reação a essa perplexidade epistemológica. De modo mais ou menos deliberado, renunciou-se à ênfase na História, para permutá-la com base nas Ciências Naturais. Se, anteriormente, mesmo compilações bibliográficas revelavam uma ideia do decurso geral, retomavam-se agora obsti­ nadamente trabalhos isolados, o “compilar e o con­ servar”. Entretanto, esta época de doutrina positivista produziu uma gama de Histórias da Literatura para

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von Literaturgeschichten fü r den bürgerlichen Hausgebrauch ais Komplement der strengen Forscherarbeit hervorgebracht. Aber das universalhistorische Pano­ rama, das sie entrollen, war nichts ais eine Art darstellerischen Komforts fü r Verfasser und Leserschaft. Die Scherersche Literaturgeschichte mit ihrem Unterbau exakter Tatsachen und ihren grofien rhythmischen Periodisierungen von drei zu drei Jahrhunderten lafit sich sehr wohl ais Synthese der beiden Grundrichtungen damaliger Forschung verstehen. M it Recht hat man die kulturpolitischen und organisatorischen Absichten, aus denen dieses Werk hervorging, betont und die Makart-Vision eines kolossalen Triumphzugs idealer deutscher Gestalten, die ihm zugrunde liegt, aufgezeigt. Scherer lafit die tragenden Figuren seiner kühnen Komposition „bald aus derpolitischen, bald aus der literarischen, religiõsen oderphilosophischen Atmosphare entspringen, ohne den Eindruck hõherer Notwendigkeit, ja auch nur der àufierlichen Konsequenz zu erwecken, er durchkreuzt ihre Wirkungen mit solchen der Einzelwerke, der verabsolutierten Ideen oder Dichtungsgestalten, wodurch ein farbiger Wirrwarr, aber nichts weniger ais eine geschichtliche Ordnung entsteht. “

o uso doméstico burguês como complementos ao rigoroso trabalho dos pesquisadores. Mas o pano­ rama histórico universal que desdobram nada mais era que uma espécie de comodidade expositiva para autores e leitores. A História da Literatura concebida por Scherer, com seu fundamento calcado em fatos exatos e com grandes periodizações rítmicas de três em três séculos, pode ser compreendida como síntese de ambas as tendências básicas da pesquisa de então. Com direito, acentuaram-se as intenções político-culturais e organizacionais das quais a obra procede, e mostrou-se a visão makartiana de um gigantesco cortejo triunfal de vultos alemães ideais que a fundamentam. Scherer faz brotar as expres­ sivas figuras de sua audaciosa composição “ora da atmosfera política, ora da atmosfera literária, reli­ giosa ou filosófica, sem despertar a impressão de maior necessidade ou até mesmo apenas de coe­ rência externa, ele cruza os efeitos de sua com posi­ ção com os de cada obra isoladamente, com os das ideias absolutizadas ou das configurações literárias, através do que surge uma confusão de matizes, mas nada menos que um ordenamento histórico”.

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Was sich hier vorbereitet, ist derfalsche Universalismus der kulturhistorischen Methode. M it dem von Rickert und Windelband gepragten Begriff der Kulturwissenschaften vollendet sich diese Entwicklung; ja der Sieg der kulturgeschichtlichen Anschauungsart war ein so unumschrànkter, dafi nun sie mit Lamprechts „Deutscher Geschichte“ zur erkenntnistheoretischen Grundlage der pragmatischen wurde. M it der Proklamation der „Werte“ war die Geschichte ein fü r allemal im Sinn des Modernismus umgefàlscht, die Forschung nur der Laiendienst an einem Kult geworden, in dem die „ewigen Werte“ nach einem synkretistischen Ritus zelebriert werden. Es ist immer denkwürdig, wie kurz von hier der Weg bis zu den rabiatesten Verirrungen der neuesten Literarhistorie gewesen ist; welche Reize die entmannte Methodik den widerwartigsten Neologismen hinter der goldnen Pforte der „Werte“ abzugewinnen verstand: „Wie alie Poesie zuletzt a u f eine Welt der ,wortbaren Werte hinzielt, so bedeutet sie in form aler Beziehung eine letzte Steigerung und Verinnerlichung der unmittelbaren Ausdruckskràfte der Rede. “ Wohl oder übel wird man nach dieser Mitteilung schon fühllos fü r den Chock der Erkenntnis

O que aqui se prepara é o falso universalismo do método histórico-cultural. Com

o conceito

de Ciências da Cultura, cunhado por Rickert e Windelband, consuma-se esse desenvolvimento; por que não dizer, a vitória desse tipo de concepção his­ tórico-cultural foi de tal modo irrestrita, que agora ela se torna, com a “Deutsche Geschichte” [História Alemã] de Lamprecht, a base teórico-epistemológica da concepção pragmática. Com a proclamação dos “valores”, a História estava, de uma vez por todas, deturpada no sentido do Modernismo, a pesquisa tornara-se um mero ofício amador num culto em que os “valores eternos” são celebrados segundo um rito sincrético. É sempre memorável quão curto é o cam i­ nho daí até os desvios mais brutais da mais recente História da Literatura; que estímulos a metodologia castrada soube encontrar nos mais repugnantes neologismos por detrás do pórtico dourado dos “valo­ res” : “assim como toda poesia almeja, por fim, um mundo dos valores ‘verbalizáveis’, ela significa, numa relação formal, uma intensificação e interiorização última das forças de expressão imediatas do dis­ curso”. Após esse aviso, bem ou mal, o indivíduo já se tornará insensível ao choque do reconhecimento

geworden sein, dafi der Dichter selbst diese Jetzte Steigerung und Verinnerlichung" ais „Wortungs-Lust“ erlebe. Es ist die gleiche Welt, in der das „Wortkunstwerk“ zu Hause ist, und selten hat ein provoziertes Wortsogrôfien Adel an den Taggelegt, wie in dem Falle „Dichtung“. M it alledem macht jene Wissenschaft sich wichtig, welche immer durch die „Weite‘' ihrer Gegenstànde, durch das „synthetische“ Gebaren sich verràt. Der geile Drang aufsgrofie Ganze ist ihr Unglück. Man hõre: „M it überwaltigender Kraft und Reinheit treten die geistigen Werte hervor... ,Ideen, welche die Seele des Dichters schwingen lassen und zur symbolischen Gestaltung reizen. Unsystematisch und doch deutlich genug lafit uns der Dichter in jedem Augenblickfühlen, welchem Werte oder welcher Wertschicht er den Vorzug gibt; vielleicht auch, welche Rangordnunger den Werten überhaupt zuerkennt. “ In diesem Sumpfe ist die Hydra der Schulàsthetik mit ihren sieben Kõpfen: Schópfertum, Einfühlung, Zeitentbundenheit, Nachschõpfung, Miterleben, Illusion und Kunstgenufi zu Hause. Wer sich in der Welt ihrer Anbeter umzutun wünscht, hat nur das neueste reprasentative Sammelbuch1 zur Hand zu nehmen, in dem die deutschen Literarhistoriker der i

