No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica
 9788574480015, 8574480010

  • Commentary
  • Tradução de Claudia Cavalcanti
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Peter Sloterdijk

n o mesmo barco ensaio sobre a hiperpolilica

tradução Claudia Cavalcanti

2ª edição

Estação Liberdade

Sumário

Títu lo original: fm selben Boot - Versuch iiber die Hyperpofitik © Suhrkamp Verlag Frankfurt am M ain , 1993

Revisão dtt tradução Revisão Composição Projeto gráfico Ilustração da capa

Angel Bojadse n Estação Liberdade Anita Co rcizas Antonio Kehl e Edilberco Fernando Verza Wassi ly Kandinsky, Kfeines Bifd mit Gefb (deta lh e) . Ó leos/rela, 78 x 100 cm, 191 4. Philadelphia Museum of Art / The Louise and Walter Arensberg Co llection, por aco rd o

Slote rdijk, Peter No mesmo barco: ensa io so bre a hiperpolítica / Peter Sloterd ij k ; tradução de C laudia Caval canci . - São Paulo : Estação Liberdade, 1999

Regaços e jangadas traços de uma paleopolítica

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2

Atletismo estatal sobre o espírito da megalopatia

31

3

Ausência de reinado e hiperpolítica metamorfose dos corpos sociais na era geopolítica

58

p. 96 Tradução de : lm selben Boot

ISBN: 978-85-7448-001-5 1. C iência po lítica - Fil osofia.

I. Cavalcanti , C laudia, rrad . II. Tírnlo.

coo

320 .01

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Cultura non fecit saltus Dieter C laessens, O Concreto e o Abstrato

A famosa sentença de Bismarck, segundo a l ual a política é a arte do possível, contém uma adve rtência contra o ataque ao Estado por crianças grandes. Aos olhos do estadista, teriam permane·ido crianças aqueles adultos que nunca estiveram cm condições de aprender seriamente a diferença · n tre o politicamente possível e o impossível. A arte do possível é equivalente à capacidade de proteger o espaço da política contra exigências o riundas do impossível. Consequentemente, o rno arte real a política estaria no cume de uma pirâmide de racionalidade, que estabelece uma relação hierárquica entre razão de Estado e razão privada, entre sabedoria principesca e interesses de grupos, entre adultos políticos e crianças políticas. Se for levado suficientemente a sério o que foi dito sobre a arte do possível, abrir-se-á nela um espaço

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11 1· 1 1· ll SLOTERD IJ K

de conotações que remonta às pesquisas de Platão sobre as qualificações do estadista e às questões aristotélicas sobre os fundamentos da capacidade de convívio das pessoas na comunidade. Ocorre que não é exclusividade dos gregos ter descoberto a dificuldade de manter as pessoas juntas em cidades e Estados para uma vida comunitária satisfatória. Nessa área, deve-se traçar um certo paralelismo entre a história objetiva e a dos seus problemas, e por conseguinte conceder à consciência uma profundidade histórica das possíveis crises e degenerações do político, uma profundidade histórica que fica bem pouco aquém da história real de cidades, reinos e impérios. Podemos convencer-nos por meio daqueles documentos antigos relativamente raros que possibilitam reconhecer como a negatividade política avançou nos textos escritos, como nas queixas do antigo Egito sobre a degradação da moralidade reinante e do discurso comum e também nas teorias de decadência dos primórdios do taoísmo, que inscrevem o surgimento dos ofícios urbanos e das artes nas cortes numa história universal do abandono, e no corpus de textos de antigos profetas hebraicos que tratam da dificuldade de condicionar um povo em sua totalidade através das ideias de aliança e de eleição divina. Entre as tradições do judaísmo antigo atribui-se ao mito

d :1 construção da torre de Babel um significado

·special. Na longa história de interpretação e efeito 1·sse breve relato do Gênesis 11: 1-11, desde sempre s · expressa a sensação de que o mito da construção la torre articula algo da conditio humana política no tempo dos impérios e grandes civilizações -algo ·omo uma repetição do mito da expulsão do paraíso no plano político. 1 A catástrofe de Babel descreve a ·ena original da perda de consenso entre os homens · o início da má pluralidade: [6] Ü

S EN HO R D ISSE:

"V t.,

ELES SÁO UM POVO, E TO DOS

l'f..M UMA SÓ LÍNGUA; MAS EST E É APENAS O COMEÇO D E SUA i\C,:ÃO . N ADA DAQU ILO QUE PRET END EM LH ES SERÁ IM POSSÍVEL.

17]

P o is ENT ÁO, DESÇAMOS!

LA QUEREMOS

CONFUN DIR SUA

t.fNGUA , PARA QUE NI NG UÉM MAJS ENTEN DA O D ISCURSO DO OUTRO !"

[8] E

O SEN HO R DI SPERSOU-OS A PART lR DE ENT ÁO

l'OR TO DA A T ERRA; ELES PARARAM A CONSTRU ÇÁO . /\

[9]

P OR 1550

IDADE SE CH AMA ' B ABEL'; POl S LÁ O SEN HO R CON FUN DlU A

t. fNGUA DO MUNDO TO DO, E A PARTI R D E ENTÁO A D ISPERSO U

)

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l' l'. LA T ERRA INT EIRA."

Dispersão e pluralidade da espécie humana aparecem à luz desse documento mítico como resultado de uma intervenção divina contra o poder da humanidade unida. Aos intérpretes 1. Cf. Arno Borsc , Der Titrmbau von Babel. Geschichte der Meinungen über Urspriinge und Vielfalt der Sprachen und Volker, 3 vols., Scuttga rt ,

1957 er seq.

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i' ETER SLOTERD IJK

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mais antigos do mito deve ter sido tão evidente o motivo dessa intervenção que quase não notaram a ausência de uma motivação explícita no texto escrito : o mundo bíblico é um reino da ética da diferenciação, que não tolera semelhanças desmedidas - pelo menos não aquelas entre um deus todo-poderoso e uma humanidade todo-poderosa. Por isso a dispersão de Babel é tão bem motivada: como uma medida antimimética, um ato de tornar-se dessemelhante, que equivale a uma castração política da espécie. Sob essa luz, a humanidade aparece como a espécie metafisicamente virulenta, que deve ser humilhada com a queda na pluralidade. O Senhor bíblico, portanto, não é somente um sadista difusionista que não quer permitir que se reúna o que se pertence; ele é também, e mais ainda, um Senhor da discrição, que dispersa e separa o que estava aglomerado de forma nociva. O mito de Babel apresenta a expulsão da humanidade de um paraíso unitário, cujo conteúdo político poderia se caracterizar por um nome claro: consensus, a perfeita concordância de mentalidades e missões - as gentes de Babel sabiam bem demais o que deviam e queriam; seu projeto de torre, de acordo com tudo o que sabemos a esse respeito, era uma campanha excessivamente unânime em busca das alturas. A catástrofe linguística era apenas o meio a serviço

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um fim, o de quebrar a unidade do povo de lb bel em seu empreendimento coletivo. Nesse po nto se pode ler a história da fracassada constru