Philosophie der Literaturwissenschaft. Hrsg. von Em il Ermatinger. Berlin: Junker und Dünnhaupt Verlag, 1930. X, 478 S.

de que o próprio poeta vivência essa “ intensificação e interiorização última” como “vontade de verbaliza­ ção”. É o mesmo mundo em que a “obra de verbaliza­ ção” está em casa, e raramente uma palavra provocadora revelou tanta nobreza como no caso de “Poesia”. Com tudo isto aquela ciência se torna importante, ela que sempre se trai pela “amplidão” de seus objetos, pelo comportamento “sintético”. O ímpeto vigoroso para o grande todo é seu infortúnio. Queira-se escu­ tar: “Os valores espirituais sobressaem com pureza e força arrebatadoras... ‘Idéias’ que fazem estremecer a alma do poeta e estimulam a configuração poética. Não de modo sistemático, mas suficientemente claro, o poeta nos deixa sentir a todo momento que valor ou que camada de valor ele privilegia; e quiçá também que hierarquia ele atribui aos valores.” Nesse pântano, a hidra da Estética Acadêmica com suas sete cabe­ ças: atividade criadora, empatia, abstração tempo­ ral, recriação, convivência, ilusão e fruição artística, encontra-se em casa. Quem desejar conhecer melhor o mundo de seus idólatras, necessitará tão-somente recorrer à mais recente antologia representativa em que os atuais historiadores alemães da literatura

Gegenwart sich Rechenschaft von ihrer Arbeit zu geben suchen, und dem die obigen Zitate entnommen sind. Womit allerdings nicht gesagt sein soll, dafi seine Mitarbeiter solidarisch füreinander haften; gewifi heben sich Autoren wie Gumbel, Cysarz, Muschg, Nadler von dem chaotischen Grunde, aufwelchem sie hier erscheinen, ab. Um so bezeichnender aber, dafi selbst Mãnner, die sich a u f wissenschaftliche Leistungen von Rang zu berufen vermõgen, wenig oder nichts von der Haltung, die die frühe Germanistik geadelt hat, in der Gemeinschaft ihrer Fachgenossen zur Geltung zu bringen vermocht haben. Die ganze Unternehmung ruft fü r den, der in Dingen der Dichtungzu Hause ist, den unheimlichen Eindruck hervor, es kàme in ihr schõnes, festes Haus mit dem Vorgeben, seine Schàtze und Herrlichkeiten bewundern, zu wollen, mit schweren Schritten eine Kompanie von Sõldnern hineinmarschiert, und im Augenblick wird es klar: die scheren sich den Teufel um die Ordnung und das Inventar des Hauses; die sind hier eingerückt, weil es so günstigliegt, und sich von ihm aus ein Brückenkopf oder eine Eisenbahnlinie beschiefien lafit, deren Verteidigung im Bürgerkriege wichtig ist. So hat die Literaturgeschichte sichs hier im Haus der Dichtung eingerichtet, weil aus der Position des „Schõnen“,

procuram prestar contas de seu trabalho, e da qual foram extraídas as citações acima. O que, entretanto, não significa dizer que seus colaboradores responsabilizam-se solidariamente uns pelos outros; por certo, autores como Gumbel, Cysarz, Muschg, Nadler destacam-se da base caótica em que ali aparecem. Mais característico ainda, contudo, é o fato de mesmo homens capazes de sentir-se vocaciona­ dos para realizações científicas de qualidade terem logrado fazer valer, em sua comunidade de espe­ cialistas, pouco ou nada da posição que enobre­ ceu a Germanística em seus primórdios. Todo esse empreendimento suscita, em quem está fam iliari­ zado com as coisas da Poesia, a terrível impressão de que uma companhia de mercenários invade, com passos fortes, sua bela e firme casa, sob a alegativa de quererem adm irar seus tesouros e esplendo­ res, e imediatamente se evidencia: lixam-se para a ordem e o inventário da casa; adentraram-na por­ que desfruta de uma boa localização, e porque dali é possível bombardear uma cabeça de ponte ou uma via férrea, cuja defesa é importante na guerra civil. Assim, a História da Literatura estabeleceu-se na casa da Poesia, porque, a partir da posição do “ Belo”,

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der „Erlebniswerte“, des „Ideellen“ und àhnlicher Ochsenaugen in diesem Hause sich in der besten Deckung Feuer geben lafit. M an kann nicht sagen, dafi die Truppen, die ihnen hier im Kleinkrieg gegenüberliegen, über eine ausreichende Schulung verfügen. Sie stehen unter dem Kommando der materialistischen Literarhistoriker, unter denen der alte Franz M ehring immer noch um Haupteslànge hervorragt. Was dieser M ann bedeutet, belegt jed er Versuch materialistischer Literarhistorie, der seit seinem Tode hervorgetreten ist, von neuem. Am deutlichsten Kleinbergs „Deutsche Dichtung in ihren sozialen, zeit- undgeistesgeschichtlichen Bedingungen“ - ein Werk, das sklavisch alie Schablonen eines Leixner oder Koenig auspinselt, um sie dann allenfalls mit einigen freidenkerischen Ornamenten einzurahmen; ein rechter Haussegen des kleinen Mannes. Indessen ist M ehring Materialist weit mehr durch den

Umfang seiner allgemein-historischen

und wirtschaftsgeschichtlichen Kenntnisse ais durch seine Methode. Seine Tendenz geht a u f M arx, seine Schulung a u f Kant zurück. So ist das Werk dieses Mannes, der ehern an der Überzeugung festhielt,

dos “Valores vivenciais” do “Ideal” e de clarabóias semelhantes, pode-se abrir fogo, nessa casa, com a melhor cobertura. Não se pode afirmar que as tropas, que nessa ofen­ siva permanente lhes fazem face, disponham de bas­ tante treinamento. Elas estão sob o comando dos his­ toriadores da literatura materialistas, entre os quais o velho Franz Mehring ainda se sobressai com sua supe­ rioridade. O que este homem significa volta a ser cor­ roborado por todo ensaio de história literária mate­ rialista publicado desde sua morte. O exemplo mais evidente é o livro de Kleinberg, “Deutsche Dichtung in ihren sozialen, zeit- und geistesgeschichtlichen Bedingungen” [Poesia Alemã em suas Relações com a Sociedade, a História Contemporânea e a História das Ideias], uma obra que pincela servilmente todos os modelos de um Leixner ou Koenig, para então emoldurá-los, quando muito, com alguns ornamen­ tos livre-pensadores; uma verdadeira bênção para o lar do homem modesto. Não obstante, Mehring é materialista muito mais mediante a abrangência de seus conhecimentos de História Geral e Econômica do que através de seu método. Sua tendência remonta a Marx, seu treinamento, a Kant. Assim é a obra deste homem que se ateve implacavelmente à convicção 25

es müfiten „die edelsten Güter der Natiori' unter allen Umstánden ihre Geltung behalten, viel eher ein im besten Sinne konservierendes ais umstürzendes. Aber der Jungbrunnen der Geschichte wird von der Lethe gespeist. Nichts erneuert so wie Vergessenheit. M it der Krise der Bildung wachst der leere Reprasentationscharakter der Literaturgeschichte, der in den vielen popularen Darstellungen am handgreiflichsten zutage tritt. Es ist immer derselbe verwischte Text, der bald in der, bald in jener Anordnung auftritt. Seine Leistung hat mit wissenschaftlicher schon lange nichts mehr zu schaffen, seine Funktion erschõpft sich darin, gewissen Schichten die Illusion einer Teilnahme an den Kulturgütern der schõnen Literatur zu geben. Nur eine Wissenschàft, die ihren musealen Charakter aüfgibt, kann an die Stelle der Illusion Wirkliches setzen. Das hatte zur Voraussetzung nicht nur die Entschlossenheit, vieles auszulassen, sondem die Fahigkeit, den Betrieb der Literaturgeschichte, bewúfit, in einen Zeitraum hineinzustellen, in dem die Zahl der Schreibenden - das sind ja nicht nur die Literaten und Dichter - tagtaglich wachst und das technische Interesse an den Dingen des Schrifttums sich sehr viel dringlicher bemerkbar macht ais das erbauliche.

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de que “os mais nobres bens da nação” deveriam manter sua validez sob quaisquer circunstâncias, e antes um bem - no melhor sentido da palavra - con­ servador que um subversivo. Mas a fonte da juventude da História é alimentada pelo Lete. Nada renova tanto quanto o esquecimento. Com a crise da formação intelectual, aumenta o cará­ ter representativo vazio da História da Literatura, o qual vem a lume da forma mais palpável nas muitas representações populares. É sempre o mesmo texto vago que surge ora nesta, ora naquela configuração. Há tempos que sua performance nada mais tem de científico, sua função exaure-se em causar, a algumas camadas, a ilusão de participarem dos bens culturais das Belas-Letras. Apenas uma ciência que renuncia a seu caráter museológico está apta a colocar o real no lugar da ilusão. Isso teria como premissa não ape­ nas a decisão de omitir muitos aspectos, mas também a capacidade de introduzir a prática da História da Literatura conscientemente em um espaço de tempo em que o número dos que escrevem - afinal estes não são apenas os literatos e poetas - cresce diaria­ mente, e o interesse técnico pelos assuntos da escrita revela-se muito mais premente que o interesse pela

Mit Analysen des anonymen Schrifttums - der Kalender- und Kolportageliteratur z.B. - sowie der Soziologie des Publikums, der Schriftstellerbünde, des Buchvertriebs zu verschiedenen Zeiten kònnten neuere Forscher dem Rechnung tragen, haben es zum Teil auch begonnen. Aber dabei kommt es vielleicht weniger a u f eine Erneuerung des Lehrbetriebs durch die Forschung ais der Forschung durch den Lehrbetrieb an. Denn mit der Krise der Bildung stehtja in genauem Zusammenhang, dafi die Literaturgeschichte die wichtigste Aufgabe - mit der sie ais „Schõne Wissenschaft“ ins Leben getreten ist, - die didaktische namlich, ganz aus den Augen verloren hat. Soviel von den gesellschaftlichen

Umstànden.

Wie hier der Modernismus die Spannung zwischen Erkenntnis und Praxis im musealen Bildungsbeg riff nivelliert hat, so im historischen Bereiche die von Gegenwartigem und Gewesenem, will sagen die von Kritik und Literaturgeschichte. Die Literatur­ geschichte des Modernismus denkt nicht daran, vor ihrer Zeit durch eine fruchtbare Durchdringung des Ehemaligen sich zu legitimieren, sie vermeint, das durch Gõnnerscháft dem zeitgenõssischen Schrifttum gegenüber besser zu kõnnen. Es ist erstaunlich, wie

inspiração. A isto, pesquisadores mais novos pode­ riam fazer jus, e em parte até já iniciaram, através de análises da escrita anônima (p. ex.: a literatura de almanaques e a de colportagem), bem como da Sociologia do público, das agremiações de escritores, do comércio de livros em diversas épocas. Neste caso, todavia, importa muito menos uma renovação do ensino através da pesquisa do que o contrário. Afinal de contas, há uma relação exata entre a crise da for­ mação intelectual e o fato de a História da Literatura ter perdido totalmente de vista sua mais importante tarefa - com a qual iniciara sua vida como “Bela Ciência”

nomeadamente, a tarefa didática.

É o quanto basta no tocante às circunstâncias sociais. Assim como o Modernismo nivelava, aqui, a tensão entre conhecimento e práxis no conceito museológico de formação intelectual, o mesmo ocorria, no domínio histórico, com a tensão entre o presente e o passado, isto é, entre Crítica e História da Literatura. A História Literária do Modernismo não pensa em legitimar-se, antes de seu tempo, por meio de uma fecunda interpenetração do passado, crendo lograr fazê-lo melhor, perante as Letras con­ temporâneas, através de mecenato. É espantoso

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die akademische Wissenschaft hier mit aliem geht, mitgeht. Wenn frühere Germanistik die Literatur ihrer Zeit aus dem Kreise ihrer Betrachtung ausschied, so war das nicht, wie man es heute versteht, kluge Vorsicht, sondem die asketische Lebensregel von Forschernaturen, die ihrer Epoche unmittelhar in der ihr adàquaten Durchforschung des Gewesenen dienten; Stil und Haltung der Brüder Grimm legen Zeugnis ab, dafí die Diatetik, welche solch Werk erforderte, nicht geringer ais die grofien künstlerischen Schdffens gewesen ist. An Stelle dieser Haltung ist der Ehrgeiz der Wissenschaft getreten, an Informiertheit es mit jedem hauptstadtischen Mittagsblatt aufnehmen zu kõnnen. Die heutige Germanistik ist eklektisch, das will sagen durch und durch unphilologisch, gemessen nicht am positivistischen Philologiebegriff der Scherer-Schule sondern an dem der Brüder Grimm, die die Sachgehalte nie aufierhalb des Wortes zufassen suchten und nur mit Schauder von ,durchscheinender‘, ,über sich hinausweisendef literaturwissenschaftlicher Analyse hatten reden hõren. Freilich ist die Durchdringung von historischer und kritischer Betrachtung keiner Generation seitdem in annàhernd àhnlichem Grade gelungen. Und wenn es einen Aspekt gibt, unter welchem die in

como aqui a Ciência acadêmica flerta com tudo, acompanha tudo. Se a antiga Germanística excluía a Literatura de seu campo de observação, não o fazia, como entendemos hoje, por uma questão de sen­ sata prudência, mas devido à conduta ascética de indivíduos dotados de natureza investigativa, que serviam diretamente a sua época, investigando, em consonância com esta, o passado; e o estilo e a pos­ tura dos Irmãos Grim m são testemunho de que a dietética que uma tal obra demandava não era infe­ rior à das grandes criações artísticas. Essa postura deu lugar à ambição da Ciência de concorrer em teor informativo com qualquer jornal vespertino de uma capital. A Germanística atual é eclética, ou seja, completamente afilológica, medida não pelo con­ ceito de Filologia da Escola de Scherer, mas pelo dos Irmãos Grim m , que jamais buscaram compreender os conteúdos fatuais fora da palavra e teriam sen­ tido calafrios, se tivessem escutado falar em análise científico-literária

‘transparente’

‘transcendente’.

Com efeito, desde então nenhuma geração logrou, sequer num grau mais ou menos aproximado, ela­ borar a interpenetração entre a observação histó­ rica e crítica. E se há um ângulo a partir do qual

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vieler Hinsicht isolierte, in einigen wenigen Stücken Hellingrath, Kommerell - bemerkenswerte Geschichtsschreibung der Literatur aus dem Kreise Georges sich mit der akademischen zusammenschliefit, so ist es, dafi sie aufihre A rt den gleichen widerphilologischen Geist atmet. Das Aufgebot des alexandrinischen Pantheons, das aus den Werken der Schule bekannt ist, Virtus und Genius, Kairos und Dãmon, Fortuna und Psyche, steht geradezu im Dienst des Exorzismus von Geschichte. Und das Ideal dieser Forschungsrichtung würe die Aufteilung des ganzen deutschen Schrifttums in heilige Haine mit Tempeln zeitloser Dichter im Innern. Der Abfall von der philologischen Forschung fü h rt schliefilich - und nicht zum wenigsten im George-Kreise - a u f jene Trugfrage, die in wachsendem Mafie die literarhistorische Arbeit verwirrt: wieweit und ob denn überhaupt Vernurift das Kunstwerk erfassen kõnne. Von der Erkenntnis, dafi sein Dasein in der Zeit und sein Verstandenwerden nur zwei Seiten ein und desselben Sachverhalts sind, ist man weit entfernt. Sie zu erõffnen ist der monographischen Behandlung der Werke und der Formen vorbehalten. „Fü r die Gegenwart“, heifit es bei Walter Muschg, „d a rf gesagt werden, dafi sie in ihren wesentlichen Arbeiten nahezu ausschliefilich a u f die Monographie

F"

a Historiografia Literária do Círculo de George, isolada em muitos aspectos e extraordinária em alguns escritos (Hellingrath, Kommerell), se une à Historiografia Acadêmica, isso consiste em ela respi­ rar, à sua maneira, o mesmo espírito antifilológico. O emprego do panteão alexandrino, conhecido a partir das obras dessa corrente, Virtus e Genius, Kairós e Daemon, Fortuna e Psichê, está diretamente a ser­ viço do exorcismo da História. E o ideal desse campo de pesquisa seria a divisão do conjunto das Letras alemãs em bosques sagrados com templos habita­ dos por poetas atemporais. Finalmente, a renúncia à pesquisa filológica conduz - também no Círculo de George - àquela pergunta capciosa que mais e mais perturba o trabalho histórico-literário: até que ponto, e se de fato, a Razão pode apreender a obra de arte. Está-se muito distante da percepção de que sua existência no tempo e o fato de ela ser compreendida são apenas dois lados de uma mesma circunstância. Lançar essa pergunta fica a critério do tratamento monográfico das obras e formas. “Atualmente”, afirma Walter Muschg, “pode-se dizer que, entre os trabalhos mais importantes, ela está voltada quase exclusivamente para a monografia.

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gerichtet ist. Der Glaube an den Sinn einer Gesamtdarstellung ist in dem heutigen Geschlecht in hohem M afi verloren. Statt dessen ringt es mit Gestalten und Problemen, die es in jen er Epoche der Universalgeschichten hauptsàchlich durch Lücken bezeichnet sieht. “ M it den Gestalten und Problemen ringt es - das mag richtig sein. Wahr ist, dafi es vor aliem mit den Werken ringen sollte. Deren gesamter Lebens- und Wirkungskreis hat gleichberechtigt, ja vorwiegend neben ihre Entstehungsgeschichte zu treten; also ihr Schicksal, ihre Aufnahme durch die Zeitgenossen, ihre Übersetzungen, ihr Ruhm. Dam it gestaltet sich das Werk im Inneren zu einem Mikrokosmos oder viel mehr: zu einem Mikroaeon. Denn es handelt sich ja nicht darum, die Werke des Schrifttums im Zusammenhang ihrer Zeit darzustellen, sondern in der Zeit, da sie entstanden, die Zeit, die sie erkennt - das ist die unsere - zur Darstellung zu bringen. Dam it wird die Literatur ein Organon der Geschichte und sie dazu nicht das Schrifttum zum Stoffgebiet der Historie zu machen, ist die Aufgabe der Literaturgeschichte.

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Perdeu-se a crença no sentido de uma exposição geral, em larga escala, no seio da atual geração. Em vez disso, ela luta com formas e problemas, que vê designadas, naquela época das histórias universais, principalmente como lacunas.” Luta com problemas e formas - isso parece correto. A verdade é que ela deveria lutar sobretudo com as obras. É mister que todo o seu ciclo de vida e sua esfera de atuação apare­ çam ao lado de sua gênese com direitos iguais e, por que não dizer, de modo preponderante; portanto, seu destino, sua recepção entre os coetâneos, suas tra­ duções, sua fama. Desta forma, a obra se configura, em seu âmago, num microcosmo ou muito mais: um micro-aión. Pois, afinal de contas, não se trata de apresentar as obras das Letras no contexto de seu tempo, mas no tempo em que elas surgiram, e fazer uma apresentação do tempo que as reconhece, sendo que este é o nosso próprio tempo. Assim a Literatura torna-se um órganon da História; e convertê-la nisso - e não as Letras em matéria da História - é a tarefa da História da Literatura.

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Ler com Walter Benjamin por Manoel Ricardo de Lima

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“Benjamin está aqui. Está escrevendo um ensaio sobre Baudelaire. Há boas ideias no texto. Ele mostra como a pro­ babilidade de uma época sem história distorceu a literatura depois de 48. A vitória em Versalhes da burguesia sobre a comuna sofreu descontos antecipados. Chegou-se a um acordo com 0 mal. Que tomou a form a de uma flor. É útil ler isso. Estranhamente é 0 spleen que permite a Benjamin escrever isto. Ele usa como seu ponto de partida algo que dá 0 nome de aura, que está ligada aos sonhos (devaneios). Diz ele: se você sente um olhar dirigido a você, mesmo nas suas costas, você 0 retribui (!). A expectativa de que aquilo para que você olha olhará de volta para você cria a aura. Supõe-se que isso está em decadência nos últimos tempos, junto com 0 elemento de culto na vida. Benjamin descobriu isso enquanto analisava filmes, onde a aura é decomposta pela reproduzibilidade da obra de arte. Uma carga de misticismo, embora sua atitude seja contra 0 misticismo. Este é 0 modo como 0 entendimento materialista da história é adaptado. É abominável.” BERTO LT B R E C H T

“É preciso impedir que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade.” SILV IN A RO D R IGU ES LOPES

Ler agora o que Walter Benjamin nos deixou como legado de pensamento é, de certa maneira, incorporar a dimensão de sua escrita que se compõe a partir do uso do fragmento e, principalmente, de um conhecimento que tem a ver com montagem. Benjamin é um arquivista movediço do instante, o pensador moderno de um tempo de crise p a r excellence. Aquele que desfia o problema da alego­ ria - do drama barroco até o ensaio sobre Charles Baudelaire e a modernidade - armando o tempo inteiro uma disparidade entre as modificações da linguagem e o que isto implica sobre as condições de vida do homem. Uma reflexão propositiva entre arte, educação e política, no centro nervoso da experiên­ cia circular do sistema de produção do capital como religião e que se engendra, por exemplo, do circo

de Ramón Gómez de la Serna ao teatro de Bertolt Brecht, do gesto e do inseto antissacrificial de Franz Kafka à memória involuntária de Mareei Proust, dos impasses das narrativas de Robert Walser aos aforis­ mos de Karl Kraus etc. As escolhas que Benjamin fez, no começo do século x x , não eram tão óbvias e têm a ver com práticas mais livres e menos burocráticas, nada estratégicas. Práticas que se ligam, diretamente, a um uso deflagrado da atenção; não à toa seus textos não comportam qualquer ideia de conserva em dire­ ção a um resultado conclusivo, ao contrário, suge­ rem a constituição abissal do paradoxo naquilo que ele passa a chamar de “ imagem dialética”. O enfrentamento e o prazer de ler Benjamin se abrem com operações em torno dessa imagem dialé­ tica, para pensar e repensar a lógica impositiva da his­ tória e da modernidade, entre a autonomia e o apa­ relho burguês, ou seja, as passagens da luta de classes para uma luta das imagens. Os exemplos são inúme­ ros e estão espalhados por toda a sua obra, como se pode ler nos fragmentos de Rua de Mão Única. Eles compõem uma espécie de série imprevista de fotogramas da memória, como rememoração, e se organi­ zam através do registro e das lacunas do registro num

fluxo contínuo de escrita que, por sua vez, impõe a operação crítica do Benjamin leitor de “semelhanças imateriais”. Num desses fragmentos, Viagem através da inflação alemã, a certa altura, anota: “as pessoas só têm em mente o mais estreito interesse privado quando agem, mas ao mesmo tempo são determi­ nadas mais que nunca em seu comportamento pelos instintos da massa. E mais que nunca os instintos da massa se tornaram desatinados e alheios à vida.” O crítico cultural Raúl Antelo nos lembra que Benjamin já propunha, por exemplo, para ler a poesia de Charles Baudelaire, que a vida moderna - ou seja, a modernidade - é o fundo dessas imagens dialéticas: o paradoxo e, ao mesmo tempo, a ambivalência. Em Baudelaire, disse Benjamin, há um confronto com a vida moderna como havia um confronto do século x v ii

com a antiguidade. E isto não é senão “uma luta

das imagens que recoloca outro olhar sobre a histó­ ria, talvez o do significante vazio, do sem sentido, da ausência, da falta etc.” Para Raúl Antelo, Benjamin nos faz, de modo amplo, revisar também as contra­ dições de Baudelaire, porque é fato - sabemos - que Baudelaire não fala em nenhum momento da arte moderna, mas sim da vida moderna.

É nesse ensaio, em torno da poesia e do pensa­ mento de Charles Baudelaire, e escrito ao lado de Brecht, que Benjamin desenvolve uma leitura da modernidade com origem no ressentimento. E lê esse ressentimento principalmente nas fulgurações do flâneur que comparecem anotados sob o olhar de Baudelaire diante de uma paisagem já sem medida humana, como nos lembra João Barrento, crítico e tradutor de Walter Benjamin: porque “toda flanêrie é noturna, violenta, desesperada e ressentida. Quase uma ilusão de vida”. Noutra disposição, ainda nesse texto sobre Baudelaire, em Parque Central, fragmento 35, ele dilata, entre outras impressões praticadas por subtração, a imagem da catástrofe a partir do impera­ tivo gerado por um novo conceito de progresso. Diz que se deve fundar o conceito de progresso na ideia de catástrofe. E desenha a imagem dessa fundação: “Que tudo ‘continue assim’, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre iminente, mas sim o sempre dado. O pen­ samento de Strindberg: o inferno não é nada a nos acontecer, mas sim esta vida aqui.” Strindberg, que foi um dos escritores favoritos de Kafka, ao impor o inferno como “esta vida aqui”, termina por sugerir ao jovem Franz Kafka a construção de um Luftmensch e, 46

ao mesmo tempo - o que este faz a partir do inseto [o animal imprestável para o sacrifício] e de suas m ario­ netes com fios invisíveis [elementos que chamariam a atenção de Benjamin]

a ideia de que a comuni­

dade é um inviável e um impossível. Para Kafka não há vida comum, não há vida em comum, não há vida para o comum.

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Mas já num pequeno texto, de 1933, Experiência e Pobreza, podemos ler acerca do desenvolvimento da técnica sobrepondo-se ao homem e ao que o singulariza: a experiência, esta travessia de um perigo. Mas é em A obra de arte na era da reprodutibilidaáe técnica, de 1935/36, que vincula de vez o seu pensa­ mento a essa problemática. Neste ensaio, ele afirma que “ Todos os esforços no sentido de tornar esté­ tica a política culminarão em uma só coisa: guerra.” Ficamos diante daquilo que Susan Buck-Morss leria em Benjamin como anestética, quando remete às preocupações dele de pensar a modernidade a par­ tir da introdução definitiva da estética na vida polí­ tica. Ela ainda diz que é a partir de uma anestética

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que estabelecemos um gozo narcísico com a visão de nossa própria destruição. E a modernidade que Benjamin leu se coloca mais ou menos aí, num engendramento entre experiência estética e expe­ riência histórica. Para ele, é a vida moderna que, diante do horror, está em jogo numa condição múl­ tipla que vai da banalidade ao fazer, ou seja, a arte tal qual a vida. Por isso seus interesses são tão múltiplos: da moda ao brinquedo, da urbanização à guerra, da fábrica à filatelia, da língua aos bootleggers etc. Mas ler Benjamin é, principalmente, segundo sua própria lição, ler o que foi escrito com tinta invisí­ vel, ler o que nunca foi escrito. E aqui não se trata de entrelinha, lacuna ou espaço em branco, mas muito mais de uma armadilha das imagens do pensamento que armam possibilidades de constelações hetero­ gêneas de sentidos para que, assim, se possa mover outras perspectivas e outras lembranças do presente. A questão é o tempo histórico oscilador e oscilante que se constitui a partir de um encontro dos tempos, numa espécie de colisão de um presente ativo com seus passados reminiscentes. Por isso que a constatação, em Experiência e Pobreza, de que os homens voltam da guerra 48

absolutamente silenciosos, logo, muito mais pobres em experiências comunicáveis, coloca em xeque este limite ambivalente de um enfrentamento próprio da modernidade diante do tempo histórico: a poética e a técnica. Um vetor é, para Benjamin, a guerra de trincheiras, de sabotagem, porque “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos gover­ nantes.” O que surge, diz ele, é uma “nova barbárie”, diante desse espetáculo de emudecimento em que a troca de experiências não é mais possível, em que a experiência se empobrece sobrepujada pela técnica e se abre sobre a humanidade. E a pergunta que vem é: “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” Não à toa é ele quem, talvez, melhor leu o pro­ blema da ficção, da história, da memória e do teste­ munho na modernidade arrancados de seus meros contextos: “Escrever a história significa, portanto, citar a história”. Ao traçar com precisão o declínio da experiência, traça também o declínio da tradição compartilhada por uma comunidade, transmitida e

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modificada a cada nova geração, como uma denún­ cia daquilo que determina o desaparecimento das formas de relação artesanal com a vida. Soma-se a isso também a sua ideia de choque [ou trauma, como sugere Freud na mesma época], elaborada também no ensaio em torno de Baudelaire. A impossibili­ dade de assimilar o choque, o fortuito, o sobressalto, como se o choque se desse não só entre uma multi­ dão amorfa de passantes, mas também numa espé­ cie de superfície lisa do corpo, numa composição semelhante ao vidro [material moderno tão caro a Benjamin na sua leitura crítica do progresso], que impede a aderência, o rastro, a marca ou a fixação de qualquer memória. Benjamin compara esse choque à relação do operário com a máquina, uma repeti­ ção rigorosa, quando cada operação é desvinculada da ação anterior e, assim, esvaziada de conteúdo. São experiências estéreis, fragmentadas, o fim do nosso estado de distensão [ou o tédio, quando “ninguém mais fia ou tece enquanto ouve uma história” ]; ou seja, o homem isolado num território hostil onde o choque tornou-se a norma. Por isso mesmo o espetá­ culo da catástrofe, que é também o da própria moder­ nidade, passa a ser uma apresentação: que as coisas

continuem exatamente como estão. Isto pode nos remeter diretamente ao cinema de Harun Farocki, como está, por exemplo, em Os trabalhadores saindo da fábrica, Imagens do mundo e inscrições da guerra ou em Fogo Inextinguível: o eterno e o contingente, a saturação e a purificação do efeito ou nenhuma con­ cessão ao poder. Se não conseguimos interromper a catástrofe, é preciso ao menos interrogá-la constante­ mente: manter algumas perguntas ativas. Interessante que em O narrador, de 1936, apesar de assinalar o fim da narrativa tradicional, como já indicara em Experiência e pobreza, Benjamin tam­ bém acena para a ideia de uma outra narrativa, o que Jeanne Marie Gagnebin vai definir como uma nar­ ração por dentro das ruínas da narrativa. Como se a tarefa de todos nós agora fosse, movidos pela pobreza da experiência, recolher, colecionar os restos, os detritos deixados para trás pela tradição dominante, e fazer com que 0 anjo da história recupere o olhar para trás, para a ruína que se acumula aos seus pés. O anjo expandido - como está em nossa Emília, a marquesa de Rabicó, este ser para-humano e sub-divino - , ten­ tando cumprir algum caráter destrutivo. Gagnebin afirma que transmitir o que a tradição oficial ou

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dominante justamente não recorda é uma espécie de transmissão do inenarrável. Para ela, mesmo que não sejamos herdeiros diretos de um massacre, se não somos privados da palavra e se podemos exatamente fazer desse exercício da palavra o nosso campo de ação, então a nossa tarefa seria, talvez, reestabelecer o espaço onde se possa articular uma espécie de “ter­ ceiro”, um campo de possível fora do binômio torturador e torturado, algoz e vítima, e assim devolver ao mundo algum sentido do humano. Em 1940, Benjamin escreveu um documento inti­ tulado Sobre 0 conceito de História. Logo depois, ten­ tava escapar de uma França que denunciava à Gestapo os refugiados judeus e, em 26 de setembro deste ano, em Portbou, na fronteira espanhola, opta pelo suicídio. O documento, composto de 18 teses e 2 apêndices, é um texto marcadamente denso, sempre olhado como leitura difícil por causa da variação de sugestões entre as proposições marxistas do materialismo histórico e da teologia judaica. Como lembra Michel Lõwy, há nessas teses uma série de questões fundamen­ tais acerca do progresso, da religião, da história, da utopia e da política, que nenhum leitor que se preze pode passar incólume a elas. Da Tese 4, por exemplo,

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quando expande a imagem da precisão marxista de que o único real possível é a luta de classes ao dizer que “A luta de classes, que um historiador educado por M arx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refi­ nadas e espirituais.” ; ou da Tese 7, que conversa dire­ tamente com o texto de 1933, ao indicar que é preciso fazer um revés da história em direção ao vencido, que o historiador sempre dirige sua empatia ao vencedor que, por sua vez, beneficia o dominador e, nesta rela­ ção refeita, dá-se a ver os despojos a que chamamos de bens culturais. Portanto, a articulação entre os textos se remonta numa revisão também de nossa experiên­ cia moderna: “Nunca houve um monumento da cul­ tura que não fosse também um monumento da barbá­ rie.” Por isso, a tarefa radical do materialista histórico, para Benjamin, é “escovar a história a contrapelo.”

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Muito recentemente começam a surgir uma série de textos de Walter Benjamin até então inédi­ tos em língua portuguesa ou, mais simplesmente, no Brasil. Este pequeno livro traz um deles: História da

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Literatura e Ciência da Literatura, de 1931, que tem uma tradução de João Barrento, lançada em Portugal em 2015, e agora traduzido para o português brasileiro por Helano Ribeiro, professor de língua e literatura alemã na Universidade Federal de Pelotas,

UFPel,

tra­

dutor também de alguns textos de Thomas Bernhard e Carl Einstein, por exemplo. Interessante lembrar que nesse período, mais ou menos, entre 1929 e 1932, Benjamin mantinha um programa de rádio para falar com as crianças sobre o dia a dia em Berlim e suas expansões de cidade, entre sentido e pensamento. Isto tem contornos políticos muito pertinentes, numa clareza daquilo que poderia vir a ser a construção de uma nova memória. Memória que é, para ele, uma questão e um ponto de leitura da crise moderna, desde o conceito de Ursprung que está na Origem do drama trágico alemão, por exemplo, até os seus textos acerca da fotografia, da reprodução técnica etc. Percebe-se assim, nesse texto que ora se publica, uma preocupação inequívoca com a formação como um elemento de singularidade diante daquilo que elabora como prática numa crítica radical da cultura burguesa. Benjamin tensiona-se nessa prática, como ética, o que ainda solicita uma leitura vigorosa diante

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de nosso tempo agora. Um apontamento é perceber que esse texto data de dois anos antes da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, e que as discussões de Benjamin sobre a questão do fascismo na Europa já aparecem em Teorias do fascismo alemão, de 1930, texto elaborado nessa mesma conjunção expandida de sua ética. O cerne desse História da Literatura e Ciência da Literatura está num desdobramento de uma ideia da educação pela literatura. E este é um de seus empenhos para constituir uma história cole­ tiva dos vencidos para além do plano da memória individual, no caso aqui, para além daquilo que “a escola representa como instituição legitimadora e geradora de monumentos de cultura”, como nos lem ­ bra muito bem Martha DAngelo. Um pensamento que sugere arrancar a educação de seus nichos ins­ titucionais e colocá-la de vez no mundo, diz ela. A pauta para Benjamin é uma discussão abrangente e contaminada entre literatura e história ou entre história da literatura e história e que precisa sempre ser repensada: compreender “a verdadeira relação entre Literatura e História como um problema, e muito menos aquela relação existente entre História

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e História da Literatura. Se, ao contrário, lançarmos uma vista de olhos sobre as tentativas feitas até m ea­ dos do século, mostra-se, então, quão indefinida per­ manecera a posição da História da Literatura, seja na História, seja com relação à História”. Para ele, “a História da Literatura se encontra em meio a uma crise, esta nada mais é que fenômeno parcial de uma crise muito mais geral. A História da Literatura não é apenas uma disciplina, mas, em seu próprio desenvolvimento, um momento da História Geral.” Ou seja, o que vem antes da história, sua anterioridade, quando afirma que “Apenas uma ciência que renuncia a seu caráter museológico está apta a colocar o real no lugar da ilusão. “Isso teria como premissa não apenas a decisão de omitir muitos aspectos, mas também a capacidade de introduzir a prática da História da Literatura conscientemente em um espaço de tempo em que o número dos que escrevem - afinal estes não são apenas os literatos e poetas - cresce diariamente, e o interesse técnico pelos assuntos da escrita revela-se muito mais pre­ mente que o interesse pela inspiração.” Em duas passagens de Silvina Rodrigues Lopes, crítica portuguesa, quando sugere uma defesa do atrito para o pensamento, através da literatura, 56

podemos elucidar ainda mais esse horizonte formativo proposto por Benjamin para a literatura como renúncia a todo e qualquer caráter museológico, da institucionalização ao funcional. Primeiro, ela diz que “grande parte daqueles que se apresentam como escritores às condições institucionais dom i­ nantes e ao mercado, não produzem senão simples objetos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado. Essa adaptação vem negar a anti-institucionalidade (que não é apenas caracterís­ tica do modernismo, mas daquilo que, na seqüência de Baudelaire, se designa como modernidade lite­ rária) em nome da acessibilidade da literatura, e de outros tipos de discurso, ao grande público, o que corresponde à negação máxima de qualquer dim en­ são inconformista. Aquilo que se chama grande público’ só pode ser composto por gostos esclerosados, pelo que há de mais resistente à mudança, e por conseguinte pelo que há de mais antiartístico, a negação do movimento. Aquilo que se destina ao grande público é a espetacularização, que esteriliza ao colocar a diversão como substituta da estranheza, tornando-se eficaz na relegação do humano para o nível mais triste da vida animal - a domesticação.”

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Depois, infere que o simples fato de admitirmos que é “natural que o escritor assuma funções de ani­ mador cultural ou difusor de moralidade e opiniões é rasurar a distância entre o que funda o nosso habi­ tar e a estreiteza social que garante a sobrevivência. E, no entanto, a perda dessa distância é a perda da experiência, a qual é sempre afirmação exterior à síntese da consciência, necessariamente mutiladora. Quando alguém é obrigado a reduzir-se a uma dimensão única, mesmo que seja a da justiça, isso é o horror, uma limitação que mesmo quando é uma exigência de justiça nem por isso deixa de ser entendida como limitação insuportável.” O que ela aponta é que o ensino da literatura nos exige um “tempo próprio, que nada tem a ver com a cir­ culação de informações, um tempo de análise e de construção de perspectivas”. E que o ensino não pode ser convertido em administração de um capital simbólico ou no adestramento do uso de técnicas, mas sim possibilitar um desenvolvimento constante do conhecimento por dentro da condição paradoxal da literatura: “preparar para a sua própria negação, a negação de ideias feitas, qualquer que seja o seu esta­ tuto”. Ou seja, entre uma ética e a experiência, Silvina lê e pensa crítica e atualmente, agora, com Benjamin.

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Por fim, num fragmento de Desempacotando minha biblioteca, da série Imagens do Pensamento, Benjamin escreve: “Estou desempacotando a minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revis­ tá-los.” Ler Benjamin agora é um pouco provocar-se nessa revisitação do pensamento que vem da m oder­ nidade como um porvir, anacronicamente. Esta é a sua tarefa política. Desempacotar os livros que formam o pensamento do século x x é, de alguma maneira, mesmo sem querer, tocar em Benjamin exatamente no movimento de seu pensamento, por causa do limiar em que se colocava. João Barrento é quem aponta para essa zona limite: “sempre fora do cânone, entre modos novos de pensar. A grande ten­ são do pensamento dele está no choque entre o m es­ sianismo judaico e o materialismo histórico, que ele conjugou como ninguém mais fez.” E ainda lembra que há as viagens que Benjamin fez nos anos 1920, o exílio na França nos anos 1930 e que entre estas

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e outras coisas teve uma vida completamente “m ar­ cada pelo risco e pela fronteira”, os limes. Assim, a imagem de um colecionador no limiar é que impõe, para Benjamin, a sugestão de uma imagem dialética entre a ordem e a desordem ao observar o pequeno, o trivial, o que não está posto, o que não está à vista. Um colecionador de livros, por exemplo, é o que se entorpece com uma memória involuntária que cada livro contém, uma espécie de memória mágica, a partir da excitação da compra: o lugar, o preço, a cidade, a língua, os entornos etc. O colecionador, assim, se alarga como uma figura mágica, capaz de fazer magia, porque são “fisionomistas do mundo dos objetos” e por isso se tornam “ intérpretes do destino”. Os que são capazes de gerar e engendrar uma imaginação produtora de mundos. E, numa perspectiva alegórica, como sugere Martha DAngelo, diante de uma exposição barroca e m un­ dana da história como via crucis do mundo. Ler Benjamin hoje pode parecer uma esco­ lha um tanto óbvia se lido apenas na mesma clave, com pouquíssima deriva e numa espécie de plano fechado que impede projetar a leitura sobre uma imaginação crítica invisível e ainda não escrita e, 6o

mais severamente, o que ainda no passado está por ser lido sempre no presente e como presente. Ler Benjamin, com algum prazer e proposição do polí­ tico, tem a ver diretamente com uma procura para cum prir também, com ele, uma aprendizagem que vem com a figuração do colecionador imprevisto de instantes; assim, a partir daí, pode-se armar outras séries mais tensas e mais heterogêneas, outras cons­ telações absolutamente díspares; e isto seria de fato uma tarefa mais próxim a do que ele propõe. Ler com Benjamin é ler o presente sem perder de vista que estamos o tempo inteiro tentando ler o porvir de todos os passados diante de uma pergunta: o que ainda nos cabe como imagem crítica?

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